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de Ralfo
ABSTRACT. Satanism in Confissões de Ralfo. Our study has the aim to show that the
aesthetic fragmentation presented by the novel Confissões de Ralfo is a result of the romantic
movement enterprises to innovate, mainly the ones known as satanism, that is the rebel
search for the being’s plenitude viewed through Satan’s figure and the revolt against the
classical canons, resulting in the awake to the aesthetic fragmentation.
Key words: Sérgio Sant’Anna, Romantism, satanism, fragmentation.
Sob esse prisma, um dos aspectos fundamentais com suas formas, seus limites, encontra uma
do Romantismo é o individualismo acentuado, traço explicação precária.
comum entre os poetas românticos. Esse Além disso, conforme assinala Antonio Candido,
individualismo é decorrente de uma nova concepção as desilusões sucessivas em relação à realidade social
de indivíduo, visto que o Romantismo é o momento formam um hiato entre o indivíduo e a sociedade.
em que o homem tem consciência da perda de sua Os intelectuais desse período, segundo esse crítico,
integridade (Rosenfeld, 1973: 152). foram profundamente decepcionados pela sociedade
A fissura na integridade do homem está ligada a burguesa que acabava de se instaurar. Essa
um novo conceito de Razão. Essa era entendida pelo representava para os românticos a promessa de
pensamento totalizador do Sturm und Drüng, restituir a felicidade individual. Negado esse anseio,
considerado o Pré-Romantismo alemão, como uma a reação dos intelectuais torna-se a forma de
força infinita e onipotente que habita o mundo e o reconhecimento e expressão de uma situação em
domina e que, portanto, constitui a substância crise.
mesma do mundo (Abbagnano, s/d: 827). Diante dessa incompatibilidade entre o indivíduo
No século XIX, a história definiu-se como uma e a sociedade, a única decisão cabível para os artistas
paixão científica, que visa conhecer exaustivamente desse período é o sentimento de revolta por um lado
todas as aventuras da humanidade, e que se esforça e, por outro, um acentuado pessimismo. Os artistas
por reconstituir o passado total da espécie e que dessa classe reagem contra tal sociedade separando-
toma consciência dele. “A descoberta da historicidade se dela com desgosto, o que se manifesta na sua arte
como forma de ser específica do homem no mundo leva o por um notável “decadentismo”; decadentismo esse
pensamento europeu a compreender a precariedade e a entendido no sentido de uma diminuição
condição paradoxal do homem que toma consciência da sua surpreendente da energia vital, que tem como
temporalidade” (Eliade, s/d: 49). Em função disso, o conseqüência o afastamento da vida prática e o
tempo passa a ser tema fascinante não só para a refúgio na vida contemplativa, uma
filosofia, como para os próprios romancistas. hipersensibilidade estética, uma falta de vontade de
No Romantismo, a razão deixa de ser viver, um marcado pessimismo.
considerada um valor supremo, essência comum a O recurso ao passado, às lendas, aos estados de
todos os seres humanos. Em conseqüência, se no sonho são instrumentos que permitem ao romântico
século XVIII havia uma ciência geral baseada em tentar renovar sua visão de homem e de mundo. A
operações analíticas de abstração, que levava em evasão no espaço e no tempo é, pois, uma forma de
conta o que é comum no homem em todas as os românticos tentarem recuperar a unidade e a
variações, no século XIX, porém, o que passa a se inocência perdidas, visando desfazer “o pecado
destacar é a oposição entre as identidades e as original da individualização”. Contudo, essa atitude
diferenças. O ser humano passa a ser visto, a partir de evasão é uma forma de realçar a fragmentação do
de então, como um todo concreto, integrado no seu indivíduo.
ambiente e determinado por variáveis biológicas e Por outro lado, o sentimento de
étnico-históricas, que o torna inconfundível insuportabilidade diante da sociedade faz com que
(Foucault, 1981). os artistas manifestem uma atitude de revolta, de
A vida, dessa forma, não é mais o que se pode rebeldia contra todos os tipos de valores, quer sociais
distinguir de maneira mais ou menos certa, ao quer estéticos. Este é considerado um aspecto
contrário, é aquela em que se fundem todas as fundamental do Romantismo ficou conhecido como
distinções possíveis entre os seres vivos. Com isso, satanismo: “um protesto universal e genérico contra
“tende-se a ressaltar o característico, categoria tudo aquilo que representa um limite ou uma regra”
importante do pensamento romântico que (Rosenfeld, 1973: 152).
freqüentemente conduz ao caricatural e ao grotesco” Já que as ciências da época não podiam dar conta
(Rosenfeld, 1973: 152). da complexidade do indivíduo em face à
Enfim, o desejo de fazer de si o mais fragmentação, os românticos, para corresponder ao
insubstituível do mundo representa o apego à desejo de harmonia que sentem, revelam a
unicidade; o típico reflexo do que há no homem de problemática do desdobramento da personalidade
visível e classificável. em forma de temas metaforizantes. Esses são
Assim, a partir do século XIX, o campo do saber manifestos sob forma de desdobramento em
não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea homem-espelho, homem-máscara, o duplo, o sósia,
e uniforme em todos os seus pontos. Desse modo, a o homem que vendeu a alma, o homem que vendeu
individualidade que aí começa a ser desvendada, a sombra, entre outros. Esses desdobramentos
Dorian torna-se sujeito, agindo sobre a natureza, divisão de si mesmo, a convivência com a duplicação
imprimindo nela sua vontade, transgredindo as no espelho ocorre como passo da modernidade. Na
fronteiras limitadas do tempo, ao contrário do literatura recente, essa cisão, de cujo exemplo é
clássico que se curva diante da natureza e do tempo. Confissões de Ralfo, encontra-se estilhaçada.
Na realidade, essa obra mostra o embate entre o Os duplos ocupam uma extensa galeria na
homem e a finitude do tempo, tema que tanto literatura brasileira do século XX e, muitas vezes, são
fascinou não só os filósofos como os escritores desse as próprias personagens quem nos dão notícia de sua
período. existência dualista. Já que o outro de fato existe,
Outro exemplo clássico de desdobramento de como já comprovou a psicanálise, o duplo impõe-se
personalidade é encontrado na obra Fausto (Göethe, e exige o registro de sua presença, quer de maneira
1984). Aqui o personagem título é levado, através da nítida, quer como suaves evocações, mas nem por
tentação, a vender a alma ao diabo. Em troca, Fausto isso menos visível. Em ambos os casos, o duplo
poderia conhecer e experimentar todas as circunscreve um conflito e desnuda desde
possibilidades de vivências e sensações novas que o frustrações, pensamentos até desejos antagônicos ao
mundo oferece, podendo conhecer os prazeres dos ímpeto irracionalista, revelando, assim, o lado
mais altos extratos sociais até as mazelas do menos aparente da conduta humana.
submundo. No romance de Sérgio Sant’Anna, o “autor”
Em meio à diversidade das experiências vividas, pretende conviver com o conflito; quer habitar o
Fausto deseja encontrar uma unidade capaz de enigma, conhecer suas contradições. Ele assume
abarcar todas as contradições de seu ser primeiramente que Ralfo é seu duplo, textualmente
fragmentado. Impulsionado pelo Diabo, Fausto tem enunciado em metalinguagem: “... resolvi transformar-
a oportunidade de romper com todas as limitações me em outro homem, tornar-me personagem ... Ralfo é este
de um sistema de valores, experimentando tudo o homem. Nasceu com a minha primeira morte, a morte de
que é proibido pela moral oficial, enfim, de deixar alguém cuja identidade não interessa. Porque um homem
que o seu comportamento seja ditado pelo Diabo, o que recusou a si próprio e murchou, cedendo lugar a um
símbolo maior da transgressão da ordem. personagem” (Sant’Anna, 1975: 02).
Por meio do Diabo, Fausto revela sua vocação A função que esse duplo representa para o
para o desmedido e o contraditório, fundindo “autor” é também enunciada em metalinguagem:
aspectos aparentemente inconciliáveis do “antes de tudo quero me divertir ou mesmo
comportamento, no afã de encontrar uma unidade emocionar-me vivendo e escrevendo este livro”
que elimine de uma vez para sempre sua dualidade. (Sant’Anna, 1975: 02).
Como esse é um aspecto fundamental do período Como fica evidente, a criação do duplo em,
romântico, essa obra influenciou inúmeras outras Confissões de Ralfo, é feita a partir do caráter
com a mesma temática. imaginário que possui a autobiografia. Enquanto na
A busca rebelde da plenitude do ser, que forma romanesca o imaginário é um elemento que
caracteriza o período romântico, leva os romancistas está presente por menos que o escritor-narrador o
a descobrirem novas formas para exprimir deseje, no romance em análise, o imaginário é parte
artisticamente a sua problemática existencial. integrante da escrita e tem uma presença tão
Exatamente por isso, o Romantismo é marcante ou até mais acentuada do que o real. “O
excepcionalmente rico do ponto de vista do autor” deixa isso expresso em metalinguagem através
descobrimento de novas técnicas de expressão de natureza multifacetada do gênero autobiográfico:
artística. “Afinal não só esta, mas todas as autobiografias são
No Romantismo começa a se desvendar, sempre imaginárias e reais. Pois se a realidade é de
conforme assinala Foucault, um pensamento no certo modo imaginária, também a imaginação e a
qual a individualidade, com suas formas, seus fantasia são realidades contundentes, que revelam
limites, suas necessidades, encontra uma explicação integralmente o ser e o mundo em que se apóiam”
precária, mas que coloca os românticos a um passo (Sant’Anna, 1975: 02). Infere-se desse fragmento
da descoberta do inconsciente por Freud (Foucault, que, o “autor” privilegia o elemento imaginário da
1981: 316). autobiografia, realçando a força que ele tem de
representar a realidade concreta.
Século XX: o eu em estilhaço O duplo, em Confissões de Ralfo, ainda que se
manifeste de forma lúdica, não deixa de ser
Se o século XIX vê eclodir o mito da revolta
verdadeiro, pois o simples fato de ser confissões,
através da figura de Satã, o século XX vê florescer os
uma forma autobiográfica, já autoriza a sua
mitos do conhecimento fundados em Narciso. A
adolescente ou adulto, é lançado no mundo, onde mistura dos mais variados e heterogêneos processos
vai aprendendo a conhecer-se a si mesmo e aos narrativos. Aí são parodiados a tradicional saída do
outros. “Confrontando-se com seu meio, o herói vai herói para o mundo, diário de bordo de Serafim,
penetrando nos segredos e problemas da existência humana, delírio de Brás Cubas, carta, diário de louco, de
advindo de suas experiências vitais a confrontação de seu guerrilheiro, relatório médico, roteiro turístico,
espírito e de seu caráter” (Aguiar e Silva, 1976: 310). julgamento judicial, encenação teatral e ainda
Em Confissões de Ralfo, fica claro que a intenção personagens como Alice e Sancho Pança. A
do autor é revelar todos os tipos de condutas que o tematização de conteúdos variados e os diferentes
ser humano pode manifestar, das mais nobres às procedimentos narrativos, que se inserem nesse
mais vulgares e perversas: “E percebendo-me romance dão conta da dimensão das alterações que o
demasiadamente crápula ou vil ou pequeno e autor introduz no gênero romanesco.
medíocre, num capítulo, surgirei gracioso e
esfuziante no capítulo seguinte, desfazendo a Projeção mítica da carnavalização
impressão anterior” (Sant’Anna, 1975: 02). Nisso,
Ao lado do projeto da busca que Sérgio
Ralfo tem uma função que se aproxima da que o
empreende para encontrar uma experiência
demônio tinha para os românticos: o e proporcionar
significativa que possa transformar sua existência,
ao narrador a oportunidade de satisfazer sua
surge também o projeto de invenção permanente da
curiosidade de conhecer e experimentar uma
construção literária, levando a obra à carnavalização
formação às avessas, revelando o lado animalesco,
total, “ao caos que tudo engloba, desde o heróico ao banal,
pervertido, desenfreado, movido pelo mesmo anseio
desde o trágico ao cômico” (Grassi, s/d: 95). A busca
de encontrar uma unidade.
apresenta-se nas várias camadas e estruturas da obra:
Com a criação de Ralfo, Sérgio quer saciar a sede
no nível do tema e no nível da poética formulada
de ser pleno, e o núcleo da narrativa gira em torno
pelo autor como elemento intrínseco à obra. Todos
dessa busca que para o autor é vital. A criação desse
os procedimentos narrativos são válidos e justificam-
duplo revela, também, que o universo construído é
se a partir desse tema.
fundamentalmente um universo ficcional,
O estilo também não deixa de ser uma maneira
procedimento comum na literatura contemporânea.
de Sérgio interpretar o tema da busca. Como afirma
Ralfo, que assume o comando da narrativa e
um crítico insuspeito, “rompendo com os módulos da
também a incumbência de ir à procura de
ordem formativa que serviam para falar do homem de
acontecimentos, que encerrem a promessa de o
ontem, a arte fala do homem de hoje através da maneira
“autor” encontrar seu verdadeiro “eu” para que se
pela qual se estrutura” (Eco, 1971: 155).
torne pleno, terá que vivenciar diferentes situações.
A montagem do livro sugere o caótico, o
Desse modo, do projeto de busca que o “autor”
fragmentário. Trata-se de um discurso lacunoso e
empreende surge o projeto de invenção permanente.
suscetível a uma infinidade de significações.
Como o “autor” funde-se em Ralfo a partir do
Seguindo uma tendência do romance
primeiro capítulo, este fica responsável também pela
contemporâneo, Confissões de Ralfo é “uma obra
estruturação da obra, e o seu projeto estético, como
inesgotada e aberta enquanto ambígua, [ ... ] quer no
o de seu criador, é romper com os padrões
sentido negativo de uma carência de centros de
romanescos habituais: “Pois o segredo de Ralfo é a
orientação, quer no sentido positivo de uma
inovação e a experimentação permanentes”
reversibilidade dos valores e das certezas” (Eco,
(Sant’Anna, 1975: 194).
1971:47).
Enfim, o ato de o “autor” fundar o universo
A despeito do caráter fragmentário de sua
romanesco, na tentativa de liquidar a fragmentação,
estrutura, o texto compõe uma unidade, implicando
transforma-se numa busca mítica de reintegração
uma coerência lúdica que nada tem a ver com a
com a totalidade, tal como o indivíduo romântico.
lógica tradicional, mas uma lógica que o leitor vai
Só que, no texto de Sérgio Sant’Anna, essa ânsia de
montando por si mesmo, se tiver em mente que a
ser pleno delimita o alvo da invenção poética,
diversidade de temas, bem como os inúmeros
levando a obra à carnavalização quer temática quer
procedimentos narrativos constituem etapas
expressional. O texto deixa de ser fragmentado,
progressivas da caça a uma extraordinária
como no Romantismo, para se tornar carnavalizado
experiência. Assim, a montagem do livro compõe
em todos os níveis e estruturas da obra.
uma unidade a partir do fragmentário.
A obra oferece uma grande variedade de temas,
Ralfo, como dissemos, é o instrumento de que o
motivos e leit-motivos extraídos da tradição literária.
“autor” serve-se para alcançar a plenitude do ser; é
Composto de “nove pequenos livros”, o romance é a
por meio dele que o autor visa encontrar uma
realidade transcendente que transforme o seu modo Foi como um sonho ou fantasia, no meu caso. Mas
de existência. Em função disso, Ralfo é um que diferença isso pode fazer, se no caso de milhares de
personagem profundamente carnavalizado: não outros tem sido uma realidade de ladrilhos úmidos
dentro de cubículos, lâminas de aço que rasgam carnes
possui qualidades socialmente típicas e
sensíveis, cordas repuxando os membros de um corpo?
individualizantes, que possibilitem uma sólida E mais: gritos, desespero, chicotadas e mutilações. Que
imagem de seu caráter, tipo ou temperamento. Isso alívio, portanto, pode trazer para mim o fato de que
porque, se ele tivesse uma imagem bem definida, tais coisas aconteceram apenas ficcionalmente comigo?
seriam reduzidas as possibilidades de ele encarnar a Pois poderia ter sido assim (Sant’Anna, 1975:111).
multiplicidade de aventuras, fantasias e sonhos para
A ilogicidade do regime militar é revelada pela
os quais foi criado. Por isso, ele é construído sem
própria ilogicidade do interrogatório a que Ralfo é
qualquer coerência psíquica, sem uma ideologia e
submetido:
uma moral definidas que possam lhe dar uma
unidade. Em certa altura Ralfo pensa: “Preciso CULINÁRIA! Nos dê a receita de uma rosca doce
trabalhar', embora seja frontalmente contrário aos VIDA SOCIAL! Como se joga o gamão?
meus princípios” (Sant’Anna, 1975: 88); em outro, LITERATURA! O que é o romance?
ele exclama “Tenho fome: a fome dos que trabalham CIÊNCIAS NATURAIS! O que é um batráqueo?
(Sant’Anna, 1975:125-126)
arduamente” (Sant’Anna, 1975: 195).
Quanto à descrição de Ralfo, quem nos dá A consciência crítica, que não teme em apontar
notícia dela é uma psicopata, o que não merece os horrores de um asilo de loucos, é manifesta por
crédito de confiança “... o novo hóspede alia a beleza uma psicopata e ela, como tal, rejeita o papel de
(certamente) de sua alma a uma aparência externa das mais vítima: “Depois de uma severa repreensão, ele (Dr.
atraentes” (Sant’Anna, 1975: 132). Outros aspectos de Silvana) me prescreveu um tratamento à base de
sua aparência física, que aparecem no começo do choques elétricos, além de isolamento a partir de
livro, (“Roupas novas, cabelos cortados...”) são amanhã” (Sant’Anna, 1975: 137). É, pois, no vigor da
posteriormente repetidos (“cabelo um pouco mais caneta, independentemente da voz que assume o
crescido...”) e chegam a se tornar satíricos “... cabelos comando da narrativa, que a verdade se desnuda.
cortados, caspas voando nas correntes de ar, cicatrizes” No episódio mais extravagante do livro, o baile
(Sant’Anna, 1975:161). de máscara, realizado numa clínica psiquiátrica,
Os acontecimentos da narrativa sugerem que são Ralfo manifesta, de fato, sua natureza demoníaca.
dirigidos apenas a Ralfo e seu único fim é conhecer e Ele usa a máscara da loucura, loucura inautêntica
experimentar todas as possibilidades que o mundo (pois “seus eletroencêfalogramas, na verdade, jamais
lhe oferece. Para tal, age segundo o instinto, sem acusaram qualquer lesão cerebral”) para “nivelar
nenhuma coerção de ordem social ou moral. alguns dos mais corretos profissionais do país a um bando de
O privilégio concedido a Ralfo é o de poder loucos desvairados” (Sant’Anna, 1975: 154). Aqui a
mostrar, com crueza de vocabulário, as injustiças loucura é um pretexto para levar os donos do poder,
sociais: “Os banqueiros ficam cada vez mais ricos e os ainda que sejam os médicos, a revelar um
bancários cada vez mais putos da vida” (Sant’Anna, comportamento ditado pelo mais extravagante e
1975: 14). Não escapa à zombaria de Ralfo a relação luxurioso instinto sexual, “numa ambientação que
de subserviência entre empregado/empregador. faria empalidecer as mais animadas festas romanas”.
“Sim, senhor, Mr. Smith’, ‘Yes sir, Mr. Smith’, O deboche de Ralfo é justamente para mostrar o
‘Como não, Mr. Smith’, ’Não há de quê, Mr. avesso do processo. Ao inverter a imagem daqueles
Smith’, ‘Ha, ha, ha, Mr. Smith” (Sant’Anna, 1975: que se julgam dotados do mais perfeito equilíbrio
90-91). No dinamismo de suas aventuras, Ralfo mental, posto que leva-os “a não resistir ao demônio ali
pode transformar a realidade no que ele queira: encarnado na pessoa de um doente mental, terminando por
“Pedir à Helga, (a secretária) que organize os arrastar a todos nós consigo” (Sant’Anna, 1975:154).
arquivos assim mesmo como ela se encontra, isto é, Todas as situações por que Ralfo passa põem a
nua” (Sant’Anna, 1975: 92). nu atitudes puramente convencionais, mostrando
Por se encontrar metonificado como criatura de todo o desprezo que é capaz de despertar alguém
papel, Ralfo pode tecer críticas mordazes ao processo cujo comportamento paute-se por essas linhas. O
político da época da enunciação do texto, pondo a personagem denuncia para desmistificar as formas
nu a história de um Brasil marcada pelo estabelecidas, para desvelar hipocrisias, posturas bem
obscurantismo, prisões arbitrárias, torturas, aceitas.
oferecendo o ficcional à observação: O impulso de tudo experimentar faz com que ele
assuma, em cada capítulo, uma caracterização
diferente e desempenhe funções distintas. Ao longo do mito. “Purificado e transparente para reencarnar-se
de suas múltiplas aventuras, Ralfo refere-se a si mais uma vez” (Sant’Anna, 1975: 101).
mesmo como... “Eu, Ralfo, decadente Ulisses”, A forma como é mostrado o itinerário da busca
“Ralfo, o louco”, “Ladrão sem casaca”, “Conde”, revela que o verdadeiro reinício só pode ter lugar
“Justiceiro”, “Primeiro e único”, “Magnífico”, “O após o verdadeiro fim. “... Iniciar daí o aprendizado e há
mago”, “Como Nureíev”, “Como Deus”. Essa um longo caminho pela frente” (Sant’Anna, 1975:55).
heterogeneidade de identidades é a manifestação da Assim, a cada passo, a cada capítulo, Ralfo não
falta de unidade, numa relação inversa às consegue alcançar a almejada dimensão
designações dadas aos heróis clássicos que se transcendente da realidade, permanecendo sempre
mantinham durante todo o transcorrer da narrativa. uma lacuna entre o desejo e a realização da meta
Em consonância com a ausência de uma identidade, proposta. Tal situação obriga Ralfo a recomeçar do
ele é, simultaneamente, cínico, idealista, sarcástico, princípio, a escolher novas situações e a inventar
megalômano, hedonista. novas formas de comportamento. Daí resultam as
E, quanto à profissão, a consciência de estar improvisações; tudo parece atrair para diferentes
escrevendo um livro é registrada intermitentemente, perspectivas de abordagem de Ralfo, que está sempre
quer por ele, quer por outrem. Contudo, seu livro perseguindo uma busca fugidia, que lhe escapa
pode se enquadrar tanto numa estética considerada e sempre, mas que não chega, no entanto, a deparar-se
aplaudida como em gêneros “menores”: “Redação de com a frustração de não ter conseguido atingir uma
textos é o meu ramo”, “Ralfo, o escrivão”, “Sempre com um experiência que encerre de fato um valor maior. “E
bloco de notas na mão como um repórter”, “Meu livro se quanto a mim, finalmente, de novo só e como todos aqueles
tornaria um extenso e monótono diário de bordo”, “Talvez que, após várias tentativas, não conseguem encontrar sua
um dia a senhora tome conhecimento não só desta carta, mas identidade” (Sant’Anna, 1975:184)
de todo um livro confessional que estou escrevendo”, Todas as personagens, mostradas inicialmente
“Temerosos de que tais fatos sejam utilizados no livro de como gente comum, cumprindo suas respectivas
memórias do Ralfo”. “Fiquei muito excitada, hoje, com a funções, são expostas ao ridículo, revelando um
notícia de que o novo hóspede é nada mais nada menos do comportamento afastado das normas éticas e morais.
que um escritor. E que estaria escrevendo atualmente, a sua As personagens, desse modo, passam a preocupar-se
autobiografia”. Como escritor, Ralfo desvela o apenas com a satisfação dos instintos naturais,
trabalho de escritor que se caracteriza pelo sobretudo, com os prazeres carnais. Os insólitos
oportunismo literário: “O que eu desejo, senhores, é um comportamentos das personagens, manifestando
pouco de prestígio e dinheiro. Algo assim como direitos uma conduta que foge à percepção rotineira,
autorais entrando regularmente em uma casa de campo e acomodada à banalidade do mundo cotidiano
viagens pelo mundo, tendo como única contra-prestação enquadram-se no modelo do personagem Ralfo,
proferir conferências para otários de todos os tipos” “único e sufocante a quem acontecem mil peripécias: eu”
(Sant’Anna, 1975: 220). (Sant’Anna, 1975:11).
Os desdobramentos do personagem Ralfo devem As gêmeas obesas, Sofia e Rosângela, a prostituta
ser entendidos como o desejo do escritor de de beira do cais, a vítima masoquista de Ralfo, o
encontrar, uma experiência, de fato, verdadeira. Para mágico, o duplo Alice/Lolita, a sensual Rute, todas
alcançar tal objetivo, o tempo e o espaço, essas duas acabam se tornando apenas reflexos carnais de
unas e misteriosas fronteiras que desafiam à diferentes aventuras de Ralfo. Torturadores
faculdade do pensar são anuladas. “... Ralfo não existe e estereotipados, revolucionários latinos, psicopatas,
pode diluir-se a qualquer momento para reencarnar-se médicos psiquiatras, todos grotescamente retratados,
adiante no tempo e no espaço” (Sant’Anna, 1975: 64). completam o elenco de personagens do romance.
As aventuras de Ralfo, dotadas dessa liberdade Todas essas personagens, diga-se desde já,
carnavalesca, dominam a irreversibilidade do tempo enfrentam uma dificuldade de ser, pois deixam de
e, igualmente, o espaço escapa á determinação do existir ao final de cada capítulo. São todas figuras
mundo circundante, para englobar a dimensão da transitórias que se dissolvem no nada, no mesmo
universalidade. nada de onde surgem. Ralfo é o único personagem
Os espaços que Ralfo percorre aludem a uma que perpassa toda a narrativa.
tentativa de reintegração mítica, no princípio Após uma sucessão ininterrupta de aventuras
essencial, no tempo dos começos, na origem geradas espontaneamente, Ralfo encontra-se em
perdida. Assim, cada capítulo é visto como uma conjunção com seu livro, totalizando um sentido a
promessa de paraíso, capaz de arrancar a personagem partir da reunião de diferentes narradores e de
de sua circunstância histórica e projetá-la na esfera variadas áreas lingüísticas. O final de sua trajetória
identifica-se com a consecução do próprio texto. Em sua ilusória autonomia, o próprio Ralfo põe
Nesse sentido, no percurso de Ralfo, é construída um ponto final em sua existência “à medida que me
uma história que versa sobre a própria história. rasgavam em pedacinhos junto com meu livro”
Não é desnecessário frisar que, sendo Ralfo o (Sant’Anna, 1975: 229) encerrando definitivamente a
duplo da forma autobiográfica, originado pela obra com o emprego da palavra Fim. O romance,
necessidade do autor “exorcizar-se”, nada mais todavia, não se encerra por aí. Aparece, ainda, um
presumível que a sua destruição ao término das epílogo que tem como sujeito da enunciação a
Confissões. Se toda autobiografia é uma forma de unificação do duplo Sérgio/Ralfo, expresso na
suicídio (Costa Lima, 1966), uma vez criado o primeira pessoa do plural: “Nós terminamos de escrever
duplo, no caso o personagem Ralfo, torna-se isto que é o fim do nosso livro e de nossas aventuras”
necessária a destruição. Esse duplo, no entanto, (Sant’Anna, 1975: 233).
procura não reconhecer sua submissão ao Abre-se, dessa forma, outra circularidade. Sérgio
enunciador lingüístico, Sérgio. Daí que seu final seja deixa a ficção retornando ao espaço “empírico”
desencadeado como conseqüência dos elementos (quarto), no qual se localiza no início da narrativa.
entranhados ao texto. Nesse caso, Ralfo também estaria habitando o
Ralfo e também seu livro são submetidos a um mundo de cá, de fora da ficção, sem qualquer
julgamento cujo júri compõe-se de figuras diferença entre eles. Vemos o escritor e seu duplo às
alegóricas, como Ministro dos Monólogos voltas com os manuscritos do livro “datilografando”
Exteriores, da Língua, do Lugares Comuns, da o epílogo, sem, contudo, encontrarem o fato que
Concisão, da Síntese, dos Diálogos, da encerrará o mesmo.
Autenticidade e da Mademe la Litérature. A despeito do emprego do “nós”, não ouvimos a
A obra de Ralfo é julgada, como se pode notar a voz de Ralfo; o discurso afigura-se como
partir da composição do júri, pela ótica do romance monológico, oriundo, pois, do escritor personagem
tradicional. O “tribunal” que a julga quer enquadrá- Sérgio. É na nota final que fica clara a impossibilidade
la nos moldes tradicionais para condená-la. Diante de a criatura eliminar o criador: “A Ralfo não restava
das alterações que o livro de Ralfo opera em todas as outra alternativa senão desaparecer, o que ele
categorias tradicionais da construção romanesca, é cumpriu fielmente (Sant’Anna, 1975: 238). No final
natural que seja visto como um amontoado de da narrativa, Sérgio reassume sua posição inicial de
capítulos desconexos e desprovido de uma unidade escritor, o que faz pressentir que toda narrativa
temática, quando confrontado com o romance ziguizagueou a partir dele.
tradicional: “Eis que, sem a menor cerimônia e A obra trata de um círculo enclausurado do qual
verossimilhança, os capítulos do livro e as aventuras deste Sérgio tenta escapar pela vivência passageira no reino
senhor vão se acumulando, quase sempre com uma da ficção. Sérgio, que primeiramente aparece como
impossível e inadequada relação de causa e efeito” fotocópia de uma pessoa real, opta por viver
(Sant’Anna, 1975:222.) A condenação de Ralfo e sua literalmente no reino da fantasia, tornando-se
obra aludem, parodisticamente, a uma atmosfera de personagem da história que Ralfo escreve, perdendo
julgamento judicial, que remete ao contexto totalmente a noção de “mundo empírico”. Isso
político-social da época da enunciação do texto. porque sua intenção é experimentar de tudo um
A MULTIDÃO (enfurecida): - Lincha, lincha,
pouco que há na terra, podendo manifestar um
lincha. comportamento afastado de qualquer escala de valor.
O PROMOTOR: - Rasga e lincha, é o que exige a Incorporando-se em Ralfo, ele pode manifestar mais
turba. livremente suas desarmonias, seus instintos de
O CHEFE DAS GUARDAS: - Seeentido! ... loucura, sua natureza animalesca, seus desejos, suas
Preparar armas! ... ATACAR! ... (Sant’Anna, fantasias mais ocultas. Ralfo, por ser quase
1975: 228) onipotente, tem o poder de inventar, de criar novas
As folhas do livro, lançadas ao alto, combinam-se situações a todo o momento para que em algumas
ao acaso, formando a sugestão de um roteiro. Tal ato delas Sérgio encontre uma experiência verdadeira,
justificaria a carnavalização total da obra. Com isso, capaz de modificar a fisionomia de sua existência.
abre-se uma circularidade: e também o fim do livro Com isso, ele consegue momentos de evasão, de
que, de repente podia ser o princípio, com Ralfo fuga de seu cotidiano, operando por catarse apenas.
caminhando cada vez mais para o seu começo, até Teve uma existência fulgaz nos caminhos de Ralfo.
abrigar-se no estranho território de um útero Conseguiu “exorcizar-se” amalgamando-se com a
selvagem. escrita? Nesse livro não há lugar de certeza, de
verdade pronta. A verdade é definida tão-somente
enquanto busca e questionamento e não revelada evolução literária iniciada no Romantismo. Pode-se
como um valor absoluto. As questões colocadas mesmo dizer que, desde seu aparecimento, o
neste estudo devem ser interpretadas como convite à Romantismo permanece vivo, no sentido de
permanência da busca, da indagação, na eficácia de funcionar como ponto de referência, apto para
seu apego à releitura, ao texto que é circular pela justificar o espírito de tantas variações no campo das
particularidade de sua estruturação. artes dos nossos dias. A literatura recente, pois, em
O desdobramento da personalidade, decorrente muito, deve às investidas inovadoras do movimento
da fissura interior que caracteriza o homem do romântico, salvaguardando-se o fator de
século XIX, foi uma constatação fundamental. A reajustamento às exigências contemporâneas.
noção dos mistérios dos seres, produzindo condutas
inesperadas, sempre esteve presente na literatura, Referências
mas não de forma consciente. Ainda que sob forma
ABBAGNANO, N. “Romanticismo” In: Dicionário de
de tema metaforizante, essa concepção foi
Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, s/d.
conscientemente desenvolvida por alguns escritores
AGUIAR e SILVA, V. M. Teoria da literatura. Coimbra:
do Romantismo para desvendar, seja o mistério
Martins Fontes, 1976.
psicológico dos seres, seja o mistério físico da
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos
própria existência. decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, 2 v.
Ralfo, como um ser de ficção, pode apontar tudo
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São
o que é velado pelos opressores anos anos setenta, Paulo: Ática, 1987.
pondo a nu os desmandos do arbítrio e do terror.
COSTA LIMA, L. Sociedade e discurso ficcional. Rio de
Recusando-se a escrever uma história puramente Janeiro: Guanabara, 1966.
verdadeira, o escritor mostra a realidade de todo e ECO, U. A obra aberta. Trad. de Pérola de Carvalho. 2. ed.
qualquer fato, de modo ainda mais eficaz, na medida São Paulo: Perspectiva, 1971.
em que essa realidade é mostrada como ficção. ELIADE, M. Mitos, sonhos e mistérios. Trad. de Samuel
Submetendo-se a Ralfo como personagem, Soares. Lisboa: Edições 70, s/d.
Sérgio atribui-lhe a responsabilidade pelas afrontas FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
aos valores apregoados pela sociedade. Ralfo é o ciências humanas. Trad. de Selma Tannus Muchail. 2. ed.
agente do desnudamento da realidade, mostrando as São Paulo: Martins Fontes, 1981.
contradições dos referentes empíricos, as críticas GÖETHE. Fausto. Trad. De David Jardeus Jr. Rio de
severas e mordazes a qualquer sistema ou norma Janeiro: Technoprint, 1984.
instituída. Daí que seu papel seja equivalente ao que GRASSI, E. Arte e mito. Trad. de Manuela Pinto dos
o demônio tem para os românticos. Por outro lado, a Santos. Lisboa: LBL, s/d.
renovação herdada do movimento romântico, como ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva,
a liberdade de invenção e experimentação, levou o 1973.
romance recente à carnavalização total, como vimos SANT’ANNA, S. Confissões de Ralfo: uma autobiografia
no romance objeto desse estudo. De fato, Confissões imaginária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1975.
de Ralfo faz, por assim dizer, a sua própria paródia, WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Trad. de J.E.R.
tamanha as alterações que opera no gênero Moretzsohn. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
romanesco. Received on November 01, 2001.
Desse modo, as inovações que a literatura atual Accepted on January 10, 2002.
apresenta não representam um corte na linha de