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Uma herança do romantismo: a temática do satanismo em Confissões

de Ralfo

Iraildes Dantas de Miranda


Departamento de Comunicação Social, União das Faculdades Metropolitanas de Maringá (Unifamma), Av. Colombo, 9063,
87070-810, Maringá, Paraná, Brasil.

RESUMO. Nosso estudo propõe-se mostrar que a fragmentação temática e estética


apresentado no romance Confissões de Ralfo é o resultado das investidas inovadoras do
movimento romântico, sobretudo as que ficaram conhecidas como satanismo, ou seja, a busca
rebelde da plenitude do ser por meio da figura de Satã e a revolta contra os cânones clássicos,
originando o despertar para a fragmentação estética.
Palavras-chave: Sérgio Sant’Anna, Romantismo, satanismo, fragmentação.

ABSTRACT. Satanism in Confissões de Ralfo. Our study has the aim to show that the
aesthetic fragmentation presented by the novel Confissões de Ralfo is a result of the romantic
movement enterprises to innovate, mainly the ones known as satanism, that is the rebel
search for the being’s plenitude viewed through Satan’s figure and the revolt against the
classical canons, resulting in the awake to the aesthetic fragmentation.
Key words: Sérgio Sant’Anna, Romantism, satanism, fragmentation.

A obra de Sérgio Sant’Anna, seguindo uma heterogêneos e rompe, conseqüentemente, com os


tendência contemporânea, coloca a invenção literária padrões a que o leitor está habituado.
como um jogo lúdico e consciente. O romance Assim, mostraremos em que medida o
Confissões de Ralfo procura diluir fronteiras entre Romantismo é o ponto de referência apto para
ficção e realidade, visto que, no prólogo, que faz justificar os principais aspectos que modelam a
parte da estrutura romanesca, o escritor posiciona-se composição romanesca mais recente, sendo, por
como um cidadão de existência concreta, que padece isso, considerado por um número variado de críticos
do sentimento de “inquietação crônica” e que deseja como a fonte da modernidade.
alterar o quadro de sua realidade através da escrita.
Para tal, o escritor dá origem ao personagem Ralfo, Romantismo: o pecado da individualização
seu duplo, delegando-lhe o papel de construir a
Antônio Candido é um dentre os vários críticos
autobiografia de Sérgio/Ralfo e a tarefa de encontrar
que reconhece que o Romantismo não é um período
uma experiência que possa levar seu criador a um
acabado na história da literatura ocidental, o que
processo de “metamorfose”. Na nota final, que
exige, dentro da reflexão crítica dos nossos dias, uma
também funciona como um elemento intrínseco à
avaliação global do que se convencionou chamar
obra, Sérgio discute os resultados obtidos com o
“Modernidade Clássica”. Para ele, se até o momento
desempenho literário.
não é possível falar em pós-modernidade é por não
Desse projeto de busca que Sérgio empreende, o
haver uma avaliação unânime tanto da modernidade
discurso da obra se fragmenta e é submetido a um
quanto da pós-modernidade. O sentido da
processo extremo de invenção. Fazem parte desse
modernidade, portanto, deve ser buscado no
romance diferentes modalidades discursivas,
Romantismo.
literárias ou pertencentes a outros campos do saber e
Entre os aspectos da modernidade que tiveram o
práticas sociais, o que resulta no fracionamento da
Romantismo como fonte, pretendemos destacar a
grande frase narrativa. Desaparecem os nexos causais
questão da negatividade que é considerada como a
e a temporalidade, bases do enredo tradicional.
mais extraordinária manifestação do espírito
Operam-se mudanças na articulação das
romântico, tanto do ponto de vista temático quanto
personagens e na organização da narrativa, por
expressional (Candido, 1981: 109).
fundir elementos díspares, combinar elementos

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Sob esse prisma, um dos aspectos fundamentais com suas formas, seus limites, encontra uma
do Romantismo é o individualismo acentuado, traço explicação precária.
comum entre os poetas românticos. Esse Além disso, conforme assinala Antonio Candido,
individualismo é decorrente de uma nova concepção as desilusões sucessivas em relação à realidade social
de indivíduo, visto que o Romantismo é o momento formam um hiato entre o indivíduo e a sociedade.
em que o homem tem consciência da perda de sua Os intelectuais desse período, segundo esse crítico,
integridade (Rosenfeld, 1973: 152). foram profundamente decepcionados pela sociedade
A fissura na integridade do homem está ligada a burguesa que acabava de se instaurar. Essa
um novo conceito de Razão. Essa era entendida pelo representava para os românticos a promessa de
pensamento totalizador do Sturm und Drüng, restituir a felicidade individual. Negado esse anseio,
considerado o Pré-Romantismo alemão, como uma a reação dos intelectuais torna-se a forma de
força infinita e onipotente que habita o mundo e o reconhecimento e expressão de uma situação em
domina e que, portanto, constitui a substância crise.
mesma do mundo (Abbagnano, s/d: 827). Diante dessa incompatibilidade entre o indivíduo
No século XIX, a história definiu-se como uma e a sociedade, a única decisão cabível para os artistas
paixão científica, que visa conhecer exaustivamente desse período é o sentimento de revolta por um lado
todas as aventuras da humanidade, e que se esforça e, por outro, um acentuado pessimismo. Os artistas
por reconstituir o passado total da espécie e que dessa classe reagem contra tal sociedade separando-
toma consciência dele. “A descoberta da historicidade se dela com desgosto, o que se manifesta na sua arte
como forma de ser específica do homem no mundo leva o por um notável “decadentismo”; decadentismo esse
pensamento europeu a compreender a precariedade e a entendido no sentido de uma diminuição
condição paradoxal do homem que toma consciência da sua surpreendente da energia vital, que tem como
temporalidade” (Eliade, s/d: 49). Em função disso, o conseqüência o afastamento da vida prática e o
tempo passa a ser tema fascinante não só para a refúgio na vida contemplativa, uma
filosofia, como para os próprios romancistas. hipersensibilidade estética, uma falta de vontade de
No Romantismo, a razão deixa de ser viver, um marcado pessimismo.
considerada um valor supremo, essência comum a O recurso ao passado, às lendas, aos estados de
todos os seres humanos. Em conseqüência, se no sonho são instrumentos que permitem ao romântico
século XVIII havia uma ciência geral baseada em tentar renovar sua visão de homem e de mundo. A
operações analíticas de abstração, que levava em evasão no espaço e no tempo é, pois, uma forma de
conta o que é comum no homem em todas as os românticos tentarem recuperar a unidade e a
variações, no século XIX, porém, o que passa a se inocência perdidas, visando desfazer “o pecado
destacar é a oposição entre as identidades e as original da individualização”. Contudo, essa atitude
diferenças. O ser humano passa a ser visto, a partir de evasão é uma forma de realçar a fragmentação do
de então, como um todo concreto, integrado no seu indivíduo.
ambiente e determinado por variáveis biológicas e Por outro lado, o sentimento de
étnico-históricas, que o torna inconfundível insuportabilidade diante da sociedade faz com que
(Foucault, 1981). os artistas manifestem uma atitude de revolta, de
A vida, dessa forma, não é mais o que se pode rebeldia contra todos os tipos de valores, quer sociais
distinguir de maneira mais ou menos certa, ao quer estéticos. Este é considerado um aspecto
contrário, é aquela em que se fundem todas as fundamental do Romantismo ficou conhecido como
distinções possíveis entre os seres vivos. Com isso, satanismo: “um protesto universal e genérico contra
“tende-se a ressaltar o característico, categoria tudo aquilo que representa um limite ou uma regra”
importante do pensamento romântico que (Rosenfeld, 1973: 152).
freqüentemente conduz ao caricatural e ao grotesco” Já que as ciências da época não podiam dar conta
(Rosenfeld, 1973: 152). da complexidade do indivíduo em face à
Enfim, o desejo de fazer de si o mais fragmentação, os românticos, para corresponder ao
insubstituível do mundo representa o apego à desejo de harmonia que sentem, revelam a
unicidade; o típico reflexo do que há no homem de problemática do desdobramento da personalidade
visível e classificável. em forma de temas metaforizantes. Esses são
Assim, a partir do século XIX, o campo do saber manifestos sob forma de desdobramento em
não pode mais dar lugar a uma reflexão homogênea homem-espelho, homem-máscara, o duplo, o sósia,
e uniforme em todos os seus pontos. Desse modo, a o homem que vendeu a alma, o homem que vendeu
individualidade que aí começa a ser desvendada, a sombra, entre outros. Esses desdobramentos

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representam a falta de estabilidade do homem improvisado, decorrente da reunião de gêneros


romântico, exilado que está da unidade paradisíaca. separados, “alianças que permitem maior liberdade à
De todos esses desdobramentos de fantasia” (Candido, 1981: 35).
personalidade, o que mais se destaca é o duplo A utilização da composição picada, com o
homem-demônio. Os românticos buscam a figura emprego de uma versificação mais plástica, variada e
de Satã, que passa do estatuto de crença popular para popularizante, tem por objetivo sugerir a concepção
o de símbolo literário, por possibilitar ao indivíduo a do incompleto, do inexprimível, que procura
liberdade de ação, escapando de tudo que seja preservar o mistério (Candido, 1981: 17).
convencional, de todas as injunções impostas da Tanto a fragmentação temática como a
sociedade a que pertence. Por meio do diabo, os expressional visam acentuar o dilaceramento da
românticos podem revelar um tipo de integridade e da identidade.
comportamento contrário à conduta moral e social, Enfim, pelo conjunto díspar de tendência que
pois é sobre ele que recaem as afrontas aos valores da abrangeu, em virtude da falta de unidade entre as
sociedade. tendências mais diversas e variadas, bem como pela
Como o homem romântico é movido por um nova maneira de o homem encarar o mundo e a si
desejo de expansão violenta de paixões, afetos e de mesmo, o Romantismo é considerado a fonte da
ímpeto irracionalista, uma espécie de impulso modernidade.
dionisíaco, Satã leva-o a satisfazer a curiosidade de No período romântico, o homem dá testemunho
seus impulsos, numa espécie de formação às avessas, de seus sentimentos antagônicos, advindos da perda
um tipo de anti-Bildungsroman (Candido, 1987: 16). da integridade, e a fragmentação, quer temática quer
Por meio de Lúcifer, os românticos podem conhecer expressional, revela a busca da unidade. Desse
os mais extremos e convulsos aspectos da vida, período, destaca-se a entronização do homem numa
chegando até mesmo à fronteira da crueldade, da dimensão humana e, conseqüentemente, o
perversão, da orgia, do crime, pois o que está em desaparecimento de uma transcendência que a esse
foco é a afronta aos valores sociais. Enfim, o duplo homem totalize e unifique.
homem-satã tem a função para os românticos de Vejamos dois exemplos elucidativos de
mostrar as desarmonias da natureza humana, desdobramento de personalidade: o primeiro, o
testando suas possibilidades diabólicas e romance O retrato de Dorian Gray (Wilde, 1986), obra
desvendando os mistérios de sua natureza. decadentista do final do século XIX, apresenta essa
Esse duplo é a expressão codificada do ser problemática.
fragmentado que anseia por transgredir as normas. A pintura de Dorian Gray é seu espelho.
Contudo, as violações dos parâmetros por meio das Olhando para a pintura, Dorian começa a questionar
vidas desenfreadas do duplo homem-diabo são, na acerca de si mesmo, de seu envelhecimento, de sua
essência, um desejo maior de harmonia. Dessa morte. Resolve, então, fazer um pacto com o
forma, “perdida a possibilidade de pureza ideal, resta esta quadro: as marcas do tempo, que deveriam
via feroz onde o homem procura conhecer o segredo da sua acontecer no corpo de Dorian, iriam aparecer no
humanidade, por meio da desmedida, na escala de um quadro. Para permanecer sempre jovem Dorian
comportamento que nega todas as normas” (Candido, oferece ao quadro sua alma. O quadro começa,
1987: 15). Essa “via feroz” é, portanto, uma tentativa assim, a envelhecer, pois o tempo passa a atuar
de liquidar a dualidade do homem, enquanto ânsia e dentro dele.
inquietação; desejo de agregar a si mundos diversos Ocorre nessa obra uma troca entre o homem e a
em virtude da intenção de ser uno. natureza, na qual essa atua de maneira diversa frente
A ânsia de estar em desacordo com as normas e à ação de um ser que já não é mais impotente diante
com a rotina deságua no caráter fragmentário de dela, ao contrário, tenta burlá-la, suspendendo a ação
inúmeras obras desse período, dando início a uma do tempo sobre a realidade. Fora do quadro, Dorian
era de experimentalismo que modifica a fisionomia está isento da morte: não envelhece, pois o tempo
do discurso. O satanismo, agora, expressional, não atua sobre seu corpo. Dorian mergulha no
manifesta-se em uma atitude de oposição em quadro e consegue reconhecer-se, dando-se conta de
relação aos cânones clássicos. Há um repúdio aos que o quadro é ele, é o seu duplo.
gêneros estanques e, conseqüentemente, uma Essa obra mostra que o tempo já não impera
reunião de gêneros separados, como a fusão da implacavelmente sobre a vontade de Dorian, mas
tragédia e da comédia, do prosaico com o poético, cede diante do pacto, sem, entretanto, findar sua
ocasionando o surgimento de gêneros mistos. atividade subjetiva, que passa a ter curso dentro do
Acentua-se, agora, o cunho fragmentário, quadro, dentro da obra de arte. É através da arte que

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Dorian torna-se sujeito, agindo sobre a natureza, divisão de si mesmo, a convivência com a duplicação
imprimindo nela sua vontade, transgredindo as no espelho ocorre como passo da modernidade. Na
fronteiras limitadas do tempo, ao contrário do literatura recente, essa cisão, de cujo exemplo é
clássico que se curva diante da natureza e do tempo. Confissões de Ralfo, encontra-se estilhaçada.
Na realidade, essa obra mostra o embate entre o Os duplos ocupam uma extensa galeria na
homem e a finitude do tempo, tema que tanto literatura brasileira do século XX e, muitas vezes, são
fascinou não só os filósofos como os escritores desse as próprias personagens quem nos dão notícia de sua
período. existência dualista. Já que o outro de fato existe,
Outro exemplo clássico de desdobramento de como já comprovou a psicanálise, o duplo impõe-se
personalidade é encontrado na obra Fausto (Göethe, e exige o registro de sua presença, quer de maneira
1984). Aqui o personagem título é levado, através da nítida, quer como suaves evocações, mas nem por
tentação, a vender a alma ao diabo. Em troca, Fausto isso menos visível. Em ambos os casos, o duplo
poderia conhecer e experimentar todas as circunscreve um conflito e desnuda desde
possibilidades de vivências e sensações novas que o frustrações, pensamentos até desejos antagônicos ao
mundo oferece, podendo conhecer os prazeres dos ímpeto irracionalista, revelando, assim, o lado
mais altos extratos sociais até as mazelas do menos aparente da conduta humana.
submundo. No romance de Sérgio Sant’Anna, o “autor”
Em meio à diversidade das experiências vividas, pretende conviver com o conflito; quer habitar o
Fausto deseja encontrar uma unidade capaz de enigma, conhecer suas contradições. Ele assume
abarcar todas as contradições de seu ser primeiramente que Ralfo é seu duplo, textualmente
fragmentado. Impulsionado pelo Diabo, Fausto tem enunciado em metalinguagem: “... resolvi transformar-
a oportunidade de romper com todas as limitações me em outro homem, tornar-me personagem ... Ralfo é este
de um sistema de valores, experimentando tudo o homem. Nasceu com a minha primeira morte, a morte de
que é proibido pela moral oficial, enfim, de deixar alguém cuja identidade não interessa. Porque um homem
que o seu comportamento seja ditado pelo Diabo, o que recusou a si próprio e murchou, cedendo lugar a um
símbolo maior da transgressão da ordem. personagem” (Sant’Anna, 1975: 02).
Por meio do Diabo, Fausto revela sua vocação A função que esse duplo representa para o
para o desmedido e o contraditório, fundindo “autor” é também enunciada em metalinguagem:
aspectos aparentemente inconciliáveis do “antes de tudo quero me divertir ou mesmo
comportamento, no afã de encontrar uma unidade emocionar-me vivendo e escrevendo este livro”
que elimine de uma vez para sempre sua dualidade. (Sant’Anna, 1975: 02).
Como esse é um aspecto fundamental do período Como fica evidente, a criação do duplo em,
romântico, essa obra influenciou inúmeras outras Confissões de Ralfo, é feita a partir do caráter
com a mesma temática. imaginário que possui a autobiografia. Enquanto na
A busca rebelde da plenitude do ser, que forma romanesca o imaginário é um elemento que
caracteriza o período romântico, leva os romancistas está presente por menos que o escritor-narrador o
a descobrirem novas formas para exprimir deseje, no romance em análise, o imaginário é parte
artisticamente a sua problemática existencial. integrante da escrita e tem uma presença tão
Exatamente por isso, o Romantismo é marcante ou até mais acentuada do que o real. “O
excepcionalmente rico do ponto de vista do autor” deixa isso expresso em metalinguagem através
descobrimento de novas técnicas de expressão de natureza multifacetada do gênero autobiográfico:
artística. “Afinal não só esta, mas todas as autobiografias são
No Romantismo começa a se desvendar, sempre imaginárias e reais. Pois se a realidade é de
conforme assinala Foucault, um pensamento no certo modo imaginária, também a imaginação e a
qual a individualidade, com suas formas, seus fantasia são realidades contundentes, que revelam
limites, suas necessidades, encontra uma explicação integralmente o ser e o mundo em que se apóiam”
precária, mas que coloca os românticos a um passo (Sant’Anna, 1975: 02). Infere-se desse fragmento
da descoberta do inconsciente por Freud (Foucault, que, o “autor” privilegia o elemento imaginário da
1981: 316). autobiografia, realçando a força que ele tem de
representar a realidade concreta.
Século XX: o eu em estilhaço O duplo, em Confissões de Ralfo, ainda que se
manifeste de forma lúdica, não deixa de ser
Se o século XIX vê eclodir o mito da revolta
verdadeiro, pois o simples fato de ser confissões,
através da figura de Satã, o século XX vê florescer os
uma forma autobiográfica, já autoriza a sua
mitos do conhecimento fundados em Narciso. A

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existência. Não é por outro motivo que o “autor”


anuncia que tomará com ela diversas liberdades,
como a de “objetivar-me, algumas vezes na terceira
Ralfo: o desdobramento satânico de Sérgio
pessoa do singular, ou através da fala de terceiros”
(Sant’Anna, 1975: 02). O duplo, pois, desse Como vimos, no Romantismo, os escritores têm
romance, o duplo tem uma autonomia toda especial: consciência da fissura interior, da fragmentação do
a de ser personagem, caso ratificado por se tratar de ser. No entanto, os românticos manifestam as
Uma autobiografia imaginária. contradições de seu comportamento por meio de
Além disso, o processo de criação do duplo, seres dotados de poderes fantásticos (a besta, o sósia,
nesse romance, forma o mais perfeito caleidoscópio, a sombra e, sobretudo, o demônio), como tentativa
pois o lugar da enunciação reflete um jogo de de sugerir e desvendar as contradições da natureza
espelhos produzindo um número infinito de duplos: humana, ao mesmo tempo em que revelam um
primeiro, o “autor” quer passar a imagem de uma desejo de serem unos e totais.
pessoa empírica, mostrando-se duplificado, por O duplo criado no texto de Sérgio Sant’Anna
padecer da falta de harmonia para com a vida; depois encerra, também, a promessa de o autor unificar-se,
esse “autor” apresenta a postura convencional do aliviando as suas tensões individuais. “Explico:
escritor-narrador, ao revelar esfacelado, pelo insatisfeito com minha vida pessoal até então e também
sentimento de insatisfação com a vida. E, para insatisfeito com meu provável e mediano futuro, resolvi
acentuar ainda mais a multiplicidade de transformar-me em outro homem, tornar-me personagem”
desdobramentos, é criado um duplo do “escritor- (Sant’Anna, 1975: 02). Ralfo, na qualidade de
narrador”, Ralfo, que tem a capacidade de se personagem, assume um papel equivalente ao que o
multiplicar, de fazer de cada movimento uma demônio tinha para os românticos, ou seja, exaltar a
combinação nova, uma nova face, ad-infinitum. Desse liberdade de ação, escapando de tudo que representa
modo, cada reflexo de Ralfo espelha no texto outra um limite. Incorporando-se em Ralfo, Sérgio pode
pessoa, o que sugere que o lugar da enunciação é um satisfazer a curiosidade de conhecer e experimentar
espelho coberto, ou, pelo menos, mascarado. Isso faz de tudo um pouco que a vida oferece, violando
pressentir uma estruturação em abismo, ratificando todos os parâmetros convencionais. Ralfo tem a
o jogo de reflexos, enfatizando a funcionalidade da capacidade de testar as possibilidades diabólicas de
ficção. Assim, essa estrutura em abismo representa Sérgio e revelar seus desejos mais recônditos, tal
um recurso de distanciamento para que não se como Satã.
desnude o sujeito da enunciação. Enfim, a divisão da Sérgio, conscientemente, adota a concepção de
personalidade é aqui estilhaçada, estraçalhada; é que a vida humana delineia-se sob a forma de
lema, bandeira e estandarte do “autor” do texto. animalidade, cuja expressão máxima é a besta. Essa
Na fuga do roteiro autobiográfico, no desrespeito assume valores ambíguos, aparecendo como a
aos caminhos previstos, o “escritor” funda o projeto revelação de poderes inquietantes e noturnos,
das Confissões. Quanto à necessidade de o “autor” invisíveis e enigmáticos no século XIX. Assim, a vida
declarar que seu duplo é ficção, é personagem ... abandona o espaço da ordem e volta a ser selvagem,
Ora, Ralfo tem a capacidade de pôr em xeque as não mais podendo ser separada do assassínio, da
questões de ordem político-sociológico-ideológicas. natureza do mau, dos desejos da contra natureza
Desse modo, o exercício crítico de consciência, (Foucault, 1981).
peculiar a todo intelectual, é suavizado nesse A passagem seguinte deixa claro que Ralfo
romance, pois é de Ralfo a voz que narra o texto. É representa, como a besta, a revelação dos poderes
Ralfo o agente de um completo desvelamento na animalescos do ser humano, ou melhor, de Sérgio:
eficácia de sua simbolização, e o “escritor” fica E percebendo-me demasiadamente crápula ou vil ou
submetido ao devir de Ralfo, às suas ações, à sua pequeno e medíocre, num capítulo surgirei gracioso e
história. O “autor”, pela escrita, passa a fazer parte esfuziante no capítulo seguinte, desfazendo a
do mundo criado por Ralfo, e seu comportamento impressão anterior. E do mesmo modo, quando ceder à
inscreve-se na linha puramente dionisíaca, na tentação da frescura sentimental - de uma simpática
volúpia do transe a que se entrega. Em função disso, mistificação - tentarei de todos os modos rosnar e
o duplo criado pelo “autor”, nesse romance, tem arreganhar os dentes, como a fera que se esconde em
uma ligação direta com o desdobramento de todos nós” (Sant’Anna, 1975:02)
personalidade manifesta no período romântico, que O duplo de Sérgio representa um procedimento
é o que passaremos a observar. contrário ao do chamado romance de formação
(Bildungsroman). Nesse tipo de romance, o herói,

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adolescente ou adulto, é lançado no mundo, onde mistura dos mais variados e heterogêneos processos
vai aprendendo a conhecer-se a si mesmo e aos narrativos. Aí são parodiados a tradicional saída do
outros. “Confrontando-se com seu meio, o herói vai herói para o mundo, diário de bordo de Serafim,
penetrando nos segredos e problemas da existência humana, delírio de Brás Cubas, carta, diário de louco, de
advindo de suas experiências vitais a confrontação de seu guerrilheiro, relatório médico, roteiro turístico,
espírito e de seu caráter” (Aguiar e Silva, 1976: 310). julgamento judicial, encenação teatral e ainda
Em Confissões de Ralfo, fica claro que a intenção personagens como Alice e Sancho Pança. A
do autor é revelar todos os tipos de condutas que o tematização de conteúdos variados e os diferentes
ser humano pode manifestar, das mais nobres às procedimentos narrativos, que se inserem nesse
mais vulgares e perversas: “E percebendo-me romance dão conta da dimensão das alterações que o
demasiadamente crápula ou vil ou pequeno e autor introduz no gênero romanesco.
medíocre, num capítulo, surgirei gracioso e
esfuziante no capítulo seguinte, desfazendo a Projeção mítica da carnavalização
impressão anterior” (Sant’Anna, 1975: 02). Nisso,
Ao lado do projeto da busca que Sérgio
Ralfo tem uma função que se aproxima da que o
empreende para encontrar uma experiência
demônio tinha para os românticos: o e proporcionar
significativa que possa transformar sua existência,
ao narrador a oportunidade de satisfazer sua
surge também o projeto de invenção permanente da
curiosidade de conhecer e experimentar uma
construção literária, levando a obra à carnavalização
formação às avessas, revelando o lado animalesco,
total, “ao caos que tudo engloba, desde o heróico ao banal,
pervertido, desenfreado, movido pelo mesmo anseio
desde o trágico ao cômico” (Grassi, s/d: 95). A busca
de encontrar uma unidade.
apresenta-se nas várias camadas e estruturas da obra:
Com a criação de Ralfo, Sérgio quer saciar a sede
no nível do tema e no nível da poética formulada
de ser pleno, e o núcleo da narrativa gira em torno
pelo autor como elemento intrínseco à obra. Todos
dessa busca que para o autor é vital. A criação desse
os procedimentos narrativos são válidos e justificam-
duplo revela, também, que o universo construído é
se a partir desse tema.
fundamentalmente um universo ficcional,
O estilo também não deixa de ser uma maneira
procedimento comum na literatura contemporânea.
de Sérgio interpretar o tema da busca. Como afirma
Ralfo, que assume o comando da narrativa e
um crítico insuspeito, “rompendo com os módulos da
também a incumbência de ir à procura de
ordem formativa que serviam para falar do homem de
acontecimentos, que encerrem a promessa de o
ontem, a arte fala do homem de hoje através da maneira
“autor” encontrar seu verdadeiro “eu” para que se
pela qual se estrutura” (Eco, 1971: 155).
torne pleno, terá que vivenciar diferentes situações.
A montagem do livro sugere o caótico, o
Desse modo, do projeto de busca que o “autor”
fragmentário. Trata-se de um discurso lacunoso e
empreende surge o projeto de invenção permanente.
suscetível a uma infinidade de significações.
Como o “autor” funde-se em Ralfo a partir do
Seguindo uma tendência do romance
primeiro capítulo, este fica responsável também pela
contemporâneo, Confissões de Ralfo é “uma obra
estruturação da obra, e o seu projeto estético, como
inesgotada e aberta enquanto ambígua, [ ... ] quer no
o de seu criador, é romper com os padrões
sentido negativo de uma carência de centros de
romanescos habituais: “Pois o segredo de Ralfo é a
orientação, quer no sentido positivo de uma
inovação e a experimentação permanentes”
reversibilidade dos valores e das certezas” (Eco,
(Sant’Anna, 1975: 194).
1971:47).
Enfim, o ato de o “autor” fundar o universo
A despeito do caráter fragmentário de sua
romanesco, na tentativa de liquidar a fragmentação,
estrutura, o texto compõe uma unidade, implicando
transforma-se numa busca mítica de reintegração
uma coerência lúdica que nada tem a ver com a
com a totalidade, tal como o indivíduo romântico.
lógica tradicional, mas uma lógica que o leitor vai
Só que, no texto de Sérgio Sant’Anna, essa ânsia de
montando por si mesmo, se tiver em mente que a
ser pleno delimita o alvo da invenção poética,
diversidade de temas, bem como os inúmeros
levando a obra à carnavalização quer temática quer
procedimentos narrativos constituem etapas
expressional. O texto deixa de ser fragmentado,
progressivas da caça a uma extraordinária
como no Romantismo, para se tornar carnavalizado
experiência. Assim, a montagem do livro compõe
em todos os níveis e estruturas da obra.
uma unidade a partir do fragmentário.
A obra oferece uma grande variedade de temas,
Ralfo, como dissemos, é o instrumento de que o
motivos e leit-motivos extraídos da tradição literária.
“autor” serve-se para alcançar a plenitude do ser; é
Composto de “nove pequenos livros”, o romance é a
por meio dele que o autor visa encontrar uma

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realidade transcendente que transforme o seu modo Foi como um sonho ou fantasia, no meu caso. Mas
de existência. Em função disso, Ralfo é um que diferença isso pode fazer, se no caso de milhares de
personagem profundamente carnavalizado: não outros tem sido uma realidade de ladrilhos úmidos
dentro de cubículos, lâminas de aço que rasgam carnes
possui qualidades socialmente típicas e
sensíveis, cordas repuxando os membros de um corpo?
individualizantes, que possibilitem uma sólida E mais: gritos, desespero, chicotadas e mutilações. Que
imagem de seu caráter, tipo ou temperamento. Isso alívio, portanto, pode trazer para mim o fato de que
porque, se ele tivesse uma imagem bem definida, tais coisas aconteceram apenas ficcionalmente comigo?
seriam reduzidas as possibilidades de ele encarnar a Pois poderia ter sido assim (Sant’Anna, 1975:111).
multiplicidade de aventuras, fantasias e sonhos para
A ilogicidade do regime militar é revelada pela
os quais foi criado. Por isso, ele é construído sem
própria ilogicidade do interrogatório a que Ralfo é
qualquer coerência psíquica, sem uma ideologia e
submetido:
uma moral definidas que possam lhe dar uma
unidade. Em certa altura Ralfo pensa: “Preciso CULINÁRIA! Nos dê a receita de uma rosca doce
trabalhar', embora seja frontalmente contrário aos VIDA SOCIAL! Como se joga o gamão?
meus princípios” (Sant’Anna, 1975: 88); em outro, LITERATURA! O que é o romance?
ele exclama “Tenho fome: a fome dos que trabalham CIÊNCIAS NATURAIS! O que é um batráqueo?
(Sant’Anna, 1975:125-126)
arduamente” (Sant’Anna, 1975: 195).
Quanto à descrição de Ralfo, quem nos dá A consciência crítica, que não teme em apontar
notícia dela é uma psicopata, o que não merece os horrores de um asilo de loucos, é manifesta por
crédito de confiança “... o novo hóspede alia a beleza uma psicopata e ela, como tal, rejeita o papel de
(certamente) de sua alma a uma aparência externa das mais vítima: “Depois de uma severa repreensão, ele (Dr.
atraentes” (Sant’Anna, 1975: 132). Outros aspectos de Silvana) me prescreveu um tratamento à base de
sua aparência física, que aparecem no começo do choques elétricos, além de isolamento a partir de
livro, (“Roupas novas, cabelos cortados...”) são amanhã” (Sant’Anna, 1975: 137). É, pois, no vigor da
posteriormente repetidos (“cabelo um pouco mais caneta, independentemente da voz que assume o
crescido...”) e chegam a se tornar satíricos “... cabelos comando da narrativa, que a verdade se desnuda.
cortados, caspas voando nas correntes de ar, cicatrizes” No episódio mais extravagante do livro, o baile
(Sant’Anna, 1975:161). de máscara, realizado numa clínica psiquiátrica,
Os acontecimentos da narrativa sugerem que são Ralfo manifesta, de fato, sua natureza demoníaca.
dirigidos apenas a Ralfo e seu único fim é conhecer e Ele usa a máscara da loucura, loucura inautêntica
experimentar todas as possibilidades que o mundo (pois “seus eletroencêfalogramas, na verdade, jamais
lhe oferece. Para tal, age segundo o instinto, sem acusaram qualquer lesão cerebral”) para “nivelar
nenhuma coerção de ordem social ou moral. alguns dos mais corretos profissionais do país a um bando de
O privilégio concedido a Ralfo é o de poder loucos desvairados” (Sant’Anna, 1975: 154). Aqui a
mostrar, com crueza de vocabulário, as injustiças loucura é um pretexto para levar os donos do poder,
sociais: “Os banqueiros ficam cada vez mais ricos e os ainda que sejam os médicos, a revelar um
bancários cada vez mais putos da vida” (Sant’Anna, comportamento ditado pelo mais extravagante e
1975: 14). Não escapa à zombaria de Ralfo a relação luxurioso instinto sexual, “numa ambientação que
de subserviência entre empregado/empregador. faria empalidecer as mais animadas festas romanas”.
“Sim, senhor, Mr. Smith’, ‘Yes sir, Mr. Smith’, O deboche de Ralfo é justamente para mostrar o
‘Como não, Mr. Smith’, ’Não há de quê, Mr. avesso do processo. Ao inverter a imagem daqueles
Smith’, ‘Ha, ha, ha, Mr. Smith” (Sant’Anna, 1975: que se julgam dotados do mais perfeito equilíbrio
90-91). No dinamismo de suas aventuras, Ralfo mental, posto que leva-os “a não resistir ao demônio ali
pode transformar a realidade no que ele queira: encarnado na pessoa de um doente mental, terminando por
“Pedir à Helga, (a secretária) que organize os arrastar a todos nós consigo” (Sant’Anna, 1975:154).
arquivos assim mesmo como ela se encontra, isto é, Todas as situações por que Ralfo passa põem a
nua” (Sant’Anna, 1975: 92). nu atitudes puramente convencionais, mostrando
Por se encontrar metonificado como criatura de todo o desprezo que é capaz de despertar alguém
papel, Ralfo pode tecer críticas mordazes ao processo cujo comportamento paute-se por essas linhas. O
político da época da enunciação do texto, pondo a personagem denuncia para desmistificar as formas
nu a história de um Brasil marcada pelo estabelecidas, para desvelar hipocrisias, posturas bem
obscurantismo, prisões arbitrárias, torturas, aceitas.
oferecendo o ficcional à observação: O impulso de tudo experimentar faz com que ele
assuma, em cada capítulo, uma caracterização

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diferente e desempenhe funções distintas. Ao longo do mito. “Purificado e transparente para reencarnar-se
de suas múltiplas aventuras, Ralfo refere-se a si mais uma vez” (Sant’Anna, 1975: 101).
mesmo como... “Eu, Ralfo, decadente Ulisses”, A forma como é mostrado o itinerário da busca
“Ralfo, o louco”, “Ladrão sem casaca”, “Conde”, revela que o verdadeiro reinício só pode ter lugar
“Justiceiro”, “Primeiro e único”, “Magnífico”, “O após o verdadeiro fim. “... Iniciar daí o aprendizado e há
mago”, “Como Nureíev”, “Como Deus”. Essa um longo caminho pela frente” (Sant’Anna, 1975:55).
heterogeneidade de identidades é a manifestação da Assim, a cada passo, a cada capítulo, Ralfo não
falta de unidade, numa relação inversa às consegue alcançar a almejada dimensão
designações dadas aos heróis clássicos que se transcendente da realidade, permanecendo sempre
mantinham durante todo o transcorrer da narrativa. uma lacuna entre o desejo e a realização da meta
Em consonância com a ausência de uma identidade, proposta. Tal situação obriga Ralfo a recomeçar do
ele é, simultaneamente, cínico, idealista, sarcástico, princípio, a escolher novas situações e a inventar
megalômano, hedonista. novas formas de comportamento. Daí resultam as
E, quanto à profissão, a consciência de estar improvisações; tudo parece atrair para diferentes
escrevendo um livro é registrada intermitentemente, perspectivas de abordagem de Ralfo, que está sempre
quer por ele, quer por outrem. Contudo, seu livro perseguindo uma busca fugidia, que lhe escapa
pode se enquadrar tanto numa estética considerada e sempre, mas que não chega, no entanto, a deparar-se
aplaudida como em gêneros “menores”: “Redação de com a frustração de não ter conseguido atingir uma
textos é o meu ramo”, “Ralfo, o escrivão”, “Sempre com um experiência que encerre de fato um valor maior. “E
bloco de notas na mão como um repórter”, “Meu livro se quanto a mim, finalmente, de novo só e como todos aqueles
tornaria um extenso e monótono diário de bordo”, “Talvez que, após várias tentativas, não conseguem encontrar sua
um dia a senhora tome conhecimento não só desta carta, mas identidade” (Sant’Anna, 1975:184)
de todo um livro confessional que estou escrevendo”, Todas as personagens, mostradas inicialmente
“Temerosos de que tais fatos sejam utilizados no livro de como gente comum, cumprindo suas respectivas
memórias do Ralfo”. “Fiquei muito excitada, hoje, com a funções, são expostas ao ridículo, revelando um
notícia de que o novo hóspede é nada mais nada menos do comportamento afastado das normas éticas e morais.
que um escritor. E que estaria escrevendo atualmente, a sua As personagens, desse modo, passam a preocupar-se
autobiografia”. Como escritor, Ralfo desvela o apenas com a satisfação dos instintos naturais,
trabalho de escritor que se caracteriza pelo sobretudo, com os prazeres carnais. Os insólitos
oportunismo literário: “O que eu desejo, senhores, é um comportamentos das personagens, manifestando
pouco de prestígio e dinheiro. Algo assim como direitos uma conduta que foge à percepção rotineira,
autorais entrando regularmente em uma casa de campo e acomodada à banalidade do mundo cotidiano
viagens pelo mundo, tendo como única contra-prestação enquadram-se no modelo do personagem Ralfo,
proferir conferências para otários de todos os tipos” “único e sufocante a quem acontecem mil peripécias: eu”
(Sant’Anna, 1975: 220). (Sant’Anna, 1975:11).
Os desdobramentos do personagem Ralfo devem As gêmeas obesas, Sofia e Rosângela, a prostituta
ser entendidos como o desejo do escritor de de beira do cais, a vítima masoquista de Ralfo, o
encontrar, uma experiência, de fato, verdadeira. Para mágico, o duplo Alice/Lolita, a sensual Rute, todas
alcançar tal objetivo, o tempo e o espaço, essas duas acabam se tornando apenas reflexos carnais de
unas e misteriosas fronteiras que desafiam à diferentes aventuras de Ralfo. Torturadores
faculdade do pensar são anuladas. “... Ralfo não existe e estereotipados, revolucionários latinos, psicopatas,
pode diluir-se a qualquer momento para reencarnar-se médicos psiquiatras, todos grotescamente retratados,
adiante no tempo e no espaço” (Sant’Anna, 1975: 64). completam o elenco de personagens do romance.
As aventuras de Ralfo, dotadas dessa liberdade Todas essas personagens, diga-se desde já,
carnavalesca, dominam a irreversibilidade do tempo enfrentam uma dificuldade de ser, pois deixam de
e, igualmente, o espaço escapa á determinação do existir ao final de cada capítulo. São todas figuras
mundo circundante, para englobar a dimensão da transitórias que se dissolvem no nada, no mesmo
universalidade. nada de onde surgem. Ralfo é o único personagem
Os espaços que Ralfo percorre aludem a uma que perpassa toda a narrativa.
tentativa de reintegração mítica, no princípio Após uma sucessão ininterrupta de aventuras
essencial, no tempo dos começos, na origem geradas espontaneamente, Ralfo encontra-se em
perdida. Assim, cada capítulo é visto como uma conjunção com seu livro, totalizando um sentido a
promessa de paraíso, capaz de arrancar a personagem partir da reunião de diferentes narradores e de
de sua circunstância histórica e projetá-la na esfera variadas áreas lingüísticas. O final de sua trajetória

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A temática do satanismo em Confissões de Ralfo 57

identifica-se com a consecução do próprio texto. Em sua ilusória autonomia, o próprio Ralfo põe
Nesse sentido, no percurso de Ralfo, é construída um ponto final em sua existência “à medida que me
uma história que versa sobre a própria história. rasgavam em pedacinhos junto com meu livro”
Não é desnecessário frisar que, sendo Ralfo o (Sant’Anna, 1975: 229) encerrando definitivamente a
duplo da forma autobiográfica, originado pela obra com o emprego da palavra Fim. O romance,
necessidade do autor “exorcizar-se”, nada mais todavia, não se encerra por aí. Aparece, ainda, um
presumível que a sua destruição ao término das epílogo que tem como sujeito da enunciação a
Confissões. Se toda autobiografia é uma forma de unificação do duplo Sérgio/Ralfo, expresso na
suicídio (Costa Lima, 1966), uma vez criado o primeira pessoa do plural: “Nós terminamos de escrever
duplo, no caso o personagem Ralfo, torna-se isto que é o fim do nosso livro e de nossas aventuras”
necessária a destruição. Esse duplo, no entanto, (Sant’Anna, 1975: 233).
procura não reconhecer sua submissão ao Abre-se, dessa forma, outra circularidade. Sérgio
enunciador lingüístico, Sérgio. Daí que seu final seja deixa a ficção retornando ao espaço “empírico”
desencadeado como conseqüência dos elementos (quarto), no qual se localiza no início da narrativa.
entranhados ao texto. Nesse caso, Ralfo também estaria habitando o
Ralfo e também seu livro são submetidos a um mundo de cá, de fora da ficção, sem qualquer
julgamento cujo júri compõe-se de figuras diferença entre eles. Vemos o escritor e seu duplo às
alegóricas, como Ministro dos Monólogos voltas com os manuscritos do livro “datilografando”
Exteriores, da Língua, do Lugares Comuns, da o epílogo, sem, contudo, encontrarem o fato que
Concisão, da Síntese, dos Diálogos, da encerrará o mesmo.
Autenticidade e da Mademe la Litérature. A despeito do emprego do “nós”, não ouvimos a
A obra de Ralfo é julgada, como se pode notar a voz de Ralfo; o discurso afigura-se como
partir da composição do júri, pela ótica do romance monológico, oriundo, pois, do escritor personagem
tradicional. O “tribunal” que a julga quer enquadrá- Sérgio. É na nota final que fica clara a impossibilidade
la nos moldes tradicionais para condená-la. Diante de a criatura eliminar o criador: “A Ralfo não restava
das alterações que o livro de Ralfo opera em todas as outra alternativa senão desaparecer, o que ele
categorias tradicionais da construção romanesca, é cumpriu fielmente (Sant’Anna, 1975: 238). No final
natural que seja visto como um amontoado de da narrativa, Sérgio reassume sua posição inicial de
capítulos desconexos e desprovido de uma unidade escritor, o que faz pressentir que toda narrativa
temática, quando confrontado com o romance ziguizagueou a partir dele.
tradicional: “Eis que, sem a menor cerimônia e A obra trata de um círculo enclausurado do qual
verossimilhança, os capítulos do livro e as aventuras deste Sérgio tenta escapar pela vivência passageira no reino
senhor vão se acumulando, quase sempre com uma da ficção. Sérgio, que primeiramente aparece como
impossível e inadequada relação de causa e efeito” fotocópia de uma pessoa real, opta por viver
(Sant’Anna, 1975:222.) A condenação de Ralfo e sua literalmente no reino da fantasia, tornando-se
obra aludem, parodisticamente, a uma atmosfera de personagem da história que Ralfo escreve, perdendo
julgamento judicial, que remete ao contexto totalmente a noção de “mundo empírico”. Isso
político-social da época da enunciação do texto. porque sua intenção é experimentar de tudo um
A MULTIDÃO (enfurecida): - Lincha, lincha,
pouco que há na terra, podendo manifestar um
lincha. comportamento afastado de qualquer escala de valor.
O PROMOTOR: - Rasga e lincha, é o que exige a Incorporando-se em Ralfo, ele pode manifestar mais
turba. livremente suas desarmonias, seus instintos de
O CHEFE DAS GUARDAS: - Seeentido! ... loucura, sua natureza animalesca, seus desejos, suas
Preparar armas! ... ATACAR! ... (Sant’Anna, fantasias mais ocultas. Ralfo, por ser quase
1975: 228) onipotente, tem o poder de inventar, de criar novas
As folhas do livro, lançadas ao alto, combinam-se situações a todo o momento para que em algumas
ao acaso, formando a sugestão de um roteiro. Tal ato delas Sérgio encontre uma experiência verdadeira,
justificaria a carnavalização total da obra. Com isso, capaz de modificar a fisionomia de sua existência.
abre-se uma circularidade: e também o fim do livro Com isso, ele consegue momentos de evasão, de
que, de repente podia ser o princípio, com Ralfo fuga de seu cotidiano, operando por catarse apenas.
caminhando cada vez mais para o seu começo, até Teve uma existência fulgaz nos caminhos de Ralfo.
abrigar-se no estranho território de um útero Conseguiu “exorcizar-se” amalgamando-se com a
selvagem. escrita? Nesse livro não há lugar de certeza, de
verdade pronta. A verdade é definida tão-somente

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enquanto busca e questionamento e não revelada evolução literária iniciada no Romantismo. Pode-se
como um valor absoluto. As questões colocadas mesmo dizer que, desde seu aparecimento, o
neste estudo devem ser interpretadas como convite à Romantismo permanece vivo, no sentido de
permanência da busca, da indagação, na eficácia de funcionar como ponto de referência, apto para
seu apego à releitura, ao texto que é circular pela justificar o espírito de tantas variações no campo das
particularidade de sua estruturação. artes dos nossos dias. A literatura recente, pois, em
O desdobramento da personalidade, decorrente muito, deve às investidas inovadoras do movimento
da fissura interior que caracteriza o homem do romântico, salvaguardando-se o fator de
século XIX, foi uma constatação fundamental. A reajustamento às exigências contemporâneas.
noção dos mistérios dos seres, produzindo condutas
inesperadas, sempre esteve presente na literatura, Referências
mas não de forma consciente. Ainda que sob forma
ABBAGNANO, N. “Romanticismo” In: Dicionário de
de tema metaforizante, essa concepção foi
Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, s/d.
conscientemente desenvolvida por alguns escritores
AGUIAR e SILVA, V. M. Teoria da literatura. Coimbra:
do Romantismo para desvendar, seja o mistério
Martins Fontes, 1976.
psicológico dos seres, seja o mistério físico da
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos
própria existência. decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, 2 v.
Ralfo, como um ser de ficção, pode apontar tudo
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São
o que é velado pelos opressores anos anos setenta, Paulo: Ática, 1987.
pondo a nu os desmandos do arbítrio e do terror.
COSTA LIMA, L. Sociedade e discurso ficcional. Rio de
Recusando-se a escrever uma história puramente Janeiro: Guanabara, 1966.
verdadeira, o escritor mostra a realidade de todo e ECO, U. A obra aberta. Trad. de Pérola de Carvalho. 2. ed.
qualquer fato, de modo ainda mais eficaz, na medida São Paulo: Perspectiva, 1971.
em que essa realidade é mostrada como ficção. ELIADE, M. Mitos, sonhos e mistérios. Trad. de Samuel
Submetendo-se a Ralfo como personagem, Soares. Lisboa: Edições 70, s/d.
Sérgio atribui-lhe a responsabilidade pelas afrontas FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
aos valores apregoados pela sociedade. Ralfo é o ciências humanas. Trad. de Selma Tannus Muchail. 2. ed.
agente do desnudamento da realidade, mostrando as São Paulo: Martins Fontes, 1981.
contradições dos referentes empíricos, as críticas GÖETHE. Fausto. Trad. De David Jardeus Jr. Rio de
severas e mordazes a qualquer sistema ou norma Janeiro: Technoprint, 1984.
instituída. Daí que seu papel seja equivalente ao que GRASSI, E. Arte e mito. Trad. de Manuela Pinto dos
o demônio tem para os românticos. Por outro lado, a Santos. Lisboa: LBL, s/d.
renovação herdada do movimento romântico, como ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva,
a liberdade de invenção e experimentação, levou o 1973.
romance recente à carnavalização total, como vimos SANT’ANNA, S. Confissões de Ralfo: uma autobiografia
no romance objeto desse estudo. De fato, Confissões imaginária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1975.
de Ralfo faz, por assim dizer, a sua própria paródia, WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Trad. de J.E.R.
tamanha as alterações que opera no gênero Moretzsohn. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
romanesco. Received on November 01, 2001.
Desse modo, as inovações que a literatura atual Accepted on January 10, 2002.
apresenta não representam um corte na linha de

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