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Steven Pinker

O instinto da linguagem
Como a mente cria a linguagem

T rad ução
C l a u d ia B e r l in e r

R e v isã o T é c n ic a
C y n t h ia L e v a r t Z o c c a

M artins Fontes
São Paulo 2004
Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título
THE LANGUAGEINSTINCT.
Copyright © 1994 hy Steven Pinker.
Copyright © 2002, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

Ia edição
abril de 2002
2“ tiragem
junho de 2004

Tradução
CLAUDIA BERUNER

Revisão técnica
Cynthia Levart Zocca
Revisão grãfica
Lilian Jenkino
Maria Luiza Fravet
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pinker, Slcvcn, 1954-


O instinto da linguagem : como a mente cria a linguagem /
Steven Pinker ; tradução Claudia B crliner; revisão técnica Cynthia
Levart Zocca. - São Paulo : Martins Fontes, 2002.

Título original: The languagc instincl.


Bibliografia.
ISBN 85-336-1549-3

1. Biolingüística 2. Linguagem 3. Linguística I. Título.

02-1528__________________________________________ CDD-400
índices para catálogo sistemático:
1. Linguagem 400

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3241.3677 Fax (11)3105.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br http:llwww.martinsfontes.com.hr
Para H arry e Roslyn Pinker,
que me deram a linguagem
в

I
Índice

Prefácio • 1

1. Um instinto para adquirir uma arte • 5


2. Tagarelas • 19
3. Mentalês • 59
4. Como a linguagem funciona • 95
5. Palavras, palavras, palavras *151
6. Os sons do silêncio • 195
7. Cabeças falantes • 241
8. A Torre de Babel • 293
9. Bebê nasce falando —Descreve céu • 333
10. Órgãos da linguagem e genes da gramática • 379
11. O Big Bang • 425
12. Os craques da língua • 477
13. O design da mente • 523

Notas *559
Rferêncías bibliográficas • 577
Glossário • 605
índice remissivo *617
m\
P refácio

Nunca conhecí alguém que não se interessasse por linguagem.


Escrevi este livro para tentar satisfazer essa curiosidade. A lingua­
gem começou a ser submetida ao único tipo de compreensão sa­
tisfatório, aquela que chamamos de ciência, mas essa notícia foi
mantida em segredo.
Ao amante da linguagem, espero conseguir mostrar que existe
um mundo preciso e rico na fala cotidiana que vai muito além das
curiosidades locais de etimologias, palavras incomuns e exemplos
sutis de uso.
Ao leitor leigo interessado em ciência, espero conseguir expli­
car o que está por trás das recentes descobertas (ou, em muitos
casos, não-descobertas) noticiadas pela imprensa: estruturas pro­
fundas universais, bebês inteligentes, genes da gramática, compu­
tadores com inteligência artificial, redes neurais, chimpanzés que
se expressam por sinais, homens de Neanderthal que falam, sá­
bios idiotas, crianças selvagens, lesões cerebrais paradoxais, gêmeos
idênticos separados ao nascer, imagens coloridas do cérebro pen­
sando e a busca da mãe de todas as línguas. Também espero poder
responder a muitas das perguntas que surgem naturalmente quan­
do se pensa em línguas: por que existem tantas, por que os adul­
tos têm tanta dificuldade para aprendê-las e por que parece que
ninguém sabe o plural de Walkman.

1
I O instinto da linguagem I

Aos estudantes que desconhecem a ciência da linguagem e da


mente, ou pior, que estão sobrecarregados com a memorização
dos efeitos da freqüência de palavras sobre o tempo de resposta
das decisões lexicais ou as questões sutis do Princípio das Cate­
gorias Vazias, espero poder transmitir a intensa agitação intelec­
tual que o moderno estudo da linguagem desencadeou várias dé­
cadas atrás.
Aos meus colegas de profissão, dispersos entre tantas disci­
plinas e estudando tantos tópicos aparentemente desconexos, es­
pero poder oferecer algo que se assemelhe a uma integração des­
se vasto território. Embora eu seja um pesquisador obsessivo que
não gosta de acordos insípidos que embaralham as questões, mui­
tas das ‘controvérsias acadêmicas me lembram cegos apalpando
um elefante. Se minha síntese pessoal parece abraçar os dois lados
de debates como “formalismo versus funcionalismo” ou “sinta­
xe versus semântica versus pragmática”, talvez seja porque, para
começo de conversa, essas questões nunca existiram.
Ao público leitor de não-ficção, interessado em linguagem e
seres humanos no mais amplo sentido dos termos, espero poder
oferecer algo diferente dos chavões afetados —Linguagem Light —que
caracterizam as discussões sobre linguagem no campo das ciências
humanas (geralmente propostas por pessoas que nunca estudaram
o assunto). Seja como for, só posso escrever de uma única manei­
ra, com paixão por idéias possantes e explicativas, e uma torrente
de detalhes relevantes. Dado este meu hábito, tenho sorte de estar
expondo um tema cujos princípios subjazem aos jogos de pala­
vras, à poesia, retórica, espirituosidade e à escrita refinada. Não he­
sitei em exibir meus exemplos favoritos de linguagem em ação ex­
traídos da cultura pop, de crianças e adultos comuns, dos estudio­
sos mais bombásticos do meu campo e de alguns dos melhores es­
critores de língua inglesa.
Este livro destina-se, portanto, a todos os que utilizam a lin­
guagem, ou seja, a todos!

2
I Prefácio I

Devo agradecimentos a muitas pessoas. Em primeiro lugar, a


Leda Cosmides, Nancy Etcoff, Michael Gazzaniga, Laura Ann
Petitto, H arry Pinker, Robert Pinker, Roslyn Pinker, Susan Pinker,
John Tooby, e especialmente a Ilavenil Subbiah, por seus comentá­
rios ao manuscrito, seu incentivo e suas generosas sugestões.
A instituição em que trabalho, o Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, é um ambiente muito propício para o estudo da
linguagem, e agradeço aos colegas, estudantes e antigos alunos que
comigo compartilharam seus conhecimentos. Noam Chomsky
fez críticas precisas e ofereceu sugestões proveitosas, e Ned Block,
Paul Bloom, Susan Carey, Ted Gibson, M orris Halle e Michael
Jordan ajudaram-me a resolver as questões de vários capítulos.
Agradeço também a Hilary Bromberg, Jacob Feldman, John Houde,
Samuel Jay Keyser, John J. Kim, Gary Marcus, Neal Perlmutter,
David Pesetsky, David Põppel, Annie Senghas, Karin Stromswold,
MichaelTarr, MarianneTeuber, Michael Ullman, KennethWexler
e Karen Wynn suas respostas eruditas a perguntas que vão da lin­
guagem de sinais a obscuros jogadores de bola e guitarristas. O
bibliotecário do Departamento de Ciências Mentais e Cognitivas,
Pat Claffey, e o responsável pelo sistema de informática do mes­
mo Departamento, Stephen G. Wadlow, admiráveis representan­
tes de suas profissões, ofereceram-me ajuda especializada em mui­
tos momentos.
Vários capítulos beneficiaram-se do exame minucioso de ver­
dadeiros craques, a quem agradeço os comentários técnicos e esti­
lísticos: Derek Bickerton, David Caplan, Richard Dawkins, Nina
Dronkers, Jane Grimshaw, Misia Landau, Beth Levin, Alan Prince e
Sarah G.Thomason. Também agradeço a meus colegas de ciberespa­
ço que perdoaram minha impaciência respondendo, às vezes em
minutos, a minhas investigações eletrônicas: Mark Aronoff, Kathleen
Baynes, Ursula Bellugi, Dorothy Bishop, Helena Cronin, Lila Gleit-
man, Myma Gopnik, Jacques Guy, Henry Kucera, Sigrid Lipka,
Jacques Mehler, Elissa Newport, Alex Rudnicky, Jenny Singleton,

3
I O instinto da linguagem

Virgínia Valian e Heather Van der Lely. Um último obrigado para


Alta Levenson do Colégio Bialik por sua ajuda com o latim.
Não posso deixar de reconhecer com alegria a especial atenção
de John Brockman, meu agente, Ravi Mirchandani, meu editor na
Penguin Books, e M aria Guamaschelli, minha editora na W illiam
Morrow; os sábios e detalhados conselhos de M aria melhoraram
muito a versão final do manuscrito. Katarina Rice revisou meus
dois primeiros livros, e fiquei muito feliz quando ela aceitou meu
pedido de trabalhar comigo neste, sobretudo no que se refere a al­
gumas coisas que digo no Capítulo 12.
Minha pesquisa sobre linguagem foi financiada pelos Natio­
nal Institutes o f Health (protocolo HD I8 3 8 I), pela National
Science Foundation (protocolo BNS 91-09766) e pelo Centro
McDonnell-Pew de Neurociências Cognitivas no MIT.

4
Um instinto p a ra
a d q u irir um a arte

Jl A o ler estas palavras, você


estará participando de uma
das maravilhas do mundo natural. Porque você e eu pertencemos
a uma espécie com uma capacidade notável: podemos moldar
eventos nos cérebros uns dos outros com primorosa precisão. Não
me refiro a telepatia, controle da mente ou tantas outras obsessões
das ciências alternativas; mesmo quando descritos por aqueles
que acreditam nisso, estes são instrumentos grosseiros se compa­
rados com uma habilidade incontestavelmente presente em cada
um de nós. Essa habilidade é a linguagem. Por meio de simples
ruídos produzidos por nossas bocas, podemos fazer com que
combinações de idéias novas e precisas surjam na mente do outro.
E uma habilidade tão natural que costumamos esquecer que é um
milagre. Portanto, permita-me lembrá-lo disso com algumas de­
monstrações simples. Basta pedir-lhe que abandone sua imagina­
ção às minhas palavras por alguns instantes, para fazer com que
você pense em idéias muito específicas:

Quando um polvo macho localiza uma fêmea, seu corpo normal­


mente cinzento torna-se subitamente listrado. Ele nada por cima da
fêmea e começa a acariciá-la com sete de seus braços. Se ela aceita
essa carícia, ele rapidamente se aproxima dela e enfia seu oitavo bra­

5
I O instinto da linguagem I

ço no seu tubo respiratório. Uma série de bolsas de esperma mo­


vem-se lentamente por um sulco de seu braço, para finalmente pene­
trar na cavidade do manto da fêmea.

Calda de cereja numa roupa branca? Vinho na toalha do altar?


Aplique club soda imediatamente. Funciona maravilhosamente bem
para remover manchas dos tecidos.

Ao abrir a porta paraTad, Dixie fica aturdida, pois achava que ele es­
tava morto. Bate a porta na cara dele e tenta escapar. Mas quando
Tad diz “Eu a amo”, permite que entre. Tad a conforta e eles se en­
tregam um ao outro. Quando Brian chega, interrompendo-os, Dixie
conta a um Tad atordoado que ela e Brian tinham-se casado naquele
mesmo dia. Com muita dificuldade, Dixie informa Brian de que as
coisas não terminaram entre ela eTad. Em seguida, solta a notícia de
que Jamie é filho de Tad. “Meu o quê?”, diz um Tad chocado.

Pense no que estas palavras provocaram. O que fiz não foi sim­
plesmente lembrá-lo de polvos; se, porventura, você vir surgir
listras em um deles, agora sabe o que acontecerá em seguida. A
próxima vez que for a um supermercado, talvez procure club so­
da entre os milhares de itens disponíveis, e não toque nele até mui­
tos meses depois, quando uma substância particular e um obje­
to particular acidentalmente se encontrarem. Agora você compar­
tilha com milhões de outras pessoas os segredos dos protagonistas
de um mundo criado pela imaginação de um estranho, o folhetim
diário All My Ckildren. È verdade que minhas demonstrações de­
penderam de nossa capacidade de ler e escrever, mas isso torna
nossa comunicação ainda mais impressionante, pois transpõe in­
tervalos de tempo, espaço e convivência. Mas a escrita é claramen­
te um acessório opcional; o verdadeiro motor da comunicação ver­
bal é a língua falada que adquirimos quando crianças.
Em qualquer história natural da espécie humana, a linguagem
se distingue como traço preeminente. Um humano solitário é,
decerto, um engenheiro e fantástico solucionador de problemas.

6
I Um instinto para adquirir uma arte I

Mas uma raça de Robinson Crusoés não impressionaria muito


um observador extraterrestre. O que realmente comove quando se
trata de nossa espécie fica mais claro na história da Torre de Ba­
bel, em que os homens, falando uma única língua, chegaram tão
perto de alcançar o céu que Deus sentiu-se ameaçado. Uma língua
comum une os membros de uma comunidade numa rede de troca
de informações extremamente poderosa. Todos podem beneficiar-
se das sacadas dos gênios, dos acidentes da fortuna e da sabedoria
oriunda de tentativas e erros acumulados por qualquer um, no
presente ou no passado. E as pessoas podem trabalhar em equipe,
coordenando seus esforços por meio de acordos negociados. Con-
seqüentemente, o Homo sapiens é uma espécie, como a alga verde e
a minhoca, que operou profundas mudanças no planeta. Arqueó­
logos descobriram ossos de dez mil cavalos selvagens na base de
um penhasco na França, restos de manadas atiradas do alto do pe­
nhasco por grupos de caçadores paleolíticos dezessete m il anos
atrás. Esses fósseis de uma antiga cooperação e de uma engenho-
sidade compartilhada talvez possam esclarecer por que tigres de
dente-de-sabre, mastodontes, gigantescos rinocerontes peludos e
dezenas de outros grandes mamíferos foram extintos mais ou me­
nos na mesma época em que os humanos chegaram aos seus hábi-
tats. Aparentemente, nossos ancestrais os mataram.
A linguagem está tão intimamente entrelaçada com a experiên­
cia humana que é quase impossível imaginar vida sem ela. É muito
provável que, se você encontrar duas ou mais pessoas juntas em
qualquer parte da Terra, elas logo estarão trocando palavras. Quan­
do as pessoas não têm ninguém com quem conversar, falam sozi­
nhas, com seus cães, até mesmo com suas plantas. Nas nossas rela­
ções sociais, o que ganha não é a força física mas o verbo —o ora­
dor eloqüente, o sedutor de língua de prata, a criança persuasiva
que impõe sua vontade contra um pai mais musculoso. A afasia,
que é a perda da linguagem em consequência de uma lesão cere­
bral, é devastadora, e, em casos graves, os membros da família che­
gam a sentir que é a própria pessoa que foi perdida para sempre.

7
I O instinto da linguagem I

Este livro trata da linguagem humana. Diferentemente de vá­


rios livros que levam “língua” ou “linguagem” no título, ele não
vai repreendê-lo sobre o uso apropriado da língua, procurar as ori­
gens das expressões idiomáticas e da gíria, ou diverti-lo com pa-
líndromos, anagramas, epônimos ou aqueles adoráveis nomes para
coletivos de animais como “exaltação de cotovias”1. Pois não es­
crevo sobre o idioma inglês ou qualquer outro idioma, mas sobre
algo bem mais básico: o instinto para aprender, falar e compreen­
der a linguagem. Pela primeira vez na história temos o que escre­
ver a esse respeito. Há uns trinta e cinco anos nasceu uma nova
ciência, agora denominada “ciência cognitiva”, que reúne ferra­
mentas da psicologia, da ciência da computação, da lingüística, fi­
losofia e neurobiologia para explicar o funcionamento da inteli­
gência humana. Desde então, assistiu-se a espetaculares avanços
da ciência da linguagem, em particular. Há muitos fenômenos da
linguagem que estamos começando a compreender tão bem como
compreendemos o funcionamento de uma máquina fotográfica
ou para que serve o baço. Espero conseguir transmitir essas fasci­
nantes descobertas, algumas delas tão simples e precisas como
qualquer outra coisa na ciência moderna, mas tenho também um
segundo objetivo.
A recente elucidação das faculdades lingüísticas tem implica­
ções revolucionárias para nossa compreensão da linguagem e seu
papel nos assuntos humanos, e para nossa própria concepção da
humanidade. Muitas pessoas cultas já têm opiniões sobre a lin­
guagem. Sabem que é a invenção cultural mais importante do ho­
mem, o exemplo quintessencial de sua capacidade de usar símbo­
los, e um acontecimento sem precedentes em termos biológicos,
que o separa definitivamente dos outros animais. Sabem que a lin­
guagem impregna o pensamento, e que as diferentes línguas levam

I. Referencia ao livro de James Lipton, An Exaltation of Larks~Tbe Ultimate Edition, eel. Pcnguin,
que é uma colecânea de coletivos de animais. (N. daT.)
I Um instinto para adquirir uma arte I

seus falantes a construir a realidade de diferentes maneiras. Sabem


que as crianças aprendem a falar a partir das pessoas que lhes ser­
vem de modelo e dos adultos que cuidam delas. Sabem que a so­
fisticação gramatical costumava ser fomentada nas escolas, mas
que a queda dos padrões educacionais e a degradação da cultura
popular provocaram um assustador declínio na capacidade do ci­
dadão médio de construir uma frase gramaticalmente correta.
Sabem também que o inglês é uma língua extravagante, que desa­
fia a lógica, na qual “one drives on a parkway” e “parks in a driveway”,
“plays at a recital” e “recites at a play”2. Sabem que a grafia inglesa leva
essa excentricidade ao cúmulo —George Bernard Shaw queixava-
se de que jish [peixe] poderia igualmente ser soletrado ghoti (gb
como em tougb, o como em women, ti como em nation) —e que so­
mente a inércia institucional impede a adoção de um sistema mais
racional,de escrever-como-se-fala.
Nas próximas páginas, tentarei convencê-lo de que cada uma
dessas opiniões corriqueiras está errada! E estão todas erradas por
um simples motivo. A linguagem não é um artefato cultural que
aprendemos da maneira como aprendemos a dizer a hora ou
como o governo federal está funcionando. Ao contrário, é clara­
mente uma peça da constituição biológica de nosso cérebro. A
linguagem é uma habilidade complexa e especializada, que se de­
senvolve espontaneamente na criança, sem qualquer esforço cons­
ciente ou instrução formal, que se manifesta sem que se perceba
sua lógica subjacente, que é qualitativamente a mesma em todo
indivíduo, e que difere de capacidades mais gerais de processa­
mento de informações ou de comportamento inteligente. Por es­
ses motivos, alguns cognitivistas descreveram a linguagem como
uma faculdade psicológica, um órgão mental, um sistema neural
ou um módulo computacional. Mas prefiro o simples e banal ter­

2. Em português a extravagância se perde: estaciona-se o carro no estacionamento e se esta­


ciona na garagem; toca-se num recital e se recita numa peça de teatro. (N. daT.)

9
I O instinto da linguagem I

mo “instinto”. Ele transmite a idéia de que as pessoas sabem falar


mais ou menos da mesma maneira que as aranhas sabem tecer teias.
A capacidade de tecer teias não foi inventada por alguma aranha
genial não reconhecida e não depende de receber a educação ade­
quada ou de ter aptidão para arquitetura ou negócios imobiliá­
rios. As aranhas tecem teias porque têm cérebro de aranha, o que
as impele a tecer e lhes dá competência para fazê-lo com sucesso.
Embora haja diferenças entre teias e palavras, proponho que você
veja a linguagem dessa maneira, porque isso ajuda a entender os
fenômenos que vamos explorar.
Pensar a linguagem como um instinto inverte a sabedoria po­
pular, especialmente da forma como foi aceita nos cânones das
ciências‘humanas e sociais. A linguagem não é uma invenção cul­
tural, assim como tampouco a postura ereta o é. Não é uma ma­
nifestação da capacidade geral de usar símbolos: como veremos,
uma criança de três anos é um gênio gramatical, mas é bastante
incompetente em termos de artes visuais, iconografia religiosa, si­
nais de trânsito e outros itens básicos do currículo de semiótica.
Embora a linguagem seja uma habilidade magnífica exclusiva do
Hotno sapiens entre as espécies vivas, isso não implica que o estudo
dos seres humanos deva ser retirado do campo da biologia, pois
existem outras habilidades magníficas exclusivas de uma espécie
viva em particular no reino animal. Alguns tipos de morcegos cap­
turam insetos voadores usando um sonar Doppler. Alguns tipos
de aves migratórias viajam milhares de quilômetros comparando
as posições das constelações com as horas do dia e épocas do ano.
No show de talentos da natureza, somos apenas uma espécie de
primatas com nosso próprio espetáculo, um jeito todo especial de
comunicar informação sobre quem fez o que para quem modu­
lando os sons que produzimos quando expiramos.
A partir do momento em que você começa a considerar a lin­
guagem não como a inefável essência da singularidade humana,
mas como uma adaptação biológica para transmitir informação,

10
I Um instinto para adquirir uma arte I

deixa de ser tentador ver a linguagem como um insidioso forma­


dor de pensamentos, e, como veremos, ela não é isso. Além disso,
o fato de ver a linguagem como uma das maravilhas da engenharia
da natureza —um órgão com “aquela perfeição de estrutura e de
co-adaptação que, com razão, desperta nossa admiração”, nas pa­
lavras de Darwin —inspira em nós um novo respeito pelo José de
cada esquina e pela tão difamada língua inglesa (ou qualquer ou­
tra língua). Do ponto de vista do cientista, a complexidade da lin­
guagem é parte de nossa herança biológica inata; não é algo que
os pais ensinam aos filhos ou algo que tenha de ser elaborado na
escola —como disse Oscar W ilde: “Educação é algo admirável,
mas é bom lembrar de vez em quando que nada que vale a pena
saber pode ser ensinado.” O conhecimento tácito de gramática de
uma criança em idade pré-escolar é mais sofisticado que o mais
volumoso manual de estilo ou o mais moderno sistema de lingua­
gem de computador, e o mesmo se aplica a qualquer ser humano
saudável, até mesmo o atleta profissional conhecido por seus er­
ros de linguagem e o, sabe, tipo, skatista adolescente inarticulado.
Por fim, como a linguagem é produto de um instinto biológico
bem planejado, veremos que ela não é o ridículo grupo de maca­
cos sugerido pelos colunistas de espetáculos de variedades. Tenta­
rei devolver alguma dignidade ao vernáculo inglês, e terei inclusi­
ve algumas belas coisas a dizer sobre seu sistema de ortografia.
A idéia da linguagem como um tipo de instinto foi concebida
pela primeira vez em 1871 pelo próprio Darwin. Em The Descent of
Man ele teve de enfrentar a linguagem, pois o fato de ela se restrin­
gir aos seres humanos parecia desafiar sua teoria. Como sempre,
suas observações são estranhamente modernas:

Como... um dos fundadores da nobre ciência da filologia observou,


a linguagem é uma arte, como fermentar ou assar; mas a escrita teria
sido uma comparação melhor. Ela decerto não é um verdadeiro ins­
tinto, pois toda língua tem de ser aprendida. Contudo, difere muito

11
I O instinto da linguagem I

de todas as artes comuns, pois o homem tem uma tendência instin­


tiva a falar, como vemos no balbuciar de nossos filhos pequenos; ne­
nhuma criança, no entanto, tem uma tendência instintiva a fermentar,
assar ou escrever. Além disso, nenhum filólogo supõe atualmente
que alguma língua tenha sido deliberadamente inventada; desenvol­
veu-se lenta e inconscientemente etapa por etapa.

Darwin concluía que a habilidade da linguagem é “uma ten­


dência instintiva a adquirir uma arte”, desígnio não peculiar aos
humanos mas também encontrado em outras espécies, como os
pássaros que aprendem a cantar.
Um instinto da linguagem pode ser chocante para aqueles que
pensam1a linguagem como o zênite do intelecto humano e que
pensam os instintos como impulsos brutais que compelem zum­
bis cobertos de peles e penas a construir um dique ou abandonar
tudo e rumar para o sul. Mas um dos seguidores de Darwin,
W illiam James, observou que quem possui um instinto não preci­
sa agir “fatalmente [como um] autômato”. Segundo ele, temos os
mesmos instintos que os animais, e muitos outros além desses;
nossa inteligência flexível provém da inter-relação entre muitos
instintos divergentes. Com efeito, é justamente a natureza instin­
tiva do pensamento humano que faz com que nos custe tanto per­
ceber que ela é um instinto:

E preciso... uma mente pervertida pela aprendizagem para fazer com


que o natural pareça estranho, ao ponto de indagar os motivos de
qualquer ato humano instintivo. Só a um metafísico podem ocorrer
questões como: Por que sorrimos quando estamos contentes e não
franzimos as sobrancelhas? Por que não conseguimos falar com uma
multidão da mesma maneira como conversamos com um amigo?
Por que uma certa moça nos deixa tão transtornados? O homem co­
mum diria apenas: "E claro que sorrimos, é claro que nosso coração
palpita ao ver a multidão, é claro que amamos a moça, essa bela alma

12
I Um instinto para adquirir uma arte I

revestida dessa forma perfeita, feita para ser amada por todo o sem­
pre de modo tão palpável e evidente!”
E é isso, provavelmente, que todo animal sente em relação a cer­
tas coisas que ele tende a fazer em presença de certos objetos... Para
o leão, é a leoa que foi feita para ser amada; para o urso, a ursa. É
muito provável que a galinha choca considerasse monstruosa a idéia
de que haja alguma criatura no mundo para quem um ninho cheio de
ovos não fosse o objeto mais fascinante, mais precioso de todos e so­
bre o qual nunca-é-demais-sentar-em-cima, como é para ela.
Podemos portanto estar certos de que, por mais misteriosos que
alguns dos instintos animais nos pareçam, nossos instintos decerto
não parecem menos misteriosos para eles. E podemos concluir que,
para o animal que a ele obedece, cada impulso e cada etapa de cada
instinto brilha com sua própria luz, e a cada momento parece ser a
única coisa eternamente correta e apropriada a fazer. Que sensação
voluptuosa não deve percorrer a mosca quando ela por fim descobre
aquela folha particular, ou carniça, ou porção de esterco, que entre
todas no mundo estimula seu ovipositor a eliminar os ovos? Nesse
momento, essa eliminação não deve lhe parecer a única coisa a ser
feita? E será que ela precisa se preocupar ou saber algo a respeito da
futura larva e seu alimento?

Não consigo pensar numa melhor exposição de meu principal


objetivo. O funcionamento da linguagem está tão distante de nos­
sa consciência quanto os fundamentos lógicos da postura de ovos
para a mosca. Nossos pensamentos saem de nossa boca com tan­
ta naturalidade que muitas vezes nos constrangem, quando elu­
dem nossos censores mentais. Quando compreendemos as frases,
o fluxo de palavras é transparente; entendemos o sentido de mo­
do tão automático que podemos esquecer que um filme é falado
numa língua estrangeira e está legendado. Acreditamos que as
crianças aprendem a língua materna imitando a mãe, mas quando
uma criança diz Eu se sentei! ou Eu não cabo aí dentro certamente não
é uma imitação. Quero transmitir-lhe conhecimentos que perver­

13
I O instinto da linguagem I

tam sua mente ao ponto de esses dons naturais parecerem estra­


nhos, para que você se pergunte os “porquês” e “cornos” dessas ca­
pacidades aparentemente familiares. Observe um imigrante lutan­
do para dominar uma segunda língua ou um paciente que sofreu
uma lesão cerebral lutando com sua língua materna, ou descons-
trua um fragmento de fala infantil, ou tente programar um com­
putador para compreender inglês, e a fala corrente começará a ser
vista de outra maneira. A naturalidade, a transparência, o caráter
automático são ilusões, que escondem um sistema de grande ri­
queza e beleza.
No século 20, a tese mais famosa de que a linguagem é como
um instinto foi elaborada por Noam Chomsky, o primeiro lin­
guista á revelar a complexidade do sistema e talvez o maior res­
ponsável pela moderna revolução na ciência cognitiva e na ciência
da linguagem. Na década de 50, as ciências sociais eram domina­
das pelo bchaviorismo, a escola de pensamento divulgada por John
Watson с B. F. Skinncr. Termos mentais como “saber” e “pensar”
eram rotulados de não-científicos; “mente” e “inato” eram palavrões.
O comportamento era explicado por algumas poucas leis de apren­
dizagem por cstímulo-resposta que podiam ser estudadas por meio
de ratos que apertavam barras e cães que salivavam ao som de
campainhas. Mas Chomsky chamou a atenção para dois fatos fun­
damentais sobre a linguagem. Em primeiro lugar, cada frase que
uma pessoa enuncia ou compreende é virtualmente uma nova
combinação de palavras, que aparece pela primeira vez na história
do universo. Por isso, uma língua não pode ser um repertório de
respostas; o cérebro deve conter uma receita ou programa que
consegue construir um conjunto ilimitado de frases a partir de
uma lista finita de palavras. Esse programa pode ser denominado
gramática mental (que não deve ser confundida com "gramáti­
cas” pedagógicas ou estilísticas, que são apenas guias para a ele­
gância da prosa escrita). O segundo fato fundamental é que as
crianças desenvolvem essas gramáticas complexas rapidamente e

14
I Um instinto para adquirir uma arte I

sem qualquer instrução formal e, à medida que crescem, dão in­


terpretações coerentes a novas construções de frases que elas nun­
ca escutaram antes. Portanto, afirmava ele, as crianças têm de estar
equipadas de modo inato com um plano comum às gramáticas de
todas as línguas, uma Gramática Universal, que lhes diz como ex­
trair os padrões sintáticos da fala de seus pais. Chomsky descre­
veu isso nos seguintes termos:

Um fato curioso sobre a história intelectual dos últimos séculos é


que o desenvolvimento físico e mental foi abordado de várias ma­
neiras diferentes. Ninguém levaria a sério a afirmação de que o orga­
nismo humano aprende pela experiência a ter braços em vez de asas,
ou de que a estrutura básica de determinados órgãos resulta da ex­
periência acidental. Ao contrário, considera-se indiscutível que a es­
trutura física do organismo é geneticamente determinada, embora, é
claro, variações como tamanho, velocidade de desenvolvimento etc.
dependam em parte de fatores externos...
O desenvolvimento da personalidade, de padrões de compor­
tamento c de estruturas cognitivas em organismos mais desenvolvi­
dos costuma ser abordado de modo bem diferente. Nesses campos,
costuma-se dizer que o meio social é o fator predominante. As es­
truturas da mente que se desenvolvem com o passar do tempo são
consideradas arbitrárias e acidentais; não existe uma “natureza huma­
na” separada daquilo que se desenvolve como um produto histórico
específico...
Mas os sistemas cognitivos humanos, quando seriamente investi­
gados, não se mostram menos maravilhosos e intricados que as es­
truturas físicas que se desenvolvem na vida do organismo. Então,
por que não deveriamos estudar a aquisição de uma estrutura cogni­
tiva como a linguagem mais ou menos da mesma maneira como es­
tudamos um órgão físico complexo?
 primeira vista, esta proposta parece absurda, fosse apenas pela
grande variedade de línguas humanas. Mas, considerando-se a ques­
tão mais de perto, essas dúvidas desaparecem. Mesmo conhecendo
muito pouco sobre os universais lingüísticos, podemos ter certeza

15
I O instinto da linguagem. I

de que a possível variedade de línguas é bem limitada... A língua que


cada pessoa adquire é uma construção rica e complexa que não se
justifica pelos parcos e fragmentados dados disponíveis [para a crian­
ça]. No entanto, os membros de uma comunidade lingüística desen­
volvem essencialmente a mesma língua. Esse fato só encontra expli­
cação na hipótese de que esses indivíduos empreguem princípios al­
tamente restritivos, que dirigem a construção da gramática.

Por meio de esmeradas análises técnicas das frases que pessoas


comuns aceitam como pertencentes à sua língua materna, Choms­
ky e outros lingüistas desenvolveram teorias das gramáticas men­
tais que subjazem ao conhecimento que as pessoas têm de certas
línguas e da Gramática Universal que subjaz a determinadas gra­
máticas. Logo depois, o trabalho de Chomsky incentivou outros
estudiosos, entre os quais Eric Lenneberg, George Miller, Roger
Brown, Morris Halle e Alvin Liberman, a inaugurar áreas total­
mente novas de estudo da linguagem, do desenvolvimento infantil
c percepção da fala à neurologia e genética. Atualmente, a comu­
nidade de cientistas que estudam as questões que ele levantou é
composta de milhares de estudiosos. Chomsky é geralmente incluí­
do entre os dez escritores mais citados no campo das humanida­
des (ganhando de Hegel e Cícero e estando atrás apenas de Marx,
Lênin, Shakespearc, a Bíblia, Aristóteles, Platão e Freud) e é o úni­
co membro vivo entre os dez mais.
O que essas citações dizem é outra coisa. Chomsky incomoda.
As reações vão da veneração comumente reservada aos gurus de
estranhos cultos religiosos aos ataques hostis que os membros da
academia transformaram numa arte aprimorada. Isso se deve em
parte ao fato de que Chomsky ataca aquilo que ainda é um dos
alicerces da vida intelectual do século 20 —o “Modelo Clássico
das Ciências Sociais”, segundo o qual a psique humana c molda­
da pelo ambiente cultural. Mas deve-se também ao fato de nenhum
pensador poder ignorá-lo. Como reconhece um de seus mais seve­
ros críticos, o filósofo H ilary Putnam:

16
I Um instinto para adquirir uma arte I

Ao ler Chomsky, tem-se a sensação de estar diante de uma grande


potência intelectual; é certo que se está diante de uma mente ex­
traordinária. E isso decorre tanto da fascinação produzida por sua
forte personalidade quanto de suas óbvias virtudes intelectuais: ori­
ginalidade, desdém pelos modismos e pelo superficial; desejo de dar
novamente vida (e a capacidade de fazê-lo) a posições (como a
“doutrina das idéias inatas”) que pareciam ultrapassadas; preocupa­
ção com temas, como a estrutura da mente humana, de importância
central e perene.

A história que vou contar neste livro foi sem dúvida profunda­
mente influenciada por Chomsky. Mas não é exatamente a histó­
ria dele, e não a contarei como ele o faria. Chomsky confundiu
muitos leitores com seu ceticismo quanto à possibilidade da sele­
ção natural darwiniana (em contraposição a outros processos evo­
lutivos) poder explicar as origens do órgão da linguagem que ele
propõe; a meu ver, é útil considerar a linguagem como uma adap­
tação evolutiva, como o olho, cujas principais partes estão desti­
nadas a desempenhar importantes funções. Além disso, as teses de
Chomsky sobre a natureza da faculdade da linguagem baseiam-se
em análises técnicas da estrutura das palavras e frases, muitas ve­
zes expressas em abstrusos formalismos. Suas discussões sobre fa­
lantes de carne e osso são superficiais e muito idealizadas. Em­
bora eu concorde com muitas de suas teses, acho que uma conclu­
são sobre a mente só é convincente se dados oriundos de muitas
fontes convergirem para ela. Portanto, a história contada neste li­
vro é altamente eclética, incluindo desde a maneira como o DNA
constrói cérebros até discursos pontificantes de colunistas de lin­
guagem jornalística. Para começar, o melhor é perguntar por que
alguém deveria acreditar que a linguagem humana é parte da bio­
logia humana —ou seja, um instinto.

17
Tagarelas

2 Por volta de 1920, pensa­


va-se que nenhum canto
da Terra em que os homens pudessem habitar deixara de ser ex­
plorado. A Nova Guiné, a segunda maior ilha do mundo, não era
exceção. Missionários europeus, colonizadores e administradores
aferravam-se às planícies costeiras, convencidos de que ninguém
poderia viver na traiçoeira cadeia de montanhas que cortava o meio
da ilha de ponta a ponta. Mas as montanhas visíveis de cada uma
das costas pertenciam na verdade a duas cadeias, entre as quais
havia um planalto de clima temperado atravessado por vários va­
les férteis. Um povo da Idade da Pedra vivia naquelas terras altas,
isolado do resto do mundo durante quarenta mil anos. O engano
só se desfez quando descobriram ouro no afluente de um dos
principais rios. A corrida do ouro que se seguiu atraiu Michael
Leahy, um garimpeiro australiano independente que, em 26 de
maio de 1930, partiu para explorar as montanhas com mais um
garimpeiro e um grupo de nativos da planície contratados como
carregadores. Depois de transporem os picos, Leahy teve a surpre­
sa de deparar com campos verdejantes do outro lado. Ao cair da
noite a surpresa transformou-se em alarme, pois os pontos de luz
que se avistavam ao longe eram sinais óbvios de que o vale era ha­
bitado. Depois de uma noite sem dormir, durante a qual Leahy e

19
I O instinto da linguagem I

seu grupo carregaram as armas e montaram uma bomba rudimen­


tar, fizeram seu primeiro contato com os montanheses. O espan­
to era mútuo. Leahy escreveu em seu diário:

Foi um alívio quando os [nativos] apareceram, os homens... na fren­


te, armados com arcos e flechas, as mulheres atrás, carregando col-
mos de cana-de-açúcar. Ao ver as mulheres, Ewunga me disse ime­
diatamente que não haveria luta. Acenamos para que se acercassem,
o que fizeram cautelosamente, parando a cada tanto para nos ob­
servar. Quando finalmente alguns deles tomaram coragem para se
aproximar, percebemos que estavam atônitos com a nossa aparência.
Quando tirei meu chapéu, os que estavam mais perto de mim recua­
ram aterrorizados. Um velho avançou cuidadosamentc de boca aber­
ta, c mc tocou para ver se eu era real. Em seguida, pondo-se de joe­
lhos, esfregou as mãos nos meus pés descalços, provavelmente para
descobrir se estavam pintados, agarrou-me pelos joelhos e os abra­
çou, esfregando seus cabelos espessos contra mim... As mulheres e
crianças aos poucos também tomaram coragem para se aproximar, e
de repente o acampamento estava repleto deles, correndo por todos
os lados numa grande algaravia, apontando para... ludo o que era
novo para eles.

Essa “algaravia” era linguagem —uma língua desconhecida, uma


das oitoccntas que viríam a ser descobertas entre os montanheses
isolados ate os anos 60. O primeiro contato de Leahy repetiu uma
cena que deve ter ocorrido centenas de vezes na história humana,
sempre que um povo encontrava outro pela primeira vez. 7 ’odos
eles, pelo que nos consta, já tinham alguma língua. Cada hotento-
te, cada esquimó, cada ianomâmi. Nunca se descobriu nenhuma
tribo muda, c não há registros de alguma região que lenha servido
de “berço” da linguagem, a partir da qual ela teria se espalhado
para grupos antes destituídos de linguagem.
Como em todos os outros casos, a língua falada pelos anlilriões
de Leahy revelou não ser nenhuma algaravia mas um meio capaz

20
I Tagarelas I

de exprimir conceitos abstratos, entidades invisíveis e complexas


linhas de raciocínio. Os montanheses conferenciavam intensamen­
te, tentando chegar a uma conclusão sobre a natureza das pálidas
aparições. A principal conjetura era que eles eram reencarnações
de ancestrais ou de outros espíritos sob forma humana, talvez
aqueles que voltavam a ser esqueletos à noite. Acabaram por con­
ceber um teste empírico que resolvería a questão. “Um deles se
escondeu”, relembra o montanhês Kirupano Eza’e, “e os obser­
vou ir defecar. Ele voltou e disse: Aqueles homens vindos do céu
foram defecar ali.’ Depois que eles partiram, vários homens foram
dar uma olhada. Ao perceberem que cheirava mal, disseram: A
pele deles pode ser diferente, mas a merda deles e igual à nossa.’”
A universalidade da linguagem complexa é uma descoberta que
enche os lingüistas de admiração e temor, e é a primeira razão para
suspeitar que a linguagem não é apenas uma invenção cultural qual­
quer mas o produto de um instinto htunano específico. As inven­
ções culturais variam muito de sociedade para sociedade em ter­
mos dc sofisticação; dentro de uma sociedade, as invenções têm ge-
ralmentc um mesmo nível de sofisticação. Alguns grupos contam
fazendo marcas em ossos e cozinham em fogos que eles produzem
girando gravetos na lenha; outros usam computadores e fornos de
microondas. No entanto, a linguagem acaba com essa correlação.
Existem sociedades da Idade da Pedra, mas não existe uma língua
da Idade da Pedra. No começo do século 20, o lingüista antropó­
logo Edward Sapir escreveu: “Quando se trata da forma lingüísti-
ca, Platão não se distingue do guardador de porcos macedônio, ou
Confúcio, do caçador de cabeças selvagem de Assam.”
Para tomar um exemplo aleatório de uma forma lingiiística so­
fisticada num país não-industrializado, a lingüista Joan Bresnan
escreveu recentemente um artigo técnico comparando a constru­
ção em kivunjo, língua banto falada em várias aldeias das encos­
tas do monte Kilimanjaro na Tanzânia, com sua construção cor­
respondente em inglês, que ela descreve como “uma língua ger­

21
I O instinto da linguagem I

mânica ocidental falada na Inglaterra e em suas antigas colônias”.


A construção inglesa é denominada dativa* e pode ser encontrada
em frases como She baked те a brownie [Ela assou um brownie para
mim] e He promised her Arpège [Ele prometeu a ela Arpège], em que
um objeto indireto como те ou her é colocado depois do verbo
para indicar o beneficiário de uma ação. A construção kivunjo
correspondente é denominada aplicativo, cuja semelhança com o
dativo inglês, conforme nota Bresnan, “pode ser comparada com
aquela entre o jogo de xadrez e o de damas”. A construção ki­
vunjo se encaixa totalmente dentro do verbo, que tem sete prefi­
xos e sufixos, dois modos e quatorze tempos verbais; o verbo con­
corda com seu sujeito, seu objeto e seus substantivos beneficiá­
rios, cada um dos quais pode ter dezesseis gêneros. (Apenas para
esclarecer, esses “gêneros” não dizem respeito a coisas como tran­
sexuais, hermafroditas, pessoas andróginas etc., como um dos lei­
tores deste capítulo supôs. Para um lingüista, o termo gênero man­
tem seu significado original de “classe”, como nas palavras generic,
gemts c genre [genérico, gênero, gênero/estilo]. Os “gêneros” bantos
referem-se a classes como humanos, animais, objetos extensos,
grupos de objetos c partes do corpo. Acontece que em muitas lín­
guas européias os gêneros correspondem aos sexos, pelo menos
quanto aos pronomes. Por isso o termo lingüístico gênero passou a
ser empregado por não-lingüistas como um rótulo adequado para
o dimorfismo sexual; o termo mais preciso —sexo —parece reserva­
do agora à maneira educada de se referir à copulação.) Entre ou­
tros dispositivos engenhosos que vislumbrei nas gramáticas dos
assim chamados grupos primitivos, o complexo sistema pronomi­
nal cherokee parece particularmente jeitoso. Ele distingue “você
e eu”, “outra pessoa e eu”, “várias outras pessoas e eu” e “você,

* Todos os termos técnicos de linguística, biologia e ciência cognitiva que utilizo neste livro
estão definidos no Glossário nas páginas 605-616.

22
I Tagarelas I

uma ou mais pessoas e eu”, que o inglês rudemente junta no pro­


nome de múltiplas utilidades we [nós],
Na verdade, as pessoas cujas habilidades lingüísticas são mais
gravemente subestimadas estão bem aqui, na nossa sociedade. Os
lingüistas constantemente topam com o mito de que a classe tra­
balhadora e os membros menos educados da classe média falam
uma linguagem mais simples e menos refinada. Trata-se de uma
ilusão perniciosa decorrente da naturalidade da conversação. A
fala comum, assim como a visão de cores ou andar, são paradig­
mas de excelência em engenharia —uma tecnologia que funciona
tão bem que seu usuário considera seu resultado óbvio, sem se dar
conta dos complicados mecanismos ocultos por trás dos painéis.
Por trás de frases tão “simples” como Wbere díd he go? [Onde ele
foi?] e/ou The guy I met killed himself [O rapaz que conheci se ma­
tou], utilizadas automaticamente por qualquer falante do inglês,
existem dezenas de sub-rotinas que organizam as palavras para ex­
primir o significado. Depois de décadas de esforços, nenhum sis­
tema de linguagem artificialmente planejado chega perto de re­
produzir o homem da rua, apesar dos HAL e C-3PO ‘.
Mas, embora o mecanismo da linguagem seja invisível para o
usuário humano, presta-se obsessivamente atenção à aparência e à
cor. Diferenças insignificantes entre o dialeto corrente e o dialeto
de outros grupos, como isn’t any versus ain’t no, those books versus
them books, e dragged him away versus drug him away, são honradas com
a insígnia de “gramática correta”. Mas isso tem tão pouco a ver
com sofisticação gramatical quanto o fato de que em algumas re­
giões dos Estados Unidos as pessoas se referem a um certo inseto
[libélula] como dmgonjly, e em outras regiões como darníng needle,
ou de que quem fala inglês chama os caninos de dogs enquanto
quem fala francês os chama de chíens. È inclusive um tanto engano-

I. Computador e robô de 2001 — Uma odisséia no espaço e Guerra m s estrelas, respectivamente.


(N. daT.)

23
I O instinto da linguagem I

so chamar o Inglês Padrão de “língua” e essas variações de “diale­


tos”, como se houvesse alguma diferença significativa entre eles. A
melhor definição é a do lingüista Max Weinreich: uma língua é
um dialeto com um exército e uma marinha.
O mito de que os dialetos não padronizados do inglês sejam
gramaticalmente deficientes é muito difundido. Nos anos 60, al­
guns psicólogos educacionais bem-intencionados anunciaram que
as crianças negras americanas tinham sofrido tamanha privação
cultural que careciam de uma verdadeira linguagem c estavam li­
mitadas a “um modo de comportamento expressivo não-lógico”.
Essas conclusões bascavam-se nas respostas tímidas ou mal-hu­
moradas das crianças a baterias de testes padronizados. Se os psi­
cólogos tivessem escutado conversas espontâneas, teriarn redesco-
berto o lugar-comum de que a cultura negra americana c altamen­
te verbal em toda parte; a subeultura dos jovens da rua em parti­
cular é famosa nos anais de antropologia pelo valor atribuído à
virtuosidade lingüística. Eis um exemplo, extraído de uma entre­
vista dirigida pelo lingüista W illiam Labov na escada cm frente de
uma casa do Harlcm. O entrevistado é Larry, o membro mais
rude dc uma gangue de adolescentes chamada the Jets. (Em seu
art igo acadêmico, Labov comenta que “para muitos leitores deste
texto, o primeiro contato com Larry produziría, com razão, rea­
ções negativas dc ambas as partes”.)

You know, likc some people say if youre good an’ shit, your spirit
goin' t'heaven ... ’n’ if you bad, your spirit goin’ to hell. Well, bulls-
hití Your spirit goin’ to hell anyway, good or bad.
[Why?]
Why? Г11 tell you why. 'Cause, you see, doesn’ nobody really know
that it’s a God, y’know, 'cause I mean I have seen black gods, white
gods, all color gods, and don’t nobody know its really a God. An’
whcn tliey be sayin’ if you good, you goin t’heaven, thas bullshit,
'cause you ain’t goin’ to no heaven, 'cause it aint no heaven for you
to go to.

24
I Tagarelas I

[... jus’ suppose that there is a God, would he be white or black?]


He’d be white, man,
[Why?]
Why? 1*11 tel] you why. "Cause the average whitey out here got every-
thing, you dig? And the nigger aint got shit, y’know? Y’understan’?
So-um-for-in order for that to happen, you know it aint no black
God thats dom that bullshit.2

O primeiro contato com a gramática de Larry provavelmente


também produz reações negativas, mas para um lingüista ela é ri­
gorosamente conforme às regras do dialeto denominado Black
English Vernacular (BEV) [Vernáculo do Inglês Negro], O que
mais interessa em termos lingüísticos sobre o dialeto é que ele é
muito pouco interessante em termos lingüísticos: se Labov não ti­
vesse de chamar a atenção para ele a fim de desmascarar a afirma­
ção dc que as crianças do gueto carecem dc uma verdadeira com­
petência lingüística, esse dialeto seria arquivado como apenas mais
uma língua. Onde o Standard American English (SAE) [Inglês
Americano Padrão] usa there como um sujeito vazio de significado
para a cópula, BEV usa it como sujeito aparente sem significa­
do para a cópula (compare There s really a God do SAE com It's really
a God de Larry). A concordância negativa dc Larry (I om aint goin to
no heaveti) encontra-se em muitas línguas, como no francês (ne ...
pas). Como os falantes do SAE, Larry inverte sujeitos e auxiliares
em frases não-declarativas, mas o conjunto preciso de tipos de
frases que admitem a inversão difere ligeiramente. Larry c outros
falantes de BEV invertem sujeitos e auxiliares cm orações princi-

2. O conteúdo do diálogo c o seguinte: As pessoas dizem que sc vocc for bom sua alma irá
para o céu e sc for mau, para o inferno. Bobagem/ Sua alma vai para o inferno dc qualquer
maneira, seja ela boa ou má. Porque ninguém sabe sc rcalmentc existe um Deus. Conhecí
deuses negros, brancos, mas ninguém sabe sc existe Deus. E quando dizem que sc vocc for
bom vai para o céu, isso c bobagem porque não existe um céu para ir. Mas, sc existisse um
Deus, ele seria branco. Porque a maioria dos brancos têm tudo c os negros não tem nada.
Portanto, para que isso aconteça não pode haver um Deus negro. (N. daT.)

25
I O instinto da linguagem I

pais negativas como D ont nobody know; os falantes de SAE as inver­


tem apenas em perguntas como Doesn’t anybody know? c em alguns ou­
tros tipos de frases. BEV dá a seus falantes a opção de eliminar có-
pulas (I jy o u bad); não se trata de preguiça aleatória mas de uma re­
gra sistemática virtualmente idêntica à regra de contração em SAE
que reduz He is para He’s, You are para You’re, e I am para I ’m. Em am­
bos os dialetos, be só pode ser suprimido em certos tipos de frases.
Nenhum falante de SAE ousaria fazer as seguintes contrações:

Ycs he is! —>Ycs he’s!


I don’t care what you are. —>I dont care what youre.
Who is it? —>Whos it?

Pelos mesmos motivos, nenhum falante de BEV tentaria fazer


as seguintes supressões:

Ycs lie is! —>Yes he!


1 dont care what you arc. —>I dont care what you.
Who is ir? —>Who it?

Note-se também que lalantcs de BEV não tendem apenas a


suprimir mais palavras. Eles usam a forma plena de certos auxilia­
res (/ have seaf), ao passo que falantes dc SAE geralmente os con­
traem ( /'ve smi). E como seria de esperar quando sc comparam
línguas, existem áreas cm que o BEV c mais preciso do que o in­
glês padrão. I Ic bc working significa que ele geralmente trabalha, que
talvez ele tenha um emprego lixo; He working significa apenas que
ele está trabalhando no momento em que a frase é enunciada. No
SAE, He is working deixa dc fazer essa distinção. Além disso, frases
como In orderjor that to happen, you know it aint no black God that’s doin
that bullshit mostram que a fala de Larry faz uso do inventário com­
pleto da parafernália gramatical que os teóricos da computação
tentam reproduzir sem sucesso (orações relativas, complementos,

26
I Tagarelas I

subordinação etc.), para não falar das argumentações teológicas


bastante sofisticadas.
Outro projeto de Labov foi tabular a porcentagem de frases
gramaticais em gravações de falas de várias classes sociais e con­
textos sociais. “Gramatical”, nesse sentido, significa “bem forma­
da de acordo com normas coerentes do dialeto do falante”. Por
exemplo, se um falante perguntasse Where are you going? [Aonde você
vai?], o respondente não seria penalizado por responder To the sto-
re [Pra loja], mesmo se em certo sentido esta não seja uma frase
completa. Tais elipses fazem obviamente parte da gramática do in­
glês falado; a alternativa, I amgoing to the store [Vou para a loja], soa
afetada e quase nunca é usada. Frases “agramaticais”, segundo essa
definição, incluem fragmentos de frases aleatoriamente interrom­
pidas, hesitações que exprimam alguma dificuldade dc expressão,
lapsos dc linguagem e outras formas dc confusões de palavras. Os
resultados da tabulação dc Labov são elucidativos. A grande
maioria das frases eram gramaticais, sobretudo na fala casual, com
porcentagens mais altas dc frases gramaticais nos falantes da clas­
se trabalhadora do que na classe média. A porcentagem mais alta
dc frases agramaticais foi encontrada nas atas dc conferências aca­
dêmicas eruditas.

A onipresença dc linguagem complexa entre os seres humanos


é uma fascinante descoberta c, para muitos observadores, uma
prova inegável dc que a linguagem é inata, Mas para céticos obsti­
nados, como o filósofo Hilary Putnarn, isso não prova nada. Nem
tudo o que é universal é inato. Assim como nas décadas passadas
nunca encontraram uma tribo sem linguagem, hoje em dia os an­
tropólogos têm de se esforçar muito para encontrar grupos hu­
manos imunes aos videocassetes, à Coca-Cola e a camisetas dos
Simpsons. A linguagem era universal antes que a Coca-Cola o

27
I O instinto da linguagem I

fosse, mas, por outro lado, a linguagem é mais útil que a Coca-
Cola. E como comer com as mãos e não com os pés, o que tam­
bém é universal, mas não temos de invocar um instinto especial
que leva a mão à boca para explicar por quê. O valor da linguagem
é inestimável para todas as atividades da vida diária numa comu­
nidade de pessoas: providenciar comida e abrigo, amar, discutir,
negociar, ensinar. Sc a necessidade é a mãe de todas as invenções,
a linguagem poderia ter sido inventada algumas vezes por pessoas
capazes há muito tempo. (Como LilyTomlin disse, talvez o homem
tenha inventado a linguagem para satisfazer sua profunda neces­
sidade d c sc queixar.) A Gramática Universal apenas refletiría as
exigências universais da experiência humana e as limitações uni­
versais do processamento humano da informação. Todas as línguas
têm palavras para “água” c “alimento” porque todas as pessoas têm
dc se referir a água c comida; nenhuma língua tem uma palavra
com um milhão dc sílabas porque ninguém teria tempo para pro­
nunciá-la. Uma vez inventada, a língua se consolidaria dentro dc
uma cultura à medida que os pais ensinassem seus filhos e os filhos
imitassem os pais. A partir das culturas que tivessem uma língua,
ela se espalharia rapidamente para outras culturas mais caladas.
No centro desse processo está a extraordinariamente flexível inte­
ligência humana, com suas estratégias de aprendizagem geral que
servem a tantos propósitos.
Portanto, a universalidade da linguagem não implica um ins­
tinto de linguagem inato assim como depois do dia vem a noite.
Para convencê-lo de que existe um instinto de linguagem, terei de
desenvolver uma tese que vai da algaravia dos povos modernos aos
supostos genes da gramática. Os elementos essenciais para de­
monstrar meu argumento provêm da minha própria especialida­
de profissional, o estudo do desenvolvimento da linguagem nas
crianças. O ponto central da tese é que a linguagem complexa é
universal porque as crianças ejetivamente a reinventam, geração após ge­
ração —não porque a aprendem, não porque são em geral inteli­

28
I Tagarelas I

gentes, não porque é útil para elas, mas porque não têm alterna­
tiva. Permita-me agora colocá-lo na pista dos indícios que levam
a essa conclusão.

A pista começa com o estudo de como surgiu cada língua hoje


encontrada no mundo. Pode-se pensar que, nesse caso, a lingüísti-
ca incorre no mesmo problema dc qualquer ciência histórica: nin­
guém registrou os acontecimentos fundamentais na época em que
aconteceram. Embora os lingüistas históricos possam remeter as
modernas línguas complexas a línguas anteriores, isso só empurra
o problema um pouco mais para. trás; temos dc entender como os
povos criaram línguas complexas a partir do zero. Por incrível que
pareça, é possível lazer isso.
Os primeiros casos foram arrancados dc dois dos mais lamen­
táveis episódios da história mundial, o tráfico dc escravos pelo
Atlântico e os servos contratados no Pacífico Sul. Talvez cientes
da Torre dc Babel, alguns dos senhores de plantações dc tabaco,
algodão, café c açúcar tenham misturado dclibcradamcnte escra­
vos c trabalhadores dc diferentes origens linguísticas; outros feriam
preferido separar as etnias mas tiveram dc aceitar as misturas por­
que era o que havia. Quando falantes de línguas diversas tem de se
comunicar para realizar tarefas práticas mas não tem a oportuni­
dade de aprender as línguas uns dos outros, desenvolvem um jar­
gão provisório denominado pidgin. Pidgins são cadeias precárias de
palavras tomadas da língua dos colonizadores ou donos de plan­
tações, que variam muito em termos de ordem e são pobres no que
se refere à gramática. As vezes um pidgin pode se tornar uma lín­
gua franca ganhando em complexidade com o passar do tempo,
como ocorreu com o “Pidgin English” do Pacífico Sul moderno.
(Numa visita à Nova Guiné, o príncipe Philip adorou saber que

29
I O instinto da linguagem I

naquela língua ele é referido como Jeüa belong Mrs. Queen [compa­
nheiro pertence Sra. Rainha].)
Mas o lingüista Derek Bickerton demonstrou que em muitos
casos um pidgin pode se converter numa língua complexa plena
de chofre: basta que um grupo de crianças seja exposto ao pidgin
na idade em que adquire a língua materna. Isso acontecia, afirma
Bickerton, quando crianças eram separadas dos pais c ficavam to­
das juntas sob a responsabilidade de um trabalhador que falava
com elas cm pidgin. Não satisfeitas em reproduzir as cadeias frag­
mentadas dc palavras, as crianças injetavam complexidade grama­
tical ali onde ela não existia, resultando numa nova língua, muito
rica em termos expressivos. A língua que surge quando crianças
transformam um pidgin em sua língua nativa sc chama crioulo.
Л principal prova de Bickerton provém de uma única circuns­
tância histórica. Embora as plantações cultivadas por escravos que
deram lugar à maioria dos crioulos sejam, felizmcntc, algo de um
passado remoto, um episódio de crioulização ocorreu num passa­
do suficientemente recente para que seus principais protagonistas
pudessem ser estudados. Pouco antes do início do século 20, hou­
ve uma rápida expansão das plantações de açúcar no Havaí, crian­
do uma demanda de trabalho que logo extrapolou os recursos na­
tivos. foram trazidos trabalhadores da China, Japão, Coréia, Por­
tugal, filipinas c Porto Rico, e rapidamente um pidgin se desen­
volveu. Muitos dos trabalhadores imigrantes que primeiro desen­
volveram aquele pidgin estavam vivos quando Bickerton os entre­
vistou nos anos dc 1970. Eis alguns exemplos típicos de sua fala:

Mc cape buy, mc check make.


Building—higli placc—wall pat—time—nowtime—an’ den
—a ncw fcmpecha eri time show you.
Good, dis one. Kaukau any-kin dis one. Pílipine islan no good. No
mo moncy.

30
I Tagarelas I

A partir das palavras isoladas e do contexto, o ouvinte pôde


inferir que o primeiro falante, um velho imigrante japonês de no­
venta e dois anos falando dos velhos tempos de fazendeiro de
café, tentava dizer “He bought my coffee; he made me out a
check” [Ele comprou meu café; ele preencheu um cheque e me
deu]. Mas a frase em si também poderia querer dizer “Eu com­
prei café; eu preenchi um cheque e lhe dei”, o que seria pertinen­
te se ele estivesse se referindo à sua situação atual de dono de loja.
O segundo falante, outro velho imigrante japonês, ficara sabendo
das maravilhas da civilização em Los Angeles através de um de
seus vários filhos, e estava dizendo que havia um painel elétrico
no alto da parede de um edifício que mostrava a hora c a tempe­
ratura. O terceiro falante, um filipino de sessenta e nove anos, es­
tava dizendo “It s better here than in the Philippincs; herc you can
gct all kinds of Food, but over there there isnt any money to buy
food with” [Aqui c melhor do que nas Filipinas; aqui você conse­
gue todo tipo dc alimento, mas lá não há dinheiro para comprar
comida]. (Um dos tipos dc alimento era “pfrawg” [frog = rã],
que ele apanhava por conta própria nos charcos pelo método dc
“kank da licad” |kink the hcad —torcer a cabeça].) Em todos es­
ses casos, o ouvinte tinha dc deduzir as intenções do falante. O
pidgin não oferece aos falantes os habituais recursos gramaticais
que servem para transmitir essas mensagens —não há uma ordem
coerente das palavras, não existem prefixos ou sufixos, tempos ver­
bais ou outros marcadores temporais e lógicos, nenhuma estrutu­
ra mais complexa que uma oração simples c nenhuma maneira
consistente dc indicar quem fez o que para quem.
Mas as crianças, que a partir de 1890 cresceram no Havaí e
foram expostas ao pidgin, acabaram falando de um modo bem di­
ferente. Eis algumas frases retiradas da língua que elas inventaram,
o crioulo havaiano. As duas primeiras, nascidas em Mauí, são fi­
lhas de um plantador japonês de papaia; as duas seguintes, filhas
de um antigo trabalhador agrícola japonês/havaiano, nasceram na

31
I O instinto da linguagem I

ilha principal; a última, filha de gerente de hotel havaiano, que an­


tes era fazendeiro, nasceu em Kauai:

Da firs japani carne ran away from japan come.


“The first Japanese who arrived ran away from Japan to here.”
[Os primeiros japoneses que chegaram vieram para cá fugindo do
Japão.]

Some filipino wok o’hc-ah dcy weri couple ye-ahs in filipin islan’.
Some Filipinos who workcd over here went back to the Philippincs
for a couple of ycars.”
|Alguns filipinos que trabalhavam aqui voltaram para as Filipinas
alguns anos atrás. |

People no likc tVomc fo’ go wok.


“Peopl e don’t wanr to have him go to work [for them].”
|As pessoas não querem que ele vá trabalhar (para elas).]

One t ime when wc go home inna night dis ting stay fly up.
“Once when we went home at night this thing was flying about.”
[Certa vez, quando voltávamos para casa à noite aquela coisa estava
voando por aí. |

One day had pleny of dis mountain fish come down.


“One day there werc a lot of these fish from the mountains that
camc down |the river |.”
|Certo dia, muitos daqueles peixes das montanhas desceram (o rio).]

Não devemos nos enganar com o que parecem ser verbos in­
gleses mal empregados, como go, stay e came, ou expressões como
one time. Não são usos acidentais de palavras inglesas mas usos sis­
temáticos da gramática do crioulo havaiano: as palavras foram trans­
formadas pelos falantes do crioulo em auxiliares, preposições,
marcadores de casos e pronomes relativos. Com efeito, foi provavel­
mente assim que muitos dos prefixos e sufixos gramaticais de lín­

32
I Tagarelas I

guas estabelecidas surgiram. Por exemplo, a terminação -ed do pas­


sado em inglês evoluiu a partir do verbo do: He hammerei era origi­
nalmente algo como He hammer-did. Crioulas são línguas genuínas,
com ordens de palavras padronizadas e marcadores gramaticais
que faltavam no pidgin dos imigrantes e que, afora o som das pa­
lavras, não foram tomados da língua dos colonizadores.
Bickerton ressalta que o fato de a gramática crioula ser em
grande medida produto da mente de crianças, não adulterado por
elementos de linguagem complexa fornecidos pelos pais, deve­
ria possibilitar uma observação particularmente clara dos meca­
nismos gramaticais inatos do cérebro. Afirma que crioulos gera­
dos a partir da mistura de línguas não relacionadas entre si apre­
sentam estranhas semelhanças —talvez até a mesma gramática
básica. Essa gramática básica também se revela, sugere ele, nos
erros que as crianças cometem quando estão adquirindo línguas
mais consolidadas c rebuscadas, como se um design subjacente
se revelasse sob o verniz de pequenos erros. Quando crianças dc
fala inglesa dizem

Why he is lcaving?
Nobody d.on’t likes mc.
]’m gonna fali Angclas bucket.
Let Daddy hold it hit it,

estão sem querer produzindo frases que são gramaticais em mui­


tos crioulos do mundo.
As conclusões de Bickerton são discutíveis, uma vez que de­
pendem da reconstrução que ele fez de eventos ocorridos décadas
ou séculos antes. Mas sua idéia básica foi surpreendentemente
corroborada por dois experimentos naturais recentes, nos quais a
crioulização realizada por crianças pôde ser observada em tempo
real. Essas fascinantes descobertas incluem-se entre várias outras
oriundas do estudo da língua de sinais dos deficientes auditivos.

33
I O instinto da linguagem I

Ao contrário do que o senso comum acredita, as línguas de sinais


não são pantomimas e gestos, invenções de educadores ou formas
cifradas da língua falada pela comunidade circundante. São en­
contradas em todas as comunidades de deficientes auditivos, e
cada uma é uma língua plena e distinta, que usa os mesmos tipos
de mecanismos gramaticais encontrados nas línguas faladas. Por
exemplo, a Língua Americana de Sinais (ASL), usada pela comu­
nidade de deficientes auditivos dos Estados Unidos, não se pare­
ce com a Língua Inglesa ou Britânica de Sinais, mas baseia-se em
sistemas de concordância e de gênero que lembram o navajo e o
banto.
Ate pouco tempo atrás não existia nenhuma língua de sinais
na Nicarágua, porque seus deficientes auditivos permaneciam iso­
lados uns dos outros. Quando o governo sandinista assumiu o po­
der cm 1979 c reformou o sistema educacional, foram criadas as
primeiras escolas para deficientes auditivos. O enfoque das esco­
las era na leitura labial e na fala, c, como em todos os casos em
que isso foi tentado, o resultado foi desolador. Mas isso não im­
portava. Nos parques e ônibus escolares as crianças estavam in­
ventando seu próprio sistema de sinais, acumulando os gestos
provisórios que utilizavam com a família em casa. Pouco tempo
depois, o sistema sc consolidou no que hoje é a chamada Lengua-
jc dc Signos Nicaragiicnse (LSN). Atualmente, a LSN é usada, com
vários graus dc fluência, por jovens deficientes auditivos, com ida­
des entre dezessete c vinte e cinco anos, que a desenvolveram quan­
do tinham dez ou mais anos. Essa linguagem é basicamente um
pidgin. Cada um a usa de modo diferente, e aqueles que dela fa­
zem uso dependem mais de círcunlóquios sugestivos e elaborados
do que de uma gramática consistente.
Mas crianças como Mayela, que entrou na escola com aproxi­
madamente quatro anos quando a LSN já vigorava, e todos os alu­
nos menores do que ela são bem diferentes. Sua expressão gestual
é mais fluida e compacta, e os gestos são mais estilizados e se pa-

34
I Tagarelas I

rccem menos com uma pantomima. Na verdade, um exame mais


minucioso de seus sinais revela que eles são tão diferentes da LSN
que recebem outro nome, Idioma de Signos Nicaragüense (ISN).
LSN e ISN vêm sendo estudados pelas psicolingüistas Judy Kegl,
Miriam Hebe Lopez e Annie Senghas. ISN parece um crioulo,
criado de chofre quando as crianças menores foram expostas aos
sinais pidgin das mais velhas —exatamente como Bickerton previ-
ra. O ISN se padronizou espontaneamente; todas as crianças pe­
quenas o expressam da mesma maneira. As crianças introduziram
várias estratégias gramaticais ausentes na LSN e, portanto, de­
pendem menos de circunlóquios. Por exemplo, um usuário de
LSN (pidgin) pode ter um sinal para “falar com” e depois tem de
fazer um gesto que vá da posição do falante para a posição do ou­
vinte. Mas um usuário de ISN (crioulo) modifica o próprio sinal,
arrastando-o num mesmo movimento de um ponto que represen­
ta o falante para um ponto que representa o ouvinte. Trata-se de
uma estratégia comum na língua de sinais, formalmente idêntica à
flexão do verbo em função da concordância nas línguas faladas.
Graças a essa gramática consistente, o ISN é muito expressivo.
Uma criança pode observar um desenho animado surrealista e
descrever sua trama para outra criança. As crianças o empregam
em piadas, poemas, narrativas e histórias de vida, de modo que ele
vem servindo dc elemento aglutinador para essa comunidade.
Uma língua nasceu diante de nossos olhos.
Mas o ISN foi a produção coletiva de muitas crianças comuni-
cando-se entre si. Caso queiramos atribuir a riqueza da linguagem
à mente da criança, temos de procurar uma única criança agregan­
do complexidade gramatical ao que lhe foi fornecido. Mais uma
vez, o estudo dos deficientes auditivos nos dá o que procuramos.
Quando crianças deficientes auditivas são criadas por pais que
usam a língua de sinais, aprendem-na da mesma maneira como as
crianças que escutam aprendem a língua falada. Mas crianças de­
ficientes auditivas que não são filhos de pais também deficientes

35
] O instinto da linguagem I

auditivos —a grande maioria delas —geralmente não têm acesso a


usuários da língua de sinais enquanto crescem, e, às vezes, são de-
liberadamente mantidas afastadas deles por educadores de tradi­
ção “oralista”, que querem forçá-las a dominar a leitura labial e a
fala. (A maioria dos deficientes auditivos deplora essas medidas
autoritárias.) Quando as crianças deficientes auditivas se tornam
adultas, tendem a procurar comunidades de deficientes auditivos
c começam a adquirir a língua de sinais, beneficiando-se dos meios
de comunicação disponíveis para eles. Mas, em geral, já é tarde;
para eles a língua de sinais é um difícil quebra-cabeça mental,
como uma aula de língua estrangeira para um adulto ouvinte. Sua
competência é notavelmente menor que a de deficientes auditivos
que adquiriram a língua de sinais quando crianças, assim como imi­
grantes adultos padecem permanentemente de seu sotaque e co­
metem graves erros gramaticais. Pelo fato de os deficientes auditi­
vos serem virtualmentc as únicas pessoas neurologicamente nor­
mais que chegam à idade adulta sem ter adquirido uma lingua­
gem, suas dificuldades são uma prova particularmente eloqüente
de que uma boa aquisição de linguagem tem dc ocorrer durante
um período crítico da infância.
As psicolingüistas Jcnny Singlcton c Elissa Ncwport estuda­
ram um menino dc nove anos com uma profunda deficiência au­
ditiva —por elas denominado Simon —c seus pais, que também
são deficientes auditivos. Os pais dc Simon só adquiriram a lín­
gua de sinais por volta dos quinze, dezesseis anos, e, portanto, ad-
quiriram-na de forma precária. Na ASL, como em muitas línguas,
pode-se mover um sintagma para o começo de uma sentença e
marcá-lo com um prefixo ou sufixo (em ASL, sobrancelhas levan­
tadas e o queixo erguido) para indicar que aquele é o tópico da
sentença. A frase inglesa Elvis I really like [Elvis, gosto mesmo] seria
um equivalente grosseiro. M as os pais de Simon raramente usa­
vam essa construção e quando o faziam, desfiguravam-na. Por
exemplo, certa vez o pai de Simon tentou expressar por sinais o

36
I Tagarelas I

pensamento: M yfriend', he thought ту second child was deaf [M eu amigo,


ele achava que meu segundo filho era surdo]. Saiu assim: M yfríend
thought, ту second child, he thought he was deaf [Meu amigo achava, meu
segundo filho, ele achava que ele era surdo] —uma salada de sinais
que viola não só a gramática ASL mas, de acordo com a teoria de
Chomsky, a Gramática Universal que governa todas as línguas hu­
manas naturalmente adquiridas (veremos por que mais adiante
neste capítulo). Os pais de Simon também não conseguiram apreen­
der o sistema de flexão do verbo da ASL. Na ASL, o verbo to blow
[soprar] é sinalizado abrindo um punho mantido horizontalmen­
te na frente da boca (como um sopro). Em ASL, qualquer verbo
pode ser modificado para indicar que a ação é contínua: o falante
adiciona um movimento parecido com um arco ao sinal e o repe­
te rapidamente. Um verbo também pode ser modificado para in­
dicar que a ação se aplica a mais de um objeto (por exemplo, vá­
rias velas): o falante termina o sinal num ponto do espaço, repete-
o em seguida mas o termina num outro ponto. Essas ílexões po­
dem ser combinadas de duas maneiras: blow para a esquerda e em
seguida para a direita, e, mais uma vez, ou blow para a esquerda
duas vezes e cm seguida blow para a direita duas vezes. A primeira
ordem significa “assoprar as velas de um bolo, e depois de outro
bolo, depois do primeiro bolo de novo, depois do segundo bolo
de novo”; a segunda significa “ficar assoprando as velas de um
bolo continuamente, e depois assoprar as velas de outro bolo con­
tinuamente”. Esse conjunto de regras simples e precisas estava
perdido para os pais cie Simon. Usavam as flexões de modo in­
consistente e nunca combinavam duas delas num mesmo verbo ao
mesmo tempo, embora vez por outra usassem as flexões separada­
mente, ligando-as de forma grosseira com sinais como then [então,
em seguida]. Em muitos sentidos, os pais de Simon eram como
falantes de pidgin.
Surpreendentemente, embora Simon não conhecesse outra
ASL senão a versão falha dos pais, sua própria expressão por ges­

37
I O instinto da linguagem I

tos era uma ASL bem melhor que a deles. Compreendia frases
com sintagmas de tópico deslocados sem qualquer dificuldade, e
quando tinha de descrever complexas cenas gravadas em vídeo,
empregava as flexões de verbo da ASL de maneira quase perfeita,
mesmo em frases que exigiam duas delas numa determinada or­
dem. Simon deve ter conseguido de alguma maneira eliminar o
“ruído” agramatical dos pais. Deve ter-se aferrado às flexões que
seus pais usavam de modo inconsistente, reinterpretando-as como
obrigatórias. E deve ter percebido a lógica que, embora nunca efe­
tivada, estava implícita no uso que os pais faziam de dois tipos de
flexão ver bal, e reinventado o sistema ASL de adicionar ambos a
um único ver-bo numa determinada ordem. A superioridade de
Simon cm relação aos pais c um exemplo de crioulização realiza­
da por uma única criança.
Na verdade, o feito de Simon só se destaca por ele ter sido o
primeiro a mostrá-lo a um psicolingüista. Devem existir milhares
de Simons: noventa ou noventa e cinco por cento de crianças de­
ficientes auditivas são filhos de pais ouvintes. Crianças que têm a
sorte de serem expostas à ASL geralmente recebem essa lingua­
gem dc pais ouvintes que se dispuseram a aprendê-la, ainda que
de modo incompleto, para sc comunicar com os filhos. Com efei­
to, como mostra a transição dc LSN para ISN, as próprias línguas
dc sinais são produtos de crioulização. Em vários momentos da
história, educadores tentaram inventar sistemas de sinais, às vezes
baseados na linguagem falada do meio. Mas esses códigos grossei­
ros são sempre impossíveis de aprender, e quando crianças defi­
cientes auditivas aprendem algo deles, fazem-no convertendo-os
em línguas naturais bem mais ricas.

Criações extraordinárias por parte de crianças não exigem as


circunstâncias extraordinárias da deficiência auditiva ou de Babéis

38
I Tagarelas I

agrícolas. O mesmo tipo de genialidade lingüística está presente


cada vez que uma criança aprende sua língua materna.
Em primeiro lugar, acabemos com o folclore de que os pais
ensinam a língua aos filhos. Ninguém supõe, é claro, que pais dêem
aulas explícitas de gramática, mas muitos pais (e alguns psicólo­
gos infantis, que deveríam estar mais bem informados) acreditam
que as mães dão aulas implícitas aos filhos. Essas aulas adotam a
forma de uma variedade especial de fala denominada Motherese
[mamanhês] em inglês (ou, em francês, Mamanaise'): sessões inten­
sivas de intercâmbios verbais, com exercícios repetitivos e uma
gramática simplificada. ( “Olhe o cachorrinhol Está vendo o cachorri­
nhol Aquilo é um cachorrinhol”) N a cultura contemporânea da clas­
se média americana, criar filhos é visto como uma enorme respon­
sabilidade, uma vigilância implacável para evitar que a criancinha
indefesa fique para trás na grande corrida da vida. A crença de
que o mamanhês é essencial para o desenvolvimento da linguagem
faz parte da mesma mentalidade que manda os yuppies comprarem
luvinhas com alvo em “lojas de material educativo” para que seus
bebês encontrem as mãos mais rápido.
Nosso panorama amplia-se um pouco se examinarmos as teo­
rias populares sobre criação de filhos cm outras culturas. Os
íKung San do Deserto de Kalahari no sul da África acreditam que
as crianças têm de ser treinadas para sentar, ficar de pé e andar.
Erguem cuidadosamente montes de areia em torno dos filhos
para sustentá-los de pé, e, com toda certeza, cada uma dessas
crianças logo se levanta por conta própria. Achamos isso engraça­
do porque observamos os resultados do experimento que os San
não querem deixar entregue à sorte: não ensinamos nossas crian­
ças a sentar, ficar de pé e andar, e assim mesmo elas o fazem, no
tempo delas. Mas outros grupos têm a mesma atitude condes­
cendente em relação a nós. Em muitas comunidades do mundo,
os pais não entretêm seus filhos com mamanhês. Na verdade, nem
mesmo falam com as crianças antes que elas tenham domínio lin-

39
I O instinto da linguagem I

güístico, a não ser para pedidos ocasionais e reprimendas. Isso não


é absurdo. Afinal de contas, é óbvio que crianças pequenas não
entendem uma palavra do que você diz. Portanto, por que gastar
saliva cm solilóquios? Qualquer pessoa sensata certamente espera­
rá até que a criança aprenda a falar e seja possível manter com ela
conversas mais gratificantes. Como dona Mae, uma velha negra
que vive em Piedmont, Carolina do Sul, explicou à antropóloga
Shirley Brice Heath: “Now just how crazy is dat? W hite folks uh
hear dcy kids say sump’n, dcy say it back to ’em, dey aks 'em 'gain
and 'gain 'bout things, likc tliey 'poscd to be born knowin .”í Não
é necessário dizer que as crianças dessas comunidades aprendem a
falar escutando adultos c outras crianças, como vemos no BEV to-
talmcnte gramatical dc dona Mae.
E às crianças que cabe boa parte do crédito pela linguagem que
adquirem. Podemos, de lato, demonstrar que elas sabem coisas que
não poderíam ter sido ensinadas. Um dos exemplos clássicos da
lógica da língua fornecido por Chomsky envolve o processo dc
mudar- palavras de lugar para formar perguntas. Considere como
transformar a sentença declarativa A unicorn is in thegarden [Há um
unicórnio no jardim] na pergunta correspondente, Ь a unicorn in the
garden? |Há um unicórnio no jardim? |Vocc poderia escandir a sen­
tença declarativa, pegar o auxiliar is c transportá-lo para a frente:

a unicorn is in the garden. —>


is a unicorn in the garden?

Tomemos agora a sentença A unicorn that is eating ajlow er is in the


garden [Um unicórnio que está comendo uma flor está no jardim],
Há dois is. Qual deve ser deslocado? Obviamente, não o primeiro3

3. Que coisa maluca c essa? Os brancos escutam os filhos dizerem algo, aí dizem a mesma
coisa, ficam o tempo todo perguntando-lhes coisas, como sc eles tivessem que nascer sa­
bendo. (N. daT.)

40
I Tagarelas I

que aparece depois da escansão da sentença; isso daria uma sen­


tença muito estranha:

a unicorn that is eating a flower is in the garden. —>


is a unicorn that eating a flower is in the garden?

Mas por que não se pode deslocar este is! O que não funcionou
nesse procedimento simples? Como Chomsky observou, a respos­
ta está no design básico da língua. Embora as sentenças sejam ca­
deias de palavras, nossos algoritmos mentais para gramática não
selecionam palavras em função de suas posições lineares, tal como
“primeira palavra”, “segunda palavra” etc. Pelo contrário, os algo­
ritmos agrupam palavras em sintagmas, e sintagmas cm sintagmas
ainda maiores, e dão um rótulo mental a cada um, como “sintag­
ma nominal sujeito” ou “sintagma verbal”. A verdadeira regra de
formação dc perguntas não procura a primeira ocorrência do auxi­
liar quando se percorre a cadeia da esquerda para a direita; procu­
ra o auxiliar que vem depois do sintagma rotulado de sujeito. Esse
sintagma, que contém toda a cadeia de palavras a unicorn that is eating
a flower, funciona como uma unidade. O primeiro is encontra-se
profundamente entranhado nele, invisível à regra de formação de
perguntas. O segundo is, que vem logo depois desse sintagma no­
minal sujeito, é aquele que tem de ser deslocado:

[a unicorn that is eating a flower] is in the garden. —>


is [a unicorn that is eating a flower] in the garden?

Chomsky supôs que, se as crianças estão equipadas com a ló­


gica da língua, deveríam ser capazes de transformar corretamente
uma sentença com dois auxiliares numa pergunta quando depa­
ram com ela pela primeira vez. Isso deveria ser verdade mesmo se
a regra errada, aquela que escande a sentença como se fosse uma
cadeia linear de palavras, fosse mais simples e supostamente mais

41
I O instinto da linguagem I

fácil de aprender. E deveria ser verdade mesmo que as sentenças que


poderíam ensinar às crianças que a regra linear é errada e a regra
estrutural, correta —perguntas com um segundo auxiliar inserido
no sintagma sujeito —fossem tão raras que não existissem em mama­
nhês. E muito provável que nem toda criança que aprende inglês
tenha escutado mamãe dizer Is the doggie that is eating theflow er in the
garden? [O cachorrinho que está comendo a flor está no jardim?]
Para Chomsky, esse tipo de raciocínio, que ele denomina de “ar­
gumento baseado na pobreza do input”, é a justificação básica
que permite dizer que o design básico da língua é inato.
A afirmação de Chomsky foi testada num experimento com
crianças de três, quatro e cinco anos numa creche pelos psicolin-
güistas Stcphcn Crain e Mineharu Nakayama. Um dos experimen-
tadores controlava um boneco de Jabba the Hutt, personagem de
Star Wars. O outro tentava convencer a criança a fazer uma serie dc
perguntas, pedindo, por exemplo: "Pergunte a Jabba se o menino
que está infeliz está assistindo Mickey Mouse” [Ask Jabba i f tbe boy
who is unhappy is watching Mickey Mouse], Jabba inspecionava um dese­
nho e respondia sim ou não, mas na verdade era a criança que es­
tava sendo testada, não Jabba. As crianças faziam alegremente as
perguntas corretas, c, como Chomsky previra, nenhuma delas
enunciou um cadeia agramatical como Is the boy who unhappy is wat­
ching Mickey Mouse?, como suporia a regra linear mais simples.
Mas haverá quem diga que isso não demonstra que o cérebro
das crianças registra o sujeito de uma frase. Talvez as crianças es­
tivessem se guiando pelo significado das palavras. O homem que está
correndo refere-se a um único ator desempenhando um papel claro
no desenho, e crianças poderíam ter estado atentas a quais pala­
vras se referem a quais atores, e não a quais palavras pertencem ao
sintagma nominal sujeito. Mas Crain e Nakayama previram essa
objeção. Misturados na lista que eles elaboraram havia comandos
como “Pergunte a Jabba se está chovendo no desenho” [Ask Jabba
i f it is raining in the picture], O it da frase evidentemente não se refere

42
I Tagarelas I

a nada; it é um elemento vazio de significado que está ali apenas


para satisfazer as regras da sintaxe, que exigem um sujeito. Mas a
regra de formação de perguntas em inglês o trata como qualquer
outro sujeito: Is it raíníngP Como é que as crianças lidam com essa
variável destituída de sentido? Talvez elas pensem de modo tão li­
teral quanto o Pato em Alice no País das Maravilhas:

“Silêncio em volta, por favor [disse o Rato], ‘Edwin e Morcar, con­


des de Mércia e Nortúmbria, pronunciaram-se a favor dele, e até
mesmo Stigand, o patriótico arcebispo de Cantuária, achando isso
conveniente.,.”’
“Achando o quê}”, perguntou o Pato.
“Achando isso”, replicou o Rato já meio aborrecido: “Natural-
mente você sabe o c]ue ‘isso’ quer dizer”.
"Sei muito bem o que ‘isso’ quer dizer quando sou eu que acho
alguma coisa”, explicou o Pato, “em geral, uma rã ou um verme.
Mas a questão é: o que foi que o arcebispo achou?”4

Mas crianças não são patos. As crianças de Crain e Nakayama


responderam: Is it raining in this picture? Elas tampouco tiveram
qualquer dificuldade para formar questões com outros sujeitos
vazios de significado, como em “Pergunte a Jabba se há uma co­
bra nesse desenho” [Ask Jabba if there is a snake in this picturej ou com
sujeitos que não são coisas, como em “Pergunte a Jabba se correr
é divertido” e “Pergunte a Jabba se o amor é bom ou ruim”.
As coerções universais que incidem sobre as regras gramaticais
também mostram que a forma básica da língua não pode ser ex­
plicada como o resultado inevitável de um impulso utilitário. M ui­
tas línguas, amplamente difundidas pelo planeta, têm auxiliares, e,
como o inglês, muitas línguas transferem o auxiliar para a frente
da sentença para formar perguntas e outras construções, sempre

4. Cf. trad. de Sebastião Uchoa Leite, in Aventuras de Alice no País das Maravilhas, cd. Summus,
São Paulo, У. ed. 1980. (N. daT.)

43
I O instinto da linguagem I

em função da estrutura. Mas essa não é a única maneira pela qual


se pode conceber uma regra de formação de perguntas. Seria igual­
mente possível transferir o auxiliar mais à esquerda da cadeia para
a frente, ou inverter o lugar da primeira e última palavra, ou enun­
ciar toda a frase em ordem invertida como se fosse lida num espe­
lho (truque este de que a mente humana é capaz; algumas pessoas
aprendem a ler de trás para a frente para se divertir e surpreender
os amigos). Os modos específicos pelos quais as línguas formam
perguntas são arbitrários, são convenções da espécie; não os en­
contramos cm sistemas artificiais como linguagens de programa­
ção dc computador ou na notação da matemática. O plano uni­
versal que subjaz às línguas, com auxiliares e regras de inversão,
substantivos c verbos, sujeitos e objetos, sintagmas e orações, casos
c concordância etc., parece sugerir a presença dc elementos co­
muns nos cérebros dos falantes, porque muitos outros planos fe­
riam sido igualmente úteis. E como se inventores isolados tives­
sem surgido miraculosamente com padrões idênticos de teclados,
dc código Morse ou de sinais de trânsito.
As provas que corroboram a afirmação de que a mente contém
um esquema detalhado dc regras gramaticais provêm, uma vez
mais, da boca de bebês.Tomemos o sufixo inglês dc concordância
-s como em He walks. A concordância, é um importante processo
em muitas línguas, mas no inglês moderno c algo supérfluo, um
remanescente dc um sistema mais rico que floresceu no inglês ar­
caico. Caso desaparecesse por completo, não sentiriamos falta dele,
assim como não sentimos falta do sufixo similar -est cm Thou sayest
[tu falas]. Mas, psicologicamente falando, o enfeite sai caro. Qual­
quer falante obrigado a usá-lo tem de estar atento a quatro deta­
lhes em cada frase enunciada:

• Se o sujeito está ou não na terceira pessoa: He walks versus I walk.


• Se o sujeito é singular ou plural: He walks versus They walk.
• Se o tempo da ação é presente ou não: He walks versus He walked.

44
I Tagarelas I

• Se a ação é habitual ou se está acontecendo no momento em que


se fala (seu “aspecto”): He walks to school versus He is walking to school.

E todo esse trabalho é necessário apenas para usar o sufixo de­


pois de tê-lo aprendido. Para aprendê-lo, a criança precisa ( I )
perceber que verbos terminam em -s em algumas frases mas apa­
recem sem terminação em outras, (2 ) começar a pesquisar as cau­
sas gramaticais dessa variação (em vez de aceitá-la simplesmente
como parte do tempero da vida), e (3 ) não descansar até que es­
ses fatores cruciais —tempo, aspecto, número e pessoa do sujeito
de uma frase —tiverem sido separados do mar de fatores plausí­
veis mas irrelevantes (como o número de sílabas da última palavra
da frase, se o objeto de uma proposição é natural ou manufatura­
do, e como está o tempo quando a frase é enunciada). Por que al­
guém se daria a esse trabalho?
Mas crianças pequenas o fazem. Por volta dos três anos e meio
ou antes, elas usam o sufixo de concordância -s em mais de noven­
ta por cento das frases que assim o exigem, c praticamente nunca
o empregam nas frases em que isso está proibido. Essa perícia é
parte do surto de gramática que elas vivem num período de vários
meses no terceiro ano de vida, durante o qual subitamente come­
çam a falar frases fluentes, respeitando a maioria dos aspectos su­
tis da língua falada por sua comunidade. Por exemplo, podemos
observar uma menina em idade pré-escolar aqui chamada dc Sara,
cujos pais têm apenas o segundo grau completo, obedecendo a re­
gra de concordância do inglês, por mais inútil que ela seja, em fra­
ses complexas como as seguintes:

When my mother hangs clothes, do you let 'em rinse out in rain?
[Quando minha mãe pendura roupas, você as deixa enxaguarem
na chuva?]
Donna teases all the time and Donna has false teeth. [Donna provo­
ca o tempo todo e Donna tem dentes postiços.]

45
I O instinto da linguagem I

I know what a big chicken looks like. [Eu sei como é ter cara de gali-
nha-morta.]
Anybody knows how to scribble. [Todo mundo sabe rabiscar.]
Hcy, this partgoes where this one is, stupid. [Ei, seu bobo, esta peça
vai aqui, onde está esta outra.]
What comes after “C”? [O que vem depois de “C”?]
It looks like a donkey face. [Parece cara de burro.]
The person takes care of the animais in the barn. [A pessoa cuida
dos animais no celeiro.]
After it dries off then you сап такс the bottom. [Depois que isso se­
car, então você pode fazer o fundo.]
Well, someone hurts hissclf and everything. [Bem, alguém se machu­
cou e tudo. ]
His tail sticks oul like this. [O rabo dele estica assina.]
What happens il ya press on this hard? [O que acontece sc cc aperta
assim lorle? |
Do you liave a real baby that says googoo gaga? [Você tem una nenê
de verdade que diz gugu-dadá?]

O interessante é que Sara não estava simplesmente imitando


os pais, decorando verbos com a terminação -s já adicionada dc
antemão. As vezes, Sara dizia expressões que ela provavelmente não
tinha escutado dos pais:

When she bes in the kindergarten...


He s a boy so he gots a scary one. [costume]
She do’s what her mothcr tells her.5

Portanto, ela mesma deve ter criado essas expressões, empre­


gando uma versão inconsciente da regra de concordância do in­
glês. Para começo de conversa, o próprio conceito de imitação é

5. As “inovações” de Sara estão nas formas bes (cm vez de is),gots (verbo no passado, não de­
veria ter a terminação -s) c dos (em vez de does). (N. da R .T .)

46
I Tagarelas I

suspeito (se as crianças são imitadores, por que não imitam o cos­
tume que seus pais têm de ficar sentados quietos nos aviões?), mas
frases como as que vimos mostram claramente que a aquisição de
linguagem não pode ser explicada como um tipo de imitação.

Falta mais um passo para completar a tese de que a linguagem


é um instinto específico, e não apenas uma solução inteligente para
um problema imaginado por uma espécie comumente brilhante.
Se a linguagem é um instinto, deveria ter uma localização identifi­
cável no cérebro, e talvez até mesmo um conjunto especial de ge­
nes que ajude a mantê-la no lugar. No caso de dano desses genes
ou neurônios, deveria haver prejuízo da linguagem sem que outras
partes da inteligência fossem afetadas; caso eles sejam poupados
num cérebro com outras lesões, deveriamos ter um indivíduo com
retardo mental mas linguagem intacta, um sábio idiota em termos
lingüísticos. Se, por outro lado, a linguagem for apenas o exercício
da inteligência humana, seria de esperar que lesões e deficiências
tornassem as pessoas mais estúpidas em todos os sentidos, inclu­
sive na sua linguagem. O único padrão esperável é que quanto maior
for a área lesada do cérebro, mais estúpida e pouco articulada a pes­
soa será.
Até hoje, ninguém localizou um órgão da linguagem ou um
gene da gramática, mas a pesquisa continua. Existem vários tipos
de deficiências neurológicas e genéticas que comprometem a lin­
guagem mas poupam a cognição e vice-versa. Um deles c conheci­
do há mais de cem anos, talvez mil anos. Quando certos circuitos
das partes inferiores do lobo frontal do hemisfério esquerdo do
cérebro são lesados —por uma pancada ou um ferimento de bala,
por exemplo —muitas vezes a pessoa sofre de uma síndrome cha­
mada de afasia de Broca. Uma dessas vítimas, que acabou recupe­
rando sua capacidade de linguagem, relembra o acontecimento,
por ela vivido com total lucidez:

47
I O instinto da linguagem I

Quando acordei tinha uma forte dor de cabeça e achei que tinha
dormido em cima do braço direito porque eu o sentia formigando e
adormecido e não conseguia que ele fizesse o que eu queria. Saí da
cama mas não conseguia ficar de pé; na verdade, caí no chão porque
minha perna direita estava tão fraca que não agüentava meu peso.
Chamei minha esposa que estava no quarto ao lado e nenhum som
saiu —eu não conseguia falar... Fiquei chocado, horrorizado. Não
acreditei que isso estava acontecendo comigo e comecei a ficar mui­
to assustado. Hntcndi dc repente que eu devia ter sofrido um derra­
me. Fssc pensamento dc certa forma me aliviou mas não por muito
tempo porque sempre achei que as seqüelas de um derrame eram
permanentes cm todos os casos... Descobri que conseguia falar um
pouco mas até mesmo eu percebia que as palavras pareciam erradas
enão expressavam o que eu queria dizer.

Como esse escritor observou, a maioria das vítimas dc derra­


mes não tem tanta sorte. Mr. Ford era um operador de rádio da
guarda costeira quando sofreu um acidente cerebral aos trinta c
nove anos. O neuropsicólogo Howard Gardner entrevistou-o três
meses depois. Gardner perguntou-lhe sobre seu trabalho antes da
hospitalização.

“Fu era um si... não... na... hum, bem... dc novo.” lissas palavras fo­
ram emitidas Icntamcntc c com grande esforço. Os sons não eram
claramcntc articulados; cada sílaba era pronunciada estridentemen-
te, cxplosivamcntc, numa voz gutural...
"Deixe-me ajudá-lo”, interrompi-o. “O senhor era um sinal...”
“Um si-na-leiro... certo”, Ford completou minha frase triunfante.
“Trabalhava na guarda costeira?”
“Não, é, sim, sim... navio... Massachu... chusetts... guarda costei­
ra... anos”. Levantou as mãos duas vezes, indicando o número “de­
zenove”.
“Ah, o senhor trabalhou na guarda costeira durante dezenove
anos.”
“Ah... cara... certo... certo”, ele respondeu.

48
I Tagarelas I

“Por que o senhor está no hospital, Sr. Ford?”


Ford olhou para mim de um modo um pouco estranho, como se
dissesse “Isso não é óbvio?”. Apontou para seu braço paralisado e
disse: “Braço não bom”, depois para sua boca e disse: “Fala... não
dizer... falar, vê.”
“O que aconteceu com o senhor que o fez perder a fala?”
“Cabeça, cai, Jesus, mim não bom, der, der... oh, Jesus... derrame.”
“Entendo. Sr. Ford, poderia me dizer o que o senhor tem feito
no hospital?”
“Sim, claro. Mim ir, é, hum, P.T/' nove ho, fala... duas vezes...
ler... cscr... cripa, é, é, crica, é, é, escrita... treino... fi-cando melhor.”
“E o senhor tem ido para casa nos fins de semana?”
“Que, sim... quinta, é, é, é, não, é, sexta... Bar-ba-ra... mulher... e,
oh, carro... guiar... estrada... sabe... sono e... te-vê.”
“O senhor consegue entender tudo o que passa na televisão?”
“Ah, sim, sim... bem... qua-sc.”

Obviamente, o Sr. Ford tinha de lazer muito esforço para con­


seguir filiar, mas seu problema não estava no controle dos múscu­
los vocais. Conseguia assoprar e apagar uma vela e limpar a gar­
ganta, e vacilava lingüisticamente tanto quando escrevia como
quando falava. A maioria dc suas dificuldades concentrava-se na
própria gramática. Omitia terminações dos tempos verbais c ter­
mos functivos gramaticais como ou [or], ser [be\, c o, a [the], apesar
de sua alta frcqücncia na língua. Quando lia em voz alta, pulava os
termos functivos, embora lesse bem termos de conteúdo como
abelha (heè) e remo (oar) que são homófonos. Nomeava objetos e re­
conhecia seus nomes extremamente bem. Entendia as perguntas
quando seu assunto principal podia ser deduzido dos termos dc
conteúdo, como “Uma pedra flutua na água?” ou “Você usa um
martelo para cortar?”, mas não aquelas que exigiam análise gra­
matical, como “O leão foi morto pelo tigre; qual deles morreu?”.6

6. Pacific Time, horário do Pacífico, (N. da T.)

49
I O instinto da linguagem I

Apesar das deficiências gramaticais do Sr. Ford, ele tinha ple­


no controle de suas outras faculdades. Gardner comenta: “Estava
alerta, atento, e plenamente consciente de onde estava e por que
estava lá. As funções intelectuais sem vínculo estreito com a lin­
guagem, como percepção de direita e esquerda, capacidade de de­
senhar com a mão esquerda (não treinada), cálculo, leitura de ma­
pas, acertar horário de relógios, fazer construções ou cumprir or­
dens, estavam preservadas. Seu Quocicnte de Inteligência em áreas
não-verbais era acima da média.” Com efeito, o diálogo mostra
que o Sr. Ford, como muitos afasicos dc Broca, tinha uma profun­
da noção dc suas deficiências.
Não são só lesões cm indivíduos adultos que afetam os circui­
tos subjacentes à linguagem. Algumas crianças, saudáveis em to­
dos os outros aspectos, não desenvolvem a linguagem conforme o
previsto. Quando começam a falar, têm dificuldade para articular
palavras, e, embora sua articulação melhore com a idade, há per­
sistência de uma grande variedade de erros gramaticais, geralmen­
te ate a vida adulta. Uma vez descartadas causas não-lingüísticas
—desordens cognitivas como retardo, desordens percepluais como
deficiência auditiva, e desordens sociais como o autismo —as crian­
ças recebem o diagnóstico preciso, mas que não ajuda muito, de
Iranstorno Específico da Linguagem [Spccific Language Impair-
ment (SEI) |.
Os (onoaudiólogos, gcralmcntc chamados para tratar dc vá­
rios membros de uma mesma família, há muito tempo têm a im­
pressão de que o SLI c hereditário. Estudos estatísticos recentes
mostram que essa impressão pode ser correta. SLÍ ocorre dentro
de famílias, e, sc um gêmeo idêntico sofre desse distúrbio, é mui-
to alta a probabilidade de que o outro também o apresente. Da­
dos particularmentc expressivos provêm de uma família inglesa,
os K„ reccntcmcnte estudados pela lingüista Myma Gopnik e vá­
rios gcncticistas. A avó da família apresenta distúrbios de lingua­
gem. Ela tem cinco filhos adultos. Uma filha é normal em termos

50
I Tagarelas I

lingüísticos, assim como os filhos dela. Os outros quatro adultos


apresentam distúrbios como a avó. Eles têm, juntos, vinte e três
filhos, dos quais onze apresentavam distúrbios de linguagem e
doze eram normais. As crianças com distúrbios de linguagem es­
tavam distribuídas aleatoriamente entre as famílias, sexos e ordem
de nascimento.
É claro que o simples fato de algum padrão comportamental
ocorrer numa família não demonstra que ele tem causas genéticas.
Receitas, sotaques c cantigas dc ninar são transmitidos pelas famí­
lias, mas nada têm a ver com DNA. No entanto, nesse caso, é
plausível pensar numa causa genética. Se a causa fosse ambiental —
nutrição deficiente, a escuta dos erros de fala de um genitor ou ir­
mão deficiente, excesso dc TV, contaminação por chumbo depo­
sitado cm velhos tonéis, ou qualquer outra —por que a síndrome
afetaria alguns membros da família poupando outros da mesma
geração (num caso, um gêmeo bivitelino)? Os gcncticistas que tra­
balharam com Gopnik notaram que a descendência sugere um tra­
ço controlado por um único gene dominante, como as flores cor-
de-rosa das ervilhas dc Grcgor Mcndel.
O que esse hipotético gene faz? Ele não parece atingir a inteli­
gência como um todo; a maioria dos membros afetados da famí-
lia apresenta resultados normais nas partes não-verbais dos testes
dc Ql. (Gopnik estudou inclusive uma criança com a síndrome
que costumava obter as melhores notas nas aulas de matemática.)
Ё a linguagem deles que é afetada, mas eles não são como os afá-
sicos dc Broca; parecem-se antes com turistas tentando sc virar
numa cidade estrangeira, balam lenta c deliberadamente, escolhen­
do as palavras com cuidado e estimulando seus interlocutores a
ajudá-los completando suas frases. Relatam que uma conversa nor­
mal é um trabalho mental extenuante e que procuram evitar situa­
ções em que tenham de falar. Sua fala contém freqüentes erros
gramaticais, como uso incorreto de pronomes e de sufixos como
o plural e as terminações do passado em inglês:

51
I O instinto da linguagem I

Its a flying finches, they are.


She remembered when she hurts herself the other day.
The neighbors phone the ambulance because the man fali off the
trec.
The boys cat lour cookie.
Carol is cry in the church.78

Em testes experimentais apresentam dificuldade em tarefas fa­


cilmente realizadas por crianças normais de quatro anos. Um exem­
plo clássico c o teste do wug, mais uma prova de que crianças nor­
mais não aprendem a língua imitando os pais. Mostra-se aos su­
jeitos testados o desenho de uma criatura semelhante a um pássa­
ro dizendo que aquilo c um wug*. lim seguida é apresentada uma
ficha que contém duas dessas criaturas, c diz-se para a criança:
“Agora tem dois; tem d o is________.” A típica criança de quatro
anos diz sem pensar: wugs, mas o adulto com a linguagem afetada
sofre um bloqueio. Uma das adultas estudada por Gopnik riu
nervosamente c disse: “Ai, bem, continue.” Pressionada, ela res­
pondeu: “Wug... wugness, não é? Não. Entendi. Você quer pares...
formar pares. OK.” Para o próximo animal, zat, ela disse: “Za...
ka... za... zackle.” Para o próximo, sas, deduziu que devia ser “sas-
scs”. I eliz por ter conseguido, passou a generalizar de forma lite­
ral, convertendo zoop em “zoop-cs” c tob cm “tob-yc-cs”, revelan­
do assim que não tinha compreendido dc fato a regra de forma­
ção do plural cm inglês. Aparentemente o gene defeituoso dc sua
família afeta o desenvolvimento das regras que crianças normais
usam de modo inconsciente. Os adultos fazem o que podem para
compensar essa deficiência inferindo conscientemente as regras,
com resultados previsivelmente canhestros.

7. É um pintassilgos voadores, são mcsmo./EIa lembrou de quando ela se machuca outro


dia./Os vizinhos chamam a ambulância porque o homem cai da árvore./Os meninos
comem quatro biscoito./Carol está chora na igreja. (N. daT.)
8. Todas as palavras do teste são palavras sem sentido cm inglês. (N. daT.)

52
I Tagarelas I

A afasia de Broca e o SLI são casos em que a linguagem é pre­


judicada e o resto da inteligência parece mais ou menos intacto.
Mas isso não prova que a linguagem existe separada da inteligên­
cia. Talvez a linguagem imponha maiores exigências ao cérebro do
que outros problemas que a mente tem de resolver. Para os outros
problemas, o cérebro, mesmo claudicante, consegue funcionar
sem usar sua capacidade total; no caso da linguagem, todos os sis­
temas têm de estar cem por cento. Para decidir a questão, temos
de encontrar a dissociação oposta, o sábio idiota em termos lin­
güísticos —ou seja, pessoas com linguagem preservada e cognição
prejudicada.
Eis outra entrevista, entre uma moça de quatorze anos chamada
Dcnise e o recentemente falecido psicolingüista Richard. Cromcr;
a entrevista foi transcrita c analisada pela colega de Cromcr, Sigrid
Lipka.

Gosto dc abrir cartões. Tinha uma pilha de correio hoje dc manhã e


nenhuma das cartas cra um cartão dc Natal. Um extrato de banco
foi o que rcccbi esta manhã!
|Um extrato dc banco? Hspcro que as notícias tenham sido boas. |
Não, não eram boas notícias.
[Parece as que eu recebo.]
Odeio... Minha mãe trabalha na, na prefeitura c cia disse “outro ex­
trato dc banco não”. Eu disse “c o segundo cm dois dias”. E ela dis-
sc “Você quer que eu vá para você ao banco na hora do almoço?” c
eu disse “Não, desta vez eu mesma vou explicar sozinha”. Quer sa­
ber, meu banco é horrível. Eles perderam minha caderneta do ban­
co, sabe, e não a encontro em nenhum lugar. Sou doTSB Bank e es­
tou pensando em mudar de banco porque eles são horríveis. Ficam,
ficam perdendo... [alguém entra trazendo chá] Oh, como são gentis.
[Uhm. Muito bom.]
Eles têm o costume de fazer isso. Eles perdem, perderam minha ca­
derneta duas vezes, num mês, e acho que vou gritar. Ontem minha

53
I 0 instinto da linguagem I

mãe foi ao banco para mim. Ela disse “Eles perderam de novo sua
caderneta”. Eu falei “Posso gritar?” e eu disse, ela disse “Pode, vá
em frente”. Então berrei. Mas é chato quando eles fazem coisas des­
se tipo. TSB, gerentes não são... uh mesmo a melhor companhia.
Eles não têm jeito.

Vi Denise num vídeo, e ela dá a impressão de ser uma prosea-


dora loquaz c sofisticada —sobretudo para ouvidos americanos,
devido ao seu refinado sotaque britânico. ( “M y bank are awful”,
por exemplo, é gramatical em inglês britânico, embora não cm in­
glês americano.) Causa surpresa a informação de que os fatos por
ela relatados com tanta sinceridade são produto de sua imagina­
ção. Denise não tem conta cm banco, portanto não podería ter re­
cebido um extrato pelo correio, assim como seu banco não pode-
ria ter perdido sua caderneta. Embora ela falasse de uma conta
conjunta que tinha com o namorado, ela não tem namorado, c
obviamente mal compreende o conceito de “conta conjunta” pois
queixa-se dc que o namorado tirou dinheiro do lado da conta que
c dela. Em outras conversas, Denise envolvia os ouvintes com re­
latos detalhados do casamento da irmã, suas férias na Escócia
com um rapaz chamado Danny, e um leliz reencontro no aeropor­
to com um pai há muito não visto. Mas a irmã de Denise é soltei­
ra, Denise nunca esteve na Escócia, não conhece ninguém chama­
do Danny, e seu pai nunca se ausentou pelo tempo t]ue for. Na
verdade, Denise sofre dc um grave retardo mental. Nunca apren­
deu a ler ou escrever e não consegue lidar com dinheiro ou quais­
quer outras exigências da vida diária.
Denise nasceu com espinha bífida, uma má-formação das vér­
tebras que deixa a medula desprotegida. Muitas vezes a espinha
bífida vem acompanhada de hidrocefalia, um aumento de pressão
do líquido cérebro-espinhal que preenche os ventrículos (grandes
cavidades) do cérebro, dilatando o cérebro por dentro. Por razões
que ninguém entende, crianças hidrocéfalas às vezes terminam

54
I Tagarelas I

como Denise, com um retardo significativo mas com aptidões lin­


guísticas intactas — até mesmo superdesenvolvidas. (Talvez os
ventrículos inchados comprimam grande parte do tecido cerebral
necessário para a inteligência diária mas deixem intactas algumas
outras porções que conseguem desenvolver os circuitos da lingua­
gem.) Entre os vários termos técnicos relacionados com essa con­
dição encontram-se “conversa de coquetel”, “síndrome de tagare­
lice” e “matraquear”. Com efeito, muitas pessoas com graves de­
ficiências intelectuais apresentam fluência e gramaticalidade de
linguagem, como é o caso dos esquizofrênicos, pacientes com mal
de Alzheimer, algumas crianças autistas e alguns afásicos. Uma
das mais fascinantes síndromes foi rcccntemente descoberta em
San Diego, quando os pais de uma menina deficiente mental com
síndrome de tagarelice leram um artigo sobre as teorias dc Choms­
ky numa revista dc divulgação científica e ligaram para o M IT
para falar com cie, sugerindo que a filha deles poderia interessá-
lo. Chomsky é um teórico de gabinete que não conseguiría distin­
guir jabba the Hutt do Comc-Comc; portanto sugeriu aos pais
que levassem a filha ao laboratório da psicolingüista Ursula Bcllugi
em La jolla.
Bcllugi, membro dc uma equipe de pesquisa cm biologia mo­
lecular, neurologia c radiologia, descobriu que a criança (que
apelidaram Crystal), e várias outras posteriormente testadas, ti­
nha uma rara forma dc retardo mental denominada síndrome dc
Williams. A síndrome parece estar associada a um gene defeituo­
so no cromossomo II relacionado com a regulação do cálcio, c
afeta dc forma complexa o cérebro, o crânio e órgãos internos du­
rante o desenvolvimento, embora ninguém saiba o porquê dos
efeitos que provoca. As crianças têm uma aparência estranha: são
baixas c frágeis, com rosto estreito e testa larga, cavalete nasal
achatado, queixo pontudo, íris com padrão estrelado e lábios gros­
sos. Chamam-nas às vezes de “cara de elfo” ou “duendes”, mas eu
as acho mais parecidas com M ick Jagger. Sofrem de um retardo

55
I O instinto da linguagem I

significativo, com QI em torno de 50, e são incompetentes em ta­


refas comuns como amarrar sapatos, encontrar o caminho, colo­
car coisas de volta num armário, distinguir direita de esquerda,
somar dois números, andar de bicicleta e controlar sua tendência
natural a abraçar estranhos. Mas, como Denise, são proseadores
fluentes, embora um tanto afetados.
Eis duas transcrições dc Crystal quando ela tinha dezoito anos:

li o que um elefante c, ele é um dos animais. E o que o elefante faz,


ele vive na selva. Ele também pode viver no zoológico. E o que ele
tem, ele tem orelhas longas, cinza, orelhas de abano, orelhas que
podem balançar ao vento. Tem uma tromba longa que pode apanhai'
grania ou apanhar feno... Quando estão de mau humor, pode ser
terrível... Se o elefante fica, enfurecido, podería pisar; poderia atacar.
As vezes elefantes atacam, assim como um boi ataca. Têm presas
longas e grandes. Podem estragar um carro... Pode ser perigoso.
Quando estão num aperto, quando estão de mau humor, pode ser
terrível. Ninguém quer um elefante de bichinho de estimação. Vocc
quer um gato ou um cachorro ou um passarinho.

Esta é uma história sobre chocolates. Era uma vez uma Princesa
de Chocolate que vivia no Mundo dc Chocolate. Ela era uma prin­
cesa encantadora. Ela estava em seu trono dc chocolate quando um
homem de chocolate veio vê-la. E o homem sc curvou diante dela e
disse-lhe as seguintes palavras. O homem lhe disse: “Por favor,
Princesa Chocolate."Quero que você veja como faço meu trabalho.
E lá fora no Mundo de Chocolate está quente, c você poderia derre­
ter como manteiga derretida. Mas sc o sol mudar de cor, o Mundo
dc Chocolate —e você —não derreterão. Você poderá ser salva se o
sol mudar de cor. E se ele não mudar de cor, você e o Mundo de
Chocolate estão perdidos.”

Testes de laboratório confirmam a impressão de competência


cm gramática; as crianças compreendem frases complexas, e orde­
nam frases agramaticais, em níveis normais. Além disso, elas têm

56
I Tagarelas I

uma peculiaridade particularmente adorável: adoram palavras in-


comuns. Peça a uma criança normal para nomear alguns animais,
e você escutará o inventário padrão de lojas de animais e fazenda:
cão, gato, cavalo, vaca, porco. Pergunte a uma criança com síndro­
me de Williams, e você obterá um conjunto de animais bem mais
interessante: unicórnio, pteranodonte, iaque, cabrito montês, bú­
falo, leão-marinho, tigre de dentes-de-sabre, abutre, coala, dragão
c um cspecialmentc interessante para os paleontólogos, “brontos-
sauro rcx”. Uma criança de onze anos derramou um copo de leite
na pia e disse: “Terei dc evacuá-la”; outra ofereceu a Bellugi um
desenho e anunciou: “Isso, Doutora, é em sua memória.”

Pessoas como Kirupano, Larry, o plantador de papaia nascido


no Havaí, Maycla, Simon, dona Mac, Sara, o Sr. Ford, os K., Dc-
nisc c Crystal constituem um guia dc campo para usuários da lin­
guagem. Eles mostram que a gramática complexa aparece cm to­
dos os hábitats humanos. Não é preciso ter saído da Idade da
Pedra; não é preciso ser de classe media; não c preciso ir bem na
escola; nem mesmo c preciso ter idade para ir para a escola. Seus
pais não precisam banhá-lo cm linguagem ou impor uma língua.
Vocc não precisa ter os recursos intelectuais necessários para viver
adequadamente cm sociedade, as habilidades para preservar a har­
monia do lar, ou estar particularmcnte bem conectado com a rea­
lidade. Na verdade, vocc pode possuir todas essas vantagens e ain­
da assim não ser um usuário competente da linguagem sc lhe fal­
tarem justamente os genes certos ou justamente os pedacinhos cer­
tos do cérebro.
M entalês

3 O ano de 1984 chegou,


passou, e vem perdendo a
conotação de pesadelo totalitário da ficção de George Orwell, es­
crita cm 1949. Mas talvez o alívio seja prematuro. Num apêndice
a 1984, Orwell escreveu sobre uma data ainda mais sinistra. Em
1984, o infiel Winston Smith teve de ser convertido por meio de
prisão, degradação, drogas c tortura; por volta de 2050, já não
haveria Winston Smiths. Pois, naquele ano, a tecnologia de ponta
para o controle dos pensamentos estaria sendo aplicada: a No-
vilíngua.

O objetivo da Novilíngua cra não só fornecer um meio de expres­


são para as idéias gerais e hábitos mentais dos devotos do Ingsoc
[Socialismo Inglês], mas tornar impossível qualquer outro modo
dc pensar. Prcssupunha-se que quando a Novilíngua fosse adota­
da de uma vez por todas e a Antilíngua esquecida, um pensamento
herético —ou seja, uma idéia que divergisse dos princípios do Ingsoc
—seria literalmente impensável, pelo menos na medida em que o
pensamento depende das palavras. Seu vocabulário era construí­
do de modo a dar uma expressão exata e geralmente muito sutil de
cada significado que um membro do Partido tinha o direito de que­
rer expressar, excluindo ao mesmo tempo todos os outros significa­
dos e também a possibilidade de chegar a eles por métodos indire­

59
I O instinto da linguagem I

tos. Isso era feito em parte pela invenção de novas palavras, mas so­
bretudo pela eliminação de palavras indesejáveis e pela supressão, nas
palavras restantes, dos significados não conformes à doutrina, e, na
medida do possível, de qualquer significado secundário. Um exemplo
simples disso. A palavra livre ainda existia em Novilíngua, mas só po­
dia ser empregada em frases como “O caminho está livre” ou “Esse
campo está livre de ervas daninhas”. Não podia ser empregada no an­
tigo sentido de “politicamente livre” ou “intelectualmente livre”,
pois a liberdade política e intelectual não existia mais, nem mesmo
sob a forma dc conceitos, e portanto não havia necessidade dc que ti­
vessem nomes.
...Uma pessoa educada cm Novilíngua como única língua não
saberia que igual tivera um dia o significado secundário de “politica­
mente igual”, ou que livre um dia significara “intelectualmente li­
vre”, assim como, por exemplo, uma pessoa que nunca ouviu falar
de xadrez desconhece os significados secundários de rainha e torre,
1 laveria muitos crimes e erros que ela não teria a possibilidade de
cometer, simplesmente porque eles não tinham nome c eram, por­
tanto, inimagináveis.

Mas ainda resta uma esperança para a liberdade humana: a res­


salva dc Orwell: “pelo menos na medida cm que o pensamento
depende das palavras”. Note-se sua cquivocação: no final do pri­
meiro parágrafo, um conceito c inimaginável e portanto sem no­
me; no final do segundo, um conceito não tem nome c portanto c
inimaginável. O pensamento depende das palavras? As pessoas pen­
sam litcralmente em inglês, cherokec, kivunjo, ou, por volta de
2050, cm Novilíngua? Ou será que nossos pensamentos sc ex­
pressam por algum meio de comunicação silencioso do cérebro —
uma linguagem do pensamento, ou “mentalês” —e só se revestem
de palavras quando temos de comunicá-los a um ouvinte? Não há
questão mais central para compreender o instinto da linguagem.
Na maioria de nossos discursos sociais e políticos, as pessoas
simplesmente partem do pressuposto de que as palavras determi­

60
I Mentalês I

nam pensamentos. Inspiradas no ensaio de Orwell “Política e lín­


gua inglesa”, autoridades eruditas acusam governos de manipular
nossas mentes com eufemismos como pacificação (bombardeio), au­
mento de receita (impostos), e não~retenção (despedir de um emprego).
Filósofos argumentam que uma vez que os animais carecem de
linguagem, devem também carecer de consciência —Wittgenstein
escreveu: “Um cão não poderia pensar ‘talvez chova amanhã’” —e
portanto não têm os mesmos direitos que os seres conscientes.
Algumas feministas atribuem idéias sexistas à linguagem sexista,
como o uso de ele para se referir a uma pessoa genérica. O surgi­
mento dc movimentos reformistas foi inevitável. Surgiram muitas
propostas para substituir he [ele] no correr dos anos, como E, hesh,
po, tey, со, jhe, ve, xe, he'er, tbon с na. O mais extremista desses movi­
mentos é o chamado Semântica Geral, iniciado cm 1933 pelo en­
genheiro conde Alfrcd Korzybski e popularizado cm best-sellers por
seus discípulos Stuart Chase c S. I. Hayakawa. (E o mesmo Haya-
kawa que mais tarde ganhou notoriedade como reitor de universi­
dade ao reprimir protestos c como senador americano dorminho-
co.) A Semântica Geral atribui a loucura humana ao “dano se­
mântico” que a estrutura da linguagem provoca no pensamento.
Manter um homem dc quarenta anos preso por um roubo que ele
cometeu quando adolescente supõe que o John de quarenta anos
c o John de dezoito são “a mesma pessoa”, um erro lógico cruel
que poderia ser evitado sc nos referíssemos a eles não como John
mas como John 1 ^ 2 e John 1 ^ 4 , respectivamente. O verbo ser é uma
fonte particular de falta de lógica, porque identifica indivíduos
com abstrações, como em Mary é uma mulher, e permite que se fuja
à responsabilidade, como na não-confissão famosa de Ronald
Reagan Erros foram cometidos, Há uma facção que pretende simples­
mente erradicar o verbo.
Supostamente, tais afirmações têm fundamentação científica:
a famosa hipótese Sapir-W horf do determinismo lingüístico, se­
gundo a qual os pensamentos das pessoas são determinados pelas

61
I O instinto da linguagem I

categorias que a língua deles torna possíveis, e sua versão mais fra­
ca, a relatividade lingüística, segundo a qual diferenças entre lín­
guas causam diferenças nos pensamentos de seus falantes. Mesmo
aquelas pessoas que não se lembram de muito do que aprenderam
na universidade conseguem papaguear os supostos fatos: as lín­
guas que subdividem de modo diferente o espectro visível em pa­
lavras designativas de cores, o conceito fundamentalmente diferen­
te de tempo dos Hopi, as dezenas de palavras esquimós para neve.
Isso tem graves implicações: as categorias básicas da realidade não
estão “no” mundo mas são impostas pela cultura (e portanto po­
dem ser ameaçadas, o que talvez explique a eterna atração que a
hipótese exerce sobre as sensibilidades com pouca formação aca­
dêmica).
Mas isso é falso, completamente falso. A idéia dc que o pensa­
mento seja a mesma coisa que a linguagem é um exemplo do que
se pode chamar de absurdo convencional: uma afirmação total­
mente contrária ao senso comum mas em que todos acreditam
porque têm uma vaga lembrança de tê-la escutado em algum lugar
e porque ela tem tantas implicações. (O “fato” de que usamos
apenas cinco por cento de nosso cérebro, de que os lemingues co­
metem suicídio cm massa, de que o Manual do Escoteiro vende
todos os anos mais que todos os outros livros, c que podemos ser
coagidos a comprar por meio dc mensagens subliminares são ou­
tros exemplos.) Pense a respeito. Todos tivemos a experiência dc
enunciar ou escrever uma frase, parar c perceber que não era exa­
tamente o que queríamos dizer. Para que haja esse sentimento, é
preciso haver um “o que queríamos dizer” diferente do que disse­
mos. Nem sempre é fácil encontrar as palavras que expressam ade­
quadamente um pensamento. Ao escutar ou ler, geralmente recor­
damos o ponto principal, não as palavras exatas, portanto deve
haver algo como um ponto principal que é diferente de uma cole­
ção de palavras. E se os pensamentos dependem das palavras,
como poderia uma palavra nova ser forjada? Para começo de con­

62
I Mentalês I

versa, como uma criança poderia aprender uma palavra? Como


poderia ser possível a tradução de uma língua para outra?
Os debates que partem da idéia de que a linguagem determina
o pensamento só perduram devido a uma suspensão coletiva da
dúvida. Um cão, dizia Bertrand Russell, pode não ser capaz de lhe
dizer que seus pais, embora pobres, eram honestos, mas será que
alguém pode realmente tirar disso a conclusão de que o cão é in­
sensível? (Extremamente frio? Um zumbi?) Certa vez um aluno de
pós-graduação argumentou comigo usando a seguinte lógica deli­
ciosamente retroativa: a linguagem deve afetar o pensamento, por­
que se não o fizesse, não teríamos motivo para combater o uso se­
xista da linguagem (aparentemente, o fato de ser ofensivo não é
razão suficiente). Quanto aos eufemismos dos governos, eles são
desprezíveis não por serem uma forma de controle da mente mas
por serem uma forma de mentira. (Orwell foi bastante claro a esse
respeito em seu excelente ensaio.) Por exemplo, “aumento de re­
ceita” tem um sentido bem mais amplo que “impostos”, e os ou­
vintes supõem naturalmente que se um político quisesse dizer
“impostos” ele teria dito “impostos”. Quando um eufemismo é
denunciado, as pessoas não sofreram tamanha lavagem cerebral a
ponto de não compreenderem o engodo. O Conselho Nacional
de Professores dc Inglês satiriza anualmente os discursos de du­
plo sentido do governo numa nota à imprensa amplamente difun­
dida; ademais, chamar a atenção para eufemismos é uma forma
popular de humor, como a fala do cliente irado da loja de animais
na série de T V Monty Python’s Flying Circus:

Esse papagaio não está mais entre nós. Deixou de existir. Expirou e
foi ao encontro de seu criador. É um finado papagaio. È um corpo.
Privado da vida, que descanse em paz. Se você não o tivesse pregado
no poleiro, ele estaria comendo capim pela raiz. Abotoou o paletó e
foi para a cidade dos pés juntos. Ё um ex-papagaio.

63
I O instinto da linguagem I

Como veremos neste capítulo, não há evidências científicas de


que uma língua molde de maneira decisiva o modo de pensar de
seus falantes. Mas pretendo fazer mais do que apenas rever a his­
tória não intencionalmente cômica das tentativas de provar que as
línguas fazem isso. A idéia de que as línguas moldam o pensar pa­
recia plausível quando os cientistas nada sabiam sobre como fun­
ciona o pensamento ou como estudá-lo. Agora que os cientistas
cognitivos sabem pensar o pensar, é menor a tentação de igualá-lo
à linguagem apenas porque as palavras são mais palpáveis que os
pensamentos. Depois dc entender por que o determinismo Jingüís-
tico é uma idéia equivocada, estaremos cm melhores condições de
entender como funciona a própria linguagem quando a abordar­
mos nos próximos capítulos.

A hipótese do determinismo lingüístico está intimamente vin­


culada aos nomes dc Edward Sapir e Benjamin Lee W h o rf Sapir,
brilhante lingüista, foi aluno do antropólogo Franz Boas. Boas c
seus discípulos (entre os quais também se encontram Ruth Bcnc-
dict c Margarct Mcad) foram importantes intelectuais do século
20, por terem afirmado que povos não industrializados não eram
selvagens primitivos mas tinham sistemas dc linguagem, conheci­
mentos c culturas tão complexos c válidos no seu universo como
os nossos. No seu estudo das línguas nativas americanas, Sapir
percebeu que os falantes dc línguas diferentes têm dc prestar aten­
ção a aspectos diferentes da realidade simplesmente para ordenar
palavras em frases gramaticais. Por exemplo, quando falantes de
língua inglesa decidem se devem pôr ou não pôr -ed no final de
um verbo, têm de prestar atenção ao tempo verbal, o tempo rela­
tivo de ocorrência do fato a que eles se referem e ao momento da
fala. Falantes de wintu não têm de se preocupar com o tempo ver­
bal, mas, para decidir qual sufixo pôr em seus verbos, têm de pres-

64
I Mentalês I

tar atenção ao fato do conhecimento que estão transmitindo ter


sido aprendido por observação direta ou por ouvir dizer.
A interessante observação de Sapir foi logo ampliada. W h o rf
era inspetor da Companhia Hartford de Seguros contra Incêndio
e estudioso amador das línguas nativas americanas, o que o levou
a freqüentar cursos de Sapir emYale. Numa passagem muitas ve­
zes citada, ele escreveu:

Dissecamos a natureza ao longo de linhas estabelecidas por nossas


línguas nativas. Não encontramos as categorias e tipos que isolamos
no mundo dos fenômenos porque eles são evidentes para qualquer
observador; pelo contrário, o mundo se apresenta num fluxo calei­
doscópico dc impressões que têm de ser organizadas por nossas
mentes —ou seja, cm grande medida pelos sistemas lingüísticos exis­
tentes cm nossas mentes. Scccionamos a natureza, a organizamos em
conceitos c atribuímos significados da maneira como o fazemos, so­
bretudo porque concordamos cm organizá-la dessa maneira —acor­
do este que sc impõe a toda a nossa comunidade lingiiística e está
codificado nos padrões dc nossa língua. Trata-se, evidentemente, dc
um acordo implícito c não formulado, mas seus termos são absolutamente
obrigatórios; só podemos falar se nos submetermos à organização c
classificação dos dados decretadas por esse acordo.

O que levou W horf a essa posição radical? Nas suas próprias


palavras, a idéia ocorreu-lhe pela primeira vez quando, trabalhan­
do como engenheiro de prevenção de incêndios, percebeu como a
língua levava os trabalhadores a compreender de modo equivoca­
do situações perigosas. Por exemplo, um operário provocou uma
grave explosão ao atirar um cigarro num tambor “vazio” que na
verdade estava cheio de vapor de gasolina. Outro acendeu um ma­
çarico perto de uma “poça de água” que na verdade era uma bacia
de resíduos de curtume em decomposição, que, longe de ser “aquo-
sa”, desprendia gases inflamáveis. Os estudos que W h o rf fez das
línguas americanas fortaleceu sua convicção. Por exemplo, em

65
I O instinto da linguagem I

apache, Esta primavera está chuvosa tem de ser expresso “Como água,
ou primaveras, a brancura move-se para baixo”. “Como esse mo­
do de pensar é diferente do nosso!” escreveu ele.
No entanto, quanto mais examinamos os argumentos de
W horf, menos sentido eles fazem. Tomemos a história do operá­
rio e o tambor “vazio”. O germe do desastre encontra-se suposta­
mente na semântica de vazio, que, dizia Whorf, significa tanto “sem
seu conteúdo habitual” como “nulo, vazio, inerte”. O infeliz ope­
rário, com sua concepção da realidade moldada por suas catego­
rias lingüísticas, não distinguiu entre os significados de “seco” e
“inerte”, e então, um piparotc e... bum! Um momento, por favor.
Vapor de gasolina é invisível. Um tambor contendo apenas vapor
tem exatamente a mesma aparência dc um tambor sem nada den­
tro. Essa catástrofe ambulante foi certa mente enganada pelos olhos,
não pela língua inglesa.
O exemplo da brancura que sc move para baixo supostamente
demonstra que a mente apache não secciona os fatos em objetos c
ações distintos. W h o rf apresentou muitos exemplos como esse dc
línguas nativas americanas. O equivalente apache de O barco está em
calhado na praia c “Ele está na praia a pique em conseqüência de um
movimento de canoa”. Ele comida pessoas para umafesta torna-sc “Ele,
ou alguém, vai atrás de comedores dc alimento cozido”. Ele limpa a
arma com uma vareta traduz-se por “Ele dirige um lugar seco e oco
que se move por movimento de ferramenta”. Isso tudo, é claro, c
muito diferente do nosso modo de falar. Mas como sabemos que
é muito diferente de nosso modo de pensar?
Logo que os artigos de W horf apareceram, os psicolingüistas
Eric Lenneberg e Roger Brown apontaram dois non sequiturs na sua
tese. Em primeiro lugar, W h o rf na verdade nunca estudou ne­
nhum apache; ninguém sabe se ele algum dia viu algum. Suas as­
serções sobre a psicologia apache baseiam-se totalmente na gra­
mática apache —o que torna sua argumentação circular. Apaches
falam de maneira diferente, portanto devem pensar de maneira di­

66
I Mentalês I

ferente. Como sabemos que pensam de maneira diferente? Basta


escutar a maneira como falam!
Em segundo lugar, W horf fez uma tradução deselegante, pala­
vra por palavra das frases, de modo a fazer com que o sentido li­
teral parecesse o mais estranho possível. Mas, olhando para as
glosas que W horf forneceu, eu poderia, de modo igualmente jus­
tificado em termos gramaticais, traduzir a primeira frase como o
mundano “Coisa clara —água —está caindo”. Virando a mesa, eu
poderia tomar a frase inglesa “He walks” [Ele anda] e transpô-la
em “As solitary masculinity, leggedness proceeds” [Enquanto so­
litária masculinidade, dotado de pernas avança]. Brown ilustra
como, de acordo com a lógica de Whorf, a mente alemã deve ser
estranha reproduzindo a tradução do próprio Mark Twain de
uma conferência que ele proferiu num alemão impecável na asso­
ciação de jornalistas de Viena:

Sou na verdade o mais verdadeiro amigo da alemã língua —e não so­


mente agora, mas muito tempo desde —sim, antes de vinte anos já...
Só algumas mudanças realizaria. Eu iria só a língua mctodizar —a
luxuriosa, elaborada construção comprimir, os eternos parênteses su­
primir, eliminar, aniquilar; a introdução de mais de treze sujeitos
numa frase proibir; o verbo de tal modo para a frente puxar que a
gente ele sem um telescópio descobrir possa. Com uma palavra, meus
senhores, eu iria sua adorada língua simplificar de modo que, meus se­
nhores, quando os senhores ela para rezar precisem, Aquele ela lá
em cima entenda.
... Eu com prazer o separável verbo também um pouco reforma­
ria. Eu não ninguém fazer deixaria o que Schiller fez: ele toda a his­
tória da Trinta Anos Guerra entre os dois elementos de um separa­
do verbo enfiou. Isso até mesmo a Alemanha própria indignou, e se
a Schiller a permissão negou a História da Cem Anos Guerra escre­
ver —Deus seja por isso agradecido! Depois que todas essas refor­
mas estabelecidas sido tiverem, a alemã língua a mais nobre e a mais
bela do mundo será.

67
I O instinto da linguagem I

Dentre “o fluxo caleidoscópico de impressões” de W horf, a


cor é decerto a que mais atrai a atenção. Segundo ele, vemos obje­
tos com diferentes matizes, dependendo do comprimento de onda
da luz que eles refletem, mas os físicos nos dizem que o compri­
mento de onda é uma dimensão contínua com nada que demar­
que vermelho, amarelo, verde, azul etc. As línguas diferem em seu
inventário dc palavras para as cores: em latim não existem o “cin­
za” c o “marrom” comuns; a língua navajo junta azul e verde nu­
ma única palavra; o russo tem palavras distintas para azul-cscuro c
axul-ccleste; os falantes dc Shona empregam uma só palavra para
os verdes amarelados c os amarelos esverdeados, e outra para os ver­
des azulados c os azuis não arroxendos. Se quiserem, podem com­
pletar <o resto do raciocínio, li a linguagem que coloca divisões no
espectro; Júlio César confundiría alhos com bugalhos.
Hmbora para os físicos a separação entre cores não tenha fun­
damento, para os fisiologistas ela tem. Os olhos não registram os
comprimentos cie onda da mesma maneira como um termômetro
registra temperatura. Neles existem três tipos de cones, cada um
com um pigmento diferente, e os cones estão ligados aos neurô­
nios dc um modo que faz com que os neurônios respondam me­
lhor a manchas vermelhas sobre um fundo verde ou vice-versa,
azul sobre amarelo, preto sobre branco. Por maior que seja a in­
fluência da língua, para um fisiologista seria ridículo pensar que
ela poderia atingir a retina c modificar as ligações entre as células
ganglionares.
Na verdade, os seres humanos do mundo inteiro (assim como
os bebês e os macacos, no que a isso se refere) colorem as palavras
relacionadas com a percepção usando a mesma paleta, e isso limi­
ta o vocabulário que eles desenvolvem. Embora as línguas discor­
dem sobre o conteúdo da catxa com sessenta e quatro lápis de cor
—os vários tons de umbra, os turquesas, os fúcsias —, concordam
muito mais quanto à caixa de oito cores —os vermelhos de carro
de bombeiro, os amarelos-limão da grama. Falantes de diferentes

68
IMentaUs I

línguas unanimemente consideram esses tons os melhores exem­


plos de suas palavras para cor, desde que a língua tenha uma pala­
vra para a cor desse setor do espectro. E, quando as línguas dife­
rem nas suas palavras para as cores, diferem de forma previsível, e
não de acordo com o gosto idiossincrático de algum cunhador de
palavras. As línguas estão organizadas mais ou menos como a li­
nha de produtos Crayola, das cores mais básicas às mais estranhas.
Se uma língua tiver apenas duas palavras para cor, serão para de­
signar preto e branco (que geralmente abrange escuro e claro, res-
pectivamentc). Se tiver três, serão para designar preto, branco e
vermelho; se tiver quatro, preto, branco, vermelho e/ou amarelo,
ou verde. Com cinco, incluirá verde e amarelo; seis, azul; sete, mar­
rom; mais que sete, roxo, rosa, laranja ou cinza. Mas o experimen­
to decisivo foi realizado no planalto da Nova Guiné com os Dani
do Grande Vale, um povo que fala uma das línguas preto-e-bran-
co. A psicóloga Eleanor Rosch descobriu que os Dani aprendiam
mais rápido uma nova categoria de cor baseada no vermelho do
que uma categoria baseada em outra cor. A maneira como vemos
cores determina como aprendemos as palavras para elas e não o
contrário.
A concepção fundamentalmente diferente que os Hopi têm
do tempo é uma das mais chocantes afirmações de como a mente
pode variar. W horf escreve que a língua dos Hopi não contém
“palavras, formas, construções ou expressões gramaticais para se
referir diretamente àquilo que chamamos ‘tempo’, ou ao passado,
futuro, ou à duração”. Sugeriu, também, que os Hopi não tinham
“nenhuma noção ou intuição geral do TEMPO como um contí­
nuo que flui suavemente, no qual tudo que existe no universo avan­
ça à mesma velocidade, afastando-se de um futuro, através de um
presente, rumo a um passado”. De acordo com W horf, não con­
ceituavam os acontecimentos como sendo pontos, ou períodos de
tempo como dias, como coisas contáveis. Pelo contrário, pare­
ciam se concentrar na mudança e no processo, e em distinções

69
I O instinto da linguagem I

psicológicas entre presentemente conhecido, mítico e conjectural­


mente distante. Os hopis também tinham pouco interesse por “se-
qüências exatas, datas, calendários, cronologia”.
Portanto, o que fazer com a seguinte frase traduzida do hopi?

Então, de fato, no dia seguinte, de manhã bem cedo, na hora em


que as pessoas rezam para o sol, por volta daquela hora então ele
acordou a menina dc novo.

Talvez os Hopi não sejam tão indiferentes ao tempo como


W horf os retratou. Em seu minucioso estudo sobre os Hopi, o
antropólogo Ekkchart Malotki, que transcreveu a frase acima,
mostrou também que a fala dos Hopi contém tempos verbais,
metáforas para tempo, unidades dc tempo (incluindo dias, números
dc dias, partes do dia, ontem c amanhã, dias da semana, semanas,
meses, fases lunares, estações e o ano), maneiras de quantificar
unidades dc tempo e palavras como “antigo”, “rápido”, “muito tem­
po” c “terminado”. Por métodos sofisticados, a cultura deles man­
tém registros de datas, inclusive um calendário solar baseado no
horizonte, seqüências exatas de dias sagrados, cordões com nós,
paus com entalhes, que servem dc calendário, e vários instrumen­
tos paia medir- o tempo usando o princípio do quadrante solar.
Ninguém sabe com certeza dc onde W horf tirou suas estranhas
afirmações, mas sua amostra limitada c mal analisada da fala Hopi,
e sua velha afeição pelo misticismo devem ter contribuído.
Falando de balelas antropológicas, nenhuma discussão sobre
linguagem e pensamento estaria completa sem a Grande Farsa do
Vocabulário Esquimó. Contrariando a crença popular, os esqui­
mós não têm mais palavras para neve do que as pessoas que falam
inglês. Não têm quatrocentas palavras para neve, como foi dito na
imprensa, ou duzentas, ou cem, ou quarenta e oito, ou mesmo
nove. Um dicionário menciona duas. Se forem generosos, especia­
listas poderiam chegar a doze, mas com esses critérios o inglês

70
I Mentalês I

não ficaria muito para trás, comsnow, sleet, slusb, blizzari, avalanche,
hail, hardpack, powder,jlurry, dusting, e a palavra snizzling, cunhada pelo
meteorologista da QTBZ-TV de Boston, Bruce Schwoegler.
Como surgiu esse mito? De ninguém que tenha de fato estuda­
do as famílias yupiks e inuit-inupiaqs de línguas polissintéticas
faladas desde a Sibéria até a Groenlândia. A antropóloga Laura
M artin pesquisou e documentou como essa história ganhou di­
mensões de lenda urbana, sendo ampliada a cada relato. Em 1911,
Boas mencionou por acaso que os esquimós empregavam quatro
raízes diferentes para neve. W horf abrilhantou o conto com sete,
deixando implícito que havia mais. Seu artigo foi amplamente di­
fundido, depois citado em manuais e livros de divulgação sobre
linguagem, o que provocou estimativas cada vez mais inchadas em
outros manuais, artigos c colunas de jornais no estilo de “Você
sabia que...”.
O lingüista Geoffrey Pullum, que divulgou o artigo de M artin
em seu ensaio “A Grande Farsa do Vocabulário Esquimó”, tece
hipóteses de por que a história fugiu tanto ao controle: “A alega­
da extravagância léxica dos esquimós combina muito bem com as
muitas outras facetas da perversidade polissintctica deles: esfregar
os narizes; emprestar as esposas para os estrangeiros; comer gor­
dura crua de foca; deixar a vovó abandonada para ser comida pe­
los ursos polares.” Que irônica deturpação! A relatividade lingüís-
tica é um produto da escola de Boas, como parte de uma campa­
nha para mostrar que culturas não letradas eram tão complexas e
sofisticadas como as européias. No entanto, as anedotas suposta­
mente destinadas a ampliar as idéias devem seu caráter atraente a
uma sensação de superioridade que leva a tratar a psicologia de
outras culturas como estranhas e exóticas em comparação com a
nossa. Como afirma Pullum:

Um dos vários aspectos deprimentes dessa transmissão crédula e do


desenvolvimento de uma afirmação falsa é que mesmo que houvesse

71
I O instinto da linguagem I

um grande número de raízes para diferentes tipos de neve em algu­


ma língua ártica, objetivamente isso não seria intelectualmente inte­
ressante; seria um fato mundano e de pouca importância. Criadores
de cavalos têm vários nomes para raças, tamanhos e idades de cava­
los; botânicos têm nomes para formas dc folhas; decoradores de in­
teriores têm nomes para tons dc lilás; impressorcs têm muitos no­
mes diferentes para fontes (Carlson, Garamond, Hclvctica, Times
Roman etc.), como c natural... Será que alguém pensaria cm escrever
sobre impressorcs o mesmo tipo de porcarias que encontramos es­
critas sobre os esquimós cm maus manuais de linguística?Tomem [o
seguinte |manual escolhido ao acaso..., com sua mais grave afirma­
ção: ‘‘li óbvio que na cultura dos esquimós... a neve tem suficiente
importância para dividir a esfera conceituai que corresponde a uma
palavra c uma idéia cm inglcs em várias classes distintas...” Ima­
ginem-se lendo: “li óbvio que na cultura dos impressorcs... a fonte
tem suficiente importância para dividir a esfera conceituai que cor­
responde a uma palavra e uma idéia para os não impressores em vá­
rias classes distintas...” Maçante, mesmo que fosse verdade. So­
mente o vínculo com esses caçadores lendários, promíscuos, come­
dores de gordura das regiões de gelos flutuantes permite que algo
tão vulgar nos seja oferecido à contemplação.

Sc as anedotas antropológicas são mistificações, o que dizer


dos estudos controlados? Os trinta c cinco anos de pesquisas do
laboratório de psicologia destacam-se pelo. pouco que revelaram.
A maioria dos experimentos testou meras versões “fracas” da hi­
pótese whorfiana, ou seja, que as palavras podem ter algum efeito
sobre a memória ou a categorização. Alguns desses experimentos
rcalmente funcionaram, mas isso não surpreende. Num experi­
mento típico, os sujeitos têm de memorizar fichas coloridas e são
testados através de um procedimento de múltipla escolha. Em al­
guns desses estudos, os sujeitos demonstram uma memória um
pouco melhor para cores que têm nomes bem conhecidos na sua
língua. Mas mesmo cores sem nome são lembradas bastante bem,

72
I Mentalês I

de modo que o experimento não demonstra que as cores são lem­


bradas exclusivamente em função de rótulos verbais. Tudo o que
esse estudo mostra é que os sujeitos lembraram das fichas de duas
maneiras, uma imagem visual não-verbal e um rótulo verbal, pro­
vavelmente porque dois tipos de memória, cada uma das quais é
falível, é melhor do que um. Em outro tipo de experimento, os su­
jeitos têm de dizer quais duas fichas de um conjunto de três com­
binam; muitas vezes eles juntam aquelas que têm o mesmo nome
na língua deles. Mais uma vez, nenhuma surpresa. Posso imaginar
os sujeitos pensando consigo mesmos: “Como cargas d’água será
que esse cara quer que eu junte duas fichas'? Ele não me deu ne­
nhuma dica e todas elas são bem parecidas. Bem, eu talvez chama­
ria essas duas de ‘verde’ e aquela de ‘azul’, e essa parece uma razão
tão boa quanto qualquer outra para juntar as fichas.” Nesses expe­
rimentos, a língua está, tecnicamente filiando, influenciando de
alguma maneira uma forma dc pensamento, mas e daí? Não é um
exemplo de visões de mundo incomensuráveis, ou de conceitos
inomináveis e portanto inimagináveis, ou de que dissecamos a na­
tureza ao longo de linhas estabelecidas por nossas línguas naturais
dc acordo com termos que são absolutamente obrigatórios.
O único achado rcalmente expressivo vem de Alfrcd Bloom,
lingüista e agora diretor do Swarthmore College, cm seu livro The
Linguistic Shapíng o f Thought. A gramática do inglês, diz Bloom, for­
nece aos seus falantes a construção subjuntiva: I f John were to go to
the hospital, he would rneet Mary [Se John fosse ao hospital, encontraria
М агу]. O subjuntivo é usado para expressar situações “contrafac-
tuais”, eventos sabidamente falsos mas admitidos enquanto hipó­
teses. (Qualquer pessoa familiarizada com o iídiche conhece um
exemplo melhor, a réplica inevitável a quem pensa a partir de pre­
missas improváveis: Az di bobe voltgehat beytsím volt zi geven mayn zeyàe,
“Se minha avó tivesse testículos, ela seria meu avô”.) Em contra­
partida, o chinês não tem subjuntivo ou qualquer outra constru­
ção gramatical simples que exprima diretamente um contrafac-

73
I O instinto da linguagem I

tual. Tal idéia tem de ser expressa indiretamente, mais ou menos


assim: “Se John for para o hospital... mas ele não vai para o hos­
pital... mas se ele for, ele encontra Mary.” Bloom escreveu histó­
rias contendo seqüências de implicações decorrentes de uma pre­
missa contrafactual e mostrou-as para estudantes chineses e ame­
ricanos. Por exemplo, o resumo de uma história era: “Bier foi um
filósofo europeu do século 18. Naquela época havia alguns conta­
tos entre o ocidente e a China, mas muitos poucos estudos de fi­
losofia chinesa tinham sido traduzidos. Bier não sabia ler chinês,
mas sc soubesse ler chinês, teria descoberto В; o que mais o teria
influenciado teria sido C; depois de ter sido influenciado por
aquele ponto dc vista chinês, Bier teria feito D ”, e assim por dian­
te. Pcdia-sc então aos sujeitos para verificar se В, С c I) tinham de
fato ocorrido. Os estudantes americanos deram a resposta correta
—não —em noventa c oito por cento dos casos; os chineses deram
a resposta correta cm apenas sete por cento dos casos! Bloom
concluiu que a língua chinesa torna seus falantes incapazes de ad­
mitir dizeres hipotéticos falsos sem um grande esforço mental.
(Até onde sei, ninguém testou a predição contrária com falantes
dc iídiche.)
Os psicólogos cognitivosTcrry Au, Yohtaro Takano c Lisa Liu
não ficaram propriamente encantados com esses contos sobre a
concrctude da mente oriental. Cada um deles identificou graves
falhas nos experimentos de Bloom. Um dos problemas era que
suas histórias estavam escritas em chinês pomposo. Outro proble­
ma encontrado foi que depois de cuidadosas releituras, verificou-
se que as histórias científicas eram genuinamente ambíguas. Os
universitários chineses tendem a ter uma melhor formação científi­
ca do que os americanos, e portanto tinham mais condições de de­
tectar ambigüidades que o próprio Bloom. Consertadas essas fa­
lhas, as diferenças desapareceram.

74
I Mentalês I

Há de se perdoar as pessoas por sobrestimarem a linguagem.


Palavras fazem barulho ou então se encontram numa folha de pa­
pel, audíveis e visíveis para todos. Os pensamentos estão presos
na cabeça do pensador. Para saber o que alguém está pensando, ou
para conversarmos sobre a natureza do pensamento, temos de usar
—o quê? Palavras! Não é de espantar que muitos comentadores te­
nham dificuldade até mesmo para imaginar o pensamento sem
palavras —ou será que eles simplesmente não têm a língua para fa­
lar sobre isso?
Na qualidade de cientista cognitivo posso me dar o direito de
ser presunçoso e afirmar que o senso comum está correto (o pen­
samento é diferente da linguagem) e que o determinismo lingüís-
tico é um absurdo convencional. Isso porque hoje dispomos de
dois conjuntos de ferramentas que ajudam a pensar com clareza
sobre esse problema como um todo. Um deles é um corpo de es­
tudos experimentais que rompem a barreira da palavra e dão aces­
so a vários tipos de pensamento não-verbal. O outro é uma teoria
sobre o funcionamento do pensamento que formula as questões
dc uma maneira satisfatoriamente precisa.
Já vimos um exemplo de pensamento sem linguagem: o Sr.
Ford, o afásico plenamente inteligente discutido no Capítulo 2.
(Poder-se-ia, contudo, argumentar que suas capacidades de pensa­
mento foram construídas antes do derrame, sobre a base da lin­
guagem que ele então possuía.) Também ficamos conhecendo
crianças deficientes auditivas carentes de linguagem que logo in­
ventavam uma. Ainda mais pertinente foi a descoberta de defi­
cientes auditivos adultos totalmente destituídos de linguagem —
nem língua de sinais, nem escrita, nem leitura labial, nem fala. Em
seu livro recentemente publicado A Man Witbout Words, Susan
Schaller conta a história de Ildefonso, um imigrante ilegal de vin­
te e sete anos nascido num pequeno vilarejo mexicano, que ela co­
nheceu em Los Angeles quando trabalhava de intérprete de lín­
gua de sinais. O olhar vivo de Ildefonso transmitia inteligência e

75
I O instinto da linguagem I

curiosidade indiscutíveis, e Schaller se ofereceu para ser sua pro­


fessora e acompanhante. Ele logo mostrou a ela que compreendia
perfeitamente os números: aprendeu a fazer a conta de adição no
papel em três minutos e não teve muita dificuldade para com­
preender a lógica da base decimal por trás dos números de dois
dígitos. Numa revelação que lembra a história de Helen Keller, II-
defonso compreendeu o princípio da nomeação quando Schaller
tentou ensinar a ele o sinal para “gato”. Um dique se rompeu, c
ele pediu que lhe mostrasse os sinais para todos os objetos que
conhecia. Logo pôde transmitir a Schaller fragmentos de sua his­
tória dc vida: quando criança, seus pedidos desesperados para que
os pais pobres o mandassem para a escola, os tipos de colheitas dc
que participara cm diversos estados, as escapadas das autoridades
dc imigração. Conduziu Schaller ate outros adultos sem lingua­
gem cm recantos esquecidos pela sociedade. Apesar dc seu isola­
mento do mundo verbal, eles revelavam várias formas abstratas dc
pensamento, como remontar fechaduras quebradas, manipular di­
nheiro, jogar cartas e entreter-se entre si com longas narrativas
através da mímica.
Só podemos ter conhecimentos impressionistas sobre a vida
mental dc Ildefonso e outros adultos destituídos de linguagem por
motivos ét icos: quando eles aparecem, a principal prioridade é en­
sinar-lhes linguagem, c não estudar como se viram sem ela. Mas
existem outros seres destituídos de linguagem que foram estuda­
dos cxperimentalmcntc, c muitos volumes foram escritos sobre
como eles pensam sobre espaço, tempo, objetos, quantidade, velo­
cidade, causalidade e categorias. Relato a seguir três exemplos en­
genhosos. Um deles é com bebês, que não podem pensar com pa­
lavras porque ainda não aprenderam nenhuma. Outro é com ma­
cacos, que não podem pensar com palavras porque são incapazes
de aprendê-las. O terceiro envolve adultos humanos, que, quer pen­
sem ou não com palavras, afirmam que suas melhores idéias ocor­
rem sem a intervenção delas.

76
I Mentalês I

A psicóloga experimental Karen Wynn mostrou recentemente


que bebês de cinco meses conseguem realizar uma forma simples
de aritmética mental. Usou uma técnica comum nas pesquisas de
percepção infantil. Se você mostrar a um bebê uma coleção de ob­
jetos suficientemente grande, o bebê fica entediado e olha para
outro lado; se você mudar a cena, e se o bebê perceber a diferença,
ele ou ela vai se interessar de novo. A metodologia mostrou que
bebês de cinco dias são sensíveis à quantidade. Num experimento,
um experimentador entedia um bebê com um objeto, depois es­
conde o objeto com um anteparo opaco. Quando o anteparo é re­
tirado, se o mesmo objeto estiver presente, os bebês olham por al­
guns instantes, c depois ficam novamente entediados. Mas se, por
meio de algum subterfúgio invisível, aparecerem dois ou três ob­
jetos no lugar do primeiro, os bebês surpresos olharão por mais
tempo.
No experimento de Wynn, mostrou-se aos bebês um Mickey
Mouse dc borracha sobre um palco até que seus olhinhos se des­
viassem. O anteparo apareceu, c uma mão saltitantc bem visível
surgiu por trás dc uma cortina e colocou um segundo Mickey
Mouse atrás do anteparo. Quando este foi retirado, se houvesse
dois Mickey Mouscs visíveis (algo que os bebês nunca tinham vis­
to), os bebes olhavam apenas por alguns instantes. Mas se houves­
se apenas um boneco, os bebês ficavam cativados —mesmo que
essa fosse exatamente a cena que os entediara antes que o antepa­
ro fosse colocado. Wynn também testou um segundo grupo de
bebês, e dessa vez, depois de o anteparo ser colocado para ocultar
um par de bonecas, uma mão visivelmente aparecia por trás do an­
teparo e retirava um deles. Se, depois de levantado o anteparo,
aparecesse apenas um Mickey, os bebês olhavam brevemente; se
aparecesse a antiga cena com dois, os bebês custavam mais a des­
viar os olhos. Os bebês devem ter ficado atentos a quantos bone­
cos havia por trás do anteparo, atualizando sua contagem à medi­
da que bonecos eram adicionados ou subtraídos. Se a quantidade

77
I O instinto da linguagem I

diferia inexplicavelmente do que esperavam, perscrutavam a cena,


como se buscassem alguma explicação.
Os macacos vervetes vivem em grupos estáveis de machos e fê­
meas adultos e sua prole. Os primatologistas Dorothy Cheney e
Robert Seyfarth observaram que famílias extensas formam alianças
como os Montéquios e Capuletos. Numa interação típica por eles
observada no Quênia, um macaco jovem atirou outro ao chão gri­
tando. Vinte minutos depois a irmã da vítima se aproximou da
irmã do atacante e sem ser provocada mordeu seu rabo. Para que a
vingadora tivesse identificado o alvo adequado, teria de ter resolvi­
do o seguinte problema de analogia: A (vítima) está para В (eu)
como C (atacante) está para X, usando a relação correta “irmã de”
(ou talvez apenas “parente de”; Cheney e Seyfarth não podiam ter
certeza porque não havia vervetes suficientes no parque).
Será que os macacos realmente conhecem as relações entre os
membros dc seu grupo, e, o que seria mais impressionante, será
que entendem que diferentes pares de indivíduos como irmãos c
irmãs podem ser relacionados de uma mesma maneira? Cheney c
Seyfarth esconderam um alto-falante atrás de uma moita c toca­
ram fitas com o som de um macaco de dois anos gritando. As fê­
meas que se encontravam naquela área reagiram olhando para a
mãe do filhote cuja voz fora gravada —mostrando não só que re­
conheciam o filhote pelo grito mas que também lembravam quem
era sua mãe. Habilidades similares foram encontradas entre os sa­
guis que Verena Dasser convenceu a entrar num laboratório anexo
a um grande cercado ao ar livre. Foram projetados três slides: uma
mãe no centro, um de seus filhotes de um lado e outro macaco jo­
vem mas sem parentesco da mesma idade e sexo do outro. De­
baixo de cada tela havia um botão. Depois de o macaco ter sido
treinado a apertar o botão debaixo do slide do filhote, foi testado
com imagens de outras mães do grupo, cada uma delas ladeada
por uma imagem do filhote daquela mãe e uma de outro jovem.
M ais de noventa por cento das vezes o macaco identificava o fi­

78
IMentalês I

lhote. Em outro teste, foram mostrados dois slides, cada um com


um par de macacos, e o macaco era treinado a apertar o botão sob
o slide que mostrava uma determinada mãe com sua pequena fi­
lha. Ao deparar com slides de outros macacos do grupo, o maca­
co sempre escolhia o par mãe-e-filhote, quer o filhote fosse ma­
cho, fêmea, bebê, jovem ou adulto. Além disso, para reconhecer
que eram parentes, os macacos pareciam basear-se não só em se­
melhanças físicas entre certos pares de macacos, ou apenas no nú­
mero de horas que já tinham passado juntos, mas em algo mais
sutil na história de sua interação. Cheney e Seyfarth, que dão duro
para tomar nota de quem é parente de quem e de que maneira nos
grupos de animais que estudam, comentam que os macacos da­
riam excelentes primatologistas.
Muitas pessoas criativas afirmam que em seus momentos mais
inspirados pensam, não com palavras, mas com imagens mentais.
Samuel Taylor Coleridge escreveu que imagens visuais de cenas e
palavras apareceram-lhe certa vez involuntariamente quando se
encontrava num estado onírico (talvez induzido por ópio). Con­
seguiu anotar as primeiras quarenta linhas no papel, o que resul­
tou no poema que conhecemos pelo título de “Kubla Khan”, an­
tes que uma batida na porta desmanchasse as imagens e apagasse
para sempre aquilo que teria sido o resto do poema. Muitos ro­
mancistas contemporâneos, como Joan Didion, relatam que seus
atos de criação não começam com a concepção de uma persona­
gem ou trama mas com imagens mentais vividas que ditam sua es­
colha de palavras. O escultor moderno James Surls planeja seus
projetos deitado num sofá escutando música; manipula as escul­
turas dentro de seu olho mental —diz ele —colocando um braço,
tirando um braço, vendo as imagens rolarem e tombarem.
Físicos são ainda mais inflexíveis quando afirmam que seu pen­
samento é geométrico e não-verbal. Michael Faraday, o criador de
nossa moderna concepção de campos elétricos e magnéticos, não
tinha qualquer formação em matemática mas fez suas descobertas

79
I O instinto da linguagem I

visualizando linhas de força como tubos estreitos descrevendo


curvas no espaço. James Clerk Maxwell formalizou os conceitos
de campos eletromagnéticos num conjunto de equações matemá­
ticas e é considerado o primeiro exemplo de um teórico abstrato,
mas ele só chegou às equações depois de brincar mentalmente
com complexos modelos imaginários de folhas e fluidos. A idéia
de Nikola Tcsla do motor c gerador elétricos, a descoberta de
Fricdrich Kckuld do anel de benzeno, que impulsionou a moder­
na química orgânica, a invenção por Ernest Lawrcncc do ciclo-
tron, a descoberta por James Watson e Francis Crick da dupla hé­
lice do DNA —tudo isso partiu de imagens. O mais famoso auto-
intitulado pensador visual foi Albcrt liinstein, que chegou a algu­
mas de suas descobertas imaginando a si mesmo montado num
facho de luz c olhando para um relógio situado atrás, ou deixan­
do cair uma moeda dentro dc um elevador cm queda. Nas suas
palavras:

As entidades físicas que parecem servir de elementos para o pensa­


mento são certos indícios e imagens mais ou menos claros, que po­
dem ser "voluntariamente” reproduzidos c combinados... Hsse jogo
combinatório parece ser o aspecto essencial do pensamento produ­
tivo —antes de qualquer conexão com construções lógicas expressas
em palavras ou outros tipos dc signos que possam ser comunicados
aos outros. Os elementos acima mencionados são, no meu caso, de
t ipo visual c um pouco muscular. Somente numa segunda fase c que
palavras convencionais ou outros signos têm dc ser laboriosamente
buscados, quando o jogo associativo mencionado estiver suficicnte-
mente estabelecido c puder ser reproduzido à vontade.

Outro cientista criativo, o psicólogo cognitivo Roger Shepard,


teve seu momento de súbita inspiração visual, que deu origem a
uma clássica demonstração de laboratório do imaginário mental
em meros mortais. Uma manhã bem cedo, suspenso entre o sono
e a vigília num estado de lúcida consciência, Shepard experimen­

80
IMentalês I

tou “uma imagem cinética espontânea de estruturas tridimensio­


nais girando majestosamente no espaço”. Numa fração de segun­
dos e antes de acordar completamente, Shepard teve uma idéia
clara do desenho de um experimento. Uma variante simplificada
de sua idéia foi mais tarde desenvolvida com seu então discípulo,
Lynn Cooper. Cooper e Shepard exibiram milhares de slides, cada
um com uma única letra do alfabeto, aos seus pacientes alunos vo­
luntários. As letras ora estavam em posição vertical, ora inclinadas
ou especularmente invertidas ou ambos. A título de exemplo, eis
as dezesseis versões da letra F:

P X 4 ~n J sX '-L- 4
1 У Ш X/ t ГТ- X
0 +45 +90 +135 180 -135 -90 -45

Pcdia-se aos sujeitos para apertar um botão se a letra era nor­


mal (ou seja, como uma das letras da linha superior do diagrama),
outro se fosse uma imagem especular (como uma das letras da linha
inferior). Para realizar a tarefa, os sujeitos tinham de comparar a le­
tra do slide com algum registro mnemônico da versão normal da
letra quando está na posição vertical. E claro que o slide da posi­
ção vertical (0 grau) é o mais rápido, porque combina exatamen­
te com a letra guardada na memória, mas no tocante às outras
orientações, é preciso primeiro fazer alguma transformação men­
tal para a posição vertical. Muitos sujeitos relataram que, como os
famosos escultores c cientistas, eles “giravam mentalmente” uma
imagem da letra para a posição vertical. Observando os tempos de
resposta, Shepard e Cooper demonstraram que essa introspecção
era exata. As letras verticais eram as mais rápidas, seguidas das le­
tras com inclinações de 45 graus, de 90 graus e de 135 graus, sen­
do as de 180 graus (de cabeça para baixo) as mais lentas. Em ou­
tras palavras, quanto mais os sujeitos tinham de girar mentalmen­
te a letra, mais tempo isso demorava. A partir dos dados, Cooper

81
I O instinto da linguagem I

e Shepard avaliaram que letras giram na mente numa velocidade


de 56 RPM .
Note-se que se os sujeitos estivessem manipulando algo que se
parecesse com descrições verbais das letras, tal como “um traço verti­
cal com um segmento horizontal que se estende para a direita a
partir da extremidade superior e outro segmento horizontal que
se estende para a direita a partir do meio do traço”, os resultados
teriam sido bem diferentes. Dentre todas as letras invertidas, as
versões de cabeça para baixo (1 80 graus) deveríam ser as mais rá­
pidas: basta trocar todos os “superior” por “inferior” e vice-versa,
e os “esquerda” por “direita” e vice-versa, e tem-sc uma nova des­
crição da forma da maneira como ela aparecería cm posição verti­
cal, que combina com a memória. As letras viradas dc lado (90
graus) deveríam ser mais lentas, porque “superior” tem dc ser trans­
formado ou cm “direita” ou em “esquerda”, dependendo se estão
viradas em sentido horário (+ 90 graus) ou anti-horário ( —90 graus)
em relação à posição vertical. Letras na diagonal (45 e 135 graus) de­
veríam ser mais lentas ainda, porque cada palavra da descrição tem
de ser substituída: “superior” tem de ser substituído ou por “su­
perior à direita” ou por “superior à esquerda” etc. Portanto, a ordem
de dificuldade deveria ser 0, 180, 90, 45, 135, e não a majestosa
rotação de 0, 45, 90, 135, 180 que Cooper e Shepard encontra­
ram nos dados. Muitos outros experimentos corroboraram a ide'ia
dc que o pensamento visual não usa linguagem mas um sistema dc
gráficos mentais, com operações que giram, cortam, aproximam c
afastam, dão visões panorâmicas, deslocam e completam padrões
de contornos.

Que conclusões podemos, pois, tirar da sugestão de que ima­


gens, quantidades, relações de afinidade ou de lógica podem ser
representadas no cérebro sem o apoio de palavras? N a primeira
metade do século 20, a resposta dos filósofos era: nenhuma. Rei-

82
IMentalês I

ficar pensamentos como se fossem coisas na cabeça constituía um


erro lógico. Um quadro, árvore genealógica ou número na cabeça
exigia, segundo eles, um homenzinho, um homúnculo que olhasse
para isso. E o que havería dentro da cabeça dele —quadros ainda
menores, com um homem ainda menor olhando para eles? Era
uma idéia infundada. Coube a Alan Turing, o brilhante matemáti­
co e filósofo inglês, tornar a idéia de representação mental cientifi­
camente respeitável. Turing descreveu uma máquina hipotética que
supostamente podia raciocinar. Com efeito, esse mecanismo sim­
ples, chamado Máquina de Turing em sua homenagem, é capaz de
resolver qualquer problema que qualquer computador, passado,
presente ou futuro, consegue resolver. E, para isso, ela usa uma re­
presentação simbólica interna —uma espécie de mentalês —sem a
necessidade de um homenzinho ou outro processo oculto. Exami­
nando o funcionamento de uma máquina de Turing, podemos
compreender o que significaria uma mente humana pensar em men­
talês em vez de pensar em inglês ou em outro idioma qualquer.
Raciocinar é, essencialmente, deduzir novos conhecimentos a
partir de conhecimentos antigos. Um exemplo simples é a conhe­
cida anedota da lógica introdutória: se vocc sabe que Sócrates é
um homem e que todos os homens são mortais, pode-se concluir
que Sócrates é mortal. Mas como é que um naco de matéria como
um cérebro pode realizar esse feito? A primeira idéia-chave é uma
representação: um objeto físico cujas partes e organização interna
correspondem ponto por ponto a um conjunto de idéias ou fatos.
Por exemplo, o desenho em tinta nesta página

Sócrates éum homem

83
I O instinto da linguagem I

é uma representação da idéia de que Sócrates é um homem. A for­


ma de um grupo de marcas de tinta, Sócrates, é um símbolo que
corresponde ao conceito de Sócrates. A forma de outro grupo de
marcas de tinta, éum, corresponde ao conceito de ser um exemplo
de, c a forma do terceiro, homem, corresponde ao conceito de ho­
mem. Mas uma questão é crucial. Coloquei essas marcas de tinta
na forma de palavras da sua língua por mera cortesia a você, lei­
tor, para que vocc possa mantê-las sempre presentes enquanto tra­
balhamos com o exemplo. O que realmente importa, no entanto,
é que elas têm diferentes formas. Poderia ter usado uma estrela dc
Davi, um rosto sorridente ou a logomarca da Mercedes-Benz, des­
de que as usasse de modo coerente.
No mesmo sentido, o fato de que as marcas dc tinta Sócrates
encontram-se à esquerda das marcas de tinta éum na página c que
as marcas homem estão à direita, corresponde à idéia de que Só­
crates é um homem. Sc eu mudar qualquer parte da representação,
como substituir cum por éumfilhoda, ou inverter as posições de
Sócrates c homem, teríamos a representação de uma idéia dife­
rente. 1 ambém, aqui, a ordem portuguesa esquerda para a direita é
apenas um dispositivo mnemônico usado para a sua conveniência.
Poderia ter inscrito isso da direita para a esquerda ou de cima para
baixo, desde que usasse sempre a mesma ordem.
Mantendo essas convenções cm mente, imagine agora que a pá­
gina tem um segundo conjunto dc marcas dc tinta, que represen­
ta a proposição dc que todo honrem é mortal:

Sócrates éum homem


Todo homem émortal

84
I Mentalês I

Para desencadear o raciocínio, precisamos agora de um processa­


dor. Um processador não é um homenzinho (portanto, não precisa­
mos nos preocupar com uma infinita regressão de homúnculos
dentro de homúnculos), mas algo bem mais estúpido: um aparelho
com um número fixo de reflexos. Um processador pode reconhecer
diferentes elementos de uma representação e fazer algo em resposta,
incluindo alterar a representação ou fazer representações novas. Por
exemplo, imagine uma máquina que pode percorrer uma página im­
pressa. Ela dispõe de um gabarito com a forma da seqüência de le­
tras éum, e um sensor luminoso capaz de indicar quando o gabari­
to sc sobrepõe a um conjunto de marcas de tinta com exatamente a
mesma forma. O sensor está conectado a uma pequena copiadora
dc bolso, capaz de reproduzir qualquer conjunto de marcas de tin­
ta, imprimindo marcas idênticas em algum outro lugar da página
ou impressionando-as sobre um novo gabarito.
Imagine agora que essa máquina sensora-copiadora-desloca-
dora dispõe dc quatro reflexos. Primeiro, faz a página rolar para
baixo, c, cada vez que detecta uma marca éum, desloca-se para a
esquerda c copia a marca de tinta que ali encontra para o canto in­
ferior esquerdo da página. Na nossa página, ela criaria o seguinte:

Sócrates éum homem


Todo homem émortal

Sócrates

Seu segundo reflexo, também em resposta a encontrar um


éum, é deslocar-se para a direita desse éum e copiar qualquer mar­
ca de tinta que encontrar ali para um novo gabarito. No nosso

85
I O instinto da linguagem I

caso, isso obriga o processador a fazer um gabarito na forma de


homem. Seu terceiro reflexo é percorrer a página à procura de mar­
cas de tinta com a forma de Todo e, se encontrar alguma, verificar
se as marcas de tinta à direita coincidem com o novo gabarito. No
nosso exemplo, ela encontra uma: o homem no meio da segunda
linha. Seu quarto reflexo, depois de encontrar essa combinação, é
deslocar-se para a direita e copiar as marcas de tinta que ali en­
contra para o centro inferior da página. No nosso exemplo, trata-
se das marcas émortal. Se você estiver me seguindo, verá que ago­
ra sua página aparece assim:

Sócrates éum homem


Todo homem émortal

Sócrates émortal

O que aconteceu foi um tipo primitivo de raciocínio. Basi­


camente, embora o dispositivo c a página em que é aplicado reve­
lem colctivamcnte um tipo dc inteligência, nada neles mesmos c
inteligente. Dispositivo e página nada mais são que um monte dc
marcas de tinta, gabaritos, fotocélulas, lasers e cabos. O que torna
o mecanismo inteligente é a exata correspondência entre a regra
do lógico “Se X é um Y e todo Y é Z, então X é Z ” e o modo
como o dispositivo corta, desloca e imprime. Falando em termos
lógicos, “X é um Y ” significa que o que é verdadeiro para Y o é
também para X, e falando em termos mecânicos, X éum Y faz
com que o que esteja impresso depois de Y também seja impresso
depois de X. Seguindo cegamente as leis da física, a máquina ape­
nas responde à forma da marca de tinta éum (sem compreender o

86
IMentalês I

que ela significa para nós) e copia outras marcas de tinta, de tal
forma que acaba por imitar a operação da regra lógica. O que a
torna “inteligente” é que a seqüência de identificar, mover e co­
piar resulta em imprimir uma representação de uma conclusão
que é verdadeira se e somente se a página contiver representações
de premissas que são verdadeiras. Turing mostrou que se dermos à
máquina todo o papel de que ela necessita, ela pode fazer tudo o
que um computador pode fazer —e talvez, supunha ele, qualquer
coisa que uma mente encarnada num corpo pode fazer.
Bem, esse exemplo usa marcas de tinta em papel como repre­
sentação e uma máquina que copia, desloca e identifica como pro­
cessador. Mas a representação pode estar em qualquer meio físi­
co, desde que os padrões sejam usados de forma consistente. No
cérebro, pode haver três grupos de neurônios, um usado para re­
presentar para o indivíduo a que a proposição se refere (Sócrates,
Aristóteles, Rod Stewart etc.), outro para representar as relações
lógicas dentro da proposição (é um, não é, é igual a etc.), e outro
para representar a classe ou tipo em que o indivíduo está sendo
incluído (homens, cães, galinhas etc.). Cada conceito correspon­
dería ao disparo de um determinado neurônio; por exemplo, no
primeiro grupo de neurônios, o quinto neurônio poderia disparar
para representar Sócrates e o décimo sétimo, para representar Aris­
tóteles; no terceiro grupo, o oitavo neurônio dispararia para re­
presentar homens, o décimo segundo neurônio, para representar
cães. O processador poderia ser uma rede de outros neurônios
que alimenta esses grupos, conectando-os de forma a reproduzir
o padrão de disparo de um grupo de neurônios em outro grupo
(por exemplo, se o oitavo neurônio dispara no grupo 3, a rede do
processador ativaria o oitavo neurônio num quarto grupo em al­
gum outro lugar do cérebro). Ou isso tudo poderia se dar em
chips de silício. Nos três casos, no entanto, os princípios são os
mesmos. O modo como os elementos do processador estão liga­
dos leva-os a identificar e copiar pedaços de uma representação, e

87
I O instinto da linguagem I

a produzir novas representações, de uma maneira que imita as re­


gras do raciocínio. Com milhares de representações e um conjun­
to de processadores mais sofisticados (quem sabe outros tipos de
representações e de processadores para outros tipos de pensamento),
poderiamos ter um cérebro ou computador efetivamente inteli­
gente. Adicione a isso um olho que possa detectar certos contornos
no mundo c ativar representações que os simbolizem, e múscu­
los que podem agir sobre o mundo sempre que certas representa­
ções que simbolizam metas são ativadas, e você terá um organismo
cm funcionamento (ou acrescente uma câmara de TV, alavancas c
rodas, e você terá um robô).
Em poucas palavras, essa c teoria do pensamento denominada
“hipótese do sistema dc símbolos físicos” ou teoria “computacio­
nal” ou “representacional” da mente. Ela c tão fundamental para
a ciência cognitiva quanto a doutrina das células para a biologia e
a gcotectônica para a geologia. Psicólogos cognitivos c ncurocien-
tistas estão tentando descobrir que tipos dc representações c dc
processadores o cérebro tem. Mas há certas regras básicas: não
existe nenhum homenzinho dentro da cabeça, e não sc trata dc es­
piar pelo buraco da fechadura. As representações mentais postula­
das têm de sei' arranjos dc símbolos, c o processador têm dc ser
um mecanismo com um certo número dc reflexos, c ponto final.
A combinação, agindo por si só, tem de produzir as conclusões
inteligentes. O teórico está proibido dc ficar espiando dentro da
mente para “ler” os símbolos, “dar-lhes sentido”, c ficar bisbilho-
tando a fim de conduzir o mecanismo para direções inteligentes
como se fosse um deus ex machina.

Já dispomos dos elementos para formular a questão whorfiana


de maneira precisa. Lembre-se que a representação não precisa pa­
recer português ou qualquer outra língua; precisa apenas usar sím-

88
IMentalês I

bolos para representar conceitos, e arranjos de símbolos para re­


presentar as relações lógicas entre eles, de acordo com algum es­
quema coerente1. Embora as representações internas na mente de
um falante de português não tenham âe parecer português, poderíam,
em princípio, parecer português —ou qualquer língua que a pes­
soa fale. Portanto, eis a questão: Parecem português? Por exemplo,
se sabemos que Sócrates é um homem, é porque temos padrões
ncurais que correspondem um a um às palavras portuguesas Sócra­
tes, é, um c homem, e grupos de neurônios no cérebro, que corres­
pondem ao sujeito, verbo c objeto de uma frase em português,
dispostos nesta ordem? Ou será que usamos outro código para re­
presentar conceitos e suas relações nas nossas cabeças, uma língua
dc pensamento ou mentalês diferente dc todas as línguas do mun­
do? Podemos responder a essa pergunta verificando se as frases em
português incorporam as informações de que um processador ne­
cessitaria para realizar sequências válidas de raciocínio sem preci­
sar de nenhum liomúnculo inteligente dentro dele para fazer a
parte da “compreensão”.
Л resposta c claramcnte não. O português (ou qualquer outra
língua que as pessoas falam) c irremediavelmente inútil como nos­
so meio interno dc computação. Consideremos alguns dos pro­
blemas.
O primeiro c a ambiguidade. As frases a seguir foram tiradas de
manchetes dc jornais em língua inglesa:

Child's Stool Grcat for Use in Gardcn [ Banquinho/Vezes de criança exce­


lente para jardins |
Stud Tires Out [Coluna cede/O garanhão se exauriu]
Stiff Opposition Expcctcd to Caskctlcss Funeral Plan [Espera-se opo­
siçãoferrenha/ de cadáveres a projeto defunerais sem caixão]
Drunk Gets Nine Months in Violin Case [Bêbado é condenado a nove
meses no caso do violino/em caixa de violino]

I. Exemplos adaptados para o português. (N. da T.)

89
I O instinto da linguagem I

Iraqi Head Seeks Arms [Presidente iraquiano procura armas/Cabeça ira­


quiana procura braços]
Queen Mary Having Bottom Scraped [Fundo do Queen Mary transfor­
mado emferro velho/ A Rainha Maria está com osfundilhos emfrangalbos\
Columnist Gets Urologist inTrouble with His Peers [Colunista deixa
urologista complicado com seus colegas/suas espiadelas]

Cada manchete contém uma palavra ambígua. A idéia por trás


da palavra sem dúvida não é ambígua; quem escreveu essas man­
chetes certamente sabia em qual dos dois sentidos das palavras
stool, stud e stiff estava pensando. E se pode haver duas idéias que
correspondam a uma só palavra, os pensamentos não podem ser
palavras.
O segundo problema com o português (ou outra língua) é sua
falta de explicitação lógica. Considere o seguinte exemplo, conce­
bido pelo especialista cm computadores Drew McDermott:

Ralph é um elefante.
Elefantes vivem na África.
Elefantes têm presas.

Nossa máquina de fazer inferências, depois de algumas peque­


nas modificações para lidar com a gramática das frases em portu­
guês, deduziría que “Ralph vive na África” e que “Ralph tem pre­
sas”. Parece correto mas não é. Você, leitor, que c inteligente, sabe
que a África em que Ralph vive é a mesma África em que todos os
outros elefantes vivem, mas que as presas de Ralph são só. dele.
Mas o sensor-copiador-deslocador de símbolos, que supostamen­
te é um modelo do que você é, não sabe disso, porque essa distin­
ção não se encontra em nenhuma das afirmações. Se você objetar
que é uma questão de bom senso, estará certo —mas o que esta­
mos tentando explicar é justamente o bom senso, e as frases em
português não incluem a informação que um processador precisa
para colocar em operação o bom senso.

90
IMentalês I

Um terceiro problema é chamado de “co-referência”. Diga­


mos que você comece a falar sobre alguém referindo-se a essa pes­
soa como o homem loiro alto com um sapato preto. Na segunda referên­
cia a ele na conversa é provável que você se refira a ele como o ho­
mem; e na terceira, apenas como ele. Mas as três expressões não se
referem a três pessoas ou a três maneiras de pensar sobre uma
mesma pessoa; a segunda e a terceira são apenas modos de poupar
fôlego. Algo no cérebro tem de tratá-las como uma mesma coisa;
mas não é o português que fará isso.
Um quarto problema, relacionado com os anteriores, decorre
daqueles aspectos da língua que só podem ser interpretados no
contexto de uma conversa ou texto —o que os lingüistas chamam
de “dêixis”. Considere artigos como um e o. Qual a diferença entre
matou um policial e matou o policial} A única diferença é que, na segun­
da frase, supõe-se que um determinado policial já foi mencionado
antes ou se destaca no contexto. Portanto, isoladas, ambas as fra­
ses são sinônimas, mas nos contextos a seguir (o primeiro deles
retirado de um artigo de jornal) seus sentidos são completamente
diferentes:

O filho de 14 anos de um policial, aparentemente enfurecido depois


de ter sido castigado por causa de notas ruins, abriu fogo de
dentro de sua casa, matando um policial c ferindo três pessoas antes
de ser atingido mortalmente.
O filho de 14 anos de um policial, aparentemente enfurecido depois
de ter sido castigado por causa de notas ruins, abriu fogo de
dentro de sua casa, matando o policial e ferindo três pessoas antes
de ser atingido mortalmente.

Portanto, fora de uma conversa ou texto específicos, as palavras


u m e o carecem de sentido. Não têm um lugar na nossa base perma­
nente de dados mentais. Outras palavras que dependem de contex­
to como aqui, ali, isto, aquilo, agora, então, eu, mim, meu, dela, nós e você pro­
vocam os mesmos problemas, como ilustra a conhecida piada:

91
I O instinto da linguagem I

Homem I : Não dormi com a minha mulher antes de casar, e você?


Homem 2: Não sei. Qual era o nome de solteira dela?

O quinto problema é a sinonímia. As frases

Sam borrifou a parede com tinta.


Sam borrifou com tinta a parede.
A parede foi borrifada com tinta por Sam.
Tinta foi borrifada na parede por Sam.

rcfcrem-sc ao mesmo acontecimento c portanto dão lugar a mui­


tas inferências semelhantes. Por exemplo, nos quatro casos, pode-
se concluir que há tinta na parede. Mas há quatro arranjos diferen­
tes de palavras. Você sabe que querem dizer a mesma coisa, mas
nenhum processador simples, passando por elas como marcas, sa­
bería isso. Algo além desses arranjos dc palavras deve estar repre­
sentando o único acontecimento que você sabe ser comum às
quatro frases. Por exemplo, o acontecimento poderia ser represen­
tado assim:

borr:i I<ii. l inl.,i(


-) onuou (I int.üq ir para (na parado))

—o que, supondo que não levemos as palavras portuguesas a sério,


não dista muito de uma das principais propostas de como seria o
mentalês.
Usscs exemplos (c existem muitos outros) ilustram um ponto
importante. As representações subjacentes ao pensamento, por
um lado, e as frases de uma língua, por outro, não se entendem
bem por vários motivos. Qualquer pensamento na nossa cabeça
abarca grande quantidade de informação. Mas quando se trata dc
comunicar um pensamento a alguém, os períodos de atenção são
curtos e as bocas, lentas. Para conseguir colocar informação na
cabeça de um ouvinte num espaço de tempo razoável, o falante só
pode codificar uma fração da mensagem em palavras, contando

92
IMentalês I

com que o ouvinte complete o resto. M as dentro da cabeça de uma pes­


soa as exigências são outras. O tempo de transmissão não é lim i­
tado: diferentes partes do cérebro estão conectadas entre si direta­
mente através de cabos grossos capazes de transferir quantidades
enormes de informação rapidamente. No entanto, não se pode
deixar nada por conta da imaginação, porque as representações
internas são a imaginação.
Desembocamos no seguinte quadro. As pessoas não pensam
em português ou chinês ou apache; pensam numa língua do pen­
samento. Essa língua talvez se pareça um pouco com cada um
desses idiomas; é provável que tenha símbolos para conceitos, e
arranjos de símbolos que correspondem a quem fez o que para
quem, como na representação do borrifar com tinta expresso aci­
ma. No entanto, comparado com qualquer outra língua conheci­
da, o mentalês deve ser mais rico em alguns sentidos e mais sim­
ples cm outros. Deve ser mais rico, por exemplo, porque vários
símbolos conceituais devem corresponder a uma determinada pa­
lavra do idioma falado, como stool ou stud nos exemplos acima.
Deve haver uma parafernália extra para diferenciar tipos de con­
ceitos logicamente distintos, como presas de Ralph versus presas
em geral, e para ligar símbolos diferentes que se referem a uma
mesma coisa, como o o homem loiro alto com um sapato preto c o homem.
Por outro lado, o mentalês deve ser mais simples do que as línguas
faladas; não existem palavras e construções (como um c o) depen­
dentes do contexto, e informações sobre a pronúncia das palavras,
ou até mesmo sua ordem são desnecessárias. Talvez os falantes de
português pensem num quase-português simplificado e comenta­
do, como o exemplo descrito acima, e falantes de apache pensem
num quase-apache simplificado e comentado. Mas para que essas
línguas do pensamento sirvam ao raciocínio de modo adequado,
elas teriam de se parecer muito mais umas com as outras do que
seus equivalentes falados, e tudo leva a crer que elas não sejam di­
ferentes umas das outras: um mentalês universal.

93
I O instinto da linguagem I

Portanto, saber uma língua é saber como traduzir mentalês


para cadeias de palavras e vice-versa. Pessoas destituídas de lin­
guagem disporiam do mentalês, e bebês, assim como vários ani­
mais não-humanos, talvez disponham de dialetos mais simples.
Com efeito, se os bebês não dispusessem de um mentalês para tra­
duzir do e para o português, é difícil imaginar como poderia ocor­
rer a aprendizagem do português, ou até mesmo o que significaria
tal aprendizagem.
Dito isso, como fica a Novilíngua? Eis minhas previsões para o
ano 2050. Em primero lugar, já que a vida mental se desenvolve
independentemente de idiomas em particular, conceitos de liber­
dade e igualdade ainda serão pensáveis mesmo que não possam
ser nomeados. Em segundo lugar, já que existem muito mais con­
ceitos que palavras, e que os ouvintes sempre têm dc ter a gentile­
za de completar o que o falante deixa de dizer, as palavras existen­
tes rapidamente ganharão novos sentidos, quem sabe até recupe­
rando seus sentidos originais. Em terceiro lugar, já que as crianças
não se contentam em reproduzir o que é fornecido pelos adultos,
mas criam uma complexa gramática que pode ir muito além da
que recebem, poderíam crioulizar a Novilíngua transformando-a
numa língua natural, quem sabe em apenas uma geração. O bebê
do século 21 pode ser a vingança dc Winston Smith.

94
Como a linguagem funciona

4 Os jornalistas dizem que


um cachorro morder um
homem não é notícia, mas um homem morder um cachorro é no­
tícia. E essa a essência do instinto da linguagem: a linguagem
transmite notícias. As cadeias de palavras denominadas “frases”
não são apenas estimulantes da memória, que fazem você lembrar
do homem c do melhor amigo do homem, deixando que você
complete o resto; na verdade elas lhe dizem quem fez o que para
quem. Portanto, tiramos mais da maioria dos fragmentos de lin­
guagem do que o que Woody Allen tirou de Guerra e faz, que leu
em duas horas depois de um curso de leitura dinâmica: “E sobre
uns russos.” A linguagem nos permite saber como os polvos fazem
amor, como remover manchas de cereja e por queTad ficou incon­
solável, e se os Red Sox irão vencer o campeonato mundial sem
um bom arremessador reserva, e como construir uma bomba atô­
mica no porão da sua casa, e como Catarina, a Grande, morreu,
entre outras coisas.
Quando os cientistas deparam com truques aparentemente
mágicos na natureza, como morcegos que capturam insetos em
plena escuridão ou salmões que voltam para seu rio natal para re­
produzir, procuram os princípios de engenharia que existem por
trás deles. No caso dos morcegos, descobriu-se que o truque era

95
I O instinto da linguagem I

um sonar; no caso dos salmões, eles seguem pelo faro o rastro de seu
percurso. Que truque existe por trás da capacidade do Homo sapiens
de comunicar que homem morde cachorro?
Na verdade, não há um truque, mas dois, associados ao nome
dc dois estudiosos europeus do século dezenove. O primeiro prin­
cípio, estabelecido pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure, é
“a arbitrariedade do signo”, a combinação totalmente convencio­
nal dc um som com um significado. A palavra cachorro não sc pare­
ce com um cachorro, não anda como um cachorro, nem Iate como
um cachorro, mas mesmo assim significa “cachorro”. Isso aconte­
ce porque todo falante dc português passou por um idêntico ato
de aprendizagem mecânica na infância que liga o som ao signifi­
cado. Ao preço dessa memorização padronizada, os membros dc
uma comunidade linguística desfrutam dc um enorme benefício:
a possibilidade de transmitir um conceito dc mente para mente dc
modo praticamente instantâneo. As vezes o casamento entre som
e significado é engraçado. Como Richard Lcdercr comenta em
Crazy làglish, wc drive on a parhway mas park in a driveway, não existe
bani |presunto J no hamhurger ou hreaâ [pão] em sweetbreads [timo], c
blueberries são bine [ azuis |mas cmnberríes não são cran [garças], Mas
pense na alternativa “sensata” dc descrever um conceito de modo
que os receptores possam apreender o significado a partir dc sua
íorma. li um processo que desafia de tal forma, a inventividade,
tão comicamcnfe falível, que o transformamos em jogos como
Imagem c Ação c charadas.
O segundo truque existente por trás do instinto da linguagem
pode ser sintetizado numa formulação dc Wilhclm von Hunt-
boldt, que pressagiava Chomsky: a língua “faz um uso infinito dc
meios finitos”. Percebemos a diferença entre o corriqueiro cachorro
morde homem c o inaudito homem morde cachorro devido à ordem em
que cachorro, homem e morde estão combinados. Ou seja, utilizamos
um código para traduzir ordens de palavras em combinações de
idéias e vice-versa. Esse código, ou conjunto de regras, chama-se

96
1 Como a linguagem funciona I

gramática gerativa; como já afirmei, não se deve confundi-la com


as gramáticas pedagógicas e estilísticas que aprendemos na escola.
O princípio que subjaz à gramática não é muito comum no
mundo natural. A gramática é um exemplo de “sistema combina-
tório discreto". Um número finito de elementos discretos (neste
caso, palavras) é selecionado, combinado e permutado para criar
estruturas maiores (neste caso, sentenças) com propriedades bas­
tante distintas das de seus elementos. Por exemplo, o significado
de Homem morde cachorro é diferente do significado de qualquer uma
das três palavras que a compõem, e diferente do significado das
mesmas palavras combinadas na ordem inversa. Num sistema
combinatório discreto como a língua, pode haver um número ili­
mitado de combinações completamcnte distintas com um leque
infinito de propriedades. Outro sistema combinatório discreto
digno dc nota encontrado no mundo natural é o código genético
do DNA, em que quatro tipos de nucleotídeos combinam-se cm
sessenta c quatro tipos de códons, c os códons podem se ligar for­
mando um número ilimitado de genes diferentes. Muitos biólo­
gos tiraram partido do paralelo existente entre os princípios da
combinação gramatical c os princípios da combinação genética.
Na linguagem técnica da genética, diz-se que seqücncias de DNA
contem “letras” e “pontuação”; podem ser “palindrômicas”, “sem
sentido” ou “sinônimas”; são “transcritas” c “traduzidas”; e inclu­
sive guardadas em “bibliotecas”. O imunologista Niels Jcrnc inti­
tulou o discurso que proferiu ao receber o Prêmio Nobcl dc “A
Gramática Gerativa do Sistema Imunológico”.
Em contrapartida, a maioria dos sistemas complexos com que
deparamos no mundo são sistemas aglutinantes, como a geologia, a
mistura de tintas, a culinária, o som, a luz e o clima. Num sistema
aglutinante, as propriedades da combinação encontram-se entre as
propriedades de seus elementos, e as propriedades dos elementos
se perdem na média ou mistura. Por exemplo, a combinação de
tinta vermelha com tinta branca resulta em tinta cor-de-rosa.

97
I O instinto da linguagem I

Portanto, o leque de propriedades que se pode encontrar num sis­


tema aglutinante é muito circunscrito, e a única maneira de dife­
renciar grandes quantidades de combinações é discriminar di­
ferenças cada vez mais tênues. Não é por acaso que os dois siste­
mas do universo que mais impressionam por seu design complexo
sempre em aberto —vida e mente —baseiam-se em sistemas com-
binatórios discretos. Muitos biólogos acreditam que se a heredi­
tariedade não fosse discreta a evolução tal como a conhecemos
não tcria ocorrido.
Portanto, a língua funciona da seguinte maneira: o cérebro de
cada pessoa contém um léxico dc palavras e os conceitos que elas
representam (um dicionário mental), e um conjunto de regras que
combina as palavras para transmitir relações entre conceitos (uma
gramática mental). Iremos explorar o mundo das palavras no pró­
ximo capitulo; neste iremos tratar do design da gramática.
O fato de a gramática ser um sistema combinatório discreto
tem duas conseqüências importantes. A primeira é a absoluta vas­
tidão da linguagem. V á para a Biblioteca do Congresso, pegue ao
acaso uma frase de qualquer livro, e é muito provável que vocc
não consiga encontrar uma repetição exata dela por mais que
procure. Estimativas dc quantas frases uma pessoa comum c ca­
paz dc enunciar são dc tirar o fôlego. Se um falante for interrom­
pido num ponto qualquer de uma frase, há cm media dez palavras
diferentes que poderíam ser inseridas naquele ponto para conti­
nuar a frase de forma gramatical e com sentido. (Em alguns pon­
tos da frase, apenas uma palavra pode ser inserida, e, em outros,
pode-se escolher entre milhares; dez é uma média.) Suponhamos
que uma pessoa consiga produzir frases de até vinte palavras.
Portanto, o número de frases com que um falante pode lidar em
princípio é de pelos menos IO20 (I seguido de vinte zeros, ou cem
quinquilhões). Numa velocidade de cinco segundos por frase,
uma pessoa precisaria de uma infância de mais ou menos cem tri­
lhões de anos (sem tempo para dormir ou comer) para memori-

98
I Como a linguagem funciona I

zá-las t f das. N a verdade, a limitação de vinte palavras é muito rí­


gida. A frase totalmente compreensível de George Bernard Shaw,
por exemplo, tem 1 10 palavras:

Stranger still, though Jacques-Dalcroze, like ali these great teachers,


is the completest of tyrants, knowing what is right and that he must
and will have the lesson just so or else break his heart (not some-
body elses, observe), yet his school is so fascinating that every wo-
man who sees it exclaims: “Oh why was I not taught like this!” and
elderly gentlemen cxcitedly enroll themselves as students and distract
classes of infants by their desperate endeavours to beat two in a bar
with onc hand and three with the other, and start off on earnest
walks around the rooni, taking two steps backward whenever M.
Dalcroze calls out “Hop!”.'

Com efeito, se deixarmos de lado o fato de que os dias de nos­


so tempo são três vintenas mais dez12, cada um dc nós será capaz de
enunciar uma quantidade infinita de frases diferentes. Pela mesma
lógica que revela a existência de uma quantidade infinita de núme­
ros inteiros —sc você pensai: que encontrou o maior de todos, bas­
ta somar I a ele c você terá outro —, deve haver uma quantidade
infinita de frases. O Guinness —o livro dos recordes chegou a reconhe­
cer a mais longa frase em inglês: um trecho de 1.300 palavras no
romance de W illiam Faulkner Absalom, Absalom! que começa assim:

1. Ainda mais estranho porque [acqucs-I )alcrozc, como todos esses grandes professores, c o
mais perfeito tirano, que sabe o que c certo c que a aula tem de ser e será exatamente
daquela maneira para que seu coração não fique confrangido (não o de outra pessoa,
observe bem), e ainda assim seu ensino c tão fascinante que toda mulher que o vê exclama:
“Oh, por que não mc ensinaram desse jeito!” e senhores dc mais idade, excitados, inscre-
vem-sc como alunos c agitam as aulas das crianças com seus esforços desesperados de
bater dois tempos com uma mão e três com a outra, além de sair andando cm círculos pela
. sala, dando dois passos para trás sempre que M. Dclcroze grita “Upal”. (N. daT.)
2. Referencia a Ulisses de James Joyce, em tradução dc A. Houaiss: “...sempermoventes de
imensuravclmcnte remotos éons a infinitamente remotos futuros em comparação com o
que os anos, três vintenas mais dez, do quinhão da vida humana formavam um parêntese
de infinitésima brevidade”. (N. daT.)

99
I O instinto da linguagem I

Thty both bore it as though in delibetate flagellant exaltation...

Fico tentado a alcançar a imortalidade sugerindo a seguinte


quebra de recorde:

Faulkner escreveu “T liey both bore it as though in deliberate flagel­


lant exaltation...”.

Mas eu não teria mais do que os proverbiais quinze minutos de


fama, pois logo poderia ser derrotado por:

Pinkcr escreveu que Faulkner escreveu “Thcy both bore it as though


in deliberate flagellant exaltation...”.

E também este recorde cairía quando alguém sugerisse:

Quem se importa com o fato de Pinkcr ter escrito que Faulkner es­
creveu “Thcy both bore it as though in deliberate flagellant exal­
tation...”?

H assim ad ítifinitum. O uso infinito de meios finitos distingue o


cérebro humano dc praticamente todos os outros mecanismos co­
nhecidos que empregam linguagem artificial —como bonecas de
corda, carros que aporrinham você para que feche a porta c instru­
ções cordiais do correio de voz ( “Aperte a tecla sustenido para mais
opções”) —, que usam uma lista fixa de frases pré-fabricadas.
A segunda conseqüência do design da gramática é que ela é
um código autônomo em relação à cognição. Uma gramática especi­
fica como as palavras devem se combinar para exprimir significa­
dos; essa especificação independe dos significados particulares
que costumamos transmitir ou esperar que outros nos transmitam.
Assim, todos sentimos que algumas seqüências de palavras passí­
veis de interpretação não se conformam ao código gramatical da

100
I Como a linguagem funciona I

língua. Eis algumas seqüências fáceis de interpretar mas que per­


cebemos não estar formuladas de forma correta:

Bem-vindo a Restaurante Chinês. Por favor, experimente sua Gosto­


sa Comida Chinesa com Palitinhos: os tradicionais e típicos da
gloriosa história e do cultuai chineses.
E um pintassilgos voadores, são mesmo.
O bebê parece dormindo.
Tá caindo muitos pingos de chuva.
Sally encheu água no copo.
Quem fez a livro sobre impressionar você?
Derrapagem batida hospital.
Vapor tambor cigarro operário piparote bum.
Essa frase não verbo.
Essa frase tem contém dois verbos.
Essa frase tem repolho seis palavras.
Essa não c uma completa. Essa também.

Essas frases são “agramaticais” não no sentido de, em inglês,


por exemplo, separar o infinitivo da preposição to por um advér­
bio [split infínitive\, mudar o sujeito dc uma reduzida participial
para a oração principal [dangling partidples] e outros bichos-papõcs
da professora munida dc palmatória', mas no sentido de que qual­
quer falante comum do vernáculo casual tem uma sensação visce­
ral de que há algo de errado com elas, não obstante sua interpre-
tabilidade. A agramaticalidade é apenas consequência de possuir­
mos um código fixo para interpretar frases. Em algumas seqüên­
cias é possível adivinhar o sentido, mas não temos certeza de que
o falante, para enunciar a frase, empregou um código igual àquele3

3. Alguns exemplos dc bichos-papõcs cm português são: não comece uma frase com um pro­
nome átono, o certo é “vendem-se casas” c não “vcndc-sc”, não existe plural dc haver exis­
tencial... (N. daT.)

101
I O instinto da linguagem l

que empregamos para interpretá-la. Pelo mesmo motivo, os com­


putadores, menos tolerantes com dados de entrada agramaticais
que os ouvintes humanos, expressam seu desagrado em diálogos
tão familiares como este:

> PRINT (x + 1
*****SYNTAX ERROR*****

O contrário também pode ocorrer. Podem existir frases sem sen­


tido mas gramaticais. O exemplo clássico é uma frase de Choms-
ky, sua única entrada no Bartletds Familiar Quotatíons:

Incolores idcias verdes dormem furiosamente.

A frase foi criada para mostrar que sintaxe e sentido podem


ser indepedentes entre si, embora isso já tivesse sido demonstrado
bem antes dc Chomsky; o gênero de verso e prosa sem sentido, po­
pular no século 19, depende disso. Eis um exemplo extraído dc
Iidward Lear, o reconhecido mestre do nonsensc

Jt s a fnct the wholc world knows,


That Pobbles are happicr without their toes.'1

MarkTwain certa vez parodiou a descrição romântica da natu­


reza, em que a melodia predominava sobre o conteúdo:

It was a crisp and spicy morning in early October. The lilacs and
labumums, lit with the glory-fires of autumn, hung burning and
flishing in the upper air, a fairy bridge provided by kind Nature for
the wingless wild things that have their homes in the tree-tops and4

4. E fato sabido no mundo inteiro que os Pobbles são mais felizes sem o s dedos dos pés.
(N. daT.)

102
I Como a linguagem funciona I

would visit together; the larch and the pomegranate flung their pur-
ple and yellow flanaes in brilliant broad splashes along the slanting
sweep of the woodland; the sensuous fragrance of innumerable de-
ciduous flowers rose upon the swooning atmosphere; far in the
empty sky a solitary esophagus slept upon motionless wing; every-
where brooded stillness, serenity, and the peace of God.5

E quase todos conhecem o poema incluído em Através do espelho


de Lewis Carroll, que termina assim:

E enquanto estava em sussustada sesta,


Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso loucoi

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta


Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfantc.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte?


Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolinas touvas


Roldavam e relviam nos gramilvos.

5. Era uma fresca e. aromática manhã de princípios dc outubro. Os lilases c íaburnos, aluinia-
dos pelos gloriosos fogos do outono, pendiam queimando e brilhando no ar, uma ponte
encantada oferecida pela gentil Natureza aos selvagens entes desalados que habitam o
cimo das árvores e se visitam; lariços e romãzeiras lançam suas flamas purpúreas e amare­
las em amplos jatos brilhantes por toda a extensão oblíqua da mata; a fragrância sensual
de inumeráveis flores decíduas elevava-se por sobre a atmosfera desfaleeente; ao longe, no
ermo céu, um esôfago solitário dormia sobre asas imóveis; por toda parte, uma calmaria
protetora, serenidade e a paz de Deus. (N. daT.)

103
I O instinto da linguagem I

Estavam mimsicais as pintalouvas,


E os momirratos davam grilvos/’

Como disse Alice: “E como se enchesse minha cabeça de idéias


—só não sei exatamente quais são!” Embora o bom senso e o
senso comum não ajudem a compreender essas passagens, os fa­
lantes de português reconhecem que são gramaticais, e suas re­
gras mentais lhes permitem extrair estruturas precisas, embora
abstratas, dc significados. Alice deduziu que "Alguém matou algo:
isso, pelo menos, está claro.” E depois dc ler a entrada de Chomsky
no Rartlctt’s qualquer um pode responder a perguntas como “O que
dormiu? Como? Uma ou varias coisas dormiram? Que tipo dc
idéias eram aquelas?”.

Como funciona a gramática combinatória que subjaz à lingua­


gem humana? A maneira mais direta dc combinar palavras em or­
dem é explicada no romance de Michael Frayn, The Tin Men. O
protagonista, Cloldwasscr, é um engenheiro que trabalha num ins­
tituto voltado para a automação. Precisa inventar um sistema dc
computação que crie o padrão de histórias encontradas cm jor­
nais diários, como “Garota paralítica decidida a voltar a dançar”.
Aqui ele testa manualmcntc um programa que compõe histórias
sobre eventos relacionados com a realeza:

Abriu o arquivo e pegou a primeira ficha. Nela estava escrito: Tradi-


cionalmente. Agora havia uma escolha aleatória entre fichas que diziam
coroações, noivados,funerais, casamentos, entrada na maioridade, nascimentos, mor­
tes ou a ordenação de mulheres. No dia anterior ele escolhera funerais, e6

6. I ! ;k(i.h;ào dc Augusto dc Campos, in Aventaras de Alice, cd. Summus, São Paulo, 3:' ed.,
1980. (N .d aT .)

104
I Como a linguagem funciona I

fora enviado para uma ficha em que se lia com total clareza são moti­
vo de luto. Hoje, fechou os olhos, retirou casamentos, e foi dirigido para
são motivo de alegria.
Numa seqüência lógica, em seguida veio: O casamento de X e Y,
abrindo-lhe a escolha entre não constitui exceção e é um exemplo. Em am­
bos os casos, seguía-se deJato. De fato, fosse qual fosse o evento com
que se começasse, coroações, mortes ou nascimentos —Goldwasser
percebeu com intenso prazer matemático —, encontrava-se esse ele­
gante gargalo. Parou em defato, retirando numa rápida sucessão: é uma
ocasião particularmentefeliz, raramcnte, e se viu um jovem casal mais popular.
Da próxima seleção, Goldwasser tirou X conquistou um lugar especial
no coração da nação, o que o forçou a ir para: e é claro que o povo britânico já
se afeiçoou a Y.
Goldwasser ficou surpreso, e um pouco perturbado, ao constatar
que a palavra “adequado” ainda não aparecera. Mas ela saiu na pró­
xima ficha —é especialmente adequado que.
O que deu a noiva/o noivo seja, c uma escolha aberta entre: de lão no­
bre c ilustre linhagem, uma plebéia/um plebeu nestes tempos democráticos, dc uma
nação com a qual este país há muito tempo mantém relações parlicularmenle próxi­
mas e cordiais, c de uma nação com a qual este país nem sempre manteve boas rela­
ções no passado.
Sentindo que fizera um bom trabalho com “adequado” da última
vez, Goldwasser deliberadamente seleeionou-o dc novo. Também é ade­
quado que, dizia a ficha, rapidamente seguida dc: que lembremos que, с X e
Ynão são apenas símbolos —são um alegre jovem e uma adorável jovem mulher.
Goldwasser fechou os olhos para tirar a próxima ficha. Nela se
lia, nestes dias em que. Ponderou se devia escolher está na moda ridicularizar
a moral tradicional do casamento e da vidafamiliar ou não está mais na moda ri­
dicularizar a moral tradicional do casamento e da vida familiar. O último evo­
cava mais o autêntico esplendor barroco da formalidade, concluiu.

Chamemos isso de mecanismo de cadeias de palavras (o no­


me técnico é modelo de “estados finitos” ou de “Markov”). Um
mecanismo de cadeias de palavras é um grupo de listas de pala­
vras (ou expressões pré-fabricadas) e um conjunto de direções

105
I 0 instinto da linguagem I

para ir de uma lista para outra. Um processador constrói uma


frase selecionando uma palavra de uma lista, depois uma palavra
de outra, e assim por diante. (Para reconhecer uma frase falada
por outra pessoa, basta conferir as palavras em cada lista na or­
dem preestabelecida.) Sistemas de cadeias de palavras costumam
ser usados em sátiras como a de Frayn, geralmente como receitas
do tipo “faça você mesmo” para compor exemplos de verborra­
gia. Por exemplo, eis um Gerador de Jargão de Ciência Social,
que o leitor pode operar pegando qualquer palavra da primeira
coluna, depois uma da segunda e depois uma da terceira, e jun­
tando-as para formar um termo impactante como interdependência
agregatíva indutiva:

dialético/a participatório/a interdepen dência


desfuncionalizado/a degenerativo/a difusão
positivista agregativo/a periodicidade
predicativo/a apropriativo/a síntese
multilatcral simulado/a suficiência
quantitativo/a homogêneo/a equivalência
divergente transfigurativo/a expectativa
sincrônico/a diversificante plasticidade
diferenciado/a cooperativo/a cpigcncsc
;indutivo/a progressivo/a construtivismo
inregrado/a complementar deformação
distributivo/a eliminativo/a solidificação

Recentemente vi um mecanismo de cadeias de palavras que


gera textos promocionais incríveis para sobrecapas de livros, e ou­
tro para letras de músicas de Bob Dylan.
Um mecanismo de cadeias de palavras é o exemplo mais sim­
ples de um sistema combinatório discreto, pois é capaz de criar
um número ilimitado de distintas combinações a partir de um
conjunto de elementos finito. Apesar das paródias, o mecanismo

106
I Como a linguagem funciona I

de cadeias de palavras pode gerar шла quantidade infinita de con­


juntos de frases gramaticais. Por exemplo, o esquema extrema­
mente simples

O menino sorvete
um homem come -----sanduíche
certo cachorro doces

reúne várias frases, tais como Um menino come sorvete e O cachorro feliz
come doces. Pode reunir uma quantidade infinita por causa do loop
na parte superior que pode fazer com que o mecanismo da lista f e ­
liz volte sobre si mesmo quantas vezes for necessário: O cachorrofeliz
come sorvete, O cachorrofeliz feliz come sorvete etc.
Quando um engenheiro tem de construir um sistema para
combinar palavras em determinadas ordens, o que primeiro lhe
vem à cabeça é um mecanismo de cadeias de palavras. A voz gra­
vada que lhe fornece um número de telefone quando você liga
para o auxílio à lista é um bom exemplo. Grava-se uma voz huma­
na emitindo os dez dígitos, cada um em sete padrões musicais di­
ferentes (um para a primeira posição em um número de telefone,
outro para a segunda, e assim por diante). Com apenas essas se­
tenta gravações, dez milhões de números de telefones podem ser
reunidos; com mais trinta gravações para códigos de área de três
dígitos, são possíveis dez bilhões de números (na prática, muitos
nunca serão usados devido a restrições como a ausência de 0 e I
no começo de um número de telefone). Com efeito, sérios esfor­
ços têm sido empreendidos no sentido de modelar a língua ingle­
sa como uma enorme cadeia de palavras. Para torná-lo o mais rea­
lista possível, as transições de uma lista de palavras para outra po­
dem refletir as reais probabilidades de cada tipo de palavra se en­
cadear com outra em inglês (por exemplo, é muito mais provável
que a palavra that venha seguida de is do que por indicates). Gigan­

107
I O instinto da linguagem I

tescos bancos de dados dessas “probabilidades de transição” fo­


ram compilados por meio da análise por computador de corpos
de textos em inglês, ou por meio de voluntários que dizem as pri­
meiras palavras que lhes vêm à mente depois de determinada pa­
lavra ou séries de palavras. Alguns psicólogos afirmam que a lín­
gua humana bascia-sc numa enorme cadeia de palavras armazenada
no ccrcbro. E uma idéia compatível com as teorias dc estímulo-
rcsposta: um estímulo provoca como resposta uma palavra falada,
o falante percebe sua própria resposta, o que constitui o próximo
estímulo, provocando como resposta uma dentre várias palavras, c
assim por diante,
Mas o fato dc mecanismos de cadeias dc palavras parecerem
feitos sob medida para paródias como a de Erayn desperta suspei­
tas. O que as várias paródias revelam é que o gênero em questão é
tão pouco inteligente e tão cheio de clichês que um simples méto­
do mecânico produz automaticamente uma quantidade ilimitada
de exemplos que podem passar pela produção real. O humor fun­
ciona devido à discrepância entre ambas as produções: todos par­
timos do pressuposto de que as pessoas, até mesmo sociólogos e
jornalistas, não são de fato mecanismos de cadeias dc palavras; só
parecem ser.
Л teoria moderna da gramática começou quando Chomsky
mostrou que mecanismos dc cadeias de palavras não são apenas
um pouco suspeitos; são, profundamente, fundamcntalmcnte, a
maneira equivocada dc pensar sobre o funcionamento da lingua­
gem humana. São sistemas combinatórios discretos, mas não o
tipo certo dc sistema. Existem três problemas, c cada um esclare­
ce um aspecto do verdadeiro funcionamento da língua.
Em primeiro lugar, uma frase em inglês é completamente di­
ferente de uma scqücncia de palavras encadeadas de acordo com
as probabilidades de transição do inglês. Lembre-se a frase de
Chomsky, Incolores idéias verdes dormem furiosamente [ Colorlessgreen ideas
sleepjuriously]. Ele inventou isso não só para mostrar que algo sem

108
I Como a linguagem funciona I

sentido pode ser gramatical mas também para mostrar que se-
qüências improváveis de palavras podem ser gramaticais. Em tex­
tos ingleses, a probabilidade de que a palavra colorless venha segui­
da da palavra green é decerto zero. A probabilidade é a mesma de
que green venha seguido de iàeas, iieas de sleep, e sleep dejuriously. Não
obstante, essa seqüência é uma frase em inglês perfeitamente bem
construída. Em contrapartida, quando cadeias de palavras são mon­
tadas por meio de tabelas de probabilidade, as seqüências de pala­
vras resultantes distam de ser frases bem construídas. Por exem­
plo, digamos que você tome estimativas do conjunto de palavras
com maior probabilidade de vir depois de qualquer seqüência de
quatro palavras, c use essas estimativas para aumentar uma sequên­
cia palavra por palavra, olhando sempre para as quatro palavras mais
recentes para determinar a próxima. A seqüência lembra estranha-
mente o inglês, mas não c inglês, como House to askfor is to earn our
living by working towards a goaljor his team in olá New- York was a wonder-
fu i place wasn’t it even pleasant to talk about and laugh hard whcn be tclls lies he
should not tell те the reason wby you are is evídent.7
A discrepância entre frases inglesas c cadeias dc palavras que
lembram o inglês nos ensina duas coisas. Quando as pessoas
aprendem uma língua, aprendem como ordenar palavras, mas não
o fazem decorando qual palavra vem depois dc qual palavra. Ea-
zcm-no decorando que categorias lexicais —substantivo, verbo etc.
—vêm depois de que categorias. Ou seja, reconhecemos colorless
green ideas porque tem a mesma ordena dc adjetivos c substantivos
que aprendemos em seqüências mais familiares como straplcss black
dresses [vestidos pretos sem alça]. O segundo ensinamento é que
substantivos, verbos e adjetivos não estão apenas amarrados uns

7. Uma traduçno possível seria: O abrigo que sc pede c ganhar a vida trabalhando por um
objetivo para seu time na velha Nova York cra um lugar maravilhoso não era mesmo agra­
dável falar sobre aquilo e rir muito quando cie conta mentiras que ele não deveria mc con­
tar o motivo pelo qual vocc está c evidente. (N. daT.)

109
I O instinto da linguagem I

aos outros numa longa cadeia; há um certo esquema ou plano ge­


ral da frase que coloca cada palavra num lugar específico.
Se um mecanismo de cadeias de palavras for planejado com su­
ficiente inteligência, pode dar conta desses problemas. Mas Choms­
ky refutava de maneira veemente a própria idéia de que a lingua­
gem humana seja uma cadeia de palavras. Demonstrou que certos
conjuntos de irases inglesas não podiam, nem mesmo em princí­
pio, ser produzidos por um mecanismo de cadeias de palavras, in­
dependentemente do tamanho ou da fidelidade a tabelas de pro­
babilidade do mecanismo. Considere frases como as seguintes:

Ou a menina come sorvete, ou a menina come doces.


Se a menina come sorvete, então o menino comc sanduíche.

A primeira vista, parece fácil acomodar essas frases:

Mas o mecanismo não funciona. Numa frase, Ou tem dc vir


seguido mais adiante por ou; ninguém diz Ou a menina come sorvete,
então a menina gosta de doces. Da mesma maneira, se exige então; nin­
guém diz Se a menina come sorvete; ou a menina gosta de doces. Mas, para
satisfazer o desejo de uma palavra que aparece primeiro numa fra­
se por alguma outra palavra que aparece adiante na frase, o me­
canismo tem de lembrar a primeira palavra enquanto está produ­
zindo automaticamente todas as palavras intermediárias. O pro­
blema é este: um mecanismo de cadeias de palavras é amnésico,
lembra-se apenas da lista de palavras de onde acabou de escolher
uma, mas nada do que vem antes. Quando chega à lista de ou/en­

110
I Como a linguagem funciona I

tão, não tem como se lembrar se disse se ou ou no começo. Do nos­


so ponto de observação privilegiado, que permite examinar todo
o mapa rodoviário, podemos lembrar qual foi a escolha que o me­
canismo fez na primeira bifurcação da estrada, mas o próprio meca­
nismo, avançando como formigas de lista para lista, não tem como
lembrar.
Você poderia pensar que seria simples redesenhar o mecanis­
mo para que ele não tivesse de lembrar escolhas anteriores em pon­
tos posteriores da frase. Por exemplo, poder-se-ia juntar ou e ou e
todas as possíveis seqüências de palavras intermediárias numa se­
qüência gigantesca, e se e então e todas as seqüências intermediárias
numa segunda seqüência gigantesca, antes de retornar a uma ter­
ceira cópia da seqüência —gerando uma cadeia tão longa que tive
de imprimi-la na vertical (ver p. 112). De imediato, nota-se algo
incômodo nessa solução: há três sub-redes idênticas. Qualquer
coisa que as pessoas possam dizer entre um ou e um ou, também
podem dizer entre um se e um então, e também depois do ou ou do
então. Mas essa é uma habilidade que surge naturalmente de qual­
quer que seja o design do mecanismo existente na cabeça das pes­
soas que permite que elas falem. Não deveria depender do progra­
mador escrever cuidadosamente três conjuntos idênticos de ins­
truções (ou, hipótese mais plausível, de a criança ter de aprender
a estrutura das frases cm português três vezes, uma entre se e então,
outra entre ou e ou, e uma depois de um então ou de um ou).
Mas Chomsky mostrou que o problema é ainda mais profun­
do. Cada uma dessas frases pode ser encaixada em qualquer uma
das outras, até mesmo nela mesma:

Se ou a menina come sorvete ou a menina come doces, então o me­


nino come sanduíche.
Ou se a menina corne sorvete então o menino come sorvete, ou se a
menina come sorvete então o menino come doces.

111
I O instinto da linguagem I

Na primeira frase, o mecanismo tem de lembrar se e ou para


que mais tarde possa continuar com ou e então, nessa ordem. Na se­
gunda, tem de lembrar ou e se para que possa completar a frase
com então e ou. В assim por diante. Como, a princípio, não há li­
mite para a quantidade de se e ou que podem começar uma frase,
cada qual com a sua própria ordem de então e ou para completá-la,
de nada serve enunciar cada seqüência memorizada como uma ca­
deia de listas própria; você precisaria de um número infinito de
cadeias, que não caberíam num cérebro finito.

ano i';K'hom> doces

Vocc poderia dizer que se trata dc um argumento acadêmico.


Nenhuma pessoa de verdade começa uma frase com Ou ou se ou se
se, portanto que importa se um suposto modelo daquela pessoa
consegue ou não consegue completá-la com então... então... ou... en­
tão... ou... ou! Mas o que Chomsky fez foi adotar a estética do mate­
mático, usando a interação entre ou-ou e sc-então como o mais sim­
ples exemplo possível de uma propriedade da linguagem —seu uso
de “dependências a longa distância” entre uma palavra inicial e
uma posterior —para provar matematicamente que mecanismos de
cadeias de palavras não têm como lidar com essas dependências.
Com efeito há grande abundância dc dependências nas línguas,
e meros mortais as usam o tempo todo, cobrindo longas distân­
cias, muitas vezes lidando com várias ao mesmo tempo —ou seja,
aquilo que um mecanismo de cadeias de palavras não consegue fa­
zer. Por exemplo, há um velho ditado gramático em inglês sobre
como uma frase pode terminar com cinco preposições. O pai

112
I Como a linguagem funciona I

sobe lentamente as escadas até o quarto de Júnior para ler uma his­
tória para dormir. Júnior avista o livro, faz uma careta e pergunta:
“Daddy, what díd you bring that book that I dont want to be
read to out o f up for?”89No momento em que enunciou read, Jú­
nior se obrigou a guardar quatro dependências na memória: to be
read exige to, that book that exige out of, bring exige up, e what exige for.
Um exemplo ainda melhor, extraído da vida real, vem de uma car­
ta endereçada ao TV Cuide:

How Ann Salisbury can claim that Pam Dawbers anger at not
receiving ber fair sharc o f acclaim for Mork and Mindy s succcss deri­
ves fiom a fragile ego escapes me.'1

Logo depois da palavra not, quem escrevia a carta teve dc guar­


dar quatro exigências gramaticais na cabeça: ( I ) not exige -ing (her
anger at not receivin g acclaim): (2 ) at exige algum tipo dc substan­
tivo ou gerúndio (her anger al not receiving acclaim); (3 ) o sujeito
singular Pam Dawbers anger exige que o verbo que se encontra qua­
torze palavras mais adiante concorde com ele cm número (JDawbers
anger... derives from); (4) o sujeito singular começando com How
exige que o verbo que se encontra vinte c sete palavras adiante
concorde com ele cm número ( /low... escapes mc). Também o leitor
tem dc guardar essas dependências na memória enquanto inter­
preta a frase. Tecnicamente filando, seria ate possível montar um
modelo dc cadeia dc palavras para lidar com essas frases, desde
que haja algum limite para o número dc dependências que o fa­
lante tem dc guardar na memória (quatro, digamos). Mas o grau
de redundância do mecanismo seria absurdo; para cada uma das

8. A tradução literal seria: Papai, por que vocc apanhou c trouxe para cima esse livro que não
quero que seja lido para mim? (N. dcT.)
9. Como Ann Salisbury pode afirmar que a raiva dc Pam Dawbcr por não receber sua par­
cela dc aclamação pelo sucesso de Mork and Mindy decorre dc um ego frágil mc escapa.
(N. daT.)

113
I O instinto da linguagem I

milhares de combinações de dependências, seria preciso repetir uma


cadeia idêntica dentro do mecanismo. Na tentativa de encaixar tal
supercadeia na memória de alguém, rapidamente fica-se sem espa­
ço no cérebro.

A diferença entre o sistema combinatório artificial, que encon­


tramos nos mecanismos de cadeias de palavras, e o natural, que
encontramos no cérebro humano, resume-se num verso do poema
de Joyce Kilmer: “Só Deus pode fazer uma árvore.” Uma frase não
é uma cadeia mas uma árvore. Numa gramática humana, palavras
se agrupam cm sintagmas, como brotos num galho. O sintagma
recebe um nome —um símbolo mental —e pequenos sintagmas
podem ser reunidos cm sintagmas maiores.
Tomemos a sentença O menino feliz come sorvete [ The happy boy
eats ice cream\. Começa com três palavras que se mantêm unidas
numa unidade, o sintagma nominal o menino feliz. Em português10
um sintagma nominal [noun phrase] (N P) é composto de um
substantivo [noun] (N ), às vezes precedido de um artigo ou “de­
terminante” (abreviado “det”) e qualquer número dc adjetivos (A).
Isso tudo pode ser resumido numa regra que define como são os
sintagmas nominais da língua portuguesa em geral. Na notação
clássica da lingüística, uma flecha significa “é formado de”, parên­
teses significam “opcional”, e um asterisco significa “tantos quan­
tos você quiser”. Descreví a regra apenas para mostrar que todas as
suas informações podem ser condensadas em alguns poucos sím­
bolos; se quiser, pode ignorar a notação e olhar apenas para sua
tradução em palavras comuns logo abaixo:

10. Os exemplos cm português foram adaptados dos originais em inglês. (N. da R. X )

114
I Como a linguagem funciona I

NP - » (det) N A*
“Um sintagma nominal é formado de um determinante opcional,
seguido de um substantivo, seguido de qualquer número de ad­
jetivos.”

A regra define uma árvore de cabeça para baixo:

NP

det N A

o menino feliz

Temos a seguir duas outras regras, uma que define a sentença


em português (S), outra que define o predicado ou sintagma ver­
bal [verb phrase] (V P ); ambas incluem como ingrediente o sím­
bolo NP:

S —>NP VP
“Uma frase é formada de um sintagma nominal seguido de um sin­
tagma verbal.”
VP —>V NP
“Um sintagma verbal é formado de um verbo seguido de um sintag­
ma nominal.”

Precisamos agora de um dicionário mental que especifique quais


palavras pertencem a que classes gramaticais (substantivo, verbo,
adjetivo, preposição, determinante):

N —>menino, menina, cachorro, gato, sorvete, doces, sanduíche


“Substantivos podem ser extraídos da seguinte lista: menino, menina.,!’
V —>come, gosta, morde
“Verbos podem ser extraídos da seguinte lista: come, gosta, morde.”
A —>feliz, sortudo, alto

115
I O instinto da linguagem I

“Adjetivos podem ser extraídos da seguinte lista: feliz, sortudo<


, alto”
det —>um, uma, o, a, certo, certa
“Determinantes podem ser extraídos da seguinte lista: wn, o, certo”

Uma lista de regras como as que arrolei —uma “gramática sin-


tagmática” —define uma frase vinculando as palavras a galhos nu­
ma árvore invertida:

NP VP

det N A V NP

o m en in o feliz come N

sorvete

A superestrutura invisível que mantém as palavras no seu devi­


do lugar é uma invenção vigorosa que elimina os problemas dos
mecanismos dc cadeias de palavras. A chave de sua eficácia c que
uma árvore c modular, como tomadas de telefone ou engates de
mangueira de jardim. Um símbolo como “N P” c como um co­
nector ou encaixe com uma certa forma. Permite que um compo­
nente (um sintagma) se encaixe em qualquer uma dc várias posi­
ções dentro de outros componentes (sintagmas maiores). Uma
ve/ definido por uma regra e tendo recebido um símbolo conec­
tor, um sintagma nunca mais tem de ser definido; o sintagma pode
ser enfiado em qualquer lugar onde haja o encaixe corresponden­
te. Por exemplo, na pequena gramática que descrevi, o símbolo
“NP” c usado tanto como sujeito de uma sentença (S —>NP V P)
quanto como objeto de um sintagma verbal (VP —» V NP). Numa
gramática mais realista, também poderia ser usado como objeto
de uma preposição (perto do menino), num sintagma possessivo (o
chapéu do menino), como objeto indireto (dar uma bolacha ao menino), e

116
I Como a linguagem funciona I

em várias outras posições. Esse dispositivo de pino e tomada expli­


ca por que as pessoas podem usar o mesmo ripo de sintagma em
muitas posições diferentes numa sentença, como:

[O menino feliz feliz] come sorvete.


Eu gosto d[o menino feliz feliz].
Eu dei uma bolacha a[o menino feliz feliz],
O gato d[o menino feliz feliz] come sorvete.

Não é necessário aprender que, em português, o adjetivo vem


depois do substantivo (e não o contrário) no sujeito, e depois ter
de aprender o mesmo para o objeto, e o mesmo para o objeto in­
direto, c mais uma vez para o possessivo.
Note também que o acoplamento promíscuo de um sintagma
qualquer com uma posição gramatical faz com que a gramática fi­
que autônoma cm relação a nossas expectativas correntes relacio­
nadas ao significado das palavras. E por isso que podemos escre­
ver c apreciar trechos gramaticais sem sentido. Nossa pequena gra­
mática define todo tipo dc incolores frases verdes, como O feliz
docefeliz gosta do sorvete alto, c nos permite relatar acontecimentos co­
mo A menina morde o cachorro.
Mais interessante ainda é o fato dc os galhos rotulados de uma
árvore sintagmática atuarem como uma memória ou plano que
abrangem toda a frase. Isso facilita o tratamento dc dependências
a longa distância, como s e ... então e ou ... ou. Você só precisa de uma
regra que defina um sintagma que contém uma cópia do mesmo
tipo dc sintagma, tal como:S

S —>ou S ou S
“Uma sentença pode estar formada pela palavra ou, seguida de uma
sentença, seguida da palavra ou, seguida de outra sentença.”
S —>se S então S
“Uma sentença pode estar formada pela palavra se, seguida de uma
sentença, seguida da palavra então, seguida de outra sentença.”

117
I O instinto da linguagem I

Essas regras embutem uma ocorrência de um símbolo dentro


de outra ocorrência do mesmo símbolo (neste caso, uma sentença
dentro de uma sentença), um truque simples —que os lógicos cha­
mam de "recursão” —para gerar um número infinito de estrutu­
ras. As peças da sentença maior são mantidas juntas, em ordem,
como um conjunto de galhos que crescem a partir de um nódulo
comum. Esse nódulo mantém juntos cada ou com seu ou, cada se
com seu então, como no seguinte diagrama (os triângulos são abre­
viações para um monte de vegetação rasteira que só nos confundi­
ría sc fosse mostrada em detalhes):

Há outro motivo que leva a crer que uma sentença se mantém


coesa por meio dc uma árvore mental. Venho falando até agora
dc encadear palavras cm ordem gramatical, ignorando o que elas
querem di^er. M as agrupar palavras em sintagmas também é ne­
cessário para ligar sentenças gramaticais com seus significados,
um quê des mentalês. Sabemos que a sentença acima é sobre uma
menina, nsjo sobre um menino, que come sorvete, e um menino,
não uma m enina, que come sanduíche, e sabemos que o lanche
do m enino depende do da menina, e não vice-versa. Isso se deve
ao fato de menina e sorvete estarem ligados dentro do sintagma de­
les, assim com o o menino e o sanduíche, assim como as duas senten­
ças relativas à menina. Com um mecanismo de cadeia isso seria
um trabalhão, mas com uma gramática sintagmática a capacidade

118
I Como a linguagem funciona I

de conexão das palavras na árvore reflete a possibilidade de re­


lação das idéias em mentalês. Portanto, a estrutura sintagmática
resolve o problema de engenharia que consiste em tomar uma
rede interligada de pensamentos na mente e codificá-la como
uma seqüência de palavras que têm de ser emitidas, uma por vez,
pela boca.
Uma maneira de ver como a estrutura sintagmática invisível
determina o significado é recordar um dos motivos mencionados
no Capítulo 3 pelos quais linguagem e pensamento têm de ser di­
ferentes: determinado fragmento de linguagem pode correspon­
der a dois pensamentos diversos. Mostrei-lhes exemplos como
Childs Stool Is Greatfor Use in Garâen [banquinho/fezes de criança
excelente(s) para jardim], onde a palavra stool tem dois sentidos,
correspondentes a duas entradas no dicionário mental. Mas, às
vezes, toda uma sentença tem duplo sentido, mesmo se cada pala­
vra tem apenas um. No filme Os galbojeiros, Groucho Marx diz:
“Certa vez matei um elefante de pijama. Nunca soube como ele
entrou no meu pijama.” Cito abaixo ambigüidades similares que
apareceram nos jornais:

Yoko Ono irá falar sobre seu marido John Lennon que foi assassina­
do numa entrevista com Barbara Walters.
Dois carros foram citados como roubados pela polida de Groveton
ontem.
A taxa de licença para cães castrados com certificado será de $3 e
para animais de cidadãos idosos que não foram castrados a taxa
será de $1,50.
O programa de hoje à noite vai discutir estresse, exercícios, nutrição
e sexo com o fonvard dos Celtic, Scott Wedman, Dra. Ruth
Westheimer e Dick Cavett.
Vendemos gasolina para qualquer um num recipiente de vidro.
Vende-se: Conjunto de vasilhas de batedeira desenhadas para agra­
dar o cozinheiro com fundo redondo para bater bem.

119
I O instinto da linguagem I

Os dois sentidos de cada sentença decorrem das diversas ma­


neiras como as palavras podem ser reunidas numa árvore. Por
exemplo, em discutir sexo com Dick Cavett, o escritor junta as palavras
de acordo com a árvore à esquerda ( “PP” significa sintagma pre­
posicional) [prepositional phrase]: sexo é o que será discutido, e
será discutido com Dick Cavett.

VP

V NP ^PP^

discutir N P NP

sexo com Dick Cavett

com Dick Cível l

O outro sentido decorre da análise das palavras dc acordo com


a árvore à direita; as palavras sexo com Dick Cavett formam um úni­
co galho da árvore, e sexo com Dick Cavett c o que será discutido.

Л estrutura sintagmática é evidentemente aquilo de que a lín­


gua é feita. Mas o que acabei dc mostrar-lhes c só um brinquedo.
No resto do capítulo tentarei explicar a teoria chomskiana mo­
derna do funcionamento da língua. Os escritos dc Chomsky são
“clássicos” no sentido que MarkTwain dá a este termo: algo que
todos gostariam dc ter lido e ninguém quer ler. Quando deparo
com um dos inúmeros livros de divulgação sobre mente, lingua­
gem c natureza humana que fazem referência à “estrutura profun­
da do sentido comum a todas as línguas humanas, desenvolvida
por Chomsky” (errada por dois motivos, como veremos), sei que
os livros de Chomsky dos últimos vinte e cinco anos estão guar­
dados na prateleira mais alta do escritório do autor, com as lom­

120
I Como a linguagem funciona I

badas intactas e os fólios sem cortar. Muitos são os que querem


especular sobre a mente, mas, quando se trata de conhecer a fun­
do os detalhes do funcionamento da língua, todos têm a mesma
impaciência de Eliza Doolittle em Pígmalião, que se queixava a
Henry Higgins: “Não quero falar gramática. Quero falar como
uma dama numa floricultura.”
A reação dos não-especialistas é mais extremada ainda. Na obra
de Shakespeare, A segunda parte de Henrique VI, o rebelde Dick enun­
cia a conhecida frase “A primeira coisa que ternos a fazer é matar
todos os advogados”. Menos conhecida é a segunda coisa que Dick
propõe fazer: decapitar Lord Say. Por quê? Eis a acusação apre­
sentada pelo líder do bando, Jack Cade:

Corrompeste com a maior traição a juventude do reino, erigindo


uma escola dc gramática... Será provado cm tua cara que Cens cm
tua companhia homens que usualmcnte falam dc um nome c um
verbo, bem como de outras palavras abomináveis que nenhum
ouvido cristão pode escutar com paciência."

E quem poderia condenar o gramatofóbico, quando uma passa­


gem típica de um dos textos técnicos dc Chomsky diz o seguinte?

Para resumir, fomos levados às seguintes conclusões, partindo do


pressuposto de que o vestígio de uma categoria de nível zero tem
de estar apropriadamente regido. I. VP a-marcado por J. 2. So­
mente categorias lexicais são marcadorcs-L, de tal forma que VP
não é L-marcado por I. 3. a-regência restringe-se a irmandade sem
a qualificação (35). 4. Somente o elemento terminal de uma cadeia-
Xo pode a-marcar ou marcar Caso. 5. Movimento dc núcleo a nú­
cleo forma uma cadeia-A. 6. Concordância SPEC-núcleo e cadeiasI.

II. C f William Shakespeare, Obra completa, volume III, nova versão anotada de 1:. Carlos de
Almeida, Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Rio dc Janeiro: Companhia José Aguilar Edi-
tora, 1969. (N. daT.)

121
I O instinto da linguagem I

implicam a mesma indexação. 7. Coindexação de cadeia vale para os


elos de uma cadeia estendida. 8. Não há coindexação acidental de I.
9. Coindexação I-V é uma forma de concordância de núcleo com
núcleo; quando se restringe a verbos aspectuais, estruturas da forma
(174) geradas na base têm valor de estruturas de adjunção. 10.
Possivelmente, um verbo não rege apropriadamente seu complemen­
to a-marcado.

E uma pena. As pessoas, sobretudo aquelas que discorrem so­


bre a natureza da mente, deveríam ter curiosidade sobre o código
que a espécie humana usa para falar e compreender. Por outro
lado, aqueles que dedicam a vida a estudar a língua deveriam pro­
videnciar para que tal curiosidade pudesse ser satisfeita. A teoria
de Chomsky não deveria ser tratada por nenhum desses dois gru­
pos como um conjunto de fórmulas cabalísticas que apenas o ini­
ciado pode murmurar. Trata-se de um conjunto de descobertas so­
bre o design da língua que pode ser compreendido intuitivamente
desde que se entendam, primeiro, os problemas para os quais a teo­
ria oferece soluções. Com efeito, apreender a teoria gramatical pro­
porciona um prazer intelectual raro nas ciências sociais. Quando
entrei na (acuidade no fmal dos anos 60 e as matérias optativas
eram escolhidas por sua “relevância”, o latim sofreu uma forte
queda em termos dc popularidade (graças a alunos como eu, con­
fesso). Nossa professora dc latim, a Sra. Rillie, cujas festas em co­
memoração ao aniversário de Roma não impediram aquela queda,
tentava nos convencer que a gramática latina afiava a mente com
suas exigências de precisão, lógica e coerência. (Nos dias atuais, é
mais provável que tais argumentos venham de professores de pro­
gramação de computadores.) A Sra. Rillie tinha razão, mas os pa­
radigmas da declinação latina não são a melhor maneira de trans­
mitir a beleza inerente à gramática. Os achados da Gramática
Universal são muito mais interessantes, não apenas por serem mais
gerais e precisos mas porque se referem a mentes vivas e não a lín­
guas mortas.

122
I Como a linguagem funciona I

❖ ❖

Comecemos com substantivos e verbos. Sua professora de gra­


mática deve ter feito você decorar algumas fórmulas que equipa­
ram classes gramaticais a tipos de significado, como

Um SUBSTANTIVO é o nome de uma coisa;


Como escola ou jardim, argola ou balanço.
VERBOS expressam algo que está sendo feito;
Ler, contar, cantar, rir, pular ou correr.

Mas, como em quase tudo que se refere à língua, ela não acer­
tou totalmente. Ê verdade que a maioria dos nomes de pessoas,
lugares e coisas são substantivos, mas não é verdade que a maioria
dos substantivos são nomes de pessoas, lugares ou coisas. Existem
substantivos com todo tipo de significado:

a destruição da cidade [uma ação]


o caminho para San Jose [uma trajetória]
a brancura movc-se para baixo [uma qualidade]
três milhas adiante [uma medida de espaço]
A resolução do problema leva três horas, [uma medida de tempo]
Diga-me a resposta, [“qual é a resposta”, uma pergunta]
Ela 6 uma tonta, [uma categoria ou tipo]
Um encontro [um acontecimento]
A raiz quadrada de menos dois [um conceito abstrato]
Ele finalmente bateu as botas, [nenhum sentido]

Da mesma forma, embora palavras que designem coisas sendo


feitas, como contar e pular, sejam geralmente verbos, verbos podem
ser outras coisas, como estados mentais (saber, gostar), posse (possuir;
ter), e relações abstratas entre idéias (falsificar; provar).
Por outro lado, um conceito simples, como “estar interessado”,
pode ser expresso por diferentes classes gramaticais:

123
I O instinto da linguagem I

Seu interesse por fungi [substantivo]


Fungi estão começando a interessa-la cada vez mais. [verbo]
Ela parece interessada em fungi. Fungi parecem interessantes para ela.
[adjetivo]
Interessantemente, os fungi cresceram uma polegada por hora. [advérbio]

Portanto, uma classe gramatical não é um tipo de significado;


c um tipo de exemplar que obedece a certas regras formais, como
uma peça de xadrez ou ficha de pôquer. Um substantivo, por
exemplo, c simplesmente uma palavra que faz coisas substantivas;
é o tipo dc palavra que vem depois de um artigo, pode ser acresci­
da da terminação -s etc. Há uma conexão entre conceitos e cate­
gorias sintáticas, mas ela c sutil e abstrata. Quando construímos
um aspecto do mundo como algo que pode ser identificado c
contado ou medido c que pode desempenhar um papel cm acon­
tecimentos, c frequente que a língua nos permita expressar esse
aspecto como substantivo, seja ele um objeto físico ou não. Por
exemplo, quando dizemos Tenho três motivos para partir, estamos con­
tando motivos como se fossem objetos (embora, evidentemente,
não pensemos que um motivo possa sentar à mesa ou ser chutado
pela sala). Da mesma maneira, quando construímos algum aspec­
to do mundo como um acontecimento ou estado que envolve vá­
rios participantes que se afetam rcciprocamcnrc, c frequente que a
língua nos permita expressar esse aspecto como um verbo. Por
exemplo, quando dizemos A situação justificou medidas drásticas, esta­
mos falando sobre justificação como se fosse algo que a situação
fez, embora, mais uma vez, saibamos que justificação não é algo
que possamos ver acontecendo num determinado tempo c lugar.
Em geral os substantivos são usados para nomes de coisas, e verbos
para algo que está sendo feito, mas pelo fato de a mente humana
poder construir a realidade de várias maneiras, substantivos e ver­
bos não se limitam a esses usos.

124
I Como a linguagem funciona I

❖ ❖ ❖

Е о que dizer sobre os sintagmas que agrupam palavras em ga­


lhos? Uma das descobertas mais intrigantes da lingüística moder­
na é que parece baver uma anatomia comum em todos os sintag­
mas de todas as línguas do mundo.
Tomemos o sintagma nominal do português. Um sintagma
nominal (N P) é assim denominado por causa de uma determina­
da palavra, um substantivo, que precisa estar dentro dele. A maio­
ria das propriedades do sintagma nominal se deve àquele subs­
tantivo. Por exemplo, o NP ogato de chapéu12, refere-se a um tipo de
gato, não a um tipo de chapéu; o significado da palavra gato é o nú­
cleo do significado de todo o sintagma. Da mesma maneira, o sin­
tagma raposa de meias refere-se a raposa, não a meias, e todo o sintag­
ma é singular (ou seja, dizemos que a raposa de meias está ou estava
aqui, não estão ou estavam aqui), porque a palavra raposa c singular.
Esse substantivo especial é chamado de “núcleo” do sintagma, e a
informação arquivada junto com essa palavra na memória “se infil­
tra” até o nódulo superior, onde c interpretada como o que caracte­
riza o sintagma como um todo. O mesmo pode ser dito em relação
aos sintagmas verbais: voar para o Rio antes que a polícia o apanhe é um
exemplo dc voar, não um exemplo dc apanhar, portanto o verbo
voar c denominado seu núcleo. Esse é o primeiro princípio de cons­
trução do significado de um sintagma a partir do significado das
palavras que o compõem. O sintagma inteiro se refere àquilo a
que a palavra núcleo se refere.
O segundo princípio permite que sintagmas se refiram não
apenas a coisas ou ações isoladas do mundo mas a conjuntos de
protagonistas que interagem entre si de determinada maneira, cada
qual com um papel específico. Por exemplo, a frase Sergey entregou os12

12. The tal in the hat é um conhecido personagem de histórias infantis de autoria do Dr. Scuss.
Recebeu recentemente uma tradução para o português: O gaiola da cartola. (N. daT.)

125
I O instinto da linguagem I

documentos ao espião não trata apenas de qualquer velho ato de entre­


gar. Ela coreógrafa três entidades: Sergey (o entregador), docu­
mentos (a coisa entregue) e um espião (o recebedor). Esses pro­
tagonistas costumam ser chamados de “argumentos”, o que não
tem nada a ver com discussão; é o termo empregado em lógica e
matemática para um participante de uma relação. Também um
sintagma nominal pode atribuir papéis a um ou mais protagonis­
tas, como em retrato de John, governador da Califórnia, e sexo com Dick
Cavett, cada qual definindo um papel. O núcleo e seus protagonis­
tas —diferentemente do papel de sujeito, que é especial —estão
reunidos num sub-sintagma, menor que um NP ou um VP, que
leva aquele tipo de rótulo não-mnemônico que tornou a lingüísti­
ca gerativa tão antipática, “N-barra” e “V-barra”, em função da
maneira como são escritos, N e V:

N
N PP

governador da Califórnia

O terceiro ingrediente dc um sintagma são um ou mais modifi-


cadorcs (geralmentc chamados de “adjuntos”). Um modificador é
diferente de um protagonista. Tomemos o sintagma homem de Illinois.
Ser um homem de Illinois não é a mesma coisa que ser governador
da Califórnia. Para ser governador, é preciso ser governador de
algo; a californidade desempenha um papel naquilo que significa
para alguém ser governador da Califórnia. Em contrapartida, de
Illinois é apenas uma informação que acrescentamos para ajudar a
identificar de que homem estamos falando; ser de um estado ou de
outro não é parte inerente do que significa ser homem. Essa distin­
ção quanto ao significado entre protagonistas e modificadores
( argumentos” e “adjuntos”, no jargão) determina a geometria da
árvore da estrutura sintagmática. O protagonista fica perto do subs-

126
I Como a linguagem funciona I

tantivo núcleo dentro do N-barra, mas o modifícador fica mais


para cima, embora ainda dentro da casa do NP:

NP

governador da Califórnia

Essa restrição à geometria das árvores da estrutura sintagmáti­


ca não é um mero jogo de notações; é uma hipótese sobre como as
regras da língua estão consolidadas em nossos cérebros, governan­
do a maneira como falamos. Ela determina que, em português, se
um sintagma contiver um protagonista e um modifícador, o pro­
tagonista tem de estar mais próximo do núcleo do que o modifi-
cador —é impossível que o modifícador esteja entre o substantivo
núcleo e o protagonista sem que galhos se cruzem na árvore (ou
seja, palavras estranhas no meio dos elementos do N-barra), o
que é ilegal. Consideremos Ronald Reagan. Ele foi governador da
Califórnia, mas nasceu emTampico, Illinois. Durante seu manda­
to, poderia ser mencionado como o governador da Califórnia dc Illinois
(protagonista seguido de modifícador). Teria soado estranho
mencioná-lo como o governador de Illinois da Califórnia (modifícador
seguido de protagonista). Um exemplo mais claro é o seguinte:
em 1964, a ambição de Robert F. Kennedy de obter um posto no
Senado era obstaculizada pelo fato inconveniente de que ambos os
assentos de Massachusetts já estavam ocupados (um deles por seu
irmão mais novo, Edward). Portanto, ele simplesmente fixou resi­
dência em Nova York e concorreu ao Senado americano por esse
estado, vindo logo a se tornar o senador de Nova York de Massachusetts.
Não o senador de Massachusetts de Nova York —embora isso estivesse
mais próximo da piada que Bay Staters costumava contar na épo­
ca, de que eles viviam no único estado digno de três senadores.

127
I O instinto da linguagem I

Chama a atenção que aquilo que vale para N-barras e sintagmas


nominais, vale para V-barras e sintagmas verbais. Digamos que Ser-
gey entregou aqueles documentos ao espião num hotel. O sintag­
ma ao espião é um dos protagonistas do verbo entregar —não existe
entrega sem um receptor. Portanto, ao espião habita com o verbo
núcleo dentro do V-barra. M as num hotel é um modifícador, um
comentário, uma reflexão posterior, e fica fora do V-barra, dentro
do VP. Assim, os sintagmas contêm uma ordem inerente: pode­
mos dizer entregou os documentos a um espião num hotel, mas não entregou
num hotel os documentos a um espião. No entanto, quando um compo­
nente núcleo vem acompanhado dc apenas uin sintagma, este pode
ser ou um protagonista (dentro do V-barra) ou um modifícador
(fora do V-barra mas dentro do VP), e a ordem das palavras c a
mesma. Considere a seguinte reportagem jornalística:

I Jim testemunha relatou aos investigadores ter visto relações sexuais


entre dois cairos estacionados na (rente de sua casa.

A interpretação que a mulher lesada tinha cm mente pressupu­


nha que entre dois carros estacionados fosse um modifícador, mas idéias
distorcidas dos leitores atribuíram-lhe uma função dc protagonista.
O quarto e último componente dc um sintagma c uma posi­
ção especial reservada a sujeitos (que os lingüistas chamam dc
“SPEC”, que se pronuncia como “speck”, abreviação dc “speei-
ficr” [espccificadorj; não mc perguntem por quê). O sujeito c um
protagonista especial, geralmcntc o agente causai, quando existe
um. Por exemplo, no sintagma verbal os guitarristas destroem o quarto
de hotel, o sintagma os guitarristas c o sujeito; é o agente causai do
evento que consiste na destruição do quarto de hotel. Na verdade,
sintagmas nominais também podem ter sujeitos em inglês, como
no NP paralelo theguítarrists’destruetion o f the hotel room [a destruição do
quarto de hotel pelos guitarristas]. Eis, portanto, a anatomia com­
pleta de um VP e de um NP:

128
I Como a linguagem funciona I

VP NP

NP

os guitarristas

destroem o quarto de hotel destruetion of the hotel room

A história está começando a ficar interessante. Você deve ter


percebido que sintagmas nominais e sintagmas verbais têm mui­
to em comum: ( I ) um núcleo, que dá ao sintagma seu nome e
determina do que ele trata, (2 ) alguns protagonistas, que estão
agrupados junto com o núcleo dentro de um sub-sintagma (o N-
barra ou V-barra), (3 ) modificadorcs, que aparecem fora do N- ou
V-barra, e (4 ) um sujeito. As ordens dentro dc um sintagma no­
minal e dc um sintagma verbal são as mesmas: o substantivo vem
antes de seus protagonistas (я destruição do quarto de botei, não a do
quarto de hotel destruição), e o verbo vem antes de seus protagonistas
(,destruir o quarto de hotel, não o quarto de hotel destruir). Os modificado-
res vão para a direita em ambos os casos, o sujeito para a esquerda.
E como se houvesse um design padrão para ambos os sintagmas.
Com efeito, o design pipoca por todos os lados. Tomemos,
por exemplo, o sintagma preposicional [prcpositional phrase] (PP)
no hotel, Tem um núcleo, a preposição em, que significa algo como
“região interior”, e depois um protagonista, a coisa cuja região in­
terior está sendo escolhida, neste caso um hotel. E o mesmo se ve­
rifica com o sintagma adjetival [adjectival phrase] (AP): em temeroso
do lobo, o adjetivo núcleo, temeroso, ocorre antes de seu protagonista,
a fonte da sensação de medo.
Com esse design comum, não é necessário arrolar uma longa
lista de regras para apreender o que está-dentro da cabeça de um
falante. É preciso haver um pequeno número de super-regras para
toda a língua, em que as distinções entre substantivos, verbos, pre­

129
I O instinto da linguagem I

posições e adjetivos desaparecem e as quatro categorias são espe­


cificadas com uma variável como “X ”. Já que um sintagma apenas
herda as propriedades de seu núcleo (um homem alto é um tipo de
homem), é redundante denominar um sintagma encabeçado por um
substantivo de “sintagma nominal” —poderiamos chamá-lo ape­
nas de “sintagma X ”, pois a natureza substantiva do substantivo
núcleo, como a humanidade do substantivo núcleo e todas as ou­
tras informações contidas no substantivo núcleo, se infiltram por
todo o sintagma, caracterizando-o. Eis como as super-regras se es­
crevem (como antes, concentre-se no resumo da regra, não na
própria regra):

XP - » (SPEC) X YP*
“Um sintagma é formado por um sujeito opcional, seguido de um
X-barra, seguido por qualquer número dc modificadorcs.”
X - » X ZP*
“Um X-barra é formado por uma palavra núcleo, seguida dc qual­
quer número dc protagonistas.”

Basta trocar X, Y e Z por substantivo, verbo, adjetivo ou pre­


posição, e você terá as regras da estrutura sintagmática que for­
mam os sintagmas. Essa versão compacta da estrutura sintagmáti­
ca chama-se “teoria X-barra”. O esquema geral dos sintagmas é
ainda mais abrangente, aplicando-se a outros idiomas. Em portu­
guês, o núcleo dc um sintagma vem antes de seus protagonistas.
Em muitos idiomas, é o contrário —mas é o contrário sempre, em
todos os tipos de sintagmas da língua. Por exemplo, em japonês, o
verbo vem depois de seu objeto, não antes: eles dizem Kenji sushi
comeu, não Kenji comeu sushi. A preposição vem depois de seu sintag­
ma nominal: Kenji para, não para Kenji (portanto, são na verdade
chamadas de “posposições”). O adjetivo vem depois de seu com­
plemento: Kenji que mais alto, não mais alto que Kenji. Mesmo as pala­
vras que marcam a interrogação se deslocam: eles dizem, em com­

130
I Como a linguagem funciona I

paração com o inglês, Kenji eat iid?, e não Did Kenji eatP Japonês e
inglês são línguas espelhadas. E tais coerências foram encontradas
em grande número de idiomas: se um idioma tem o verbo antes
do objeto, como em inglês, também terá preposições; se seus ver­
bos vêm depois do objeto, como em japonês, terá posposições.
É uma descpberta importante. Significa que as super-regras
dão conta não só de todos os sintagmas em inglês mas de todos
os sintagmas em todas as línguas, com uma única modificação: re­
mover a ordem da esquerda para a direita de cada super-regra. As
árvores tornam-se móveis. Uma das regras diría:

X - » {ZP*, X}
“Um X-barra é formado de um núcleo X e qualquer número de
protagonistas, em qualquer ordem.”

Para obter inglês, basta acrescentar uma informação: a ordem


dentro do X-barra é “núcleo principal”. Para obter japonês, essa
informação é que a ordem é “núcleo final”. Da mesma forma, a
outra super-regra (aquela para sintagmas) pode ser destilada dc
forma que a ordem esquerda-direita evapore, e um sintagma orde­
nado em determinada língua possa ser reconstituído adicionando
novamente “X-batra inicial” ou “X-barra final”. A informação
que faz com que uma língua seja diferente da outra chama-se pa­
râmetro.
A super-regra está começando a parecer menos um esquema
exato de um sintagma em particular e mais um guia ou princípio
geral de como os sintagmas devem ser. O princípio só é utilizável
depois de combinado com os parâmetros de ordem específicos do
idioma. Essa concepção geral de gramática, proposta pela primeira
vez por Chomsky, chama-se teoria dos “princípios e parâmetros”.
Chomsky afirma que as super-regras sem ordem (princípios)
são universais e inatas, e que quando as crianças aprendem deter­
minada língua, não têm de aprender uma longa lista de regras

131
I O instinto da linguagem I

porque nasceram conhecendo as super-regras. Só têm de aprender


se seu idioma tem o parâmetro núcleo inicial, como em português,
ou núcleo final, como em japonês. Para isso, basta perceberem se
um verbo vem antes ou depois de seu objeto em qualquer senten­
ça de sua língua materna. Se o verbo vem antes do objeto, como
em Coma o espinafre!, a criança conclui que a língua é de núcleo ini­
cial; se vier depois, como em O espinafre coma!, a criança conclui
que a língua é de núcleo final. Dessa forma, a criança tem à sua
disposição grandes porções de gramática, de uma só vez, como se
só tivesse de escolher entre duas posições possíveis de um inter­
ruptor. Se essa teoria da aprendizagem da língua for verdadeira,
ajudará a desvendar o mistério dc como, num breve espaço de tem­
po, a gramática das crianças de repente adquire a complexidade
da língua usada pelos adultos. Elas não adquirem dezenas ou cen­
tenas dc regras; só ligam alguns poucos interruptores mentais.

«{♦ •}» ф

Os princípios c parâmetros da estrutura sintagmática apenas


especificam que tipo dc ingredientes podem entrar num sintagma
e em que ordem. Não articulam nenhum sintagma em particular.
Sozinhos, ficariam descontrolados, provocando todo tipo dc dano.
Dc uma olhada nas sentenças abaixo, todas elas conformes aos
princípios ou super-regras. Aquelas que marquei com asterisco
não soam bem.

Melvin dcsjcjuou.
^Melvin desjejuou a pizza.

Melvin devorou a pizza.


“‘'Melvin devorou.

Melvin colocou o carro na garagem.


*Melvin colocou.

132
I Como a linguagem funciona I

^Melvin colocou o carro.


*Melvin colocou na garagem.

Sheila alegou que Bill é mentiroso.


*Sheila alegou a asseveração.
"^Sheila alegou.

Deve ser culpa do verbo. Alguns verbos, como desjejuar, não po­
dem aparecer em companhia de um sintagma nominal objeto di­
reto. Outros, como devorar, não podem aparecer sem esse sintag­
ma. Isso é verdade mesmo se desjejuar e devorar têm um sentido mui­
to parecido, sendo ambos formas de comer. Você deve lembrar va­
gamente que nas aulas de gramática verbos como desjejuar eram
chamados “intransitivos” e verbos como devorar eram chamados
“transitivos”. Mas os verbos vêm em muitos sabores, não apenas
esses dois. O verbo colocar não fica satisfeito ate ter um NP objeto
(o carro) e um sintagma preposicional (na garagem). O verbo alegar
exige uma sentença encaixada (que Bill é mentiroso) e nada mais.
Portanto, dentro dc um sintagma, o verbo é um tanto despóti­
co, determinando quais posições disponibilizadas pelas super-re­
gras devem ser preenchidas. Essas exigências estão armazenadas
nas entradas do verbo do dicionário mental mais ou menos assim:

desjejuar:
verbo
significa “comer pela primeira vez no dia”
comedor = sujeito

devorar:
verbo
significa “comer algo avidamente”
comedor = sujeito
coisa comida = objeto

133
I O instinto da linguagem I

co lo ca r :
verbo
significa “fazer com que algo vá para algum lugar”
colocador = sujeito
coisa colocada = objeto direto
lugar = objeto preposicional

a le g a r :
verbo
significa “declarar sem provar”
declarante = sujeito
declaração = sentença complemento

Cada uma dessas entradas lista uma definição (em mentalês)


de algum tipo dc evento, seguida dos protagonistas que desempe­
nham papéis no evento. Л entrada indica como cada protagonista
pode ser encaixado na sentença —como sujeito, objeto, objeto in­
direto, sentença encaixada etc. Para que uma frase pareça gramati­
cal, as exigências do verbo têm de ser satisfeitas. Melvin devorou não
soa bem porque a necessidade que devorar tem do papel de uma
“coisa comida” não é satisfeita1'’. Melvin desjejuou a pizza não soa
bem porque desjejuar não pede pizza ou qualquer outro objeto.
Pelo fato dc os verbos terem o poder de determinar como uma
sentença transmite quem fez o que para quem, não se pode esco­
lher os papéis numa frase sem olhar para o verbo. Foi por isso que
a sua professora de gramática estava enganada quando disse que o
sujeito dc uma sentença é quem “faz a ação”. O sujeito da senten­
ça muitas vezes é quem faz a ação, mas somente quando o verbo
assim o exige; o verbo também pode lhe atribuir outros papéis:13

13. O português tem a peculiaridade dc permitir que sentenças com verbos transitivos sejam
gramaticais mesmo sem o objeto. Por isso, a sentença “Melvin devorou" é possível, o que
não c o caso na grande maioria das línguas. (N. da R. X )

134
I Como a linguagem funciona I

О lobo mau assustou os três porquinhos. [O sujeito está assustando.] «


Os três porquinhos temiam o lobo mau. [O sujeito está sendo assus­
tado.]

Meu grande amor me deu um presente muito criativo. [O sujeito está


dando.]
Recebí um presente muito criativo do meu grande amor. [O sujeito
está recebendo.]

Dr. Nussbaum realizou uma cirurgia plástica. [O sujeito está operan­


do alguém.]
Cheryl sofreu uma cirurgia plástica. [O sujeito está sendo operado.]

Com efeito, muitos verbos têm duas entradas diferentes, que


distribuem papéis diferentes. Isso pode dar lugar a um tipo comum
de ambigüidades, como na velha piada: “Chame o elevador.” “Ele­
vador!!” Numa das apresentações dos Harlem Globetrotters, o
juiz dá a bola a Meadowlark Lemon e diz: “Atire!” Lemon apon­
ta o dedo para a bola e grita: “Bang!” O humorista Dick Gregory
conta que, nos tempos de segregação racial, ele se aproximou do
balcão de uma lanchonete em Mississippi. A garçonete lhe diz:
“Não servimos pessoas de cor.” “Não tem problema”, respondeu
ele, “não como pessoas de cor. Gostaria de um pedaço de frango.”

Então, como fazemos para distinguir Homem morde cachorro de


Cachorro morde homem} A entrada do dicionário para morder diz: “O
mordedor é o sujeito; a coisa mordida, o objeto.” Mas como encon­
trar sujeitos e objetos na árvore? A gramática coloca pequenas
marcas nos sintagmas nominais que podem se combinar com as
funções presentes na entrada de um verbo no dicionário. Essas
marcas chamam-se casos. Em muitas línguas, casos aparecem como
prefixos ou sufixos dos substantivos. Por exemplo, em latim, os

135
I O instinto da linguagem I

substantivos para homem e cachorro, homo e canis, mudam de ter­


minação dependendo de quem está mordendo quem:

Canis hominem mordet. [não é notícia]


Homo canem mordet. [é notícia]

Júlio César sabia quem mordeu quem porque o substantivo cor­


respondente ao mordido aparecia com -em no fim. Isso permitia a
Ccsar encontrar o mordedor c o mordido mesmo quando a ordem
dos dois estivesse invertida, o que c possível cm latim: Hominem canis
mordet significa o mesmo que Canis hominem mordet, c Canem homo mor­
det significa o mesmo que Homo canem mordet. Graças aos marcadores
dc caso, as entradas dos verbos no dicionário não tem a tarefa dc in­
formai' onde seus protagonistas efetivamente aparecem na sentença.
Um verbo só precisa indicar que, digamos, quem faz é um sujeito;
se o sujeito está na primeira, terceira ou quarta posição na sentença
depende do resto da gramática, c a interpretação é a mesma. Na ver­
dade, nas chamadas línguas “flexionais”, marcadores de caso são ex­
plorados ainda mais amplamcntc: o artigo, adjetivo e substantivo
dentro dc um sintagma são marcados com um certo marcador de
caso, e o falante pode pôr as palavras do sintagma cm qualquer lugar
da fr ase (por exemplo, colocar o adjetivo no fim para enfatizar), pois
sabe que o ouvinte pode reorganizá-las mentalmcntc dc volta. Ksse
processo, denominado concordância, c uma segunda solução dc en­
genharia (além da própria estrutura sintagmática) para o problema
de codificar um emaranhado dc pensamentos intcr-relacionados cm
seqüências de palavras que aparecem uma depois da outra.
Há alguns séculos, o português, como o latim, tinha sufixos que
marcavam os casos claramente. Mas todos os sufixos se desgasta­
ram, e a única sobrevivência de caso são os pronomes pessoais —eu,
tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas são usados para a função de sujeito; meu,
teu, seu, sua, nosso, vosso, seus, suas, para a função de possessivo; те, mim,
comigo, te, ti, contigo, se, si, consigo, o, a, os, as, lhe, lhes, para todas as outras
funções. (Poder-se-ia acrescentar a essa lista a distinção who/whom

136
I Como a linguagem funciona I

em inglês, mas ela está em vias de desaparecer; nos Estados Unidos,


•whotti só é usado de modo coerente por escritores cuidadosos e fa­
lantes pretensiosos.) E interessante notar, no entanto, que todos di­
zemos Eu te vi e nunca Me tu vi, e portanto a sintaxe casual ainda deve
estar viva e forte em português. Embora os substantivos não apre­
sentem mudanças concretas em função do papel que desempe­
nhem, são marcados por casos silenciosos. Alice se deu conta disso
quando viu um rato nadando perto dela em sua lagoa de lágrimas:

“Será que adianta”, pensou Alice, “falar com esse rato? Aqui c tudo
tão fora dos eixos que eu acho bem capaz de ele saber falar: dc qual­
quer modo, não custa nada tentar.” —O, Rato —começou ela a di­
zer —,você sabe a saída dessa lagoa? Estou cansada dc nadar aqui, ó,
Rato! (Alice pensava que esta devia ser a forma correta de se dirigir
a um rato: nunca tinha tido antes tal experiência, mas lembrava-se dc
ter visto na gramática latina dc seu irmão: “Rato —dc um rata) —para
um rato —um rato —O, rato!”)

Quem fala inglcs marca um sintagma nominal com um caso


verificando a que o substantivo é adjacente, gcralmcntc um verbo
ou preposição (no caso do rato dc Alice, o arcaico marcador de
caso “vocativo” O). Usam-sc essas marcas dc caso para adaptar
cada sintagma nominal ao papel decretado pelo verbo.
A exigência dc que os sintagmas nominais recebam marcas dc
caso explica por que certas sentenças são impossíveis mesmo se
admitidas pelas super-regras. Por exemplo, em inglês, um prota­
gonista objeto direto tem de vir imediatamente depois do verbo,
antes de qualquer outro protagonista: diz-se Teíl Mary that John is Co­
rning, e não Tell that John is coming Mary, O motivo disso c que o NP
Mary não pode simplesmente ficar vagando por aí sem nenhuma
marca; seu caso tem de estar marcado por sua adjacência ao verbo.
Fato curioso, verbos e preposições podem marcar o caso de seus
NPs adjacentes, mas substantivos e adjetivos não: governador Cali­
fórnia e temeroso o lobo, embora interpretáveis, são agramaticais. O

137
I O instinto da linguagem I

inglês e o português exigem que a preposição sem sentido de [of]


preceda o substantivo, como em governador da Califórnia e temeroso do
lobo, exclusivamente para lhe fornecer uma marca de caso. As sen­
tenças que enunciamos são controladas com rédea curta por ver­
bos e preposições —sintagmas não podem simplesmente aparecer
onde e quando quiserem no VP, têm de apresentar uma descrição
de seu trabalho e portar um crachá de identidade o tempo todo.
Por isso não podemos dizer coisas como A noite passada dormi pesa­
delos uma ressaca roncando sem pijama lençóis estavam amassados, mesmo se
um ouvinte pudesse adivinhar o que isso quer dizer. Essa é uma
importante diferença entre línguas humanas e, por exemplo, pid-
gins c os sinais dos chimpanzés, cm que qualquer palavra pode vir
praticamente em qualquer lugar.

Bem, c o que acontece com o sintagma mais importante, a sen­


tença? Se um sintagma nominal é uma expressão construída cm
torno de um substantivo, e una sintagma verbal, uma expressão
construída cm torno dc um verbo, uma sentença se constrói cm
torno de que?
Л crítica Mary McCarthy disse certa vez sobre sua rival Lillian
Hcllman: “Cada palavra que ela escreve c uma mentira, até mes­
mo V e ‘o’.” O insulto apóia-se no fato de que uma frase é a me­
nor coisa que pode ser verdadeira ou falsa; isso não ocorre com
uma palavra isolada (ou seja, McCarthy afirma que as mentiras de
Hellman vão muito além do que se imagina). Portanto, a frase deve
exprimir algum tipo de significado que não reside precisamente
em seus substantivos e verbos, mas que abarca toda a combinação
e a transforma numa proposição que pode se revelar verdadeira ou
falsa. Tomemos, por exemplo, a sentença otimista O Red Sox vai
vencer o Campeonato Mundial. A palavra vai não se aplica apenas
a Red Sox, ou a Campeonato Mundial, ou a vencer; aplica-se a

138
I Como a linguagem funciona I

todo um conceito, o-Red-Sox-vencerTO-Campeonato-Mundial. Este


conceito é atemporal e, portanto, inverídico. Poderia referir-se a uma
glória passada, a um futuro hipotético, ou até a uma mera possi­
bilidade lógica, destituída de qualquer esperança de que isso um dia
aconteça. Mas a palavra vai prende o conceito a coordenadas tem­
porais, nesse caso, ao fragmento de tempo subseqüente ao momen­
to em que a frase é enunciada. Quando declaro “O Red Sox vai ven­
cer o Campeonato Mundial”, posso estar certo ou errado (provavel­
mente errado, espero!).
A palavra vai é um exemplo de um auxiliar, uma palavra que
expressa camadas de sentido que têm a ver com a veracidade de
uma proposição elaborada por um falante. Essas camadas in­
cluem ademais negação (como em não vai e não tinha), necessidade
(deve), e possibilidade (pode). Os auxiliares costumam aparecer na
periferia de árvores de sentenças, refletindo o fato de que afir­
mam algo sobre o restante da sentença tomada como um todo. O
auxiliar é o núcleo da sentença exatamente da mesma maneira
como um substantivo é o núcleo do sintagma nominal. Como o
auxiliar c também chamado de INFL (para “inflection”) [fle-
xão], podemos chamar a sentença de IP [de ínflectíonal phrase) (um
sintagma INFL ou sintagma flexionai ou sintagma auxiliar). A
sua posição de sujeito é ocupada pelo sujeito da sentença toda,
refletindo o fato de que uma sentença é uma asserção de que al­
gum predicado (o V V ) é verdadeiro sobre seu sujeito. Eis, mais
ou menos, a aparência de uma sentença na versão atual14 da teo­
ria de Chomsky:

14. Pinker está simplificando o sistema. Na verdade, desde meados da década de 80, Chomsky
considera a sentença como um CP (compkmentizer phrase, ou sintagma compíementizador).
Portanto, essa versão não é tão atu al assim. ( N . da R.T.)

139
I O instinto da linguagem I

IP

O Red Fox I VP

vencer o Campeonato
Mundial

Um auxiliar c um exemplo dc “termo functivo”, um tipo de


palavra diferente dos substantivos, verbos e adjetivos, os termos
dc “conteúdo”.Termos functivos incluem artigos (o, a, os, as, um,
uma, uns, umas, alguns, algumas), pronomes (ele, ela), o marca­
dor do possessivo em inglês ’s, preposições sem sentido como de,
palavras que introduzem complementos como que c para, e con­
junções como e c ou, lermos functivos são pedaços de gramática
cristalizada; delineiam sintagmas maiores dentro dos quais NP,
VP c AP se encaixam, servindo portanto dc andaimes para a sen­
tença. De acordo com isso, a mente trata os termos functivos de
outra maneira que os termos dc conteúdo. As pessoas acrescentam
o tempo todo novos termos dc conteúdo à língua (como o subs-
tantivo fax, e o verbo to snarf, que significa recuperar um arquivo
de computador), mas os termos functivos formam um clube fe­
chado que se recusa a aceitar novos membros. E por isso que as
tentativas dc introduzir pronomes neutros de gênero como hesh e
tbon fracassaram. Recorde, também, que pacientes com lesões em
áreas do cérebro vinculadas à linguagem têm mais dificuldades
com termos functivos como or e be do que com termos de conteú­
do como oar e bee. Quando as palavras custam caro, como em te­
legramas e manchetes de jornal, os escritores tendem a eliminar os
termos functivos, esperando que o leitor possa reconstituí-los a

140
I Como a linguagem funciona I

partir da ordem dos termos de conteúdo. Mas, pelo fato de os


termos functivos serem as pistas mais confiáveis da estrutura sin­
tagmática da sentença, a linguagem telegráfica é sempre arriscada.
Certa vez um repórter mandou o seguinte telegrama a Cary Grant:
“How old Cary Grant?” Ele respondeu: “Old Cary Grant fine.”1516
Eis algumas manchetes de uma coleção chamada Squad Helps Dog
Bite Victim'6, reunida pela equipe do Columbia Journalism Review:

New Housing for Elderly Not Yet Dead [Novo abrigo para idoso
ainda não enterrado]
New Missouri U. Chancellor Expects Little Sex [Novo reitor da
Universidade de Missouri prevê pouco sexo/espera lazer um
pouco de sexo]
12 on Their Way to Cruise Among Dead in Plane Crash [12 a ca­
minho dc cruzeiro entre mortos da queda do avião]
N.J. Judgc to R.ule on Nude Beach [Juiz de N.J. delibera sobre/na
praia dc nudismo]
Chou Remains Crcmatcd [Dcspojos de Chu cremados/Chu conti­
nua cremado]
Chincsc Apcman Datcd [Homem-macaco chinês datado/Marcado
encontro com homem-macaco chinês]
Hcrshey Bars Protcst [Hcrshey impede protestos/Chocolates Hcrshcy
protestam]
Rcagan Wins on Budgct, But More Lies Ahead. [Reagan vence orça­
mento, mas há mais pela frentc/Rcagan vence orçamento, mas
mais mentiras pela frente]
Dcer Kill 130,000 [Veados mortos, 130.000/Veados matam
130.000]
Complaints About NBA Referees Growing Ugly [Protestos sobre
juizes da NBA cada vez piores]

15. Há aí um jogo entre How old is C.C., quantos anos tem C.G., e How is oid C.G., Como está
o velho C.G., ao que Cary Grant responde: Velho C.G. bem. (N. daT.)
16. Equipe ajuda vítimas de mordidas de cães/Equipe ajuda cão a morder vítima. (N. daT.)

141
I O instinto da linguagem I

Termos functivos também sintetizam boa parte do que torna


uma língua gramaticalmente diferente de outra. Embora todos os
idiomas tenham termos functivos, as diferentes propriedades des­
ses termos têm importantes efeitos sobre a estrutura das senten­
ças no idioma. Já vimos um exemplo: os marcadores de caso e de
concordância evidentes em latim permitem que os sintagmas no­
minais mudem de lugar; os marcadores silenciosos do inglês os
obrigam a permanecer quietos. Termos functivos sintetizam o jei­
to dc scr gramatical dc uma língua, como nessas passagens que
usam termos functivos dc uma língua mas nenhum de seus ter­
mos dc conteúdo:

DER JA M M IiR W O C H

Es brillig war. Die schlichtcTovcn


Wirrtcn und wimmcltcn in Wabcn.

U i JA SIiRO Q UIi

II brilguc: les tôves lubricillcux


Sc gyrcnt cn vrillant dans la guave.

Esses eleitos também podem scr notados cm trechos que to­


mam termos functivos dc uma língua mas termos dc conteúdo dc
outra, como a seguinte nota cm pscudo-alemão que costumava ser
enviada por vários centros dc computação universitários do mun­
do anglo-falante:

AGH TU N G ! ALLES LOOKENSPEEPERS!

Das сотриtermachine it nicht fuer gefmgerpoken und mittengrab-


ben. Ist easy schnappen der springenwerk, blowenfusen und pop-
pencorken mit spitzensparken. Ist nicht fuer gewerken bei das
dumpkopfen. Das rubbernecken sightseeren keepen das cottenpic-
kenen hans in das pockets muss; relaxen und watchen das blinken-
lichten.

142
I Como a linguagem funciona I

Como o troco faz parte do jogo, operadores de computador


na Alemanha enviaram uma tradução em pseudo-inglês:

A TTEN TIO N

This room is fulfilled mit special electronische equippment. Finger-


grabbing and pressing the cnoeppkes from the computers is allowed
for die experts only! So ali the “lefthanders” stay away and do not
disturben the brainstorming von here working intelligencies. Other-
wise you will be out thrown and kicked andeswhere! Also: please
keep still and only watchen astaunished the blinkenlights.

4. *j*

Quem freqíienta coquetéis sabe que uma das principais contri­


buições de Chomsky para a vida intelectual c o conceito de “es­
trutura profunda”, junto com as “transformações” que a conver­
tem numa “estrutura de superfície”. Quando Chomsky introdu­
ziu esses termos no ambiente behaviorista de inícios dos anos 60,
a reação foi fantástica. Estrutura profunda passou a referir tudo
que fosse oculto, profundo, universal ou significativo, e logo cm
seguida falava-se da estrutura profunda da percepção visual, de
histórias, mitos, poemas, pinturas, composições musicais etc.
Infclizmentc, cabe a mim divulgar agora que a “estrutura profun­
da” é um artifício técnico prosaico cm teoria gramatical. Não é o
significado de uma sentença, nem o que todas as línguas humanas
têm em comum. Embora a Gramática Universal e estruturas sin-
tagmáticas abstratas pareçam ser os aspectos permanentes da teo­
ria gramatical, muitos lingüistas —inclusive, em seus mais recentes
escritos, o próprio Chomsky —acreditam que a estrutura profun­
da per se é dispensável. Para desestimular todo o tumulto gerado
pela palavra “profundo”, os lingüistas agora costumam referir-se
a isso como “estrutura -d” [de deep], Na verdade, trata-se de um
conceito bastante simples.

143
I O instinto da linguagem I

Lembre-se de que, para que uma sentença esteja bem formada,


o verbo precisa obter o que quer: todas as funções arroladas na
entrada do verbo no dicionário têm de aparecer nas posições a
elas designadas. Mas, em muitas sentenças, o verbo não parece ob­
ter o que quer. Lembre-se que colocar exige um sujeito, um objeto e
um sintagma preposicional; Ele coloca o carro e Ele coloca na garagem
parecem incompletas. Mas, então, como explicamos as seguintes
sentenças impecáveis?

O carro foi colocado na garagem.


O que ele colocou na garagem?
Onde ele colocou o carro?

Na primeira sentença, colocar parece estar se virando bem sem


objeto, o que c impróprio. N a verdade, agora ele rejeita um obje­
to: O carro fo i colocado o Toyota na garagem c horrível. Na segunda sen­
tença, colocar t ambém aparece com uma falta de objeto patente. Na
terceira, seu sintagma preposicional obrigatório desapareceu. Será
que isso quer dizer que temos dc acrescentar novas entradas para
colocar, permitindo que cm alguns lugares ele apareça sem seu ob­
jeto ou seu sintagma preposicional? Obviamcntc não, ou Ele colocou
o carro e Ele colocou na garagem voltariam a scr admissíveis.
L claro que num certo sentido esses sintagmas estão aí —só
não estão onde esperamos que estejam. Na primeira sentença, a
posição do sujeito está ocupada por uma construção passiva: o
NP o carro desempenha a função de “coisa colocada”, que seria
gcralmcntc o objeto. Na segunda sentença, que c uma pergunta
-QU (ou seja, uma pergunta formada com quem, o que, onde, quando
ou por que'), a função de “coisa colocada” é expressa pelo termo o
que e aparece no começo. Na terceira sentença, a função de “lu­
gar” também aparece no começo e não depois do objeto, que se­
ria seu lugar esperado.
Uma maneira simples de explicar esse padrão é dizer que toda
sentença tem duas estruturas sintagmáticas. A estrutura sintagmá-

144
I C om o a lin gu a gem fu n c io n a I

tica de que falamos até agora, aquela definida pelas super-regras, é


a estrutura profunda. Estrutura profunda é a interface entre o di­
cionário mental e a estrutura sintagmática. Na estrutura profun­
da, todos os protagonistas de colocar aparecem nos lugares espera­
dos. A partir daí, uma operação de transformação pode “deslocar”
um sintagma para um soquete previamente vago em outro lugar
da árvore. E aí onde iremos encontrar o sintagma na sentença cor­
rente. Essa nova árvore é a estrutura de superfície (agora denomi­
nada “estrutura-s”, pelo fato de ela nunca ter merecido o devido
respeito como mera representação “de superfície”). Abaixo temos
a estrutura profunda c a estrutura de superfície dc uma sentença
passiva:

Na estrutura profunda da esquerda, o carro está onde o verbo


exigia; na estrutura de superfície da direita, está onde efetivamen­
te o escutamos. Na estrutura de superfície, a posição desde a qual
o sintagma foi deslocado contém um símbolo inaudível, denomi­
nado “vestígio”, remanescente da transformação por deslocamen­
to. O vestígio serve como lembrete da função que o sintagma
deslocado desempenhava. Ele nos diz que, para descobrir o que
o carro está fazendo no evento de colocação, deveriamos procurar o
soquete “objeto” na entrada do verbo colocar, esse soquete diz “coi­
sa colocada”. Graças ao vestígio, a estrutura de superfície contém

145
I O instinto da linguagem I

a informação necessária para recuperar o sentido da sentença; a es­


trutura profunda original, utilizada apenas para inserir o conjun­
to adequado de palavras retirado do léxico, não desempenha ne­
nhum papel.
Por que as línguas se dão ao trabalho de separar estruturas pro­
fundas e estruturas de superfície? Porque, para ter uma sentença
utilizável, é preciso mais do que simplesmente manter o verbo sa­
tisfeito —coisa que a estrutura profunda faz. Freqüentemente, um
dado conceito tem de desempenhar certa função, definida pelo
verbo no sintagma verbal, e, simultaneamente, outra função, inde­
pendente do verbo, definida por alguma outra camada da árvore.
Considere a diferença entre Castores constroem diques e sua passiva,
Diques são construídos por castores, Na cadeia do sintagma verbal —no
nível dc quem fez o que a quem —, os substantivos desempenham
as mesmas funções em ambas as sentenças. Os castores fazem as
construções, diques são construídos. Mas acima, no nível da sen­
tença (IP) —o nível das relações sujeito-predicado, do que se afir­
ma ser verdadeiro sobre o que —, desempenham funções diferen­
tes. Л sentença ativa diz algo sobre castores em geral, e é verdadei­
ra; a sentença passiva diz algo sobre diques cm geral, e é falsa (pois
alguns diques, como o dique Grand Coulce, não são construídos
por castores). A estrutura de superfície, que coloca diques na posi­
ção dc sujeito da sentença, mas o vincula a um vestígio de sua po­
sição original no sintagma verbal, permite matar dois coelhos de
uma cajadada só.
A possibilidade de deslocar sintagmas sem que percam suas
funções também oferece ao falante de uma língua com ordem rí­
gida de palavras como o inglês um pouco de jogo de cintura. Por
exemplo, sintagmas geralmente enterrados no meio da árvore po­
dem ser deslocados para o começo da sentença, onde podem se
enganchar com material fresco na mente do ouvinte. Por exemplo,
no caso de um locutor esportivo estar descrevendo o avanço de
Nevin Markwart num jogo de hóquei no gelo, ele poderia dizer

146
Como a linguagem funciona I

Markwart lança Gretzky!!! Mas se o locutor estivesse falando de


Wayne Gretzky, ele diría Gretzky ê lançado por Markwart!!! Além do
mais, como na voz passiva é possível deixar vaga a função do agen­
te, geralmente o sujeito na estrutura profunda, ela é útil quando se
quer evitar mencionar essa função, como na evasiva de Ronald
Reagan: Errosforam cometidos.
A gramática é exímia em conectar agentes com diferentes pa­
péis em situações diversas. Numa pergunta como

O que ele colocou [v estíg io ] na garagem?

o sintagma nominal o que acaba vivendo uma vida dupla. No âm­


bito inferior do “quem fez o que para quem” do sintagma verbal,
a posição do vestígio indica que a entidade tem a função da coisa
sendo colocada; em cima, no âmbito de “o que está sendo afirma­
do sobre o quê” da sentença, o termo o que indica que o objetivo
da sentença é pedir que o ouvinte forneça a identidade de algo. Se
um lógico tivesse de exprimir o significado oculto da sentença, se­
ria algo como “Para qual x John colocou x na garagem”. Quando
essas operações de deslocamento se combinam com outros com­
ponentes sintáticos, como em Ela fo i aconselhada por Bob a ser exami­
nada por um médico ou Quem ele disse que Barry tentou convencer a sair? ou
Тех isfu n for anyone to tease17, os componentes interagem para deter­
minar o significado da sentença em cadeias de dedução tão intri­
cadas e precisas quanto os mecanismos de um relógio suíço.

❖ ❖ ❖

Depois de ter dissecado a sintaxe na sua frente, espero que sua


reação seja mais favorável do que a de Eliza Doolittle ou de Jack
Cade. Espero, no mínimo, tê-lo convencido de que a sintaxe é um

17. Estas orações foram traduzidas ao pc da letra. Em inglês elas são mais fluentes que cm
português. A tradução literal da última seria: Тех é gozado de se gozar. (N. daT.)

147
O instinto da linguagem I

“órgão [darwiniano] extremamente perfeito e complicado”. A sin­


taxe é complexa, mas sua complexidade tem uma razão de ser. Pois
nossos pensamentos são decerto ainda mais complexos, e estamos
limitados por uma boca que só consegue emitir uma palavra por
vez. A ciência começou a decifrar o maravilhoso código que nos­
sos cérebros usam para transmitir pensamentos complexos por
meio dc palavras e de seu ordenamento.
Os mecanismos da sintaxe são importantes também por outro
motivo. A gramática permite refutar de maneira clara a doutrina
empírica dc que não há nada na mente que antes não tenha estado
nos sentidos. Vestígios, casos, X-barras e o restante da paraferná­
lia da sintaxe não têm cor, cheiro e gosto, mas eles, ou algo pare­
cido com eles, devem fazer parte dc nossa vida mental inconsciente.
Isso não surpreendería um teórico dc computação serio. E impos­
sível escrever um programa medianamente inteligente sem definir
estruturas dc variáveis c de dados que não correspondem dire­
tamente aos dados dc entrada c dc saída. Por exemplo, um pro­
grama gráfico que tivesse dc armazenar a imagem dc um triângu­
lo dentro de um círculo não armazenaria os toques nas teclas que
o usuário dc fato rcaliz.ou para desenhar as formas, porque as mes­
mas formas poderíam ter sido desenhadas cm outra ordem ou
com outra ferramenta, como um mouse ou uma caneta ótica.
Tampouco poderia armazenar a lista dc pontos que têm dc ser
iluminados para que as imagens apareçam na tela, porque talvez o
usuário queira cm outro momento modificar o círculo de lugar e
deixar o triângulo no lugar, ou aumentar ou diminuir o círculo, e
uma longa lista de pontos não permitiría que o programa soubes­
se quais pontos pertencem ao círculo e quais pertencem ao triân­
gulo. Pelo contrário, as formas seriam armazenadas num formato
mais abstrato (como coordenadas de alguns poucos pontos de de­
finição para cada forma), formato este que não reflete nem as en­
tradas nem as saídas do programa, mas que pode traduzi-las sem­
pre que necessário.

148
I Como a linguagem funciona I

A gramática, uma espécie de software mental, deve ter evoluí­


do a partir de especificações similares. Embora os psicólogos in­
fluenciados pelo empirismo costumem afirmar que a gramática
reflete comandos que os músculos da fala recebem, espelha entoa­
ções em sons da fala, ou textos mentais para retratar as maneiras
como pessoas e coisas tendem a interagir, acho que essas afirma­
ções estão equivocadas. A gramática é um protocolo que tem de
conectar entre si o ouvido, a boca e a mente, que são três máqui­
nas muito diferentes. Ela não pode ser construída sob medida
para qualquer uma delas; tem de ter uma lógica abstrata própria.
A idéia de que a mente humana foi desenhada para usar estru­
turas de dados e de variáveis abstratas foi, e em alguns círculos
continua sendo uma afirmação chocante e revolucionária, porque
as estruturas não têm uma contrapartida imediata na experiência
da criança. Uma parcela da organização da gramática teria de es­
tar presente desde o princípio, como parte dos mecanismos dc
aprendizagem da língua que possibilitam ás crianças dar sentido
aos ruídos que escutam dos pais. Os detalhes da sintaxe sempre
tiveram um lugar destacado na história da psicologia, por serem
um caso em que a complexidade da mente não c causada pela
aprendizagem; a aprendizagem é causada pela complexidade da
mente. E isso sim foi motivo para notícia.

149
I
Palavras, palavras, palavras

5 A palavra glamour vem de


grammar, etimologia bas­
tante apropriada depois da revolução chomskiana. Quem não se
deslumbra com a força criativa da gramática mental, com sua ca­
pacidade de transmitir uma quantidade infinita de idéias com um
número finito de regras? Existe um livro sobre espírito e matéria
denominado Gmmmatical Man, e o discurso de um laureado com o
Prêmio Nobel que compara o mecanismo da vida com a gramáti­
ca gerativa. Chomsky foi entrevistado na revista Rolling Stone e cita­
do no programa de televisã o Saturday Night Live. Na história de
Woody Allen “The W hore o f Mensa”, o cliente pergunta: “E se
eu quisesse Noam Chomsky explicado por duas garotas?” “Sairia
caro”, responde ela.
Diferentemente da gramática mental, o dicionário mental não
recebeu cachê. Parece não passar de uma tediosa lista de palavras,
cada uma delas transcrita para a cabeça por uma memorização au­
tomática maçante. No prefácio ao seu Dicionário, Samuel Johnson
escreveu:

O destino dos que lidam com as atividades mais pífias da vida é


antes o de serem levados pelo medo da maldade do que atraídos
pela esperança do bem; estarem expostos a críticas, sem esperar re-

151
I O instinto da linguagem I

conhecimento; serem difamados por fracassos, ou punidos por ne­


gligência, sem aplauso para os sucessos e recompensa por diligência.
Entre esses infelizes mortais encontra-se o escritor de dicionários.

O próprio dicionário de Johnson define lexicógrafo como “al­


guém que faz o trabalho árduo, monótono e inofensivo de procu­
rar a significação original das palavras e detalhá-la”.
Neste capítulo veremos que esse estereótipo c injusto. O mun­
do das palavras é tão maravilhoso quanto o mundo da sintaxe, ou
ate mais. Pois não só as pessoas são tão infinitamente criativas com
palavras como o são com sintagmas e sentenças, como também a
memorização dc palavras isoladas exige um virtuosismo especial.
Lembre-se o teste do wug, que qualquer criança cm idade pre-
escolar resolve com facilidade: “Isso é um wug. Agora temos dois.
Então, são d o is___ .” Antes desse desafio, a criança nunca ouviu
ninguém dizer a palavra wugs, nem foi recompensada por enunciá-
la. Portanto, as palavras não são simplesmente retiradas de um ar­
quivo mental. As pessoas têm dc ter uma regra mental para pro­
duzir palavras novas a partir das velhas, que diz mais ou menos
isto: “Para formar o plural dc um substantivo, acrescente o sufixo
-s.” O truque engenhoso existente por trás da língua humana —o
lato dc ela ser um sistema combinatório discreto —é usado cm
pelo menos dois lugares: sentenças c sintagmas são construídos
com palavras por meio das regras da sintaxe, e as próprias palavras
são construídas a partir dc pedacinhos menores por meio dc um
outro conjunto de regras, as regras da “morfologia”.
A capacidade criativa da morfologia inglesa é patética se com­
parada com o que encontramos em outros idiomas. O substanti­
vo inglês aparece cm exatamente duas formas ( duck e ducks), o ver­
bo, cm quatro ( quack, quacks, quackef quaching). Em italiano e espa­
nhol modernos cada verbo tem por volta de cinqüenta formas;
em grego clássico, trezentas e cinqüenta; em turco, dois milhões!
Muitas das línguas que mencionei, como esquimó, apache, hopi,

152
I Palavras, palavras, palavras I

kivunjo, e a língua americana de sinais, são conhecidas por essa


prodigiosa capacidade. Como elas fazem isso? Eis um exemplo do
hivunjo, a língua banto que, como foi dito, faz o inglês parecer
um jogo de damas em comparação com o xadrez. O verbo “Nai-
kimlyiia”, que significa “Ele está comendo aquilo para ela”, com­
põe-se de oito partes:

• N-: um marcador que indica que a palavra é o “foco” daquele


ponto da conversa.
• -ã-: marcador de concordância do sujeito. Identifica que aquele
que come pertence à Classe I das dezesseis classes de gênero, “hu­
mano singular”. (Lembre-se que, para um lingüista, “gênero” sig­
nifica classe, não sexo.) Outros gêneros aplicam-se a substantivos
relativos a vários humanos, objetos finos ou extensos, objetos que
aparecem em pares ou grupos, os próprios pares ou grupos, ins­
trumentos, animais, partes do corpo, diminutivos (versão pequena
ou mimosa das coisas), qualidades abstratas, lugares precisos ou
genéricos.
• -T-: tempo verbal presente. Os outros tempos em banto podem so
referir a hoje, mais cedo hoje, ontem, não antes do que ontem, on­
tem ou antes, no passado remoto, habitualmente, em andamento,
consccutivamentc, hipoteticamente, no futuro, num tempo inde­
terminado, ainda não c às vezes.
• -kl-: marcador de concordância do objeto, nesse caso indicando
que a coisa comida pertence à Classe 7 de gênero.
• -ui-: marcador de bcncfactivo, indicando em beneficio dc quem a
ação está ocorrendo, nesse caso um membro da Classe I de gênero.
• -lyi-: o verbo “comer”.
• -Í-: um marcador “aplicativo”, indicando que o conjunto de pro­
tagonistas do verbo aumentou pela adição de uma função, nesse
caso a benefactiva. (Em termos de analogia, imagine que, em por­
tuguês, tivéssemos de adicionar um sufixo ao verbo assar quando
ele é usado em Assei um bolo para ela em contraposição ao usual
Assei um bolo.')

153
I O instinto da linguagem I

• -à: vogal final, que pode indicar modo indicativo versus modo
subjuntivo.

Se multiplicarmos a quantidade de possíveis combinações dos


sete prefixos e sufixos, teremos um resultado de meio milhão, e é
essa a quantidade de possíveis formas para cada verbo na língua.
Com efeito, Kivunjo e línguas semelhantes constroem toda uma
sentença dentro de uma única palavra complexa, o verbo.
Mas não fui muito justo com o inglês. De fato, o inglês é pobre
em termos de morfologia “flexionai”, em que se modifica uma pa­
lavra para que ela se encaixe na frase, como marcar um substantivo
com -s para o plural ou um verbo com - e i para o passado. Mas o
inglês não fica para trás em termos de morfologia “derivacional”,
em que sc cria uma palavra nova a partir de uma antiga. Por exem­
plo, o sufixo -able [-ável, -ível], como em leamable [aprendível], tea-
chable [cnsinável] e huggable [abraçável], transforma o significado de
um verbo “fazer X ” num adjetivo com sentido de “capaz de sofrer
a ação X ”. A maioria das pessoas se surpreende ao aprender quan­
tos sufixos derivacionais existem em inglês. Eis os mais comuns:

-able -ate -ify -ize


-age -ed -ion -iy
-al -en -ish -ment
-an -er -ism -ness
-ant -fui -ist -ory
-ance -hood -ity -ous
-ary -ic -ive -y

Além disso, o inglês é livre para formar “compostos”, o que


significa juntar duas palavras para formar uma nova, como tooth-
brush e mouse-eater1. Graças a esses processos, a quantidade de pala­

I. Escova de dentes c comedor de ratos. (N. daT.)

154
I Palavras, palavras, palavras I

vras possíveis, mesmo num inglês morfologicamente empobreci­


do, é imensa. O lingüista computacional Richard Sproat compi­
lou todas as palavras distintas empregadas nos textos de quarenta
e quatro milhões de palavras das reportagens da Associated Press a
partir de meados de fevereiro de 1988. Até 30 de dezembro, a lis­
ta continha trezentas mil formas vocabulares distintas, quase tan­
tas quanto as que existem num grande dicionário. Você provavel­
mente supõe que esse número esgote a quantidade de palavras in­
glesas que possam aparecer nessas notícias. Mas, quando Sproat
deu uma olhada no que chegou em 31 de dezembro, encontrou
nada menos que trinta e cinco formas novas, entre as quais instru-
menting, counterprograms, armhole, part~Vulcan,juzzier, groveleã, boulderlike,
mega-lizard, traumatological e ex~crítters.
O que é ainda mais impressionante é que os resultados de uma
regra morfológica podem fornecer elementos para uma outra, ou
para si mesma: pode-se falar da unmicrowaveability [impossibilidade
de serem esquentadas em forno de microondas] de algumas bata­
tas fritas ou de uma toothbrush-holderjastener box [caixa de prendedo-
res de suporte para escova de dentes] onde possamos guardar nos­
sos suportes para escovas de dentes. Isso torna a quantidade de
palavras possíveis numa língua maior que imensa; como o núme­
ro de sentenças, ela é infinita. Deixando de lado cunhagens extra­
vagantes criadas para serem imortalizadas no Guínness, uma candi­
data a palavra mais comprida em inglês até os dias atuais poderia
ser floccinaucinihilipílífication, definida no Oxford English Dictionary
como “a qualificação de algo como destituído de valor ou trivial”.
Mas esse é um recorde feito para ser quebrado:

floccinaucinihilipilificational: pertencente à qualificação de algo como


destituído de valor ou trivial
Jloccínaucíníhilipilificatíomlíze: fazer com que algo pertença à qualifica­
ção de algo como destituído de valor ou trivial
Jloccinaucinihilipilificatiomlization: o ato de fazer com que algo pertença à
qualificação de algo como destituído de valor ou trivial

155
I O instinto da linguagem I

Jloccinaudníhilípílifkatíonalízationak pertencente ao ato de fazer com que


algo pertença à qualificação de algo como destituído de valor ou
trivial
jlocdnaudnihilipilificationalizationalizc. fazer com que algo pertença ao
ato de fazer com que algo pertença...

Ou, se você sofre de sesquipedaliofobia, pode pensar em sua


great-grandmother [bisavó],great-great-grandmother [tataravó], great-great-
great-grandmother [tataratataravó] etc., estando, na prática, limitado
apenas pelo número de gerações desde Eva.
Afora isso, a combinação das palavras, bem como das senten­
ças, c delicada demais para scr produzida por um mecanismo dc
cadeias (sistema que seleciona um item dc uma lista, desloca-o cm
seguida para alguma outra lista, depois para outra). Quando Ro-
nald Rcagan propôs o Programa dc Defesa Estratégica, popular-
mente conhecido como Guerra nas Estrelas, imaginou um futuro
no qual um míssil soviético seria derrubado por um míssil antimíssil.
No entanto, os críticos do programa apontaram que a União
Soviética poderia contra-atacar com um míssil anti-antimíssíl. Sem
problemas, disseram os engenheiros formados no MfT; construi­
remos um míssil anti-anti-antimíssil. Essas armas dc alta tecnologia
necessitam dc uma gramática dc alta tecnologia —algo que possa
seguir e identificar todos os anti ligados a míssil, mais um míssil, no
começo. Uma gramática dc regras vocabulares (uma gramática dc
regras sintagmáticas para palavras) que possa encaixar uma palavra
entre um anti- e seu míssil é capaz de alcançar esses objetivos; um
mecanismo de cadeias não conseguiría, porque esquecería as peças
que colocou no começo da longa palavra quando ela chega ao fim.

Assim como a sintaxe, a morfologia é um sistema com uma or­


ganização inteligente, e muitas das aparentes excentricidades das

156
I Palavras, palavras, palavras I

palavras são produtos previsíveis de sua lógica interna. As palavras


têm uma anatomia delicada composta de partes, chamadas morfe-
mas, que se associam de determinadas maneiras. O sistema de re­
gras vocabulares é uma extensão do sistema de regras sintagmáticas
X-barra, no qual grandes coisas substantivas são construídas a par­
tir de coisas substantivas menores, coisas substantivas menores são
construídas a partir de coisas substantivas ainda menores, e assim
por diante. O maior sintagma composto de substantivos é o sin­
tagma nominal; um sintagma nominal contém um N-barra; um
N-barra contém um substantivo —a palavra. Ao passar da sintaxe
para a morfologia, simplesmente damos continuidade à dissecação,
analisando a palavra em partes substantivas cada vez menores.
Eis um diagrama da estrutura da palavra cachorros:

Nradical Nflcxão

cachorro -s

O topo dessa miniárvore é “N ” para “substantivo”; isso per­


mite a manobra dc atracamento pela qual a palavra inteira pode
ser encaixada no soquete do substantivo dentro dc qualquer sin­
tagma nominal. Para baixo, dentro da palavra, temos duas partes:
a forma elementar da palavra cachorro, geralmente chamada radical,
c a flcxão plural -s. A regra responsável por palavras flexionadas (a
regra que dá reputação ao teste do wug) é simplesmente

N —>Nradical Nflexão
“Um substantivo pode ser formado do radical de um substantivo
seguido de uma flexão do substantivo.”

A regra tem uma interface amigável com o dicionário mental:


cachorro estaria arrolado como radical de um substantivo que signi­

157
I O instinto da linguagem I

fica “cachorro”, e -s estaria arrolado como flexão de substantivo


que significa “plural de”. Essa regra é o exemplo mais simples,
mais despojado do que se poderia chamar uma regra gramatical.
No meu laboratório, nós a empregamos como modelo facilmente
estudável de gramática mental, que nos permite documentar mi­
nuciosamente a psicologia das regras lingüísticas da infância até a
velhice, tanto em pessoas normais como naquelas que sofrem de
lesões neurológicas, de maneira semelhante à dos biólogos, que
empregam a mosca Drosophila para estudar a maquinaria dos genes.
Embora simples, a regra que cola uma flexão a um radical é uma
operação computacional surpreendentemente poderosa, porque
reconhece um símbolo mental abstrato, como “radical de subs­
tantivo”, em vez dc estar associada a uma determinada lista de pa­
lavras ou uma determinada lista de sons ou uma determinada lis­
ta de significados. Podemos usar a regra para flexionar qualquer
item do dicionário mental que inclua “radical de substantivo” em
sua entrada, sem nos preocuparmos com o que a palavra significa;
podemos não só transformar cachorro em cachorros mas também hora
em horas e motivo cm motivos. A regra também nos permite formar
plurais sem nos preocuparmos com o som da palavra; podemos
colocar no plural palavras que soam estranho como em os Gor-
bachevs, os Bachs e os Мао Tsé-Tungs. Pela mesma razão, a regra
se aplica perfeitamente a substantivos novinhos em folha, como
faxes, nerds, wugs e zots.
Aplicamos essa regra tão naturalmente que talvez a única ma­
neira que eu tenha de fomentar alguma admiração pelo que ela faz
é comparar os seres humanos com um certo tipo de programa de
computador que muitos cientistas da computação alardeiam como
sendo a onda do futuro. Esses programas, denominados “redes
neurais artificiais”, não aplicam regras como a que acabei de lhes
mostrar. Uma rede neural artificial trabalha por analogia, trans­
formando wug em wugged porque se parece vagamente com bug~bug~
ged, walk~walked e milhares de outros verbos que a rede aprendeu a

158
IPalavras, palavras, palavras I

reconhecer. Mas quando a rede encontra um verbo novo, diferen­


te de tudo para o que ela foi treinada até então, é freqüente que
ela estrague tudo, pois não possui uma categoria abstrata e abran­
gente como “radical do verbo" em que se apoiar e à qual acrescen­
tar um afixo. Eis algumas comparações entre o que as pessoas cos­
tumam fazer e o que redes neurais artificiais costumam fazer dian­
te de um teste wug:

FO R M A TÍPICA FO R M A TÍPICA
DE PASSADO DADA DE PASSADO DADA
VERBO PELAS PESSOAS PO R REDES N EU RA IS
mail mailcd mcmblcd
conflict conflicted conflacted
wink winked wok
quivcr quivcrcd Cjiiess
satisfy satifícd scddcrdcd
sm airf smairfcd spruricc
trilb trilbcd rrcclilt
smccj smccjcd Iccíloag
friig frilgcd frcezlcd

Também os radicais podem ser construídos a partir de partes,


num segundo nível, mais profundo, de composição de palavras.
Em compostos como Yugoslavia report, sushi-lover, broccoli-green e
toothbrush2,

Nradical

Nradical Nradical

Yugoslavia report

juntam-se dois radicais para formar um novo radical, conforme a


regra

2. Relatório Iugoslávia, apreciador de sushi, verde-brócoli e escova de dente. (N. daT.)

159
I O instinto da linguagem I

Nradical —>Nradical Nradical


“O radical de um substantivo pode ser formado pelo radical de um
substantivo seguido de outro radical de substantivo.”

Em inglês, é comum que um substantivo composto se escreva


com hífen ou pela junção de suas duas palavras, mas também pode
ser escrito com um espaço entre ambos os componentes como se
ainda fossem palavras separadas. Isso confundiu seu professor dc
gramática fazendo com que ele dissesse que cm Yugoslavia report
“Yugoslavia” é um adjetivo. Para perceber que isso não pode estar
correto, tente compará-lo com um adjetivo verdadeiro como inte­
ressante [interesting]. Você pode dizer Esse relatório parece interessante
mas não Esse relatório parece Iugoslávia! Existe uma maneira simples de
saber se algo, em inglês, c uma palavra composta ou um sintagma:
nas palavras compostas, o acento recai geralmcntc sobre a primei­
ra palavra; nos sintagmas, sobre a segunda. Um dark róom [aposen­
to escuro] (sintagma) é qualquer recinto escuro, mas um dárk room
[câmara escura] (palavra composta) é onde o fotógrafo trabalha, c
pode-se acender um darkroom quando o fotógrafo terminou seu
trabalho. Um quadro negro [black bóardj (sintagma) é necessariamen­
te um quadro que c preto, mas alguns quadros-negros [bláckboards\
(palavra composta) são verdes c ate brancos. Sem ter como guia a
pronúncia ou a pontuação, algumas seqüências dc palavras podem
scr lidas ou como sintagmas ou como compostos, como as sc-
guintes
O manchetes:

Squad Hei ps Dog Bitc Victim [Esquadrão ajuda vítimas dc mordida


de cães/Esquadrão ajuda cão a morder vítimas]
Man Eating Piranha Mistakenly Sold as Pet Fish [Piranhas antro­
pófagas vendidas por engano como peixe de aquário/Homem que
come piranhas vendido por engano como peixe de aquário]
Juvenile Court to Try Shooting Defendant [Juizado de menores jul­
gará acusado de tiroteio/tentará atirar no réu]

160
I Palavras, palavras, palavras I

Radicais novos também podem ser formados a partir de radi­


cais antigos acrescentando-se afixos (prefixos e sufixos), como os
-я/, -íze e ~ation que usei repetidamente para obter palavras cada vez
mais longas a i infinitum (como em sensationalizationalization). Por
exemplo, ~able se combina com qualquer verbo para criar um adjeti­
vo, como em crunch-crunchable. O sufixo ~er transforma qualquer ver­
bo em substantivo, como em crunch-cmncher, e o sufixo -ncss transfor­
ma qualquer adjetivo em substantivo, como em cruncby-cmnchiness/

Aradical

Vradical Aradiçalafixo

crunch -ablc

A regra que os forma c

Aradical —>Radical Aradiçalafixo


“O radical dc um adjetivo c formado dc um radical a que se acres­
centa um sufixo,”

e um sufixo como -ável [~able] teria a seguinte entrada no dicioná­


rio mental:

- ável:
afixo de radical de adjetivo
significa “que pode ser X’ado/ido”
ligue-me ao radical de um verbo3

3. Em português o equivalente seria -ável ou -ível como em amar/amável, punir/punível; ~(d)or,


-(sjor como em trabalhar/trabalhador, escrever/escritor, confessar/confessor; -dade como em
bom/bondade. (N. daT.)

161
I O instinto da linguagem I

Como as flexões, os afíxos de radicais são promíscuos, e se


unem a qualquer radical que seja da categoria adequada. Assim,
temos achável, encontrável, conjeturável, wugável etc. Seu sentido é previ­
sível: que pode ser achado, que pode ser encontrado, que pode ser
conjeturado, até mesmo que pode ser “wugado”, seja lá o que wug
signifique. (No entanto, ocorre-me uma exceção: na frase Pergun-
tedlhe o que ele achava da resenha quefiz de seu livro, e sua resposta fo i ímpu~
blicável, a palavra ímpuhlicável significa algo bem mais específico do
que “que não pode ser publicado”.)
O esquema que permite determinar o significado de um radi­
cal a partir do significado de suas partes é similar àquele usado
em sintaxe: o “núcleo” c um elemento especial que determina a que
se refere o aglomerado. Assim como o sintagma ogato de chapéu é um
tipo dc gato, mostrando c\uc gato é seu núcleo, um relatório Iugoslávia
c um tipo de relatório, c hipercxcitabilidade c um tipo de capacidade,
portanto relatório e -abílidade têm de ser os núcleos dessas palavras.
O núcleo dc uma palavra em inglês é simplesmente o morfema si­
tuado na sua extremidade direita.

Dando continuidade à dissecação, podemos decompor radi­


cais cm partes ainda menores. A menor parte de uma palavra, a
parte que não pode ser cortada cm partes menores, é chamada sua
raiz. Raízes podem se combinar com sufixos especiais para for­
mar radicais. Por exemplo, cm inglês, a raiz Darwin é encontrada
dentro do radical Darwinían. O radical Darwinian, por sua vez,
pode entrar na regra de sufixação para produzir o novo radical
Darwinianism. A partir daí, a regra de flexão poderia até mesmo
nos dar a palavra Darwinianisms, incorporando os três níveis da es­
trutura vocabular:

162
I Palavras, palavras, palavras I

Nradical Nflexão

Nradical Nradicalafixo -s

Nraiz Nraizafixo -ism

Darwin -ian

No entanto, o que é interessante é que as peças só se encaixam


de determinadas maneiras. Assim, Darwinism, radical formado pelo
sufixo de radical -ism, não pode hospedar -ian, porque -ian só se
vincula a raízes; por isso, Darwinismian (que significaria “perten­
cente ao Darwinism”) soa ridículo. De modo similar, Darwínsían
( “pertencente aos dois famosos Darwms, Charles e Erasmus”),
Darwinsianism e Darwinsism são impossíveis, porque palavras total­
mente flexionadas não podem ser acrescidas de sufixos de raízes
ou de radicais.
Ali, no nível mais inferior das raízes e afixos de raízes, entramos
num mundo estranho. Tomemos o termo inglês electricity. Parece
conter duas partes, úcctric e -ity:

Nradical

Nraiz Nraizsufixo

electric -ity

Mas será que essas palavras são realmente montadas por meio
de uma regra que gruda uma entrada de dicionário, -ity, na raiz
electric, assim?

Nradical —>Nraiz Nraizsufixo


“O radical de um substantivo pode ser formado pela raiz de um
substantivo e um sufixo.”

163
I O instinto da linguagem I

-ity:
sufixo de raiz de substantivo
significa “estado de ser X”
ligue-me a uma raiz de substantivo

Desta vez, não. Em primeiro lugar, não se obtém electricity pela


simples junção da palavra electric com o sufixo -ity —o som disso
seria “electrick itty”. A raiz a que -ity está ligado mudou de pro­
núncia para “electríss”. Esse resíduo deixado pela remoção do su­
fixo é uma raiz que não pode ser enunciada isoladamente.
Em segundo lugar, combinações entre raízes e afixos têm sig­
nificados imprevisíveis; o esquema claro que permitia interpretar
o significado do todo a partir do significado das partes se rompe.
Complexidade é o estado dc scr complexo, mas eletricidade não é o es­
tado dc scr elétrico (vocc nunca diria que a eletricidade desse
novo abridor de latas torna-o prático); é a força que alimenta algo
que c elétrico. De modo similar, instrumental4 não tem nada a ver
com instrumentos, intoxicate não diz respeito a substâncias tóxi­
cas5, não se recita num recital, e uma transmissão de cinco velocidade não
c um ato dc transmitir.
Em terceiro lugar, a aplicação da suposta regra c dos afixos não
c livre, diícrcntcmcntc das outras regras c afixos que examinamos.
Por exemplo, algo pode ser acadcmíc ou acrobatic ou aerodynamic ou al-
coholic, mas academicity, acrobaticity, aerodynamicity c alcoholicity soam hor­
rivelmente mal (apenas para tomar as quatro primeiras palavras
terminadas em -ic que aparecem no meu dicionário eletrônico).
Portanto, no terceiro e mais microscópico nível da estrutura
vocabular, as raízes e seus afixos, não encontramos regras autênti­

4. Num certo sentido, como cm: He was instrumental infinâing workjor bis bestfriend [Contribuiu
para achar emprego para o seu melhor amigo.] (N. da T.)
5. Não se usa como "intoxicar”, porém como inebriar, embebedar, também em sentido figu­
rado: extasiar, arrebatar. (N. daT.)

164
I Palavras, palavras, palavras I

cas que constroem palavras de acordo com fórmulas previsíveis,


no estilo wug. Os radicais parecem estar armazenados no dicioná­
rio mental com seus próprios significados idiossincráticos. M ui­
tos desses radicais complexos formaram-se originalmente depois
do Renascimento, quando os eruditos importaram muitas pala­
vras e sufixos do latim e francês para o inglês, usando algumas das
regras apropriadas para aquelas línguas. O inglês herdou as pala­
vras, mas não as regras. O que nos faz pensar que os falantes do
inglês moderno analisam mentalmente essas palavras como árvo­
res e não como cadeias homogêneas de sons é que todos sentimos
que há uma interrupção natural entre electric e '•ity. Também reco­
nhecemos uma afinidade entre a palavra electric e a palavra electricity,
e reconhecemos que qualquer outra palavra que contenha ~ity deve
ser um substantivo.
Nossa capacidade dc perceber um padrão dentro de uma pa­
lavra, mesmo sabendo que o padrão não é produto de alguma re­
gra poderosa, serve de inspiração para um certo gênero de jogos
de palavras. Escritores e falantes conscientes do que dizem mui­
tas vezes estendem os sufixos latinizados dc raízes a novas formas
por analogia, como cm religiosity, critícality, systematicity, raniomicity,
insipídtfy, calumniate, concíliate, stereotypy, iisaffiliate, gallonage c Shaviatf.
Essas palavras dão uma certa impressão de peso c seriedade, fa­
zendo desse estilo um alvo fácil para paródias. Um cartum de
1982, dc autoria dc Jeff MacNelly, colocou o seguinte discurso
de renúncia na boca de Alexander Haig, o palavroso Secretário
de Estado:

I decisioncd the necessifaction of the resignatory action/option


due to the dangerosity of the trendflowing of forcign policy away6

6. Alcni das palavras facilmente reconhecíveis por seu radical latino, temos gallonage. número
ou proporção de galões de alguma substância, e Sbavian: estudioso da obra de G. B. Shaw ou
pertencente a essa obra. (N. daT.)

165
I O instinto da linguagem I

from our originatious careful coursing towards consistensivity, pur-


posity, steadfastnitude, and above ali, clarity.78

Outro cartum, deTomToles, mostrava um acadêmico barbado


explicando por que os resultados do Teste Verbal de Aptidão Es­
colar sempre foram baixos:

Incomplcte implementation of strategized programmatics designa-


ted to maximize acquisition of awareness and utilization of Com­
munications skills pursuant to standardized revicw and assessment
of languaginal devclopmcnt.íl

No mundo dos programadores de computador e executivos da


área de informática, fazer essas analogias serve para certas especi­
ficações jocosas e não para parecer pomposo. O New Hackers Dic-
tionary, uma compilação do jargão de hackers, é um catálogo pra-
ticamentc completo dos afixos de raízes que-não-podem-ser-apli-
cados-livrcmcntc em inglês:

ainbimouslrous adj. Capaz dc operar um mouse com ambas as mãos.


barfulous adj. Algo que deixaria qualquer um enjoado [barf\.
bogosity n. O grau cm que algo c falsificado [bogus],
bogotify v. Falsificar algo.
bozotic adj. Que tem a qualidade dc Bozo, o palhaço.
cuspy adj. fiuncionalmcntc elegante.
depedilate v. C.ortar o rodapé de (p. ex., ao imprimir o pc da página).
diniwitlery n. Exemplo de afirmação de um babaca [dim-witted\.

7. Uma possível tradução seria: Dccisionci a necessifàção da ação/opção renunciatória devi­


do à pcriculosidade do afastamento do fluxo do curso da política para assuntos estrangei­
ros da nossa direção original rumo à consistencividade, propositividade, firmitude c, aci­
ma dc tudo, clareza. (N. da T.)
8. Implementação incompleta de projetos programáticos estratégicos destinados a maximizar
a aquisição de conhecimento e a utilização de habilidades comunicacionais conseqiicntes
com a revisão c avaliação padronizadas do desenvolvimento linguageiro. (TM. daT.)

166
I Palavras, palavras, palavras I

geekdom n. Estado de quem é um tecno-nerd.


marketroid n. Membro do departamento de marketing de uma com­
panhia.
mumblage n. O assunto do murmúrio [mumbling] de alguém.
pessimal adj. Contrário de “optimal”.
mdgitude n. Estado de estar wedged (empacado; incapaz de continuar
uma ação sem ajuda).
wizardly adj. Pertencente a programadores especializados.

Embaixo, no nível das raízes de palavras, também encontramos


padrões confusos em plurais irregulares como mouse~mice e man~
men e em passados irregulares como drink^drank e seek~sougbt. Os pas­
sados irregulares tendem a formar famílias, como drink-dmnk, sink-
sank, shrink-sbrank, stink~stank, sing-sang, ring-rang, spring^sprang, swim~
swam e sit-sat, ou blow-ldew, know-knew, grow-grew, throw-threWfJly-Jlew
e slay^slew. Isso se deve ao fato de que, há milhares de anos, o indo-eu-
ropeu primitivo, o ancestral de línguas como o inglês c a maioria
dos outros idiomas europeus, tinha regras que substituíam uma
vogal por outra para formar o tempo passado, assim como agora
temos a regra que acrescenta -ed. Os verbos irregulares ou “fortes”
do inglês moderno não passam de fósseis daquelas regras; as pró­
prias regras já morreram e desapareceram. A maioria dos verbos
que aparentemente deveríam pertencer às famílias irregulares são
arbitrariamente excluídos, como podemos ver nos seguintes ver­
sos burlescos;

Sally Salter, she was a young teacher who taught,


And her friend, Charley Church, was a preacher who praught;
Though his enemies called him a screecher, who scraught.

His heart, when he saw her, kept sinking, and sunk;


And his eye, meeting hers, began winking, and wunk;
While she in her tum, fell to thinking, and thunk.

167
I O instinto da linguagem I

In secret he wanted to speak, and he spoke,


To seek com his lips what his heart long had soke,
So he managed to let the truth leak, and it loke.

The kiss he was dying to steal, then he stole;


At the feet where he wanted to kneel, then he knole;
And he said, “I feel better than ever I fole.”4

As pessoas têm simplesmente de decorar cada forma de passado


separadamente. Mas, como esse poema mostra, podem ser sensíveis
aos padrões que existem entre elas c podem ate estender esses pa­
drões a palavras novas para conseguir um efeito humorístico, como
no discurso de Haig c no dos hackcrs. Quem já não se viu tentado
pela graça de sneeze-snozc, scjweze-scjuoze, take~took~tooken c shít~ shatque
se baseiam cm analogias com jreeze-Jroze, break-broke-broken e sit-saií
hm Crazy .biglisb, Richard Lcderer escreveu um ensaio intitulado
‘Toxcn in the Henhice”, cm que as formas irregulares de plural se
alastram: booth-beeth, harmonica-harmonicae, mother-methren, drum^dra, Kleenex-
Kleeníces c batbtub-batbtubim“. Hackers falam defaxen, VAJÍen, boxen, mee-
cc c Mcicintcesh. A revista Newsweek certa vez se referiu aos artistas de
Las Vcgas que usam roupas extravagantes cheias de pedrarias como
iJvíi. Certa vez, numa tira de Charlie Brown, a professora de Linus,
Miss Othmar, pediu aos seus alunos que colassem cascas de ovos na9*I.

9. As formas de passado corretas são: tcacb-tauglit; prcach-prcachcd; scrcech-screeched;


sink-sank; wink-winked; think-thoughc; spcak-.spoke; seck-souglu'; lenk-leaked; steal-
stole; kncel-knclt ou kneclcd; ícel-felt. (N. da R. T.)
I(). As formas corretas são: snccze-sncezed; squeczc-squcczed; takc-took-takcn; sbit-sJiittcd
(apesar dc a forma sbat também constar no Cambridge International Dictiotmry o f Enghish.'). (N.
d a R .T .) ......................
I I . O título significa “Raposas nos galinheiros”, e sua forma correta seria “Foxes in the
Hcnhouses'’. As outras formas de plural deveríam ser regulares também e foram basea­
das em formas irregulares existentes em inglês, como: ox-oxen; mouse-mice; tooth-tccth;
alga-algac; brother-brcthren (forma arcaica); datum-data; index-indices; cherub-cheru-
bim; nuclcus-nuclei. (N. da R. T.)

168
I Palavras, palavras, palavras I

forma de íglí. Maggie Sullivan escreveu um artigo no New York Times


propondo o “fortalecimento” da língua inglesa pela conjugação de
um número maior de verbos como se fossem “fortes”1213:

Subdue, subdid, subdone: Nothing could have subdone him the way her
violet eyes subdid him.
Seesaw, sawsaw, seensaw. While the children sawsaw, the old man thought
of long ago when he had seensaw.
Pay, pew, pain: He had pain for not choosing a wife more carefully.
Ensnare, ensnore, ensnorn: In the 60’s e 70s, Sominex ads ensnorc many
who had never been ensnorn by ads before.
Commemoreat, comtnemorale, commemoreaten: At the banquct to comnic-
morcat Herbcrt Hoover, spirits werc high, and by the cnd of the
cvening many other Republicans had been commemoreaten.

Em Boston conta-se uma velha piada sobre uma mulher que


aterrissou no aeroporto Logan e perguntou ao motorista de táxi:
“Can you take mc someplacc wherc I can gct scrod?” Ele respon­
deu: “Nossa, c a primeira vez que escuto isso no subjuntivo mais-
que-perfeito.”1'1
As vezes acontece de uma forma engraçada c aparentemente
culta pegar c sc disseminar por uma comunidade lingüística, como
ocorreu com catch-caught centenas de anos atrás por analogia com
teach-taught, c como vem ocorrendo hoje em dia com sneah-snuck por
analogia com stick-stuck, (Fiquei sabendo que has tooken c a forma
preferida entre os atuais freqüentadores de shopping centcrs.) Es­
se processo pode ser visto claramente quando comparamos diale­

12 . Todos esses verbos são regulares, e portanto deveriam ter suas formas de passado com -ed
no final. (N. da R.T.)
13. Há um jogo de palavras entre scrod, filhote de bacalhau, c um suposto partícípio de screw,
forma vulgar paia “fazer sexo”. Portanto, a mulher pergunta sc o motorista pode levá-la a
algum lugar onde pode obter bacalhau e ele entende cjue ela lhe pede para lcvá-la a um lu­
gar onde possa ser "comida”. (N. daT.)

169
I O instinto da linguagem I

tos, que conservam os produtos de seus próprios modismos passa­


dos. O rabugento colunista, H. L. Mencken, era também um res­
peitável lingüista amador, que documentou várias formas de pas­
sado encontradas em dialetos regionais americanos, como beat~het
(similar a bleed-blecf), drag~drug (ãíg~dug) e belp-holp (telLtold), Dizzy
Dean, o lançador do time de beisebol St. Louis Cardinais e locu­
tor da CBS, era famoso por dizer “He slood into second base”14,
expressão comum na sua Arkansas natal. Durante quatro décadas,
os professores de inglês de toda a nação mandaram cartas para a
CBS exigindo que ele fosse retirado do programa, o que ele ado­
rou. Uma de suas respostas, durante a Grande Depressão, foi “A
lot of folks that aint sayin’ ‘ainV aint eatin”’15. Certa vez ele os
atormentou com a seguinte transmissão de um jogo:

The pilcher wound up and flang the bali at the batter. The batter
swang and misscd.Thc pitcher flang the bali again and this time the
batter conncctcd. He hit a high fly right to the center fielder. The
conter fielder was all set to catch the bali, but at the last minute his
eyes wcre blound by the sun and he dropped it!16

No entanto, c raro que tais conjugações criativas sejam adotadas;


os verbos irregulares continuam sendo, cm sua maioria, esdrúxulos.

Km gramática, a irregularidade se parece com um compêndio das


excentricidades e peculiaridades humanas. Formas irregulares são

14. Suposto passado dc “slide-slid”. (N. daT.)


15. Forma totalmente popular c coloquial, condenada pelos puristas, de dizer “Um monte
de caras que não dizem aint* não estão comendo”. A forma “aint” é considerada não-
padrao e é usada no lugar de atn not, is not, are not, have not e has not. (N. daT.)
16. As formas ironizadas $ло flitig-flung c swing-swung, que foram ditas com a em lugar de и
por analogia com sing-sang c blid-blinded, que foi dito como blound por analogia c o m fin d -
Jomid. (N. da R. T.)

170
I Palavras, palavras, palavras I

explicitamente abolidas em linguagens “racionalmente projetadas’’


como o Esperanto, a Novilíngua de Orwell e a Fala Auxiliar da
Liga Planetária da ficção científica de Robert Heinlein, Timefo r the
Stars, Talvez num ato de rebeldia contra essa uniformização, uma
mulher à procura de uma alma gêmea não conformista escreveu a
seguinte nota no New York Review of Books:

Você é um verbo irregular que acredita


que os substantivos tèm mais força que os
adjetivos? Despretensiosa, profissional de
DWF, residente na Europa há 5 anos, vio­
linista nas horas vagas, magra, atraente, com
filhos casados... procura homem jovial, sen­
sível, sangüíneo, entre 50 e 60, que cuida
da saúde, intelectualmente audaz, que va­
loriza a verdade, a lealdade e a sinceridade.

Quem estabeleceu uma relação entre irregularidade e a condi­


ção humana foi a escritora Marguerite Yourcenar: “A gramática,
com sua mistura de regras lógicas e de uso arbitrário, propõe ao es­
pírito jovem um antegosto do que lhe oferecerão mais tarde as
ciências da conduta humana, o direito ou a moral, todos os siste­
mas, enfim, em que o homem codificou sua experiência instintiva.”
Apesar de todos esses simbolismos sobre a liberdade da alma
humana, a irregularidade está fortemente inserida no sistema de
construção de palavras; o sistema como um todo é bastante hie-
rarquizado. Formas irregulares são raízes, encontradas dentro de
radicais, encontrados dentro de palavras, algumas das quais po­
dem ser formadas por flexões regulares. Essa estratificação não só
prediz muitas das palavras possíveis e impossíveis em inglês (por
exemplo, por que Darwinianism soa melhor que Darwinísmian); tam­
bém proporciona uma explicação clara para muitas perguntas tri­
viais sobre usos aparentemente ilógicos, como: Por que se diz
em beisebol que um rebatedorflied out [rebater a bola para o alto]

171
I O instinto da linguagem I

—por que um mero mortal nunca, flow n out para o campo de defe­
sa? Por que o time de hóquei de Toronto é chamado de Maple Leafs
e não de Maple Leavesl Por que muitas pessoas dizem Walkmans, em
vez de Walkmen, como plural de Walkman? Por que seria estranho
alguém dizer que todos os amigos de sua filha são low-lives \_low~life
= degenerado]?
Consulte-se qualquer manual de estilo ou livro de gramática
aplicada, e sc encontrará uma de duas explicações de por que a for­
ma irregular c descartada —ambas equivocadas. Uma c que não
há lugar nos livros para novas palavras irregulares cm inglês; qual­
quer nova forma adicionada à língua tem de ser regular. Não é
verdade: sc eu cunhar palavras novas como re-sing ou out-sing, seus
passados serão re-sang c out~sang, c não rc-singed c out~singed. Da mes­
ma maneira, li recentemente que há camponeses na China que an­
dam pelos campos de petróleo com pequenos galões, recolhendo
petróleo de poços sem vigilância; o artigo chama-os de oil-mice, e
não de oil-mouses. A segunda explicação é que quando uma palavra
adquire um sentido novo, não literal, como o f l y out do beisebol,
esse sentido exige uma forma regular. Os oil-mice são uma refuta­
ção clara dessa explicação, como muitas das outras metáforas ba­
seadas cm substantivos irregulares, que mantem firmemente sua
irregularidade: sawteelb (não sawlooths), I"reud’s intellectual cbildren (não
childs), snowmen (não snowrnansy7 etc. Da mesma forma, quando o
verbo to blow ganhou na gíria sentidos como to blow him away (assas­
sinar) c to blow it off (desconsiderar sem dar importância), as for­
mas do passado continuaram sendo irregulares: blew him away e
blew off tbe exam, e não blowed him away e blowed o ff the exam.
O verdadeiro motivo paraflied out e Walkmans provém do algo­
ritmo que serve para interpretar palavras complexas a partir dos
significados de palavras simples que lhes dão origem. Lembre-se

17. Dentes de serra, filhos intelectuais de Freud, bonecos de neve. (N. daT.)

172
I Palavras, palavras, palavras I

que, em inglês, quando uma palavra grande é construída a partir


de palavras menores, a palavra grande recebe todas as propriedades
de uma palavra em particular, que se encontra na sua extremidade
direita: o núcleo. O núcleo do verbo to overshoot é o verbo to shoot,
portanto overshooting é um tipo de shooting, e é um verbo, porque shoot
é um verbo. De modo similar, um workman [trabalhador] é um subs­
tantivo singular, porque man, seu núcleo, é um substantivo singu­
lar, e faz referência a um tipo de homem [имя], não a um tipo de
trabalho [work]. As estruturas de palavras são assim:

N N

work mnn

Basicamente, o conduto de percolação do núcleo para o nódu-


lo superior se aplica a todas as informações armazenadas na pala­
vra núcleo: não só seu caráter de substantivo ou de verbo, e não só
seu significado, mas também qualquer forma irregular armazena­
da nela. Por exemplo, na entrada do dicionário mental para shoot
constaria “Tenho minha própria forma irregular de passado, shot”.
Essa informação infiltra-se para cima e se aplica à palavra comple­
xa, assim como qualquer outra informação. O passado de overshoot
é, por isso, overshot (e não overshooted). Da mesma maneira, a palavra
man contém a indicação “Meu plural é men”. Como man é o nú­
cleo de workman, a indicação se infiltra até o símbolo N de work­
man, e portanto o plural de workman é workmen. E também por isso
que temos out-sang, oil-mice, sawteeth e blew him away.
Já podemos responder a perguntas triviais. A fonte das pecu­
liaridades de palavras c o m o f l y out e Walkmans é sua falta de núcleo.
Uma palavra sem núcleo é uma exceção que, por algum motivo,
difere em algumas propriedades de seu elemento mais à direita,
aquele em que se basearia se fosse uma palavra comum. Um exem-

173
I O instinto da linguagem I

pio simples de palavra sem núcleo é um low-life —não é um tipo de


vida mas um tipo de pessoa, aquela que leva uma vida degenerada.
Portanto, na palavra low-life, o encanamento normal de percolação
deve estar entupido. Mas o encanamento dentro de uma palavra
não pode estar entupido para apenas um tipo de informação; está
entupido, nada passa. Se low-life não extrai seu significado de life,
tampouco pode extrair seu plural de life. A forma irregular asso­
ciada a life, ou seja, lives, fica presa no dicionário, sem condições de
borbulhar para cima e alcançar a palavra low-life. Para preencher a
lacuna, aparece a regra regular genérica, “acrescente o sufixo -s”, e
temos low-lifes. Por um raciocínio inconsciente similar, os falantes
chegam a saber-tooths (um tipo de tigre, não um tipo de dente [íood>]),
tenderfoots (lobinho, escoteiro novato, que não é um tipo de pé [/boi]
mas um tipo de jovem com pés macios),flatfoots (também não é um
tipo de pc [/bof] mas uma gíria para policiais), e still lifes (natureza-
morta, não um tipo dc vida [life], mas um tipo de pintura).
Desde o lançamento do Walkman da Sony, ninguém tem cer­
teza se dois deles são Walkmen ou Walkmans. (A alternativa não-se-
xista Walkpersort criaria um dilema, pois teríamos de escolher entre
Walkpersons c Walkpeoplef) A tentação de dizer Walkmans provem do
fato dc a palavra não ter núcleo: um Walkman não é um tipo dc
homem, portanto seu significado não vem da palavra man nela
contida, c, pela lógica da ausência dc núcleo, tampouco deveria re­
ceber a forma plural de man. Mas qualquer tipo dc plural é incô­
modo, porque a relação entre Walkman e man parece muito obscu­
ra. Parece obscura porque a palavra não foi composta segundo ne­
nhum esquema identificável. E um exemplo do pseudo-inglês po­
pular no Japão em nomes e marcas de produtos. (Por exemplo, o
nome de um refrigerante popular é Sweat18, e nas camisetas lemos
inscrições enigmáticas como CIRCUIT BEAVER, NURSE MEN-

18. Sweat = suor, que acharam que fosse homófono de sweet ~ doce. (N. daT.)

174
I Palavras, palavras, palavras I

TALITY e BONERACTIVE W EAR.) A Sony Corporation tem


uma resposta oficial para a questão de como se referir a mais de
um Walkman. Temendo que sua marca se transformasse num subs­
tantivo e se tornasse tão genérica como cotonete ou bom~bril, sempre
evitaram as questões gramaticais insistindo em denominar o pro­
duto de Walkman Personal Stereos.
E quanto aflyin g out? Para o entendido em beisebol, essa locu­
ção não se baseia no verbo familiar to fly ( “mover-se no ar”) mas
no substantivo a fly ( “bola rebatida que realiza uma trajetória pa­
rabólica”). T ofly out significa “sofrer uma eliminação [out] reba­
tendo uma bola [fly] que é apanhada pelo adversário”. É claro que
o substantivo a fly veio do verbo tofly. A estrutura de palavra-den-
tro-de-palavra-dentro-de-palavra pode ser vista nesse diagrama de
árvore que parece um bambu:

V
I
N
I
V
fly

Como a palavra inteira, representada pior seu rótulo superior, é


um verbo, mas o elemento de que é feita num nível abaixo é um
substantivo, tofly out, como lowAfe, deve ser sem núcleo —sc o subs­
tantivo f l y fosse seu n ú cleo, f l y out também teria de ser um substan­
tivo, o que ele não é. Destituído de núcleo e do encanamento de
dados a ele associados, as formas irregulares do verbo original to
fly , ou seja, flew eflow n , ficam presas no nível mais inferior e não
conseguem borbulhar para cima para se aplicar à palavra inteira. A
regra regular -ed aparece em seu papiel habitual como último recur­
so, e por isso dizemos que Wade Boggsflied out. O que mata a irregu­
laridade de to fly out não é, portanto, seu sentido especializado,
mas o fato de ser um verbo baseado numa palavra que não é um ver­

175
I O instinto da linguagem I

bo. Pela mesma lógica, dizemos Tbey ringed the cíty with artillery ( “for­
maram um anel em torno da cidade”), e não They rang the city with
artillery, e Hegrandstanded to the crowd ( “fez uma jogada espetacular”),
e não He grandstood to the crowd.
Esse é um princípio que funciona sempre. Lembra-se de .Sally
Ride, a astronauta? Foi muito falada por ser a primeira america­
na a ir para o espaço. Mas, recentemente, Mae Jemison a supe­
rou. Ela não só foi a primeira americana negra a ir para o espaço,
como apareceu na revista People em 1993 na lista das cinqüenta
pessoas mais bonitas do mundo. Numa jogada publicitária, disse­
ram que cia “has out-Sally-Rided Sally Ride”14 (e não “has out-
Sally-Ridden Sally Ride”). Por muitos anos a prisão mais abjeta
do Estado de Nova York foi Sing Sing. Mas desde a rebelião no
Attica Corrcctional Eacility cm 1971, Attica tornou-se mais abje­
ta: ela “has ouf-Sing-Singcd Sing Sing” (c não “has out-Sing-Sung
Sing Sing”21’).
No que tange aos Maple Leafs, o substantivo que recebe plu­
ral não c leaf, a unidade da folhagem, mas um substantivo baseado
no nome próprio Maple Leaf, o símbolo nacional do Canadá. Um
nome não c o mesmo que um substantivo. (Por exemplo, embora
um substantivo possa vir precedido de um artigo definido, cm in­
glês o mesmo não acontece com um nome próprio: não se pode
dizer the Donald, a não ser que você seja IvanaTrump, cuja língua
materna c o checo.) Por isso, o substantivo a Maple Leaf (referin-
do-sc, suponhamos, ao goleiro do time) não pode ter núcleo, pois
c um substantivo baseado numa palavra que não c um substanti­
vo. E um substantivo cuja substantividade não provém de um de
seus componentes tampouco pode ter um plural irregular prove­
niente daquele componente; precisa da forma regular Maple Leafs.
Essa explicação também responde à pergunta que intrigou David1920

19. Jogo dc palavras intraduzívcl com outride, deixar para trás. (N. daT.)
20. Idcm, com outsing. (N. daT.)

176
I Palavras, palavras, palavras I

Letterman numa das recentes apresentações de seu programa Late


Night: por que o principal time de beisebol da liga de Miami se
chama Florida Marlins e não Florida Marlin, já que em inglês o
plural do peixe marlin é marlin? Na verdade, a explicação se aplica a
todos os substantivos baseados em nomes próprios:

Não agüento mais lidar com todos os Mickey Mouses dessa adminis­
tração. [e não Mickey Micej
Hollywood tem se apoiado em filmes baseados em heróis de histó­
rias em quadrinhos e seus sequazes, como os três Supermans e os
dois Batmans. [não Supermen e Batmenj
Por que a segunda metade do século vinte não produziu mais Thomas
Manns! [não Thomas Menn]
Julia Child c o marido vêm para jantar hoje à noite. Sabe, os Childs
são grandes cozinheiros, [não os Children]

Portanto, formas irregulares vivem na parte inferior dos dia­


gramas cm árvore cias estruturas vocabulares, onde raízes c radi­
cais do dicionário mental são inseridos. O psicolingüista do de­
senvolvimento, Pctcr Gordon, fez uso desse efeito num engenho­
so experimento para mostrar como a mente das crianças parece
estar organizada segundo a lógica da estrutura vocabular que ali
sc encontra.
Gordon concentrou sua atenção numa aparente estranheza no­
tada pela primeira vez pelo lingüista Paul Kiparsky: compostos
são formados a partir de plurais irregulares e não a partir de plu­
rais regulares. Por exemplo, uma casa infestada de camundongos [a
house infested with micej pode ser descrita como míce~ínfested, mas soa­
ria estranho chamar uma casa infestada de ratos [a house infested with
ratsj de ratsmnfested. Dizemos que está rat-infested, mesmo se, por de­
finição, um só rato não pode fazer uma infestação. Assim tam­
bém, muito se tem falado sobre men-bashing [vergonha masculina]

177
I O instinto da linguagem I

mas nada sobre gays-bashing (somente sobre gay~basbing), e existem


teethmarks [marcas de dentes], mas não clawsmarks [marcas de garras].
Antigamente, havia uma canção sobre um purple-people-eater [come­
dor de gente roxo], mas seria agramatical cantar sobre um purple-
babies-eater. Como os plurais irregulares lícitos e os plurais regula­
res ilícitos têm significados parecidos, a diferença deve estar na gra­
mática da irregularidade.
A teoria da estrutura vocabular explica esse efeito com facili­
dade. Plurais irregulares, por serem peculiares, têm de ser armaze­
nados no dicionário mental como raízes ou radicais; não podem
ser especificados por uma regra. Devido a essa forma de armaze­
namento, podem entrar na regra de composição que junta um ra­
dical existente com outro radical existente para produzir um novo
radical. Mas plurais regulares não são radicais armazenados no
dicionário mental; são palavras complexas reunidas às pressas por
regras dc flexão sempre que necessário. São juntadas tarde demais
no processo de reunião de raiz-com-radical-com-palavra para es­
tarem disponíveis para a regra de composição, cujos elementos só
podem ser fornecidos pelo dicionário.
Gordon descobriu que crianças de três a cinco anos obedecem
a essa restrição de modo enfadonho. Depois de mostrar um bone­
co para as crianças, ele primeiro perguntava a elas: “Eis um mons­
tro que gosta de comer barro. Como ele se chama?” E ele fornecia
a resposta, um mud-eater, para estimulá-las. Crianças gostam de
brincar disso, e quanto mais horripilante for a refeição, com mais
ansiedade elas preenchem as lacunas, muitas vezes para desespero
dos pais que as assistem. As partes cruciais vinham em seguida.
Um “monstro que gosta de comer camundongos”, diziam as crian­
ças, era um mice-eater. Mas um “monstro que gosta de comer ratos”
nunca era chamado de rats-eater, apenas de rat~eater. (Mesmo as
crianças que cometiam o erro tnouses em sua fala espontânea nun­
ca chamavam o boneco de mouses~eater.') Em outras palavras, as crian­
ças respeitavam as sutis restrições à combinação de plurais e com­

178
I Palavras, palavras, palavras I

postos inerentes às regras de estrutura vocabular. Isso sugere que


as regras adotam a mesma forma na mente inconsciente da crian­
ça e na mente inconsciente do adulto.
Mas a descoberta mais interessante ocorreu quando Gordon
verificou experimentalmente como as crianças teriam adquirido
essa restrição. Talvez, pensava ele, aprenderam-na dos pais escu­
tando se os plurais que aparecem dentro dos compostos enuncia­
dos pelos pais são irregulares, regulares ou ambos, e repetindo em
seguida todos os compostos que escutaram. Isso seria impossível,
descobriu ele. O mamanhês simplesmente não contém compostos
em que existem plurais. A maioria dos compostos é como tooth-
brush [escova de dentes], com substantivos singulares dentro deles;
compostos como mice~infested, embora gramaticalmente possíveis,
raramente são usados. As crianças enunciavam míce~eater mas nun­
ca rats-eater, mesmo sem nenhum exemplo da fala dos pais que in­
dicasse que é assim que a língua funciona. Eis, portanto, outra de­
monstração de conhecimento a despeito da “pobreza de estímu­
lo”, que prova que outro aspecto básico da gramática pode ser
inato. Assim como o experimento de Crain e Nakayama com o
boneco Jabba mostrou que, em se tratando de sintaxe, crianças au­
tomaticamente distinguem entre cadeias de palavras e estruturas
sintagmáticas, o experimento do comedor de camundongos de
Gordon mostra que, em se tratando de morfologia, as crianças au­
tomaticamente distinguem entre raízes armazenadas no dicioná­
rio mental e palavras flexionadas criadas por uma regra.

Uma palavra, numa palavra, é complicada. Mas, afinal de con­


tas, o que é uma palavra? Acabamos de ver que “palavras” podem
ser construídas a partir de partes por meio de regras morfológi-
cas. Mas, então, qual a diferença entre uma palavra, um sintagma ou
uma sentença? Não deveriamos reservar a palavra “palavra” para

179
I O instinto da linguagem I

algo que tem de ser decorado, o signo arbitrário de Saussure que


exemplifica o primeiro dos dois princípios do funcionamento da
língua (sendo o outro o sistema combinatório discreto)? A confu­
são vem do fato de que a palavra corriqueira "palavra” não é cien­
tificamente precisa. Pode-se referir a duas coisas.
O conceito de palavra que usei até agora neste capítulo é o de
um objeto Üngüístico que, mesmo que seja construído a partir de
partes segundo as regras da morfologia, comporta-se como algo
indivisível, a menor unidade no que diz respeito às regras da sin­
taxe —um “átomo sintático”, no sentido original dc átomo, ou seja,
algo que não pode ser dividido. As regras da sintaxe podem exa­
minar uma frase ou um sintagma c recortar e colar os sintagmas
menores dentro dc qualquer um deles. Por exemplo, a regra para
construir interrogativas pode examinar a sentença Tbis monster eats
micc [Esse monstro come camundongos] e deslocar o sintagma
que corresponde a mice para a frente, produzindo What did this rnons-
ter cal? |O que esse monstro comeu?] Mas as regras da sintaxe se
detêm na fronteira entre um sintagma e uma palavra; mesmo que
a palavra seja composta dc partes, as regras não podem exami­
nar a palavra “por dentro” c manipular essas partes. Por exemplo,
a regia da interrogativa não pode examinar a palavra micc-eater na
sentença This monster is a micc-eatcr c deslocar o morfema correspon­
dente a mice para a frente; a pergunta que disso resultaria c virtual-
mente ininteligível: What is this monster an -cater? (Resposta: mice,')
Da mesma maneira, as regras da sintaxe podem colar um advérbio
dentro dc um sintagma, como cm This monster eats mice quicUy [Esse
monstro come camundongos rapidamente], Mas não podem co­
lar um advérbio dentro de uma palavra, como em This monster is a
mice~quickly~eater. Por isso, dizemos que as palavras, ainda que com­
postas de partes reunidas conforme determinadas regras, são algo
diferente dos sintagmas, que são compostos de partes conforme
outro conjunto de regras. Portanto, um dos sentidos precisos de
nosso termo corrente “palavra” refere-se às unidades de língua que

180
I Palavras, palavras, palavras I

são produtos de regras morfológicas, e que não podem ser dividi­


das segundo regras sintáticas.
O outro sentido muito diferente de “palavra” refere-se a um
fragmento memorizado: uma seqüência de material lingüístico ar­
bitrariamente associada a um significado particular, um dos itens
da longa lista a que damos o nome de dicionário mental. Os gra­
máticos Anna M aria Di Sciullo e Edwin W illiams cunharam o
termo “listema”, a unidade de uma lista memorizada, para se re­
ferir a esse sentido de “palavra” (esse termo joga com “morfema”,
a unidade da morfologia, e “fonema”, a unidade de som). Note-
se que um listema não tem de coincidir com o primeiro sentido
preciso de “palavra”, um átomo sintático. Um listema pode ser
um ramo dc árvore de qualquer tamanho, desde que não possa ser
produzido mecanicamente por regras e portanto tenha dc ser me­
morizado. Tomemos as expressões idiomáticas. Não há meio de
predizer o sentido de bater a caçoleta, virar presunto, dar com a língua nos
dentes, engolir a língua, estar no papo, entregar a rapadura, pisar na bola, ou ter
um parafuso de menos a partir do sentido de seus componentes, por
intermédio das regras habituais dc núcleos e protagonistas. Bater a
caçoleta não c um tipo de batida, e as caçoletas nada têm a ver com
isso. O significado dessas unidades do tamanho de sintagmas tem
de ser memorizado como listemas, como se fossem unidades do
tamanho de uma palavra, e portanto são realmente “palavras” nes­
se segundo sentido. Di Sciullo e Williams, na qualidade dc gra-
mático-chauvinistas, assim descrevem o dicionário mental (léxico):
“Concebido como conjunto de listemas, o léxico é incrivelmente en­
fadonho por natureza... O léxico é como uma prisão —contém ape­
nas os fora-da-lei, e a única coisa que seus freqüentadores têm em
comum é o fato de não se submeterem à lei.”
Vou dedicar o resto deste capítulo ao segundo sentido de “pa­
lavra”, o listema. Será um tipo de reforma da prisão: pretendo mos­
trar que o léxico, embora seja uma coleção de listemas sem lei, me­
rece respeito e apreço. O que para um gramático parece ser um ato

181
I O instinto da linguagem I

de encarceramento à força —a criança escuta o pai usando uma


palavra e daí em diante a guarda na memória —, é na verdade um
feito inspirador.

Um dos aspectos extraordinários do léxico é a pura capacidade


de memorização que subjaz à sua construção. Quantas palavras
você imagina que uma pessoa média conhece? Se você for como
muitos escritores que emitiram uma opinião baseada no número
de palavras que eles escutam ou lêem, diria que as pessoas incultas
conhecem algumas centenas de palavras, as pessoas cultas alguns
milhares, e umas 15.000 no caso de profundos conhecedores da
língua como Shakespearc (é esta a quantidade de palavras diferen­
tes encontradas em suas peças e sonetos).
A resposta correta é bem diferente. As pessoas reconhecem
muito mais palavras do que as que empregam num determinado
período de tempo. Para avaliar a extensão do vocabulário de uma
pessoa —no sentido de listemas memorizados, e não de produções
morfológicas, é claro, pois estas últimas são infinitas —os psicólo­
gos empregam o seguinte método. Pegue o maior dicionário exis­
tente; quanto menor o dicionário, mais palavras a pessoa conhece
mas não é valorizada por isso. Para tomar um exemplo, o New
Standard Unabridged Dictionary de Funk & Wagnall tem 450.000 en­
tradas, um belo número, mas grande demais para ser testado exaus­
tivamente. (N a proporção de trinta segundos por palavra, oito
horas por dia, levaria mais de um ano para testar uma única pes­
soa.) Em vez disso, retire uma amostra —digamos, a terceira en­
trada de cima para baixo da primeira coluna de cada oitava página
par. Geralmente, as entradas têm muitos significados, como “hard:
( I ) firm; (2 ) difficult; (3 ) harsh; (4 ) toilsome...” etc., mas contá-
las implicaria tomar decisões arbitrárias sobre como juntar ou se­
parar significados. Portanto, é mais prático avaliar apenas quantas

182
I Palavras, palavras, palavras I

são as palavras de que a pessoa conhece pelo menos um significa­


do, e não quantos significados ela conhece. Apresenta-se ao sujei­
to testado cada palavra da amostra, e pede-se a ele que escolha o
sinônimo mais próximo de um conjunto de alternativas. Depois
de aplicar um fator de correção para eliminar as adivinhações, a
porcentagem de respostas corretas é multiplicada pelo tamanho
do dicionário, e isso dá uma estimativa da extensão do vocabulá­
rio da pessoa.
Na verdade, um outro fator de correção tem de ser aplicado
antes. Dicionários são produtos de consumo, não ferramentas
científicas, e por motivos publicitários seus editores muitas vezes
inflacionam o número de entradas. ( “Edição autorizada. Abran­
gente. Mais de 1,7 milhão de palavras e 160.000 definições. Con­
tém adas de 16 páginas em cores.”) Fazem isso incluindo formas
compostas e com afixos, cujos sentidos são deduzíveis do sentido
de suas raízes e das regras da morfologia; mas esses não são verda­
deiros listemas. Por exemplo, o dicionário que utilizo inclui, além
de sail, os derivados sailplane, sailer, sailless, sailing~boat e sailcloth21, cujos
significados eu poderia deduzir mesmo se nunca tivesse escutado
essas palavras.
A estimativa mais sofisticada foi feita pelos psicólogos W illiam
Nagy e Richard Anderson. Começaram com uma lista de 227.553
palavras diferentes. Destas, 45.453 eram raízes e radicais. Do res­
tante, 182.100 eram derivados e compostos, dentre as quais to­
das, com exceção de 42.080, poderíam ser compreendidas pelo
contexto por alguém que conhecesse seus componentes. Portan­
to, havia um total de 44.453 + 42.080 = 88.533 palavras lis­
temas, Retirando e testando uma amostra dessa lista, Nagy e
Anderson avaliaram que um americano médio de nível escolar se­
cundário conhece 45.000 palavras —três vezes mais do que Shakes-

21. Vela, asa-delta, barco a vela, sem vela, veleiro, tecido de vela. (N. daT.)

183
I O instinto da linguagem I

peare conseguia usar! Na verdade, trata-se de um número subesti­


mado, porque nomes próprios, números, palavras estrangeiras,
acrônimos e muitos compostos comuns impossíveis de decompor
foram excluídos. Não é preciso seguir as regras do jogo de Pala­
vras Cruzadas para avaliar a extensão do vocabulário; todas essas
formas são listemas, e deveriam valer pontos. Se tivessem sido in­
cluídas, o cidadão médio com segundo grau completo conhecería
algo cm torno de 60.000 palavras (um tetra-Bardo?), e estudantes
com curso superior, pelo fato de lerem mais, provavelmente mere­
ceríam um número duas vez maior, um octo-Bardo.
Sessenta mil palavras c muito ou pouco? Para responder, vale
a pena pensar na velocidade com que foram aprendidas. A apren­
dizagem de palavras geralmcnte começa aos doze meses de idade.
Portanto, estudantes com segundo grau completo, que estão nis­
so há mais ou menos dezessete anos, devem ter aprendido uma
média dc dez palavras novas por dia, continuamente, desde seu
primeiro aniversário, ou por volta de uma palavra nova a cada no­
venta minutos acordados. Por meio de técnicas similares a essa,
podemos estimar que uma criança média de seis anos domine
por volta dc 13.000 palavras (apesar das cartilhas estúpidas, ba­
seadas cm estimativas ridiculamente baixas). M ais um pouco dc
aritmética nos mostra que crianças que ainda não sabem ler, li­
mitadas ao ambiente da fala, devem ser aspiradores de pó léxico,
ina lando uma palavra nova a cada duas horas despertas, entra dia,
sai dia. Lcmbrc-sc de que estamos falando dc listemas, cada um
dos quais exige uma combinação arbitrária. Pense em como se­
ria ter de decorar uma nova média de gols ou data comemorativa
ou número de telefone a cada noventa minutos de sua vida des­
perta desde o dia em que deu os primeiros passos. Parece haver
no cérebro um espaço de armazenagem especialmente amplo e
um mecanismo de transcrição especialmente rápido para o dicio­
nário mental. Com efeito, estudos experimentais realizados pela
psicóloga Susan Carey mostraram que se você introduzir casual­

184
I Palavras, palavras, palavras I

mente o nome de uma nova cor como verde-oliva na conversa com


uma criança de três anos, ela provavelmente ainda terá alguma lem­
brança disso cinco semanas depois.

Mas pense agora em tudo o que está envolvido em cada ato


de memorização. Uma palavra é o símbolo quintessencial. Sua
força provém do fato de que cada membro de uma comunidade
linguística a emprega de modo intercambiável ao falar e entender.
Se você usar uma palavra, e desde que ela não seja muito obscura,
posso partir do princípio de que se, mais tarde, eu a enunciar para
uma terceira pessoa, esta compreenderá o uso que faço dela da
mesma maneira como entendí o seu. Não tenho de voltar a testar
a palavra com você para ver como você reage, ou testá-la com cada
terceira pessoa que eu encontre para ver como reage, ou esperar
que você a use com outras pessoas. Isso parece mais óbvio do que
é. Afinal de contas, embora eu observe que um urso rosna antes
de atacar, não posso querer afugentar um mosquito rosnando
para ele; se eu bato num pote e o urso foge, não posso esperar que
o urso bata cm potes para assustar caçadores. Mesmo dentro de
nossa espécie, aprender uma palavra de outra pessoa não consiste
apenas em imitar o comportamento dessa pessoa. As ações estão
vinculadas a determinados tipos de atores e objetivos de maneira di­
ferente das palavras. Embora uma menina aprenda a paquerar obser­
vando a irmã mais velha, ela não paquera a irmã ou seus pais, mas
somente o tipo de pessoa que, conforme ela observa, é diretamen­
te afetada pelo comportamento da irmã. Palavras, em contrapo­
sição, são uma moeda universal dentro de uma comunidade. Pa­
ra que bebês aprendam a usar uma palavra só de escutá-la sendo
usada por outros, eles têm de pressupor que uma palavra não é
meramente o comportamento característico de uma pessoa que
afeta o comportamento de outras, mas um símbolo bidirecional

185
I O instinto da linguagem I

compartilhado, disponível para qualquer um para transformar


significado em som ao falar, e som em significado ao escutar, con­
forme um mesmo código.
Já que a palavra é puro símbolo, a relação entre seu som e seu
significado é profundamente arbitrária. Nas palavras de Shakespea-
re (usando apenas um milésimo de seu léxico escrito e uma fração
bem menor de seu léxico mental),

O que é um nome? Aquilo a que chamamos rosa


Com qualquer outro nome teria o mesmo doce olor.

Devido a essa arbitrariedade, não é possível contar com truques


mncmônicos para aliviar a tarefa de memorização, pelo menos
para aquelas palavras que não são construídas a partir de outras
palavras. Os bebês não deveríam esperar, e aparentemente não o fa­
zem, que gado signifique algo semelhante a dado, ou pedido seja igual
afedido, ou capas se pareça com tapas. A onomatopéia, nos casos em
que existe, não ajuda, porque é quase tão convencional quanto
qualquer outro som de palavra. Em inglês, porcos fazem “oink”;
cm japonês, eles fazem “bu-bu”. Mesmo em línguas de sinais as
habilidades miméticas das mãos são deixadas de lado e suas confi­
gurações são tratadas como símbolos arbitrários. Resíduos de se­
melhança entre um signo e seu referente às vezes podem ser detec­
tados, mas, como no caso da onomatopéia, eles dependem tanto
do olho ou ouvido do observador que são de pouca valia para a
aprendizagem. Na Língua Americana de Sinais, o sinal para “árvo­
re’^ o movimento de uma mão como se ela fosse um galho balan­
çando ao vento; na Língua Chinesa de Sinais, “árvore” é indicada
pelo movimento de delinear o tronco de uma árvore.
A psicóloga Laura Ann Petitto realizou uma demonstração
contundente de que a arbitrariedade da relação entre um símbolo
e seu significado está profundamente inserida na mente da crian­
ça. Pouco antes de completarem dois anos, as crianças que falam

186
I Palavras, palavras, palavras I

inglês aprendem os pronomes you e те. Elas muitas vezes os tro­


cam, usando you para se referir a elas mesmas. Ё um erro desculpá­
vel. You e те são pronomes “dêiticos”, cujos referentes mudam
conforme quem fala: you se refere a você quando eu o uso, mas a
mim quando você o usa. Portanto, as crianças precisam de certo
tempo para digerir isso. Afinal de contas, Jessica escuta sua mãe
referir-se a ela, Jessica, usando you; por que não deveria ela crer
que you significa “Jessica”?
No entanto, na ASL o sinal para “me” é apontar para o pró­
prio peito; o sinal para “you” é apontar para o peito do interlocu­
tor. Nada mais transparente, não é mesmo? Seria de esperar que
usar “you” e “me” em ASL fosse tão infalível quanto saber apon­
tar, coisa que todos os bebês, deficientes auditivos e ouvintes, fa­
zem antes de um ano de idade. Mas, para as crianças deficientes
auditivas que Petitto estudou, apontar não é apontar. As crianças
usavam o sinal de apontar com seus parceiros de conversa para
significar “me” exatamente na mesma idade em que crianças ou­
vintes usam o som falado you para significar “me”. As crianças
tratavam o gesto como símbolo lingüístico puro; o fato de que
apontasse para algum lugar não foi registrado como algo relevan­
te. Essa atitude é apropriada na aprendizagem das línguas de si­
nais; em ASL, a mão em forma de apontar é como uma consoan­
te ou vogal sem sentido, que é elemento componente de muitos
outros signos, como “candy” [bala] e “ugly” [feio].

Há mais um motivo para que o simples ato de aprender uma


palavra nos deixe maravilhados. O lógico W. V O. Quine pede
que imaginemos um lingüista estudando uma tribo recém-desco-
berta. Um coelho passa em disparada, e um nativo grita: “Gava-
gai!”. O que sign ifta i gavayatí Falando em termos lógicos, não é ne­
cessariamente “coelho”. Podería ser um determinado coelho

187
I O instinto da linguagem I

(Flopsy22, por exemplo). Podería significar qualquer animal pelu­


do, qualquer mamífero, ou qualquer membro daquela espécie de
coelhos (digamos, Oryctolagus cuniculus), ou qualquer membro da
variedade daquela espécie (digamos, uma chinchila). Poderia
querer dizer coelho em disparada, coisa em disparada, coelho mais
o solo sobre o qual dispara, ou em disparada em geral. Poderia
querer dizer aquele que deixa pegadas, ou habitat para pulgas de
coelhos. Poderia significar a metade superior de um coelho, ou
carne-de-coelho-não-abatido, ou a pessoa que possui pelo menos
um pé de coelho. Poderia significar qualquer coisa que seja ou
um coelho ou um automóvel Buick. Poderia ser o coletivo de
partes não destacáveis dc coelho, ou “Vide! Aí vem Rabbithood
dc novo!”, ou “Coclhou” análogo a “Choveu”.
O problema se repete quando a criança é o lingiiista e os pais
são os nativos. De alguma maneira, um bebê deve intuir o signifi­
cado correto das palavras c evitar a quantidade enlouquecedora de
alternativas logicamente impecáveis. Esse c um exemplo dc um
problema mais geral que Quine denomina de “o escândalo da in­
dução” c que sc aplica igualmcntc a cientistas e crianças: como
eles podem observar tão bem um conjunto finito de eventos c fa­
zer algumas generalizações corretas sobre todo evento futuro da­
quele tipo, rejeitando um número infinito dc generalizações falsas
que também são coerentes com as observações originais?
Iodos nós escapamos das induções pois não somos lógicos de
mente aberta mas apenas humanos felizmcntc cegos, inatamente
coagidos a fazer apenas certos tipos dc suposições —aquelas que
provavelmente são corretas —sobre o funcionamento do mundo e
de seus ocupantes. Digamos que o bebê aprendiz de palavras tem
um cérebro que talha o mundo em objetos discretos, delimitados,
coesos e em ações que eles sofrem, e que o bebê forma categorias

22. Personagem de histórias infantis da escritora inglesa Beatrix Potter, com tradução para o
português pela Editora Verbo, Lisboa (1987). (N. daT.)

188
I Palavras, palavras, palavras I

mentais que juntam objetos de mesmo tipo. Digamos também


que bebês são projetados para esperar que a língua contenha pala­
vras para tipos de objetos e palavras para tipos de ações —substan­
tivos e verbos, mais ou menos. Por isso as partes indestacáveis do
coelho, o chão por onde o coelho corre, a caça intermitente de coe­
lhos e outras descrições precisas da cena, por sorte não lhes ocor­
rerão como possíveis sentidos de gavagai.
Mas será que pode realmente haver uma harmonia pré-ordena-
da entre a mente da criança e a dos pais? Muitos pensadores, dos
mais sinceros místicos aos mais precisos lógicos, unidos tão-so­
mente em seu ataque ao senso comum, afirmaram que a distinção
entre um objeto e uma ação não está inicialmente no mundo ou
em nossas mentes, mas é imposta a nós pela distinção que a língua
faz entre substantivos e verbos. E, se é a palavra que delineia a coi­
sa e o ato, não podem ser os conceitos de coisa e de ato que pos­
sibilitam a aprendizagem da palavra.
Na minha opinião, o senso comum ganha essa parada. Num
importante sentido, existem realmente coisas e tipos de coisas e
de ações lá fora no mundo, e nossa mente está projetada para en­
contrá-las e rotulá-las com palavras. Esse sentido é o de Darwin.
Lá fora há uma selva, e o organismo que estiver projetado para fa­
zer previsões corretas sobre o que acontecerá em seguida colocará
no mundo mais bebês projetados como ele. Dividir o espaço e o
tempo em objetos e ações é uma maneira eminentemente sensata
de fazer previsões, dado o modo como o mundo está organizado.
Conceber uma extensão de matéria sólida como uma coisa —isto
é, dar um único nome em mentalês para todas as suas partes —leva
à previsão de que essas partes irão continuar a ocupar alguma re­
gião do espaço e irão se mover como uma unidade. E, para muitas
porções do mundo, essa previsão está correta. Olhe para outro
lado, e o coelho continuará a existir; levante o coelho pelo cogote,
e as patas e orelhas do coelho virão junto.
E quanto aos tipos de coisas, ou categorias? Não é verdade que
não existem dois indivíduos exatamente iguais? Sim, mas eles tam­

189
I O instinto da linguagem I

pouco são conjuntos aleatórios de propriedades. Coisas que têm


orelhas compridas e peludas e rabos parecidos com pompons tam­
bém tendem a comer cenouras, correm para dentro de tocas e
procriam como, bem, como coelhos. Aglomerar objetos em cate­
gorias —dando a todos eles um rótulo em mentalês —permite que,
ao deparar com uma entidade, possam-se inferir algumas das pro­
priedades não diretamente observáveis, usando as propriedades
observáveis. Se Flopsy tem orelhas compridas e peludas, ele é um
“coelho”; se ele é um coelho, é provável que corra para uma toca
e rapidamente faça mais coelhos.
Além disso, vale a pena dar aos objetos vários rótulos em men­
talês, designando categorias de extensões diversas, como “lebre”,
“coelho”, “mamífero”, “animal” e "ser vivo”. H á vantagem em es­
colher uma categoria cm vez de outra. Dispende-se menos esfor­
ço em determinar que Pedrito Coelho2'1 é um animal do que em
determinar que ele é um coelho (por exemplo, um movimento tí­
pico de um animal será suficiente para reconhecer que ele é um
animal, deixando cm aberto se ele é ou não um coelho). Mas, sa­
bendo que Pedrito é um coelho, podemos prever mais coisas so­
bre ele do que se apenas soubéssemos que ele é um animal. Se é
um coelho, gosta de cenouras e vive em pradarias ou em clareiras
da floresta; sc só soubéssemos que c um animal, poderia comer
qualquer coisa e viver em qualquer lugar. A categoria média ou
“de nível básico” “coelho” é uma solução conciliatória entre a fa­
cilidade de rotular algo e o quanto ela é útil para você.
Por fim, por que separar o coelho da corrida? Supostamente,
porque o fato de ser coelho tem conseqüências previsíveis que
transcendem o fato de ele correr, comer ou dormir: faça um baru­
lho e, vupt, ele inevitavelmente vai se enfiar num buraco. As con­
seqüências de fazer barulho em presença de algo que tem as carac-23

23. P e te r R a b b it, personagem de Beatrix Potter (ver nota 24, p. 193) (N. daT.)

190
I Palavras, palavras, palavras I

terísticas de um leão, quer ele esteja comendo ou dormindo, são


previsivelmente diferentes, e é uma diferença que faz diferença. De
modo semelhante, sair correndo tem certas conseqüências inde­
pendentemente de quem o faz; seja coelho ou leão, quem sai cor­
rendo não fica muito tempo num mesmo lugar. Quanto ao dor­
mir, uma aproximação silenciosa em geral funciona para manter o
dorminhoco —coelho ou leão —imóvel. Por isso, um instrumen­
to eficaz de prognóstico deveria ter conjuntos separados de rótu­
los mentais para tipos de objetos e tipos de ações. Dessa forma,
não se terá de aprender separadamente o que acontece quando um
coelho sai em disparada, o que acontece quando um leão sai em
disparada, o que acontece quando um coelho dorme, o que acon­
tece quando um leão dorme, o que acontece quando uma gazela
sai em disparada, o que acontece quando uma gazela dorme etc.
etc.; ter conhecimentos gerais sobre coelhos, leões e gazelas, e so­
bre sair em disparada e dormir, será suficiente. Com m objetos e n
ações, o conhecedor não tem de passar por m X n experiências de
aprendizagem; pode se virar com m + n delas.
Portanto, mesmo para um pensador destituído de palavras é
útil separar experiências que fluem continuamente em coisas, tipos
de coisas e ações (para não falar de lugares, caminhos, eventos, es­
tados, tipos de material, propriedades e outros tipos de conceitos).
Com efeito, como seria de esperar, estudos experimentais sobre
a cognição do bebê mostraram que os pequeninos têm o conceito
do objeto antes de aprenderem qualquer palavra para objetos. Bem
antes de seu primeiro aniversário, quando aparecem as primeiras
palavras, os bebês parecem ter consciência dos nacos de matéria
que chamaríamos de objetos: demonstram surpresa se as partes de
um objeto de repente ganham vida independente, ou se o objeto
aparece ou desaparece magicamente, passa através de outro objeto só­
lido, ou flutua no ar sem qualquer suporte visível.
É claro que vincular palavras a esses conceitos nos permite tro­
car nossas árduas descobertas e compreensões sobre o mundo com

191
I O instinto da linguagem I

os menos experientes ou menos observadores. Descobrir qual pa­


lavra se vincula a qual conceito é o problema do gavagai, e, se os be­
bês começam com conceitos que correspondem aos tipos de sig­
nificado que a língua usa, o problema está parcialmente resolvido.
Estudos de laboratório confirmam que crianças pequenas pressu­
põem que a certos tipos de conceitos correspondem certos tipos
de palavras, e outros tipos de conceitos não podem de forma al­
guma ser o significado de uma palavra. As psicólogas do desen­
volvimento Ellen Markman e Jeanne Hutchinson mostraram a
crianças de dois e três anos um conjunto dc ilustrações, e pediram
que encontrassem, para cada ilustração, “outra igual àquela”. Crian­
ças ficam intrigadas com objetos que interagem, e, diante dessas
instruções, tendem a selecionar ilustrações que compõem grupos
de protagonistas como um passarinho c um ninho ou um cachor­
ro c um osso. Mas, quando Markman c Hutchinson pediram que
“encontrassem outro dax que fosse igual a esse dax”, o critério das
crianças mudou. Uma palavra tem dc rotular um tipo de coisa,
cias pareciam estar pensando, e portanto juntaram um pássaro
com outro tipo de pássaro, um cachorro com outro tipo de ca­
chorro. Para uma criança, um dax simplesmente não pode signifi­
car “um cachorro ou seu osso”, por mais interessante que a com­
binação seja.
E claro que pode haver mais dc uma palavra que sc aplique a
uma coisa: Pedrito Coelho c não só um coelho mas também um ani­
mal c uma espécie de coelho. Crianças preferem interpretar substanti­
vos como tipos de objeto de nível médio, como “coelho”, mas
tem de superar essa preferência para aprender outros tipos de pa­
lavras, como animai Crianças parecem resolver isso ficando ligadas
num aspecto notável da língua. Embora a maioria das palavras co­
muns tenham muitos significados, poucos significados têm mais
de uma palavra. Ou seja, há muitos homônimos e poucos sinôni­
mos. (Virtualmente, todos ditos sinônimos têm um sentido leve­
mente diferente. Por exemplo, esbelto e magro despertam desejos di­

192
I Palavras, palavras, palavras I

ferentes; policial e tira diferem em termos de registro.) Ninguém


sabe com certeza por que as línguas são tão sovinas com palavras
e tão generosas com sentidos, mas as crianças parecem contar com
isso (ou talvez seja essa expectativa que cause isso!), o que as aju­
da a avançar no problema do gavagai. Se a criança já conhece uma
palavra para um tipo de coisa, quando outra palavra é usada para
aquilo, ela não toma o caminho mais fácil mas equivocado de tra­
tá-la como sinônimo. Pelo contrário, a criança experimenta outro
possível conceito. Por exemplo, Markman descobriu que, se você
mostrar para uma criança uma tenaz de estanho e disser que ela se
chama bif, a criança interpreta que bif significa tenazes em geral,
revelando a preferência habitual por objetos de nível médio; por­
tanto, quando lhe pedem “outro b if”, a criança pega uma tenaz
de plástico. Mas, se você mostrar para a criança uma xícara de es­
tanho e chamá-la de bif, a criança não interpreta que bif significa
“xícara”, porque a maioria das crianças já conhecem uma palavra
que significa “xícara”, ou seja, xícara. Como detesta sinônimos, a
criança supõe que bif deve querer dizer outra coisa, e o material de
que a xícara é feita é o préiximo conceito mais prontamente dis­
ponível. Quando lhe pedem outro bif, a criança escolhe uma co­
lher de estanho ou tenazes de estanho.
Muitos outros estudos engenhosos mostraram como as crian­
ças acertam o significado correto de diferentes tipos de palavras.
Depois de terem alguns conhecimentos dc sintaxe, podem usá-los
para separar diversos tipos de significados. Por exemplo, o psicó­
logo Roger Brown mostrou a crianças o desenho de mãos amas­
sando alguns quadradinhos de massa numa vasilha. Quando ele
lhes perguntava: “Você vê o que está pilando?”24, as crianças apon­
tavam para as mãos. Se, em vez disso, perguntasse: “Você vê algu­
ma pila?”, elas apontavam a vasilha. E, se perguntasse: “Você vê al­

24. Adaptado para o português. No original “sibbing”, “sib”. (N. daT.)

193
I O instinto da linguagem I

gumas pilas?”, elas mostravam o material dentro da vasilha. Ou­


tros experimentos revelaram que a compreensão que as crianças
têm de como categorias de palavras se encaixam em estruturas de
sentenças e como se relacionam com conceitos e classes é muito
sofisticada.
Pois então, o que é um substantivo? A resposta, como vimos, é
complexa. No sentido de um produto morfológico, um substanti­
vo é uma estrutura intricada, elegantemente montada em camadas
de regras, em que até o que há de mais peculiar segue leis. No sen­
tido de um listema, um substantivo é um símbolo puro, parte de
um conjunto de milhares de símbolos, rapidamente adquirido de­
vido à harmonia entre a mente da criança, a mente do adulto e a
textura da realidade.

194
Os sons do silêncio

6 No meu tempo de estu­


dante trabalhei num labo-
ratório da Universidade McGill que estudava a percepção auditiva.
Usando um computador, eu sintetizava grupos de tons sobrepostos
e tinha dc determinar se eles soavam como um harmônico ou dois
sons puros. Certa manhã, tive uma experiência estranha: de repente
os sons sc transformaram num coro de duendes berrando. Algo as­
sim: (bip bop-bop) (bip bop-bop) (bip bop-bop) HUMPTY-
DUMPTY-HUMPTY-DUMPTY-HUMPTY-DUMPTY (bip
bop-bop) (bip bop-bop) HUMPTY-DUMPTY-HUMPTY-
DUMPTY-HUMPTY-HUMPTY-DUMPTY-DUMPTY (bip
bop-bop) (bip bop-bop) (bip bop-bop) HUMPTY-DUMPTY
(bip bop-bop) HUMPTY-HUMPTY-HUMPTY-DUMPTY
(bip bop-bop). Verifiquei o osciloscópio: duas sequências de tons,
como programado. O efeito tinha de ser perceptivo. Com um pou­
co de esforço conseguia ir para a frente e para trás, escutando o som
ou como bips ou como duendes. Quando uma colega entrou, con­
tei minha descoberta, dizendo que estava ansioso para relatá-la ao
professor Bregman, diretor do laboratório. Ela me deu um conse­
lho: não conte para ninguém, exceto, talvez, para o professor Poser
(diretor do departamento de psicopatologia).
Anos mais tarde descobri o que tinha descoberto. Os psicólo­
gos Robert Remez, David Pisoni e seus colegas, homens mais va­

195
I O instinto da linguagem I

lentes do que eu, publicaram um artigo na revista Science sobre


“fala em ondas senoidais”. Sintetizaram três tons que oscilavam
de modo simultâneo. Em termos físicos, o som nada tinha de se­
melhante com a fala, mas os tons seguiam os mesmos contornos
que as bandas de energia na frase “Onde você estava um ano atrás?”.
Voluntários descreveram o que escutaram como “sons de ficção
cien tífica ” ou “blips de computador”. A um segundo grupo de
voluntários foi dito que os sons tinham sido gerados por um sin-
tetizador de fala danificado. Eles conseguiram decifrar várias das
palavras, e um quarto deles conseguiu transcrever a frase perfeita-
mente. O cérebro consegue escutar conteúdos vocais em sons que
só sc assemelham remotamente à fala. Na verdade, os mainás nos
enganam com sua fala em ondas senoidais. Eles têm uma válvula
cm cada brônquio c conseguem controlá-las de maneira indepen­
dente, produzindo dois tons ondulantcs que escutamos como sc
fossem fala.
Nossos cérebros conseguem escutar alternadamente um som
como um blip c como uma palavra, pois a percepção fonética
c como um sexto sentido. Ao escutarmos uma fala, os sons pro­
priamente ditos entram por um ouvido e saem pelo outro; o que
percebemos é língua. Nossa experiência dc palavras e sílabas, da
qualidade dc “b” do b c da qualidade de “i” do í, é tão separável
da nossa experiência dc altura c intensidade quanto a letra de uma
música é de uma partitura. As vezes, como na fala em ondas se­
noidais, o sentido da audição e a fonética competem entre si para
ver quem consegue interpretar um som, e nossa percepção fica
indo e vindo entre ambos. As vezes, ambos interpretam simulta­
neamente um único som. Se tomarmos uma gravação de da, reti­
rarmos eletronicamente o chiado inicial que distingue da de ga e
ka, e tocarmos o chiado num ouvido e o resíduo no outro, o que
as pessoas escutam é um chiado num ouvido e da no outro —um
único fragmento de som é percebido simultaneamente como “qua­
lidade de d” e um chiado. Outras vezes, a percepção fonética pode
transcender o canal auditivo. Quando você assiste a um filme com

196
I Os sons do silêncio I

legendas na sua língua falado numa língua que você conhece mal,
passados alguns minutos você é capaz de sentir que na verdade está
entendendo os diálogos. Em laboratório, pesquisadores conseguem
dublar um som vocal como ga numa imagem de vídeo em close de
uma boca articulando va, ba, tba ou da, em inglês. Os espectadores
literalmente aceitam a consoante que vêem a boca emitindo —uma
impressionante ilusão com o nome engraçado de “efeito M cGurk”,
em homenagem a um de seus descobridores.
N a verdade, não se precisa de truques eletrônicos para criar
uma ilusão de fala. Toda fala é uma ilusão. Escutamos a fala como
um encadeamento de palavras separadas, mas, diferentemente da
árvore que cai na floresta sem que ninguém escute, a separação de
palavras que ninguém escuta não tem som. Na onda sonora dá
fala, uma palavra segue-se a outra sem interrupção; não há peque­
nos silêncios entre palavras faladas da maneira como há espaços
em branco entre palavras escritas. Simplesmente alucinamos sepa­
rações entre palavras quando atingimos o final de uma seqüência
de sons que combina com uma entrada de nosso dicionário men­
tal. Isso fica claro quando escutamos filar numa língua estrangei­
ra: é impossível saber onde urna palavra termina c a próxima co­
meça. A continuidade da fala também se evidencia em “orôní-
mos”, scqücncias de sons que podem compor palavras dc duas ma­
neiras diferentes:1

The good can dccay many ways. [Os bons podem decair de muitos
jeitos.]
The good candy came anyways. [O doce bom veio de todo jeito.]

I. Alguns exemplos em português:


Mulher tem mais resistência a dor.
Mulher tem mais resistendador.
E um jeito dc calcular ascendente.
E um jeito dc calcular sem dente.
Quero uma mão.
Quero um mamão. (N. da R. T )

197
I O instinto da linguagem I

The stuffy nose can lead to problems. [O nariz abafado pode levar
a problemas.]
The stuff he knows can lead to problems. [As coisas que ele sabe
podem levar a problemas.]
Some others I’ve seen. [Alguns outros que eu já vi.]
Some mothers I’ve seen. [Algumas mães que eu já vi.]

Orônímos são muitas vezes empregados em canções e poemas


de ninarr

J scream,
You scream,
Wc all scream
For ice crearn.
Mairzey doats and dozey doats
And lirtlc Iamscy divey,
A kiddlcy-divcy do,
Wouldrít you?
FYzzy Wuzzy was a bear,
Fuzzy Wuzzy had no hair.
Fuzzy Wuzzy wasnt hvzzy,
Was he?
In fir tar is,
In oak nonc is.
In mud ecl is,
Jn clay none is.
Goats eat ivy.
Mares eat oats.2

2. O grupo infantil Balão Mágico tinha uma canção intitulada “Barato Bom é da Barata”, e
uma parte dela era:
“Eu amo ela, mas dcbalde não dá não
Eu vi o Lino, c'uma mão no violão”. (N. da R. T.)

198
I Os sons do silêncio I

E alguns são descobertos por acaso quando os professores lêem


as provas e lições de casa de seus alunos:

Jose can you see by the donzerly light? [Oh say can you see by the
dawns early light?]
It’s a doggy-dog world, [dog-eat-dog]
Eugene 0 ’Neill won a Pullet Surprise. [Pulitzer Prize]
Mу mother comes from Pencil Vanea. [Pennsylvania]
He was a notor republic. [notary public]
They played the Bohemian Rap City. [Bohemian Rhapsody]

Mesmo a seqüência de sons que acreditamos escutar dentro de


uma palavra é uma ilusão. Se você tivesse de cortar uma fita em
que está gravado alguém dizendo cat, você não obteria pedaços que
soam como k, a e t (as unidades denominadas “fonemas”, que cor­
respondem de modo grosseiro às letras do alfabeto). E, se você
emendasse os pedaços na ordem inversa, eles seriam ininteligíveis,
e não soariam como tack. Como veremos, a informação sobre cada
componente de uma palavra se espalha por toda a palavra.
A percepção da fala é outro dos milagres biológicos que com­
põem o instinto da língua. As vantagens de usar a boca e o ouvi­
do como canais de comunicação são evidentes, e não encontra­
mos nenhum comunidade ouvinte que opte pela língua de sinais,
embora ela seja igualmente expressiva. A fala não exige boa ilumi­
nação, contato frente a frente ou entrega total de mãos e olhos, e
pode ser bradada a longas distâncias ou sussurrada para ocultar a
mensagem. Mas, para tirar vantagem do meio sonoro, a fala tem
de superar o problema de que o ouvido é um gargalo informacio-
nal estreito. Em suas primeiras tentativas de desenvolver máquinas
de leitura para cegos na década de 40, os engenheiros imaginaram
um conjunto de ruídos que correspondiam a letras do alfabeto.
Mesmo com treinamentos heróicos, as pessoas não conseguiam
reconhecer os sons numa velocidade superior à de bons operado­

199
O instinto da linguagem I

res de código Morse, algo em torno de três unidades por segundo.


De alguma maneira, a fala propriamente dita é percebida numa
velocidade de uma ordem de magnitude acima: de dez a quinze
fonemas por segundo para a fala casual, de vinte a trinta por se­
gundo para o homem que faz as propagandas da madrugada do
multiprocessador Vcg-O-Matic, e de quarenta a cinqüenta por
segundo no caso de uma fala artificialmente acelerada. Conside-
rando-se o funcionamento do sistema auditivo do homem, isso c
quase inacreditável. Quando um som como um clique é repetido
numa velocidade de vinte vezes por segundo ou mais, deixamos
de escutá-lo como uma sequência de sons separados e passamos a
escutar um zumbido baixo. Sc conseguimos escutar quarenta e cin­
co fonemas por segundo, é improvável que os fonemas sejam por­
ções consecutivas dc sons; cada momento dc som c um pacote de
vários fonemas que nosso cérebro de certa forma desempacota.
Portanto, a fala é com certeza a maneira mais rápida de inserir in­
formação na cabeça através do ouvido.
Em termos de decodificação da fala, nenhum sistema cons­
truído pelo homem se equipara a um ser humano. Não por falta
dc necessidade ou dc esforços. Um reconhccedor de voz seria uma
dádiva para tctraplcgicos c pessoas com outras deficiências, para
profissionais que têm dc fornecer informação ao computador man­
tendo as mãos e os olhos ocupados com outra atividade, para aque­
les que não conseguem aprender a digitar, para os usuários dc ser­
viços telefônicos c para o número cada vez maior dc digitadores
vítimas dc lesões por esforços repetitivos. Não surpreende, portan­
to, que os engenheiros venham se empenhando há mais de qua­
renta anos para conseguir que os computadores reconheçam a pa­
lavra falada. Mas eles sempre deparam com um dilema. Se o siste­
ma tem de ser capaz de escutar várias pessoas diferentes, só con­
segue reconhecer um pequeno número de palavras. Por exemplo,
as companhias telefônicas estão começando a instalar sistemas de
auxílio à lista que reconhecem quando qualquer pessoa diz a pala­

200
I Os sons do silêncio I

vra yes, ou, em sistemas mais avançados, os dez dígitos em inglês


(que, para a felicidade dos engenheiros, têm sons bem diferentes).
Mas, se o sistema tem de reconhecer muitas palavras, tem de ser
treinado para a voz de um único falante. Atualmente, nenhum sis­
tema tem a capacidade de reconhecer muitas palavras e, ao mesmo
tempo, muitos falantes, como as pessoas fazem. O cúmulo da tec­
nologia talvez seja um sistema chamado DragonDictate, que roda
em PC e consegue reconhecer 30.000 palavras. Mas tem severas
limitações. Tem de ser longamente treinado para a voz do usuário.
Você... tem... de... falar... com... ele... assim, com pausas de um quar­
to de segundo entre as palavras (portanto ele opera a uma veloci­
dade cinco vezes menor que a fala corrente). No caso de ter de
empregar uma palavra que não consta de seu dicionário, como um
nome próprio, tem de soletrá-la usando o alfabeto “Alfa, Bravo,
Charlie”. E ainda assim o programa troca palavras numa porcen­
tagem de 15%, mais dc uma vez por frase. E um produto fantás­
tico mas que nem se compara com uma estenógrafa medíocre.
O mecanismo físico e neural da fala é uma solução para dois
problemas do design do sistema humano dc comunicação. Uma
pessoa pode conhecer 60.000 palavras, mas a boca de uma pessoa
não tem a capacidade de fazer 60.000 ruídos diferentes (pelo me­
nos não aqueles que o ouvido discrimina com facilidade). Portan­
to, mais uma vez a língua explora o princípio do sistema combi-
natório discreto. Sentenças e sintagmas compõem-se de palavras,
palavras compõem-se de morfemas, e morfemas, por sua vez, de
fonemas. No entanto, diferentemente de palavras e morfemas, fo­
nemas não contribuem com parcelas de significado para o todo.
O significado de dog [cachorro] não é deduzível do significado de
d, de o, de g, e de sua ordem. Os fonemas são um tipo diferente de
objeto lingüístico. Ligam-se exteriormente à fala, e não interna­
mente ao mentalês: um fonema corresponde ao ato de produzir um
som. A divisão em sistemas combinatórios discretos independen­
tes —um que combina sons sem sentido para formar morfemas

201
4 г

I О instinto da linguagem I

com sentido, outro que combina morfemas com sentido para for­
mar palavras, sintagmas e sentenças com sentido —é uma caracte­
rística fundamental do design da língua humana, que o lingüista
Charles Hockett denominou “dualidade de padrões”.
Mas o módulo fonológico do instinto da linguagem tem dc
fazer algo mais além de enunciar morfemas. As regras da língua
são sistemas combinatórios discretos: fonemas se juntam forman­
do morfemas, morfemas formam palavras, e palavras, sintagmas.
Eles não se misturam ou aglutinam: Cachorro morde homem difere de
Homem morde cachorro, e believing in God [acreditar em Deus] é dife­
rente de believing in Dog [acreditar em cachorro]. Mas, para que es­
sas estruturas saiam de uma cabeça e entrem em outra, têm de ser
convertidas cm sinais audíveis. Os sinais audíveis que as pessoas
produzem não são uma série de bips agudos como aqueles produ­
zidos por um telefone que funciona por tom. A fala é um fluxo de
respiração, submetido a sibilos e gorgorejos pela carne mole da
boca c da garganta. A mãe natureza tem de passar de digital para
analógico quando o falante codifica símbolos discretos num fluxo
contínuo dc sons, e de analógico para digital quando o ouvinte
decodifica a fala contínua transformando-a em símbolos discretos.
Portanto, os sons da língua se articulam seguindo vários pas­
sos. Um inventário finito de fonemas c separado e permutado
para definir palavras, e a seqücncia resultante de fonemas é então
rcarranjada para facilitar sua pronúncia e compreensão antes de
ser efetivamente enunciada. Descreverei esses passos e mostrarei
como eles moldam alguns de nossos encontros diários com a fala:
poesia e música, lapsos auditivos, sotaques, máquinas de reconhe­
cimento de voz e a grafia maluca do inglês.

* *

Uma maneira fácil de entender os sons da fala é acompanhar o


percurso de uma bolha de ar através do aparelho fonador até sair
para o mundo, começando pelos pulmões.

202
I Os sons do silêncio I

Quando falamos, modificamos nossa respiração rítmica usual,


inspiramos ar rapidamente, depois o expiramos longamente, usan­
do os músculos intercostais para se contrapor à força elástica de
contração dos pulmões. (Se não o fizéssemos, nossa fala soaria
como o patético gemido de um balão cheio que se solta.) A sinta­
xe não leva em consideração o dióxido de carbono: suspendemos
o ciclo delicadamente sintonizado que controla a velocidade de
nossa respiração para regular a absorção de oxigênio, e submete­
mos nossa expiração ao comprimento da oração ou frase que pre­
tendemos enunciar. Isso pode provocar leve hiperventilação ou hi-
poxia, motivo pelo qual falar em público é tão cansativo e pelo
qual é difícil manter uma conversa com um parceiro de jogging.
O ar sai do pulmão pela traquéia, que desemboca na laringe (a
caixa de voz, visível exteriormente como pomo de Adão). A larin­
ge é uma válvula que consiste numa abertura (a glote) coberta por
duas saliências de tecido muscular retrátil denominadas pregas
vocais (também chamadas “cordas vocais” devido ao erro de um
antigo anatomista; não têm nada a ver com cordas). As pregas vo­
cais podem cerrar firmemente a glote, bloqueando a entrada e saí­
da de ar dos pulmões. Isso é útil quando queremos empertigar o
tórax, que é um balão de ar flexível. Levante da poltrona sem usar
os braços; sentirá a laringe enrijecer. A laringe também se fecha du­
rante funções fisiológicas como tossir e defecar. O grunhido do
levantador de peso ou do tenista é um lembrete de que usamos o
mesmo órgão para fechar os pulmões e para produzir som.
As pregas vocais também se distendem parcialmente sobre a
glote para produzir um zumbido quando o som passa por ela. I
Isso acontece porque a alta pressão do ar obriga as pregas vocais a
se abrirem, para logo em seguida retrocederem e ficarem unidas,
fechando a glote até que a massa de ar suba e as obrigue a se abrir
novamente, iniciando um novo ciclo. A respiração fica assim en-
trecortada por uma série de lufadas de ar, que percebemos como
um zumbido, denominado “sonoridade”. Você pode escutar e sen-

203
I O instinto da linguagem I

tir o zumbido fazendo os sons ssssssss, consoante surda (sem sono­


ridade), e zzzzzzzz, consoante sonora.
A freqüência de abertura e fechamento das pregas vocais de­
termina a altura da voz. Pela modificação da tensão e posição das
pregas vocais, podemos controlar a freqüência e portanto a altura.
Isso fica óbvio no murmúrio ou no canto, mas também modifica­
mos a altura da voz continuamente ao enunciar uma frase, proces­
so este denominado entonação. Uma entonação normal é o que
faz a fala natural soar diferente da fala de robôs nos antigos filmes
de ficção científica e da voz dos extraterrestres Cônicos e Cômi­
cos do programa Saturday Night Líve. A entonação também se mo­
difica na ironia, ênfase c tons emocionais de voz como raiva ou
alegria. Em “línguas tonais” como o chinês, tons ascendentes ou
descendentes distinguem certas vogais de outras.
Embora as consoantes sonoras criem uma onda sonora com
uma freqüência dominante de vibração, não é como um diapasão
ou um teste do Sistema Emergencial de Radiodifusão, um tom
puro com uma única freqüência. Uma consoante sonora é um som
rico, semelhante a um zumbido com vários “harmônicos”. Uma
voz masculina c uma onda com vibrações não apenas de 100 ciclos
por segundo mas também de 200 cps, 300 cps, 400 cps, 500 cps,
600 cps, 700 cps etc., chegando até 4.000 cps ou mais. Uma voz
feminina tem vibrações dc 200 cps, 400 cps, 600 cps etc. A rique­
za da fonte sonora é crucial —é a matéria-prima que o restante do
aparelho fonador esculpe na forma de vogais e consoantes.
Se por algum motivo não conseguimos produzir um murmú­
rio a partir da laringe, qualquer outra fonte rica de som serve.
Quando cochichamos, abrimos as pregas vocais, fazendo com que
a corrente de ar afaste caoticamente as bordas das pregas, criando
uma turbulência ou ruído que parece um sibilo ou estática de rá­
dio. Um ruído sibilar não é uma onda claramente repetitiva com­
posta de uma seqüência de harmônicos, como encontramos no
som periódico de uma voz, mas uma onda pontuda composta de

204
I Os sons do silêncio I

uma miscelânea de freqüências em constante mutação. No entan­


to, essa mistura é tudo que o restante do aparelho fonador neces­
sita para um cochicho inteligível. Alguns pacientes submetidos a
laringotomia aprendem uma “fala esofagiana” ou arroto controla­
do, que fornece o ruído necessário. Outros colocam um vibrador
encostado no pescoço. Nos anos 70, o guitarrista Peter Frampton
fez o som amplificado de sua guitarra passar através de um tubo
para sua boca, permitindo-lhe articular sua emissão sonora fa-
nhosa. Com isso fez alguns discos de sucesso antes de cair no es­
quecimento do rock-and-roll.
Em seguida, o ar vibrando percorre um corredor de comparti­
mentos antes de sair da cabeça: a garganta ou “faringe” atrás da
língua, a região da boca entre a língua e o palato, a abertura entre
os lábios, e uma rota alternativa para o mundo externo através do
nariz. Cada compartimento tem comprimento e forma particula­
res, o que afeta o som que por ele passa em decorrência de um fe­
nômeno chamado “ressonância”. Sons de diferentes freqüências
têm diferentes comprimentos de onda (a distância entre os picos
da onda sonora); freqüências mais agudas têm comprimentos de
onda mais curtos. Uma onda sonora que se desloca por um canal
retorna quando encontra a abertura na outra extremidade. Se o
comprimento do tubo for uma fração do comprimento de onda
do som, cada onda refletida irá reforçar a próxima que entra; se
forem de comprimentos diferentes, irão interferir entre si. (Isso é
parecido com empurrar uma criança num balanço: consegue-se o
melhor efeito se cada empurrão for sincronizado com o momen­
to mais elevado do arco.) Assim, um tubo de determinado com­
primento amplifica algumas freqüências de som e filtra outras.
Pode-se escutar o efeito disso ao encher uma garrafa. O ruído da
água caindo é filtrado pela câmara de ar entre a superfície e a
abertura: quanto mais água, menor a câmara, maior a freqüência
de ressonância da câmara, e menor o barulho da água.
O que escutamos como vogais diferentes são as diversas com­
binações de amplificação e filtragem do som que sobe pela larin-

205
I O instinto da linguagem I

ge. Essas combinações são produzidas pelo movimento de cinco


órgãos fonadores dentro da boca para modificar a forma e compri­
mento das cavidades de ressonância que o som atravessa. Por exem­
plo, i é definido por duas ressonâncias, uma de 200 a 350 cps
produzida sobretudo pela cavidade da garganta, e outra de 2.100
a 3.000 cps produzida sobretudo pela cavidade bucal. O interva­
lo de freqüências que uma câmara filtra é independente da mistu­
ra particular de freqüências que nela entram; por isso escutamos
um i como um i quer seja falado, sussurrado, cantado em voz alta
ou em voz baixa, arrotado ou falado com voz fanhosa.
A língua é o órgão fonador mais importante, fazendo da lin­
guagem um verdadeiro “dom de línguas”. Na verdade, a língua são
três órgãos em um: o dorso ou corpo, a ponta e a raiz (músculos que
a prendem à mandíbula). Pronuncie as vogais de pé c tu repetida­
mente, c-u, c-u, c-u. Vocc irá sentir o dorso de sua língua se mo­
vimentando para a frente c para trás (você poderá sentir isso com
o dedo, sc o colocar entre os dentes). Quando sua língua está
na parte anterior da boca, ela aumenta o comprimento da câmara
dc ar atrás dela na garganta e encurta aquela à sua frente na boca,
alterando uma das ressonâncias: para a vogal d e pé, a boca ampli­
fica sons entre mais ou menos 500 c 2.300 cps; para a vogal de tu,
amplifica sons entre 300 c 2.000'. Pronuncie agora as primeiras
vogais de pite c vate alternadamente. O dorso dc sua língua irá pu­
lar para cima c para baixo, cm ângulo reto como o movimento pé~
tu; você perceberá que sua mandíbula também se movimenta para
ajudar. Isso altera também a forma das câmaras da garganta e da
boca, e portanto sua ressonância. O cérebro interpreta os diversos
padrões dc amplificação e filtragem como vogais diferentes.
A ligação entre as posturas da língua e as vogais que ela escul­
pe dá lugar a uma estranha curiosidade do inglês e de muitas ou-3

3. Valores aproximados. Fonte: Maria Helena M ira Mateus em Fonética, Fonologia e Moifologia do
Português (cd. Universidade Aberta, Lisboa, 1990). (N. da R .T .)

206
I Os sons do silêncio I

tras línguas, chamada de simbolismo fonético. Quando a língua


está elevada e na parte anterior da boca, cria-se ali uma pequena
cavidade de ressonância que amplifica algumas freqüências mais
altas, e as vogais assim pronunciadas como ее e i (como em bit)
evocam nas pessoas coisas pequenas. Quando a língua está abaixa­
da e recuada, cria-se uma cavidade de ressonância grande que am­
plifica algumas freqüências mais baixas, e as vogais assim pronun­
ciadas como a em father e o em core e em cot evocam nas pessoas coi­
sas grandes. Assim, os camundongos [mice] são miudinhos [temy]
e guincham [squeak], mas elefantes [elepbants] são colossais [hu-
mongous] e rugem [roar]4. Alto-falantes contêm pequenos twreters5
para os sons agudos e grandes woofers6 para os graves. Os falantes
de inglês adivinham corretamente que, em chinês, ch’ing significa
leve e cbung significa pesado. (Em estudos controlados com um
grande número de palavras estrangeiras, o índice de acerto descar­
ta estatisticamente o acaso, embora apenas por pouco.) Quando
perguntei à nossa gênia local de informática o que ela queria dizer
quando disse que ia frob minha estação de trabalho, ela me deu a
seguinte aula de “hackerês”. Quando você arruma um equaliza-
dor gráfico novinho em folha para seu estéreo e fica deslizando os
botões para cima e para baixo com o único objetivo de ver o que
acontece, isso éfrobbing. Quando você mexe os botões aos poucos
para que o som fique do jeito que você gosta, isso é twiddling. Quan­
do você faz os últimos pequenos ajustes finais para que fique per­
feito, isso é tweahng. Os sons ob, íd e eak acompanham perfeitamen-
te o contínuo que vai do grande para o pequeno no simbolismo
fonético.
Correndo o risco de parecer Andy Rooney no programa Síxty
Minutes, você já se perguntou por que d iz em o s fiddle-faddle [banali-

4. Em português o sufixo diminutivo é “-inho” ou “-ico”, e o aumentativo é “-ão”. (N. da R.T.)


5. Alto-falante de alta audiofreqüência. (N. daT.)
6. Alto-falante para baixas freqüências. (N. daT.)

207
I O instinto da linguagem I

dades] e não Jaddle-fíddlà Por que é pingue-pongue e pitter-patter [sapa-


tear] em vez de pongue-pingue e patter-pitter! Por que dribs and drabs
[aos pouquinhos], em vez do contrário? Por que uma cozinha não
pode estar span and spick [spick-and-span = um brinco]? Qual o
motivo de riff-raff, misb-mash,flim-flam, chit-chat, titfor tat, knick-knack,
zig-zag, sing-song, ding-dong, King Kong, criss-cross, shiliy-shally, see-saw,
hee-haw, Jlip-Jlop, hippity-hop, tick-tock, tic-tac-toe, eeny-meeny-miney-moe,
bric-a-brac, clickety-clack, hickory-díckory-dock, kit and kaboodle e bíbbity-bob-
bity-boo7? A resposta é que as vogais em que a língua fica elevada c
na frente sempre vêm antes daquelas em que a língua fica abaixa­
da c para trás. Ninguém sabe por que elas ficam alinhadas nessa
ordem, mas parece ser uma espécie de silogismo de duas outras es­
quisitices. A primeira é que palavras que conotam eu-aqui-agora
tendem a ter vogais mais altas c anteriores do que verbos que co­
notam distância de “mim”: те versus you, here versus then, íris versus
that. A segunda é que palavras que conotam eu-aqui-agora tendem
a vir antes de palavras que conotam distâncias literais ou metafi)-
ricas dc “mim” (ou de um modelo de falante genérico): aqui e alí
(não ali c aqui), isto e aquilo, uma vez por outra, pai ejílho, homem e máqui­
na, amigo ou inimigo, o jogo Harvard-Yale (para os estudantes de Har-
vard), o jogo Yale-1 larvard (para os estudantes de Yalc), servo-croata
(entre os sérvios), croata-sérvio (entre croatas). O silogismo pare­
ce ser: “mim” = vogal anterior alta; mim primeiro; portanto, vogal
anterior alta primeiro. E como se a mente não conseguisse sim­
plesmente jogar cara ou coroa para ordenar as palavras; sc o senti­
do não determina a ordem, o som vem em socorro, e a justificati­
va bascia-sc cm como a língua produz as vogais.

7. Respectivamenfe: rale; mixórdia; conversa fiada; bate-papo; pagar na mesma moeda; quin­
quilharia; ziguezaguc; zão-xão; ding dong; King Kong; ziguezaguear, jogo da velha; inde­
cisão; gangorra, vaivém; zurro; bascular, circuito fhp-fíop; upa-upa; tique-taque; jogo da
velha; uni-dimi-tc; bricabraque; traque-traque; trecho de uma cançeão infantil; todo o
mundo; bibidi-bobidi-bu (como diz a fada da Cinderela). (N. daT.)

208
I Os sons do silêncio I

Observemos os outros órgãos fonadores. Preste atenção nos seus


lábios quando você alterna entre as vogais de boot e books. Para boot,
seus lábios se arredondam e protraem. Isso acrescenta uma câmara
de ar, com suas próprias ressonâncias, na parte anterior do aparelho
fonador, amplificando e filtrando outros conjuntos de freqüências e
definindo dessa maneira outros contrastes vocálicos. Devido aos
efeitos acústicos dos lábios, quando falamos por telefone com uma
pessoa feliz, podemos literalmente escutar o sorriso.
Lembra que sua professora dizia que os sons vocálicos em bat,
bet, bit, bottle e butt eram “curtos”, e os sons vocálicos em batí, beet,
bite, boat e boot eram “longos”? E que você não entendia o que ela
estava dizendo? Bem, esqueça; a informação dela está ultrapassada
em quinhentos anos. O inglês antigo diferenciava as palavras cm
função de suas vogais serem pronunciadas rapidamente ou se pro­
longarem, algo parecido com a distinção moderna entre bad signi­
ficar “ruim” e baaaad significar “bom”. No entanto, no século quin­
ze a pronúncia inglesa sofreu uma convulsão conhecida como
Great Vowel Shift [Grande Mudança das Vogais], As vogais que eram
simplesmente pronunciadas por mais tempo passaram a ser cha­
madas “tensas”: devido ao avanço da raiz da língua (os músculos
que ligam a língua à mandíbula), a língua fica tensa e encurvada
em vez de dístensa e achatada, c esse encurvamento estreita a câ­
mara de ar que se encontra acima dela na boca, modificando as
ressonâncias. Além disso, algumas vogais tensas no inglês moder­
no, como em bite e brow, são “ditongos”, duas vogais emitidas nu­
ma rápida sucessão como se fossem uma: ba-it, bra-u.
Você pode escutar os efeitos do quinto órgão da fala emitindo
a vogal de Sam e sat e adiando a emissão da consoante final indefi­
nidamente. Em muitos dialetos do inglês, as vogais serão diferen-8

8. A vogal de boot parece о и do português, só que mais tensa. A vogal de booh c intermediá­
ria entre о и e o do português, pronunciada de forma mais relaxada que a vogal de boot.
(N. da R.T.)

209
I O instinto da linguagem I

tes: a vogal de Sam terá um som nasal, fanhoso. Isso acontece por­
que o palato mole ou véu palatino (a porção móvel na parte pos­
terior do palato duro) está aberto, permitindo que o ar passe tan­
to pelo nariz como pela boca. O nariz é outra caixa de ressonân­
cia, e, quando a vibração do ar passa por ele, outro conjunto de
freqüências é amplificado e filtrado. O inglês não diferencia pala­
vras em função de suas vogais serem nasais ou não, mas muitas lín­
guas, como francês, polonês e português, o fazem. Diz-se que os
falantes de inglês que abrem seu palato mole para pronunciar sat
têm voz “nasal”. Quando você está resfriado e seu nariz está entu­
pido, abrir o palato mole não faz diferença, e sua voz é o oposto
de nasal4.

Ate aqui discutimos as vogais —sons em que o ar passa livre­


mente da laringe para o mundo. Quando há alguma barreira, ob-
tcm-sc uma consoante. Pronuncie ssssss. A ponta de sua língua —o
sexto órgão da fala —encosta quase na arcada dentária superior,
deixando uma abertura muito pequena. Quando você força uma
corrente de ar pela abertura, o ar abre caminho de modo turbu­
lento, criando ruído. Dependendo do tamanho da abertura e do
comprimento das cavidades de ressonância na frente dela, algu­
mas das freqüências do ruído serão mais intensas que outras; o
pico e o intervalo de freqüências definem o som que escutamos
como s. Esse ruído provém da fricção de ar em movimento, e por­
tanto esse tipo de som chama-se fricativo. Quando o ar que passa
é espremido entre a língua e o palato, obtemos sh; entre a língua e
os dentes, th; e entre o lábio inferior e os dentes,/. O dorso da lín­
gua, ou as pregas vocais da laringe, também podem ser posiciona-9

9. Por isso, as consoantes nasais tornam-se orais: dizemos "babae” e “dao” em vez de “ma­
mãe” e “não”. (N. da R. X)

210
I Os sons do silêncio I

dos de modo a criar turbulência, definindo os vários sons de “ch”


em línguas como alemão, hebraico e árabe (Bach, Chanukah etc.).
Agora, pronuncie um í. A ponta da língua entra no meio da
corrente de ar, mas dessa vez não só impede o fluxo; ela o detém
completamente. Quando a pressão aumenta, você solta a ponta da
língua, permitindo que o ar salte para fora (flautistas usam esse
movimento para demarcar notas musicais). Outras consoantes
“oclusivas” podem ser formadas pelos lábios (p), pelo dorso da
língua pressionado contra o palato (k) e pela laringe (nas con­
soantes “glotais” de иЬ-of). O que um ouvinte escuta quando você
emite uma consoante oclusiva é o seguinte. Primeiro, nada, en­
quanto o ar está represado atrás da oclusão: as consoantes oclusi­
vas são os sons do silêncio. Em seguida, uma breve explosão de
ruído quando o ar é liberado; sua freqüência depende do tama­
nho da abertura e das cavidades de ressonância na frente dela.
Por fim, uma ressonância levemente diferente, à medida que a so­
noridade desaparece e a língua desliza para a posição da vogal que
venha depois. Como veremos, esse pula-pula desgraça a vida dos
engenheiros da fala.
Finalmente, pronuncie m. Seus lábios estão selados, assim
como para p, Mas dessa vez o ar não retrocede silenciosamente;
você pode dizer mmmrnm até perder o fôlego. O motivo disto é
que você também abriu seu palato mole, permitindo que o ar es­
cape pelo nariz. A sonoridade agora é amplificada nas freqüências
de ressonância do nariz e de parte da boca atrás do bloqueio. O
relaxamento dos lábios provoca uma ressonância corrediça similar
na forma ao que escutamos depois do relaxamento para p, mas
sem silêncio, explosão de ruído e desaparecimento. O som n fun­
ciona de maneira parecida a m, com exceção do fato de que o blo­
queio é feito pela ponta da língua, o mesmo órgão usado para d e
s. O mesmo ocorre com ng de sing, mas desta vez é o dorso da lín­
gua que faz o trabalho.
Por que dizemos razzlc-dazzk [alvoroço] em vez de dazzle-razzle!
Por que super-dupcr, helter-skelter, harum-scarum, hocus-pocus, willy-nilly,

211
I O instinto da linguagem. I

hully-gully, roly-poly, holy moly, herky-jerky, walkie-talkie, namby-pamby,


mumbo-jumbo, loosey-goosey, wing-iing, wham-bam, hobnob, razza-matazz e
rub-a-âub-iubl Estava esperando você perguntar10. Consoantes dife­
rem entre si em termos de “oclusividade” —o quanto impedem a
passagem de ar que pode variar entre apenas fazer o som res­
soar, fazê-lo ultrapassar ruidosamente a oclusão e interromper a
passagem por completo. A palavra que começa com a consoante
menos oclusiva sempre vem antes da palavra que começa com a
consoante mais oclusiva. Para que perguntar por quê?

Agora que fizemos a volta completa do aparelho fonador, é


possível entender como a grande maioria dos sons dos idiomas
do mundo são criados c escutados. O truque é que um som de fala
não é um gesto simples de um único órgão. Cada som falado e
uma combinação de gestos, em que cada um imprime seu próprio pa­
drão de escultura à onda sonora mais ou menos simultaneamente
—eis um dos motivos da fala poder ser tão rápida. Como vocês
devem ter percebido, um som pode ser nasal ou não, c produzido
pelo dorso da língua, ponta da língua, ou lábios, nas seguintes seis
possíveis combinações:

Nasal Não Nasal


(Palato mole aberto) (Palato mole fechado)
Lábios m
p
Ponta d!a língua n t

Dorso tJn língua ng к

10. Rcspecrivnmentc: híper; desordenadamente; temerário; abracadabra; quer queira quer


não; tipo de dança; pessoa gorducha; interjeição de espanto; que avança aos solavancos;
walkie-talkie; água-com-açúcar; superstição; desencanado (gír.); folia; bum; bate-papo;
estardalhaço; raraplã. (N. daT.)

212
I Os sons do silêncio I

De modo similar, a sonoridade combina de todas as maneiras


possíveis com a escolha do órgão da fala:

Sonora Surda
(laringe vibra) (laringe não vibra)
Lábios b V
Ponta da língua d t
Dorso da língua g к

Portanto, os sons da fala preenchem linhas, colunas e campos


de uma matriz multidimensional. Em primeiro lugar, escolhe-se
um dos seis órgãos da fala como principal articulador: laringe, pa­
lato mole, dorso da língua, ponta da língua, raiz da língua ou lá­
bios. Em segundo lugar, seleciona-se uma maneira de movimentar
aquele articulador: fricativa, oclusiva ou vogal. Em terceiro, cspe-
cificam-se configurações dos outros órgãos da fala: para o palato
mole, nasal ou não; para a laringe, sonora ou surda; para a raiz da
língua, tensa ou distensa; para os lábios, arredondados ou não ar­
redondados. Cada modo ou configuração simboliza um conjunto
de comandos enviados aos músculos da fala, e esses símbolos são
denominados traços. Para articular um fonerna, os comandos têm
de ser executados no tempo preciso, a ginástica mais complicada
que temos de fazer.
O inglês multiplica bastante essas combinações e define 40 fo-
nemas, um pouco acima da média dos idiomas do mundo. Outros
idiomas têm de II (polinésio) a 141 (Khoisan ou “bosquíma-
no”) “. O inventário total dos fonemas existentes no mundo está
na casa dos milhares, mas todos eles são combinações dos seis ór­
gãos da fala e suas formas e movimentos. Outros sons bucais não
são usados em nenhuma língua: ranger dentes, estalar a língua

I I . O português filiado no Brasil tem em torno dc 30, sem considerar as vogais nasais.
(N. da R.T.)

213
I O instinto da linguagem I

contra o chão da boca, fazer raspberries12, e emitir quács como o


Pato Donald, por exemplo. Mesmo os estranhos cliques do khoi-
san e do banto (parecidos com o som de tsk-tsk e que se tornaram
conhecidos por meio da cantora pop do povo Xosa, Míriam
Makeba) não são fonemas heterogêneos acrescentados àquelas
línguas. Fazer cliques é um modo de articulação, como as oclusi-
vas ou fricativas, e combina com todos os outros traços para defi­
nir uma nova camada de linhas e colunas na tabela de fonemas do
idioma. Existem cliques produzidos pelos lábios, pela ponta da
língua e pelo dorso da língua, que podem ser nasalizados ou não,
sonoros ou surdos etc., num total de 48 cliques!

.;. .;. .;.

O inventário de fonemas c uma das coisas que dão a um idioma


seu padrão sonoro característico. Por exemplo, o japonês é famo­
so por não distinguir r de l. Quando cheguei ao Japão em 4 de
novembro de 1992, o lingüista Masaaki Yamanashi mc recebeu
com uma piscadela c disse: “Aqui no Japão temos muito interesse
pela cre(i)ção [erectiotij de Clinton.” Geralmente reconhecemos o
padrão sonoro de um idioma até mesmo numa sequência que não
contenha verdadeiras palavras, como no caso do cozinheiro sueco
no show dos Muppets ou do tintureiro samurai interpretado por
Jolin Belushi. A lingüista Sarah G. Thomason descobriu que as
pessoas que afirmam estar em contato com vidas passadas ou ter
o dom da glossolalia na verdade estão emitindo alguma algaravia
que contém um padrão sonoro que lembra vagamente o idioma
por elas reivindicado. Por exemplo, um espiritista hipnotizado,
que afirmava ser um búlgaro do século 19 conversando com a mãe

12. Também denominado B r o n x c h eer , ruído alto, cortante e sibilante, feito com lábios e lín­
gua para expressar desagrado. (N. daT.)

214
I Os sons do silêncio I

sobre o lixo que os soldados deixavam no campo, emitia uma bu-


rundanga genérica pseudo-eslava como esta:

Ovishta reshta rovishta. Vishna beretishti? Ushna barishta dashto.


Na darisbnoshto. Korapshnoshashit darishtoy. Aobashni bedetpa.

Quando as palavras de uma língua são pronunciadas com o pa­


drão sonoro de outra, dizemos que é um sotaque estrangeiro, como
no seguinte fragmento de um engraçadíssimo conto de fadas de
Bob Belviso13:

GIACCHE ENNE BINNESTAUCCHE


Uans appona taim uase disse boi. Neimmese Giacche. Naise boi.
Live uite ise mamma. Mainde da cao.
Uane dei, di spaghetti ise olie ronne aute. Dei goine feinte fromme
no fudde. Mamma soi orais, “Oreie Giacche, teicche da cao
enne traide erra forre bocchese spaghetti enne somme uaine.”
Bai enne bai commese omme Giacche. I garra no fudde, I garra no
uaine. Meichese misteicche, enne traidese da cao forre bonce
binnese.
Giacchasse!

13. Bste c o início dc João e o Pé dc Pcijão (Jack and the Beanstalk) escrito cm "inglês com
sotaque italiano”. Com a ortografia padrão do inglês ficaria:
Oncc upona timewasthis boy. Name isJack. Nice boy. Live withhis mamma. Mindthe cow.
One day, the spaghetti is all run out. Thcy. going to faint from no food. Mamma
say, "Jack, cake the cow and trade her for box spaghetti and some wine.”
By and by comes home Jack. He gotta no food, he gotta no wine. Makes mistake,
and trades the cow for a bunch of bcans.
Jackss!
Emportuguês:
Era uma vez um menino. O nome é João. Bom menino. Mora com sua mamãe. Olha
a vaca.
Um dia, acabou todo o espaguete. Eles vão desmaiar por falta de comida. Mamãe
diz: "João, pega a vaca e troca ela por caixa de espaguete e vinho.”
Depois de um tempo volta para casa João. Ele não tem comida, ele não tem vinho.
Comete erro, e troca a vaca por um punhado de feijões.
Burro! (N. da R. T.)

215
I O instinto da linguagem I

O que define o padrão sonoro de uma língua? Deve ser algo mais
além do inventário de fonemas. Considere as seguintes palavras:

ptak tfiale hlad


plaft sram mgla
vias flutch dnom
rtut toasp nyip

Todos estes fonemas existem em inglês, mas qualquer falante


nativo reconhece que thale, plaft e flutch não são palavras inglesas
embora pudessem ser, ao passo que todas as outras não são pala­
vras inglesas c não poderíam ser. Os falantes devem ter algum co­
nhecimento tácito sobre como os fonemas se interligam na lín­
gua deles,
Fonemas não se reúnem formando palavras em correntes uni-
dimensionais da esquerda para a direita. Como palavras e sintag­
mas, eles se agrupam em unidades, que depois se agrupam cm uni­
dades maiores c assim por diante, definindo uma árvore. O grupo
dc consoantes (C ) no começo de uma sílaba é chamado de ataque
[onset]; a vogal (V ) e quaisquer consoantes que venham depois são
chamadas rima [rime]:

Sílaba

Onset Rima
/ \ / \
c c V c
p r i m

As regras que especificam sílabas definem tipos lícitos e ilíci­


tos de palavras num idioma. Em inglês, um onset pode consistir num
agrupamento de consoantes, como flit, thrive e spring, desde que se

216
I Os sons do silêncio I

submetam a certas restrições. (Por exemplo, vlit e sring são impos­


síveis.) Uma rima pode consistir em uma vogal seguida de uma
consoante ou de certos agrupamentos de consoantes, como em
toast, lift e sixths. Em japonês, pelo contrário, um onset só pode ter
uma consoante e uma rima tem de ser uma vogal isolada; por isso
stmwberry ice cream é transposto como sutoroberi aisukurimo, girljriend
como garufurendo. O italiano admite alguns agrupamentos de con­
soantes num onset mas nenhuma consoante no final de uma rima.
Belviso usou essas restrições para simular o padrão sonoro do ita­
liano na história dc Giacche: and se torna enne,jrom se torna from -
me, beans se torna bínnese.
Onsets c rimas definem não só os sons possíveis de uma língua;
são as partes do som das palavras que as pessoas mais notam, e por
isso são unidades manipuladas na poesia c em jogos de palavras.
Palavras que rimam compartilham uma rima; palavras que aliteram
compartilham um onset (ou apenas uma consoante inicial). O Pig
Latin, cggy-peggy, aygo-paygo1415c outras linguagens secretas das crian­
ças tendem a cortar as palavras nas fronteiras entre onsets c rimas,
como ocorre na construção Y in gh sh is:fancy~sbmancy [fantástico] c
Oedípus-Shnocdipas [lidipo], Na canção que fez sucesso em 1964,
“The Namc Game” ( “Noam Noam Bo-Boam, Bonana Pana I o-
Foam, Fcc Fi Mo Moam, Noam”), Shirley Ellis podería ter pou­
pado vários versos na estrofe que explica as regras se tivesse falado
simplesmente de onsets c rimas.
Sílabas, por sua vez, são reunidas cm grupos rítmicos chama­
dos pés:

14. Pig Latin c uma linguagem usada cspccialmcnte por crianças. Derivada do inglês corren­
te, a primeira consoante ou agrupamento de consoante de cada palavra é deslocada para
o fim da palavra acrcsccntando-se cm seguida -ay, como em Eakspay igpay atinlay para “Speak
Pig Latin”. (N. da T.)
15. Inglcs recheado de palavras c expressões em iídiche. (N. daT.)

217
IO in stin to d a lin gu a gem I

Palavra

Pé Pé
fr fo

Pé Sílaba Sílaba Sílaba


fo fr

Sílaba Sílaba
fo fi-

or ga nr

Sílabas e pcs podem ser fortes (fo) e fracos (fr) em função dc


outras regras, e o padrão de ramos fracos c fortes determina a ên­
fase que cada sílaba irá receber ao ser enunciada. Pés, assim como
onsets c rimas, são pedaços destacados cie palavra que tendemos a
manipular em poesia c jogos de palavras. A métrica se define pelo
tipo de pés que entram num verso. Uma sucessão de pés com um
padrão fortc-fraco é um verso trocaico, como em Mary had a líttle
lamb; uma sucessão de tempos fracos-fortes é um iâmbico, como
em The min in Spain falis mainly in the plain. Uma gíria popular entre
jovens rufiões contém formas c o m o fan-fuckin-tastic, abso~bloody~lu~
tely, Phílafuckín-dclphia c Kalamafuckin-zoo. lim geral, palavras explc-
tivas aparecem antes de uma palavra enfaticamente acentuada; cer­
ta vez perguntaram a Dorothy Parker por que ela não fora a con­
certos nos últimos tempos e ela respondeu: “I’ve bcen too fucking
busy and vice versa.”16Mas, no calão dos rufiões, elas estão coloca­
das dentro dc uma única palavra, sempre na frente de um pé acen­
tuado. A regra é seguida religiosamente: dizer Philadel-juckin-phia
seria motivo de escracho no antro de jogatina.

16. Tenho estado muitíssimo ocupada/Tenho estado ocupadíssima transando. (N. daT.)

218
I Os sons d o silên cio I

As montagens de fonemas em morfemas e palavras armazena­


dos na memória sofrem uma série de ajustes antes de ser efetiva­
mente articuladas como sons, e esses ajustes definem ainda me­
lhor o padrão sonoro de um idioma. Diga as palavras pat e pad, Ago­
ra acrescente a flexão -mg e pronuncie-as novamente: pattíng, pad-
àíng. Em muitos dialetos do inglês, sua pronúncia é idêntica; a di­
ferença original entre o í e o d some. O que as faz sumir é uma re­
gra fonológica denominada flapping: se uma consoante oclusiva
produzida com a ponta da língua aparece entre duas vogais, a con­
soante é pronunciada batendo-se a língua de leve contra a arcada
dentária superior1718,em vez de mantê-la ali o tempo suficiente para
que a pressão do ar aumente. Regras como a d e flapping não se
aplicam apenas à junção de morfemas, como pat e -íng; também
se aplicam a palavras inteiras. Para muitos anglofalantes, as palavras
ladder e latter são pronunciadas da mesma maneira (exceto em falas
artificialmentc exageradas), embora eles “sintam” que elas são fei­
tas dc sons diferentes e, de fato, estão representadas diferentemen­
te no dicionário mental. Por isso, quando numa conversa aparece
o tema vacas, logo haverá um engraçadinho para falar de um “ud-
der mystery”, um “udder succcss”1'4 etc.
O interessante é que as regras fonológicas se aplicam numa se­
quência ordenada, como se as palavras fossem manufaturadas nu­
ma linha de montagem. Pronuncie write c ride. Em muitos dialetos
do inglês, há uma pequena diferença na pronúncia das vogais. Em
última instância, o som ai de ride c mais longo que o som ai de write.
Em alguns dialetos, como o inglês canadense do apresentador de no­
ticiário Peter Jennings, do astro do hóquei Wayne Gretzky e da mi­
nha humilde pessoa (sotaque satirizado alguns anos atrás, hum..., pe­
los personagens televisivos Bob e Doug McKenzie), as vogais são
completamente diferentes: ride contém um ditongo que desliza da

17. Esse som c como o r de caro e baraco. (N. da R. T.)


18. A graça está na pronúncia semelhante de utíer e udder, total e úbere. (N. daT.)

219
IO in stin to d a lin gu a gem I

vogal de hot para a vogal i; write contém um ditongo que desliza da vo­
gal mais alta de hut para i. Mas, independentemente de como se­
ja a alteração da vogal, esta segue um padrão coerente: não exis­
tem palavras com ai longo/baixo seguido de t, nem com ai cur­
to/ alto seguido de d. Usando a mesma lógica que permitiu a Lois
Lane, em seus raros momentos de lucidez, deduzir que Clark Kent
c Super-Homcm eram a mesma pessoa, ou seja, que eles nunca es­
tavam no mesmo lugar ao mesmo tempo, podemos inferir que só
existe um ai no dicionário mental, que é alterado por uma regra
antes dc ser emitido, dependendo do fato de aparecer em compa­
nhia dc t ou d, Podemos ate mesmo supor que a forma inicial ar­
mazenada na memória c como o ai dc ride, e que write c o produto
da regra, c não o contrário. A prova disso 6 que quando não há I
ou d depois dc ai, como cm rye, c portanto nenhuma regra masca-
rando a forma subjacente, o que escutamos c a vogal dc ride.
Agora, pronuncie wrítíng c riding, O t e d se tornaram idênticos
pela regra d c flapping. Mas os dois ais continuam diferentes. Como
é possível? O que causa a diferença entre os dois ais é apenas a di­
ferença entre /c d, c esta diferença desapareceu com a regra d c flap­
ping, Isso mostra que a regra que altera o ai deve ter sido aplicada
antes do flapping, quando /c d ainda eram distintos. Em outras pa­
lavras, ambas as regras se aplicam numa ordem fixa, mudança de
vogal antes dc flapping. Supõe-se que isso seja assim porque, cm
certo sentido, a regra dc flapping existe para tornar mais fácil a ar­
ticulação c, portanto, encontra-se mais adiante na cadeia de pro­
cessamento que vai do cérebro para a língua.
Observe outra característica importante da regra dc alteração
dc vogal. A vogal ai é alterada na frente de diversas consoantes,
não apenas do t. Compare:

prize price
five fife
jibe Kype
geiger biker

220
I Os sons d o silên cio I

Será que isso quer dizer que existem cinco regras diferentes
que alteram o ai —uma para z versus s, uma para v versus f etc.?
Certamente não. Todas as consoantes disparadoras de mudança —
í, s,j, р е к —diferem da mesma maneira de suas opostas —d, z, v, b
e g: elas são surdas, ao passo que as opostas são sonoras. Portanto,
só precisamos de uma regra: modifique o ai sempre que aparecer
antes de uma consoante surda. A prova de que esta é mesmo a regra
que existe na cabeça das pessoas (e não apenas uma maneira de
economizar tinta substituindo cinco regras por uma) é que se um
falante de inglês conseguir pronunciar o ch alemão em Terceiro Reích,
ele irá pronunciar o ei como em write, e não como em ride. A con­
soante ch não consta do inventário inglês, e portanto quem fala in­
glês não podcria ter aprendido uma regra que se aplique cspecifi-
camentc a ela. No entanto, c uma consoante surda, e se a regra sc
aplica a qualquer consoante surda um anglofalante sabe exata-
mente o que lazer.
Essa seletividade não funciona só em inglês mas em todos os
idiomas. Regras fonológicas raramente são desencadeadas por um
único íonema; são desencadeadas por uma classe de fonemas que
compartilham um ou mais traços (como sonoridade, modo oclu-
sivo versus fricativo, ou qual c o órgão articulador). Isso sugere que,
numa scqücncia, as regras não “veem” os fonemas mas olham di­
retamente para os traços dc que são feitos.
E são traços, não fonemas, que as regras manipulam. Pronun­
cie as seguintes formas de passado:

/alkcd joggcd
sobbed
passed fizzed

Em walked, slapped e passed, o -ed é pronunciado como um f, em


jogged, sobbed efizzed, é pronunciado como um d. Você provavelmen­
te já pode imaginar o que está por trás dessa diferença: a pronún­

221
IO in stin to d a lin gu a gem I

cia t vem depois de consoantes surdas como k, p e s; o d vem depois


de sonoras como g, b e z. Deve haver uma regra que, para ajustar a
pronúncia do sufixo -ei, volta e examina o fonema final do radi­
cal, verificando se ele tem o traço de sonoridade. Podemos confir­
mar o palpite pedindo para as pessoas pronunciarem Mozart out-
Bacbed Bach [M ozart superou Bach], O verbo to out-Bach contém o
som ch, que não existe em inglês. Apesar disso, todo mundo pro­
nuncia o - e i como t, porque ch é surdo, e a regra exige um t depois
de uma consoante surda. Podemos até mesmo determinar se as
pessoas arquivam o sufixo - e i como um t na memória c usam a re­
gra para transformá-lo cm i cm algumas palavras, ou se é o contrá­
rio que acontece. Palavras como play c row não têm consoantes no
final, c todo mundo pronuncia seu passado como plaie c rode'4, e
não como plate c rote, Na ausência dc uma consoante no radica!
que desencadeie a rc-gra, devemos estar escutando o sufixo cm sua
forma pura, não alterada, do dicionário mental, ou seja, i. E uma
bela demonstração de uma das principais descobertas da linguís­
tica moderna: um morfema pode ser arquivado no dicionário
mental de uma forma diferente daquela em que acaba sendo pro­
nunciado.
Peço a paciência daqueles leitores que apreciam a precisão teó­
rica para mais um parágrafo. Note que há um padrão curioso no
que a regra do íf-parn-í faz. Pm primeiro lugar, o d c sonoro, e vem
depois dc consoantes sonoras, ao passo que f c uma consoante sur­
da, e vem depois de consoantes surdas. Em segundo lugar, exceto
pela sonorização, t c d são iguais; usam o mesmo órgão da fala, a
ponta da língua, e esse órgão se move da mesma maneira, ou seja,
fechando a boca na arcada dentária superior e depois relaxando.
Portanto, a regra não consiste apenas em distribuir fonemas arbi­
trariamente, como trocar p por l depois de uma vogal alta ou qual-19

19. Pronúncia dc playcd c rovued. (N. daT.)

222
I Os sons d o silên cio I

quer outra substituição que se escolha ao acaso. Ela realiza uma


delicada cirurgia no sufixo -ei, ajustando-o à mesma sonorização
de seu vizinho, mas deixando em paz o resto de seus traços. Ou
seja, ao transformar slap + ed em slapt, a regra está “espalhando” a
instrução de sonorização, que vem no pacote do p no final de slap,
para o sufixo ~ci, da seguinte maneira:

Rima Rima

a P d
*■
? P

baixa surda sonora baixa surda


I1 I1 I
1
frontal lábios ponta da língua frontal lábios ponta da língua
I1 1 |1
vogal oclusiva oclusiva vogal oclusiva oclusiva

O fato de o fonema t em slappcd ser surdo combina com o fato de


a consoante p em slapped ser surda, pois trata-se da mesma caracterís­
tica de surdez; são representados mentalmente como um único
traço ligado a dois segmentos. Isso acontece com freqüência nas
línguas do mundo. Traços, como sonoridade, a qualidade de vogal
e tons, podem se espalhar para os lados ou gerar conexões com
vários fonemas da palavra, como se cada traço vivesse cm sua pró­
pria “fileira” horizontal cm vez de ficar acorrentado a um único
fonema.
Portanto, regras fonológicas “vêem” traços e não fonemas, e
ajustam traços, não fonemas. Lembre-se também que as línguas
tendem a constituir um inventário de fonemas multiplicando as
várias combinações de um pequeno conjunto de traços. Esses fa­
tos mostram que os traços, e não os fonemas, são os átomos dos
sons lingüísticos armazenados e manipulados no cérebro. Um fo­
nema é apenas um pacote de traços. Portanto, mesmo ao lidar
com suas menores unidades, os traços, a língua funciona por meio
de um sistema combinatório.

223
IO in stin to d a lin gu a gem I

Toda língua tem regras fonológicas, mas para que elas servem?
Você deve ter percebido que muitas vezes elas facilitam a articula­
ção. Bater um t ou um d entre duas vogais é mais rápido do que
manter a língua parada o tempo suficiente para que a pressão do ar
aumente. Espalhar a ausência de sonoridade do final de uma pala­
vra para seu sufixo evita que o falante tenha de desligar sua laringc
enquanto pronuncia o final do radical e depois ligá-la novamente
para o sufixo. A primeira vista, as regras fonológicas parecem ser
um mero sumário de preguiça articulatória c, a partir daí, é um
pulo perceber ajustes fonológicos cm dialetos diferentes do nosso
c concluir que eles são típicos do desmazelo dos falantes. Nenhum
dos lados do Atlântico se salva. Gcorgc Bcrnard Shnw escreveu:

Os ingleses não respeitam sua língua c não vão ensinar seus filhos a
lalá-la. Não conseguem pronunciá-la pois para tanto dispõem ape­
nas de um alfabeto estrangeiro do qual apenas as consoantes —e
nem todas elas —têm algum valor verbal aceito. Conseqüentementc
um inglês não consegue abrir a boca sem fazer com que outros in­
gleses o desprezem.

Em seu artigo “Hovvta Rcckanizc American Slurvian”, Ricliard


Lcdcrcr escreve:

faz tempo que os amantes da língua deploram o triste estado da


pronúncia c da articulação nos Estados Unidos. Tomados de dor e
raiva, falantes aflitos com ouvidos sensíveis estremecem diante de
resmungos como guvmint em vez de government e assessories para accesso-
ries. De fato, para onde quer que olhemos somos assaltados por um
monte de barbarismos.

Mas, se seus ouvidos fossem ainda mais sensíveis, esses infelizes


falantes perceberíam que, na verdade, não existe dialeto em que

224
I Os sons d o silên cio I

prevaleça o desmazelo. Regras fonológicas dão com uma mão e


tiram com a outra. Os mesmos simplórios de quem se zomba
porque omitem os ^s em Notbin àoin conseguem enunciar as vo­
gais em pó~lice e accidént que supostos intelectuais reduzem a um
som neutro de “uh”. Quando o arremessador dos Brooklyn
Dodgers, Waite Hoyt, foi atingido por uma bola, um fã gritou da
geral, “H urfs hoit!”20 Os habitantes de Boston que “pahk their
cah in Hahvahd Yahd”21 dão às suas filhas nomes como Sheiler e
Linder22. Em 1992, foi proposto um regulamento que proibia a
contratação, em Westfield, Massachusetts, de qualquer professor
imigrante que “falasse com sotaque” —não estou inventando isso.
Sem acreditar no que lia, uma mulher escreveu para o Boston Globe
lembrando que sua professora, nativa da Nova Inglaterra, definia
“homônimos” usando o exemplo orphan e ojten. Outro leitor, rin­
do da proposta, lembrou-sc de ter despertado a fúria de sua pro­
fessora ao ter soletrado “cuh-rée-uh” como k~o~r~c~a e “cuh-rcc-
ur” como c~a~r~e~e~r, c não o contrário. A proposta foi rapidamen­
te retirada.
Há um bom motivo pelo qual a chamada preguiça na pronún­
cia está na verdade fortemente regulada por regras fonológicas, e
pelo qual, consequentemente, nenhum dialeto admite que seus fa­
lantes cortem caminho como bem entenderem. Cada ato de des­
leixo por parte de um falante exige um esforço mental compensa­
tório por parte do parceiro da conversa. Uma sociedade de fala­
dores preguiçosos seria uma sociedade de ouvintes esforçados.
Caso os falantes levassem vantagem, todas as regras de fonologia
se diluiríam, reduziríam e desapareceríam. Mas, caso os ouvintes
prevalecessem, a fonologia faria o oposto: aumentaria as diferen­

20. Pronúncia local dc “Hoyt is hurt”: Hoyt está machucado. (N. daT.)
21. Pronúncia, local dc Park lheir car in Ilarvard Yard: Estacionem seus carros no pátio de I iar-
vard. (N. daT.)
22. Sheila, Linda. (N. daT.)

22 $
IO in stin to d a lin gu a gem I

ças acústicas entre fonemas passíveis de confusão forçando os fa­


lantes a exagerarem ou enfeitarem-nos. E, de fato, muitas regras
de fonologia fazem isso. (Por exemplo, existe uma regra que for­
ça os falantes de inglês a arredondar os lábios ao dizer sh mas não
ao dizer 5. A vantagem de forçar todos a fazer esse gesto extra c
que a caixa de ressonância longa formada pelos lábios franzidos
realça o ruído de baixa frcqüência que distingue sh de 5, permitin­
do que o ouvinte identifique com mais facilidade o sh.') Embora
todo falante logo se torne ouvinte, seria uma imprudência da hi­
pocrisia humana fazê-lo depender da prcsciência e consideração
do falante. Em vez disso, um simples conjunto de regras fonoló­
gicas parcialmentc arbitrárias, algumas das quais servem para amor­
tecer, outras para realçar, c adotado por cada membro de uma co­
munidade linguística quando ele ou ela adquire o dialeto local na
infância.
Regras fonológicas ajudam os ouvintes mesmo quando não exa­
geram algumas diferenças acústicas. Tomando previsíveis os pa­
drões de fala, aumentam a redundância de uma língua; estima-se
que um texto cm inglês c de duas a quatro vezes mais longo do
que as informações que ele contem exigem. Por exemplo, este livro
contém por volta de 900.000 caracteres segundo o disco do meu
computador, mas meu programa de compressão de arquivos con­
segue verificar as redundâncias nas scqüencias dc letras e espremê-
lo para algo em torno de 400.000 caracteres; os arquivos que não
contêm textos em inglês não podem ser tão comprimidos. O lógi­
co Quine explica por que muitos sistemas contêm redundâncias
embutidas:

E o excesso judicioso sobre um mínimo de requisitos básicos. É por


isso que uma ponte bem construída não desaba ao ser sujeitada a
forças maiores do que aquelas para as quais foi projetada. E elástica
e estável. E por isso que usamos tantas palavras para escrever a cida­
de e o estado em nossa correspondência, a despeito do código de

226
I Os sons do silên cio I

endereçamento postal. Um único dígito pouco claro e o CEP põem


tudo a perder... Diz a lenda que um reino foi perdido pela falta de
um prego de ferradura. A redundância é nossa salvaguarda contra
tais instabilidades.

Graças à redundância da língua, vxcx xntxnde x qxx xstxx


xscrxvxndx xpxsxr dx xx sxbstxtxxr xs vxgxxs pxr xm “x” (fc m pc
ms dfcl s vc nm msm sb nd s vgs st). Para a compreensão da fala,
a redundância provocada por regras fonológicas pode compensar
algumas das ambigüidades da onda sonora. Por exemplo, o ouvin­
te tem condições de saber que “unslápis” deve ser m s lápis e não
um slápís porque em. português não é possível começar uma palavra
com sl.

Então, por que uma nação que consegue colocar o homem na


Lua não consegue construir um computador que possa escrever
um ditado? Conforme o que expliquei até agora, cada fonema tem
de levar uma assinatura acústica: um conjunto de ressonâncias
para as vogais, uma faixa de ruído para as fricativas, uma seqüên-
cia de transição do silêncio para a explosão no caso das oclusivas.
As seqüências de fonemas são organizadas de maneira previsível
por regras fonológicas ordenadas, cujos efeitos supostamente po­
deríam ser suprimidos se elas fossem aplicadas em ordem inversa.
O motivo para que o reconhecimento da fala seja tão difícil é
que, ó xente, tem um mundão entre o cérebro e os lábios. A voz
de duas pessoas nunca é igual, nem quanto à forma do aparelho
fonador que esculpe os sons, nem quanto aos hábitos de articu­
lação da pessoa. Fonemas também soam muito diferentemente
dependendo da ênfase que é posta neles e a velocidade com que
são enunciados; numa fala rápida, muitos são simplesmente en­
golidos.

227
IO in stin to d a lin gu a gem I

Mas o principal motivo pelo qual não encontramos um este-


nógrafo elétrico a cada esquina tem a ver com um fenômeno geral
do controle muscular chamado co-articulação. Coloque um pires
na sua frente e uma xícara de café a uns trinta centímetros de dis­
tância à direita ou à esquerda. Agora, toque rapidamente o pires e
pegue a xícara. Você provavelmente tocou o pires na extremidade
mais próxima da xícara, não exatamente no centro. E provável que
seus dedos tenham se posto cm posição dc preensão enquanto sua
mão sc dirigia à xícara, bem antes dc ter chegado. Essa suavidade
e sobreposição graciosa de gestos está sempre presente no contro­
le motor-. Ela reduz as forças necessárias para movimentar as par­
tes do corpo c diminui o desgaste c rompimento das juntas. A lín­
gua e a garganta não são diferentes. Quando queremos articular
um fonema, nossa língua não pode assumir a postura final ins­
tantaneamente; ela c um pesado naco de carne que leva tempo
pai a sc erguer c sc colocar a postos. Portanto, enquanto a movi­
mentamos, nosso cérebro antecipa a próxima postura e planeja
sua trajetória, assim como na manobra pires e xícara. Entre as vá­
rias posições da boca que podem definir um fonema, colocamos a
língua naquela que encurta o caminho para o alvo do próximo fo­
nema. Se o fonema atual não especifica onde o órgão da fala tem
de estar, antecipamos onde o próximo fonema quer que ele esteja
e o colocamos ali antecipadamente, A maioria dc nós não tem a
menor percepção desses ajustes até que eles chamem nossa aten­
ção. Diga Cape Cod. Até agora você provavelmente nunca percebeu
que o dorso da sua língua ocupa posições diversas para os dois
sons de k. Em horseshoe, o primeiro s torna-se um sh; cm NPR, o n se
torna um m; em month e wídth, o n e d são articulados nos dentes e
não na arcada superior como de costume.
Pelo fato de as ondas sonoras serem minuciosamente sensíveis
às formas das cavidades por que passam, essa co-articulação cria
confusões nos sons vocais. A assinatura sonora de cada fonema é
tingida pelos fonemas que vêm antes e depois, às vezes ao ponto

228
I Os sons d o silên cio I

de nada mais ter em comum com sua assinatura sonora na com­


panhia de um outro conjunto de fonemas. È por isso que você não
consegue cortar numa fita o som cat gravado e encontrar a parte
inicial que contém apenas o k. A medida que você vai cortando,
essa parcela vai de um som parecido com ka para algo que se pare­
ce com um chiado ou assobio. Esse corte rente de fonemas no flu­
xo da fala poderia, em princípio, ser uma dádiva para um reconhe-
cedor de voz perfeitamente programado. Consoantes e vogais são
assinaladas simultaneamente, aumentando muito a quantidade de
fonemas por segundo, como observei no começo deste capítulo, e
há muitas deixas sonoras redundantes para um dado fonema. Mas
essa vantagem só pode ser desfrutada por um reconhecedor de
voz de alta tecnologia, que tenha algum tipo de conhecimento de
como soa a mistura de aparelhos fonadores.
O cérebro humano é, por certo, um reconhecedor de voz de
alta tecnologia, mas ninguém sabe como ele faz isso. Por isso, os
psicólogos que estudam a percepção e os engenheiros que cons­
tróem máquinas de reconhecimento de voz ficam de olho um no
trabalho do outro. O reconhecimento da fala é tão difícil que
existem apenas poucos caminhos pelos quais ele poderia ser resol­
vido cm princípio. Dc qualquer forma, o modo como o cérebro
faz isso pode dar dicas sobre a melhor maneira de construir uma
máquina que o faça, e uma máquina que consiga fazê-lo com su­
cesso pode sugerir hipóteses sobre como o cérebro o fiz.

Nos primórdios da história da pesquisa sobre a fala, ficou cla­


ro que os ouvintes humanos tiram de alguma forma vantagem da
expectativa que têm do tipo de coisa que um falante tende a dizer.
Isso poderia diminuir as alternativas restantes a serem examinadas
pela análise acústica do sinal de fala. Já comentamos que as regras
da fonologia proporcionam um tipo de redundância que pode ser
explorada, mas as pessoas vão mais longe. O psicólogo George

229
IO in stin to d a lin gu a gem I

M iller tocou fitas com sentenças com interferências e pediu às pes­


soas que repetissem exatamente o que escutaram. Algumas das sen­
tenças seguiam as regras da sintaxe inglesa e faziam sentido:

Furry wildcats fight furious battles.


Respectable jewelers give accurate appraisals.
Lighted cigarettes create smoky fumes.
Gallant gentlemen save distressed damsels.
Soapy detergents dissolve greasy stains.21

Outras tinham sido criadas misturando palavras dentro de sin­


tagmas para criar sentenças de incolores idéias verdes, gramaticais
mas sem sentido:

làirry jewelers create distressed stains.


Respectable cigarettes save greasy battles.
Lighted gentlemen dissolve furious appraisals.
Gallant detergents fight accurate fumes.
Soapy wildcats give smoky damsels.

Um terceiro tipo foi criado embaralhando a estrutura sintag-


mática mas mantendo juntas palavras relacionadas, como em

Furry fight furious wildeat battles.


Jewelers respectable appraisals accurate give.

Por fim, algumas sentenças eram pura salada de palavras, como

Furry create distressed jewelers stains.


Cigarettes respectable battles greasy save.23

23. Gatos selvagens peludos travam batalhas furiosas./Joalheiros respeitáveis fazem avaliações
precisas./Cigarros acesos geram exalações esfumaçadas./Cavalheiros galantes salvam damas
em apuros./Detergentes espumosos dissolvem manchas gordurosas. (N. daT.)

230
I Os sons d o silên cio I

As pessoas se deram melhor com as sentenças gramaticais com


sentido, pior com as sentenças gramaticais sem sentido e com as
agramaticais com sentido, e pior ainda com as agramaticais sem
sentido. Alguns anos depois o psicólogo Richard Warren gravou
sentenças como The State governors met with their respective legislatures con~
vening in the capital city24, tirou o primeiro s de legislatmes, e encaixou
ali uma tossida. Os ouvintes não conseguiam perceber que faltava
um som.
Para quem pensa que a onda sonora se encontra na extremida­
de inferior de uma hierarquia que vai de sons para fonemas, para
palavras, para sintagmas, para o significado de sentenças, para o
conhecimento geral, essas demonstrações parecem implicar que a
percepção da fala humana funciona de cima para baixo e não de
baixo para cima. Talvez estejamos o tempo todo adivinhando o
que o falante irá dizer em seguida, usando cada migalha de conhe­
cimento consciente e inconsciente à nossa disposição, desde como
a co-articulação distorce os sons até as regras da fonologia do in­
glês, até as regras da sintaxe inglesa, ate os estereótipos sobre quem
tende a fazer o que para quem no mundo, até palpites sobre o que
nosso parceiro de conversa está pensando em cada momento. Se
as expectativas forem suficientemente acertadas, a análise acústica
pode ser bastante simples; o que faltar na onda sonora, o contex­
to pode preencher. Por exemplo, se você está escutando uma dis­
cussão sobre a destruição dos hábitats ecológicos, deve estar espe­
rando palavras relacionadas com animais e plantas ameaçadas, e
quando você escuta sons de fala cujos fonemas não capta, como
“éssii”, você os perceberá corretamente como espécie —a não ser
que você seja Emily Litella, personagem que é uma editorialis-
ta deficiente auditiva do programa Saturday Night Live, que argu­
mentou apaixonadamente contra a campanha para proteger fezes

24. Os governadores participaram de convenções com. os deputados de seus respectivos esta­


dos na capital. (N. daT.)

231
IO in stin to d a lin gu a gem I

ameaçadas. (Com efeito, o humor da personagem representada


por Gilda Radner, que também fulminou contra o resgate das jóias
soviéticas25, o fim dos violinos nas ruas e a preservação de corridas
de cavalos naturais, não decorre de sua deficiência no final do sis­
tema de processamento da fala mas de seu jeito meio avoado na
parte superior, aquele nível que deveria tê-la impedido de chegar a
essas interpretações.)
A teoria da percepção da fala dc cima para baixo provoca um
forte conflito emocional cm algumas pessoas. Ela confirma a filo­
sofia rclativista de que escutamos o que esperamos escutar, de que
nosso conhecimento determina nossa percepção, e que, em últi­
ma instância, não estamos em contato direto com nenhuma reali­
dade objetiva. Em certo sentido, uma percepção fortemente guia­
da de cima para baixo não passaria dc uma alucinação controlada,
c o problema é justamente esse. Uma pessoa obrigada a fazer sua
percepção depender apenas de suas expectativas está em grande
desvantagem num mundo imprevisível, mesmo nas melhores cir­
cunstâncias. Uá um motivo para acreditar que a percepção da fala
humana seja, na verdade, bastante guiada pela acústica. Se você ti­
ver um amigo indulgente, pode fazer a seguinte experiência.Tome
dez palavras ao acaso de um dicionário, ligue para seu amigo, e
diga as palavras claramcntc. E muito provável que seu amigo as rc-
produza perfeitamente, baseando-se apenas na informação forne­
cida pela onda sonora c seu conhecimento do vocabulário c da fo­
nologia inglesa. O amigo não poderia ter usado qualquer expecta­
tiva elaborada sobre estrutura sintagmática, contexto ou trama da
história, porque uma lista dc palavras subitamente pronunciadas
não tem nada disso. Embora possamos apelar para conhecimen­
tos conceituais de alto nível em circunstâncias degradadas ou rui­
dosas (e mesmo nesse caso não fica claro se o conhecimento alte­

25, A piada em mglcs é entre jew s e jewclry (judeus e jóias), violence e violins (violência c violi­
nos) e racchorses c resources (corridas de cavalo e recursos). (N. daT.)

232
I Os sons d o silên cio I

ra a percepção ou só nos permite adivinhar inteligentemente a


partir dos fatos), nossos cérebros parecem estar desenhados para
extrair cada gota de informação fonética da onda sonora. Nosso
sexto sentido pode até perceber a fala como língua e não como
som, mas é um sentido, algo que nos conecta com o mundo, e não
uma forma de sugestão.
Outra demonstração de que a percepção da fala difere de uma
mera encarnação de expectativas nos é dada por uma ilusão que o
colunista Jon Carroll denominou mondegmn, por causa de seu equí­
voco de escuta da balada popular “The Bonnie Earl 0 ’Moray”:

Oh, ye hiclands and ye lowlands,


Oh, where hac yc been?
They have slain thc Earl of Moray,
And. laid him on thc green.

Ele sempre achou que os versos eram “Thcy havc slain the Earl
of Moray, And Lady Mondcgrecn”. Mondegreens são bastante co­
muns (são uma versão extrema dos Pullet Surprises c Pencil Vaneas
mencionados anteriormente); cis alguns outros exemplos:

A girl with colitis goes by. [A girl with kaleidoscopc eycs. Da músi­
ca dos Beatles “Lucy in the Sky with Diamonds”.]
Our huhcr wishart in heavcn; Harold bc thcy name ... Lead us not
into Pcnn Station. [Our latlier which art in Heavcn; ballowed be
thy nanic ... Lead us not into temptation. Do Pai Nosso.]
Hc is trampling out thc vintage where the grapes are wrappcd and
stoted. [... grapes of wrath are stored. De “Thc Battle Hymn of
the Rcpublic”.]
Gladly thc cross-eyed bear. [Gladly the cross I’d bear.]
Г11 never be your pizza bumin. [... your beast of burden. Da música
dos Rolling Stones.]
Its a happy enchilada, and you think youre gonna drown. [Its a half
an inch of water ... Da música de John Prine “Thats the Way the
World Goes 'Round '.]

233
I O in stin to d a lin gu a gem I

O que interessa em relação aos mondegreens é que os lapsos de es­


cuta são geralmente menos plausíveis do que os versos originais. Eles
de modo algum confirmam as expectativas gerais de qualquer ou­
vinte sadio sobre o que um falante pretende dizer ou está pensan­
do. (Houve um caso em que um estudante insistia em escutar
equivocadamente o sucesso do grupo Shocking Blue, T m Your
Venus”, como ‘Tm Your Penis” e não entendia como permitiam
que fosse tocado na rádio.) Os monâegreens estão de acordo com a
fonologia do inglês, com a sintaxe do inglês (às vezes) e com o vo­
cabulário do idioma inglês (embora nem sempre, como na pró­
pria palavra moniegreen). Aparentemente, os ouvintes se aferram a
um certo grupo de palavras que combinam com o som e que são
mais ou menos coerentes como palavras e sintagmas em inglês,
mas isso não depende da plausibilidade e das expectativas gerais.
A moral da história dos reconhecedores de fala artificial c pa­
recida. Nos anos dc 1970 uma equipe de pesquisadores de inteli­
gência artificial da Universidade Carnegie-Mellon, dirigida por
Raj Reddy, desenhou um programa de computador denominado
HEARSAY, que interpretava comandos verbais para mover peças
dc xadrez. Influenciados pela teoria de cima para baixo da percep­
ção da fala, projetaram o programa como uma “comunidade” de
subprogramas “especialistas” que cooperavam para dar a interpre­
tação mais plausível do sinal. Havia subprogramas especializados
em análise acústica, em fonologia, no dicionário, cm sintaxe, em
regras de movimentos de xadrez, até mesmo em estratégias de xa­
drez aplicadas durante o andamento do jogo. Conta-se que um
general do departamento de defesa que estava financiando a pes­
quisa veio assistir a uma demonstração. Os cientistas começaram
a suar quando ele sentou na frente de um tabuleiro de xadrez com
um microfone conectado ao computador. O general limpou a gar­
ganta. O programa imprimiu “Peão em 4 de Rei”.
O programa que saiu recentemente, DragonDictate, já men­
cionado neste capítulo, dedica-se sobretudo a uma boa análise

234
Os sons d o silên cio I

acústica, fonológica e léxica, e a isso talvez se deva seu maior su­


cesso. O programa tem um dicionário de palavras e suas seqüên-
cias de fonemas. Para ajudar a antecipar os efeitos das regras fo­
nológicas e da co-articulação, o programa sabe como cada fone­
ma inglês soa no contexto de todo fonema anterior possível e todo
fonema posterior possível. Para cada palavra, esses fonemas-em-
contexto são organizados numa pequena cadeia, com uma proba­
bilidade vinculada a cada transição de uma unidade de som para a
próxima. A cadeia serve de modelo básico do falante, e, quando
um falante real usa o sistema, as probabilidades da cadeia são
ajustadas para captar a maneira de falar daquela pessoa. Também
a palavra inteira tem uma probabilidade vinculada a ela, que de­
pende de sua freqüência na língua e dos hábitos do falante. Em
algumas versões do programa, o valor probabilístico de uma pa­
lavra é ajustado dependendo da palavra que a precede; esta é a
única informação de cima para baixo que o programa usa. Todos
esses conhecimentos permitem que o programa calcule qual a pa­
lavra mais provável de ter saído da boca do falante, dado o som
registrado. Mesmo assim, o DragonDictate depende mais de ex­
pectativas do que um ser humano com bom ouvido. Na demons­
tração a que assisti, foi preciso usar de estratagemas para que o
programa reconhecesse word e worm [palavra e verme], mesmo per-
feitamente pronunciadas, porque ele continuava jogando com as
probabilidades e apostando na palavra were [passado de ser, es­
tar], mais freqíiente.

Agora que você sabe como as unidades isoladas de fala são pro­
duzidas, como são representadas no dicionário mental e como são
rearranjadas e espalhadas antes de emergirem da boca, você che­
gou ao prêmio do final deste capítulo: por que a grafia inglesa não
é tão atrapalhada como parece à primeira vista.

235
IO in stin to d a lin gu a gem I

A reclamação em relação à grafia inglesa, é claro, é que ela tem


a pretensão de captar os sons das palavras mas não o faz. Existe
uma longa tradição de poesia burlesca que trata disso, e a estrofe
seguinte é um exemplo típico:

Beware of heard, a dreadful word


That looks like beard and sounds like bird,
And dcad: its said like bcd, not bead —
for goodness’ sakc don’t call it “deed”!
Watch out for rncat and great and thrcat
( Fhey rhymc with suite and straight and dcbt).26

Gcorgc Bcrnard Sbaw encabeçou uma vigorosa campanha para


reformar o alfabeto inglês, um sistema tão ilógico, a seu ver, que
poderia grafar fish como “glioti” —gh como cm tougb, o como cm
wometi, ti como cm nation. ( “Mnomnouptc” para minute c “mnops-
pteichc” para mistake são outros exemplos.) Em seu testamento,
Shaw deixou um prêmio em dinheiro a ser concedido àquele que
elaborasse um novo alfabeto para o inglês, no qual cada som da
língua falada seria reconhecível por um único símbolo. Suas pala­
vras foram:

Para ler uma idéia da diferença anual a favor dc um alfabeto foné­


tico de quarenta e duas letras... vocc deve multiplicar o número de
minutos dc um ano, o número de pessoas existentes no mundo que
estão continuamente escrevendo palavras cm inglês, moldando ti­
pos, manufaturando material impresso c escrevendo a máquina. No
final, o produto total será um número tão astronômico que você sc

26. Cuidado com beard |escutado |, uma palavra pavorosa


Parece beard [barba] c soa como bird [pássaro],
E dead [morto]: díz-sc como bed [cama], não bead [conta]
Pelo amor dc Deus não o pronuncio como “deecTl [feito]
Cuidado com meat [carne] c great [grande] c tbreat [ameaça]
(Elas rimam com suite [suíte, coleção, cortejo] e straight [reto] e debt [dívida]). (N. da T.)

236
I Os sons d o silên cio I

dará conta que o custo de grafar até mesmo um único som com
duas letras nos custou séculos de trabalho desnecessário. Um novo
alfabeto britânico de 42 letras se pagaria um milhão de vezes, não só
em horas mas em instantes. Quando tiverem entendido isto, todos
os disparates inúteis sobre enougb e cough e laugh e grafia simplificada
cairão por terra, e os economistas e estatísticos irão se pôr a traba­
lhar juntos no ortográfico Golconda.

Minha defesa da grafia inglesa não será muito entusiasmada.


Pois, embora a língua seja um instinto, a língua escrita não é. A
escrita foi inventada algumas vezes na história, e a escrita alfabéti­
ca, em que um caracter corresponde a um som, parece só ter sido
inventada uma vez. A maioria das sociedades carecia de língua es­
crita, e as que a têm herdaram-na ou a tomaram emprestada dc um
dos inventores. Crianças têm de aprender a ler e escrever em árduas
aulas, e para saber escrever não se pode pular audaciosamente os
exercícios dc fixação da maneira como fizeram Simon, Maycla c os
experimentos dc Jabba c do comedor de camundongos (mice-eater) nos
capítulos 3 c 5. E nem todos obtêm o mesmo sucesso. Pessoas ile-
tradas, cm decorrência dc aprendizagem insuficiente, são a regra cm
grande parte do mundo, c a dislexia, uma dificuldade supostamen­
te congênita dc aprender a ler mesmo com aprendizagem suficien­
te, é um grave problema inclusive nas sociedades industrializadas,
e afeta de cinco a dez por cento da população.
Embora a escrita seja uma geringonça artificial que conecta vi­
são e língua, ela tem de estabelecer ligações com o sistema da lín­
gua em pontos bem demarcados, o que lhe proporciona certa ló­
gica. Em todos os sistemas conhecidos de escrita, os símbolos só
designam três tipos de estruturas lingüísticas: o morfema, a sílaba
e o fonema. A escrita cuneiforme da Mesopotâmia, os hieróglifos
egípcios, os ideogramas chineses e o kanji japonês codificam mor-
femas. O cherokee, o antigo cíprio e о капа japonês baseiam-se
em sílabas. Todos os alfabetos fonéticos modernos parecem des­
cender de um sistema inventado pelos canaanescos por volta de

237
IO in stin to d a lin gu a gem I

1700 a.C. Nenhum sistema de escrita tem símbolos para unida­


des de som reais que possam ser identificadas num osciloscópio
ou espectrógrafo, tais como um fonema como ele é pronunciado
num determinado contexto ou uma sílaba cortada ao meio.
Por que nenhum sistema de escrita alcançou o ideal de Shaw
de um símbolo por som? Como o próprio Shaw disse em outro lu­
gar: “Há duas tragédias na vida. Uma é não realizar seu desejo mais
profundo. A outra é realizá-lo.” Lembre-se do funcionamento da
fonologia c da co-articulação. Um verdadeiro alfabeto nos modos
propostos por Shaw exigiría vogais diferentes para write e ride, con­
soantes diferentes para write e wrítíng, c uma maneira diferente dc
grafar o sufixo de passado cm slapped, sobbed c sorted. Cape Cod perde­
ría sua aliteração visual. Um cavalo [forsr] seria escrito diferente-
mente dc suas ferraduras [horseshoe'], e National Public Radio teria
a enigmática abreviação MPR. Precisaríamos de novas letras para
o n dc month c o d de width. Lu escrevería often diferentemente de or-
pban, mas meus vizinhos ali em Boston não o fariam, e a maneira
de eles escreverem career seria a forma como eu escrevería Korea c
vice-versa.
L óbvio que os alfabetos não correspondem c não devem cor­
responder a sons; na melhor das hipóteses, correspondem aos fo­
nemas especificados no dicionário mental. Os sons propriamente
ditos são diferentes dependendo do contexto, c portanto uma gra­
fia realmcntc fonética apenas ocultaria sua identidade subjacente.
No entanto, os sons superficiais são previsíveis por regras fonoló­
gicas, e portanto não há necessidade de encher a página com uma
confusão de símbolos para os sons reais; o leitor só precisa de um
esboço abstrato de uma palavra para, se necessário, dar substância
ao som. Na verdade, para quase 84% das palavras em inglês, a
grafia é completamente previsível conforme regras regulares. Além
disso, como dialetos separados no tempo e no espaço muitas ve­
zes diferem sobretudo em termos das regras fonológicas que trans­
formam as entradas do dicionário mental em pronunciações, uma

238
I Os son s d o silên cio I

grafia correspondente às entradas subjacentes, e não aos sons, pode


ser compartilhada de modo mais amplo. As palavras com escritas
realmente esquisitas (como of, people, viomen, have, said, do, done e give)
geralmente são as mais comuns numa língua, e portanto todos
têm a oportunidade de memorizá-las.
Mesmo os aspectos menos previsíveis da grafia revelam regula-
ridades lingüísticas. Considere os seguintes pares de palavras em
que as mesmas letras são pronunciadas diferentemente:

elcctric-electricity dcclare-declaration
photograph-photography musde-muscular
gradc-gradual condemn-condemnation
history-historical courage-courageous
revisc-rcvision romantic-romanticize
adore-adoration industry-industrial
bomb-bombard fact-factual
nation-national inspire-inspiration
critical-criticizc sign-signature
modc-modular malign-malignant
rcsidcnt-rcsidcntial

Mais uma vez, a grafia similar, apesar das diferenças dc pro­


núncia, tem uma razão de ser: identifica que duas palavras ba­
seiam-se no mesmo morfema raiz. Isso mostra que a grafia ingle­
sa não é completamente fonêmica; às vezes letras codificam fone­
mas, mas às vezes uma seqüência de letras é específica de um mor­
fema. E um sistema de escrita baseado em morfemas é mais útil
do que você pensa. Afinal de contas, o objetivo da leitura é com­
preender o texto, não pronunciá-lo. Uma grafia por morfemas
pode ajudar o leitor a distinguir homófonos, como meet e mete.
Também pode indicar ao leitor que uma palavra contém outra (e
não apenas um impostor fonologicamente idêntico). Por exem­
plo, a grafia nos diz que overcome contém come, e portanto sabemos
que seu passado dever ser overcame, ao passo que succumb só contém
o som “kum”, e não o morfema come, e portanto seu passado não

239
IO in stin to d a lin gu a gem I

é succame mas succumbed. De modo similar, quando algo recedes [retro­


cede], tem-se uma recession, mas quando alguém re-seeds [semear de
novo] um campo, temos uma re-seeding.
De certa maneira, um sistema de escrita baseado em morfemas
foi bem aproveitado pelos chineses, apesar da desvantagem ine­
rente dc os leitores ficarem perdidos quando encontram uma pala­
vra nova ou rara. Dialetos mutuamente ininteligíveis podem com­
partilhar textos (mesmo se seus falantes pronunciam as palavras de
modo muito diferente), c muitos documentos datados dc milha­
res dc anos podem ser lidos pelos falantes atuais. MarkTwain alu­
diu a essa inércia dc nosso próprio sistema romano de escrita
quando escreveu: “Eles escrevem Vrncí c pronunciam Vinchy; os
estrangeiros sempre escrevem melhor do que pronunciam.” E cla­
ro que a grafia inglesa poderia ser melhor do que c. Mas c muito
melhor do que as pessoas acham que é. Isto porque os sistemas
de escrita não almejam representar os verdadeiros sons da fala, que
não escutamos, mas as unidades abstratas da língua que subjazem
a eles, c que cíctivamcntc escutamos.

240
Cabeçasfalantes

7 Durante muitos séculos


as pessoas se apavoraram
com a idcia cie que suas criações as suplantassem em inteligência,
poder, ou lhes roubassem postos de trabalho. Esse medo foi
amplamcnte expresso na ficção, desde a lenda medieval judaica do
Golcm, um autômato de barro animado por uma inscrição do
nome dc Deus localizada cm sua boca, até HAL, o amotinado
computador dc 2001, uma odisséia no espaço. Mas, quando o ramo
da engenharia denominado “inteligência artificial” (IA) surgiu na
década dc 1950, parecia que a ficção estava prestes a se tornar
uma assustadora realidade. E fácil aceitar que um computador
calcule o número pi com um milhão de casas decimais ou mante­
nha o registro da folha de pagamento de uma empresa. Mas, de
repente, os computadores também estavam provando teoremas de
lógica e jogando xadrez com classe. Nos anos seguintes aparece­
ram computadores que venciam qualquer pessoa que não fosse
um grande mestre, e programas melhores que muitos especialistas
na escolha de tratamentos para infecções bacterianas e na sugestão
de investimentos em fundos de pensão. Com os computadores
resolvendo tarefas complexas como estas, parecia ser uma mera
questão de tempo para que um C3PO ou umTerminator estives­
sem disponíveis nos catálogos de venda por correspondência; fal-

241
I
E
i

IO in stin to d a lin gu a gem I j

tava apenas programar as tarefas fáceis. Diz uma lenda que, nos
anos de 1970, Marvin Minsky, um dos criadores da IA, propôs a
“visão” como projeto de pesquisa de verão para um aluno de pós-
graduação.
Mas os robôs domésticos ainda se limitam à ficção científica.
A principal lição dos 35 anos de pesquisas em IA é que os proble­
mas difíceis são fáceis e os problemas fáceis, difíceis. As habilida­
des mentais de uma criança de quatro anos que consideramos natu­
rais —reconhecer um rosto, levantar um lápis, atravessar um recin­
to andando, responder a perguntas —na verdade resolvem alguns dos
mais difíceis problemas de engenharia já concebidos. Não se deixe
enganar pelos robôs dc linha de montagem dos comerciais da in­
dústria automobilística; eles apenas atarraxam c pintam com spray,
tarefas estas que não exigem os desajeitados Mr. Magoo para ver,
segurar ou colocar coisas. E, se você quiser confundir um sistema
dc inteligência artificial, faça-lhe perguntas tais como: O que c
maior, Chicago ou uma caixa de pão? As zebras vestem vestes ínti­
mas? O chão pode se abrir e te engolir? Quando Susan vai para a
loja, a cabeça dela vai junto? Muitos dos temores relacionados à
automação são improcedentes. Com o aparecimento da nova ge­
ração dc aparelhos inteligentes, quem correrá o risco dc ser subs­
tituído por máquinas serão os analistas da bolsa, engenheiros pe­
troquímicos c os membros do tribunal dc revisão criminal. Os jar­
dineiros, recepcionistas c cozinheiros ainda têm seus empregos ga­
rantidos por muitas décadas.
Compreender uma frase é um desses problemas fáceis difíceis.
Para interagir com computadores ainda temos de aprender a lin­
guagem deles; eles não são suficientemente inteligentes para apren­
der a nossa. Na verdade, tende-se a atribuir aos computadores
mais créditos em termos de compreensão do que eles merecem.
Recentemente, criou-se uma competição anual para escolher o
programa de computador que mais dá a impressão de que se está
conversando com outro ser humano. O Prêmio Loebner preten-

242
I C abeças fa la n tes I

dia implementar uma sugestão feita por Alan Turing num famoso
artigo de 1950. Ele sugeria que a melhor maneira de responder à
questão filosófica “As máquinas pensam?” era por meio de um jogo
de imitação, em que um jurado conversa com uma pessoa num
terminal e com um computador programado para imitar uma
pessoa num outro. Se o jurado não conseguir diferenciar um do
outro, dizia Turing, não havería fundamentos para negar que um
computador consegue pensar. Deixando de lado as questões fi­
losóficas, ficou evidente para o comitê encarregado de supervi­
sionar a competição que nenhum programa conseguiría ganhar
o prêmio de U S$ 100.000, e portanto criaram uma versão de
US$ 1.500, mais condizente com os últimos avanços tecnológicos.
Cada um dos jurados tinha de se ater a um único tópico de con­
versação selecionado pelo programador ou pelo interlocutor hu­
mano, fosse ele qual fosse, e o jurado não podia se utilizar de
“truques ou astúcia” como repetir uma pergunta dez vezes ou
perguntar se as zebras vestem vestes íntimas; a conversa tinha de
ser “natural”. Depois dc interagir com vários programas c inter­
locutores humanos por cerca de sete minutos cada, os jurados clas­
sificaram todos os humanos como mais parecidos com humanos
do que qualquer dos computadores. No entanto, quase metade
dos jurados identificou equivocadamente como humano o pro­
grama vencedor.
O feito é menos impressionante do que parece. As regras dei­
xaram os jurados de mãos atadas: “truques ou astúcias não natu­
rais” é outra maneira de se referir a qualquer tentativa de determi­
nar se se está conversando com um ser humano ou com uma
máquina, que é o tema do teste! Além disso, o programador ven­
cedor aproveitou de maneira astuta a oportunidade de escolher o
tópico da conversa para seu programa. Ele escolheu “conversa
fantasiosa”, que é um exemplo dúbio de um “tópico”, e que, por
definição, pode estar repleto de descontinuidades:

243
I O instinto da linguagem I

Jurado: Puxa, que dia longo! Acho que agora estou pronto para me
divertir um pouco. O tempo não está muito agradável hoje. Vocc
teria alguma piada para desanuviá-lo?
Computador: Todos falam sobre o tempo mas ninguém parece fazer
nada a respeito. Por que vocc precisa me dizer agora que está
pronto para sc divertir um pouco? Groannnnnn . ..
Jurado: Você está tentando tornar isso difícil para mim, não é? Só
expliquei que estava pronto para me divertir!
Computador: Você preferiría isso sc não fosse verdade que eu estou
tentando tornar isso difícil para vocc, não é? Só expliquei que
eslava pronto para me divertir! Sou, portanto, computo... O que
leva você a pensar que estou tentando tornar isso difícil para
você, não estou?
Jurado: Não tenho certeza dc compreender a pergunta... mas a fan­
tasia de um poeta é uma coisa e a fantasia da maioria dc nós é
outra.
Computador: Como você sabe que não tem certeza de compreendei
a pergunta... mas a fantasia dc um poeta é uma coisa c a fantasia
da maioria de nós c outra.

Na verdade, o programador apenas atualizara uma técnica in­


ventada cm 1965 pelo cientista dc computação Joscph Wcizcn-
baum. Wcizenbaum escreveu um programa bastante estúpido cha­
mado liLIZA, segundo a heroína dc Shaw, que procurava algumas
palavras-chave numa linha fornecida, encontrava uma resposta prc-
fabricada dc uma lista, c inseria fragmentos da linha fornecida cm
sua resposta (com algumas pequenas substituições, como “vocc é”
por “eu sou”). Podia assim simular grosseiramente uma conversa­
ção. Uma versão, denominada Doctor, imitava um psicoterapeuta
rogeriano, valendo-se da filosofia de Carl Rogers de que um tera­
peuta tinha de devolver ao paciente suas colocações para que ele
as contemplasse. Uma versão do programa foi posteriormente
vendida como jogo na rede de lojas de eletroeletrônicos Radio
Shack, e outra vem junto com meu programa de processador de

244
I Cabeças falantes I

texto, GNU Emacs. (Nas instruções vem escrito: “Se Emacs se tor­
nar muito frustrante e nenhuma das técnicas descritas acima re­
solver o problema, Emacs ainda poderá ajudá-lo. Digite ’М -x doctor
RET’.”) Eis um diálogo típico:

Usuário: Estive meio deprimido nos últimos tempos.


Computador: Você fica deprimido frequentemente?
Usuário: Sim, quase o tempo todo.
Computador: Por que você diz sim quase o tempo todo?
Usuário: Nesse momento estou com vontade de chorar.
Computador: E porque nesse momento você está com vontade de
chorar que veio me procurar?

Para horror de Weizcnbaum, certo dia ele encontrou sua secre­


tária petrificada diante do terminal, abrindo seu coração para o
programa.
A maioria dos cientistas da computação se incomoda com o
Prêmio Loebncr. Considcram-no um golpe publicitário inócuo,
porque é um exercício de como enganar um amador, c não dc como
conseguir que os computadores usem linguagem. (Pesquisadores
dc inteligência artificial c outros profissionais especializados cm
linguagem não podiam participar como jurados, e nenhum deles
se propôs a competir; todos os inscritos eram leigos.) Ё quase tão
produtivo como promover a biologia oferecendo um prêmio para
quem projetar a flor dc seda mais convincente, ou desenvolver um
programa espacial simulando uma descida na Lua num estúdio de
Hollywood. Há muitas pcscyuisas sendo realizadas sobre sistemas
informáticos de compreensão de linguagem, mas nenhum enge­
nheiro sério tem a petulância de prever que os sistemas consegui­
rão reproduzir a capacidade humana em breve.
Com efeito, de um ponto de vista científico, as pessoas não
têm o direito de ser tão boas em compreensão de frases como o
são. Não só conseguem resolver uma tarefa terrivelmente comple-

245
I O instinto da linguagem I

xa, como a resolvem rápido. Em geral, a compreensão se dá em


“tempo real”. Os ouvintes acompanham os falantes passo a passo;
não esperam o fim de um lote de fala para interpretá-lo depois de
um prazo proporcional, como um crítico resenhando um livro. E
o intervalo de tempo entre a boca do falante e a mente do ouvin­
te é notavelmente curto: cerca de uma sílaba ou duas, em torno dc
meio segundo. Algumas pessoas conseguem entender e repetir fra­
ses, colando-se ao falante enquanto este fala, com um intervalo dc
um quarto dc segundo!
Compreender a compreensão tem outras aplicações práticas
além de construir máquinas com quem possamos conversar. A
compreensão da frase humana c rápida c potente, mas não é per­
feita. Funciona quando a conversa ou texto estão estruturados dc
certa maneira. Quando não o estão, o processo fracassa, retrocede
c cria mal-entendidos. Ao explorarmos a compreensão da lingua­
gem neste capítulo, vamos descobrir que tipos de frases confun­
dem a cabeça do entendedor. Um dos benefícios práticos disso c
um conjunto dc diretrizes para uma prosa clara, um manual dc
estilo científico, como a obra. de Joseph Williams (199 0) Stylc:
Toward Clarity and Grace, que contem muitas das descobertas que
examinaremos.
Outra aplicação prática refere-se à lei. Juizes deparam frcqtien-
temente com o problema de como uma pessoa típica compreende­
ría alguma passagem ambígua, por exemplo, um cliente examinan­
do um contrato, um júri escutando instruções, ou um membro do
público lendo uma caracterização potencialmente difamatória.
Muitos dos hábitos de interpretação das pessoas foram testados
em laboratório, e o linguista e jurista Lawrence Solan explicou as
conexões entre linguagem e lei em seu interessante livro de 1993,
The Language o f Judges, ao qual ainda retomaremos.

❖ *

246
I Cabeças falantes I

Como compreendemos uma frase? O primeiro passo é “anali­


sá-la” \j>arse~\. Isso não se refere aos exercícios que você odiava fa­
zer na escola, e que o texto de Dave Barry, “Ask Mr. Language Per-
son”, relembra da seguinte maneira:

P.: Explique por favor como se diagrama uma frase.


R.: Primeiro estenda a frase numa superfície lisa e limpa, como, por
exemplo, uma tábua de passar roupa. Em seguida, com um lápis
afiado ou um estilete, localize o “predicado”, que indica onde a ação
ocorreu e que geralmente situa-se bem atrás das guelras. Por exem­
plo, na frase: “Uamazona num ia nunca mordê um guarda flores­
tal”1, a ação provavelmente aconteceu numa floresta. Portanto seu
diagrama terá a forma de uma arvorezinha com galhos saindo dela
para indicar a localização das várias partículas da fala, como seus
gerúndios, provérbios, ajudantes etc.

Mas exige um processo para encontrar sujeito, verbos, objetos


etc., semelhante ao que ocorre inconscientemente. A não ser que
você seja Woody Allen fazendo leitura dinâmica de Guerra e paz,
terá de agrupar palavras em sintagmas, determinar qual sintagma
é o sujeito de que verbo etc. Por exemplo, para compreender a
sentença O gato de chapéu está de volta, tem de agrupar as palavras o gato
de chapéu num sintagma, para perceber que é o gato que está de vol­
ta, e não o chapéu. Para distinguir Cão morde homem de Homem morde
cão, você tem de encontrar o sujeito e o objeto. E, para distinguir
Homem morde cão de Homem é mordido por cão ou Homem sofre mordida de
cão, tem de dar uma olhada nas entradas dos verbos do dicionário
mental para determinar o que o sujeito, homem, está fazendo ou o
que estão fazendo com ele.
A gramática em si é um mero código ou protocolo, uma base
de dados estática que especifica que tipos de sons correspondem

I. No original: “LaMonc never would of bit a forest ranger.” (N. daT.)

247
I O instinto da linguagem I

a que tipos de significados numa determinada língua. Não é uma


receita ou programa para falar e compreender. Falar e compreen­
der compartilham uma mesma base de dados gramaticais (a lín­
gua que falamos é a mesma que compreendemos), mas também
precisam de procedimentos que especifiquem o que a mente tem
dc fazer, passo por passo, quando as palavras começam a entrar
ou quando se está prestes a falar. O programa mental que analisa
a estrutura da frase durante a compreensão da linguagem chama-
se parscr.
A melhor maneira dc entender como a compreensão funciona
é acompanhar o parsing dc uma simples sentença, gerada por uma
minigramática como aquela do Capítulo 4, que reproduzo aqui:

S —» NP VP
'Uma frase pode ser formada dc um sintagma nominal e um sintag­
ma verbal.”
NP -> (det) N (PP)
“Um sintagma nominal pode ser formado de um determinante
opcional, um substantivo c um sintagma preposicional opcional.”
VP —>V NP (PP)
“Um sintagma verbal pode ser formado de um verbo, um sintagma
nominal e um sintagma preposicional opcional.”
PP-4PNP
“Um sintagma preposicional pode ser formado dc uma preposição
e um sintagma nominal.”
N —>menino, menina, cão, gato, sorvete, doce, sanduíche
“Os substantivos do dicionário mental incluem menino, menina..’. ’
V —» come, adora, morde
“Os verbos do dicionário mental incluem come, adora, morde.”
P —>com, em, ante
“As preposições incluem com, em, ante”
det —>um, o, certo
“Os determinantes incluem um, o, certo”

248
I Cabeças falantes I

Tomemos a sentença O cão aàora sorvete. A primeira palavra que


chega no parser mental é o. O par ser a procura no dicionário mental,
o que equivale a encontrá-la do lado direito de uma regra e desco­
brir sua categoria do lado esquerdo. É um determinante (det). Isso
permite que o parser faça brotar o primeiro ramo da árvore da sen­
tença. (Entenda-se que uma árvore que cresce de cima para baixo,
das folhas para a raiz, é botanicamente improvável.)

det

Determinantes, como todas as palavras, têm de ser parte de al­


gum sintagma maior. O parser pode imaginar qual é o sintagma ve­
rificando que regra tem “det” do seu lado direito. Essa regra é aque­
la que define um sintagma nominal, NP. A árvore pode crescer:

NP

det N

Essa estrutura solta precisa ser guardada num certo tipo de


memória. O parser guarda na cabeça que a palavra à mão, o, é parte
de mn sintagma nominal, que logo precisa ser completado encon­
trando palavras que preencham seus outros soquetes —neste caso,
pelo menos um substantivo.
No entretempo, a árvore continua a crescer, porque NPs não
podem ficar flutuando por aí soltos. Depois de verificar os lados
direitos das regras à procura do símbolo NP, o parser tem várias
opções. O NP recém-construído poderia ser parte de uma senten­
ça, parte de um sintagma verbal ou parte de um sintagma prepo­
sicional. A escolha pode ser feita partindo-se da raiz: todas as

249
I O instinto da linguagem I

palavras e sintagmas acabam tendo de se encaixar numa sentença


(S), e uma sentença tem de começar com um NP, portanto a regra
da sentença é a escolha lógica a ser usada para fazer a árvore cres­
cer mais:

NP VP

det N

o...

Note que agora o parser tem na memória dois galhos incomple­


tos: o sintagma nominal, que precisa de um N para ser completa­
do, e a sentença, que precisa dc um VP.
O ramo solto N equivale a uma predição de que a próxima pa­
lavra deve ser um substantivo. Quando a próxima palavra, cão, en­
tra, uma verificação das regras confirma a predição: cão é parte da
regra de N. Isso permite que cão seja integrado à árvore, comple­
tando o sintagma nominal:

NP VP

det N

o cao...

O parser não precisa mais lembrar que há um NP a ser comple­


tado; agora só precisa ter em mente a S incompleta.
Nesse ponto alguns dos significados da sentença já podem ser
inferidos. Lembre-se que o substantivo dentro de um sintagma no­
minal é um núcleo (aquilo de que trata o sintagma) e que outros

250
I C abeças fa la n tes I

sintagmas dentro do sintagma nominal podem modificar o nú­


cleo. Dando uma olhada nas definições de cão e o em suas entradas
do dicionário, o parser nota que o sintagma refere-se a um cão pre­
viamente mencionado.
A próxima palavra é adorai que, constata-se, é um verbo, V Um
verbo só pode provir de um sintagma verbal, VP, que, por sorte, já
foi previsto, e portanto basta juntá-los. O sintagma verbal contém
algo mais além de um V; também tem um sintagma nominal (seu
objeto). Portanto, o parser prevê que um NP é o que deveria vir a
seguir:

NP VP

det N V NP

o cão adora...

O que vem a seguir é sorvete, um substantivo, que pode ser par­


te de um NP —exatamente como prevê o galho solto do NP. As
últimas peças do quebra-cabeça se encaixam direitinho:

A palavra sorvete completou o sintagma nominal, que portanto


não precisa mais ser guardado na memória; o NP completou o
sintagma verbal que, portanto, também pode ser esquecido; e o

251
I O instinto da linguagem I

VP completou a sentença. Quando a memória foi esvaziada de to­


dos os seus galhos soltos incompletos, sentimos o “clique” mental
que assinala que acabamos de ouvir uma frase gramatical completa.
A medida que o parser foi reunindo galhos, foi construindo o
significado da sentença, utilizando as definições do dicionário
mental e os princípios que regem sua combinação. O verbo é o
núcleo de seu VP, portanto o VP é sobre adorar. O NP dentro
do VP, sorvete, é o objeto do verbo. A entrada do dicionário para
adora diz que seu objeto é a entidade adorada; portanto o VP é
sobre gostar muito de sorvete. O NP à esquerda do verbo con­
jugado é o sujeito; a entrada para adora diz que seu sujeito é
aquele que faz a adoração. Combinando a semântica do sujeito
com a semântica do VP, o parser determinou que a sentença afir­
ma que úm supramcncionado canino gosta muito de produtos
gelados.

Por que c tão difícil programar um computador para fazer


isso? li por que também as pessoas acabam achando difícil fazê-lo
ao lerem burocratcs c outras coisas mal escritas? Quando percor­
remos a frase fingindo ser o parser, encontramos duas idéias do
campo da computação. Uma era a memória: tínhamos de manter
cm mente os sintagmas que necessitavam de tipos particulares dc
palavras para completá-los. A outra era a tomada dc decisões: quan­
do uma palavra ou sintagma era encontrado do lado direito dc
duas regras diferentes, tínhamos de decidir qual usar para cons­
truir o próximo ramo da árvore. De acordo com a primeira lei da
inteligência artificial —os problemas difíceis são fáceis e os pro­
blemas fáceis são difíceis —, verifica-se que a parte da memória é
fácil para computadores e difícil para pessoas, e a parte da toma­
da de decisões é fácil para pessoas (pelo menos quando a frase foi
bem construída) e difícil para computadores.

252
I Cabeçasfalantes I

Um parser de frases exige vários tipos de memória, mas a mais


óbvia é aquela necessária para sintagmas incompletos, a lembran­
ça de coisas analisadas. Os computadores têm de reservar um con­
junto de regiões de memória, geralmente chamadas de “stack” [pi­
lha], para essa tarefa; é o que permite que um parser utilize a gra­
mática da estrutura sintagmática, em contraposição a um meca­
nismo de cadeias de palavras. Também as pessoas têm de dedicar
um pouco de sua memória de curto prazo para sintagmas soltos.
Mas a memória de curto prazo é o gargalo primário do processa­
mento humano da informação. Apenas poucos itens — a média
em geral é sete, mais ou menos dois —conseguem ser guardados
na cabeça de uma só vez, e os itens imediatamente desaparecem
ou são sobrescritos. Nas seguintes frases você poderá perceber o
que acontece se mantiver um sintagma solto na memória por tem­
po demais;

Ele deu de presente para a menina que conheceu em Nova York


quando visitava seus pais por dez dias entre o Natal c o Ano
Novo um doce.
Ele enviou o doce envenenado que tinha recebido pelo correio dc
um dc seus rivais comerciais ligado à Máfia para a polícia.
Ela não deixou o problema que lhe tinha causado tanta angústia em
anos anteriores quando trabalhava como especialista cm produ­
tividade na companhia sem solução.
Que tantos professores estejam sendo dispensados numa tentativa
míope d.e equilibrar o orçamento deste ano ao mesmo tempo que
os amigos do governador e os burocratas corruptos estão enchen­
do os bolsos é estarrecedor.

Essas frases que tanto exigem da memória são chamadas de


“top-heavy”2 em manuais de estilo. Nos idiomas que utilizam mar­

2. Em que o peso se encontra na parte inicial. (N. daT.)

253
I O instinto da linguagem I

cadores de caso para indicar o sentido, um sintagma pesado pode


simplesmente ser deslocado para o final da frase, para que o ou­
vinte possa digerir o começo sem ter de manter o sintagma pesa­
do na cabeça. O inglês é tirânico no que se refere à ordem, mas até
mesmo ele fornece aos falantes algumas construções alternativas
em que a ordem dos sintagmas é invertida. Um escritor atencioso
pode usá-las para deixar a parte mais pesada para o fim e aliviar o
trabalho do ouvinte. Note como seria mais fácil entender essas
frases assim:

Ele deu um doce de presente para a menina que conheceu em Nova


York (.[tiando visitava seus pais por dez dias entre o Natal e o
Ano Novo.
Ele enviou para a polícia o doce envenenado que tinha recebido pelo
correio dc um dc seus rivais comerciais ligado à Máfia.
Ela não deixou sem solução o problema que lhe tinha causado tanta
angústia em anos anteriores quando trabalhava como especialis­
ta cm produtividade na companhia.
E estarrecedor que tantos professores estejam sendo dispensados
numa tentativa míope de equilibrar o orçamento deste ano, ao
mesmo tempo que os amigos do governador c os burocratas cor­
ruptos estão enchendo os bolsos.1’

Segundo muitos lingüistas, a razão pela qual os idiomas admi­


tem a deslocação de sintagmas, ou escolhas entre construções mais
ou menos sinônimas, é aliviar a carga de memória do ouvinte.
Se as palavras de uma frase puderem ser imediatamente agru­
padas em sintagmas completos, a frase, mesmo complexa, é com­
preensível:3

3. Traduzimos mantendo exatamente a mesma ordem das frases em inglês. (N. d a T )

254
I Cabeçasfalantes I

Notável é a rapidez de movimento das asas do beija-flor.


Essa é a vaca de chifres tortos que afugentou o cão que assustou o
gato que matou o rato que comeu o malte que estava na casa que
Jack construiu.
E então apareceu o Altíssimo, bendito seja, e destruiu o anjo da mor­
te que matou o açougueiro que matou o boi que bebeu a água
que apagou o fo g o que queimou o pau que bateu no cão que
mordeu o gato que meu pai comprou por duas moedas.

Estas frases são chamadas de “ramificadas à direita”, por causa


da geometria de suas árvores de estrutura sintagmática. Note que,
à medida que se vai da esquerda para a direita, só um dos galhos
fica solto por vez:

Notável é a rapidez de movimento das asas do beija-flor

Frases também podem se ramificar à esquerda. Árvores com


ramificação à esquerda são mais comuns em línguas em que o nú­
cleo fica por último, como em japonês, mas também podem ser
encontradas em algumas construções em inglês. Como no caso
anterior, o parser nunca tem de manter na cabeça mais de um galho
solto por vez:

255
I O instinto da linguagem I

T he luurmiingbircTs w ings m otions rapidity is rcmarkable.

Há um terceiro tipo de geometria da árvore, mas que desce com


muito menos facilidade. Tomemos a frase

A rapidez que o movimento (cm c notável.

A oração que o movimento tem foi encaixada no sintagma nominal


que contém A rapidez. O resultado é um tanto empolado mas fácil
dc compreender. Também se pode dizer

O movimento que a asa tem c notável.

Mas o resultado de encaixar o sintagma o movimento que a asa tem


dentro do sintagma a rapidez que o movimento tem c surpreendente­
mente difícil dc compreender:

A rapidez que o movimento que a asa tem tem é notável.

Encaixar um terceiro sintagma, como a asa que o beija-flor tem,


criando assim uma frase parecida com uma cebola de três cama­
das, resulta em completa ininteligibilidade:

256
I Cabeças falantes I

Quando o parser humano encontra os três sucessivos tem, ele se


debate inutilmente, sem saber o que fazer com eles. Mas o proble­
ma não consiste no fato de os sintagmas terem de ser guardados
na memória por um tempo longo demais; mesmo frases curtas
são impossíveis de interpretar se tiverem múltiplos encaixes:

O cão que o pau que o fogo queimou bateu mordeu o gato.


O malte que o rato que o gato matou comeu estava na casa.
Se se se chove diluvia fico deprimido preciso de ajuda.
Que que que ele foi embora é evidente é claro é óbvio.

Por que a compreensão humana de frases entra cm total colap­


so ao interpretar frases que são como cebolas ou bonecas russas?
Trata-se de um dos quebra-cabeças mais desafiadores no que se
refere ao design do parser mental e da gramática mental. A primei­
ra dúvida é saber se as frases são gramaticais. Talvez empreguemos
mal as regras, e as verdadeiras regras nem mesmo forneçam um
meio de essas palavras se combinarem. Será que, na verdade, o ver­
dadeiro modelo dos humanos é o maldito mecanismo de cadeias
de palavras do Capítulo 4, que não tem memória para sintagmas
soltos? De jeito nenhum; as frases preenchem todos os requisitos.

257
I O instinto da linguagem I

Um sintagma nominal pode conter uma oração modificadora; se


você pode dizer o rato, você pode dizer o rato que S, em que S é uma
sentença sem objeto que modifica o rato. E tuna frase como o gato
matou X pode conter um sintagma nominal, como seu sujeito, o
gato. Portanto, ao dizer O rato que o gato matou, você modificou um
sintagma nominal com algo que por sua vez contém um sintagma
nominal, Com apenas essas duas faculdades, frases cebola tor-
nam-se possíveis: basta modificar o sintagma nominal dentro de
uma oração com uma oração modificadora própria. A única ma­
neira de impedir frases cebola seria afirmar que a gramática men­
tal define dois tipos diferentes de sintagmas nominais, um que
pode ser modificado e outro que pode ser inserido num modifica-
dor. Mas isso não pode estar correto: ambos os tipos dc sintagma
nominal deveriam poder conter os mesmos vinte mil substantivos,
ambos teriam dc poder conter artigos, adjetivos e possessivos cm
posições idênticas etc. Entidades não devem ser multiplicadas des­
necessariamente, o que decerto aconteceria com essa tentativa de
remendo. Postular diferentes tipos de sintagmas na gramática men­
tal apenas para explicar por que frases cebola são ininteligíveis ten-
deria a complicar cxponcncialmcntc a gramática c daria à criança
uma quantidade cxponcncialmcntc maior de regras para decorar
ao aprender a língua. O problema deve estar em outro lugar.
Frases cebola revelam que uma gramática e um parser são coisas
diferentes. Uma pessoa pode “conhecer” implicitamente constru­
ções que nunca irá en ten d er, da mesma maneira como Alice sabia
somar apesar do julgamento da Rainha Vermelha:

“Sabe somar?”, perguntou a Rainha Branca. “Quanto é um mais um


mais um mais um mais um mais um mais um mais um mais um
mais um?”
“Não sei”, disse Alice. “Perdi a conta.”
“Ela não sabe somar”, interrompeu a Rainha Vermelha.

258
I Cabeças falantes I

Por que parece que o parser humano perde a conta? Não há lu­
gar suficiente na memória de curto prazo para guardar mais de
um ou dois sintagmas soltos ao mesmo tempo? O problema deve
ser mais sutil. Algumas frases cebola de três camadas são um pou­
co mais difíceis pela carga de memória exigida mas não são tão
opacas como a frase do tem tem tem:

O queijo que alguns ratos que eu vi estavam tentando comer mos­


trou-se rançoso.
As políticas que os estudantes que conheço combatem mais fervoro­
samente são aquelas relativas ao fumo.
O rapaz que está sentado entre a mesa que eu gosto e a cadeira vazia
acabou de dar uma piscadela.
A mulher que o zelador que acabamos de contratar paquerou é mui­
to bonita.

O que atrapalha o parser humano não é a quantidade de memó­


ria necessária mas o tipo de memória: manter um determinado ti­
po de sintagma na memória, com a intenção de voltar a ele, ao
mesmo tempo que está analisando outro exemplo daquele mesmo tipo
de sintagma. Exemplos dessas estruturas “recursivas” incluem uma
oração relativa no meio do mesmo tipo de oração relativa, ou uma
frase se... então dentro de outra frase se... então. È como se a maneira
de o parser de frases humano lembrar onde está numa frase não
fosse anotar os sintagmas ainda incompletos na ordem em que
eles têm de ser completados, mas anotar um número num quadra­
do perto de cada tipo dc sintagma numa lista de controle. Quando
um tipo de sintagma tem de ser lembrado mais de uma vez —de
modo que tanto ele (o gato que...) quanto o tipo idêntico de sin­
tagma em que está inserido (o rato que..d) possam ser completados
em ordem —não há lugar suficiente na lista de controle para am­
bos os números, e os sintagmas não podem ser adequadamente
completados.

259
I O instinto da linguagem I

Diferentemente da memória, algo em que as pessoas são ruins


e os computadores bons, a tomada de decisão é algo que as pes­
soas fazem bem e computadores, mal. Concebí a minigramática e
a pequena frase que acabamos de usar de modo tal que cada pala­
vra tivesse uma única entrada no dicionário (isto é, estava do lado
direito de apenas uma regra). Mas basta abrir um dicionário para
ver que muitos substantivos têm uma entrada secundária como
verbo, e vice-versa. Por exemplo, dog está listado uma segunda vez
—como verbo, para frases como Scanâals dogged the administration all
year [Escândalos perseguiram a administração o ano todo]. De
modo similar, na vida real hot dog não c só um substantivo mas
também um verbo, que significa “exibir-se”. E cada um dos ver­
bos da minigramática também poderia ser listado como substan­
tivo, porque os falantes dc inglês podem falar dc chcap eats [comi­
das baratas], bis likes and dislikcs [o que ele gosta e não gosta] e ta-
king a fcw biles [dar umas mordidas], Até mesmo o determinante
onc [certo, um], como cm one dog, pode ter uma segunda vida como
substantivo, como cm Níxons the one.
Essas ambiguidades localizadas criam para o parser um número
cnlouqucccdor dc bifurcações cm cada passo do caminho. Quan­
do, digamos, encontra a palavra one no começo de uma frase, ele
não pode simplesmente construir

det
I
one

mas também tem de ter em mente

N
I
one

260
I Cabeçasfalantes I

Também tem de tomar nota de dois ramos rivais quando en­


contra dog, um no caso de ser substantivo, outro no caso de ser
verbo. Para lidar com one dog, teria de checar quatro possibilidades:
determinante-substantivo, determinante-verbo, substantivo-subs-
tantivo e substantivo-verbo. Determinante-verbo pode evidente­
mente ser eliminado porque nenhuma regra gramatical o autoriza,
mas ainda assim tem de ser checado.
As coisas ficam ainda piores quando as palavras são agrupadas
em sintagmas, porque sintagmas podem se encaixar em sintagmas
maiores de muitas maneiras diferentes. Mesmo em nossa minigra­
mática, um sintagma preposicional (PP) pode entrar ou num sin­
tagma nominal ou num sintagma verbal —como no ambíguo dis­
cutir sexo com Díck Cavett, em que o escritor pretendia que o PP com
Dick Cavett entrasse no sintagma verbal (discutir isso com ele), mas
os leitores podem interpretá-lo como pertencente ao sintagma
nominal (sexo com ele). Essas ambigüidades são a regra, não a ex­
ceção; pode haver dezenas ou centenas de possibilidades a serem
checadas cm cada ponto de uma frase. Por exemplo, depois de
processar The plastic pencil marks.,., o analisador tem de deixar várias
opções cm aberto: pode ser um sintagma nominal de quatro pala­
vras, como em The plastic pencil marks were ugly [As marcas do lápis
de plástico eram feias], ou um sintagma nominal de três palavras
mais um verbo, como em The plastic pencil marks easily [O lápis de
plástico marca facilmente]. Na verdade, mesmo as primeiras duas
palavras, The plastic..., são temporariamente ambíguas: compare The
plastic rosefell [A rosa de plástico caiu] com The plastic rose andfell [O
plástico subiu e caiu].
Caso se tratasse apenas de manter-se atento a todas as possibi­
lidades em cada ponto, um computador o faria com facilidade.
Ele ficaria se revolvendo durante vários minutos para cada sim­
ples frase, ou usaria tanta memória de curto prazo que o material
impresso se espalharia por meia sala, mas finalmente a maioria das
possibilidades de cada ponto a ser decidido acabaria sendo con­

261
I O instinto da linguagem I

tradita por informações posteriores da frase. Nesse caso, uma


única árvore e seus significados associados surgiría no final da fira-
se, como no miniexemplo. Quando as ambiguidades localizadas
não se eliminam entre si e duas árvores coerentes são encontradas
para a mesma frase, teremos uma frase que as pessoas consideram
ambígua, como

Ingres gostava de pintar seu modelo nu.


Anunciou que ia parar de nadar duas vezes.
Visitas podem ser entcdiantes.
Participe da campanha contra os ratos da prefeitura.
Encontrei o homem de pijama.

Aqui está o problema. Os parsers de computador são meticulo­


sos demais. Encontram ambiguidades legítimas no que concerne
à gramática inglesa, mas que nunca ocorreríam a uma pessoa sã.
Um dos primeiros parsers dc computador, desenvolvido em Har-
vard nos anos Г960, proporcionou um exemplo famoso. A frase
O tempo voa como uma flecha [Time flies like an arrow] decerto não é
ambígua se c que existe uma frase não ambígua (ignorando a dife­
rença entre sentido literal c metafórico, que nada tem a ver com
sintaxe). Mas, para surpresa dos programadores, o computador
arguto encontrou cinco árvores diferentes!

O tempo avança tão rápido quanto uma flecha avança, (o sentido


pretendido)
Meça a velocidade das moscas [flies] da mesma maneira como você
mede a velocidade de uma flecha.
Meça a velocidade das moscas da mesma maneira como uma flecha
mede a velocidade das moscas.
Meça a velocidade das moscas que se parecem com uma flecha.
Moscas de um determinado tipo, moscas-tempo [timeflies], gostam
[like] de uma flecha.

262
I Cabeças falantes I

Os cientistas da computação resumiram a descoberta com o


seguinte aforismo: “Time flies like an arrow; fruit flies like a ba­
nana.”4 Ou considere o verso Шагу had a little lamb [M ary tinha um
cordeirinho]. Nenhuma ambigüidade? Imagine que o segundo
verso fosse: Com molho de menta.5 Ou: E os médicos ficaram espantados.
Ou: Putona! Encontra-se estrutura até mesmo em listas de palavras
aparentemente sem sentido. Por exemplo, esta cadeia demoníaca
de palavras criada por minha aluna Annie Senghas é uma frase
gramatical:

Buffalo buffalo Buffalo buffalo buffalo buffalo Buffalo buffalo.

Os bisões americanos são chamados de buffalo. Um tipo de bi­


são originário de Buffalo, Nova York, poderia ser chamado de
Buffalo buffalo. Lembre-se que existe um verbo to buffalo que significa
“dominar, intimidar”. Imagine que os bisões do estado de Nova
York intimidem um ao outro: (O) Buffalo buffalo (que) Buffalo buffalo
(amiúde) buffalo (por sua vez) buffalo (outro) Buffalo buffalo. O psicolin-
güista e filósofo Jerry Fodor observou que um dos gritos da tor­
cida de futebol americano da Universidade de Yale:

Bulldogs Bulldogs Bulldogs Fight Fight Fight!

c uma frase gramatical, apesar do triplo encaixe.


Como as pessoas acertam o parsing de uma frase sem sc deter
em todas as alternativas gramaticalmente legítimas mas bizarras?
Existem duas possibilidades. Uma é que nossos cérebros são como
parsers de computador, que computam dezenas de fragmentos con­
denados de árvore nos bastidores, e os improváveis são de algu­

4. Jogo de palavras intraduzível: O tempo voa como uma flecha; moscas-da-fruta gostam de
uma banana. (N. daT.)
5. O primeiro verso também poderia ser traduzido por Mary comeu um cordeirinho. (N. daT.)

263
IO in stin to d a lin gu a gem I

ma maneira filtrados e eliminados antes de atingir a consciência.


A outra é que o parser humano dá um jeito de, a cada passo, apos­
tar na alternativa mais provável de ser a verdadeira e em seguida
continua avançando com aquela única interpretação até onde for
possível. Os cientistas da computação chamam essas duas alter­
nativas de “busca pela largura primeiro” e “busca pela profundi­
dade primeiro”.
No nível de palavras isoladas, é como se o cérebro fizesse uma
busca pela largura primeiro, mantendo, ainda que brevemente, vá­
rias entradas para uma palavra ambígua, até mesmo algumas im­
prováveis. Num experimento engenhoso, o psicolingüista David
Swinney fez as pessoas escutarem com fones de ouvido passagens
como a seguinte:

Rumor had it tliat, for years, thc government building had bcen pla-
gued with problcms. The man was not surprised when he found
scvcrnl spiders, roaches, and other bugs in the corner of his
roora.1'

Vocc percebeu que a última frase contém uma palavra ambí­


gua, bichos [bug], que, cm inglês, pode significar ou “inseto”, ou
“aparelho dc escuta clandestina”? È provável que não; o segundo
sentido c mais obscuro c não faz sentido no contexto. Mas os psi-
colingüistas, interessados cm processos mentais que duram ape­
nas milésimos de segundo, precisam de uma técnica mais su til do
que apenas perguntar para as pessoas. Tão logo a palavra bug era
ouvida, um computador fazia uma palavra aparecer rapidamente
numa tela, e a pessoa tinha de apertar um botão tão logo a reco­
nhecesse. (Havia outro botão para palavras sem sentido como6

6. Correu o boato de que, durante anos, o edifício do governo esteve infestado de problemas.
O homem não se surpreendeu quando encontrou várias aranhas, baratas c outros bichos
no canto da sua sala. (N. daT.)

264
I Cabeçasfalantes I

blick.) Sabe-se que quando uma pessoa escuta uma palavra é mais
fácil reconhecer qualquer palavra relacionada com ela, como se o
dicionário mental estivesse organizado como um tbesaurus, de mo­
do tal que, quando uma palavra é encontrada, outras de sentido
semelhante estão mais prontamente disponíveis. Como esperado,
as pessoas apertavam mais rápido o botão quando reconheciam
ant [formiga], que se relaciona com bug, do que quando reconhe­
ciam sew [costurar], que não tem relação. Surpreendentemente, as
pessoas estavam igualmente prontas a reconhecer a palavra spy [es­
pião], que, é claro, relaciona-se com bug, mas apenas com o signi­
ficado que não faz sentido no contexto. Isso sugere que o cérebro,
como num reflexo patelar, ativa ambas as entradas de bug, mesmo
se uma delas pudesse racionalmente ser eliminada de antemão.
O significado irrelevante não fica presente por muito tempo: se
a palavra testada aparecesse na tela três sílabas depois de bugs e
não logo depois dele, somente ant era reconhecido rapidamen­
te; spy deixava de ser mais rápido que sew. E provavelmente por
isso que as pessoas negam até mesmo ter pensado no significado
inapropriado.
Os psicolingtiistas Mark Seidenberg e Michael Tanenhaus de­
monstraram o mesmo efeito para palavras que são ambíguas en­
quanto classes gramaticais, como tires [pneus, cansa], que encon­
tramos na manchete terrivelmente ambígua Stud Tires Out1. Inde-
pendentemente de aparecer numa posição de substantivo, como
The tires..., ou de verbo, como He tires..., a palavra criava prontidão
tanto para wbeels [rodas], relacionada com o significado do subs­
tantivo, como para fatigue [fadiga], relacionada com o significado
do verbo. Portanto, a pesquisa do dicionário mental é rápida e
meticulosa mas não muito inteligente; encontra entradas destituí­
das de sentido que depois têm de ser eliminadas.7

7. Coluna cede/O garanhão se exauriu. (N. da T.)

265
I O instinto da linguagem I

Todavia, no nível dos sintagmas e frases que abarcam muitas


palavras, é patente que as pessoas não computam todas as árvores
possíveis para uma frase. Sabemos disso por duas razões. Uma é
que ambigüidades muito sutis simplesmente nunca são reconheci­
das. Que outra explicação havería para os trechos jornalísticos am­
bíguos que nem foram notados pelos editores,' sem dúvida com
horror num momento posterior? E irresistível citar mais alguns:

O juiz condenou o assassino a morrer na cadeira elétrica pela segun­


da vez.
Dr. Tackett falará da lua.
Ninguém se feriu na explosão, que foi atribuída à estocagem de gás
por um policial.
O resumo dos dados contém a totalização do número de estudantes
que tiveram colapso nervoso por sexo, estado civil e idade.

Certa vez li na sobrecapa de um livro que a autora vivia com o


mai*ido#um arquiteto e um músico amador em Cheshire, Connec-
ticut. Por um instante pensei que era um ménage à quatre.
As pessoas não só deixam de encontrar algumas das árvores
que são coerentes com uma frase; às vezes elas obstinadamente
deixam dc encontrar a única árvore que é coerente com urna frase.
Examine estas frases:

Thc horse raccd past thc barn fcll.


The man who hunts ducks out on weekends.
Thc cotton clothing is usually made of grows in Mississippi.
The prime number few.
Fat people eat accumulates.
The tycoon sold the offshore oil tracts for a lot of money wanted
to kill JR.8

8. Traduções possíveis seriam: O cavalo a galope pela cocheira caiu./O homem c]ue caça
patos dc folga nos fins de semana./O algodão das roupas geralmente no M ississippi./

266
I Cabeças falantes I

A maioria das pessoas vai avançando feliz e contente pela fra­


se até um certo ponto, quando encontram uma parede e frenetica­
mente olham para trás buscando palavras anteriores que ajudem a
entender onde pegaram o caminho errado. Geralmente a tentativa
falha e_as pessoas supõem que as frases têm uma palavra extra ane­
xada no fim, ou consistem de dois pedaços de frases grudados.
Na verdade, cada uma é uma frase gramatical:

The horse that was walked past the fence proceeded steadily, but the
horse raced past the barn fell.
The man who fishes goes into work seven days a week, but the man
who hunts ducks out on weekends.
The cotton that sheets are usually made of grows in Egypt, but the
cotton clothing is usually made of grows in Mississippi.
The medíocre are numerous, but the prime number few.
Carbohydrates that people eat are quickly broken down, but fat peo-
ple eat accumulates.
JR Ewing had swindled one tycoon too many into buying useless
proprieties. The tycoon sold the offshore oil tracts for a lot of
money wanted to kill JR.9

Essas frases criam o chamado efeito labirinto [garden раЩ,


porque suas primeiras palavras conduzem o ouvinte pelo cami-

Nata pouca./Os gordos que as pessoas comem dííjcuham./A última frase, The tycoon..., con­
verte o objeto indireto em sujeito da voz passiva, algo impossível cm português. A tradução
da frase seria: O magnata a c]ucm foram vendidos os campos de petróleo marítimos por um
dinbcirão quis matar J. R. (N. daT.)
9. O cavalo que passou andando pela cerca seguiu adiante, mas o cavalo a galope pela
cocheira caiu./O homem que pesca está a trabalho todos os dias, mas o homem que
caça patos, de folga nos fins de semana./O algodão de que os lençóis costumam ser fei­
tos cresce no Egito, mas o algodão das roupas, geralmente no M ississippi./ Populacho
há muito, nata pouca./Os alimentos com fibras que as pessoas comem facilitam a
digestão, os gordos que as pessoas comem dificultam ./j. R . Ewing tinha passado a per­
na em muitos magnatas, vendendo-lhes bens inúteis. Com um deles, se deu mal. O mag­
nata a quem foram vendidos os campos de petróleo marítimos por um dinheirão quis
matar J. R. (N. daT.)

267
I O instinto da linguagem I

nho errado do labirinto, levando-o a uma análise incorreta. O


efeito labirinto mostra que as pessoas, diferentemente de com­
putadores, não constroem todas as árvores possíveis à medida que
avançam; se assim fizessem, a árvore correta estaria entre as con­
sideradas. As pessoas, ao contrário, usam sobretudo uma estraté­
gia de profundidade primeiro, escolhendo uma análise que pare­
ce funcionar e seguindo com ela enquanto for possível; quando
deparam com palavras que não se encaixam na árvore, retroce­
dem c recomeçam com uma árvore diferente. (Ás vezes, as pes­
soas conservam uma segunda árvore na cabeça, sobretudo as do­
tadas dc boa memória, mas a grande maioria de árvores possíveis
nunca c considerada.) A estratégia dc profundidade primeiro
aposta que uma árvore cm que ate aquele momento as palavras se
encaixaram continuará aceitando os novos termos. Com uma só
árvore na cabeça economiza-se espaço de memória, ao preço de
ter de reiniciar o processo se a aposta for no cavalo errado a ga­
lope pela cocheira.
Aliás, sentenças com o efeito labirinto são uma das marcas re­
gistradas de um texto mal redigido. As frases não têm marcadores
claros a cada bifurcação, permitindo que o leitor siga confiante
ate o fim. Hm vez disso, o leitor encontra constantemente becos
sem saída c tem dc voltar atrás. Bis alguns exemplos que encontrei
cm jornais e revistas:

Dclays Dog Deaf-Mute MurdcrTrial


British Banks Soldier On
1 thought that the Vietnam war would end for at least an apprecia-
ble chunk of time this kind of reflex anticommunist hysteria.
The musicians are master mimies of the formulas they dress up
with irony.
The movie is Tom Wolfe s dreary vision of a past that never was set
against a comic view of the modern hype-bound world.
That Johnny Most didht need to apologize to Chick Kearn, Bill

268
I Cabeças falantes I

King, or anyone else when it came to describing the action


[Johnny Most when he was in his prime].
Family Leave Law a Landmark Not Only for Newborns Parents10

Um grande escritor como Shaw, em contrapartida, consegue


fazer com que o leitor vá em linha reta da primeira palavra de uma
frase até o ponto final, mesmo que este se encontre 1 10 palavras
adiante.

Um parser primeiro em profundidade deve usar algum critério


para selecionar uma árvore (ou algumas poucas) e seguir com ela
—em termos ideais, a árvore mais provável de ser a correta. Uma
possibilidade é que toda a inteligência humana seja posta a servi­
ço da resolução do problema, fazendo o parsing da frase de cima
para baixo. De acordo com esse ponto de vista, as pessoas nem
tentariam construir parte dc uma árvore sc conseguissem adivi­
nhar de antemão que o sentido daquele galho não faria sentido no
contexto. Houve muitos debates entre psicolingüistas para saber
sc essa poderia ser uma maneira sensata de funcionamento do par­
ser humano. Supondo-se que a inteligência do ouvinte possa de
fato prever as intenções do falante corretamente, uma organização
de cima para baixo conduziría o parser para análises corretas de

10. Traduções possíveis: Adiamentos perseguem julgamento do assassinato do surdo-


mudo./Inglescs contam com soldado./Adiava que a Guerra do Vietnã terminaria por
pelo menos um bom tempo com esse tipo de histeria anticomunista reflcxa./Músicos
são grandes mímicos das fórmulas que eles vestem com ironia./O filme c a melancólica
visão dc Tom Wolfe sobre um passado que nunca foi contraposto à visão cômica do
mundo moderno que tende para a exaltação./Aquele Johnny Most não tinha dc sc des­
culpar com Chick Kcarn, Bill King, ou quem quer que fosse quando sc tratava de descre­
ver a ação [Johnny Most, quando estava no auge]./Lei da licença-patcrnidadc é um mar­
co não só para pais dc recém-nascidos. (N. daT.)

269
I O instinto da linguagem I

frases. Mas toda a inteligência humana é muita inteligência, e usá-


la toda ao mesmo tempo pode ser lento demais para um parsing
em tempo real quando o furacão de palavras passa zunindo. Jerry
Fodor, citando Hamlet, afirma que, se o conhecimento e o con­
texto orientassem o parsing de frases, “o primitivo verdor de nossas
resoluções se estiola na pálida sombra do pensamento”11. A seu ver,
o parser humano é um módulo encapsulado capaz apenas de pro­
curar informações na gramática mental e no dicionário mental,
mas não na enciclopédia mental.
A conclusão final sobre o tema tem de ser obtida em laborató­
rio. O parser humano parece usar pelo menos algum conhecimento
sobre o que tende a acontecer no mundo. Num experimento reali­
zado pelos psicólogos John Trueswell, MichaclTanenhaus e Susan
Garnscy, os sujeitos mordiam uma barra para manter a cabeça to-
talmcntc imóvel c liam frases na tela dc um computador enquanto
o movimento dc seus olhos era registrado. As frases continham um
efeito labirinto em potencial. Por exemplo, leia a frase

Г11o defendam examined by the lawyer turned out to be unreliable.12

Vocc pode ter perdido momentaneamente o rumo ao encontrar


a palavra by, porque até aquele ponto a frase poderia ter sido sobre
o réu examinando algo e não sendo examinado. Com efeito, os olhos
dos sujeitos sc deixavam ficar na palavra by e tendiam a retroceder
para reinterpretar o início da frase (cm comparação com frases de
controle não ambíguas). Mas, agora, leia a seguinte frase:

The evidence examined by the lawyer turned out to be unreliable.1'1

XI. Cf. tradução de К Carlos de Almeida, Cunha Medeiros e Oscar Mendes. William
Sbakespeare, Obra completa, vol. I, R io de Janeiro: Comp. José Aguilar Editora, 1969.
(N. daT .)
12. As frases serão mantidas no inglês original. O réu examinou/examinado pelo advogado
mostrou-se pouco confiável. (N. daT.)
13. As provas examinadas pelo advogado mostraram-se pouco confiáveis. (N. daT.)

270
I Cabeças falantes I

Se o efeito labirinto pode ser evitado pelo senso comum, essa


frase deveria ser bem mais fácil. Provas, diferentemente de réus,
não podem examinar algo, e portanto a árvore incorreta, em que
as provas estariam examinando algo, é potencialmente evitável. E
as pessoas a evitam: os olhos dos sujeitos avançavam pela frase com
poucas pausas ou retrocessos. È claro que o conhecimento aí usa­
do é bastante simples (réus examinam coisas; provas não), e a ár­
vore que ele evoca é bem fácil de encontrar, em comparação com
as dezenas que um computador poderia encontrar. Portanto, nin­
guém sabe quanto da inteligência de uma pessoa é aplicado para
compreender frases em tempo real; trata-se de um campo muito
ativo das pesquisas de laboratório.
As próprias palavras também fornecem algumas dicas. Lem­
bre-se que cada verbo faz exigências no tocante aos outros elemen­
tos do sintagma verbal (por exemplo, você não pode simplesmen­
te devorar mas tem de devorar algo; você não pode desjejuar algo, você
só pode desjejuar). A entrada mais comum de um verbo parece
pressionar o parser mental a encontrar os protagonistas t]ue ele exi­
ge. Trucswell e Tanenhaus observaram o globo ocular de seus vo­
luntários enquanto eles liam

The studcnt forgot the solution was in the back of the book.14

Ao chegar em was, os olhos se demoravam para em seguida


voltar atrás, porque as pessoas tinham se enganado e achado que a
frase se referia a um estudante que tinha esquecido a solução, pon­
to final. Supostamente, dentro da cabeça das pessoas a palavrafo r -
get estava dizendo para o parser “Encontre um objeto para mim,
já!" Outra frase era

14. O estudante esqueceu [que] a solução estava no final do livro. (N. daT.)

271
I O in stin to d a lin gu a gem I

The student hoped the solution was in the back of the book.15

Esta não apresentava problemas, porque a palavra hope dizia:


“Encontre uma sentença para mim!” e lá estava uma sentença pron­
ta para ser encontrada.
Palavras também ajudam sugerindo ao parser exatamente com
que outras palavras elas tendem a aparecer dentro de determinado
tipo de sintagma. Embora as probabilidades de transição palavra-
por-palavra não sejam suficientes para compreender uma frase (Ca­
pítulo 4), podem ajudar; ao ter de decidir entre duas árvores pos­
síveis admitidas por uma gramática, um parser equipado com boas
estatísticas pode optar pela árvore mais provável de ter sido dita.
O parser humano parece ser sensível a probabilidades de combina­
ção de palavras: muitos caminhos errados são particularmente se­
dutores porque contêm pares comuns de palavras como cotton clo-
tbing, ja t people e prime number16. Embora não se possa afirmar que o
cérebro sc beneficia das estatísticas sobre linguagem, os computa­
dores ccrtamente fazem uso delas. Nos laboratórios da АТ&Т e
da IBM, computadores vêm tabulando milhões de palavras de
textos extraídos ele fontes como o Wall Street Journal e reportagens
da Associated Press. Os engenheiros esperam que, equipando seus
parsers com as frcqiiências com que cada palavra é usada, e as fre-
qüências com que grupos dc palavras aparecem juntos, os parsers
poderão resolver ambiguidades de modo sensato.
Por fim, as pessoas decidem sobre as frases preferindo árvores
com certas formas, uma espécie de topiaria mental. Uma das dire­
tivas c o momentum: as pessoas gostam de acondicionar novas pala­
vras em sintagmas abertos em uso, em vez de fechar o sintagma e
adicionar palavras a um outro sintagma aberto um galbo acima.

15. O estudante esperava [que] a solução estivesse no final do livro. (N. d a T )


16. Ver nota em exemplos anteriores: roupas de algodão, pessoas gordas, números primos.
(N. daT.)

272
I Cabeças falantes I

Essa estratégia de “fechamento tardio” pode explicar por que nos


perdemos no labirinto da frase

Flip said that Squeaky will do the work yesterday.17

A frase é gramatical e simples, mas para perceber isso é preci­


so uma segunda olhada (ou até mesmo uma terceira). Somos de-
sencaminhados porque quando encontramos o advérbio yesterday,
tentamos acomodá-lo dentro do V P aberto do the work, em vez de
fechar esse V P e colocar o advérbio em cima, no mesmo sintagma
de Flip said. (Note-se, aliás, que nosso conhecimento do que é
plausível, como o fato de que o significado de will é incompatível
com o significado d e yesterday, não nos impediu de tomar o cami­
nho errado. Isso sugere que a capacidade de os conhecimentos ge­
rais guiarem a compreensão de frase é limitada.) Eis outro exem­
plo, embora a psicolingüista responsável por ele, Annie Senghas,
não o tenha concebido como exemplo; certo dia ela simplesmen­
te soltou: “The woman sitting next to Steven Pinkers pants are
like mine.”1819(Annie estava comentando que a mulher sentada per­
to de mim vestia calças iguais às dela.)
Uma segunda diretiva é a frugalidade: as pessoas tentam associar
um sintagma a uma árvore empregando o mínimo de galhos possí­
veis. Isso explica por que tomamos o caminho errado na frase

Sherlock Holmes didnt suspect the very beautiful young countess


was a fraudT

17. Flip disse que Squeaky fará o trabalho ontem. (N. daT.)
18. A leitura equivocada seria: A mulher sentada perto das calças de Steven Pinkcr são iguais
às minhas; quando a pessoa quis dizer: As calças da mulher sentada perto de Steven
Pinker são iguais às minhas. (N. da T.)
19. Sherlock Holmes não suspeitava [de/que] a linda condessa fosse uma impostora.
(N. daT.)

273
I O instinto da linguagem I

É preciso apenas um galho para associar a condessa ao VP, onde


Sherlock suspeitaria dela, mas dois para associá-la a uma S asso­
ciada por sua vez ao VP, onde ele suspeitaria que ela era uma im~
postora:

suspect the countess

O parser mental parece preferir o mínimo de associações, mes­


mo se num momento posterior da frase isso se mostre incorreto.

Como a maioria das frases são ambíguas, e como leis e contra­


tos têm de ser expressos em frases, os princípios de parsing podem
fazer muita diferença na vida das pessoas. Lawrence Solan discute
vários exemplos em livro recém-publicado. Examine essas passa­
gens, a primeira delas extraída de um contrato de seguro, a segun­
da de um estatuto, a terceira de instruções dadas a um júri:

Esta apólice de seguro aplica-se ao uso de um veículo de propriedade


alheia pelo segurado e por qualquer pessoa pela qual o segurado se
responsabilize desde que tal uso seja autorizado pelo proprietário.
Qualquer pessoa que vender uma substância controlada especificada
na subdivisão (d) deverá ser punida... (d) Qualquer material, com­
posto, mistura ou preparado que contenha qualquer quantidade das
seguintes substâncias potencialmente causadoras de danos associa­
dos a efeitos estimulantes sobre o sistema nervoso central: anfeta-
mina; metanfetamina...

274
I Cabeçasfalantes I

Os jurados não devem ser influenciados por mero sentimentalismo,


conjeturas, simpatia, paixão, preconceito, opinião pública ou senti­
mentos públicos.

No primeiro caso, uma mulher, muito perturbada porque o


namorado rompeu com ela num restaurante, saiu de lá com o que
acreditava ser o Cadillac do namorado, que ela bateu, com perda
total do veículo. Mas o Cadillac era de outra pessoa, e ela teria de
pagá-lo com seu seguro. O seguro cobriu o acidente? Uma corte
de apelação da Califórnia decidiu a seu favor, alegando que a apó­
lice era ambígua, porque o requisito a u to r iz a d o p e lo p r o p r ie tá r io , que
ela evidentemente não satisfazia, podia ser compreendido como
referente exclusivamente a q u a lq u er p esso a p e la q u a l o s eg u ra d o se r e sp o n ­
sa b iliz e, em oposição a p e lo seg u ra d o (isto é, ela) e p o r q u a lq u er p e ss o a p e la
q u a l o seg u ra d o s e resp on sa b iliz e,
No segundo caso, um traficante de drogas tentou passar a per­
na num cliente —para seu azar, um agente do departamento de
narcóticos à paisana —vendendo-lhe um pacote de pó inerte com
apenas um minúsculo vestígio de metanfetamina. A s u b stâ n cia era
“potencialmente causadora de dano”, mas a q u a n tid a d e da su b sta n cia
não. Ele infringiu a lei? A corte de apelação disse que sim.
No terceiro caso, o réu foi condenado por estuprar e assassinar
uma menina de quinze anos, e o júri lhe impôs a pena de morte. A
constituição dos Estados Unidos proíbe qualquer instrução que
negue ao acusado o direito de o júri considerar um “fator de com­
paixão” despertado pelas provas, que no caso dele consistia em pro­
blemas psicológicos e num contexto familiar violento. Será que as
instruções feriam a constituição e negavam ao acusado co m p a ix ã o
[.sym p a th y ], ou só lhe negavam a mera e t r iv ia l sim p a tia [ s y m p a t b y f A
Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu por 5 a 4 que só lhe
tinha sido negada a sim p a tia triv ia l; esta recusa é constitucional.
Solan afirma que os tribunais geralmente resolvem esses casos
apoiando-se em “cânones de construção” cultuados na literatura

275
I O instinto da linguagem I

do direito, que correspondem aos princípios de análise discutidos


acima. Por exemplo, a Regra do Ultimo Antecedente, que o tribu­
nal usou para resolver os primeiros dois casos, é simplesmente a
estratégia do “mínimo de associações” que acabamos de ver na
frase do Sherlock. Portanto, os princípios de análise mental são
literalmente uma questão de vida ou morte. Mas aqueles psicolin-
güistas preocupados com a possibilidade de que seu próximo ex­
perimento possa mandar alguém para a câmara de gás podem dor­
mir tranqüilos. Solan nota que os juizes não são muito bons lin­
guistas; para o bem ou para o mal, eles dão um jeito de contornar
a interpretação mais natural de uma frase se ela obstaculizar o re­
sultado que eles acreditam scr justo.

Falei até agora de árvores, mas uma frase não é apenas uma ár­
vore. Até começos dos anos de 1960, quando Chomsky propôs
transformações que convertem estruturas profundas em estrutu­
ras dc superfície, os psicólogos utilizavam técnicas de laboratório
para tentar descobrir algum tipo de impressão digital da transfor­
mação. Depois dc alguns falsos alarmes a pesquisa foi abandona­
da, c durante várias décadas os manuais de psicologia rejeitaram as
transformações por falta de “realidade psicológica”. Mas as técni­
cas dc laboratório sc sofisticaram, c a descoberta de algo parecido
com uma operação transformacional na mente e no cérebro das
pessoas é um dos achados recentes mais interessantes da psicolo­
gia da linguagem.
Tomemos a frase

O policial encontrou o menino que a multidão na festa acusou (ves-


típio) do crime.

Quem foi acusado de um crime? O menino, é claro, mesmo que


as palavras o menino não tenham aparecido depois de acusou. Segun­

276
I Cabeças falantes I

do Chomsky, isso se dá porque um sintagma referente ao menino


na verdade aparece depois de acusou na estrutura profunda; ele foi
deslocado para trás, para a posição de que, por uma transforma­
ção, deixando em seu lugar um silencioso “vestígio”. Para que uma
pessoa entenda a frase ela tem de desfazer o efeito da transforma­
ção e colocar mentalmente uma cópia do sintagma de volta na
posição do vestígio. Para isso, ela primeiro tem de perceber, en­
quanto estiver no começo da frase, que há um sintagma desloca­
do, o menino, que precisa de um lugar. Precisa manter o sintagma
na memória de curto prazo até descobrir uma brecha: uma posi­
ção em que um sintagma poderia estar mas não está. Nessa frase
há uma brecha depois de acusou, porque acusou exige um objeto,
mas não há nenhum. A pessoa pode supor que a brecha contém um
vestígio, recuperar o sintagma o menino da memória de curto prazo
e ligá-lo ao vestígio. Só então é possível imaginar o papel que o
menino desempenhou no evento —nesse caso, ser acusado.
O interessante é que cada um desses processos mentais pode
ser medido. Durante toda a seqüência de palavras entre o sintag­
ma deslocado e o vestígio —a região que sublinhei —é preciso
guardar o sintagma na memória. E um esforço que se torna visível
pela maneira como afeta tarefas mentais realizadas ao mesmo tem­
po. De fato, enquanto as pessoas estão lendo a seqüência interme­
diária, detectam sinais estranhos à tarefa (como um breve sinal lu­
minoso na tela) mais lentamente, e têm mais dificuldade de man­
ter uma lista de outras palavras na memória. Até mesmo seus
EEG (eletroencefalogramas, ou registro da atividade elétrica do
cérebro) mostram os efeitos do esforço.
Em seguida, no ponto em que o vestígio é descoberto e o ar­
quivo da memória pode ser esvaziado, o sintagma descarregado
surge na cena mental de uma maneira passível de ser detectada de
várias maneiras. Se um experimentador fizer piscar uma palavra do
sintagma deslocado (por exemplo, menino') naquele ponto, as pes­
soas a reconhecem mais rápido. Também reconhecem mais rapi­

277
I O instinto da linguagem I

damente palavras relacionadas com o sintagma deslocado —por


exemplo, menina. O efeito é suficientemente intenso para ser visível
em ondas cerebrais: se a interpretação do vestígio resultar numa
interpretação implausível, como em

Que alimento a criança leu (vestígio) em sala de aula?

o EEG mostra uma reação de hesitação no ponto do vestígio.


Conectar sintagmas com vestígios é uma operação computacio­
nal cabeluda. Ao mesmo tempo que guarda o sintagma na memó­
ria, o parser tem de estar constantemente checando o vestígio, um
nadinha invisível c inaudível. É impossível prever em que ponto da
frase o vestígio irá aparecer, e às vezes ele pode estar bem longe:

A menina se perguntava quem John achava que Mary dizia que o bebe
tinha visto (vestígio).

E até ser achado, a função semântica do sintagma é um curin-


ga, cspccialmente agora que a distinção who/whom está indo pelo
mesmo caminho do fonógrafò.

Pergunto-me quem [who] (vestígio) apresentou John a Marsha. [quem


= o apresentador]
Pergunto-me quem [who] Bruce apresentou (vestígio) a Marsha.
[quem = a pessoa apresentada]
Pergunto-me a quem [who] Bruce apresentou John (vestígio), [quem
= o alvo da apresentação]

È um problema tão difícil que bons escritores, e até mesmo a


própria gramática da língua, propõem passos para torná-lo mais
fácil. Um dos princípios da estilística é reduzir ao mínimo a quan­
tidade de sentenças interpostas nas quais um sintagma deslocado
tem de ser mantido na memória (as regiões sublinhadas). A cons­
trução da voz passiva em inglês é boa nisso (a despeito das reco­

278
I Cabeças falantes I

mendações dos “verificadores de estilo” computadorizados de não


abusar dela). No seguinte par de frases, a versão passiva é mais fácil,
porque a região que sobrecarrega a memória é mais curta:

Reverse the clamp that the stainless Steel hex-head bolt extending
upward from the seatpost voke holds ( y e s tm o ) in place.
Reverse the clamp that ( v e s tid o ) is held in place by the stainless Steel
hex-head bolt extending upward from the seatpost yoke .20

Em todas as línguas as gramáticas restringem a parcela de ár­


vore que um sintagma pode deslocar. Por exemplo, é possível di­
zer em inglês

Thats the guy that vou heard the rumor about (y e s t m o V 1

Mas a seguinte frase é um tanto estranha:

Thats the guy that vou heard the rumor that Mary likes ( y e s t m o ) .

As línguas têm restrições de localidade que transformam al­


guns sintagmas, como o sintagma nominal complexo the rumor that
Mary likes bim11, em “ilhas” das quais nenhuma palavra consegue es­
capar. Ê uma bênção para os ouvintes, porque o parser, sabendo
que o falante não poderia deslocar algo para fora desse sintagma,
não precisa monitorá-lo à procura de um vestígio.
Mas o que é uma bênção para os ouvintes tem um preço para
os falantes; nessas frases, eles têm de fazer uso de um deselegan-

2 0 . In v e rta a b ra ç a d e ira p resa p e lo p a ra fu s o sextavado d e aço q u e se e n c o n tra n a p a r te su p e ­


rio r d a c o lu n a d o selim . (N . d a T .)
2 1 . U m eq u iv a le n te seria: E s te é o ra p a z de q u e m v o cê a n d o u o u v in d o fa la r a r e s p e ito . E
n a frase se g u in te : E s te é o ra p a z d e q u e m v ocê a n d o u o u v in d o fa la r q u e M a r ia g o sta .
( N . d a T .)
2 2 . O b o a to d e q u e M a ria g o s ta dele. (N . d a T .)

279
I O instinto da linguagem I

te pronome a mais, como em Thats the guy that you heard the rumor
that Mary likes him.

Fazer o parsing, apesar de importante, é apenas o primeiro pas­


so na compreensão de uma frase. Imagine-se tentando fazer o par­
sing do seguinte diálogo extraído da vida real:

P: A coisa do tribunal do júri tem sua hã, hã, hã —vista disto eles
podem, bã. Suponha que tenhamos um processo no tribunal do
júri. Isso, isso, o que isso faria com a coisa do Ervin? Seguiría em
frente de qualquer forma?
D: Provavelmente.
P: Mas, diante disso, no entanto, temos —deixa eu simplesmente,
hã, imaginar que, que —Você faz isso num tribunal do júri, pode­
riamos então ter uma causa muito melhor em termos de dizer:
“Vejam, este é um tribunal do júri, no qual, hã, o promotor pú­
blico —” E que tal um promotor público especial? Poderiamos
usar Pctcrsen, ou usar outro. Provavelmente ele está sob suspeita.
Vocc convocaria outro promotor?
D: Gostaria dc ter Pctcrsen do nosso lado, aconselhando-nos [risos]
francamente.
P: Francamente. Bem, Petersen é honesto. Tem alguém que questio­
naria ele, tem?
D: Não, não, mas ele vai ser bombardeado quando, hã, essas audiên­
cias de Watergatc começarem.
P: È, mas ele pode ir lá e dizer que lhe, que o aconselharam a ir mais
a fundo no Tribunal do Júri e entrar nisso, naquilo e naquilo ou­
tro. Chame todos da Casa Branca. Quero que eles venham, quero
que o2', hã, hã, vão ao Tribunal do Júri.23

2 3 . N o o rig in al: I w a n t th e , u h , u h , l o g o (v e r c o m e n tá rio alguns p a rá g ra fo s a seg u ir). ( N . d a T .)

280
I Cabeçasfalantes I

D: Isso deve resultar —Isso deve acontecer mesmo se não os chamar­


mos quando, hã, quando esses, hã —
P: Vescoe?
D: Não. Bem, é uma possibilidade. Mas também quando essas pes­
soas voltarem perante o Tribunal do Júri aqui, eles vão arrastar
todos esses réus criminais de volta ao Tribunal do Júri e dar-lhes
imunidade.
P: E dar-lhes imunidade: Por quê? Quem? Você vai —Com base em
quê?
D: Hã, a Promotoria Geral vai.
P: Para fazer o quê?
D: Para falar sobre tudo mais que quiserem falar.
P: Ah. O que eles ganham com isso?
D: Nada.
P: Que eles vão pro inferno.
D: Eles, eles vão resistir, hã, do jeito que as coisas estão agora. Ex­
ceto no que se refere a Hunt. É por isso, é esse o poder da amea­
ça dele.
H: Essa é a oportunidade do Hunt.
P: E por isso, é por isso,
H: Deus, sc ele colocar isso —
P: E por isso que sua, para sua coisa imediata você não tem outra es­
colha com Hunt senão os cento c vinte ou seja lá o que for, certo?
D: Certo.
P: Você concorda que é uma questão de ganhar tempo, é melhor
que essa merda seja feita logo, mas rápido?
D: Acho que ele deveria receber algum sinal, de qualquer forma,
para, para —
P: [palavrão apagado], consiga24, de um, de um jeito que, hã —Quem
vai falar com ele? Colson? Supõe-se que é ele que o conhece.
D: Bem, mas Colson não tem dinheiro. O negócio é esse. Esse é o
nosso, um dos verdadeiros problemas. Eles, hã, não conseguiram

2 4 . N o o riginal: g e t it, q u e in fo rm a lm c n tc significa sacar, e n te n d e r (v er c o m e n tá rio alg u n s


p arág ra fo s a seg u ir). ( N . d a T .)

281
I O instinto da linguagem I

arrecadar dinheiro. Um milhão de dólares em dinheiro, ou, ou


algo parecido, é um problema muito difícil como já discutimos
antes. Aparentemente, Mitchell falou com Pappas, e eu liguei
para ele ontem —John me pediu para ligar para ele ontem à noi­
te depois da nossa conversa e depois de você ter encontrado com
John para ver em que pé estavam as coisas. E eu, eu disse: “Você
conversou com, com Pappas?” Ele estava em casa, e Martha pe­
gou no telefone portanto foi tudo em código. “Você falou com o
grego?” E ele disse, hã: “Falei.” E eu disse: “O grego vai dar pre­
sentes?” Ele disse: “Bem, rc ligo amanhã para falar disso.”
P: Bem, veja, hã, o que é que vocc precisa para isso, hã, quando, hã,
hã? Agora veja [ininteligível] não estou, hã, familiarizado com a
situação do dinheiro.

Esse diálogo ocorreu em 17 dc março de 1973, entre o presi­


dente Richard Nixon (P), seu assessor John W. Dean 3? (D), e seu
secretário H. R. Haldcman (H ). Howard Hunt, que trabalhou na
campanha dc reeleição de Nixon em junho de 1972, fora o res­
ponsável pela invasão da sede do Partido Democrático no edifício
Watcrgatc, onde seus homens grampearam telefones do dirigente
do partido c dc outros funcionários. Havia várias investigações cm
andamento para determinar sc a operação lora decidida pela Casa
Branca, por Haldcman ou pelo Procurador Geral John Mitchell.
Os homens discutem sc vão pagar U$ 120.000 para subornar
Hunt antes dc ele testemunhar perante um tribunal do júri. Dis­
pomos da transcrição desse diálogo porque em 1970, Nixon, ale­
gando estar agindo pelo bem de futuros historiadores, grampeou
seu próprio escritório e começou a gravar em segredo todas as
suas conversas. Em fevereiro de 1974 a Comissão de Inquérito
do Senado exigiu a entrega das fitas para poder decidir se Nixon
devia sofrer impeachment. Esse excerto faz parte da transcrição
feita pela Comissão. Foi principalmente com base nesse trecho
que os deputados recomendaram o impeachment. Nixon renun­
ciou em agosto de 1974.

282
I Cabeçasfalantes I

As fitas de Watergate são as transcrições mais famosas e exten­


sas de fala real já publicadas. Ao serem publicadas, os americanos
ficaram chocados, nem todos pelos mesmos motivos. Algumas pes­
soas —um pequeníssimo número delas —ficaram surpresas com o
fato de Nixon ter participado de uma conspiração destinada a
obstruir a ação da justiça. Outros poucos se surpreenderam com
o fato de o líder do mundo livre praguejar como um estivador.
Mas o que surpreendeu a todos foi a aparência que tem uma con­
versa comum quando transcrita literalmente. Conversas fora de
contexto são praticamente incompreensíveis.
Parte do problema decorre das circunstâncias da transcrição:
sem a entonação e o timing que delineiam sintagmas, a transcrição
de qualquer coisa que não seja uma fita de alta fidelidade deixa de
ser confiável. Com efeito, na transcrição independente dessas gra­
vações de baixa qualidade que a Casa Branca realizou, muitas pas­
sagens obscuras tornam-se mais compreensíveis. Por exemplo, I
want thc, hã, hã, togo é transcrito como I want them, hã, hã, togo2526.
Mesmo perfeitamente transcrita, uma conversa é difícil de in­
terpretar. Fala-se geralmente de maneira fragmentada, com inter­
rupções no meio das frases para reformular o pensamento ou mu­
dar de assunto. Muitas vezes não fica claro de quem ou do que se
está falando, porque as pessoas usam pronomes (lhe, lhes, esse, que,
nós, eles, isso, um), palavras genéricas (Jazer, poder ser, a coisa, a situação,
aquele negócio, essas pessoas, seja lá o quefo r ) e elipses (A Promotoria Geral
dos EUA vai e E por isso que). Intenções são expressas indiretamente.
Nesse episódio, saber se um homem terminaria o ano como pre­
sidente dos Estados Unidos ou como criminoso condenado de­
pendia literalmente do significado de get iC e de saber se O que é
que você precisa? era um pedido de informação ou uma oferta implí­
cita de dar algo.

25. Quero que eles, uh, uh, vão... (N. daT.)


26. Ver nota 23. (N. daT.)

283
I O instinto da linguagem I

Nem todos ficaram chocados com a ininteligibilidade da fala


transcrita. Os jornalistas são craques nisso, e parte da rotina deles
consiste em fazer um intenso trabalho de edição de citações e en­
trevistas antes de serem publicadas. Por muitos anos o tempera­
mental atirador do time de beisebol Boston Red Sox, Roger Cle-
mens, queixou-se amargamente de que a imprensa não era fiel ao
que ele dizia. O Boston Herald, provavelmente ciente de estar sendo
cruel, respondeu com uma reportagem em que seus comentários
ao final do jogo eram reproduzidos palavra por palavra.
A edição por parte dos jornalistas de conversas transformou-
se numa questão legal em 1983, quando a escritora Janet Mal-
colm publicou, no New Yorker, uma série de artigos pouco elogio­
sos sobre o psicanalista Jcffrcy Masson. Este tinha escrito um li­
vro acusando Frcud de desonestidade e covardia por ter deixado
dc lado sua observação de que a neurose é causada por abuso se­
xual na infância. Por esse motivo, Masson foi despedido do cargo
dc curador dos arquivos Freud em Londres. Segundo Malcolm, nas
entrevistas que fez com ele, Masson descrevia a si mesmo como
um “um gigolô intelectual” e “depois de Freud, o maior analista
dc todos os tempos”. Teria também dito que, depois da morte dc
Anna Freud, planejava transformar a casa dela num “local de sexo,
mulheres c diversão”. Masson processou Malcolm e o New Yorker
cm dez milhões dc dólares, afirmando que nunca havia dito essas
coisas c que outras citações tinham sido alteradas para fazê-lo pa­
recer ridículo. Embora Malcolm não tivesse como provar as cita­
ções por meio dc suas fitas e anotações manuais, negou tê-las ma­
nipulado, c seus advogados argumentaram que, mesmo se ela tives­
se feito isso, a reportagem era uma “interpretação racional” do que
Masson tinha dito. Citações revisadas, argumentaram eles, são
uma prática jornalística comum e não caracterizam a publicação
de algo com conhecimento de que seja falso ou desconsiderando
de maneira imprudente o fato de que seja falso, o que definiría
uma difamação.

284
I Cabeças falantes I

Vários tribunais rejeitaram o caso com base no Artigo Pri­


meiro, mas em junho de 1991 a Suprema Corte reabriu a questão
por unanimidade. Num parecer muito esperado, a maioria definiu
um meio termo para o tratamento jornalístico de citações. (A exi­
gência de publicá-las literalmente nem mesmo foi considerada.)
O juiz Kennedy, escrevendo em nome da maioria, disse que a “al­
teração deliberada de palavras emitidas por um querelante não
equivale a ciência de falsidade”, e que “Se um autor altera as pala­
vras de um falante, mas não efetua mudanças materiais de signifi­
cado, não há dano à reputação do falante. Rejeitamos qualquer
teste de falsidade especial para citações, incluindo aquele que im­
pusesse restrições em termos de correção gramatical ou sintática”.
Se a Suprema Corte tivesse me perguntado, eu teria me aliado aos
juizes W hite e Scalia na sua reivindicação de que algumas dessas
restrições fossem aplicadas. Assim como muitos lmgüistas, duvido
que seja possível alterar as palavras de um falante —inclusive a gra­
mática e a sintaxe —sem modificar materialmente o significado.
Esses incidentes mostram que a fala real é algo bem diferente
de O cão adora sorvete, e que para compreender uma frase é preciso
bem mais do que seu mero parsing. A informação semântica obti­
da dc uma árvore é apenas uma das premissas de que a compreen­
são (az uso dentro de uma complexa cadeia de inferências sobre as
intenções do falante. Por que isso acontece? Por que é que até mes­
mo falantes honestos raramente expressam a verdade, só a verda­
de, e nada mais que a verdade?
A primeira razão é o tempo de emissão. As conversas empaca­
riam se tivéssemos de nos referir todas as vezes à Comissão Es­
pecial de Inquérito do Senado dos Estados Unidos sobre a Inva­
são de Watergate e outras Tentativas de Sabotagem Relacionadas
pronunciando esta descrição completa. Uma vez mencionada, a
coisa do Ervin, ou simplesmente ela, é suficiente. Por essa mesma ra­
zão, é perda de tempo enunciar minuciosamente o seguinte enca-
deamento lógico:

285
I O instinto da linguagem I

Hunt sabe de quem veio a ordem para organizar a invasão de


Watergate.
A pessoa que lhe deu a ordem pode ser membro de nossa adminis­
tração.
Se a pessoa pertence à nossa administração e sua identidade vier a
público, isso afetará toda a administração.
Hunt tem um motivo para revelar a identidade da pessoa que lhe
deu a ordem porque isso poderia amenizar sua frase de prisão.
Algumas pessoas aceitarão correr riscos se receberem dinheiro sufi­
ciente.
Portanto, Hunt poderia ocultar a identidade de seu superior se rece­
besse dinheiro suficiente.
Há motivos para crer que aproximadamente U$ 120.000 poderíam
ser um incentivo suficientemente grande para que Hunt ocultas­
se a identidade da pessoa que lhe deu a ordem.
Hunt poderia aceitar esse dinheiro agora, mas ele teria interesse em
continuar nos chantageando no futuro.
No entanto, talvez seja suficiente para nós mantê-lo calado a curto
prazo porque a imprensa e o público podem vir a perder interes­
se no escândalo de Watergate nos próximos meses, e, se ele reve­
lar a identidade mais tarde, as conseqüências para nossa admi­
nistração podem não ser tão negativas.
Portanto a linha de ação que nos interessa c pagar para Hunt a
quantidade de dinheiro que seja um incentivo grande o suficien­
te para mantê-lo calado até o momento em que o interesse pú­
blico por Watergate se dissipe.

É mais eficiente dizer: “Para sua coisa imediata você não tem
outra escolha com Hunt senão os cento e vinte ou seja lá o que
for.” No entanto, a eficiência depende de os interlocutores com­
partilharem uma série de conhecimentos sobre os eventos e sobre
a psicologia do comportamento humano. Eles têm de usar esses
conhecimentos para poder fazer a remissão de nomes, pronomes
e descrições a um único conjunto de personagens, e preencher os
passos lógicos que conectam cada frase com a próxima. Se os pres­

286
I Cabeças falantes I

supostos não forem compartilhados — por exemplo, se um de


nossos interlocutores vier de uma cultura muito diferente, ou for
esquizofrênico, ou for uma máquina —então nem a melhor análi­
se do mundo conseguirá transmitir o sentido pleno de uma frase.
Alguns cientistas da computação tentaram equipar programas
com pequenos “scripts” de situações estereotipadas, como restau­
rantes e festas de aniversário, para que seus programas conseguis­
sem preencher as lacunas de textos e torná-los compreensíveis.
Outra equipe está tentando ensinar a um computador as bases do
senso comum humano, que, na avaliação deles, comporta dez mi­
lhões de fatos. Para ter uma idéia da dimensão da tarefa, conside­
re quanto conhecimento sobre comportamento humano é preciso
aplicar para compreender o que de significa num diálogo simples
como este:

Mulher: Vou te deixar.


Homem: Quem é ele?

Portanto, a compreensão exige integrar fragmentos retirados


dc uma frase num vasto banco de dados mental. Para que isso
funcione, os falantes não podem simplesmente lançar um fato de­
pois do outro na cabeça do ouvinte. O conhecimento não é uma
lista de fatos dispostos numa coluna trivial, mas está organizado
numa complexa rede. Quando uma série de fatos se sucedem,
como num diálogo ou texto, a língua tem de estar estruturada de
forma tal que o ouvinte possa inserir cada fato num contexto
preexistente. Portanto, as informações sobre o velho, o dado, o
compreendido, o tópico têm de vir em primeiro lugar na frase,
geralmente em posição de sujeito, e as informações sobre o novo,
o foco, o comentário têm de vir no fim. Adiantar o lugar do tó­
pico na frase é outra função da maldita construção passiva. Em
seu livro sobre estilo, Williams nota que o conselho habitual “Evi­
te passivas” deveria ser desdenhado quando a função do tópico

287
I O instinto da linguagem

em questão está ligada ao objeto do verbo na estrutura profunda.


Por exemplo, leia as duas frases seguintes:

Algumas questões surpreendentes sobre a natureza do universo fo­


ram levantadas por cientistas que estudam a natureza dos buracos
negros no espaço. O colapso de uma estrela morta num ponto
talvez não maior que uma bola de gude forma um buraco negro.

A segunda frase cria a impressão de falta de continuidade.


Seria bem melhor colocá-la na voz passiva:

Algumas questões surpreendentes sobre a natureza do universo fo­


ram levantadas por cientistas que estudam a natureza dos bura­
cos negros no espaço. Um buraco negro c formado pelo colapso
de uma estrela morta num ponto talvez não maior que uma bola
de gude.

Agora, a segunda frase se encaixa suavemente, porque seu su­


jeito, um buraco negro, é o tópico, e seu predicado acrescenta novas
informações ao tópico, Numa conversa ou ensaio mais longos,
um bom escritor ou falante fará do foco de uma frase o tópico da
próxima, ligando as proposições num cncadcamento ordenado.
O estudo de como as (rases sc entrelaçam num discurso c são
interpretadas em contexto (às vezes denominado de “pragmáti­
ca”) fez uma interessante descoberta, anunciada primeiramente
pelo filósofo Paul Grice e recentemcntc refinada pelo antropólo­
go Dan Sperber e pela lingüista Deirdre Wilson. O ato de comu­
nicar apóia-se numa expectativa mútua de cooperação entre falan­
te e ouvinte. O falante, depois de ter convocado o precioso ouvido
do ouvinte, garante implicitamente que a informação a ser trans­
mitida é relevante: que não é algo já sabido, e que está suficien­
temente relacionada com o que o ouvinte está pensando para que
ele ou ela possa inferir novas conclusões com pouco esforço men­
tal adicional. Portanto, os ouvintes esperam tacitamente que os

288
I Cabeçasfalantes I

falantes sejam informativos, confiáveis, relevantes, claros, não am­


bíguos, breves e organizados. Essas expectativas ajudam a penei­
rar e eliminar as leituras inapropriadas de uma frase ambígua,
reorganizar expressões desconexas, desculpar lapsos de linguagem,
adivinhar os referentes de pronomes e descrições e preencher as
lacunas de um argumento. (Quando a atitude do receptor de uma
mensagem não é cooperativa mas opositora, todas essas informa­
ções faltantes têm de ser expressas de modo explícito, daí a lin­
guagem tortuosa dos contratos legais com suas “partes da primei­
ra parte” e “todos os direitos relativos a esse Copyright e a todas
as reedições ficam por isso sujeitos aos termos deste contrato”.)
A descoberta interessante é que as máximas da conversação re­
levante são geralmente observadas nas brechas. Os falantes as des­
denham deliberadamente no conteúdo literal de suas falas para
que os ouvintes possam intercalar suposições que devolveríam re­
levância à conversa. Essas suposições servem então de verdadeira
mensagem. Um exemplo familiar é o seguinte tipo de carta de re­
comendação:

Caro Professor Pinkcr:


Tenho o prazer de recomendar-lhe Irving Smith. O Sr. Smith é
um estudante exemplar. Veste-se bem e é extremamente pontual.
Conheço o Sr. Smith há três anos, e ele sempre se mostrou muito
colaborador. A esposa dele é encantadora.
Atenciosamente,

John Jones
Professor

Embora a carta nada contenha além de declarações positivas,


factuais, ela garante que o Sr. Smith não obterá o cargo que alme­
ja. Na carta não há nenhuma informação relevante no que se refe­
re às necessidades do leitor, e por isso viola a máxima que exige
que os falantes sejam informativos. O leitor trabalha com a pres­

289
I O instinto da linguagem I

suposição tácita de que o ato comunicativo como um todo é rele­


vante, mesmo que o conteúdo da carta não o seja, e portanto tem
de inferir a premissa que, junto com a carta, torna o ato relevante:
que o escritor não tem nenhuma informação positiva relevante a
transmitir. Por que o escritor faz todo esse malabarismo, em vez de
dizer simplesmente “Fique longe de Smith; ele é uma porta”? Por
causa da outra premissa que o leitor pode intercalar: o escritor é o
tipo de pessoa que não ofende à toa aqueles que nele confiam.
E natural que as pessoas explorem as expectativas necessárias
para uma conversa bem-sucedida como maneira de inserir suas
verdadeiras intenções em camadas ocultas de significado. A co­
municação humana não é apenas uma transferência de informa­
ção como duas máquinas dc fax ligadas por um cabo; é uma série
dc mostras alternadas dc comportamento por parte de animais
sociais sensíveis, ardilosos, cheios dc segundas intenções. Quando
colocamos palavras no ouvido das pessoas estamos certamente
impingindo e revelando-lhes nossas próprias intenções, honrosas
ou não, como se as estivéssemos tocando. Nada melhor para de-
monstrá-lo que os circunlóquios, tão distantes da expressão clara,
encontrados cm todas as sociedades e chamados de regras de boa
educação. Tomada ao pé da letra, a afirmação “Eu estava pensan­
do se vocc seria capaz de me levar de carro ao aeroporto” c uma
sequência prolixa dc incongruências. Por que me notificar do con­
teúdo de suas ruminações? Por que você está avaliando minha
competência para levá-lo de carro até o aeroporto, c baseado em
que circunstâncias hipotéticas? Ё claro que a verdadeira intenção
— “Leve-me dc carro para o aeroporto” —é fácil dc inferir, mas,
pelo fato de nunca ter sido dita, tenho uma desculpa. Nenhum de
nós tem de conviver com as conseqüências ameaçadoras de você
emitir um comando que pressupõe que você poderia me obrigar a
obedecer. Violações intencionais das normas implícitas da conver­
sação também dão motivo a muitas formas menos triviais de lin­
guagem não literal, como ironia, humor, metáfora, sarcasmo, ofen­
sas, réplicas, retórica, persuasão e poesia.

290
I Cabeças falantes I

Metáfora e humor são maneiras úteis de resumir as duas per­


formances mentais que participam da compreensão de uma frase.
A maioria de nossas expressões cotidianas sobre a linguagem
usam como metáfora o encanamento, que dá conta do processo
de parsing. Nessa metáfora, as idéias são objetos, as frases, recipien­
tes, e a comunicação, um transporte. “Juntamos” nossas idéias para
“colocá-las” “em” palavras, e, se nossa verbiagem não for “vazia”
ou “oca”, poderemos “transmitir” essas idéias ou “fazê-las” “pas­
sar” “para” um ouvinte, que pode “desembaralhar” nossas pala­
vras para “extrair” seu “conteúdo”. Mas, como vimos, a metáfora
é enganosa. O processo completo da compreensão está mais bem
caracterizado pela piada sobre os dois psicanalistas que se encon­
tram na rua. Um deles diz: “Bom dia”; o outro pensa: “O que
será que ele quis dizer com isso?”

291
A Torre de B abel

8 Toda a terra tinha uma só


língua e as mesmas palavras.
Ora, aconteceu que, emigrando do Oriente, encontraram uma planí­
cie na região de Senaar e ali se estabeleceram. E disseram uns aos ou­
tros: “Vamos! Façamos tijolos e cozamo-los ao logo.” E serviram-se
dos tijolos como de pedra, e o betume lhes serviu de cimento. E dis­
seram ainda: “Mãos à obra! Construamos uma cidade e uma torre
cujo cimo chegue até o céu, e nos faremos um monumento, para
não nos dispersarmos sobre a face de toda a Terra.” Desceu o Se­
nhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens haviam
construído; c disse: “Eis! São todos um só povo c uma só língua, e
esta é a primeira empresa que realizam; doravante não lhes será difí­
cil fazer tudo o que lhes vier à mente. Vamos! Desçamos e confun­
damos ali sua língua; de sorte que não se entendam um ao outro.” E
o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e cessaram a edificação
da cidade. Por isso foi-lhe dado o nome de Babel, porque ali o
Senhor confundiu a língua de toda a Terra, e dali os dispersou por
toda a Terra. (Gênesis 11:1-9)

No ano do Senhor de 1957, o lingüista M artin Joos recapitu-


lou as três décadas anteriores de pesquisas em lingüística e con­
cluiu que Deus na verdade fora ainda mais longe na confusão de
línguas dos descendentes de Noé. Embora estivesse escrito que o

293
I O instinto da linguagem I

Deus do Gênesis se contentava apenas com a ininteligibilidade re­


cíproca, Joos declarou que as “línguas podiam diferir entre si de
modo ilimitado e imprevisível”. Naquele mesmo ano, iniciou-se a
revolução chomskiana com a publicação de Estruturas sintáticas, e as
três décadas seguintes nos levaram de volta à literalidade do rela­
to bíblico. Segundo Chomsky, um cientista marciano que visitas­
se a Terra certamente concluiría que, afora seus vocabulários mu­
tuamente ininteligíveis, os terráqueos falam uma única língua.
Até mesmo para os padrões dos debates teológicos, essas inter­
pretações são radicalmente diferentes. De onde provêm? As 4.000
a 6.000 línguas do planeta realmente parecem muito diferentes
do inglês e umas das outras. Eis as diferenças mais evidentes entre
os outros idiomas e aquilo com que estamos acostumados em in­
glês e em português1:

1. O inglês, como o português, é uma língua “isolante”, que constrói


frases por meio do rcarranjo de unidades invariáveis de palavras,
como Dog bites man e Man bítes dog. Outras línguas exprimem quem
fez o que para quem modificando substantivos com afixos de
caso, ou modificando o verbo com afixos que concordam com
seus protagonistas cm número, gênero e pessoa. Um exemplo é o
latim, uma língua “flexionai” em que cada afixo contem várias in­
formações; outra é o kivunjo, uma língua “aglutinante” cm que
cada afixo transmite uma informação e muitos afixos são acumu­
lados, como no verbo dc oito partes mencionado no Capítulo 5.
2. O inglês, como o português, é uma língua com uma “ordem fixa
de palavras” em que cada sintagma tem uma posição fixa. Em lín­
guas com “ordem livre de palavras”, a ordem dos sintagmas pode
variar. Num caso extremo, como a língua aborígine australiana
warlpiri, palavras de diferentes sintagmas podem ser misturadas:
Esse homem lanceou um canguru pode ser expresso como Homem esse
canguru lanceou, Homem canguru lanceou esse, e qualquer uma das ou­
tras quatro ordens, todas plenamente sinônimas.

I. Os dados relativos ao português não constam do texto original. (N. da R. T.)

294
IA Torre de Babel I

3. O inglês, como o português, é uma língua “acusativa”, em que o su­


jeito de um verbo intransitivo, como she em She ran, é tratado exa­
tamente da mesma maneira que o sujeito de um verbo transitivo,
como she em She kissed Larry, e de maneira diferente do objeto de
um verbo transitivo, como her em Larry kissed her. Línguas “ergati-
vas”, como o basco e muitas línguas australianas, têm um esque­
ma diferente para separar essas três funções. O sujeito de um ver­
bo intransitivo e o objeto de um verbo transitivo são idênticos, e
é o sujeito do verbo transitivo que se exprime de modo diferente.
É como se tivéssemos de dizer em inglês Ran her para significar
‘‘She ran”.
4. O inglês é uma língua com “proeminência de sujeito” em que to­
das as frases têm de ter um sujeito (mesmo não havendo nada a
que o sujeito se refira, como em It is raining ou There is a unicorn in
thegarden). Em línguas com “proeminência de tópico”, como o ja­
ponês, há uma posição especial nas frases preenchida pelo tópico
em questão da conversa, como cm Esse lugar; plantar trigo é bom ou
Califórnia, clima é bom.2
5. O inglês, como o português, é uma língua “SVO”, com a ordem
sujeito-verbo-objeto (Dog bites man). O japonês é sujeito-objeto-
verbo (SOV: Cão homem morde); o irlandês moderno (gaélico) é ver-
bo-sujeito-objeto (VSO: Morde cão homem).
6. Em inglês, como cm português, um substantivo pode nomear uma
coisa em qualquer construção: a hanana>two bananas) any banana, ali
lhe bananas. Em línguas “classificadoras”, substantivos pertencem
a classes de gênero como humano, animal, inanimado, unidimen-
sional, bidimensional, agrupamento, ferramenta, alimento etc.
Em muitas construções, o nome da classe, e não o próprio subs­
tantivo, tem de ser usado —por exemplo, três martelos seria expres­
so como trêsferramentas, ou seja, martelo.

2. Eunice Pontes, em seu livro O tópico no português do Brasil ( 1987, Editora Pontes), mostrou que
o português brasileiro pode ser considerado como tendo proeminência de tópico e sujeito,
sendo que as duas construções existem. A seguir estão alguns exemplos de construções com
tópicos usados por Pontes: Essa bolsa as coisas somem, aqui dentro; Meus óculos, você apa­
nhou a capa?; O seu regime entra muito laticínio?; O meu carro furou o pneu!

295
I O instinto da linguagem I

Nem é preciso dizer que uma rápida olhada na gramática de


qualquer idioma nos revelará dezenas ou centenas de idiossin­
crasias.
Por outro lado, também é possível escutar universais gritantes
em meio à algaravia. Em 1963, o lingiiista Joseph Greenberg exa­
minou uma amostra de 30 idiomas espalhados pelos cinco conti­
nentes, entre os quais servo, italiano, basco, finlandês, suaíle, nubia-
no, masai, berbere, turco, hebraico, hindi, japonês, birmanês, ma-
lioy, maori, maia e quíchua (uma língua originária da língua dos
incas). Greenberg não pertencia à escola chomskiana; só queria
ver sc encontrava algumas propriedades gramaticais interessantes
cm todas essas línguas. Em sua primeira investigação, na qual en­
focou a ordem das palavras e dos morfemas, encontrou nada me­
nos que quarenta c cinco universais.
Desde então, muitas outras pesquisas foram realizadas, envol­
vendo inúmeras línguas dc todas as partes do mundo, e litcralmcn-
tc centenas dc padrões universais foram documentados. Alguns
têm validade absoluta. Por exemplo, nenhuma língua forma inter­
rogativas invertendo a ordem das palavras da frase, como Construiu
João que casa a esta é? Alguns são estatísticos: em quase todas as lín­
guas, gcralmcntc os sujeitos vêm antes dos objetos, e os verbos c
seus objetos tendem a ser adjacentes. Portanto, a maioria das lín­
guas têm ordens SVO ou SOV; poucas têm VSO jVO S c OVS são
raras (menos de 1%); c OSV provavelmente não existe (existem
algumas poucas candidatas, mas nem todos os lingüistas concor­
dam que elas são OSV). A maior parte dos universais se refere a
implicações: se uma língua tem X, também terá Y. Deparamos com
um exemplo típico de um universal implicativo no Capítulo 4: se
a ordem básica de uma língua for SOV geralmente terá palavras
interrogativas no fim da frase, e posposições; se for SVO, terá pa­
lavras interrogativas no começo, e preposições. Implicações univer­
sais podem ser encontradas em todos os aspectos da língua, da fo­
nologia (por exemplo, se uma língua tem vogais nasais, terá vogais

296
IA Torre de Babel I

não-nasais) ao significado das palavras (se uma língua tem uma pa­
lavra para “roxo”, terá uma palavra para “vermelho”; se uma língua
tem uma palavra para “perna”, terá uma palavra para “braço”).
Se listas de universais mostram que as línguas não variam livre­
mente, pode-se concluir que as línguas são limitadas pela estrutu­
ra do cérebro? Não diretamente. Primeiro é preciso excluir duas
explicações alternativas.
Uma possibilidade é que as línguas tenham uma única origem,
e que todas as línguas descendam da protolíngua conservando al­
gumas de suas características. Essas características seriam semelhan­
tes em todas as línguas pela mesma razão que a ordem alfabética é
semelhante nos alfabetos hebraico, grego, romano e cirílico. Não
há nada de especial em relação à ordem alfabética; foi simples­
mente a ordem que os semitas inventaram, e todos os alfabetos
ocidentais originaram-se ali. Nenhum hngüista aceita isso como
explicação para os universais lingüísticos. Por um simples motivo:
às vezes ocorrem quebras radicais na transmissão da língua entre
gerações, a mais extremada delas sendo a crioulização, mas os uni­
versais valem para todas as línguas, inclusive as crioulas. Além
disso, é uma questão de lógica simples que uma implicação uni­
versal, como “Se uma língua tem ordem SVO, então tem preposi­
ções, mas, sc tiver ordem SOV terá posposições”, não possa ser
transmitida de pais para filhos da mesma maneira como as pala­
vras. Uma implicação, por sua própria lógica, não é um fato re­
lacionado com um determinado idioma: as crianças poderíam
aprender que o inglês é SVO e tem preposições, mas nada lhes de­
monstraria que, se uma língua é SVO, então ela tem de ter preposi­
ções. Uma implicação universal é um fato sobre todas as línguas,
apenas visível do ponto de observação privilegiado de um lingüis-
ta comparando-as. Se uma língua muda de SOV para SVO ao
longo da história e suas posposições viram preposições, deve ha­
ver alguma maneira de explicar a sincronia desses dois desenvolvi­
mentos.

297
I O instinto da linguagem I

Além disso, se os universais se resumissem ao que é passado de


geração para geração, dever-se-ia esperar uma correlação entre as
principais diferenças entre tipos de línguas e ramos das famílias
de línguas, assim como a diferença entre duas culturas geralmente
está correlacionada com o tempo que as separa. Á medida que a
língua original da humanidade foi se diferenciando, alguns ramos
podem ter se tornado SOV e outros SVO; dentro de cada um
desses ramos alguns podem ter aglutinado palavras, outros as iso­
laram. Mas não é assim. Quando se trata de períodos de mais de
mil anos, a história e a tipologia costumam não apresentar uma
boa correlação. As línguas podem mudar de tipo gramatical de
modo rclativamcntc rápido, c podem variar entre alguns tipos vá­
rias vezes; afora o vocabulário, elas não se diferenciam e divergem
progressivamente. Por exemplo, cm menos dc um milênio o inglês
deixou de ser uma língua de ordem livre dc palavras, profunda­
mente flexionai, com proeminência de tópico —como sua irmã, o
alemão, continua sendo até hoje —, para se tornar uma língua com
ordem fixa de palavras, pouco flexionai e com proeminência de
sujeito. Muitas famílias de línguas contêm quase toda a gama de
variações conhecidas no mundo em aspectos gramaticais particu­
lares. A ausência dc uma forte correlação entre as propriedades
gramaticais das línguas c seu lugar na árvore da família de línguas
sugere que universais linguísticos não são apenas as propriedades
que por acaso sobreviveram da hipotética mãe de todas as línguas.
A segunda explicação alternativa t]ue temos de eliminar antes
de atribuir um universal lingüístico a um instinto universal da lin­
guagem c que as línguas refletiríam universais do pensamento ou
do processamento mental de informação, que não são específicos
da linguagem. Como vimos no Capítulo 3, universais de vocabu­
lário de cor provavelmente decorrem de universais da visão em co­
res. Talvez os sujeitos precedam os objetos porque o sujeito de um
verbo de ação denota o agente causai (como em Cão morde homem);
colocar o sujeito na frente espelha o fato de que a causa vem antes

298
IA Torre de Babel I

do efeito. Talvez a ordenação núcleo inicial ou núcleo final seja


uniforme em todos os sintagmas de uma língua porque reforça
uma direção uniforme de ramificação, à direita ou à esquerda, nas
árvores de estrutura sintagmática da língua, impedindo constru­
ções em cebola, difíceis de entender. Por exemplo, o japonês é
SOV e tem modificadores à esquerda; isso cria construções como
“modificador-SOV” com o modificador do lado de fora em vez
de “S-modificador OV” com o modificador incrustado.
Mas essas explicações funcionais são muitas vezes frágeis, e sim­
plesmente não funcionam para muitos universais. Por exemplo,
Greenberg observou que, se uma língua tem ao mesmo tempo su­
fixos derivacionais (que criam novas palavras a partir de outras já
existentes) e sufixos flexionais (que modificam uma palavra para
adequá-la à sua função na frase), então os sufixos derivacionais es­
tão sempre mais próximos do radical do que os flexionais. No
Capítulo 5 vimos esse princípio operando em inglês na diferença
entre Darwinisms (gramatical) e Darwinsism (agramatical). É difícil
imaginar como essa lei poderia ser conseqüência de algum princí­
pio universal de pensamento ou memória: por que o conceito de
duas ideologias baseadas em um Darwin é pensável, mas o concei­
to de uma ideologia baseada em dois Darwins, Charles e Erasmus,
não (a não ser que se adote um pensamento circular e se declare
que a mente deve achar que -ism é cognitivamente mais básico que
o plural, porque esta é a ordem que encontramos na língua)? Re­
cordemos também os experimentos de Peter Gordon mostrando
que crianças dizem mice~eater mas nunca rats~eater, a despeito da si­
milaridade conceituai entre rats e mice e a despeito da ausência de
ambos os compostos na fala dos pais. Suas conclusões corroboram
a idéia de que este universal em particular é causado pela maneira
como regras morfológicas são computadas no cérebro, com a fle-
xão se aplicando aos produtos da derivação, mas não o inverso.
Seja como for, greenberguismos não são o melhor lugar para
encontrar uma Gramática Universal neurologicamente dada pree­

299
I O instinto da linguagem I

xistente a Babel. É a organização da gramática como um todo, e


não qualquer lista de fatos, que deve ser examinada. N a discussão
das possíveis causas de algo como a ordem SVO, as árvores escon­
dem a floresta. O que mais chama a atenção é que podemos olhar
para qualquer língua tomada aleatoriamente e encontrar, no míni­
mo, coisas que podem ser chamadas de sujeitos, objetos e verbos.
Afinal de contas, se nos pedissem para verificar a ordem de sujeito,
objeto e verbo na notação musical, ou na linguagem FORTRAN
de programação de computadores, ou no código Morse, ou em
aritmética, protestaríamos dizendo que a idéia é em si mesma des­
tituída de sentido. Seria o mesmo que reunir uma coleção repre­
sentativa das culturas dos seis continentes e tentar verificar as co­
res das camisas dc seus times de hóquei ou a forma de seus rituais
dc haraquiri. O que deveria nos impressionar antes de mais nada é
que a pesquisa dos universais gramaticais seja possível!
Quando os lingüistas afirmam encontrar os mesmos tipos de
dispositivo lingüístico em todas as línguas, não é só porque espe­
ram que as línguas tenham sujeitos e, portanto, rotulam de “sujei­
to” o primeiro tipo de sintagma que encontrarem e que se pareça
com um sujeito inglês. Pelo contrário, se um lingüista examinan­
do uma língua pela primeira vez chama um sintagma de “sujeito”
usando um critério baseado nos sujeitos do inglês —isto c, que de­
nota a função de agente para os verbos de ação —, o lingüista logo
descobre que outros critérios, como concordar com o verbo em
pessoa e número e ocorrer antes do objeto, também serão verda­
deiros para aquele sintagma. São essas correlações entre as proprie­
dades de um troço lingüístico de várias línguas que tornam cien­
tificamente significativo falar sobre sujeitos e objetos, substanti­
vos e verbos, auxiliares e flexões —e não apenas Categoria de Pa­
lavra n? 2.783 e Categoria de Palavra n? I.4 9 I —em línguas que
vão do abanhéem ao zulu.
A afirmação de Chomsky de que do ponto de vista de um mar­
ciano todos os humanos falam a mesma língua baseia-se na des­

300
IA Torre de Babel I

coberta de que, sem exceção, a mesma maquinaria de manipulação


de símbolos subjaz às línguas do mundo. Faz muito tempo que os
lingüistas sabem que em todas as línguas encontram-se os mes­
mos traços básicos de design. Muitos foram documentados em
1960 pelo lingüista não chomskiano C. F. Hockett, numa compa­
ração entre línguas humanas e sistemas animais de comunicação
(Hockett não era amigo do marciano). As línguas usam o canal
boca-ouvido sempre que a audição dos usuários esteja intacta
(gestos manuais e faciais são o canal substituto usado pelo defi­
ciente auditivo). Um código gramatical comum, invariável entre
emissão e compreensão, permite aos falantes emitirem qualquer
mensagem lingüística que possam compreender, e vice-versa. Pa­
lavras têm significados estáveis, a elas vinculados por uma conven­
ção arbitrária. Os sons da fala são tratados de modo descontínuo;
um som que em termos acústicos se encontra a meio caminho en­
tre fez e vez não significa algo a meio caminho entre fazer e uma
oportunidade. As línguas podem transmitir significados abstratos
e afastados, no tempo ou no espaço, do falante. As formas lin-
güísticas são infinitas em número, porque são criadas por um sis­
tema combinatório discreto. Todas as línguas revelam uma duali­
dade de modelagem, em que um sistema de regras é usado para
ordenar fonemas dentro de morfemas, independentemente do sig­
nificado, e outro para ordenar morfemas dentro de palavras e sin­
tagmas, especificando seu significado.
A lingüística chomskiana, em combinação com as investiga­
ções de Greenberg, nos permite avançar para além dessas especu­
lações básicas. Pode-se afirmar com certeza que a maquinaria gra­
matical que usamos para o inglês nos Capítulos 4-6 é usada em
todas as línguas do mundo. Todas as línguas têm um vocabulário
composto de milhares ou dezenas de milhares de vocábulos, dis­
tribuídos em classes gramaticais que incluem categorias como subs­
tantivo e verbo. Palavras se organizam em sintagmas segundo o sis­
tema X-barra (substantivos são encontrados dentro de N-barras,

301
I O instinto da linguagem I

que são encontradas dentro de sintagmas nominais etc.). Os ní­


veis mais elevados da estrutura sintagmática incluem auxiliares
(INFL), que exprimem tempo verbal, modalidade, aspecto e ne­
gação. Substantivos levam marcadores de caso e suas funções se­
mânticas lhes são atribuídas pela entrada do dicionário mental do
verbo ou outro predicado. Sintagmas podem ser deslocados de
suas posições na estrutura profunda, deixando uma lacuna ou
“vestígio”, por meio de uma regra de deslocação dependente da
estrutura, formando dessa maneira interrogativas, orações relati­
vas, passivas e outras construções corriqueiras. Estruturas de pala­
vras novas podem ser criadas e modificadas por meio de regras de
derivação e de flexão. As regras de flexão marcam os substantivos
sobretudo com casos c número, e os verbos com tempos, aspec­
tos, modos, vozes, negação e concordância com sujeitos e objetos
em número, gênero c pessoa. As formas fonológicas das palavras
são definidas por árvores métricas e silábicas, e separam feixes de
traços como sonoridade, tons e modo e ponto de articulação, sen­
do subsequentemente associadas por regras fonológicas ordena­
das. Embora muitos desses arranjos sejam em algum sentido
úteis, seus detalhes, encontrados em todas as línguas mas em ne­
nhum sistema artificial como o FORTRAN ou a notação musi­
cal, criam uma forte impressão de que uma Gramática Universal,
irredutível à história ou à cognição, subjaz ao instinto humano da
linguagem.
Deus não teve muito trabalho para confundir a língua dos des­
cendentes de Noé. Afora o vocabulário —se a palavra para “rato”
é rato ou souris —pouquíssimas propriedades da linguagem não se
encontram especificadas na Gramática Universal e constituem pa­
râmetros variáveis. Por exemplo, cabe a cada língua escolher se a
ordem dos elementos dentro de um sintagma é núcleo inicial ou
núcleo final ( comer sushi e para Chicago versus sushí comer e Chicago para),
e se é preciso haver sujeito em todas as frases ou se ele pode ser
omitido quando o falante quiser. Além disso, muitas vezes uma

302
IA Torre de Babel I

peça gramatical especial é muito importante numa língua e some


imperceptivelmente em outra. A impressão geral é que a Gramáti­
ca Universal é como um arcabouço arquetípico encontrado num
vasto número de animais de um filo. Por exemplo, em todos os
anfíbios, répteis, pássaros e mamíferos, há uma arquitetura cor­
poral comum, com uma espinha dorsal segmentada, quatro mem­
bros articulados, um rabo, um crânio etc. As diversas partes po­
dem sofrer modificações grosseiras ou se atrofiar nos diferentes
animais: a asa de um morcego é uma mão, um cavalo trota sobre
cascos, os membros dianteiros das baleias tornaram-se nadadei­
ras e os traseiros se reduziram tanto que ficaram invisíveis, e o
delicado martelo, bigorna e estribo do ouvido médio dos mamí­
feros são partes da mandíbula dos répteis. Mas do tritão ao ele­
fante, descobre-se uma topologia comum do esqueleto corporal
—a tíbia ligada ao fêmur, o fêmur ligado ao osso ilíaco. Muitas
das diferenças são causadas por variações ínfimas da duração e
velocidade de crescimento das partes durante o desenvolvimento
embrionário. Diferenças entre línguas são parecidas. Parece haver
um arcabouço comum das regras e princípios sintáticos, morfo-
lógicos e fonológicos, com um pequeno conjunto de parâmetros
variáveis, como uma lista de opções. Uma vez estabelecido, um
parâmetro pode provocar amplas alterações na aparência superfi­
cial da língua.
Sc há um único plano sob a superfície das línguas do mundo,
então as propriedades básicas de uma língua deveriam poder ser
encontradas em todas as outras. Examinemos mais uma vez as seis
características lingüísticas supostamente não-inglesas que abriram
o capítulo. Um olhar mais atento mostra que todas elas também
podem ser encontradas em inglês, e que os traços supostamente
distintivos do inglês podem ser encontrados nas outras línguas.

I. O inglês, como as línguas flexionais de que ele supostamente di­


fere, possui um marcador de concordância, o - s da terceira pessoa

303
I O instinto da linguagem I

do singular em He walks. Também tem distinções de caso nos pro­


nomes, tais como he versus him. E, como as línguas aglutinantes,
possui mecanismos que permitem grudar vários pedaços numa
única palavra comprida, como as regras de derivação e os afixos
que geram sensationalization e Darwinianisms. Supostamente, o chi­
nês é um exemplo ainda mais extremo de uma língua isolante do
que o inglês, mas também ele contém regras que geram palavras
compostas de várias partes como substantivos compostos e deri­
vativos.'’
2. O inglês, como as línguas de ordem livre dc palavra, tem liberda­
de em scqücncias dc sintagmas preposicionais, em que cada pre­
posição marca a função semântica de seu sintagma nominal como
sc fosse um marcador dc caso: The package was sentfrom Chicago to
Boston by Mary; The package was sent by Mary to Bostonfrom Chicago; The
package was sent to Boston from Chicago by Mary etc. Inversamente, no
outro extremo, cm línguas ditas desordenadas, como o warlpiri, a
ordem de palavras nunca é completamente livre; auxiliares, por
exemplo, têm de vir na segunda posição numa frase, o que se pa­
rece bastante com seu posicionamento em inglês.3 4
3. O inglês, como as línguas ergativas, marca uma similaridade entre
os objetos dc verbos transitivos c os sujeitos de verbos intransiti­
vos. Compare John hroke theglass (glass = objeto) com The glass brokc
(glass = sujeito do verbo intransitivo), ou Three men arrived com
Therc arrived three men.5

3. O português tem os verbos bastante flexionados (canto, cantariam, cantarmos etc.) c lam­
bem tem marcação de caso nos pronomes (me, mim, o, a, lhes etc.). Afixos também são
bastante produtivos, como cm anticonstitucionalissimamente. (N. da R. T.)
4. O português também permito variações da ordem de alguns elementos. O p a c o t e f o i m a n d a ­
d o d c (C h icago a B o sto n p e la M a r ia ; O p a c o t e f o i m a n d a d o p e la M a r ia a B o s t o n d e C h ic a g o etc. Além

disso, o sujeito pode vir anteposto ao verbo, como em d is s e o m e n i n o . O advérbio também


pode ser colocado cm várias posições, como em F r e q u e n te m e n te e le v a i a o c lu b e ; E le v a i a o c lu b e
f r e q u e n t e m e n t e ; E le fr e q u e n t e m e n t e v a i a o c lu b e ; E le v a i f r e q ü e n t e m e n t e a o c lu b e . (N. da R .T .)
5. O mesmo ocorre em português. O v i d r o q u e b r o u ; C h e g a r a m t r ê s h o m e n s ; C a ír a m a s f o l h a s .
(N. da R .T .)

304
IA Torre de Babel I

4. O inglês, como línguas com proeminência de tópico, tem um


constituinte tópico em construções como Asforfish, I eat salmon e
John I never really liked/’
5. Assim como as línguas SOV, não faz muito tempo o inglês dispu­
nha de uma ordem SOV, ainda interpretável em expressões arcai­
cas como Till death do us part e With this ring I thee wed,6789
6. Como as línguas classificadoras, o inglês insiste em classificado-
res para muitos substantivos: você não pode se referir a um qua­
drado isolado como a paper, mas tem de dizer a sheet of paper. De mo­
do semelhante, os anglófonos dizem a piece offruit (que se refere a
uma maçã, e não a um pedaço de maçã), a blade of grass, a stick of
wood,fifty head of cattle etc.a

Se o cientista marciano conclui que os humanos falam uma úni­


ca língua, ele deve se perguntar por que a língua da Terra tem mi­
lhares de dialetos mutuamente ininteligíveis (supondo que o mar­
ciano não tenha lido Gênesis I I ; talvez M arte esteja fora do al­
cance da Sociedade Gedeão4). Se o arcabouço básico da lingua­
gem c inato e fixo na espécie, por que não a banana toda? Por que
existe o parâmetro núcleo inicial, vocabulários mais ou menos ex­
tensos para cores, o sotaque de Boston?
Os cientistas da Terra não têm uma resposta conclusiva. O fí­
sico teórico Freeman Dyson propôs que a diversidade lingüística

6. O português brasileiro era considerado língua com proeminência de sujeito apenas, até Pon­
tes (op. cit.') chamai: a atenção para a produtividade dc construções com tópico. (N. da R.T.)
7. No português europeu ainda é bastante produtivo antepor o sujeito ao verbo, obten-
do-se sentenças como O cabrito comeu a Maria, significando que o cabrito foi comido.
(N. da R.T.)
8. Já cm português brasileiro podemos dizer um papel, uma fruta, um vidro, uma madeira,
sem usar classiíicadores. Uma exceção é gado: não existe um gado, mas sim uma cabeça de gado.
(N. da R.T.)
9. Sociedade missionária fundada em 1899, cujo objetivo é distribuir Bíblias nos locais de
circulação como hotéis, prisões, escolas etc. (N. daT.)

305
I O instinto da linguagem I

existe por uma razão: “foi a maneira que a natureza encontrou para
nos fazer evoluir rapidamente”, criando grupos étnicos isolados
em que a evolução biológica e cultural não diluída pode se dar
aceleradamente. Mas o raciocínio evolucionista de Dyson é falho.
Como não podem prever o futuro, as linhagens tentam se aperfei­
çoar o melhor que podem, agora; não iniciam mudanças apenas
pela simples vontade de mudar esperando que uma das mudanças
venha a se mostrar proveitosa em algum período glacial dez mil
anos depois. Dyson não foi o primeiro a atribuir um propósito à
diversidade lingüística. Um índio colombiano Bará, membro de
um grupo de tribos cxogâmicas, ao ser indagado por um lingüista
sobre o motivo da existência de tantas línguas, explicou: “Se to­
dos falássemos tukano, onde conseguiriamos nossas mulheres?”
Como nativo de Quebec, posso testemunhar que diferenças lin-
giiísticas conduzem a diferenças de identificação étnica, com am­
plos efeitos, bons e maus. Mas as sugestões de Dyson e do índio
Bará invertem a ordem dos fatores causais. É verdade que os parâ­
metros núcleo inicial e todo o resto são devastadores quando se
trata dc distinguir grupos étnicos, supondo que isso fosse desejá­
vel em termos evolutivos. Os humanos têm uma habilidade espe­
cial para detectar diferenças ínfimas que lhes permitam decidir
quem deve ser desprezado. Para tanto basta que os americanos eu­
ropeus tenham pele clara c os afro-amcricanos, pele escura, que os
hindus insistam em não comer carne dc vaca c os muçulmanos,
cm não comer carne dc porco, ou, na história do Dr. Scuss, que os
Sncetch.es com barrigas estreladas tenham barrigas com estrelas e
os Sneetch.es com barrigas lisas não as tenham10. Sempre c]ue hou­
ver mais de uma língua, o etnocentrismo fará o resto; temos de
compreender por que há mais de uma língua.
O próprio Darwin exprimiu a idéia decisiva:

10. Referência a história do Dr. Scuss que trata da discriminação e da tolerância. (N. daT.)

306
IA Torre de Babel I

A formação de diferentes línguas e de distintas espécies, e as provas


de que ambas se desenvolveram num processo gradual, são curiosa­
mente paralelas... Em distintas línguas encontramos homologias no­
táveis, devido à comunidade de descendentes, e analogias, devido a
um processo semelhante de formação... As línguas, assim como os se­
res orgânicos, podem ser classificadas em grupos dentro de grupos;
e podem ser classificadas quer naturalmente, segundo a descendên­
cia, quer artificialmente, por outras características. Línguas e dialetos
dominantes se espalham, provocando a gradual extinção de outros
idiomas. Depois de extinta, uma língua, assim como uma espécie,
nunca... reaparece.

Ou seja, o inglês é semelhante embora não idêntico ao alemão


pela mesma razão que raposas são semelhantes embora não idên­
ticas a lobos: inglês e alemão são modificações de uma língua an­
cestral comum falada no passado, e raposas e lobos são modifica­
ções de uma espécie ancestral comum que viveu no passado. Darwin
chegou inclusive a dizer que algumas de suas idéias sobre a evolu­
ção biológica foram tiradas da lingüística de seu tempo, o que
examinaremos mais adiante neste capítulo.
Diferenças entre línguas, como diferenças entre espécies, de­
correm de três processos que agem durante longos períodos de
tempo. Um desses processos é a variação —mutação, no caso das
espécies; inovação lingüística, no caso das línguas. O segundo é a
hereditariedade, de acordo com a qual os descendentes se parecem
com seus progenitores nessas variações —heranças genéticas, no
caso das espécies; habilidade para aprender, no caso das línguas.
O terceiro é o isolamento —pela geografia, época de acasalamen­
to ou anatomia reprodutiva, no caso das espécies; por migração
ou barreiras sociais, no caso das línguas. Em ambos os casos, po­
pulações isoladas acumulam conjuntos diferentes de variações, que
tendem a se distanciar ao longo do tempo. Portanto, para com­
preender por que há mais de uma língua, temos de compreender
os efeitos da inovação, aprendizagem e migração.

307
I O instinto da linguagem I

Comecemos com a habilidade para aprender, e com a tentativa


de convencê-lo de que há algo para explicar. Muitos cientistas so­
ciais acham que aprender é algum pináculo da evolução que os hu­
manos galgaram partindo das baixas terras do instinto, de tal for­
ma que nossa habilidade para aprender pode ser explicada por
nosso brilhantismo mental tão exaltado. Mas a biologia diz outra
coisa. A capacidade de aprender encontra-se em organismos tão
simples como uma bactéria, e, como James e Chomsky mostra­
ram, a inteligência humana talvez dependa de termos mais instin­
tos inatos, c não menos. Aprender é uma opção, como a camufla­
gem ou chifres, que a natureza dá aos organismos conforme a ne­
cessidade —quando algum aspecto do nicho ambiental dos orga­
nismos é tão imprevisível que a antecipação de suas contingências
não pode estar inscrita no organismo. Por exemplo, pássaros que
põem ovos cm pequenas saliências de penhascos não aprendem a
reconhecer seus filhotes. Não precisam disso, pois qualquer coisi-
nha da forma e do tamanho certo que apareça no ninho é com
certeza um filhote. Por outro lado, pássaros que põem ovos em
grandes colônias correm o perigo de alimentar o filhote de algum
vizinho que se introduza sorrateiramente no ninho, c eles desen­
volveram um mecanismo que lhes permite aprender as nuanças
particulares dc seus próprios bebês.
Ainda que inicialmente um traço seja produto da aprendiza­
gem, isso pode mudar. A teoria evolutiva, apoiada em simulações
por computador, mostrou que quando um ambiente é estável há
uma pressão seletiva para que habilidades aprendidas se tornem
pouco a pouco inatas. Isso porque, se uma habilidade for inata, pode
se manifestar mais cedo na vida da criatura, e há menos chances
de que uma criatura infeliz não tenha acesso às experiências neces­
sárias para aprendê-la.
Que vantagem teria uma criança em ter de aprender partes de
uma língua em vez de vir com todo o sistema já instalado? No

308
I A Torre d e B a b el I

caso do vocabulário, os benefícios são óbvios: 60.000 palavras é


uma quantidade um pouco grande demais para evoluir, ser arma­
zenada e mantida num genoma que contém de 50.000 a 100.000
genes. Além disso, palavras para plantas, animais, ferramentas e, es­
pecialmente, pessoas novas são necessárias durante uma vida. Mas
de que serve aprender diferentes gramáticas? Ninguém sabe, mas
temos aqui algumas hipóteses plausíveis.
Talvez algumas das coisas que temos de aprender sobre a lín­
gua sejam facilmente aprendidas por mecanismos simples que pre­
cedem a evolução da gramática. Por exemplo, talvez seja suficien­
te um tipo simples de circuito de aprendizagem para gravar qual
elemento vem antes de qual outro, desde que os elementos sejam
primeiro definidos e identificados por algum outro módulo cog­
nitivo. Se um módulo gramatical universal define um núcleo e um
protagonista, a ordena relativa deles (núcleo inicial ou núcleo fi­
nal) poderia facilmente ser gravada. Nesse caso, a evolução, tendo
tornado inatas as unidades computacionais básicas da língua, não
veria necessidade de substituir cada pedaço de informação apren­
dida por uma conexão inata. Simulações por computador da evo­
lução mostram que a pressão para substituir conexões neurais ad­
quiridas por outras inatas diminui à medida que uma parcela cada
vez maior da rede se torna inata, porque é cada vez menos prová­
vel que a aprendizagem falhe para o resto.
Uma segunda razão para a língua ser parcialmente adquirida é
que é inerente a ela a necessidade de compartilhar um código com
outras pessoas. Uma gramática inata é inútil se só você a possui: é
como dançar um tango sozinho, ou bater palmas com uma só mão.
Mas os genomas das outras pessoas se modificam, evoluem e re-
combinam quando elas têm filhos. Em vez de selecionar uma gra­
mática completamente inata, que rapidamente criaria um registro
distinto do de todas as outras pessoas, a evolução talvez tenha
dado às crianças a capacidade de aprender as partes variáveis da
língua como modo de sincronizar suas gramáticas com as da co­
munidade.

309
I O in stin to d a lin gu a gem I

O segundo componente da diferenciação das línguas é uma


fonte de variação. Alguma pessoa, em algum lugar, deve ter come­
çado a falar de um jeito diferente do de seus vizinhos, e a inova­
ção deve ter se alastrado e ter pegado como uma doença contagio­
sa até se tornar epidêmica, momento este em que as crianças a
perpetuaram. As fontes das mudanças podem ser muitas. Palavras
são cunhadas, emprestadas de outras línguas, seu sentido se am­
plia e elas são esquecidas. Novos jargões ou modos de falar po­
dem parecer geniais dentro de alguma subcultura e em seguida se
infiltrar na linguagem corrente. Exemplos específicos desses em­
préstimos são objeto de fascinação dos admiradores da linguagem
pop e enchem muitos livros e colunas. Pessoalmente, isso não me
excita muito. Será que devemos realmente ficar espantados com o
fato de que o inglês emprestou kimono do japonês, banana do espa­
nhol, moccasin dos índios americanos etc.?
Devido ao instinto da linguagem, há algo bem mais fascinante
no que se refere à inovação lingüística: cada elo da cadeia de trans­
missão da linguagem é um cérebro humano. Esse cérebro está
equipado com uma gramática universal e está sempre à procura de
exemplos dc vários tipos dc regras no ambiente da fala. Pelo fato
de a fala poder ser imprecisa e as palavras e frases, ambíguas, vez
por outra as pessoas conseguem reanalisar a fala que escutam —in-
terpretam-na como proveniente da entrada ou regra de um dicio­
nário diferente daquele que o falante costuma usar.
Um exemplo simples é a palavra orange [laranja]. Originalmen­
te era norange, emprestado do espanhol naranja. Mas, em algum pon­
to, algum falante desconhecido e criativo deve ter reanalisado a no­
range como an orange. Embora as análises do falante e do ouvinte
especifiquem sons idênticos para o sintagma anorange, se o ouvin­
te emprega o resto da gramática criativamente, a modificação torna-
se audível, como em those oranges em vez de those noranges. (Essa mu­

310
I A Torre d e B a b el I

dança em particular foi comum em inglês. Shakespeare usava nun-


cle [titio] como nome carinhoso, uma transformação de mine Unck
para ту nuncle, e Ned veio de Edward por um caminho semelhante.
Hoje em dia muitas pessoas falam de a whole nother thing e conheço
uma criança que come ectarines e uma adulta chamada Nalice que se
refere às pessoas de quem não gosta como nídiots.')
A reanálise, produto da criatividade combinatória discreta do
instinto da linguagem, de certa forma estraga a analogia entre mo­
dificações da linguagem por um lado e evolução biológica e cultu­
ral por outro. Muitas inovações lingüísticas não se parecem com
mutações, evoluções, erosões ou empréstimos aleatórios. Parecem-
se antes com lendas ou piadas que são embelezadas, enriquecidas
ou retrabalhadas a cada novo relato. E por isso que, embora as
gramáticas mudem rapidamente ao longo da história, elas não de­
generam, pois a reanálise é uma fonte inesgotável de novas com­
plexidades. Elas tampouco têm de sc diferenciar progressivamen­
te, pois as gramáticas podem pular entre os encaixes que a gramá­
tica universal torna disponíveis na mente de cada um de nós. Além
disso, uma mudança numa língua pode provocar um desequilíbrio
capaz dc desencadear uma cascata de outras mudanças em outra
parte, como uma fileira de dominós. Qualquer parte da língua
pode mudar:
• Muitas regras fonológicas surgiram quando ouvintes dc al­
guma comunidade rcanalisaram uma fala rápida e coarticulada.
Imagine um dialeto destituído da regra que converte t num flap em
utter. Seus falantes geralmente pronunciam o t como í, mas talvez
não o façam quando falam rápido ou adotam um estilo “desleixa­
do”. Nesse caso, talvez algum ouvinte lhes atribua uma regra de
flapping, e eles (ou seus filhos) passariam a pronunciar o t como um
flap mesmo ao falarem pausadamente. Indo mais longe, até mesmo
fonemas subjacentes podem ser reanalisados. Foi assim que, em
inglês, ganhamos o v. O inglês antigo não tinha v; a palavra ingle­
sa starve era originalmente steorfan. Mas qualquer j entre duas vo­

311
J

I O in stin to d a lin gu a gem I

gais era pronunciado de modo sonoro, de tal modo que ofer era
pronunciado “over”, graças a uma regra semelhante à contempo­
rânea regra d e flapping. Os ouvintes acabaram analisando o v como
um fonema separado, e não como uma pronunciação d e f de for­
ma que agora a palavra é efetivamente over, e v e f existem enquan­
to fonemas separados. Por exemplo, agora conseguimos diferenciar
palavras como waver e wafer, mas o rei Etelbuldo não teria con­
seguido.
• As regras fonológicas que governam a pronúncia de palavras
podem, por sua vez, ser reanalisadas como regras morfológicas
que governam sua construção. Línguas germânicas como o inglês an­
tigo tinham uma regra “umlaut” [apofonia] que transformava uma
vogal posterior em vogal anterior se a sílaba seguinte contivesse
um som vocálico frontal alto. Por exemplo, emfoti, plural de “foot”,
o o posterior foi transformado pela regra num e anterior, harmo­
nizando com o i anterior. Posteriormente, o i do fim deixou de ser
pronunciado, e, como nada mais desencadeava a regra fonológica,
os falantes reinterpretaram a mudança o-e como uma relação mor-
fológica indicativa do plural —resultando na forma atual jo o lfeel,
mouse-mice, goose~geese, tooth~teeth c lousedice.
• A reanálise também pode tomar duas variantes de uma pala­
vra, uma criada a partir da outra por uma regra de flexão, e rcca-
tcgorizá-las como palavras separadas. Ё possível que os falantes de
antanho tenham percebido que a regra dc flexão oo~ee não se apli­
cava a todos os itens mas apenas a alguns: tootb-teeth, mas não boolh-
beeth. Portanto teeth foi interpretada como uma palavra separada,
irregular, relacionada com tooth, e não como produto de uma regra
aplicada a tootb. A mudança de vogal deixa de funcionar como re­
g ra —daí o conto engraçado de Lederer “Foxen in the Henhice”11.

1 1 . Jogo c o m o s p lu ra is irre g u lares ox-oxen e m o u se-m ice [b o i, ra to ]. A fo rm a g ra m a tic a lm e n te


c o rre ta d a h is tó ria “R a p o s a s n o g alin h eiro ” seria “Foxes in th e H e n h o u s e s ” . (N . d a T .)

312
I A Torre d e B a b el I

Outros conjuntos de palavras vagamente inter-relacionadas chega­


ram ao inglês por esse mesmo caminho, como brother-brethren, balf-
balve, teetb-teetbe•, foJalUto fell, to rise-to raise; até mesmo wrought, que
costumava ser a forma do passado de work.
• Outras regras morfológicas podem se formar quando as pa­
lavras que comumente acompanham alguma outra palavra se des­
gastam e então aderem a ela. Marcadores de tempo verbal podem
provir de auxiliares; por exemplo, como já mencionei, o sufixo in­
glês -ed pode ter evoluído de did: kammer~did —> hammered. Marca­
dores de caso podem ter vindo de preposições comidas ou de se-
qüências de verbos (por exemplo, numa língua que admite a cons­
trução take пай bit it [tome prego bata nele[, take pode se reduzir a um
marcador de caso acusativo como to-). Marcadores de concordân­
cia podem provir de pronomes: em John, he kissed her [João, ele beijou
ela\, be e her podem acabar se grudando ao verbo como afixos de
concordância.
• Construções sintáticas podem surgir quando uma ordem de
palavras que é apenas preferencial é reanalisada como obrigatória.
Por exemplo, quando o inglês tinha marcadores de caso, tanto give
bím a book quanto give a book hím eram possíveis, mas a primeira for­
ma era mais comum. Quando os marcadores de casos desaparece­
ram na fala coloquial, muitas frases teriam se tornado ambíguas
se a variação de ordem ainda fosse admitida. Portanto, a ordem
mais comum passou a ser cultuada como regra sintática. Outras
construções podem surgir de múltiplas reanálises. O pretérito
mais-que-perfeito do inglês I had written a book veio originalmente
de I had a book written (significando “Eu possuía um livro que foi
escrito”). A reanálise era convidativa pelo fato de o padrão SOV
ainda estar vivo em inglês; o particípio written podia ser reanali-
sado como verbo principal da frase, e had podia ser reanalisado
como seu auxiliar, dando origem a uma nova análise com um sen­
tido relacionado.

313
I O in stin to d a lin gu a gem I

O terceiro ingrediente para a divisão das línguas é a separação


entre grupos de falantes, de modo que as inovações que vingam
não se efetivam em todo lugar mas se acumulam isoladamente nos
diversos grupos. Embora as pessoas modifiquem sua língua a cada
geração, a extensão dessas mudanças é pequena: muito mais sons
são preservados do que mudados, mais construções são adequa­
damente analisadas do que reanalisadas. Por causa desse conserva­
dorismo generalizado, alguns padrões de vocabulário, som e gra­
mática sobrevivem por milênios. Servem dc vestígios fossilizados
dc migrações em massa num passado remoto, pistas de como os
seres humanos sc espalharam pela Terra para finalmente se encon­
trarem onde os encontramos hoje.
Em que momento do passado podemos situar a origem da lín­
gua deste livro, o inglês americano moderno? Surpreendentemente
longe, talvez cinco ou até nove m il anos atrás. O que sabemos so­
bre as fontes dessa língua é bem mais preciso do que Dave Barry
diz cm sua coluna humorística, Mr. Language Person: “A língua
inglesa é uma rica tapeçaria verbal tecida a partir das línguas dos
gregos, romanos, anglos, saxões, celtas, e muitos outros povos an­
tigos, todos com graves problemas decorrentes da bebida.” Volte­
mos no tempo.
O que primeiro separou a America da Inglaterra foi uma lín­
gua comum, nas memoráveis palavras de Wildc, quando coloniza­
dores c imigrantes sc isolaram da fala britânica atravessando o
Oceano Atlântico. A Inglaterra já era uma Babel de dialetos regio­
nais c de classe quando os primeiros colonizadores partiram. O
que viria a se tornar o dialeto americano clássico foi plantado pe­
los membros ambiciosos ou insatisfeitos das classes média e baixa
do sudeste da Inglaterra. No século 18, começou-se a identifi­
car um sotaque americano, e a pronúncia no Sul dos Estados
Unidos sofreu particularmente a influência da imigração dos ir-

314
IA Torre de Babel I

landeses do Ulster. As expansões para o Oeste preservaram os ní­


veis de dialeto da costa leste, embora quanto mais para oeste os
pioneiros fossem, mais seus dialetos se misturavam, especialmente
na Califórnia, que exigiu transpor o vasto deserto do interior. Devi­
do à imigração, mobilidade, educação, e atualmente à comunica­
ção de massa, o inglês dos Estados Unidos, mesmo com suas ricas
diferenças regionais, é homogêneo se comparado com as línguas
em territórios de dimensão semelhante no resto do mundo; esse
processo foi denominado de “Babel ao inverso”. Costuma-se dizer
que os dialetos dos ozarks e appalachias são uma relíquia do in­
glês elizabetano, mas isso não passa de um mito pitoresco, decor­
rente da concepção errônea da língua como artefato cultural. Fi­
camos pensando nas baladas populares, nos kilts feitos à mão e
no uísque envelhecendo lentamente em barris de carvalho e, sem
perceber, engolimos o rumor de que, nessa terra esquecida pelo
tempo, as pessoas ainda falam a língua tradicional carinhosamen­
te cultivada geração após geração. Mas não é assim que a língua
funciona —sempre, em todas as comunidades, a língua muda, em­
bora as várias partes dc uma língua possam mudar de maneiras di­
ferentes em diferentes comunidades. Por isso é verdade que esses
dialetos preservam algumas formas do inglês raramente encontra­
das em outras paragens, tal como ajeared, yourn, hisn, e et, holp e clome
como passado de eat, help e dimb. Mas o mesmo acontece com cada
variedade de inglês americano, inclusive o padrão. Muitos assim
chamados americanismos na verdade foram trazidos da Inglaterra,
onde posteriormente se perderam. Por exemplo, o particípio got-
ten, a pronúncia do a em path e batb com um “a” na frente da boca
em vez de um “ah” atrás da boca, e o uso de m ai para significar
“zangado”,fa li para significar “outono” e sick no sentido de “doen­
te”, chegam ao ouvido britânico como puro americano, mas na
verdade são reminiscências do inglês falado nas ilhas britânicas na
época da colonização americana.
O inglês mudou de ambos os lados do Atlântico, e já vinha
mudando bem antes da viagem do Mayflower. O que veio a ser o in-

315
I O in stin to d a lin gu a gem I

glês contemporâneo padrão era simplesmente o dialeto falado nos


arredores de Londres, o centro político e econômico da Inglater­
ra, no século 17. Nos séculos anteriores, ele sofrerá um grande nú­
mero de importantes mudanças, como você pode ver nessas ver­
sões do Pai Nosso:

IN G L Ê S C O N T E M P O R Â N E O :Our Father, who is in heaven, may


your name be kept holy. May your kingdom come into being. May
your will be followed on carth, just as it is in heaven. Give us this
day our food for the day. And forgivc us our offenses, just as we for-
givc those who have offcndcd us. And do not bring us to the test.
But free us from evil. For the kingdom, the power, and the glory are
yours forever. Amcn.
I N G L Ê S M O D E R N O (c. 1600): Our father which are in heaven, hal-

lowcd bc thy Namc.Thy kingdom comc.Thy will be donc, on carth,


as it is in heavcn. Give us this day our daily bread. And forgivc us our
trespasses, as wc forgive those who trespass against us. And lead us
not into temptation, but deliver us from evil. For thine is the king­
dom, and the power, and the glory, for ever, amen.
I N G L Ê S M É D I O (V. 1400): Oure fadir que art in heuenes halowid be

thi name, thi kyngdom come to, be thi wille don in erthe es in heuc-
nc, ycuc to us this day oure bread ouir other substancc, & foryeue to
us oure dcttis, as wc forgcucn to oure dettouris, & lede us not in to
tcmptacion: but dclyuer us from yucl, amcn.
I N G L .E S A N T I G O (c. 1000): Faeder ure thu the eart on hcofonum, si

thin nama gehalgod. Tobecume thin rice. Gewurthc in willa on cort-


ban swa swa on heofonum. Urne gedaeghwamlican hlaf sylc us to
daeg. E forgyf us ure gyltas, swa swa we forgyfath urum gyltedum.
And ne gelaed thu us on contnungen ac alys us of yfele. Sothlice.

As raízes do inglês encontram-se no norte da Alemanha, perto


da Dinamarca, habitada em princípios do primeiro milênio por
tribos pagãs chamadas anglos, saxões e jutos. Depois que os exér­
citos do império romano em decadência deixaram a Britânia no
século cinco, essas tribos invadiram o que viria a se tornar a Ingla-

316
I A Torre d e B a b el I

terra (Angle~land = terra angulosa) e obrigaram os celtas nativos a


se deslocarem para a Escócia, Irlanda, País de Gales e Cornualha.
Em termos lingüísticos, a derrota foi total; o inglês praticamente
não tem vestígios do celta. A invasão dos vikings se deu entre os
séculos nove e onze, mas sua língua, o norueguês antigo, era sufi­
cientemente semelhante ao anglo-saxão para que, afora vários em­
préstimos, a língua, o inglês antigo, não mudasse muito.
Em 1066, Guilherme, o Conquistador, invadiu a Britânia, tra­
zendo consigo o dialeto normando do francês, que se tornou a
língua das classes dominantes. Quando, pouco depois de 1200, o
rei João do reino anglo-normando perdeu a Normandia, o inglês
voltou a ser a língua exclusiva da Inglaterra, ainda que com uma
forte influência do francês que perdura até hoje sob a forma de
milhares de palavras e de uma variedade de peculiaridades grama­
ticais que as acompanham. Esse vocabulário “latino” —que inclui
palavras como donate) vibrate e desíst —tem uma sintaxe mais restrita;
por exemplo, você pode dizer give the museum a painting mas não do-
nate the museum a paínting, shake it up mas não vibrate it up. Também o
vocabulário tem seu próprio padrão sonoro: palavras latinas são
geralmente polissílabos com acento na segunda sílaba, como desist,
construct e transmit, ao passo que seus sinônimos anglo-saxões stop,
huild e send são monossílabos. As palavras latinas também são res­
ponsáveis por muitas das modificações sonoras que tornam a
morfologia e grafia do inglês tão idiossincráticas, como electríc~elec~
tricity e nation-national. Pelo fato de as palavras latinas serem mais
compridas e mais formais —por terem sua origem nos governos,
igrejas e escolas dos conquistadores normandos —, empregá-las
em excesso produz aquela prosa pomposa universalmente deplo­
rada por manuais de estilo, como The adolescents who had effectuated
forcihk entry into the domicik were apprehended em comparação com We
caught the kíds who broke into the housen . Orwell captou a frouxidão do12

12. Ambas as frases significam que “os garotos que invadiram a casa foram apanhados”.
(N. daT.)

317
I 0 in stin to d a lin gu a gem I

inglês latinizado em sua tradução de uma passagem do Eclesiastes


para o institucionalês moderno:

I returned and saw under the sun, that the race is not to the swift,
nor the battle to the strong, neither yet bread to the wise, nor yet ri-
ches to men of understanding, nor yet favour to men of skill; but
time and chance happeneth to them ali.1'’
Objetive considcration of contcmporary phcnomcna compels thc
conclusion that succcss or failure in compctitivc activities cxhibits
no tendcncy to be commcnsurate with innatc capacity, but that a
considcrablc clcmcnt of thc unpredictablc rnust invariably be taken
into account."

O inglcs mudou dc modo notável no período do inglês medio


( 1 100-1450) cm que Chauccr viveu. Originalmcntc, todas as sí­
labas eram emitidas, inclusive aquelas atualmente representadas na
escrita por letras “silenciosas”. Por exemplo, make era pronuncia­
do com duas sílabas. Mas as sílabas finais foram reduzidas ao ge­
nérico schwa [vogal neutra] como o a em allow13145, e em muitos casos
foram totalmentc eliminadas. Como as sílabas finais continham
os marcadores dc caso, a expressão aberta de casos começou a de­
saparecer, c a ordem de palavras passou a ser fixa para eliminar as
ambiguidades decorrentes disso. Pela mesma razão, preposições e
auxiliares como of, do, will c have perderam seus sentidos originais e
receberam importantes responsabilidades gramaticais. Por isso,

13. Ecl. 9 .1 1: Observei de novo c vi debaixo do sol que a corrida não é para os ágeis, nem a
baralha para os destemidos, nem o pão para os sábios, nem a riqueza para os entendidos,
nem o favor para os inteligentes: todos estão à mercê das circunstâncias e do tempo. (Cf.
Bíblia Sagrada, Ed. Paulinas, 1969.) (N. daT.)
14. A consideração objetiva dos fenômenos contemporâneos leva à conclusão de que o su­
cesso ou fracasso cm atividades competitivas não exibe qualquer tendência a ser comcnsura-
do com capacidades inatas, mas que um considerável elemento da ordem do imprevisível
deve invariavelmente ser levado em conta. (N. daT.)
15. E como o primeiro a da palavra Maria pronunciada por um lusitano. (N. da R .T )

318
I A Torre d e B a b el I

muitas das características da sintaxe do inglês moderno são o re­


sultado de uma cadeia de efeitos que começou com uma mera al­
teração de pronúncia.
O período do inglês moderno, a língua de Shakespeare e da
Bíblia do rei James, durou de 1450 a 1700. Começou com a
Grande Mudança das Vogais, uma revolução na pronúncia de vo­
gais longas cujas causas permanecem misteriosas até hoje. (Talvez
tenha ocorrido para compensar o fato de que o som das vogais
longas era semelhante demais ao das vogais curtas nos monossíla-
bos que agora prevaleciam; ou talvez tenha sido uma maneira de
as classes superiores se diferenciarem das classes inferiores depois
que o francês normando se tornou obsoleto.) Antes da mudança
das vogais, mouse era pronunciado “mooce”; o antigo “oo” tinha-
se transformado num ditongo. A brecha deixada pelo “oo” foi
preenchida pela elevação do que costumava ser um som de “oh”;
o que pronunciamos como goose era pronunciado, antes da Grande
Mudança das Vogais, como “gocc”. Esse vácuo, por sua vez, foi
preenchido pela vogal “o” (como em hot, mas prolongada), dando
nosso broken, a partir do que antes era pronunciado mais como
“brockcn”. Numa rotação semelhante, a vogal “ее” transformou-
se num ditongo; like era pronunciado “leek”. Isso levou à introdu­
ção da vogal “eh”; o geese atual era originalmente pronunciado
“gace”. E essa brecha foi preenchida quando a versão longa de ah
surgiu, resultando em name a partir do que costumava ser pronun­
ciado “nahma”. A grafia nunca sc preocupou em acompanhar es­
sas mudanças, motivo pelo qual a letra a é pronunciada de um jei­
to em cam e de outro em carne, onde antes havia apenas uma versão
mais longa do a de cam. É também por isso que as vogais são escri­
tas diferentemente na grafia inglesa do que em todos os outros al­
fabetos europeus, com sua grafia “fonética”.
A propósito, os ingleses do século quinze não acordaram um
dia e passaram de repente a pronunciar suas vogais de uma manei­
ra diferente, como se fosse uma mudança para o horário de verão.

319
I O in stin to d a lin gu a gem I

As pessoas que viveram durante a Grande Mudança das Vogais


provavelmente se sentiram como a atual tendência na região de
Chicago de pronunciar hot como hat, ou a crescente popularidade
do estranho dialeto surfista em que dude é pronunciado mais ou
menos como “diiihhhoooood”.

O que acontecerá se tentarmos retroceder ainda mais no tem­


po? As línguas dos anglos e dos saxões não surgiram do nada; evo­
luíram a partir do protogermânico, a língua de uma tribo que
ocupou grande parte da Europa setentrional no primeiro milênio
a.C. O ramo ocidental da tribo dividiu-se em grupos que nos de­
ram não só o anglo-saxão, mas também o alemão com sua ramifi­
cação, o iídiche, e o holandês com sua ramificação, o afrikaans. O
ramo setentrional estabeleceu-se na Escandinávia e acabou falan­
do sueco, dinamarquês, norueguês e islandês. As similaridades de
vocabulário entre essas línguas são rapidamente perceptíveis, e
também há muitas similaridades na gramática, tal como formas
dc passado terminadas cm -ed.
Os ancestrais das tribos germânicas não deixaram marcas cla­
ras na história escrita ou nos registros arqueológicos. Mas deixa­
ram uma marca especial no território que ocuparam. Tal marca foi
identificada em 1786 por Sir W illiam Joncs, um juiz inglês que
ocupava um posto na índia, numa das mais extraordinárias desco­
bertas acadêmicas já feitas. Jones resolvera estudar sânscrito, uma
língua há muito morta, e notou que:

O sânscrito, seja qual for sua antiguidade, tem uma estrutura ma­
ravilhosa; mais perfeito que o grego, mais copioso que o latim, e
mais primorosamente refinado que ambos, embora mantenha com
eles tamanha afinidade, tanto nas raízes dos verbos como nas for­
mas da gramática, que é impossível pensar que isso se deu por aci-

320
I A Torre d e B a b el I

dente; a afinidade é de fato tão forte que nenhum filólogo poderia


examinar as três línguas sem pensar que elas tenham brotado de al­
guma fonte comum que, talvez, não mais exista; há uma razão seme­
lhante, embora não tão forçosa, para supor que tanto o gótico [ger­
mânico] como o celta, embora misturados com um idioma muito
diferente, tenham tido a mesma origem que o sânscrito; e talvez o
antigo persa também possa ser incluído na mesma família...

Eis os tipos de afinidades que impressionaram Jones:

INGLÊS: brother m ead is th o u bearest hc bcars


GRLGO: pharater m ethu esti phereís phcrei
LATIM: fratcr est fers fcrt
LSLAVO ANTIGO: bratrc m id ycstc berasi bcrctti
IRLANDÊS ANT IGO: brathir m i th is bcri
SÂNSCRITO: bhratcr m edhu asti bharasi bharati

Tais similaridades de vocabulário e gramática são encontradas


numa imensa quantidade de línguas modernas. Incluem, entre
outras, o germânico, o grego, as línguas românicas (francês, espa­
nhol, italiano, português, romeno), eslavas (russo, checo, polo­
nês, búlgaro, scrvo-croata), célticas (gaélico, irlandês, galês, bre­
tão) e indo-irânicas (persa, afegão, curdo, sânscrito, hindi, benga-
li e o romani dos ciganos). Posteriormente, outros estudiosos
acrescentaram o anatoliano (língua extinta falada na Turquia, in­
cluindo o hitita), armênio, báltico (lituano e letão) e tocário
(duas línguas extintas faladas na China). As similaridades são tão
evidentes que lingüistas reconstruíram uma gramática e um gran­
de dicionário de uma hipotética língua ancestral comum, o pro-
to-indo-europeu, e um conjunto de regras sistemáticas por meio
das quais as línguas filhas mudaram. Por exemplo, Jacob Grimm
(um dos irmãos Grimm, famosos como colecionadores de con­
tos de fadas) descobriu a regra por meio da qual p e t em proto-
indo-europeu transformou-se em jf e th em germânico, como se

321
I O in stin to d a lin gu a gem I

pode ver comparando a palavra latina pater e a palavra piter em


sânscrito com o inglês father.
As implicações disto são enormes. Alguma tribo antiga deve
ter ocupado a maior parte da Europa, Turquia, Irã, Afeganistão,
Paquistão, norte da índia, oeste da Rússia e partes da China. Essa
idéia estimulou a imaginação de um século de lingüistas e arqueó­
logos, embora até hoje ninguém realmente saiba quem foram os
indo-europcus. Alguns estudiosos engenhosos teceram hipóteses
a partir do vocabulário reconstruído. Palavras para metais, veícu­
los com rodas, implementos agrícolas, animais domesticados e
plantas sugerem que os indo-europcus eram um povo que viveu
no fim da era neolítica. A distribuição ecológica dos objetos natu­
rais para os quais existem palavras proto-indo-curopéias —olmo e
salgueiro, por exemplo, mas não oliveira ou palmeira —foi usada
para situar os falantes em algum espaço do território que vai do
interior do norte da Europa até o sul da Rússia. Combinadas com
palavras para patriarca, fortificação, cavalo e armas, as reconstru­
ções levaram à imagem de uma poderosa tribo conquistadora
saindo dc uma terra natal ancestral no dorso de cavalos, e se apos­
sando da maior parte da Europa e da Ásia. A palavra “ariano”
passou a ser associada aos indo-europcus, c os nazistas afirmavam
ser seus descendentes. Menos desvairados, os arqueólogos vincu­
laram-nos a artefatos datados de mais ou menos 3500 a.C. da
cultura kurgan das estepes do sul da Rússia, um bando de tribos
que foram as primeiras a utilizar cavalos com fins militares.
Recentemente, o arqueólogo Colin Renfrew afirmou que a do­
minação dos indo-europeus não foi uma vitória do carro de guer­
ra e sim do arado. Sua teoria polêmica é que os indo-europeus vi­
veram na Anatólia (parte da Turquia moderna), nos flancos da re­
gião do Crescente Fértil, por volta de 7000 a.C., e podem ser con­
tados entre os primeiros agricultores do mundo. A agricultura é
um método de produção em massa de seres humanos por trans­
formar terra em corpos. As filhas e filhos dos fazendeiros precisa-

322
I A Torre d e B a b el I

vam de mais terra, e, mesmo distanciando-se apenas uma ou duas


milhas de seus pais, rapidamente engolfavam os coletores-caçado-
ros menos fecundos que encontravam em seu caminho. Os arqueó­
logos concordam que a agricultura disseminou-se numa onda que
começou na Turquia por volta de 8500 a.C. e atingiu a Irlanda e a
Hscandinávia mais ou menos em 2500 a.C. Recentemente, geneti-
cistas descobriram que um certo conjunto de genes está mais con­
centrado entre povos modernos da Turquia e vai se diluindo pro­
gressivamente à medida que nos dirigimos pelos Bálcãs para o
Norte da Europa. Isso confirma a teoria originalmente proposta
pelo geneticista humano Luca Cavalli-Sforza de que a agricultura
se espalhou pelo movimento dos agricultores, com o acasalamen­
to entre seus filhos e caçadores-coletores primitivos, e não pelo
movimento das técnicas agrícolas, que os caçadores-coletores te-
riam adotado como novidade. Continua sendo uma incógnita se
esses povos eram os indo-europeus, e se eles se espalharam pelo
Irã, índia e China por meio de um processo semelhante. E uma
possibilidade fantástica. Cada vez que empregamos uma palavra
como brother, ou o passado de um verbo irregular como break~broke
ou drink-drank, estamos empregando padrões preservados da fala
dos pioneiros do acontecimento mais importante da história da
humanidade, a disseminação da agricultura.
A maioria das outras línguas humanas também pode ser agru­
pada em famílias que descendem de antigas tribos de agricultores,
conquistadores, exploradores ou nômades extremamente eficazes.
Nem toda a Europa é indo-européia. O finlandês, húngaro e esto-
niano são línguas urálicas, que, junto com o lapão, o samoiedo e
outras línguas, são remanescentes de uma vasta nação situada na re­
gião central da Rússia cerca de 7.000 anos atrás. Considera-se em
geral que o altaico inclui as principais línguas da Turquia, M on­
gólia, das repúblicas islâmicas da antiga URSS, e de boa parte da
Ásia Central e Sibéria. Desconhece-se quem foram seus primeiros
ancestrais, mas entre os mais próximos incluem-se um império do

323
I O in stin to d a lin gu a gem I

século sexto, bem como o império mongol de Genghis Khan e a


dinastia Manchu. O basco é um órfão, supostamente provenien­
te de uma ilha de europeus aborígines que resistiram à maré indo-
européia.
As línguas afro-asiáticas (ou camito-semíticas), que incluem o
árabe, hebraico, maltês, berbere e muitas línguas etíopes e egíp­
cias, dominam a África saariana e boa parte do Oriente Médio. O
resto da África está dividido em três grupos. A família khoisan
inclui o Ikung e outros grupos (anteriormente denominados “ho-
tentotes” e “bosquímanos”), cujos ancestrais em algum momento
ocuparam grande parte da África subsaariana. A família nígero-
congolesa inclui o ramo banto, falado por agricultores da África
ocidental que empurraram os khoisan para seus atuais pequenos
enclaves no sul c sudeste da África. A terceira família, nilo-saaria-
na, ocupa três grandes regiões do Saara meridional.
Na Ásia, línguas dravídicas como o tâmil dominam o sul da
índia e são encontradas em bolsões até o norte. Portanto, os fa­
lantes de dravidiano devem ser os descendentes de um povo que
ocupou a maior parte do subcontinente indiano antes da incursão
dos indo-europcus. Cerca de 4 0 línguas entre o M ar Negro e o
Mar Cáspio pertencem à chamada família caucasiana (que não
deve ser confundida com o termo racial informal aplicado aos
povos dc pele clara da Europa e Ásia). O sino-tibetano inclui o
chinês, birmanes e tibetano. O austronésio, que nada tem a ver
com a Austrália (Austr- significa “sul”), inclui as línguas dc M ada­
gascar na costa da África, Indonésia, Malásia, Filipinas, Nova
Zelândia (M aori), Micronésia, Melanésia e Polinésia, até chegar
ao Havaí —o maior contingente de povos com um extraordinário
desejo de viajar e com tez de navegador. O vietnamês e o khmer
(línguas do Camboja) entram no grupo austro-asiático. As 200
línguas aborígines da Austrália constituem uma família própria, e
as 800 da Nova Guiné também pertencem a uma família, ou talvez
a um pequeno número de famílias. O japonês e o coreano parecem

324
I A Torre d e B a b el I

órfãos lingüísticos, embora alguns lingüistas juntem uma delas ou


ambas com o altaico.
E as Américas? Joseph Greenberg, que já conhecemos antes
como pioneiro do estudo dos universais lingüísticos, também clas­
sifica línguas em famílias. Ele teve um papel importante na unifica­
ção das 1.500 línguas africanas em quatro grupos. Recentemente,
afirmou que os 200 grupos lingüísticos dos americanos nativos po­
dem ser agrupados em apenas três famílias, cada uma descendendo
de um grupo de migrantes que cruzaram o canal de Bering vindos
da Ásia há 12.000 anos ou mais. Os esquimós e aleutas foram os
imigrantes mais recentes. Foram precedidos pelos na-denê, que
ocuparam grande parte do Alasca e o noroeste do Canadá e in­
cluem algumas das línguas do sudoeste americano, como o navajo e
o apache. Isso é amplamente aceito. Mas Greenberg também propôs
que todas as outras línguas, da Baía do Hudson até a Terra do Fo­
go, pertencem a uma única família, o ameríndio. A idéia de que a
América foi ocupada por apenas três migrações recebeu alguma con­
firmação de recentes estudos realizados por Cavalli-Sforza e ou­
tros sobre os genes e padrões de arcadas dentárias dos modernos
nativos, que conformam grupos que correspondem grosseiramen­
te às três famílias de línguas.

Nesse ponto entramos num território altamente controvertido


mas potencialmente promissor. A hipótese de Greenberg foi fu­
riosamente atacada por outros estudiosos das línguas americanas.
A lingüística comparativa é um campo de estudos impecavelmen­
te preciso, em que divergências radicais entre línguas aparentadas
durante séculos ou alguns milênios podem, com toda segurança,
ser remetidas passo a passo a um ancestral comum. Lingüistas
educados nessa tradição ficam horrorizados com o método pou­
co ortodoxo de Greenberg de aglomerar dezenas de línguas ba-

325
I O in stin to d a lin gu a gem I

seando-se em grosseiras similaridades de vocabulário, em vez de


descobrir cuidadosamente vestígios de mudanças de sons e recons­
truir protolínguas. Com a minha experiência de psicolingüista ex­
perimental que lida com dados ruidosos como tempos de reação
e erros de fala, o uso que Greenberg faz de correspondências pou­
co rigorosas, ou até mesmo o fato de que alguns de seus dados
contenham erros aleatórios, não me incomoda. O que mais me in­
comoda é ele se apoiar em sensações intuitivas de similaridade e
não em estatísticas que controlem a probabilidade de correspon­
dências cspcráveis. Um observador generoso sempre pode encon­
trar similaridades cm listas dc vocabulário longas, mas isso não
implica que elas descendam de um ancestral léxico comum. Pode­
ria ser uma coincidência, como o fato dc que a palavra para “blow”
[soprar, respirar] c pneu cm grego e pniw cm klamath. (uma língua
indígena americana falada no Oregon), ou o fato dc que a palavra
para “dog” [cão] na língua aborígine australiana Mbabaram por
acaso c dog. (Outro problema sério destacado pelos críticos de
Greenberg é que as línguas podem se parecer entre si devido a em­
préstimos laterais c não por heranças verticais, como nas recentes
trocas que criaram her negligées c le weekendh)
A estranha ausência dc estatísticas também deixa no limbo um
conjunto dc hipóteses ainda mais ambiciosas, instigantes e con­
troversas sobre as famílias de línguas c o povoamento pré-históri­
co dos continentes que elas representariam. Greenberg e seu cole­
ga M crritt Rulilen estão associados a uma escola de lingüistas rus­
sos (Sergei Starostin, Aharon Dogopolsky, Vitaly Shevoroshkin e
Vladislav Illich-Svitych) que reúnem línguas de modo agressivo e
procuram reconstruir a língua mais antiga, progenitora de cada
grupo. Discernem similaridades entre protolínguas como indo-
europeu, afro-asiático, dravidiano, altaico, urálíco e esquimó-aleu-
ta, bem como as línguas órfãs, japonês e coreano, e alguns outros
grupos lingüísticos mistos, que refletiríam uma protoprotolín-
gua ancestral comum que denominam nostrático. Por exemplo, a

326
I A Torre d e B a b el I

reconstrução da palavra proto-indo-européia para amora \jnulherry


em inglês], mor, é semelhante à “amora” proto-altaica müf, à “amo­
ra” proto-urálica magi e ao “morango” [strawberry, em inglês] pro-
tokartveliano (georgiano) mar~caw. Portanto, todas as palavras
nostráticas teriam evoluído a partir da hipotética raiz nostrática
marja. De modo similar, a palavra proto-indo-européia melg, que
significa “aleitar”, parece-se com o proto-urálico malge, “seio”, e o
arábico mlg, “sugar”. O nostrático teria sido falado por uma popu­
lação de caçadores-coletores, pois não há nomes para espécies do­
mesticadas entre as 1.600 palavras que os lingüistas afirmam ter
reconstruído. Os caçadores-coletores nostráticos teriam ocupado
toda a Europa, o Norte da África e o norte, nordeste, oeste e sul
da Ásia, talvez há 15.000 anos, tendo como ponto de origem o
Oriente Médio.
E vários taxionomistas dessa escola sugeriram outra audaciosa
superfamília c supersuperfamília. Uma delas abrange a ameríndia
e a nostrática. Outra, a sino-caucasiana, abrange a sino-tibetana,
caucasiana e talvez o basco e o na-dene. Amontoando os amon­
toados, Starostin sugeriu que a família sino-caucasiana pode ser
ligada à ameríndia-nostrática, formando uma protoprotoproto-
língua que recebeu o nome de SCAN, abarcando a Eurásia conti­
nental e as Américas. A áustrica abarcaria a austronesiana, a aus-
tro-asiática c várias línguas menores na China eTailândia. Na Áfri­
ca, há quem veja similaridades entre a nígero-congolesa e a nilóti-
ca-saariana, que justificariam um grupo congo-saariano. Caso se
aceitassem todas essas fusões —e algumas mal se distinguem de
uma expressão de desejo —, todas as linguagens humanas poderíam
ser incluídas em apenas seis grupos: SCAN na Eurásia, nas Amé­
ricas e África setentrional; Khoisan e congo-saariano na África
subsaariana; áustrico no Sudeste da Àsia e oceanos Indico e Pa­
cífico; australiano; e nova-guineano.
Troncos ancestrais dessa magnitude geográfica teriam de cor­
responder às principais expansões da espécie humana, e, segundo

327
I O in stin to d a lin gu a gem I

Cavalli-Sforza e Ruhlen, correspondem. Cavalli-Sforza examinou


pequenas variações nos genes de centenas de pessoas representati­
vas do espectro completo dos grupos raciais e étnicos. Ele afirma
que juntando conjuntos de povos que têm genes semelhantes, e
depois juntando esses agrupamentos, é possível construir uma ár­
vore genealógica genética da espécie humana. A primeira bifurca­
ção separa os africanos subsaarianos de todos os outros. O ramo
contíguo divide-se por sua vez em dois, um que inclui os euro­
peus, asiáticos do Norte (incluindo japoneses e coreanos) e índios
americanos, c outro que contém os asiáticos do Sudeste e povos
das ilhas do Pacífico num sub-ramo, e os aborígines australianos
e da Nova Guine em outro. As correspondências com a hipotéti­
ca superfamília lingüística são razoavelmente claras, embora não
perfeitas. Um interessante paralelo é que o que a maioria das pes­
soas considera como mongóis ou raça oriental com base em tra­
ços faciais superficiais e coloração da pele talvez não tenha qual­
quer realidade biológica. Na árvore genealógica genética de
Cavalli-Sforza, os asiáticos do nordeste como os siberianos, japo­
neses c coreanos são mais semelhantes aos europeus que aos asiá­
ticos do Sudeste, como os chineses e tailandeses. O que é notável
é que esse agrupamento racial inusitado corresponde ao agrupa­
mento lingüístico inusitado do japonês, coreano c altaico com o
indo-curopcu na família nostrática, separado da família sino-tibe-
tana em que o chinês se encontra.
Os ramos da hipotética árvore genealógica genética/lingüísti-
ca poderíam servir para descrever a história do Homo sapiens sapiens,
desde a população africana na qual a Eva mitocondraica teria
surgido 200.000 anos atrás, até as migrações para fora da África
100.000 anos atrás através do Oriente Médio até a Europa e Ásia,
e dali , nos últimos 50.000 anos, para a Austrália, as ilhas dos ocea­
nos Indico e Pacífico, e as Américas. Infelizmente, as árvores ge­
nealógicas genética e migracional são quase tão polêmicas quanto
a lingüística, e qualquer parte dessa interessante história pode vir
a ser desmentida nos próximos anos.

328
I A Torre d e B a b el I

Aliás, a correlação entre famílias lingüísticas e grupos genéti­


cos humanos não significa que existam genes que fazem com que
certas pessoas tenham mais facilidade para aprender certas lín­
guas. Esse é um mito folclórico bastante difundido, como a afir­
mação de alguns francofalantes de que só quem tem sangue gau-
lês consegue realmente dominar o sistema de gênero, ou a insis­
tência do meu professor de hebraico em dizer que os estudantes
judeus assimilados de suas classes na universidade eram melhores
que seus colegas gentios por razões inatas. No que concerne ao
instinto da linguagem, a correlação entre genes e línguas é uma
coincidência. As pessoas armazenam genes em suas gônadas e os
transmitem a seus filhos através dos seus genitais; armazenam
gramáticas em seus cérebros e as transmitem aos filhos através de
suas bocas. Gônadas e cérebros estão vinculados nos corpos; por­
tanto, quando os corpos se movem, genes e gramáticas se movem
junto. Essa é a única razão pela qual os geneticistas encontram al­
guma correlação entre ambos. Sabemos que essa conexão é fácil
de romper, graças a experimentos genéticos denominados imigra­
ção e conquista, em que crianças recebem suas gramáticas dos cé­
rebros de outras pessoas que não seus pais. Não é preciso dizer
que os filhos de imigrantes aprendem uma língua, até mesmo uma
separada da de seus pais pelas mais profundas raízes históricas,
sem qualquer prejuízo em relação aos seus coetâneos, oriundos de
antigas linhagens de falantes daquela língua. Correlações entre ge­
nes e línguas são portanto tão precárias que só podem ser avalia­
das no nível de superfilos e raças aborígines. Nos últimos sécu­
los, a colonização e a imigração embaralharam completamente as
correlações originais entre os superfilos e os habitantes dos vá­
rios continentes; entre os anglofalantes nativos, para tomar o exem­
plo mais óbvio, temos praticamente todos os subgrupos raciais da
Terra. Muito tempo antes, a miscigenação dos europeus com seus
vizinhos e as conquistas recíprocas foram suficientemente fre­
quentes para que dentro da Europa já não haja quase correlação

329
I O in stin to d a lin gu a gem I

entre genes e famílias de línguas (embora os ancestrais dos não-


indo-europeus lapões, malteses e bascos tenham deixado alguns me­
mentos genéticos). Por semelhantes razões, famílias lingüísticas
aceitas e consagradas podem conter estranhas associações genéti­
cas, como os negros etíopes e árabes brancos na família afro-asiá-
tica, e os lapões brancos e samoiedos orientais na urálica.
Oscilando entre a alta especulação e excentricidades limítrofes,
Shevoroshkin, Ruhíen e outros vêm tentando reconstruir palavras
ainda mais antigas que os seis superfilos —o vocabulário da lín­
gua da Eva africana, “protomundo”. Ruhlcn propôs 31 raízes, tais
como fil,“um”, que teria evoluído para o proto-indo-europcu
deik, “apontar”, e cm seguida o latim digit, “dedo”, o nilótico-saa-
riano dik, “um”, o esquimó tik, “dedo indicador”, o kede tong,
“braço”, o proto-afro-asiático tak, “um”, e o proto-austro-asiático
ktíg, “braço ou mão”. Embora eu me disponha a scr paciente com
o nostrático c hipóteses semelhantes que carecem do trabalho dc
um bom estatístico com uma tarde livre, tenho grandes descon­
fianças quanto à hipótese do protomundo. (Os lingüistas compa­
rativos ficam mudos de espanto.) Não que eu duvide que a lin­
guagem tenha uma fonte única, que é um dos pressupostos por
trás da investigação da língua mãe primordial. A questão c que só
se pode buscar as origens das palavras até um certo ponto. E como
aquele homem que dizia estar vendendo o machado de Abraham
Lincoln —ele explicava que com o passar dos anos a cabeça tivera
de ser substituída duas vezes e o cabo, três. A maioria dos lingüis­
tas acredita que depois de 10.000 anos não resta nenhum vestígio
de uma língua em seus descendentes. Isso torna extremamente
duvidoso que alguém venha a encontrar vestígios conservados do
mais recente ancestral de todas as línguas contemporâneas, ou que
esse ancestral conserve por sua vez vestígios da língua dos primei­
ros seres humanos modernos, que viveram há uns 200.000 anos.

❖ ❖

330
I A Torre d e B a b el I

Este capítulo termina com uma nota triste e urgente. As lín­


guas são perpetuadas pelas crianças que as aprendem. Quando os
lingüistas encontram uma língua falada apenas por adultos, sa­
bem que ela está condenada. Por isso, eles alertam para uma tra­
gédia iminente na história da humanidade. O lingüista Michael
Krauss estima que 150 línguas dos índios norte-americanos, cer­
ca de 80% das existentes, estão moribundas. Em outras partes do
mundo, seus números são igualmente sinistros: 40 línguas mori­
bundas (90% das existentes) no Alasca e norte da Sibéria, 160
(23% ) na América Central e do Sul, 45 (70% ) na Rússia, 225
(90% ) na Austrália, talvez 3.000 (50% ) no mundo todo. So­
mente cerca de 600 línguas estão razoavelmente seguras por obra
de um grande número de falantes, digamos, um mínimo de 100.000
(embora isso nem mesmo garanta sua sobrevivência a curto prazo),
e essa suposição otimista ainda sugere que entre 3.600 e 5.400
línguas, ou seja, 90% do total mundial, estão ameaçadas de extin­
ção no próximo século.
A extinção em grande escala de línguas evoca a atual (embora
menos severa) extinção cm grande escala de plantas e espécies ani­
mais. As causas disso se sobrepõem. Línguas desaparecem pela
destruição dos hábitats de seus falantes, assim como por genocí­
dio, assimilação forçada e educação assimilatória, asfixia demo­
gráfica e bombardeio da mídia eletrônica, que Krauss chama de
“gás paralisante cultural”. Além de pôr um fim às causas sociais e
políticas mais repressivas do aniquilamento cultural, podemos pre­
venir algumas extinções lingüísticas por meio do desenvolvimento
de material pedagógico, literatura e televisão na língua indígena.
Outras extinções podem ser mitigadas pela preservação de gramá­
ticas, dicionários, textos e amostras gravadas de fala com a ajuda
de arquivos e cargos em faculdades para falantes nativos. Em al­
guns casos, como o hebraico no século vinte, o uso cerimonial
contínuo de uma língua junto com a preservação de documentos
pode ser suficiente para fazê-la reviver, desde que haja vontade
para tanto.

331
I O in stin to d a lin gu a gem I

Assim como não é sensato pensar que se possam preservar todas


as espécies da Terra, não podemos preservar todas as línguas, e tal­
vez não devéssemos. As questões práticas e morais envolvidas nisso
são complexas. Diferenças lingüísticas podem ser uma fonte de dis­
córdias mortais, e se uma geração escolhe trocar de língua e optar
por aquela falada pela maioria, que lhe promete progresso econô­
mico e social, será que algum grupo de fora tem o direito de obri­
gá-los a não fazê-lo porque gostam da idéia de que eles mantenham
a língua antiga? Deixando de lado essas complexidades, quando
3.000 línguas estranhas estão moribundas, pode-se ter certeza de que
muitas dessas mortes não são desejadas e poderíam ser impedidas.
Por que as pessoas deveríam se preocupar com línguas ameaça­
das? Para a lingüística c as ciências da mente e do cérebro que a
incluem, a diversidade lingüística revela o alcance e os limites do
instinto da linguagem. Considere apenas como seria distorcida a
nossa imagem se só se estudasse inglês! Para a antropologia e a
biologia evolutiva humana, as línguas traçam a história e geografia
da cspccie, e a extinção de uma língua (digamos, do ainu, antiga-
mente lalado no Japão por um misterioso povo caucasiano) pode
equivaler ao incêndio de uma biblioteca de documentos históricos
ou à extinção da última cspccie de um filo. Mas as razões não são
apenas científicas. Como Krauss escreve: “Qualquer língua é a
realização suprema do talento coletivo exclusivamcnte humano,
mistério tão divino e infindo quanto um organismo vivo.” Uma
língua é um meio c]ue a poesia, a literatura e a música de uma cultu­
ra jamais podem dispensar. Corremos o risco de perder tesouros
que vão do iídiche, com muito mais palavras para “simplório” do que
se dizia que os esquimós tinham para “neve”, ao damin, uma va­
riante cerimonial da língua australiana lardil, que tem um vocabu­
lário único de 200 palavras, passível de ser aprendido em um dia
mas que pode expressar todos os conceitos da fala coloquial.
Conforme disse o lingüista Ken Hale: “A perda de uma língua é
parte da perda mais geral de que o mundo padece, a perda da di­
versidade em todas as coisas.”

332
Bebê nasce falan d o —Descreve céu

9 No dia 21 de maio de
1985, um jornal chamado
Sun publicou as seguintes manchetes intrigantes:

John Wayne Gostava de Brincar de Boneca


Médicos Desonestos vendem Sangue do Príncipe Charles
por $10.000
Família Perseguida por Fantasma dc Peru
Comido no Natal
BEBÊ NASCE FALANDO - DESCREVE CÉU
Incrível prova de reencarnação

A última manchete chamou minha atenção —parecia a demons­


tração final de que a linguagem é inata. Segundo o artigo:

A vida no Céu é grandiosa, disse um bebê à estarrecida equipe obs-


tétrica segundos depois de nascer. A pequena Naomi Montefusco
veio literalmcnte ao mundo cantando louvores ao firmamento divi­
no. O milagre chocou de tal forma a equipe da sala de parto que
uma enfermeira saiu correndo e gritando pelo corredor. “O Céu
é um lugar lindo, tão quente, tão sereno”, disse Naomi, “por que vo­
cês me trouxeram para cá?” Entre as testemunhas encontrava-se a
mãe, Theresa Montefusco, 18, que pariu a criança com anestesia lo­

333
I O in stin to d a lin gu a gem I

cal... “Ouvi claramente ela descrever o Céu como um lugar onde


ninguém tem de trabalhar, comer, preocupar-se com roupas, ou fa­
zer qualquer outra coisa senão cantar louvores a Deus. Tentei levan­
tar da mesa de parto para me ajoelhar e rezar, mas as enfermeiras
não deixaram.”

È claro que os cientistas não podem levar ao pé da letra tais re­


portagens; qualquer descoberta importante tem de ser repetida.
Uma repetição do milagre corsa, desta vez emTaranto, Itália, ocor­
reu cm 31 de outubro de 1989, quando o Sun (que acredita firme­
mente na reciclagem) publicou a manchete “BEBE NASCE FA­
LANDO —DESCREVE CÉU. As palavras do bebê provam que a
rccncarnação existe”. Uma descoberta semelhante foi relatada em
29 dc rnaio dc 1990: “BEBÊ EALA E DIZ: SOU A REENCAR-
NAÇÃO DE NATA LIE WOOD". Depois, em 29 dc setembro
de 1992, uma segunda repetição, relatada nas mesmas palavras da
original. E, em 8 de junho de 1993, a chamada: “INCRÍVEL BEBÊ
DE 2 CABEÇAS É PROVA DE REENCARNAÇÃO. UMA
CABEÇA FALA INGLÊS - A OUTRA, LATIM ANTIGO”.
Por que histórias como a de Naomi só ocorrem na ficção, nun­
ca na realidade? A maioria das crianças não começa a falar antes dc
completar um ano, não combina palavras antes dc um ano c meio,
e não sc exprime com frases gramaticais fluentes antes dos dois
ou três anos. O que acontece durante esses anos? Deveriamos per­
guntar por que as crianças levam tanto tempo para falar? Ou será
que a capacidade que uma criança dc três anos tem de descrever a
Terra é tão miraculosa quanto a capacidade dc um recém-nascido
de descrever o Céu?
Todos os bebês vêm ao mundo com dotes lingüísticos. Sabe­
mos disso por causa da engenhosa técnica experimental (discutida
no Capítulo 3) em que se mostra repetidamente a um bebê um
sinal até que ele se enfastie, momento em que o sinal é modifica­
do; se o bebê volta a ficar animado é porque é capaz de perceber a

334
I B eb ê nasce falando —D escreve céu I

diferença. Já que os ouvidos não se movem como os olhos, os psi­


cólogos Peter Eimas e Peter Jusczyk imaginaram uma maneira di­
ferente de ver o que uma criança de um mês acha interessante.
Colocaram dentro de uma chupeta um dispositivo conectado a
um gravador, de modo tal que, quando o bebê sugava, a fita toca­
va. Quando a fita repetia monotonamente ba ba ba ba..., os bebês
demonstravam seu fastio sugando mais lentamente. Mas, quando
as sílabas mudavam para pa pa pa..., os bebês começavam a sugar
com mais vigor, para escutar mais sílabas. Além disso, não escuta­
vam as sílabas apenas como sons brutos; usavam o sexto sentido,
a percepção da fala: dois ba que diferem acusticamente entre si
tanto quanto um ba difere de um. pa, mas que são ambos escutados
como ba por adultos, não reavivavam o interesse das crianças. E
parece que elas identificam fonemas, como b, em meio ao bom­
bardeio de sílabas. Como os adultos, escutam a mesma extensão
de som como b sc ele aparece numa sílaba curta e como w se apa­
rece numa sílaba longa.
As crianças vêm equipadas com essas habilidades; não as apren­
dem por escutar a fala dos pais. Bebês kikuyu e espanhóis discri­
minam os ba c pa ingleses, que não são usados em kikuyu ou espa­
nhol e que seus pais não conseguem discriminar. Crianças de me­
nos de seis meses que aprendem inglês distinguem fonemas usados
em checo, hindi e inslekampx (uma língua americana nativa), mas
adultos que falam inglês não conseguem fazê-lo, nem mesmo de­
pois de quinhentas tentativas de treinamento ou um ano de curso
universitário. No entanto, os ouvidos adultos conseguem separar
os sons quando as consoantes são retiradas das sílabas e apresen­
tadas sozinhas como sons esganiçados; só não conseguem distin-
gui-las enquanto fonemas.
O artigo do Sun é um tanto escasso em detalhes, mas podemos
conjeturar que, se Naomi foi compreendida, ela deve ter falado
em italiano, não em protomundo ou latim antigo. Também outras
crianças devem vir ao mundo com algum conhecimento da língua

335
I O in stin to d a lin gu a gem I

de suas mães. Os psicólogos Jacques Mehler e Peter Jusczyk de­


monstraram que bebês franceses de quatro dias sugam com mais
força quando escutam francês do que quando escutam russo, e
aceleram mais a sucção quando a gravação muda do russo para o
francês do que do francês para o russo. Não se trata de uma incrí­
vel prova de reencarnação; a melodia da fala materna penetra em
seus corpos e é audível na barriga. Os bebês continuam preferin­
do o francês quando a fala é eletronicamente filtrada para que os
sons de consoantes e vogais sejam abafados e só a melodia passe.
Mas ficam indiferentes quando as fitas são tocadas de trás para
frente, o que preserva as vogais e algumas consoantes mas distor­
ce a melodia. Isso tampouco prova a beleza do idioma francês:
crianças não francesas não preferem francês, e crianças francesas
não distinguem italiano de inglês. Os bebês devem ter aprendido
algo sobre a prosódia do francês (sua melodia, tonicidadc c rit­
mo) na barriga, ou em seus primeiros dias fora dela.
Bebês continuam a aprender os sons de suas línguas durante o
primeiro ano. Por volta dos seis meses, começam a juntar sons dis­
tintos que suas línguas reúnem num só fonema, ao mesmo tempo
que continuam a discriminar de modo equivalente sons distin­
tos que suas línguas mantem separados. Por volta dos dez meses
não são mais foncticistas universais mas sc parecem com os pais; não
distinguem fonemas checos ou inslekampx a não ser que sejam
bebês checos ou inslekampx. Fazem essa transição antes de emi­
tir ou compreender palavras, portanto sua aprendizagem não po­
de depender de conseguir correlacionar som e sentido. Ou seja,
não podem estar procurando escutar a diferença de som existente
entre uma palavra que eles acreditam significar bit e uma palavra
que acreditam significar beet1, porque ainda não aprenderam nenhu­
ma dessas palavras. Devem estar classificando os sons diretamen­

I. Palavras cm inglcs cuja diferença está na tensão e duração da vogal. Bit significa pedacinho,
pouquinho, e beet, beterraba. (N . d a T )

336
I Bebê n a sce fa la n d o - Descreve céu I

te, sintonizando de alguma maneira seu módulo de análise da fala


para emitir os fonemas usados em sua língua. Esse módulo prova­
velmente serve de unidade avançada do sistema que aprende pala­
vras e gramática.
Durante o primeiro ano, os bebês também vão aparelhando
seus sistemas de produção da fala. Primeiro, a ontogênese recapi-
tula a filogênese. Um recém-nascido tem um aparelho fonador
igual ao de um mamífero não humano. A laringe sobe como um
periscópio e se encaixa nas fossas nasais, forçando o bebê a respi­
rar pelo nariz e fazendo com que seja anatomicamente possível
mamar e respirar ao mesmo tempo. Por volta dos três meses, a la­
ringe já desceu profundamente na garganta, abrindo a cavidade
atrás da língua (a faringe), que possibilita que ela se mova para a
frente c para trás e produza a variedade de sons vocálicos usados
por adultos.
Nada de grande interesse lingüístico acontece durante os pri­
meiros dois meses, quando bebês emitem gritos, grunhidos, sus­
piros, estalos, oclusõcs e explosões associados à respiração, ali­
mentação c protestos, ou mesmo durante os próximos três, quan­
do aparecem arrulhos c risadas. Entre cinco e sete meses, os bebês
começam antes a brincar com sons do que a usá-los para expres­
sar seus estados físicos e emocionais, e suas seqücncias dc cliques,
murmúrios, semivogais e semiconsoantes, trinados, silvos e bico-
tas começam a soar como consoantes e vogais. Entre sete e oito
meses, começam de repente a balbuciar sílabas verdadeiras como
ba-ba-ba, nê-nê~nê e dí~di~di. Os sons são os mesmos em todas as
línguas, e consistem em padrões de fonemas e sílabas geralmente
comuns a todas as línguas. Por volta do final do primeiro ano, os
bebês variam suas sílabas, como nê-ni, da-di e mê~nê, e emitem aque­
la algaravia deliciosa que lembra frases.
Nos últimos anos, pediatras salvaram a vida de muitos bebês
com anormalidades respiratórias inserindo um tubo em suas tra-
quéias (os pediatras treinam com gatos, cujas vias aéreas são seme-

337
I O in stin to d a lin gu a gem I

lhantes às nossas), ou abrindo cirurgicamente um orifício em sua


traquéia abaixo da laringe. Assim, os bebês não conseguem pro­
duzir sons sonoros [em oposição a surdos] durante o período nor­
mal de balbucio. Quando as vias aéreas normais são restauradas
no segundo ano de vida, essas crianças apresentam um severo re­
tardo no desenvolvimento da fala, embora acabem por recuperá-
lo sem problemas permanentes. O balbucio de crianças deficien­
tes auditivas sc dá mais tarde e é mais simples —no entanto, sc os
pais usarem a linguagem de sinais, acabam balbuciando, no tempo
previsto, com as mãos!
Por que o balbucio é tão importante? O bebê é como uma pes­
soa que ganhou um complicado equipamento de áudio cheio dc
botões e comutadorcs, sem legenda c sem manual dc instruções.
Nessas situações, as pessoas recorrem ao que os hackcrs chamam
ácfrobbing~fitJdlitigz a esmo com os controles para ver o que aconte­
ce. A criança recebeu um conjunto de comandos neurais que po­
dem mover os articuladores em todos os sentidos, com efeitos
muito variáveis sobre o som. Ao escutar seu próprio balbucio, na
verdade os bebês escrevem seu próprio manual de instrução; apren­
dem quanto devem mover que músculo cm t]uc sentido para obter
que mudança no som. Esse é um prc-rcquisito paia poder repro­
duzir a fala dos pais. Alguns cientistas da computação, inspirados
nos bebês, acreditam que um bom robô deveria aprender um mode­
lo de software interno de seus articuladores observando as conse­
quências de seus próprios balbucios e erros.

Pouco antes de seu primeiro aniversário, os bebês começam a


compreender palavras e, ao completarem um ano, começam a emi-2

2. Significa algo como apertar, virar, puxar, remexer, tudo ao mesmo tempo. (N. daT.)

338
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

ti-las. Palavras são geralmente emitidas isoladamente; essa fase de


uma palavra pode durar de dois meses a um ano. Há mais de um
século, e em todas as partes do globo, cientistas vêm mantendo
um diário das primeiras palavras de seus filhos, e as listas são qua­
se idênticas. Quase metade das palavras são para objetos: comida
(suco, biscoito), partes do corpo (olho, nariz), roupas (fralda, meia), v eí­
cu lo s (carro, barco), brinquedos (boneca, bloco), apetrechos domésti­
cos (garrafa/mamadeira, luz), animais (cachorro, gatinho) e pessoas
(ãadá, nenê). (A primeira palavra do meu sobrinho Eric foi Batman.)
Há palavras para ações, movimentos e fórmulas fixas, como cima,
fora, abre, achou!, come e vai, e modificadores, como quente, acabou, mais,
sujo c frio. Finalmente, há fórmulas usadas na interação social,
como sim, não, quero, tchau e oi —algumas das quais, como olha isso e
o que é isso, são palavras no sentido de listcmas (trechos memoriza­
dos), embora não sejam, pelo menos para o adulto, palavras no
sentido dc produtos morfológicos e átomos sintáticos. As crian­
ças diferem entre si na quantidade de objetos que nomeiam ou no
quanto interagem socialmcnte usando fórmulas memorizadas. Os
psicólogos dedicaram muito tempo a especular sobre as causas
dessas diferenças (sexo, idade, ordem de nascimento, e condição
sociocconômica foram examinados), mas a meu ver o mais plausí­
vel é que bebês são pessoas, só que menores. Algumas se interes­
sam por objetos, outras gostam dc papear.
Uma vez que as fronteiras entre palavras não existem fisicamen­
te, é surpreendente que as crianças tenham tanta facilidade para
encontrá-las. Um bebê é como o cão com o qual gritam na tira de
Gary Larson:

O “Muito bem, Ginger! Estou cheio!


Q U H D IZ E M O S A O S C Ã ES:

Fique longe do lixo! Entendeu, Ginger? Fique longe do lixo, senão!”


“Blá blá GINGER blá blá blá blá blá blá blá
O Q U E ELES O U V E M :

blá GINGER blá blá blá blá blá.”

339
I O in stin to d a lin gu a gem I

Supõe-se que as crianças gravem algumas palavras que os pais


usam isoladamente, ou em posições finais enfatizadas, como Olhe-
para-a MAMADELRA. Depois procuram pares para essas palavras
em trechos maiores de fala, e encontram outras palavras ao extraí­
rem os resíduos entre as porções que combinam. Vez por outra er­
ram por pouco, produzindo gargalhadas entre os membros da
família:

I donc want to go to your ami. [a partir de Miami]


I am heyv! [a partir de Behavef\
Daddy, when you go tinkle youre an eight, and when I go tinkle I’m
an eight, right? [a partir dc urinate]
I know I sound like Larry, but whos Gitis? [a partir dc laryngilis\
Daddy, why do you call your character Sam Alonc? [a partir dc Sarn
Malone, o barman do seriado Cheers]
The ants are my friends, theyre blowing in the wind. [em vez dc The
answer, myfriend, is blowing in the w ínãf

Mas esses erros são surpreendentemente raros, e é claro que os


adultos também os cometem às vezes, como em Pullet Surprise c
doggy-iog elo Capítulo 6. Num episódio do show de televisão Hill
Street Blues, o oficial dc polícia do departamento de justiça (JD),
Laruc, começa a paquerar uma estudante sccundarista bonitinha.
Seu parceiro, Neal Washington, diz: “Tenho apenas três palavras
para lhe dizer, JD, Statue. Tory. Rape.”34

V V ❖

3. Eu não quero ir para a sua ami (Miami ~ my amis m y = meu amigo],/Sou hcyoJ (Behave ~ be
heyo, seja hcyo)/Papai, quando você vai fazer xixi é um oito e quando eu vou fazer xixi sou
um oito, cerro? ( urinate = you 're an eight)/Sei que pareço Larry, mas quem é Gitis?/ Papai,
por que o nome de seu personagem é Sam Sozinho?/ As formigas são minhas amigas, cias
estão soprando no vento (answer S ants are). (N. daT.)
4. Delinqücncia juvenil (JD). Estátua. Conservador. Estupro, que faz homofonia com statu-
tory rape, estupro segundo a lei. (N. daT.)

340
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

Por volta dos dezoito meses, a linguagem deslancha. O incre­


mento de vocabulário ganha a velocidade de no mínimo uma-
palavra-nova-a-cada-duas-horas, que a criança irá manter até o
fim da adolescência. E a sintaxe tem início, com cadeias contendo
o mínimo que ela exige: duas palavras. Eis alguns exemplos:

Tudo seco. Que bagunça. Tudo molhado.


Eu sento. Eu fecho. Cam a não.
X ixi não. V ê bebê. V ê bonito.
M ais ccrcaJ. M ais quente. Oi Calico.
Outro saco. T ira bota. Sirene passa.
Carta chega. Avião foi. Tchau carro.
Nosso carro. Papai fora. Calça seca.

As combinações de duas palavras das crianças têm sentidos tão


semelhantes no mundo todo que parecem traduções umas das ou­
tras. As crianças anunciam quando os objetos aparecem, desapare­
cem e se movem, mostram suas propriedades e donos, comentam
que as pessoas estão fazendo e vendo coisas, rejeitam e pedem ob­
jetos c atividades, c perguntam sobre quem, o c]ue e onde. Essas
microfrases já refletem a aquisição da linguagem em andamento:
em 95% delas, as palavras estão na ordem correta.
Há mais coisas ocorrendo na mente das crianças do que o que
sai por suas bocas. Antes de conseguirem juntar duas palavras, os
bebês compreendem uma frase usando sua sintaxe. Por exemplo,
num experimento, bebês que só falavam palavras isoladas foram
postos sentados na frente de duas telas de televisão, em cada uma
das quais apareciam dois adultos vestidos, de modo pouco veros­
símil, de Come-Come e Garibaldo, personagens de Vila Sésamo.
Uma tela mostrava Come-Come fazendo cócegas em Garibaldo; a
outra mostrava Garibaldo fazendo cócegas em Come-Come. A
voz de um narrador dizia: "Ó,VEJA'!! GARIBALDO ESTÁ FA­
ZENDO CÓCEGAS EM COME-COME!! ENCONTRE
GARIBALDO FAZENDO CÓCEGAS EM COME-COME!!”
(ou vice-versa). As crianças devem ter entendido o significado da

341
I O instinto da linguagem I

ordem sujeito, verbo e objeto —olhavam mais para a tela que des­
crevia a frase do narrador.
Quando as crianças passam a juntar palavras, estas parecem
deparar com um gargalo na hora de sair. As expressões de duas ou
três palavras das crianças parecem amostras extraídas de frases po­
tencialmente mais longas que exprimem uma idéia completa e mais
complicada. Por exemplo, o psicólogo Roger Brown notou que,
embora as crianças por ele estudadas nunca produzissem uma fra­
se tão complicada como A mamãe deu almoço para o João na cozinha,
produziam scqüências que continham todos esses componentes, c
na ordem correta:

AGHNTH AÇÃO OBJ НТО Rlia-PTOR LOCALIZAÇÃO


(Mãe deu almoço para o João na cozinha.)
Mamãe arruma.
Mamãe abóbora.
Nenc mesa.
Dá uau-uau.
Acende luz.
Põe chão.
Hu ando cavalinho.
Trator anda chão.
Dá jornal uau-uau.
Põe caminhão janela.
Adam põe isso caixa.

Se dividíssemos o desenvolvimento da linguagem em fases um


tanto arbitrárias, como Balbucio de Sílabas, Balbucio Tagarela, Es­
tágio de Uma Palavra e Estágio Telegráfico (Seqüências de Duas
Palavras), a fase seguinte teria de ser chamada de Grande Explosão.
Entre o final do segundo ano e meados do terceiro, a linguagem
das crianças transforma-se numa conversa gramatical fluente, de-

342
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

sabrochando de maneira tão rápida que desconcerta os pesquisa­


dores, e até agora ninguém conseguiu descobrir a seqüência exata
desse progresso. O comprimento das frases aumenta de modo
constante e, pelo fato de a gramática ser um sistema combinató-
rio discreto, o número de grupos sintáticos aumenta exponencial-
mente, dobrando a cada mês, e chegando a 1.000 antes do tercei­
ro aniversário. Para ter uma idéia dessa explosão, veja como a fala
de um menininho chamado Adam se sofistica no decorrer de um
ano, a partir de suas primeiras combinações de palavras aos dois
anos e três meses ( “2 ;3 ”):

2;3: Play chedcers. Big drum. I got horn. A bunny-rabbit walk.


2;4: See marching bear go? Screw part machine. That busy bulldo­
zer Стек.
2;5: Now put boots on. Where wrcnch go? Mommy talking bout
lady. What that paper clip doing?
2;6: Write a picce a paper. What that cgg doing? I lost a shoe. No,
1 don’t want to sit scat.
2;7: Where piecc a paper go? Ursula has a boot on. Going to see
kitten. Put thc cigarettc down. Dropped a rubbcr band. Sha-
dow has hat just like that. Rintintin dont fly, Mommy.
2;8: Lct me gct down with the boots on. Don’t be afraid a horses.
How tiger bc so hcalthy and fly like kite? Josliua throw like a
penguin.
2;9: Where Mommy kccp her pocket book? Show you somcthing
funny. Just like turtlc make mud pie.
2; 10: Look at that train Ursula brought. I simply don’t want put in
chair. You don’t have paper. Do you want little bit, Cromer? I
can’t wear it tomorrow.
2;II: That birdie hopping by Missouri in bag. Do want some pie
on your face? Why you mixing baby chocolate? I fmish drin-
king ali up down my throat. I said why not you coming in?
Look at that piece a paper and tell it. Do you want me tie that
round? We going turn fight on so you can’t see.

343
I O instinto da linguagem I

3;0: I going come in fourteen minutes. I going wear that to wed-


ding. I see what happens. I have to save them now. Those are
not strong mens.They are going sleep in wintertime. You dress
me up like a baby elephant.
3; I: I like to play with something else. You know how to put it
back together. I gon’ make it like a rocket to blast off with. I
put another one on the floor. You went to Boston University?
You want to give me some carrots and some beans? Press the
button and catch it, sir. I want some other peanuts. Why you
put thc pacifier in his mouth? Doggies like to climb up.
3;2: So it can’t bc clcancd? I broke my racing car. Do you know the
light wents off? What happened to the bridge? When its got
a ílat tire its nced a go to the station. I dream sometimes. I’m
going to mail this so thc letter can’t come off. I want to have
some espresso. Thc sun is not too bright. Сап I have some
sugar? Сап I put my licad in thc mailbox so thc mailman can
know where I are and put me in thc mailbox? Сап I kccp thc
screwdriver just like a carpenter keep the screwdriver?

Nas crianças normais pode haver uma diferença de um ano ou


mais cm termos da velocidade de desenvolvimento da linguagem, mas
as fases pelas quais elas passam são geralmente as mesmas, indepen-
dcnfcmcntc dc cias serem mais longas ou mais curtas. Escolhí mos-
trar-Ihcs a fala dc Adam porque seu desenvolvimento da linguagem c
bastante lento sc comparado com o dc outras crianças. Evc, outra
criança estudada por Brown, emitia frases como estas antes dos dois
anos de idade:

I got peanut butter on the paddle.


I sit in my high chair yesterday.
Fraser, the dolls not in your briefease.
Fix it with the scissor.
Sue making more coffee for Fraser.

As fases de seu desenvolvimento da linguagem se condensaram


no período de poucos meses.

344
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

Muitas coisas ocorrem durante essa explosão. As frases das


crianças não só ficam mais compridas mas também mais comple­
xas, com árvores mais densas, porque as crianças consegue juntar
um constituinte com outro. Se antes elas diziam Dá jornal uau-uau
(um sintagma verbal de três galhos) e Uau-uau grande (um sintag­
ma nominal de dois galhos), agora dizem Dá jornal uau~uau grande,
com o NP de dois galhos associado ao VP de três galhos. As pri­
meiras frases pareciam telegramas, sem termos functivos não en­
fáticos como o, a, em, para ou flexões de verbos. Por volta dos três
anos, as crianças costumam com mais freqüência empregar do que
omitir esses termos functivos, muitas delas em mais de 90%
das frases que exigem seu uso. Surge todo um conjunto de ti­
pos de frases —perguntas com palavras como quem, o que e onde, ora­
ções relativas, comparativas, negações, complementos, conjunções
e passivas.
Embora muitas —talvez a maioria —das frases dos pequenos
de três anos sejam agramaticais por um motivo ou outro, não de­
veriamos ser muito severos em nosso juízo, porque há muitas coi­
sas que podem dar errado numa simples frase. Quando pesquisa­
dores enfocam uma regra gramatical e contam quantas vezes uma
criança a respeita e quantas vezes a desconsidera, os resultados são
impressionantes: cada regra escolhida c respeitada pelas crianças
de três anos na maioria das vezes. Como vimos, crianças raramen­
te misturam a ordem das palavras e, por volta dos três anos, em­
pregam a maioria das flexões e termos functivos em frases que os
exigem. Embora nossos ouvidos se agucem quando escutamos er­
ros como mens, wents, Can you broke those?, What he can ride in?, That’s a
furnítm e, Button me the rest e Going to see kitten, os erros ocorrem em
apenas 0,1% a 8% das oportunidades que se tem de cometê-los;
em mais de 90% das vezes a criança acerta. A psicóloga Karin
Stromswold analisou frases contendo auxiliares na fala de treze
crianças em idade pré-escolar. O sistema de auxiliares em inglês
(que inclui palavras como can, should, must, he, have e doj é conhecido

345
I O instinto d a lin g u a gem I

entre os gramáticos por sua complexidade. Em termos lógicos,


existem cerca de vinte e quatro quatrilhões de combinações de au­
xiliares possíveis (por exemplo, He have might eat; He did be eating), das
quais apenas cem são gramaticais (H e might have eaten; He has heen
eating). Stromswold queria contar quantas vezes as crianças eram
seduzidas por dezenas de tipos de erros tentadores no sistema de
auxiliares —isto é, erros que pudessem ser generalizações naturais
dos padrões de frase que as crianças escutam dos pais:

PADKÕUS 1)0 INGLÍiS ADI )i:i O I-RROS Q (Ш UMA CRIANÇA POOHRJA


c;omhthr

H e scems happy. —> Does be secm Hc is smiling. —>Does he be smiling?


happy? She could go. —> Does she cotild go?
I Ic did eat. —> He didnV eat. He did a few tliings. —>He didnt a fcw
things.
í Ie did cat. —> Did hc eat? Hc did a fcw things. —>Did hc a few
things?
I like going. —> Hc likes going. I can go. —>Ide cans go.
I am going. —» Hc ams (ом bes) going.
Thcy want to sleep. —>Thcy wanted to l ’hey are sleeping. —>1’hey arc’d (ои
slecp. becl) sleeping.
Hc is happy. —>Hc is not happy. I к ate somet hing. —^ He ate not
something.
He is happy. —>Is he happy? Hc ate something. —> Ate hc
something?

Em praticamente todos esses padrões, ela não encontrou nenhum


erro nas 66.000 frases em que eles poderiam ter ocorrido.
A criança de três anos é gramaticalmente correta em qualida­
de, não só em quantidade. N os capítulos precedentes tomamos
conhecimento de experimentos que demonstram que as regras de
deslocação das crianças são dependentes da estrutura ( “Pergunte
a Jabba se o menino que está triste está assistindo Mickey Mouse”),

346
I B eb ê n a sce fa la n d o — D escreve céu I

e que mostram que seus sistemas morfológicos estão organizados


em camadas de raízes, radicais e flexões ( “Esse monstro gosta de
comer ratos; que nome você daria a ele?”). As crianças também
parecem estar plenamente preparadas para a Babel de línguas que
possam encontrar: rapidamente adquirem a ordem livre de pala­
vras, ordens SOV e VSO, sistemas complexos de casos e concor­
dância, cadeias de sufixos aglutinados, marcadores ergativos de ca­
so, ou qualquer outra coisa que suas línguas lhes proponham, com
nenhum retardo em comparação com seus contemporâneos an-
glofalantes. Línguas com gêneros gramaticais como francês e ale­
mão são o terror dos estudantes da escola de línguas Berlitz. Em
seu ensaio “Os horrores da língua alemã”, M ark Twain nota que
“árvore é masculino, seus brotos femininos, suas folhas, neutras;
cavalos não têm sexo, cães são masculinos, gatos, femininos —inclu­
sive os machos”. Ele traduziu uma conversa extraída de um livro
de uma escola dominical alemã da seguinte maneira:

Grctchen: Wilhclm, onde está a nabo?


Wilhelm: Ela foi para a cozinha.
Grctchen: Onde está a fina e linda inglesa moça?
Wilhelm: Isso foi para a ópera.

Mas os pequeninos que aprendem alemão (e outras línguas com


gêneros) não ficam horrorizados; adquirem as marcações de gêne­
ro rapidamente, cometem poucos erros e nunca usam a associação
com masculinidade e feminilidade como falso critério. Pode-se
afirmar com segurança que, exceto no caso de construções raras,
usadas predominantemente em linguagem escrita, ou que exigem
um esforço mental até de um adulto (como O cavalo em quem o ele­
fante fez cócegas beijou o porcoj, todas as línguas são adquiridas, com
igual facilidade, antes que a criança complete quatro anos.
Os erros que as crianças cometem raramente são uma boba­
gem qualquer. Geralmente seguem a lógica da gramática de mo­

347
O in stin to d a lin gu a gem I

do tão maravilhoso que o enigma não está em por que as crian­


ças cometem os erros, mas em por que eles soam como erros pa­
ra o ouvido adulto. Deixe-me dar dois exemplos que estudei mi­
nuciosamente.
Talvez o erro infantil mais comum seja generalizar em excesso
—a criança coloca um sufixo regular, como o plural -s ou o passa­
do -ed, numa palavra que forma seu plural ou seu passado de mo­
do irregular. Assim, a criança diz tooths e mouses5 e enuncia formas
verbais como estas:

My tcacher holded thc baby rabbits and we patted them.


Hey, Horton hcarcd a Who.
I finded Rcnée.
I lovc cut-uppcd egg.
Oncc upon a time an alligator was eating a dinosaur and thc dino-
saur was eating the alligator and the dinosaur was caten by thc
alligator and the alligator goed kerplunk.

Essas formas soam erradas para nós porque o inglês contém


cerca dc 180 verbos irregulares como held, heard, cu te went —muitos
deles herdados do proto-indo-europeu! cujas formas de passa­
do não podem ser previstas por uma regra c têm de ser decoradas.
A morfologia está organizada dc tal forma que, sempre que um
verbo tem uma forma idiossincrática listada no dicionário mental,
a regra regular -ed é bloqueada: goed parece agramatical porque está
bloqueado por went. Em todos os outros casos, a regra regular se
aplica livremente.
Então, por que as crianças cometem esse tipo de erro? A expli­
cação é simples. Como as formas irregulares têm de ser memori­
zadas e a memória é falível, cada vez que a criança tenta usar uma
frase no passado com um verbo irregular mas não lembra de cor a

5. Em vez de teetb e mice. (N. da T.)

348
I B eb ê n a sce fa la n d o — D escreve céu I

forma de seu passado, a regra regular vem preencher o vazio. Se a


criança quer usar o passado de hold mas não consegue encontrar
held, a regra regular, aplicada na falta de algo melhor, cria holded.
Sabemos que a memória falível é a causa desses erros, porque os
verbos irregulares usados com menos freqüência pelos pais ( drank
e knew, por exemplo) são aqueles que seus filhos mais erram; no
que se refere aos verbos mais comuns, as crianças geralmente acer­
tam. O mesmo acontece com os adultos: formas irregulares de
menor freqüência, mais difíceis de serem lembradas, como trod, stro-
ve, dwelt, rent, slew e smote, soam estranhas para os ouvidos americanos
modernos e tendem a ser regularizadas como treaded, strived, dwelled,
rended, slayed e smited. Já que somos nós, os grandes, que estamos
esquecendo o passado irregular, temos de declarar que as formas
com -ed não são erros! Com efeito, ao longo dos séculos mui­
tas dessas conversões tornaram-se permanentes. O inglês antigo
e médio tinha cerca de duas vezes mais verbos irregulares que o in­
glês moderno; se Chaucer estivesse vivo, ele lhe diria que os passa­
dos de to chíde, to geld, to abíde e to cleave são chíd, gell, abode e clove. Com
o passar do tempo, verbos podem perder popularidade, e é pos­
sível imaginar uma época em que, digamos, o verbo to gell' tivesse
mergulhado tão fundo na memória que a maioria dos adultos
passava a vida toda escutando apenas muito raramente sua forma
de passado gelt. Pressionados, teriam usado gelded; o verbo tinha se
tornado regular para eles e todas as gerações subseqüentes. Esse
processo psicológico não é diferente do que acontece quando uma
criança pequena passa sua breve vida escutando apenas raramente
a forma passada built e, ao ser pressionada, diz builded. A única
diferença é que a criança está rodeada de adultos que ainda usam
built. Com o passar do tempo, a criança escuta built cada vez mais,
a entrada do dicionário mental para built torna-se mais forte e6

6. Castrar aparece nos dicionários com duas formas de passado: gelt e gelded. (N. daT.)

349
I O in stin to d a lin gu a gem I

vem à cabeça de forma cada vez mais rápida, cancelando a regra


“acrescente -ed” em cada oportunidade.
Eis um outro conjunto adorável de exemplos da lógica grama­
tical infantil, descoberto pela psicóloga Melissa Bowerman:

Go me to the bathroom before you go to bed.


The tiger will come and eat David and then he will be died and I
wont have a little brother any more.
I want you to take me a camel ride over your shoulders into my
room.
Be a hand up your nose.
Don’t giggle me!
Yawny Baby —you can push her mouth open to drink her.78

Estes são exemplos da regra causativa, encontrada em inglês e


em muitas outras línguas, que pega um verbo intransitivo com sig­
nificado de “fazer algo” e o transforma num verbo transitivo com
significado de “causar algo”:

The butter melted. —>Sally melted the butter.


The bali bounccd. —>Hiram bounced the bali.
The horse raced past the barn. —>The jockey raccd the horse past
thc barn."

A regra causativa pode ser aplicada a alguns verbos, não a ou­


tros; as crianças acabam aplicando essa regra com excessivo entu­
siasmo. Mas não é fácil, nem mesmo para um lingüista, dizer por

7. Ao pé da letra: Vai-me ao banheiro antes de você ir para a cam a./0 tigre vai vir e comer
David c então ele será morrido e eu não terei mais irmãozinho./Quero que você me leve
um passeio de camelo nos seus ombros até meu quarto./Seja uma mão até o nariz./Nao
me rií/Bebe que boceja —você pode abrir a boca dela para bebê-la. (N. daT.)
8. A manteiga derreteu —>Sally derreteu a manteiga; A bola pulou —> Hiram fez a bola pu­
lar; O cavalo passou correndo pela cocheira —> O jóquei passou correndo a cavalo pela
cocheira. (N. da T )

350
I B eb ê n asce fa la n d o - D escreve céu I

que, em inglês, uma bola pode pular ou ser pulada, e um cavalo


pode correr ou ser corrido, mas um irmão só pode morrer e não
ser morrido, e uma menina só pode rir nervosamente, mas não ser
“rida”. Apenas poucos tipos de verbos submetem-se a essa regra:
verbos que se referem à mudança de estado físico de um objeto,
como melt e break [derreter e quebrar], verbos relativos a um tipo
de movimento, como bounce e slide [pular e escorregar], e verbos
que se referem a locomoção acompanhada, como race e dance [cor­
rer com carro, cavalo, e dançar]. Outros verbos, como go e díe [ir e
morrer], não se submetem a essa regra em inglês, e verbos que en­
volvem ações totalmente voluntárias, como cook e play [cozinhar e
tocar, brincar], não se submetem a essa regra em quase todas as
línguas (e as crianças raramente se equivocam no uso deles). Na
verdade, a maioria dos erros das crianças em inglês poderia ser
gramatical em outras línguas. Anglofalantes adultos, assim como
seus filhos, às vezes ampliam a extensão da regra:

In 1976 the Parti Québecois began to deteriorate the health care


system.
Sparkle your table with Cape Cod classic glass-ware.
Well, that decided me.
This ncw golf bali could obsolete many golf courses.
If she subscribes us up, she’ll get a bonus.
Sunbeam whips out the holes where staling air can hide.9

Portanto, tanto crianças como adultos forçam um pouco a lín­


gua para expressar causação; a diferença é que os adultos são um
pouco mais melindrosos em relação aos verbos que eles forçam.

9. Ao pé da letra: Em 1976, o Partido Québecois começou a deteriorar o sistema de saúde./


Faíscjuc sua mesa com o clássico jogo de copos Cape Cod./Bem, isso me decidiu./Essa
nova bola de golfe pode obsoletar muitos campos de golfe./Se ela nos assinar, receberá um
bônus./Sunbeam cobre os buracos onde ar viciado pode se armazenar. (N. da X )

351
I O in stin to d a lin gu a gem I

Portanto, a criança de três anos é um gênio gramatical —domi­


na a maioria das construções, é bem mais fiel que infiel às regras,
respeita os universais da linguagem, erra de maneira sensata como
se fosse um adulto, ao mesmo tempo que evita vários tipos de er­
ros. Como elas conseguem fazer isso? Crianças dessa idade são
reconhecidamente incompetentes em muitas outras atividades.
Ninguém as deixaria dirigir carros, votar ou freqüentar a escola;
elas ficam muito atrapalhadas em tarefas estúpidas como escolher
contas por ordem de tamanho, decidir se uma pessoa pode perce­
ber um fato que aconteceu quando ela estava ausente do quarto, e
saber que o volume de um líquido não muda quando ele passa de
um recipiente baixo e largo para um alto e estreito. Portanto, não
fazem isso em função do mero poder de sua sagacidade generali­
zada. Tampouco poderíam estar imitando o que escutam, pois
nesse caso nunca diríam goed ou Don’t gíggle те. É plausível pensar
que a organização básica da gramática esteja inscrita no cérebro
da criança, mas ainda assim ela tem de reconstruir as nuanças do
inglcs ou kivunjo ou ainu. Portanto, como será que a experiência
interage com a inscrição para dar a uma criança de três anos a gra­
mática dc uma determinada língua?
Sabemos que essa experiência deve incluir, no mínimo, a fala
de outros seres humanos. Durante muitos milênios pensadores es­
pecularam sobre o que aconteceria a crianças privadas do estímu­
lo da fala. No século sétimo a.C., segundo o historiador Heródoto,
o rei Psamtik I do Egito fez com que dois bebês fossem separados
de suas mães logo ao nascer e fossem criados em silêncio na caba­
na de um pastor. A curiosidade do rei sobre a língua original do
mundo foi aparentemente satisfeita dois anos depois, quando o
pastor escutou as crianças empregarem uma palavra em frígio, uma
língua indo-européia da Ásia Menor. Nos séculos que se segui­
ram, foram contadas muitas histórias sobre crianças abandonadas
que cresceram de maneira selvagem, desde Rômulo e Remo, os su­
postos fundadores de Roma, até Mogli do Livro da selva de Kipling.

352
[ B eb ê n asce fa la n d o — D escreve céu

Também houve alguns casos da vida real, como Victor, o Menino


Selvagem de Auvergn (tema de um adorável fdme de François
Truffaut), e, no século vinte, Kamala, Amala e Ramu da índia. Se­
gundo a lenda, essas crianças foram criadas por ursos ou lobos,
dependendo de qual destes animais tinha maior afinidade com os
humanos na mitologia predominante da região, trama que se re­
pete como fato em muitos livros de texto, embora eu tenha dúvi­
das a respeito. (Num reino animal darwiniano, tal urso teria de
ser incrivelmente estúpido para, diante da sorte de encontrar um
bebê em seu covil, criá-lo em vez de comê-lo. Embora algumas
espécies possam ser enganadas por filhotes adotivos, como pássa­
ros por cucos, ursos e lobos são predadores de pequenos mamífe­
ros e é improvável que sejam tão crédulos.) Outras crianças mo­
dernas podem ter crescido como selvagens pelo fato de terem sido
criadas em silêncio por pais perversos em quartos escuros e po­
rões. O resultado é sempre o mesmo: as crianças são mudas e mui­
tas vezes continuam assim por toda a vida. Sejam quais forem as
habilidades gramaticais inatas existentes, elas são esquemáticas de­
mais para produzir fala, palavras e construções gramaticais por
conta própria.
A mudez das crianças selvagens em certo sentido enfatiza o
papel da educação em detrimento do da natureza no desenvolvi­
mento da linguagem, mas acho que ganharemos em compreensão
se evitarmos essa dicotomia estrita. Se Victor ou Kamala tivessem
fugido da floresta falando fluentemente frígio ou protomundo,
com quem poderíam ter conversado? Como sugeri no capítulo
precedente, ainda que os próprios genes especifiquem o design bá­
sico da linguagem, eles têm de armazenar as características especí­
ficas da língua no meio para que a língua de uma pessoa esteja
sincronizada com a de todos os outros, apesar da singularidade
genética de cada indivíduo. Nesse sentido, a linguagem é a quin­
tessência da atividade social. James Thurber e E. B. W hite escreve­
ram certa vez:

353
I O in stin to d a lin gu a gem I

Há uma boa razão para que, nos últimos tempos, se discuta muito
mais o lado erótico do Homem do que seu apetite por comida. A
razão é a seguinte: enquanto a necessidade de comer é um assunto
que concerne apenas à pessoa faminta (ou, como o alemão diz, der
hungrige MenscJi), a necessidade de sexo envolve, em sua verdadeira
expressão, outro indivíduo. E esse “outro indivíduo” o motivo de
todo o problema.

Embora a fala tenha de ser estimulada para se desenvolver,


apenas uma trilha sonora não é suficiente. Houve uma época em
que se aconselhava os pais surdos de filhos ouvintes a fazer com que
as crianças assistissem muito à televisão. Em nenhum caso as crian­
ças aprenderam inglês. Se a criança ainda não conhece a língua, é
difícil para ela imaginar sobre o que os personagens que pronun­
ciam aquelas estranhas e indiferentes palavras televisivas estão
falando. Os falantes humanos vivos tendem a falar sobre o aqui e
agora na presença de crianças; a criança consegue ler os pensa­
mentos, adivinhando o que o falante quer dizer, sobretudo se já
conhece muitos termos de conteúdo. Com efeito, se lhe fornece­
rem a tradução dos termos de conteúdo da fala ejue os pais diri­
gem aos filhos cm alguma língua cuja gramática vocc desconhece,
é bastante fácil inferir o que os pais dizem. Se os filhos conseguem
inferir o que os pais querem dizer, não precisam ser puros criptó-
grafos, tentando decifrar um código a partir da estrutura estatísti­
ca das transmissões. Talvez se pareçam mais com os arqueólogos
diante da pedra de Rosetta, que continha um trecho de uma lín­
gua desconhecida e sua tradução para outra conhecida. Para a crian­
ça, a língua desconhecida é o inglês (ou japonês ou inslekampx ou
árabe); a conhecida é o mentalês.
Outra razão para que as trilhas sonoras da televisão não sejam
suficientes é que elas não falam em mamanhês. Comparada com
conversas entre adultos, a fala dos pais com os filhos é mais lenta,
mais exagerada em intensidades, mais dirigida para o aqui e agora

354
I B eb ê n asce fa la n d o — D escreve céu I

e mais gramatical (é literal 99% das vezes e 44% pura, segundo


uma estimativa). Isso certamente faz com que o mamanhês seja
mais fácil de aprender do que o tipo de conversa cifrada e frag­
mentada que vimos nas transcrições de Watergate. Mas, como des­
cobrimos no Capítulo 2, o mamanhês não é um curso indispensá­
vel para as aulas de Aprenda-Fácil-Sua-Língua. Em algumas cul­
turas, os pais não falam com os filhos antes de eles serem capazes
de manter uma conversa até o fim (embora outras crianças con­
versem com eles). Além disso, o mamanhês não é gramaticalmente
simples. Tal impressão é ilusória; a gramática é tão instintiva que
não percebemos quais construções são complexas até tentarmos
descobrir as regras que estão por trás delas. O mamanhês está cri­
vado de perguntas que contêm who, what e where [quem, o que e
onde], que estão entre as construções mais complicadas em inglês.
Por exemplo, para montar a “simples” pergunta What did he eat? [O
que ele comeu?], baseada em He ate what [Ele comeu o quê], é pre­
ciso deslocar what para o começo da frase, deixando um “vestígio”
que indica sua função semântica de “coisa comida”, inserir o au­
xiliar destituído de sentido do, verificar se o do está no tempo
apropriado em relação ao verbo —neste caso, did —, passar o verbo
para a forma infinitiva eat, e inverter a posição do sujeito e do
auxiliar do normal He did para a interrogativa Did he. Nenhum cur­
so dirigido de línguas que fosse misericordioso usaria essas frases
na Lição I, mas é exatamente isso o que as mães fazem quando
falam com seus bebês.
Uma maneira mais adequada de pensar o mamanhês é compa­
rá-lo com as vocalizações que outros animais dirigem a seus filho­
tes. O mamanhês possui melodias interpretáveis: um sobe e desce
arredondado para a aprovação, um conjunto de explosões agudas,
em staccato, para proibir, um padrão ascendente para chamar a
atenção, e um legato de murmúrios suaves e baixos para confortar.
A psicóloga Anne Fernald mostrou que esses padrões estão muito
difundidos nas comunidades linguísticas, e podem ser universais.

355
I O in stin to d a lin gu a gem I

As melodias atraem a atenção da criança, marcam os sons como


fala e não como resmungos estomacais ou outros ruídos, distin­
guem afirmações, perguntas e imperativos, delineiam os limites da
frase principal e destacam palavras novas. Se puderem escolher, os
bebês preferirão escutar mamanhês à fala dirigida a adultos.
Surpreendentemente, embora a prática seja importante no trei­
namento da ginástica da fala, para a aprendizagem da gramática
ela é supérflua. Por várias razões neurológicas, às vezes as crianças
são incapazes de articular, mas os pais relatam que sua compreen­
são é excelente. Recentemente, Karin Stromswold testou uma des­
sas crianças de quatro anos. Embora não conseguisse falar, o me­
nino entendia diferenças gramaticais sutis. Conseguia identificar
qual imagem mostrava “O cão foi mordido pelo gato” e qual mos­
trava “O gato foi mordido pelo cão”. Conseguia distinguir imagens
que mostravam “Os cães perseguem o coelho” e “O cão persegue
o coelho”. O menino também respondia adequadamente quando
Stromswold lhe perguntava: “Mostre-me seu quarto”, “Mostre-
me o quarto de sua irmã”, “Mostre-me o antigo quarto de sua
irmã”, “Mostre-me seu antigo quarto”, “Mostre-me seu novo
quarto”, “Mostrc-mc o novo quarto de sua irmã”111.
Na verdade, não surpreende que o desenvolvimento da gramá­
tica não dependa dc uma prática explícita, porque, na verdade,
dizer algo em voz alta, cm contraposição a escutar o que outras
pessoas dizem, não fornece à criança informações sobre a língua
que está tentando aprender. A única informação sobre gramáti­
ca que a fala poderia fornecer viria do feedback que os pais dão à
criança no sentido de sua emissão ser gramatical e significativa. Se
um dos pais punisse, corrigisse, compreendesse mal ou até reagis­
se de outra maneira a uma frase agramatical da criança, isso poderia,

10. Em inglcs as diferenças são mais sutis: Show nu you r rootn, Show me you r sister’s room}Show me
your sisterS old room, Show m eyour old room, Show m eyour new roomJ Show m eyour sisters new room.
( N . d a T .)

356
I B eb ê n a sce fa la n d o — D escreve céu I

teoricamente, informá-la de que algo em seu sistema de regras em


desenvolvimento precisa ser melhorado. Mas é notável como os
pais não se preocupam com a gramática dos filhos; eles se impor­
tam com sinceridade e bom comportamento. Roger Brown divi­
diu as frases de Adam, Eve e Sara em listas gramaticais e agrama­
ticais. Para cada frase ele verificou se, na ocasião, o pai, ou a mãe,
expressou aprovação (como “Sim, muito bem”) ou desaprovação.
A proporção foi a mesma para frases gramaticais e agramaticais, o
que significa que a resposta dos pais não deu à criança nenhuma
informação sobre gramática. Por exemplo:

Criança: Mamãe não é menino, ele menina.


Mãe: Certo.
Criança: E Walt Disney vem terça.
Mãe: Não, não vem.

Brown também verificou se as crianças poderíam aprender so­


bre a qualidade de suas gramáticas pela percepção de serem ou
não compreendidas. Observou as perguntas bem feitas e mal fei­
tas das crianças e se seus pais tinham respondido a elas adequada­
mente (isto é, como se as tivessem compreendido) ou com non
scquíturs. Novamente, não foi encontrada nenhuma correlação; What
you can do? [O que você sabe fazer?] pode não ser inglês, mas é per-
feitamente compreensível.
Na verdade, quando pais meticulosos ou experimentadores in­
trometidos fornecem feedback às crianças, elas o desconsideram. O
psicolingüista Martin Braine certa vez tentou durante várias sema­
nas eliminar um dos erros gramaticais de sua filha. Eis o resultado:

Filha: Want other one spoon, Daddy.


Pai: You mean, you want THE OTHER SPOON.
Filha: Yes, I want other one spoon, please, Daddy.
Pai: Can you say “the other spoon”?
Filha: Other... one... spoon.

357
I O in stin to d a lin gu a gem I

Pai: Say... “other.”


Filha: Other.
Pai: "Spoon.”
Filha: Spoon.
Pai: "Other... spoon.”
Filha: Other... spoon. Now give me other one spoon?11

Braine escreveu: "Não foi possível dar continuidade à instru­


ção devido aos seus protestos, vigorosamente aprovados pela mi­
nha esposa.” No que se refere à aprendizagem da gramática, a
criança tem de ser antes um naturalista, observando passivamente
a fala dos outros, que um experimentalista, que manipula estímu­
los e registra os resultados. Isso tem implicações profundas. Há
infinitas línguas, e infâncias finitas. Para se tornar um falante, não
basta as crianças memorizarem; têm de mergulhar no desconheci­
do lingüístico e generalizar para um mundo infinito de frases até-
cntão-não-dítas. No entanto, há um número incontável de mer­
gulhos sedutores mas falsos:

mind —>minded; mas não find —>finded


Thc icc melted —> He melted the ice; mas não David died —>He
died David
Sh e sccms to bc aslcep —>She seems asleep; mas não She scems to be
sleeping —>She seems sleeping
Sheila saw Mary with her best friends husband —>Who did Sheila
see Mary with? mas não Sheila saw Mary and her best friends
husband —>Who did Sheila see Mary and?

Se, ao cometerem tais erros, as crianças pudessem contar com


a correção por parte dos adultos, poderíam experimentar. Mas,

I I . Quero outra uma colher, papai./Você quer dizer que você quer A OUTRA CO-
LHER./Sim, eu quero outra uma colher, por favor, papai./Você consegue dizer “a ou­
tra coIher”?/Outra... uma... colher./Diga... "outra”./Outra./“CoIher”./CoIher./"Ou-
tra... colher”./Outra... colher. Agora me dá outra uma colher? (N. daT.)

358
I B eb ê n asce fa la n d o — D escreve céu I

num mundo de pais gramaticalmente distraídos, elas têm de ser


mais cautelosas —se fossem longe demais e produzissem frases
agramaticais junto com as gramaticais, o mundo nunca lhes diria
que estão erradas. Falariam agramaticalmente por toda a vida —
embora uma melhor maneira de dizer isso é que aquela parte da
língua, ou seja, a proibição em relação aos tipos de frases que a
criança usava, não duraria mais de uma geração. Assim, qualquer
situação em que não hífeedback constitui um desafio difícil para o
planejamento de um sistema de aprendizagem, e é de considerável
interesse para matemáticos, psicólogos e engenheiros que estudam
a aprendizagem em geral.
Como a criança está projetada para lidar com esse problema?
Um bom ponto de partida seria vir com a organização básica da
gramática instalada, de modo tal que a criança só experimentasse
os tipos de generalizações possíveis nas línguas do mundo. Im­
passes como Who did Sheila see Mary and?, que não são gramaticais
em nenhuma língua, nem deveriam passar pela cabeça de uma
criança, e, com efeito, nenhuma criança (ou adulto) que conhece­
mos chegou mesmo a tentar enunciá-la. Mas isso não é suficiente,
porque a criança também tem de entender até onde pode mergu­
lhar numa determinada língua que está sendo aprendida, e as lín­
guas variam: algumas admitem muitas ordens de palavras, outras
apenas umas poucas; algumas admitem que a regra causativa seja
aplicada livremente, outras a apenas poucos tipos de verbos. Por
isso, uma criança bem projetada, ao deparar com várias escolhas
sobre o quanto pode generalizar, deveria, em geral, ser conserva­
dora: começar com a hipótese mais restrita sobre a língua que seja
coerente com o que os pais dizem, para depois expandi-la à medi­
da que os fatos assim exijam. Estudos sobre a linguagem das crian­
ças mostram que, de modo geral, é assim que elas funcionam. Por
exemplo, crianças aprendendo inglês nunca concluem tratar-se de
uma língua com ordem livre de palavras e, portanto, não falam em
qualquer ordem, como give doggie paper, give paper doggie, paper doggie

359
I O in stin to d a lin gu a gem I

give, doggie paper give etc. Em termos lógicos, no entanto, isso seria
coerente com o que elas escutam caso se disponham a aventar a
possibilidade de seus pais não passarem de taciturnos falantes de
coreano, russo ou sueco, em que várias ordens são possíveis. Mas
as crianças que aprendem coreano, russo e sueco às vezes erram por
precaução e usam apenas uma das ordens admitidas pela língua, à
espera de mais evidências.
Além disso, nos casos de crianças que cometem erros e depois
se corrigem, suas gramáticas têm de conter algum dispositivo in­
terno de verificação, de modo tal que, ao escutar um tipo de fra­
se, possam ir buscar outra, retirada da gramática. Por exemplo, se
o sistema de construção de palavras estiver organizado de modo
tal que uma forma irregular listada no dicionário mental bloqueie
a aplicação da regra correspondente, escutar held vezes suficientes
acabará por cancelar holded.

<•

Essas conclusões gerais sobre a aprendizagem da língua são in­


teressantes, mas poderiamos compreendê-las melhor se conseguís­
semos acompanhar o que de fato acontece momento a momento
na mente das crianças à medida que as frases entram e elas tentam
destilar regras a partir delas. Visto de perto, o problema de apren­
der regras é ainda mais difícil do que visto a certa distância. Ima­
gine uma criança hipotética tentando extrair padrões a partir das
seguintes frases, sem qualquer orientação inata sobre como a gra­
mática humana funciona:

Jane eats chicken. [Jane come frango]


Jane eats fish. [Jane come peixe]
Jane likes fish. [Jane adora peixe]

Á primeira vista, os padrões são evidentes. Frases, poderia con­


cluir a criança, consistem em três palavras: a primeira tem de ser

360
I B eb ê n a sce fa la n d o - D escreve céu I

Jane, a segunda ou eats ou likes, a terceira, chicken ou fish. Com essas


microrregras, a criança já pode generalizar, para além do material
recebido, para a frase novinha em folha: Jane likes chicken. Até aqui,
tudo bem. Mas digamos que as duas próximas frases sejam:

Jane eats slowly. [Jane come devagar]


Jane might fish. [Jane talvez pesque]

A palavra might é adicionada à lista de palavras que podem apa­


recer na segunda posição, e a palavra slowly, à lista das que podem
aparecer na terceira posição. Veja as generalizações a que isso da­
ria lugar:

Jane might slowly. [Jane talvez devagar]


Jane likes slowly. [Jane adora devagar]
Jane might chicken. [Jane talvez frango]

Mau começo. A mesma ambiguidade que inferniza a análise


da língua para os adultos inferniza a aquisição da linguagem para
a criança. A moral é que a criança tem de acomodar regras em ca­
tegorias gramaticais como substantivo, verbo e auxiliar, e não em
palavras. Dessa forma, fish enquanto substantivo e fish enquanto
verbo deveríam ser mantidos separados, e a criança não adultera­
ria a regra do substantivo com exemplos de verbos e vice-versa.
Como uma criança pode classificar palavras em categorias como
substantivo e verbo? Seu significado evidentemente ajuda. Em to­
das as línguas, palavras para objetos e pessoas são substantivos ou
sintagmas nominais, palavras para ações e mudanças de estado são
verbos. (Como vimos no Capítulo 4, o inverso não é verdadeiro —
muitos substantivos, como destruição, não se referem a objetos e
pessoas, e muitos verbos, como interessar, não se referem a ações ou
mudanças de estado.) De modo similar, palavras para tipos de tra­
jetos e lugares são preposições, e palavras para qualidades tendem
a ser adjetivos. Lembre-se que as primeiras palavras das crianças re­

361
I O in stin to d a lin gu a gem I

ferem-se a objetos, ações, direções e qualidades. Isso é convenien­


te. Se as crianças se dispõem a supor que palavras para objetos são
substantivos, palavras para ações são verbos etc., já resolveram uma
parte do problema de aprendizagem das regras.
Mas palavras não são suficientes; elas precisam estar ordenadas.
Imagine a criança tentando imaginar que tipo de palavra pode
ocorrer antes do verbo bother [incomodar]. E impossível:

That dog bothers me. [dog, um substantivo]


What she wears bothers me. [wears, um verbo]
Music that is too loud bothers me. [loud, um adjetivo]
Cheering too loudly bothers me. [loudly, um advérbio]
The guy she hangs out with bothers me. [with, uma preposição]12

O problema é óbvio. Há algo que tem de vir antes do verbo


bother, mas esse algo não é um tipo de palavra; é um tipo de sintag­
ma, um sintagma nominal. Um sintagma nominal sempre contém
um substantivo núcleo, mas esse substantivo pode vir seguido de
qualquer coisa. Portanto, é inútil tentar aprender uma língua anali­
sando frases palavra por palavra. A criança tem de procurar os
sintagmas.
O que significa procurar sintagmas? Um sintagma é um grupo
de palavras. Numa frase de quatro palavras, há oito possíveis ma­
neiras de agrupar palavras em sintagmas: (T hat) (dog bothers me);
(That dog) (bothers me); (T hat) (dog bothers) (me) etc. Numa
frase de cinco palavras, há dezesseis maneiras possíveis; numa fra­
se de seis palavras, trinta e duas; numa frase de n palavras, 2""' _
um número grande para frases longas. A maioria dessas subdivi­
sões daria à criança grupos de palavras inúteis para construir no­
vas frases, tais como wears bothers e cheering too, mas a criança, sem

12. Aquele cachorro me incomoda./0 que ela veste me incomoda./Música muito alta me
incomoda./Saudar muito efusivamente me incom oda./0 garoto com quem ela sai me
incomoda. (N. da T.)

362
I B eb ê n asce fa la n d o — D escreve céu I

poder confiar nofeedback parental, não tem como saber disso. Mais
uma vez, as crianças não podem enfrentar a tarefa de aprender a
língua como se fossem um lógico livre de preconceitos; precisam
de orientação.
Essa orientação poderia provir de duas fontes. Primeiro, a
criança poderia partir do pressuposto de que a fala dos pais res­
peita a organização básica da estrutura sintagmática humana: sin­
tagmas contêm núcleos; protagonistas se agrupam com núcleos
nos minissintagmas denominados X-barras; X-barras se agrupam
com seus modificadores dentro de sintagmas X (sintagma nomi­
nal, sintagma verbal etc.); sintagmas X podem ter sujeitos. Em
suma, a teoria X-barra da estrutura sintagmática poderia ser ina­
ta. Segundo, já que o significado das frases dos pais costuma po­
der ser adivinhado pelo contexto, a criança poderia usar os signifi­
cados como ajuda para estabelecer a correta estrutura sintagmática.
Imagine que um pai diga The big dog ate ice cream [O cachorro grande
comeu sorvete]. Se a criança aprendeu anterior mente as palavras
big, dog, ate e ice cream, ela pode adivinhar suas categorias e montar
os primeiros raminhos de uma árvore:

A N V N
the
I I I
big dog ate
I
ice cream

Substantivos e verbos, por sua vez, têm de pertencer a sintagmas


nominais e sintagmas verbais, de tal modo que a criança pode postu­
lar um para cada uma dessas palavras. E se houver um cachorro
grande por perto, a criança poderá supor que the e big modificam
dog, e reuni-los adequadamente dentro do sintagma nominal:

NP VP NP
| I1
det A N V N

the big dog ate ice cream

363
I O in stin to d a lin gu a gem I

Se a criança souber que o cão acabou de comer sorvete, tam­


bém poderá supor que ice cream e dog são protagonistas do verbo
eat. Dog é um tipo especial de protagonista, porque é o agente cau­
sai da ação e o tópico da sentença; portanto, é provável que seja o
sujeito da sentença e, portanto, liga-se a “S”. Completou-se assim
uma árvore para a sentença:

det A N N

the b!g dog ice Clvani

As regras e entradas do dicionário podem ser extraídas da


árvore:

S —>NP VP
NP —>(det) (A) N
VP —>V (NP)
dog: N
ice cream: N
ate: V; comedor : sujeito, coisa comida —objeto
the: det
big: A

Esse hipotético registro do funcionamento passo a passo da


mente de uma criança mostra como ela, se estiver bem equipada,
poderá aprender três regras e cinco palavras a partir de uma sim­
ples sentença em contexto.
O uso de categorias gramaticais, da estrutura sintagmática X-
barra e de sig n ifica d o s adivinhados a partir do contexto é incrivel­
mente poderoso, mas um incrível poder é o que uma criança real

364
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

precisa para aprender gramática tão rápido, sobretudo sem feedback


parental. Ё muito vantajoso usar um pequeno número de catego­
rias inatas como N e V para organizar os estímulos lingüísticos.
Ao chamar tanto o sintagma sujeito como o sintagma objeto de
“NP”, em vez de, digamos, Sintagma n? I e Sintagma n? 2, a crian­
ça pode automaticamente aplicar conhecimentos arduamente ob­
tidos sobre substantivos na posição de sujeito a substantivos na
posição de objeto, e vice-versa. Por exemplo, nossa criança mode­
lo já sabe generalizar e usar dog como um objeto sem ter escutado
um adulto fazer isso, e a criança sabe tacitamente que adjetivos
precedem substantivos em inglês não só em sujeitos mas também
em objetos, mais uma vez sem nenhuma prova direta. A criança
sabe que se mais de um cão é cães [dogs] em posição de sujeito,
mais de um cão é cães em posição de objeto. Numa avaliação con­
servadora, acho que o inglês admite cerca de oito possíveis combi­
nações de sintagmas com um substantivo núcleo dentro de um
sintagma nominal, tal como johns dog; dogs in tbe park; big dogs;
dogs that I like etc. Em contrapartida, há cerca de oito lugares de
uma frase onde o sintagma nominal inteiro pode se encaixar, tal
como Dog bites man; M an bites dog; A dogs life; Give the boy a dog;
Talk to the dog etc. Há três maneiras de flexionar um substantivo:
dog, dogs, dog’s. E uma criança típica, ao chegar à escola secundária,
aprendeu por volta de 20 mil substantivos. Se as crianças tivessem
de aprender todas as combinações separadamente, teriam de escu­
tar cerca de 140 milhões de frases diferentes. Numa proporção de
uma frase a cada dez segundos, dez horas por dia, levaria mais
de um século. Mas, pelo fato de rotular inconscientemente todos
os substantivos com “N ” e todos os sintagmas nominais como
“NP”, a criança tem de ouvir apenas cerca de vinte e cinco dife­
rentes tipos de sintagmas nominais e aprender os substantivos um
por um, para que milhões de possíveis combinações estejam auto­
maticamente disponíveis para ela.
Com efeito, se as crianças vêm com antolhos e só podem olhar
para um pequeno número de tipos de sintagmas, elas automatica­

365
I O instinto da linguagem. I

mente adquirem a capacidade de criar um número infinito de fra­


ses, uma das propriedades quintessenciais da gramática humana.
Tomemos o sintagma the tree in the park [a árvore no parque], Se a
criança rotular mentalmente the park como um NP e também rotu­
lar the tree in the park como um NP, as regras resultantes geram um
NP dentro de um PP dentro de um NP —laço que pode ser repe­
tido inúmeras vezes, como em the tree near the ledge by the lake in the park
in the city in the east o f the State... [a árvore perto da ribanceira à beira
do lago no parque da cidade a leste do estado]. Em contraposição,
uma criança livre para rotular in the park como um tipo de sintag­
ma e the tree in the park como outro tipo não disporia da compreen­
são de que o sintagma contém um exemplo de si mesmo. A crian­
ça estaria limitada a reproduzir apenas aquela estrutura sintagmá­
tica. Flexibilidade mental aprisiona as crianças; coerções inatas as
libertam.
Uma vez estabelecida uma análise rudimentar mas razoavel­
mente correta da estrutura das sentenças, o resto da língua se en­
caixa. Para aprender palavras abstratas —substantivos que não sc
referem a objetos e pessoas, por exemplo —basta prestar atenção
ao seu lugar na frase. Já que situatíon em The situation justifies drastic
measures [A situação justifica medidas drásticas] ocorre dentro de
um sintagma cm posição NP, deve ser um substantivo. Se a língua
permite que os sintagmas apareçam em qualquer lugar da frase,
como em latim ou warlpiri, a criança pode descobrir essa caracte­
rística ao deparar com uma palavra que não pode ser conectada a
uma árvore no lugar esperado sem que ramos se cruzem. A crian­
ça, coagida pela Gramática Universal, sabe o que enfocar ao deco­
dificar flexões de caso e de concordância: a flexão de um substan­
tivo dependerá de ele se encontrar em posição de sujeito ou de
objeto; a de um verbo dependerá de tempo, aspecto e número,
pessoa e gênero de seu sujeito e objeto. Se as hipóteses não se res­
tringissem a esse pequeno conjunto, a tarefa de aprender flexões
seria interminável —em termos lógicos, uma flexão poderia depen­

366
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

der de a terceira palavra da frase se referir a um objeto avermelha­


do ou azulado, de a última palavra ser curta ou comprida, de a
frase ser pronunciada dentro ou fora de casa, e bilhões de outras
possibilidades infrutíferas que uma criança livre dos grilhões gra­
maticais teria de testar.

❖ ♦

Podemos agora retornar à charada que abriu o capítulo: Por


que os bebês não nascem falando? Sabemos que parte da resposta
consiste em que os bebês têm de escutar a si mesmos para apren­
der como funcionam seus articuladores, e têm de escutar os mais
velhos para aprender a ordem habitual de fonemas, palavras e sin­
tagmas. Algumas dessas aquisições dependem de outras, forçando
o desenvolvimento a proceder em seqüência: fonemas antes de pa­
lavras, palavras antes de frases. Mas qualquer mecanismo mental
suficientemente potente para aprender essas coisas provavelmente
faria isso com poucas semanas ou meses de alimentação de dados.
Por que a seqüência tem de levar três anos? Não poderia ser mais
rápido?
Talvez não. Máquinas complexas levam tempo para ser mon­
tadas, e os bebês humanos são expelidos da barriga antes de seus
cérebros estarem completos. Afinal de contas, um humano é um
animal com uma cabeça ridiculamente grande, e a pelve de uma
mulher, através da qual ele tem de passar, não é tão grande assim.
Se os seres humanos permanecessem na barriga por um período
de vida proporcional àquele de outros primatas, nasceríam aos
dezoito meses. Com efeito, é com essa idade que os bebês come­
çam a juntar palavras. Portanto, poder-se-ia dizer que, em certo
sentido, os bebês nascem falando!
E sabemos que o cérebro dos bebês muda consideravelmente
depois do nascimento. Antes, praticamente todos os neurônios (cé­
lulas nervosas) estão formados e migram para suas corretas loca­

367
I O instinto da linguagem I

lizações no cérebro. M as o tamanho da cabeça, peso do cérebro e


espessura do córtex cerebral (substância cinzenta), onde as sinap-
ses (conexões) que promovem a computação mental se encon­
tram, continuam a aumentar rapidamente no primeiro ano após o
nascimento. Conexões a longa distância (substância branca) não
se completam antes dos nove meses, e a bainha de mielina, que
promove o aumento da velocidade dessas conexões, continua se
adensando durante toda a infância. Sinapses continuam a se de­
senvolver, crescendo vertiginosamente em número entre nove me­
ses e dois anos (dependendo da região do cérebro), a tal ponto
que a criança tem 50% a mais de sinapses que o adulto! A ativida­
de metabólica do cérebro atinge níveis adultos por volta dos nove
ou dez meses, e logo os ultrapassa, atingindo seu máximo mais ou
menos aos quatro anos. O cérebro se esculpe não só pela adição
de material neural mas também por sua eliminação. Um enorme
número de neurônios morre ainda no útero, extinção que perdura
durante os primeiros dois anos até se estabilizar por volta dos
sete. As sinapses murcham a partir dos dois anos, durante a infân­
cia e ate a adolescência, quando a atividade metabólica do cérebro
retorna aos níveis adultos. Pode ser que o desenvolvimento da lin­
guagem dependa de um cronograma maturacional, como os den­
tes. Talvez realizações linguísticas como balbuciar, primeiras pala­
vras e gramática exijam níveis mínimos de tamanho cerebral, de
conexões a longa distância e de sinapses adicionais, particular­
mente nos centros da linguagem do cérebro (que discutiremos no
próximo capítulo).
Portanto, a linguagem parece desenvolver-se na velocidade que
o cérebro em crescimento tolera. Por que a pressa? Por que a lin­
guagem se instala tão rápido, enquanto o resto do desenvolvimen­
to mental da criança parece se dar num passo mais tranqüílo?
Num livro sobre teoria da evolução muitas vezes considerado um
dos mais importantes depois do de Darwin, o biólogo George
W illiams tece algumas especulações:

368
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

Poderiamos imaginar que na segunda-feira dizem a Hans e Fritz


Faustkeil: “Não se aproximem da água” e que ambos vão passear na
água e apanham por isso. Na terça lhes dizem: “Não brinquem per­
to do fogo”, e novamente eles desobedecem e apanham. Na quarta
lhes dizem: “Não provoquem o dente-de-sabre.” Desta vez Hans
entende a mensagem, e não tira da cabeça as conseqüências da deso­
bediência. Evita prudentemente o tigre e evita apanhar. O pobre
Fritz tampouco apanha, mas por um motivo bem diferente,
Até hoje a morte acidental é uma importante causa de mortali­
dade no começo da vida, e aqueles pais que sempre evitam castigos
físicos em outros assuntos podem se tornar violentos quando uma
criança brinca com fios elétricos ou corre atrás de uma bola no meio
da rua. Muitas das mortes acidentais de crianças pequenas provavel­
mente poderíam ter sido evitadas se as vítimas tivessem compreendi­
do e lembrado instruções verbais e fossem efetivamente capazes de
substituir experiências reais por símbolos verbais. È bem provável
que isso também fosse verdade nas condições primitivas.

Talvez não seja coincidência que a arrancada do vocabulário e


os comcços da gramática andem, literalmente, nos calcanhares do
bebê —a capacidade do andar autônomo aparece por volta dos
quinze meses.

*♦.

Completemos nossa exploração do ciclo de vida lingüístico.


Todo mundo sabe que é muito mais difícil aprender uma segunda
língua na idade adulta do que uma primeira língua na infância. A
maioria dos adultos nunca chega a dominar uma língua estrangei­
ra, sobretudo sua fonologia —daí o inevitável sotaque. O desen­
volvimento deles geralmente se “fossiliza” em padrões de erro per­
manentes que nenhum curso ou correção conseguem desfazer.
Existem, é claro, grandes diferenças individuais, que dependem de
esforço, atitudes, quantidade de exposição, qualidade do ensino e

369
I O instinto da linguagem I

simples talento, mas, ainda assim e mesmo nas melhores circuns­


tâncias, parece haver uma barreira intransponível para qualquer
adulto. A atriz M eryl Streep é conhecida nos Estados Unidos por
seus sotaques aparentemente convincentes, mas contaram-me que,
na Inglaterra, seu sotaque britânico em O mundo de uma mulher foi
considerado pavoroso, e que seu sotaque australiano no filme so­
bre o dingo que comeu o bebê tampouco fez muito sucesso pelas
bandas de lá.
Já foram dadas muitas explicações para a superioridade das
crianças: fazem uso do mamanhês, cometem erros sem acanha-
mento, têm mais motivação para se comunicar, gostam de se ade­
quar, não são xcnofóbicas e não se aferram a modos particulares
de ser, c não têm uma primeira língua que interfira. Alguns desses
motivos não têm fundamento, se considerarmos o que sabemos
sobre a aquisição da linguagem. Por exemplo, crianças aprendem
uma língua sem que haja um mamanhês padrão, cometem poucos
erros e não recebemfeedback dos erros que cometem. De qualquer
forma, dados recentes vêm colocando em dúvida essas explicações
sociais c motivacionais. Mantendo constantes todos os outros fa­
tores, um fator chave se destaca: a idade.
Aquelas pessoas que imigraram depois da puberdade fornecem
alguns dos exemplos mais significativos, mesmo nos casos de apa­
rente sucesso. Alguns poucos indivíduos muito talentosos c motiva­
dos conseguem dominar boa parte da gramática de uma língua es­
trangeira, mas não seu padrão de som. Hcnry Kissingcr, que imi-
grou para os Estados Unidos quando adolescente, mantém aque­
le sotaque alemão tantas vezes satirizado; seu irmão, um pouco mais
jovem, não tem sotaque. Joseph Conrad, natural da Ucrânia, cuja
primeira língua foi o polonês, é considerado um dos melhores es­
critores em língua inglesa do século vinte, mas tinha um sotaque
tão carregado que seus amigos tinham dificuldade para entendê-lo.
Mesmo os adultos que se viram bem com a gramática costumam
depender do exercício consciente de seus intelectos avantaja-

370
IBebê nasce falando —Descreve céu I

dos, diferentemente das crianças, para quem a aquisição da língua


simplesmente acontece. Vladimir Nabokov, outro escritor bri­
lhante em inglês, recusava-se a dar palestras ou ser entrevistado ao
vivo, insistindo em escrever cada palavra de antemão com a ajuda
de dicionários e gramáticas. Como ele mesmo explicou com mo­
déstia: “Penso como um gênio, escrevo como um autor prestigio­
so e falo como uma criança.” E ele ainda tivera a sorte de ser cria­
do, entre outras pessoas, por uma babá anglofalante.
Dados mais sistemáticos nos são fornecidos pela psicóloga
Elissa Newport e seus colegas. Testaram estudantes e professores
da Universidade de Illinois nascidos na Coréia e na China que já
viviam há pelo menos dez anos aos Estados Unidos. Os imigran­
tes receberam uma lista de 276 frases inglesas simples, sendo que
metade delas continha algum erro gramatical como The farm er
bought twopig ou The líttlc boy is speak to a policeman". (Tratava-se de er­
ros relativos ao vernáculo falado, e não à prosa escrita “correta”.)
Os imigrantes que chegaram nos Estados Unidos entre 3 e 7 anos
tiveram o mesmo desempenho dos americanos nativos. O desem­
penho dos que chegaram entre 8 e 15 piorava quanto mais tarde
tivessem chegado, e os piores de todos foram aqueles que chega­
ram entre 17 e 39 anos, que demonstraram alta variabilidade sem
relação com sua idade de imigração.
O que acontece com a aquisição da língua materna? São raros os
casos de pessoas que chegam à puberdade sem ter aprendido uma
língua, mas todos apontam para a mesma conclusão. Vimos no Ca­
pítulo 2 que deficientes auditivos que não são expostos à língua de
sinais até a idade adulta nunca se saem tão bem quanto aqueles que
a aprenderam na infância. Entre as crianças selvagens encontradas
na floresta ou em lares de pais psicóticos depois da puberdade, algu-

13. As formas corretas seriam: Tbejarmer bought two pig5 e The little boy is speaking to a policeman.
(N. daT.)

371
I O instinto da linguagem I

mas desenvolvem palavras, e outras, como “Genie”, encontrada em


1970 com 13 anos e meio num subúrbio de Los Angeles, apren­
dem a enunciar frases imaturas, parecidas com um pidgin:

Mike paint,
Applesauce buy store.
Neal come happy; Neal not come sad.
Genie have Momma have baby grow up.
I like elephant eat peanut.1415

Mas apresentam uma incapacidade permanente de dominar


por completo a gramática da língua. Em contraposição, uma crian­
ça, Isabclle, tinha 6 anos c meio quando ela e sua mãe muda e com
lesões cerebrais escaparam da prisão silenciosa na casa do avô.
Um ano e meio depois ela já adquirira entre 1500 c 2 mil palavras
c pronunciava frases gramaticalmente complexas como

Why does the paste come out if one upsets the jar?
What did Miss Mason say when you told her I cleaned my class-
room?
Do you go to Miss Masons school at the university?'s

Ela obviamente estava no bom caminho para aprender inglês


tão bem quanto qualquer outra criança; o que fez diferença foi a
idade precoce com que começou.
Nos casos de aprendizes fracassados como Genie, há sempre a
suspeita de que as seqüelas da privação sensorial e emocional vivi­
da durante o horroroso confinamento tenham interferido na sua

14. Litcralmentc: Mikc pintar./Purê de maçã compra loja./Neal vir feliz; Neal não vir tris­
te./ Genie ter Mamãe ter bebê crescer./Eu gosto elefante comer amendoim. (N. daT.)
15. Por que a pasta sai quando se vira a jarra?/0 que a Srta. Mason disse quando você lhe
disse que eu limpei minha sala de aula?/Você irá para a escola da Srta. Mason na univer­
sidade? (N. daT.)

372
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

capacidade de aprender. No entanto, recentemente revelou-se o


caso de uma surpreendente aquisição de primeira língua num
adulto normal. “Chelsea” nasceu deficiente auditiva numa remota
cidade do norte da Califórnia. Vários médicos incompetentes
diagnosticaram retardo mental ou transtornos emocionais sem re­
conhecer sua surdez (destino comum de muitas crianças deficien­
tes auditivas no passado). Ela cresceu tímida, dependente e sem
falar, embora fosse emocional e neurologicamente normal, prote­
gida por uma família amorosa que nunca acreditou que ela era de­
ficiente mental. Aos 31 anos foi encaminhada para um neurolo­
gista que, impressionado, forneceu-lhe aparelhos auditivos que
melhoraram sua audição até níveis praticamente normais. Uma
terapia intensiva realizada por uma equipe de reabilitação permi­
tiu que ela atingisse o nível de dez anos em testes de inteligência,
conhecesse duas mil palavras, trabalhasse num consultório veteri­
nário, lesse, escrevesse, se comunicasse e se tornasse socialmente
independente, Ela tem um único problema, que se evidencia tão
logo ela abre a boca:

Tire srnall a thc hat.


Richard eat peppers hot.
Orange Tim car in.
Banana the cat.
I Wanda be drive come.
The boat sits water on.
Breakfast eating girl.
Combing hair the boy.
The woman is bus the going.
The girl is cone the ice cream shopping buying the man,16

16. Lireralmente: O pequeno um o chapéu./Rjchard comer forte pimenta./LaranjaTim car­


ro em./Banana a comer./Eu Wanda ser de carro vir./O barco está água na./Café da
manhã comendo menina./Penteando cabelo o menino./ A mulher está ônibus o indo./
A menina está casquinha o sorvete comprando o homem. (N. da T.)

373
I O instinto da linguagem I

Apesar do treinamento intensivo e indubitáveis avanços em ou­


tras esferas, a sintaxe de Chelsea é bizarra.
Em suma, a aquisição de uma linguagem normal é certa para
crianças até 6 anos, fica comprometida depois dessa idade até
pouco depois da puberdade, e é rara depois disso. Alterações ma-
turativas do cérebro, tais como o declínio da atividade metabólica
e do número de neurônios durante o início da vida escolar, e a es­
tagnação no nível mais baixo do número de sinapses e da ativida­
de metabólica por volta da puberdade são causas plausíveis. Sa­
bemos que os circuitos de aprendizagem da linguagem do cérebro
são mais plásticos na infância; crianças aprendem ou recuperam a
linguagem quando o hemisfério esquerdo do cérebro é lesado ou
até mesmo cirurgicamente removido (embora não em níveis nor­
mais), mas lesões equivalentes num adulto geralmente provocam
afasia permanente.
"Períodos críticos” para tipos específicos de aprendizagem são
comuns no reino animal. Há janelas no desenvolvimento durante
os quais patinhos aprendem a seguir grandes objetos em movimen­
to, os neurônios visuais dos gatinhos se ajustam a linhas verticais,
horizontais e oblíquas, e falcões de crista branca repetem o canto
dc seus pais. Mas por que a aprendizagem deve declinar até fin­
dar? Por que jogar fora uma habilidade tão útil?
Períodos críticos parecem paradoxais apenas porque a maioria
dc nós tem uma compreensão incorreta da biologia da história vital
dos organismos. Tendemos a pensar que genes são como os projetos
detalhados de uma fábrica e os organismos são as peças que a fábri­
ca produz. Imaginamos que durante a gestação, quando o organis­
mo é construído, ele recebe todas as partes de que estará composto
para o resto da vida. Crianças, adolescentes, adultos e idosos têm
braços, pernas e um coração porque braços, pernas e um coração
faziam parte do equipamento de fábrica do bebê. Quando uma par­
te desaparece sem razão ficamos desnorteados.
Mas tente pensar agora no ciclo da vida de uma maneira dife­
rente. Imagine que o que os genes controlam não é uma fábrica

374
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

mandando peças para o mundo, mas a oficina de uma companhia


teatral de poucos recursos para a qual vários cenários, adereços e
materiais retornam periodicamente a fim de serem desmanchados
e remontados para a próxima produção. A qualquer hora, diferen­
tes engenhocas podem ser produzidas na oficina, dependendo da
necessidade do momento. A ilustração biológica mais óbvia é a
metamorfose. Nos insetos, os genes montam uma máquina de co­
mer, deixam que cresça, constroem um envoltório em torno dela,
dissolvem-na transformando-a num pó nutritivo, que é reciclado
até virar uma máquina de alimentar. Mesmo nos humanos, o re­
flexo de sucção desaparece, os dentes nascem duas vezes e uma
coleção de características sexuais secundárias emerge dentro de
um cronograma maturacional. Agora, complete a mudança de
ponto de vista. Pense na metamorfose e nas mudanças maturacio-
nais não como exceção mas como regra. Os genes, moldados pela
seleção natural, controlam corpos ao longo de toda a vida; seus
propósitos perduram enquanto forem úteis, nem antes nem de­
pois. A razão para termos braços aos sessenta anos não é o fato de
eles estarem ali desde o nascimento, mas porque braços são tão
úteis para um sexagenário quanto o são para um bebê.
Essa inversão (exagerada mas útil) também modifica a questão
do período crítico. A pergunta não é mais “Por que a capacidade
de aprender desaparece?”, mas “Quando a capacidade de apren­
der é necessária?” já afirmamos que a resposta poderia ser “O mais
cedo possível” para permitir que se desfrute dos benefícios da lin­
guagem pelo máximo de tempo. Note, no entanto, que aprender
uma língua —em oposição a usar uma língua —é extremamente
útil uma única vez. Uma vez aprendidos os detalhes da língua lo­
cal falada pelos adultos, qualquer outra capacidade de aprender
(afora o vocabulário) é supérflua. E como pedir emprestada uma
unidade de disco flexível para instalar num novo computador o
software de que você irá precisar, ou um toca-discos para gravar
sua velha coleção de LPs em cassetes; terminada a operação, as

375
I O instinto da linguagem I

máquinas podem ser devolvidas. Portanto, os circuitos de aquisi­


ção da linguagem deixam de ser necessários depois de terem sido
usados; deveriam ser desmontados se sua manutenção implicasse
custos. E provavelmente implica custos. Em termos metabólicos,
o cérebro é um porco. Consome um quinto do oxigênio do corpo
e porções igualmente grandes de suas calorias e fosfolipídios. Te­
cido nervoso guloso que subsiste para além de seu ponto de utili­
dade é um bom candidato à reciclagem. James Hurford, o único
lingüista computacional evolucionista do mundo, colocou esse
tipo de afirmação numa simulação em computador de humanos
em evolução, e descobriu que é inevitável que o período crítico da
aquisição da linguagem esteja centrado na primeira infância.
Mesmo que haja alguma utilidade em aprendermos uma se­
gunda língua quando adultos, o período crítico da aquisição da
linguagem deve ter evoluído como parte de um fato da vida mais
abrangente; a debilidade e vulnerabilidade crescentes da idade avan-
çada, que os biólogos denominam “senescência”. O senso comum
diz que o corpo, como todas as máquinas, se desgasta com o uso,
mas esta é outra implicação equivocada da metáfora das peças.
Organismos são sistemas que se reabastecem por conta própria,
que se auto-regeneram, c não existe razão física para não sermos
biologicamente imortais, como é o caso de linhagens de células
cancerosas cm pesquisas de laboratório. Isso não significa que
possamos efetivamente ser imortais. A cada dia há uma certa proba­
bilidade de despencarmos de um precipício, apanharmos uma doen­
ça virulenta, sermos atingidos por um raio, ou assassinados por um
rival, e mais cedo ou mais tarde um desses trovões ou balas virá
endereçado a nós. A questão é: cada dia é uma loteria em que a
chance de tirar a sorte fatal é a mesma, ou as chances vão aumen­
tando quanto mais jogarmos? A senescência confirma que as chan­
ces mudam; pessoas mais velhas morrem devido a quedas e gripes
às quais seus netos sobrevivem facilmente. Uma questão impor­
tante para a biologia evolutiva moderna é saber por que isso é as­

376
I Bebê nasce falando —Descreve céu I

sim se a seleção opera em cada instante da história de vida de um


organismo. Por que não somos construídos de forma tal que se­
jamos igualmente sadios e vigorosos todos os dias de nossas vi­
das, para que possamos ir soltando cópias de nós mesmos inde­
finidamente?
A solução, de George W illiams e P. B. Medawar, é engenhosa.
Quando a seleção natural desenhou os organismos, deve ter depa­
rado com incontáveis escolhas entre características que envolviam
diferentes avaliações de custos e benefícios em diferentes idades.
Alguns materiais eram fortes e leves mas se desgastavam rapida­
mente, ao passo que outros eram mais pesados mas mais duráveis.
Certos processos bioquímicos davam excelentes produtos mas ge­
ravam poluição, que se acumulava dentro do corpo. Talvez hou­
vesse um dispendioso mecanismo metabólico de reparo das célu­
las, cuja utilidade se faria sentir com o avanço da idade quando o
desgaste devido ao uso intenso se acumulasse. O que faz a seleção
natural ao deparar com essas alternativas? Em geral, favorece uma
opção que traga benefícios para o organismo jovem e custos para
o mais velho em detrimento de outra com o mesmo benefício mé­
dio ao longo de toda a vida. Essa assimetria fundamenta-se na as­
simetria inerente à morte. Se um raio matar alguém de quarenta,
deixará de haver alguém de cinqüenta ou de sessenta anos com
que se preocupar, mas terá havido alguém de vinte e alguém de
trinta. Qualquer característica corporal planejada em benefício
das possíveis encarnações de mais de quarenta, às expensas das en­
carnações de menos de quarenta, terá sido à toa. E a lógica é a
mesma para a morte imprevisível em qualquer idade: o fato mate­
mático bruto é que, mantidas as constantes, há mais chance de ser
jovem do que de ser velho. Portanto, os genes que fortalecem or­
ganismos jovens às expensas de organismos velhos têm a sorte a
seu favor e tenderão a se acumular no transcurso evolutivo do
tempo, seja qual for o sistema corporal, e o resultado é sempre a
senescência.

377
1O instinto da linguagem !

Assim, a aquisição da linguagem deve ser como as outras fun­


ções biológicas. A inépcia lingüística de turistas e estudantes tal­
vez seja o preço a pagar pela genialidade lingüística que demons­
tramos quando bebês, assim como a decrepitude da idade é o pre­
ço pelo vigor da juventude.

378
Órgãos da linguagem
e genes da gram ática

10 “Capacidade de Aprender
Gramática Atribuída a Ge­
ne por Pesquisador.” Essa manchete de 1992 não apareceu num
folheto de supermercado mas numa reportagem da Associated
Press, baseada no relatório do encontro anual da principal asso­
ciação científica dos Estados Unidos. O relatório reunira provas
de que o Transtorno Específico da Linguagem ocorre em famílias,
enfocando a família inglesa que conhecemos no Capítulo 2, na
qual o padrão hereditário é partícularmente claro. Os jornalistas
James J. Kilpatrick c Erma Bombeck mostravam-se incrédulos. A
coluna de Kilpatrick começava assim:

M E L H O R E SU A G R A M Á T IC A P O R M E IO D A G E N É T IC A

Pesquisadores anunciaram um fato incrível ouüo dia num encon­


tro da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Você está
preparado? Biólogos geneticistas identificaram o gene da gramática.
Isso mesmo! Conforme um boletim de novidades, Steven Pinker
do MIT e Myrna Gopnik da Universidade McGill solucionaram
um problema que há muitos anos vem intrigando os professores de
inglês. Alguns alunos dominam a gramática com apenas alguns res-
mungos de protesto. Outros, apesar de receberem as mesmas infor­
mações, continuam dizendo que Este exercício é para mim fazer. E tudo
uma questão de hereditariedade. Até aí dá para engolir.

379
I O instinto da linguagem I

Um único gene dominante, acreditam os biólogos, controla a ca­


pacidade de aprender gramática. Uma criança que diz “eu se machu-
quei com o parafuso” não é necessariamente estúpida. Ela tem todos
os seus parafusos. Faltam-lhe apenas alguns cromossomos.
Eis algo que dá um nó na cabeça. Não irá demorar muito para
que os pesquisadores isolem o gene que controla a grafia... [a maté­
ria continua] ... a clareza... O gene leia-um-livro... um gene para abai­
xar o som do rádio... outro para desligar a TV., boa educação... as
tarefas chatas... lição dc casa...

Bombcck cscrcvcu:

G R A M Á T IC A R U IM ? S Ã O O S G R N H S

Não causou muita surpresa ler que nas crianças incapazes dc


aprender gramática falta um gene dominante... Numa época dc sua
carreira, meu marido deu aulas de inglcs no colégio. A classe era com­
posta dc 37 deficientes do gene da gramática. Qual a probabilidade dc
isso acontecer? Eles não tinham a mínima idéia de nada. Uma vírgula
podia ser um petróglifo. Voz passiva era a fala de um amigo apático.
Partícula cxplctiva era algo que não lhes dizia respeito...
Você pergunta: Onde estão esses jovens hoje? São todos atletas
dc sucesso, astros do rock e astros da televisão que ganham milhões
vomitando palavras como “sujou”, “radical” e “um arraso” c pen­
sando que estas são frases completas.

As matérias assinadas, reportagens dc terceira mão, cartuns cm


editoriais e shows dc rádio posteriores ao simpósio foram uma rá­
pida lição de como as descobertas científicas são desvirtuadas por
jornalistas que trabalham sob pressão dc fechamento da edição. O
relatório dizia o seguinte: a descoberta da família com o transtor-
no hereditário da linguagem é de autoria de Gopnik; o repórter
que gencrosamente a atribuiu a mim confundiu-se pelo fato de eu
presidir a sessão e, por isso, apresentar Gopnik ao público. N in­
guém identificou um gene da gramática; inferiu-se a existência de
um gene defeituoso, devido ao modo como a síndrome ocorre na

380
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

família. Acredita-se que um único gene prejudica a gramática, mas


isso não significa que um único gene controla a gramática. (Retirar
o cabo do distribuidor impede que um carro ande, mas isso não
significa que um carro é controlado pelo cabo do distribuidor.) E,
é claro, o que fica prejudicado é a capacidade de conversar nor­
malmente em inglês corrente, não a capacidade de aprender o dia­
leto padrão escrito na escola.
No entanto, mesmo cientes dos fatos, muitas pessoas compar­
tilham da incredulidade dos jornalistas. Será que realmente pode
haver um gene ligado a algo tão específico como gramática? A
simples idéia é um ataque à crença profundamente enraizada de
que o cérebro é um mecanismo de aprendizagem geral, vazio e sem
forma antes de passar pela experiência da cultura. E, supondo que
existam genes da gramática, o que eles fazem? Provavelmente
constrocm o órgão da gramática —metáfora cunhada por Choms-
ky, que para muitos é igualmente despropositada.
Mas, se existe um instinto da linguagem, ele tem dc estar in­
corporado em algum lugar do cérebro, e estes circuitos cerebrais
devem ter sido preparados para sua função pelos genes que os
construíram. Que provas haveria de que existem genes que cons­
tróem partes do cérebro que controlam a gramática? O conjunto
de ferramentas cada vez maior dos geneticistas e neurobiólogos
em geral não serve para nada. A maioria das pessoas não quer ver
seu ccrebro empalado com eletrodos, produtos químicos injeta­
dos nele, não quer que ele seja reorganizado por meio de cirur­
gias, ou removido para ser fatiado e tingido com corantes. (Como
disse Woody Allen: “O cérebro é meu segundo órgão favorito.”)
Por isso, a biologia da linguagem ainda é bastante desconhecida.
Mas acidentes da natureza e engenhosas técnicas indiretas possi­
bilitaram aos neurolingüistas aprender um bocado a respeito.Ten­
temos encontrar o reputado gene da gramática, começando com
uma visão panorâmica do cérebro para em seguida nos aproximar­
mos de componentes cada vez menores.

381
I O instinto da linguagem I

•>

Podemos logo de início restringir nossa busca descartando


metade do cérebro. Em 1861 o médico francês Paul Broca disse­
cou o cérebro de um paciente afásico apelidado de “Tan” pelos
funcionários do hospital porque esta era a única sílaba que ele
pronunciava. Broca descobriu um grande cisto responsável por
uma lesão no hemisfério esquerdo de Tan. Os oito casos seguintes
de afasia que ele observou também tinham lesões no hemisfério
esquerdo, um número grande demais para ser atribuído ao acaso.
Broca concluiu que “a faculdade da linguagem articulada” reside
no hemisfério esquerdo.
Nos 130 anos que sc seguiram, a conclusão de Broca foi con­
firmada por muitos tipos dc indícios. Alguns deles decorrem do
fato vantajoso de a metade direita do corpo e do espaço percep-
tual ser controlada pelo hemisfério esquerdo do cérebro c vice-
versa. Muitas pessoas que padecem de afasia sofrem de fraqueza
ou paralisia do lado direito, entre elas Tan e o afásico curado do
Capítulo 2, que acordou pensando ter dormido sobre o braço di­
reito. Tal conexão está resumida em Salmos 137:5-6:

Se tc olvidar, Jerusalém, fique paralisada a minha destra.


Apeguc-se minha língua ao palato sc não me lembrar dc li.

Pessoas normais reconhecem melhor palavras projetadas do


lado direito de seu campo visual do que do lado esquerdo, mesmo
se for hebraico, que é escrito da direita para a esquerda. Quando
diversas palavras são apresentadas simultaneamente aos dois ouvi­
dos, a pessoa discerne melhor a palavra que entra pelo ouvido di­
reito. Em alguns casos de epilepsia considerados incuráveis, cirur­
giões desconectam os dois hemisférios cerebrais secionando o fei­
xe de fibras que os atravessa. Depois da cirurgia, os pacientes levam
vidas completamente normais, exceto por uma sutileza descober­

382
Órgãos da linguagem e genes da gramática

ta pelo neurocientista Michael Gazzaniga: quando estão parados,


os pacientes conseguem descrever coisas que acontecem no seu
campo visual direito e nomear objetos que se encontram na sua
mão direita, mas não conseguem descrever o que acontece do lado
esquerdo de seu campo visual ou nomear objetos colocados na
mão esquerda (embora o hemisfério direito consiga mostrar que
tem consciência desses acontecimentos por meios não-verbais como
gestos e apontar). A metade esquerda do mundo deles foi desco-
nectada do centro da linguagem.
Quando os neurocientistas olham o cérebro diretamente, usan­
do uma grande variedade de técnicas, conseguem de fato ver a lin­
guagem em ação no hemisfério esquerdo. A anatomia do cérebro
normal —suas pregas e saliências —é levemente assimétrica. Em al­
gumas das regiões associadas à linguagem, as diferenças são sufi­
cientemente grandes para serem vistas a olho nu. As técnicas de
Tomografia Axial Computadorizada (C T ou CAT, em inglês) c
de Imagem por Ressonância Magnética (M RI, em inglês) utili­
zam um algoritmo de computador para reconstruir uma imagem
do cérebro vivo em seções transversais. O cérebro do afásico qua­
se sempre revela lesões no hemisfério esquerdo. Os neurologistas
conseguem paralisar temporariamente um hemisfério injetando
sódio amobarbital na artéria carótida. Um paciente com o hemis­
fério direito adormecido consegue falar; um paciente com o he­
misfério esquerdo adormecido não. Nas cirurgias cerebrais, é pos­
sível aplicar anestesia local para que os pacientes permaneçam
conscientes porque o cérebro não tem receptores de dor. O neu-
rocirurgião W ilder Penfield descobriu que leves choques elétricos
em certas partes do hemisfério esquerdo conseguiam silenciar o
paciente no meio de uma frase. (Os neurocirurgiões fazem essas
manipulações não por curiosidade mas para terem certeza de não
estar retirando partes vitais do cérebro junto com as partes doen­
tes.) Numa técnica de pesquisa empregada em voluntários nor­
mais, aplicam-se eletrodos em todo o crânio, e o eletroencefalo-

383
I O instinto da linguagem I

padrão contrário: sua língua de sinais permanece intacta mas eles


têm dificuldades em tarefas espaço-visuais, da mesma maneira
como os pacientes com o hemisfério direito comprometido. Tra­
ta-se de uma descoberta fascinante. Sabe-se que o hemisfério di­
reito está especializado em habilidades espaço-visuais, e portanto
seria de esperar que a língua de sinais, que depende dessas habi­
lidades, estivesse relacionada com o hemisfério direito. Os acha­
dos de Bellugi mostram que a linguagem, seja por ouvido e boca
ou por olho c mão, c controlada pelo hemisfério esquerdo. O he­
misfério esquerdo deve ser responsável pelas regras abstratas e pe­
las árvores que subjazem à linguagem, pela gramática, pelo dicio­
nário c pela anatomia das palavras, c não apenas pelos sons e mo­
vimentos superficiais da boca.

❖ *

Por que a linguagem tende tanto mais para um lado que para o
outro? Uma pergunta melhor seria: por que o resto de uma pessoa
c tão simétrico? A simetria é uma organização da matéria ineren-
temente improvável. Se vocc tivesse dc preencher ao acaso os qua­
drados de um tabuleiro dc damas dc 8 x 8, a chance é de um cm
um bilhão dc que o padrão seja bilatcralmcntc simétrico. As mo­
léculas da vida são assimétricas, assim como a maioria das plantas
e muitos animais. Construir um corpo bilateralmcnte simétrico é
difícil e caro. A simetria custa tanto trabalho que, entre os ani­
mais com um desenho simétrico, qualquer doença ou debilidade é
capaz de rompê-la. Por causa disso, os organismos como os inse­
tos da ordem Mecoptera, as andorinhas-de-bando e até os seres hu­
manos consideram a simetria sexy (indicador de um companheiro
potencialmente adequado) e uma forte assimetria, um sinal de de­
formidade. Deve haver algo no estilo de vida de um animal que
torna tão valioso o desenho simétrico. A característica principal é
a mobilidade: as espécies com corpos bilateralmente simétricos

386
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

são aquelas destinadas a se mover em linha reta. Os motivos disso


são óbvios. Uma criatura com um corpo assimétrico poderia girar
em círculos, e uma criatura com órgãos dos sentidos assimétricos
poderia monitorar excentricamente um lado do corpo, embora
coisas igualmente interessantes possam acontecer de ambos os la­
dos. Embora os organismos que se locomovem sejam simétricos
lateralmente, não o são na frente e atrás (com exceção do Pushmi-
pullyu do Dr. Dolittle). Propulsores costumam aplicar força de
preferência numa só direção, e portanto é mais fácil construir um
veículo que se mova numa direção e vire do que um veículo que
possa se movimentar igualmente bem para frente e para trás (ou
que possa disparar em qualquer direção, como um disco voador).
Organismos não são simétricos em cima e embaixo porque a gra­
vidade exerce força para baixo.
A simetria em órgãos sensoriais e motores reflete-se no cére­
bro, grande parte do qual, pelo menos nos não-humanos, dedica-
se a processar sensações e programar ações. O cérebro está dividi­
do cm mapas de espaço visual, auditivo e motor que literalmente
reproduzem a estrutura do espaço real: se você deslocar para o
lado um pedacinho do cérebro, encontrará neurônios que corres­
pondem a uma região vizinha do mundo, da maneira como aque­
le animal o sente. Portanto um corpo simétrico e um mundo per-
ceptual simétrico estão controlados por um cérebro, ele mesmo
quase perfeitamente simétrico.
Nenhum biólogo explicou até agora por que o cérebro esquer­
do controla o espaço direito e vice-versa. Foi um psicolingüista,
Marcei Kinsbourne, quem sugeriu a única hipótese remotamente
plausível. Todos os invertebrados bilateralmente simétricos (ver­
mes, insetos etc.) dispõem de uma organização mais direta, na qual
o lado esquerdo do sistema nervoso central controla o lado es­
querdo do corpo e o lado direito controla o lado direito. E muito
provável que o invertebrado antecessor dos cordados (animais com
uma estrutura rígida em torno de sua medula espinhal, entre os

387
I O instinto da linguagem I

quais se encontram-se peixes, anfíbios, pássaros, répteis e mamífe­


ros) também tivesse essa organização. Mas todos os cordados apre­
sentam controle “contralateral”: o cérebro direito controla a es­
querda do corpo e o cérebro esquerdo controla a direita do corpo.
O que pode ter provocado essa modificação? Eis a suposição de
Kinsbourne. Imagine que você é uma criatura com a organização
cérebro esquerdo-esquerda do corpo. Agora vire a cabeça para olhar
para trás, uma volta completa de 180 graus, como uma coruja.
(Pare nos 180 graus; não continue girando como a garota do
Exorcista.') Agora imagine que sua cabeça fique emperrada nessa
posição. Seus feixes ncurais deram meia-volta, de tal modo que o
cérebro esquerdo poderia controlar o lado direito de seu corpo e
vice-versa.
Veja bem, Kinsbourne não está sugerindo que a cabeça dc al­
gum curioso fundamental tenha realmente emperrado, mas que mo­
dificações das instruções genéticas para a construção da criatura
resultaram nessa meia-volta durante o desenvolvimento embrioná­
rio —uma torção que podemos ver acontecendo durante o desen­
volvimento dc caracóis c dc algumas moscas. Talvez isso lhe pare­
ça um jeito perverso de construir um organismo, mas a evolução
faz isso o tempo todo, pois ela nunca trabalha a partir dc uma
prancheta limpa mas tem dc mexer com o que existe. Por exemplo,
nossas espinhas sadicamcntc desenhadas cm forma dc S são o pro­
duto do dobrar e endireitar a coluna vertebral arqueada de nossos
antepassados quadrúpedes. A cara do linguado, que lembra um
Picasso, resultou da deformação da cabeça de um tipo de peixe
que optara por aderir de lado ao fundo do oceano, mudando a lo­
calização do olho que ficara olhando inutilmente para a areia. Já
que a criatura hipotética de Kinsbourne não deixou fósseis e foi
extinta há mais de meio bilhão de anos, ninguém sabe por que te-
ria sofrido a rotação. (Talvez um de seus ancestrais tenha mudado
de postura, como o linguado, e posteriormente se endireitado. A
evolução, incapaz de fazer previsões, deve ter realinhado sua cabe­

388
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

ça com o corpo, fazendo-a dar outro quarto de volta na mesma di­


reção, em vez de usar o caminho mais sensato, que seria o de desfa­
zer o quarto de volta inicial.) Mas não é isso o que importa; Kins­
bourne está apenas propondo que tal rotação deve ter acontecido;
não está dizendo que pode reconstruir o que aconteceu. (No caso
do caracol, em que a rotação é acompanhada de um encurvamen-
to, como uma das alças de um pretzel1, os cientistas têm mais co­
nhecimentos. Como explica meu velho livro de biologia: “Enquanto
cabeça e pés permanecem estacionários, a massa visceral roda num
ângulo de 180°, de tal modo que o ânus... é levado para cima e
acaba se situando [acima] da cabeça... As vantagens dessa organi­
zação são evidentes num animal que vive numa concha com uma
única abertura.”)
Em apoio à sua teoria, Kinsbourne nota que nos invertebrados
os principais feixes neurais situam-se ao longo do ventre, e o cora­
ção, nas costas, ao passo que os cordados têm os feixes neurais nas
costas c o coração no peito. É exatamente isso que se poderia espe­
rar de um giro de 180 graus cabcça-corpo na transição entre um
grupo e outro, e Kinsbourne não encontrou nenhuma informação
sobre um animal que tenha apenas uma ou duas das três inversões
que sua teoria diz terem acontecido conjuntamente. Modificações
importantes na arquitetura do corpo afetam todo o desenho do
animal e podem ser muito difíceis de desfazer. Somos os descen­
dentes daquela criatura torcida, e, meio bilhão de anos depois, um
derrame no hemisfério esquerdo deixa o braço direito inerte.
Os benefícios de um corpo simétrico referem-se todos a sensa­
ções e movimentos no meio bilateralmente indiferente. No caso
de sistemas corporais que não interagem diretamente com o meio,
o esquema simétrico pode ser ignorado. Órgãos internos como o
coração, fígado e estômago são bons exemplos; não estão em con­

I. Espécie de biscoito em forma de nó. (N. daT.)

389
I O instinto da linguagem

tato com a distribuição física do mundo externo, e são fortemen­


te assimétricos. O mesmo acontece em escala muito menor nos
circuitos microscópicos do cérebro.
Pense no ato de manipular deliberadamente algum objeto cati­
vo. As ações não são reguladas pelo meio; o manipulador põe o
objeto onde quiser. Portanto, os membros posteriores do organis­
mo e os centros cerebrais que os controlam não têm de ser simé­
tricos a fim de reagir a fatos que surgem inesperadamente de um
lado ou do outro; podem ser moldados de acordo com a configu­
ração mais eficiente para levar adiante a ação. A manipulação de
um objeto gcralmcntc sc beneficia da divisão de trabalho entre os
membros, um que segura o objeto, outro que age sobre ele. O re­
sultado são as mnndíbulas assimétricas das lagostas, e os cérebros
assimétricos que controlam patas c mãos cm várias espécies. Os
humanos são de longe os manipuladores mais hábeis do reino ani­
mal, c somos a espécie que possui a mais forte e consistente pre­
ferência de membro. Noventa por cento das pessoas em todas as
sociedades e períodos da história são destras, e considera-se que a
maioria possui uma ou duas cópias de um gene dominante que
impõe a tendência a usar a mão direita (o cérebro esquerdo).
Aqueles que possuem duas cópias da versão recessiva do gene de-
scnvolvem-sc sem essa forte tendência pela mão direita; compõem
o resto dos destros c os canhotos e ambidestros.
Processar informação dispersa no tempo mas não no espaço é
outra função para a qual a simetria dc nada serve. Dada uma cer­
ta quantidade de tecido nervoso necessária para desempenhar essa
função, faz mais sentido colocar tudo num só lugar com interco-
nexões curtas, em vez de ter metade de um lado comunicando-se
com a outra metade através de conexões lentas, ruidosas e distan­
tes entre os hemisférios. Por isso o controle do canto está forte­
mente lateralizado no hemisfério esquerdo de muitos pássaros, e a
produção e reconhecimento de chamados e guinchos estão leve­
mente lateralizados em macacos, golfinhos e ratos.

390
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

A linguagem humana talvez tenha se concentrado num hemis­


fério porque também ela é coordenada no tempo, embora não no
espaço ambiental: palavras são reunidas em ordem mas não apon­
tadas em várias direções. E provável que o hemisfério que já con­
tinha os microcircuitos computacionais necessários para contro­
lar a manipulação fina, deliberada, seqüencial de objetos cativos
fosse o lugar mais natural para colocar a linguagem, que também
exige controle seqüencial. Na linhagem que culminou nos huma­
nos, este hemisfério é o esquerdo. Muitos psicólogos cognitivistas
acreditam que uma grande variedade de processos mentais que exi­
gem coordenação seqüencial e ordenação de partes, como reco­
nhecer e imaginar objetos de muitas partes e empreender passo a
passo raciocínios lógicos, resida no hemisfério esquerdo. Gazza-
niga, ao testar separadamente os dois hemisférios de um paciente
de quem fora secionado o corpo caloso, descobriu que o hemisfé­
rio esquerdo rccém-isolado tinha o mesmo QI do cérebro inteiro
conectado anterior à cirurgia!
Em termos lingüísticos, a maioria dos canhotos não é ima­
gem em espelho da maioria destra. O hemisfério esquerdo con­
trola a linguagem em praticamente todos os destros (97% ), mas
o hemisfério direito controla a linguagem numa minoria dos ca­
nhotos, cerca de 19%. O resto deles tem a linguagem no hemis­
fério esquerdo (68% ) ou, redundantemente, em ambos. Em to­
dos esses canhotos, a linguagem está mais uniformemente distri­
buída entre os hemisférios do que nos destros, e por isso há uma
probabilidade maior de os canhotos suportarem uma lesão de
um lado do cérebro sem sofrer de afasia. Existem alguns dados que
demonstram que, embora os canhotos se destaquem em matemá­
tica e atividades espaciais e artísticas, eles são mais suscetíveis a
distúrbios da linguagem, dislexia e gagueira. Até mesmo destros
com parentes canhotos (provavelmente os destros que só possuem
uma cópia do gene dominante que determina propensão pela di­
reita) parecem analisar frases de maneira sutilmente diferente dos
destros puros.

391
I O instinto da linguagem I

♦ ♦ ♦

E claro que a linguagem não usa toda a metade esquerda do


cérebro. Broca observou que o cérebro de Tan era mole e deforma­
do nas regiões imedfatamente acima do sulco lateral do cérebro —
a enorme fenda que separa o lobo temporal humano do resto do
cérebro. A área em que a lesão de Tan começou chama-se agora
área de Broca, e várias outras regiões anatômicas que envolvem am­
bos ps lados do sulco lateral afetam a linguagem quando sofrem
dano. Podemos ver as mais importantes nas grandes manchas cin­
za do diagrama (ver p. 393). Em cerca de 98% dos casos em que
uma lesão cerebral provoca problemas de linguagem, a lesão en-
contra-sc cm algum lugar nas bordas do sulco lateral no hemisfé­
rio esquerdo. Penficld descobriu que a maioria dos lugares que
prejudicavam a linguagem quando estimulados também se encon­
trava ali. Embora as áreas da linguagem pareçam estar separadas
por grandes sulcos, isso talvez seja uma ilusão. O córtex cerebral
(substância cinzenta) é uma grande superfície de tecido bidimen­
sional enrolada para caber dentro do crânio esférico. Assim como
temos a impressão de que imagens e texto se misturam quando sc
amassa um jornal, uma visão lateral do ccrcbro dá uma imagem
enganosa dc quais regiões são adjacentes. Os colaboradores de
Gazzaniga desenvolveram uma técnica que faz uso dc imagens dc
seções do ccrcbro conseguidas por ressonância magnética para re­
construir a aparência que o córtcx da pessoa teria se pudesse ser
desamassado c estendido. Descobriram que todas as áreas relacio­
nadas com a linguagem são adjacentes, formando um território
contínuo. Essa região do córtex, a região à esquerda do sulco late­
ral, pode ser considerada o órgão da linguagem.
Aproximemos mais nosso olhar. Tan e o Sr. Ford, cujas áreas de
Broca sofreram lesões, padeciam de uma síndrome denominada
afasia de Broca, que se caracteriza por fala trabalhosa e agramati-
cal. Eis outro exemplo, de um homem chamado Peter Hogan. Na

392
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

primeira passagem, ele descreve o que o levou ao hospital; na se­


gunda, seu antigo trabalho numa fábrica de papel:

Sim... é... Segunda-feira... é... Pai e Peter Hogan, e Pai... é... hospital...
e é... quarta-feira... quarta-feira nove horas e é quinta... dez horas é
médicos... dois... dois... e médicos e... é... dentes... é... E um médico
e moça... e borracha e eu.
Lower Falis... Maine... Papel. Quatrocentas toneladas um dia!
E é... máquinas enxofre, e é... madeira... Duas semanas e oito horas.
Oito horas... não! Doze horas, quinze horas... trabalhano... trabalha-
no... trabalhano! É, e é... enxofre. Enxofre e... É madeira. Ё... lidan­
do! E é doente, quatro anos atrás.

A área de Broca é adjacente à parte da faixa de controle motor


voltada para maxilares, lábios e língua, e houve um tempo em que
se pensou que a área de Broca estivesse envolvida na produção da
linguagem (embora, obviamente, não na fala per se, porque escrever
e cantar também são afetados). M as a área parece estar envolvida
no processamento da gramática em geral. Um defeito na gramáti­

393
I O instinto da linguagem I

ca é mais evidente, porque qualquer deslize gera uma frase visivel­


mente falha. A compreensão, por outro lado, consegue em geral
explorar as redundâncias na fala e chegar a interpretações simples
sem muita análise sintática. Por exemplo, é possível compreender
O cão mordeu o homem ou A maçã que o menino está comendo é vermelha só
por saber que cães mordem homens, meninos comem maçãs e ma­
çãs são vermelhas. È até possível adivinhar o que significa O carro
empurra o caminhão porque a causa é mencionada antes do efeito.
Durante um século, afásicos de Broca enganaram os neurologistas
usando esses atalhos. Seu engodo foi finalmente desmascarado
quando psicolingüistas lhes pediram para expressar frases que só
podiam ser entendidas por sua sintaxe, como O carro é empurrado
pelo caminhão ou A menina que o menino está empurrando éalta. Os pacien­
tes davam a interpretação correta metade das vezes e seu contrário,
a outra metade —um cara ou coroa mental.
Há outras razões para acreditar que a porção anterior do cór­
tex que circunda o sulco lateral, onde se encontra a área de Broca,
esteja relacionada ao processamento da gramática. Quando pes­
soas leem uma frase, eletrodos aplicados à parte anterior de seu
hemisfério esquerdo detectam padrões distintos de atividade elé­
trica no ponto da frase cm que ela se torna agramatical. Esses ele­
trodos também detectam mudanças durante as partes dc uma fra­
se em que um sintagma deslocado tem de ser guardado na memó­
ria enquanto o leitor espera seu vestígio, como cm O que você disse
(vestígio) para John? Vá rios estudos usando PET e outras técnicas
para medir o fluxo sangüíneo mostraram que essa região é ativada
quando pessoas escutam falar numa língua que conhecem, contam
histórias ou compreendem frases complexas. Várias tarefas-con-
trole e subtrações confirmam que o que ativa essa área geral é o
processamento da estrutura das frases, não o simples pensar sobre
seu conteúdo. Um experimento recente e planejado com muito
cuidado por Karin Stromswold e pelos neurologistas David Caplan
e Nat Alpert obteve um quadro ainda mais preciso; mostrou uma
parte circunscrita da área de Broca sendo ativada.

394
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

Pode-se então afirmar que a área de Broca é o órgão da gramá­


tica? Na verdade, não. Lesões apenas na área de Broca geralmente
não produzem afasias severas de longa duração; as áreas circundan­
tes e a substância branca subjacente (que conecta a área de Broca
com outras regiões do cérebro) também têm de estar lesadas. As
vezes sintomas da afasia de Broca podem ser produzidos por um
derrame ou pela doença de Parkinson, que prejudica os gânglios
basais, centros nervosos complexos enterrados dentro dos lobos
frontais e que comandam movimentos que exigem destreza. A fala
dificultada dos afásicos de Broca talvez seja distinta da falta de
gramática em suas falas, e talvez esteja relacionada não com a área
de Broca mas com partes vizinhas e ocultas do córtex, que ten­
dem a ser prejudicadas pelas mesmas lesões. E, o que é mais sur­
preendente, alguns tipos de habilidades gramaticais parecem so­
breviver a lesões na área de Broca. Quando se pede para que dis-
tingam frases gramaticais de outras agramaticais, alguns afásicos
de Broca conseguem detectar até mesmo violações sutis das regras
de sintaxe, como em pares como estes:

John foi finalmente beijado Louise.


John foi finalmente beijado por Louise.

Eu quero que você irá para a loja agora.


Eu quero que vocc vá para a loja agora.

O velho gostando da vista?


O velho gostou da vista?

Ainda assim, os afásicos não detectam todas as agramaticali-


dades, e nem todos os afásicos as detectam, de modo tal que a
função da área de Broca na linguagem é enlouquecedoramente
obscura. Talvez a área esteja por trás do processamento gramatical
convertendo mensagens em mentalês para estruturas gramaticais e
vice-versa, em parte pelo fato de se comunicar, através dos gân­

395
I O instinto da linguagem I

glios basais, com os lobos pré-frontais, relacionados com o racio­


cínio abstrato e o conhecimento.
A área de Broca também está ligada por um feixe de fibras com
um segundo órgão da linguagem, a área de Wernicke. Lesões na
área de Wernicke produzem uma síndrome de afasia bem diferen­
te. Howard Gardner descreve seu encontro com o Sr. Gorgan:

“O que o trouxe ao hospital?”, perguntei ao velho açougueiro apo­


sentado de 72 anos quatro semanas depois de sua internação no
hospital.
“Ciara, estou suando, estou terrivelmente nervoso, sabe, de vez
cm quando mc pega, nem te conto o tarripoi, um mês atrás, um tan­
to, mc saí bastante bem, impressiono bastante, enquanto, por outro
lado, sabe o que quero dizer, tenho de sair por aí, dar uma olhada,
trcbbin c todo esse tipo de coisas.”
dentei intcrrompc-lo várias vezes, mas não consegui diante des­
se jorro ininterrupto e rápido. Por fim, levantei a mão, apoiei-a no
ombro de Gorgan, e obtive um breve respiro.
“Obrigado, Sr. Gorgan. Queria lhe fazer algumas —”
“Oh claro, vá cm frente, qualquer coisa antiga que quiser. Sc cu
pudesse faria. Oh, estou usando mal as palavras para dizei', todos os
barbe iros aqui quando param você continua e continua, se mc en­
tende, isso prende e prende para repuccr, repuceração, bem, tenta­
mos fazer o melhor possível enquanto que da outra vez com aquelas
camas lá foi a mesma coisa...”

A afasia de Wernicke é de certa forma o complemento da de


Broca. Os pacientes emitem seqüências fluentes de sintagmas mais
ou menos gramaticais, mas a fala deles não faz sentido e está cheia
de neologismos e de trocas de palavras. Diferentemente de muitos
pacientes de Broca, os pacientes de Wernicke apresentam dificul­
dade constante para nomear objetos; no lugar deles dizem pala­
vras relacionadas ou distorções do som das palavras corretas:

396
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

table [mesa]: “chair” [cadeira]2


elbow [cotovelo]: “клее” [joelho]
clip: “plick”
butter [manteiga]: “tubber”
ceiling [teto]: “leasing”
ankle [tornozelo]: “ankley, no mankle, no kankle”
comb [escova]: “dose [perto], saw it [vi aquilo], cit it, cut [corta],
the comb, tbc came”
paper [papel]: “piece of handkerchief [pedaço de lenço], pauper,
hand pepper, piece of hand paper”
fork [garfo]: “tonsil [amígdala], teller [caixa de banco], tongue [lín­
gua], fung”

Um sintoma chamativo da afasia de Wernicke é que os pacien­


tes dão poucos sinais de compreender o que se fala à volta deles.
Num terceiro tipo de afasia, a conexão entre a área de Wernicke e
a de Broca se vê prejudicada, c esses pacientes não conseguem re­
petir lrases. Num quarto tipo, a área de Broca, a de Wernicke c a
ligação entre elas estão intactas mas elas são uma ilha isolada do
resto do córtex, c esses pacientes repetem de modo sinistro o que
escutam sem compreender ou nunca falam espontaneamente. Por
essas razões, e porque a área de Wernicke é adjacente à parte do
córtcx que processa o som, chegou-se a pensar que a área estives­
se por trás da compreensão da linguagem. Mas isso não explicaria
por que a fala desses pacientes parece tão psicótica. Aparente­
mente, a área de Wernicke tem como função procurar palavras c
encaminhá-las para outras áreas, sobretudo a de Broca, que as reú­
ne ou analisa sintaticamente. Talvez, a afasia de Wernicke seja o
produto de uma área de Broca intacta revirando loucamente sin­
tagmas sem as mensagens e palavras-alvo que a área de Wernicke ge­
ralmente fornece. Mas, para ser sincero, ninguém realmente sabe
para que servem as áreas de Broca ou a de Wernicke.

2. Traduziremos apenas as palavras com sentido. (N. daT.)

397
I 0 instinto da linguagem I

A área de Wernicke junto com as duas áreas sombreadas adja­


centes a ela no diagrama (os giros angular e supramarginal) en­
contram-se no cruzamento de três lobos do cérebro, e por isso ser­
viríam idealmente para integrar fluxos de informação sobre formas
visuais, sons, sensações corporais (provenientes da faixa “somato-
sensorial”), e relações espaciais (provenientes do lobo parietal). Seria
um lugar lógico para armazenar ligações entre os sons das pala­
vras e a aparência e geometria daquilo a que elas se referem. Com
efeito, lesões nessa vizinhança gcralmente causam uma síndrome
denominada de anomia, embora um rótulo mais mncmônico pu­
desse ser “não-nome-ia”, que c o que ela significa literalmente. A
ncuropsicóloga Kathlccn Baynes descreve “H W ”, um executivo
que sofreu um derrame nessa área. li alguém muito inteligente, ar­
ticulado c que gosta dc conversar; no entanto, é praticamente im­
possível para ele encontrar substantivos no seu dicionário mental,
embora os compreenda. Eis como ele respondeu quando Baynes
lhe pediu para descrever o desenho de um menino caindo de um
banco ao tentar alcançar um pote numa prateleira para pegar um bis­
coito e dar para a irmã:

fim primeiro lugar isso está caindo, prestes a, c vai cair c ambos
estão pegando algo para comer... mas o problema é que isso vai sol­
tar c os dois vão cair... Não dá pra ver direito mas acho que ou ela
ou vai pegar uma comida que não é para você e cia também tem de
pegar algum para ela... c que você pôs lá porque eles não deveriam
subir ali e pegar isso a não ser que você diga que eles podem pegar,
fi portanto isso está caindo e com certeza tem um que eles vão pe­
gar para comida e, e isso não deu certo, o, é, o negócio que é é, para,
não é para você mas isso, mas você adora, um mum mum [lábios in­
dicando o gosto de algo bom]... e que então eles... veja que, não dá
pra ver se está lá ou não... Acho que ela está dizendo, quero dois ou
três, quero um, acho, acho isso, e então, então ela vai pegar esse e
com certeza vai cair ali ou sei lá, ela vai pegar aquele lá e, e ali, ele
mesmo vai pegar um ou mais, tudo depende com isso quando eles

398
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

caem... e quando isso cai não tem problema, eles só têm de arrumar
de volta e subir de novo e pegar mais alguns.

H W usa sintagmas nominais perfeitamente mas não encontra


os substantivos para colocar dentro deles: usa pronomes, gerún-
dios como caindo, e alguns substantivos genéricos como comida e ne­
gócio, para se referir a objetos singulares com circunlóquios retor­
cidos. Verbos tendem a provocar menos problemas para os anô-
micos; são muito mais difíceis para os afásicos de Broca, provavel­
mente porque verbos estão intimamente ligados à sintaxe.
Há outras indicações de que as regiões da parte posterior da
área em torno do sulco lateral estejam implicadas na armazena­
gem e localização de palavras. Quando as pessoas lêem frases per­
feitamente gramaticais e deparam com uma palavra sem sentido,
como Os garotos escutaram a laranja de Joe sobre a África, eletrodos colo­
cados perto da parte posterior do crânio detectam uma alteração
no EEG (embora, como já mencionei, considerar que os sinais
provêm dc debaixo dos eletrodos é apenas uma suposição). Quan­
do as pessoas colocam a cabeça dentro do scanner PET, essa par­
te do cérebro se ativa quando elas escutam palavras (e pseudopa-
lavras, como tweal) e também quando lêem palavras numa tela e
têm dc decidir se rimam —tarefa para a qual têm de imaginar o
som da palavra.

Uma anatomia bem grosseira dos subórgãos da linguagem


dentro da área que circunda o sulco lateral poderia ser: parte an­
terior (incluindo a área de Broca), processamento gramatical; par­
te posterior (incluindo a área de Wernicke e a junção dos três lo­
bos), sons das palavras, sobretudo de substantivos, e alguns aspectos
de seu significado. Será que podemos detalhar ainda mais e loca­
lizar áreas menores do cérebro que desempenham tarefas lingüís-

399
I O instinto da linguagem I

ricas mais circunscritas? A resposta é sim e não. Não, não há peda­


ços menores do cérebro em torno dos quais possamos traçar uma
linha e que possamos rotular como módulo linguístico —pelo me­
nos não até agora. Mas, por outro lado, sim, deve haver porções
do córtex que desempenhem tarefas circunscritas, porque algumas
lesões cerebrais provocam déficits de linguagem notavelmente es­
pecíficos. É um paradoxo intrigante.
Eis alguns exemplos. Embora a deterioração do que venho cha­
mando de sexto sentido, a percepção da fala, possa se originar de
lesões em quase todas as áreas da região esquerda em torno do sul­
co lateral (e a percepção da fala ativa várias partes da região que
circunda o sulco lateral em estudos por PET), há uma síndrome
específica, denominada Pura Surdez de Palavra, que é exatamente
o que o nome diz: os pacientes conseguem ler c falar, reconhecem
sons ambientes como música, portas que batem e gritos de ani­
mais, mas não reconhecem palavras faladas; para eles as palavras
não têm sentido nenhum, como se fossem vocábulos de uma lín­
gua estrangeira. Entre os pacientes com problemas em gramática,
alguns não apresentam a articulação hesitante da afasia de Broca,
mas emitem uma fala fluente, embora agramatical. Alguns afásicos
deixam dc fora verbos, flcxõcs c termos functivos; outros usam os
errados. Alguns não compreendem frases complicadas que envol­
vem vestígios (como O homem que a mulher beijou (vestígio) abraçou a
criança) mas entendem frases complexas que envolvam reflexivos
(como A menina disse que a mulher se lavou). Outros pacientes fazem o
contrário. Existem pacientes italianos que misturam os sufixos
flexionais da língua (semelhantes ao -ing, -s e - e i do inglês) mas
quase não se equivocam nos sufixos derivativos (semelhantes ao
-able, ~ness e -er em inglês).
O thesaurus mental, em particular, é às vezes despedaçado em
partes com contornos claros. Entre os anômicos (aqueles com di­
ficuldade de usar substantivos), pacientes diferentes têm problemas
com diferentes tipos de substantivos. Alguns conseguem empre­

400
Órgãos da linguagem e genes da gramática I

gar substantivos concretos mas não abstratos. Outros conseguem


empregar substantivos abstratos mas não os concretos. Alguns con­
seguem nomear coisas inanimadas mas tropeçam nos substantivos
para coisas vivas; outros usam substantivos para coisas vivas mas
não conseguem nomear coisas inanimadas. Alguns conseguem no­
mear animais e vegetais mas não alimentos, partes do corpo, ves­
timentas, veículos ou mobília. Existem pacientes com dificulda­
des para quaisquer substantivos exceto animais, outros que não
conseguem nomear partes do corpo, pacientes que não conseguem
nomear objetos localizados dentro de casa, outros que não conse­
guem dizer as cores, e outros ainda com dificuldade para nomes
próprios. Certo paciente não conseguia nomear frutas ou vegetais:
conseguia nomear um ábaco e uma esfinge mas não uma maçã ou
um pêssego. O psicólogo Edgar Zurif, caçoando do costume de
dar um nome pitoresco para cada síndrome, sugeriu que o caso
deste paciente fosse denominado anomia para bananas, ou “ba-
nananomia”.
Será que isso significa que o cérebro tem uma seção de produ­
tos agrícolas? Até hoje ninguém encontrou tal seção, e tampouco
centros de flexões, vestígios, fonologia etc. Todas as tentativas de
relacionar áreas cerebrais com funções mentais fracassaram. É fre-
qüente encontrar dois pacientes com lesões na mesma área mas
com deficiências diferentes, ou dois pacientes com as mesmas de­
ficiências mas lesões em áreas diferentes. As vezes, uma deficiên­
cia bem circunscrita, como a incapacidade de nomear animais,
pode ser causada por lesões maciças, uma degeneração geral do
cérebro ou uma pancada na cabeça. E, em cerca de dez por cento
dos casos, um paciente com uma lesão na vizinhança da área de
Wernicke pode apresentar uma afasia semelhante à de Broca, um
paciente com lesões perto da área de Broca pode apresentar uma
afasia do tipo da de Wernicke.
Por que é tão difícil traçar um atlas do cérebro com áreas para
diferentes partes da linguagem? Segundo uma escola, é porque

401
I O instinto da linguagem I

elas não existem; o cérebro é um naco de carne. Exceto para a sen­


sação e o movimento, os processos mentais são padrões de ativi­
dade nervosa amplamente distribuídos, como num holograma,
por todo o cérebro. Mas é difícil conciliar a teoria do naco de car­
ne com os déficits surpreendentemente específicos de muitos pa­
cientes com lesões cerebrais, e ela vem se tornando obsoleta nesta
“década do cérebro”. Com o emprego de ferramentas que se sofis­
ticam a cada mês, os neurobiólogos vêm mapeando vastos territó­
rios denominados inutilmente de “córtex associativo” nos antigos
manuais, c delineando dezenas dc novas regiões com funções pró­
prias ou estilos de processamento, como áreas visuais especializa­
das na forma de objetos, distribuição espacial, cor, visão em 3D,
movimentos simples e complexos.
Ate onde sabemos, o cérebro deve ter regiões dedicadas a pro­
cessos tão específicos quanto sintagmas nominais c árvores métri­
cas; nossos métodos de estudo do cérebro humano ainda são tão
precários que não conseguimos encontrá-las. Talvez as regiões se
pareçam com poás ou gotas ou listras espalhados em torno das
áreas gerais da linguagem do cérebro. Talvez sejam traçados tão ir­
regulares quanto distritos eleitorais arbitrariamente divididos.
Entre diferentes povos, as regiões podem estar puxadas c esticadas
para diferentes protuberâncias c dobras do cérebro. (Todas essas
disposições são encontradas cm sistemas cerebrais que entendemos
melhor, como o sistema visual.) Sc assim for, as enormes crateras
que denominamos lesões cerebrais, e os instantâneos embaça­
dos que chamamos de imagens PET continuam sem endereço certo.
fá dispomos de alguns indícios que revelam que o ccrebro lin-
güístico deve estar organizado dessa maneira tortuosa. O neuroci-
rurgião George Ojemann, empregando os métodos de Penfield,
estimulou eletricamente diferentes localizações de cérebros cons­
cientes expostos. Descobriu que, numa determinada localização,
o estímulo de um ponto distante apenas alguns milímetros per­
turbava uma única função, como repetir ou completar uma frase,

402
Órgãos da linguagem e genes da gramática i

nomear um objeto, ou ler uma palavra. Mas esses pontos estavam


espalhados pelo cérebro (em grande medida, mas não exclusiva­
mente, nas regiões que circundam o sulco lateral) e podiam ser en­
contrados em lugares diíerentes em indivíduos diferentes.
Do ponto de vista daquilo para que serve o cérebro, não seria
de surpreender se os subcentros da linguagem estivessem idiossin-
craticamente emaranhados ou espalhados pelo córtex. O cérebro
é um tipo especial de órgão, o órgão da computação, e diferente­
mente de um órgão que move coisas pelo mundo físico, como os
quadris ou o coração, as partes funcionais do cérebro não têm de
ter formas coesas. Desde que a conectividade dos microcircuitos
neurais esteja preservada, suas partes podem ser colocadas em lu­
gares diferentes e fazer a mesma coisa, da mesma maneira como
os fios que conectam um conjunto de componentes elétricos po­
de ser enfiado de qualquer modo numa caixa, ou o quartel-ge­
neral de uma corporação pode estar situado em qualquer lugar se
estiver bem comunicado com suas fábricas e pontos de venda.
Isso parece se aplicar bastante bem às palavras: lesões ou estimu­
lações elétricas em amplas áreas do cérebro podem causar dificul­
dades para nomear. Uma palavra é um feixe de diferentes tipos de
informação. Talvez cada palavra seja como um eixo que pode ser
posicionado cm qualquer lugar de uma vasta região, desde que
seus raios se espalhem para as partes do cérebro que armazenam
seu som, sua sintaxe, sua lógica e a aparência das coisas que ela re­
presenta.
O cérebro em desenvolvimento provavelmente se aproveita da
natureza desencarnada da computação para posicionar os circui­
tos da linguagem com algum grau de flexibilidade. Digamos que
várias áreas do cérebro têm potencial para gerar os diagramas pre­
cisos de conexões para os componentes da linguagem. Uma ten­
dência inicial faz com que os circuitos se estabeleçam em suas lo­
calizações típicas; as localizações alternativas são então suprimi­
das. Mas, se essas primeiras localizações forem danificadas duran­

403
I O instinto da linguagem I

te um certo período crítico , o s circuitos podem se desenvolver em


outro lugar. Na opinião de muitos neurologistas, é por isso que
os centros da linguagem estão localizados em lugares inesperados
numa minoria significativa de pessoas. O nascimento é traumático,
e não apenas por razões psicológicas familiares. O canal vaginal
espreme a cabeça do bebê como um limão, e é freqüente recém-
nascidos sofrerem pequenos derrames e outros danos cerebrais.
Adultos com áreas de linguagem anômalas podem ser vítimas des­
ses danos primários que se recuperaram. Agora que as máquinas
de ressonância magnética são comuns em centros de pesquisa do
cérebro, jornalistas e fílósoíos visitantes às vezes recebem fotogra­
fias dc seus cérebros como lembrança. Vez por outra a imagem re­
vela uma depressão do tamanho de uma noz, que, afora as brinca­
deiras dos amigos que dizem sempre ter desconfiado disto, não
indica nenhum eleito danoso.
Há outras razões pelas quais as funções da linguagem são tão
difíceis de localizar no cérebro. Alguns tipos de conhecimento lin­
guístico podem ser armazenados em várias cópias, algumas de me­
lhor qualidade que outras, em vários lugares. Além disso, no mo­
mento em que passa a ser possível testar sistematicamente as víti­
mas de derrames, muitas vezes elas já recuperaram algumas de suas
facilidades com a linguagem, em parte compensando as deficiên­
cias com habilidades gerais de raciocínio. Os neurologistas não são
técnicos cm eletrônica que podem tirar c pôr um parsrr na extremi­
dade dc entrada ou de saída dc algum componente para isolar sua
função. Têm de examinar o paciente como um todo através de seus
(dhos, ouvidos, boca e mãos, e há muitos pontos computacionais
intermediários entre o estímulo que eles apresentam e a resposta
que observam. Por exemplo, nomear um objeto implica reconhecê-
lo, procurar sua entrada no dicionário mental, ter acesso à sua pro­
núncia, articulá-la, e talvez também monitorar o resultado atrás de
erros escutando a enunciação. Um problema de nomeação pode
surgir se qualquer desses processos for induzido a erro.

404
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

Há alguma esperança de podermos em breve ter uma melhor


localização dos processos mentais porque novas tecnologias de ima­
gens cerebrais vêm sendo desenvolvidas rapidamente. Um exemplo
é a Ressonância Magnética Funcional, que consegue medir —com
uma precisão bem maior que o PET —com que intensidade as di­
ferentes partes do cérebro estão trabalhando durante diferentes ti­
pos de atividades mentais. Outro é a Magneto-Encefalografia (MEG),
semelhante ao EEG, mas que consegue localizar com exatidão de
que parte do cérebro um sinal eletromagnético provém.

Nunca vamos compreender os órgãos da linguagem e os genes


da gramática se procurarmos apenas por porções de cérebro do
tamanho de um selo postal. Os processos computacionais que
subjazcm à vida mental são provocados pela interconexão de com­
plexas redes que compõem o córtex, redes com milhões de neurô­
nios, cada um conectado a milhares de outros, operando em mi­
lésimos de segundo. O que veriamos se pudéssemos aumentar a
potência do microscópio c esquadrinhar os microcircuitos das
áreas da linguagem? Ninguém sabe, mas tenho um palpite. Ironi­
camente, trata-se ao mesmo tempo do aspecto do instinto da lin­
guagem sobre o qual menos sabemos e o mais importante, porque
é ali que as verdadeiras causas da fala e da compreensão se encon­
tram. Apresentarei uma dramatização de como pode ser o proces­
samento da informação gramatical do ponto de vista de um neu­
rônio. Não levem isso muito a sério; é simplesmente uma demons­
tração de que o instinto da linguagem é compatível em princípio
com a causalidade da bola de bilhar do universo físico, e não ape­
nas um misticismo vestido de metáfora biológica.
A modelagem da rede neural baseia-se num neurônio em mi­
niatura simplificado. Esse neurônio só pode fazer algumas poucas
coisas. Pode estar ativo ou inativo. Quando está ativo, manda um
sinal pelo seu axônio (fio de saída) para as outras células com que

405
I O instinto da linguagem I

está conectado; as conexões são chamadas de sinapses. Sinapses po­


dem ser excitatórias ou inibitórias e podem ter vários graus de po­
tência. O neurônio que se encontra na extremidade de recepção vai
juntando todos os sinais provenientes de sinapses excitatórias, eli­
mina os sinais provenientes de sinapses inibitórias, e, se o produto
exceder certo limiar, o próprio neurônio receptor se torna ativo.
Uma rede desses neurônios em miniatura, se for suficiente­
mente extensa, pode funcionar como um computador, calculando
a resposta para qualquer problema que possa ser definido de mo­
do preciso, exatamente como a Máquina de Turing do Capítulo 3,
que conseguia deduzir que Sócrates é mortal. Isso acontece por­
que os neurônios em miniatura podem ser conectados entre si for­
mando algumas vias simples que os transformam em “portões ló­
gicos”, mecanismos que computam as relações lógicas “e”, “ou” e
“não” que fundamentam a dedução. O significado da relação lógi­
ca “e” é que a proposição “A e B” é verdadeira se A for verdadei­
ro с В for verdadeiro. Um portão E que compute esta relação é
aquele que será acionado se todas as suas entradas estiverem acio­
nadas. Se partirmos da hipótese de que o limiar de nossos neurô­
nios em miniatura é 0,5, um conjunto de sinapses que cheguem até
eles c que pesem cada uma menos de 0,5, mas cuja soma seja
maior que 0,5, digamos 0,4 e 0,4, irá funcionar como um portão
E, como este que aparece à esquerda abaixo:

CM 0,4 0,5 CM . 0,6 0,5 -o,i o


O— O— iO~
0,4 СГ o.6
E OU NÃO

O significado da relação lógica "ou” é que uma proposição “A


ou B” é verdadeira se A for verdadeiro ou В for verdadeiro. Por­
tanto, um portão OU deve ser acionado se pelo menos um de
seus sinais de entrada estiver acionado. Para que isso ocorra, cada
peso sináptico tem de ser maior do que o limiar do neurônio, di­

406
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

gamos 0,6, como o circuito central no diagrama acima. Por fim, o


significado da relação lógica “não” é que uma proposição “Não
A” é verdadeira se A for falso, e vice-versa. Portanto, um portão
NÃO deveria desacionar seu sinal de saída se seu sinal de entrada
estivesse ativado, e vice-versa. Isso ocorre por meio de uma sinapse
inibitória, à direita no exemplo acima, cujo peso negativo é sufi­
ciente para desativar um neurônio de saída que, de outra maneira,
estaria sempre ativado.
Eis como uma rede de neurônios computa uma regra gramati­
cal moderadamente complexa. A flexão do inglês -s, como em Bill
walks, é um sufixo que deve ser aplicado dadas as seguintes condi­
ções: quando o sujeito está na terceira pessoa E singular E a ação
está no tempo presente E costuma ser realizada habitualmente (seu
“aspecto”, no jargão lingüístico) —mas NÃO se o verbo for irre­
gular como do, kavc, say ou be (por exemplo, dizemos Bill is, e não Bill
bes). Uma rede de portões neurais que compute essas relações lógi­
cas tem a seguinte forma:

DICIONÁRIO O b
™ik OOOO O à ONSET
bit O O O O O i
go OO oo o /
RADICAL

RIMA

SUFIXO

407
( O instinto da linguagem I

Primeiro, há um banco de neurônios representativos dos tra­


ços flexionais no canto inferior esquerdo. Aqueles que forem rele­
vantes serão conectados através de um portão E a um neurônio
que representa a combinação terceira pessoa, número singular,
tempo presente e aspecto habitual (abreviado “3sph”). Esse neu­
rônio estimula um neurônio correspondente à flexão -s, que por
sua vez estimula o neurônio correspondente ao fonema z num ban­
co de neurônios que representam a pronúncia dos sufixos. Se o ver­
bo fo r regular, esta é a computação necessária para o sufixo; a pronún­
cia do radical, conforme especificada no dicionário mental, é sim­
plesmente copiada literalmente para os neurônios de radicais por
meio de conexões que não desenhei aqui. (O u seja, a forma para to
hit é simplesmente hit + s; a forma para to v>ug é simplesmente wug
+ í.) No caso de verbos irregulares como be, esse processo tem de
scr bloqueado, caso contrário a rede neural gerará a forma incor­
reta be’s. Portanto, o neurônio da combinação 3sph também envia
um sinal para um neurônio representativo da forma irregular
completa is. Se a pessoa cujo cérebro estamos modelando preten­
de usar o verbo be, ela já possui um neurônio representativo do
verbo be ativado, e também cie envia ativação para o neurônio is. Já
que as duas entradas para is estão conectadas com um portão E,
ambas têm de estar acionadas para ativar is. Ou seja, se c somente
se a pessoa estiver pensando cm be e terceira-pessoa-singular-pre-
sente-habitual ao mesmo tempo, o neurônio is será ativado. O
neurônio is inibe a flexão -s via um portão NÃO formado por
uma sinapse inibitória, que veta ises ou be’s, mas ativa a vogal i e a
consoante z no banco de neurônios representativos do radical. (É
óbvio que omiti muitos neurônios e muitas conexões com o resto
do cérebro.)
Montei essa rede à mão, mas as conexões são específicas do in­
glês e num cérebro real teriam de ser aprendidas. Dando continui­
dade à nossa fantasia de rede neural, tente imaginar como essa
rede deve ser num bebê. Suponha que todos os grupos de neurô­

408
Órgãos da linguagem e genes da gramática I

nios sejam inatos. Mas, ali onde desenhei uma seta de um único
neurônio de um grupo para um único neurônio de outro, imagine
um feixe de setas de cada neurônio de um grupo para cada neu­
rônio do outro. Isso corresponde à “expectativa” inata da criança
de que haja, digamos, sufixos para pessoas, números, tempos e as­
pectos, assim como possíveis palavras irregulares para essas com­
binações, sem, no entanto, saber exatamente que combinações, su­
fixos ou irregulares existem naquela língua em particular. Apren­
dê-los corresponde a reforçar algumas sinapses na ponta da seta
(aquelas que por acaso desenhei) e manter as outras invisíveis. Is­
so poderia funcionar assim: imagine que, quando a criança escuta
uma palavra com um z no sufixo, o neurônio z do grupo de sufi­
xos no canto direito do diagrama é ativado, e, quando a criança
pensa em terceira pessoa, singular, presente e aspecto habitual
(partes de sua interpretação do evento), os quatro neurônios à es­
querda também são ativados. Se a ativação se der para a frente e
para trás, e se uma sinapse for reforçada sempre que seja ativada
junto com seu neurônio de saída já ativo, então todas as sinapses
alinhadas no trajeto entre “3 !”, “singular”, “presente”, “habitual”
numa extremidade, e “z” na outra, serão reforçadas. Repita a ex­
periência muitas vezes, e a rede neonata parcialmente especificada
irá se ajustar à do adulto que desenhei.
Aproximemos ainda mais nossas lentes. Que solda primai jun­
tou os grupos de neurônios e as potenciais conexões inatas entre
eles? Este é um dos assuntos mais quentes na neurociência con­
temporânea, e estamos começando a vislumbrar como vão se esta­
belecendo as conexões nos cérebros embrionários. Não as áreas da
linguagem dos humanos, é claro, mas o globo ocular das moscas-
das-frutas, os talamos das doninhas e o córtex visual de gatos e
macacos. Neurônios destinados a determinadas áreas corticais nas­
cem em áreas específicas ao longo das paredes dos ventrículos, que
são cavidades repletas de fluido no centro dos hemisférios cere­
brais. Dali, eles saem em direção ao crânio até seu lugar definitivo

409
I O instinto da linguagem I

no córtex ao longo de cabos de espia formados pelas neuroglias


(as células de sustentação que, junto com os neurônios, constituem
a massa do cérebro). As conexões entre neurônios de diferentes
regiões do córtex geralmente se estabelecem quando a área-alvo
solta alguma química, e os axônios que se estendem para todos os
lados a partir da área-fonte “farejam” aquela química e seguem na
direção em que sua concentração aumenta, como raízes de plantas
crescendo na direção de fontes de umidade e de fertilizantes. Os
axônios também detectam a presença de moléculas específicas na
superfície das neuroglias sobre a qual se insinuam, orientando-se
como Joãozinho e M aria atrás das migalhas de pão. Depois dos
axônios terem alcançado a vizinhança de seu alvo, formam-se co­
nexões sinápticas mais precisas, porque os axônios em crescimen­
to e os neurônios-alvo têm certas moléculas em suas superfícies
que combinam entre si como uma chave e uma fechadura e se fi­
xam. No entanto, essas conexões iniciais são geralmente bastante
descuidadas, pois os neurônios enviam generosamente axônios que
se dirigem e se conectam a todo tipo de alvo inapropriado. Os
inapropriados morrem, seja porque não encontram a química ne­
cessária para sua sobrevivência no alvo, seja porque as conexões
que formam não são bastante utilizadas quando o cérebro é ativa­
do no desenvolvimento fetal.
Tentem me acompanhar nessa jornada neuro-mitológica: esta­
mos começando a nos aproximar dos “genes da gramática”. As mo­
léculas que guiam, conectam e preservam os neurônios são proteí­
nas. Cada proteína é especificada por um gene, e um gene é uma
seqücncia de bases da espiral do DNA encontrado num cromos­
somo. O gene é ativado por “fatores de transcrição” e outras mo­
léculas reguladoras —dispositivos que se agarram a uma seqüência
de bases em algum lugar de uma molécula de DNA e descompac­
tam um trecho vizinho, possibilitando que o gene seja transcrito
em RNA, que é em seguida traduzido em proteína. Em geral, es­
ses fatores reguladores são eles mesmos proteínas, de tal modo

410
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

que o processo de construção de um organismo é uma complexa


cascata de DNA fazendo proteínas, algumas das quais interagem
com outro DNA para fazer mais proteínas etc. Pequenas diferen­
ças de ritmo ou quantidade de alguma proteína podem provocar
profundos efeitos sobre o organismo em construção.
Portanto, um único gene raramente especifica uma parte iden­
tificável de um organismo. Especifica, no entanto, a liberação de
alguma proteína em determinados momentos do desenvolvimen­
to, ingrediente de uma receita insondavelmente complexa, que ge­
ralmente produz algum efeito na moldagem de um conjunto de
partes, que também são afetadas por muitos outros genes. A urdi­
dura do cérebro, em particular, relaciona-se de forma complexa
com os genes que o constroem. Uma molécula de superfície pode
ser usada não em um, mas em vários circuitos, cada qual guiado
por uma combinação específica. Por exemplo, caso haja três pro­
teínas, X, Y e Z, capazes de se ajustar a uma membrana, determi­
nado axônio pode aderir a uma superfície que tenha X e Y e não
Z, e outro, a uma que tenha Y e Z mas não X. Os neurocientistas
avaliam que cerca de trinta mil genes, a maioria do genoma huma­
no, são usados para construir o cérebro e o sistema nervoso.
E tudo principia com uma única célula, o óvulo fertilizado.
Ele contém duas cópias de cada cromossomo, um da mãe, outro
do pai. Cada cromossomo parental foi originalmente composto
nas gônadas dos pais por um entrelaçamento randômico de partes
dos cromossomos dos dois avós.
Podemos agora definir o que seriam os genes da gramática. Os
genes da gramática seriam pedaços de DNA que determinam se-
qüências que compõem proteínas, ou desencadeiam a transcrição
de proteínas em certos tempos e lugares do cérebro, que guiam,
atraem ou unem neurônios em redes que, em combinação com os
ajustes sinápticos que ocorrem durante a aprendizagem, são neces­
sárias para computar a solução de algum problema gramatical (co­
mo escolher um afixo ou uma palavra).

411
I O instinto da linguagem I

♦> ❖ ♦>

E então, será que existem realmente genes da gramática, ou é


tudo puro desvario? Chegaremos um dia a presenciar a cena retra­
tada no cartum desenhado em 1990 por Brian Duffy? Um porco,
ereto sobre duas patas, pergunta a um fazendeiro: “O que tem para
jantar? Não eu, espero.” O fazendeiro diz a seu companheiro:
“Este é aquele que recebeu o implante de gene humano.”
Não temos atualmente meios para verificar diretamente a exis­
tência de genes da gramática nos seres humanos. Como costuma
acontecer em biologia, é mais fácil identificar genes quando eles
estão correlacionados com alguma diferença entre indivíduos, ge-
ralmcntc uma diferença decorrente de alguma patologia.
Sabemos com certeza que há algo no esperma e no óvulo que
afeta as capacidades lingiiísticas da criança que nasce de sua união.
Gagueira, dislexia (dificuldade de ler, em geral relacionada com
uma dificuldade de distinguir mentalmente os fonemas das síla­
bas) c Transtornos Específicos de Linguagem (SLI) repetem-se
numa mesma família. Isso não prova que sejam genéticos (receitas
c bens também se transmitem dentro de famílias), mas estas três
síndromes provavelmente o são. Em cada um desses casos, não há
nenhum agente ambiental plausível que possa agir sobre os mem­
bros atingidos da família c poupar os normais. E é muito mais
provável que essas síndromes afetem ambos os membros de um ca­
sal de gêmeos idênticos, que compartilham um meio e todo o
DNA, do que ambos os membros de um casal de gêmeos frater­
nos, que compartilham um meio e apenas metade do DNA. Por
exemplo, gêmeos idênticos de 4 anos tendem a pronunciar errado
as mesmas palavras com mais freqüência do que gêmeos frater­
nos, e, se uma criança sofrer de Transtorno Específico da Lingua­
gem, haverá uma probabilidade de 80% de que um gêmeo idêntico
também sofra deste transtorno, mas apenas 35% de probabilidade
de que um gêmeo fraterno sofra. Seria interessante verificar se crian­

412
Órgãos da linguagem e genes da gramática I

ças adotadas se parecem com os membros de sua fam ília bioló­


gica, que têm DNAs semelhantes mas não vivem no mesmo meio.
Desconheço qualquer estudo de SLI ou dislexia em casos de ado­
ção, mas um estudo descobriu que uma medida de habilidade lin-
güística precoce no primeiro ano de vida (medida que combina
vocabulário, imitação vocal, combinações de palavras, tagarelice e
compreensão de palavras) apresentava correlação com a capacida­
de cognitiva geral e a memória da mãe biológica, mas não com as
da mãe ou do pai adotivos.
A família K, na qual três gerações padecem de SLI e cujos
membros dizem coisas como Carol is cry in tbe church [Carol está
chora na igreja] e não conseguem deduzir o plural de wug, é atual­
mente uma das mais dramáticas demonstrações de que falhas em
habilidades gramaticais podem ser hereditárias. A interessante hi­
pótese sobre um único gene autossomo dominante baseia-se no
seguinte raciocínio mendeliano. Suspeita-se que a síndrome seja
genética porque não existe causa ambiental plausível para que al­
guns membros da família sejam escolhidos e outros, coetâneos,
sejam poupados (num caso, um gêmeo fraterno foi afetado, o ou­
tro não), e para que a síndrome tenha atingido 53% dos mem­
bros da família mas não costume atingir mais de 3% da popula­
ção em geral. (Em princípio, poder-se-ia pensar que essa família
tem azar; afinal de contas, eles não foram escolhidos aleatoria­
mente entre a população e só chamaram a atenção dos geneticistas
devido à alta concentração da síndrome. Mas isso é pouco prová­
vel.) Acredita-se que um único gene seja responsável, porque, se
vários genes fossem responsáveis, cada um prejudicando uni pou­
co as capacidades lingüísticas, havería vários graus de incapacida­
de entre os membros da família, dependendo de quantos genes
danificados eles herdaram. Mas a síndrome parece ser do tipo ou
tudo ou nada: tanto a escola como os membros da família con­
cordam em relação a quem tem e quem não tem o transtorno, e na
maioria dos testes de Gopnik, os membros afetados se amontoam

413
I O instinto da linguagem I

na parte inferior da escala, ao passo que os membros normais se


amontoam na parte superior, sem qualquer sobreposição. Acredi­
ta-se que o gene seja autossomo (não esteja no cromossomo X ) e
dominante porque a síndrome afeta homens e mulheres com igual
freqüência, e em todos os casos o cônjuge de um genitor afetado,
fosse ele marido ou mulher, era normal. Se o gene fosse recessivo
e autossomo, seria necessário ter ambos os pais afetados para her­
dar a síndrome. Se fosse recessivo e estivesse presente no cromos­
somo X, apenas os homens seriam afetados; as mulheres seriam
portadoras. E se fosse dominante e estivesse no cromossomo X,
um pai afetado passaria o gene para todas as suas filhas e nenhum
de seus filhos, porque o cromossomo X dos filhos vem da mãe, e
as filhas recebem um de cada genitor. Mas uma das filhas dc um
homem afetado era normal.
Esse único gene não é, insisto, não é responsável por todos os
circuitos que subjazem à gramática, ao contrário do que dizem a
Associated Press, James Kilpatrick e companhia. Lembremos que
um único componente com defeito pode parar uma máquina com­
plexa mesmo que ela precise de muitas partes em bom funciona­
mento para funcionar. Com efeito, é possível que a versão normal
do gene não tenha nada a ver com a construção dos circuitos da
gramática. Talvez a versão defeituosa manufature uma proteína
que atrapalhe algum processo químico necessário para estabelecer
os circuitos da linguagem. Talvez ela faça com que alguma área
adjacente do cérebro cresça para além do seu território, penetran­
do no território geralmente reservado para a linguagem.
Ainda assim, a descoberta é muito interessante. A maioria dos
membros da família com problemas de linguagem tinha uma inte­
ligência média, e em outras famílias encontram-se pacientes com
uma inteligência bem acima da média; um menino estudado por
Gopnik estava entre os melhores alunos de matemática. A síndro­
me mostra, portanto, que, no desenvolvimento do cérebro, deve
haver algum padrão de eventos geneticamente determinados (nes­

414
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

te caso, os eventos afetados por essa síndrome) especializado na


urdidura das conexões da computação lingüística. E esses sítios de
construção parecem envolver circuitos necessários para o proces­
samento da gramática na mente, e não apenas para a articulação
de sons da fala pela boca ou a percepção de sons da fala pelo ou­
vido. Embora na infância os membros afetados da família sofres­
sem de dificuldades na articulação da fala e apresentassem retardo
no desenvolvimento da linguagem, a maioria deles superou os
problemas de articulação, perdurando apenas os déficits relacio­
nados com gramática. Por exemplo, embora os membros afetados
da família costumem não usar os sufixos - t i e -5, isso não ocorre
porque eles não escutem ou consigam emitir estes sons; eles dis­
criminam facilmente car e cará, e nunca pronunciam nose como no.
Em outras palavras, tratam de maneira diferente o som quando
ele é uma parte permanente da palavra e quando é acrescentado à
palavra por uma regra gramatical.
Além disso, também é interessante constatar que o transtorno
não elimina completamente nenhuma parte da gramática, assim
como tampouco compromete todas as partes da mesma maneira.
Embora os membros afetados da família tivessem dificuldade para
mudar o tempo verbal de frases em testes e para aplicar sufixos em
sua fala espontânea, não eram um caso perdido; seu desempenho
era apenas muito pior do que o de seus parentes não afetados.
Esses déficits probabilísticos pareciam estar concentrados em
morfologia e nos traços que ela manipula, como tempo verbal,
pessoa e número; outros aspectos da gramática eram menos afeta­
dos. Os membros que padeciam do transtorno conseguiam, por
exemplo, detectar violações de sintagma verbal em frases como The
nicegirlgives [A menina gentil dá] e Thegirl eats a cookie to the hoy [A me­
nina come um biscoito ao menino], e conseguiam cumprir muitas
ordens complexas. A falta de uma correspondência exata entre um
gene e uma função isolada é exatamente o que se espera a partir do
que conhecemos sobre o funcionamento dos genes.

415
I O instinto da linguagem I

Portanto, até agora temos indícios que sugerem a existência de


genes da gramática, no sentido de genes cujos efeitos parecem ser
específicos do desenvolvimento dos circuitos que sub jazem a par­
tes da gramática. O lócus cromossômico do suposto gene é total­
mente desconhecido, assim como seu efeito sobre a estrutura do
cérebro. Mas amostras de sangue da família estão sendo recolhi­
das para serem submetidas a análise genética, e em ressonâncias
magnéticas de outros indivíduos com Transtorno Específico de
Linguagem verificou-se a falta de assimetria das áreas que circun­
dam o sulco lateral do cérebro, que costuma ser encontrada em
cérebros lingüisticamente normais. Outros pesquisadores de de­
sordens da linguagem, alguns estimulados pelas afirmações de
Gopnik, outros céticos em relação a elas, começaram a examinar
seus pacientes testando com cuidado suas capacidades gramati­
cais e recuperando suas histórias familiares. Estão tentando deter­
minar a frcqüência com que o Transtorno Específico de Lingua­
gem é herdado e quantas síndromes distintas do transtorno exis­
tem. E bem provável que nos próximos anos você venha a ler so­
bre alguma descoberta interessante no campo da neurologia e da
genética da linguagem.

Em biologia moderna, é difícil discutir genes sem discutir va­


riação genética. Afora os gêmeos idênticos, não existem duas pes­
soas —na verdade, não existem dois organismos que se reprodu-
zam sexualmente —geneticamente idênticas entre si. Se não fosse
assim, a evolução, tal como a conhecemos, não podería ter ocorri­
do. Portanto, se existem genes da linguagem, as pessoas normais
não deveríam ser ínatamente diferentes entre si em suas faculda­
des língüísticas? E elas são? Terei de modificar tudo o que disse
sobre a linguagem e seu desenvolvimento porque não existem duas
pessoas com o mesmo instinto da linguagem?

416
Órgãos da linguagem e genes da gramática I

Ё fácil se deixar levar pela descoberta dos geneticistas de que


muitos de nossos genes são tão singulares quanto nossas impres­
sões digitais. No entanto, ao abrir qualquer página do Gray’s Ana-
tomy você espera encontrar uma descrição de órgãos e de suas par­
tes e relações verdadeiras para qualquer pessoa normal. (Todos
têm um coração com quatro cavidades, um fígado etc.) O antro­
pólogo e biólogo JohnTooby e a psicóloga cognitivista Leda Cos-
mides resolveram o aparente paradoxo.
lo o b y e Cosmides afirmam que as diferenças entre pessoas
devem decorrer de pequenas variações quantitativas, e não de de-
signs qualitativamente diferentes. A razão disso é o sexo. Imagine
o que aconteceria se duas pessoas fossem realmente construídas a
partir de designs fundamentalmente diferentes: tanto designs físi­
cos, como a estrutura dos pulmões, quanto designs neurológicos,
como os circuitos subjacentes a alguns processos cognitivos. M á­
quinas complexas exigem partes muito finamente engrenadas, que
por sua vez exigem muitos genes para construí-las. Mas os cro­
mossomos são arbitrariamente recortados, emendados e embara­
lhados durante a formação das células sexuais, e em seguida em­
parelhados com outras quimeras na fertilização. Se duas pessoas
tivessem realmente designs diferentes, seus rebentos herdariam
uma miscelânea de fragmentos dos padrões genéticos de cada um
—como se os designs de dois carros fossem picotados com tesou­
ra e os pedaços colados sem considerar qual retalho veio original­
mente de qual carro. Se os carros tiverem designs diferentes, como
uma Ferrari e um Jeep, a geringonça resultante, caso possa ser
construída, com certeza não irá a parte alguma. O novo pastiche
só funcionaria se, desde o princípio, os dois designs fossem extre­
mamente parecidos.
E por isso que a variação de que nos falam os geneticistas é mi­
croscópica —diferenças na seqüência exata de moléculas em pro­
teínas, cujas forma e função geral são basicamente as mesmas, den­
tro dos estreitos limites de variação por seleção natural. Tal varia­

417
O instinto da linguagem

ção existe por um motivo: no embaralhamento de genes a cada ge­


ração, linhagens de organismos podem avançar um pouco além do
microscópico, desenvolvendo rapidamente parasitas que causam
moléstias e que se adaptam para infiltrar o meio químico de seus
hospedeiros. Mas, acima do ponto de vista dos germes, no nível
macroscópico do maquinismo biológico visível para um anato­
mista ou psicólogo, as variações entre dois indivíduos têm de ser
quantitativas e ínfimas; graças à seleção natural, todas as pessoas
normais têm de ser qualitativamente iguais.
Isso não significa, no entanto, que diferenças individuais sejam
tediosas. A variação genética pode abrir nossos olhos para o grau
de estruturação e complexidade que os genes em geral fornecem à
mente. Se os genes apenas equipassem uma mente com alguns dis­
positivos gerais de processamento de informações, como urna me­
mória de curto prazo e um detector de correlações, algumas pes­
soas seriam melhores que outras em guardar coisas na memória
ou perceber contingências, e ponto final. Mas se os genes cons­
tróem uma mente composta de muitas partes sofisticadas destina­
das a diferentes tarefas, a mão geneticamente única que cabe a
cada pessoa daria lugar a um perfil sem precedentes de esquisiti­
ces cognitivas inatas.
Cito um recente artigo da revista Science:

Quando Oskar Stõhr e Jack Yufe chegaram a Minnesota para parti­


cipar, na Universidade de Minnesota, do estudo de gêmeos idên­
ticos criados separadamente realizado pelo psicólogo Thomas J.
Bouchard Jr., ambos exibiam camisas azuis com ombreiras e duas fi­
leiras de botões, bigodes e óculos com armação de metal. Gêmeos
idênticos separados ao nascer, os dois quarentões só tinham se en­
contrado uma vez, vinte anos antes. No entanto, Oskar, criado como
católico na Alemanha, e Jack, criado por seu pai judeu em Trinidad,
demonstraram ter muitos gostos e traços de personalidade em co­
mum —como temperamento impaciente e um senso de humor idios­
sincrático (ambos gostavam de surpreender pessoas espirrando em
elevadores).

418
Órgãos da linguagem e genes da gramática I

E ambos davam a descarga antes e depois de usar o vaso sani­


tário, usavam elásticos no pulso, e mergulhavam torradas com man­
teiga no café.
Muitas pessoas veem essas anedotas com ceticismo. Serão elas
apenas as coincidências que inevitavelmente aparecem quando se
examinam em detalhes duas biografias? E claro que não. Bouchard e
seus colegas geneticistas do comportamento D. Lykken, M. McGue
e A.Tellegen espantam-se com freqüência com as fantásticas simi­
laridades que encontram nos gêmeos idênticos criados separada­
mente mas que nunca aparecem em gêmeos fraternos criados se­
paradamente. Outro casal de gêmeos idênticos descobriu, no pri­
meiro encontro que tiveram, que ambos usavam pasta de dente
Vademecum, loção pós-barba Canoe, tônico capilar Vitalis e fu­
mavam cigarros Lucky Strike. Depois do encontro um mandou
para o outro presentes idênticos de aniversário que se cruzaram
pelo correio. Duas mulheres costumavam usar sete anéis. Dois
outros homens afirmaram (corretamente) que um mancai da roda
do carro de Bouchard precisava ser trocado. Pesquisas quantitati­
vas corroboram as centenas de anedotas. Não só traços muito ge­
rais como QI, extroversão e neurose são em parte herdáveis, mas
também traços específicos, como grau de sentimento religioso,
interesses vocacionais e opiniões sobre pena de morte, desarma­
mento e música eletrônica.
Será que existe realmente um gene para espirrar em elevadores?
E provável que não, mas tampouco é preciso haver. Gêmeos idên­
ticos compartilham todos os genes, não apenas um. Portanto,
existem cinqüenta mil genes para espirrar em elevador —que são
também cinqüenta mil genes para gostar de camisas azuis com
ombreiras e duas fileiras de botões, para usar tônico capilar Vita-
lis, sete anéis e todo o resto. Isso porque a relação entre determi­
nados genes e determinados traços psicológicos é duplamente in­
direta. Primeiro, um único gene não constrói um único módulo
cerebral; o cérebro é um suflê delicadamente disposto em cama­

419
I O instinto da linguagem I

das, em que o produto de cada gene é um ingrediente com um


efeito complexo sobre muitas propriedades de muitos circuitos.
Em segundo lugar, um único módulo cerebral não produz um
único traço comportamental. A maioria dos traços que chamam
nossa atenção emerge de combinações únicas de excentricidades
em muitos módulos diferentes. Uma analogia disto seria a seguin­
te: tornar-se um jogador de basquete de primeira linha exige mui­
tas qualidades físicas vantajosas, como altura, mãos grandes, óti­
ma pontaria, boa visão periférica, um monte de tecido muscular
de contração rápida, pulmões potentes e tendões elásticos. Embo­
ra esses traços sejam provavelmente genéticos em grande medida,
não deve haver um gene de basquete; esses homens, para quem o
caça-níqueis genético parou em três cerejas, jogam na NBA, ao
passo que a maioria dos panacas dc 2 m de altura e os bons de
mira dc 1,5 m escolheram algum outro tipo dc trabalho. Sem dú­
vida o mesmo se aplica a qualquer traço comportamental interes­
sante como espirrar no elevador (que não é mais estranho que a
aptidão para lançar uma bola dentro de um arco com a mão de
alguém na sua cara). Talvez o complexo genético de espirrar-no-
elevador seja simplesmente aquele que especifica a boa combina­
ção entre limiares c conexões cruzadas entre os módulos que go­
vernam o humor, reações a espaços fechados, sensibilidade para
os estados mentais dos outros, como ansiedade c tédio, c o refle­
xo de espirrar.
Ninguém nunca estudou a variação herdável em linguagem,
mas tenho uma forte suspeita de como ela é. Imagino que o de-
sign básico da língua, da sintaxe X-barra às regras fonológicas e à
estrutura do vocabulário, seja uniforme na espécie como um todo;
de que outra maneira as crianças poderíam aprender a falar e os
adultos poderíam se entender entre si? Mas a complexidade dos
circuitos da língua abre a possibilidade de variações quantitativas
criarem combinações lingüísticas singulares. Algum módulo pode
estar relativamente atrofiado ou hipertrofiado. Alguma represen­

420
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

tação normalmente inconsciente de som, significado ou estrutura


gramatical pode estar mais acessível ao resto do cérebro. Alguma
conexão entre circuitos da língua e o intelecto ou as emoções
pode ser mais rápida ou mais lenta.
Prevejo, portanto, que existam combinações idiossincráticas
de genes (detectáveis em gêmeos idênticos criados separadamen­
te) por trás do contador de histórias, do trocadilhista, do poeta
acidental, do adulador, do fulano cheio de verve e rápido como
um raio, do sesquipedal, do malabarista de palavras, de quem pos­
sui o dom da conversa mole, do reverendo Spooner, da Srta.
Malaprop34, de Alexander Haig, da mulher (e seu filho adolescen­
te!). Certa vez fiz um teste para ver quem conseguia falar de trás
para frente, e o pior aluno de cada classe de lingüística para quem
Who do you believe the clairn tbat John saw? não soa muito mal foi quem
se saiu melhor. Entre 1988 e 1992, muitas pessoas suspeitavam
que o presidente dos Estados Unidos e seu assessor mais imedia­
to não estavam batendo lingüisticamente bem da bola:

Estou menos interessado no que a definição c. Você pode argumen­


tar tecnicamente, estamos numa recessão ou não. Mas quando há
esse tipo de lerdeza e preocupação —definições, danem-se.

Sou todo a favor dc Lawrence Welle. Lawrence Welk é um homem


maravilhoso. Ele costumava ser, ou era, ou —onde quer que esteja
agora, abençoe-o.
—George Bush

O Havaí sempre foi um papel de importância vital no Pacífico. Fica


DENTRO DO Pacífico. E uma parte dos Estados Unidos que é
uma ilha que fica logo aqui.

3. Reverendo W. A. Spooner (1844-1930), conhecido por seus incontáveis lapsus linguae.


(N. daT.)
4. Personagem da peça “The Rivais”, do dramaturgo irlandês R idiard B. Sheridan, conheci­
da por cometer muitas gafes e erros de construção. (N. daT.)

421
I O instinto da linguagem I

[Falando para o Fundo Universitário dos Negros Unidos, cujo le­


ma é “Desperdiçar uma mente é algo terrível”]: Como é terrível ter
perdido a cabeça. Ou simplesmente não ter cabeça. E tuna grande
verdade.
—Dan Quayle

E qual será o amálgama irreproduzível de genes que cria o gê­


nio lingüístico?

If people don t want to come out to the ballpark, nobodys going to


stop them.
You can observe a lot just by watching.
In baseball, you dont know nothing.
Nobody goes tbere anymorc. It s too crowdcd.
It aint over till its over.
It gets late early this time of year.5
—Yogi Berra

And NUH is the letter I use to spell Nutches


Who live in small caves, known as Nitches, for hutches.
Thesc Nutches have troubles, the biggest of which is
The fact there arc more Nutches than.Nitches.
Each Nutch in a Nitch knows that some other Nutdi
Would like to move into his Nitch very much.
So each Nutch in a Nitch has to watch that small Nitch
Or Nutches who havent got Nitches will snitch.6
—Dr, Seuss

5. Sc as pessoas não querem sair para o campo de jogo, ninguém vai impedi-las./Basta olhar
para observar muitas coisas./Em beisebol, não se sabe nada./Ninguém mais vai lá. Está
cheio demais./ísso não acaba até acabar./Nesta época do ano, fica tarde cedo. (N. daT.)
6. E MO é a letra que emprego para escrever Mocas/Que usam pequenas covas, conhecidas
por Micas, como tocas./Esses Mocas têm problemas, e o maior é/O fato de haver mais
Mocas que Micas./Cada Moca numa M ica sabe que algum outro Moca/Gostaria de se
mudar para sua Mica pacas./Então, cada Moca numa M ica tem de cuidar daquela Mica/
Senão um Moca sem Mica vai lá e achaca. (Tradução livre da tradutora)

422
I Órgãos da linguagem e genes da gramática I

Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta:


the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to
tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.
—Vladimir Nabokov78

I have a dream that one day this nation will rise up and live out
the true meaning of its creed: “We hold these truths to be self-evi-
dent, that ali men are created equal.”
I have a dream that one day on the red hills of Geórgia the sons
of former slaves and the sons of former slaveowners will be able to
sit down together at the table of brotherhood.
I have a dream that one day even the State of Mississippi, a State
sweltering with the peoples injustice, sweltering with the heat of op-
pression, will be transformed into an oásis of freedom and justice.
I have a dream that my four litde children will one day live in a
nation where they will not be judged by the color of their skin but
by the content of their character.
—Martin Luther King, Jr.*

This goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory,


this most excellent canopy, the air, look you, this brave o’erhanging

7 . L o lita , lu z dc m in h a vida, fo g o d c m e u lo m b o . M e u pec ad o , m in h a alm a. L o lita : a p o n ta


d a lín g u a fa z e n d o u m a viagem d c três passos p elo céu d a b o ca , a fim d e b a te r d e leve, n o
te rceiro , de e n c o n tro aos d e n te s. L o . Li. Ta. (T ra d . d e B ren n o S ilveira, R c c o rd , R io dc
ja n e iro .)
8. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se levantará c viverá conforme o verdadeiro
significado dc sua crença: “Consideramos uma verdade indiscutível que todos os homens
nascem iguais.”
Eu tenho um sonho de que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos
descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se
sentar juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho de que um dia, até mesmo o estado de Mississippi, um estado
sufocado pelo calor da injustiça, que transpira com o calor da opressão, será transforma­
do em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos vão um dia viver em uma
nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.
( H daT .)

423
I O instinto da linguagem I

firmament, this majestical roof fretted with golden fire, why, it ap-
pears no other thmg to me than a foul and pestilent congregation of
vapours. What a piece of work is a man! how noble in reason! how
infinite in factdty! in form and moving how express and admirableí
in action how like na angel! in apprehension how like a God! the
beauty of the world! the paragon of animais! And yet, to me, what
is this quintessence of dust?
—William Shakespeare9

9. Esta magnífica cstmtura, a terra, se mc afigura um promontório estéril; este maravilhoso


dossel —ora vede —o ar, este excelente firmamento que nos cobre, este majestoso teto,
incrustado dc áureos fogos, tudo isto, para mim não passa de um amontoado de vapores
pestilentos. Que obra-prima, o homem! Quão nobre pela razão! Quão infinito pelas facul­
dades! Como e significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos, quão seme­
lhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima dos deuses, adorno do mundo, modelo
das criaturas! No entanto, que é para mim essa quintescência de pó? (Trad. Carlos Alberto
Nunes, Ediouro.)

424
O Big Bang

11 A tromba do elefante me­


de quase dois metros de
comprimento e 30 cm de largura e contém 60 mil músculos. Os
elefantes usam sua tromba para arrancar árvores do solo, empilhar
toras de madeira ou colocar cuidadosamente enormes vigas de
madeira no seu devido lugar quando participam da construção de
pontes. Um elefante pode enrolar sua tromba em torno de um lá­
pis e desenhar caracteres numa folha de papel de tamanho carta.
Com as duas extensões musculares da ponta, pode remover um es­
pinho, pegar um alfinete ou uma moeda de 10 centavos, destam­
par uma garrafa, puxar suavemente a lingüeta da porta de uma
jaula e escondê-la numa saliência, ou segurar uma xícara tão for­
temente, sem quebrá-la, que somente outro elefante consegue ti­
rá-la. A ponta é suficientemente sensível para que um elefante
com os olhos vendados acerte a forma e textura de objetos. Em
estado selvagem, os elefantes usam a tromba para puxar torrões de
grama e batê-los contra os joelhos para retirar a sujeira, para pe­
gar cocos sacudindo os coqueiros, e para espalhar poeira sobre o
corpo. Usam a tromba para verificar o terreno onde pisam, evi­
tando assim armadilhas, e para cavar poços e aspirar água deles.
Os elefantes conseguem andar debaixo da água no leito de rios
profundos ou nadar como submarinos por vários quilômetros,

425
I O instinto da linguagem I

usando a tromba como snorkel. Comunicam-se por meio da trom­


ba barrindo, zunindo, rugindo, apitando, ronronando, ribomban-
do e fazendo um som metálico de amassar por meio de golpes rá­
pidos com a tromba contra o chão. A tromba possui quimiorre-
ceptores que permitem ao elefante detectar pelo cheiro uma ji­
bóia escondida na relva ou alimento a um quilômetro e meio de
distância.
Os elefantes são os únicos animais vivos que possuem esse ór­
gão extraordinário. Seu parente mais próximo vivo é o hírax, um
mamífero que você provavelmente não conseguiría distinguir de
um grande porquinho-da-índia. É possível que até agora você não
tenha parado para pensar no caráter único da tromba do elefante.
Nenhum biólogo deve ter feito muito estardalhaço a respeito. Mas
imagine agora o que aconteceria se alguns biólogos fossem elefan­
tes. Obcecados com o lugar único que a tromba ocupa na nature­
za, perguntar-se-iam sobre sua evolução, já que não existe outro
organismo com uma tromba ou algo semelhante. Uma escola ten­
taria conceber maneiras de diminuir o abismo. Em primeiro lugar,
mostrariam que o elefante e o hírax compartilham cerca de 90%
de seu DNA e portanto talvez não sejam tão diferentes assim.
Poderiam dizer que a tromba talvez não seja tão complexa como
se pensava; talvez o número de músculos tenha sido sobrestimado.
Notariam também que, na verdade, o hírax tem uma tromba que,
por algum motivo, ninguém notou; afinal de contas, o hírax tem
narinas. Embora tenham fracassado em todas as suas tentativas de
treinar híraces para agarrar objetos com as narinas, alguns comu­
nicariam com alarde seu sucesso em treinar híraces para empurrar
palitos de dente com a língua, destacando que a diferença entre
empilhar troncos de árvore e desenhar num quadro-negro é uma
mera questão de grau. A escola adversária, sem contradizer o cará­
ter único da tromba, insistiría em que ela apareceu de repente en­
tre os descendentes de um determinado elefante ancestral desti­
tuído de tromba, como resultado de uma única e dramática muta­

426
I O Big Bang I

ção. Ou então, poderíam dizer que a tromba surgiu de alguma ma­


neira como um subproduto automático do fato de o elefante ter
desenvolvido uma cabeça grande. Acrescentariam assim mais um
paradoxo à evolução da tromba: a tromba é absurdamente mais
intricada e bem coordenada do que aquilo de que um elefante an­
cestral teria necessitado.
Estes argumentos podem parecer curiosos, mas cada um deles
foi feito por cientistas de diferentes espécies sobre um órgão com­
plexo que somente aquela espécie possui, a linguagem. Como ve­
remos neste capítulo, Chomsky e alguns de seus mais ferrenhos
oponentes concordam numa coisa: que um instinto da linguagem
unicamente humano é incompatível com a moderna teoria darwi-
niana da evolução, segundo a qual sistemas biológicos complexos
surgem pela gradual acumulação ao longo de muitas gerações de
mutações genéticas aleatórias que conseguem se reproduzir. Ou
bem não existe instinto da linguagem, ou então deve ter evoluído
de outra maneira. Já que venho tentando convencê-los de que exis­
te um instinto da linguagem, mas certamente o perdoaria se você
acreditasse mais em Darwin do que em mim, gostaria também de
convencê-lo de que não precisa fazer esta escolha. Embora conhe­
çamos poucos detalhes sobre como evoluiu o instinto da lingua­
gem, não há motivos para duvidar de que a principal explicação é
a mesma que se aplica a qualquer outro instinto ou órgão comple­
xo: a teoria da seleção natural de Darwin.

❖ ❖

Obviamente, a linguagem é tão diferente dos sistemas de co­


municação de outros animais quanto a tromba do elefante é dife­
rente das narinas de outros animais. Os sistemas de comunicação
não humanos baseiam-se em uma dentre três organizações: um re­
pertório finito de chamados (um para avisar da presença de preda­
dores, um para reivindicar território etc.), um sinal analógico con­

427
I O instinto da linguagem I

tínuo que registra a magnitude de algum estado (quanto mais vi­


vaz a dança da abelha, mais ela expressa a riqueza da fonte de ali­
mento para as colegas da colméia), ou uma série de variações alea­
tórias sobre um tema (o canto de um pássaro repetido a cada vez
com um novo tratamento: Charlie Parker com penas). Como vi­
mos, a linguagem humana organiza-se de forma bem diferente. O
sistema combinatório discreto denominado “gramática” torna a
linguagem humana infinita (não há limite para o número de pala­
vras ou frases complexas numa língua), digital (obtém-se esta in­
finidade pelo rearranjo de elementos discretos em determinadas
ordens e combinações, e não pela variação de algum sinal ao lon­
go dc um continuum como o mercúrio num termômetro) e com-
posicional (cada uma das combinações infinitas tem um significa­
do diferente previsível a partir do significado de suas partes e das
regras e princípios que as ordenam).
Até mesmo o sítio da linguagem humana no cérebro é especial.
Os chamados vocais dos primatas são controlados não por seu cór­
tex cerebral mas por estruturas nervosas filogeneticamente mais
antigas do tronco cerebral e do sistema límbico, estruturas profun­
damente relacionadas com a emoção. Vocalizações humanas dife­
rentes da linguagem, como soluços, risos, gemidos c gritos dc dor,
também são controladas subcorticalmentc. As estruturas subcor-
ticais controlam até mesmo as imprccaçõcs que se seguem à che­
gada dc um martelo num dedo, que emergem como tique invo­
luntário na síndrome deTourcttc, e que podem ser a única coisa
que resta da fala em afásicos de Broca. Como vimos no capítulo
anterior, a verdadeira linguagem tem por localização o córtex ce­
rebral, em particular a região à esquerda do sulco lateral.
Alguns psicólogos acham que mudanças nos órgãos vocais e
nos circuitos neurais que produzem e percebem os sons da fala
são os únicos aspectos da linguagem que evoluíram em nossa espé­
cie. De acordo com este ponto de vista, existem algumas capaci­
dades gerais de aprendizagem que podem ser encontradas em todo

428
I O Big Bang I

o reino animal, e que funcionam de modo mais eficiente nos seres


humanos. Em algum ponto da história a linguagem foi inventada e
refinada, e desde então passamos a aprendê-la. A idéia de que com­
portamentos específicos de uma espécie são causados pela anato­
mia e pela inteligência geral foi bem captada no cartum la r Side de
Gary Larson, em que dois ursos estão escondidos atrás de uma ár­
vore perto de um casal humano descansando sobre um lençol. Um
deles diz: “Cara! Olhe estas presas!... Olhe estas mandíbulas!... Vo­
cê acha que a gente foi feito para comer só mel e frutas?”
Segundo essa hipótese, os chimpanzés são os segundos melho­
res aprendizes do reino animal, e portanto também deveríam ser
capazes de adquirir uma língua, embora mais simples. O que fal­
ta é um professor. Nas décadas de 1930 e 1940, dois casais de
psicólogos adotaram bebês chimpanzés. Eles se tornaram parte da
família e aprenderam a se vestir, usar o banheiro, escovar os den­
tes e lavar a louça. Um deles, Gua, foi criado junto com um meni­
no da mesma idade mas nunca falou uma só palavra. A outra,
Viki, foi submetida a treinamento intensivo de fala, que consistiu
sobretudo na modelagem, por parte dos pais adotivos, dos lábios
e língua da chimpanzé atônita para que adotasse as formas corre­
tas. Depois de muito exercício, e muitas vezes com a ajuda de suas
próprias mãos, Viki aprendeu a emitir três sons que um ouvinte
generoso poderia escutar como papa, mama e cup, embora ela fre-
qüentemente os confundisse quando ficava agitada. Conseguia res­
ponder a algumas expressões estereotipadas, como Kíss me e Bring
me the dog [Dê-me um beijo; Traga o cachorro], mas mirava perple­
xa quando lhe pediam para responder a uma combinação nova
como Kíss the dog [Dê um beijo no cachorro],
Mas Gua e Viki tinham uma desvantagem: foram forçados a
usar seu aparelho fonador, que não estava desenhado para falar e
que eles não podiam controlar voluntariamente. A partir de finais
de 1960, vários projetos famosos afirmaram ter ensinado língua
para filhotes de chimpanzé com a ajuda de meios mais amigáveis

429
I O instinto da linguagem

para seu usuário. (Usam-se filhotes de chimpanzé porque os adul­


tos não são aqueles palhaços peludos de macacão que você vê na
televisão, mas animais selvagens fortes e perversos que já morde­
ram os dedos de muitos psicólogos conhecidos.) Sarah aprendeu
a juntar em seqüência formas plásticas magnetizadas sobre um
quadro. Lana e Kanzi aprenderam a apertar botões com símbolos
num grande console de computador ou apontar para eles numa
prancha portátil. Dizem que Washoe e Koko (uma gorila) apren­
deram a Língua Americana de Sinais. Segundo seus treinadores,
estes macacos aprenderam centenas de palavras, juntaram-nas em
frases com sentido, e cunharam novos sintagmas, como water biri
[pássaro de água] para um cisne e cookie rock [pedra de biscoito]
para um pão doce amanhecido. “A língua deixou de ser proprie­
dade exclusiva do homem”, disse a treinadora dc Koko, Francine
(Penny) Patterson.
Tais alegações logo tomaram conta da imaginação popular e sc
disseminaram em livros de divulgação científica, revistas e progra­
mas de televisão como National Geographic, Nova, Sixty Minutes e 20/20.
Esses projetos pareciam não só realizar nosso antigo sonho de fa­
lar com os animais, como também os meios de comunicação não
perderam a oportunidade de divulgar fotos de mulheres atraentes
cm comunhão com macacos, evocativas do arquétipo da bela e a
fera. Alguns desses projetos receberam cobertura de revistas como
People, Life e Penthouse, e foram romanceados num filme ruim, estre­
lado por H olly Hunter, denominado Uma pesquisa romântica e num
famoso comercial da Pepsi.
Muitos cientistas também ficaram interessados, por ver nesses
projetos uma saudável redução do arrogante chauvinismo de nos­
sa espécie. Cheguei a ler colunas de divulgação científica que in­
cluem a aquisição da linguagem pelos chimpanzés como uma das
maiores descobertas científicas do século. Num livro recente, am­
plamente difundido, Carl Sagan e Ann Druyan usaram os experi­
mentos com linguagem de macacos como um chamado para rea­
valiarmos nosso lugar na natureza:

430
I 0 Big Bang I

Uma clara distinção entre seres humanos e “animais” é essencial


se pretendermos submetê-los à nossa vontade, fazê-los trabalhar
para nós, vesti-los, comê-los —sem qualquer inquietante sentimento
de culpa ou remorso. Com a consciência tranqüila, podemos extin-
guir espécies inteiras —como fazemos atualmente na velocidade de
100 espécies por dia. E uma perda sem importância: estes seres, di­
zemos para nós mesmos, não são como nós. Um abismo intranspo­
nível desempenha, portanto, um papel prático além do mero afago
dos egos humanos. Não devemos nos orgulhar da vida que levam os
macacos? Não deveriamos ficar agradecidos por saber que temos al­
guma relação com Leakey, Imo ou Kanzi? Lembrem-se daqueles ma­
cacos que preferiam passar fome a prejudicar seus semelhantes; po­
deriamos ter uma visão mais otimista do futuro da humanidade se
tivéssemos a certeza de que nossos padrões éticos equivalem aos de­
les? E, deste ponto de vista, como julgar a maneira como tratamos
os macacos?

Este raciocínio bem-intencionado mas equivocado só poderia


ter vindo de escritores que não são biólogos. Será realmente “hu­
mildade” de nossa parte salvar espécies da extinção porque acha­
mos que são iguais a nós? Ou porque eles parecem um bando de
caras legais? E todos os animais horripilantes, maldosos, egoístas
que não se parecem conosco, ou com a imagem do que gostaría­
mos de ser —podemos ir em frente e eliminá-los? E Sagan e Druyan
não são amigos dos macacos se acham que o motivo pelo qual de­
veriamos tratar bem os macacos é que eles podem aprender a lín­
gua humana. Como muitos outros escritores, Sagan e Druyan são
crédulos demais em relação às declarações dos treinadores de
chimpanzés.
Pessoas que passam muito tempo com animais tendem a de­
senvolver atitudes indulgentes em relação às suas capacidades de
comunicação. Minha tia-avó Bella insistia em afirmar com toda
sinceridade que seu gato siamês Rusty entendia inglês. Muitas das
afirmações dos treinadores de macacos não eram muito mais cien­

431
I O instinto da linguagem I

tíficas. A maioria deles formou-se na tradição behaviorista de B.


F. Skinner e ignora o estudo da língua; eles se agarraram às mais
tênues semelhanças entre chimpanzés e crianças e declararam que
suas habilidades são fundamentalmente as mesmas. Os mais entu­
siastas passaram por cima dos cientistas e defenderam publicamen­
te suas idéias diretamente no Tonight Show e no National Geograpbic.
Patterson em particular justificou o desempenho de Koko afir­
mando que a gorila gosta de trocadilhos, piadas, metáforas e men­
tiras travessas. Em geral, quanto mais contundentes são as afirma­
ções sobre as habilidades do animal, mais escassos são os dados
disponíveis para avaliação da comunidade científica. A maioria dos
treinadores se recusou a fornecer seus dados primários, e os trei­
nadores de Washoe, Beatricc c Alan Gardner ameaçaram proces­
sar outro pesquisador porque ele usou imagens dc um dc seus fil­
mes (os únicos dados disponíveis) num artigo científico crítico.
Este pesquisador, Hcrbert Terrace, junto com os psicólogos Lau-
ra Ann Pctitto, Richard Sanders eTom Bever, haviam tentado en­
sinai- ASL a um dos parentes de Washoe, a quem eles apelidaram
dc Nim Chimpsky. Tabularam e analisaram cuidadosamente seus
sinais, c Pctitto, com o psicólogo M ark Seidenberg, também exa­
minou pormenorizadamente videoteipes c todos os dados publi­
cados sobre os outros macacos que se expressavam por sinais, c
cujas habilidades eram semelhantes às dc Nim. Mais rcccntcmen-
tc, Joel Wallman escreveu uma história sobre o tema intitulada
Aping Language. A moral das investigações deles é: Não acredite em
tudo o que você escuta no Tonight Show.
Para começo de conversa, os macacos não “aprenderam a Lín­
gua Americana de Sinais”. Essa afirmação absurda baseia-se no
mito de que a ASL é um sistema rudimentar de pantomimas e ges­
tos e não uma língua plena com fonologia, morfologia e sintaxe
complexas. Na verdade, os macacos não tinham aprendido nenhum
sinal de ASL. O único deficiente auditivo da equipe de Washoe
que se expressava por sinais teceu, tempos depois, os seguintes co­
mentários ingênuos:

432
I O Big Bang I

Cada vez que o chimpanzé fazia um sinal, tínhamos de anotá-lo no


registro... Eles sempre se queixavam porque no meu registro não ha­
via muitos sinais. Todas as pessoas ouvintes apresentavam registros
com longas listas de sinais. Sempre viam mais sinais que eu... Eu ob­
servava com muito cuidado. O chimpanzé movimentava as mãos sem
parar. Talvez eu tenha deixado de perceber alguma coisa, mas acho que
não. Eu simplesmente não via sinais. Os ouvintes anotavam qualquer
movimento que o chimpanzé fazia como um sinal. Cada vez que ele
punha o dedo na boca, eles diziam: “Oh, ele está fazendo o sinal de
beber", e eles lhe davam leite... Quando o macaco se coçava, registravam
isso como um sinal de coçar... Quando [os chimpanzés] querem algo,
eles pegam. As vezes [o treinador] dizia: “Oh, que interessante, veja
isso, é exatamente como o sinal em ASL para dar'!’ Não era.

Para chegar a cem na sua contagem do vocabulário, os investi­


gadores também “traduziam” o ato de apontar dos chimpanzés
como um sinal para você, seus abraços como um sinal para abraçar,
seus movimentos de cutucar, coçar e beijar como sinais de cutucar,
coçar e beijar. Muitas vezes o mesmo movimento era tomado por
“palavras” diferentes, dependendo da palavra que os observadores
considerassem mais apropriada no contexto. Nos experimentos
em que os chimpanzés interagem com um console de computa­
dor, a tecla que o macaco tinha de apertar para ligar o compu­
tador foi traduzida pela expressão por favor. Petitto acredi ta que
com critérios mais padronizados o vocabulário somaria algo em
torno de 25 palavras e não 125.
Na verdade, o que os chimpanzés estavam realmente fazendo
era mais interessante do que o que lhes foi atribuído. Jane Goodall,
numa visita ao projeto, comentou comTerrace e Petitto que cada
um dos supostos sinais de Nim lhe era familiar a partir de suas
observações de chimpanzés em estado selvagem. Os chimpanzés
estavam se amparando muito mais nos gestos de seu repertório
natural do que aprendendo os sinais arbitrários da ASL, com sua
estrutura fonológica combinatória de formas de mão, movimen­

433
I O instinto da linguagem I

tos, localizações e orientações. Tais recaídas são comuns quando


humanos treinam animais. Dois discípulos empreendedores de B.
F. Skinner, Keller e Marian Breland, adotaram seus princípios de
moldagem do comportamento de ratos e pombos com programas
de recompensa e transformaram-nos numa lucrativa carreira de
treinadores de animais de circo. Contaram suas experiências num
famoso artigo intitulado “The Misbehavior o f Organisms”1, uma
brincadeira com o livro de Skinner O comportamento dos organismos
[1938]. Para certos números circenses, os animais foram treina­
dos para inserir fichas de pôquer em pequenos toca-discos e má­
quinas automáticas em troca de uma recompensa em comida.
Embora os programas de treinamento fossem os mesmos para os
vários animais, os instintos específicos de cada espécie se faziam
notar. As galinhas bicavam espontaneamente as fichas, os porcos
as empurravam e revolviam com o focinho e os guaxinins as esfre­
gavam e limpavam.
As habilidades dos chimpanzés em relação a qualquer coisa
que se possa chamar de gramática eram quase nulas. Sinais não
eram coordenados nos contornos bem definidos dos movimentos
da ASL e não eram flexionados em função do aspecto, concor­
dância etc. —uma importante omissão, pois a flexão é o meio fun­
damental na ASL para transmitir quem fez o que para quem e
muitos outros tipos de informação. Ё comum treinadores afirma­
rem que os chimpanzés têm sintaxe, porque às vezes pares de si­
nais são colocados numa certa ordem numa freqüência maior do
que o acaso permitiría, e porque os chimpanzés mais inteligentes
conseguem atuar seqüências como Would you please carry the cooler to
Penny [Você poderia por favor levar o refresco para Penny], Mas
lembremos do Prêmio Loebner (para a mais convincente simula­
ção de computador de um parceiro de conversa) e de como era fá­
cil enganar as pessoas e fazê-las pensar que seus interlocutores ti­

I. “O mau comportamento dos organismos.” (N. da R. T.)

434
I O Big Bang I

nham talentos humanos. Para compreender o pedido, o chimpan­


zé podería ignorar os símbolos você, podería, por favor, levar, o e para; o
chimpanzé só tinha de perceber a ordem dos dois substantivos (e
na maioria dos testes, nem mesmo isso, porque é mais natural le­
var um refresco para uma pessoa do que uma pessoa para um re­
fresco). E verdade que alguns chimpanzés conseguem cumprir es­
sas ordens de forma mais confiável que uma criança de dois anos,
mas isso diz mais sobre temperamento do que sobre gramática: os
atos dos chimpanzés são muito treinados, e uma criança de dois
anos é uma criança de dois anos.
Em se tratando de produção espontânea, não há comparação.
Depois de muitos anos de treinamento intensivo, o comprimento
médio das “frases” dos chimpanzés permanece constante. Com a
mera exposição a falantes, o comprimento médio das frases de
uma criança dispara como um foguete. Lembre-se de que frases tí­
picas de uma criança de dois anos são Look at that train Ursula hrought
[Olha o trem que a Ursula trazeu] e Wegoing turn light on so you can’t
see [A gente vamos ligar luz pra você não ver]. Frases típicas de um
chimpanzé treinado para falar são:

Nim eat Nim eat.


Drink eat me Nim.
Me gum me gum.
Tickle me Nim play.
Me eat me eat.
Me banana you banana me you give.
You me banana me banana you.
Banana me me me eat.
Give orange me give eat orange me eat orange give me eat orange give
me you.2

2. Nim comer Nim. comer./Beber comer mim N im./M im goma mim goma./Cócegas mim
Nim brincar./Mim comer mim comer./Mim banana você banana mim você dar./Você
mim banana mim banana você./Banana mim mim mim comer./Dar laranja mim dar co­
mer laranja mim comer laranja dar mim comer laranja dar mim você. (N. daT.)

435
I O instinto da linguagem I

Essas mixórdias não têm qualquer semelhança com frases de


crianças. (È claro que se alguém ficar olhando longamente acaba­
rá encontrando combinações aleatórias na gesticulação dos chim­
panzés que podem ser interpretadas como, por exemplo, water bird).
No entanto, as cadeias de palavras se parecem efetivamente com o
comportamento animal em estado selvagem. O zoólogo E. O.
Wilson, resumindo um levantamento sobre comunicação animal,
destacou sua propriedade mais evidente: os animais —disse ele —
são “tão repetitivos que chegam a nos enlouquecer”.
Mesmo deixando de lado vocabulário, fonologia, morfologia e
sintaxe, o que mais impressiona na expressão por sinais dos chim­
panzés é que fundamentalmente, lá no fundo, eles simplesmente
não “sacam nada”. Eles sabem que os treinadores gostam que fa­
çam sinais e que fazendo muitos sinais conseguem o que querem,
mas nunca parecem intuir de fato o que c língua c como usá-la.
Eles não tomam a palavra numa conversa, gesticulam alegre e si­
multaneamente com seus parceiros, muitas vezes de lado ou de­
baixo de uma mesa e não no espaço padronizado de gesticulação
diante do corpo do interlocutor. (Chimpanzés também gostam
de fazer sinais com os pés, mas ninguém os recrimina por tirarem
vantagem deste dom anatômico.) E muito raro um chimpanzé fa­
zer sinais espontaneamente; eles têm dc ser moldados, exercitados
e coagidos. Muitas de suas “frases”, sobretudo aquelas com uma
ordenação sistemática, são imitações diretas do que o treinador
acabou de sinalizar, ou variantes de um pequeno número de fór­
mulas para as quais foram treinados milhares de vezes. Eles nem
mesmo entendem que um determinado sinal se refere a certo ob­
jeto. A maioria dos sinais para objetos feitos pelos chimpanzés re­
fere-se a qualquer aspecto da situação com que um objeto costu­
ma estar associado. Escova de dente pode significar “escova de den­
te”, “pasta de dente”, “escovar os dentes”, “quero minha escova de
dente” ou “E hora de ir para a cama”. Suco pode significar “suco”,
“onde se costuma guardar o suco”, ou “Leve-me para o lugar onde

436
I O Big Bang I

o suco costuma ser guardado”. Recordemos que, conforme os ex­


perimentos de Ellen Markman expostos no Capítulo 5, as crian­
ças usam essas associações “temáticas” ao reunir imagens em gru­
pos, mas ignoram-nas ao aprender o significado das palavras: para
elas, um dax é um cão ou outro cão, não um cão ou seu osso.
Além disso, os chimpanzés raramente fazem declarações comen­
tando objetos ou ações interessantes; praticamente todos os seus
sinais são pedidos de algo que querem, geralmente comida ou que
alguém os coce. Não posso me impedir de pensar na minha sobri­
nha de dois anos, Eva, que evidencia a diferença entre a mente de
uma criança e a de um chimpanzé. Certa noite, a família viajava
por uma auto-estrada; quando a conversa dos adultos cessou, ou­
viu-se uma vozinha vinda do assento traseiro: “Rosa.” Segui seu
olhar, e lá longe no horizonte, a muitos quilômetros de distância,
via-se uma luz néon rosa. Ela estava comentando sobre a cor, ape­
nas por comentar a cor.
No campo da psicologia, a maioria das afirmações sobre a lín­
gua dos chimpanzés é coisa do passado. Como já dissemos, o trei­
nador de Nim, Herbert Terrace, passou do entusiasmo à denún­
cia. David Premack, treinador de Sarah, não afirma que o que ela
adquiriu é comparável à linguagem humana; ele emprega o siste­
ma de símbolos como ferramenta para fazer psicologia cognitiva
de chimpanzés. Há mais de uma década os Gardners e os Patter-
son se afastaram do discurso da comunidade científica. Resta
atualmente apenas uma equipe que continua a fazer afirmações so­
bre linguagem. Sue Savage-Rumbaugh e Duane Rumbaugh con­
cordam que os chimpanzés que eles treinaram no console de com­
putador não aprenderam muito. Mas agora eles dizem que uma
outra variedade de chimpanzés apresenta resultados bem melho­
res. Os chimpanzés originam-se de uma meia dúzia de “ilhas” iso­
ladas na floresta do oeste do continente africano, formando gru­
pos que no último milhão de anos foram se diversificando tanto
que alguns deles são às vezes classificados como espécies diferen­

437
I O instinto da linguagem I

tes. A maioria dos chimpanzés treinados eram “chimpanzés co­


muns”; Kanzi é um “chimpanzé pigmeu” ou “bonobo”, e ele
aprendeu a bater em símbolos visuais numa prancheta portátil.
Kanzi, diz Savage-Rumbaugh, se sai muito melhor na aprendiza­
gem de símbolos (e na compreensão da linguagem falada) do que
chimpanzés comuns. Não é claro por que se espera que ele tenha
um desempenho tão melhor que os membros de sua espécie irmã;
ao contrário do que foi dito em algumas reportagens, chimpanzés
pigmeus não têm um parentesco mais próximo com os humanos
do que os chimpanzés comuns. Dizem que Kanzi aprendeu os
símbolos gráficos sem treinamento intensivo —mas ele estava ao
lado da sua mãe observando o treinamento (malsucedido) a que
ela foi submetida. Dizem que ele emprega símbolos para outras
coisas além de pedir —mas isso, na melhor das hipóteses, apenas
4% das vezes. Dizem que ele usa “frases” compostas de três sím­
bolos —mas na verdade trata-se de fórmulas fixas sem estrutura
interna e nem mesmo compostas de três símbolos. As assim cha­
madas frases são todas cadeias, como o símbolo para pegar seguido
do símbolo para esconder seguido de um gesto de apontar para a
pessoa com quem Kanzi quer brincar de pegar e esconder. As ha­
bilidades lingüísticas de Kanzi, se quisermos ser generosos, supe­
ram as de seus primos comuns em apenas uma minúscula diferen­
ça, nada mais.
E uma ironia que a suposta tentativa de rebaixar o Homo sapiens
alguns pontos na ordem natural tenha adotado a forma de huma­
nos atormentando outra espécie para que esta rivalize com nossa
forma instintiva de comunicação, ou alguma forma artificial que
inventamos, como se fôssemos a medida biológica de valor. A re­
sistência dos chimpanzés não é nenhuma vergonha; um humano
certamente não se sairia melhor se fosse treinado para chirriar e
guinchar como um chimpanzé, projeto simétrico de igual signifi­
cado científico. Na verdade, a idéia de que alguma espécie precisa
de nossa intervenção para que seus membros possam exibir uma

438
I O Big Bang I

habilidade útil, como um pássaro que só conseguisse voar depois


de receber educação humana, está muito longe de ser uma idéia
humilde!

M uito bem, então a linguagem humana difere radicalmente da


comunicação animal natural e artificial. E daí? Algumas pessoas,
evocando a insistência de Darwin no caráter gradual das mudan­
ças evolutivas, parecem acreditar que um exame detalhado do com­
portamento dos chimpanzés é desnecessário: eles devem, por prin­
cípio, ter alguma forma de linguagem. Elizabeth Bates, uma críti­
ca ferrenha das abordagens chomskianas da linguagem, escreve:

Se os princípios estruturais básicos da linguagem não podem ser


aprendidos (bottom up) ou derivados (top down), existem apenas duas
explicações possíveis para sua existência: ou fomos dotados da Gra­
mática Universal diretamente pelo Criador, ou então nossa espécie
sofreu uma mutação de magnitude nunca vista, um equivalente cog­
nitivo do Big Bang... Devemos descartar todas as versões da teoria da
descontinuidade que caracterizou a gramática gerativa durante trinta
anos. Temos de encontrar um meio de fundamentar símbolos e sinta­
xe no material mental que compartilhamos com outras espécies.

No entanto, se, ao que tudo indica, a linguagem humana é real­


mente única no moderno reino animal, a implicação disso em ter­
mos de uma explicação darwiniana de sua evolução seria a seguin­
te: nenhuma. Um instinto da linguagem exclusivo dos humanos
modernos não é um paradoxo maior do que um tromba exclusiva
dos elefantes modernos. Nenhuma contradição, nenhum Criador,
nenhum Big Bang.
Os biólogos evolucionistas modernos ficam alternadamente
felizes e chateados com um fato curioso. Embora a maioria das
pessoas cultas professe sua crença na teoria de Darwin, aquilo em

439
I O instinto da linguagem I

que elas realmente acreditam é numa versão modificada da antiga


noção teológica da Grande Cadeia dos Seres, segundo a qual to­
das as espécies estão ordenadas numa hierarquia linear com os hu­
manos no topo. A contribuição de Darwin, na opinião delas, foi
mostrar que cada espécie na escada evoluiu a partir da espécie si­
tuada um degrau abaixo, em vez de ter recebido seu lugar de Deus.
Com uma vaga lembrança das aulas de biologia em que fizeram
um passeio pelos filos, desde os “primitivos” até os “modernos”,
em termos gerais as pessoas pensam assim: das amebas surgiram as
esponjas das quais surgiram as medusas das quais surgiram os pla-
telmintos dos quais surgiram as trutas das quais surgiram os sapos
dos quais surgiram os lagartos dos quais surgiram os dinossau­
ros dos quais surgiram os tamanduás dos quais surgiram os macacos
dos quais surgiram os chimpanzés dos quais surgimos nós. (Pulei
algumas etapas em prol da brevidade.)

Amebas
A Teoria Equivocada I
Esponjas
I
Medusas

Platelmintos

Trutas

Sapos
I
Lagartos

Dinossauros
I
Tamanduás
I
Macacos

Chimpanzés

H o m o sa p ien s

Daí o paradoxo: os humanos desfrutam de linguagem, ao passo


que seus vizinhos no degrau logo acima não dispõem de nada pa-

440
I O B ig B ang I

recido. Esperamos uma passagem suave, mas o que vemos é um


Big Bang.
Mas a evolução não construiu uma escada; fez uma touceira.
Não evoluímos dos chimpanzés. Nós e os chimpanzés evoluímos
de um ancestral comum, agora extinto. O ancestral humano-chim-
panzé não evoluiu dos macacos mas de um ancestral dos dois
ainda mais antigo, também extinto. E assim por diante, retroce­
dendo até nossos antepassados unicelulares. Os paleontólogos
gostam de dizer que, numa primeira aproximação, todas as espé­
cies estão extintas (a estimativa é de 99% ). Os organismos que
encontramos à nossa volta são primos distantes e não bisavós;
são umas poucas pontas de galhozinhos de uma enorme árvore
cujos ramos e tronco não mais se encontram entre nós. Sim­
plificando bastante:

Examinando mais de perto o nosso ramo, vemos os chimpan­


zés de fora, num sub-ramo separado, e não logo acima de nós.

441
I O instinto da linguagem I

A Teoria Equivocada A Teoria Correta


Macacos
I
Orangotangos

Gorilas
I
Chimpanzés
I
H o m o sa p ien s

H o m o h a b ilis
I
H o m o erectu s

Neanderthal
Gorilas Chimpanzés H om o
sa p ien s
moderno

Vemos também que uma primeira forma de linguagem poder ia


ter surgido na posição que a flecha indica, depois que o ramo que
leva aos humanos se separou daquele que leva aos chimpanzés. O
resultado disso seriam chimpanzés destituídos de linguagem e
aproximadamente cinco a sete milhões de anos durante os quais a
linguagem poderia ter evoluído gradualmente. Na verdade, pode­
mos nos aproximar ainda mais, porque espécies não se acasalam e
produzem espécies filhotes; os organismos se acasalam e produ­
zem organismos filhotes. As espécies são uma abreviação de peda­
ços de uma vasta árvore genealógica composta de indivíduos, tais
como um determinado gorila, chimpanzé, australopiteco, erectus, sa­
piens arcaico, Neanderthal e sapiens moderno a quem dei nomes nes­
sa árvore genealógica:

442
I O Big Bang I

Portanto, se o primeiro vestígio de uma habilidade protolin-


güística apareceu no ancestral na altura da flecha, poder-se-ia pen­
sar em algo da ordem de 350.000 gerações entre aquele momen­
to e agora para que essa habilidade fosse elaborada e aprimorada
até chegar à Gramática Universal que conhecemos hoje. Até onde
sabemos, a linguagem poderia ter sofrido uma evolução gradual,
mesmo que nenhuma espécie existente, nem mesmo nossos paren­
tes vivos mais próximos, os chimpanzés, disponham dela. Houve
um monte de organismos com habilidades linguísticas interme­
diárias, mas eles estão todos mortos.
Eis outra maneira de pensar a respeito. As pessoas vêem os
chimpanzés, a espécie viva mais próxima de nós, e tendem a con­
cluir que eles, em última instância, devem ter alguma habilidade

443
O instinto da linguagem I

lingüística ancestral. Mas, pelo fato de a árvore evolutiva ser uma


árvore de indivíduos e não de espécies, “a espécie viva mais próxi­
ma de nós” não ocupa uma posição especial; o que essa espécie é
depende dos acidentes da extinção. Tente fazer o seguinte experi­
mento mental. Imagine antropólogos descobrindo uma popula­
ção sobrevivente de Homo habilis em alguma terra remota. Agora,
os Habilis seriam nossos parentes vivos mais próximos. Será que
isso desviaria o foco dos chimpanzés, de modo que deixasse de ser
tão importante que eles tivessem algo parecido com linguagem?
Ou então, pense o contrário. Imagine que alguma epidemia exter­
minou todos os macacos milhares de anos atrás. Darwin estaria
em perigo se não conseguíssemos demonstrar que os macacos ti­
nham linguagem? Sc vocc se inclina a responder que sim, dê um
passo a mais no experimento mental: imagine que, no passado, al­
guns extraterrestres desenvolveram uma mania por casacos dc pele
de primatas, c por isso caçaram todos os primatas, exceto aqueles
destituídos de pêlos, provocando sua extinção. Será que os insetí­
voros, como tamanduás, teriam de arcar com a responsabilidade
por uma protolinguagem? E se os alienígenas tivessem perseguido
mamíferos cm geral? Ou desenvolvido um gosto por carne dc ver­
tebrados, poupando-nos porque gostam de assistir às reprises dc
Sitcoin que inadvertidamente transmitimos para o espaço? Tería-
mos então dc ir atrás dc estrelas-do-mar falantes? Ou fundamen­
tar a sintaxe no material mental que compartilhamos com pepi-
nos-do-mar?
E óbvio que não. Nosso cérebro, e o cérebro de chimpanzés, e
o cérebro dc tamanduás têm as conexões que têm; as conexões não
podem mudar dependendo de qual outra espécie sobreviveu ou foi
extinta por acaso num outro continente. A questão central desses
experimentos mentais é que o caráter gradual tão enfatizado por
Darwin aplica-se a linhagens de organismos individuais numa ár­
vore genealógica espessa, e não a toda uma espécie viva numa gran­
de cadeia. Por razões que logo compreenderemos, é improvável

444
I O Big Bang I

que um macaco ancestral que nada mais faz que assobiar e gru­
nhir tenha gerado um bebê que pudesse aprender inglês ou kivunjo.
Mas nem teria de fazê-lo; houve uma cadeia de milhões de gerações
de netos em que tais habilidades puderam florescer gradualmente.
Para determinar quando realmente a linguagem começou, temos
de olhar para pessoas, olhar para animais, e perceber o que vemos;
não podemos usar a idéia de continuidade entre espécies para de­
cidir sobre a resposta sentados numa poltrona.
A diferença entre touceira e escada também permite colocar
um fim num debate infrutífero e entediante. E o debate sobre o
que seria uma Verdadeira Linguagem. Um dos lados arrola algumas
qualidades que a linguagem humana tem mas que até agora nenhum
animal demonstrou: referência, uso de símbolos situados no tem­
po e no espaço em relação a seus referentes, criatividade, percep­
ção categorial da fala, ordenação coerente, estrutura hierárquica,
infinidade, rccursividade etc. O outro lado encontra algum con-
tra-cxemplo no reino animal (talvez certos periquitos consigam
discriminar sons de fala, ou golfinhos ou papagaios consigam res­
peitar a ordem de palavras ao executar comandos, ou algum pássa­
ro canoro consiga improvisar indefinidamente sem se repetir) e
então regozija-se com o fato de que a cidadela da singularidade
humana foi derrubada. O time da Singularidade Humana renun­
cia a determinado critério mas enfatiza outros ou acrescenta no­
vos à lista, provocando sérias objeções de que eles estão mudando
de lugar as traves do gol. Para percebermos como tudo isso é bobo,
imagine um debate sobre quais platelmintos têm a Verdadeira
Visão ou moscas caseiras têm Verdadeiras Mãos. Será que ter íris
é decisivo? Cílios? Unhas? Que importa? E um debate para lexicó­
grafos, não para cientistas. Platão e Diógenes não estavam fazen­
do biologia quando Platão definiu o homem como um “bípede
sem penas” e Diógenes refutou com um frango depenado.
A falácia em tudo isso é a idéia de que se possa traçar uma li­
nha ao longo da escada, com as espécies dos degraus superiores

445
I O instinto da linguagem I

possuindo algum traço glorioso e as dos inferiores, não. Na árvo­


re da vida, traços como olhos ou mãos ou vocalizações infinitas
podem surgir em qualquer ramo, ou várias vezes em diferentes ra­
mos, alguns dos quais conduzem aos humanos, outros não. Há
uma importante questão científica em jogo, mas ela não consiste
em decidir se alguma espécie possui a verdadeira versão de um tra­
ço em oposição a alguma pálida imitação ou vil impostor. A ques­
tão é saber quais traços são homólogos a quais outros.
Os biólogos distinguem dois tipos de similaridade. Traços
“análogos” são aqueles que têm uma função comum mas surgem
em ramos diferentes da árvore evolutiva e, num importante senti­
do, não são “o mesmo” órgão. Asas de pássaros e asas de abelhas
são um exemplo típico; ambas são usadas para voar e são de certa
maneira semelhantes porque qualquer coisa usada para voar tem
de ser construída daquela maneira, mas elas surgiram indepen­
dentemente na evolução e nada têm em comum afora seu uso para
voar. Traços “homólogos”, em contraposição, podem ou não ter
uma função comum, mas descendem de um ancestral comum e,
por isso, têm alguma estrutura comum que indica tratar-se do
“mesmo” órgão. A asa do morcego, a pata dianteira do cavalo, a
nadadeira da foca, a garra da toupeira c a mão do ser humano têm
funções muito diferentes, mas todas elas são modificações do
membro dianteiro do ancestral de todos os mamíferos, e portanto
compartilham de traços não funcionais, como o número dc ossos
e a maneira como estão articulados. Para distinguir analogia de
homologia, os biólogos costumam olhar para a arquitetura geral
dos órgãos e enfocar suas propriedades mais inúteis —as úteis po­
deríam ter surgido de modo independente em duas linhagens por­
que são úteis (um problema para os taxonomistas, chamado de
evolução convergente). Deduzimos que as asas do morcego são
realmente mãos porque podemos ver o punho e contar as articu­
lações nos dedos, e porque esta não é a única maneira que a natu­
reza teria para construir uma asa.

446
I O Big Bang I

O que interessa é saber se a linguagem humana é homóloga —


“a mesma coisa”, biologicamente falando —a algo no moderno
reino animal. Descobrir uma similaridade como ordenação se-
qüencial é inútil, sobretudo se for encontrada num ramo remoto
que certamente não é um ancestral dos humanos (pássaros, por
exemplo). Nesse caso, os primatas são relevantes, mas os treinado­
res de macacos e seus fãs estão jogando com as regras erradas. Ima­
gine que os sonhos mais incríveis se realizem e seja possível ensi­
nar alguns chimpanzés a fazer verdadeiros sinais, a agrupar e or­
dená-los de modo coerente para exprimir significado, a usá-los es­
pontaneamente para descrever eventos etc. Será que isso mostra
que a habilidade humana de aprender linguagem evoluiu da habi­
lidade do chimpanzé para aprender o sistema artificial de sinais?
E claro que não, como tampouco as asas da gaivota mostram que
ela evoluiu dos mosquitos. Qualquer semelhança entre o sistema
de símbolos dos chimpanzés e a linguagem humana não seria um
legado de seu ancestral comum; as características do sistema de
símbolos foram deliberadamente planejadas pelos cientistas e ad­
quiridas pelos chimpanzés porque isso era útil para eles naquele
momento e lugar. Para comprovar uma homologia, seria preciso
encontrar algum traço típico que tivesse surgido ao mesmo tempo
nos sistemas de símbolos dos macacos e na linguagem humana, e
que não fosse tão indispensável para a comunicação a ponto de
ter surgido duas vezes, uma no curso da evolução humana e outra
nos laboratórios de psicólogos ao elaborarem o sistema a ser ensi­
nado aos macacos. Poder-se-ia procurar tais características no de­
senvolvimento, verificando se nos macacos encontra-se algum eco
da seqüência humana padrão que vai do balbucio de sílabas ao
balbucio sem sentido a primeiras palavras a seqüências de duas
palavras a uma explosão gramatical. Poder-se-ia examinar a gra­
mática desenvolvida, verificando se os macacos inventam ou pre­
ferem alguma espécie de substantivos e verbos, flexões, sintaxe X-
barra, raízes e radicais, auxiliares na segunda posição que são in­

447
I O instinto da linguagem I

vertidos para formar perguntas, ou outros aspectos distintivos da


gramática universal humana. (Essas estruturas não são tão abstra­
tas a ponto de não poderem ser detectadas; elas brotaram dos da­
dos quando os lingüistas examinaram pela primeira vez a Língua
Americana de Sinais e os crioulos, por exemplo.) E também seria
possível olhar para a neuroanatomia, verificando se há controle
por parte das regiões que circundam o sulco lateral esquerdo do
córtex, com a gramática numa localização mais anterior, e o dicio­
nário, numa mais posterior. Essa forma de questionamento, roti­
neira em biologia desde o século XIX, nunca foi aplicada aos ges­
tos dos chimpanzés, embora seja possível prever, com pequena
margem de erro, qual seria a resposta.

♦ ♦ ♦

Em que medida é plausível afirmar que o ancestral da língua


apareceu pela primeira vez depois que o ramo que conduz aos hu­
manos se separou do ramo que leva aos chimpanzés? Não muito,
diz Philip Lieberman, um dos cientistas que acreditam que a anato­
mia do trato vocal e o controle da fala são as únicas coisas modi­
ficadas pela evolução, c não um módulo gramatical: “já que a se­
leção natural darwiniana supõe pequenos passos incrementais que
intensificam a função presente do módulo especializado, a evolu­
ção de um ‘novo’ módulo c impossível cm termos lógicos.” No
entanto, há algo seriamente equivocado nesse argumento. Os seres
humanos evoluíram a partir de ancestrais unicelularcs. Estes não
tinham braços, pernas, coração, olhos, fígado etc. Portanto, olhos
e fígados são impossíveis em termos lógicos.
O que esse argumento esquece é que, embora a seleção natural
suponha passos incrementais que intensificam o funcionamento,
não é necessário que esta intensificação se aplique a um módulo
existente. Ela pode lentamente criar um módulo a partir de algu­
ma parte até então indefinida da anatomia, ou a partir de vãos en­

448
I O Big Bang I

tre módulos já existentes, que os biólogos Stephen Jay Gould e


Richard Lewontin denominam “spandrels [tímpanos]”, evocando o
termo arquitetônico referente ao espaço entre dois arcos. Um
exemplo de um novo módulo é o olho, que ressurgiu em cerca de
quarenta diferentes oportunidades na evolução animal. Pode co­
meçar num organismo sem olhos com um pedaço de pele cujas
células são sensíveis à luz. O pedaço pode afundar formando um
buraco, ser cinchado formando uma esfera com um orifício na
frente, fazer surgir uma cobertura translúcida sobre o orifício, e
assim por diante, sendo que cada um desses passos permite ao seu
usuário detectar os acontecimentos um pouco melhor. Um exem­
plo de um módulo que surgiu de pedaços que não eram original­
mente um módulo é a tromba do elefante. E um órgão novinho,
mas as homologias sugerem que ele evoluiu da fusão dos focinhos
e de alguns dos músculos do lábio superior do extinto ancestral
comum aos elefantes e híraces, seguida de radicais complexiza-
ções e refinamentos.
A linguagem podcria ter surgido, e provavelmente surgiu de
maneira semelhante: por uma reestruturação dos circuitos do cé­
rebro dos primatas que, originalmente, não desempenhavam ne­
nhum papel na comunicação voca], e pela adição de alguns circui­
tos novos. Os neuroanatomistas Al Galaburda e Terrence Deacon
descobriram áreas no cérebro de macacos que correspondem em
termos de localização, cabeamento de entrada e de saída e com­
posição celular às áreas humanas da linguagem. Por exemplo, exis­
tem homólogos das áreas de Wernicke e Broca e um feixe de fibras
conectando ambas, exatamente como nos humanos. Estas regiões
não participam da produção dos chamados dos macacos, nem da
produção de seus gestos. O macaco parece usar as regiões corres­
pondentes à área de Wernicke e suas vizinhanças para reconhecer
seqüências de som e para discriminar os chamados de outros ma­
cacos dos seus próprios. Os homólogos da área de Broca partici­
pam do controle dos músculos da face, boca, língua e laringe, e

449
I O instinto da linguagem I

várias sub-regiões desses homólogos recebem estímulos de partes


do cérebro reservadas para a escuta, o sentido do tato na boca, lín­
gua e laringe, e de áreas para as quais correntes de informação
oriundas de todos os sentidos convergem. Ninguém sabe exa-
tamente por que esse arranjo é encontrado em macacos e, prova­
velmente, em seu ancestral comum aos humanos, mas esse arranjo
poderia ter proporcionado à evolução partes com que ela pudesse
mexer para produzir os circuitos da linguagem humana, exploran­
do quem sabe a confluência que ali ocorre de sinais vocais, audi­
tivos e outros.
Circuitos novinhos em folha nesse território geral também po­
deríam ter surgido. Ao mapearem o córtex com eletrodos, os neu-
rocientistas chegaram a encontrar macacos mutantes que têm um
mapa visual a mais em seu cérebro em comparação com macacos
padrão (mapas visuais são aquelas áreas do cérebro do tamanho de
um selo postal que se parecem um pouco com bujfers gráficos in­
ternos, que registram os contornos e movimentos do mundo visí­
vel numa imagem distorcida). Uma seqüência de modificações ge­
néticas que duplicam um mapa ou circuito cerebral, mudam a rota
de suas entradas e saídas e fazem pulsar, torcer e puxar suas cone­
xões internas poderia manufaturar um módulo cerebral genuina­
mente novo.
As conexões do cérebro só podem se alterar se os genes que as
controlam mudam. Isso traz à tona outro argumento péssimo sobre
por que a gesticulação dos chimpanzés deve ser parecida com a lin­
guagem humana. O argumento baseia-se na descoberta de que chim­
panzés e humanos compartilham de 98% a 99% de seu DNA, fato
insignificante que virou notícia, assim como as supostas quatrocen­
tas palavras esquimó para neve (a tira cômica Zippy mencionou re­
centemente essa porcentagem como “99,9% ”). A implicação disso
é que devemos ser 99% semelhantes aos chimpanzés.
No entanto, os geneticistas ficam estarrecidos com tais racio­
cínios e se esforçam para refutá-los ao mesmo tempo que rela­

450
I O Big Bang I

tam seus resultados. A receita do suflê embriológico é tão barro­


ca que pequenas alterações genéticas têm enormes efeitos sobre o
produto final. E uma diferença de 1% nem é tão pequena. Em
termos de conteúdo de informação no DNA isso equivale a 10
megabytes, o bastante para a Gramática Universal com muito es­
paço sobrando para o resto das instruções sobre como transfor­
mar um chimpanzé num humano. N a verdade, uma diferença de
1% no total do DNA nem mesmo significa que apenas 1% dos
genes humanos e dos chimpanzés são diferentes. Em teoria, pode­
ria significar que 100% dos genes humanos e dos chimpanzés são
diferentes, cada um em 1%. O DNA é um código combinatório
discreto, de tal modo que uma diferença de I % do DNA em um
gene pode ser tão significativa quanto uma diferença de 100%,
assim como mudar um bit em cada byte, ou uma letra em cada pa­
lavra, pode resultar num novo texto que é 100% diferente, e não
10% nem 20% diferente. No caso do DNA, a razão disso é que
a substituição de um único aminoácido pode mudar suficiente­
mente a forma de uma proteína para alterar completamente sua
função; é o que acontece em muitas doenças genéticas fatais. Si­
milaridades entre dados genéticos são úteis para imaginar como
montar uma árvore genealógica (por exemplo, saber se o ramo dos
gorilas saiu de um ancestral comum a humanos e chimpanzés ou
se o ramo dos humanos saiu de um ancestral comum a chimpan­
zés e gorilas) e talvez até para datar as divergências usando um
“relógio molecular”. Mas não dizem nada sobre a semelhança que
pode existir entre cérebros e corpos de organismos.

O cérebro ancestral só pode ter se modificado se os novos cir­


cuitos tiveram algum efeito sobre a percepção e o comportamen­
to. Os primeiros passos no sentido da linguagem humana são um
mistério. Isso não impediu os filósofos do século XIX de tecer es­

451
I O instinto da linguagem I

peculações fantasiosas, tais como dizer que a fala surgiu da imitação


dos sons dos animais ou de gestos orais que se pareciam com os
objetos que representavam. Posteriormente, os lingüistas deram a
essas especulações nomes pejorativos como teoria au-au e teoria
ding-dong. A língua de sinais foi muitas vezes sugerida como um
intermediário, mas isso antes de os cientistas descobrirem que a
linguagem de sinais era tão complexa quanto a fala. Também a lin­
guagem por gestos parece depender das áreas de Broca e de Wernicke,
respectivamente muito próximas das áreas vocais e auditivas do
córtex. Na medida em que as áreas cerebrais relacionadas com a
computação abstrata localizam-se perto dos centros que proces­
sam suas entradas e saídas, isso poderia sugerir que a fala é mais
básica. Se eu fosse forçado a pensar em termos de passos interme­
diários, refletiría sobre os chamados de alarme do macaco verve-
tc estudados por Cheney c Seyfarth, um dos quais alerta sobre
águias, outro sobre cobras e outro sobre leopardos. Talvez um con­
junto dc chamados quase referenciais como estes passou a estar
submetido ao controle voluntário do córtex cerebral, e acabou
sendo produzido em combinação para eventos complexos; a habi­
lidade para analisar combinações de chamados foi então aplicada
às partes dc cada chamado. Mas admito que essa idéia tem tão
poucas evidencias a seu favor quanto a teoria ding-dong (ou do
que a sugestão de LilyTomlin de que a primeira frase humana foi
“Que costas peludas!”).
Ninguém sabe tampouco quando, na linhagem que começa
com o ancestral comum a chimpanzés e humanos, surgiu a proto-
língua, ou a que velocidade ela se desenvolveu até adotar a forma
do moderno instinto da linguagem. Na tradição do bêbado pro­
curando suas chaves debaixo do poste de luz porque é ali onde tem
mais luz, muitos arqueólogos tentaram inferir as habilidades lin-
güísticas de nosso extinto ancestral a partir de seus remanescentes
tangíveis, tais como ferramentas de pedra e locais de moradia.
Considera-se que artefatos complexos reflitam uma mente com-

452
I O Big Bang I

plexa que poderia tirar proveito de uma linguagem complexa. Con-


sidera-se que as variações regionais das ferramentas sugiram uma
transmissão cultural, que depende, por sua vez, da comunicação
entre gerações, talvez via linguagem. No entanto, suspeito que
qualquer investigação que dependa do que um grupo antigo dei­
xou para trás subestimaria seriamente a antiguidade da linguagem.
Existem muitos povos de caçadores-coletores modernos com lin­
guagem e tecnologia sofisticadas, mas seus cestos, vestimentas, fai­
xas para segurar bebês, bumerangues, tendas, armadilhas, arcos e
flechas, lanças envenenadas não são feitos de pedra e rapidamente
se desintegrariam após sua partida, ocultando sua competência
lingüística de futuros arqueólogos.
Por isso, os primeiros vestígios de linguagem poderíam ter
aparecido ao mesmo tempo que o Australopithems ajarensis (cuja pri­
meira descoberta se deu sob a forma do famoso fóssil “Lucy”),
nosso mais antigo ancestral fossilizado de 4 milhões de anos de
idade. Ou talvez até antes; existem poucos fósseis entre a época da
separação entre os humanos e os chimpanzés, de 5 a 7 milhões de
anos atrás, e o A. ajarensis. Em espécies posteriores há melhores in­
dícios dc um estilo de vida em que seria plausível a língua ter sido
engendrada. O Homo habilis, que viveu cerca de 2,5 a 2 milhões de
anos atrás, deixou esconderijos de ferramentas de pedra que po­
dem ter sido bases de moradia ou estações locais para o corte de
animais; em ambos os casos, isso sugere algum grau de coopera­
ção e de tecnologia adquirida. O Habilis também teve a suficiente
consideração de nos deixar alguns de seus crânios, que conservam
leves marcas do padrão de dobras de seus cérebros. A área de Bro­
ca é suficientemente grande e proeminente para ser visível, assim
como os giros supramarginal e angular (áreas da linguagem mos­
tradas no diagrama do cérebro no Capítulo 10), e essas áreas são
maiores no hemisfério esquerdo. No entanto, não sabemos se os
H. habilis as usavam para a linguagem; lembre-se de que mesmo os ma­
cacos têm um pequeno homólogo à área de Broca. O Homo erectus,

453
I O instinto da linguagem I

que a partir da África espalhou-se por boa parte do velho mundo


entre 1,5 milhão e 500.000 anos atrás (chegando até a China e a
Indonésia), controlava o fogo e usava, em quase toda parte, o
mesmo machado de mão de pedra, simétrico e bem confecciona­
do. Ê fácil imaginar alguma forma de linguagem contribuindo
para isso, embora, novamente, não possamos ter certeza.
O moderno Homo sapiens, que supostamente apareceu por volta
de 200.000 anos atrás e, a partir da África, se espalhou pelo mun­
do há 100.000 anos, tinha crânios como os nossos e ferramentas
bem mais complexas e elegantes, com considerável variação regio­
nal. E difícil acreditar que eles não tivessem linguagem, já que em
termos biológicos eram como nós, e todos os humanos biologica­
mente modernos têm linguagem. Este fato elementar, aliás, derru­
ba a datação geralmente difundida em artigos de revistas e ma­
nuais sobre a origem da linguagem: 30.000 anos atrás, idade da
magnífica arte rupestre e dos artefatos decorados do homem de
Cro Magnon no Paleolítico tardio. Portanto, os principais ramos
da humanidade se separaram bem antes disso, e todos os seus des­
cendentes tinham habilidades lingüísticas idênticas; por isso, é
provável que o instinto já existisse bem antes de as modas cultu­
rais do Paleolítico tardio aparecerem na Europa. Com efeito, a ló­
gica usada pelos arqueólogos (que geralmente desconhecem a psi-
colingüística) para atribuir essa datação à linguagem é falha. Ela
depende da hipótese da existência de uma única capacidade “sim­
bólica” subjacente à arte, religião, ferramentas decoradas e lingua­
gem, que agora sabemos ser falsa (basta pensar nos sábios idiotas
em termos lingüísticos como Denyse e Crystal do Capítulo 2, ou,
no que a isso se refere, em qualquer criança normal de três anos).
Outro indício engenhoso foi aplicado à origem da linguagem.
Bebês recém-nascidos, como outros mamíferos, têm uma laringe
que pode subir e se encaixar na abertura posterior da cavidade na­
sal, possibilitando que o ar passe do nariz para os pulmões sem pas­
sar pela boca e garganta. Bebês tornam-se humanos aos três meses

454
I O Big Bang I

quando suas laringes descem ocupando uma posição inferior em


suas gargantas. Isso dá à língua espaço para se mover tanto para
cima e para baixo quanto para a frente e para trás, mudando a for­
ma de duas cavidades de ressonância e definindo um grande nú­
mero de possíveis vogais. Mas isso tem um preço. Em A origem das
espécies Darwin nota “o estranho fato de que cada partícula de ali­
mento e bebida que engolimos tem de passar pelo orifício da tra-
quéia, com algum risco de cair nos pulmões”. Até a recente inven­
ção da manobra de Heimlich, engasgar com comida era a sexta
causa de mortes acidentais nos Estados Unidos, com seis mil víti­
mas por ano. O posicionamento da laringe no fundo da garganta,
e a língua suficientemente baixa e retraída para articular uma
gama de vogais, também compromete a respiração e o ato de mas­
car. Os benefícios para a comunicação são supostamente maiores
que os custos fisiológicos.
Lieberman e seus colegas tentaram reconstruir os tratos vocais
de hominídeos extintos deduzindo onde a laringe e os músculos a
ela associados poderíam se encaixar no espaço da base de seus crâ­
nios fossilizados. Segundo eles, todas as espécies anteriores ao
moderno Homo sapiens, incluindo os Neanderthals, tinham uma
passagem de ar típica dos mamíferos com seu reduzido espaço
para possíveis vogais. Lieberman sugere que até o moderno Homo
sapiens a linguagem deve ter sido bastante rudimentar. Mas os
Neanderthals têm seus defensores leais e as afirmações de Lieber­
man continuam sendo objeto de controvérsias. De qualquer ma­
neira, eme lengeegem cem em pequene nemere de vegees pede
centeneer sende bestente expresseve, e portanto não podemos con­
cluir que um hominídeo com espaço restrito para vogais tinha uma
linguagem pobre.

ф ф

Falei até agora sobre quando e como o instinto da linguagem


deve ter evoluído, mas não por quê. Num capítulo de A origem das

455
I O instinto da linguagem I

espécies, Darwin foi meticuloso ao argumentar que sua teoria da se­


leção natural poderia explicar tanto a evolução dos instintos como
a dos corpos. Se a linguagem é igual a outros instintos, provavel­
mente evoluiu por seleção natural, a única explicação científica
adequada para características biológicas complexas.
Chomsky, alguém poderia pensar, só teria a ganhar se fundamen­
tasse sua controvertida teoria sobre o órgão da linguagem nas firmes
fundações da teoria da evolução, e em alguns de seus escritos ele in­
sinua uma conexão. Mas, em geral, predomina o ceticismo:

Б pcrfcitamcntc seguro atribuir esse desenvolvimento [da estrutura


mental inata] à “seleção natural”, desde que percebamos que tal as­
serção carece dc consistência, que ela nada mais c senão uma crença
na existência de alguma explicação naturalista para esses fenôme­
nos... No estudo da evolução da mente, c difícil saber cm que medi­
da existem alternativas fisicamente possíveis à, digamos, gramática
gerativa transformacional, para um organismo que satisfaça outras
condições físicas características dos seres humanos. Provavelmente
não há nenhuma —ou muito poucas —e, nesse caso, falar de evolu­
ção da faculdade da linguagem está fora de questão.

li possível lalar do problema [da evolução da linguagem] hoje cm


dia? Na verdade, pouco se sabe a respeito. A teoria da evolução é
muito ilustrativa sobre muitas coisas, mas tem pouco a dizer, até
agora, sobre questões desta natureza. Provavelmente, as respostas
encontram-se não tanto na teoria da seleção natural mas na biologia
molecular, no estudo de quais tipos dc sistemas físicos podem se de­
senvolver sob as condições de vida da Terra c por quê; em última ins­
tância, devido aos princípios físicos. Não se pode decerto partir do
princípio de que toda característica foi especificamente selecionada.
No caso de sistemas como a linguagem... nem mesmo é fácil imagi­
nar uma seqüência de seleção que pudesse dar lugar a eles.

O que será que ele quer dizer? Poderia haver um órgão da lin­
guagem que evoluiu segundo um processo diferente daquele que

456
I O Big Bang I

sempre nos disseram ser responsável pelos outros órgãos? Muitos


psicólogos, que se impacientam diante de argumentos que não se
encaixam num slogan, arremetem contra tais afirmações e ridicu­
larizam Chomsky declarando-o um criptocriacionista. Eles estão
errados, embora eu também ache que Chomsky está errado.
Para compreender o que está em jogo, temos de compreender
primeiro a lógica da teoria da seleção natural de Darwin. Evolução
e seleção natural não são a mesma coisa. A evolução, o fato de que
as espécies mudam com o correr do tempo devido ao que Darwin
denominou de “descendência com modificação”, foi amplamente
aceita já na época de Darwin, embora fosse atribuída a muitos pro­
cessos agora desacreditados, tais como a herança lamarckiana de ca­
racterísticas adquiridas e alguma urgência ou impulsos internos pa­
ra se desenvolver na direção de uma complexidade crescente que cul­
minaria nos seres humanos. O que Darwin e Alfred Wall асе desco­
briram e enfatizaram foi uma particular causa da evolução, a seleção
natural. A seleção natural aplica-se a qualquer conjunto de entida­
des com propriedades de multiplicação, variação e hereditariedade. M ultipli­
cação significa que as entidades copiam-se a si mesmas, que as có­
pias também são capazes de se copiarem etc. Variação significa que
o processo de cópia não é perfeito; de tempos em tempos erros apa­
recem inesperadamente, e esses erros podem fornecer a uma entida­
de traços que lhe permitem copiar-se numa velocidade maior ou
menor em comparação com outras entidades. Hereditariedade
significa que um traço variante produzido por um erro de cópia
reaparece em cópias subseqüentes, de tal modo que o traço se per­
petua na linhagem. A seleção natural é o resultado matematica­
mente necessário segundo o qual todo traço que promove uma re-
plicação superior tenderá a se espalhar pela população ao longo
de muitas gerações. Em decorrência disso, as entidades passarão a
ter traços aparentemente destinados a uma replicação efetiva, en­
tre os quais traços que são meios para esse fim, como a faculdade
de extrair e acumular energia e materiais do meio ambiente e sal­
vaguardá-los de competidores. Essas entidades replicantes são o

457
I O instinto da linguagem I

que conhecemos como “organismos”, e os traços fomentadores de


replicação que eles acumulam por meio desse processo chamam-se
“adaptações”.
Nesse ponto, muitas pessoas se orgulham de identificar o que
acreditam ser uma falha decisiva. “Ahá! A teoria é circular! A úni­
ca coisa que ela diz é que traços que levam a uma replicação efeti­
va levam a uma replicação efetiva. A seleção natural é ‘a sobrevi­
vência dos mais bem adaptados’ e a definição de ‘mais bem adap­
tado’ é ‘aqueles que sobrevivem’.” Não!! A força da teoria da sele­
ção natural está em conectar duas idéias independentes e muito
diferentes. A primeira idéia é a aparência de design. Por “aparên­
cia de design” quero dizer algo que, aos olhos de um engenheiro,
faz supor que as partes estão desenhadas e ordenadas de forma a
desempenhar alguma função. Dê a um engenheiro óptico um glo­
bo ocular de uma espécie desconhecida, e ele imediatamente dirá
que ele está desenhado para formar uma imagem do meio am­
biente: está construído como uma máquina fotográfica, com uma
lente transparente, um diafragma contrátil etc. Além disso, um
dispositivo para formação de imagens não é nenhuma peça velha
de um bricabraque, mas uma ferramenta útil para encontrar ali­
mentos e companheiros, escapar de inimigos etc. A seleção natu­
ral explica como esse design surgiu, usando uma segunda idéia: as
estatísticas atuariais de reprodução nos ancestrais do organismo.
Observe bem as duas idéias:

1. Uma parte de um organismo parece ter sido projetada para fo­


mentar sua reprodução.
2. Os ancestrais daquele organismo reproduziam-se com mais efi­
ciência que seus rivais.

Note que ( I ) e (2 ) são logicamente independentes. Tratam de


coisas diferentes: projeto de engenharia e taxas de nascimento e
morte. Referem-se a organismos diferentes: aquele em que você

458
I O Big Bang I

está interessado e seus ancestrais. Pode-se dizer que um organis­


mo dispõe de boa visão e que boa visão poderia ajudá-lo a se re­
produzir (I ), sem saber quão bem aquele organismo, ou qualquer
organismo, de fato se reproduz (2). Já que “design” simplesmen­
te implica uma maior probabilidade de reprodução, um determinado
organismo com uma visão bem projetada pode, na verdade, até
mesmo nem se reproduzir. Ele talvez seja atingido por um raio.
Em contraposição, pode ter um irmão míope que na verdade se
reproduz melhor, caso, por exemplo, a mesma descarga elétrica ma­
te um predador que estava de olho nesse irmão. A teoria da seleção
natural diz que (2) —as taxas de nascimento e morte dos ancestrais
—é a explicação para (I), o projeto de engenharia do organismo —e,
portanto, acaba não sendo circular.
Isso significa que Chomsky se precipitou ao rejeitar a seleção
natural por falta de consistência, como se ela não passasse de uma
crença em alguma explicação naturalista de um traço. Com efeito,
não é tão fácil mostrar que um traço é produto da seleção. O tra­
ço tem de ser hereditário. Tem de aumentar a probabilidade de re­
produção do organismo em comparação com organismos sem o
traço, num meio semelhante àquele em que os ancestrais viviam. Ê
preciso ter havido uma linhagem suficientemente longa de orga­
nismos semelhantes no passado. E pelo fato de a seleção natural
não ser providente, cada estágio intermediário na evolução de um
órgão tem de ter conferido alguma vantagem reprodutiva ao seu
possuidor. Darwin percebeu que sua teoria fazia previsões pesadas
e poderia facilmente ser refutada. Para isso bastava descobrir um
traço que revelasse sinais de design mas que aparecesse num lugar
que não fosse o fim de uma linhagem de replicadores que pudes­
sem tê-lo usado em sua replicação. Um exemplo poderia ser a
existência de um traço projetado apenas em prol da beleza da na­
tureza, como a linda mas pesadona cauda de um pavão evoluindo
numa toupeira, cujos potenciais parceiros para acasalamento são
cegos demais para ser atraídos por ela. Outro exemplo seria um

459
I O instinto da linguagem I

órgão complexo que não tivesse utilidade em qualquer forma in­


termediária, como uma meia asa que só passasse a ter utilidade
quando alcançasse 100% de seu atual tamanho e forma. Um ter­
ceiro exemplo seria um organismo que não tivesse sido produzido
por uma entidade que possa ser replicada, como algum inseto que
surgisse espontaneamente das rochas, como um cristal. Um quar­
to seria um traço projetado para beneficiar outro organismo que
não aquele que causou o aparecimento do traço, como a evolução
de selas em cavalos. Na tira humorística Lií Abner, o cartunista Al
Capp criou organismos generosos chamados sbmoos que punham
bolos de chocolate cm vez de ovos e que se assavam alegremente
para que as pessoas pudessem desfrutar de sua deliciosa carne sem
ossos. A descoberta dc um sbmoo real refutaria instantaneamente a
teoria dc Darwin.

Deixando de lado rejeições apressadas, Chomsky levanta uma


questão importante quando aventa alternativas à seleção natural.
Depois dc Darwin, teóricos sérios da evolução têm insistido cm
dizer com firmeza que nem todo traço benéfico é uma adaptação
capaz dc ser explicada por seleção natural. Quando um peixe-voa-
dor sai da água, é extremamente adaptativo para ele voltar para a
água. Mas não precisamos da seleção natural para explicar esse fe­
liz acontecimento; a gravidade c suficiente. Outros traços preci­
sam iguaímente dc uma explicação diferente da da seleção. As ve­
zes, um traço em si não é uma adaptação mas conseqüência de
outra coisa que é uma adaptação. Não há vantagem em nossos os­
sos serem brancos e não verdes, mas há vantagem em nossos ossos
serem rígidos; construí-los com cálcio é uma maneira de torná-los
rígidos, e acontece que o cálcio é branco. As vezes um traço é um
resultado obrigatório de sua história, como a forma em S de nos­
sa espinha dorsal, que herdamos quando quatro patas se tornaram

460
I O Big Bang I

ruins e duas pernas bom. Muitos traços simplesmente não podem


surgir dadas as limitações da estrutura corporal e o modo como
os genes constroem o corpo. O biólogo J. B. S. Haldane disse certa
vez que há duas razões pelas quais os humanos não viram anjos:
imperfeição moral e uma estrutura corporal que não pode aco­
modar ao mesmo tempo braços e asas. E, às vezes, um traço apa­
rece por pura sorte. Tendo transcorrido tempo suficiente numa
população pequena de organismos, todo tipo de coincidências se­
rão preservadas nela, processo este denominado de deriva genética
\genetic driftj. Por exemplo, numa determinada geração, todos os
organismos sem listras podem ser atingidos por raios ou morrer
sem deixar filhos; a partir daí a presença dè listras reinará, inde­
pendentemente de suas vantagens ou desvantagens.
Stephen Jay Gould e Richard Lewontin acusaram os biólogos
(injustamente, acreditam muitos) de ignorar essas forças alterna­
tivas e apostar um excesso de fichas na seleção natural. Zombam
dessas explicações dizendo que não passam d c “mitos \just~so sto~
ries] ”, uma alusão aos contos fantasiosos de Kipling sobre como
vários animais obtiveram as partes de seus corpos. Os ensaios de
Gould e Lewontin influenciaram as ciências cognitivas, e o ceti­
cismo de Chomsky quanto à possibilidade da seleção natural ex­
plicar a linguagem humana insere-se no espírito dessa crítica.
Mas os tiros a esmo de Gould e Lewontin não fornecem um
modelo útil de como pensar a evolução de um traço complexo.
Um dos objetivos deles era minar teorias do comportamento hu­
mano que, na opinião deles, tinham implicações políticas de di­
reita. Suas críticas também refletem suas preocupações profissio­
nais do dia-a-dia. Gould é um paleontólogo, e paleontólogos es­
tudam organismos depois que eles se transformaram em pedra.
Procuram detectar padrões genéricos na história de vida e não o
funcionamento dos órgãos de um indivíduo há muito falecido.
Quando descobrem, por exemplo, que os dinossauros foram extin­
tos por um asteróide que se chocou com a Terra e enegreceu o sol,

461
I O instinto da linguagem I

é compreensível que pequenas diferenças em termos de vantagens


reprodutivas percam importância. Lewontin é um geneticista, e
geneticistas tendem a olhar para o código bruto dos genes e sua va­
riação estatística numa população, e não para os órgãos comple­
xos que eles constroem. Para eles, a adaptação pode parecer uma
força menor, da mesma maneira como alguém que examinasse os
I e 0 de um programa de computador em linguagem de máquina,
sem saber o que o programa faz, poderia concluir que os padrões
carecem de design. A principal corrente da moderna biologia evolu­
tiva está mais bem representada por biólogos como George Williams,
John Maynard Smith e Ernst Mayr, que estudam o design de orga­
nismos vivos inteiros. Eles concordam que a seleção natural ocupa
um lugar muito especial na evolução, e que a existência de alterna­
tivas não significa que a explicação de um traço biológico esteja à
mão, dependendo apenas do gosto de quem explica.
O biólogo Richard Dawkins deu uma explicação lúcida desse
raciocínio em seu livro O relojoeiro cego. Segundo Dawkins, o pro­
blema fundamental da biologia é explicar “designs complexos”.
O problema já fora apreciado bem antes de Darwin. O teólogo
W illiam Paley escreveu:

Suponha que, ao cruzar um campo, eu desse com o pé contra uma


pedra, c mc perguntassem como será que a pedra foi parar lá; o mais
provável é que eu respondesse que, salvo qualquer prova em contrá­
rio, ela sempre esteve ali: tampouco seria muito fácil mostrar o cará­
ter absurdo desta resposta. Mas suponha que eu encontrasse um re­
lógio no chão, e houvesse quem inquirisse como aconteceu de o reló­
gio estar naquele lugar; eu dificilmente pensaria em dar a resposta que
dera antes, ou seja, de que, até onde sei, o relógio deve ter estado lá
desde sempre.

Paley percebeu que um relógio é um arranjo delicado de peque­


nas engrenagens e molas que funcionam em conjunto para indicar
a hora. Pedaços de rocha não segregam espontaneamente metal

462
I O Big Bang I

que por si só adota a forma de engrenagens e molas que, em se­


guida, se juntam num arranjo que registra o tempo. Somos força­
dos a concluir que o relógio teve um artífice que o projetou tendo
em mente o objetivo de registrar o tempo. Mas um órgão como
o olho tem um design ainda mais complexo e intencional que um
relógio. O olho tem uma córnea transparente protetora, um cris­
talino para focar, um retina sensível à luz no plano focal do crista­
lino, uma íris cujo diâmetro muda de acordo com a ilum ina­
ção, músculos que movem um olho conforme o outro, e circuitos
neurais que detectam forma, cor, movimento e profundidade. E
impossível dar sentido ao olho sem notar que ele parece ter sido
projetado para ver —fosse apenas pela razão de que ele tem uma
incrível semelhança com a máquina fotográfica feita pelo ho­
mem. Se um relógio implica um relojoeiro e uma máquina, um
construtor de máquinas, então um olho implica um fazedor de
olhos, ou seja, Deus. Hoje em dia, os biólogos não discordam da
apresentação que Paley faz do problema. Discordam apenas de
sua solução. Darwin foi o biólogo mais importante da história
porque mostrou como esses "órgãos de extrema perfeição e com­
plexidade” podiam surgir do processo puramente físico da sele­
ção natural.
E este é o ponto-chave. A seleção natural não é apenas uma al­
ternativa cientificamente respeitável à criação divina. Ê a única
alternativa capaz de explicar a evolução de um órgão complexo
como o olho. O motivo para a escolha ser tão rígida —Deus ou
seleção natural —é que estruturas que fazem o que o olho faz são
arranjos de matéria de probabilidade extremamente baixa. Por
uma margem inimaginavelmente ampla, a maioria dos objetos
reunidos a partir de um material genérico, até mesmo material
animal genérico, não consegue enfocar uma imagem, modular a
luz que entra e detectar limites de forma e de profundidade. O
material animal existente num olho parece ter sido reunido tendo
em mente o objetivo de ver —mas na mente de quem, se não na de

463
I O instinto da linguagem I

Deus? De que outra maneira o simples objetivo de ver poderia ser a


causa de algo ver bem? O poder muito especial da seleção natural é
eliminar esse paradoxo. O que causa que os olhos vejam bem ago­
ra é que eles descendem de uma longa linha de ancestrais que viam
um pouco melhor que seus rivais, o que lhes possibilitou reprodu­
zir-se mais que aqueles rivais. As pequenas melhorias aleatórias da
visão foram mantidas, combinadas e concentradas ao longo das
eras, produzindo olhos cada vez melhores. A faculdade de ver um
pouco melhor que muitos ancestrais tinham no passado é a causa de um
único organismo ver extremamente bem agora.
Outra maneira dc exprimir isso é dizer que a seleção natural é
o único processo que pode pilotar uma linhagem de organismos
no astronomicamcntc vasto espaço de possíveis corpos, ao longo
dc um trajeto que conduz de um corpo com nenhum olho para
um corpo com um olho que funciona. As alternativas à seleção
natural, em contraposição, podem apenas andar às cegas c ao aca­
so. As chances das coincidências da deriva genética resultarem em
exatamente os genes certos que têm de se juntar para construir
um olho que funciona são infinitamente pequenas. A gravidade
sozinha pode lazer um peixe-voador cair no oceano, um alvo bas­
tante grande, mas a gravidade sozinha não pode fazer parcelas do
embrião do peixe-voador caírem no lugar certo para fazer um olho
de peixe-voador. Quando um órgão se desenvolve, uma protubc-
rância de tecido ou um vão qualquer pode vir junto sem mais nem
menos, da maneira como a curvatura em S acompanha uma colu­
na ereta. Mas pode apostar que é impossível tal vão ter um crista­
lino, um diafragma e uma retina que funcionem e que estejam
perfeitamente combinados para ver. Seria como o furacão prover­
bial que passa por um depósito de sucata e monta um Boeing
747. E por isso, segundo Dawkins, que a seleção natural não só é
a explicação correta para a vida na Terra, mas tende a ser a explica­
ção correta para tudo o que pudermos chamar de “vida” em qual­
quer lugar do universo.

464
I O Big Bang I

E, a propósito, a complexidade adaptativa é também a razão pela


qual a evolução de órgãos complexos tende a ser lenta e gradual.
Não porque grandes mutações e rápidas mudanças violem alguma
lei da evolução. E apenas porque montagens complexas exigem ar­
ranjos precisos de partes delicadas, e, se a montagem se dá por mu­
danças aleatórias cumulativas, é melhor que sejam pequenas. Órgãos
complexos evoluem por pequenas etapas pela mesma razão que
um relojoeiro não usa uma marreta e um cirurgião não usa um cute­
lo de açougueiro.

Portanto, sabemos agora quais traços biológicos devem ser


creditados à seleção natural e quais a outros processos evolutivos.
E a linguagem1? A meu ver, a conclusão é inelutável. Cada uma das
discussões neste livro sublinhou a complexidade adaptativa do
instinto da linguagem. Ele é composto de muitas partes: sintaxe,
com seu sistema combinatório discreto que constrói as estruturas
sintagmáticas; morfologia, um segundo sistema combinatório que
constrói palavras; um espaçoso léxico; um trato vocal renovado;
regras e estruturas fonológicas; percepção da fala; algoritmos de
análise; algoritmos de aprendizagem. Estas partes ganham realida­
de física por meio de circuitos neurais estruturados de maneira
intricada, criados por uma cascata dc eventos genéticos prccisa-
mente cronometrados. O que esses circuitos tornam possível é
um dom extraordinário: a faculdade de despachar uma quantida­
de infinita de pensamentos precisamente estruturados de cabeça
para cabeça por meio da modulação da expiração. Ê um dom ob­
viamente útil para a reprodução —pense na parábola de W illiams
em que se ordena a Hans e Fritz que fiquem longe do fogo e não
brinquem com o tigre de dentes de sabre. Manipule aleatoriamen­
te uma rede neural ou danifique um trato vocal, e você não acaba­
rá tendo um sistema com essas capacidades. O instinto da lingua­

465
I O instinto da linguagem I

gem, assim como o olho, é um exemplo do que Darwin chamava


de "aquela perfeição de estrutura e de co-adaptação que, com ra­
zão, desperta nossa admiração”, e, enquanto tal, ele traz em si a
inconfundível marca do projetista da natureza, a seleção natural.
Se Chomsky concorda que a gramática revela sinais de um de­
sign complexo mas duvida que a seleção natural o tenha manufa­
turado, em que alternativa ele está pensando? O que ele mencio­
na com insistência é a lei física. Assim como o peixe-voador é
compelido a retornar para a água e ossos cheios de cálcio são
obrigados a ser brancos, os cérebros humanos deveríam, até onde
se sabe, ser obrigados a conter circuitos de Gramática Universal.
Ele escreve:

Essas capacidades [por exemplo, aprender uma gramática] podem


pcrfcitamcntc ter surgido em concomitância com propriedades es­
truturais do cérebro, que se desenvolveram por outros motivos. Su­
ponhamos que houve seleção para cérebros maiores, mais superfí­
cie cortical, especialização hemisférica para o processamento analí­
tico, ou muitas outras propriedades estruturais possíveis de serem
imaginadas.
O ccrebro evoluído pode perfeitamente ter todo tipo de proprieda­
des especiais que não foram individualmente selecionadas; isso não
seria nenhum milagre, apenas o funcionamento normal da evolução.
Atualmente, não ternos a menor idéia de como as leis físicas se apli­
cam quando IO10neurônios são colocados num objeto do tamanho
de uma bola de basquete, nas condições especiais que surgiram du­
rante a evolução humana.

Podemos não ter a menor idéia, assim como não sabemos como
as leis físicas se aplicam nas condições especiais de furacões varren­
do depósitos de sucata, mas a possibilidade de haver um corolário
ainda desconhecido das leis da física que faz com que cérebros de
tamanho e forma humanos desenvolvam os circuitos próprios da
Gramática Universal parece inverossímil por muitas razões.

466
I 0 Big Bang I

Em nível microscópico, que conjunto de leis físicas poderia fa­


zer uma molécula de superfície, que guia um axônio ao longo de
um emaranhado de neuroglias, cooperar com milhões de outras
moléculas como ela para soldarem exatamente aqueles circuitos
que possam computar algo tão útil para uma espécie social e inte­
ligente como a linguagem gramatical? A vasta maioria da quanti­
dade astronômica de maneiras de conectar uma grande rede neu­
ral certamente produziría algo diferente: sonar de morcego, ou
construção de ninhos, ou dança de discoteca, ou, o que é mais
provável, ruído neural aleatório.
No nível do cérebro como um todo, o comentário de que hou­
ve seleção para cérebros maiores é, decerto, comum em escritos
sobre a evolução humana (sobretudo por parte de paleoantropó-
logos). Dada essa premissa, é natural pensar que um subproduto
dela seria todo tipo de capacidades computacionais. Mas, se você
parar para pensar um minuto, logo verá que essa premissa tem sua
contrapartida. Fosse apenas pela grandeza do cérebro, por que a
evolução teria escolhido esse órgão bulboso, metabolicamente gu­
loso? Uma criatura com cérebro grande está fadada a uma vida
que combina todas as desvantagens de equilibrar uma melancia
num cabo de vassoura, correr sem sair do lugar vestindo um casa­
co de penas e, no caso das mulheres, suportar a saída de um gran­
de cálculo renal a cada tantos anos. Qualquer seleção relacionada
exclusivamente com o tamanho do cérebro teria decerto favoreci­
do um tolo com cabeça de alfinete. A seleção para capacidades
computacionais mais potentes (linguagem, percepção, raciocínio
etc.) deve ter-nos dado um cérebro grande como subproduto, e
não o contrário!
No entanto, mesmo com um cérebro grande, a linguagem não
cai do céu da maneira como o peixe-voador cai do ar. Encon­
tramos linguagem em anões que sofrem de cretinismo e cujas ca­
beças são bem menores que uma bola de basquete. Também a en­
contramos em hidrocéfalos, cujos hemisférios cerebrais foram es­

467
I O instinto da linguagem I

magados adotando contornos grotescos, às vezes uma camada fina


que acompanha o crânio como a polpa do coco, mas que são inte­
lectual e lingüisticamente normais. Em contrapartida, existem ví­
timas de Transtornos Específicos da Linguagem com cérebros de
forma e tamanho normais e com processamento analítico intacto
(lembre-se que um dos sujeitos de Gopnik era bom em matemá­
tica c computadores). Todos os indícios levam a crer que são as
conexões precisas dos microcircuitos do cérebro que fazem a lin­
guagem acontecer, c não tamanho, forma ou invólucro de neurô­
nios. Ê pouco provável que as implacáveis leis da física tenham
nos feito o favor dc ligar os circuitos para que pudéssemos nos co­
municar entre nós por meio dc palavras.
A propósito, atribuir o design básico do instinto da linguagem
à seleção natural não equivale a contar mitos que, dc modo espú­
rio, pudessem “explicar” qualquer traço. O ncurocientista William
Calvin, cm seu livro IbcThrowing Madonna, explica a especialização
do cérebro esquerdo para o controle da mão, e, conseqücntcmcn-
te, para a linguagem, da seguinte maneira. Os hominídeos fêmeas
seguravam seus bebes do lado esquerdo para que eles se acalmas­
sem com as batidas do coração. Isso obrigou as mães a usarem o
braço direito para atirar pedras em pequenas presas. Por isso, a
raça se tornou destra c dominada pelo hemisfério esquerdo do cé­
rebro. Bem, este sim c um mito. Em rodas as sociedades humanas
que caçam, quem caça é o homem, não as mulheres. Além disso,
como menino que fui posso dizer que acertar um animal com
uma pedra não é tão fácil. A madona atiradora de Calvin é quase
igual a Roger Clemens atirando com toda a força bolas dc beise­
bol com efeito e acertando a base, tendo no colo um bebe esper­
neando. Na segunda edição de seu livro, Calvin teve de explicar
aos leitores que o que dissera era uma piada; estava tentando mos­
trar que tais histórias são tão plausíveis quanto explicações adap-
tacionistas sérias. Mas fazer tais sátiras grosseiras é quase tão ine­
ficaz quanto fazê-las a sério. A madona atiradora é qualitativa­

468
I O Big Bang I

mente diferente de explicações adaptacionistas genuínas, não só


por ser instantaneamente refutada por considerações empíricas e
técnicas, mas por ser uma tentativa frustrada devido a uma razão
teórica fundamental: a seleção natural é uma explicação para o ex­
tremamente improvável. Supondo que os cérebros sejam mesmo
lateralizados, a lateralização do lado esquerdo não é extremamen­
te improvável —a chance de isso acontecer é de exatamente cin­
qüenta por cento! Não precisamos de um traçado cheio de mean­
dros de lados esquerdos do cérebro para mais nada, pois aqui as
alternativas à seleção são plenamente satisfatórias. E uma boa
ilustração de como a lógica da seleção natural nos permite distin­
guir relatos selecionistas legítimos de mitos.

* ❖

Para ser justo, devo dizer que de fato surgem problemas quan­
do se procura reconstruir como a faculdade da linguagem evoluiu
por seleção natural, apesar dc o psicólogo Paul Bloom c eu termos
afirmado que todos os problemas são solucionáveis. Como bem
disse P. B. Medawar, a linguagem em seus primórdios não devia
ter a forma que assumiu nas primeiras palavras registradas do pe­
queno Lord Macaulay, que, segundo contam, depois de ser escal­
dado com chá quente, disse à anfitriã: “Obrigado, madame, a ago­
nia cedeu sensivelmente.” Se a linguagem evoluiu gradualmente,
deve ter havido uma seqüência de formas intermediárias, cada uma
delas útil para seu possessor, e isso levanta várias questões.
Primeiro, se a linguagem envolve, para sua verdadeira expres­
são, outro indivíduo, com quem o primeiro mutante gramatical
falou? Uma das respostas poderia ser: a pequena porcentagem de
irmãos, irmãs, filhos e filhas que também tinham o novo gene por
herança comum. Mas uma resposta mais geral é que talvez os vi­
zinhos entendessem parcialmente o que o mutante estava dizen­
do, mesmo que não possuíssem os circuitos recém-criados, fazendo

469
I O instinto da linguagem I

uso apenas da inteligência geral. Embora não possamos analisar


seqüências como derrapagem batida hospital, dá para imaginar o que
elas provavelmente significam, e muitas vezes quem fala inglês se
vira bastante bem para entender reportagens de jornais italianos,
baseando-se em palavras semelhantes e conhecimentos gerais. Se
um mutante gramatical passa a fazer importantes distinções que
só com grande esforço mental e sem muita certeza podem ser de­
codificadas pelos outros, isso poderia exercer uma pressão sobre
estes no sentido de desenvolverem o sistema de combinações que
dá lugar a um processo de análise inconsciente e automático ca­
paz de compreender as distinções de modo confiável. Como men­
cionei no Capítulo 8, a seleçcão natural pode pegar habilidades ad­
quiridas com esforço c incerteza c embuti-las definitivamente no
cérebro. A seleção poderia ter estimulado as faculdades lingiiísti-
cas favorecendo aqueles falantes de cada geração que melhor fos­
sem decodificados pelos ouvintes, e os ouvintes que melhor deco­
dificassem os falantes.
Um segundo problema é saber que aparência teria uma gramá­
tica intermediária. Bates indaga:

Como imaginar a protoforma que provavelmente deu origem a res­


trições para a extração dc sintagmas nominais dc uma oração encai­
xada? O que poderia significar para um organismo possuir meio
símbolo, ou três quartos dc uma regra?... símbolos monádicos, re­
gras absolutas e sistemas modulares têm de ser adquiridos corno um
todo, cm termos de sim-ou-não —processo este que clama por uma
explicação criacionista.

É uma questão um tanto estranha, porque pressupõe que Darwin


pensava literalmente que os órgãos têm de evoluir em frações cada
vez maiores (metade, três quartos etc.). A questão retórica de Bates
equivale a perguntar o que poderia significar para um organismo
possuir meia cabeça ou três quartos de um cotovelo. O que Darwin

470
0 Big Bang I

realmente diz, é claro, é que órgãos evoluem adotando formas


cada vez mais complexas. Gramáticas de complexidade intermediária
são fáceis de imaginar; poderíam ter um leque menor de símbo­
los, regras de aplicação menos confiáveis, módulos com menos re­
gras etc. Num livro recente, Derek Bickerton responde a Bates de
modo ainda mais concreto. Refere o termo “protolíngua” à gesti­
culação de chimpanzés, a pidgins, à linguagem das crianças na
etapa de duas palavras, e à linguagem ineficaz e parcial adquirida
depois do período crítico por Genie e outras crianças-lobo. Na
opinião de Bickerton, o Homo erectus falava em protolíngua. Há
evidentemente uma enorme distância entre esses sistemas relativa­
mente crus e o moderno instinto da linguagem adulto, e aqui
Bickerton acrescenta a sugestão, capaz de deixar qualquer um de
queixo caído, de que uma única mutação numa única mulher, a
Eva africana, simultaneamente conectou a sintaxe, mudou a forma
e o tamanho do crânio e modificou o trato vocal. Mas podemos
trabalhar com a primeira metade do argumento de Bickerton sem
aceitar a segunda metade, uma reminiscência de furacões montan­
do jatos. As linguagens de crianças, falantes de pidgin, imigrantes,
turistas, afásicos, telegramas e manchetes de jornal nos mostram
que há um vasto continuum de sistemas viáveis de linguagem que
variam em eficiência e poder de expressão, que é exatamente o que
a teoria da seleção natural exige.
Um terceiro problema é que cada etapa da evolução de um ins­
tinto da linguagem, até as mais recentes e inclusive elas, tem de in­
crementar a adaptação. David Premack escreve:

Desafio o leitor a reconstruir a seqüência de eventos que poderia


conferir adaptação seletiva à recursividade. Conjetura-se que a lin­
guagem se desenvolveu num tempo em que humanos ou proto-hu-
manos caçavam mastodontes... Teria sido muito vantajoso para um
de nossos ancestrais agachado ao lado das brasas ser capaz de obser­
var: “Cuidado com a besta baixinha cuja pata dianteira Bob quebrou

471
I O instinto da linguagem I

quando, depois de ter esquecido sua própria lança lá no campo, ele


a atingiu num golpe de revés com a lança sem fio que emprestou
de Jack”?
A linguagem humana é um embaraço para a teoria da evolução
porque é extremamente mais poderosa do que aquilo que poderia
scr atribuído à adaptação seletiva. Uma linguagem semântica com
regras simples de mapeamento, como a que supostamente os chim­
panzés tcriam, parece conferir todas as vantagens que geralmente as­
sociamos a discussões sobre caça de mastodontes ou coisa seme­
lhante. Para tais tipos de discussões, categorias sintáticas, regras de­
pendentes da estrutura, rccursividade e todo o resto são dispositivos
exageradamente potentes, absurdos até.

Isso mc evoca uma expressão em iídiche: “Qual o problema, a


noiva c bonita demais?” Essa objeção equivale a dizer que o gue-
pardo c bem mais rápido do que teria dc scr, ou que a águia não
precisa de uma visão tão boa, ou que a tromba do elefante c um
dispositivo exageradamente potente, absurdo até. Mas, vale a pena
aceitar o desafio.
Primeiro, tenha em mente que a seleção não precisa de grandes
vantagens. Dada a vastidão do tempo, mínimas vantagens são sufi­
cientes. Imagine um rato que sofreu uma minúscula pressão seleti­
va para aumentar de tamanho —digamos, uma vantagem reprodu­
tiva de um por cento para as crias que fossem um por cento maio­
res. Com um pouco dc aritmética descobrimos que os descendentes
do rato terão o tamanho de um elefante depois dc alguns milhares de
gerações, um piscar dc olhos cm termos dc evolução.
Em segundo lugar, se os caçadores-coletores contemporâneos
servem ele exemplo, nossos ancestrais não eram homens da caver­
na que grunhiam, sem muito outro assunto para falar senão como
evitar mastodontes. Caçadores-coletores são competentes fabri­
cantes de ferramentas e excelentes biólogos amadores, com um co­
nhecimento detalhado sobre ciclos da vida, ecologia e comporta­
mento das plantas e animais de que dependem. Em qualquer esti­

472
I O B ig B ang I

lo de vida parecido com este, a linguagem seria decerto útil. E


possível imaginar uma espécie superinteligente, cujos membros
isolados vencem com perspicácia as dificuldades do meio sem se
comunicarem entre si, mas que desperdício! È incrivelmente lu­
crativo trocar conhecimentos duramente adquiridos com parentes
e amigos, e obviamente a linguagem é um dos principais meios
para conseguir isso.
E dispositivos gramaticais projetados para transmitir informa­
ções precisas sobre tempo, espaço, objetos e quem fez o que para
quem não são como o proverbial mata-moscas termonuclear. A
recursividade, em particular, é extremamente útil; ela não se res­
tringe, como Premack parece indicar, a sintagmas com sintaxes
tortuosas. Sem recursividade não se pode dizer the m ans hat ou
I think he left. Lembre que, para haver recursividade, precisa-se ape­
nas da habilidade de encaixar um sintagma nominal dentro de
outro sintagma nominal ou uma oração dentro de uma oração,
que nasce de regras tão simples quanto “NP —■>det N PP” e “PP
—>P NP”. Com essa habilidade, um falante discerne o significa­
do de um objeto com um grau arbitrariamente alto de precisão.
Tais habilidades podem fazer uma grande diferença. Faz diferen­
ça chegar a uma região distante pegando a picada que fica em
frente da árvore grande ou a picada na frente da qual a árvore
grande está. Faz diferença se aquela região tem animais que você
pode comer ou animais que podem comer você. Faz diferença se
nela há frutas que estão maduras ou frutas que estavam maduras
ou frutas que estarão maduras. Faz diferença se você consegue
chegar lá se andar três dias ou se você consegue chegar lá e andar
três dias.
Em terceiro lugar, por toda parte as pessoas dependem de es­
forços conjuntos para sobreviver, formando alianças por meio da
troca de informações e de compromissos. Também para isso a
gramática complexa é útil. Faz diferença se você entende que eu
digo que se você me der alguns de seus frutos eu dividirei a carne

473
I O instinto da linguagem I

que encontrar, ou que você deveria me dar alguns frutos porque


eu dividi a carne que encontrei, ou que se você não me der alguns
frutos, vou levar embora a carne que encontrei. E, mais uma vez,
a recursividade dista de ser um dispostivo absurdamente potente.
Ela permite a construção de frases como Ele sabe que ela acha que ele
está paquerando Mary e outros meios de transmitir fofocas, um vício
humano aparentemente universal.
Mas será que essas trocas realmente produzem o rococó que é
a complexidade da gramática humana? Talvez. Muitas vezes a evo­
lução cria habilidades espetaculares quando adversários se vêem às
voltas com uma “corrida armamentícia”, como a luta entre gue-
pardos e gazelas. Alguns antropólogos acreditam que a evolução
do cérebro humano foi desencadeada e estimulada mais por uma
corrida armamentícia cognitiva entre competidores sociais do que
pelo controle da tecnologia e do meio físico. Afinal de contas,
não é preciso tanto poder cerebral para dominar as peculiaridades
de uma rocha ou para extrair o melhor de uma amora. M as sobre­
pujar e antecipar os atos de um organismo com aproximadamen­
te as mesmas capacidades mentais e com interesses não coinci­
dentes, na melhor das hipóteses, e más intenções, na pior, é uma
fantástica e sempre crescente exigência cognitiva. E uma corrida
armamentícia cognitiva poderia facilmente desencadear uma lin­
guística. Em todas as culturas, as interações sociais são mediadas
por persuasão e argumentos. A forma como uma escolha é pro­
posta é determinante em relação às alternativas que as pessoas es­
colhem. Portanto, poderia facilmente ter havido seleção, seja da
habilidade de montar uma proposta para que ela pareça oferecer o
máximo benefício pelo mínimo custo para o parceiro na negocia­
ção, seja da habilidade de perceber tal tentativa e formular contra­
propostas atraentes.
Por fim, os antropólogos notaram que os chefes tribais costu­
mam ser ao mesmo tempo oradores talentosos e altamente prolí-
genos —uma bela aguilhoada em qualquer imaginação incapaz de

474
I O Big Bang I

pensar como as faculdades lingüísticas podem fazer uma diferen­


ça darwiniana. Suspeito que os seres humanos em evolução viviam
num mundo em que a linguagem estava entremeada com as intri­
gas políticas, econômicas, tecnológicas, familiares, sexuais e de
amizade, que desempenhavam papéis-chave no sucesso reproduti­
vo individual. Eles, assim como nós, não podiam mais viver com
um nível de gramática do tipo Mim-Tarzan-você-Jane.

❖ •> •»

O alvoroço que a questão da singularidade da linguagem criou


tem muitos aspectos irônicos. O espetáculo de seres humanos
tentando enobrecer os animais forçando-os a imitar as formas hu­
manas de comunicação é um. Os esforços desprendidos para re­
tratar a linguagem como inata, complexa e útil mas não como
produto da única força da natureza que pode fazer coisas úteis
complexas e inatas é outro. Por que tanta história em torno da
linguagem? Ela possibilitou aos homens se espalhar pelo planeta e
operar grandes mudanças, mas o que tem isso de mais extraordi­
nário que o coral que constrói ilhas, minhocas que moldam a pai­
sagem construindo o solo, ou a bactéria capaz de fotossíntese que
pela primeira vez emitiu oxigênio corrosivo na atmosfera, uma ca­
tástrofe ecológica em seu momento? Por que humanos falantes
deveríam ser considerados mais intrigantes que elefantes, pingüins,
castores, camelos, cascavéis, beija-flores, enguias elétricas, bichos-
pau, sequóias gigantes, plantas carnívoras, morcegos que se orien­
tam por ecolocalização, ou peixes que vivem nas profundezas dos
oceanos e que possuem lanternas em suas cabeças? Algumas des­
sas criaturas possuem traços exclusivos de sua espécie, outras não,
dependendo apenas de quais parentes seus foram extintos aciden­
talmente. Darwin enfatiza a conexão genealógica de todos os seres
vivos, mas evolução é descendência com modificação, e a seleção na­
tural moldou a matéria-prima de corpos e cérebros para encaixá-

475
I O in stin to d a lin gu a gem I

los em incontáveis nichos diferentes. Para Darwin, tal é a “gran­


diosidade desta concepção da vida”: “que, enquanto este planeta
continuou girando segundo a inamovível lei da gravidade, de um
princípio tão simples infinitas formas lindas e maravilhosas evo­
luíram e continuam evoluindo”.

476
Os craques da língua

Imagine-se assistindo a um
documentário sobre a na­
tureza. O vídeo mostra as costumeiras cenas deslumbrantes de
animais em seus hábitats naturais. Mas a voz que narra relata al­
guns fatos inquietantes. Os golfinhos não executam como deve­
ríam seus saltos e mergulhos. Tico-ticos negligentemente adulte­
ram seus chamados. Os ninhos dos canários-da-terra são cons­
truídos de modo incorreto, pandas seguram bambus com a pata
errada, o canto da baleia jubarte contém vários erros reconhecí­
veis, e os gritos dos macacos vêm se degenerando há centenas de
anos. Sua provável reação seria: Que diabos pode significar que o
canto da jubarte contém um “erro”? O canto da baleia jubarte
não é exatamente aquilo que ela decide cantar? Aliás, quem é esse
locutor?
No caso da linguagem humana, no entanto, as pessoas não só
pensam que as mesmas declarações têm sentido como também
que são motivo para se alarmar. Johnny não consegue construir
uma frase gramatical. Com o declínio dos padrões educacionais e
a divulgação pela cultura pop de delírios inarticulados e gírias
ininteligíveis de surfistas, DJs e garotas do sul da Califórnia, esta­
mos virando uma nação de iletrados funcionais: o uso errado de
hopefully como modificador de frase em inglês, confundir lie e lay

477
I O in stin to d a lin gu a gem I

[estar e pôr deitado], tratar a palavra àata [dados] como um subs­


tantivo singular, deixar os particípios em inglês pendentes1. A
própria língua inglesa está ameaçada de abrupta decadência caso
não retornemos aos fundamentos e comecemos a respeitar nossa
língua novamente.
Para um lingüista ou psicolingüista, é claro, a linguagem é
como o canto da jubarte. A maneira de determinar se uma cons­
trução é “gramatical” é encontrar pessoas que falem aquela língua
e perguntar a elas. Portanto, quando se acusam pessoas de falar
“agramaticalmente” em sua própria língua, ou de violar regular­
mente uma “regra”, deve haver algum sentido diferente de “grama­
tical” e “regra” no ar. Na verdade, a crença disseminada de que as
pessoas não conhecem sua língua é um estorvo quando se faz pes­
quisa lingüística. Muitas vezes, a pergunta que um lingüista faz a
um informante sobre alguma forma na fala dele ou dela (por
exemplo, se a pessoa usa sneaked ou snuck23'j é rebatida com a ingênua
contrapergunta: “Epa! Melhor eu não me arriscar; qual a forma
correta?”
Neste capítulo seria melhor eu resolver esta contradição para
você. Lembra da colunista Erma Bombeck, que não podia nem
mesmo pensar na idéia de um gene da gramática porque seu mari­
do dava aula para 37 alunos de colegial que achavam que “bum-
mer” ’ era uma frase? Também você deve estar se perguntando: se a
linguagem é tão instintiva quanto tecer uma teia, se toda criança
de três anos é um gênio gramatical, se o design da sintaxe está co­
dificado em nosso DNA e instalado no nosso cérebro, por que a
língua inglesa está esse lixo? Por que o americano médio parece um
tagarela tolo cada vez que abre a boca ou põe a caneta no papel?

1. Dangling partiáple: uso controvertido do particípio no começo da frase, dando lugar a ambi-
giiidades quanto a quem ou a que ele se refere. (N. daT.)
2. Ambas são formas corretas do passado de to sneak, agir de forma furtiva. (N. daT.)
3. Equivalente, à gíria "bode”. (N. daT.)

478
Os craques d a lín gu a I

A contradição começa no fato de as palavras “regra”, “grama­


tical” e “agramatical” terem sentidos diferentes para um cientista
c para um leigo. As regras que as pessoas aprendem (ou, o que é
mais provável, não conseguem aprender) na escola são denomina­
das regras prescritivas, pois prescrevem como se “deveria” falar. Os
cientistas estudiosos da língua propõem regras descritivas, que des­
crevem como as pessoas efetívamente falam. São coisas completa­
mente diferentes, e há uma boa razão para os cientistas se concen­
trarem em regras descritivas.
Para um cientista, o fato fundamental da linguagem humana é
sua improbabilidade. A maioria dos objetos do universo —lagos,
pedras, árvores, vermes, vacas, carros —não falam. Mesmo entre os
humanos, as emissões numa língua são uma parte infinitesimal dos
ruídos que a boca das pessoas é capaz de fazer. Posso montar uma
combinação de palavras que explica como os polvos fazem amor
ou como remover manchas de cereja; basta mudar, ainda que mini­
mamente, a ordem das palavras para que surja uma frase com um
sentido diferente ou, o que é mais provável, uma salada de palavras.
Como explicar esse milagre? O que seria preciso para construir
uma máquina que conseguisse duplicar a linguagem humana?
E claro que é preciso colocar nela algum tipo de regra, mas
qual tipo? Regras prescritivas? Imagine como seria construir uma
máquina de falar para que ela obedecesse a regras como “Não sepa­
re infinitivos” ou “Nunca comece uma frase com because". Ela não
sairia do lugar. Na verdade, já temos máquinas que não separam
infinitivos; elas se chamam chave de fenda, banheira, máquina de
fazer cappuccino etc. Regras prescritivas não servem para nada
sem as regras muito mais fundamentais que, para começar, criam
as frases, definem os infinitivos e listam a palavra because, as regras
dos Capítulos 4 e 5. Essas regras nunca são mencionadas em ma­
nuais de estilo ou gramáticas escolares porque os autores pressu­
põem, com razão, que quem for capaz de ler os manuais já deve
ter incorporado as regras. Não é preciso dizer para ninguém, nem

479
I O in stin to d a lin gu a gem I

mesmo para uma garota do sul da Califórnia, que não se deve di­
zer Maçãs o come menino ou A criança parece dormindo ou Quem você en­
controu João e? ou a vasta, vasta maioria dos quatrilhões de combi­
nações matematicamente possíveis de palavras. Portanto, quando
um cientista avalia toda maquinaria mental de alta tecnologia ne­
cessária para ordenar palavras em frases comuns, as regras prescri­
tivas são, na melhor das hipóteses, pequenos adornos sem conse-
qüência. O próprio fato de elas terem de ser exercitadas mostra
que são alheias ao funcionamento natural do sistema da língua.
Pode-se escolher ficar obcecado com as regras prescritivas, mas
elas têm tão pouco a ver com a linguagem humana quanto os cri­
térios para avaliar gatos numa exposição de gatos têm a ver com a
biologia dos mamíferos.
Portanto, não há contradição em dizer que toda pessoa nor­
mal pode falar gramaticalmente (ou seja, sistematicamente) e agra-
maticalmente (ou seja, fugindo às regras prescritivas), assim como
não há contradição em dizer que um táxi obedece às leis da física
mas transgride as leis de Massachusetts. Mas isso levanta uma
questão. Alguém, em algum lugar, deve estar tomando decisões
sobre o “inglês correto” em nome de todos nós. Quem? Não exis­
te Academia da Língua Inglesa, e não faz falta; o objetivo da
Académie Française é divertir jornalistas de outros países com de­
cisões resultantes de discussões acerbas que os franceses alegre­
mente ignoram. Tampouco existiram Pais Fundadores em alguma
Conferência Constitucional da Língua Inglesa no princípio dos
tempos. Os legisladores do “inglês correto”, na verdade, são uma
rede informal de editores de texto, participantes de mesas-redon­
das sobre uso de dicionário, escritores de manuais de estilo e de
compêndios, professores de inglês, ensaístas, colunistas e eruditos.
Segundo eles, sua autoridade no assunto vem do devotamento à
implementação de padrões que tão bem serviram à língua no pas­
sado, sobretudo na prosa de seus melhores escritores, e que maxi­
mizam sua clareza, lógica, harmonia, concisão, elegância, conti-

480
I Os craq u es d a lín gu a I

nuidade, precisão, estabilidade, integridade e expressividade. (Al­


guns deles vão mais longe e dizem estar, na verdade, salvaguardan­
do a possibilidade de yensar com clareza e lógica. Este radical
whorfianismo é comum entre eruditos da língua, o que não sur­
preende; quem se contentaria em ser um acadêmico quando pode
ser um preservador da própria racionalidade?) W illiam Safire, que
escreve a coluna semanal “On Language” [Sobre a língua] no The
New York Times Magazine, se autodenomina um “language maven”
[craque da língua], que vem da palavra iídiche que significa exper­
to, craque, e que podemos adotar como rótulo para todo o grupo.
Eu digo a eles: Maven, shmaven! Kibbitzers e nudniks4 seriam mais
apropriados. Pois os fatos são os seguintes. A maioria das regras
prescritivas dos craques da língua não fazem nenhum sentido em
nenhum nível. São idéias folclóricas que surgiram por razões ex­
cêntricas há centenas de anos e desde então se perpetuaram. Ao
longo de toda sua existência, os falantes as desdenharam ao mes­
mo tempo que se queixavam do iminente declínio da língua, sécu­
lo após século. Todos os melhores escritores ingleses de todas as
épocas, incluindo Shakespeare e a maioria dos próprios craques,
são zombadores notórios. As regras não se conformam nem à ló­
gica nem à tradição, e se algum dia fossem seguidas imporiam aos
escritores uma prosa imprecisa, pesada, prolixa, ambígua, incom­
preensível, em que certas idéias simplesmente não podem ser ex­
pressas. Com efeito, a maioria dos “erros por ignorância” que elas
supostamente corrigem revelam uma lógica precisa e uma aguda
sensibilidade para a textura gramatical da língua, que os craques
não percebem.

4. O inglês americano está muito impregnado de formas derivadas do iídiche. Neste caso,
shmaven dá um sentido pejorativo à palavra maven, também derivada do iídiche. Kibbitzers
e nudniks significam, respectivamente, palpiteiros intrometidos e pentelhos. Portanto, o
que o autor diz é: “Que craques, que nadai Metidos e pentelhos seria mais apropriado.”
(N. daT.)

481
I O in stin to d a lin gu a gem I

O escândalo dos craques da língua começou no século 18. Lon­


dres havia se tornado o centro político e financeiro da Inglaterra,
e a Inglaterra, o centro de um poderoso império. O dialeto lon­
drino passou subitamente a ser uma importante língua mundial.
Os eruditos começaram a criticá-la como fariam com qualquer
instituição artística ou civil, em parte para questionar os costumes
e, portanto, a autoridade da corte e da aristocracia. O latim ainda
era considerado a língua das luzes e do ensino (sem mencionar
que era a língua de um império igualmente vasto), e era proposto
como o ideal de precisão e lógica a que o inglês deveria aspirar.
Foi também um período de mobilidade social nunca vista, e quem
quisesse se educar e se aprimorar e quisesse ser considerado culto
tinha de dominar a melhor versão do inglês. Essas tendências cria­
ram uma demanda por guias e manuais de estilo, logo submeti­
dos às forças de mercado. A organização da gramática inglesa
conforme o modelo da gramática latina transformou os livros
em ferramentas úteis para ajudar jovens estudantes a aprender la­
tim. E quando se iniciou uma concorrência sem trégua, um ma­
nual tentava superar o outro incluindo uma quantidade maior de
regras cada vez mais fastidiosas que nenhuma pessoa refinada
poderia ignorar. A origem da maioria dos bichos-papões da con­
temporânea gramática prescritiva (não separe infinitivos, não ter­
mine uma frase com uma preposição) remonta a essas coquelu­
ches do século 18.
Ê claro que forçar os modernos anglofalantes a não separar um
infinitivo5 porque isso não se faz em latim faz tão pouco sentido
quanto forçar os atuais habitantes da Inglaterra a vestir lauréis e
togas. Júlio César não poderia ter separado um infinitivo mesmo
que quisesse. Em latim, o infinitivo é uma palavra única como ja -
cere ou dicere, um átomo sintático. O inglês é um tipo diferente de

5. No original: O f coursejorcing modem speakers o f English to not -whoops, not to split ati infinitive..., em
que o autor separa o infinitivo e depois se corrige. (N. daT.)

482
I Os craques d a lín gu a I

língua. É uma língua “isolante”, que constrói frases em torno de


muitas palavras simples em vez de poucas e complicadas. O infini­
tivo é composto de duas palavras —um complementizador, to, e
um verbo, como go. Palavras, por definição, são unidades reordená-
veis, e não há razão para que um advérbio não possa vir entre elas:

O espaço —a fronteira final... Estas são as viagens da nave estelar


Enterprise em sua missão de cinco anos para explorar novos mundos,
pesquisar novas formas de vida e civilizações, audaciosamente indo
[fo boldlygo] aonde nenhum homem jamais esteve.

Audaciosamente indo [Togo boldly\ aonde nenhum homem ja­


mais esteve? Teletransporte-me, Scotty; não há vida inteligente
por aqui. Quanto a proscrever frases que terminam com uma pre­
posição (impossível em latim por motivos que têm a ver com seu
sistema de marcação de casos, e que são irrelevantes em inglês, po­
bre em casos) —como Winston Churchill teria dito, it is a rule up
with whích we sbould not put [trata-se de uma regra que não podemos
tolerar].
Contudo, uma vez introduzida, é muito difícil erradicar a re­
gra prescritiva, pouco importando o quanto ela seja ridícula. Nas
instituições educacionais e literárias, as regras sobrevivem em fun­
ção da mesma dinâmica que perpetua rituais de mutilação de ge-
nitais e trotes de calouros: tive de passar por isso e não sou dos
piores, então por que deveria facilitar as coisas para você? Por
exemplo, aquele que ousa subverter uma regra sempre terá de se
preocupar com os leitores que acharão que ele o faz por ignorar a
regra e não por desafiá-la. (Confesso que isso me dissuadiu de se­
parar alguns infinitivos que valiam a pena separar.) O que talvez im­
porte mais, já que as regras prescritivas são tão pouco naturais em
termos psicológicos que somente aqueles com acesso a uma exce­
lente escolaridade podem acatá-las, é que elas servem de schibbolet,
diferenciando a elite da ralé.

483
I O in stin to d a lin gu a gem I

O conceito de schibbolet (palavra hebraica para “torrente”) vem


da Bíblia:

Os galaaditas se apoderaram dos vaus do Jordão, em frente de


Efraim, e, quando os efraimitas fugitivos diziam: “Deixai-me pas­
sar!”, os galaaditas perguntavam: “Es efraimita?” Se respondia “Não”
eles o intimavam: “Dize, pois, schibbolet”, se repetia: “sibolet” não
sabendo pronunciar corretamente, agarravam-no e matavam-no no
vau do Jordão. Nessa ocasião pereceram quarenta e dois mil efraimi­
tas. (Jz 12, 5-6)

Foi esse tipo de terror que movimentou o mercado da gramá­


tica prescritiva nos Estados Unidos durante o século passado.
Por todo o país as pessoas falavam um dialeto do inglês que pos­
suía algumas características datadas do período inicial do inglês
moderno, e que H. L. Mencken denominou de A Língua Ameri­
cana. Teve a infelicidade de não se tornar o padrão de governo c
da educação, e boa parte do currículo de “gramática” das escolas
americanas tinha como objetivo estigmatizá-lo como fala agra-
matical e desleixada. Exemplos familiares desse dialeto são aks a
question, workin’, aint, I don’t see no birds, be don’t, tbem boys, we was, e
formas de passado como drug, seen, clumb, drownded e grovjed. Para os
adultos ambiciosos que não tinham podido completar a escolari­
dade, havia propagandas de página inteira de cursos por corres­
pondência, contendo listas de exemplos sob manchetes apelativas
como “VOCÊ COM ETE ALGUM DESTES EMBARAÇO­
SO S ERROS?”.

❖ ❖

Os craques da língua costumam afirmar que o inglês america­


no não-padrão não é só diferente mas menos sofisticado e lógico.
Eles deveriam admitir que se trata de algo difícil de provar no caso

484
I Os craq u es d a lín gu a I

de verbos irregulares não-padronizados como drag-drug [arrastar,


dragar] (e mais ainda no caso de regularizações como feeled e gro-
wed). Afinal de contas, em inglês “correto”, diz Richard Lede-
rer: “Today we speak, but first we spoke; some faucets leak, but
never loke. Today we write, but first we wrote; we bite our ton-
gues, but never bote.”6 Á primeira vista, os craques parecem ter
um argumento melhor quando se trata de nivelar distinções fle­
xionais em He don’t e We was. M as esta vem sendo a tendência do
inglês padrão há séculos. Ninguém se incomoda pelo fato de não
distinguirmos mais a forma da segunda pessoa do singular dos
verbos, como sayest. Por este critério, os dialetos não-padrão é
que são superiores, porque fornecem aos seus falantes pronomes
da segunda pessoa do plural como y ’all e youse, o que o inglês pa­
drão não faz.
Nesse ponto, os defensores do padrão vão sacar o famoso du­
plo negativo, como em I can’tget no satísfaction. Em termos lógicos,
os dois negativos se anulam entre si, ensinam eles; na verdade, o
Sr. Jagger está dizendo que está satisfeito. A canção deveria inti­
tular-se “I C ant Get Any Satísfaction”. M as este raciocínio não
é satisfatório. Centenas de línguas exigem que seus falantes usem
um elemento negativo em algum lugar dentro do “escopo”, como
dizem os lingüistas, de um verbo negado. O assim chamado du­
plo negativo, longe de ser uma corrupção, era norma no inglês
médio de Chaucer, e no francês padrão, a negação —como em Je
ne sais pas, em que ne e pas são ambos negativos —é um exemplo
contemporâneo familiar. Pensando bem, o inglês padrão na ver­
dade não é diferente. O que any, even e at ali significam nas seguin­
tes frases?

6. O autor da frase explicita a irregularidade dos tempos passados em inglês, o que se perde
em português. Segue-se apenas a tradução da frase: “Hoje eu falo, mas primeiro falei;
algumas torneiras pingam, mas nunca ‘pangam’. Hoje eu escrevo, mas primeiro escreví;
mordemos a língua, mas nunca ‘merdemos’ ” (N. daT.)

485
fl

I O in stin to d a lin gu a gem I

I didnt buy any lottery tickets. [Não comprei nenhum bilhete de lo­
teria.]
I didnt eat even a single French fry. [Não comi nem mesmo uma
única batata frita.]
I didnt eat fried food at ali today. [Não comi nada frito hoje.]

Não muito; não se pode usá-los sozinhos, como mostram as


seguintes frases estranhas:

I bought any lottery tickets.


I ate even a single French fry.
I ate fried food at ali today. 1

O que essas palavras fazem é exatamente o que no faz em inglês


americano não-padrão, como no equivalente l didnt buy no lottery tic­
kets —concordando com o verbo negado. A tênue diferença é que o
inglês não-padrão cooptou a palavra no como elemento de concor- ]
dância, ao passo que o inglês padrão cooptou a palavra any, afora f
isso, são traduções perfeitas. E deve-se destacar algo mais. Na gra- f
mática do inglês padrão, uma dupla negativa não assevera a afirma- f
tiva correspondente. Ninguém sonharia em dizer I can’tget no satis-
factíon assim, sem mais nem menos, para se vangloriar de que alcan­
ça com facilidade o contentamento. Há circunstâncias em que tal
construção deveria ser usada para negar uma negação precedente
no discurso, mas negar uma negação não é o mesmo que afirmar
uma afirmação, e, mesmo neste caso, isso só se usa para enfatizar o
elemento negativo, como no seguinte exemplo inventado:

As hard as I try not to be smug about the misfortunes of my adver-


saries, I must admit that I can’t get no satísfaction out of his te-
nure denial.7

7. Por mais que eu tente não ficar satisfeito com as desgraças de meus adversários, devo
admitir que não consegui não ficar contente com o fato de não o terem admitido no
emprego. (N. daT.)

486
I Os craq u es da lín gu a I

Portanto, a sugestão de que o uso da forma não-padrão pode­


ria provocar confusão é puro pedantismo.
Ouvidos moucos para a prosódia (ênfase e entonação) e o es­
quecimento dos princípios da retórica são importantes ferramen­
tas no negócio dos craques da língua. Considere uma suposta atro­
cidade cometida pelos jovens de hoje: a expressão I could can less. Os
adolescentes estão tentando exprimir desdém, notam os adultos, e
nesse caso eles deveríam dizer I couldn’t care less. Se pudessem se im­
portar menos do que o fazem, quer dizer que eles realmente se
importam, o contrário do que estão tentando dizer. Mas se esses
almofadinhas pudessem parar de gozar dos adolescentes e bates­
sem um olho na construção, veriam que seu argumento é espúrio.
Escutem como as duas versões são pronunciadas:

COULDN’T саге I
LE CARE
i ESS. LE
could ESS.

As melodias e ênfases são completamente diferentes, e isso por


um bom motivo. A segunda versão não é ilógica, é sarcástica. O sar­
casmo consiste em fazer uma afirmação manifestamente falsa ou
acompanhada de uma entonação ostensivamente afetada, que im­
plica deliberadamente o contrário. Uma boa paráfrase seria: “Cla­
ro, como se houvesse algo no mundo com que me importe me­
nos”. As vezes um suposto “erro” gramatical é lógico não só no
sentido de ser “racional”, mas no sentido de respeitar distinções
feitas pelo lógico formal. Considere estes supostos barbarismos,
que quase todo craque da língua menciona:

Everyone returned to their seats.


Anyone who thinks a Yonex racquet has improved their game, raise
your hand.

487
I O in stin to d a lin gu a gem I

If anyone calls, tell them I can t come to the phone.


Someone dropped by but they didnt say what they wanted.
No one should have to sell their home to pay for medicai care.
He’s one of those guys whos always patting themself on the back.
[cito Holden Caulfield do livro Apanhador no campo de centeio de J.
D. Salinger]8

Eles explicam: everyone significa every one [cada um], um sujeito


singular, que não pode servir de antecedente para um pronome
plural como them mais adiante na frase. “Everyone returned to his
seat”, insistem eles. “If anyone calls, tell him I cant come to the
phone.”
Se você fosse o alvo dessas lições, já estaria começando a se
sentir um tanto incomodado. Everyone returned to his seat [Todo mun­
do voltou para seu lugar/o lugar dele] parece querer dizer que, no
intervalo, descobriram que Bruce Springsteen estava na platéia, e
todo mundo retrocedeu e convergiu para seu assento para obter
um autógrafo. Se houver alguma chance de que quem ligue seja
mulher, é estranho pedir ao colega de quarto to tell him anything
[dizer a ele seja lá o que for] (mesmo se você não é daquelas pes­
soas preocupadas com “linguagem sexista”). Tais sentimentos de
desconforto —uma bandeira vermelha para qualquer lingüista sé­
rio —têm fundamento neste caso. A próxima vez que você for re­
preendido por cometer tal pecado, pergunte ao Sr. Espertinho
qual seria a forma correta de dizer:

Mary saw everyone before John notíced them. [Mary viu todo mun­
do antes de John reparar neles.]

8. Litcralmcnte: Cada um voltou para seus lugares./Quem acha que a raquete Yonex melho­
rou seu {deles} jogo, levante tua mão./Se alguém ligar, diga a eles que não posso aten­
der./Alguém passou por aqui mas não disseram o que queriam./Ninguém deveria ter de
vender sua {deles} casa para pagar serviços médicos./Ele é um desses caras que está sem­
pre se {plural} dando tapinhas nas costas. (N. daT.)

488
I Os craq u es d a lín gu a I

Observe como ele vai ficando inquieto enquanto reflete sobre


a forma “aprimorada” completamente ininteligível: Mary saw ever­
yone before John noticed him.
A questão lógica que você, Holden Caulfield e todos menos os
craques da língua percebem intuitivamente é que everyone e they não
são um “antecedente” e um “pronome” que se referem à mesma pes­
soa no mundo, o que os obrigaria a concordar em número. São,
respectivamente, um “quantificador” e uma “variável dependen­
te”, relação lógica bastante diferente. Everyone returned to their seats
significa “Para todo X, X voltou para o lugar de X ”. “X ” não se
refere a nenhuma pessoa em particular ou grupo de pessoas; é sim­
plesmente um curinga que fica atento ao papel que os participan­
tes desempenham em diversas relações. Neste caso, о X que volta
para um lugar é o mesmo X que possui o lugar para o qual X vol­
ta. Aquele their na verdade não tem plural, porque não se refere
nem a uma coisa nem a muitas coisas; simplesmente não se refe­
re a nada. O mesmo vale para a hipotética pessoa que liga: pode
ser uma, pode não ser nenhuma, ou o telefone pode tocar sem pa­
rar com possíveis pretendentes; a única coisa que importa é que
sempre que alguém ligar, se alguém ligar, essa pessoa, e ninguém
mais, deve ser descartada.
Portanto, em termos lógicos, variáveis são coisas bem diferen­
tes dos habituais pronomes “referenciais”, que exigem concordân­
cia em número (he significando um certo cara, they significando
um certo bando de caras). Algumas línguas são atenciosas e ofere­
cem aos seus falantes palavras diferentes para pronomes referen­
ciais e para variáveis. Mas o inglês é sovina; é preciso convocar um
pronome referencial para emprestar seu nome quando o falante
precisa usar uma variável. Como estes não são verdadeiros prono­
mes referenciais, mas apenas homônimos deles, não há motivo para
a decisão vernácula de pegar they, their, them emprestados para a ta­
refa ser pior que a recomendação dos prescritivistas de usar he, him,
his. Na verdade, they tem a vantagem de abarcar ambos os sexos e
parecer mais correto numa maior variedade de frases.

489
I O in stin to d a lin gu a gem I

Em todos os tempos, os craques da língua deploraram a ma­


neira como os anglofalantes transformam substantivos em verbos,
Todos os verbos a seguir foram denunciados neste século9:

to caveat to input to host


to nuance to access to chair
to dialogue to showcase to progress
to parent to intrigue to contact
to impact

Veja que eles variam do mais estranho ao absolutamente corri­


queiro. Com efeito, a conversão facilitada de substantivos em ver­
bos é parte da gramática inglesa há séculos; é um dos processos
que faz o inglês ser inglês. Conforme estimativas minhas, um quin­
to de todos os verbos ingleses eram originalmente substantivos.
Considerando apenas o corpo humano, você pode encabeçar [fo
head] um comitê, escalpar [fo scalp\ o missionário, ficar de olho nu­
ma garota [fo eye], ficar bisbilhotando [to nose] no escritório, pro­
nunciar a letra de uma música sem emitir som [fo mouth], mascar
\_togumj o biscoito, começar a nascer os dentes [to teethê\, [fo tonguej
tocar cada nota da flauta usando golpe de língua, [tojaw] xingar o
juiz, [to neck] dar uns agarros no banco de trás, [fo back] apoiar um
candidato, [to arm] armar a milícia, [to shoulderj arcar com a res­
ponsabilidade, [fo elbowj abrir caminho a cotoveladas, [fo hand] dar
um brinquedo, [tofinger] apontar o culpado, [fo knuckle under] dar-se
por vencido, [fo thurnb] pedir carona, fo wrist it into the net10, [fo belly
up] apoiar a barriga no bar, [fo stomacb] ter estômago para as quei­
xas de alguém, [fo гЩ zombar de seus companheiros de bebida, [fo
knee] dar um joelhaço no goleiro, [fo leg if] atravessar a cidade cor­

9. Advertir; nuançar; dialogar; agir como pais; inserir, aplicar; ter acesso; mostrar, apresen­
tar; intrigar; impactar; hospedar, receber; presidir; progredir; contactar. (N. daT.)
10. Refere-se a uma determinada tacada do jogo de hóquei denominada “wrist shot”.
(N. daT .)

490
I Os craq u es d a lín gu a I

rendo, [fo heelj fazer um cão seguir nos calcanhares, fo fo o f) pagar a


conta, [fo foe] manter-se na linha, e vários outros que não posso in­
cluir num livro sobre linguagem para toda a família.
Qual o problema? O que parece preocupá-los é o fato de falan­
tes meio atrapalhados da cabeça estarem acabando com a distin­
ção entre substantivos e verbos. M ais uma vez, no entanto, estão
faltando com o respeito para com o homem da rua. Lembre-se de
um fenômeno que encontramos no Capítulo 5: o passado do ter­
mo de beisebol tofly out éflied, e não flew ; dizemos, da mesma ma­
neira, ringed the city, não rang, e grandstanded, não grandstood. Estes são
verbos que vieram de substantivos (a popfly, a ring around the city, a
grandstand). Falantes são tacitamente sensíveis a essa derivação. O
motivo para evitarem formas irregulares como fle w out é que a en­
trada do dicionário mental deles para o verbo do beisebol to fly é
diferente da entrada do dicionário mental deles para o verbo co­
mum tofly ( o que os pássaros fazem). Um está representado como
um verbo baseado na raiz de um substantivo; o outro, como um
verbo com uma raiz verbal. Somente a raiz verbal pode ter o pas­
sado irregular flew , porque apenas no caso de raízes verbais faz
sentido ter alguma forma de passado. Esse fenômeno mostra que
quando as pessoas usam um substantivo como verbo, estão sofis­
ticando seus dicionários mentais, e não o contrário —as palavras
não estão perdendo suas identidades de verbos e substantivos; ao
contrário, há verbos, há substantivos, e há verbos baseados em
substantivos, e as pessoas guardam cada um com uma etiqueta
mental diferente.
O aspecto mais notável da condição especial de verbos deriva­
dos de substantivos é que todos os respeitam inconscientemen­
te. Lembre-se do Capítulo 5: se você cria um novo verbo basea­
do num substantivo, como o nome de alguém, ele é sempre regu­
lar, mesmo se o novo verbo pareça igual a um verbo existente que
é irregular. (Por exemplo, M ae Jemison, a linda astronauta negra,
out-Sally-Rided Sally Ride, e não out-Sally-Rode Sally Ride.') M inha

491
I O in stin to d a lin gu a gem I

equipe de pesquisadores testou isso, usando cerca de 25 novos


verbos derivados de substantivos, em centenas de pessoas —estu­
dantes universitários, pessoas que responderam a um anúncio co­
locado num tablóide e que procurava voluntários sem educação
superior, crianças em idade escolar, e até algumas de quatro anos.
Todos se comportaram como bons gramáticos intuitivos: flexio­
naram verbos que se originam de substantivos de modo diferente
dos antigos verbos consagrados.
Pois, então, existe alguém, em algum lugar, que não compreende
esse princípio? Sim —os craques da língua. Procure broadcasted no li­
vro The Careful Wríter de Theodore Bernstein, e eis o que encontrará:

Se você acha que previu [forecastef corretamente o futuro imedia­


to do inglês c se [casted your lotj aliou aos permissivos, talvez aceite
broadcasted, pelo menos no uso que é feito da palavra no rádio, como
encontramos cm alguns dicionários. O resto de nós, contudo, deci­
dirá que, apesar de talvez ser muito desejável transformar todos os
verbos irregulares em regulares, isto não pode ser feito por uma dc-
cisão arbitrária, muito menos do dia para a noite. Continuaremos a
usar broadeast como passado e particípio, por acharmos que broadcasted
não se justifica senão pela analogia, coerência ou lógica, dc que os
próprios permissivos tantas vezes zombam. Esta posição tampouco
é inconsistente com nossa posição sobre flíed, o termo dc beisebol,
que tem uma razão dc scr genuína. O fato —o fato inquestionável —
é que existem alguns verbos irregulares.

A “razão genuína” de Bernstein para flied é que ela tem um sig­


nificado especial em beisebol, mas esta é uma falsa razão; see a bet
[pagar para ver, no pôquer], cut a deal [fazer um acordo] e take the
count [ir a nocaute] têm todos sentidos especiais, mas mantêm seus
passados irregulares saw, cut e took, e não os trocam por seed, cutted,
taked. Não, o verdadeiro motivo é que tofly out significa to hit a fly [re­
bater a bola para o alto], e a fly é um substantivo. E o motivo pelo
qual as pessoas dizem broadcasted é o mesmo: elas não querem trans­

492
I Os craq u es da lín gu a I

formar todos os verbos irregulares em regulares do dia para a noi­


te, mas analisam mentalmente o verbo to broadcast como “to make
a broadcast” [fazer uma transmissão], ou seja, proveniente do subs­
tantivo corrente broadcast. (O sentido original do verbo, “espalhar
sementes”, é hoje em dia desconhecido, exceto para os jardineiros.)
Como verbo baseado num substantivo, to broadcast não pode ter sua
própria forma idiossincrática de passado, e portanto os não-cra-
ques simplesmente aplicaram a regra “acrescente -ed”.
Sinto-me obrigado a discutir mais um exemplo: o tão vilipen­
diado hopefully. Diz-se que uma frase como Hopefully; the treaty will
pass [Oxalá o tratado seja aprovado] é um grave erro. O advérbio
hopefully vem do adjetivo bopeful, que significa “de uma maneira
cheia de esperança”. Por isso, dizem os craques, deveria apenas ser
usado quando a frase se refere a uma pessoa que está fazendo algo
de maneira esperançosa. Se quem estiver esperançoso for o escritor
ou o leitor, dever-se-ia dizer It is hoped that the treaty will pass [Espera-
se que o tratado seja aprovado], ou I f hopes are realized, the treaty will
pass [Se as esperanças se realizarem, o tratado será aprovado], ou I
hope that the treaty will pass [Espero que o tratado seja aprovado].
Mas considere o seguinte:
I. Simplesmente não é verdade que um advérbio inglês tenha
de indicar a maneira como o ator realiza a ação. Existem advér­
bios de dois tipos: advérbios de “sintagma verbal” como carefully,
que se referem ao ator, e advérbios “sentenciais” como frankly, que
indicam a atitude do falante em relação ao conteúdo da frase.
Outros exemplos de advérbios sentenciais são:

accordingly curiously oddly


admittedly gcnerally parenthetically
alarmingly happily predictably
amazingly honesdy roughly
basically ideally seriously
blundy incidentally strikingly
candidly intriguingly supposedly
confidentially mercifully understandably

493
I O in stin to d a linguagem . I

Note que muitos desses advérbios sentenciais, como happily, ho-


nestly e mercifully, vêm de advérbios de sintagma verbal, e eles prati­
camente nunca são ambíguos em contexto. O uso de hopefully como
advérbio sentenciai, que aparece em textos pelo menos desde os
anos de 1930 (segundo o Dicionário Oxford de inglês) e na fala bem
antes disso, é uma aplicação perfeitamente sensata desse processo
de derivação.
2. As alternativas sugeridas It is hoped that e I f hopes are realized
apresentam quatro famosos pecados da escrita de má qualidade:
voz passiva, palavras desnecessárias, falta de clareza, pomposidade.
3. As alternativas sugeridas não significam o mesmo que hope­
fu lly e, portanto, com a proibição algumas idéias deixam de po­
der ser expressas. Hopefully faz uma previsão esperançosa, ao pas­
so que I hope that e It is hoped that apenas descrevem o estado mental
de certas pessoas. Por isso você pode dizer I hope that the treaty will
pass, but it isnt likely [Espero que o tratado seja aprovado, mas tudo
indica que não será], mas seria estranho dizer Hopefully, the treaty
will pass, hut it isnt likely [Oxalá o tratado seja aprovado, mas pare­
ce que não será],
4. Devemos usar hopefully apenas como advérbio de sintagma
verbal, como nos seguintes exemplos:

Hopefully, Larry hurled the bali Coward the basket with one second
left in the game.
Hopefully, Mclvin turned the record over and sat back down on the
couch eleven centimeters closer to Ellen."

Podem me chamar de descortês, podem me chamar de ignoran­


te, mas estas frases não pertencem a nenhuma língua que eu fale.I.

I I . Literalmente: Esperançosamente, Larry atirou a bola em direção à cesta faltando um


segundo para terminar o jogo./Esperançosamente, Melvin virou o disco e voltou a sen­
tar-se no sofá, onze centímetros mais perto de Ellen. (N. daT.)

494
I Os craq u es d a lín gu a I

Imagine se um dia alguém anunciasse que todos vêm cometen­


do um erro deplorável. O nome correto da cidade de Ohio que as
pessoas chamam de Cleveland na verdade é Cincinnati, e o nome
correto da cidade que as pessoas chamam de Cincinnati na verda­
de é Cleveland. Os especialistas não explicam por quê, mas insis­
tem em que é isso que é correto, e que quem se importar com a
língua tem de mudar imediatamente o modo como ele (sim, ele,
não eles) se refere às cidades, sem considerar a confusão e as des­
pesas que isso provocaria. Você certamente pensaria que essa pes­
soa está louca. Mas, quando um colunista ou editor faz semelhan­
te pronunciamento sobre hopefully, chamam-no de defensor da
erudição e dos altos padrões.

Desmascarei nove mitos dos craques da língua em geral, e ago­


ra gostaria de examinar os próprios craques. Pessoas que se apre­
sentam como especialistas da língua têm objetivos, conhecimentos
e bom senso diversos, e só seria justo discuti-las individualmente.
O tipo mais comum de craque é o observador de palavras
(wordwatcher, termo inventado pelo biólogo e observador de pala­
vras, Lewis Thomas). Diferentemente dos lingüistas, os observa­
dores de palavras apontam seus binóculos para as palavras espe­
cialmente caprichosas, excêntricas e pouco documentadas e para
expressões idiomáticas que podem ser encontradas de tempos em
tempos. Ás vezes, o observador de palavras é um erudito em algum
outro campo, como Thomas ou Quine, que durante toda a vida
cultiva o passatempo de escrever um livro adorável sobre a origem
das palavras. Ás vezes, é um jornalista designado para responder à
coluna de Perguntas e Respostas de um jornal.
Eis um exemplo recente da coluna Ask the Globe:

Q. Quando queremos irritar alguém, por que dizemos que quere­


mos “get his goat”? J.E., Boston

495
I O instinto d a lin gu a gem I

R. Os especialistas em gíria não têm muita certeza, mas alguns afir­


mam que a expressão vem de uma antiga tradição ligada a corridas
de cavalo, nas quais punha-se um bode [goatj na baia de um puro-
sangue de corrida muito arisco para manter o cavalo calmo. Apos-
tadores do século dezenove às vezes roubavam o bode para deixar o
cavalo nervoso e, assim, fazê-lo perder a corrida. Daí a expressão
“get your goat”.

Esse tipo dc explicação foi satirizada no episódio de Woody


Allen “Origem da Gíria":

Quantos de vocês já pensaram dc onde vêm certas expressões da gí­


ria, como “Shes the cats pajamas”12, ou “to takc it on the Iam”1’?
Iiu também não. Mas, para aqueles que se interessam por esse tipo
de coisa, providenciei um breve guia para algumas das mais interes­
santes origens.
|... | “Такс it on the lam” é inglês originalmente. Anos atrás, na
Inglaterra, “lamming” era um jogo jogado com dados e um grande
tubo dc ungüento. Na sua vez, cada jogador lançava os dados e fica­
va saltando cm torno da sala até ter uma hemorragia. Sc alguém ti­
rasse sete ou menos tinha dc dizer a palavra “quintz” c começar a gi­
rar em velocidade vertiginosa. Sc tirasse mais dc sete, era obrigado a
dar a cada jogador uma parte dc suas penas c levava uma boa “lam­
ming” [lambada |. Três “lammings” e o jogador era “kwirled”14 ou
declarado moralmente falido. Com o passar do tempo, qualquer
jogo com penas passou a ser chamado dc “lamming” e penas passa­
ram a ser “lams”. “To take it on the lam” significava pôr penas c,
posteriormente, fugir, embora a transição não seja clara.

Essa passagem retrata bem minha reação ante os observadores


de palavras. Não acho que eles sejam prejudiciais, mas (a) nunca

12. Do balacobaco. (N. daT.)


13. Dar no pé. (N. daT.)
1 4 . “Q u in tz '’ c “k w irl” são palavras sem s e n tid o e m inglês. ( N . d a T .)

496
I Os craques da língua I

acredito plenamente em suas explicações, e (b) na maioria dos ca­


sos, na verdade, nem dou bola. Anos atrás, um colunista contou a
origem da palavra pumpernická. Durante uma de suas campanhas na
Europa central, Napoleão parou numa taverna onde lhe serviram
uma pedaço de um pão preto, azedo e cheio de grãos. Acostuma­
do com as delicadas baguettes brancas de Paris, ele zombou: “C’est
pain pour Nicole”, sendo que Nicole era seu cavalo. Ao ser ques­
tionado (os dicionários dizem que a palavra vem do alemão colo­
quial e significa “duende que peida”), o colunista confessou que
ele e uns amigos tinham inventado a história num bar na noite an­
terior. Para mim, observar palavras pelo prazer de fazê-lo é tão ex­
citante em termos intelectuais quanto colecionar selos, com o de­
talhe de que um número indeterminado dos selos é falso.
Na extremidade oposta do espectro temperamental encontra­
mos os Jeremias, com seus amargos lamentos e profecias morali-
zantes de ruína, Um eminente editor de dicionário, colunista da
área de línguas, e especialista no uso da língua, escreveu certa vez,
citando um poeta:

Como poeta, há um único dever político, qual seja, defender nos­


sa língua da corrupção, fenômeno particularmente grave nos tem­
pos atuais. Ela está sendo corrompida. Quando uma língua é cor­
rompida, as pessoas deixam de ter fé no que ouvem, e isso conduz
à violência.

O lingüista Dwight Bolinger, instando gentilmente este ho­


mem a se controlar, teve de dizer que “o mesmo número de assal­
tantes surgiría da escuridão se todos se conformassem do dia para
a noite com todas as regras prescritivas já escritas”.
Nos últimos anos, o Jeremias mais efusivo tem sido o crítico
John Simon, cujas resenhas venenosas de filmes e peças distinguem-
se pelas longas denúncias da impudícia das atrizes. Eis um exemplo
representativo do início de uma de suas colunas sobre língua:

497
I O instinto da linguagem I

mos é criar uma imagem de pessoas dando estrelas e saltos mortais,


por que não dizemos: Theyre heels over head in lavei

Objeção! ( I ) Todos percebem a diferença entre um composto,


que pode ter um sentido convencional próprio, como qualquer
outra palavra, e um sintagma, cujo significado é determinado pe­
los significados de suas partes e pelas regras que as reúnem. Um
substantivo composto é pronunciado com um certo padrão tôni­
co ( iárkroom) e um sintagma, com outro (dark róom). As expressões
supostamente “loucas”, como cachorro quente e náusea matinal,
são evidentemente compostos e não sintagmas, e portanto ca­
chorros quentes frios e náusea matinal noturna não violam abso­
lutamente a lógica gramatical. (2 ) Não é óbvio que Jat chance e wíse
gu y são sarcasmos? (3 ) Donut boles, o nome comercial de um pro­
duto de Dunkiri Donuts, é intencionalmente excêntrico —alguém
não pegou a piada? (4 ) A preposição over tem vários sentidos, en­
tre os quais o de uma disposição estática, como em Bridge over trou~
blei water [Ponte sobre águas turbulentas], e de trajeto de um obje­
to em movimento, como em The quíck brownfox jumped over the lazy
dog [A lépida raposa marrom pulou por cima do cão indolente].
Head over heels tem a ver com o segundo significado, descrevendo o
movimento, não a posição, da cabeça do enamorado.
Devo também dizer algo em defesa dos estudantes universitá­
rios, candidatos à assistência social e Joe Sixpacks, cujo linguajar
costuma ser tão ridicularizado pelos animadores. Cartunistas e
escritores de diálogos sabem que você pode fazer qualquer pessoa
um caipira transcrevendo sua fala de modo quase fonético, em vez
de usar a escrita convencional ( “sez”, “cum”, “wimmin”, “hafta”,
"crooshul”21 etc.). Lederer vez por outra recorre a esse truque ba­
rato em “Howta Reckanize American Slurvian”, em que deplora
exemplos pouco dignos de atenção dos processos fõnológicos do

21 . Em vez de says (d iz), come (vir), womert (mulheres), have to (ter que) e crucial (crucial).
(N. da R .T .)

500
I

I Os craques da língua I

inglês como “coulda” e “could o f ” (could have'), “forced” (Jorest),


“granite” (granted), “neck store” ( next door), e “then” ( than). Como
vimos no Capítulo 6, todo mundo, exceto um robô de ficção cien­
tífica, come sistematicamente sons ao falar.
Lederer também reproduz listas de “disparates” encontrados
em trabalhos finais de estudantes, formulários de pedidos de in­
denização de seguro de automóveis e pedidos de assistência social,
disparates estes amplamente conhecidos por serem divulgados em
folhas mimeogradas quase ilegíveis afixadas em paredes na univer­
sidade e em repartições públicas:

In accordance with your instructions I have given birth to twins in


the enclosed envelope.
My husband got his project cut off two weeks ago and I havent had
any relief since.
An invisible car carne out of nowhere, struck my car, and vanished.
The pedestrian had no idea which direction to go, so I ran over him.
Artificial insemination is when the farmer does it to the cow instead
of the bull.
The girl tumbled down the stairs and lay prostitute on the bottom.
Moses went up on Mount Cyanide to get the ten commandments.
He died before he ever reached Canada.22

Estas listas servem para dar umas boas risadas, mas há algo que
você deveria saber antes de concluir que as massas são comicamen-
te ineptas para a escrita. Muito provavelmente, a maioria dos dis­
parates foram fabricados.

22 . Conforme suas instruções dei à luz gêmeos no envelope anexo./O projeto do meu mari­
do foi cancelado duas semanas atrás e desde então não tenho tido alívio./Um carro invi­
sível apareceu do nada, bateu no meu carro e desapareceu./O pedestre não sabia para
que lado ir e, portanto, passei por cima dele./Inseminação artificial é quando o fazen­
deiro faz na vaca ao invés do boi./A garota despencou pela escada e ficou prostituta no
chão./Moisés subiu no Monte Cianeto para receber os dez mandamentos. Morreu antes
de chegar no Canadá. (N. da T.)

501
I O instinto da linguagem I

O folclorista Jan Brunvand documentou centenas de “lendas


urbanas”, histórias incríveis que todos juram ter acontecido com
o amigo de um amigo (friend o f afriend, “FOAF” é o termo técni­
co), e que circulam durante anos de cidade em cidade, sem prati­
camente nenhuma mudança, mas que nunca chegam a ser docu­
mentadas como fatos reais. Algumas das histórias mais famosas
são as da Baby Sitter Hippie, dos Jacarés no Esgoto, do Kentucky
Fried Rato e do Sádico de Halloween (aquele que colocava giletes
em maçãs). Os disparates, ao que tudo indica, são exemplos de
um subgênero chamado xeroxlore. O funcionário que envia uma
dessas listas admite que não foi ele que reuniu os itens mas que os
tirou de uma lista que alguém lhe deu, que foi tirada de outra lis­
ta, que incluía exemplos de cartas que alguém, em algum escritó­
rio, rcalmente recebeu. Listas quase idênticas vêm circulando des­
de a Primeira Guerra Mundial, e foram atribuídas a diferentes re­
partições da Nova Inglaterra, Alabama, Salt Lake City etc. Segundo
Brunvand, são mínimas as chances de os mesmos mal-entendidos
engraçados serem produzidos em duas localidades diferentes du­
rante tantos anos. O advento do correio eletrônico acelerou a cria­
ção c disseminação dessas listas, c de tempos em tempos recebo
uma. Isso para mim cheira a facccia (se do estudante ou do pro­
fessor, não fica claro), c não a incompetência acidental hilária, cm
disparates como “adamani23: pertencente ao pecado original” e “gu-
bcrnatorial [governativo]: relacionado com amendoins”.

O último tipo de craque é o sábio, representado pelo finado


Theodore Bernstein, editor do New York Times e autor do delicioso
manual The Carfu i Wríter, e por W illiam Safire. São conhecidos por
sua abordagem moderada e sensata de questões de uso, e eles pro­

23. Inflexível, confundido aqui com adâmico. (N. daT.)

502
I Os craques da língua I

vocam suas vítimas com humor em vez de atacá-las com invecti-


vas. Gosto de ler esses sábios, e admiro uma pena como a de Sa-
fire, que consegue resumir o conteúdo de um decreto antiporno-
grafia assim: “Não é teta, mas tumidez.” O que temos de lamen­
tar, no entanto, é que até mesmo um sábio como Safire, que é quem
mais se aproxima de um erudito esclarecido da linguagem, des­
considere a sofisticação lingüística do falante comum e, portanto,
erre o alvo em muitos de seus comentários. Para provar tal acusa­
ção, vou percorrer com você uma única coluna dele, publicada no
The New York Times Magazine em 4 de outubro de 1992.
Na coluna havia três histórias, em que se discutiam seis exem­
plos de uso questionável. A primeira história era uma análise neu­
tra de supostos erros no uso de pronomes, cometidos pelos dois
candidatos à eleição presidencial de 1992 nos EUA. George Bush
tinha acabado de adotar o slogan “W ho do you trust?” [(Em)
quem você confia?], enlouquecendo professores de todo o país,
para os quais who é um “pronome sujeito” (caso nominativo ou
subjetivo) e a pergunta indaga sobre o objeto da confiança (caso
acusativo ou objetivo). A gente diz You do trust him, e não You do trust
he, c portanto a partícula interrogativa deveria ser whom, não who.
Esta é, sem dúvida, uma das clássicas queixas prescritivas em
relação à fala comum. Em resposta, poderiamos dizer que a dis­
tinção who/whom é uma relíquia do sistema de casos do inglês,
substituídos por substantivos séculos atrás e encontrados atual­
mente apenas entre pronomes, em distinções como he/him. Mes­
mo entre os pronomes, a antiga distinção entre a forma sujeito ye
e a forma objeto you desapareceu, de modo que you desempenha
ambas as funções e y e soa completamente arcaico. Whom sobrevi­
veu a y e mas está evidentemente moribundo; agora, soa pedante na
maioria dos contextos orais. Ninguém exige que Bush diga Whom
doye trust? Se a língua pode suportar a perda de ye, usando you tan­
to para sujeitos como para objetos, por que continuar se agarran­
do a whom, quando todos usam who tanto para sujeitos como para
objetos?

503
I O instinto da linguagem I

Safire, com sua atitude esclarecida em relação ao uso, reconhe­


ce o problema e propõe

A Lei Safire de Who/Whom, que resolve para sempre o problema


que perturba escritores e falantes apanhados entre o pedantismo e a
incorreção: “Quando o uso de whom for o correto, remodele a fra­
se.” Assim, em vez de modificar seu slogan para “Whom do you
trust?” —passando a impressão de formalidade exageradamente aca­
dêmica —o Sr. Bush recuperaria o voto dos puristas com “Which
candidate do you trust?”. [Em que candidato você confia?]

Mas a recomendação de Safire é salomônica no sentido de ser


um pseudomeio-termo inaceitável. Dizer para as pessoas evitarem
uma construção problemática parece bom senso, mas, no caso de
interrogativas com who que indagam sobre o objeto, é pedir um
sacrifício intolerável. Pessoas fazem muitas perguntas sobre os ob­
jetos de verbos e preposições. Eis uns poucos exemplos que colhi
em transcrições de conversas entre pais e filhos:

I know, but who did wc see at the other store?


Who did we see on the way home?
Who did you play with oulside tonight?
Abc, who did you play with today at school?
Who did you sound like?2'

(Imagine como seria substituir qualquer um destes por whom!)


O conselho de Safire é mudar essas perguntas para Qual pessoa
\Which person\ ou Qual criança [ Which сЫЩ. M as tal conselho obriga­
ria as pessoas a transgredirem a principal máxima da boa prosa:
Omita palavras desnecessárias. Isso também as forçaria a usar em

24. Tá bom, mas quem vimos na outra loja?/Quem vímos quando voltávamos para casa?/
Com quem você brincou lá fora hoje à noite?/Abe, com quem você brincou hoje na
escola?/Você estava parecendo quem? (N. daT.)

504
I Os craques da língua I

excesso a palavra which, descrita por um estilista como “a palavra


mais feia da língua inglesa”. Por fim, ele subverte o suposto obje­
tivo das regras dê uso, que é permitir às pessoas exprimirem seus
pensamentos da maneira mais clara e precisa possível. Uma per­
gunta como Who iià we see on the way homeP pode abarcar uma pes­
soa, muitas pessoas, ou qualquer combinação ou número de adul­
tos, bebês, crianças e cães domésticos. Qualquer substituição es­
pecífica como Qual pessoaP elimina alguma dessas possibilidades, o
que contraria a intenção de quem pergunta. E me digam como
aplicar a Lei de Safire ao famoso refrão

Whore you gonna call? GHOSTBUSTERS! [Quem você vai cha­


mar? Os Caça-Fantasmas!]

Extremismo em defesa da liberdade não é vício. Safire deveria


ter levado sua observação sobre o caráter pedante de whom à sua
conclusão lógica e aconselhar o presidente a não mudar o slogan,
pelo menos não por motivos gramaticais.
Voltando-se para os democratas, Safire examina o caso dc Bill
Clinton —são estas as suas palavras —quando pede aos eleitores
para ‘ give Al Gore and I a chance to bring America back” [dar a
Al Gore e cu a oportunidade de trazer de volta a América], N in­
guém diria^íw I а break [dá eu um tempo], porque o objeto indire­
to d c give tem de ser acusativo. Portanto, deveria ser give Al Gore and
те a chame.
Provavelmente nenhum “erro gramatical” foi alvo de tanta cha­
cota quando o “uso equivocado” dos pronomes dentro de con­
junções (sintagmas contendo dois elementos ligados por e ou ou).
Que adolescente não foi corrigido por dizer Me and Jennifer are going
to the mall [Jennifer e mim vamos para o shopping]? Uma colega
minha lembra que quando tinha doze anos a mãe disse que só
deixaria ela furar a orelha quando deixasse de dizer isso. A histó­
ria típica é que o pronome objeto mim não pode ser usado em po-

505
I O instinto da linguagem I

los em incontáveis nichos diferentes. Para Darwin, tal é a “gran­


diosidade desta concepção da vida”: “que, enquanto este planeta
continuou girando segundo a inamovível lei da gravidade, de um
princípio tão simples infinitas formas lindas e maravilhosas evo­
luíram e continuam evoluindo”.

476
Os craques da língua

Imagine-se assistindo a um
documentário sobre a na­
tureza. O vídeo mostra as costumeiras cenas deslumbrantes de
animais em seus hábitats naturais. Mas a voz que narra relata al­
guns fatos inquietantes. Os golfinhos não executam como deve­
ríam seus saltos e mergulhos. Tico-ticos negligentemente adulte­
ram seus chamados. Os ninhos dos canários-da-terra são cons­
truídos de modo incorreto, pandas seguram bambus com a pata
errada, o canto da baleia jubarte contém vários erros reconhecí­
veis, e os gritos dos macacos vêm se degenerando há centenas de
anos. Sua provável reação seria: Que diabos pode significar que o
canto da jubarte contém um “erro”? O canto da baleia jubarte
não é exatamente aquilo que ela decide cantar? Aliás, quem é esse
locutor?
No caso da linguagem humana, no entanto, as pessoas não só
pensam que as mesmas declarações têm sentido como também
que são motivo para se alarmar. Johnny não consegue construir
uma frase gramatical. Com o declínio dos padrões educacionais e
a divulgação pela cultura pop de delírios inarticulados e gírias
ininteligíveis de surfistas, DJs e garotas do sul da Califórnia, esta­
mos virando uma nação de iletrados funcionais: o uso errado de
hopefully como modificador de frase em inglês, confundir lie e lay

477
I O instinto da linguagem I

[estar e pôr deitado], tratar a palavra data [dados] como um subs­


tantivo singular, deixar os particípios em inglês pendentes1. A
própria língua inglesa está ameaçada de abrupta decadência caso
não retornemos aos fundamentos e comecemos a respeitar nossa
língua novamente.
Para um lingüista ou psicolingüista, é claro, a linguagem é
como o canto da jubarte. A maneira de determinar se uma cons­
trução é “gramatical” é encontrar pessoas que falem aquela língua
e perguntar a elas. Portanto, quando se acusam pessoas de falar
“agramaticalmente” em sua própria língua, ou de violar regular­
mente uma “regra”, deve haver algum sentido diferente de “grama­
tical” e “regra” no ar. Na verdade, a crença disseminada de que as
pessoas não conhecem sua língua é um estorvo quando se faz pes­
quisa lingüística. Muitas vezes, a pergunta que um lingüista faz a
um informante sobre alguma forma na fala dele ou dela (por
exemplo, se a pessoa usa sneaked ou snuck23') é rebatida com a ingênua
contrapergunta: “Epa! Melhor eu não me arriscar; qual a forma
correta?”
Neste capítulo seria melhor eu resolver esta contradição para
você. Lembra da colunista Erma Bombeck, que não podia nem
mesmo pensar na idéia de um gene da gramática porque seu mari­
do dava aula para 37 alunos de colegial que achavam que “bum-
mer”'1era uma frase? Também você deve estar se perguntando: se a
linguagem é tão instintiva quanto tecer uma teia, se toda criança
de três anos é um gênio gramatical, se o design da sintaxe está co­
dificado em nosso DNA e instalado no nosso cérebro, por que a
língua inglesa está esse lixo? Por que o americano médio parece um
tagarela tolo cada vez que abre a boca ou põe a caneta no papel?

1. Danglingparticiple: uso controvertido do particípio no começo da frase, dando lugar a ambi-


güidades quanto a quem ou a que ele se refere. (N. da X )
2. Ambas são formas corretas do passado de to sneak, agir de forma furtiva. (N. da T.)
3. Equivalente à gíria “bode”. (N. daT.)

478
I Os craques da língua I

A contradição começa no fato de as palavras “regra”, “grama­


tical” e “agramatical” terem sentidos diferentes para um cientista
e para um leigo. As regras que as pessoas aprendem (ou, o que é
mais provável, não conseguem aprender) na escola são denomina­
das regras prescritivas, pois prescrevem como se “deveria” falar. Os
cientistas estudiosos da língua propõem regras descritivas, que des­
crevem como as pessoas efetivamente falam. São coisas completa­
mente diferentes, e há uma boa razão para os cientistas se concen­
trarem em regras descritivas.
Para um cientista, o fato fundamental da linguagem humana é
sua improbabilidade. A maioria dos objetos do universo —lagos,
pedras, árvores, vermes, vacas, carros —não falam. Mesmo entre os
humanos, as emissões numa língua são uma parte infinitesimal dos
ruídos que a boca das pessoas é capaz de fazer. Posso montar uma
combinação de palavras que explica como os polvos fazem amor
ou como remover manchas de cereja; basta mudar, ainda que mini­
mamente, a ordem das palavras para que surja uma frase com um
sentido diferente ou, o que é mais provável, uma salada de palavras.
Como explicar esse milagre? O que seria preciso para construir
uma máquina que conseguisse duplicar a linguagem humana?
È claro que é preciso colocar nela algum tipo de regra, mas
qual tipo? Regras prescritivas? Imagine como seria construir uma
máquina de falar para que ela obedecesse a regras como “Não sepa­
re infinitivos” ou “Nunca comece uma frase com because”. Ela não
sairia do lugar. Na verdade, já temos máquinas que não separam
infinitivos; elas se chamam chave de fenda, banheira, máquina de
fazer cappuccino etc. Regras prescritivas não servem para nada
sem as regras muito mais fundamentais que, para começar, criam
as frases, definem os infinitivos e listam a palavra because, as regras
dos Capítulos 4 e 5. Essas regras nunca são mencionadas em ma­
nuais de estilo ou gramáticas escolares porque os autores pressu­
põem, com razão, que quem for capaz de ler os manuais já deve
ter incorporado as regras. Não é preciso dizer para ninguém, nem

479
I O instinto da linguagem I

mesmo para uma garota do sul da Califórnia, que não se deve di­
zer Maçãs o come menino ou A criança parece dormindo ou Quem você en­
controu João e? ou a vasta, vasta maioria dos quatrilhões de combi­
nações matematicamente possíveis de palavras. Portanto, quando
um cientista avalia toda maquinaria mental de alta tecnologia ne­
cessária para ordenar palavras em frases comuns, as regras prescri­
tivas são, na melhor das hipóteses, pequenos adornos sem conse-
qüência. O próprio fato de elas terem de ser exercitadas mostra
que são alheias ao funcionamento natural do sistema da língua.
Pode-se escolher ficar obcecado com as regras prescritivas, mas
elas têm tão pouco a ver com a linguagem humana quanto os cri­
térios para avaliar gatos numa exposição de gatos têm a ver com a
biologia dos mamíferos.
Portanto, não há contradição em dizer que toda pessoa nor­
mal pode falar gramaticalmente (ou seja, sistematicamente) e agra-
maticalmente (ou seja, fugindo às regras prescritivas), assim como
não há contradição em dizer que um táxi obedece às leis da física
mas transgride as leis de Massachusetts. Mas isso levanta uma
questão. Alguém, em algum lugar, deve estar tomando decisões
sobre o “inglês correto” em nome de todos nós. Quem? Não exis­
te Academia da Língua Inglesa, e não faz falta; o objetivo da
Académie Française é divertir jornalistas de outros países com de­
cisões resultantes de discussões acerbas que os franceses alegre­
mente ignoram. Tampouco existiram Pais Fundadores em alguma
Conferência Constitucional da Língua Inglesa no princípio dos
tempos. Os legisladores do “inglês correto”, na verdade, são uma
rede informal de editores de texto, participantes de mesas-redon­
das sobre uso de dicionário, escritores de manuais de estilo e de
compêndios, professores de inglês, ensaístas, colunistas e eruditos.
Segundo eles, sua autoridade no assunto vem do devotamento à
implementação de padrões que tão bem serviram à língua no pas­
sado, sobretudo na prosa de seus melhores escritores, e que maxi­
mizam sua clareza, lógica, harmonia, concisão, elegância, conti­

480
I Os craques da língua I

nuidade, precisão, estabilidade, integridade e expressividade. (Al­


guns deles vão mais longe e dizem estar, na verdade, salvaguardan­
do a possibilidade de pensar com clareza e lógica. Este radical
whorfianismo é comum entre eruditos da língua, o que não sur­
preende; quem se contentaria em ser um acadêmico quando pode
ser um preservador da própria racionalidade?) W illiam Safire, que
escreve a coluna semanal “On Language” [Sobre a língua] no The
New York Times Magazine, se autodenomina um “language maven”
[craque da língua], que vem da palavra iídiche que significa exper­
to, craque, e que podemos adotar como rótulo para todo o grupo.
Eu digo a eles: Maven, shmaven! Kibbitzers e nudniks4 seriam mais
apropriados. Pois os fatos são os seguintes. A maioria das regras
prescritivas dos craques da língua não fazem nenhum sentido em
nenhum nível. São idéias folclóricas que surgiram por razões ex­
cêntricas há centenas de anos e desde então se perpetuaram. Ao
longo de toda sua existência, os falantes as desdenharam ao mes­
mo tempo que se queixavam do iminente declínio da língua, sécu­
lo após século. Todos os melhores escritores ingleses de todas as
épocas, incluindo Shakespeare e a maioria dos próprios craques,
são zombadores notórios. As regras não se conformam nem à ló­
gica nem à tradição, e se algum dia fossem seguidas imporiam aos
escritores uma prosa imprecisa, pesada, prolixa, ambígua, incom­
preensível, em que certas idéias simplesmente não podem ser ex­
pressas. Com efeito, a maioria dos “erros por ignorância” que elas
supostamente corrigem revelam uma lógica precisa e uma aguda
sensibilidade para a textura gramatical da língua, que os craques
não percebem.

4. O inglês americano está muito impregnado de formas derivadas do iídiche. Neste caso,
shmaven dá um sentido pejorativo à palavra maven, também derivada do iídiche. Kibbitzers
e nudniks significam, respectivamente, palpiteiros intrometidos e pentelhos. Portanto, o
que o autor diz é: “Que craques, que nada! M etidos e pentelhos seria mais apropriado.”
(N. da T.)

481
I O instinto da linguagem I

O escândalo dos craques da língua começou no século 18. Lon­


dres havia se tornado o centro político e financeiro da Inglaterra,
e a Inglaterra, o centro de um poderoso império. O dialeto lon­
drino passou subitamente a ser uma importante língua mundial.
Os eruditos começaram a criticá-la como fariam com qualquer
instituição artística ou civil, em parte para questionar os costumes
e, portanto, a autoridade da corte e da aristocracia. O latim ainda
era considerado a língua das luzes e do ensino (sem mencionar
que era a língua de um império igualmente vasto), e era proposto
como o ideal de precisão e lógica a que o inglês deveria aspirar.
Foi também um período de mobilidade social nunca vista, e quem
quisesse se educar e se aprimorar e quisesse ser considerado culto
tinha de dominar a melhor versão do inglês. Essas tendências cria­
ram uma demanda por guias e manuais de estilo, logo submeti­
dos às forças de mercado. A organização da gramática inglesa
conforme o modelo da gramática latina transformou os livros
em ferramentas úteis para ajudar jovens estudantes a aprender la­
tim. E quando se iniciou uma concorrência sem trégua, um ma­
nual tentava superar o outro incluindo uma quantidade maior de
regras cada vez mais fastidiosas que nenhuma pessoa refinada
poderia ignorar. A origem da maioria dos bichos-papões da con­
temporânea gramática prescritiva (não separe infinitivos, não ter­
mine uma frase com uma preposição) remonta a essas coquelu­
ches do século 18.
E claro que forçar os modernos anglofalantes a não separar um
infinitivo5 porque isso não se faz em latim faz tão pouco sentido
quanto forçar os atuais habitantes da Inglaterra a vestir lauréis e
togas. Júlio César não poderia ter separado um infinitivo mesmo
que quisesse. Em latim, o infinitivo é uma palavra única como fa -
cere ou dicere, um átomo sintático. O inglês é um tipo diferente de

5. No original: O f course,forcitig modem speakers o f English to not - whoops, not to split an infinitive.,., em
que o autor separa o infinitivo e depois se corrige. (N. daT.)

482
I Os craques da língua I

língua. E uma língua “isolante”, que constrói frases em torno de


muitas palavras simples em vez de poucas e complicadas. O infini­
tivo é composto de duas palavras —um complementizador, to, e
um verbo, como go. Palavras, por definição, são unidades reordená-
veis, e não há razão para que um advérbio não possa vir entre elas:

O espaço —a fronteira final... Estas são as viagens da nave estelar


Enterprise em sua missão de cinco anos para explorar novos mundos,
pesquisar novas formas de vida e civilizações, audaciosamente indo
[fo boldlygoj aonde nenhum homem jamais esteve.

Audaciosamente indo [ To go boldly] aonde nenhum homem ja­


mais esteve? Teletransporte-me, Scotty; não há vida inteligente
por aqui. Quanto a proscrever frases que terminam com uma pre­
posição (impossível em latim por motivos que têm a ver com seu
sistema de marcação de casos, e que são irrelevantes em inglês, po­
bre em casos) —como Winston Churchill teria dito, it is a m ie up
with which we shoulâ not put [trata-se de uma regra que não podemos
tolerar].
Contudo, uma vez introduzida, é muito difícil erradicar a re­
gra prescritiva, pouco importando o quanto ela seja ridícula. Nas
instituições educacionais e literárias, as regras sobrevivem em fun­
ção da mesma dinâmica que perpetua rituais de mutilação de ge-
nitais e trotes de calouros: tive de passar por isso e não sou dos
piores, então por que deveria facilitar as coisas para você? Por
exemplo, aquele que ousa subverter uma regra sempre terá de se
preocupar com os leitores que acharão que ele o faz por ignorar a
regra e não por desafiá-la. (Confesso que isso me dissuadiu de se­
parar alguns infinitivos que valiam a pena separar.) O que talvez im­
porte mais, já que as regras prescritivas são tão pouco naturais em
termos psicológicos que somente aqueles com acesso a uma exce­
lente escolaridade podem acatá-las, é que elas servem de schibbolet,
diferenciando a elite da ralé.

483
I O instinto da linguagem I

O conceito de schibbolet (palavra hebraica para “torrente”) vem


da Bíblia:

Os galaaditas se apoderaram dos vaus do Jordão, em frente de


Efraim, e, quando os efraimitas fugitivos diziam: “Deixai-me pas­
sar!”, os galaaditas perguntavam: “Es efraimita?” Se respondia “Não”
eles o intimavam: “Dize, pois, schibbolet”, se repetia: “sibolet” não
sabendo pronunciar corretamente, agarravam-no e matavam-no no
vau do Jordão. Nessa ocasião pereceram quarenta e dois mil efraimi­
tas. (Jz 12, 5-6)

Foi esse tipo de terror que movimentou o mercado da gramá­


tica prescritiva nos Estados Unidos durante o século passado.
Por todo o país as pessoas falavam um dialeto do inglês que pos­
suía algumas características datadas do período inicial do inglês
moderno, e que H. L. Mencken denominou de A Língua Ameri­
cana. Teve a infelicidade de não se tornar o padrão de governo e
da educação, e boa parte do currículo de “gramática” das escolas
americanas tinha como objetivo estigmatizá-lo como fala agra-
matical c desleixada. Exemplos familiares desse dialeto são aks a
question, workin’, ain’t, I dont see no birds, he don’t, them boys, we was, e
formas de passado como drug, seen, clumb, drownded e growed. Para os
adultos ambiciosos que não tinham podido completar a escolari­
dade, havia propagandas de página inteira de cursos por corres­
pondência, contendo listas de exemplos sob manchetes apelativas
como “VOCÊ COMETE ALGUM DESTES EMBARAÇO­
SOS ERROS?”.

♦♦ ♦

Os craques da língua costumam afirmar que o inglês america­


no não-padrão não é só diferente mas menos sofisticado e lógico.
Eles deveríam admitir que se trata de algo difícil de provar no caso

484
I Os craques da língua I

de verbos irregulares não-padronizados como àrag-drug [arrastar,


dragar] (e mais ainda no caso de regularizações como feeled eg ro -
w ei). Afinal de contas, em inglês “correto”, diz Richard Lede-
rer: “Today we speak, but first we spoke; some faucets leak, but
never loke. Today we write, but first we wrote; we bite our ton-
gues, but never bote.”6 Á primeira vista, os craques parecem ter
um argumento melhor quando se trata de nivelar distinções fle­
xionais em He don’t e We was. Mas esta vem sendo a tendência do
inglês padrão há séculos. Ninguém se incomoda pelo fato de não
distinguirmos mais a forma da segunda pessoa do singular dos
verbos, como sayest. Por este critério, os dialetos não-padrão é
que são superiores, porque fornecem aos seus falantes pronomes
da segunda pessoa do plural como y ’all e youse, o que o inglês pa­
drão não faz.
Nesse ponto, os defensores do padrão vão sacar o famoso du­
plo negativo, como em 1 cant get no satísfaction. Em termos lógicos,
os dois negativos se anulam entre si, ensinam eles; na verdade, o
Sr. Jagger está dizendo que está satisfeito. A canção deveria inti­
tular-se “I Cant Get Any Satísfaction”. Mas este raciocínio não
é satisfatório. Centenas de línguas exigem que seus falantes usem
um elemento negativo em algum lugar dentro do “escopo”, como
dizem os lingüistas, de um verbo negado. O assim chamado du­
plo negativo, longe de ser uma corrupção, era norma no inglês
médio de Chaucer, e no francês padrão, a negação —como em Je
ne saís pas, em que ne e pas são ambos negativos —é um exemplo
contemporâneo familiar. Pensando bem, o inglês padrão na ver­
dade não é diferente. O que any, even e at ali significam nas seguin­
tes frases?

6. O autor da frase explicita a irregularidade dos tempos passados em inglês, o que se perde
em português. Segue-se apenas a tradução da frase: “Hoje eu falo, mas primeiro falei;
algumas torneiras pingam, mas nunca ‘pangarn. Hoje eu escrevo, mas primeiro escreví;
mordemos a língua, mas nunca ‘merdemos’.” (N. daT.)

485
I O instinto da linguagem I

I didnt buy any lottery tickets. [Não comprei nenhum bilhete de lo­
teria.]
I didnt eat even a single French fry. [Não comi nem mesmo uma
única batata frita.]
I didnt eat fried food at ali today. [Não comi nada frito hoje.]

Não muito; não se pode usá-los sozinhos, como mostram as


seguintes frases estranhas:

I bought any lottery tickets.


I ate even a single French fry.
I ate fried food at ali today.

O que essas palavras fazem é exatamente o que no faz em inglês


americano não-padrão, como no equivalente I didnt buy no lottery tic­
kets —concordando com o verbo negado. A tênue diferença é que o
inglês não-padrão cooptou a palavra no como elemento de concor­
dância, ao passo que o inglês padrão cooptou a palavra any; afora
isso, são traduções perfeitas. E deve-se destacar algo mais. Na gra­
mática do inglês padrão, uma dupla negativa não assevera a afirma­
tiva correspondente. Ninguém sonharia em dizer I can’t get no satis-
faction assim, sem mais nem menos, para se vangloriar de que alcan­
ça com facilidade o contentamento. Há circunstâncias em que tal
construção deveria ser usada para negar uma negação precedente
no discurso, mas negar uma negação não é o mesmo que afirmar
uma afirmação, e, mesmo neste caso, isso só se usa para enfatizar o
elemento negativo, como no seguinte exemplo inventado:

As hard as I try not to be smug about the misfortunes of my adver-


saries, I must admit that I cant get no satísfaction out of his te-
nure denial.7

7. Por mais que eu tente não ficar satisfeito com as desgraças de meus adversários, devo
admitir que não consegui não ficar contente com o fato de não o terem admitido no
emprego. (N. daT.)

486
I Os craques da língua I

Portanto, a sugestão de que o uso da forma não-padrão pode­


ria provocar confusão é puro pedantismo.
Ouvidos moucos para a prosódia (ênfase e entonação) e o es­
quecimento dos princípios da retórica são importantes ferramen­
tas no negócio dos craques da língua. Considere uma suposta atro­
cidade cometida pelos jovens de hoje: a expressão 1 could care less. Os
adolescentes estão tentando exprimir desdém, notam os adultos, e
nesse caso eles deveríam dizer I coulânt care less. Se pudessem se im­
portar menos do que o fazem, quer dizer que eles realmente se
importam, o contrário do que estão tentando dizer. Mas se esses
almofadinhas pudessem parar de gozar dos adolescentes e bates­
sem um olho na construção, veriam que seu argumento é espúrio.
Escutem como as duas versões são pronunciadas:

C O U L D N T care I
LE CARE
i ESS. LE
could ESS.

As melodias e ênfases são completamente diferentes, e isso por


um bom motivo. A segunda versão não é ilógica, é sarcástica. O sar­
casmo consiste em fazer uma afirmação manifestamente falsa ou
acompanhada de uma entonação ostensivamente afetada, que im­
plica deliberadamente o contrário. Uma boa paráfrase seria: “Cla­
ro, como se houvesse algo no mundo com que me importe me­
nos”. Ás vezes um suposto “erro” gramatical é lógico não só no
sentido de ser “racional”, mas no sentido de respeitar distinções
feitas pelo lógico formal. Considere estes supostos barbarismos,
que quase todo craque da língua menciona:

Everyone returned to their seats.


Anyone who thinks a Yonex racquet has improved their game, raise
your hand.

487
I O instinto da linguagem I

If anyone calls, tell them I cant come to the phone.


Someone dropped by but they didnt say what they wanted.
No one should have to sell their home to pay for medicai care.
Hes one of those guys whos always patting themself on the back.
[cito Holden Caulfield do livro Apanhador no campo de centeio de J.
D. Salinger]8

Eles explicam: everyone significa every one [cada um], um sujeito


singular, que não pode servir de antecedente para um pronome
plural como them mais adiante na frase. “Everyone returned to his
seat”, insistem eles. “If anyone calls, tell him I cant come to the
phone.”
Se você fosse o alvo dessas lições, já estaria começando a se
sentir um tanto incomodado. Everyone returned to his seat [Todo mun­
do voltou para seu lugar/o lugar dele] parece querer dizer que, no
intervalo, descobriram que Bruce Springsteen estava na platéia, e
todo mundo retrocedeu e convergiu para seu assento para obter
um autógrafo. Se houver alguma chance de que quem ligue seja
mulher, é estranho pedir ao colega de quarto to tell him anything
[dizer a ele seja lá o que for] (mesmo se você não é daquelas pes­
soas preocupadas com “linguagem sexista”). Tais sentimentos de
desconforto —uma bandeira vermelha para qualquer lingüista sé­
rio —têm fundamento neste caso. A próxima vez que você for re­
preendido por cometer tal pecado, pergunte ao Sr. Espertinho
qual seria a forma correta de dizer:

Mary saw everyone before John noticed them. [Mary viu todo mun­
do antes de John reparar neles.]

8. Literalmente: Cada um voltou para seus lugares./Quem acha que a raquete Yonex melho­
rou seu {deles} jogo, levante tua mão./Se alguém ligar, diga a eles que nao posso aten­
der./Alguém passou por aqui mas não disseram o que queriam./Ninguém deveria ter de
vender sua {deles} casa para pagar serviços médicos./Ele é um desses caras que está sem­
pre se {plural} dando tapinhas nas costas. (N. daT.)

488
I Os craques da língua I

Observe como ele vai ficando inquieto enquanto reflete sobre


a forma “aprimorada” completamente ininteligível: Mary saw ever­
yone before John noticed him.
A questão lógica que você, Holden Caulfield e todos menos os
craques da língua percebem intuitivamente é que everyone e they não
são um “antecedente” e um “pronome” que se referem à mesma pes­
soa no mundo, o que os obrigaria a concordar em número. São,
respectivamente, um “quantificador” e uma “variável dependen­
te”, relação lógica bastante diferente. Everyone returned to their seats
significa “Para todo X, X voltou para o lugar de X ”. “X ” não se
refere a nenhuma pessoa em particular ou grupo de pessoas; é sim­
plesmente um curinga que fica atento ao papel que os participan­
tes desempenham em diversas relações. Neste caso, о X que volta
para um lugar é o mesmo X que possui o lugar para o qual X vol­
ta. Aquele their na verdade não tem plural, porque não se refere
nem a uma coisa nem a muitas coisas; simplesmente não se refe­
re a nada. O mesmo vale para a hipotética pessoa que liga: pode
ser uma, pode não ser nenhuma, ou o telefone pode tocar sem pa­
rar com possíveis pretendentes; a única coisa que importa é que
sempre que alguém ligar, se alguém ligar, essa pessoa, e ninguém
mais, deve ser descartada.
Portanto, em termos lógicos, variáveis são coisas bem diferen­
tes dos habituais pronomes “referenciais”, que exigem concordân­
cia em número ( he significando um certo cara, they significando
um certo bando de caras). Algumas línguas são atenciosas e ofere­
cem aos seus falantes palavras diferentes para pronomes referen­
ciais e para variáveis. Mas o inglês é sovina; é preciso convocar um
pronome referencial para emprestar seu nome quando o falante
precisa usar uma variável. Como estes não são verdadeiros prono­
mes referenciais, mas apenas homônimos deles, não há motivo para
a decisão vernácula de pegar they, their, them emprestados para a ta­
refa ser pior que a recomendação dos prescritivistas de usar he, him,
his. Na verdade, they tem a vantagem de abarcar ambos os sexos e
parecer mais correto numa maior variedade de frases.

489
I O instinto da linguagem I

Em todos os tempos, os craques da língua deploraram a ma­


neira como os anglofalantes transformam substantivos em verbos.
Todos os verbos a seguir foram denunciados neste século910:

to caveat to input to host


to nuance to access to chair
to dialogue to showcase to progress
to parent to intrigue to contact
to impact

Veja que eles variam do mais estranho ao absolutamente corri­


queiro. Com efeito, a conversão facilitada de substantivos em ver­
bos é parte da gramática inglesa há séculos; é um dos processos
que faz o inglês ser inglês. Conforme estimativas minhas, um quin­
to de todos os verbos ingleses eram originalmente substantivos.
Considerando apenas o corpo humano, você pode encabeçar [fo
head] um comitê, escalpar [fo scalp] o missionário, ficar de olho nu­
ma garota [fo tye], ficar bisbilhotando [fo nose] no escritório, pro­
nunciar a letra de uma música sem emitir som [fo mouth], mascar
[to gum] o biscoito, começar a nascer os dentes [fo teethe], [fo tongue]
tocar cada nota da flauta usando golpe de língua, [fofaw] xingar o
juiz, [fo neck] dar uns agarros no banco de trás, [fo back] apoiar um
candidato, [fo arm] armar a milícia, [fo shoulder] arcar com a res­
ponsabilidade, [to elbow] abrir caminho a cotoveladas, [fo hand] dar
um brinquedo, [tofinger] apontar o culpado, [fo hnuckle under] dar-se
por vencido, [fo thumb] pedir carona, fo wrist it into the netu\ [fo belly
up] apoiar a barriga no bar, [fo stomach] ter estômago para as quei­
xas de alguém, [fo rib] zombar de seus companheiros de bebida, [fo
knee] dar um joelhaço no goleiro, [fo leg it] atravessar a cidade cor­

9. Advertir; nuançar; dialogar; agir como pais; inserir, aplicar; ter acesso; mostrar, apresen­
tar; intrigar; impactar; hospedar, receber; presidir; progredir; contactar. (N. daT.)
10. Refere-se a uma determinada tacada do jogo de hóquei denominada “wrist shot”.
(N .d a T .)

490
I Os craques da língua I

rendo, [fo heeT) fazer um cão seguir nos calcanhares, [tofoot] pagar a
conta, [fo toe] manter-se na linha, e vários outros que não posso in­
cluir num livro sobre linguagem para toda a família.
Qual o problema? O que parece preocupá-los é o fato de falan­
tes meio atrapalhados da cabeça estarem acabando com a distin­
ção entre substantivos e verbos. Mais uma vez, no entanto, estão
faltando com o respeito para com o homem da rua. Lembre-se de
um fenômeno que encontramos no Capítulo 5: o passado do ter­
mo de beisebol tofly out éflied, e nãoflew ; dizemos, da mesma ma­
neira, ringed the city, não rang, e grandstanded, não grandstood. Estes são
verbos que vieram de substantivos (я popfly, я ring around the city, a
grandstand). Falantes são tacitamente sensíveis a essa derivação. O
motivo para evitarem formas irregulares c o m o fle w out é que a en­
trada do dicionário mental deles para o verbo do beisebol to fly é
diferente da entrada do dicionário mental deles para o verbo co­
mum tofly (o que os pássaros fazem). Um está representado como
um verbo baseado na raiz de um substantivo; o outro, como um
verbo com uma raiz verbal. Somente a raiz verbal pode ter o pas­
sado irregular flew , porque apenas no caso de raízes verbais faz
sentido ter alguma forma de passado. Esse fenômeno mostra que
quando as pessoas usam um substantivo como verbo, estão sofis­
ticando seus dicionários mentais, e não o contrário —as palavras
não estão perdendo suas identidades de verbos e substantivos; ao
contrário, há verbos, há substantivos, e há verbos baseados em
substantivos, e as pessoas guardam cada um com uma etiqueta
mental diferente.
O aspecto mais notável da condição especial de verbos deriva­
dos de substantivos é que todos os respeitam inconscientemen­
te. Lembre-se do Capítulo 5: se você cria um novo verbo basea­
do num substantivo, como o nome de alguém, ele é sempre regu­
lar, mesmo se o novo verbo pareça igual a um verbo existente que
é irregular. (Por exemplo, Mae Jemison, a linda astronauta negra,
out~Sally~Rided Sally Ride, e não out~Sally~Rode Sally Ride.) M inha

491
I O instinto da linguagem I

equipe de pesquisadores testou isso, usando cerca de 25 novos


verbos derivados de substantivos, em centenas de pessoas —estu­
dantes universitários, pessoas que responderam a um anúncio co­
locado num tablóide e que procurava voluntários sem educação
superior, crianças em idade escolar, e até algumas de quatro anos.
Todos se comportaram como bons gramáticos intuitivos: flexio­
naram verbos que se originam de substantivos de modo diferente
dos antigos verbos consagrados.
Pois, então, existe alguém, em algum lugar, que não compreende
esse princípio? Sim —os craques da língua. Procure broadcasted no li­
vro The Careful Writer de Theodore Bernstein, e eis o que encontrará:

Se você acha que previu [forecastedj corretamente o futuro imedia­


to do inglês e se [casted your lotj aliou aos permissivos, talvez aceite
broadcasted, pelo menos no uso que é feito da palavra no rádio, como
encontramos em alguns dicionários. O resto de nós, contudo, deci­
dirá que, apesar de talvez ser muito desejável transformar todos os
verbos irregulares em regulares, isto não pode ser feito por uma de­
cisão arbitrária, muito menos do dia para a noite. Continuaremos a
usar broadcast como passado e particípio, por acharmos que broadcasted
não se justifica senão pela analogia, coerência ou lógica, de que os
próprios permissivos tantas vezes zombam. Esta posição tampouco
c inconsistente com nossa posição sobre flied, o termo de beisebol,
que tem uma razão de ser genuína. O fato —o fato inquestionável —
é que existem alguns verbos irregulares.

A “razão genuína” de Bernstein para Jlied é que ela tem um sig­


nificado especial em beisebol, mas esta é uma falsa razão; see a bet
[pagar para ver, no pôquer], cut a deal [fazer um acordo] e take the
count [ir a nocaute] têm todos sentidos especiais, mas mantêm seus
passados irregulares saw, cut e took, e não os trocam por seed, cutted,
taked. Não, o verdadeiro motivo é que tofly out significa to hit a fly [re­
bater a bola para o alto], e a fly é um substantivo. E o motivo pelo
qual as pessoas dizem broadcasted é o mesmo: elas não querem trans­

492
I Os craques da língua I

formar todos os verbos irregulares em regulares do dia para a noi­


te, mas analisam mentalmente o verbo to broadcast como “to make
a broadcast” [fazer uma transmissão], ou seja, proveniente do subs­
tantivo corrente broadcast. (O sentido original do verbo, “espalhar
sementes”, é hoje em dia desconhecido, exceto para os jardineiros.)
Como verbo baseado num substantivo, to broadcast não pode ter sua
própria forma idiossincrática de passado, e portanto os não-cra-
ques simplesmente aplicaram a regra “acrescente -ed”.
Sinto-me obrigado a discutir mais um exemplo: o tão vilipen­
diado hopefully. Diz-se que uma frase como Hopefully, the treaty will
pass [Oxalá o tratado seja aprovado] é um grave erro. O advérbio
hopfully vem do adjetivo hopeful, que significa “de uma maneira
cheia de esperança”. Por isso, dizem os craques, deveria apenas ser
usado quando a frase se refere a uma pessoa que está fazendo algo
de maneira esperançosa. Se quem estiver esperançoso for o escritor
ou o leitor, dever-se-ia dizer It is hoped that the treaty will pass [Espera-
se que o tratado seja aprovado], ou I f hopes are realized, the treaty will
pass [Se as esperanças se realizarem, o tratado será aprovado], ou I
hope that the treaty will pass [Espero que o tratado seja aprovado].
Mas considere o seguinte:
I. Simplesmente não é verdade que um advérbio inglês tenha
de indicar a maneira como o ator realiza a ação. Existem advér­
bios de dois tipos: advérbios de “sintagma verbal” como carefully,
que se referem ao ator, e advérbios “sentenciais” como frankly, que
indicam a atitude do falante em relação ao conteúdo da frase.
Outros exemplos de advérbios sentenciais são:

accordingly curiously oddly


admittedly generally parenthetically
alarmingly happily predictably
amazingly honesdy roughly
basically ideally seriously
blundy incidentally strikingly
candidly intriguingly supposedly
confidentially mercifully understandably

493
I 0 instinto da linguagem I

Note que muitos desses advérbios sentenciais, como happíly, ho~


nestly e mercifully, vêm de advérbios de sintagma verbal, e eles prati­
camente nunca são ambíguos em contexto. O uso de hopefully como
advérbio sentenciai, que aparece em textos pelo menos desde os
anos de 1930 (segundo o Dicionário Oxford de inglês) e na fala bem
antes disso, é uma aplicação perfeitamente sensata desse processo
de derivação.
2. As alternativas sugeridas It is hoped that e I f hopes are realized
apresentam quatro famosos pecados da escrita de má qualidade:
voz passiva, palavras desnecessárias, falta de clareza, pomposidade.
3. As alternativas sugeridas não significam o mesmo que hope­
fu lly e, portanto, com a proibição algumas idéias deixam de po­
der ser expressas. Hopefully faz uma previsão esperançosa, ao pas­
so que 1 hope that e It is hoped that apenas descrevem o estado mental
de certas pessoas. Por isso você pode dizer I hope that the treaty will
pass, but it isnt likely [Espero que o tratado seja aprovado, mas tudo
indica que não será], mas seria estranho dizer Hopefully, the treaty
will pass, but it isn’t likely [Oxalá o tratado seja aprovado, mas pare­
ce que não será].
4. Devemos usar hopefully apenas como advérbio de sintagma
verbal, como nos seguintes exemplos:

Hopefully, Larry hurled the bali toward the basket with one second
left in the game.
Hopefully, Melvin turned the record over and sat back down on the
couch eleven centimeters closer to Ellen.11

Podem me chamar de descortês, podem me chamar de ignoran­


te, mas estas frases não pertencem a nenhuma língua que eu fale.

I I . Literalmente: Esperançosamente, Larry atirou a bola em direção à cesta faltando um


segundo para terminar o jogo./Esperançosamente, Melvin virou o disco e voltou a sen-
tar-se no sofá, onze centímetros mais perto de Ellen. (N. daT.)

494
I Os craques da língua I

Imagine se um dia alguém anunciasse que todos vêm cometen­


do um erro deplorável. O nome correto da cidade de Ohio que as
pessoas chamam de Cleveland na verdade é Cincinnati, e o nome
correto da cidade que as pessoas chamam de Cincinnati na verda­
de é Cleveland. Os especialistas não explicam por quê, mas insis­
tem em que é isso que é correto, e que quem se importar com a
língua tem de mudar imediatamente o modo como ele (sim, ele,
não eles) se refere às cidades, sem considerar a confusão e as des­
pesas que isso provocaria. Você certamente pensaria que essa pes­
soa está louca. Mas, quando um colunista ou editor faz semelhan­
te pronunciamento sobre hopefully, chamam-no de defensor da
erudição e dos altos padrões.

❖ ❖ ❖

Desmascarei nove mitos dos craques da língua em geral, e ago­


ra gostaria de examinar os próprios craques. Pessoas que se apre­
sentam como especialistas da língua têm objetivos, conhecimentos
e bom senso diversos, e só seria justo discuti-las individualmente.
O tipo mais comum de craque é o observador de palavras
( wordwatcher, termo inventado pelo biólogo e observador de pala­
vras, Lewis Thomas). Diferentemente dos lingüistas, os observa­
dores de palavras apontam seus binóculos para as palavras espe­
cialmente caprichosas, excêntricas e pouco documentadas e para
expressões idiomáticas que podem ser encontradas de tempos em
tempos. As vezes, o observador de palavras é um erudito em algum
outro campo, como Thomas ou Quine, que durante toda a vida
cultiva o passatempo de escrever um livro adorável sobre a origem
das palavras. Ás vezes, é um jornalista designado para responder à
coluna de Perguntas e Respostas de um jornal.
Eis um exemplo recente da coluna Ask the Glohe:

Q. Quando queremos irritar alguém, por que dizemos que quere­


mos “get his goat”? J.E., Boston

495
I

IO instinto da linguagem I

R. Os especialistas em gíria não têm muita certeza, mas alguns afir­


mam que a expressão vem de uma antiga tradição ligada a corridas
de cavalo, nas quais punha-se um bode [goat] na baia de um puro-
sangue de corrida muito arisco para manter o cavalo calmo. Apos-
tadores do século dezenove às vezes roubavam o bode para deixar o
cavalo nervoso e, assim, fazê-lo perder a corrida. Daí a expressão
“get your goat”.

Esse tipo de explicação foi satirizada no episódio de Woody


Allen “Origem da Gíria":

Quantos de voccs já pensaram de onde vêm certas expressões da gí­


ria, como “Shes the cats pajamas”12134, ou “to takc it on the lam”1'?
Eu também não. Mas, para aqueles que sc interessam por esse tipo
de coisa, providenciei um breve guia para algumas das mais interes­
santes origens.
[...] “Такс it on the lam” é inglês originalmente. Anos atrás, na
Inglaterra, “lamming” era um jogo jogado com dados e um grande
tubo de ungücnto. Na sua vez, cada jogador lançava os dados e fica­
va saltando em torno da sala até ter uma hemorragia. Se alguém ti­
rasse sete ou menos tinha dc dizer a palavra “quintz” c começar a gi­
rar cm velocidade vertiginosa. Sc tirasse mais de sete, era obrigado a
dar a cada jogador uma parte dc suas penas e levava uma boa “lam­
ming” [lambada ]. Três “lammings” c o jogador era “kwirled”Mou
declarado moralmente falido. Com o passar do tempo, qualquer
jogo com penas passou a ser chamado dc “lamming” e penas passa­
ram a ser “lams”. “To take it on the lam” significava pôr penas e,
posteriormente, fugir, embora a transição não seja clara.

Essa passagem retrata bem minha reação ante os observadores


de palavras. Não acho que eles sejam prejudiciais, mas (a) nunca

1 2 . D o balaco b ac o . ( N . d a T .)
1 3 . D a r n o p é. (N . d a T .)
1 4 . ‘‘Q u in tz ” e “ k w irl” são palavras se m s e n tid o e m inglês. ( N . d a T .)

496
I Os craques da língua I

acredito plenamente em suas explicações, e (b) na maioria dos ca­


sos, na verdade, nem dou bola. Anos atrás, um colunista contou a
origem da palavra pumpernichl. Durante uma de suas campanhas na
Europa central, Napoleão parou numa taverna onde lhe serviram
uma pedaço de um pão preto, azedo e cheio de grãos. Acostuma­
do com as delicadas baguettes brancas de Paris, ele zombou: “C ’est
pain pour Nicole”, sendo que Nicole era seu cavalo. Ao ser ques­
tionado (os dicionários dizem que a palavra vem do alemão colo­
quial e significa “duende que peida”), o colunista confessou que
ele e uns amigos tinham inventado a história num bar na noite an­
terior. Para mim, observar palavras pelo prazer de fazê-lo é tão ex­
citante em termos intelectuais quanto colecionar selos, com o de­
talhe de que um número indeterminado dos selos é falso.
Na extremidade oposta do espectro temperamental encontra­
mos os Jeremias, com seus amargos lamentos e profecias morali-
zantes de ruína. Um eminente editor de dicionário, colunista da
área de línguas, e especialista no uso da língua, escreveu certa vez,
citando um poeta:

Como poeta, há um único dever político, qual seja, defender nos­


sa língua da corrupção, fenômeno particularmente grave nos tem­
pos atuais. Ela está sendo corrompida. Quando uma língua é cor­
rompida, as pessoas deixam de ter fé no que ouvem, e isso conduz
à violência.

O lingüista Dwight Bolinger, instando gentilmente este ho­


mem a se controlar, teve de dizer que “o mesmo número de assal­
tantes surgiria da escuridão se todos se conformassem do dia para
a noite com todas as regras prescritivas já escritas”.
Nos últimos anos, o Jeremias mais efusivo tem sido o crítico
John Simon, cujas resenhas venenosas de filmes e peças distinguem-
se pelas longas denúncias da impudícia das atrizes. Eis um exemplo
representativo do início de uma de suas colunas sobre língua:

497
I O instinto da linguagem I

A língua inglesa vem sendo tratada exatamente da mesma maneira


como os mercadores de escravos procediam com sua mercadoria em
seus navios de escravos, ou como os carcereiros nazistas lidavam com
os reclusos nos campos de concentração.

A propósito, o erro gramatical que inspirou essa comparação


de mau gosto foi o fato de Tip 0 ’Neill se referir de modo redun­
dante a seus “colegas companheiros”, ao que Simon se refere como
“o nível mais baixo de inépcia lingüística”. Ao falar do Vernáculo
Inglês Negro, Simon escreve:

Por que deveriamos levar em conta a noção, geralmente pouco culta,


que uma subcultura tem da relação entre som e sentido? E de que
maneira uma gramática —qualquer gramática —conseguiría descre­
ver essa relação?
Quanto а “I be”, “you be”, “he be” etc., que deveríam provocar
cm nós calafrios \heebie-jeebies\, embora sejam compreensíveis, vão
contra todas as gramáticas clássicas e modernas aceitas e são o pro­
duto não de uma língua com raízes na história mas da ignorância
sobre o funcionamento da língua.

Não vale a pena refutar esse xenófobo ignorante, porque ele não
está propondo nenhuma discussão honesta. Simon simplesmente
descobriu o truque usado com muito sucesso por alguns comedian­
tes, apresentadores de programas de entrevistas e músicos de punk-
rock: pessoas de pouco talento podem chamar a atenção da mídia,
pelo menos por certo tempo, sendo inflexivelmente ofensivas.
O terceiro tipo de craque da língua é o animador, que exibe
sua coleção de palíndromos, trocadilhos, anagramas, rébus, mala-
propismos, goldwynismos15, epônimos, sesquipedais, disparates e

15. Chistes, nem sempre intencionais, feitos de contradições intrínsecas, e consagrados por
Samuel Goldwyn, produtor de filmes. Ele dizia coisas como: Indua- т е fora disso; em duas
palavras: impossível/; contratos verbais não valem o papel em que foram escritos. (N. d a T )

498
I Os craques da língua I

gafes. Animadores como W illard Espy, Dimitri Borgman, Gyles


Brandreth e Richard Lederer escrevem livros com o seguinte tipo
de títulos: Words at Play, Language on Vacation, The Joy of Lex e Anguisbed
English16. Essas exuberantes exposições de bufonaria lingüística são
todas muito divertidas, mas ao lê-las sinto-me às vezes como Jac-
ques Cousteau num show de golfinhos, lamentando que essas mag­
níficas criaturas não possam abanar suas saias havaianas e mostrar
seus talentos naturais muito mais interessantes num local mais dig­
no. Eis um exemplo típico do texto de Lederer:

Quando reservamos um tempo para explorar os paradoxos e extrava­


gâncias do inglês, descobrimos que cachorros quentes podem ser
frios, câmaras escuras podem ser iluminadas, lição de casa pode ser fei­
ta na escola, pesadelos [níghtmaresj podem acontecer à luz do dia, ao
passo que náuseas matinais e devaneios diurnos [daydreamíngj podem
acontecer de noite...
Às vezes somos levados a crer que todos os anglofalantes deve­
ríam ser mandados para um manicômio para loucos verbais. Em que
outra língua pessoas drive in a parkway e park in a driveway! Em que ou­
tra língua pessoas recite at a play e play at a recital}'7... Como é possível
que a slim chance e afat chance18 signifiquem o mesmo, ao passo que a
wise man e a wise guy19 são opostos?... Doughnut holes: Esses peque­
nos regalos não seriam na verdade doughnut halls [bolas de donut]? Os
buracos [hoksj são o que sobra do donut original... Theyre head
over heels in love20. E muito bonito, mas todos nós fazemos prati­
camente tudo com a cabeça acima dos calcanhares. Se o que quere-

16. Respectivamente: B r in c a n d o c o m p a la v r a s : L in g u a g e m e m f é r i a s , A a le g r ia d o lé x ic o , I n g lê s a flito .


(N. daT.)
17. Ver nota cap. I. (N. daT.)
18. Ao pé da letra, respectivamente, chance magra e chance gorda. Esta última expressão é
uma gíria que também significa “chance mínima”. (N. daT.)
19. Respectivamente: homem inteligente e espertalhão. (N. daT.)
20. Estão loucamente apaixonados; literalmente, estão de ponta-cabeça de tão apaixonados.
Esta expressão é uma corruptela da expressão original “heels over head”, calcanhares aci­
ma da cabeça. (N. daT.)

499
I O instinto da linguagem I

mos é criar uma imagem de pessoas dando estrelas e saltos mortais,


por que não dizemos: They’re heels over head in lavei

Objeção! ( I ) Todos percebem a diferença entre um composto,


que pode ter um sentido convencional próprio, como qualquer
outra palavra, e um sintagma, cujo significado é determinado pe­
los significados de suas partes e pelas regras que as reúnem. Um
substantivo composto é pronunciado com um certo padrão tôni­
co ( iárkroom) e um sintagma, com outro ( dark róom). As expressões
supostamente “loucas”, como cachorro quente e náusea matinal,
são evidentemente compostos e não sintagmas, e portanto ca­
chorros quentes frios e náusea matinal noturna não violam abso­
lutamente a lógica gramatical. (2 ) Não é óbvio q u e fa t chance e wise
guy são sarcasmos? (3 ) Donut holes, o nome comercial de um pro­
duto de Dunkin Donuts, é intencionalmente excêntrico —alguém
não pegou a piada? (4 ) A preposição over tem vários sentidos, en­
tre os quais o de uma disposição estática, como em Bridge over trou~
bled water [Ponte sobre águas turbulentas], e de trajeto de um obje­
to em movimento, como em The quick broumfox jumped over the lazy
dog [A lcpida raposa marrom pulou por cima do cão indolente],
Head over heels tem a ver com o segundo significado, descrevendo o
movimento, não a posição, da cabeça do enamorado.
Devo também dizer algo em defesa dos estudantes universitá­
rios, candidatos à assistência social e Joe Sixpacks, cujo linguajar
costuma ser tão ridicularizado pelos animadores. Cartunistas e
escritores de diálogos sabem que você pode fazer qualquer pessoa
um caipira transcrevendo sua fala de modo quase fonético, em vez
de usar a escrita convencional ( “sez”, “cum”, “wimmin”, “hafta”,
“crooshul”21 etc.). Lederer vez por outra recorre a esse truque ba­
rato em “Howta Reckanize American Slurvian”, em que deplora
exemplos pouco dignos de atenção dos processos fonológicos do

21. Em vez de says (diz), come (vir), women (mulheres), have to (ter que) e crucial (crucial).
(N. da R .T .)

500
I Os craques da língua I

inglês como “coulda” e “could of ” (could have), “forced” (forest),


“granite” (granteã), “neck store” (next door), e “tlien” (than). Como
vimos no Capítulo 6, todo mundo, exceto um robô de ficção cien­
tífica, come sistematicamente sons ao falar.
Lederer também reproduz listas de “disparates” encontrados
em trabalhos finais de estudantes, formulários de pedidos de in­
denização de seguro de automóveis e pedidos de assistência social,
disparates estes amplamente conhecidos por serem divulgados em
folhas mimeogradas quase ilegíveis afixadas em paredes na univer­
sidade e em repartições públicas:

In accordance with your instructions I have given birth to twins in


the enclosed envelope.
My husband got his project cut off two weeks ago and I haverít had
any relief since.
An invisible car came out of nowhere, struck my car, and vanished.
The pedestrian had no idea which direction to go, so I ran over him.
Artificial insemination is when the farmer does it to the cow instead
of the bull.
The girl tumbled down the stairs and lay prostitute on the bottom.
Moses went up on Mount Cyanide to get the ten commandments.
He died before he ever reached Canada.22

Estas listas servem para dar umas boas risadas, mas há algo que
você deveria saber antes de concluir que as massas são comicamen-
te ineptas para a escrita. Muito provavelmente, a maioria dos dis­
parates foram fabricados.

22. Conforme suas instruções dei à luz gêmeos no envelope anexo./O projeto do meu mari­
do foi cancelado duas semanas atrás e desde então não tenho tido alívio./Um carro invi­
sível apareceu do nada, bateu no meu carro e desapareceu./O pedestre não sabia para
que lado ir e, portanto, passei por cima dele./Inseminação artificial é quando o fazen­
deiro faz na vaca ao invés do boi./A garota despencou pela escada e ficou prostituta no
chão./Moisés subiu no Monte Cianeto para receber os dez mandamentos. Morreu antes
de chegar no Canadá. (N. daT.)

501
I O instinto da linguagem I

O folclorista Jan Brunvand documentou centenas de “lendas


urbanas”, histórias incríveis que todos juram ter acontecido com
o amigo de um amigo (friend o f afriend, “FOAF” é o termo técni­
co), e que circulam durante anos de cidade em cidade, sem prati­
cam ente nenhuma mudança, mas que nunca chegam a ser docu­
mentadas como fatos reais. Algumas das histórias mais famosas
são as da Baby Sitter Hippie, dos Jacarés no Esgoto, do Kentucky
Fried Rato e do Sádico de Halloween (aquele que colocava giletes
em maçãs). Os disparates, ao que tudo indica, são exemplos de
um subgênero chamado xeroxlore. O funcionário que envia uma
dessas listas admite que não foi ele que reuniu os itens mas que os
tirou de uma lista que alguém lhe deu, que foi tirada de outra lis­
ta, que incluía exemplos de cartas que alguém, em algum escritó­
rio, realmente recebeu. Listas quase idênticas vêm circulando des­
de a Primeira Guerra Mundial, e foram atribuídas a diferentes re­
partições da Nova Inglaterra, Alabama, Salt Lake City etc. Segundo
Brunvand, são mínimas as chances de os mesmos mal-entendidos
engraçados serem produzidos em duas localidades diferentes du­
rante tantos anos. O advento do correio eletrônico acelerou a cria­
ção c disseminação dessas listas, e de tempos em tempos recebo
uma. Isso para mim cheira a facécia (se do estudante ou do pro­
fessor, não fica claro), c não a incompetência acidental hilária, cm
disparates como “adamant2b pertencente ao pecado original” e “gu-
bernatorial [governativo]: relacionado com amendoins”.

.;. « Ф

O último tipo de craque é o sábio, representado pelo finado


Theodore Bernstein, editor do New York Times e autor do delicioso
manual The Careful Writer, e por W illiam Safire. São conhecidos por
sua abordagem moderada e sensata de questões de uso, e eles pro-

23. Inflexível, confundido aqui com adâmico. (N. daT.)

502
I Os craques da língua I

vocam suas vítimas com humor em vez de atacá-las com invecti-


vas. Gosto de ler esses sábios, e admiro uma pena como a de Sa­
fire, que consegue resumir o conteúdo de um decreto antiporno-
grafia assim: “Não é teta, mas tumidez.” O que temos de lamen­
tar, no entanto, é que até mesmo um sábio como Safire, que é quem
mais se aproxima de um erudito esclarecido da linguagem, des­
considere a sofisticação lingüística do falante comum e, portanto,
erre o alvo em muitos de seus comentários. Para provar tal acusa­
ção, vou percorrer com você uma única coluna dele, publicada no
The New York Times Magazine em 4 de outubro de 1992.
Na coluna havia três histórias, em que se discutiam seis exem­
plos de uso questionável. A primeira história era uma análise neu­
tra de supostos erros no uso de pronomes, cometidos pelos dois
candidatos à eleição presidencial de 1992 nos EUA. George Bush
tinha acabado de adotar o slogan “W ho do you trust?” [(Em)
quem você confia?], enlouquecendo professores de todo o país,
para os quais who é um “pronome sujeito” (caso nominativo ou
subjetivo) e a pergunta indaga sobre o objeto da confiança (caso
acusativo ou objetivo). A gente diz You do trust him, e não You do trust
he, e portanto a partícula interrogativa deveria ser whom, não who.
Esta é, sem dúvida, uma das clássicas queixas prescritivas em
relação à fala comum. Em resposta, poderiamos dizer que a dis­
tinção who/whom é uma relíquia do sistema de casos do inglês,
substituídos por substantivos séculos atrás e encontrados atual­
mente apenas entre pronomes, em distinções como he/him. M es­
mo entre os pronomes, a antiga distinção entre a forma sujeito ye
e a forma objeto you desapareceu, de modo que you desempenha
ambas as funções e ye soa completamente arcaico. Whom sobrevi­
veu ayrm as está evidentemente moribundo; agora, soa pedante na
maioria dos contextos orais. Ninguém exige que Bush diga Whom
doye trust? Se a língua pode suportar a perda de ye, usando уои tan­
to para sujeitos como para objetos, por que continuar se agarran­
do a whom, quando todos usam who tanto para sujeitos como para
objetos?

503
O instinto da linguagem I

Safire, com sua atitude esclarecida em relação ao uso, reconhe­


ce o problema e propõe

A Lei Safire de Who/Whom, que resolve para sempre o problema


que perturba escritores e falantes apanhados entre o pedantismo e a
incorreção: “Quando o uso de whom for o correto, remodele a fra­
se.” Assim, em vez de modificar seu slogan para “Whom do you
trust?” —passando a impressão de formalidade exageradamente aca­
dêmica —o Sr. Bush recuperaria o voto dos puristas com “Which
candidate do you trust?”. [Em que candidato você confia?]

Mas a recomendação de Safire é salomônica no sentido de ser


um pseudomeio-termo inaceitável. Dizer para as pessoas evitarem
uma construção problemática parece bom senso, mas, no caso de
interrogativas com who que indagam sobre o objeto, é pedir um
sacrifício intolerável. Pessoas fazem muitas perguntas sobre os ob­
jetos de verbos e preposições. Eis uns poucos exemplos que colhi
em transcrições de conversas entre pais e filhos:

I know, but who did we see at the other store?


Who did we see on the way home?
Who did you play with outside tonight?
Abe, who did you play with today at school?
Who did you sound like?24

(Imagine como seria substituir qualquer um destes por whom!')


O conselho de Safire é mudar essas perguntas para Qual pessoa
[Whichperson) ou Qual criança [Which сЫЩ. Mas tal conselho obriga­
ria as pessoas a transgredirem a principal máxima da boa prosa:
Omita palavras desnecessárias. Isso também as forçaria a usar em

24. Tá bom, mas quem vimos na outra loja?/Quem vimos quando voltavamos para casa?/
Com quem você brincou lá fora hoje à noite?/Abe, com quem você brincou hoje na
escola?/Você estava parecendo quem? (N. daT.)

504
I Os craques da língua I

excesso a palavra which, descrita por um estilista como “a palavra


mais feia da língua inglesa”. Por fim, ele subverte o suposto obje­
tivo das regras de uso, que é permitir às pessoas exprimirem seus
pensamentos da maneira mais clara e precisa possível. Uma per­
gunta como Who did we see on the way home? pode abarcar uma pes­
soa, muitas pessoas, ou qualquer combinação ou número de adul­
tos, bebês, crianças e cães domésticos. Qualquer substituição es­
pecífica como Qual pessoa? elimina alguma dessas possibilidades, o
que contraria a intenção de quem pergunta. E me digam como
aplicar a Lei de Safire ao famoso refrão

Whore you gonna call? GHOSTBUSTERS! [Quem você vai cha­


mar? Os Caça-Fantasmas!]

Extremismo em defesa da liberdade não é vício. Safire deveria


ter levado sua observação sobre o caráter pedante de whom à sua
conclusão lógica e aconselhar o presidente a não mudar o slogan,
pelo menos não por motivos gramaticais.
Voltando-se para os democratas, Safire examina o caso de Bill
Clinton —são estas as suas palavras —quando pede aos eleitores
para “give Al Gore and I a chance to bring America back” [dar a
Al Gore e cu a oportunidade de trazer de volta a América]. N in­
guém diria^iw I a break [dá eu um tempo], porque o objeto indire­
to derive tem de ser acusativo. Portanto, deveria ser^íw Al Gore and
те a chance.
Provavelmente nenhum “erro gramatical” foi alvo de tanta cha­
cota quando o “uso equivocado” dos pronomes dentro de con­
junções (sintagmas contendo dois elementos ligados por e ou ou).
Que adolescente não foi corrigido por dizer Me and Jennifer aregoing
to the mall [Jennifer e mim vamos para o shopping]? Uma colega
minha lembra que quando tinha doze anos a mãe disse que só
deixaria ela furar a orelha quando deixasse de dizer isso. A histó­
ria típica é que o pronome objeto mim não pode ser usado em po­

505
I O instinto da linguagem I

sição de sujeito —ninguém diria Mim está indo para o shopping —e por­
tanto tem de ser Jennifer e eu. As pessoas tendem a lembrar do con­
selho de forma equivocada: “Na dúvida, diga ‘fulano e eu’, e não
‘fulano e mim’” e portanto, sem se darem conta, aplicam-no em
demasia —processo este que os lingüistas denominam de hiper-
correção —provocando “erros” como give Al Core anã I a chance e até
o ainda mais desprezado entre você e eu.
Mas, sc o homem da rua é bom em evitar Mc isgoing [M im está
indo] e Give I a break [dá eu um tempo], e, se até os professores da
Ivy Lcaguc e antigos Rhodes Scholars parecem não poder evitar
Me and Jennifer are going e Give Al and I a chance, será que não são os
craques que não entendem a gramática inglesa, c não os falantes?
O caso dos craques sobre os casos baseia-se numa suposição: sc
toda uma locução conjuntiva tem um traço gramatical, como caso
sujeito, cada palavra dentro daquele sintagma também tem dc ter
aquele traço gramatical. Mas isto está simplesmente errado.
Jennifer é singular; você diz Jennifer é, e não Jennifer são. O pro­
nome Ela é singular; você diz Ela é, e não Ela são. Mas a conjunção
Ela e Jennifer não é singular, é plural; você diz Ela e Jennifer são, não Ela
e Jennifer é. Portanto, sc uma locução conjuntiva pode ter um número
gramatical diferente dos pronomes que a compõem (Ela e Jennifer
são), por que precisaria ter o mesmo caso gramatical dos pronomes
que a compõem ( Give Al Core and .1 a ckanccf Л resposta é que não
precisa. Uma conjunção é um exemplo dc construção “sem nú­
cleo”. Lembre que o núcleo de um sintagma c a palavra que repre­
senta todo o sintagma. No sintagma o homem loiro alto com um sapato
preto, o núcleo é a palavra homem, porque todo o sintagma recebe
suas propriedades de homem —o sintagma se refere a um tipo de ho­
mem, e é terceira pessoa do singular, porque é isso que o homem
é. Mas uma conjunção não tem núcleo; não é igual a nenhuma de
suas partes. Se João e M arta se encontraram, isso não significa
que João encontrou e que M arta encontrou. Se os eleitores dão
uma chance a Clinton e Gore, não dão a Gore sua própria chance,

506
I Os craques da língua I

somada à chance que dão a Clinton; dão uma chance para a cédu­
la inteira. Então, só porque Me and Jennifer é um sujeito que exige
caso sujeito, isso não significa que Me é um sujeito que exige caso
sujeito, e só porque Al Core and I é um objeto que exige caso obje­
to, isso não significa que I é um objeto que exige caso objeto. Em
termos gramaticais, o pronome é livre para ter o caso .que quiser.
O lingüista Joseph Emonds analisou o fenômeno Jennifer e mim/Entre
você e eu com grande minúcia técnica. Concluiu que a linguagem
que os craques querem que falemos não só não é inglês, como não
é nenhuma língua humana possível!
Na segunda história de sua coluna, Safire responde a um di­
plomata que recebeu um alerta do governo sobre “crimes contra
turistas (sobretudo robberies, muggings e pick~pocketings [furto, assalto e
‘bateção de carteira’] ) ”. Escreve o diplomata:

Observe a escolha que o Departamento de Estado fez da forma pick~


pocketíngs. Quem comete tais crimes c um pickpocket ou um pocket-pickeri

Safire responde: “A frase deveria ser ‘robberies, muggings and


pockct-pickings’. Batem-se carteiras; ninguém carteira bate.2526”
Chama a atenção que Safire não respondeu à pergunta. Se o
criminoso fosse chamado dc pocket-picker, que é a forma mais co­
mum de composto em inglês, então, de fato, o crime seria pocket-
pickíng. Mas o nome do criminoso não pode ser mudado conforme
a vontade de cada um; todos concordam que ele se chama pickpoc-
ke12b. E se ele é chamado de pickpocket, e não pocket~picker, então o que
ele faz pode perfeitamente ser chamado de pick-pocketíng, e não poc-
ket-picking, graças à sempiterna transformação possível em inglês
de substantivo-em-verbo, assim como a cook cooks [um cozinheiro
cozinha], a chair chairs [um presidente preside] e a host hosts [um an­

25. No original: Onepickspockets; no one pockets picks. (N. daT.)


26. Literalmente: batc-cartciras. (N. daT.)

507
I O instinto da linguagem I

fitrião recebe], O fato de que ninguém pockets picks [carteira bate]


só serve para despistar —ninguém falou de pick~pocketer.
O que está confundindo Safire é que pickpocket é um tipo es­
pecial de composto, porque é sem núcleo —não é um tipo de
carteira, como seria de esperar, mas um tipo de pessoa. E, embo­
ra seja excepcional, não é único; existe toda uma família de tais
exceções. Uma das delícias do inglês é seu diversificado conjun­
to de personagens denotados por compostos sem núcleo, com­
postos que descrevem uma pessoa pelo que ela fa z ou tem e não
pelo que ela é:

b ird -b ra in f o u r-e y c s la z y - b o n e s
b lo rk h c a d g o o l- o lí lo u d m o u th
b o o l - b la c k h a rd -h a l Io w -lifc
b u tlc rfin g c is b o a rl-lliro b n c Y r -d o - w c ll
c u t- th r o a l' b e a v y w c ig h t p ip -s q u e a k
d ead -ey e h ig h - b r o w red n cck
egghead hunchback s c a re c ro w
f a tb c a d k illjo y s c o f f la w
f l n tf o o t k n o w -n o th in g w c tb a c k

Esta lista27 (que lembra vagamente a áramatis personae dc uma


peça dc Dnmon Runyon) mostra que praticamcntc tudo na língua
pode ser incluído cm padrões sistemáticos, ate mesmo as aparen­
tes exceções, desde que você sc dc ao trabalho dc procurá-las.
A terceira história desconstrói uma fala de tirar o fôlego dc
Barbra Streisand descrevendo o astro do tênis André Agassi:

27. Rcspectivnmcntc: cabcça-oca; cabcça-dura; engraxate; mão-furada; assassino; bom dc


mira; crânio (gír.); estúpido; tira; corcunda; quatro-olhos; negligente; trabalhador da
construção civil; querido/a; peso-pesado, pessoa ou instituição de peso; metido a inte­
lectual; desmancha-prazeres; néscio; preguiçoso; língua comprida; degenerado; vagabun­
do; pessoa insignificante; reacionário, provinciano; espantalho; infrator; trabalhador
mexicano ilegal (N. daT.)

508
I Os craques da língua I

Hes very, very intelligent; very, very, sensitive, very evolved; more
than his linear years... He plays like a Zen master. Its very in the
moment.28

Safire começa especulando sobre a origem do uso que Streisand


faz de evolved: “A mudança da voz ativa para a voz passiva —de ‘he
evolvedfrom the Missing Link’ para ‘He is evolved’ —foi provavel­
mente influenciada pela adoção de involved29 como elogio.”
Tal tipo de derivação vem sendo intensamente estudado em
lingüística, mas Safire mostra aqui que ele não entende como ela
funciona. Parece achar que as pessoas modificam palavras porque
elas evocam vagamente outras que rimam —evolved e involved, um
tipo dc malapropismo. Na verdade, as pessoas não são tão descui­
dadas c literais. As criações léxicas que examinamos —Let me caveat
that [Devo advertir que]; They deteriorated the health care System [Eles de­
terioraram o sistema dc saúde], Boggsflied out to eenterjield [Boggs re­
bateu para o alto na direção do campo central] —não sc baseiam
em rimas mas cm regras abstratas que mudam a categoria sintáti­
ca dc uma palavra c seu conjunto dc protagonistas, exatamente da
mesma maneira cm dezenas ou centenas de palavras. Por exemplo,
a forma transitiva to deteriorate the health care system vem da forma in­
transitiva lhe health care system deteriorated da mesma maneira que a
forma transitiva to break theglass [quebrar o copo] vem da forma in­
transitiva theglass hroke [o copo quebrou]. Vejamos, então, dc onde
evolved pode ter vindo.
A sugestão de Safire dc que é uma troca de ativo por passivo
baseada em involved não serve. No caso de involved, podemos even­
tualmente imaginar uma derivação da voz ativa:

28. Ele c muito, muito inteligente; muito, muito, sensível, muito evoluído; mais que sua
idade linear... Ele joga como um mestre Zen. Muito no momento. (N. daT.)
29. No sentido dc pessoa politicamente “engajada”. (N. daT.)

509
I O instinto da linguagem I

Raising the child involved John. (ativa) —»


John was involved in raising his child. (passiva) —>
John is very involved.30

Mas no caso de evolved, a derivação paralela exigiría uma frase


passiva, e antes disso uma frase ativa, que não existe (marquei es­
tas frases com asterisco):

*Мапу cxperiences evolved John. —>


'(John was evolved by many expcrienccs. (ou) *John was evolved in
many expcrienccs. —>
John is very evolved.3132

Alcm disso, sc você está involved significa que algo o envolve


(você é o objeto), ao passo que se vocc c evolved significa que você
andou fazendo coisas que fazem evoluir (você c o sujeito).
O problema é que a conversão de evolvedfrom para very evolved não
c uma mudança da voz ativa de um verbo para a voz passiva, como
em André surrou Bóris —>Bórisfoi surrado por André. A fonte menciona­
da por Safire, evolved from [evoluído a partir dc], c intransitivo cm
inglês moderno [c também cm português j, sem objeto direto. Para
apassivar um verbo em inglês, você transforma o objeto direto cm
sujeito, e portanto is evolved só poderia ter sido apassivado dc Algo
evoluiu André, que não existe. A explicação de Safire equivale a dizer
que você pode levar Bill de bicicleta saindo de hxinoton'2 e mudar isso
para Bill é bícicletado e em seguida para Bill é muito bicicletado.
Esse malogro é uma boa ilustração de um dos fatos mais escan­
dalosos ligados aos craques da língua: demonstram desconhecer

30. Litcralmente: Criar o filho envolveu John; John estava envolvido na criação do filho; John
c muito envolvido/engajado. (N. daT.)
3 1. Litcralmente: Muitas experiências evoluíram John; John foi evoluído por muitas experiên­
cias (ou) John estava evoluído em muitas experiências; John é muito evoluído. (N. daT.)
32. No original: Take Bill bicycledfrom Lexington. (N. daT.)

510
I Os craques da língua I

os problemas mais elementares da análise gramatical, como co­


nhecer a categoria gramatical de uma palavra. Safire faz referência
à voz ativa e passiva, duas formas de um verbo. Mas será que Bar-
bra está usando evolved como verbo? Uma das maiores descobertas
da gramática gerativa moderna é que a categoria gramatical de
uma palavra —substantivo, verbo, adjetivo —não é uma etiqueta
colocada por conveniência, mas uma verdadeira categoria mental
passível de ser verificada por provas experimentais, da mesma ma­
neira como um químico pode verificar se uma gema é diamante
ou zircônio. Tais testes são uma lição de casa clássica no curso in­
trodutório que os lingüistas chamam de Sintaxe Bebê. O método
consiste em encontrar tantas construções quantas forem possíveis
em que palavras que são exemplos típicos de uma categoria, e ne­
nhum outro tipo de palavra, possam aparecer. Daí, ao deparar
com uma palavra cuja categoria desconhece, você verifica se ela
pode aparecer naquele conjunto de construções com alguma in­
terpretação natural. Por meio desses testes podemos determinar,
por exemplo, que o craque da língua Jacques Barzun tirou zero
quando chamou um substantivo possessivo como Wellingtons de
adjetivo (como nos exemplos anteriores, coloquei asteriscos na fren­
te dos sintagmas que parecem estar errados):

ADJHTIVOVHRDADIilRO IMPOSTOR

1. v e r y X: very intclligcnt *vcry Wellingtons


2. s e e m s X: He seems T h is seems
intelligent Wellingtons
3. H ow X: How intelligent Tdow Wellington s
is he? is this ring?
4. m ore X tb a n : more intelligent Anote Wellington s
than than
5. a Adj X Adj N: a fiinny, intelligent *a funny Wellinglons
old friend old friend
6. ип-Х: unintelligent *un-Wcllingl ons

511
I O instinto da linguagem I

Apliquemos agora esse tipo de teste para o evolved de Barbra, com­


parando-o com um verbo típico na voz passiva c o m o fo i beijado por
uma amante apaixonada (as construções estranhas levam asterisco):

1. muito evoluído/ fimiúo beijado


2. Ele parece evoluído/ ^Ele parece beijado
3. Quão evoluído ele é?/ ''Quão beijado ele é?
4. Ele está mais evoluído agora do que no ano passado/ *Ele está
mais beijado agora do que ontem
5. um querido amigo atencioso e evoluído/ *um atencioso homem
alto c beijado
6. Ele era involuído/ фЕ1е era imbeijado por uma amante apaixonada

E óbvio que evolved não funciona como a voz passiva de um ver­


bo; funciona como adjetivo. Safire se enganou, porque adjetivos
podem ter a aparência de verbos na voz passiva e estão claramcn-
tc relacionados com eles, mas não são a mesma coisa. Daí a piada
na música de Bob Dylan “Rainy Day Women # 12 & 35”:

rhcy’11 stone you whcn youre riding in your car.


They’ll stone you whcn youre playing your guitar.

But I would not íeel so ali alone.


Evcrybody must get stoncd.'u

Esta descoberta nos conduz para a real fonte de evolved. Já que


é um adjetivo, não um verbo na voz passiva, não temos mais de
nos preocupar com a ausência da frase correspondente na voz ati­
va. Para encontrar suas raízes, temos de encontrar uma regra em
inglês que crie adjetivos a partir de verbos intransitivos. Tal regra
existe em inglês. Ela se aplica ao particípio de uma certa classe de3

3 3 . Jogo de palavras inü rad u zív el e n tre o v erb o to sto n e, ap e d re jar, e o ad jetiv o sto n ed , ch a p ad o ,
de p o rre . ( N . d a T .)

512
I Os craques da língua I

verbos intransitivos que expressam uma mudança de estado (o que


os lingüistas chamam de verbos “inacusativos”), e criam um adje­
tivo correspondente34:

time that has elapsed —> elapsed time


a leaf that has fallen —> a fallen leaf
a man who has traveled widely —> a widely traveled man
a testicle that has not descended into the scrotum —> an undescen-
ded testicle
a Christ that has risen from the dead —> a risen Christ
a window that has stuck —> a stuck window
the snow that has drifted —> the drifted snow
a Catholic who has lapsed —> a lapsed Catholic
a lung that has collapscd —> a collapsed lung
a writcr who has failed —> a failed writcr

Tome essa regra e aplique-a a tennis player who has evolved, e você
terá an evolved player. Tal solução também nos permite compreender
o que Streisand quis dizer. Quando um verbo passa da voz ativa
para a passiva, o sentido do verbo se conserva. Cão morde homem —
Homem é mordido por cão. Mas, quando um verbo é transformado
num adjetivo, o adjetivo pode ganhar nuanças idiossincráticas.
Nem toda mulher que cai é uma mulher desvirginada35, e se al­
guém o apedreja você não fica necessariamente chapado. Todos
evoluímos a partir do elo perdido, mas nem todos somos evoluí­
dos no sentido de ser espiritualmente mais sofisticados que nos­
sos contemporâneos.
Em seguida, Safire censura Streisand por mais que sua idade linear.
Diz ele:

34. E m p o rtu g u e s o m e sm o c possível com verbos inacusativos: o tempo que passou —o


te m p o p assad o ; a que caiu — a folha caída; um homem que viaja muito —um
fo lh a
h o m e m m u ito viajad o etc. Além disso, é possível também dizer: chegadas as visitas
(q u a n d o as visitas che g arem ), vamos jantar. (N. da R.T.)
35. No original: n o t e v e r y w o m a n that hasfallen is afallen woman. (N. daT.)

513
I O instinto da linguagem I

L in ea r significa “direto, ininterrupto”; ultimamente ganhou um sen­


tido pejorativo de “sem imaginação”, como um p en sa m en to lin ea r, em
contraste com lances de gênio inspirados e profundos. Acho que o
que a Sra. Streisand tinha em mente era “além de sua idade cronoló­
gica”, que é mais bem expresso simplesmente por “além de sua ida­
de”. Dá para entender o que ela quis dizer —os anos alinhados de
maneira ordenada —mas mesmo no mundo do vale-tudo do jargão
da indústria do entretenimento, nem tudo vale. Tirar de cena o lin ea r.

Como muitos craques da língua, Safire subestima a precisão e


talento da gíria, sobretudo aquela que provém de campos técni­
cos. Streisand obviamente não está usando o sentido euclidiano
de linear, que quer dizer "o cantinho mais curto entre dois pon­
tos”, e a imagem a ele associada dc anos alinhados de maneira or­
denada. Está usando o sentido retirado da geometria analítica,
que quer dizer “proporcional” ou “aditivo”. Sc num sistema dc
coordenadas você montar o gráfico que representa a distância via­
jada em velocidade constante pelo tempo transcorrido, obterá
uma linha reta. Isso se chama relação linear; a cada hora que pas­
sa, você viaja mais 80 km. Em contraposição, se você puser num
gráfico a quantidade de dinheiro do seu fundo dc investimen­
to, obterá uma curva não-lincar ascendente; quanto mais tempo
você deixar seu dinheiro lá, mais o que ele rende por ano aumen­
ta. O que está implícito na declaração de Streisand é que o nível
dc evolução de Agassi não é proporcional à sua idade: embora a
maioria das pessoas se inclua numa linha reta que lhes confere X
unidades espirituais de evolução por cada ano de vida, a evolução
deste jovem tem rendido mais, e ele flutua acima da linha, com
mais unidades do que as que lhe seriam devidas por sua idade. Não
posso ter certeza de que era isso que Streisand tinha em mente
(até o momento de escrever estas linhas, ela não tinha respondido
à minha pergunta), mas esse sentido de linear é comum na fraseo­
logia tecno-pop contemporânea (como feedback, sistemas, holismo, in~

514
I Os craques da língua I

terface e sinérgico'), e é improvável que ela tenha topado com um uso


perfeitamente adequado por acaso, como sugere a análise de Safire.
Por fim, Safire comenta very in the moment:

Esse very chama a atenção para o uso de preposição ou substanti­


vo como modificador, como em “Ifs very in”, ou “Ifs very New
York”, ou a última moda de expressão elogiosa, “Ifs very you”. Es­
tar very in the moment (talvez uma variação de of the moment ou up to the
minute [moderno, atual, na moda]) parece ser uma tradução livre do
francês au courant, traduzido de diversas maneiras: up to date, fasbiona-
ble, wíth-it.

Mais uma vez, ao ridiculizar a linguagem de Streisand, Safire


analisa equivocadamente tanto sua forma como seu significado.
Ele não percebeu que: ( I ) a palavra very não está ligada à preposi­
ção in; está ligada a todo o sintagma preposicional in the moment.
(2) Streisand não está usando o intransitivo in, com seu sentido
especial dc “na moda”; está usando o in convencional transitivo
com um sintagma nominal objeto, the moment. (3 ) O uso que ela
faz de um sintagma preposicional como se fosse um adjetivo para
descrever algum estado mental ou emocional segue um padrão
comum cm inglês: unâer the weather, out o f character, off the wall, in the
dumps, out to lunch, on the bali, in good spírits, on top o f the world, out o f his
mind e in loveM\ (4 ) Ê improvável que Streisand estivesse tentando
dizer que Agassi está au courant ou na moda; isto seria um comen­
tário depreciativo, não um elogio. Sua referência ao Zen esclarece
o que ela quis dizer: que Agassi sabe como deixar de lado as dis­
trações e se concentrar no jogo ou na pessoa com que está envol­
vido naquele momento.
Esses são, portanto, os craques da língua. Suas fraquezas de­
correm de dois pontos cegos. Um é a grosseira subestimação dos36

36. Respectivamente: indisposto; inadequado; exagerado; na fossa; negligente; alerta, inteli­


gente; de bom humor; sentir-se o máximo; fora de si; apaixonado. (N. daT.)

515
I O instinto da linguagem I

recursos lingüísticos da pessoa comum. Não digo que tudo que


sai da boca ou da pena de uma pessoa está perfeitamente de acor­
do com regras (lembre-se de Dan Quayle). Mas os craques da
lín gua evitariam muitos embaraços se guardassem o veredito de
incompetência lingüística como último recurso em vez de afer­
rar-se a ele como primeira conclusão. As pessoas se saem com
uma verbiagem risível quando sentem que estão num ambiente
que exige delas um estilo elevado e formal e sabem que sua esco­
lha de palavras pode ter conseqüências tremendas. E por isso que
um terreno fértil para encontrar disparates são os discursos de
políticos, cartas de pedido de assistência social c exames finais de
estudantes (supondo-se que haja um grão de verdade nos relatos).
Em ambientes menos tensos, pessoas comuns, pouco importan­
do seu nível de escolaridade, obedecem a sofisticadas leis grama­
ticais, e se expressam com um vigor e uma graça cjue encanta
aqueles que as escutam com seriedade — lingiiistas, jornalistas,
historiadores da tradição oral, novelistas com ouvido para o
diálogo.
O outro ponto cego dos craques da língua é sua completa ig­
norância da moderna ciência da linguagem —e não mc refiro ape­
nas ao aparato formal da teoria chomskiana, mas a conhecimentos
básicos do tipo de construções e expressões idiomáticas encontra­
das em inglês, e como as pessoas as empregam c pronunciam. Para
ser justo, devo dizer que a culpa disso é cm grande parte de mem­
bros da minha própria profissão, que tanto relutam em aplicar
nossos conhecimentos aos problemas práticos de estilo e uso e à
curiosidade natural que todos têm sobre por que as pessoas falam
como falam. Com poucas exceções como Joseph Emonds, Dwight
Bolinger, Robin Lakoff, James Mccawley e Geoffrey Nunberg, os
principais lingiiistas americanos deixam que o terreno seja ocupa­
do quase totalmente pelos craques —ou, como Bolinger os chama,
os xamãs. Ele resumiu a situação:

516
I Os craques da língua

No campo da linguagem, não há praticantes com licença, mas os


bosques estão cheios de parteiras, raizeiros, mezinheiros, endireitas
e curandeiros de todo tipo, alguns de uma ingorância abismai, ou­
tros com grande conhecimento prático —que podemos agrupar sob
o nome de xamãs. Eles exigem nossa atenção não só porque preen­
chem um vazio, mas porque são quase as únicas pessoas que geram
notícia quando a linguagem começa a causar problemas e alguém
tem de responder ao pedido de ajuda. As vezes, seus conselhos são
sensatos. Às vezes, inúteis, mas continuam sendo procurados por­
que ninguém sabe a quem mais recorrer. Vivemos num vilarejo afri­
cano e Albert Schweitzer ainda não chegou.

O que fazer, então, quanto ao uso? Diferentemente de alguns


acadêmicos dos anos 1960, não afirmo que a aprendizagem da
gramática e composição inglesas padrão seja uma ferramenta para
perpetuar o status quo capitalista branco, patriarcal e opressivo e que
O Povo deveria ter a liberdade de escrever como bem entenda. E
válido o esforço de tentar mudar alguns aspectos da maneira como
as pessoas se expressam em alguns contextos. O que proponho é
inócuo: uma discussão mais séria sobre a linguagem e sobre como
as pessoas a usam, substituindo bubbe~maises (superstições) pelo que
há dc melhor em termos de conhecimento científico. O mais im­
portante é não subestimarmos a sofisticação da verdadeira causa
de qualquer exemplo de uso da linguagem: a mente humana.
E irônico que as próprias jeremiadas sobre como o descuido
com a linguagem gera idéias descuidadas sejam, na verdade, ema­
ranhados de fatos falsos e conclusões sem lógica. Todos os exem­
plos de comportamento verbal a que os queixosos fazem objeção
por algum motivo são agrupados numa massa uniforme e bafora­
dos como prova do Declínio da Língua: gíria de adolescentes, so-
fistarias, variações regionais de pronúncia e dicção, jargão buro­
crático, erros de escrita e pontuação, pseudo-erros como hopefully,

517
I O instinto da linguagem I

prosa mal composta, eufemismos de políticos, gramática não-pa­


drão como aint, propaganda enganosa etc. (para não mencionar
sutilezas de humor que a mente dos queixosos não registra).
Espero tê-lo convencido de duas coisas. M uitas regras pres­
critivas da gramática não passam de tolices e deveríam ser elimi­
nadas dos manuais de uso. E boa parte do inglês padrão é apenas
isto, padrão, assim como certas unidades de moeda ou voltagens
de aparelhos domésticos são padrão. O bom senso diz que as pes­
soas deveriam ter incentivo e oportunidade para aprender o diale­
to que virou padrão em sua sociedade e para empregá-lo em vá­
rios contextos formais. Mas não é necessário utilizar termos como
“gramática deficiente”, “sintaxe fraturada” c “emprego incorreto”
ao fazer referência aos dialetos rural e negro. Embora eu não seja
fã dc eufemismos “politicamente corretos” (segundo os quais, diz
a sátira, mulher branca deveria ser substituído por pessoa degenero po­
bre em melanina), utilizar termos como “gramática deficiente” pa­
ra “não-padrão” é, a um só tempo, insultante e cientificamente
incorreto.
Quanto à gíria, sou super a favor! H á quem ache que a gíria
pode dc alguma maneira “corromper” a língua. Antes fosse as­
sim. A maioria dos dicionários de gírias são zelosamente guarda­
dos por suas subeulturas como emblemas de grupo. Ao passar os
olhos por um desses dicionários, nenhum verdadeiro amante da
língua pode deixar de ficar fascinado com o senso dc humor e os
brilhantes jogos de palavras: de estudantes de medicina (Zorro-
bclly, crispy critter, prrune), rappers (jawfacking, dissing), estudantes uni­
versitários ( studmuffin, vig out, blow off), surfistas (gnarladous, geekli-
fiect) c hackers ( toflame, core-dump, crufty). Quando os termos mais
démodé são descartados e legados ao dialeto predominante, eles
muitas vezes preenchem de maneira maravilhosa importantes la­
cunas da língua. Não sei como pude viver sem toflam e (protestar
com convicção), to dis (expressar desrespeito por) e to blow ojf
(desprezar uma obrigação), e temos hoje milhares de palavras in­

518
I Os craques da língua I

glesas que deixaram de ser excepcionais como clever, fu n , sham, ban~


ter, mob, stíngy, bully, junkie e jazz que nasceram como gírias. A hipo­
crisia maior está em se opor por motivos racionais a inovações lin-
güísticas e ao mesmo tempo lamentar a perda de distinções como
lie versus lay sob pretexto de preservar a capacidade expressiva. A ve­
locidade de criação de veículos para expressar idéias é bem maior
que sua perda.
H á provavelmente uma boa explicação para o culto da fala
inarticulada, pontuada de sabe, tipo, negócio, né etc. Todo mundo pre­
serva uma certa quantidade de modos de falar apropriados para
diferentes contextos e definidos pelo respeito e pela solidaridade
que sentem em relação ao interlocutor. Parece que os americanos
mais jovens tentam preservar distâncias sociais menores do que
aquelas com que as gerações mais velhas estão acostumadas. Co­
nheço muitos estilistas talentosos da minha idade, cuja fala em si­
tuações interpessoais está entremeada de negócio e sabe, que é a ma­
neira que encontraram de não parecer o erudito que se sente auto­
rizado a disscrtar sobre assuntos confidenciais para o parceiro da
conversa. Há quem se irrite com isso, mas a maioria dos falantes
consegue deixar de falar dessa maneira quando quer, e isso não
me parece pior que o outro extremo, certos velhos acadêmicos fa­
zendo preleçõcs durante reuniões sociais, pontificando com elo-
qüência para suas audiências jovens fascinadas.
O aspecto do uso da linguagem que mais vale a pena mudar é
a clareza e o estilo da prosa escrita. Textos expositivos exigem uma
linguagem que expresse encadeamentos de idéias bem mais com­
plexos do que aqueles para os quais foi biologicamente desenha­
da. Incoerências causadas por limitações de memória de curto
prazo e de planejamento, que passam despercebidas na conversa,
não são tão toleradas quando mantidas numa página percorrida
muito mais lentamente. Diferentemente de um parceiro de con­
versa, um leitor raramente partilha de suficientes pressupostos
para interpolar todas as premissas faltantes que tornam a lingua­

519
I O instinto da linguagem I

gem compreensível. Superar o próprio egocentrismo natural e


tentar prever o grau de conhecimentos de um leitor genérico em
cada passo da exposição é uma das mais importantes tarefas da
arte de escrever bem. Isso tudo faz da escrita uma atividade difícil,
a ser dominada por meio da prática, instrução, feedback, e —prova­
velmente o mais importante —uma intensa exposição a bons exem­
plos. Existem excelentes manuais de redação que discutem essas e
outras habilidades com urande sabedoria, como o de Strunk e
W hite, The Elements of Style, e o de Williams, Styk: Toward Clarity and
Crace. A meu ver, o ponto mais relevante é o quanto seus conse­
lhos práticos distam de trivialidad.es como infinitivos separados e
gíria. Por exemplo, uma banal mas univcrsalmcnte reconhecida
chave da boa escrita c fazer muitas revisões. Bons escritores repas­
sam dc duas a vinte vezes seus rascunhos antes dc enviar um arti­
go. Aquele que não entender essa necessidade será um mau escri­
tor. Imagine um Jeremias exclamando: “Atualmente nossa língua
se vê ameaçada por um inimigo insidioso: os jovens não estão re­
visando seus rascunhos vezes suficientes.” Tipo de coisa que dá
bode, nc? Não se trata de algo que possa ser atribuído à televi­
são, ao rock, à cultura dc shopping, a atletas com salários exorbi­
tantes, ou qualquer dos outros sinais da decadência da civilização.
No entanto, sc o t]uc queremos é um texto claro, o remédio casei­
ro é esse.
Para terminar, uma confissão. Quando escuto alguém usando
disinterested para dizer “apático”, fico uma fera. Disínterested (acho
melhor explicar que esta palavra significa “isento”) é uma palavra
adorável: é tão sutilmente diferente de imparcial ou isento, pois im­
plica que a pessoa não leva qualquer vantagem no assunto, e não
só que c cqüitativa por uma questão de princípios. Esse significa­
do sutil provém de sua estrutura delicada: interesse [interestj signi­
fica “vantagem”, como em conflito de interesses e interesse finan­
ceiro; acrescentar -ed a um substantivo pode fazê-lo pertencer a
alguém que possui o referente daquele substantivo, como em mo-

520
I Os craques da língua I

neyed, one-eyed, ou hook-nosed37; dis- nega a combinação. A lógica gra­


matical revela-se a si mesma nas palavras estruturadas de modo si­
milar disadvantaged, disaffected, disillusíoned, disjoínted e dispossessed. Como
já temos a palavra uninterested, não há motivo para privar os aman­
tes da precisão da língua de disinterested misturando seus significa­
dos, exceto por uma tentativa cafona de parecer pomposo. E não
me provoquem com fortuitous e parameter38...
Relaxe, professor. Acontece que o sentido original de disinteres­
ted, surgido no século dezoito, é —isso mesmo —, “uninterested”. O
que também faz sentido em termos gramaticais. O adjetivo ínteres-
ted com sentido de “envolvido” (relacionado com o particípio do
verbo to intcrcst) é bem mais comum que o substantivo interest com
sentido de “vantagem”, e portanto dis- pode ser analisado como
tuna mera negação daquele adjetivo, como em discourteous, disbonest,
disloyal, disreputable e as formas paralelas dissatisfied e distrusted. Mas
essas explicações fogem do ponto. Cada componente de uma lín­
gua muda com o tempo, e a cada momento uma língua sofre mui­
tas perdas. No entanto, como a mente humana não muda com o
tempo, a riqueza de uma língua está sempre sendo reabastecida.
Sempre que ficamos raivosos com alguma mudança de uso, deve­
riamos ler as palavras de Samuel Johnson no prefácio de seu
Dicionário de 1755, uma reação aos Jeremias de sua época:

Aqueles que foram persuadidos a ter uma opinião favorável cm re­


lação ao meu projeto, exigem que ele fixe nossa língua dc uma vez
por todas, c ponha um fim às alterações que até agora o tempo e o
acaso lhe impuseram, sem encontrar qualquer oposição. Confesso
que por um certo tempo tal honraria me lisonjeou; mas começo

37. Respectivamcntc: endinheirado, zarolho, com nariz aquilino (em forma de gancho).
(N. daT.)
38. Ocorre o uso condenado dc fortuitous [fortuito] no sentido de afortunado \Jortunate].
Quanto a parameter, há controvérsias quanto ao uso da palavra fora do âmbito matemáti­
co, indicando orientação básica, característica. (N. da T.)

521
I O instinto da linguagem I

agora a temer as expectativas que gerei, e que nem a razão nem a ex­
periência justificam. Quando vemos homens envelhecer e num certo
momento morrer, um depois do outro, século após século, rimos do
elixir que promete prolongar a vida por mil anos; e com igual justi­
ça deve-se escarnecer do lexicógrafo, que, incapaz de fornecer um
exemplo sequer de uma nação que preservou suas palavras e expres­
sões da mutabilidade, imagine que seu dicionário possa embalsamar
sua língua e protegê-la da corrupção e decadência, que tenha o po­
der de mudar a natureza terrena e livrar o mundo a um só tempo da
tolice, vaidade e afetação. No entanto, foi com essa esperança que
academias foram fundadas, para guardar as avenidas de suas línguas,
para reter fugitivos e repulsar intrusos; até agora, não obstante, sua
vigilância e atividade foram em vão; os sons são voláteis e sutis de­
mais para serem submetidos a coerções legais; acorrentar sílabas c
açoitai' o vento são empresas do orgulho, que desconhece a propor­
ção entre seus desejos e suas forças.

522
O design da mente

No começo deste livro per­


guntei-lhe por que deveria
crer que existe um instinto da linguagem. Depois de ter feito tudo
o que podia para convencê-lo de sua existência, chegou a hora de
perguntar que importância isso tem. Ё claro que ter linguagem faz
parte do que significa ser humano, e portanto a curiosidade é na­
tural. Mas ter mãos que não estão ocupadas com a locomoção é
até mais importante quando se trata do ser humano, e, muito pro­
vavelmente, você nunca chegaria até o último capítulo de um livro
sobre a mão humana. O que as pessoas sentem em relação à lin­
guagem não c só curiosidade, é paixão. A razão disso é óbvia. A
linguagem é a parte mais acessível da mente. As pessoas querem
saber sobre linguagem porque esperam, que esse conhecimento as
ajude a compreender a natureza humana.
Essa relação anima a pesquisa lingüística, aumentando as apos­
tas nas arcanas desavenças técnicas e atraindo a atenção de estu­
diosos de disciplinas longínquas. Jerry Fodor, o filósofo e psico-
lingüista experimental, estuda se o parsíng de frases é um módulo
mental encapsulado ou se está misturado com a inteligência geral,
e é alguém mais honesto que a maioria ao explicitar qual seu inte­
resse na controvérsia:

523
I O instinto da linguagem I

“Veja bem”, diría você, “por que você se importa tanto com
módulos? Você tem posses; por que não se manda e vai velejar?” E
uma pergunta pertinente, que muitas vezes faço a mim mesmo... De
forma genérica, a idéia de que a cognição satura a percepção está re­
lacionada (e, na verdade, está historicamente ligada) com a idéia da
filosofia da ciência de que nossas observações são fortemente deter­
minadas por nossas teorias; com a idéia da antropologia de que nos­
sos valores são fortemente determinados por nossa cultura; com a
idéia da sociologia de que nossos compromissos cpistemológicos,
entre os quais sobretudo nossa ciência, são fortemente determina­
dos por nossas filiações de classe; e com a idéia da lingüística de que
nossa metafísica é fortemente determinada por nossa sintaxe [isto c,
a hipótese whorfiana —S.P.]. Todas essas idéias implicam um tipo dc
holismo relativista: porque a percepção está saturada pela cognição,
a observação pela teoria, os valores pela cultura, a ciência pelas clas­
ses sociais e a metafísica pela linguagem, a crítica racional das teo­
rias científicas, dos valores éticos, das visões de mundo metafísicas
etc. só pode se dar d en tro da estrutura de pressupostos que —por uma
questão de acidentes geográficos, históricos ou sociológicos —os in­
terlocutores por acaso compartilhem. O que é impossível fazer é cri­
ticar racionalmente a estrutura.
O problema é que od eio o relativismo. Odeio o relativismo mais
do que qualquer outra coisa, exceto, talvez, lanchas de fibra de vidro.
Para scr mais preciso, acho que o relativismo é muito provavelmente
falso. O que ele desconsidera, para ser breve c direto, é a estrutura
fixa da natureza humana. (Esta não é novidade nenhuma; ao contrá­
rio, a m a lea b ilid a d e da natureza humana é uma doutrina que invariavel­
mente os rclativistas tendem a enfatizar; veja, por exemplo, John
Dewey...) Bem, em psicologia cognitiva, a afirmação da existência dc
uma estrutura fixa da natureza humana adota tradicionalmente a
forma de uma insistência na heterogeneidade dos mecanismos cog­
nitivos c na rigidez da arquitetura cognitiva que produz a encapsula-
ção daqueles. Se existem faculdades e módulos, então nem tudo afe­
ta todo o resto; nem tudo é plástico. Seja lá o que for este todo o
resto, pelo menos há mais de um.

524
I O design da mente I

Para Fodor, um módulo de percepção de frases que produzis­


se verbatim a mensagem do falante, sem qualquer distorção produ­
zida pelos vieses e expectativas do ouvinte, é emblemático de uma
mente humana universalmente estruturada, a mesma em todos os
lugares e tempos, que faria com que as pessoas concordassem so­
bre o que é justo e verdadeiro como uma questão de realidade ob­
jetiva e não de gosto, hábito e interesses próprios. É um certo exa­
gero, mas ninguém pode negar que há uma conexão. A vida inte­
lectual moderna está saturada de um relativismo que nega que
existam coisas como uma natureza humana universal, e a existên­
cia de um instinto da linguagem, da forma como for, ameaça essa
negativa.
A doutrina que fundamenta o relativismo, o Modelo Clássico
das Ciências Sociais (M C C S), começou a dominar a vida intelec­
tual nos anos 1920. Era a fusão de uma idéia da antropologia com
outra da psicologia.

1. Sc por um lado os animais são rigidamente controlados por sua


biologia, o comportamento humano, por outro, é determinado
pela cultura, um sistema autônomo de símbolos e valores. Livres
de coerções biológicas, as culturas podem variar entre si arbitra­
riamente e sem limites.
2. Os bebês humanos nascem apenas com alguns reflexos e a habili­
dade para aprender. A aprendizagem c um processo geral e abran­
gente, usado cm todos os campos do conhecimento. Crianças
aprendem sua cultura por meio da doutrinação, da recompensa e
punição, e de modelos de papéis.

O M CCS não só inaugurou o estudo do gênero humano na


academia, como continua servindo de ideologia secular de nossa
era, aquela posição sobre a natureza humana que toda pessoa de­
cente deveria ter. Diz-se que a alternativa, às vezes chamada de
“determinismo biológico”, atribui às pessoas lugares fixos na hie­
rarquia sociopolítico-econômica, e é a causa de muitos dos hor­

525
I O instinto da linguagem I

rores dos séculos recentes: escravidão, colonialismo, discriminação


étnica e racial, castas econômicas e sociais, esterilização forçada,
sexismo, genocídio. Dois dos mais famosos fundadores do MCCS,
a antropóloga Margaret M ead e o psicólogo John Watson, acredi­
tavam claramente nessas implicações sociais:

Somos obrigados a concluir que a natureza humana é quase inacredi­


tavelmente maleável, respondendo dc modo preciso e contrastante a
condições culturais contrastantes... Os membros de cada sexo ou de
ambos os sexos podem, com mais ou menos sucesso no caso de dife­
rentes indivíduos, ser educados para adquirir [qualquer temperamen­
to]... Se desejamos uma cultura mais rica, rica cm valores contrastan­
tes, temos de reconhecer toda a gama de potencialidades humanas, te­
cendo dessa forma um tecido social menos arbitrário, cm que cada um
dos diversos dons humanos encontre seu lugar. |Mead, 1935|

Dê-me uma dezena de crianças saudáveis e bem-formadas, c um


mundo por mim especificado para criá-las, e garanto que posso pe­
gar qualquer uma ao acaso e treiná-la para que se torne o tipo de es­
pecialista que eu escolher —médico, advogado, artista, comerciante,
e, lambem, mendigo e ladrão, independentemente dc seus talentos,
inclinações, tendências, faculdades, vocações e raça de seus ances­
trais. [Watson, I925|

Pelo menos na retórica dos cultos, o M CCS foi totalmente vi­


torioso. Em colóquios intelectuais bem-educados e no jornalismo
respeitável, qualquer generalização sobre o comportamento hu­
mano é cuidadosamente precedida de shibbokts do M CCS, que di­
ferenciam o falante dos repugnantes defensores da hereditarieda­
de que existiram na história, dos reis medievais a Archie Bunker1.
“Nossa sociedade”, assim começam as discussões, mesmo se ne­
nhuma outra sociedade foi examinada. “Nos socializa”, conti­

I. Personagem do siteom All in the J-amily. (N. da T.)

526
I O design da mente I

nuam eles, mesmo se as experiências da criança nunca são levadas


em consideração. “Para o papel...”, concluem, sem considerar se é
pertinente a metáfora de “papel”, ou seja, personagem ou ação ar­
bitrariamente atribuída a ser desempenhada por um executor.
Muito recentemente, lemos nas revistas semanais que “o pên­
dulo está oscilando para trás”. Ao descreverem os chocados pais
pacifistas feministas de um garoto de três anos fascinado por armas
e de uma filha de quatro obcecada por Barbies, os autores lembram
o leitor que não sc podem ignorar fatores hereditários e que todo
comportamento é uma interação entre natureza e educação, cujas
contribuições são tão inseparáveis quanto o comprimento e a lar­
gura dc um retângulo para determinar sua área.
Eu ficaria deprimido sc o que sabemos sobre o instinto da lin­
guagem ficasse restrito às tolas dicotomias hereditariedade-am-
biente (também conhecidas como natureza-educação, nativismo-
empirismo, inato-adquirido, biologia-cultura), a platitudes inú­
teis sobre interações inextricavelmcnte entrelaçadas, ou à imagem
cínica do pêndulo oscilante, tão na moda no meio científico.
Creio que nossa compreensão da linguagem oferece um modo
mais sofisticado de estudar a mente e a natureza humanas.
Para começar, podemos descartar o modelo mágico pré-cientí-
fico dc acordo com o qual as questões costumam ser divididas:

h e r e d ita r ie d a d e ca u sa s

c o m p o r ta m e n to

ambiente ca u sa s

A “controvérsia” quanto a saber se a hereditariedade, o am­


biente ou alguma interação entre ambos causa o comportamento
é simplesmente incoerente. O organismo desapareceu; há um am­
biente sem alguém para percebê-lo, comportamento sem alguém
que se comporte, aprendizagem sem aprendiz. Como Alice pen­
sou com seus botões quando o Gato Cheshire foi desaparecendo

527
I O instinto da linguagem I

devagarinho, terminando no sorriso, que ainda ficou suspenso no


ar algum tempo depois que o resto tinha desaparecido: “Está aí!
Já vi muitos gatos sem sorriso, mas sorriso sem gato! É a coisa
mais curiosa que já vi na minha vida!”
O seguinte modelo também é simplista, mas é um ponto de
partida muito melhor:
ambiente
fo r n ece
e s t í m u lo s p a r a


d e s e n v o lv e e
mecanismos psicológicos
matos, entre os qm is d á a cesso a habilidades,
linvditaneilntli'
mecanismos de < ..........► conhecimento,
aprendizagem valores

causas

comportamento

Porque agora podemos fazer justiça à complexidade do cére­


bro humano, a causa imediata de toda percepção, aprendizagem c
comportamento. A aprendizagem não é uma alternativa ao inato;
sem um mecanismo inato para aprender, ela simplesmente não
ocorrería. O que descobrimos sobre o instinto da linguagem dei­
xa isso claro.
Em primeiro lugar, para acalmar os nervosos: sim, tanto a he­
reditariedade como o ambiente desempenham importantes pa­
péis. Uma criança criada no Japão acaba falando japonês; a mes­
ma criança, criada nos Estados Unidos, acabaria falando inglês.
Portanto, sabemos que o ambiente desempenha um papel. Se uma
criança cresce inseparável de seu hamster, a criança acaba falando
uma língua, mas o hamster, exposto ao mesmo ambiente, não.
Portanto, sabemos que a hereditariedade desempenha um papel.
Mas há muito mais.
• Como as pessoas são capazes de entender e falar uma quanti­
dade infinita de frases novas, não faz sentido tentar caracterizar o

528
I O design da mente I

“comportamento” delas diretamente —o comportamento linguís­


tico de duas pessoas nunca é o mesmo, e é até mesmo impossível
arrolar o comportamento potencial de uma pessoa. Mas um nú­
mero infinito de frases pode ser produzido por um sistema finito
de regras, uma gramática, e faz sentido estudar a gramática men­
tal e outros mecanismos psicológicos que estão por trás do com­
portamento lingüístico.
• A linguagem nos vem de forma tão natural que costuma nos
deixar blasé, como as crianças urbanas que acham que o leite vem
de um caminhão. Mas um exame mais minucioso do que é neces­
sário para juntar palavras em frases comuns revela que os meca­
nismos lingüísticos mentais têm de ter uma organização comple­
xa, com a interação de muitas partes.
• Sob esse microscópio, a babel de línguas já não aparece mais
como algo que varia de modo arbitrário e sem limites. Pode-se ver
agora um design comum na maquinaria que está por trás das lín­
guas do mundo, uma Gramática Universal.
• A aprendizagem seria impossível se esse design básico não
estivesse inserido no mecanismo que aprende uma gramática em
particular. Há muitas maneiras possíveis de generalizar da fala dos
pais para a língua como um todo, e as crianças escolhem as certas,
e rapidamente.
• Por fim, alguns dos mecanismos de aprendizagem parecem
ser desenhados especificamente para a linguagem, não para a cul­
tura e o comportamento simbólico em geral. Vimos povos da
Idade da Pedra com gramáticas de alta tecnologia, criancinhas in­
defesas que são gramáticas competentes, e sábios idiotas em ter­
mos lingüísticos. Vimos uma lógica da gramática que atravessa a
lógica do senso comum: o it de It is rainíng que se comporta como
o John de John is running, os mice-eaters que comem mice diferencian­
do-se dos rat-eaters que comem rats.
O que a linguagem nos ensina não deixou de ser aproveitado
pelas ciências do resto da mente. Surgiu uma alternativa para o

529
I O instinto da linguagem I

Modelo Clássico das Ciências Sociais, com raízes em Darwin e


W illiam James e inspirada nas pesquisas sobre linguagem realiza­
das por Chomsky e, na sua esteira, por psicólogos e lingüistas. Foi
aplicada à percepção visual pelo neurocientista computacional
David M arr e pelo psicólogo Roger Shepard, e desenvolvida pelos
antropólogos Dan Sperber, Donald Symons e John Tooby, pelo
lingüista Ray Jackendoff, o neurocientista Michael Gazzaniga c
os psicólogos Leda Cosmides, Randy Gallistel, Frank Keil e Paul
Rozin. Tooby c Cosmides, em seu importante ensaio recente “Os
fundamentos psicológicos da cultura”, dão-lhe o nome de Mode­
lo Causai Integrado, porque procura explicar como a evolução
causou a emergência dc um cérebro, que causa processos psicoló­
gicos como conhecer c aprender, que causam a aquisição de valo­
res e de conhecimentos que conformam a cultura de uma pessoa.
Integra portanto psicologia e antropologia ao restante das ciências
naturais, sobretudo neurociência e biologia evolutiva. Por causa
desta última conexão, é também chamada de Psicologia Evolutiva.
A psicologia evolutiva tira muitas lições da linguagem humana
e as aplica ao resto da psique:
• Assim como a linguagem c um feito improvável que exige um
sof tware mental intricado, as outras realizações da vida mental que
consideramos ponto pacífico, como perceber, raciocinar c agir, exi­
gem seus próprios softwares mentais bem engenhados. Assim como
existe um design universal para as computações da gramática, exis­
te um design universal para o resto da mente humana —assunção
esta que não é apenas um desejo esperançoso de unidade e frater­
nidade humanas, mas uma efetiva descoberta sobre a espécie hu­
mana, bem fundamentada pela biologia evolutiva e pela genética.
• A psicologia evolutiva não desconsidera a aprendizagem mas
procura explicá-la. Na peça de Molière, Le Malaãe Imaginaire, pedem
ao culto doutor que explique como o ópio adormece as pessoas, e
ele cita seu “poder de provocar sono”. Leibniz zombou de forma
similar dos pensadores que invocam

530
I O design da mente I

expressamente qualidades ou faculdades ocultas, que na imaginação


deles se parecem com pequenos demônios ou duendes capazes de
provocar, sem mais nem menos, o que lhes pedem, como se os reló­
gios marcassem as horas devido a alguma faculdade horodêictica
sem precisar de engrenagens, ou como se moinhos amassassem grãos
d e v id o а alguma faculdade de fracionar sem nada que se pareça com
pedras de moinho.

No Modelo Clássico das Ciências Sociais, a “aprendizagem” foi


invocada dessa maneira; na psicologia evolutiva, não existe apren­
dizagem sem algum mecanismo inato que faz a aprendizagem
acontecer.
• E freqüente descobrir que mecanismos de aprendizagem
para diferentes esferas da experiência humana —linguagem, princí­
pios morais, alimento, relações sociais, o mundo físico etc. —fun­
cionam com objetivos contrários. Um mecanismo destinado a
aprender a coisa certa num desses domínios aprende exatamente a
coisa errada nos outros. Isso leva a crer que a aprendizagem não se
dá por meio de algum dispositivo genérico mas por meio de dife­
rentes módulos, cada qual sintonizado com a lógica e as leis pecu­
liares a cada domínio. As pessoas são flexíveis não porque o am­
biente macera ou esculpe suas mentes em formas arbitrárias, mas
porque suas mentes contêm módulos diferentes, cada qual com
disposição para aprender da sua maneira.
• Já que é improvável que sistemas biológicos com indícios
de complexa engenharia tenham brotado de acidentes ou coinci­
dências, sua organização tem de provir da seleção natural, e por
isso devem possuir funções úteis para a sobrevivência e a repro­
dução nos ambientes em que os humanos evoluíram. (Isso não
significa, contudo, que todos os aspectos da mente sejam adap­
tações, ou que as adaptações da mente sejam necessariamente be­
néficas em ambientes evolutivamente novos, como as cidades do
século vinte.)

531
I O instinto da linguagem I

• Por fim, à cultura o que ela merece, mas não como algum pro­
cesso espectral desencarnado ou força fundamental da natureza.
“Cultura” refere-se ao processo contagiante por meio do qual cer­
tos tipos de aprendizagem são transmitidos de pessoa para pessoa
numa comunidade, de modo que as mentes passem a compartilhar
padrões, assim como “uma língua” ou “um dialeto” refere-se ao
processo por meio do qual diferentes falantes de uma comunidade
adquirem gramáticas mentais extremamente semelhantes.

Um bom lugar para começar a discutir- essa nova visão do de­


sign da mente c o lugar por onde começamos a discutir o instinto
da linguagem: a universalidade. A linguagem, como indiquei ini-
cialmcnte, c universal nas sociedades humanas, c até onde sabe­
mos sempre o foi na história de nossa espécie. Embora as línguas
sejam ininteligíveis entre si, por baixo dessa variação superficial
cncontra-sc o design computacional único da Gramática Univer­
sal, com seus substantivos c verbos, estruturas sinfagmátícas e es­
truturas de palavras, casos c auxiliares etc.
Л primeira vista, os registros etnográficos parecem mostrar
lortcs contrastes. A antropologia do século 20 ampliou nossas con­
cepções apresentando-nos uma grande exposição da diversidade
humana. Será que esse carnaval de tabus, sistemas dc parentesco,
xamanismos e todo o resto são tão superficiais quanto a diferença
entre cão e dog, ocultando uma natureza humana universal?
A cultura dos próprios antropólogos nos deixa apreensivos
quando consideramos seu leitmotif de que tudo serve. Um dos an­
tropólogos mais destacados dos Estados Unidos, Clifford Geertz,
exortou seus colegas a serem “vendedores do espantoso” que “apre­
goam o anômalo, mascateiam o estranho”. “Se quiséssemos ape­
nas algumas verdades”, acrescenta ele, “deveriamos ter ficado em ca­
sa.” Com esta atitude, os antropólogos decerto deixarão de re­

532
I O design da mente I

conhecer qualquer padrão universal nos modos de ser e de agir


dos seres humanos. Na verdade, erros crassos podem ocorrer quan­
do o lugar-comum é disfarçado de anômalo, como na Grande
Fraude do Vocabulário Esquimó. Como me escreve um jovem an­
tropólogo:

A história do vocabulário esquimó vai merecer um capítulo à parte


no meu projeto —um livro cujo título provisório é Cem anos de impe-
rícia antropológica. Venho colecionando exemplos de graves incompe-
tências profissionais há anos: todas as anedotas antropológicas que
se revelam falsas, mas que ainda assim continuam presentes nos li­
vros de texto a título de lugares-comuns intelectuais do campo. A li­
berdade sexual dos samoanos e a conseqüente ausência de crime e
frustração, as culturas com inversão de sexos como os “ternos”
Arapesh (os homens são caçadores de cabeças), os prístinosTasaday
“palcolíticos” (uma invenção do corrupto Ministro da Cultura das
Filipinas - aldeões das redondezas, vestidos de “primitivos” ma­
triarcais), os antigos matriarcados nos primórdios da civilização, a
concepção fundamcntalmente diferente dc tempo dos Hopi, as cul­
turas que todos sabem existir lá fora nas quais tudo é o contrário da­
qui etc. etc.
Um dos fios condutores será a idéia de que o puro relativismo
cultural torna os antropólogos bem mais crédulos cm relação a qua­
se qualquer absurdo (Don Juans dos romances dc Castaneda —de
que, aliás, gosto muito —são encontrados cm muitos livros como fa­
tos comprovados) do que qualquer pessoa comum, equipada apenas
com bom senso, poderia ser. Em outras palavras, seus “conhecimen­
tos” profissionais fizeram deles perfeitos otários. Assim como o
fundamentalismo cria nas pessoas disposição para aceitar relatos de
milagres, ter fé na antropologia cria em você a disposição para acre­
ditar em qualquer relato exótico de Alhures. Na verdade, boa parte
desses despautérios faz parte do equipamento intelectual clássico
de qualquer cientista social bem formado, criando um permanente
obstáculo para pensar com equilíbrio sobre vários fenômenos psico­
lógicos e sociais.

533
I O instinto da linguagem I

Acho que com esse livro passarei a ser um eterno desempregado,


e portanto não pretendo terminá-lo tão cedo.

A alusão à liberdade sexual dos samoanos foi extraída da bom­


ba que Derek Freeman lançou em 1983, mostrando como Mar-
garet Mead interpretou mal os fatos no seu clássico Corning o f Age in
Samoa. (Entre outras coisas, seus informantes adolescentes entedia-
dos se divertiram troçando dela.) As outras acusações estão cuida­
dosamente documentadas num recente compêndio, Human Uni-
versais, escrito por outro antropólogo, Donald E. Brown, formado
na tradição etnográfica clássica. Brown afirma que por trás dos re­
latos que antropólogos fizeram de comportamentos estranhos dc
estrangeiros existem evidentes, embora abstratas, universais da ex­
periência humana, tais como hierarquia, polidez e humor. Com
efeito, os antropólogos não podiam compreender ou conviver com
outros grupos humanos a não ser que compartilhassem com eles
um rico conjunto de pressupostos comuns, o que Dan Sperber de­
nomina de metacultura. Tooby e Cosmides escrevem:

Como peixes que não percebem a existência da água, os antropólo­


gos nadam de cultura em cultura interpretando por meio da meta­
cultura humana universal. A metacultura informa cada um dc seus
pensamentos, mas eles ainda não perceberam sua existência... Quan­
do antropólogos entram cm outras culturas, a experiência da varia­
ção acorda-os para coisas que antes consideravam óbvias em sua pró­
pria cultura. De modo similar, biólogos c pesquisadores de inteli­
gência artificial são “antropólogos” que viajam para lugares onde as
mentes são bem mais estranhas que em qualquer lugar onde um ct-
nógrafo tenha estado.

Inspirado na Gramática Universal (G U ) de Chomsky, Brown


tentou caracterizar o Povo Universal (PU ). Examinou minuciosa­
mente arquivos de etnografia à procura de padrões universais sub­
jacentes ao comportamento de todas as culturas humanas docu­

534
I O design da mente I

mentadas, mantendo um olhar cético tanto para as afirmações do


exótico infladas pelos relatos dos próprios etnógrafos como para
as afirmações do universal baseadas em provas frágeis. O resulta­
do é espantoso. Longe de encontrar variações arbitrárias, Brown
conseguiu caracterizar o Povo Universal com ricos detalhes. Seus
achados são algo capaz de surpreender praticamente qualquer um,
e portanto reproduzo o que eles têm de mais substancial. Segun­
do Brown, o Povo Universal tem o seguinte:
Valorização da articulação. Fofocar. Mentir. Enganar. Humor
verbal. Gracejos insultuosos. Formas de expressão poéticas e re­
tóricas. Narrar e contar histórias. Metáfora. Poesia com repeti­
ção de elementos lingüísticos e unidades rítmicas de três segun­
dos [three-second lincs] separadas por pausas. Palavras para dias, me­
ses, estações, anos, passado, presente, futuro, partes do corpo, es­
tados internos (emoções, sensações, pensamentos), propensões
comportamentais, flora, fauna, clima, ferramentas, espaço, movi­
mento, velocidade, localização, dimensões espaciais, proprieda­
des físicas, dar, emprestar, coisas e pessoas afetivamente impor­
tantes, números (no mínimo “um”, “dois” e “mais de dois”), no­
mes próprios, posse. Distinções entre pai e mãe. Categorias de
parentesco, definidas em termos de mãe, pai, filho, filha, e se-
qüências dc idade. Distinções binárias, entre as quais macho e fê­
mea, preto e branco, natural e cultural, bom e mau. Medidas. Re­
lações lógicas como “não”, “e”, “mesmo”, “equivalente”, “opos­
to”, geral e particular, parte e todo. Raciocínio conjetural (infe­
rência da presença de entidades ausentes e invisíveis a partir de
seus traços perceptíveis).
Comunicação oral não-lingüística como gritos e guinchos. In­
terpretar intenções a partir do comportamento. Reconhecer ex­
pressões faciais de alegria, tristeza, raiva, medo, surpresa, desagra­
do e desdém. Uso do sorriso como cumprimento amistoso. Cho­
ro. Flerte recatado com o olhar. Disfarçar, modificar e imitar ex­
pressões faciais. Manifestações de afeto.

535
I O instinto da linguagem I

Senso de si mesmo em oposição ao outro, responsabilidade,


comportamento voluntário e involuntário, intenção, vida interior
privada, estados mentais normais e anormais. Empatia. Atração
sexual. Fortes ciúmes sexuais. Medos infantis, sobretudo de baru­
lhos altos, e, ao final do primeiro ano de vida, de estranhos. Medo
de cobras. Sentimentos “edípicos” (possessividade em relação à
mãe, hostilidade cm relação ao seu parceiro). Reconhecimento de
rostos. Adorno de corpos e arrumação de cabelo. Atração sexual
baseada, cm parte, cm sinais de saúde e, nas mulheres, em juven­
tude. Higiene. Dança. Música. Brincadeiras, entre as quais brincar
dc lutar.
Manufatura e dependência de muitos tipos dc ferramentas,
muitas delas permanentes, feitas segundo motivos transmitidos
culturalmentc, entre as quais instrumentos para cortar, bater, con­
ter, amarrar, alavancar, perfurar. Uso do fogo para cozinhar ali­
mentos c para outros fins. Drogas, tanto medicinais quanto re­
creativas. Construção de abrigos. Decoração de artefatos.
Uma maneira padronizada e um tempo determinado para des­
mamar. Vida cm grupos, que reivindicam um território c tem um
senso de ser um povo distinto, fam ílias organizadas em torno dc
uma mãe e filhos, gcnilmente a mãe biológica, c um ou mais ho-
mens. Casamento institucionalizado, no sentido de direito publi-
camcntc reconhecido dc acesso sexual a uma mulher cm idade dc
procriar. Socialização dos filhos (inclusive treino dc asseio) por
um parente mais velho. Crianças copiam os mais velhos. Distin­
ção entre parentes próximos e distantes, c favorecimento dos mais
próximos. Evitação do incesto entre mães e filhos. Grande interes­
se pelo assunto sexo.
Status e prestígio, tanto atribuídos (por parentesco, idade, sexo)
como conquistados. Algum grau de desigualdade econômica.
Divisão de trabalho por sexo e idade. O cuidado das crianças mais
concentrado nas mulheres. M ais agressão e violência cometidas
por homens. Reconhecimento de diferenças entre natureza femi­

536
I O design da mente I

nina e masculina. Domínio dos homens na esfera política pública.


Trocas de trabalho, bens e serviços. Reciprocidade, inclusive reta­
liação. Presentes. Raciocínio social. Coligações. Governo, no sen­
tido de obrigatoriedade de os assuntos públicos serem decididos
coletivamente. Líderes, quase sempre não ditatoriais, talvez efê­
meros. Leis, direitos e deveres, incluindo leis contra violência, es­
tupro e assassinato. Punição. Conflitos, que são deplorados. Estu­
pro. Tentativas de reparar danos. Mediação. Conflitos intra e in-
tergrupais. Propriedade. Herança da propriedade. Senso de certo
e errado. Inveja.
Etiqueta. Hospitalidade. Comemorações. Diurnalidade. Padrões
de recato sexual. Sexo geralmente praticado na intimidade. Gosto
por doces. Tabus alimentares. Discrição na eliminação de dejetos
corporais. Crenças no sobrenatural. Mágicas para manter e pro­
longar a vida, e para atrair o sexo oposto.Teorias sobre a sorte e a
desgraça. Explicações sobre doença c morte. Medicina. Rituais,
inclusive ritos de passagem. Luto pelos mortos. Sonhar, interpre­
tar sonhos.
Esta, obviamente, não c uma lista de instintos ou tendências
psicológicas inatas; c uma lista de complexas interações entre uma
natureza humana universal e as condições de vida num corpo hu­
mano neste planeta. Tampouco c, apresso-mc em acrescentar, uma
caracterização do inevitável, uma demarcação do possível, ou uma
prescrição do desejável. Uma lista dc universais humanos um sé­
culo atrás talvez incluísse a ausência de sorvete, de contraceptivos
orais, cinema, rock and roll, voto feminino e livros sobre o instin­
to da linguagem, mas isto não impediría essas inovações.
Como os gêmeos idênticos criados separadamente que mergu­
lhavam torradas com manteiga no café, o Povo Universal de Brown
abala nossas preconcepções sobre a natureza humana. E, assim
como as descobertas sobre gêmeos não exigem um gene para tor-
rada-com-manteíga-no-café, as descobertas sobre universais não
implicam um instinto universal de treino para o asseio. Uma teo­

537
I O instinto da linguagem I

ria da mente universal sem dúvida terá uma relação tão abstrata
com o Povo Universal quanto a teoria X-barra está relacionada
com uma lista de universais da ordem de palavras. Mas parece cer­
to que qualquer uma dessas teorias terá de incluir na cabeça hu­
mana algo mais que uma tendência generalizada para aprender ou
copiar um arbitrário modelo de conduta.

Depois dc descartado o pressuposto da antropologia de uma


natureza humana infinitamente variável, examinemos o pressu­
posto da psicologia de uma habilidade de aprendizagem infinita­
mente aquisitiva. Que sentido pode ter o conceito de dispositivo
de aprendizagem geral e para múltiplos fins?
A pedagogia explícita —aprender porque alguém ensina — é
um tipo de aprendizagem para múltiplos fins, mas muitos hão dc
concordar que é o menos importante. Poucas pessoas foram con­
vencidas por argumentos como “Ninguém nunca ensinou o fun­
cionamento da Gramática Universal para as crianças, mas assim
mesmo elas a respeitam; portanto deve ser inata”. Todos concor­
dam que a maior parte da aprendizagem se dá fora da sala dc aula,
por meio de generalizações a partir dc exemplos. Crianças genera­
lizam a partir dc modelos de conduta, ou a partir de seus próprios
comportamentos que são recompensados ou não recompensados.
A força dessa aprendizagem está na generalização por similarida­
de. Uma criança que apenas repetisse literalmente as frases do pai
podería ser chamada de autista, e não de boa aprendiz; crianças
generalizam frases similares às dos pais, não exatamente as mesmas
frases. Da mesma maneira, uma criança que observa que pastores
alemães que latem mordem deveria generalizar para um doberman
que late e outros cães semelhantes.
A similaridade é, portanto, a principal mola de um hipotético
dipositivo de aprendizagem geral e para múltiplos fins, e aí está a

538
O design da mente I

dificuldade. Nas palavras do lógico Nelson Goodman, a similari­


dade é “um farsante, um impostor, um charlatão”. O problema é
que a similaridade só existe na mente do observador —é o que es­
tamos tentando explicar —não no mundo. Goodman escreve:

Considere a bagagem no balcão de check~in de um aeroporto. O es­


pectador percebe a forma, tamanho, cor, material e até a marca da
mala; o piloto está mais preocupado com o peso, e o passageiro com
a destinação e a propriedade. Quais bagagens são mais parecidas que
outras depende não só das propriedades que têm em comum, mas
de quem compara, e quando. Ou então, suponha que temos três co­
pos, os primeiros dois cheios de líquido incolor, o terceiro de um lí­
quido vermelho bem forte. Eu tenderia a dizer que os dois primei­
ros são mais parecidos entre si do que qualquer um dos dois com o
terceiro. Mas acontece que o primeiro está cheio de água e o tercei­
ro de água colorida com uma gota de corante vegetal, ao passo que
o segundo está cheio de ácido hidroclorídrico e eu estou com sede.

A conclusão inevitável é que deve haver um senso de “similari­


dade” inato. Não há controvérsia a respeito disso; é pura lógica.
Em psicologia behaviorista, quando um pombo é recompensado
por bicar uma tecla na presença de um círculo vermelho, ele bica
mais diante de uma elipse vermelha, ou de um círculo cor-de-rosa,
do que de um quadrado azul. Essa “generalização do estímulo”
ocorre automaticamente, sem qualquer treinamento suplementar, e
acarreta uma “geografia da similaridade” inata; se não fosse assim,
o animal iria generalizar para tudo ou nada. Essas geografias subje­
tivas dos estímulos são necessárias para a aprendizagem, e, portan­
to, nem todas elas podem ser aprendidas. Verifica-se, pois, que até
o behaviorista está “alegremente cheio até o pescoço” de mecanis­
mos inatos de determinação de similaridade, como bem disse o ló­
gico W. V O. Quine (e seu colega B. F. Skinner não desmentiu).
Em termos de aquisição de linguagem, qual a geografia inata
de similaridade que permite às crianças generalizarem de frases da

539
I O instinto da linguagem I

fala dos pais para as frases “similares” que definem o resto do in­
glês? É óbvio que “Vermelho é mais semelhante a rosa que a azul”,
ou “Círculo é mais semelhante a elipse que a triângulo” não aju­
dam nada. Tem de ser algum tipo de computação mental que tor­
na John likesjish similar a Mary eats apples, mas não similar a John might
físh; caso contrário, a criança diria John might apples. Deve tornar The
dog seems sleepy semelhante a The men seem happy, mas não semelhante
a The dog seems sleeping, de modo que a criança evite essa falsa con­
clusão. Ou seja, a “similaridade” que guia a generalização da crian­
ça tem de scr uma análise que decompõe a fala em substantivos,
verbos e sintagmas, computados pela Gramática Universal inseri­
da nos mecanismos de aprendizagem. Sem essa computação inata
que define qual frase c similar a quais outras, a criança não teria
como generalizar corrctamcntc —cm certo sentido, qualquer frase
só c “similar” a uma repetição literal dela mesma, c também “si­
milar”, em outro sentido, a qualquer rearranjo randômico daque­
las palavras, c “similar”, em outro sentido ainda, a todo tipo cie
outras cadeias inapropriadas de palavras. Por isso, não constitui
paradoxo dizer que flexibilidade no comportamento adquirido exige
cocrçõcs inatas na mente. O capítulo sobre aquisição da linguagem
(ver p. 365) é um bom exemplo disso: a capacidade de as crianças
generalizarem para uma quantidade infinita de frases potenciais
depende dc elas analisarem a fala parcntal usando um conjunto
fixo dc categorias mentais.
Portanto, aprender uma gramática a partir de exemplos exige
uma geografia de similaridade especial (definida pela Gramática
Universal). O mesmo se dá com a aprendizagem de significados
de palavras a partir de exemplos, como vimos no problema gavagai
de Quine, no qual um aprendiz de palavras não possui base lógi­
ca para saber se gavagai significa “coelho”, “coelho saltitante” ou
“partes não destacáveis de coelho”. O que isso nos diz sobre a
aprendizagem de todo o resto? Eis como Quine expõe, e desmon­
ta, o que ele chama de “escândalo da indução”:

540
I O design da mente I

Isso nos leva a pensar mais sobre outras induções, em que o que se
busca é uma generalização, não sobre o comportamento verbal de
nosso vizinho, mas sobre o inóspito mundo impessoal. E sensato
pensar que nossa geografia [mental] das propriedades condiz com a
de nosso vizinho, já que somos indivíduos da mesma laia; e portanto
a confiabilidade geral da indução no que se refere à... aprendizagem
de palavras é um jogo de cartas marcadas. Por outro lado, confiar na
indução como modo de atingir as verdades da natureza é quase su­
por que nossa geografia das propriedades condiz com a do cosmo...
[Mas] por que nossa geografia subjetiva inata de propriedades se har­
moniza tanto com os agrupamentos funcionalmente correlativos da
natureza que nossas induções tendem a mostrar-se corretas? Por que
nossa geografia subjetiva de propriedades deveria ter foro especial so­
bre a natureza c uma vinculação em relação ao futuro?
Darwin nos estimula a pensar. Sc a geografia inata de proprieda­
des for um traço ligado a um gene, então a geografia que tiver feito
as induções mais eficazes tenderá a predominar por seleção natural.
Criaturas que erram inveteradamente cm suas induções têm uma
tendência patética, ainda que louvável, dc morrer antes de se repro­
duzirem.

Dc acordo; mas o cosmo c heterogêneo e, portanto, as compu­


tações de similaridade que possibilitam que nossas generalizações
se harmonizem com ele também tem de ser heterogêneas. Pro­
priedades que tornam duas asserções equivalentes quando se trata
de aprender gramática —como por exemplo estarem compostas
da mesma scqücncia de substantivos e verbos —não dcveriam tor­
ná-las equivalentes quando se trata de espantar animais, como por
exemplo terem um som de certo volume. Propriedades que tor­
nam certas plantas equivalentes quando se trata de causar ou cu­
rar uma doença —como por exemplo serem partes diferentes de
um tipo de planta —não são as propriedades que deveríam torná-
las equivalentes para a nutrição, como doçura; equivalentes para
alimentar fogo, como secura; equivalentes para isolar um abrigo,

541
I O instinto da linguagem I

como tamanho; ou equivalentes para poderem ser oferecidas como


presente, como beleza. As propriedades que deveríam classificar
pessoas como aliados em potencial, tais como demonstrar sinais
de afeto, não as classificam necessariamente como cônjuges em
potencial, como demonstrar sinais de fertilidade e não ser paren­
te consangüíneo. E preciso haver muitas geografias de similarida­
de, definidas por diferentes instintos ou módulos, que possibili­
tem a esses módulos generalizar de modo inteligente em algum
campo do conhecimento tal como o mundo físico, o mundo bio­
lógico ou o mundo social.
Já que geografias inatas de similaridade são inerentes à lógica
da aprendizagem, não c dc surpreender que, quando o homem en­
genha sistemas de aprendizagem cm inteligência artificial, sempre
os projeta, dc modo inato, para explorar as cocrçõcs em algum
campo do conhecimento. Um programa dc computador destina­
do a aprender as regras de beisebol c pre-programado com os pres­
supostos dos esportes competitivos, para que ele não interprete os
movimentos dos jogadores como uma coreografia ou um ritual
religioso. Um programa destinado a aprender o passado dos ver­
bos cm inglês c alimentado apenas com o som do verbo; um pro­
grama destinado a aprender uma entrada dc dicionário dc verbos
recebe apenas seu significado. 7ãl exigência c evidente no que os
programadores (azem, embora nem sempre no que eles dizem.
Pelo fato dc trabalharem com os pressupostos do Modelo Clássi­
co das Ciências Sociais, os cientistas de computadores muitas ve­
zes promovem seus programas dizendo que são apenas demos dc
poderosos sistemas de aprendizagem para múltiplos fins. No en­
tanto, como ninguém seria tão temerário ao ponto dc tentar si­
mular toda a mente humana, os pesquisadores podem tirar vanta­
gem dessa suposta limitação prática. Têm a liberdade de talhar à
mão seus programas demo de acordo com o tipo de problema que
ele deve resolver, e podem sentir-se deus ex machína enfunilando
apenas os dados de entrada adequados ao programa no momento

542
I O design da mente I

certo. Isso não é uma crítica; é assim que os sistemas de aprendi­


zagem têm de funcionar!

Quais são, então, os módulos da mente humana? Uma paródia


acadêmica corrente de Chomsky apresenta-o propondo módulos
inatos para andar de bicicleta, combinar gravata com camisa, des­
montar e remontar carburadores etc. Mas a ladeira que leva da
linguagem para o conserto de carburadores não é tão escorrega­
dia. Podemos evitar a derrapagem com alguns calços óbvios. Por
meio de métodos analíticos da engenharia, podemos indagar do
que, em princípio, um sistema precisaria para fazer o tipo certo de
generalização no caso do problema que está resolvendo (por exem­
plo, ao estudar como os seres humanos percebem formas, pode­
mos indagar sc um sistema que aprende a reconhecer diferentes ti­
pos de mobiliário também pode reconhecer diferentes rostos, ou
se precisa dc analisadores de formas especiais para rostos). Por
meio da antropologia biológica, podemos procurar indícios de
tentativas dc resolução do problema em questão por parte de nos­
sos ancestrais nos meios em que evoluíram —portanto, linguagem
e reconhecimento dc rostos são, no mínimo, candidatos a módu­
los inatos, mas ler e dirigir não. Por meio dos dados que nos for­
necem a psicologia e a etnografia, podemos testar a seguinte pre-
dição: quando crianças resolvem problemas para os quais têm
módulos mentais, passam a impressão de ser gênios que sabem
coisas que não lhes foram ensinadas; quando resolvem problemas
para os quais suas mentes não estão equipadas, podemos esperar
um longo e árduo caminho pela frente. Por fim, se existir de fato
um módulo para determinado problema, a neurociência deveria
descobrir que o tecido cerebral que computa o problema tem al­
gum tipo de coesividade fisiológica, como, por exemplo, consti­
tuir um circuito ou subsistema.

543
I O instinto da linguagem I

Sendo eu mesmo um pouco temerário, vou ousar adivinhar


que tipos de módulos, ou famílias de instintos, vão acabar passan­
do por esses testes, além da linguagem e da percepção (a título de
justificação, remeto a um compêndio recentemente publicado cha­
mado The Adapted Mindy.

1. Mecânica intuitiva: conhecimento dos movimentos, forças e de­


formações que objetos sofrem.
2. Biologia intuitiva: compreensão do funcionamento de plantas e
animais.
3. Número.
4. Mapas mentais para territórios extensos.
5. hscolha de habitat: procura de meios seguros, produtivos e ricos
em informação, cm geral parecidos com savanas.
6. Perigo, incluindo as emoções de medo e precaução, fobias dc es­
tímulos como altura, confinamento, encontros sociais perigosos
e animais venenosos e predadores, c um motivo para conhecer
as circunstâncias em que cada um desses é inofensivo.
7. Alimento: o que é bom para comer.
8. Contaminação, incluindo a emoção de nojo, reações a certas
coisas que parecem inerentemcnle nojentas c intuições sobre
contágio e doença.
9. Monitoramento do bem-estar presente, incluindo as emoções
de felicidade c tristeza, e humores como alegria c inquietude.
10. Psicologia intuitiva: previsão do comportamento das outras
pessoas a partir de suas crenças e desejos.
11. Uma agenda/arquivo mental: base de dados para pessoas, com
espaços cm branco para grau de parentesco, condição ou posi­
ção social, histórico dc troca de favores, além de potenciais e ha­
bilidades inerentes, acrescidos dos critérios para avaliar cada ca­
racterística.
12. Autoconccito: reunir e organizar informações sobre o valor que
se tem para as outras pessoas, e embrulhá-las para oferecer aos
outros.
13. Justiça: senso de direitos, obrigações e merecimento, incluindo
emoções de raiva e vingança.

544
I O design da mente I

14. Relações de parentesco, incluindo nepotismo e divisão de taba-


lho na criação dos filhos.
15. Acasalamento, incluindo sentimentos de atração sexual, amor e
intenções de fidelidade e abandono do cônjuge.

Para ter uma idéia de como a psicologia clássica está longe


dessa concepção, basta dar uma olhada no índice de qualquer ma­
nual da área. Os capítulos serão: Fisiologia, Aprendizagem, Memó­
ria, Atenção, Pensamento, Tomadas de Decisão, Inteligência, Motiva­
ção, Emoção, Psicologia Social, Psicologia do Desenvolvimento,
Personalidade, Psicopatologia. Com exceção da Percepção e, é
claro, da Linguagem, nenhum item do currículo de psicologia
corresponde a um pedaço coeso da mente. Talvez isso explique o
choque que os alunos de Introdução à Psicologia experimentam
quando recebem o resumo do conteúdo do curso. E como expli­
car como um carro funciona discutindo primeiro suas partes de
ferro, depois as de alumínio, depois as vermelhas etc., em vez de
estudar o sistema elétrico, a transmissão, o sistema de combustível
etc. (È interessante notar que é mais comum encontrarem-se li­
vros sobre o cérebro organizados em torno do que, a meu ver, são
os verdadeiros módulos. Mapas mentais, medo, raiva, alimenta­
ção, comportamento materno, linguagem e sexo são seções co­
muns nos livros de ncurociência.)

Para alguns leitores, a lista acima é a prova irrefutável de que


perdi a cabeça. Um módulo inato para aplicar biologia? Biologia é
uma disciplina acadêmica recentemente inventada. Os estudantes
esforçam-se muito para aprendê-la. O homem da rua e tribos pelo
mundo afora são fontes de superstição e desinformação. Tal idéia
parece ser apenas um pouco menos maluca que um instinto inato
para conserto de carburador.

545
I O instinto da linguagem I

Mas dados recentemente coletados sugerem o contrário; pode


haver uma “biologia popular” inata que dá às pessoas intuições
básicas sobre plantas e animais, diferentes das que elas têm sobre
outros objetos, como artefatos feitos pelo homem. O estudo da
biologia popular ainda é incipiente se comparado com o estudo
da linguagem, e talvez a idéia seja incorreta. (Talvez raciocinemos
sobre os seres vivos usando dois módulos, um para plantas e ou­
tro para animais. Talvez usemos um módulo maior, que abarca
outras espécies naturais como rochas e montanhas. Ou talvez use­
mos um módulo inadequado, como a psicologia popular.) Mas
até agora, os indícios são suficientemente sugestivos para poder­
mos propor a biologia popular como exemplo de um possível
módulo cognitivo separado do da linguagem, dando-nos uma
idéia do tipo de coisas que uma mente povoada dc instintos pode
conter.
Para começar, por mais que um habitante da cidade saturada
de supermercados custe a acreditar, caçadores-coletores da “idade
da pedra” são botânicos e zoólogos eruditos. Eles se caracterizam
por ter nomes para centenas de plantas selvagens c espécies ani­
mais, c farto conhecimento sobre a ecologia, comportamento c
ciclos vitais destas espécies, o que lhes permite fazer inferências su­
tis c sofisticadas. Eles observam a forma c direção das pegadas dc
um animal, se elas são recentes ou antigas, o momento do dia e do
ano, e os detalhes do terreno para prever dc que tipo de animal se
trata, para onde ele foi, sua idade, o quanto ele está faminto, can­
sado e assustado. Durante o verão eles se lembrarão de uma plan­
ta que floresceu na primavera e irão buscá-la no outono para reco­
lher seu tubérculo enterrado. Lembre que o uso de drogas medici­
nais faz parte do modo de vida do Povo Universal.
Que tipo de psicologia está por trás desse talento? Como é
que nossa geografia mental de similaridade condiz com essa parte
do cosmo? Plantas e animais são tipos especiais de objetos. Para
que uma mente raciocine de maneira inteligente sobre eles, deve­

546
I O design da mente I

ria tratá-los diferentemente de como trata rochas, ilhas, nuvens,


ferramentas, máquinas e dinheiro, entre outras coisas. Seguem-se
quatro das diferenças básicas. Primeiro, organismos (pelo menos
organismos sexuados) pertencem a populações de indivíduos que
cruzam e estão adaptados a um nicho ecológico; isso os leva a
pertencer a espécies com uma estrutura e um comportamento re­
lativamente unificados. Por exemplo, todos os tordos são mais ou
menos parecidos, mas são diferentes de pardais. Em segundo lu­
gar, espécies relacionadas entre si descendem de um ancestral co­
mum por terem se apartado de uma linhagem; isso faz com que se
insiram em classes dispostas hierarquicamente que não se sobre­
põem. Por exemplo, pardais e tordos se parecem enquanto aves,
aves e mamíferos se parecem enquanto vertebrados, vertebrados e
insetos se parecem enquanto animais. Em terceiro lugar, pelo fato
de um organismo ser um sistema complexo que se caracteriza pela
autoconscrvação, ele é governado por processos fisiológicos dinâ­
micos regidos por leis, ainda que ocultas. Por exemplo, a organiza­
ção bioquímica dc um organismo possibilita que ele cresça e se
mova, e desapareça quando ele morre. Em quarto lugar, pelo fato
dc os organismos terem genótipos e fenótipos separados, dispõem
de uma “essência” oculta que é conservada à medida que crescem,
mudam dc forma c sc reproduzem. Por exemplo, a lagarta, a crisá­
lida e a borboleta são, num sentido fundamental, o mesmo animal.
E notável que a intuição leiga das pessoas sobre os seres vivos
pareça se harmonizar com esses fatos biológicos básicos, inclusive
as intuições de crianças pequenas que não sabem ler e nunca pu­
seram um pé num laboratório de biologia.
Os antropólogos Brent Berlin e Scott Atran estudaram taxo-
nomias populares de flora e fauna. Descobriram que, por toda par­
te, as pessoas agrupam plantas e animais locais em tipos que cor­
respondem ao nível gênero no sistema de classificação de Linnaeus
utilizado pela biologia profissional (espécie-gênero-família-ordem-
classe-filo-reino). Como em muitos locais existe uma única espé­

547
I O instinto da linguagem I

cie de qualquer gênero, as categorias populares costumam corres­


ponder também à espécie. As pessoas também classificam tipos
em formas de vida de nível superior, como árvore, grama, musgo,
quadrúpede, pássaro, peixe e inseto. A maioria das categorias de
animais relacionadas com formas de vida coincide com o nível
classe dos biólogos. Tanto as classificações populares como as pro­
fissionais são estritamente hierárquicas: cada planta ou animal
pertence a um e apenas um gênero; cada gênero pertence a apenas
uma forma de vida; cada forma de vida ou é uma planta ou um
animal; plantas e animais são seres vivos, e cada objeto ou bem é
um ser vivo ou não é. Tudo isso dá aos conceitos biológicos intui­
tivos das pessoas uma estrutura lógica diferente daquela que orga­
niza seus outros conceitos, como por exemplo os artefatos manu­
faturados. Sc por um lado qualquer pessoa diz que um animal
não pode ser ao mesmo tempo peixe e ave, por outro não sc im­
porta em dizer, por exemplo, que uma cadeira de rodas pode ser
tanto um móvel quanto um veículo, ou que um piano tanto pode
ser um instrumento musical como um móvel. Isso, por sua vez,
torna o raciocínio sobre as coisas naturais diferente do raciocínio
sobre artefatos. As pessoas deduzem que se uma truta c lira tipo
dc peixe c um peixe é um tipo de animal, então uma truta é um
tipo de animal. Mas não inferem que, sc um assento de carro é um ti­
po de cadeira e uma cadeira é um tipo de móvel, então um assen­
to de carro é um tipo de móvel.
As intuições especificamente relacionadas a seres vivos surgem
cedo na vida. Lembre-se de que o bebê humano dista dc ser um
saco de reflexos, choramingando e vomitando nos braços da ama.
Bebês de três a seis meses, bem antes de poderem se locomovei'
por conta própria ou até mesmo ver bem, têm conhecimentos so­
bre objetos e seus possíveis movimentos, sobre a relação causai que
pode haver entre eles, suas propriedades, como, por exemplo, com-
pressibilidade e sobre quantidade e como ela muda com a adição
e subtração. A distinção entre seres vivos e inanimados se dá mui-

548
I O design da mente I

to cedo, talvez antes do primeiro aniversário. Inicialmente, o cor­


te adota a forma de uma diferença entre objetos inanimados que
se movem segundo as leis da física da bola de bilhar e objetos
como pessoas e animais com propulsão autônoma. Por exemplo,
num experimento realizado pela psicóloga Elizabeth Spelke, mos-
tra-se a um bebê uma bola rolando por trás de uma tela e uma se­
gunda emergindo do outro lado, vezes sem fim, até o cansaço.
Quando a tela é retirada e o bebê vê o evento oculto esperado —
uma bola batendo na outra e impulsionando-a —seu interesse é
reanimado apenas momentaneamente; supõe-se que era isso que o
bebê estava imaginando o tempo todo. Mas se, ao ser retirada a
tela, o bebê ve o evento mágico de um objeto parando de repente
na sua trajetória sem atingir a segunda bola, e a segunda bola co­
meçando a sc mover misteriosamente por conta própria, o bebê
fica olhando por muito mais tempo. Fundamentalmente, as crian­
ças esperam que bolas inanimadas e pessoas animadas se movam
segundo leis diferentes. Numa outra cena, eram pessoas e não bo­
las que desapareciam c apareciam atrás da tela. Removida esta úl­
tima, os bebes demonstravam pouca surpresa quando viam uma
pessoa se deter e outra começar a andar; ficavam mais surpresos
com uma colisão.
Quando as crianças atingem a idade de berçário e de pré-esco-
la, revelam uma compreensão sutil de que os seres vivos dividem-
se cm tipos com essências ocultas. O psicólogo Frank Keil desa­
fiou crianças com questões malucas como estas:

Os médicos pegaram um texugo [mostra a imagem de um texugo] e


rasparam uma parte de seu pêlo. Tingiram de preto tudo o que so­
brou. Depois pintaram de branco uma única listra nas suas costas.
Em seguida, por meio de cirurgia, colocaram no seu corpo um saco
com um líquido superfedorento, parecido com o do gambá2. De­

2. No original skunk, pequeno mamífero que só existe na América do Norte. (N. daT.)

549
I O instinto da linguagem I

pois de terminarem, o animal parecia este [mostra a imagem de um


gambá]. Depois da operação, o animal era um gambá ou um texugo?

Os médicos pegaram um bule de café parecido com este [mostra ima­


gem de bule de café]. Cortaram fora a asa, taparam o orifício superior,
tiraram o puxador dc cima, fecharam o bico e o cortaram fora. Também
cortaram a base c prenderam ali uma diapa de metal. Prenderam nele
um pauzinho, recortaram uma janelinha e encheram o recipiente de me­
tal com comida dc passarinho. Depois de terminar, parecia isto [mostra
imagem dc um local para passarinho se alimentar]. Depois da opera­
ção, isso era um bule de café ou um local para passarinho sc alimentar?

Os médicos pegaram este brinquedo [mostra a imagem de um pas­


sarinho dc corda ]. Vocc dá corda nele com uma chave, a boca dele
abre e uma maquininha que tem dentro dele toca música. Os médi­
cos fizeram uma operação nele. Puseram penas de verdade para ele
ficar bonito c molinho c deram-lhe um bico melhor. Depois tiraram
a chave dc dar corda e puseram uma máquina nova para que pudes­
se bater as asas, voar e piar [mostra a imagem de um passarinho].
Depois da operação, era um passarinho de verdade ou de mentira?

No caso de artefatos como um bule de café que vira um ali-


mentador de passarinhos (ou um baralho de cartas que vira papel
higiênico), as crianças aceitaram imediatamente as mudanças: um
alimentador dc passarinho é qualquer coisa que sirva para os pas­
sarinhos sc alimentarem, portanto aquela coisa era um alimenta­
dor de passarinho. Mas, no caso de coisas naturais como um texu­
go que vira um gambá (ou uma toranja que vira uma laranja), opu­
seram mais resistência; havia alguma texuguice restante na roupa­
gem do gambá, e elas tinham mais dificuldade para dizer que a
nova criatura era um gambá. E no caso da violação de fronteiras
entre artefatos e objetos naturais, como um brinquedo virar um
pássaro (ou um porco-espinho virar escova de cabelo), foram ta­
xativas: um pássaro é um pássaro e um brinquedo é um brinque­

550
I O design da mente I

do. Keil também mostrou que crianças se sentem incomodadas


com a idéia de um cavalo com órgãos de vaca, pais de vaca e bebês
de vaca, mesmo se não vêem problema numa chave feita de moe­
das derretidas e que depois é novamente derretida para voltar a
fazer moedas.
E é claro que adultos de outras culturas têm o mesmo tipo de
intuições. Perguntaram a analfabetos nigerianos habitantes da zona
rural o seguinte:

Uns estudantes pegaram uma papaia [mostra imagem de uma pa­


paia] e espetaram umas folhas verdes e pontudas no topo dela. De­
pois colocaram uns adesivos espinhosos. Agora parece isto [mostra
imagem de um abacaxi] —é uma papaia ou um abacaxi?

Uma resposta típica era: “É uma papaia, porque a papaia tem


uma estrutura própria que vem do céu e um abacaxi sua própria
origem. Não dá para um se transformar no outro.”
Crianças pequenas também sentem que tipos de animais fa­
zem parte dc categorias maiores, e suas generalizações seguem a
similaridade definida por inclusão em categoria, e não por mera
aparência. Susan Gelman e Ellen Markman mostraram a crianças
dc três anos a imagem de um flamingo, a imagem de um morcego e
a imagem de um melro, que se parece bem mais com o morcego
que com o flamingo. Disseram às crianças que um flamingo ali­
menta os filhotes com comida mastigada por ele mas um morce­
go alimenta os filhotes com leite, e perguntaram a elas com o que
o melro alimenta seus filhotes. Sem outra informação além dessa,
as crianças se guiaram pelas aparências e disseram leite. M as bas­
tou dizer que flamingos e melros são aves para que as crianças os
reunissem e dissessem comida pré-mastigada.
E, se você ainda duvida de que temos instintos de botânica,
considere uma das inclinações mais estranhas dos seres humanos:
olhar para flores. Há tuna enorme indústria especializada na criação

551
I O instinto da linguagem I

e cultivo de flores para que as pessoas as usem para decorar resi­


dências e parques. Algumas pesquisas mostram que levar flores
para pacientes hospitalizados é mais que um gesto afetuoso; pode,
na verdade, chegar a melhorar o humor do paciente e a velocidade
de sua recuperação. Como é raro as pessoas comerem flores, esse
dispêndio de esforços e recursos parece inexplicavelmente frívolo.
Mas, se tivermos evoluído como botânicos intuitivos, faz algum
sentido. Uma flor é uma microficha de informação botânica.
Quando as plantas não estão floridas, confundem-se num mar
verde. Muitas vezes, a flor é a única maneira de identificar uma es­
pécie de planta, até mesmo para um taxonomista profissional. As
flores também indicam estações do ano, terrenos especialmente
fecundos c a exata localização de futuros frutos e sementes. Eis
um motivo para prestar atenção às flores c para estar onde elas es­
tão, que certamente deve ter sido útil cm ambientes onde não ha­
via bufês de salada o ano inteiro.
A biologia intuitiva é, decerto, muito diferente daquilo que
professores de biologia fazem em seus laboratórios. M as talvez a
biologia profissional tenha como base a biologia intuitiva. Com
certeza a taxonomía popular foi a prcdcccssora da taxonomia de
Linnacus, c ainda boje os taxonomistas profissionais raramente
contradizem as tribos indígenas quando classificam as espécies lo­
cais. A convicção intuitiva dc que seres vivos têm uma essência
oculta e são governados por processos ocultos foi evidentemente
o que estimulou os primeiros biólogos profissionais a tentar com­
preender a natureza das plantas e dos animais, levando-os para o
laboratório e colocando pedacinhos deles sob um microscópio.
Todo aquele que anunciasse estar tentando compreender a natu­
reza das cadeiras levando-as para um laboratório e colocando pe­
dacinhos delas sob um microscópio decerto seria considerado
louco e não recebería um centavo. Na verdade, é provável que to­
das as ciências e matemáticas sejam guiadas por intuições oriundas
de módulos inatos como número, mecânica, mapas mentais e até

552
I O design da mente I

lei. Analogias físicas (o calor é um fluido, elétrons são partículas),


metáforas visuais (função linear, matriz retangular) e terminolo­
gia social e legal (atração, obedecer a leis) são usadas em ciência. E
se você me permitir introduzir mais uma observação, que na ver­
dade merece um livro só para ela, eu diria que a maioria das outras
práticas “culturais” humanas (esportes competitivos, literatura nar­
rativa, desenho urbanístico, balé), mesmo que pareçam resultados
arbitrários de uma loteria borgiana, são tecnologias inteligentes
que inventamos para exercitar e estimular módulos mentais origi­
nalmente destinados para funções adaptativas específicas.

❖ ❖ ❖

Portanto, o instinto da linguagem sugere antes uma mente com­


posta de módulos computacionais adaptados do que a tábula rasa,
a plaquinha de cera ou computador para múltiplos usos do Modelo
Clássico das Ciências Sociais. Mas o que essa concepção diz sobre
a secular ideologia da igualdade de oportunidades que o modelo
nos forneceu? Se abandonarmos o MCCS, seremos forçados a acei­
tar doutrinas repulsivas como o “determinismo biológico”?
Vou partir do que, espero, sejam questões óbvias. Primeiro, o
cérebro humano funciona do jeito que funciona. Querer que ele
funcione dc uma certa maneira como forma de justificar algum
princípio ético é solapar tanto a ciência como a ética (pois o que
acontecerá com o princípio se os fatos científicos demonstrarem
que as coisas funcionam de outra maneira?). Em segundo lugar,
não é possível conceber nenhuma descoberta em psicologia que
possa estar relacionada com a verdade auto-evidente de que, em
termos éticos e políticos, todas as pessoas nascem iguais, que têm
certos direitos inalienáveis e que entre estes estão a vida, a liberda­
de e a busca da felicidade. Por fim, o empirismo radical não é ne­
cessariamente uma doutrina progressista e humanitária. O sonho
de qualquer ditador é uma tábula rasa. Alguns manuais de psico­

553
I O instinto da linguagem I

logia mencionam o “fato” de que as mães espartanas e de samu-


rais sorriam ao escutar que seus filhos tinham morrido em bata­
lha. Como a história é escrita por generais e não por mães, pode­
mos desconsiderar essa incrível afirmação, o que não nos impede
de entender os propósitos a que serve.
Esclarecidas essas questões, gostaria de destacar algumas im­
plicações da teoria dos instintos cognitivos no que se refere à he­
reditariedade e ao gcnero humano, pois são o contrário do que
muitas pessoas esperam. Ё uma vergonha que as duas afirmações
seguintes sejam tão freqüentemente confundidas:

Diferenças entre pessoas são inatas.


Traços comuns a todas as pessoas são inatos.

As duas afirmações não poderíam ser mais diferentes. Tome­


mos o número de pernas. A razão pela qual algumas pessoas tem
menos pernas que outras é 100% devida ao meio. A razão para
todas as pessoas sem lesões terem exatamente duas pernas (e não
oito, ou seis, ou nenhuma) é 100% devida à hereditariedade. Mas
c muito comum encontrar afirmações sobre uma natureza huma­
na universal inata justapostas a afirmações dc que diferenças entre
indivíduos, sexos ou raças são inatas. Ё fácil entender por que elas
são reunidas equivocadamcntc: sc nada na mente for inato, então
diferenças entre a mente das pessoas não podem ser inatas; por­
tanto, seria bom que a mente não tivesse estrutura porque então
defensores decentes do igualitarismo não teriam com que sc preo­
cupar. Mas a lógica inversa é falsa. Todos poderíam nascer com
mentes idênticas, fortemente estruturadas, e todas as diferenças
entre as pessoas poderíam ser pequenas parcelas de conhecimen­
tos adquiridos e ínfimas perturbações que se acumularam ao lon­
go da história de experiências de vida das pessoas. Portanto, até
mesmo aqueles que, erroneamente a meu ver, gostam de amalga­
mar ciência e ética, não precisam se assustar com as pesquisas da
estrutura mental inata, seja qual for a verdade que venha à tona.

554
I O design da mente I

Um dos motivos pelos quais traços comuns inatos e diferenças


inatas são tão fáceis de confundir é que os geneticistas do com­
portamento (cientistas que estudam déficits herdados, gêmeos idên­
ticos e fraternos, filhos adotados e filhos biológicos etc.) usurpa­
ram a palavra “hereditário” empregando-a como termo técnico
relacionado com a proporção de variação em algum traço que apre­
senta correlação com diferenças genéticas dentro de uma espécie.
Este sentido é diferente daquele do termo corrente “herdado” (ou
genético), que se refere a traços cuja estrutura ou organização ine­
rente decorre de informações presentes em genes. Algo pode ser
geralmente herdado mas ter zero de hereditabilidade, como nú­
mero de pernas ao nascer ou a estrutura básica da mente. Em con­
trapartida, algo pode não ser herdado mas ter 100% de heredita­
bilidade. Imagine uma sociedade em que todas as pessoas ruivas e
apenas elas fossem ordenadas padres. O sacerdócio seria extrema­
mente “hereditário”, embora, é claro, não fosse herdado em ne­
nhum sentido biológico. Por essa razão, as pessoas tendem a ficar
confusas diante de declarações como “A inteligência é 70% here­
ditária”, sobretudo quando as revistas as publicam (como sempre
fazem, infelizmente) junto com pesquisas em ciência cognitiva so­
bre o funcionamento básico da mente.
Todas as afirmações sobre um instinto da linguagem e outros
módulos mentais são afirmações sobre os traços comuns a todas
as pessoas normais. Não têm praticamente nada a ver com possí­
veis diferenças genéticas entre pessoas. Por um lado, porque, para
um cientista interessado no funcionamento de complexos siste­
mas biológicos, diferenças entre indivíduos são chatíssimasl Imagi­
ne como seria enfadonha a ciência da linguagem se, ao invés de
tentar imaginar como as pessoas reúnem palavras para exprimir
seus pensamentos, os pesquisadores tivessem se posto a desenvol­
ver uma tabela de Quociente de Linguagem (Q L), e se dedicado a
avaliar as capacidades lingüísticas relativas de milhares de pessoas.
Seria o mesmo que indagar como os pulmões funcionam e receber

555
I O instinto da linguagem I

como resposta que algumas pessoas têm pulmões melhores que ou­
tras, ou indagar como CDs reproduzem o som e receber uma lis­
ta dos mais vendidos no lugar de uma explicação sobre amostra­
gem digital e lasers.
Mas enfatizar traços comuns não é apenas uma questão de pre­
ferência científica. É quase certo que o design de qualquer sistema
biológico adaptativo —a explicação de como ele funciona —é uni­
forme para todos os indivíduos de uma espécie que se reproduz
sexualmentc, porque a recombinação sexual inevitavelmente torna
ilegíveis as marcas dc designs qualitativamente diferentes. Existe,
decerto, uma grande diversidade genética entre indivíduos; cada
pessoa é bioquimicamentc única. Mas a seleção natural é um pro­
cesso que sc alimenta dessa variação, e (afora as variedades funcio-
nalmcnte equivalentes dc moléculas) quando a seleção natural cria
designs adaptativos, o faz esgotando a variação: os genes variantes
que especificam órgãos menos bem projetados desaparecem quan­
do seus donos morrem de fome, são devorados ou morrem soltei­
ros. Na medida em que os módulos mentais são produtos com­
plexos da seleção natural, a variação genética está limitada a varia­
ções quantitativas, não a diferenças no design básico. Diferenças
genéticas entre pessoas, pouco importa quão fascinantes elas se­
jam para nós no tocante ao amor, biografia, quadro de funcioná­
rios, fofoca e política, são de pouco interesse quando avaliamos o
que, afinal de contas, torna as mentes inteligentes.
De modo similar, o interesse pelo design da mente lança uma
nova luz sobre possíveis diferenças inatas entre sexos (como psi-
colingüista recuso-me a chamá-los “gêneros”) e raças. Com exce­
ção do gene determinante da masculinidade no cromossomo Y,
todo gene funcional do corpo de um homem também se encontra
no de uma mulher e vice-versa. O gene da masculinidade é um co-
mutador do desenvolvimento que pode ativar algumas seqüências
de genes e desativar outras, mas o mesmo padrão encontra-se nos
dois tipos de corpos, e o padrão básico [default] é a identidade de

556
I O design da mente I

design. Existem alguns indícios de que os sexos partem desse pa­


drão no caso da psicologia da reprodução e dos problemas adap-
tivos direta e indiretamente relacionados com ela, o que não é de
surpreender; é improvável que periféricos tão diferentes como
os sistemas reprodutivos^masculino e feminino venham com o
mesmo software. Mas, em essência, os sexos enfrentam demandas
semelhantes em relação ao resto da cognição, inclusive a lingua­
gem, e muito me surpreendería se houvesse diferenças de design
entre eles.
Raça e etnicidade são as menores diferenças existentes. Os ge-
neticistas humanos Walter Bodmer e Luca Cavalli-Sforza identifica­
ram um paradoxo no que tange à raça. Para os leigos, lamentavel­
mente a raça se destaca, mas para biólogos ela é praticamente invi­
sível. Oitenta e cinco por cento da variação genética entre os homens
consistem em diferenças entre duas pessoas dentro do mesmo gru­
po étnico, tribo ou nação. Outros 8% aparecem entre grupos étni­
cos, e apenas 7% entre “raças”. Em outras palavras, a diferença ge­
nética entre, digamos, dois suecos escolhidos ao acaso é quase doze
vezes maior que a diferença genética entre a média dos suecos e a
média dos apaches ou warlpiris. Bodmer e Cavalli-Sforza sugerem
que a ilusão é resultante de uma infeliz coincidência. M uitas das
diferenças sistemáticas entre raças são adaptações ao clima: a me-
lanina protege a pele contra o sol tropical, dobras nas pálpebras
isolam os olhos do frio seco c da neve. Mas a pele, a parte do cor­
po vista pelo clima, é também a parte do corpo vista por outras
pessoas. Em termos quase literais, a diferença entre raças é super­
ficial como a pele; no entanto, na medida em que os observadores
generalizam das diferenças externas para as internas, a natureza os
enganou fazendo com que pensassem que a raça é importante. A
visão de raio X do geneticista molecular revela a unidade de nos­
sa espécie.
O mesmo faz a visão de raio X do cientista cognitivo. “Não
falar a mesma língua” é sinônimo de incomensurabilidade, mas

557
I O instinto da linguagem I

para um psicolingüista, é uma diferença superficial. Conhecendo


a ubiqüidade da linguagem complexa em indivíduos e culturas e o
design mental único que subjaz a todas as línguas, nenhum idio­
ma me parece estranho, mesmo quando não entendo uma palavra
sequer. A troça dos habitantes das terras altas da Nova Guiné no
filme de seu primeiro contato com o resto do mundo, os gestos de
um intérprete de língua de sinais, a tagarelice de garotinhas num
parque de diversões de Tóquio —através dos ritmos me imagino
vendo as estruturas subjacentes, e sinto que temos todos a mesma
mente.
\

558
N otas

As notas estão numeradas de acordo com a página a que se referem.

I . Um instinto para adquirir uma arte

5. Polvos apaixonados: adaptado de Wallace, 1980. Manchas de cereja: revista


P a r a i e , 5 de abril de 1992, p. 16. A l l M y C h i l d r e n : adaptado de S o a p O p e r a

D i g e s t , 30 dc março dc 1993.

7. Cemitério dc cavalos: Lambert &The Diagram Group, 1987. Extinção da


animais gigantescos: Martin & Klein, 1984.
8. Ciência cognitiva: Gardner, 1985; Posner, 1989; Osherson & Lasnik,
1990; Osherson, Kosslyn & Hoflerbach, 1990; Osherson & Smith, 1990.
12. Instinto para adquirir uma arte: Darwin, 1874, pp. I0I-2.
12. Os m o t i v o s de atos instintivos: James, 1892/1920, p. 394.
14. Chomsky: Chomsky, 1959,1965, 1975, 1980a, 1988,1991; Kasher, 1991.
15. Chomsky, sobre órgãos mentais: Chomsky, 1975, pp. 9-11.
16. Lista dos dez mais: extraída dc A r t s a n d H u m a n i t i e s C í t a t i o n I n d e x ; Kim Van-
diver, Diretor do Corpo Docente, MfL citado dc Noam Chomsky's Killian
Eaculty Achievcment Award, MIT, março de 1992.
16. Modelo Clássico das Ciências Sociais: Brown, 1991; Tooby & Cosmides,
1992; Dcgler, 1991. Chomsky provocativo: Harman, 1974; Searle, 1971;
Piatelli-Palmarini, 1980; comentadores em Chomsky, 1980b; Modgil &
Modgil, 1987; Bocha, 1989; Harris, 1993. Putnam sobre Chomsky: Pia­
telli-Palmarini, 1980, p. 287.

2. Tagarelas

20. Primeiro contato: Connolly & Anderson, 1987.


21 Linguagem é universal: Murdoch, 1975; Brown, 1991.

559
I O instinto da linguagem I

21. Inexistência de línguas primitivas: Sapir, 1921; Voegelin & Voegelin, 1977.
Platão e guardadores de porcos: Sapir, 1921, p. 219.
2 1 -2 . Sintaxe banto: Bresnan & Moshi, 1988; Bresnan, 1990. Pronomes che-
rokec: Holmes & Smith, 1 9 7 7 .
24-5 Lógica do inglês não-padrão: Labov, 1969.
27. Putnam sobre estratégias gerais de aprendizagem para múltiplos fins: Pia-
telli-Palmarini, 1980; Putnam, 1971; ver também Bates, Thal Sd March-
man, 1991.
30. Crioulos: Holm, 1988; Bickerton, 1981, 1984.
33- 4. Língua dc sinais: Klima & Bcflugi, 1979; Wilbur, 1979.
34- 5. Lcnguajc de Signos Nicaragüensc e Idioma dc Signos Nicaragüense:
Kcgl & Lopez, 1990; Kcgl & Iwata, 1989.
36. Aquisição da ASL por crianças: Pctitto, 1988. Aquisição dc língua (gestual
e filiada) por adultos: Ncwport, 1990.
36-7. Simon: Singleton & Ncwport, 1993. Línguas dc sinais como crioulos:
Woodward, 1978; Fischcr, 1978. Impossibilidade de aprender sistemas ar­
tificiais dc sinais: Supalla, 1986.
40. Dona Mac: Hcath, 1983, p. 84.
40. Dependência da estrutura: Chomsky, 1975.
42. Crianças, Chomsky e ]abba: Crain & Nakayama, 1986.
43-4. Auxiliares universais: Steele et a l, 1981. Universais da língua: Grecnbcrg,
1963; Comric, 1981; Shopen, 1985. Falantes fluentes dc trás para a fren­
te: Cowan, Bntine & Lcavirt, 1985.
45. Desenvolvimento da língua: Brown, 1973; Pinkcr, 1989; Ingram, 1989.
45- 6. Sara domina concordância: Brown, 1973. Lixempios extraídos dc busca
cm arquivos dc computador da transcrição da fala dc Sara do Child
Languagc Data Exchange System; MacWhinney, 1991.
46- 7. Erros criativos dc crianças (b e’s, gois, doi): Marcus, Pinker, Ullman,
Hollander, Rosen & Xu, 1992.
47- 8. Afásicos curados: Gardner, 1974, p. 402. Afásicos permanentes:
Gardner, 1974, pp. 60-1.
50. Mutantes linguísticos: Gopnik, 1990a, b; Gopnik & Crago, 1991; Gopnik,
1993.
53. Tagarelices: Cromer, 1991.
55. Mais tagarelices: Curtiss, 1989.
55. Síndrome de Williams: Bellugi et a l, 1991, 1992.

560
I Notas I

3. Mentalês

59-60. Novilíngua: Orwell, 1949, pp. 246-7,255.


61. Linguagem e direitos dos animais: Singer, 1992. Semântica geral: Korzybs-
ki, 1933; Hayakawa, 1964; Murphy, 1992.
61-2. Sapir: Sapir, 1921. Whorf: Carroll, 1956.
64. Sapir: Sapir, 1921. Escola de Boas: Degler, 1991; Brown, 1991. Whorf:
Carroll, 1956.
66. Primeiros críticos de Whorf: Lenneberg, 1953; Brown, 1958.
67. Die Schrecken der Deutschen Sprache: citado em Brown, 1958, p. 232; ver
também Espy, 1989, p. 100.
68. Léxicos de cor: Crystal, 1987, p. 106.
68. Visão das cores: Hubel, 1988.
69. Universais de cores: Bcrlin & Kay, 1969. Povo da Nova Guiné aprender o
vermelho: Heider, 1972.
69-70. Hopi sem tempo: Carroll, 1956, p. 57. Também pp. 55, 64, 140, 146,
153, 216-7.
70. Hora da oração dos hopi: Malotki, 1983, p. I.
70. Tempo hopi: Brown, 1991; Malotki, 1983.
70. A Grande Farsa do Vocabulário Esquimó: Martin, 1986; Pullum, 1991.
71. Pullum sobre esquimós: Pullum, 1991, pp. 162, 165-6. “Perversidade po-
lissintética” é uma piada de lingüista relativa à classificação das línguas es­
quimós como “polissintéticas”; comparar com a “perversidade polimorfa”
de Frcud.
72. Whorf no laboratório: Cromer, 1991b; Kay ô£ Kempton, 1984.
74. Subjuntivos e o pensamento chinês: Bloom, 1981, 1984; Au, 1983, 1984;
Liu, I985;Takano, 1989.
75. Um homem sem palavras: Schaller, 1991.
77. Pensamento de bebês: Spclke et ai, 1992. Aritmética de bebês: Wynn, 1992.
78. Pensamento animal: Gallistel, 1992. Amigos c parentes dc macacos: Che-
ney & Scyfarth, 1992.
79. Pensadores visuais: Shepard, 1978; Shepard & Cooper, 1982. Einstein:
Kosslyn, 1983.
80-1. Olho mental: Shepard & Cooper, 1982; Kosslyn, 1983; Pinker, 1985.
88. Teoria representacional da mente: i n Haugeland, 1981, artigos de Hauge-
land, Newell & Simon, Pylyshyn, Dennett, Marr, Searle, Putnam e Fodor;
i n Pinker e Mehler, 1988, artigos de Fodòr & Pylyshyn e Pinker & Prince;

Jackendoff, 1987.
89. Português versus mentalês: Fodor, 1975; McDermott, 1981.

561
I O instinto da linguagem I

89-90. Manchetes: Columbia Journalism Review, 1980.


92. Exemplo de mentalês em arte: Jackendoff, 1987; Pinker, 1989.

4. Como a língua funciona

96. Relação arbitrária som-significado: Saussure, 191 6 /1959.


96. Uso infinito de meios finitos: Humboldt, 1836/1972.
97. Sistemas combinatórios discretos: Chomsky, 1991; Abler, 1989; Studdert-
Kenncdy, 1990.
98. Hereditariedade discreta e evolução: Dawkins, 1986.
99. Erase dc 110 palavras de Shaw: exemplo extraído de Jacques Bar/.un; cita­
do cm Bolinger, 1980.
99-100. Exemplo dc Eaulkner (com modificações): Espy, 1989.
101. Frases comentam sua própria agramaticalidadc: David Moser, citado cm
Hofstadtcr, 1985.
102. N onsense do séc. dezenove: Hofstadtcr, 1985.
102. Esôfago adormecido: Twain, “Doublc-Barrclcd Dctcctivc Stoty”. Exem­
plo extraído de Ledcrer, 1990.
102. Pobbles: Edward Lear, “The Pobble Who Has No Toes”. Jaguadarte:
Carroll, 1871/1980. Incolores idéias verdes: Chomsky, 1957.
104. Reportagem automatizada: Frayn, 1965. Exemplo extraído de Miller,
1967.
106. Geradores de jargão: Brandreth, 1980; Bolinger, 1980; revista Spy, janeiro
dc 1993.
109. Estimativas dc inglês: Miller & Sclfridgc, 1950.
108-9. Mecanismos dc estados finitos c seus problemas: Chomsky, 1957;
Miller & Chomsky, 1963; Miller, 1967. Exemplo dc I V C u i d e extraído
de Gleitman, 1981.
119. Cozinheiro com fundo redondo: Columbia journalism Review, 1980;
Ledcrer, 1987.
I2I-2. Chomsky impenetrável: Chomsky, 1986, p. 79. Livros sobre teoria gra­
matical moderna: Friedin, 1992; Radford, 1988; Riemsdijk & Williams,
1986.
128. Relações sexuais entre dois carros estacionados: Columbia Journalism
Review, 1980.
130. Sintaxe X-barra: Jackendoff, 1977; Kornai & Pullum, 1990.
131. Correlações entre ordens de palavras: Greenberg, 1963; Dryer, 1992.
133-4. Exigências de verbos: Grimshaw, 1990; Pinker, 1989.
143. Blinkenlights: Raymond, 1991.

562
I Notas I

143. Estrutura profunda: Chomsky, 1965, 1988. Chomsky sobre estrutura-D


dispensável: Chomsky, 1991. Chomsky continua acreditando que existem
várias estruturas sintagmáticas subjacentes a uma frase; ele apenas quer
acabar com a idéia de que há uma especial chamada estrutura-D, mera
moldura definida para toda frase e na qual os verbos são encaixados. A
substituição sugerida é que cada verbo venha com seu pedaço de estrutura
sintagmática pré-instalado; monta-se a frase juntando os vários pedaços.

5. Palavras, palavras, palavras

151. Grammatical Man: Campbell, 1982. Chomsky em R olling Slone: n“ 631,


28 de maio dc 1992, p. 42.TheWhore of Mensa: Allen, 1983.
153. Verbos banto: Bresnan & Moshi, 1988; Wald, 1990.
155. Part-Vulcans e outras formas novas: Sproat, 1992.
156. Maquinaria de construção de palavras: Aronoff, 1976; Chomsky & Halle,
1968/1991; Di Sciullo &Williams, 1987; Kiparsky, 1982; Selkirk, 1982;
Sproat, 1992; Williams, 1981. O exemplo a nti-antim ísstl é de Yehoshua
Bar-Hillel.
158. Regras de flexão como moscas-de-fruta linguísticas: Pinker & Prince,
1988, 1992; Pinker, 1991.
159. Pessoas versus redes neurais artificiais: Prasada & Pinker, 1993; Sproat,
1992; McClelland & Rumelhart, 1986.
160. Homem vendido como peixe de aquário: Columbia Journalism Review,
1980.
162. Núcleos de palavras: Williams, 1981; Selkirk, 1982.
166. Hackcrtudc: Raymond, 1991.
167. Verbos irregulares: Chomsky & Halle, I968/I99I; Kiparsky, 1982; Pin-
kcr & Princc, 1988, 1992; Pinker, 1991; Mencken, 1936. Versos burles­
cos irregulares: autor desconhecido, extraído de Espy, 1975.
170. Dizzy Dean: Staten, 1992; Espy, 1975.
17 1. Irregularidade e espíritos jovens: Yourcenar, 1961; citado por Michael
Maratsos.
172. Fly out: Kiparsky, 1982; Kim, Pinker, Prince & Prasada, 1991; Kim,
Marcus, Pinker, Hollander & Coppola, no prelo; Pinker & Prince, 1992;
Marcus, Clahsen, Brinkmann, Wiese, Woest e Pinker, 1993.
173. Walkmans e Walkmen: N ewsweek, 7 de agosto de 1989, p. 68.
178. Míce-eaters\ Kiparsky, 1982; Gordon, 1986.
181-2. Produtos morfológicos, átomos sintáticos e listemas: Di Sciullo e
Williams, 1987.

563
I O instinto da linguagem I

182. Vocabulário de Sbakespeare: Bryson, 1990; Kucera, 1992. Shakespeare


usava cerca de 30.000 formas vocabulares diferentes, mas muitas delas eram
variantes flexionadas de uma única palavra, como angel e angels ou laugh e
laughed. Aplicando-se as estatísticas do inglês contemporâneo, obtém-se
uma estimativa de cerca de 18.000 tipos de palavras, o que deve ser arre­
dondado para baixo para algo em torno de 15.000 porque Shakespeare
usava mais flexões que nós; por exemplo, ele usava tanto ~eth como -s.
182- 3. Contando palavras: Miller, 1977, 1991; Carcy, 1978; Lorge & Chall,
1963.
183- 4. Tamanho típico dc vocabulário; Miller, 1991.
186. Palavra como símbolo arbitrai•io: Saussure, 1916/1959; Hurford, 1989.
186-7. “You” c “me” em ASL: Petitto, 1988.
187. “Gavagail”: Quine, 1960.
188. Categorias: Rosch, 1978; Andcrson, 1990.
191. Bebês c objetos: Spclkc et a i, 1992; Baillargeon, no prelo.
192. Crianças aprendendo palavras: Markman, 1989.
193. Crianças, palavras c classes: Markman, 1989; Kcil, 1989; Clark, 1993;
Pinker, 1989, 1994. Pilando | Sibbing]: Brown, 1957; Glcitman, 1990.

6. Os sons do silêncio

196. bala cm onda scnoidal: Rcmez et a l, 1981.


197. Percepção “duplex” dc componentes da fala: Libcrman & Maltingly, 1989.
197. Licito McGurk: McGurk & MacDonald, 1976.
197. Segmentação da (ala: Cole & Jakimik, 1980.
197-8. Orônimos: Brandrclh, 1980.
199. P ullet surpriscs: Ledcrer, 1987; Brandrcth, 1980; BBS L1NGUIST, 1992.
199. Foncmas espalhados; Libcrman el a l, 1967.
199. Velocidade da percepção da fala: Miller, 1967; Libcrman et a l, 1967;
Cole & Jakimik, 1980.
201. DragonDictate: Bamberg & Mandei, 1991.
201. Aparelho fonador: Crystal, 1987; Lieberman, 1984; Dencs & Pinson,
1973; Miller, 1991; Green, 1976; Halle, 1990.
207. Simbolismo fonético: Brown, 1958.
207-8. P id d le-ja d ile J lim -J la m Cooper & Ross, 1975; Pinker & Birdsong, 1979.
211. Razzle-dazzle, rub~a~dub~dub: Cooper & Ross, 1975; Pinker & Birdsong,
1979.
213-4. Gestos vocais e traços distintivos: Halle, 1983, 1990.
213-4, Sons vocais no mundo: Halle, 1990; Crystal, 1987.

564
I N otas I

214-5. Falar em outras línguas: Thomason, 1984; Samarin, 1972.


215. “Giacche Enne Binnestaucche”: Espy, 1975.
217-8. Sílabas e pés: Kaye, 1989; Jackendoff, 1987.
219. Regras fonológicas: Kenstowicz & Kisseberth, 1979; Kaye, 1989; Halle,
1990; Chomsky & Halle, 1968/1991.
223. Fonologia em fileiras: Kaye, 1989.
224. Shaw: Prefácio a Pygmalion. Slurvian: Lederer, 1987.
224. Pronúncia americana: Cassidy, 1985. Professores com sotaque: Boston
Globe, 10 de julho de 1992.
225. Falantes versus ouvintes: Bolinger, 1980; Libcrman & Mattingly, 1989;
Pinker & Bloorn, 1990.
226-7. Quine sobre redundância: Quine, 1987.
228. Movimento gracioso: Jordan & Rosenbaum, 1989.
228-9. Por que o reconhecimento da fala é difícil: Libcrman et a l, 1967;
Mattingly & Studdcrt-Kennedy, 1991; Licberman, 1984; Bamberg &
Mandei, 1991; Cole & Jakimik, 1980.
230. Nonsense cm meio a ruídos: Miller, 1967. Efeito de restauração fonêmica:
Warrcn, 1970.
231-2. Problemas na percepção de cima para baixo: Fodor, 1983.
233. Mondcgreens: BBS LINGU1ST, 1992.
234. Sistema HEARSAY: Lcsser et a l, 1975.
234-5. DragonDictate: Bamberg & Mandei, 1991.
236. Poema da grafia: citado cm C. Chomsky, 1970.
236. Shaw: cm Crystal, 1987, p. 216.
237. Linguagem escrita versus falada: Libcrman et a l, 1967; Miller, 1991.
237-8. Sistemas dc escrita: Crystal, 1987; Miller, 1991; Logan, 1986.
238. Duas tragédias na vida: em M an and Superm an.
238. Racionalidade da ortografia inglesa: Chomsky & Halle, 1968/1991; C.
Chomsky, 1970.
240. Twain sobre estrangeiros: cm The hmocents A broai.

7. Cabeças falantes

241. Inteligência artificial: Winston, 1992; Wallieh, 1991; The E conomíst, 1992.
243. Teste deTuring para verificar se as máquinas pensam: Turing, 1950.
244. ELIZA: Weizenbaum, 1976.
245. Prêmio Loebner: Shíeber, no prelo.
245-6. Compreensão rápida: Garrett, 1990; Marslen-Wilson, 1975.
246. Estilo: Williams, 1990.

565
I O instinto da linguagem I

248-91. Parsing: Smith, 1991; Ford, Bresnan & Kaplan, 1982; Wanner &
Maratsos, 1978; Yngve, 1960; Kaplan, 1972; Berwick et a l, 1991;
Wanner, 1988; Joshi, 1991; Gibson, no prelo.
253. Sete mágico: Miller, 1956.
253. Frases soltas: Yngve, 1960; Bever, 1970; Williams, 1990.
254. Carga gramatical e de memória: Bever, 1970; Kuno, 1974; Hawkins, 1988.
255. Encaixes à direita, à esquerda e no centro: Yngve, 1960; Miller & Choms­
ky, 1963; Miller, 1967; Kuno, 1974; Chomsky, 1965.
258. Quantidade de regras que crianças têm de aprender: Pinker, 1984.
264. Lastro lexicográfico primeiro pela largura: Swinney, 1979; Seidenberg el
a l , 1982.
266. Assassino condenado à morte duas vezes: Columbia Journalism Review,
1980; Ledcrer, 1987.
267-71. Sentenças com efeito labirinto: Bever, 1970; Ford, Bresnan & Kaplan,
1982; Wanner, 1988; Gibson, no prelo.
268. Várias árvores na memória: MacDonald, Just e Carpenter, 1992; Gibson,
no prelo.
270. Caráter' modular da mente: Fodor, 1983. Debate sobre caráter modular:
Fodor, 1985; Garfield, 1987; Marslcn-Wilson, 1989.
27 í. Bom senso e compreensão de frases: Trueswefl, Tanenhaus e Garnscy, no
prelo.
271. Verbos ajudam na análise, prós e contras: Trueswefl, Tanenhaus & Kcllo,
no prelo; 1’ord et a l, 1982; Frazier, 1989; Ferreira St Hendcrson, 1990.
272. Parsers cm computadores: Joshi, 1991.
273. Fechamento tardio c mínimo de associações, prós c contras: Frazier &
Fodor, 1978; Ford et a l, 1982; Wanner, 1988; Garfield, 1987.
274-6. Linguagem de juizes: Solan, 1993. Linguagem c direito: Tiersma, 1993.
276-7. Prcenchedores e vazios: Wanner & Maratsos, 1978; Bever 8t McElrec,
1988; MacDonald, 1989; Nicol & Swinney, 1989; Garnscy, Tanenhaus
& Chapman, 1989; Kluender & Kutas, 1993; J. D. Fodor, 1989.
278-9. Diminuição de distância entre preenchedor e vazio: Bever, 1970;
Yngve, 1960; Williams, 1990. Restrições à deslocação de sintagmas para
ajudar no parsing: Berwick & Weinberg, 1984.
280-2. Transcrições de Watergate: Comissão de inquérito, Senado dos EUA,
1974; Equipe do New York Times, 1974.
284. M asson v. The New Yorker M agazine: Time, I? de julho de 1991, p. 68; Newsweek,
I? de julho de 1991, p. 67.
285. Discurso, pragmática e inferência: Grice, 1975; Levinson, 1983; Sperber
& Wilson, 1986; Leech, 1983; Clark & Clark, 1977.

566
I N otas

287. “Scripts” e estereótipos: Schanck & Riesbeck, 1981. Programação de sen­


so comum: Freedman, 1990; Wallich, 1991; Lenat & Guha, 1990.
288. Lógica da conversação: Grice, 1975; Sperber & Wilson, 1986.
289. Carta de recomendação: Grice, 1975; Norman & Rumelhart, 1975.
290. Boa educação: Brown & Levinson, 1987.
291. Metáfora do encanamento: Lakoff & Johnson, 1980.

8. A Torre de Babel

293-4. Variação sem limites: Joos, 1957, p. 96. Língua terráquea única:
Chomsky, 1991.
294. Diferenças entre línguas: Crystal, 1987; Comrie, 1990; Departamento de
Lingüística, Universidade do Estado de Ohio.
296-8. Universais linguísticos: Greenberg, 1963; Greenberg, Ferguson & Moravscik,
1978; Comrie, 1981; Hawkins, 1988; Shopen, 1.985; Kccnan, 1976; Bybee,
1985.
298. História versus tipologia: Kiparsky, 1976; Wang, 1976; Aronoff, 1987.
298. SOV, SVO e encaixe no centro: Kuno, 1974.
300. Significado interlingüístico de “sujeito”: Keenan, 1976; Pinker, 1984,
1987.
301. Comunicação humana versus comunicação animal: Hockett, 1960.
305. Evolução desfavorece mudança em prol da mudança: Williams, 1966.
305- 6. Babel acelera evolução: Dyson, 1979; Babel proporciona esposas:
Crystal, 1987, p. 42.
306- 7. Línguas c espécies: Darwin, 1874, p. 106.
308. Evolução do caráter inato e aprendizagem: Williams, 1966; Lewontin,
1966; Hinton & Nowlan, 1987.
309. Por que há aprendizagem da língua: Pinker & Bloorn, 1990.
310. Inovação lingüística como doença contagiosa: Cavalli-Sforza & Feldman,
1981.
310-1. Reanálisc e mudanças na língua: Aitchison, 1991; Samuels, 1972;
Kiparsky, 1976; Pyles & Algeo, 1982; Departamento de Lingüística,
Universidade do Estado de Ohio, 1991.
314. Inglês americano: Cassidy, 1985; Bryson, 1990.
315-7. História da língua inglesa: Jespersen, 1938/1982; Pyles & Algeo,
1982; Aitchison, 1991; Samuels, 1972; Bryson, 1990; Departamento de
Lingüística, Universidade do Estado de Ohio, 1991.
317. Apprehending adolescents e catebing ktds: Williams, 1991.
319-20. A Grande Mudança das Vogais como dialeto de surfista: Burling, 1992.

567
I O instinto da linguagem I

320-2. Germânico e indo-europeu: Pyles & Algeo, 1982; Renfrew, 1987;


Crystal, 1987.
322. Primeiros agricultores europeus: Renfrew, 1987; Ammerman & Cavalli-
Sforza, 1984; Sokal, Oden &Wilson, 1991; Roberts, 1992.
323-4. Famílias de línguas: Comrie, 1990; Crystal, 1987; Ruhlen, 1987;
Katzner, 1977.
325. Língua das Américas: Greenberg, 1987; Cavalli-Sforza et a l, 1988; Dia­
mond, 1990.
325. Aglomcradores de línguas: Wright, 1991; Ross, 1991; Shevoroshkin &
Markey, 1986.
327-8. Correlações entre genes e famílias dc línguas: Cavalli-Sforza et a l, 1988;
Cavalli-Sforza, 1991. Bva africana: Stringer & Andrews, 1988; Stringer,
1990; Gibbons, 1993.
329. Genes c línguas na Luropa: Harding & Sokal, 1988. Ausência de corr ela­
ção entre famílias dc línguas e grupos genéticos: Guy, 1992.
330. Protomundo: Shevoroshkin, 1990; Wright, 1991; Ross, 1991.
331-2. Extinção dc línguas: Hale et al, 1992.
332. Outra perspectiva sobre extinção dc línguas: Ladcfogcd, 1992.

9. Bebê nasce falando —Descreve céu

334-5. Percepção da fala embebes: Eimas et a l, 1971; Werker, 1991.


336. Aprender francês no útero: Mchler et a l, 1988.
336. Bebês aprendem fonemas: Kuhl et a l, 1992.
337- 8. Balbucio: Locke, 1992; Pctitto & Marcntcttc, 1991.
338. Robôs que balbuciam: Jordan & Rosenbaum, 1989.
338- 9. Primeiras palavras: Clark, 1993; Ingram, 1989.
339- 40. Encontrar fronteiras entre palavras: Pcters, 1983. Os exemplos dc
crianças são de Pcters, relatos familiares, revista Life c da bibliotecária do
Ml I, Pal Claffey. O exemplo H ill Street B ines é dc Mark Aronoff.
341. Primeiras combinações de palavras: Braine, 1976; Brown, 1973; Pinker,
1984; Ingram, 1989.
341. Compreensão de bebês: Hirsh-Pasek & Golinkoff, 1991.
342. Gargalo da fala em crianças: Brown, 1973, p. 205.
342- 3. A linguagem deslancha: Ingram, 1989, p. 235; Brown, 1973; Lirnber,
1973; Pinker, 1984; Bickerton, 1992.
343- 4. Adam e Eve: Brown, 1973; MacWhinney, 1991.
345. Crianças evitam erros tentadores: Stromswold, 1990.
347. Aquisição de linguagem no mundo: Slobin, 1985, 1992.

568
I Notas I

348. A U ígatorgoei herplunk Marcus, Pinker, Ullman, Hollander, Rosen & Xu, 1992.
350. D on ’tg ig g le m c Bowerman, 1982; Pinker, 1989.
352-3. Crianças selvagens: Tartter, 1986; Curtiss, 1989; Rymer, 1993.
354. Thurber & White: extraído de “Is Sex Necessary?”. Exemplo de Donald
Symons.
354. Linguagem da televisão: Ervin-Tripp, 1973. Compreender mamanhês a
partir de palavras de conteúdo: Slobin, 1977. Crianças lêem pensamen­
tos: Pinker, 1979, 1984.
354-5. Mamanhês: Newport et a l, 1977; Fernald, 1992.
356. Criança muda: Stromswold, 1994.
356-7, Feedback parental inexistente: Brown & Hanlon, 1970; Braine, 1971;
Morgan &Travis, 1989; Marcus, 1993.
359. Aprender a língua sem feedback: Pinker, 1979, 1984, 1989; Wexler &
Culicover, 1980; Osherson, Stob & Weinstein, 1985; Berwick, 1985;
Marcus et a l, 1992.
360-1. Aquisição da linguagem vista de perto: Pinker, 1979, 1984; Wexler &
Culicover, 1980.
367. Períodos de gestação dos humanos e de outros primatas: Corballis, 1991.
368. Crescimento do cérebro e desenvolvimento da linguagem: Bates, Thal &
Janowsky, 1992; Locke, 1992; Huttenlocher, 1990.
368- 9. Linguagem infantil na evolução: Williams, 1966.
369. Desenvolvimento lingüístico e desenvolvimento motor: Lenneberg, 1967.
369- 70. Aprendizagem de língua estrangeira: Hakuta, 1986; Grosjean, 1982;
Bley-Vroman, 1990; Birdsong, 1989.
370. Idades críticas para aquisição de segunda língua: Lieberman, 1984; Bley-
Vroman, 1990; Newport, 1990; Long, 1990.
370- 1. Períodos críticos para aquisição da língua materna. Deficientes auditi­
vos: Newport, 1990. Genie: Curtiss, 1989; Rymer, 1992. Isabelle: Tartter,
1986. Chelsea: Curtiss, 1989.
372-3. Recuperação após lesão cerebral: Curtiss, 1989; Lenneberg, 1967.
374. Biologia do ciclo vital: Williams, 1966.
376. Evolução do período crítico: Hurford, 1991.
376-7. Senescência: Williams, 1957; Medawar, 1957.

10. Órgãos da linguagem e genes da gramática

379-80. Reportagem da Associated Press: 11 de fevereiro de 1992. Kilpatrick:


Universal Press Syndicate, 28 de fevereiro de 1992. Bombeck: 5 de mar­
ço de 1992.

569
I O instinto da linguagem I

382. Broca: Caplan, 1987. Linguagem à esquerda: Caplan, 1987, 1992; Cor-
ballis, 1991; Geschwind, 1979; Geschwind & Galaburda, 1987; Gazza-
niga, 1983.
382. Linguagem no hemisfério esquerdo e os Salmos: exemplo de Michael
Corballis.
383-4. Linguagem afeta eletrodos colocados no crânio: Neville et a l, 1991;
Kluender & Kutas, 1993.
384. Linguagem ativa cérebro: Wallesch et al, 1985; Peterson et al, 1988, 1990;
Mazoyer et al, 1992; Zatorre et a l, 1992; Poeppel, 1993.
384. Estímulos e respostas parecidos e não parecidos com linguagem, do lado
esquerdo: Gardner, 1974; Etcoff, 1986. Língua de sinais do lado esquer­
do, gestos à direita: Poizner, Klima & Bellugi, 1990; Corina, Vaid Sd
Bellugi, 1992.
385-6. Simetria bilateral: Corballis, 1991. Simetria é sexy: Cronin, 1992.
387-8. Cordados torcidos: Kinsbourne, 1978. Anatomia do caracol: Buchsbaum,
1948.
390. Animais assimétricos: Corballis, 1991.
390. Cérebros assimétricos: Corballis, 1991; Kosslyn, 1987; Gazzaniga, 1978,
1989.
390. Canhotos: Corballis, 1991; Coren, 1992. Análise sintática dc parentes dc
canhotos: Bever et al, 1989.
392. Região do córtex adjacente ao sulco lateral como órgão da linguagem:
Caplan, 1987; Gazzaniga, 1989.
392-3. Afasia de Peter Hogan: Goodglass, 1973.
394. Afasia de Broca: Caplan, 1987, 1992; Gardner, 1974; Zurifj 1989.
394. LR P e PI П detectam linguagem na parte anterior esquerda da região que
circunda o sulco lateral: Kluender & Kutas, 1993; Neville et a l, 1991;
Mazoyer et a l, 1992; Wallesch et a l, 1985; Stromswold, Caplan & Alpcrt,
1993.
395. Anatomia da afasia dc Broca: Caplan, 1987; Dronkers et a l, 1992. Par-
kinson e linguagem: Lieberman et a l, 1992. Afásicos de Broca detectam
agramaticalidade: Linebarger, Schwartz & Saffran, 1983; Cornell, From-
kin & Mauner, 1993.
396-7. Afásico deWernicke: Gardner, 1974.
397. Afasia de Wernicke e afasias relacionadas: Gardner, 1974; Geschwind,
1979; Caplan, 1987, 1992.
398. Anomia: Gardner, 1974; Caplan, 1987. O homem sem substantivos: Bay-
nes & Iven, 1991.
399. Palavras e EEG: Neville et a l, 1991. Palavras e PET: Peterson et a l, 1990;
Poeppel, 1993.

570
I Notas I

400-1. Afasias diferentes em pessoas diferentes: Caplan, 1987, 1992; Miceli et


a l , 1989. Perda de morfologia derivacional e manutenção de morfologia
flexionai: Miceli & Caramazza, 1988.
401. Banananomia: Warrington & McCarthy, 1987; Hillis & Caramazza,
1991; Hart, Berndt & Caramazza, 1985; Farah, 1990.
401. Anomalias e variação na localização da linguagem: Caplan, 1987; Basso et
a l, 1985; Bates, Thal & Janowsky, 1992.
402. Áreas visuais: Hubel, 1988. Neurociência: Gazzaniga, 1992; ver também
o número especial da Scientific A merican sobre “Mente e Cérebro”, setembro
de 1992.
402. Estimulação de pontos de linguagem circunscritos mas variáveis: Ojemann
&Whitaker, 1978; Ojemann, 1991.
403. Palavras como eixos: Damasio e Damasio, 1992.
403-4. Mudança de localização da linguagem em cérebro de bebês: Curtiss,
1989; Caplan, 1987; Bates, Thal & Janowsky, 1992; Basso et a l, 1985.
405. RM funcional: Belliveau et a l, 1991; MEG: Gallen, 1994.
406. Computação em redes neurais: McCulloch & Pitts, 1943; Rumelhart &
McClelland, 1986.
407. Computação da linguagem em redes neurais: McClelland & Rumelhart,
1986; Pinker & Prince, 1988; Pinker & Mehlcr, 1988.
409. Desenvolvimento ncural: Rakic, 1988; Shatz, 1992; Dodd & Jessell,
1988; Von der Malsburg & Singer, 1988.
412. Porco transgênico: Brian Duffy, North America Syndicate.
412. Genética da gagueira e da dislexia: Ludlow & Cooper, 1983. Genética dos
SLIs: Gopnik & Crago, 1991; Gopnik, 1993; Stromswold, 1994. Erros
de pronúncia em gêmeos: Locke & Mather, 1989. Gramática em gêmeos:
Mather & Black, 1984; Munsinger & Douglas, 1976; Fahey, Kamitomo
& Cornell, 1978; Bishop, North & Donlan, 1993. Desenvolvimento da
linguagem em bebês adotados: Hardy-Brown, Plomin & DeFries, 1981.
412. Três gerações de SLI: Gopnik, 1990a, 1990b, 1993; Gopnik & Crago,
1991.
416-7. Natureza humana universal c singularidade individual: Tooby & Cos-
mides, 1990a.
418-9. Separados ao nascer: Holden, 1987; Lykken et a l, 1992.
419. Genética do comportamento: Bouchard et a l , 1990; Lykken et a l, 1992;
Plomin, 1990.
421-2. Fala de Bush: editores de The N ew Republic, 1992. Fala de Quayle: Golds-
man, 1992.

571
I O instinto da linguagem I

422. Gênios lingüísticos: Yogi Berra, extraído de Safire, 1991; Lederer, 1987.
Dr. Seuss (Theodore Geisel), de O n B eyond Zebra, 1955. Nabokov, de
Lolita, 1958, King, da marcha sobre Washington, 1963. Shakespeare, de
H am let, ato 2, cena 2.

11. O Big Bang

425-7. Elefantes: Williams, 1989; Carrington, 1958.


427. Explicação darwiniana do instinto da linguagem: Pinker & Bloorn, 1990;
Pinker, no prelo; Hurford., 1989, 1991; Newmeycr, 1991; Brandon &
Hornstein, 1986; Corballis, 1991.
427-8. Comunicação animal: Wilson, 1972; Gould e Marler, 1987.
428. Comunicação não-lingüística c cérebro: Deacon, 1988, 1989; Caplan,
1987; Mycrs, 1976; Robinson, 1976.
429. Gua c Viki: Tartter, 1986.
430. Sarah: Prcmack & Premack, 1972; Prcmack, 1985. Kanzi: Savagc-Rum-
baugh, 1991; Grccnfield & Savage-Riimbaugh, 1991. Washoc: Gardner &
Gardner, 1969, 1974. Koko: Pattcrson, 1978. Ver Wallman, 1992, para
apanhado geral.
430-1. Sujeitos legais no reino animal: Sagan & Druyan, 1992. Citado de uma
passagem publicada na revista Parade, 20 de setembro de 1992.
432. Nim: Icrracc, I979;Tcrracc el a i, 1979. Desmascaramento da linuuatjcmfc>

dos macacos: Tcrracc et a l, 1979; Scidenborg & Petitto, 1979; Pctitto &
Seidenberg, 1979; Scidcnberg, 1986; Scidcnbcrg & Petitto, 1987; Pe­
titto, 1988; ver Wallman, 1992, para apanhado geral. Ameaçado de pro­
cesso judicial: Wallman, 1992, p. 5.
432-3. Deficiente auditivo observa chimpanzés: Neisscr, 1983, pp. 214-6.
434. O mau comportamento dos organismos: Brcland & Breland, 1961.
439. Bates sobre Big Bang: Bates, Thal & Mai chman, 1991, pp. 30, 35.
440. Cadeias, escadas e touceiras na evolução: Mayr, 1982; Dawkins, 1986;
Gould, 1985.
445. Bípede sem penas: exemplo extraído de Wallman, 1992.
448. Impossibilidade lógica do fígado: Lieberman, 1990, p. 741-2.
448-9. Novos módulos na evolução: Mayr, 1982.
449. Área de Broca em macacos: Deacon, 1988, 1989; Galaburda & Pandya,
1982.
450-1. DNA de chimpanzés e de humanos: King &Wilson, 1975; Miyamoto,
Shghtom & Goodman, 1987.

572
ь

I Notas I

452. B v w -w o w , díng-dong, teoria gestual e outras teorias sobre linguagem de transi­


ção: Harnad, Steklis & Lancaster, 1976.
453. Datação da origem da linguagem: Pinker, 1992, no prelo; Bickerton, 1990.
Evolução dos humanos modernos: Stringer & Andrews, 1988; Stringer,
1990; Gibbons, 1993.
455. Descida da laringe e fala dos Neanderthal: Lieberman, 1984. Fãs dos
Neanderthal: Gibbons, 1992. Manobra de Heimlich: Parade, 28 de junho
de 1992.
456-7. Chomsky denigre seleção natural: Chomsky, 1972, pp. 97-8; Chomsky,
1988, p. 167.
457. Lógica da seleção natural: Darwin, 1859/1964; Williams, 1966, 1992;
Mayr, 1983; Dawkins, I986;Tooby & Cosmides, 1990b; Maynard Smith,
1984, 1986; Dennett, 1983.
461. J u s t s o storíes: Gould & Lewontin, 1979; Piatelli-Palmarini, 1989. Não é
bem assim: Dawkins, 1986; Mayr, 1983; Maynard Smith, 1988;Tooby
& Cosmides, 1990a, b; Pinker & Bloom, 1990; Dennett, 1983.
466. Linguagem natural e seleção natural: Pinker & Bloom, 1990.
466. Chomsky sobre a física do cérebro: in Piatelli-Palmarini, 1980.
467. Linguagem em anões: Lenneberg, 1967. Linguagem cm hidrocéfalos nor­
mais: Lewin, 1980. Cérebros normais e processamento analítico em SLI:
Gopnik, 1990b.
468. A madona atiradora: Calvin, 1991.
469. Dcsmistificar a evolução da linguagem: Pinker & Bloom, 1990.
470. Bates sobre três quartos dc uma regra: Bates, Thal & Marchman, 1991,
P-.3L
471. Bickerton sobre protolíngua c Big Bang: Bickerton, 1990; Pinker, 1992.
471. Prcmack sobre caçadores dc mastodontes: Prcmack, 1985, pp. 281-2.
472. Vantagens da linguagem complexa: Burling, 1986. Corrida armamentícia
cognitiva: Cosmides & Tooby, 1992. Fofoca: Barkow, 1992. Alguns tre­
chos deste capítulo baseiam-se em Pinker & Bloom, 1990.
475-6. Descendência versus modificação: Tooby & Cosmides, 1989.

12. Os craques da língua

481. Sobre craques da língua: Bolinger, 1980; Bryson, 1990; Lakoff, 1990.
481-4. História da gramática prescritiva: Bryson, 1990; Crystal, 1987; Lakoff,
1990; McCrum, Cran & MacNeil, 1986; Nunberg, 1992.
485. Write, w rote; bite, bote: Lederer, 1990, p. 117.
487-8. E veryone and theír, BBS LINGUIST, 9 de outubro de 1991.

573
I O instinto da linguagem I

490. Um quinto dos verbos ingleses eram substantivos: Prasada & Pinker,
1993.
491. Flying out e Sally Ride: Kim, Pinker, Prince & Prasada, 1991; Kim, Marcus,
Pinker, Hoilander & Coppola, no prelo.
492. Bernstein sobre broadcasled: Bernstein, 1977, p. 81.
495. Observadores de palavras: Quine, I987;Thomas, 1990.
495. O Boston Globe sobre get your goat: 23 de dezembro de 1992.
496. Takíng it on the lam: Allen, 1983.
497. Gramática ruim conduz à violência: Bolinger, 1980, pp. 4-6.
497. Gramático virulcnto: Simon, 1980, pp. 97, 165-6.
499. Inglês maluco: Ledcrer, 1990, pp. 15-21.
500. Slurvian: Ledcrer, 1987, pp. 114-7.
501. Disparates: Ledcrer, 1987; Brunvand, 1989.
502. Lendas urbanas c xeroxlorc: Brunvand, 1989.
502-3. Sábios da língua: Bernstein, 1977; Safire, 1991.
504. Iranscriçõcs de linguagem infantil: MacWhinncy, 1991.
505 . fen n ifer e m im / h n tre v o cê c m : Lmonds, 1986.
508. Im v-lifes, cul-lhm ats, ne’er-d o-w ells c outros compostos de má reputação: Quirk
et a i, 1985.
5П . Barzun sobre categorias sintáticas: citado em Bolinger, 1980, p. 169.
512. Adjetivos derivados de particípios: Bresnan, 1982.

13. O design da mente

523. Linguagem como janela para a natureza humana: Rymer, 1993.


524. Compreensão de frases, rclativismo c lanchas de fibra dc vidro: Fodor,
1985, p. 5.
525. Modelo Clássico d a s Ciências Sociais: Tooby & Cosmides, 1992; Dcglcr,
1991; Brown, 1991.
525. “Determinismo biológico”: Gould, 1981; Lewontin, Rose & Kamin,
1984; Kitcher, 1985; Chorover, 1979; ver Dcgler, 1991.
526. Educando ambos os sexos: Mead, 1935. Treinando uma dezena de crian­
ças: Watson, 1925.
530. Psicologia evolutiva: Darwin, 1872, 1874; James, 1892/1920; Marr,
1982; Symons, 1979, 1992; Sperber, 1985, no prelo; Tooby & Cos­
mides, 1990a, b, 1992; Jackendoff, 1987, 1992; Gazzaniga, 1992; Keil,
1989; Gallistel, 1990; Cosmides & Tooby, 1987; Shepard, 1987; Rozin
& Schull, 1988. Ver também Konner, 1982 e as contribuições a Barkow,
Cosmides &Tooby, 1992, e Hirschfeld & Gelman, no prelo.

574
I N otas I

532. Mercadores do espantoso: Geertz, 1984.


534. Mead em Samoa: Freeman, 1983.
534. Antropólogos nadando em meio à metacultura: Brown, 1991; Sperber,
1982; Tooby & Cosmides, 1992, p. 92.
534. Povo Universal: Brown, 1991.
539. Restrições em relação à similaridade: Goodman, 1972, p. 445.
539. Geografia inata de similaridade: Quine, 1969.
542. Sistemas artificiais de aprendizagem: Pinker, 1979, 1989; Pinker & Prin­
ce, 1988; Prasada & Pinker, 1993.
543. Módulos mentais: Chomsky, 1975, 1980b, 1988; Marr, 1982; Tooby &
Cosmides, 1992; Jackendoff, 1992; Sperber, no prelo. Para outra concep­
ção, ver Fodor, 1983, 1985.
546. Erudição biológica dos caçadores-coletores: Konner, 1982; Kaplan, 1992.
547. Taxonomias biológicas populares: Berlin, Brccdlove & Raven, 1973; Atran,
1987, 1990.
549. O bebê cerebral: Spelkc et aL, 1992; Wynn, 1992; 1'lavell, Miller & Miller,
1993.
549. Texugos viram gambás: Keil, 1989.
551. Papaias e abacaxis entre os lorubás: Jcyifous, 1986.
551. Flamingos, melros c morcegos: Gelman & Markman, 1987.
551-2. Poder das flores: Kaplan, 1992; ver também Orians & Heerwagen,
1992.
552. Ciência popular transforma-se em ciência: Carey, 1985; Keil, 1989; Atran,
1990. Analogia e metáfora em matemática física: Gentner & Jeziorski,
1989; Lakoff, 1987. Estimulação dc nossos módulos mentais: Tooby &
Cosmides, 1990b; Barkow, 1992.
554-5. inato versus hereditário: Tooby & Cosmides, 1990a, 1992.
556. Natureza humana universal e indivíduos singulares: Tooby & Cosmides,
1990a, 1992.
556-7. Diferenças entre sexos na psicologia do sexo: Symons, 1979, 1980,
1992; Daly & Wilson, 1988; Wilson & Daly, 1992.
557. Raça como ilusão: Bodmer & Cavalli-Sforza, 1970; Gould, 1977; Lewon-
tin, Rose & Kamin, 1984; Lewontin, 1982; Tooby & Cosmides, 1990a.

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