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síntese
Jaime Tadeu Oliva1
275 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 56, p. 275-278, jun. 2013
Interessante, ainda como preâmbulo, notar que o contexto dos
estudos e das publicações sobre o mundo urbano brasileiro não se bene-
ficia das obras de síntese que em algum momento precisam ser escritas,
para que se organize e se estabeleça parâmetros nas análises e nas
interpretações. Raríssimas são as tentativas de síntese mesmo junto aos
especialistas das áreas que num momento ou outro se deparam com o
objeto urbano. Por isso, é de se louvar a síntese iniciada por Risério. E
ela realmente é produtiva na função de organizadora das discussões e
análises relevantes na área. O Brasil é um país urbano, mesmo onde
olhos mais convencionais não enxergam esse conteúdo e modo de vida.
Sua urbanização é vasta, diversa e de grandes dimensões. Grande parte
das questões sociais e nacionais está mediada (ou condicionada) pelas
características das cidades e dos espaços urbanos derivados. A centra-
lidade da questão urbana parece indubitável, porém, à sua importância
não correspondem estudos e publicações condizentes. A pobreza dos
estudos urbanos é chocante. Essa é mais uma razão para recepcionar
com entusiasmo o esforço de Risério.
O autor anuncia desde as primeiras páginas a sua pretensão de
produzir uma história ensaística da cidade no Brasil (com fortes traços do
antropólogo que ele é). E já no início, para justificar os precedentes remotos
da cultura urbana do Brasil, que ele vai buscar no “tripé formador” do país
(o indígena – diverso certamente –, o africano – complexo certamente – e
o português), Risério se obriga a uma contenda não muito clara com um
presumido conceito ocidental-europeu de cidade, que marcado cultural-
mente, etnocêntrico, não apreende nem contempla o que teria sido uma
cultura urbana do indígena amazônico e mesmo dos grupos africanos trafi-
cados como escravos para o Brasil, pois tal conceito exige que a cidade
tenha um espaço construído durável. Isso não é totalmente justo tendo em
vista certos avanços teóricos no campo dos estudos urbanos, que são culti-
vados por autores geógrafos europeus (ver Le Tournant geographique de
Jacques Lévy e L’Homme spacial de Michel Lussault, por exemplo), cujo
conceito de cidade tem abrangência extracultural e universalidade admi-
tindo, a princípio, com muita boa vontade a possibilidade de um mundo
urbano indígena, mesmo que efêmero no tempo e volátil no espaço tal
como Risério assinala sobre o urbanismo iorubano: “que considerava a
cidade mais como um modo de vida de uma comunidade vivente do que
um espaço materialmente construído” (p. 42).
Ocorre que no livro a questão conceitual da cidade é enfrentada de
soslaio, na medida da necessidade da argumentação do autor, porém os
argumentos se sustentam apenas parcialmente, na medida de algumas
circunstâncias. Quer dizer: não prevalece, com clareza, uma definição
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de cidade que, além de orientar a questão da procedência ou não da
existência de um mundo urbano amazônico pré-colonização, oriente o
conjunto da narrativa e outras celeumas que o autor vai incorporando ao
longo da narrativa. É justo notar que são apresentados bons “inícios de
conversa” sobre o que seria o mundo urbano, sobre o que seria a cidade.
No entanto, a impressão é que ele não se esmerou nessa direção, porque
não seria preciso. Afinal, quem não sabe o que é cidade, ou o que é o
mundo urbano: trata-se de um truísmo.
Sobre o que seria uma cidade, pode-se atualizar a célebre passagem
de Santo Agostinho sobre o tempo (algo como: “ah, o tempo, claro que sei
o que é, mas não me pergunte, porque aí já não sei mais”). Então, não me
pergunte o que é cidade ou sobre seus derivados: o urbano, o modo de
vida urbano.
Talvez a questão conceitual relativamente pendente sobre a cidade
termine por interferir também na aposta do potencial explicativo da
história da formação das cidades brasileiras que o autor parece fazer.
Não é por outro motivo que ele descreve a urbanização da África pré-
colonização, notando que essa inicia-se alguns séculos antes da Era
Cristã. O leitor pode, nesse caso, supor que haveria alguma relação de
continuidade com o posterior mundo urbano brasileiro. Eis como o autor
trata a questão da formação cultural com a presumida repercussão sobre
as cidades brasileiras: “Vamos nos deter, brevemente, em dois povos que
foram fundamentais para a formação, a invenção e a consolidação da
sociedade e da cultura brasileiras: os bantos e os iorubanos” (p. 39).
A erudita e notável reconstituição histórica da experiência
urbana dos povos formadores da cultura brasileira, examinada separa-
damente tem grande valor, mas ao se avaliar o peso que esta história
teria na constituição do mundo urbano brasileiro, pode-se duvidar que
as permanências tenham sido relevantes. Também pudera: os espaços
citadinos têm na sua substância a função relacional, afinal os humanos
não se aglomeram em espaços que visam a distância zero, para evitar
o contato. E o contato levado à sua condição exponencial faz da cidade
uma “máquina relacional” que tende a destruir o passado e construir
novas realidades: São Paulo da virada do século XIX para o XX é uma
cidade estrangeira em relação à atual. Por outro lado, seria injusto dizer
que o autor nega esse último raciocínio, o que faz com que a queixa no
“excesso explicativo da história” tenha que ser relativizada. Um exemplo
é a maneira de Risério relatar e intervir na ainda hipervalorizada e já
superada discussão sobre a influência do caráter português do coloni-
zador (o semeador que não planejava) nas cidades brasileiras e sobre
a racionalidade espanhola (o ladrilhador que planejava) nas cidades
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hispânicas da América Latina: “A diferença entre a cidade lusa e a cidade
hispânica, no Novo Mundo, não está no plano. Mas, no que aconteceu
com o plano, em sua implantação objetiva no continente americano” (p.
64). E ainda nessa direção o autor vai se posicionar claramente ao lado
desse papel transformador da cidade ao enfrentar uma velha contenda
que opõe o campo e a cidade: “por que a chama criativa queima na cidade
e não no campo?” (p. 174) Assim, ele enuncia os termos dessa discussão
oferecendo repertório interessante e consistente para o entendimento do
que está se conflitando nas posições pró-campo e pró-cidade.
Outro aspecto que gostaríamos de ressaltar e que ainda se rela-
ciona com certa oscilação conceitual sobre a cidade se refere a uma
ausência de crítica direta (no grosso essa crítica pode ser depreen-
dida em alguns momentos, mas ela é instável) à associação da ideia de
ordem urbana aos planos e de desordem à ausência de planos explí-
citos. Planos urbanos geométricos supõem apenas uma modalidade de
ordem e se somarmos a essa ordem geométrica outros elementos como a
setorização e hierarquização dos planos de extração corbusiana (e Brasília
não escapa substancialmente desse modelo) aí mesmo é que veremos o
quanto essa ordem é marcada culturalmente, é específica, isso para não
dizer “uma visão de classe social”. É bom lembrar a célebre crítica de
Jane Jacobs quando assinala que o contrário do planejamento não é a
desordem, e investe contra as cidades radiosas de Corbusier, dizendo que
essas, sim, criam um tipo de desordem que afeta o citadino que reivindica
uma cidade com urbanidade. Em suma, a palavra ordem, pelo que discri-
mina, termina sempre sendo uma desorganizadora do discurso, pelo alto
teor de concentração ideológica que ela carrega e daí a superestimação
dos planos e do planejamento quando o tema é a avaliação crítica das
cidades. Ora, planos e planejamento podem atuar contra a urbanidade das
cidades, podem desintegrá-las e criar espaços cujo horizonte seja a segre-
gação social, o afastamento e não o contato. E Risério sabe bem disso, e não
deixa de enfrentar questões do gênero nos capítulos finais do seu trabalho,
onde queríamos dar um destaque especial ao tema da segregação, drama
contemporâneo e cada vez mais acirrado que infelicita nossas cidades,
que se beneficia bastante do talento e sensibilidade do autor, e padece um
pouquinho com a suposição de que há um conceitual sobre cidade que
seja estável e de conhecimento de todos. De todo modo, o alvissareiro, pela
qualidade do que já está concretizado nesse livro, é que o autor pensa em
permanecer no tema para nos oferecer outros textos, que agora poderão
tratar mais do presente das cidades brasileiras que, repetindo, clamam por
estudos e interpretações (mesmo que diversos e contrapostos), mas desse
quilate do livro de Risério.
278 Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 56, p. 275-278, jun. 2013