Crise na Europa: a periferia mediterrânea do ponto de vista latino-americano
Segundo a Alemanha e a troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia),
a austeridade continua o principal remédio para a crise da dívida que assola certos países da Europa. Entretanto, a convicção em torno desse diagnóstico vem diminuindo no continente durante os últimos meses. Vários líderes de países afetados, tais como Itália e Irlanda, se manifestaram recentemente contra o rigor das medidas. O FMI já reconhece que a austeridade teve impacto recessivo mais forte que o esperado. Na discussão acadêmica, a cifra de 90% do PIB, proposta por Rogoff and Reinhart como o limite da dívida que desestimularia o crescimento econômico, foi questionada por erros de manipulação dos dados no excel. A moderação da confiança na austeridade foi acompanhada por novas hipóteses sobre fatores estruturais por trás da crise, principalmente sobre desequilíbrios no balanço de pagamentos. Do ponto de vista latino-americano, é impressionante ainda a retomada, em meio a esse debate, de um termo que parecia relativamente fora de moda, apesar de muito caro à teoria social e econômica da América Latina: a “periferia” (o termo já é até mesmo usado em títulos de estudos do FMI). A soma desses dois elementos, desequilíbrios na balança de pagamentos e periferia, nos é tão familiar que vale a pena especular brevemente sobre o que uma antiga visão de inspiração cepalina poderia dizer sobre o estado atual da Europa. Não haveria momento mais propício para esse raciocínio que durante uma relativa “crise” da austeridade. Primeiro retomemos, porém, alguns aspectos básicos da atualidade europeia. A Europa enfrenta uma crise multidimensional: a recessão econômica se mistura com a crise da dívida de seus Estados periféricos e com a crise de legitimidade de suas instituições supranacionais. A recessão econômica atinge o continente desde o colapso financeiro subprime nos EUA. Depois de uma tímida recuperação ao longo de 2010 e 2011, as taxas de crescimento voltaram a cair. Em 2012, somente a Alemanha e a Áustria, dentre os países da zona do euro, escaparam da contração econômica. A maior expressão dessa recessão são as catastróficas estatísticas do mercado de trabalho. Nos primeiros meses de 2013, o desemprego chegou a 10% na França e na Itália, a aproximadamente 15% em Portugal e na Irlanda, a 22% na Grécia e a 24% na Espanha. A crise de legitimidade, por sua vez, se expressa por um sentimento geral de desconfiança com relação à União Europeia. As pesquisas de opinião do eurobarometro indicam que, de um pico de 57% no outono europeu de 2007, apenas 33% dos respondentes afirmou que tende a confiar na UE no outono de 2012. A mesma pesquisa aponta ainda que, quando comparadas as respostas de 2010 e de 2012 sobre que características descrevem melhor a EU, os europeus a veem como menos democrática e mais tecnocrática. O ponto que provoca a maior parte das tensões no interior do bloco é, no entanto, a crise da dívida. O primeiro alerta grave sobre condição fiscal dos países periféricos da união monetária acontece em outubro de 2009, quando o governo grego que acabava de assumir anuncia a descoberta de um rombo nas contas governamentais. Da previsão de 6% do PIB, o verdadeiro déficit acaba se mostrando muito maior, de 13% do PIB em 2009. No contexto da recessão econômica, o déficit permanente do governo grego produz um agudo aumento da dívida pública. Em 2011, a dívida grega alcança o pico de 168% do PIB. Em maio de 2010, um primeiro plano de ajuda financeira a Grécia é concebido pelo FMI e pela União Europeia. Os recursos são condicionados a medidas de austeridade. Em novembro de 2010, a Irlanda recorre também à ajuda financeira. Gravemente afetado pela crise subprime, o setor bancário irlandês foi resgatado com dinheiro público, o que fez a dívida pública aumentar de 23% em 2008 para 102% do PIB em 2012. Em maio de 2011, é a vez de Portugal buscar auxílio do FMI e da UE. Obviamente, essas duas últimas ajudas, assim como no caso grego, foram condicionadas a cortes nos gastos governamentais. Finalmente, a Espanha também sucumbe ao problema da dívida ao ter que sanar a situação de seu setor bancário e recorre à ajuda financeira em julho de 2012. Há evidentemente diferenças na escala das ajudas financeiras liberadas. O montante mais espetacular é certamente aquele destinado à Grécia, de quase 250 bilhões de euros. Perto desse valor, os 78 bilhões destinados a Portugal parecem modestos. Paralelamente à evolução desses casos mais extremos, os níveis de endividamento da Itália também começam a preocupar o mercado financeiro. Em contrapartida, essa onda de ajudas financeiras e temores de contágio produzem, ironicamente, o barateamento do crédito para os países considerados “fora de perigo”, tais como a Alemanha e, em menor grau, a França. Até aqui, duas características das medidas de combate à crise se destacam. Primeiro, a austeridade. A troika só oferece seus euros sob a condição de ajustes estruturais que diminuam gastos do governo, aumentem a arrecadação e flexibilizem o mercado de trabalho. Até muito pouco tempo atrás, essa convicção era inabalável. Segundo, a recusa em infligir perdas ao setor privado (leia-se bancário). Uma renegociação da dívida tem sido uma alternativa pouco considerada, mesmo porque seus maiores credores são justamente os Estados francês e alemão, bem como bancos desses países. A ideia, portanto, é que, no curto prazo, as medidas de austeridade equilibrarão as contas governamentais; enquanto no longo prazo, os ajustes estruturais (sobretudo no mercado de trabalho) ajudarão a resolver as assimetrias de competitividade entre os países membros da união, impedido futuras crises dessa natureza. Competitividade seria essencialmente o segredo para o crescimento econômico e a vacina contra recessões como a atual. O que uma mirada latino-americana poderia trazer para o debate? Nossa versão do intercâmbio desigual, representada na tese prebischiana da deterioração dos termos de troca, inspirou por muitos anos a industrialização por meio da indução estatal. A América Latina, sendo a periferia do capitalismo mundial, pouco poderia avançar economicamente com a exportação de seus produtos primários. A disparidade entre o valor dos caros bens importados e dos baratos bens exportados produziria crises cíclicas da balança de pagamentos, impedindo o crescimento econômico sustentável. A industrialização era, portanto, necessária: ela era a condição da competitividade, o único caminho para o catching-up com os países do centro. Em suma, não somente a questão das assimetrias centro-periferia era central à pergunta “por onde começar”, como também o desenvolvimento possuía um viés setor-específico, segundo o qual a importância da indústria orienta “o que fazer”. O diagnóstico europeu contemporâneo não poderia ser mais distinto. Se se reconhece que há uma assimetria entre, por um lado, os países mediterrâneos e, por outro, a Europa central e do norte, ela penetra apenas de forma tímida no discurso político. Segundo esse diagnóstico, a “falta de competitividade” que caracterizaria o sul do continente se deve a rigidezes que impedem o exercício do bom empreendedorismo e a ação profícua do mercado (para não mencionar o tosco argumento preconceituoso do sul preguiçoso). Essa visão possui uma base setor-neutra, ou seja, subentende que o setor manufatureiro não possui qualquer vantagem especial na promoção da inovação, da competitividade e da acumulação de capital. Tampouco o Estado possui qualquer papel de destaque nesse diagnóstico. Ou melhor, ele é um mero obstáculo à saída da crise. Mesmo que o termo “periferia da Europa” tenha se tornado cada vez mais frequente na imprensa, ele é utilizado em um sentido bastante vago, ignorando seus aspectos cepalinos e marxistas. Primeiro, esquece-se que a indústria importa, ou seja, que ela é um setor particular na estrutura econômica moderna. Ela tem maior capacidade de gerar e difundir inovações tecnológicas, aumentos de produtividade e de manter a sustentabilidade do balanço de pagamentos. Em suma, a indústria constitui o motor do avanço econômico. Segundo, esquece-se o intercâmbio assimétrico, deixado à dinâmica do mercado livre, resulta apenas na reprodução da dependência estrutural e da exploração da periferia. Em outras palavras, é preciso uma decisão política para sair da posição periférica. Sem a iniciativa estatal para desenvolver a indústria na periferia e para combater a especialização regressiva, não há como escapar a crises recorrentes do balanço de pagamentos. Frente a um choque externo, qualquer país desprovido de um setor industrial dinâmico e moderno, que evite a saída de recursos pelo comércio exterior, terá dificuldades de superar uma recessão. Principalmente quando agências internacionais pressionam por uma política fiscal contracionista. Os dados mostram que é nada insólito pensar a periferia da Europa como uma periferia no sentido forte. A tabela 1 traz alguns indicadores básicos para examinar esse ponto. Se tomarmos as exportações de produtos de alta tecnologia como uma proxy para o avanço técnico da indústria de determinado país, percebemos que há grandes assimetrias dentro da zona do euro. Apesar de uma estrutura econômica bastante diversificada, os grandes países do continente, França e Alemanha, apresentam níveis consideráveis de exportação de produtos de alta tecnologia. Há ainda pequenos países que mostram certa especialização nesse setor de ponta, tais como Irlanda, Holanda e Finlândia. Enquanto isso, a periferia mediterrânea da zona do euro apresenta o menor nível de tais exportações. Não é coincidência, portanto, que Espanha, Grécia e Portugal possuam os maiores déficits em transações correntes. Frente ao choque que representou a crise financeira mundial desde 2008, esses países são muito pouco preparados para superar os obstáculos à recuperação econômica. Sua estrutura produtiva assume uma posição subordinada no interior do grupo de seus maiores parceiros comerciais. Além disso, eles não possuem instrumentos políticos básicos para o combate à recessão e aos desequilíbrios na balança de pagamentos: a política monetária e a política cambial. Nessas condições, o choque é grande. A periferia da Europa está entre os países da zona do euro que apresentam os maiores desequilíbrios fiscais. Causado pelo regaste de bancos e/ou pelo aumento dos juros da dívida (às vezes acentuado por uma queda na arrecadação, como no caso espanhol), a dívida explodiu em certos países da zona do euro, tais como Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. Em suma, a crise atingiu mais fortemente países sem instrumentos de combate à recessão e cuja posição periférica no intercâmbio europeu prejudica ainda mais sua recuperação. Se o raciocínio que esboçamos aqui estiver correto, não há como a Europa continuar seu projeto de integração sem reconsiderá-lo completamente. A ideia de uma integração pela abertura dos mercados e pela “fixação do câmbio” com a moeda única desembocou em seu único resultado possível: na exacerbação das diferenças entre as estruturas produtivas do continente (ver, por exemplo, o texto de Palma sobre a especialização regressiva da Grécia em direção ao turismo). Frente ao choque da crise subprime, os problemas desse arranjo vieram à tona. A esperança jaz agora no projeto alternativo: em lugar da integração econômica e tecnocrática, a integração política e democrática. Algo na direção do que Jürgen Habermas vem defendendo em suas palestras pela Europa. Somente o fortalecimento da democracia europeia pode salvá-la. Dentre as providências sugeridas pelo filósofo alemão, o Parlamento Europeu precisa ganhar força frente à Comissão Europeia, o órgão executivo supranacional. Somente em um âmbito mais democrático é que soluções alternativas podem ser concebidas e implantadas. E nada mais urgente que perceber que o problema das assimetrias das estruturas produtivas dos países da zona do euro, talvez o verdadeiro problema da União Europeia em seu modelo atual, não será resolvido pela tecnocracia, pelo mercado ou pela austeridade. Mas sim pela decisão política de solidarizar com os países cujas estruturas econômicas são mais frágeis, para lhes garantir o mínimo de um setor industrial tecnológico, de emprego e de bem-estar.
Tabela 1 – Indicadores dos países da zona do euro
Exportação de produtos de alta Saldo das Aumento da Resultado tecnologia como transações dívida pública – primário do setor proporção das corrente 2011/2007 (%)** público (%PIB)** exportações (%PIB)** totais* Alemanha 13,4 6,4 17 -1,6 Austria 11,3 3,0 40 -2,6 Bélgica 7,7 -0,1 22 -2,9 Espanha 4,6 -6,5 217 -6,6 Finlândia 13,3 1,7 -21 0,6 França 18,6 -1,5 40 -5,2 Grécia 5,4 -12,1 47 -10,5 Holanda 17,8 6,7 38 -2,9 Irlanda 22,3 -2,2 701 -13,1 Itália 6,3 -2,5 17 -3,5 Portugal 4,5 -10,2 55 -6,3
Fontes: * Eurostat; ** FMI.
Rodrigo Cantu é economista e sociólogo. Doutorando em Sociologia (IESP-UERJ),
atualmente doutorando visitante no Laboratoire interdisciplinaire d’études sur les réflexivités (EHESS, França).