You are on page 1of 5
prt hj 01 30/4/07 14:45 Pagina 7 ab Como convém televiver «Ea vida» Esta frase com que 0 apresentador da RTP termi- na amitde o Jornal da Noite da o tema do ambiente mental em que vivemos. «Dar 0 tom» significa muito mais do que «sugerir ou «indicar» uma direccao de leitura. Na realidade, constitui por si s6 toda uma «visdo do mundo» e, mais importante, toda uma visio de nés mesmos, da nossa vida enquanto (tele)espectadores do mundo. Depois de assistirmos as noticias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viacaio, mortos palestinianos ¢ israelitas, descober- tas de centenas de vitimas taliban asfixiadas em contentores no Afeganist&o, surge uma noticia que, como uma luz divina, redi- me todo 0 mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho ciimplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com um tom sdbio: «fi a vida!» Ea vida, pois. Que mais quereis? Ea vida lé fora, nao ha na- da a fazer, é assim, vivei a vossa com paz ¢ serenidade, nao hé nada a temer, é ld longe que tudo acontece e, no entanto, estou aqui cu para vo-lo mostrar inteiro, 0 mundo, ide, ide as vossas ocupacdes que a vida continua. Com este tom destinado a sossegar os espiritos, 0 apresentador envia-nos varias mensagens precisas: 1. A vida é uma mistura de bem ¢ de mal, o homem esta entre a besta ¢ 0 anjo, ¢ isto cons- titui a esséncia do mundo, que foi, é, € seré sempre feito dessa mesma massa; 2. a frase impée uma norma: cis o que se pode, ¢ 4 prt hj 01 30/4/07 14:45 Pagina B ab 8 José Gil portanto, deve pensar do que acabamos de ver em todo 0 plane- ta. Norma metafisico-moral, ou melhor, norma ligeiramente ei- vada de metafisica que assim recolhe e retine num s6, todo o ti- po de observagées, reflexes, pensamentos que as imagens televisivas suscitariam. E, pois, uma norma para o pensamento: diz-nos como e€ 0 que pensar do mundo: e segundo a maneira de pensar, pensamo-nos também a nés face 20 mundo, mas como se estivéssemos dentro dele, como sua parte integrante. Cria-se aqui uma pequena transcendéncia, imperceptivel mas indelével, que constitui 0 efeito profundo do imperativo metafisico-moral: 0 telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tem- po acima dele, como se 0 vivesse nao o vivendo. «E a vida», a nossa, a de todos, aquela que vivemos — e, no entanto, a vida é um espectaculo de imagens a que vés acabais de assistir. De fo- ra, porque ele esta fora de nés. Estamos fora da vida, dentro dela: «é a vida!...» E esta mis- tura confusa de transcendéncia-imanéncia da nossa vida 4 Vida que provoca um nevociro no espirito. Um terceiro aspecto parece no menos importante: 3. a nor- ma neutraliza quaisquer veleidades de um discurso que se des- vie deste bom senso que ela irrecusavelmente revela. A norma impoe limites imperceptiveis (porque internos) ao pensamento e, cerlamente também, & accdo. Tudo o que vimos, a barbarie, 0 excesso, a crueldade mais insuportével so compensados, ree- quilibrados pelo sorriso, ¢ 0 golpe do panda: & 0 que nos diz o metadiscurso final (a frase) do apresentador. Ou seja, aquilo, o crime e 0 sangue, nao é a vida ainda; s6 comega a pertencer & sua esfera com o surgimento do bebé panda. Inocula-se assim, no seio das imagens, uma outra dose de ne- vociro: 0 que vistes nado é 0 que vistes, mas 0 que s6 agora es- tais a ver, que & 0 que vistes menos o que julgastes ver porque 0 bebé panda vo-lo retirou. Mas nfo s6 as imagens perdem significado. Também o dis curso é desfalcado das tltimas implicagdes de sentido que en- cerram. Quando o discurso de Bush representava uma ameaca real de guerra contra 0 Iraque, nés nao nos sentfamos implica- 4 prt hj 01 30/4/07 14:45 Pagina 9 ab Portugal. Hoje: O Medo de Existir 9 dos, porque «a vida é assim», as palavras ¢ as intengdes béli do presidente americano entravam no equilibrio geral da vida, segundo a sabedoria do bom senso. Nao haveria guerra no Ira- que como nao ha propriamente ameacas, hoje, de um conflito futuro no Irdo. Uma espécie de caricatura de harmonia preest: belecida regula assim, noite apés noite do jornal televisivo, 0 curso da histéria, recolocando 0 fiel da balanga no justo meio, que selecciona sem diivida a parte melhor, a mais justa, aquela que mais metade do que a simples metade. Nao se trata, a bem dizer, do «curso da histéria»: dado o cariz metafisico da norma, as imagens apresentam antes a esséncia do mundo € nao o movimento da histéria, o qual se esbate num ho- rizonte longinquo, de onde se manifesta apenas um pulsar ténue de signos-indices («sim, la esto os atentados palestinianos... a expulsio dos fazendeiros brancos no Zimbabwe...»). Ao supor a harmonia preestabelecida segundo o bom senso (0 mal e o bem equitativamente repartidos no mundo), a norma im- poe limites negativos ao pensamento (exclui 0 excesso, 0 dese- quilfbrio, o anormal), sem que se veja bem como induz ao me: mo tempo uma certa orientagao na maneira de pensar. Ou seja: a norma oferece também contetidos positives? Ela diz o que se deve pensar como esséncia de todos os acon- tecimentos do mundo. No desfile catico das imagens — tripla- mente castico: como imagens de caos; quer dizer como caos de imagens, como imagens vindas das regides mais heteréclitas do sentido; como imagens que se aparelham linearmente como se se anulasse assim 0 caos narrativo, uniformizando-lhe 0 sentido, roubando-Ihes a singularidade, criando um outro caos, o do afun- damento do significado das imagens — a frase final do apresen- tador introduz ordem, seguranga, uma realidade pensdvel. No en- tanto, o que se deve pensar aparece revestido numa categoria tao geral ¢ totalizante, que nenhum dos enunciados possfveis extra dos das imagens se poderia desenvolver autonomamente, seguin- do a sua linha prépria. (chamemos assim, pro- visoriamente, ao que nos fica do estatuto de realidade das ima- gens do telejornal, depois do tratamento a que foram submetidas ¢ que acabémos de descrever). E, mais uma vez, o nevociro é in- 4 prt hj 01 30/4/07 14:45 Pagina 11 ab Portugal. Hoje: O Medo de Existir i visivel, pois tudo parece nitido, claro, com contornos bem defi- nidos. No entanto, como vimos, basta perguntar pela fungao da- quela frase do apresentador para verificarmos que ela segrega muiltiplas camadas de confusio que se nao véem, mas que Ihe condicionam radicalmente o sentido. Como um inconsciente que se alojasse no seio das representagdes mais conscientes. Como uma sombra branca. Uma consequéncia maior da criagdo do nevoeiro (ou do «ir- real» imperceptivel) é 0 afastamento do real apresentado — mes. mo em directo — do presente do telespectador; que sera conta- minado em seguida por esse regime de irrealidade. Onde se situa 0 Iraque, Israel, a China da televisio? Quando eles so noticia, vai imediatamente para ld um repérter que nos fala em directo. Estao pois ao nosso lado, aqui mesmo, em tem- po real. Uma tal proximidade é puramente factual: € uma com- ponente da imagem, nao do seu valor, da sua importancia ou do seu alcance para a existéncia do telespectador. Essas, por mais «directos» que venham da China ou do Zimbabwe, situam-se do lado de ca da imagem, na vizinhanga real dos corpos portugue- ses. Mais: se é verdade que o sentido final das imagens depende de todo aquele dispositivo discursivo e ritualistico que culmina na frase ultima do apresentador, entao é logo no princfpio que elas entram num circuito préprio de espago e de tempo que eli- mina completamente o presente real e o directo. Ou melhor, o di- recto ndo se opde ao «irreal» que provém da distancia e do pas- sado, pelo contrario, ele fornece, por contraste, o alibi necessario para que as imagens sejam percepcionadas como pertencentes ao mundo da «vida». E qual 0 tempo e 0 espaco desse mundo, e dessas imagens Sao imagens de um perto que est longe, e de um préximo afas tado no tempo. O directo oferece-nos © perto-longe da realida- de das imagens: aquele Zimbabwe das imagens ii imediatas, situa-se em Africa... mas 0 presente em directo da- queles africanos a correr nao coexiste, nao coincide com o meu presente aqui, sentado diante da televisao. Porqué? Porque nada da minha vida se liga ao Zimbabwe. 4

You might also like