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JEAN DELUMEAU

HISTÓRIA DO MEDO
NO OCIDENTE
~

L/bqrtó • Ésa lité • Fracernité


1300~1800
RÉPUBLIQUE FRANÇAISE
Uma cidade sitiada
Este li vro, publicado no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de
auxíl i<> :\ publicação Carlos Drummond de Andrade, contou com o apoio do
Mi nisté rio Francês das Relações E xteriores e Europeias.
a, Ano da França no Brasil (21 de abril a 15 de novcm- Tradução
I: .. ,, ....... ,...
, e •••:w• i , g bro) é organizado, na França, pelo Comissariado
N Geral Francês, pelo M inisté rio das Relaçõcs'E xte-
Maria Lucia Machado
riorcs e E uropeias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Cul-
tu rcsfrance; no Brasil, P,clo Comissariado Geral Brasileiro, pelo Ministério da
Tradução de notas
C ultura e pelo Minist1rio das Relações Exteriores. Heloísa J ahn

Cet ouvrnge, publié d11m /e md,·c de l'A1111éc de /11 Fm11ce 11u B,-ésil et du Prognmnnc
d'Aide à /11 P11blimtio11 Cm·los Dr11111111ond de Audmde, bi néficie du so111ien d11
Ministiwe frnuçnis dcs Affaires Etrnugei-e.r ct E11ropéeimes.
a, /'A1111ée de ln Fmnce 1111 Brisil (21 nvril - 15 novwrbrc)

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péermes, /e !Vliuisterc de la Culture et de la Coum,1111imtio11 et C11/turesfrm1re; au
llrésil, par /e Co11mriss11ria1 Généml Bdsilien, /e Miuisti:re de la C1d1111·e et /e
Mi11isti:1-c des Rcl11tio11s Extériem·es.
Capítulo 3 641 INTRODUÇÃO
Capítulo 4 648 O HISTORIADOR EM BUSCA DO MEDO
Capítulo 5 653
Capítulo 6 656
Capítulo 7 662
Capítulo 8 665
Capítulo 9 669 1. O SILÊNCIO SOBRE O MEDO·
Capítulo 10 673
No século XVI, não é fácil entrar à noite em Augsburgo.
Capítulo 11 680
Montaigne, que visita a cidade em 1580, maravilha-se diante
Capítulo 12 685
da "porta falsa", protegida por dois guardas, que controla os
Conclusão 689
viajantes chegados depois do pôr do sol. Estes deparam, antes
Sobre o autor 695
de tudo, com uma poterna que o primeiro guarda abre de seu
quarto, situado a mais de cem passos dali, por intermédio de
uma corrente de ferro, a qual puxa uma peça também de ferro
"por um caminho muito longo e cheio de curvas". Passado
esse obstáculo, a porta volta a fechar-se bruscamente. O visi-
tante transpõe em seguida uma ponte coberta situada sobre
um fosso da cidade e chega a uma pequena praça onde declara
sua identidade e indica o endereço que o alojará em Augsburgo.
O guarda, com um toque de sineta, adverte então seu compa-
nheiro, que aciona uma mola situada numa galeria próxima ao
seu aposento. Essa mola abre em primeiro lugar uma barreira
- sempre de ferro - e depois, com auxílio de uma grande
roda, comanda a ponte levadiça "sem que nada se possa perce-
ber de todos esses movimentos, pois são conduzidos pelos pe-
sos do muro e das portas, e subitamente tudo isso volta a fe-
char-se com grande ruído". Para além da ponte levadiça
abre-se uma grande porta, "muito espessa, que é de madeirn e
reforçada com várias grandes lâminas de ferro". Através dela o
estrangeiro tem acesso a uma sala onde se vê encerrado, só e
sem luz. Mas outra porta semelhante à precedente permite-lhe
entrar numa segunda sala em que, desta vez, "há luz", e onde
ele descobre um vaso de bronze que pende de uma corrente.
Deposita aí o dinheiro de sua entrada. O (segundo) porteiro
puxa a corrente, recolhe o vaso, verifica a soma depositada

li
pelo visitante. Se não está de acordo com a tarifa fixada, o G. Lefebvre e dos votos expressos sucessivamente por ele e por
porteiro o deixa "de molho até o dia seguinte". Mas, se fica L. Febvre. O primeiro escrevia, já em 1932, em sua obra consa-
satisfeito, "abre-lhe da mesma maneira mais uma grossa porta grada ao Grande Medo de 1789: "No decorrer de nossa história
semelhante às outras, que se fecha logo que passa, e ei-lo na houve outros medos antes e após a Revolução; houve medos
cidade". Detalhe importante que completa esse dispositivo ao também fora da França. Não poderíamos encontrar-lhes um
mesmo tempo pesado e engenhoso: sob as salas e as portas traço comum que lançaria alguma luz sobre o de 1789?".2
existe "um grande porão para alojar" quinhentos homens de Fazendo-lhe eco, L. Febvre, um quarto de século mais tarde,
armas com seus cavalos, no caso de qualquer eventualidade. Se esforçava-se por sua vez em engajar os historiadores nesse ca-
for necessário, são enviados para a guerra "sem a chancela do minho, balizando-o com grandes traços:
povo da cidade".'
Precauções singularmente reveladoras de um clima de in- Não se trata [...] de reconstruir a história a partir da exclusi-
segurança: quatro grossas portas sucessivas, urna ponte sobre va necessidade de segurança - como G. Ferrero estava ten-
um fosso, uma ponte levadiça não parecem excessivas para tado a fazer a partir do sentimento do medo (no fundo, de
proteger contra qualquer surpresa uma cidade de 60 mil habi- resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, o outro
tantes que é, na época, a mais povoada e a mais rica da de ordem negativa, não acabam por encontrar-se?) - [...],
Alemanha. um país atormentado por querelas religiosas e trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos,
num império cujas fronteiras são rondadas pelos turcos, todo de restituir seu quinhão legítimo a um complexo de senti-
estrangeiro é suspeito, sobretudo à noite. Ao mesmo tempo, mentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, não
desconfia-se do homem "comum" cujas "emoções" são impre- pôde deixar de desempenhar um papel capital na história
visíveis e perigosas. Assim, dá-se um jeito para que não perce- das sociedades humanas para nós próximas e fa miliares.1
ba a ausência dos soldados habitualmente estacionados sob o
dispositivo complicado da "porta falsa". No interior desta, É a esse apelo que tento responder por meio da presente
empregaram-se os últimos aperfeiçoamentos da metalurgia obra, precisando desde o início três limites de meu trabalho. O
alemã da época; graças a isso, uma cidade particularmente primeiro é aquele mesmo traçado por L. Febvre: não se trata
cobiçada consegue, se não afastar completamente o medo para de reconstruir a história a partir do "exclusivo sentimento de
fora de seus muros, ao menos en fraquecê-lo o suficientê para medo". Tal redução das perspectivas seria absurda, e é sem
que se possa viver com ele. dúvida demasiadamente simplista afirmar com G. Ferrero que
LOda civilização é o produto de uma longa luta contra o medo.
Portanto, convido o leitor a lembrar-se de que projetei sobre o
Os complicados mecanismos que outrora protegiam os passado certo enfoque, mas de que há outros, possíveis e dese-
habitantes de Augsburgo têm valor de símbolo. Pois não só os j6veis, suscetíveis de completar e de corrigir o meu. As duas
indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades outras fronteiras são as de tempo e espaço. Busquei meus
e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo exemplos, de preferência - mas nem sempre - no período
permanente com o medo. No entanto, até o momento, a histo-' que vai de 1348 a 1800 e no setor geográfico da humanidade
riografia pouco estudou o passado sob esse ângulo, a despeito ocidental, a fim de dar coesão e homogeneidade à minha expo-
do exemplo preciso - e muito esclarecedor - fornecido por sição e de não dispersar a luz do projetor sobre cronologia e

12 /J
períodos desmedidos. Nesse quadro, ficava_ por ser preenchido ta edições espanholas e grande quantidade de edições france-
um vazio historiográfico que em certa medida vou esforçar-me sas e italianas. Mais impressionante ainda é a fortuna de
em completar, bem ciente de que tal tentativa, sem modelo a Orlando furioso, de Ariosto: cerca de 180 edições de 1516 a
ser imitado, constitui uma aventura intelectual. Mas uma 1600.8 Orlando, ''paladino insensível ao medo", despreza
aventura excitante. naturalmente "o vil bando dos sarracenos" que o ataca em
Roncevaux. Com a ajuda de Durandal, "os braços, as cabeças,
os ombros (dos inimigos) voam por todos os lados" (cap. XIII).
Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na Quanto aos cavaleiros cristãos que Tasso coloca em cena na
história? Sem dúvida, devido a uma confusão mental ampla- JentSlllém libertt1clll (1581), ao chegar diante da cidade santa,
mente difundida entre medo e covardia, coragem e temeridade. agitam-se de impaciência, "antecipam-se ao sinal das trombe-
Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso escrito e a língua- tas e dos tambores, e saem a campo com altos gritos de alegria"
falada - o primeiro influenciando a segunda - tivera1:n por (cap. III).
muito tempo a tendência de camuflar as reações naturais que A literatura das crônicas é igualmente inesgotável no que
acompanham a tomada de consciênci_a de um perigo yor t~~s d iz respeito ao heroísmo da nobreza e dos príncipes, sendo
das falsas aparências de atitudes rmdosamente heroicas. A esses a flor de toda nobreza. Apresenta-os como imperm eá-
palavra medo está carregada de tanta vergonha",. escreve G. veis a todo temor. Assim é com João Sem Medo, que ganhou
Delpierre, "que a escondemos. Enterramos no mais profundo tl alcunha significativa em luta contra Liege, em 1408.9 Sobre
de nós o medo que nos domma . as entran has."• Carlos, o Temerário - outro apelido a destacar-, os elogios
É no momento - séculos XIV-XVI - em que começam a são hiperbólicos. "Era altivo e de grande coragem; seguro no
avançar na sociedade ocidental o elemento bur~uês e seus perigo, sem medo e sem pavor; e se um dia Heitor foi valente
valores prosaicos que uma literatura épica e narrativa, encora- diante de Troia, este o era outro tanto." Assim fala Chastellain. 'º
jada pela nobreza ameaçada, reforça a e~altação sem n~ança_ da Ir Molinet vai ainda mais longe depois da morte do duque:
audácia. "Como a lenha não pode queimar sem fogo , ensma "Era [...] a planta de honra inestimável, o tronco de graça
Froissard, "o fidalgo não pode chegar à honra perfeita, nem _à hem-aventurada, e a árvore de virtude colorida, perfumada,
glória do mundo, sem proeza."; Três quartos de sé~ulo~ mais frutuosa e de grande altitude". 11 Reveladora, por sua vez, é a
tarde, o mesmo ideal inspira o autor de Jehan de Samtre (por f(lória que cerca Bayard durante sua vida. É o cavaleiro "sem
volta de 1456). Para ele, o cavaleiro digno desse tít~lo deve temor e irrepreensível". A morte do famoso fidalgo do Dau-
desafiar os perigos. por amor da glória e de sua dama. E "aque- phiné, em 1524, também deixa "toda nobreza de luto". Pois,
le que [...] faz tànto que, entre os outros, há_ notícias dele"-:- ossegura o Leal Servidor, "em audácia pouca gente a ele se
por façanhas guerreiras, entende-se.6 Conqmsta-se tant? m~1s 1•omparou. Em conduta, em um Eibio Máximo; em empresas
honra quanto mais se arrisca a vida nos combates de~'.gu~1s. sutis, um Coriolano, e em força e magnanimidade, um segun-
São esses o pão cotidiano de Amadis de Gaula, um herm sa1d_o do Heitor".'2
do ciclo do romance bretão, que chega a fazer "tremer as mais Esse arquétipo do cavaleiro sem medo, perfeito, é constan-
cruéis feras selvagens".1 Publicado na Espanha em 1508, tradu- temente realçado pelo contraste com uma massa considerada
zido para o francês a pedido de Francisco I, o Amadis de Gau!ll ~cm coragem. Virgílio já escrevera: "O medo é a prova de um
e seus suplementos dão lugar, no século XVI, a mais de sessen- nnscimento baixo" (Eneidll, IV, 13). Tal afirmação restou incon-

/4 15
teste por muito tempo. Commynes reconhece que os arqueiros Esse lugar-comum - os humildes são medrosos - pode
se tornaram "a soberana coisa do mundo para as batalhas". iVIas ser bem exemplificado na época da Renascença por duas obser-
é preciso tranquilizá-los com a presença de "grande quantidade vações, contraditórias em suas intenções m.1s convergentes
de nobres e de cavaleiros", e dar-lhes vinho antes do combate a quant~ ao ponto de vista que empregam e que se pode assim
fim de cegá-los diante do perigo.u No cerco de Pádua ~n~ ~509, rcsum~r: os homens no poder fazem de modo a que o povo -
Bayard se insurge contra a opinião do imperador Max1m1hano, c~scnc1~lment~ ?s campones~s - tenha medo. Symphorien
que pretendia colocar a gendarmaria francesa a pé e fazê-la Champ1er, medico e humamsta mas turiferário da nobreza,
atacar ao lado dos lansquenetes, "gente maquinal que não tem escreve em 1510: "O senhor deve tirar prazer e delícia das coi-
1
a honra em tão grande recomendação quantos os fidalgos". ~ ~as em Jue seus homens ~êm sofrimento e trabalho". Seu papel
Montaigne atribui aos humildes, como uma característica típi- cA o de mante: terra, pois pelo pavor que os homens do povo
ca, a propensão ao pavor, mesmo quando são soldados: perce- tem dos cavaleiros eles trabalham e cultivam as terras por pavor
bem couraceiros onde há apenas um rebanho de ovelhas; e medo de ser~m destruídos".10 Quanto a Thomas More, que
tomam caniços por lanceiros.u Associando, além disso, covar- contesta a sociedade de seu tempo situando-se, contudo, em
dia e crueldade, ele assegura que uma e outra são mais especial- uma imaginária "Utopia", afirma que "a pobreza do povo é a
mente próprias dessa "canalha de vulgo".16 o século XVII, La defesa da monarquia [...]. A indigência e a miséria eliminam
Bruyere por sua vez toma por certa a ideia de que a massa de toda coragem, embrutecem as almas, acomodam-nas ao sofri-
camponeses, artesãos e criados não é corajosa porque não bus~a mento e à escravidão e as oprimem a ponto de tirar-lhes toda
- e não pode buscar - a fama: "O soldado não sente que seJa onergia para sacudir o jugo".n
conhecido; morre obscuro e na multidão; vivia do mesmo ~ss_as poucas evocações - que teríamos podido multiplicar
modo, na verdade, mas vivia, e essa é uma das origens da falta l1_1~ef1_mdamente - ressaltam as razões ideológicas do longo
de coragem nas condições baixas e servis"Y Romance e teacr_o silencio sobre o papel e a importância do medo na história dos
destacaram por seu turno a incompatibilidade entre esses dois homens. Da Antiguidade até data recente, mas com ênfase no
universos ao mesmo tempo sociais e morais: o da valentia - lcm~o da Renascença, o discurso literário apoiado pela icono-
individual - dos nobres, e o do medo - coletivo - dos f(r::tf~a (retratos em pé, estátuas equestres, gestos e drapeados
pobres. Preparando-se dom Quixote para intervir pelo :~ér~ito gloriosos) exaltou a valentia - individual - dos heróis que
de Pentapolin contra o de Alifanfaron, Sancho Pança tumda- l{overnaram a sociedade. Era necessário que fossem assim, ou ao
mente lhe faz nqtar que se trata simplesmfnte de dois rebanhos menos apresentados sob essa perspectiva, a fim de justificar aos
de carneiros. .Merece esta resposta: "E o medo que tens'. ~~us próprios olhos e aos do povo o poder de que estavam reves-
1
Sancho, que te faz ver e entender tudo mal. Mas se teu pavor _e 1idos. Inversamente, o medo era o quinhão vergonhoso - e
tão grande, afasta-te [...]. Sozinho, darei a vitória ao exército a t•ornum - e a razão da sujeição dos plebeus. Com a Revolução
que levarei o socorro de meu braço".1~ Façanhas individuais Frnncesa, estes conquistaram pela força o direito à coragem.
sempre, mas desta vez sacrilégios de dom Juan, "o enganador de M:1s .º novo dAisc~rso ideológico copiou amplamente o antigo e
Sevilha", que desafia o espectro do comendador, D eus e o ~cgum a tendencia de camuflar o medo para exa ltar o heroísmo
inferno. Naturalmente, seu criado vai de pavor em pavor e dom clc'.s_humildes. Portanto, é só lentamente, a despeito das marchas
Juan o censura: "Que medo tens de um morto? Que farias tu se 111il1rnres e dos monumentos aos mortos, que uma descrição e
fosse um vivo? Tolo e plebeu temor".19 11111:1 aproxjmação objetivas do medo desembaraçado de sua ver-

/(í 17
gonha começaram a mostrar-se. De maneira significativa, as Q ue necessidade tenho de ir [...] ao encont ro do que não se
primeiras grandes evocações de pânico foram equilibradas em dirige a mim [trata-se da morte]? [...] Pode a honra devol-
contraponto por elementos grandiosos que proporcionavam ver uma perna? Não. Um braço? Não. Eliminar a dor de
como que desculpas para uma degringolada. Para Victor Hugo, um ferimento? Não. A honra não entende nada de cirur-
foi a "Debandada, gigante de face assustada", que venceu a cora- gia? Não. O que é a honra? Uma palavra. O que h á nessa
gem dos soldados de N apoleão em Waterloo; e "esse campo palavra honro? Um sopro [...] Desse modo, não quero saber
sinistro onde Deus combinou tantas fraquezas/ Treme ainda de dela. A honra é uma simples insíg nia, e assim termina meu
ter visto a fuga dos gigantes".21 No quadro de Goya intitulado O catecismo.24
pânico (Prado), um colosso cujos punhos golpeiam em vão um
céu carregado de nuvens parece justificar o amedrontamento de Áspero desmentido a todos os "diálogos de honra" do sécu-
25
uma multidão que se dispersa precipitadamente em todas as lo xv1! E xistem outros, no período da Renascença, em obras
direções. Depois, pouco a pouco, a preocupação com a verdade que de modo algum eram de ficção. Commynes é uma teste-
psicológica prevaleceu. Dos Contos de Maupassant aos Diálogos mun~a prec!osa a esse respeito, pois ousou dizer o que os
dos crnwelitns de Bernanos, passando por Ln débíicle de Zola, a demais cronistas calavam sobre a covardia de certos grandes.
literatura progressivamente restituiu ao medo seu verdadeiro Relatando a batalha de Montlhéry, em 1465, entre Luís >..'1 e
lugar, ao passo que a psiquiatria agora se inclina cada vez mais Carlos, o Temerário, declara: "Jamais houve fuga maior dos
sobre ele. E m nossos dias, são incontáveis as obras científicas, os dois lados". Um nobre francês se foi n uma só caminhada até
romances, as autobiografias, os filmes que trazem no título o Lusignan; um senhor do conde de Charolais, partindo em sen-
medo. Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo tido com nírio, só parou no Quesnoy. "Esses dois não tinham
deslindou tantos novos domínios, o negligenciou. preocupação de atingir um ao outro."26 No capítulo que consa-
gra a~ "medo" e à "punição da covardia", também Monta igne
menciona a conduta pouco gloriosa de certos nobres:
Em qualquer época, a exaltação do heroísmo é enganadora:
discurso apologético, deixa na sombra um vasto campo da rea- [No cerco de Roma, 1527,J foi memorável o medo que aper-
lidade. O que havia por trás do cenário montado pela literatura tou, tomo_u e gelou tão fortemente o coração de um fida lgo
cavalheiresca que gabava incansavelmente a bravura dos cava- que ele cam duro morto em combate, sem nenhum ferimen-
leiros e zombava lia covardia dos plebeus? A própria Renascença to.21 No tempo de nossos pais, lembra ele ainda, o senhor de
encarregou-se, bn obras maiores que transcendem todo con- Franget [...J, governador de Fontarabie [...), tendo-a entre-
formismo, de corrigir a imagem idealizada da valentia nobiliá- · gue aos espanhóis, foi condenado a ser destituído de no-
ria. Será que nos damos conta de que Panurgo e Falstaff são breza, e tanto ele quanto sua posteridade foram declarados
fidalgos, companheiros preferidos de futuros reis? O primeiro plebeus sujeitos a impostos, e incapazes de usar as armas·
declara, no navio desorientado pela tempestade, que daria uma e foi essa rude sentença executada em Lyon. Depois sofre~
renda de "180 mil escudos[...] a quem o colocasse em terra todo ram semelhante punição todos os fidalgos que se encontra-
frouxo e defeçado" como estáY O segundo, coerente consigo vam em Guise, quando o conde de Nassau ali penetrou (em
mesmo, resigna-se em ser desprovido de honra: 1536]; e outros mais depois.18

18 19
Medo e covardia não são sinônimos. .Mas é preciso se per- buscar o santo eremita Francisco de Paula nos confins da
guntar se a Renascença não foi marcada por uma tomada de Ca lábria, lançou-se a seus pés quando ele chegou ao Plessis "a
consciência mais nítida das múltiplas ameaças que pesam sobre fim de que lhe concedesse prolongar sua vida". Commynes
os homens no combate e em outras situações, neste mundo e no acrescenta este outro traço que aproxima mais uma vez Luís XT
outro. Daí, por várias vezes perceptível nas crônicas da época, de Filippo-lvlaria Visconti:
a coabitação em uma mesma personalidade de comportamen-
tos corajosos e de atitudes temerosas. Filippo-Maria Visconti [...] Jamais um homem temeu tanto â morte, nem fez tantas
(1392-1447) empreendeu guerras longas e difíceis. Mas manda- coisas para encontrar-lhe remédio: e todo o tempo de sua
va revistar todas as pessoas que entravam no castelo de Milão e vida, pedira a seus servidores e a mim, como a outros, que,
proibia que se parasse perto das janelas. Acreditava nos astros e se o víssemos nessa aflição de morte, que não lhe dissésse-
na fatalidade e invocava ao mesmo tempo a proteção de uma mos, a não ser tão somente: "falai pouco" e que o incitás-
legião de santos. Esse grande leitor dos romances de cavalaria, semos apenas a confessar-se sem lhe pronunciar essa cruel
esse fervoroso admirador de seus heróis, não queria ouvir falar palavra da morte, pois lhe parecia jamais ter coração para
da morte, fazendo até expulsar do castelo seus favoritos quando ouvir _tão cruel sentença.n
agonizavam. i\1orreu, todavia, com dignidade.2'' Luís XI se pare-
ce com ele em mais de um aspecto. Esse rei inteligente, pruden- De fato, ele a suportou "virtuosamente", embora seu cí r-
te e desconfiado, não careceu de coragem em graves circuns- t•1ilo não tenha respeitado a instrução real. O mais nobre dos
tâncias, como na batalha de Montlhéry ou quando o advertiram 11obres, o chefe de uma ordem de cavalaria, confessa portanto
de seu fim próximo - notícia, escreve Commynes, que "supor- que tem medo, como logo o farão Pannrgo e Falstaff. Mas, ao
tou virtuosamente, e todas as outras coisas, até a morte, e mais rnntrário destes, ele o faz sem cinismo e, chegado o momento
que qualquer homem que eu jamais tenha visto morrer"/º 10111ido, não se conduz como covarde. A psicologia do soberano
Contudo, esse soberano que criou uma ordem de cavalaria foi 11ílo pode ser separada de um contexto histórico onde abundam
desprezado por vários de seus contemporâneos que o julgaram tl1111ças macabras, artes moriendi, sermões apocalípticos e ima-
um "homem amedrontado" e "era verdade que o era", precisa f(éllS do Juízo Final. Os temores de Luís são os de um homem
Commynes. Seus temores agravaram-se no fim da vida. Gomo que se sabe pecador e teme o inferno. Ele faz peregrinações,
1•on fcssa-se com frequência, homenageia a Virgem e os santos,
0 último dos Visconti, caiu "em extraordinária suspeita de todo
o mundo", só queii~ndo perto dele os "criados" e quatrocentos 11•1í11e relíquias, faz largas doações às igrejas e às abadias.ii
arqueiros que o protegiam com uma guarda contínua. Ao redor 1\ ssim, a atitude do rei é reveladora, para além de um caso indi-
do Plessis, "mandou fazer uma grade de grossas barras de fer- vidual, da escalada do medo no Ocidente na aurora dos tempos
ro". Mandou também "fixar" nas muralhas do castelo "espetos · 111odcrnos.
de ferro de várias pontas".ll Alabardeiros tinham ordem de Mas não exist~ uma relação entre consciência dos perigos e
atirar em qualquer um que se aproximasse à noite da residência 11/vcl de cultura? E o que sugere Montaigne em uma passagem
real. Medo das conjurações? Mais amplamente, temor da mor- dos f .'11sn.ios onde, com humor, estabelece uma relação entre a
1

te. Doente, enviaram-lhe de Reims, Roma e Constantinopla ~oi ist icação intelectual dos povos do Ocidente, de um lado, e
relíquias preciosas das quais esperava a cura. Tendo mandado ~IIIINcomportamentos na guerra, do outro:

21
20
Um senhor italiano, relata ele sorrindo, sustentou uma vez 2. O MEDO É NATURAL
esta afirmação em minha presença, em detrimento de sua
nação: que a sutileza dos italianos e a vivacidade de suas Quer haja ou não em nosso tempo mais sensibilidade ao
concepções era tão grande, previam de tão longe os peri- medo'. este é um componente maior da experiência humana, a
gos e acidentes q ue lhes pudessem advir que não se devia despeito dos esforços para superá-lo.i1 "Não há home m acima
acha r estranho se eram vistos frequentemente, na g uerra, do medo", escreve um militar, "e que possa gabar-se de a ele
prover sua segurança, até mesmo antes de ter reconhecido
u .
cscapar." JB m g uia d e montanha a quem se faz a pergunta
o perigo; que nós e os espanhóis, que não éramos tão finos, "Aconteceu-lhe sentir medo?" respo nde: "Sempre se te m medo
íamos mais além, e que nos era necessário fazer ver ao olho ela te~pestade quando a ouvimos crepitar nas rochas. Isso
e tocar com a mão o perigo a ntes de nos amedrontarmos e n1:repia os cabelos debaixo da boina".3° O título da obra deJakov
que então não tínhamos mais firmeza; m as que os alemães L1_nd, l~ pe_m· est 111a mcine, não se aplica só ao caso de uma
e os suíços, mais g rosseiros e mais pesadões, não tinham o criança Judia de Viena que descobre o antissemitismo Pois 0
senso de se precaver, quando muito no momento mesm o me do "nasceu com o homem na m ais obscura das eras".•º . "Ele
em que estavam abatidos sob os golpes.H está
•. emd nós [...) Acompanha-nos por toda a nossa existeAnc·
, ia.
,,.,
( ,1tan o Vercors, que dá esta curiosa definição da natureza huma-
Generalizações irônicas e talvez sumárias, que têm no no - os homens usam amuletos, os animais não os usam _
e ntanto o mérito de ressaltar o elo entre m edo e lucidez tal More O raison conclui q ue o homem é por excelência "o ser q u~
41
como ele se estabelece na Renascença - uma lucidez solidária 1cm medo". No mesmo sentido, Sartre escreve: "Todos os
de um progresso do equipamento m ental. homens _têm medo. T odos. Aque le que n ão tem medo n ão é
Refinados que somos por um lo ngo passado cultural, não normal, rsso nada tem a ver com a coragem":3 A necessidade de
somos hoje mais frágeis diante dos _perigos e mais permeáveis ~cgura nça é portanto fundamental; está na base da afetividade
ao medo do que nossos ancestrais? E provável que os cavaleiros 1· do mora l humanas. A insegurança é símbolo de morte e a
de outrora, impulsivos, habituados às guerras e aos duelos e que ~cgu~ança símbolo_ ~a vida. O companheiro, o anjo da g u~rda,
se lanç:wam com impetuosidade nas disputas, fossem menos ': 11211go,_ o se: benef1co é sempre aquele que difunde a segu ran-
conscientes dos perigos do combate do que os soldad,9s do \ll. , A~s1111, e um erro de Freud "não ter levado a análise da
século xx, portanto menos sensíveis ao medo. Em nossa época, 1111g11s~1a e de suas formas patogênicas até o enraizamento na
em todo caso, o ~edo diante do inimigo tornou-se a reg ra. D e 11uccs_s1dade de conservação ameaçada pela previsão da morte"! '
sondagens efct9adas no exército americano na Tunísia e no <) n~11mal não tem ciência de sua finitude. O homem ao con-
Pacífico no decorrer da Seg unda Guerra Mundial, resulta que 11 1fr10, sabe - muito cedo - que morrerá. É, pois, 0 "ó nico no
apenas 1% dos homens declarou jamais ter tido medo.35 Outras 1111'.ndo ~ conhecer o medo num grau tão temível e duradouro":6
sondagens realizadas entre os aviadores americanos durante o· \1~111 ~1s:º•. nota R. Caillois, o medo das espécies animais é
mesmo conflito e, anteriorme nte, e ntre os voluntários da A. 11111co, 1dent1co a si mesmo, imutável: o de ser devorado. "E 0
Lincoln Brigade quando da Guerra Civil Espanhola colheram llll'clo humano, filho de nossa imaginação, não é uno mas múl-
r esultados análogos.' 6 1lplo, _não é fixo mas perpetuamente cambiante.""' Daí a
111•1•css1dade de escrever sua histór ia.
No entanto, o medo é ambíguo. Inerente à nossa natureza,
??
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é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um l'hlc1·s no século xvu? Para precaver-se contra o medo, carre-
reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provi- flll~n m com eles olhos ou dentes de lobo, ou ainda, se a possi-
soriamente à morte. "Sem o medo nenhuma espécie teria l11lid11de se apresentava, montavam num urso e davam várias
sobrevivido."~8 Mas, se ultrapassa uma dose suportável, ele se vohns em cima dele.S1
torna patológico e cria bloqueios. Pode-se morrer de medo, ou .O medo pode com efeito tornar-se causa da involução dos
ao menos ficar paralisado por ele. Maupassant, nos Contos dll lnd1vfduos, e Marc Oraison observa a esse respeito - voltarei
gnlinholn, descreve-o como uma "sensação atroz, uma decom- 11 esse t_ema en~ um segundo volume - que a regressão para 0
posição da alma, um espasmo horrível do pensamento e do medo e o perigo que espreita constantemente o sentimento
4
coração de que só a lembrança dá arrepios de angústia".~" Por rnligioso.~ Mais geralmente, quem quer que seja presa do inedo
causa de seus efeitos por vezes desastrosos, Descartes o identi- 1•orrc o risco de desagregar-se. Sua personalidade se fende "a
fica com a covardia, contra a qual não se poderia muito prote- 1111prcssão de conforto dada pela adesão ao mundo" desapar~ce·
ger-se com antecedência: "o ser se torna seearado, outro, estranho. O tempo para, ~
1•~pnço encolhe".55 E o que acontece a Renée, a esquizofrênica
[...] O medo ou o pavor, que é contrário à audácia, não é ape- t'NI ucla~a p~la sra. Sechehaye: num dia de janeiro, experimenta

nas uma frieza , mas também-uma perturbação e um espanto pdn primeira vez o medo que lhe é provocado, acredita ela, por
11111 forte vento anunciador de lúgubres mensagens. Logo esse
da alma que lhe tiram o poder de resistir aos males que ela
pensa estarem próximos [...] Desse modo, não é uma paixão 111cclo, crescendo, aumenta a distância entre Renée e o mundo
1•xtcrior, cujos elementos perdem progressivamente sua realida-
particular; é apenas um excesso de covardia, de assombro e
de temor, o qual é sempre vicioso [...] E porque a principal de:'li A_ doente confessou mais tarde: "O medo, que antes era
'l_fHsód1co, não me abandonava mais. Sentia-o todos os dias,
causa do medo é a surpresa, não há nada melhor para dele
t 111ha certeza. E depois também os estados de irrealidade
isentar-se do que usar de premeditação e preparar-se para 1111 mcntavam". 11
todos os acontecimentos cujo temor pode causá-lo.50
Coletivo, o medo pode ainda conduzir a comportamentos
,,berrantes e suicidas, nos quais a apreensão correta da realida-
Simenon declara da mesma maneira que o medo é um de desaparece: como esses pânicos que escandiram a história
"inimigo mais perigoso do que todos os outros".5 ' Ainda hoje, 1·occnte da França depois de Waterloo até o êxodo de junho de
indígenas - e até mestiços - de aldeias afastadas do México lf)40. Zola descreveu fielmente os que resultaram na derrota
conservam entre ;i::us conceitos o de doença do pavor (espanto de 1870:
ou susto): um doente perdeu a alma em razão de um pavor.
Espantar-se é "deixar a alma em outra parte". Pensa-se eÍltão t...] Os generais galopavam no espanto, e tal tempestade de
que ela é retida pela terra, ou por pequenos seres maléficos estupor soprava, arrebatando ao mesmo tempo os vencidos
chamados chnneques. Daí a urgência de ir a uma "curandeira de e os vencedores, que num instante os dois exércitos estavam
terror", que, graças a uma terapêutica apropriada, permitirá à perdidos, nessa perseguição, em pleno dia, fugindo Mac-
alma reintegrar-se ao corpo de que escapou.51 Esse comporta- -Mahon na direção de Lunéville, e o príncipe real o pro cu-
mento não deve ser comparado ao dos camponeses do Perche, rava do lado dos Vosgues. Em 7 [de agosto), os restos do l•
cujas práticas "supersticiosas" foram descritas pelo padre J.-B. corpo atravessavam Saverne, assim como um rio limoso e
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transbordado carreando destroços. Em 8, em Sarrebourg, rôneas, encontra-o quase a cada passo - e nos setores mais
5° corpo vi~ha rombar no 1° como uma torrente agitada diversos <la existência cotidiana. Como prova, por exemplo, as
0
numa outra, em fuga ele também, vencido sem ter comba- máscaras muitas vezes apavorantes que inúmeras civilizações
tido, arrastando seu chefe, o general D e Failly, desatinado, util izaram no decorrer das eras em suas liturgias. E screve R.
enlouqµecido de que se fizesse remontar à sua inação a re~- Cnillois:
ponsabilidade da derrota. Em 9, em 10, a galopada conti-
nuava, um salve-se quem puder furioso que nem sequer Máscara e medo, máscara e pânico estão constantemente
presentes juntos, inextricavelmente emparel hados [...J [o
olhava para trás.18
homem] abrigou atrás <lesse segundo rosto seus êxtases e
Compreende-se por que os antigos viam no med_o uma suas vertigens, e sobretudo o traço que ele tem em comum
punição dos deuses, e por que os gregos divinizara1~ _Deunos (o com tudo o que vive e quer viver, o medo, sendo a máscara
Temor) e Fobos (o Medo), esforçando-se em conc1l_ia_r-se com ao mesmo tempo tradução do medo, defesa contra o medo
eles em tempo de guerra. Os espartanos, na~~o m1htar, con- e meio de espalhar o medo. 60
sagraram uma pequena edícula a Fobos, d1vmdade a quem
Alexandre ofereceu um sacrifício solene antes da batalha_ de E cabe a L. Kochnitzl-y explicitar, a propósito dos casos
Arbelos. Aos deuses homéricos Dei mos e Fobos correspondiam 11fricanos, esse medo que a máscara si multaneamente camufla e
as divindades romanas Pallor e Pavor, às quais, segundo Tito t'"<prime: "Medo dos gênios, medo das forças da natureza, medo
Lívio Tulo Hostílio teria decidido consagrar dois santu}irios ao dos mortos, dos animais selvagens à espreita na selva e de sua
ver s:u exército debandar diante dos estrangeiros. Quanto a Pã, vlngança depois que o caçador os matou; medo de seu seme-
na origem deus nacional da Arcádia que, ao cair do_ dia, e~pa- lhnnte que mata, viola e até devora suas vítimas; e, acima de
lhava o terror entre os rebanhos e os pastores, a partir do secu- 111do, medo do desconhecido, de tudo que precede e segue a
lo v tornou-se uma espécie de protetor nacional dos gregos. O s lll'cvc existência do homem". 61
atenienses atribuíram-lhe a derrota dos persas em Maratona e Mudemos voluntária e bruscamente de tempo e de civili-
levantaram-lhe um santuário na Acrópole, homenageado todos 111~·~0 e merg ulhemos por um instante na modernidade econô-
os anos com sacrifícios rituais e corridas com tochas. /1.. voz 11drn. Nesse domínio, escreve A. Sauvy, "onde tudo é incerto,
dissonante de Pã teria semeado a desordem na frota de Xerxes ,, onde o interesse está constantemente em jogo, o medo é
em Salamina e, mais tarde, detido a marcha dos gauleses sobre 111ntfnuo". 61Os exemplos que o provam são inúmeros, das desor-
Delfos.19 Assim~ os antigos viam no medo um poder mais forte tl1•11~ da rua Quincampoix no tempo de Law à "quinta-feira
do que os homens, cujas graças contudo podiam ser ga1~h~s ~or . 111 wn" de 24 de outubro de 1929, em vVall Street, passando
meio de oferendas apropriadas, desviando então para o m11rngo p1 ln depreciação dos nssignats* e a degringolada do marco em
sua ação aterrorizante. E haviam compreendido - e em certa l'IJ \. Em todos esses casos, houve pânico irrefletido por con-
medida confessado - o papel essencial que ele desempenha nos 1,11(111 de um verdadeiro medo do vazio. O elemento psicológi-
destinos individuais e coletivos. 1111 isto é, a louca inquietação, ultraIJassou a sã anál ise da
O historiador, em todo caso, não precisa procurar muito
para identificar a presença do medo nos comportamentos de
• l>upcl-mocd3 emitido no período d3 Revolução Frances3. (N. T.)
grupos. Dos povos ditos "primitivos" às sociedades contempo-
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conjuntura. Mais lucidez e sangue-frio, assim como menos Talvez seja por nossa época ter inventado o neologismo
apreensão excessiva com o f~turo por p_a~te dos de_t~ntores d_e ~'l!Curizar que está mais apta -
ou menos mal armada - do que
promissórias e de ações, teriam sem duv1~a perm1t1d~ c~nt1- outras para lançar sobre o passado esse olhar novo que busca
nuar a experiência de Law, conter em lumtes razoave1s as descobrir o medo. Tal pesquisa visa, no quadro espaço-tempo-
desvalorizações respectivas do assignat revolucionário, mais mi preciso estipulado aqui, a penetrar nos móveis ocultos de
tarde do marco de vVeimar, e sobretudo permitido controlar uma civilização, descobrir-lhe os comportamentos vividos mas
melhor, em consequência do craque de 1929, a queda da pro- por vezes inconfessados, apreendê-la em sua intimidade e em
dução e o crescimento do desemprego. Os movimentos da sons pesadelos para além dos discursos que ela pronunciava
Bolsa, de que dependem tantos destinos humanos, não co~he- sobre si mesma.
cem afinal senão uma regra: a alternância de esperanças imo-
deradas e de medos irrefletidos.
3. DO SINGULAR AO COLETIVO: POSSIBILIDADES E
DIFICULDADES DA TRANSPOSIÇÃO*
Atento a essas evidências, o pesquisador descobre, mesmo Nada é mais difícil de analisar do que o medo, e a dificul-
no decorrer de um sobrevoo rápido do espaço e do tempo, o dnde aumenta ainda mais quando se trata de passar do indivi-
número e a importância das reações coletivas de temor. A cons- dual ao coletivo. As civilizações podem morrer de medo como
tituição de Esparta era fundada sobre ele, sistematizando a 11s pessoas isoladas? Assim formulada, essa pergunta põe em
organização dos "iguais" em casta militar. Mobilizados perma- 11vidênc.ia as ambiguidades veiculadas pela linguagem corren-
nentemente, aguerridos desde a infância, viviam sob a constan- 1c, que muitas vezes não hesita diante dessa passagem do sin-
te ameaça de uma revolta dos hilotas. A fim de os paralisar pelo ~11lnr ao geral. Pôde-se ler recentemente nos jornais: "Depois
medo, Esparta precisou modificar-se ela própria cada_vez mais du guerra do Kippur, Israel está em depressão". Semelhantes
radicalmente. As medidas "aloplásticas" iniciais dirigidas con- 11•11nsposições não são novas. Na França, na Idade Média,
tra os bilotas logo acarretaram medidas "autoplásticas" ainda ,1hn111avam-se "pavores" as "rebeliões" e as "loucas comoções"
mais rigorosas "que transformaram Esparta em um campo dns populações revoltadas, querendo com isso expressar o ter-
fortificado".61 Mais tarde, a Inquisição foi semelhantem!nte 1m· que espalhavam mas que também sentiam.64 Mais tarde, os
motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar renas- ll•nnceses de 1789 chamaram de Grande Medo o conjunto dos
cente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja. lillsos alertas, paradas militares, saques de castelos e destrui-
Em nosso tempo, Ô.fascismo e o nazismo beneficiaram-se dos \1\cs de esconderijos provocados pelo temor de um "complô
alarmes dos detentores de rendas e dos pequenos burgueses que 1111istocrático" contra o povo com a ajuda dos bandidos e das
temiam as perturbações so~iais, a ruína da moeda e o com~nis- pot0ncias estrangeiras. No entanto, é arriscado aplicar pura e
mo. As tensões raciais na Africa do Sul e nos Estados Umdos, ~l 111plesmente a todo um grupo humano análises válidas para
a mentalidade obsidional que reina em Israel, o "equilíbrio do
terror" mantido pelas superpotências, a hostilidade que opõe a
• Agradeço fortemente à sra. dra. De1úse PawlotsJ...'}'-Mondauge, direwra
China e a União Soviética são umas tantas manifestações dos ,li 11111centro médico-psicopedagógico em Rcnnes, por ter aceitado ler esta
medos que atravessam e dilaceram nosso mundo. , ,,111 tlc minha introdução e fornecer-me suas observações.

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um indivíduo tomado em particula r. O s mesopotâmicas acre- 1111111 ~oh o efeito das agressões repetidas de nossa época, n em
ditavam na realidade de homens- escorpiões, cuja visão bastava 111111 1• umprega com discernime nto.
para causar a morte. 61 Os g regos estavam igualmente conven- 1>11w-sc utilizar esse quadro clínico no nível coletivo? E
cidos de que toda pessoa que e ncarasse uma das górgonas lll'IHllllla prévia - o que se entende por coletivo? Pois esse
ficava instantaneamente petrificada. Nos dois casos, tratava- 1111111 h•o Ium dois significados. Pode designar uma multidão
-se da versão mítica da experiência: a possibilidade de qualquer ,111t1h11rnda em debandada, ou sufocada de apreensão em
um mo rrer de medo. Certamente é difícil generalizar essa 1111•1•1111uncia de um sermão sobre o in ferno, o u ainda liberada
constatação que, no plano individual, é indiscutível; mas como 111 11wilo de morrer de fome por meio do ataque a comboios
não partir assim m esmo, para tentar a passagem do singular 11 11 n•nl. Mas significa também u m homem q ualquer na
ao plural, do estudo dos medos pessoais c ujo quadro ga nha a 1111,lltilndc de :imostra a nônima de um grupo, para além da
cada dia em precisão Qá que agora se sabe desencadear r eações 111, il k iclade das reações pessoais de tal ou tal membro do
de m edo, de foga, de agressão ou de defesa em m acacos, gatos 111 11p11.
o u ratos, provoca ndo lesões nervosas no âmbito do s,istem a l 1•111 1111clo-se do primeiro significado de coletivo, é provável
límbico)? 11111 11t I cnções de uma multidão tomada de pânico ou que libera
No sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) 11lch ,1111cnte sua agressividade resultem em g rande parte da
é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, 1ll~,h1 de_emoções-choques pessoais tais como a medicina psi-
provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e 11 ,111111lt 1ca nos faz conhecê-las. Mas isso só é verdade em

urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação. Colocado 111111 11wclida. Pois, como o pressentira Gustave Lebon,67 os
em estado de aler ta, o hipotálamo reage mediante mobilização 11111pr11·111mentos de multidão exageram, complicam e transfor-
global do organismo, que desencadeia diversos tipos ele com - 1111111 111, excessos individuais. Com efeito, e ntram em jogo
portame ntos somáticos e provoca sobretudo modificações en- l 111111•~ de agravamento. O pânico que se apodera de um exér-
dócrinas. Como toda emoção, o medo pode provocar efeitos 1111 1 horioso (como o de Napoleão na noite de \iVagra m)68 ou
contr:istados segundo os indivíduos e as ci rcunstâncias, o u até 111 II IIINNll dos clientes de um bazar em chamas ser á tanto mais
reações alternadas em uma mesma pessoa: ccleração dos movi- h1111 qunnto for mais fraca a coesão psicológica entre as pessoas
mentos do coração ou sua diminuição; respiração demasiada- 111111111111s ele medo. Nas sedições de outrora, muito frequente-
mente rápida ou lenta; contração o u dilatação dos vasos san- 11111111·, ns mulheres davam o sinal da agitação, e depois da re be-
g uíneos; hiper ou hipossecreção das glândulas; constipação ou 11111, ' nrl':lstando atrás de si homens que, em casa, não gostavam
diarreia , poliúra ·•ou anúria, compo rtame nto de imobilização 111111 um pooco de deixar-se levar pela esposa. Além disso, os
ou exterio rizaçâo violenta. Ios casos-limite, a inibição pode 1j1111111111entos humanos são mais sensíveis à ação dos chefes do
chegar a uma pseudo paralisia diante cio perigo (estados catalép- 1p11 11 ~uriam as unidades isoladas que os compõem.
ticos), e a exteriorização r esultará numa tempestade de movi- Mnls geralmente, os caracteres fundamentais da psicologia
mentos desatinados e inadaptados, característicos do pânico.f,6 11, 1111111 multidão são sua capacidade de ser influenciável, o
Ao m esmo tempo manifestação externa e experiência interior, 1 11 1ll11r nbsoluto de seus julgamentos, a rapidez dos contágios
a emoção de medo libera, portanto, uma energia desusada e a 11111 n ntrnvessam, o enfraquecimento ou a perda do espírito
difunde por todo o o rganismo. Essa descarga é em si uma rea- 1111 h o, n diminuição ou o desaparecimento do senso da respon-
ção utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobre- 1ltl lld11clc pessoal, a subestimação da força do adversário, sua
30 31
capacidade de passar subitamente do horror ao entusiasmo e 111 • ll'ili'l.ação ocidental ela qual ela finalmente saiu vitoriosa?
das aclamações às ameaças de morte.10 1111~ ,•:ibe, por uma espécie ele análise espectral, individua-
Mas, quando evocamos o medo atual de entrar no carro li ti os medos particulares que então se adicionaram para
para uma longa viagem (trata-se na realidade de uma fobia 1111 um clima de medo.
cuja origem reside na experiência do sujeito) ou quando lem-
11
1Me.,,,1os pa rt1cu
. 1ares", ou seJ3,
· "me dos nomeados". Aqui po-
bramos que nossos ancestrais temiam o mar, os lobos e os h 1111•1111~·-se operatória no plano coletivo a distinção que a
fantasmas, não nos remetemos a comportamentos de multi- 1 1t111h111'13 agora estabeleceu no plano individual entre medo e
dão, e fazemos menos alusão à reação psicossomática de uma Ili( 1111 in, o utrora confundidos pela psicologia clássica. Pois se
pessoa petrificada no lugar por um perigo repentino ou que 111111 dt• dois polos em torno cios quais gravitam palavras e fatos
foge às pressas para dele escapar do que a uma atitude bas- I' 1t111lms no mesmo tempo semelhantes e diferentes. O temor,
tante habitual que subentende e totaliza muitos pavores indi- 1 • ~11111110, o pav~r, o terror dizem mais respeito ao medo; a
viduais em contextos determinados e faz prever outros em l111111111111çiio, a ans1e?acle, a melancolia, à angústia. O primeiro
casos semelhantes. O termo medo ganha então um sign.i ficado 1 1t 11• Nl' no conhecido; a segunda, ao desconhecido. 71 O medo
menos rigoroso e mais amplo do que nas experiências indi- 1 111 11111 objeto determinado ao qual se pode fazer frente. A
viduais, e esse singular coletivo recobre uma gama de emo- 111411•1111 não o tem e é vivida como uma espera dolorosa diante
ções que vai do temor e da apreensão aos mais vivos terrores. 1 11111 perigo tanto mais temível quanto menos claramente
O m edo é aqui o hábito que se tem, em um grupo humano, 1li 111 li il'ndo: é um sentimento global ele insegurança. D esse
de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária). Pode-se 111111111, 11111 é mais difícil de suportar que o medo. Estado ao
então legitimamente levantar a questão de saber se cerras li ~11111 lc.:mpo orgânico e afetivo, manifesta-se de modo corri-
c ivilizações foram - ou são - mais temerosas que outras; ou 1"' 1111 (n nnsicdacle) por "uma sensação discreta de aperto da
formular esta outra interrogação a que o presente ensaio IIM,111111, de enfraquecimento das pernas, ele tremor", acres-
tenta responder: será que, em certo estágio de seu desenvol- llt,tdn 1\ 11~ree1~são com o futuro; e, em sua forma mais aguda,
vime nto, nossa civilização europeia não foi assaltada por uma 11 1111111 Cl'ISC violenta:

perigosa conjunção de medos diante dos quais precisou rea-


g ir? E essa conjunção de medos, não se pode chámá-la Ili 11sc11mence, à noite ou de dia, o doente é tomado por
globalmente de_ "o Medo"? Essa generalização explica o 1111111 sc.:1_1saç:io de constrição torácica com opressão respirn-
título de meu Hvro, que retoma de maneira mais ampla e 1111 ln e impressão ele morte iminente. Da primeira vez, ele
sistemática fórhmlas empregadas aqui ou ali por iminentes 11 1111• <.' Om razão um ataque cardíaco, a tal ponto a sensação
· · 1ores que f a Iaram de "escalada" ou de " recuo" do
h1stonac ,h 11 111-fÚStia assemelha-se ao angor*, com o qual a lingua-
medo." Tratando-se de nossa época, a expressão "doenças da 1111111 ''.ponta a semelhança. Se os episódios se repetem, o
civilização" se tornou familiar e com e la denotamos o impor- p111pr10 doente reconhece seu caráter psicogênico. Isso
tante papel desempenhado pelo modo de vida contemporâ- 111\11 hnsla para acalmar nem suas sensações nem seu medo
1111 IIIOl'IC.:.11
neo. De o utra maneira, será que um acúmulo de agressões e
de medos, portanto de estresses emocionais, não provocou no
Ocidente, ela peste negra às guerras religiosas, uma doença l'~I 11111 lnlina c1ue significa "angúsáa" e "angina". (N. T.)

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Nos obsedados a angústia torna-se neurose, e nos melancó- jllll 111.Ro demasiadamente prolongada pode também criar um
licos uma forma de psicose. Porque a imaginação desempenha 111lt1 cl1• desorientação e de inadaptação, uma cegueira afetiva,
um papel importante na angústia, esta tem sua causa mais no 111111 p1ollfcrnção perigosa do imaginário, desencadeando um
indivíduo do que na realidade que o cerca, e sua duração não 11111 ,111IN1110 in,volutivo pela instalação de um clima interior de
está, como a do medo, ]imitada ao desaparecimento das amea- Ili 1111111111çn. E especialmente perigosa sob a forma de angústia
ças. Assim, ela é mais própria do homem do que do animal. 11lp,11h1. Po is o sujeito vira então contra si as forças que deve-
Distinguir entre medo e angústia não significa, porém, ign?rar 111111 _,,r 111obilizadas contra agressões externas e torna-se para
seus laços nos comportamentos humanos. Medos rependos 11111 1111110 seu principal objeto de temor.
podem criar uma inadaptação severa em um sujeito e co~duzi- 1'111·1111c é impossível conservar o equilíbrio interno afron-
-lo a um estado de inquietação profunda gerador de crises de tt1111h1 pm muito tempo uma angústia incerta, infinita e indefi-
angústia. Reciprocamente, um temperamento ansioso corr~ o 1111• 1, 1 necessário ao homem transformá-la e fragmentá-la em
risco de estar mais sujeito aos medos do que um outro. Alem lllt d11~ precisos de alguma coisa ou de alguém. "O espírito
disso, o homem dispõe de uma experiência tão rica e de uma h1111111110 fabrica permanentemente o medo" 75 para evitar uma
memória tão grande que sem dúvida só raramente experimenta 11141\111ln 1116 rbida que resultaria na abolição do eu. É esse pro-
medos que não estejam em algum grau penetrados de angústia. •11 q111: reencontraremos no estágio de uma civilização. E m
Ainda mais do que o animal, ele reage a uma situação desenca- 1111111 ~11qu0ncia longa de traumatismo coletivo, o Ocidente ven-
deadora em função de sua experiência anterior e de suas "lem- 11 ,11lll)<t'1 stia "nomeando", isto é, identificando, ou até "fabri-

branças". Assim, não é sem razão que a linguagem corrente 1t11d11" medos particulares.
confunde medo e angústia/' o que desse modo inconsciente- \ ,llst inção fundamental entre medo e angústia, que forne-
mente leva à compenetração dessas duas experiências, ainda 1,I plll't:lnto uma das chaves do presente livro, convém acres-
que os casos-limites permitam diferenciá-las ':ºm nitide_z. 111 ,11 1 sem pretender esgotar a questão, outras abordagens
Como o medo, a angústia é ambivalente. E pressentimento 1111ph1mcntares graças às quais a análise dos casos individuais
do insólito e espera da novidade; vertigem do nada e esperança 1111111 li 1•0111preender as atitudes coletivas. D esde 1958 a teoria
de plenitude. É ao mesmo tempo temor e desejo. Kierkegaard, 11 '' lh 11çílo",76 ultrapassando a psicanálise freudiana, colocou
Dostoiévski e Nietzsche colocaram-na no coração das reflexões Ili 11·1.IOncia que o laço entre o filho e a mãe não é o resultado
filosóficas. Para Kierkegaard, que publicou em 1844 súa obrn h 1111111 sntisfação ao mesmo tempo nutritiva e sexual, nem a
sobre o conceito. de angústia, ela é o símbolo do destino huma- 11111111q110ncia de uma dependência emocional do bebê em rela-
no, a expressão cl~ sua inquietação metafísica. Para nús, homens A11 11 111ílc. Essa "fixação" é anterior, primária. É também a
do século XX, el'a tornou-se a contrapartida da liberdade, a emo- 11 11111111r1is seg:1ra de uma tendência original e ~ermanente de
ção do possível. Pois liberar-se é abandonar a segurança, enfren- 1111~1111' n relaçao com outrem. A natureza social do homem
tar um risco. A angústia é então a característica da condição t1p ,111 11•0 desde então como um fato biológico, e é nesse subsolo
humana e o peculiar de um ser que se cria incessantemente. 111 11l1111do qne estariam mergulhadas as raízes de sua afetivida-
Reduzida ao plano psíquico, a angústia, fenômeno natural 1, 1111111 criança a quem terão faltado o amor materno e/ou
ao homem, motor de sua evolução, é positiva quando prevê lt1,11~ 1101·11rnis com o grupo de que faz parte corre o r isco de ser
ameaças que, por serem ainda imprecisas, nem por isso são l11111hq1111d:1e v ive rá, no fundo de si mesma, com um sentimento
menos reais. Estimula então a mobilização do ser. Mas uma jtt1il t111do de insegurança, não tendo podido realizar sua voca-

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ção de "ser de relação". Ora, observa G. Bouthoul, o sentimen- 111 11 futuro da humanidade, a despeito de algumas palavras
to d e insegurança - "o complexo de Dâmocles" - é causa de 1 ~111 11111çn expressas no final de Mnl-estnr 1111 civiliznçíio. Pois,
agressividade.11 • li 11,1 ,, lc funcla?1_e nta lmente, ou a agressividade não é repri-
Essa constatação oferece a oportumdade de uma nova pas- lhl11 • ,,111rlo se dmge para outros grupos ou pessoas externas
sagem do singular ao plural. As coletividades mal-amadas da ~ l llflll daí as guerras e as perseguições - ou então é repri-
história são comparáveis a crianças privadas de amor materno 111, 1111111 cm seu lugar aparece uma culpabilidade desastrosa
e, de qualquer modo, situadas em falso na sociedade; desse 111 11•1 Indivíduos. Essa concepção é muitas vezes considerada
modo, tornam-se as classes perigosas. A prazo mais ou menos li 1h ~\'lo do pensamen_to de Freud, e muitos psicólogos jamais
longo, é, portanto, uma atitude suicida ela parte ele um grupo 1 ll,11 ,1111. Mas, segnmdo um outro caminho, K. Lorenz e
dominante encurralar uma categoria ele dominados no descon- 1 111~1 íp1'.l~s t:un?ém foram levados a propor a existência de
forto material e psíquico. Recusar amor e "relação" só pode 1111 1ll(ll'~s1v1dacle mata em todo o reino animaU8 Para eles
engendrar medo e ódio. Os vagabundos do Antig~ ~egime, que 1 h 11111 instinto de combate no cérebro, aí compreendid o ~
eram os "deslocados" rejeitados dos quadros soc1a1s, provoca- lt11111t1111, que assegura o progresso das espécies e a vitória dos
ram em 1789 o "Grande Medo" dos proprietários, mesmo 1 1111 ll'S sobre os mais fracos. Tal instinto daria conta do
modestos, e, por consequência inesperada, a ruína dos pri_vilé- 11/i /m· lifc darwiniano; seria necessário a essas "grandes
gios jurídicos sobre os q uais estava fundada a ~onarquia. A llfh 111111·1111''. do mun~o_vivo que são a seleção e a mutação.
política do apartheid, cujo próprio nome expn~1e a r 7:l~s:i 1 111 1111111 ido contrario, W Reich, distinguindo a agressivi-
consciente e sistemática do amor e da "relação", cnou na Afnca 1 r1111111•11 I e espontânea a serviço da vida daquela produzida
do Sul verdadeiros paióis cuja explosão corre o risco de se r 1 11111,l~õcs - essencialmente sexuais-, negou a existência
terrível. E o drama palestino não reside no fato ele que cada um 11111 lll'llllltO destrutivo primário e transferiu todo o tânatos
dos dois parceiros quer excluir o outro ele uma terra e ele lllll Ili 11•IHl'l'SSividacle por inibição.1'' Mais amplamente,]. Dollard
enraizamento que são comuns a ambos? 11, 111lnhnrndor~s procuraram mostrar que toda agressivicla-
A partir daí se verifica no plano coletivo o que é evidente no 111•11111·11 sua o rigem em uma frustração: seria um meio para
plano individual: a saber, o elo entre 1~1ecl~ e angústia de un~ 11•11111 os obstáculos que se opõem à satisfação de uma neces-
lado, e agressividade do outro. Mas o h1stonador encon9"a aq111 111 111111 l11tiv:1.~0 Nesse segundo tipo de hipótese, a agressivi-
uma imensa pergunta: as causas da violência humana são antro- 1 1111111111111 não seria um instinto como o apetite sexuaJ, a
pológicas ou soçiológicas? Frenei j,í tinha 59 an_o~ quand~, ~111 1 • ,1 ~,•ele; não resultaria de uma programação genética do
1915, escreveu pela primeira vez sobre a agre~s1v1clade, d1st111- 11111, 111ns ape~as de aquisições e aberrações corrigíveis. A
1
o-uindo-a da sexualidade. Apresentou em segmda (em 1920) sua 111 11~11 sucessao das guerras que escandiram a história
~eoria cio "instinto de morte" em Além do princípio do prnze1: 1\ llt!tlil p111·cce dar razão àqueles que c reem e m um instinto de
agressividade, que encontra em eros seu _etern_o a~tagonista, cr:, t lt I• 1111:ctanto, objetou-se a K. Lorenz que a agressividade
então descrita como um desvio da energia do rnsnnto de morte, 1~111 t•íl.ic:i _é, se não ausente, ao menos pouco freque tc
11
afastada do eu, contra o qual era inicialmente dirigida. Freud 1 11 ,1111ma1s. Os combates entre machos no momento do
redescobria :1ssim as antigas mitologias e metafísicas orient:ii~ 1111 fl' 111 posse ele um território raramente terminam com a
que situavam a luta entre o amor e o ódio nas_origens ~o ~rni 1lt d11 Vt•n~ido. E~sas violências moderadas têm por função
verso. Sua nova teoria só podia conduzi-lo a v isões pess1m1s1a, lu l1 • 1•1 h1cr:irqmas e a sobrevivência do grupo no meio.

36 37
Contudo, o ponto de vista de J. Dollard é sem dúvida, ele tam- 111' l'~N1i l'ia ao prosseguimento da atividade física e fornecem
bém, demasiadamente esquemático. Não seria melhor, com A. Ili 1 , 1l111tilnnte suplementar.
Storr e E. Fromm, distinguir entre a agressão como "pulsão I• •~1IN!!Vocações da fisiologia individual sem dúvida não são
motriz" para o domínio do meio, ao mesmo tempo desejável e 11111 ,~ pnrn c?mpreender os fenômenos coletivos. Como as
necessária à sobrevivência, e a agressão como "hostilidade 11~•111•~ sofndas pelos grupos poderiam deixar de provocar
destruidora"?s' Pois existem populações pacíficas (por exemplo, , 1lt111111do ao se.s?marem ou se repetirem com demasiada
os esquimós do Ártico central canadense) em que o espírito de li '" ldndc - . mobilizações de energia;i ' · E essas , deve m [ogica- ·
iniciativa, isto é, a agressividade em seu sentido positivo, não 1 11111 11 11cluz11:-se ou
. . por pânicos ' ou por i·evolta · s, ou, se nao -
toma o aspecto maligno de uma vontade de destruir. Ness,1 li 1,1111 cm •extenonzações imediatas , , pela 1·11st·1l - d
, açao e um
linha de investigação, as análises que encontraremos nos dois 1111111 11<' nns1edade, ou até de neurose, ele propno ' · capaz. d e
capítulos consagrados às sedições de outrora parecem prov,11' 111• l111•dc, levar . a explosões violentas ou a persegu1çoes . _ de
bem um elo entre destrutividade e frustrações, mas não só no 1 11 11•1 1•,p1atónos,
sentido sexual caro a vV. Reich. As inibições, as carências afeti- 11 ('[ jmo de "ma!-~star" no qual o Ocidente viveu da peste
vas, as repressões, os fracassos sofridos por um grupo acumu- 111''. 111'. g-~e.1:ras re!tg,osa~ p~de ainda ser apreendido graças a
lam nele cargas de rancor suscetíveis de explodir um dia, do 11111 ~ll 11til1zado pelos psiquiatras-pediatras, chamado Teste do
mesmo modo que no indivíduo o medo ou a angústia liberam e 1• ,/11 1111rdo e do • país da a/eurir,
.:i · Tratando - se do pnme1ro,• . 1evam
mobilizam no organismo forças inabituais. Essas se tornam , 11t111\'ll 11 .afmnar sua angústia - esse ter111o gera1 convem ,
então disponíveis para responder à agressão que assalta o sujei- Ili 1li 1111• nqu, cio que o de medo - com 'a aJ'uda d e frases e sob re-
to (salvo no caso de voltar-se contra ele por um traumatismo 11111 til' , desenhos
, que são reagrupados em quatro categ orrns. · .
acima de suas forças). li ~~1tu, rnsegurança, abandono e morte •sz Os snn , bo1os que
A fisiologia da reação de alarme mostra que, após a recepção
111 li11um e povoam • esse "país do medo" 5ao - ora d e carater ,
da perturbação emocional pelo sistema límbico e pela região
• Ili 1c•o (cataclismos),, ora tirados do bestiário (lobos, d 1.agoes, . -
hipocâmpica que desencadeiam os pisca-piscas de alerta, o hipo-
li 11l1111 occ), ora extra1dos do arsenal dos obJ.etos maléficos(. _
tálamo e o rinencéfalo, zonas de orientação em ligação com 11
11111 1mos de supl'1c10, . ataúdes, cemitérios), ora oriundos111S do
rodo o sistema nervoso e endócrino, lançam no corpo impulsos
111h ,11•~0 dos seres agressivos (torturadores , diabos, , e spectros) .
que devem permitir uma reação de defesa e de ataqué. A libe-
111 l'~llllt a r, mesmo que sucinta mente , esse teste , basta para
ração de adrenalina, a aceleração do coração, a redistribuiçfo

vascular em woveito dos músculos, a contração do baço, a vaso- 11111 11 ,1r que ele fornece, no plano coletivo, uma chave de leitu-
1 il11 purt urbada época aqui estudada ' (e sem d'uv1'da tam b,e1n d a
constriç:io esplâncnica põem em circulação maior número dt
llm•111 qu~, a esse respeito, lhe é comparável). Com efeit
vetores de oxigênio, que tornam possível um dispêndio físico
mais forte (fuga ou luta). A liberação de açúcar e de gordura no 1111111\1:afia, desd~ ª. é~oca do es tilo gótico flamboyant
1111111111 ismo, expnmm mcansavelmente e com deleite mórbido
a:;
sangue age no mesmo sentido, fornecendo um substrato energé-
tico imediatamente utilizável para o esforço. A essa primeir:1 " ~111111:ro comp_~nent~s da angústia identificados pelos testes
réplica, imediata e breve, segue-se uma segunda resposta, cons 1111 111! 1•110~, que altas se mspiraram nesse inquietante conjunto
tituída pela descarga de hormônios corticotrópicos. Estes, por· li 1:11ngcns (por exemplo, o TAT Tbemrttic Apperception Test). A
sua ação glicogenética, permitem assegurar a reposição energé li " ~Nilo, ao mesmo tempo temid·a' e saboreada · , r10tnece • o tema

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tanto de Dulle Griet (Margot, a furiosa) de Brueghel, quanto das 111lt lll1111IN 1 chamaram de "objetivação"? G . Delpierre escreve
múltiplas Tentações de santo Antão e das inúmeras cenas de n~á1_·- 1 1mipoito:
tires oferecidas aos olhos dos cristãos do tempo. A Idade Media
clássica não insistira tanto nos sofrimentos dos supliciados. Os 11111 1.. ,1 efeito cio medo é a objetivação. Por exemplo, no
mártires da fé apresentavam-se comumente sob um aspecto 1111•do dn violência, o homem, ao invés ele lançar-se à luta
triunfal. Além disso, os pequenos compartimentos dos vitrais 1111 111~'11' de.la, satisfaz-se olhando-a de fora. E ncontra pra-
onde seu fim trágico era contado mal podiam agir sobre as • 1 11111 escrever, ler, ouvir, contar histórias de batalhas.
imaginações. Mas em seguida o clima se deteriorou e o homem l\ •~l111c com certa paixão às corridas perigosas, às lutas ele
do Ocidente encontrou um estranho deleite em representar a 1111~1• , ~s touradas. O instinto combativo deslocou-se para
agonia vitoriosa dos torturados. A Legenda dur~a( os mistérios li 1thj~ll(),Hl

representados diante das multidões e a arte religiosa sob todas


as suas formas popularizaram com mil refinamentos o flagelo 1\11 hlt1wriador cabe operar a dupla transposição do singu-
e a agonia de Jesus - pensemos no Cristo esverdeado e c'.·ivado 111 ph1 rol e cio atual ao passado.
de feridas de Issenheim - , a degolação de são João Batista, o 1)11111110 no sentimento de insegurança, ele próprio parente
apedrejamento de santo Estêvão, a morte de ~ão Sebastião per- , 11111 1 de um temor do abandono, não é explicitado pelos inú-
furado de flechas e de são Lourenço quennado sobre urna l11• 111(•1,os Finais e evocações do inferno que obsedaram a
grelha.83 A pintura maneirista, à espreita dos espetáculos m_a~- •~~11111\%1 dos pintores, cios pregadores, dos teólogos e dos
sãos, transmite aos artistas contemporâneos da Reforma catolt- 11111 •, til• 11rtes 111.oriendi? Não foi por temer a rejeição nas cha-
ca esse gosto pelo sangue e pelas imagens violentas herdado da 1
1 11 1nns que Lutero se refugiou na doutrina da justificação

idade gótica agonizante. Sem dúvida, jamais foram pintadas nas ltt 11 PMns OS temas ela agressão, ela insegurança e cio abandono
igrejas tantas cenas de martírios, não menos obsedantes pelo 111 11111' rnrol:í rio inevitável o da morte. Ora, a obsessão desta
formato da imagem quanto pelo luxo dos detalhes, como entn: 1 11 1111lprcsente nas imagens e nas palavras dos europeus no
1400 e 1650. Os fiéis só tiveram o embaraço da escolha: apre- Ili ~ •1 dn lcl:icle Moderna: nas danças macabras assim como em
sentavam-lhes santa Ágata com os seios cortados, santa Martinc f 11111/il dtt 111orte, de Brueghel, nos Ensaios, ele Montaigne, como
com o rosto ensanguentado por unhas de ferro, são Liévin com li ,ti 111 ele Shakespeare, nos poemas ele Ronsard assim como
a língua arrancada e lançada aos cães, são Bartolomeu_esfol~do, fll 111•1•ssos de feitiçaria: umas tantas iluminações sobre uma
são Vital enten;ado vivo, santo Erasmo com os mtestmos IN1h l 111 l'Olctiva e sobre uma civilização que se sentiu frágil,
desenrolados. Todas essas representações não exprimem con- 1111,11110 uma tradição demasiadamente simplista por muito
juntamente u~ discurso homogêneo que afirma ao _mesmo 111111 1 ltlll'VC apenas os sucessos da Renascença.
tempo a violência sofrida por uma civilização e a v~nganç:1
sonhada? E , além disso, não constituem no plano coletivo rnm
verificação daquilo que os psiquiatras, estudando os medos l 111f( llldade por quê? A reviravolta da conjuntura que se
11111 ,111 1111 Europa no século XIV é agora bem conhecida: a
• Jacopo de Varczze, Legenda ríurea. São Paulo: Companhia das Letr'1s, li li11, llllt:io uma reaparição estrondosa - seguida ele uma
2003. (N. E.) li 11 h 1111•11 presença - ao mesmo tempo em que se delineia um

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lador ver com que insistência livros piedosos e sermões comba- 1tll l h 11l111•cs, a situações neuróticas. iVIas, como se corria O risco
teram entre os cristãos a tentação do desencorajamento nas l 11111111111gústia culpada instalar-se em almas demasiadamente
proximidades da morte: prova de que essa vertigem do desespe- 11 11p11losns, moralistas e confessores procuraram desviá-las
ro realmente existiu numa escala bastante ampla e de que mm- 111 lt 111111•-10 . - obsessão do passado e fonte de desespero - para
ta gente experimentou um sentimento de impotência face a um 111,1111111cl1mento, que abre para o futuro. Por outro lado
inimigo tão temível quanto Satã. Ili 1111111 li 1~opt1lação inteira de uma cidade, por ocasião de l..llll~
Mas, precisamente, os homens de Igreja apontaram e des- I• , 1wd 1n graças no decorrer de uma procissão expiatória,
mascararam esse adversário dos homens. Levantaram o inven- li 11111111v11 nessa solicitação razões de esperança para este
tário dos males que ele é capaz de provocar e a lista de seus 111111111 ,, pnrn o outro. Ter medo de si era, afinal, ter medo de
agentes: os turcos, os judeus, os heréticos, as mulheres_ (e~pe- 1~ 111 11, Sntfi é menos forte que Deus. Assim, os conselheiros
cialmente as feiticeiras). Partiram à procura do Ant1cnsto, 1111 li 1111i~ do Ocidente, empregando uma pedagogia de c-ho-
anunciaram o Juízo Final, prova certamente terrível, mas que 1 1 1l1tt\'llrn~11-se em substituir por medos teológicos a pesada
seria ao mesmo tempo o fim do mal sobre a terra. Uma ameaça 11~1 lu 1•olcc1va resultante de estresses acumulados. Operaram
global de morte viu-se assim segmentada em medos, segura- 11 t t I l.11,111111 entre os perigos e assinalaram as ameaças essen-
mente temíveis, m as "nomeados" e explicados, porque reflet i• 1 , 111111 \.', nquelas que lhes pareceram tais, levados em conta
dos e aclarados pelos homens de Igreja. Essa enunciação desig- 111111111\'1{0 religiosa e seu poder na sociedade.
nava perigos e adversários contra os quais o combate era, se não 1 ,,11 11•11são num combate incessante contra o inimigo do
fác il, ao menos possível, com a ajuda da graça de Deus. O dis- 1 111 111111~11110 era tudo menos serenidade, e o inventário dos
curso eclesiástico reduzido ao essencial foi com efeito este: os 111 ~111111dos pela Igreja e que ela tentou compartilhar com
lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as penúrias e as guerras são t•11p11ht\10cs, colocando-os no lugar de temores mais visce-
menos temíveis do que o demônio e o pecado, e a morte do (11111111 t:111 evidência dois fatos essenciais não suficiente-
corpo menos do que a da alma. Desmascarar Satã e seus agentes 1111 11ltN111·v~dos. E ~_primeiro lugar, uma intrusão maciça da
e lutar contra o pecado era, além disso, diminuir sobre a terra 1111 hl 1111 v1d:1 _c ~t1diana da civilização ocidental (na época
a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. Ess:1 h ,, , 11111 l11vnd1ra tanto os testamentos de modestos artesãos
denúncia se pretendia, pois, liberação, a despeito - ou melhor 111 11 li II hn Iite ratura, inesgotiivel no tema da graça); em
por causa - de todas as ameaças que fazia pesar sobre os ini- 11hh1 , 11t•l' li c nltura da Renascença sentiu-se mais frágil do
migos de Deus desentocados de seus esconderijos. Num:, 111 htlll{t' é l~0r te_r _final e brilhantemente triunfado, hoje a
atmosfera obsidional, a Inquisição apresentou tal denúnci:1 llhllllllN, A 1dent1ficação dos dois níveis de medo cond112
como salvação,~ orientou suas temíveis investigações para d11:1s Ili ,, 1t~111•nt:1r face a face duas culturas das quais cada urna
grandes direções: de um lado, para bodes expiatórios que todo 1\ li ,1 ti 0111 rn e nos explica o vigor com que não só a Igreja,
mundo conhecia, ao menos de nome - heréticos, feiticeiras, 11111l111111 o Est~do (estreitamente ligado a ela) reagiram,
turcos, judeus etc. - ; de outro, para cada um dos cristãos, 1111 11111 111 de pen go, contra o que pareceu à elite uma amea-
atuando Satã, com efeito, sobre os dois quadros, e podendo i 111111 por uma civilização rural e pagã, qualificada de
todo homem, se não tomar cuidado, tornar-se um agente do llh I I•111 suma, a distinção entre os dois planos de temor
demônio. Daí a necessidade de certo medo de si mesmo. Esst• li ,,
11 nos 111~1 instrumento metodológico essencial para
convite autoritário à introspecção não deixou de levar, em casos 11 li 1111 lntén or de uma mentalidade obsidional que mar-

44 45
cou a história europeia no começo da Idade Moderna, mas que \f'h ~ lllc . teria~ ,ªq~ii impedido de ver os conjuntos e teriam
cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo Renascença por l111 1111d o, ,1rrea l1zaveis
. as aproximaço-es
· das. quais . surgHa,
. . , espe-
muito tempo ocultaram. 111, 11 111.:1nc de minha ,, proposta
· · "O m e'todo e, precisamente . a
No entanto, existe o perigo de cair no excesso inverso e 1 - • li li Ili dos- fa tos , escrevia H · Poincare ' ·81 E ' portanto pe a 1
tornar-se prisioneiro de u m tema e de uma ótica que enegrece- 1111111 llf{tlnçao
, ,A
progressiva resultante de numerosas 1e1turas,

.
riam para além do verossímil a realidade de outrora. D aí um 111 111 onvcr~encia dos documentos e por seu emprego ao d
terceiro momento em nossa caminhada: aquele que nos fad th 1111111 realização sinfônica que me esco i , rçare1 em . d emonstraro
mo
descobrir os caminhos utilizados por nossos ancestrais para 111111 1Ili tese. Confessemos contudo - h onest1
• A • ,
"da de e1ementar
sair do país do medo. A essas sendas salutares, daremos três 11111111•011f1
\ dencta necessária - , que por tra's desse p1ano e d es-'
nomes: esquecimentos, remédios e audácias. Dos paraísos aos 1111 todo desenham-se em filigrana' uma f1"1osof·ia d a h 1stona, º , .
fervores místicos, passando pela proteção dos anjos da guarcb 1111111 Inposta sobre O futuro humano , e .
espec1a 1mente a convic- .
e pela de são José, "patrono da boa morte", percorreremos ao ft11 • ,. qu~ os séculos não se repetem, de que existe uma ines-
fi nal um universo tranquilizador onde o homem se libera do
medo e se abre para a alegria.
11111il\1111 1e Irreversível
r - criatividade humana e de q
' h
ue a umam-
..
11 ,. 111o e ispoe de modelos prontos entre os quais escolher
Desse projeto, enunciado aqui em sua totalidade, o presente jllllldo , . osd tempos . e os. lugares. Creio, ao con t rano, , . que no
livro traz apenas u ma realização parcial. O medo de si e a saídn 1 • , 11 te, e sua pereo-rmação terrestre ela ,
º. , e constantemente
do país do medo terão lugar em um segundo volume em proces- 11t111111<1.11 n mudar de direção, a corrigir sua rota, a mventar . seu
so de redação. Mas me pareceu necessário, nessa introdução 11111111111'10 em função dos obstáculos encontrad .
geral, dar a conhecer também as etapas posteriores de meu iti- · 1 os - muitas
, ~ i•nnc os por ela mesma. O que se tentou traçar aqui em
nenírio para dele oferecer ao leitor uma visão panorâmica e
1111 l'Spaço e dur~nte certo tempo, é essa recusa do dese~co-
coerente. Desde já o editor julgou necessário oferecer ao público
flll,ttt wnto graças a qual uma civilização foi para a frente -
os resultados disponíveis desse inventário explicativo dos medos
1A11 ~11m cometer seguramente crimes odiosos - analisando
de outrora. Cedendo a suas solicitações, reagrupei então os ele- li\ 1111.:dos e superando-os.
mentos de minha investigação, no ponto de andamento em que
\o reconhecimento de uma filosofia subjacente é preciso
se encontra hoje, em dois conjuntos: a) "Os medos da maioria";
11 ~1•0 1\ta~· uma conf!ssão pessoal, motivada não por uma vã
b) "A cultura dirigente e o medo" - que correspondem aós dois
níveis de investigação definidos anteriormente. O subtítulo do 11, ,1111p11çao de ~utob10grafia mas pelo desejo de melhor fazer
volume, "Uma cidade sitiada", refere-se mais especialmente :1<1 ""I" ccnder mmha proposta · "Na-o , h,a nen h uma busca"
segundo desses 1:lois níveis, sendo verdade que, para chegar :1 , , ,,v1• A. B_esançon, "que não seja busca de si mesmo e e~
1~11111 /(l'au,
~ · introspecção."ss
1 • Essa fórmula apl 1ca · - se p,1rt1cu
. . '1ar- .
este, foi preciso inicialmente explorar o primeiro.
li 111 1' ,, 111. 111 rn mvestigação sobre o n1edo • E u tm . h a dez anos
A síntese tentada nesta obra e na que se seguirá só podia
ser realizada por meio de uma historiografia de tipo qualitati 1111111 110,ce de março, um farmacêutico amigo de meus pai~
vo. Essa escolha consciente e esse risco calculado não compor- 111 1onversar, em casa: conversa calma e alegre n a qua . l ev1-.
tam - é preciso destacá-lo? - nenhum desprezo e nenhuma 11111 111unte
11 . . so presto uma atenção
. , . distra1'da , oc d
upan o-me
crítica dos métodos quantitativos que eu próprio utifo.ci 111 li ncat a alguma d1stanc1a do círculo dos a d u lt os. N- ao
amplamente em outras obras."'' .Mas intermináveis quant ifica t l,t 1•1111scrvado nenhuma lembrança dess·a cena bana1 se, na

46 47
()111111do meus lábios pronunciarem pela última vez vosso adorá-
manhã do dia seguinte, não tivessem vindo anunciar a meu
fl Nt11111•,
pai o falecimento súbito do farmacêutico, que não era um 1J1isericordioso Jesus, tende piedade de 111im.
velho. Sua mulher, ao acordar, encontrara-o morto ao lado
dela. Senti um verdadeiro choque, enquanto o desapareci- U111111do 11~e1~ rosto, empalidecido e vincado pelo sofrimento, pro-
mento, alguns meses antes, de minha avó paterna, que morre- ,, ,11 11 1:01/1,patxao,e os suores de minha fronte fizerem preve1· 71te11s
ra aos 89 anos, não me perturbara. Foi para mim a verdadeir:1
tl/1111111,1' 111stantes,
descoberta da morte e de seu poder soberano. A evidência se misericordioso Jesus, tende piedade de rnim.
impunha: ela atinge pessoas com boa saúde e de qualquer
idade. Senti-me frágil, ameaçado; um medo visceral. instalou- ()1111,ulo meus ouvidos, doravante insensíveis às palavras buma-
-se em mim. Fiquei doente por mais de três meses, durante os ""'• /1111Jllmn-e1~H': par~ escutar vossa sentença de Divino ]uiz,
quais fui incapaz de ir à escola. 11usericordioso Jesus, tende piedade de mim.
Dois anos mais tarde vou para um colégio interno mantido
pelos salesianos. Na manhã da "primeira sexta-feira do mês'' fJ111111do ~nin~a imaginação, agitada por sombrias visões, mergu-
que passo nesse estabel.ecimento, participo com meus colcgns 11,,,, fllt' 1111 1~1qmetação; quando meu espírito, perturbado pela /em-
do exercício religioso que se consagra ali regularmente às 1111111 tlt· mmb11s faltas e pelo temor de vossa Justiça, lutar contra
"litanias da boa morte". A cada uma das inquietantes sequên- 111,1, 1/llt' quererá fazer-me duvidar de vossa infinita bondade
cias, respondemos "misericordioso Jesus, tende piedade ck misericordioso Jesus, tende piedade de mim. '
mim". Esse texto, proposto a crianças de doze anos e que lhes
era lido a cada mês, me foi recuperado, nestes últimos tempos, IJ111111domeu coração esgotado pelo sofrimentofísico e 1110ml conhecer
89
por um religioso salesiano em uma ediçãode 1962. Creio J'dl1111" dr,
morte que muitas vezes rts almas mais srmtas conbecerrmz
necessário reproduzi-lo in extenso, acrescentando que era segui- misericordioso Jesus, tende piedade de mim. '
do de um pai-nosso e de uma ave-maria "por aquele de nós que
morrer primeiro": t)11,111tlo eu ~erramar minhas últimas lágrimas, recebei-as em
'1/11 Ili th- expwção por todas as faltas de minha vida, unidas às
Senbor Jesus, Coração pleno de 'fllisericórdia, apresento~nu !Jll- 'l//11/1' q11e vós haveis derrmnado na cruz
'flf.ildemente diante de vós, lmnentmzdo meus pecados. Venbo recomeu- misericordioso Jesus, tende pied~de de mim.
dar-vos minha b8r,a derradeira e o que deve segui-Ia.
~ l)111111do meus parentes. e meus amigos, reunidos em torno de
Quando meus pés imóveis indicarem que minha estrada 11es1c ,, 11/,wçrwe~n-s_e em_aliviar-me e vos invocarem por mim,
mundo está prestes a terminar, m1sencord1oso Je.ms, tende piedade de mim.
11tisericordioso Jesus, tende piedade de mim.
1)1111111I~eu tiver perdido o uso de todos os meus sentidos, e o mun-
Quando minhas mãos desfalecentes jti não tiverem nem mesmo 11 1,11, /111 11vc1· desaparecido para mim, e eu estiver sob o risco da
força de estreitar o crucifixo bem-amado,
,,,,,,
misericordioso Jesus, tende piedade de mim. misericordioso J esus, tende piedade de mim.
49
48
Quando minha alma deixar meu c01po, aceitai minha morte h1 1111111 última e decisiva ilustração. Para melhor atingir o cris-
como o supremo testemunho prestado ao vosso Amor salvadoi; que por in11 1• 1.10nduzi-lo mais seguramente à penitência, a ele se fazia
mim quis sofrer essa dolorosa ruptum, 1h1~ dcl'l'ndeiros momentos do homem uma descrição que não é
misericoi-clioso Jesus, tende piedade de mim. hll \ llNllrncnte exata. Pois existem finais serenos, embora a mor-
l11d1•1 t'Stcja sempre presente nessas evocações demasiadamente
Enfim, quando eu apnrecer diante de vós e vir pela primeira vez 11lill ll•ns. Mas me impressiona mais ainda a vontade pedagógi-
o esplendor de vossa Nlajestade e de vossa Doçura, não me rejeitais da 1 d11 ruforçar no espírito dos recitantes o necessário medo do

frente de vossa Face: diy;nai unir-me a vós para sempre, pttra que e11 f11l11,1111cnto por meio de obsedantes imagens de agonia.
Por mais traumatizante e por mais obscuro que fosse, esse
cante eter11t11nente vossos louvores,
misericordioso Jesus, tende piedade de mim. ll-1111•~0 religioso sobre a morte que ouvi regularmente todo
111111 d11r:lnte dois anos escolares (portanto, para mim, dos doze
111 1ntorzc anos) revelou-me uma mensagem que aclara um
Oração: Ó Deus nosso Pai, vós nos haveis providencialmente owl-
tttdo o dia e a bom de nossa morte, para convidar-nos n estar sempre 1111111111111:1 histórico muito amplo: para a Igreja, o sofrimento e
prontos. Concedei-me morrer amando-vos, e pam isso, viver mda di11 111lq11 il11ç:'ío (provisória) do corpo são menos temíveis do que
em estado de graça, tt qualquer preço! Eu vô-lo peço por Nosso Senhor 1111, 111111 e o inferno. O homem nada pode contra a morte, mas
Jesus Cristo vosso Filho e meu Sfllvfldo,: 111111 n njuda de Deus - lhe é possível evitar as penas eternas.
Amém. I"'' 1li' dní, um medo - teológico - substituía um outro que
1 1 ,11111•rior, visceral e espontâneo: medicação heroica, medica-
Aconteceu-me várias vezes fazer a leitura dessas litanias ;1 " ,,~~lrll mesmo, já que proporcionava uma saída ali onde não
estudantes de uns vinte anos, que ficaram aturdidos: prova de hl\ Ili ~1111ílo o vazio. Tal foi a lição que os religiosos encarrega-
uma mudança rápida e profunda de mentalidades de uma gera- 111 d,, minha educação se esforçaram em me ensinar, e que
ção para outra. Tendo subitamente envelhecido, após long;1 1111111 ,, n chave de meu livro.
atualidade, essa prece por uma boa morte tornou-se documen- P11l11 no construir o plano da obra e ordenar seus materiais,
to histórico na medida em que reflete uma longa tradição de , ,, •m rpresa de constatar que recomeçava, com quarenta
pedagogia religiosa. De resto, não era senão uma repro<luçi"ío 1111~ dt• distância, o itinerário psicológico de minha infância e
dialogada de uma meditação sobre a morte escrita p<H· ~lo,_n 11, p1111•nrria novamente, sob o pretexto de uma investigação
Bosco em uma obra destinada às crianças de suas escolas e mtr- 1 1111 hlf{l'tlfica, as etapas de meu medo da morte. A caminhada
tulada O jovem instruído. Por trás dessas litanias dramáticas, 1,1 11hrn em dois volumes retomará sob a forma de trans-
adivinham-se q Dies irne, inúmeras Artes 111orie11di e outro~ l~ 1h1 111c11 caminho pessoal: meus pavores primeiros, meus
Pensai bem nisso e toda uma iconografia onde se avizinharam, ao llh 1 1~1•11fê>rços para habituar-me ao medo, minhas meditações
longo dos séculos, danças macabras, Juízos Finais, comunhões 11l11lt1,i1•cnce sobre os fins últimos e, como final, uma pacien-
aos agonizantes (por exemplo, a de são José Calasanza, dl.' 11111111 dn serenidade e da aceitação.
Goya)9º e torrentes de imagens piedosas distribuídas durante;'.~
missões. Culpabilização e pastoral do medo - sobre as quais
insistirei no segundo volume e que tanto contaram na história \ p11l~111ica despertada por meu livro anterior, Le christi11-
ocidental - encontram nos textos salesianos que acabamos di.: ' 1111 til 111ourir?, leva-me a fornecer um esclarecimento

50
que deveria ser inútil, mas que não é. A "cidade sitiada" de que
vai se tratar é sobretudo a Igreja dos séculos XIV-XVII - mas a
Igreja como poder. Daí a necessidade de voltar às "duas leitu-
ras" historiográficas propostas na obra vilipendiada por alguns.
O terna que estudo nas páginas que se seguem pouco remete ~
caridade, à piedade e à beleza cristãs, que também existiram
apesar do medo. Mas por isso era preciso, mais urna vez, fazer
silêncio sobre este? É hora de os cristãos deixarem de ter medo
da história.

1>rimeira Parte
<>S MEDOS DA l\!lAIORIA

52
1t I lthulc de Ys ou a dos órgãos submersos de Wenduine que as
1. ONIPRESENÇA DO MEDO ,1 • •o\o o uvidos tocando o Dies irne - evocaram por m uito
1 111p11 ~cus avanços fu riosos.1 Elemento hostil, o mar é orlado
1 11•1•1fcs inumanos ou de pântanos insalubres e lança, nas
f 1411\1•~ costeiras, um vento que impede as cnlturas. .Mas é
_,11tl111~•ntc perigoso quando jaz imóvel sem que o menor sopro
11111l11lc. Um mar calmo, "espesso como um pântano", pode
1. "MAR VARIÁVEL ONDE TODO TEMOR ABUNDA"
l~111t11·11r a morte para os marinheiros bloqueados ao largo,
(MAROT, Co111pftlinte 1" ) 11111111N de "fome voraz" e de "sede ardente". Por muito tempo
Na Europa do começo da Idade Moderna, o medo, camufla- 1111·11110 desvalorizou o homem , que se sentia pequeno e fnígi l
do ou manifesto, esd presente em toda parte. Assim é em toda dl111111 1 clclc e sobre ele - razão pela qual os homens do mar
civilização mal armada tecnicamente para responder às múltipbs 1111 1 mnparáveis aos montanheses e aos homens do deserto.
agressões de um meio ameaçador. Nlas, no universo de outrora, 1 11111w, nté período recente, as ondas causavam medo a todos e
h,í um espaço onde o historiador está certo de encontrá-lo se1~1 111 l11lmunte às pessoas do campo, que se esforçavam em não
nenhuma falsa aparência. Esse espaço é o mar. Para alguns, mui- ~ 1111 11 11rnr quando o acaso as levava para perto dele. Após a
to audazes - os descobridores da Renascença e seus epígonos - , Ili 11 11 f(l'CCO- turca de 1920-2, camponeses expulsos da Ásia

0 mar foi provocação. Mas, para a maioria, ele permaneceu por


1 11111 lornm reinstalados na península de Súnio. Construíram
muito tempo dissuasão e, por excelência, o lugar do medo. Da 111~ , 11~11s com muro cego do lado do mar. Por causa do vento?
Antiguidade ao século XIX, c..la Bretanh~ à Rússia, são legiã? os h,, Mais ainda, sem dúvida, para não ver o dia inteiro a
provérbios que aconselham a não se arriscar no mar. Os latino~ 11~1t11uc ameaça das ondas.
diziam: "Louvai o mar, mas conservai-vos na margem". Um
ditado russo aconselha: "Louva o mar, sentado no aquecedor".
Erasmo faz dizer a um personagem do colóquio Nnufmgi11111: Nu lin:1 1 da Idade Média, o homem do Ocidente continua
"Que loucura confiar-se ao mar!". Mesmo na marítima Holand:1 11111110 contra o m ar não apenas pela sabedoria dos provér-
corria a sentença: "Mais vale estar na charneca com u~a velh:1 1 , 11111~ rnmbém por duas advertências paralelas: uma expres-
carroça do que no mar num navio novo". 1 Reflexo de defesa d1.: 11111111isc11rso poético, a outra pelos relatos de viagens, espe-
uma civilização .essencialmente terrestre confirmada pela expe- 11111 llll' os dos peregrinos a Jerusalém. D esde Homer o e
riência daqueles• que, apesar de tudo, arriscavam-se longe da, 1t11rll11 nté a Fnmcinde e Os lusíndns, não há nenhuma epopeia.
margens. A fó~mu la de Sancho Pança: "Se queres aprender :1 11 111111pcstade, esta figurando também com destaque nos
rezar, vai para o mar", encontra-se com múltiplas variantes dl' l1J.1ll1 1•~ medievais (Brut, Rou, Tristão etc.) e separando no
uma ponta a outra da Europa, por vezes nuançada de humor, !11111111110111ento Isolda de seu bem-amado.4
como na Dinamarca, o nde se precisava: "Quem não sabe rezar
deve ir para o mar; e quem não sabe dormir deve ir à ig reja".: 1 ,i~l l' 11111 tema mais banal [notava G. Bachelard] do que o
Incontáveis são os males trazidos pela imensidão líquida: :1 ,l,111'1lurn do oceano? Um mar calmo é tomado de súbita sa-
peste negra, está claro, mas também as invasões normandas l' 11h11 U1·ra e ruge. Recebe todas as metáforas ela fúria, todos
sarracenas, e mais tarde as incursões dos berberes. Lendas - :1 " •l111holos animais do furor e da raiva f...]. É que a psico-

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11 111 1494, o cônego milanês Casola também empreende a
logia da cólera é no fundo uma das mais ricas e das mais
l,11411111 dn Terra Santa e encontra a tempestade, na ida e na
nuançadas [...). A quantidade de estados psicológicos a pro-
11h 11 A 11i ltima estrondeia ao largo de Zante. O vento sopra de
jetar é bem maior na cólera do que no amor. As metáforas
t111l11H ON lndos, e os marinheiros, tendo ferrado as velas, não
do mar tranquilo e bom serão portanto menos numerosas
1t11h1111 f'n'l.cr nada além de esperar. "Na noite seguinte", relata
do que as do mar bravio.5
l •-•11111 "o mar estava tão agitado que todos tinham abando-
1111111 11 c~pcrança de_ sobreviver; repito, todos."º Então, quan-
Contudo, a tempestade não é apenas tema literário e imagem
111 11 1111v10 chega afmal ao porto, ninguém fica vagueando a
das violências humanas. É também e em primeiro lugar a expe-
111111!1, "Quando um homem", escreve o irmão Félix Fabri,
riência relatada por todas as crônicas da navegação para a Terra
q111 1111 no Oriente em 1480, "suportou a tempestade por
Santa. Em 1216, quando o bispo Jacques de Vitry segue par:1
., 111~ ill11s seguidos, definhou por falta de alimento e chega a
Saint-Jean-d"Acre, os ventos e as correntes da costa da Sardenha
Ili li11111 porto, arriscaria de preferência cinco saltos (da
dirigem um navio na direção daquele no qual ele se encontra. O
choque parece inevitável. Todo mundo grita, confessa-se às pres-
h 111 j llll'!l um barco que o conduzirá à terra] a permanecer a
u,h,,'•111
sas com muitas lágrimas de arrependimento. Mas "Deus teve
1 l111rntura de ficção e crônicas apresentam a mesma visão
piedade de nossa aflição".6 Em 1254, Luís IX volta da Síria par:1 a
h 11•111 ipnda da tempestade no mar. Ela se levanta de modo
França com a rainha,Joinville e os que se salvaram da VII cruz.a-
111 ,11 t• <"ni de repente. Vem acompanhada de trevas: "O céu
da. O furacão surpreende os viajantes diante de Chipre. O.~
11,111111o nr denso". Os ventos sopram em todos os sentidos.
ventos são "tão fortes e tão horríveis", o perigo de naufrágio tiio
" lll'tHlciam-se raios e trovões. "O céu", conta Rabelais no
evidente que a rainha implora a são Nicolau e lhe promete um:1
,o I IIIJ/'1' (cap. xvm), "[começou a] trovejar do alto, fulmi-
nave de prata de cinco marcos." É logo atendida. "São Nicolau", 7 1, 111 llhnr, chover, granizar; o ar a perder sua transparência,
diz, ela, "nos protegeu desse perigo, pois o vento enfraqueceu."
111o11 ~t• opaco, tenebroso e escurecido, sem que outra luz

Em 1395, o barão de Anglure volta de Jerusalém. É aind:1 1p1t1'1lccsse que não a dos raios, clarões e refrações das
111111111•s nuvens."
perto das costas de Chipre que "subitamente" ~e ergue um:l
1 111 Os lusíadas, Camões faz Vasco da Gama dizer:
"grande e horrível desgraça" que dura quatro d tas. E na ver
dade não havia ninguém que tivesse outro semblante a nfo
ser o daquele que bem vê que deve morrer[...]. E sabei qu~ [...] Contarte longamente as perigosas
ouvimos jtirar muitos, que por muitas vezes haviam esrndu Cousas do mar, que os homens não entendem,
em muitas e diversas desgraças no mar, sobre a danação tk Súbitas trovoadas tenebrosas,
suas almas, que jamais em nenhuma desgraça que tivcssc111 Relampados que o ar em fogo acendem:
tido não t iveram tão grande pavor de estar perdidos como Negros chuveiros, noites tenebrosas,
llmmidos de trovões que o mundo fendem,
dessa vez.8 Não menos te trabalho, que grande erro
Ainda que tivesse a voz de ferro. 11
• Anógo peso de oito onças de Paris (244,5 g) que servia para pesar mci.,I,
preciosos. (N. T.)
57
<;r,
11110 XVI, ,1 lição que muitos tiram das viagens transoceânicas
Instantaneidade, borrascas turbilhonantes, vagas imensas 11111 1 111\0 se pode correr piores perigos do que aqueles que se
que sobem do "abismo", temporal e escuridão: tais são, para os 11111 1111 11111 no mar. Lê-se em uma Histoire de plusieurs voyages
viajantes de outrora, as constantes da tempestade que muitas 1 • llf/1/'fl!IX publicada em 1600 em Rouen, portanto num porto,
vezes dura três dias - o tempo passado por Jonas no ventre d:1 11~ 111llcxões significativas:
baleia - e que nunca deixa de criar um perigo mortal. Assim,
até os marinheiros profissionais têm medo quando deixam o 11 c•u1•10 que entre os perigos que se encontram na passagem
porto. Como prova, esta canção ele marinheiros ingleses (final il1•~111 vicia humana, não há de modo nenhum tais, semelhan-
do século xrv ou começo do XV): 111~ tão frequentes e ordinários quanto aqueles que ad-
111.llll
i 11111 110s homens que frequentam a navegação do mar, tanto
A tripulaçiío pode rennnci11r a todos os prazeres
Que vai faz er vela para Saint-James; • 111111í 111ero e diversidade de qualidades como em violências
Pois para 111uitos homens é tt11l desgosto 1ll'nrosas, cruéis e inevitáveis, para eles comuns e diárias, e
1,1111 que não poderiam garantir por uma só hora do dia estar
Co1lleçar II fazer vela.
De foto, quer tenham se /m1çado ao mar 1111111imcro dos vivos[...) Todo homem de bom juízo, depois
Em Saudwich ou em T,,Vinchelsea, 11111• 1ivcr realizado sua viagem, reconhecerá que é um mi-
Em Bristol ou alhures, 1,1/\11' manifesto ter podido escapar de todos os perigos q ue
11
Sua coragem começa a fraquejm: 1 11prcscntaram em sua peregrinação; tanto mais que, a lém
d11 l\lll' diziam os antigos sobre aqueles que vão para o mar
Do mesmo modo, o Vasco da Gama de Camões declara na 111l11 li11·cm entre a vida e a morte senão a espessura de uma
véspera da grande partida de 1497: 1,1111111 de po nte que só tem três ou quatro dedos de travessia,
Depois de aparelhados desta sorte
h,I 1111110s outros acidentes que diariamente aí podem ocor-
11 1 q11t• seria coisa pavorosa àqueles que aí navegam querer
De quanto tal viagem pede e manda,
1911 11111 todos diante dos olhos quando querem empreender
Aparelhamos a alma para a 1/lOrte
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
11 11>1~ vingcns.14

Avalia-se melhor a partir daí o extraordinário sangue-frio \1111111 que as montanhas também despertem apreensão,
dos descobridores da Renascença, que precisaram lutar const,111 1 1111 cll'I, Shakespeare, senão "verrugas ao lado das vagas".
temente contra •o pavor das tripulações. As viagens desse templl lt11 Nino, po r seu lado, evoca "ondas tão altas que escon-
resultaram, ali;ís, em consequências contraditórias no que di·t 11 1 lrn\'1, C hega ndo perto do objetivo, Vasco da Gama é
respeito à navegação. De fato, os progressos da cartografia, do h 11111 1wlo furacão. "Vendo", conta Camões, "ora o mar até
cálculo para fixar a latitude, da construção naval e do bal i,.a ttl• 11111 nhcrto, ora com nova fúria ao céu subia."15 Ent ão,
menta das costas foram - negativamente - compensados \HH 111111 -•• prnpõc um caso exemplar de medo, ele é situado de
todos os aborrecimentos que decorreram do alongamento d:1·, 1 ti 111 111 no mar. Assim faz Rabelais no Quart livre. La
viagens: deterioração dos alimentos, escorbuto, doença dos cli 11, 11 111 1111do por sua vez uma tipologia do medroso,
mas exóticos, ciclones assustadores nas zonas tropicais e, p111· 1111111 ,1 11 um p rimeiro lugar com as aven turas da navega-
tanto, morbidez e mortalidade aumentadas. Ainda no final do
59
58
ção, depois - como segunda experiência apenas - com as d11 , \ 11111s de muitos santuários não estão cheios de promes-
guerra. 16 Para além da covardia pessoal de Panurgo, o dcsvan11 11uilh11mcs, das quais Erasmo acredita dever zombar no
que o toma diante dos elementos desencadeados pode ser idc11 1111111 Nt111jit1giu111?
tificado como um comportamento coletivo que se encon11 11 1 l'1111rn1p·uel, o irmão João e Epistémon conservaram o
facilmente nos relatos de viagens. Um comportamento marcn 111 li 10, confessam no entanto ter tido medo, e Pantagruel
do por duas dominantes: a nostalgia da terra, lugar de scgu 111,1, depois de Homero e Virgílio, que a pior das mortes é
rança em relação ao mar; e o apelo desordenado a santos pro 11~11lldo pelas ondas: "Digo que essa espécie de morte, por
tetores (mais do que a Deus). No auge da tempestade Panurgn ti IH1111 é [de se temer], ou nada é de se temer. Pois, como diz
exclama: 111111, ,·ois:i dolorosa, abominável e desnaturada é perecer
1111 '' (t•11p. XXI). Gonzalo experimenta uma repulsa análoga
Ó como três e quatro vezes felizes são aqueles que plant:1111 1l111(11111cnto: "Que a vontade cio alto seja feita, mas eu pre-
couves! [...] Quem quer que plante couves é por meu clec:n· l 1 111111·rcr de morte seca!".18 Se a mor te no mar é sentida
to declarado bem-aventurado [...) Ah! por mansão deífir,1 111 "ilt•~n:Hurada", é que o oceano foi por muito tempo visto
e senhorial, n ão h::í como a terra firme!" (cap. xvrn). M:w, 11111111 mundo marginal, situado fora da experiência corren-
adiante, volta uma variante do mesmo tema (só há pr:w.t•1 M,11~ l(Cralmente ainda, é que a água, naquilo que tem de
cm terra firme): "Quisesse à digna virtude de Deus - l.1 l\11, poderoso, incontrolável, profundo e tenebroso, foi
menta-se Panurgo - que à hora presente eu estivesse 1111 111111• milênios identificada como um antielemento, como a
quinta de Seuillé ou na casa de Innocent, o pasteleiro, 1111 1 11-110 do negativo e o lugar de toda perdição. "Todo um
fre nte da adega, em Chinon, sob pena de me colocar d1• 11h nossa alma n oturna", escrevia G. Bachelard, "explica-se
gibão para cozinhar os pasteizinhos (cap. xx). l I mito da morte concebida como uma partida sobre a
11
,~ ' • l)nf o Styx dos antigos, "triste rio de inferno" (Marot,

E m A tempestade, de Shakespeare, Gonzalo, no cora\·:111 pl111111e Ili), e a barca de Caronte, navio dos mortos tam-
do perigo, declara preferir ao oceano a terra mais ingrata: ''/\ 11 1011hccido pelas lendas célticas e pelas do Extremo
essa hora, daria bem mil jeiras de mar por um acre de tcrru 1 1111•, t\s águas profundas - mar, rio ou lago - eram con-
estéril: uma grande charneca, pinheiros queimados, qualq1H·1 1 11li1~ um abismo devorador sempre pronto a engolir os
coisa [...]". 11 m ( :01110 testemunho, entre mil outras provas, esta antiga
Os pedidos supc~rsticiosos do companheiro de Pantagrud, 1\ ln f'lnmenga atestada desde o século XIV:
apresentados ironiçamente por Rabelais, eram evidentemc1111'
habituais nessas espécies de apuros. Ele invoca "todos os bcn l•:m m dois filhos de rei,
ditos santos e santas em seu auxílio", garante "confessar-se c111 //111av111n-se tanto 11111 ao outro.'
tempo e lugar adequados", recita várias vezes o confiteo1; implo Níio podiam e11co11tmr-se,
ra ao irmão João que não blasfeme cm tal perigo, faz voto d1 1 1/ tÍfslta era muito profunda.
edificar uma capela a são Miguel ou a são Nicolau, ou a amho•,, Que foz e/{f? Acendeu três círios,
sugere "fazer um peregrino", isto é, sortear aquele que, c111 1i noite, qufl11do a luz do dia declinava:
nome de todos, irá a algum lugar santo agradecer ao céu c111 "Ob.' meu bem-amado, vem! Atmvessa {f 17(/do.'"
caso de desfecho fel iz (cap. XVIIJ- XXI) . Os relatos de "milagrt·," O que foz o filho do rei: era jovem.'

61
\111111 fogo, ar, mar, terra, todos os elementos em refratária
Foi o que viu uma velha feiticeira,
h1-1l1111 (cnp. x vm). Leonardo da Vinci, cujos estudos geoló-
Um ser tão maldoso.
• ,, 111ccnnicos o haviam levado a se interessar pela potêncja
Biri foi então apagar aquela luz
111111, deleitou-se em evocações assustadoras de dilúvio:
E aí ojovem herói se afogou [...]
A sequência da canção conta como a moça desespcr:1d11 1 1< )N l'ios cheios transbordam e submergem todas as terras
acabou por enganar a vigilância dos seus e se afogou vol1111l1I 11,i. 1•111'canias com seus habitantes. Poder-se-ia ver, assim
riamente. 20 O elemento líquido figura portanto aqui como 11 111111 ldos nos topos, toda a espécie de animais apavorados
inimigo da felicidade e da vida. ,l11111ésticos, na companhia dos homens e das mulheres
Polifemo, Cila, Circe, as Sereias, Leviatã, Lorelci: scn•- 11111• 1111 se refugiaram com seus filhos. Os campos submer-
ameaçadores que vivem na água ou à beira d'água. Seu objct ivn m 111ostravam ondas geralmente cobertas de mesas, de
comum era apanhar os humanos, devorá-los ou pelo m cnoN, Ili 11111\'~cs de camas, de barcos, e de todos os expedientes
como Circe, fazê-los perder sua identidade de homem. Ass1111 1 ll1,pl111dos pela necessidade e pelo medo da morte; estavam
para conjurar o mar é preciso sacrificar-lhe seres vivos ()Ili 11 111"11dos de homens e de mulheres com seus filhos, em
saciarão - talvez? - seu apetite monstruoso. Ex-votos napoll 1111 lt1 11 l11111entações e gemidos, cheios de pavor diante do
tanos do final do século Jl..'VI apresentam navios que lev.1111 1111 h11 ,li 110 que rolava as ,1guas em tempestade com cadáveres
proa uma pele de carneiro. Era um rito de conjuração do 111111 11111111111s. Tudo que podia flutuar estava coberto de animais
N o lançamento do navio, matava-se um carneiro branco, rc~ll 111 , 1~nN, reconciliados e agrupados em bandos amedronta-
va-se o barco com seu sangue e conservava-se sua pele n a di:111 111 li1hos, raposas, serpentes, criaturas de todo o tipo [...)
teira da embarcação. Dava-se assim uma vida ao mar para q111 h1 q11111\10s gemidos! [...] Quantos barcos virados, inteiros
11
ele fosse apaziguado e 11ão exigisse a dos marinheiro. No sél'll li'"" puclnços, sobre pessoas que se debatiam com gestos e
lo xvu, os marinheiros berberes praticavam uma variante dcs•H 11111 l11111n10s desolados, anúncio de urna horrível morteY
rito. Levavam carneiros a bordo. Quando a tempestade i1-r0111
pia, cortavam um deles vivo ao meio, depois lançavam mc1:11h 1111111 11oi1·e de junho de 1525, Dürer teve um pesadelo: via
do animal à direita do navio e a outra metade à esque rda. ~1 1il11 1111111110 chegar. Transcrevendo esse sonho angustiado
o mar não se acalmava, sacrificavam-se sucessivamentê v:í 1·111•
111 1 ,1q1111rcln, representou imensas nuvens neo-ras carreo-a-
animais. 22 º o
Os element~s desencadeados - tempestade ou dilúvio
1 1 li111·11l' nmeaçando a terra.HAo fazer isso, Dürer dava da
111h 11 11111 uma visão correntemente aceita em seu tempo
evocavam parl os homens de outrora o retorno ao caos pri111I
11, 1 ,,, 11 111cnte elaborada a partir dos textos apocalípticos
tivo. Deus, no segundo dia da criação, separara "as águas q111
1 , 11111/l que aumentava em r elação a eles o papel atr ibuí-
estão sob o firmamento das águas que estão acima do fi l'lllll
mento" (Gênesis 1:7). Se, com a permissão divina, está d:11111 111 11 1• ~ :lgua no desenrolar do grande cataclismo. Nas
1 1 I ltf11 do Anticristo publicadas no século X V e nas várias
elas transbordam novamente os limites que lhes haviam ~,d11
designados, o caos se reconstitui. A propósito da tempcst 11th , /1111/1, nparece de maneira estereotipada a lista dos
enfrentada por Pantagruel e seus companheiros, Rabelais c~l'II' 111,11~ nnunciadores do "advento de Nosso Senhor". O s
ve: "Crede que aquilo nos parecia ser o antigo caos, no q1111I 111 l11111lrns referem-se ao mar e à água dos rios:

63
f,7
1111 ~1• que feiticeiros e feiticeiras haviam enfeitiçado o
O primeiro dos ditos XV sinais que antecedem o ?i~ do g r_1111
de juízo geral será quando o mar se elevar XV cub1tos ac111111
h ,tlof,l'nndo um gato.19 Em todas as margens setentrio-
das mais altas montanhas do mundo. O II sinal será qu:rndl t 1 l 111111111, m.1s também no País Basco, recitou-se o conto
mar descer ao abismo, concavidade e profundeza da tcr1'll1 h , 11tK11ll" altas como torres e brancas como neve - na
0 1
tão baixo que mal se poderá vê-lo. O III sinal será que os 1~1 1
11h , 1tt1~ mulheres de marinheiros que se tornaram feiti-
-• 11·1111s formaram em vagas para vingar-se de seus
xes e monstros do mar aparecerão sobre o mar com mu1tm
111llt ls.'º
grandes gritos. O IV sinal será que o mar e todas as águas d1•~
21 h11l,1 '1111• 110s navios de Vasco da Gama, de Colombo e de
outros rios arderão e queimarão no fogo vindo do céu.
ll1111 ~•· 1t111 hn saudado a aparição do fogo de santelmo na
111 HIIIHI 1·0s como o sinal de próximo apaziguamento das
Caos, ou seja, desrazão, demência. As estranhas palavras 1h
111 1111111, 11 maior parte do tempo esse fogo e os fogos-
Tristão lançado pelos marinheiros às costas da Cornualh:1, / 11
1l,111\1111do sobre o mar eram vistos como manifestações
neft!es fous, de Sébastien Brant, e a morte de Ofélia sugerclll q111
a mentalidade coletiva estabelecia um laço entre a loucur:1 l' 11
1 t• 1 11111í 11cio de algum infortúnio. Em A tempestade, de
111 111•, l\riel, espírito do ar, conta a Próspero como,
elemento líquido, "avesso do mundo";1" um laço que a temp.cst 11
111 1111 1IINI ruções deste, ele "organizou" o furacão:
de não podia senão reforçar. Hamlet, no julgamento da rn111h11,
está num estado de demência "como o mar e o vento qu:1111111
lutam para ver quem será o mais forte" [IV, 1). Enlouq1'.cdd11,
l 11, lh1111uj111· o terror. Por vezes eu me dividia e queimava
oceano desencadeado provoca loucura. Próspero e Anel , 1•111 11111111 p1111tc: no mastro, na gávea, nas vergas, no gurupé
0 1till11 11l1111nns distintas que se reencontravam para juntar~
A tempestade, de Shakespeare, trocam estas palavras signi fin 1
1111 1111011 de Júpiter, precursores do terrível trovão não
tivas: t 111,1111 l11stuntâneos, nem mais fugidios ao o lhar.31 '

PRÓSPERO: Diz-me, meu bravo espírito, houve um ho1111'III


li li il, que fizera havia quinze anos a viagem da Escócia,
bastante firme, bastante intrépido para que a tormc nlll 11R11
Ili 1111 l t1111111c t!es daimons que estes "[...] se transformam
t ivesse afetado sua razão?
AnrnL: Alma nenhuma que não sentisse a febre dôs dc11 11111
1 11 ~ 11111 gra ndes chamas ardentes/ Perdidas sobre uma
1111 ,11111Holfor/ O passante fulminado iludido com sua luz/
tese não s,e entregasse a algum ato de desespero.n
1, 1 ,1 11 nf'ognr-se na onda assassina" (Livre des hymnes, 1).
As popufações costeiras, na Bretanha por e.xemplo, c0111p11 111111l11, l11úmeros marinheiros, especialmente na Grécia
li~ • ~l1wi;nvnm-se em expulsar esses fogos inquietantes a
ravam o mar em fúria a um cavalo sem cavaleiro, a um rnv11h,
que salta para fora de seu campo ou aindaª. uma égua c nl 1111 1 111,I I, rn:nc~m um ruidoso tumulto, ora com gritos de
cida.18 A tempestade não era portanto considerada - e vlvltl • ~• - 111111n:11s que se acreditava serem de natureza dia-
- como um fenômeno natural. Suspeitava-se que sua nri111•111 111111, supo nha-se, afugentavam os espíritos maléficos.l1
11111 1 d1• outro.ra - e também na Legenda áurea (no capí-
estava associada a feiticeiras e demônios. Tendo a violênci11 1h1
11 1111 ,ido n vicia de santo Adriano) - , o diabo aparece
ondas impedido por várias vezes o rei Jaime da Escócin 1 '
princesa Ana de atravessarem o mar do Norte em 15H > ' 1
1 1 h 11111111111111cnte como o capitão do "navio fantasma", bar-
65
1111111111tlnndo ainda a 'análise, desco6re-se que O 1
coque obsedou a imaginação das populações costeiras e que c1·11 ti • l111q11untcmente representado como o d , . ~a~,
1 1 ', 1~ • 1 omm10 pnv1-
identificado com o inferno dos marinbeiros.H Atribuiu-se 11
1i"1
A • ,

li 1.c e as potencias infernais. E uma identif -


Giorgione uma tela do começo do século XVI que representa 11111 li ill~ •1 .11li nele - talvez involuntanamente
. - no icaçao
Q•tfl ·t
navio fantasma provido de uma tripulação de demônios. 1111111 1tt 1Ili', o irmãoJo-ao d'izer, no centro da tempestade:
' 1,
De diferentes maneiras a mentalidade coletiva estabelccl11
laços entre mar e pecado. Nos romances medievais, volta co11111 h1 11111• todos os diabos estão enfurecidos l .
um tópos o episódio da tempestade que se forma por causa tl11 1 1"'"" \llltn cm trabalho de arto Tod l~Je ou que
presença de um grande pecador - ou de uma mulher gdvid,1, Ili • 11111 lj!ll(Jt:IS" (cap. XIX). E paind~: "C~~~s ~1:tos_cla_n-
e portanto impura - a bordo do navio assaltado pelas ond11M, t' 11•~111 de todos os milhões de d ' b " q OJe e a
como se o mal atraísse o mal. Esse lugar-comum literário crn 11111 Ih,, chi n ré1)lica· "C . d ia os ~cap. xx). Pa-
. re10 que to os os milhões de d'
respondia a uma crença profunda das populações. Ainda c111 ti Ili ,1q111 seu capítulo provincial, ou bri am
1111111 111ilor (cap. xx). g
I l .
pe a e e1çao
i:-
163 7, a tripulação do Tentb Wbelp recusou-se a deixar o p01·111
porque temia o pior para um barco sob o comando de um c:,pl
tão com a reputação de ser um blasfemador.H Além disso, o~ 111111111 i) 11.llllpcstade contada A . 1
li lllh11 tio rei Ferdinando fºr ne na peça de Shake-
marinheiros, a despeito de suas peregrinações e de seus ex-1111
llt 11111m ''() infe rno está va~ioo~1:addo de pdavor~ l~nça-se à
tos, eram muitas vezes considerados maus cristãos pelas pcssrnl~ o os os emomos estão
cio interior e pelos homens de Igreja. Dizia-se que eram "111111
ordenáveis às virtudes morais" (N. Oresme), e até mesmo n:11111 1 ' Ili 'o~11hl11dc de exorcizar o oceano f . .
"civilizados" (Colbert). Em um manual de confessor inglês 111 1,111" i p11t't ug ueses faziam recitando o p:~·11~;0; de i~o os
1344, citado e traduzido por M. Mollat, lê-se: 111 lrnlo (que figura no ritual do exorcismo) o va~-
11 t I•~111111h11 e de outros lugares mergulhand e osl~na~1-
\ 111 , d - ' • o re 1qmas
'I'u, confessor, se te acontece ouvir algum marinheiro 1•111 \1 111 1esta e nao se acalma, portanto por si mes
confissão, não deixa de interrogá-lo com cuidado. Devi• 11111111 011 sfio N icolau ou algum outro s~nt -
1lt Ili poder que receberam d-1 uele . o q~e por
saber que uma pena dificilmente bastaria para descrcvc t' 11
111111\11, i•, tH> lago de Tiberíades 'q }ue cammhou
pecados nos quais essa gente está mergulhada. É~tal, i'OIII 11, 1111 udttN. , coman ou os elemen-
efeito, a g1:;andeza de sua malícia que ultrapassa os pní p1 li1
nomes d\: todos os pecados (.. .). Não só matam os clériHII 111111•111111 scjn o itinerário privilegiado dos d A • ,

1111 l llllll'\'O cio século XVII o céleb' . . emomos e o


e os lei.gos quando estão em terra, como no mar entrq.(11111 1 1111" ' 1•111•rr1sco cio Pa,1's Ba'sco.
. Elre
-se à abominação da pirataria, pilhando o bem de oul n•1111 • e assegura magistra-
e sm1stro · ·
1111111 p111• 1111~1' :1 Bordéus, viram exércitos de i~~:t'an-
sobretudo o dos comerciantes [...). 111111111•, ,tio 1•,xtrcmo Oriente pelos rn1·s s1onanos
. , . d'irigi
sem
Além disso, são todos adúlteros e fornicadores, pob, 1111
todas as terras e regiões onde vivem, ou bem contn1cm 111111 1 11 11'1 1't 1111~!1 •" Quem. duvidava d o carater
, d emomaco
' , -
1 1 "Hº c·onvcnc1clo pela multidão e pela e .d· d
ção com diversas mulheres, acreditando a coisa pern1 it ld 1 111111 1, , h norm1 a e
t 1.:scos que o abitavam e que sã d
11 1, 1111 .
ou então entregam-se ao deboche com as mulheres ,k vlll li ,1111111• p1:l11s ''cosmografias" , e re1atos de º. escntos
viagens da
alegre.35
67
1111110 li identificação de outrora D , . . . , .
Renascença. Pierre Martyr d'Angbiera conta a respeito cio~ ' ,lh11•111•so literár1·0 comparava . d a1 ·a ms1stencia
d
com a
O t
marinheiros que, em 1526, dirigiam-se à América: "Eles vira111 11111 1111 1•00 em perigo. eS mo e cada um de
distintamente um peixe gigantesco que dava a volta ao bcrga11
tim e com um golpe de sua cauda partiu em pedaços o leme do
k1111,1111lo n N ossa Senhora,. E ustache Deschamps lhe diz:
navio". E conclui: "E sses mares, com efeito, alimentam mo nsl l'I 1~
1 \111111 minha 11aujinm, pob·.
ie e apodrectda
·.
marinhos gigantescos".)? Relatando uma viagem ao Brasil l'lll
1557-8, Jean de Léry fala com pavor das "horríveis e medo11 h11~ "Ir ltJl'IJ/cntas assaltada no mar-
baleias" que ameaçam arrastar o navio pelo fundo. U ma dc\11~, HI rwlfl está rota, âncoms niíopo,s.so ancorar-
ln/1,1
''escondendo-se, produziu ainda um tal e tão horrível jorro, q111 ,., qm11de pavor que soçobre ou afunde '
1111,I J1ltulade
. por mm1
· - se firmar [Ballade CXXX/V].
nao
eu mais uma vez temia que, atraindo-nos atrás de si, fôssc1rn1
engolidos nesse abismo":º Em 1555, o bispo sueco Olaus Magn11
publica em Roma uma Historia de gentibus septentrio11alib11s 1111 111,,1HI,
li ,11 h1hno
11:
flymne de la mo1"t' assim evoca as preocupações
qual admite a existência de imensos animais marinhos qm· 11
tripulações tomam por ilhas e onde atracam. Ali acendem foKP
1,1,1 :1 111~~1· dos ~esgostos transborda sobre nós
para aquecer-se e cozinhar seus alimentos. Então os mo nq1111
afundam, tragando homens e navios. Essas ilhas vivas e flutullll l ,I, /11/,l,l// 1YIZtlO desloca
a •·
rada gope
/
11#1' r11111citlo pela onda desabada...
tes, inspiradas em Behemot e no Leviatã, são assim descrita~ 11111
Olaus Magnus: "Sua cabeça, toda coberta de espinhos, é cc1·1•111I 1
11 ll1dl11y proclama feliz o natimor·to, pois
.
de longos chifres pontudos semelhantes às raízes de uma 1~1 v11
re arrancada".4 ' No século XVIII, um outro bispo escandi1111111 11 111/11 ,l'llhre ll
cabeça
Pontoppidan, identificará esses monstros com polvos gi!-(11111• H, it//i/fJV/ tempestade
cujos tentáculos são tão grossos quanto os mastros dos mwlt1 ,,11,•111/IIOS agitados [Complainte du désespéré].
Em 1802, um aluno de Buffon falará do Kraken, polvo gi!(illll•
1
como do "animal mais imenso de nosso planeta",4 e insist il'1l 1111 111,1,.ué julga-se
sua agressividade: tema retomado em 1861 por Michcls t l'III /
11te1; em 1866 por Victor Hugo em Os trabalhadores do 111111 •, 11111
l ,lfltlll /1111" ventos e vagas
que popularizà•, o vocábulo polvo, e em 1869 por Júlio Vcnu• 111 '" ~11/,/11 por uma tempestade
Vinte 111il /éguas'submarinas. Duradoura lenda, nascicb do 11 11 ,1 111111llq11,1'1 de complôs, de emboscadas [H.'ecatom be de Diane].
dos monstros assustadores que um elemento tão host il q111111111
II 1110 XV III ' J.-J. R ousseau escrever'· "P d "d
mar não podia deixar de gerar em suas profundezas. ,h 1111111s infortúnios - ª· er 1 o no mar
Lugar do medo, da morte e da demência, abisntn 111111 11111 11 0 unufrág1·0" cc' '~~~ ~osso esquecer os detalhes de
vivem Satã, os demônios e os monstros, o mar um cli:1 1h•N1lp ' onj 1ssoes v) ~ J ·
ld ,1 llll'llmn comparação: ' · er ame, por sua vez,
recerá quando toda a criação for regenerada. São João proli 11
no Apocalipse (XX,l): "Depois, eu vi um céu novo, 1111111 1111 ,111 ,1,, viver' e0111, medo de morrer sem lb
nova. O primeiro céu, com efeito, e a primeira terr:i dc~1q1111 /lltl'llido,joguete do fluxo e do' 1.e,;e
1lij/11' · 1 .uxo,ante
ceram; e de mar, já não há mais". O mar, perigo número 11111 1
69
Nliuhn n/1110 pnm horríveis 11011.frtigios npnrelhn [1" Poem,·
1 1,1111l1é111 não se dizia, até o século xv, que o mar
saturnieu].
1111,111111 , que os antípodas são inabitados e inabit,1veis?
A essas poucas sondagens, u ma i nvestigação siste11111t h 11 111 ,lm marinheiros portugueses quando Henrique,
não deixaria de tra7.er ampla confirmação. 1111 , 111•1ll11-lhcs que ultrapassasse o cabo Bojador (ao sul
Assim, até as vitórias da técnica moderna, o mar er:1 11~ 11 11 1, 1 oo~idcrado por muito tempo "o cabo do medo":
ciado na sensibilidade coletiva às piores imagens de :1111~ 1,
Estava ligado à morte, à noite, ao abismo. É todo esse scµ11111 I, 1111, ~•n !diziam eles] que para além desse cabo não h :í
plano de repu lsa milen ar que se adivinha por tds ele 011 111 h11111111.. nem lugares habitados. O solo ali n ão é m e-
uox: " Onde estão os marinheiros soçobrados nas noites 1•~111 l 1111~11 do que nos desertos da Líbia onde não h:1 n em
ras?". Victor I Iugo escreveu esse poema em 1836. D ezoi10 11111, 111111 1lrvore, nem relva verde. Ali o mar é tão pouco
mais tarde, o relatório anual da .M arinha inglesa menc:io1111 111.!1111111•, a uma légua de terra, o fundo não ultrapassa
832 perdas d e navios em 1853.4) 111 ,1~11. As correntes são tão fortes que qu alquer n avio
Unrn civi lizaçiio essencialmente ter restre não podia 111 11 li lll~flll'il'SSe o cabo não poderia dali regressar. Foi por
tanto senão desconfiar de um elemento tão pérfido <:011111 11111 lltlN~Os pais jamais empreenderam u ltrapassá-lo.• r.
água, sobretudo quando se acumula sob forma de m:11·.
metade cio século xvrn, um dominicano de Grasse dirigl' •,1 , II l1111t,,/11s, Camões faz eco aos temores sentidos pelos
capítulo geral de sua ordem. Embarca em Nice. Mas logo, 111 ~· li 11~ 11111·111g uescs nas proximidades do cabo da Boa
pelo m,rn tempo, desde i\11ônaco, ele se faz trner de volt ,, 1, • 111tnom inado anterior mente cabo das Tormentas.

margem; e é pela estrada de terra q ue alcança Roma.lns1111111 1111,1u11111cl11 pelo poeta não teria nascido em seu espírito
pela aventura, consigna em seu diário de viagem a scg11li11 1111111~1111 relatos orais e escritos relativos à temível pas-
sentença: "Por mais próxima q ue esteja a terra, no mar M' llljll 1 111111.11110 os n avios avançam na sua direção, eis que o
se cst:1 bastante longe para ali encontrar sepultura".•• t1p11 ~1 1111r1 nos capitães e às tripulações como uma está-
11111111• ,, gigantesca", "réplica do colosso de Rodes" - e
1111111h111tório do de Goya em O pn11ico. "O rosto carre-
2. O DISTANTE E O PRÓXIMO; O NOVO E O ANTI( ,11 li 111 111 t•squ:ílida: os olhos encovados, e a postura med o-
li 1 1 1•or terrena e pálida, ch eios de terra e crespos os
/\berro paiia o d istante, o mar desembocava o utrora c111 p,11
1 li111·11 neg ra, os dentes amarelos." Dirigindo-se ao s
ses insólitos onde tudo era possível e onde o estranho era :111111
- um estranho muitas vezes assustador. De P línio, o Vl·ll111,
h li 11~ portugueses, ameaça-os nestes termos:
Simone Majolo (Dies caniculares, Roma, 1597), passand11 I"
( J!(t'lllt: onsnd1111Iais que quamns
Vinccnt de Beauvais, i\ifandeville e As 111il e 11111a noites, c:om1•11
V11 1111111do cometerão gmudes cousas, [...]
-se a crença cm uma montanha imantada situada cm :1111 11111
1111/1- (}.I' vedados términos quebrantas
parte na rota da Índia: ela atraía irresistivelmente os navio\ 11111
li 1/((Vegar 111e11s /011gos 111nres ousas,
tadores de objetos metálicos, e especialmente pregos, m:111li11h,
te111po hríjrí que guardo e tenho
()f/t' 1•11 l'lmto
-os prisioneiros ou até mesmo p rovocava seu desmembr:11111111
Nfl11t'(I nmdos rlestrnnto, ou próp1·io lenho.
70
71
* 1 ,, 11111 11111:1 obra publicada no final do século XV, O
" /1/1/tl/'/({ ur1tural:
Pois vens ver os segredos escondidos
Da naturez a, e do úmido eleruento, h1h 11 1,;/,(ito f...), vivem dois perigosos monstros. E se
A nenhum grande humano concedidos[...]. Ili 111 ele• hom grado às margens do mar, que são muito
Sabe que quantas naus esta viagem
hl 1111 1 1•1111sn m medo à gente do país, dos quais uns têm

Que tufazes, fizerem de atrevidas


1 ,h hipopótamos e os outros têm nome de crocodilos.
1111 11h11, que é do lado do Oriente, pastam muitas bestas
Inimiga terão esta pamgem .
Com ventos e tormentas desmedidas:
li' 1111 Vlll\Cnosas como leões, leopardos, parídeos, tri-
E da primeira armada que passagern 1 m, lt11Niliscos, dragões, serpentes e ,1spides que estão
111• d11 11111ito perigoso e mortal veneno.
Fhe1· por estas ondas insufridrts,
Eu farei di111proviso tal castigo_
li ,_ rl1•~~11s crenças lendárias ou desses exageros assusta-
Que seja 111,ôr o dano que o perigo. [...]
Ihl11lt11•Nc o medo do outro, isto é, de tudo que pertence
Antes em vossas naus vereis cada ano 1111 • 1~11 ili ferente. Por certo, os aspectos extraordinários
Se é verdade o que meu juízo alcança, Ili 111 li 111 ídos aos países distantes podiam também consti-
Naufrágios, perdições de toda sorte, 1111,11 Ivo poderoso. A imaginação coletiva da Europa na
47
Que O menor mal de todos seja a morte. 1 1lh1 1• 1111 Renascença inventava, para além dos mares
llh • l11x11riosos, paraísos cujas miragens arrancaram
Cronistas e poetas portugueses procuraram nat ur:1l11w11t 1 li 1l11~ horizontes familiares descobridores e aventurei-
engrandecer a coragem dos capitães. lu~itanos. Por outro h1th 1 t 111111,u111• - o outro - foi também um ímã que permitiu
as correntes que circulam nas proximidades do cabo Boj111h 11 1h tlt• Hi mesma: voltaremos a isso mais adiante.
são efetivamente violentas. Enfim, cada nação, na . ~p<H'II 11 1 11111h fllll'll n massa das pessoas o recuo diante do estra-
Renascença, tentou impressionar seus conco_r~entes d1fu11tl lt11lt le 1,11 h11i 11s suas formas permaneceu por muito tempo
relatos terrificantes sobre as viagens mant1mas - ;1rn1 11 th 1111111,lt• mnis comum. O conselho dado no século xr pelo
dissuasão que se acrescentava ao segredo que se tentava 11111 1111 • 1111 1, 11lit1vmcnos teria podido ser formulado quinhentos
sobre os melhores itinerários. De todo modo, as rorns do 11111 1 t ,11t ll1 por muitos ocidentais: "Se um estranho cherra
gínquo causavam medo. , , . 111h , lll{n-sc a ti e entende-se contigo, não confia n ele:
E, se assim mesmo se chegasse aos pa1ses exotu.:<~~. q11 1111 1,1, ,1 ontílo que precisas precaver-te".49 Daí a hostili-
seres monstruosos, que animais fantásticos e aterron1,11111t 111 " lut nsleiros", a cólera nas aldeias, manifestada por
ali não se encontrariam? A Idade Média situou na l111h ~• 1111111 moça se casava com um homem vindo de
homens com cabeça de cachorro que rosnavam e 1111 111111 t li , 11 1,ilêncio dos habitantes diante das autoridades
outros que não tinham cabeça, mas ol_hos sobre o v,•1111, 11111 ,ltilt:S havia maltratado um "forasteiro", as rixas
outros ainda que se protegiam do sol de1tando-_se de c0t,t11 11111111111~1Js de duas localidades vizinhas, a propensão
erguendo um único e largo pé - universo onínco quc 11•1111 • Ih ,11 ,~ Judeus a responsabilidade pelas epidemias,5º os
rece no final do século XV na obra de Bosch. A prop(iHit11 11 111111111 lisonjeiros que nos séculos xv e XVI os euro-

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peus fazem muitas vezes uns dos outros, no morr~e1~to cm qm 11h11dos ele vinte paróquias bretãs em 1675 fazem diri-
explode a nebulosa cristã. Em seu Livre de la d~scrtptron des /UI\''• 111 llllll~S de Nevet e por ele ao governador da província:
redigido por volta de 1450, Gilles Le Bouv1er a~rese n1 :1 11! lm I rn1ltmtes de pagar [os impostos] que existiam há
maneira pejorativa a maior parte dos europeus: os 11:gl_esc~ ~n11 11111~ e não nos recusamos a pagar cada um sua contri-
"cruéis e sanguinários" e, além disso, mercadores cupidos. ( l 11111111 lhe cabe, e não contestamos nada senão os novos
suíços são "gente cruel e rude"; os ~s~~ndina~~s e_os P?lon~Nt'' 1 111 111'/,(0S".H Se os projetos ou os rumores de extensão
"pessoas terríveis e furiosas"; os s1c1hanos, mu1t~ c1u111c 111 11 l 1 11 1lll(i<1es que dela estavam tradicionalmente isentas
de suas mulheres"; os napolitanos, "pessoas grosseiras e n11l1 N11111111ndia, Bretanha, Poitou, Gasconha - desperta-
e maus católicos e grandes pecadores"; os castelhanos, "f.(l'l111 1111~ 11•11çõcs violentas, é que os povos aí viam um ataque
que por tudo se enfurece,' _e s~? mal _vestidos, mal _ca_li;:1_do~ 1 Ili h llrl(ÍOS mais antigos, portanto à sua liberdade, uma
maldormidos, e maus catohcos . Na epoca da Refo111u , "'Kl1 11h 1111us direitos e da palavra dos reis. Daí o grito famo-
ses e alemães consideram que a Itália é a sentina de todo•, 11 111 11•l :;cm gabela!". D aí o 111anifosto em favor da liber-
vícios, e essa opinião não deixou de contribuir para a pm p11 1111111111111 do alto e indomável mpitão João Miserável, geneml
1
gação do protestantismo. Ass!m, mesmo no _momento c11_1 ,1111 1/11 ./1' 11/(rimento (1639):
a Renascença amplia os honzontes do Ocidente - e ,1~1111
depois - , 0 estranho é visto por muita g:nte como suspc11 11 1 ,7t11io Miserável é vosso apoio,
inquietante. Será preciso tempo para habituar-se a ele._ N 1h1 ' Vingllrá vossf/ querela,
destacam, no século xvn ou até o começo do XVIII, mov1111l·111t1 l,i/1crtm1do-vos dos impostos,
xenófobos em diversos cantos da Europa: em 1620 em Mar~1•ll1
1 /rimí retimr a gabe/a
contra os turcos - 45 deles são massacrados - , em 1621 1•111 N ro111bate1'fÍ por nós todas essas gentes
Barcelona contra os genoveses, em 1706 em Edimburgo 011d1 1 Q1111 se enriquecem às cnstas
51 !),, vossos bens e da pátria;
população mata a tripulação de um barco inglês?
/r'()i ele que Deus enviou
Pmr, colocar na },lonnandia
A novidade era - e é - uma das categorias do OtJ.I ro, 11111 Um11 pe1feita liberdade. 15
nossa época, a novidade é um slogan qu_e re~de. Outrrn'111 111
li 111111, nno é excessivo perceber com Y.-M. Bercé, por
contnírio, caus,1va medo. Evocaremos mais adia_nte as rcl wlltll
1 d l~•lics antifiscais de outrora, o choque de duas cul-
e as revoltas~provocadas pelos aumentos de n_11postos. l Ili
sobrecarga fiscal não era apenas um fardo a mais para 0111111 11 1111111 lll'n l, costumeira, na defensiva, "tomando seus
1 111 11111 passado imutável", a outra escrita, moderna,
fatigados, era também uma novidade. Era um! das forn 111t1 11
outro. "Nossos povos", reconheciam os escabmos de _Boi 1h 11 ti p111•igos:11nente inovadora.5" O papel timbrado teria

em 1651, "sãonaturalmenteimpacientes com todas asnov1d:1dl' 111 1,111 odioso se não tivessem tentado impô-lo a popula-
As revoltas do Périgord em 163 7, as taxações ~ec~ntc,1111 Ili 11111l111111•11cc ana lfabetas? As mesmas estruturas mentais
decididas parecem "extraordinárias, insuportáveis, ilcg-11 l111,1 111 1 111volt:1 dos "tard-avisés" do Quercy, em 1707, contrn
53
excessivas, desconhecidas de nossos pais". A mesma rcc11•11111' 1 q111• l11st ituía controladores dos autos extraídos dos

"novidades" reaparece na "petição da populaça" que o s c11111111 1 11111oq11i:1is.57 Se as sedições de outrora procederam a

-,,, 75
frequentes queimas de papéis, não foi porque o povo iletrado [...] Devolverei em b1-eve a primeim liberdade
tinha medo e ódio da escrita? Do nobre, do camponês e da santa lgi·eja,
Os novos tributos eram acompanhados não só de uma pape- Quero dizer no estado em que estávamos
lada sem exemplo no passado, mas também da instalação de Quando Luís Doze conduzia um século de 01wo.60
organismos de arrecadação aos quais não se estava habituado:
razões de sobra para a inquietação. A coleta das talhas na França A utopia do Estado sem tributo atravessou os séculos.
\ ~sim, na França, acreditou-se no alívio, ou até na supressão do
do século XVII foi precedida pela redução de regiões de estados
IIHrn, quando da morte de Carlos v, da ascensão de Henriq:ue
a regiões de eleições e os oficiais de finanças, tradicionalmente
li , dn morte de Luís XIII, da de Luís XIV, no momento da reu-
ligados aos interesses de sua cidade ou de sua província, foram
uh1o dos Estados Gerais por Luís XV e ainda quando se difun-
progressivamente desapossados em favor de comissionados assa-
diu nos campos a notícia das jornadas parisienses de 1848. 61 Tal
lariados, revogáveis e nomeados pelo intendente. Assim, na opi-
1111!0 teve por muito tempo como componente maior a crença
nião geral, novos tributos e "forasteiros" estiveram indissolu- tlll inesgotável bondade do soberano. Ele era o pai de seus súdi-
velmente ligados. Os comissionados e os cobradores da gabela 111s; não demandava senão o alívio de seu povo. lvlas era enga-
de toda laia apareceram como gente que chegava de outras par- undo por seus ministros e pelos agentes locais destes últimos.
tes para extorquir uma comunidade a que não pertenciam. Em 1 >t•ssc modo, durante séculos, não houve revolta contra o rei
1639 os "Miseráveis" da baixa Normandia reuniram-se em cm um personagem sagrado acima de qualquer suspeita - ,
ann~s para defender a pátria "oprimida por financistas e cobra- 11111:; apenas contra seus indignos servidores. Os bordeleses,
dores da gabela" e "não tolerar nenhuma pessoa desconhecida" puclindo perdão a Henrique IJ em 1549, fizeram-lhe sincera-
nas paróquias.58 O Manifesto de João iVliserável lançava em sua ltlCnte notar que "a sublevação [não tinha] sido feita para opor-
terceira estrofe esta exclamação significativa: Ni" à sua autoridade, mas para resistir às grandes pilhagens que
lt1iinm aqueles que estavam comissionados para a gabela e que
E eu suportarei um povo languescente ••~~cs fotos lhes eram insuportáveis".'·'
Sob a tirania, e que mn bando de forasteiros Revoltar-se era ajudar o rei a livrar-se das sanguessugas da
Oprime todos os dias com suas frações! ;•, 1111\:ilO. Do mesmo modo, pensava-se periodicamente que o
pl'lncipe desejava essa cooperação ativa e, durante certo tempo
Os estudos recentes sobre as sedições de outrora provaram
1111 menos, dava ordem e até intimava o povo a fazer justiça por
que a imensa maioriá; ~elas tinha uma dominante "misoneísta".
~i mesmo. G. Lefebvre pôs em evidência esse elemento da psi-
Conservadoras e passadistas, faziam por vezes referência explíci- 1•11logia coletiva quando das perturbações rurais do verão de
ta - ou, com mais frequência, remetiam inconscientemente - 1789. Depois de 14 de julho, Luís xvr, como acreditava bom
ao mito da idade de ouro perdida, maravilhoso paraíso ao qual se 111i111cro de camponeses, decidira rebaixar o poder dos privi-
teria amado voltar e que os milenaristas percebiam novamente h gindos e redigira instruções nesse sentido. Mas conjurados
no horizonte. Sob sua forma atenuada, esse mito fazia crer às Impediam sua publicação, e os padres abstinham-se de lê-las na
populações que existira outrora um Estado, sem tributo nem homília. Apesar desse silêncio, convenceram-se de que o rei
tirania, por exemplo no tempo de Luís XII. E o que assegurava 1111dcnara queimar os castelos e outorgara algumas semanas
João Miserá~el aos revoltosos normandos de 1639: dl• permissão para essa santa tarefa.63 Tal mitologia sobrevivia

76 77
ainda em 1868. Nessa data, camponeses do Angoumois e do Ih 111~11 que afastava do verdadeiro D eus. Destruí-las era resti-
Périgord estavam persuadidos de que o imperador concedera 11111 110 culto a autenticidade que os séculos haviam obscu recido.
alguns dias de pilhagem - uma pilhagem que não teria sido, l 111 111mbém, de certa m aneira, imitar a conduta e a santa cóle-
evidentemente, senão uma forma popular de justiça.,,, Assim, 1 t dt• Jesus expulsando os mercadores do templo.
ocorreram poucos i1tos de v iolência coletiva, o utrora, sem refe- Nigrinus, superintendente de Hesse, afirmav.1 em um ser-
rência ao menos implícita a um passado idílico, sem apreensão 1111111 ele 1570:
diante das novidades e dos estrangeiros que as traziam, sem que
se colocassem em jogo as desconfianças viscerais que se sentia Nilo esqueçamos que aqui estão a justiça e o castigo do Se-
em relação às pessoas externas a seu próprio universo: os cam- 11hor. E_le_ ameaçava havia muito tempo as casas de prostitui-
poneses pelos citadinos, os citadinos pelos camponeses, uns e
i;1l~ cspmtua( e os templos dos ídolos, anunciando que logo
outros pelos vagabundos. Todos esses medos atuaram de novo
11cr1am reduzidos a cinzas. Agora é preciso que sua vontade
plenamente na França por ocasião dos distúrbios de 1789-93.
Nc cumpra; sabei que, se não se encontrasse n inguém para
1•xccutar sua sente nça, o Senhor, irritado, lançaria seu raio
pnrn aniquilar os ídolos. 66
O medo e a recusa do novo são encontrados também nas
agitações e revoltas religiosas dos séculos XVI-XVTI. Os protes-
Assim, em todo o percurso protestante, até em suas violên-
tantes não ti nham de modo algum desejo de inovar. Seu obje-
1hlN, pretendia-se o retorno ao passado, fazia-se referência à
tivo era voltar à pureza da primitiva Igreja e livrar a Palavra
D ivina de todos os disfarces que a traíam. Era preciso eliminar, hliulc ele ouro da primitiva Igreja, recusavam-se as inovações
,,tc•rílcgas acumuladas pelo papismo no decorrer das eras.
ainda que pela força, tantos acréscimos idólatras e supersticio-
Mas as populações estavam habituadas às imagens às ceri-
sos que os homens, enganados por Satã, haviam "introduzido", .
~ '
11111111:is, aos sete sacramentos, à hierarquia, à organização ca-
"i nventado", "forjado" ao longo dos séculos às custas da me nsa-
gem de salvação. Indulgências, peregrinações, c ulto dos santos, 111l1çn: 0 es~e modo, para muitos os p rotestantes pareceram
ofícios em latim, confissão obrigatória, votos monásticos, miss.1 ,1t11ln_c1~sos mo~adores e assim foram considerados perigosos:
papista deviam ser varridos para que se pudesse novamenJe ir ,11pr11111am a missa, as vésperas, a quar esma, não reconheciam
em direção do Senhor pela via reta da Bíblia. D emolir, como 11111i:; o papa; repudiavam em bloco o sistema eclesiástico insta-
exigia Lutero, os "três muros da romanidade" (isto é, a superio- h11l0 havia séculos e a instituição monástica; desvalorizavam 0
ridade cio poder P.,Ontifício sobre o poder c ivil; o direito que se 111ho _à Vi rgem e aos santos. A verdade é que introduziam no
arroga o papa de só ele interpretar as Escrit uras; a preeminên- p1opr10 coração do cotidiano mudanças verdadeiramente iirnu-
cia do papa sobre os concílios) era trabalhar para Deus contra clhns. Na França, os "conventículos" protestantes - isto é as
o Anticristo e recolocar as coisas da cristandade em seu verda- 11•1111iões cultur~is dos reformados - foram rapidamente obj~to
deiro lugar. 65 Nem Lutero nem Calvino aprovaram as destrui- ilt• lc.:ndas caluniosas, e o aspecto voluntariamente austero dos
ções de imagens. Mas foram ultrapassados na Alemanha, na dlNdpulos de Calvino tornou-se ele próprio suspeito a toda
Suíça, nos Países Baixos e na França por ativistas que levaram 1111111 parcela da opinião. A regente dos Países Baixos certamen-
às suas extremas consequências a doutrina que haviam recebi- te• cxprimia o sentimento de muita gente quando denunciava "o
do. Ora, tal doutrina via nas imagens uma iconografia supers- p11rigo iminente de uma destruição e subversão geral e próxima

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79
67
da religião antiga e católica, juntamente com o estado público". população irritou-se porque seu padre deixara de celebrar a
A fé protestante ganhou fisionomia, para seus inúmeros adver- h•NtR de são Lucas. Em uma localidade do East Riding, a mesma
sários, de "doutrina nova", de "religião nova". Além disso, foi c•onn se produziu a propósito da festa de são Wilfrido.69 Os
apresentada na França como importada do estrangeiro pelos "1•ruzados" da Peregrinação da Graça exigiam, pois, antes de
"cães genebrinos". Assim, adotar "a moda de Genebra" era pro- 111nis nada, a "restauração" de sua religião. Em seu manifesto,
priamente mudar de religião com todas as consequências que dl:-,inm especialmente:
tal decisão podia comportar. Na sagração de Carlos IX (em 5 de
maio de 1561), o cardeal da Lorena anunciou ao jovem rei que Em pri1'.1eiro lugar, no tocante à nossa fé, queremos que
"quem quer que lhe aconselhasse mudar de religião lhe arran- ns heresias de Lutero, Wyclif, Huss, Melanchton, Occo-
caria ao mesmo tempo a coroa da cabeça". O dever dos católicos lampade, Bucer [...] e outras heresias dos anabatistas sejam
era portanto "manter a fé antiga", "restaurar o santo serviço de anuladas e destruídas neste reino. Em segundo lugar, que
Deus". No momento em que se constituiu em 1575 a liga de a sede ?eRoma seja restaurada como autoridade suprema
Péronne, a associação dos príncipes, senhores e fidalgos decla- da IgreJa, no que concerne ao cuidado das almas, como era
rou pretender "estabelecer a lei de Deus por inteiro, recolocar o hábito anteriormente, e que os bispos recebam dela sua
e guardar o santo serviço segundo a forma e maneira da santa consagração [...].
Igreja católica, apostólica e romana". Assim, no plano da psico- Que as abadias suprimidas sejam restabelecidas em suas
logia coletiva, se a heresia era considerada uma "úlcera" que era casas e em seus bens [...). Que os irmãos observantes reen-
preciso "cortar" e "ressecar", era por ser uma novidade contra contrem novamente suas casas.'º
a qual importava defender-se.
Contrariamente ao que se passou na França e nos Países '1111 1547, a revolta da Cornualha começou pelo assassinato
Baixos, na Inglaterra os soberanos fizeram pender a balança 1,111 1lelston de um agente do governo, William Body, que lá
para o lado do protestantismo. Mas não sem dificuldade. Pois 1•htigara para promover a implantação das diretrizes de reforma
várias revoltas exprimiram o apego de parte da população ao 1ciligiosa_ de ~duardo VI e do protetor Somerset. Após o assassínio,
culto romano e às estruturas religiosas tradicionais. A Pere- lllll dos mspJradores da rebelião declarou publicamente na praça
grinação da Graça (1536), na região de York, foi uma subJeva- 1111 mercado: "Qualquer um que ousar tomar o partido desse
ção em favor dos mosteiros, os quais o governo desejava a ll11cly e seguir as novas modas como ele o fez será punido da
suprimir. Certamente, os mosteiros desempenhavam um papel 111t•s111a maneira".11 A bandeira dos rebeldes (que logo empreen-
econômico e socia1,importante. Mas, segundo Aske, o chefe da 1h1m 111 o cerco de Exeter) comportava simbolicamente as cinco
rebelião, tinham1 sobretudo duas funções religiosas principais: 1 h111(ns de Cristo, um cálice e um ostensório, esses dois objetos
mantinham por sua piedade a autêntica tradição cristã e ensi- -llf{l'lldos marcando com evidência o apego ao culto tradicional.
navam a religião a um povo "pouco instruído na lei divina"."º Os conflitos confessionais do século XVI podem ser vistos
Este, precisamente, aferrava-se à maneira antiga de rezar: p111•rn11to como um choque dramático entre duas recusas do
provam-no os incidentes que eclodiram no leste da Inglate~·ra 1111vo. ?ns ~ueriam bani_r os escandalosos acréscimos papistas
pouco antes da Peregrinação da Graça. Em Kendal, no domm- -oh ct'.Jº acumulo .ª IgreJa romana progressivamente sepultara
go depois do Natal, os fiéis insurgiram na igreja e obrigaram o 11 IHl)lca. Os demais agarravam-se ao culto tal como o haviam
sacerdote a recitar o rosário pelo papa. Em Kirkby Stephen, a e 1111 hccido na infância e tal como seus ancestrais o haviam pra-

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ticado. Todos olhavam na direção do passado. Ninguém dese- 11111 li desconfiança; portanto, o temor. Assim, convinha vigiar
java ser inovador. A mudança constituía _par~ os home~s _de 11 ourro e manter-se em estado de alerta constante em relação a
outrora urna perturbação da ordem; o mab1tnal era v1v1do 111•: " Pelo olhar se conhece a pessoa" (século XIII). "Conhecern-
como um perigo. Na Alemanha protestante, quando se procu- ~c• 11s pessoas por seus gestos e atitudes" (século XVI 76).
rou adotar, no final do século XVI, o calendário gregoriano Aqueles e aquelas que foram denunciados como feiticeiros e
ajustado em Roma em 1582, violentos protestos explodiram e h,h icei ras eram frequentemente pessoas que seus acusadores
surgiram movimentos de pânico: _temia-se um ban_ho de_ san- 11111hcciam bem ou acreditavam conhecer bem e cujos passos
gue! Esse calendário não era papista? Tal era a afmnaçao de •11/jpoitos haviam sido cotidianamente espreitados: assistiam pou-
superfície. i\llas, no fundo, o que certamente perturbava era 111 cn, mal à missa ou recebiam os sacramentos com gestos estra-
essa modificação inaudita cio cômputo dos dias.
72 11hos; passando perto de uma pessoa, lançavam-lhe um feitiço
,11 11tovclando-a ou soprando-lhe no rosto sua respiração empes-
1,11111 ou ainda lhe dirigindo um olhar diabólico - o mau-olhado.
O distante, a novidade e a alteridade provocavam medo. \1d11 ontão aqui um fator de proximidade, fonte de hostilidade.
Mas temia-se do mesmo modo o próximo, isto é, o vizinho. \h1111 disso, conhecia-se não apenas fulano ou fulana, mas tam-
Nosso campo de concentração cotidiano ignora muitas vezes a 111111 seu pai morto na prisão ou sua mãe, ela própria feiticefra.
porta ao lado. Conhecem-se melhor os ruídos d~ apa~tamento l lpl11iílo pública e conhecidos concluíam acerca da culpabilidade
próximo do que o rosto de seus moradores. Assim, vive-se ~a il,,~ pessoas com base em seus antepassados. Os demonólogos e
mornidão e na monotonia de um anonimato cem vezes repeti- 11• jll Í~c s suspeitaram de muitas segundas intenções de vingança
do. Outrora, ao contrário - nesse "mundo que (em grande 11111 ll'sls de certas acusações <le feitiçaria. Mas a ideia que faziam
parte) perdemos" - , conhecia-se o vizinho e em muitos cas~s ,h "i111 íl - voltaremos a isso mais adiante-conduziu-os a amen-
o conhecíamos demasiadamente. Ele era um peso. Um hon- t 1t ,11 os terrores populares e, portanto, a reforçar o discurso de

zonte estreito reconduzia perpetuamente as mesmas pessoas 11~1IC'llil expresso por uma civilização na qual o próximo era mais
para perto umas elas outras, delimitando um círculo de paixões 11 • q111•11tcmente inimigo do que amigo. Teorizaram, sob forma
tenazes, de ódios recíprocos, incessantemente alimentados por ,h 11111dclos, sobre práticas de relações odiosas. Na sinistra obra
11111• 1!1i n bíblia de muitos inquisidores, o O martelo das feiticeiras
novos rancores. Desse modo, era uma sorte altamente aprecia-
1I 1•1I,, 1486), lnstitoris, o principal autor, relata o depoimento de
da ter um amigo ao alcance da mão.
"Quem tem bom vizinho tem bom caminho", repetem os 1111111 "honrada" mulher de Innsbruék:
provérbios/! não ~e1i1 insistir de maneira significativa na verda-
de oposta: "Quem tem vizinho desleal muitas vezes tem mau "i\1 ,•i{s ele minha casa, declarou ela, tenho um jardim; ele é
111111 íguo ao jardim de minha vizinha. Um dia, vi que uma
caminho" (século xm, Romnn de Fiernbras). "Diz-se que quem
IIIINNngcm havia sido aberta, não sem danos, entre o jardim
tem mau vizinho tem muitas vezes mau caminho" (século XIII ,
Romnn dtt Rennrt, verso 3527).14 É mais terrível o vizinho a 1h1 vi~inha e o meu. Queixei-me a ela, zangando-me um
quem nada escapa. Seu olho inquisidor explora nossa existência p1111uo, não tanto pela passagem como pelo dano[...]". A vi-
ao longo do dia e do ano. "Vizinho sabe tudo", assegura uma ,l11hn furiosa retirou-se murmurando. Alguns dias depois,
1 1111111111a a declarante, "senti-me doente com grandes dores
sentença do século XV.75 No universo de hoje, o sentimento
dominante entre vizinhos é a indiferença; no de antigamente, ih• hnrriga e pontadas da esquerda para a direita e da di-
83
Q?
reita para a esquerda, como se duas espadas ou duas facas 1h• lllnto que se faz temer por seus ditos vizinhos".80 Nas epide-
estivessem plantadas cm meu peito". Ora, a vizinha perversa 111i11s demoníacas que devastaram a Europa nos séculos X'VI e
colocara na soleira de sua inimiga "uma figura de cera de \\' li, aparecem em primeiro plano relações de vizinhança hos-
um palmo, toda perfurada, os lados atravessados por duas 1111 ontre duas aldeias próximas ou entre clãs rivais no interior
agulhas, justamente no lugar onde da direita para a esquerda dt• uma mesma localidade. Em 1555, em Bilbao aprisionam-se
e vice-versa eu sentia as pontadas [...]. Havia também peque- por fe itiçaria 21 pessoas da mesma família de Ceberio, acusadas
nos saquinhos com grãos diversos, sementes, ossadas".77 p111• um grupo ele aldeões que lhes eram hostis.8 ' Os comporta-
111111110s maléficos atribuídos aos vizinhos suspeitos tornavam-
Citando o PTéceptoire de la loi divine, de Nider, O 111artelo das ~,• ontão estereótipos. Um exemplo entre mil: os gestos diabó-
feiticeiras apresenta outro t ipo de ação diabólica contra vizi- lh'oN ele Claudine Triboulet, que acaba por ser condenada à
nhos. Dois feiticeiros das redondezas de Berna 111rn'lC em 1632 pelos juízes do bailio de Luxeuil. Ela compra
ptll' cinco francos um dossel de certa Lucie Coussin. Quando

[...] sabiam, quando lhes agradava, fazer passar de um cam- 1•~111 toma em seguida sua bolsa para uma compra, ali não
t 111•011tra mais cio que pó. Algum tempo depois, Claudine traz
po vizinho para o seu campo, sem se fazer ver por ninguém,
um terço do estrume, da palha e do cereal ou outra coisa; 11111 pifo para Lucie, que, abrindo-o à hora da refeição, ali des-
t olU'c uma grande aranha. Ela corre apressada à casa do padre,
sabiam provocar as tempestades mais violentas e os ventos
111111 benze o pão. Imediatamente a aranha morre ... e desapare-
mais destruidores com raios; sabiam, sem se fazer ver, sob
t 11, 1,:ra portanto o diabo. No dia de são Lourenço, Lucie come
os olhos dos pais delas, lançar à água crianças que passea-
1111111 pera que C laudine lhe deu: logo "queima-lhe a garganta".
vam à beira da água, causar esteril idade entre os homens
I• prociso exorcizar a infeliz em Besançon. Muito evidentemen-
e os animais; provocar prejuízos de todas as maneiras às
1111 ( :lnudine é uma feit iceira.81
pessoas e aos bens; algumas vezes até atingir com o raio
Inútil multiplicar tais anedotas que repetem indefinida-
quem eles queriam; e causar ainda outras calamidades onde 11111111,e umas às outras da Suíça83 à Inglaterra, da França à Ale-
e quando a justiça de Deus lhes permitia.18 1111111h11. Esclarecedoras são, em compensação, duas quantifica-
\111'~ fornecidas por A. Macfarlane: em 460 incriminações por
Os processos de feitiçaria dos séculos XVI e XVll fazem eco 11111loffcios diante dos Assizes [tribunais] de Essex entre 1560 e
às afirmações de O martelo das feiticeiras. Em sua Démonomanie, lr1H0, npenas cinquenta puseram em causa vítimas que não ha-
Jean Boclin mencibna "o julgamento de uma feitice ira que era li11,1v11111 na mesma aldeia que a pessoa que as havia, dizia-se,
acusada de ter enfeitiçado sua vizinha na cidade de Nantes" e 1 1111111 içado. E só cinco denúncias mencionaram uma distância
que foi queimada."' Em um dossiê ainda inédito, referindo-se a 1h• rnnis ele sete quilômetros entre acusador e acusado. Assim, o
malefícios lançados a animais e pessoas na região de Sancerrc p111lur dos enfeitiçadores não se estendia para além de alguns
em 1572-82, um dos acusados, Jehan Cahouet, é assim enqua- 11111u•os quilômetros.ª• Já o lúcido Reginald Scot notara, em
drado: "Ele é feiticeiro, conduz e encerra os lobos onde quer 1,H,I, que seu raio de ação mágico era o de seus contatos so-
e os faz descer e vir dos bosques onde estão, causa peste e dano 1hdN!' Os processos de feitiçaria aclaram então para nós com
a seus vizinhos para dar seu gado tanto grosso quanto miúdo 1111111 luz violenta - e graças aos períodos de crise - as tensões
como alimento aos ditos lobos, ou faz morrer por sortilégio(...] 1 ~ttspoirns que atravessavam outrora permanentemente uma

84 85
apresentava nada, nem na atitude, nem no comportamento,
civilização do "face a face", que de maneira quase obrigatória que evocasse um ladrão de machado.'7
elegia uma ou várias pessoas por aldeia como perig~sa. Pode-se
fornecer sobre esse assunto uma prova n coutrnno: na r ~~a Entre as pessoas que e ram bem conhecidas na aldeia, havia
França, dos séculos xvu-xvm, os processos envolven~o fe1t1- ,1q11cle ou aquela que assistia e que era procurado em caso de
ceiros foram raríssimos, diversamente do que se poden~ espe- doença ou de ferimento porque ele - ou ela - sabia as fór mu-
rar no caso de uma população rural que blasfemava muito, es- h1N e as práticas que curam. Essa atividade lhe conferia pode r e
tava mergulhada tanto quanto a da Europ~ numa am10sfera de ,1111oridade no horizonte de sua notoriedade. Mas tal pessoa era
magia e encontrava-se, além disso, submet!d_a ao olhar _d_escon- ,uspeita para a Igreja porque empregava uma medicina não
fiado de um clero militante. Mas na Amenca as familrns dos 1111dossada pelas autoridades religiosas e universitárias e, se suas
colonos franceses achavam-se separadas umas das 0~1t_ras por 11•1·citas fracassavam, ela era acusada pelo rumor público: devia
vastas extensões. Ali, o vizinho não pesava. Ao contrario, pro- ,1111 poder a Satã, servia-se dele para matar e não para curar.
curava-se sua presença, a tendência e~a se aproxir~u~r do colo~o l'ortanto, corria o risco da fogueira , na qual pereceu - um
mais próximo para escapar às armadilhas da solida? e dos 1~- 1 ,11111 entre muitos outros - a curandeira escocesa Bessie Dulop
dios.u D enunciar e fazer condenar um outro frances da ~me- 1111 1576.8" E. D elcambre ressaltou bem a suspeita que pesava
rica era enfraquece r a si mesmo, isolar-se um pouc_o _ma1s em 1111~ séculos XVI-XVII sobre os curandeiros e c urandeiras da
meio a um universo hostil. Na Europa, ao contrario, atuou 1 nrcna. A crença dos juízes e do clero a esse respeito, escreve
frequenteme nte, até a Revolução Industrial e a emigra_?ãO ma- 1h'. ncabou "por influenciar o vulgo: qualquer um na Lorena
ciça para as cidades, um fenômeno de superpopulaçao rural 11111• se metesse a cuidar dos doentes por encantações ou p ere-
gerador de conflitos internos. . . . . ~111111ções ou os curasse com uma instantaneidade de aspecto
A suspeita em relação ao v1Z1nho, que parece estai na ori- t1hl'cnatural tornava-se suspeito perante seus vizinhos de pacto
gem de tantas denúncias por feitiçaria, foi urna constante das 111111 o diabo". 89
civilizações tradicionais. E talvez compreendamos mel~or 0 I•:sse olhar de desconfiança pesava ainda mais severamente
que se passou outrora em nossa Europa lendo este apologo 11l11 l' ns parteiras, situadas no ponto de encontro de duas inter-
eh inês tirado do Lie-tseu: 111111,çi'lcs ameaçadoras, urna formulada pela opinião pública em
111 11ível mais humilde, a outra pelos depositários do saber.
Um homem .não encontrava seu machado. Suspeitou que o 11111 que as condições de higiene eram lamentáveis e o estado de
filho de seu ,;izinho o houvesse pego e pôs-se a observá-lo. 1111h• d:is populações muitas vezes deficiente, a mortalidade
Sua atit"ude era tipicamente a de um ladrão de machado. 1111,1111 il era outrora enorme e frequentes os óbitos de crianças
Seu rosto era o de um ladrão de machado. As palavras que 11 li l111ortas. Nem por isso os pais deixavam de fi ca r surpresos e

pronunciava só podiam ser palavras de ladrão_ de machado. 11-1111hosos quando o parto terminava mal. Se esses trágicos
Todas as suas atitudes e comportamentos traiam o homem ,li 1•11l11ccs começassem a se multiplicar em uma aldeia ou num
111111 o, imediatamente a suspeita se d ir igia para a parteira res-
que roubou um machado.
Mas muito inesperadamente, revolvendo a terra, o h~- 111111~,lvcl. Mas, por outro lado, os teólogos asseguravam que
~ li ,1 •j1• rejubilava quando crianças morriam sem batismo, já que
mem reencontrou de repente seu machado. Quando, no di;l
li 11 111111 para o paraíso. Nessa ótica, as parteiras não se consti-
seguinte, olhou novamente o filho de seu vizinho, este não
87
or.
tufam em auxiliares privilegiadas do Maligno? Tanto mais que, 1l1.1pois, elevando-a nos braços, oferece-a ao príncipe dos
em suas imundas misturas, as feiticeiras tinham o costume, demônios Lúcifer e a outros demônios; tudo isso na cozi-
acreditava-se, de inserir pedaços de crianças não batizadas. 11hn, em cima do fogo.?º
Assim, a parteira era acossada d~ dois lados. No decorrer das
epidemias demoníacas, sem dúvida ela foi, na aldeia, a pessoa ( )s documentos inquisitoriais da Lorena provam a conjun-
mais ameaçada, o próximo mais suspeito. Em O martelo dlls \411 111> plano local dos alertas saídos de O 1m1rtelo das feiticeiras.
feiticeiras, um capítulo inteiro explica "Como as parteiras feiti - i\, p111'teiras", escreve E . Delcambre, "eram, mais do que todos
ceiras infligem os maiores males às crianças": ,._ 1111tros, suspeitas de malefícios [provocando abortos acidentais
11111wimento de crianças natimortas]". Uma delas, originária de
Lembremos ainda o que apareceu nas confissões dessa criada H111111•l'Etape, confessou que "Mestre Persin" - era assim que
que passou por julgamento em Brisach: "São as parteiras que 1 h1111111vn Satã - "a persuadira [...] a fazer morrer todas as crian-

causam os maiores danos à fé". Aliás, viu-se isso claramente \ 111 que t ro uxera ao mundo [...] A fim de que não recebessem o

pelas confissões de certo número de outras que em seguida l111lw1110". Graças a ela, ele teria "levado mais de doze delas ao
foram queimadas. Assim, na diocese de Basileia, na cidade ele 1h1l''i niio munidas desse sacramento.91 Abortadoras e feiticeiras
Thann, uma feiticeira queimada confessara ter matado mais 111 potencial, as parteiras foram estritamente vigiadas pela
de quarenta crianças da seguinte maneira: à sua saída do ven- l11i.1j11 tridentina, que pediu aos padres de paróquia que as inves-
llM1IN~c.i111 e confirmassem se sabiam administrar o batismo.
tre, ela lhes enfiava uma agulha no alto da cabeça, no cére-
bro. Uma outra ainda, na diocese de E strasburgo, confessam
ter matado mais crianças do que podia contar.
\, I JOJE E A.iv[ANHÃ; MALEFÍCIOS E ADIVINHAÇÃO
Quanto à razão de tudo isso é de se presumir que as
feiticeiras fazem isso sob a pressão dos maus espíritos e () hom em de outrora, sobretudo no universo rural vivia
por vezes contra sua vontade. O diabo sabe com efeito que 1 1 11•1
1110 por um meio hostil no qual despontava a todo in,stante
por causa da pena da danação e do pecado original essas ~ ,11111•t1ça de malefícios. Um deles merece atenção particular: o
crianças são privadas da entrada no reino dos céus. Além 11111h1 ng ulheta. O feiticeiro ou a feiticeira podia, acreditava-se,
disso, desse modo o juízo final é retardado, após o qfrnl os 111111111' esposos impotentes ou estéreis - confundiam-se fre-
demônios serão enviados aos tormentos eternos, sendo o •11111111cmente as duas enfermidades - dando um nó num cor-
número dos el~itos atingido mais tardiamente, ao termo do 1 lh1 dur:in.te a cerimônia de casamento e ao mesmo tempo
qual o mune.to deve ser consumado. E depois [...] com esses 11111111111ciando fórmulas mágicas, e às vezes também lançando
membros as feiticeiras têm de confeccionar unguentos para 1111111 1noeda por trás do ombro. Urna tradição plurimilenar
seus usos próprios. Mas a fim de levar a detestar um cri- 111 •111dn ao longo das eras por Heródoto, Grégoire de Tours,
me tão abominável, não podemos passar sob silêncio o que 11111 lt11í rneros estatutos sinodais e demonólogos e que circulava
acontece: quando não matam as crianças, oferecem-nas aos 1111 difere ntes níveis culturais, afirmava a existência de casos de
demônios numa oferenda sacrílega. Desde que a criança 1, 11wl lidnde e impotência provocados por sortilégios. O martelo
nasceu, se a mãe não é ela própria feiticeira, a parteira leva ,l,11/11/ticcin,s assegura que estas podiam impedir:
a criança para fora do quarto sob pretexto de aquecê-la;

88 89
[...] a ereção do membro necessií ria à união fecunda [e] o 11111· "desata"; e os ministros serão censurados se abençoarem
fluxo das essências vitais [...] quase obturando os condutos ,1 1111ino matrimonial fora de sua igreja:
seminais a fim de que a semente não desça para os órgãos
geradores e não seja ejaculada ou seja ejaculada com per- Em vista do flagelo com que muitos são afligidos nas igrejas
da [...]. Elas podem enfeitiçar a potência genita l a ponto de f!Clos atadores de agulhetas, os pastores, para a isso prover,
tornar o homem incapaz de copulação e a mulher de con- farão ver vivamente em suas pregações que a causa desse
cepção. A razão de tudo isso é que Deus permite mais coisas infortúnio vem da infidelidade de uns e da enfermidade de
contra esse ato pelo qual o primeiro pecado é difundido do fd dos outros e que tais encantações são detestáveis; como
que contra os o utros atos humanos."' rnmbém a conduta daqueles que recorrem aos ministros. de
Satã para fazer-se desatar, sendo pior o remédio que pro-
E. Le Roy-Ladurie nota justamente que o nó da agulheta, curam do que o mal de que sofrem, o qual não se deve re-
tal como era imaginado então, consistia "em um nó castrador med!ar senão com jejuns, orações e por urna transformação
destinado a lesar a zona genital" e que a crença nessa ligadura ele vida. Acrescentar-se-á também ao formulário da exco-
é ao mesmo tempo antiga e amplamente difundida, já que é munhão que se pronuncia publicamente antes da comu-
encontrada nas duas margens do Mediterrâneo e no sudeste nhão, depois da palavra idólatra, todos os feiticeiros, bruxos
africano. Esse tipo de lesão pode ter sido inspirado, ao menos e magos [sínodo de Montauban, 1594].
entre nós, pela técnica dos veterinários para castrar carneiros, Sobre a questão (...], se é lícito dar atestado àqueles que
touros e potros. Com efeito, atavam os testículos ou o saco se querem casar fora de suas igrejas para evitar os sortilé-
escrotal com uma ligadura de cânhamo, de lã ou de couro: ?ios e_ligamentos de agulhetas? O sínodo é de opinião que
prática conhecida por Olivier de Serres91 Reconstitui-se a par- isso nao lhes deve ser permitido e que serão exortados a não
tir d:ií a possível passagem, na mentalidade antiga, da habilida- dar ouvidos a tais coisas que procedem de incredul idade ou
de dos veterinários ao feitiço la nçado aos humanos. de enfermidade [sínodo de Montpellier, 1598).94
Os séculos XVI-XVll não viram no O cidente uma recru-
descência do temor de malefício? Em 1596-8, o suíço Thowas _Em 1622, Pierre de L ancre confirma, por sua vez, que a
Platter descobre no Languedoc uma verdadeira psicose de li ll.(1dcz causada pela agulheta está tão difundida na França de
agulheta: "(Aqui]",·,escreve ele sem dúvida exagerando, "não ~1111 tempo que os homens de honra, não ousando mais casar-se
se veem dez casasr1êntos em cem serem celebrados publica- de• dia, fazem abençoar sua união à noite. Esperam assim esca-
mente na igreja. [Por temor dos sortilégios] os casais, acom- jlill' no diabo e a seus sequazes.''i
panhados de seus pais, vão às escondidas à aldeia vizinha Sobre a ubiquidade, senão do próprio sortilégio, ao menos
receber a bênção nupcial". Por várias vezes, entre 1590 e 1600, du temo r que inspirava, os documentos, nos séculos xv1 e )..'VII,
os sínodos provinciais do sul da França inquietam-se ao mes- ~,lo numerosos. ). Bodin declara em 1580: "De todas as imundí-
mo tempo com as práticas castradoras e com a atitude dos 1 lt•s ~la_ magia, não há mais frequentes por toda parte, nem mais

pastores, que, cedendo às apreensões dos cônjuges, aceitam p1wn 1c1osas, do que o impedimento que se causa àqueles que se
celebrar os casamentos fora de suas paróquias. Os fiéis devem, 1 11M1111, que se chama atm· n agulbetn; até as crianças trabalham

contra tais sort ilégios, confiar-se só a Deus e não ao feiticeiro nisso 1•.•]".96 Boguet, "grande juiz no condado di1 Borgonha",

nn 9/
retoma as mesmas afirmações em seu Discom:, exécrable des sor- 11 nm poste face a face, o poste porém entre eles dois; fusti-
ciers [...] publicado em 1602: "A prática [desse malefício]", escre- ~nva-os com varas por diversas vezes; após o que, desatava-
ve ele, "é hoje mais comum do que nunca: pois até as crianças os e os deixava juntos toda a noite, dando-lhes um pão de
se metem a atar a agulheta. Coisa que merece um castigo dois vinténs e uma garrafa de bom vinho, e fechava-os a
exemplar".97 Ainda em 1672 um missionário eudista, percorren- 11h11ve. No dia seguinte de manhã, ia abrir-lhes a porta lá
do a Normandia, faz saber a seus superiores que só ouve falar pclns seis horas e encontrava-os sãos, bem dispostos e bons
"de agulhetas atadas".98 Mais reveladora ainda é a lista fornecida 11migos.1º1
por J.-B. Thiers, padre da diocese de Chartres, em seu T-raité des
superstitions qui regardent tous les smnments (1674), das decisões () mesmo autor conta ainda que "em muitos lugares, os
conciliares ou sinodais chegadas ao seu conhecimento e que l 11111 rns esposos colocavam tostões marcados em seus sapatos, a
condenam a atadura da agulheta: para o período de 1529 a 1679, 11111 de impedir que se lhes atasse a agulheta". 106
menciona treze delas contra cinco para os séculos anteriores. V~,rios desses remédios mágicos, em particular aqueles
Assim, ele dá o testemunho de 23 rituais, todos posteriores a •111•• fni'.Cm passar vinho branco ou urina através de um anel ou
1480, acrescentando: "Os outros rituais [os que ele não citou] 1 11 ltichadura da igreja do casamento, são evidentemente des-
não falam de maneira diferente em seus sermões".'19 Efetivamente, 1l11ndos, segundo o princípio mágico de similitude, a favore-
entre 1500 e 1790, nenhum ritual francês omite a condenação 1111 n união sexual. E. Le Roy-Ladurie pensa também que as
do rito da agulheta e as preces destinadas a exorcizá-lo. Diante 111m1dns escondidas nos sapatos do homem representam sim-
de tão grande perigo (detalharam-se um dia a J. Bodin as cin- l111lknmente seus órgãos sexuais postos assim fora do alcance
quenta maneiras de atar o cordão de couro),100].-B. Thiers dá a d11~ l't:iticeiros. A própria variedade das receitas utilizadas diz
conhecer umas vinte receitas, fora os exorcismos e a absorção l111Ntn11te da inquietação das populações.J.-B. Thiers, antes de
de alcachofra-dos-telhados; por exemplo: 111111mci:ar esses remédios, evoca o comportamento de pânico
111111 n ligadura da agulheta de~encadeava entre aqueles que se
,111•oditavam maleficiados: "[E] um mal tão sensível para a
Colocar os recém-casados completamente nus e fazer o ma-
1111dor parte daqueles que são por ele atingidos que não há
rido beijar o dedão do pé esquerdo da esposa, e a esposa o
11111111 que não façam para ficar curados; que seja D eus ou o
dedão do pé esquerdo do marido.'º1 ~
dlulw que dele os liberte, é com que pouco se importam, des-
Perfurar um tonel de vinho branco do qual nada ainda il11 que dele fiquem livres". 101
foi tirado e faúi.: passar o primeiro vinho que dele sai pelo Afirmação muito forte no contexto da época e que dá a
anel que foi dá'do à esposa no dia do casamento. 101 1111,dldn ele um medo. Insistindo neste, nos séculos XVI e XVII,
Urinar no buraco da fechadura da igreja em que se ~,1111os vítimas de um erro de ótica explicável pela raridade rela-
casou.'º' 1lv11 dn documentação antes da invenção da imprensa e por sua
Dizer, durante sete manhãs ao nascer do sol, com as 1 111scunte abundância depois? Talvez? Os contemporâneos tive-
costas voltadas para o lado do sol, certas orações.'º4 111111 contudo a impressão de uma ameaça que ganhara recente-
Fazer o que fazia certo promotor da oficialidade de 11111111c uma dimensão nova. Podemos imediatamente recusar
Châteaudun. Quando dois recém-casados iam lhe dizer que ~1111 lcstcmunho? Um religioso celestino, o padre Crespet, que
estavam maleficiados, conduzia-os ao seu celeiro, atava-os puhlicn em 1590 Deux livres sur la haine de Satan, fornece até
92 93
uma data precisa. Declara que foi a partir dos anos 1550-60 que 1 l•'lnndrin sugere que o recuo da idade no casamento alia.do
as ligaduras de agulheta se multiplicaram. Assim, é levado a 1111111 repressão mais severa da heterossexualidade fora do ca-
estabelecer uma relação entre essa epidemia e o abandono d :1 111111110, e antes dele pelas duas Reformas religiosas - a cat ó-
verdadeira religião: "Nossos pais [afirma ele] jamais experimen- 1 1 ,, 11 protestante - , teriam provocado um redobramento da
taram tantos encantamentos e malefícios no sacramento dt li,_,11 rhação e, consequentemente em segundo grau, certa im-
matrimônio, como se viu desde os trinta ou quarenta anos em 11C\1win no início do matrimônio.110 A essa hipótese interessan-
que as heresias pulularam e o ateísmo foi introduzido".ios 1 1111111 outra, mais ampla, pode ser acrescentada, fazendo-nos

É portanto legítimo se perguntar se as obras eruditas nfo flll'•1H'pnra o complexo de castração e os bloqueios psíquicos -
refletiram uma situação, senão inédita, ao menos mais preo- 11 • nitidamente postos em causa por Montaigne e perceptí-
cupante do que no passado e caracterizada por um número 1, 11m rodos os níveis culturais. No capítulo que consagra à
maior de amenorreias, de abortos - esses últimos considerados htt \11 dn imaginação", i\1ontaigne nota, ele também, que seus
então uma variante ela esterilidade feminina - e sobretudo de 11111,11qporâneos falam constantemente da agulheta e analisa
casos de impotência masculina. Uns e outros, em particular as 11111µrn nde profundidade o mecanismo da inibição:
incapacidades femininas, podem ser relacionados à má nutrição,
que sem dúvida se agravou nos campos a partir elas penúrias do Sou ainda de opinião que essas divertidas ligações [os liga-
século XJV, depois em razão da relativa superpopulação do sécu- t111lntos de agulhetas] de que nosso mundo se vê tão entrava-
lo XV I, das epidemias e elas devastações causadas nos campos do que não se fala de outra coisa são habitualmente impres-
pela passagem frequente cios exércitos. Essas insuficiências ali- ~r1cs da apreensão e do temor. Pois sei por experiência que
mentares não podiam deixar ele provocar nos indivíduos menos 11111 sujeito, por quem posso responder como por mim mes-
favorecidos um estado quase permanente de fadiga e de depres- 1110, cm quem não poderia cair suspeita alguma de fraqueza,
são, propício às amenorreias, aos abortos espontâneos e até :1 1• tnmpouco de encantamento, tendo ouvido o relato de um
impotência. Mas foi sobretudo a frigidez masculina - que a m:í ~cu companheiro, de uma fraqueza extraordinár.ia em que
nutrição por si só não pode explicar - que atingiu os contem- 1°11Íl'n a ponto de não ter a menor necessidade, encontrando-
porâneos, como testemunham conjuntamente os escritos de ~l' cm semelhante ocasião, o horror desse relato veio-lhe de
Rabelais, Brantôme, Montaigne, Bodin e do padre Tli.icrs. 111íhito tão rudemente atingir a imaginação que o acometeu
Quando este lembra a medicação do promotor da oficialidade 1111m sorte semelhante; e daí em diante esteve sujeito a nisso
de Châteaudun (a•(lagelação dos esposos nus), trata-se de uma 1t'l'll ir, admoestando-o e tiranizando-o essa vil lembrança
terapêutica destinada sobretudo a aquecer o sangue cio marido. dt• seu infortúnio.111
Se, no começo da Idade lvloderna, a impotência masculina era
mais frequente que antes - a ponto ele a agulheta, "velho rito IJina hipótese, que talvez não valha para a pessoa mencio-
camponês sair de sua obscuridade rural" 109 para chegar ao ní- 11,11111 por Montaigne, mas que é dificilmente recusável em
vel ela cult~ra (escrita) - , o que se passou? É preciso relacionar 1111111011 out ros casos, vem ao espírito: uma causa importante
esse fato com a difusão ela sífilis a partir do século XVI? Tal ,h ••11•1l11ibições psíquicas não teria sido o discurso antifeminis-
explicação só valeria para um número limitado de casos, já quc 1,1 dm pregadores e dos demonólogos112 - um discurso que
essa doença só acarreta a impotência em suas formas finai s. 11111,.111 entre 1450 e 1650 seu máximo de violência e de audiên-

94 95
eia? Agravando o medo da mulher, lançando a suspeita sobre a 111' um malefício] impedir o efeito do sacramento de matri-
sexualidade, "essa maldita concupiscência", desvalorizando o 111(111io pelo ligamento da agulheta ou por qualquer uutra
casamento, "esse estado por si mesmo tão perigoso",m eles cul- 111 til ic:1 supersticiosa. Como enviar lobos para os rebanhos
pabilizaram as populações e aumentaram sem dúvida entre os 1h• cnrneiros e currais de ovelhas; ratos, camundongos,

mais timoratos o temor do ato sexual. A partir daí, procura- fllll'Hulhos ou carunchos aos celeiros; lagartas, gafanho-
ram-se culpados, que foram descobertos no universo de feitiça- lwl e outros insetos aos campos para estragar os cereais;
ria de que pregadores e demonólogos falavam incansavelmenn.:. toupeiras e ratos silvestres aos jardins para perder as ár-
Assim, a má nutrição, o aumento da masturbação e os bloqueios v11res1 os legumes e as frutas. Como impedir as pessoas de
psíquicos resultantes de uma culpabilização reforçada teriam 111111ur, colocando na mesa sob seu prato uma agulha que
conjugado seus efeitos para reforçar no Ocidente do começo da , 111•vln para amortalhar um morto. Como enviar doenças
Idade Moderna o temor da ligadura da agulheta. 111• lnngor e de longa duração aos homens e aos animais, de
Este não era senão um dos múltiplos malefícios temidos 11111111.:ira que uns ou outros enfraqueçam visivelmente, sem
outrora. J.-B. Thiers, que aliás rejeita tantas superstições, •lllt' se possa socorrê-los pelos remédios ordinários. Como
acredita que deve esclarecer seus leitores sobre o número e a lt11ior morrer os homens, os animais e os frutos da terra
variedade cios sortilégios que os ameaçam. Seu livro, consul- p1 li' meio de certos pós, de certas águas e de certas outras'
tado aqui em uma edição tardia (1777), apresenta um catálogo drngos mágicas [...]. Como fazer secar uma certa erva na
verdadeiramente etnográfico dos medos cotidianos de antig,1- , 111111,iné a fim de fazer esgotar o leite das vacas [...]. Como
mente. O padre do Perche distingue em primeiro lugar três 111111•gulhar uma vara na água, a fim de fazer chover e de cau-
categorias de malefícios: "o sonífico", "o amoroso" e "o inimi- ~111 nlgum prejuízo ao próximo [...]. Como quebrar as cas-

go". Insistiremos em dois deles: 11111 dos ovos quentes, após ter engolido o de dentro, a fim
1h1 que nossos inimigos sejam assim destruídos [...]. Como
[O primeiro] se faz por meio de certas beberagens, ele cer- _,11•vir-se do osso de um morto para fazer morrer alguém,
tas ervas, de certas drogas, de certos encantamentos e clc l1t1l111do certas ações e recitando certas palavras [...]. Como
certas práticas de que os feiticeiros se servem para ador- 1111111· morrer os animais golpeando-os com uma varinha e
mecer os homens e os animais, a fim de em seguid~ poder dl1.1111do: "Eu te toco para te fazer morrer [...]". Como fazer
mais facil mente envenenar, matar, roubar, cometer impu- ll»11 r11s de cera, de barro ou de alguma outra matéria, picá-
rezas ou raptar crianças para fazer sortilégios. li1111 nproximá-las do fogo ou despedaçá-las, a fim de que os
O maleíício inimigo é tudo que causa, tudo que pode 111 lf,l'l nnis vivos e animados sintam os mesmos ultrajes e os

causar, e nido que é empregado para causar algum dano aos llll'N11tos ferimentos em seus corpos e em suas pessoas [...].
bens do espírito, aos do corpo e aos da fortuna, quando isso t :wno prender a uma chaminé, ou fazer grelhar sobre uma
se faz em virtude de um pacto com o demônio. 11111lht1 1 certas partes de um cavalo, ou de algum outro ani-
111111 morto por malefício, c picá-las com alfinetes, agulhas
Segue-se a lista impressionante dos "malefícios inimigos", 1111 O llll'aS pontas, a fim de que o feiticeiro que lançou o ma-

à frente dos quais figura naturalmente o ligamento da agulheta. 111!do seque pouco a pouco e morra enfim miseravelmente
O tom é o de um requisitório:114 1 ,1, ( :0 1110 excitar tempestades, granizos, temporais, raios,
1111v0us, furacões, a fim de vingar alguma injúria recebida

97
96
[...]. Como impedir as pessoas de dormir, colocando ~I~ sua n1 - 11 esterilidade, a impotência, a loucura, a "má noite", a
cama um olho de andorinha. Como provocar a estenlidade 1111d11 clm; colheitas e dos rebanhos. Eis-nos no próprio coração
das mulheres, das éguas, das vacas, das ovelhas, das cabras 1111 1111lvcrso atemporal do medo. Um medo por toda parte
etc. a fim de causar prejuízo a seus inimigos. Como fazer -• 111p1•c presente porque a natureza não obedece a leis, por-
0 q~e se chama de cavilb11r [por esse sortil~gio, im_p~d~-se
11111 1111111 nela é animado, suscetível de volições inesperadas e
as pessoas de urinar]. Pelo mesmo malefício, ~s fe1t1ce1ros 11111 11111do ele inquietantes manipulações por parte daquelas e
encravam também e fazem mancar os cavalos; impedem os 111111111.•N que têm pacto com os seres m isteriosos que dominam
recipientes cheios de vinho, de água ou de outro l_íqui~o, de 1 ~li"\'º sublunar e são portamo capazes de provocar loucura,
poder ser esvaziados, ainda que se lhes faça uma mfimdadc 111111~11N~· tempestades.
de perfurações. Como perturbar os espíritos dos ho~ens, \ 11Nl 111, convém tratar com prudência aqueles que detêm o
de maneira que perdem o uso da ra~ão, ou e_ncher sua m:a- 11h I tlt• ngi r sobre os elementos e de dar aos pobres humanos
ginação de vãos fantasmas, q~e os f:z~m cair em fr;nes1, a 11th rn1 e nfermidades, prosperidade ou miséria. Não tenha-
fim de tirar vantagem de seu 111fort u1110, ou de expo-los ao 111 tluvldns: muitos europeus de outrora consideraram aquele
desprezo dos outros. Como causar a insôni~ aos homens e.: Ili• ,1 lwcjo chamava de Satã uma potência entre outras, ora
às mulheres [queimando um feixe, velas ou mvocando um:1 Ili Ih 11, ora maléfica, segundo a atitude adotada em relação a
estrela]. Como fazer imprecações contra alguém apagando 1 " l,11H.1ro, no Grande catecismo, acusa aqueles que "fazem
todas as luzes da casa, dando as costas aos vizinhos, rol~ncio h,111~,11•11111 o diabo, a fim de que ele lhes dê dinheiro suficien-
no chão e recitando o salmo CVIII (hoje CIX). Como fazer 1111 ljlll' fnvoreça seus amores, preserve seu gado, lhes resti-
morrer os piolhos e os outros insetos que atacam o hom_em, u 1111 huns perdidos". Henri Estienne menciona em 1566
esfregando-se com água de poço ou de fontes sob as axilas, 11 t '1 h1111 mulher [que], após ter oferecido uma vela a são
e recitando certas palavras. h1111 1I, nl(Jrccia uma também ao diabo que estava com ele: a
1 \1 IHlll1I, :1 fim ele que lhe fizesse bem, ao diabo a fim de que
Ao final dessa longa enumeração, J.-B. Thiers acrescenta 11111 l lt,l 1SSC ma l". Um paroquiano de Odenbach (Alemanha
que existe ainda "urna infinidade de outros male~íci,?s que os 1 ~i.11111•) declara em 1575, após uma colheita abundante,
feiticeiros e envenenadores empregam todos os dias - ~' real- h II dhu que é o diabo que lhe concede tantos cereais. N o
mente não se terminaria de recensear todos os sortilégio~ 11111 ~11µ11intc, o padre Le Nobletz descobre na Bretanha
menci~nados no.s processos, nas obras de demonologia'. no~ 11111 l\1\1•1, l!llC fazem oferendas ao Maligno porque imaginam
estatutos sinoq,a'is, nos relatos de milagres, nos manuais tk h I o Invcntor cio trigo-mouro. Assim, depois da colheita,
confissão e nos tratados de teologia moral que chegaram at t· ~111p111H'scs l:inçam vários punhados desse trigo nos fossos
nós. Tal qual, a lista do padre do Perche constitui em todo _c:~so 11111 ,1111 os c:impos onde se colheu "para d,i-los de presente
um testemunho importante sobre uma cultura rural ~ mag•c~ 11 ,1 q111111 limaginam] ter a obrigação".
que força constantemente as portas da cult~r~ erud1ti~- _Aq111 11, 111uwn1ar Satã causava problema, portanto; e também
dominam a desconfiança e a vingança de v1zmho a v1zmho, 1111, 111u1• snntos suficientemente poderosos para curar
Aparece também a convicção de que as calamidades, as_ doell 1 1, tio mesmo modo, provocá-las. N o Ocidente dos
ças, a própria morte não são naturais, a~ m~no_s no sentido cm ti 1 \ li XV II , conheciam-se - e temiam-se - bem umas
que O entendemos hoje. Emergem, enfim, ms1stentes aprecn 1111 il1u111.,:ns designadas pelo nome de um santo," 6 podendo

98 99
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Oivi~, :i_,. :~~-..~~~jot_f:f.~ .
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·- •õ"i{~ mesma enfermidade ser relacionada a vários santos diferen- Moio século mais tarde, H enri Estienne faz eco a Erasmo
tes. As mais temidas, e aparentemente as mais frequentes, era111 l/111/ogie pour Hérodote:
o fogo de santo Antônio (ergotismo gangrenoso); o mal de são João,
também chamado de mal de saint-Lou (epilepsia); o mal de santo 1... 1 Cada um [dos] saptos pode enviar a mesma doença da
Acário dito também mrtl de saint-Nlatlmrin (loucura); o mal de são 1111111 pode curar(...]. E verdade que há santos mais coléricos
Roque 'ou são Sebastião (a peste) ; o mal de saint-Fiacre (hen:iorrói- 1• porigosos do que os outros: entre os quais santo Antônio
das e verruga no ânus); o ·m al de snint-Mnur ou 111al de smnt-Ge- 1 o principal, porque queima tudo pela menor desfeita que
nou (gota). Muito cedo, os relatos de milagres insistiram sobre ~•• fi1çn a ele ou a seus mendigos[...]. Ora, bem se pode dizer
as vinganças que santos ultrajados eram capazes de exercer. 1li1~NC santo e de alguns outros dos mais coléricos e dos mais

Grégoire de Tours conta que um homem, tendo falado com p111•igosos o que um poeta latino disse geralmente de todos
11~ deuses: Prinms in orbe deos fecit tirnor,
111
desdém de são Martinho e de são Marcial, tornou-se surdo e
mudo e morreu louco.''7 Na aurora da Idade Moderna, a maior
parte das pessoas não raciocinava de maneira diferente da época 11 Inquietante poder dos santos malévolos, ei-lo ainda
de Grégoire de Totus. Um cronista do século XV faz sab~r que 1 lllltll/lLrndo de maneira exemplar pela existência no Berry de
o rei da Inglaterra H enrique V, após ter devastado o moste1r~ de 111,1 lollle consagrada a são Mau, para perto da qual se dirigiam
Saint-Fiacre, perto de Meaux, foi at ingido pelo mal de Sarnt- 1111 q11nl rezavam aqueles que desejavam a morte de um inimigo,
-Fiacre descrito aqui como "um espantoso fluxo de ventre, co111 11111 l'lvnl em amor ou de um parente com herança. Felizmente
hemorróidas". Morreu disso após cruéis sofrimentos. "Deitado 111 ltH11{C dali, erguia-se uma capela dedicada a são Bom.m '
em seu leito de dor, ele pagava o tributo ao glorioso confessor 1lN processos de feitiçaria, as pregações, o catecismo esfor-
são Fiacre, como se dizia, e sofria o último martírio."
118 1,1111 se, a partir do século XVI, em introduzir na mentalidade
É possível que os pregadores, em seu zelo, tenham reforça- 1h I lvn dos campos a necessária distinção entre Deus e Satã,
do a crença nos santos vingativos. "Assim pregava um beato em 11111• ON santos e os demônios. Permanecia no entanto o me.cJo
Sinai", est,1 escrito em Gargmitua, "que santo Antônio punha o 111, 11111lt iplos perigos que pesavam sobre os homens e a terra de
fogo nas pernas, santo Eutrope fazia os hidrópicos, são Gildas Ili 1111 li, 1~ portanto continuavam, apesar das autoridades reli-
os loucos, são Genou as gotas.""') Zombando por vária§. vezes lm,1~ 11 lei~as, práticas suspeitas, tais como as tochas do pri-
do temor cios santos malfazejos, os humanistas atestam por isso 1111111 iltnnmgo da Quaresma e as fogueiras de são João. Desde
mesmo quanto ~le era difundido. Erasmo ironiza em um de 111pt1N Imemoriais, no momento em que a vegetação renascia
11111111111-se fogos sagrados - tochas ou archotes - e, de tocha
seus Colóquios: 7 '
Ili 111~111 percorriam-se os campos para afastar os gênios maus e
Pedro pode fechar a porta do céu. Paulo está armado do 111j11 1111• os insetos.m Os ritos de são J oão traziam múltiplos

gládio; Bartolomeu, do sabre; Guilherme, da lança. O fogo 1 11, 1ll'ios e proteções. As ervas colhidas durante a noite de 23
sagrado está à disposição de Antônio. [...] O próprio Fran- t I l •I do junho protegiam durante um ano homens e animais

cisco de Assis, depois que está no céu, pode tornar cegas •• 1lm111ç11s e dos acidentes. A mesma virtude era atribuída aos
ou loucas as pessoas que não o respeitam. Os santos mal 111 ~ ljllC eram levados para casa e acreditava-se também ao

honrados enviam horríveis doenças.


110 1 1111~ 1111 Bretanha, que as chamas desse fogo excepcional ;ea-
lt11 ,1\11111 as almas cios mortos.'14 Nos países protestantes e nas

101
/00
dioceses católicas governadas por bispos rigoristas, interdiçõc~ 11111 1111. /\ssim, era preciso organizar constantemente batidas
draconianas repeliram para a clandestinidade esse magisrno 1h •- pnr:1 caçá-lo. Os documentos a esse respeito são legião.
qualificado de "pagão". 115 Em outras partes, o poder eclesi:íst i 1 11111, uqui simplesmente dois, significativos e separados um
co, na continuidade de uma longa tradição, aceitou abenço:11 1111111111do tempo e pelo espaço. Em 1114, o sínodo de Sa ntü1go
essas condutas e esses ritos anteriores ao cristianismo, limitan C 11111po~tela decide que em todo sábado, com exceção das
do-se a condenar as ~m1ticas que tentavam esquivar-se à vigi 1 1 •~ cln Páscoa e de Pe ntecostes, terá lugar uma caça aos
lância da Ig reja. Daí um magismo cristão que permaneceu :lll' 1 'l,11'1,irdotes, nobres e camponeses que não estejam tomados
u ma época recente como um dos componentes maiores da vida 111 11p1 1i.:ôes urgentes deverão dela participar. O padre que se
religiosa do Ocidente. Em uma obra reeditada em Veneza c111 Ili li \1 1111 ter a desculpa da visita aos doentes pagará cinco cên-
1779 figura uma boa centena de "absolvições, bênçãos, conju 1111 1h• tllulta. O nobre ausente também. O camponês dará um
rações [e] exorcismos" relacionados unicamente à vida materi:il: 11111111 ou um carneiro. 12'1 Em 1696, o abade de Saint-Hubert,
bênçãos dos rebanhos, do vinho, do pão, do óleo, do leite, clm t l 11,1•111burgo, promulga um decreto em que se lê:
ovos, de " toda carne" dos bichos-da-seda, dos celeiros, d:1\
granjas, do leito conjugal, do poço novo, do sal que se dar:í :10~ l11l111•11rndo dos estragos que os lobos fa zem a cada ano nos
a nimais, do ar para q ue permaneça sereno ou traga a chuv:1; ,, l11111hos de nossa terra e nas aves silvestres de nossa caça,
conjurações da " tempestade iminente" e do trovão [...]; exor 111, 11111111110s a nossos majores e lugares-tenentes que orien-
c ismas contra os vermes, os ratos, as serpentes e todos os a 11 i h 111 os habita ntes de sua alçada para ir à caça aos lobos tan-
mais nocivos'1" etc. 1 ,_ 1• quantas vezes o tempo se encontra r próprio durante o
E ntre esses últimos, o lobo era particularme nte temido, 1111111·110 deste ano de 1696.00
Como prova, os muitos provérbios que o mencionam:in "A 1111!
guarda alimenta o lobo". "É uma boa captura a de um jovc111 \ l11d1t no século XIX, caçadas coletivas aos lobos eram orga-
lobo." "Não há lebre má nem lobo pequeno." "Morte de um loho, 111,~ 110 baixo Berry. No fin al da Primeira G uerra Mundial,
saúde da ovelha" etc. O aparecimento do lobo significava mui1:1~ 1, 11o111 umc11to do Indre continuava a ser para eles uma região
vezes a instalação da penúria: "A fome expulsa o lobo dos hm I' ,~~lll(Clll. 131
ques". Orn, como outrora a fome era frequente no mundo rur:il, N11 l•'rnnça, o medo do lobo nunca foi tão forte quanto ao
o lobo era ao mesmo tempo um animal temido, misterioso (prn 11~1 d1111 l{UCrras religiosas. As devastações, o abando no das cul-
que vivia nos 'bosques) e terrivelmente presente. Dizia-s1·1 11 "1111011de os exércitos haviam passado, ,is penúrias da última
"Conhecido cbmo o lobo". Quantos ditados empregam a palav111 11111 do século XVI tiveram por consequência uma verdadeira
lobo!' 1~ Ao se avaliar pelos contos e fábulas que nos t ransmicir:1111 t 111 elc lobos atestada especialmente por P. de L'Estoi le: "Ten-
seu eco, o grito "Lobo! Lobo!" ressoava com frequência. 1•'.n,, , ti 111111111do a guerra entre os homens", escreve ele em junho
com ou sem razão, o sinal evidente de gran<le perigo e, em 111:11~ 1\IIH, 11<.'0meçou a dos lobos entre si. Principalmente em Brie,
de um caso, de pânico. Para o inconsciente coletivo, o lobo l'l ,t li 1111111,l{ne e Bassigny contam-se feitos crué is dos ditos lobos".U1
talvez "o sombrio emissário do mundo ctônico" (Lévi-Strau~~). d 111111li 1111:1, relata por volta da mesma época o cônego Moreau:
No âmbito das representações conscientes, era o animal sangui 1 1111-11 horrível de contar o que fa ziam de ruim", invadindo as
nário inimigo dos homens e dos rebanhos, companheiro da fo11 11 11 ,h• <)uimper, matando animais e gente em plena rua, ata-

1111 102 /03


cando-os na garganta "para impedi-los de gritar e, se tinha111 ( :onvinha então empregar armas excepcionais contra um
tempo, sabiam despojar sem estragar as vestes nem mesmo as 111111111 infernal que, acreditava-se, atacava de preferência as
camisas, que eram encontradas inteiras junto das ossadas dos n111lhores grávidas e as crianças que brincavam a alguma distân-
devorados [...]". "O que", acrescenta o autor, "aumentava cada vc·,. 111 cln casa paterna. Tal era precisamente o comportamento da
11
mais o erro dos simples de dizer que não eram Lobos narnrais, 111'~111 que, nos anos 1760, espalhou o medo em Gévaudan.
mas Lobisomens ou soldados, ou feiticeiros transformados.""' 11111 gravura da época a descreve como um animal que "parece
Alguns anos mais tarde a situação não é menos inquietante no 11111 lobo, com a diferença de que não tem as patas tão compridas"
Languedoc, a julgar pelo decreto de 7 de janeiro de 1606, pro- pmvável que se tomassem muitas vezes lobos por esse animal
nunciado pelo parlamento de Toulouse: 111-1111-ioso. A inquietação que provocou não foi senão o exagero,
Ili 1•1.1 rto momento e em região determinada, do medo tradicio-
Dada a reclamação apresentada pelo procurador-geral cio n11I do lobo - um animal contra o qual as armas da religião não
rei concernente às mortes e devastações feitas pelos lobos r11111 excessivas. Contra ele, invocava-se são Lobo em razão de
e bestas selvagens, tendo matado mais de quinhentos ho- li nome, ou santo Hervé na Bretanha. Mergulhavam-se balas
mens, mulheres e criancinhas há três meses nas senescalias d 1111,il na água benta. Recitava-se o "pai-nosso do lobo", de que
de Tholose e Lauraguois, mesmo na guarda e arredores do 11111drc Thiers nos deu umas das inúmeras variantes:
dito Tholose, a corte ordena a todos os oficiais do rei [... 1
reunir os habitantes dos lugares e dar caça aos lobos e ou- 11:111 nome do pai, do filho, do espírito santo; lobos e lobas,
tras bestas selvagens [...].'34 ,,11 vos conjuro e enfeitiço, eu vos conjuro em nome da san-
1!11sima e sacrossanta como Nossa Senhora concebeu, que
Portanto não é por acaso que, na virada dos séculos XVI e 11110 tomeis nem afasteis nenhum dos animais de meu re-
xvn, os demonólogos franceses dissertaram abundantemente h1111ho, sejam cordeiros, sejam ovelhas, sejam carneiros[....],
sobre a licantropia e os tribunais tanto condenaram feiticeiros 1111111 lhes façais nenhum mal. 131

acusados de canibalismo.115 Homens podiam transformar-se em


lobos devoradores? Ou estes se tornavam objeto de uma pos- 1 B. Thiers rejeitava essa prece porque não tinha o aval
sessão demoníaca? Ou, ainda, feiticeiros tomavam, gfaças ao 1~ l111•cjn e porque utilizava um procedimento mágico de con-
diabo, aparência de lobos, saciando então seus instintos san- j11111\ Ro por "similaridade" (assim como a Virgem concebeu,
guinários? As ·o piniões estavam divididas, mas não a certe1.a 111 11 robanho seja protegido). Mas permanecia a insistente
milenar de que o lobo é um animal satânico. Quanto ao termo 11111111cl11 de populações que tinham necessidade de ser prote-
lobisomern,* de origem germânica, e atestado em toda a Europa, 1111111, () protestantismo recusou aceder a essa interpelação
sign ifica "homem-Lobo", e traduz bem qual era a convicçfü> l •1111dn1•, O catolicismo, em compensação, continuou afinal a
profunda dos camponeses. Ainda no final do século XVII, no p1111dor n ela, mediante certas precauções.
\ C'Nl reita relação entre medo e religião da terra cristiani-
Luxemburgo, a injúria "Lobisomem" era levada muito a sério e
1h1, 111-111 ainda claramente expressa nessa humilde prece diri-
dava lugar a reparação pública.136
1111111111 pleno século XIX a são Donato, um mártir romano cujo
1111111 1111.in invocar contra o trovão e as intempéries:
• Em francês, /011p-gnro11. (N. E.)

104 105
Glorioso santo que, pelo martírio que sofrestes, tendes a fc 111111 que o prudente procurador fiscal da presente corte
licidade de possuir Deus, de cantar seus louvores com seus , h••hlNt ica nos expôs que há muito tempo veem-se notáve is
anjos e arcanjos, de participar da felicidade eterna e espiri 1h1111 IIINI rações segundo as quais Deus, Nosso Senhor, esta-
tua!, nós vos intercedemos e suplicamos que sejais junto do i ht 111d lgnado e ofendido com os inúmeros pecados e ofensas
Salvador Jesus Cristo nosso intérprete, que, por sua grn~·11 11111 ~•• <:Ometem contra Sua Divina Majestade. Pelas quais
todo-poderosa, ele nos preserve das terríveis desgraças do h 1111 IN 11 crida dia sinais indicando que desejaria castigar-
granizo, da tormenta, das tempestades, dos funestos efeitos 1111~ por meio da perda dos frutos da terra, pelas iminentes
do raio e de outros flagelos destruidores; que, por vossa san 11111 1h111 de g ranizo, tempestades e borrascas causando uma
ta e poderosa proteção, Deus nos conceda a graça de sermos t111l1lvl1l penúria e esterilidade na presente diocese, e outr os
protegidos de todas as intempéries contrárias às estações l' ~1,11 IN~imos prejuízos, bastante notórios e manifestos; e que
ti _,111111 Ig reja, mãe muito piedosa, desejando acalmar a ira e
a todas as produções da terra, nossas maiores riquezas t:ío
t ltt1ll1t11aç1io divinas, introduziu diferentes remédios, como
necess,írias ao mesmo tempo à nossa existência, da pcsu•
tt t1 11111c dos sinos, os santos exorcismos e bênçãos, e outras
de nossos rebanhos, igualmente de nossas colheitas, reco111
111 •I\ 111•.~ e preces. Apesar disso, viu-se que as pessoas a quem
pensas que concedeis ao cultivador como prêmio de s11:1•1
1 -1• d 111,in respeito e a quem cabia fazê-lo teriam sido negli-
vigíli,1s e de seu suor; enfim, que nossas casas permaneç:1111
11• lllt'N um realizar as ditas obrigações.
imóve is a todas as destruições aflitivas para nós outros, in Ít"
1'111•n isso é de nosso encargo prover um remédio ade-
1iz.es criaturas; concedei-nos, Senhor, todas essas graças p<H
111111!111, 11 íim de evitar semelhantes e maiores prejuízos e
vosso santo poder e pela intercessão de vosso bem-amado 1•
1th ttJIVllll ientes; e assim, pelo teor da presente, a vós e a
fiel servidor são Donato. Assim seja. Recitar por inte nçfo t 11h1 11111 de vós, a exemplo do procurador fiscal, como pri-
do bem-aventurado mártir sete pai-nossos, manhã e noite:, 111111 11, segunda, terceira canônica e peremptória advertên-
e sete ave-marias. 1lo1, dl¼cmos que, durante todo o tempo que os frutos da
h 11 11 1•~1iver em em perigo de ser destruídos e arruinados
Essa prece pode ser comparada a mil outras práticas outn 1 111 li1~ quedas de granizo e outras tempestades e borrascas,
ra muito difundidas: os toques de sinos durante a torment.1, 11 l 1\1il~ ,•ontínua e pessoal residência em vossas igrejas e pa-
colocação das cruzes de encruzilhadas para que protejâm do 11h11il11N, e que não vos afasteis delas de maneira nenhu-
granizo os campos vizinhos, o uso de talismãs e de "breves" 111,, , 11 111lo ser quando se apresentar alguma necessidade; e
- muitas vezes lll:11 curto fragmento do prólogo <lo Evangdli11 1 llllll'l', qunndo virdes sinais de semelhantes tempestades
de são João etc. Compreende-se, nessas condições, que as po p11 , l11 111 11scns, tende o cuidado de exorcizá-las e benzer pelo
lações rurais tenham visto no sacerdote aquele que, dotado pl·ln 111,d dn santíssima cruz, tocando os sinos e utilizando os
Igreja de poderes excepcionais, podia afastar de uma terra grn 11111 11111 remédios que com tal objetivo nossa santa madre
niz.os e tempestades - manifestações evidentes da cólera divi l111 11Jt1 inl roduziu; e realizareis isso sob pena de dez libras
na. Na diocese de Perpignan, em abril de 1663, a autorid:1d1• 111 1111d111, de excomunhão maior e outras penas, aplicáveis
episcopal, cedendo com toda evidência às pressões públicas, , Hllllllo nosso julgamento, e segundo o dano causado por
acreditou dever lembrar aos padres o imperioso dever de pc1· \ 11 1•11 uugligência [...]. us
1m111ecer em suas paróquias durante a estação dos temporais:

106 107
O que significavam tantas precauções e proteções, scnfo 111 11 domínio ele Deus, esta é "superstição diabólica [...], sacr.i-
que o futuro próximo aparecia, outrora, carregado de ameaça~ 111 1111111·111e e detest{ivel" ("Advertência contra a astrolog ia
e repleto de armadilhas e que convinha precaver-se a todo in, •111111111 ~cmcnciosa")."º
tante contra umas e outras? Daí a necessidade de interrogar l' 1 h ••~t·lorecimentos dos teólogos chocaram-se por nmito
de interpretar certos sinais, tentando, graças a eles, conhecer o 11p11, 1111 prática, e mesmo no nível cultural mais elevado, com
futuro com antecedência. A "adivinhação", em seu sentido maio, 111 l,1 que se fazia do universo, concebido como totalme nte
amplo, era - e é ainda para aqueles que a praticam - u11111 li ,ulo. Para os contemporâneos de Ficino e ainda de A.
reação de medo diante do amanhã. Na civilização de outrora, 11 1 e ilt• Shnkespeare, nada é verdadeiramente matéria e não
amanhã era mais objeto de temor do que de esperança. 1 h 1llf11r1mça de natureza entre causalidade das forças m ate-
A astrologia não é senão um dos setores da adivinhaç:io, i I d tl'tlcin das forças espirituais, explicando estas especial-
Aquele do qual a cultura escrita mais falou. L. Aurigem11111 tttc 11~ movimentos planetários. Cada destino se encontra
lembra que em 1925 haviam-se contado na Alemanha 12 5(,1 11 1111 11111 tecido de influências que, de uma ponta a outra
manuscritos, espalhados do século x ao xvm, relat ivos à astrolo 1111111tlo, lltrnem-se e repelem-se. A lém disso, o homem estií
gia.U9 Essa cifra seria talvez decuplicada se fosse efetuado o me,
o11h1 por 11111a multidão de seres misteriosos e leves, no mais
mo trabalho levando-se em conta a Europa inteira. Ao longo <ht
1111•• invisíveis, que cruzam incessantemente a rota de sua
história cristã, o discurso teológico esforçou-se em disting uir 11
1 •~< •, dois axiomas da ciência de outrora foram expressos
astrologia lícita da ilícita. Santo Agostinho admite que as estrelo~
tt 11111110 nitidez por Paracelso:
podem ser "os sinais anunciado res dos acontecimentos, mas cln~
não os rematam". Pois, "se os homens agem sob a coerção ccll·,
te, que lugar resta ao juízo de Deus, que é o mestr e dos astro, 1 l lt li\ povoou os q uatro elementos com criaturas vivas.
1 1lt111 li~ ninfas, as náiades, as melusinas, as sereias para
dos ho mens?" (Confissões, v, cap. l"). Para Santo T omás, impo11 11
não só salvaguardar a liberdade de Deus, mas também a de c:11 li1 I'"' 11111· ns :íguas; os gnomos, os sil fos, os espíritos das m on-
um de nós. Não há nenhum pecado, escreve ele, em usar a ast ro 1111h1111 e os anões para habitar as profundezas da terra; as
logia "para prever efeitos de ordem corporal: tempestade ou ho111 1l,11111111drns que vivem no fogo. Tudo provém de D e us. To-
tempo, sm'.1de ou doença, abundância ou esterilidade das collwl 1111 m 1·orpos são animados por um espírito astral do qual
tas, e t udo aquilo que depende semelhantemente de caus as l'<II 111111111tl1,.1111 sua forma, sua figura e sua cor. O s astros são ha-
porais e naturaiJ;. T odo mundo dela se serve: os agricultores, 11 l111,11h1~ por espíritos de uma ordem superior à nossa a lma,
navegadores, os' médicos [...] Mas a vontade humana não t·,111 • 11~ c~píriros presidem nossos destinos {...] Tudo o que o

submetida à necessidade astral; senão arruinar-se-ia o livrc-:11 hl , , 111 o ~-oncebe e real iza procede dos astros {...)." 1
trio e ao mesmo tempo o mérito" (Suma teológica, na- 11ae, q111•~
tão 95). Essa distinção é retomada por Calvino, mas com 1111111 1 111lo crn, por certo, a doutrina das autoridades re li-
ênfase muito agostiniana sobre a onipotência divina. E le opn1 111111 o sentimento de Montaigne. i\tfas, no conjunto , a
então a astrologia " natural", fundada "na conformidade ent n· 11 , 1 ll\11, npoiando-se em uma longa tradição, pensou corno
estrelas ou planetas e a disposição dos corpos humanos", "11 , 1.it, l>11í o embaraço dos redatores de prognósticos e
astrologia bastarda", que procura adivinhar o que deve acontt·11 1 11 u111w1 prudentes porque vigiados pela Igreja e pelo
aos homens e "quando e como eles devem morrer". Aval1(;:11ul1, 111 1111111, inversamente, solicitados a corresponder à forte

108 109
demanda do público (conhece-se uma centena de livretes fran- ll1(1ll111S inquietantes. Os "pasquins" dos séculos XVT-XVIT estão
ceses de previsões do século xv1). 14! Muitas vez_es e~es ~e s~í~m 11 pllitns dessas histórias inacreditáveis, em que prodígios ceies-
bem, sinceramente sem dúvida, conciliando ompotencrn d1v111a li ~ 1· tt.1 rrestres são frequentemente associados:
e poder das estrelas. Deus, dizem alguns deles, é o "soberano
Senhor onipotente" e, portanto, o ena · dor e "domma. dor"dos () terrível e espantoso sinal que foi visto sobre a cidade de
astros. Mas por outro lado, "criou os céus e os elementos ~ar.1 P11 ris, com vento, grande clarão e luz, tempestade e raio, e
nossa utilidade". "Encravou as estrelas no céu para nos servu de oulro sinal [21 de janeiro de 1531).
sinais mediante os quais nos é permitido prejulgar alguma Os novos e espantosos sinais advindos no reino de N á-
coisa de futuro no estado dos homens, dos reinos, da religião e poles de três sóis que apareceram por volta das IV horas
governo destes." Ao lado desse "prognóstico" de 1568, pode-se cln manhã [agosto de 1531]. E também uma mulher com a
colocar um texto de Charité Pirkheimer, clarista de Nuremberg, Idade de ITIT.XX e vnr anos [88 anos), que teve filho. Tam-
que escreveu em suas Mémoires: hóm uma jovem louca de sete anos de idade que lança água
1•lnra pelos seios.
Lembro-me em primeiro lugar da previsão feita, há mui- Da serpente ou dragão voador, grande e assustador,
tos anos de um cataclisma que poria em desordem, no ano 11p11recido e visto por todo mundo sobre a cidade de Paris,
do Senhor de 1524, tudo que se encontra na superfície da 1111 quarta-feira XV III de fevereiro de 1579, das duas horas da
Terra. Outrora acreditava-se que essa profecia estava rela- Ili rele até a noite.

cionada a um dilúvio. Depois os fatos demonstraram que as O terrível e pavoroso dragão aparecido na ilha de Mal-
constelações tinham anunciado na realidade desgraças sem i 111 o qual tinha sete cabeças, junto com os urros e gritos que
número [em consequência da Reforma], misérias, angústias, d11va, com a grande confusão do povo e da ilha, e do milagre
discórdias seguidas de sangrentas carnificinas.w que a ele se seguiu, a 15 de dezembro de 1608. 145

A convicção expressa em comum por esses dois documentos, C)s cometas eram evidentemente temidos e criavam um
tão diferentes um do outro, foi durante séculos difund~da em h 11 Ili' coletivo. Desse modo, somos amplamente informados

todas as categorias da sociedade. Daí o terror ~ue desperta~a'.n .i1l11•1· os cometas que inquietaram as populações em 1527,
os fenômenos celestes incomuns, aí compreendidos os arco-1ns. 1\ 17, 1604, 1618. Como prova, estes títulos de jornais e tra-
Perturbações nQ firmamento e, mais geralmente, qualquer ano- i tt!ilN!
malia na criaçã~ não podiam fazer pressagiar senão o infortúnio.
Anunciando a um correspondente a morte do príncipe-eleitor dl: () rcrrível e pavoroso cometa aparecido em XI de outubro
Saxe (em maio de 1525), Lutero esclareceu: "O sinal de sua mor: do ano MCCCCCXXVII em vVestrie, região da Alemanha.
te foi um arco-íris que vimos, Philippe [Melanchthon] e eu, a ldum a espantosa tocha de fogo que quase atravessou toda
noite, no último inverno, acima da Lochau, e também uma 11 l•'ninça e o terrível ruído que fez ao passar sobre Lyon em
criança nascida aqui em vVittenberg sem cabeça, e ainda um:1 \1 de abril de MCCCCCXXV III. Idem a chuva de pedras que
outra com os pés ao contrário".144 As populações temerosas 1•11iu em partes da Itália no mesmo dia e hora da acima [dita]
espreitavam a paisagem celeste e ali descobriam toda espécie de lm:lrn de fogo que foi vista passar sobre Lyon.

.Ili
' '"
Discurso sobre o que ameaça tornar-se o cometa apa- ·1hrnbém os eclipses inquietavam as populações. O do Sol
recido em Lyon em 12 deste mês de novembro de 1577 [... j Ili Il de agosto de 1654 despertou verdadeiro pânico na Europa
pelo sr. François Jundini, grande astrólogo e matemático.'• '• 11111 que escritos astrológicos haviam multiplicado anteriormente
11111lwins previsões. Elas se baseavam na localização do Sol, no
As desgraças pressagiadas pelos cometas eram descritas com ll1111111.lnt0 do eclipse a vir, no signo ígneo de Leão e em sua
antecedência por inúmeras profecias. Eis aqui algumas das que 11ml111iclacle com Saturno e Marte, planetas maléficos:5º Na
circularam na Alemanha protestante em 1604: 1111\ hll'r1, na Suécia, na Polônia e, é claro, na França, raras foram
1, fll'~S0HS lúcidas que mantiveram o sangue-frio e inúmeros
O cometa que brilha no céu desde 16 de setembro de 1604 111111 ll•s que acreditaram na iminência do fim do mundo. Um
nos anuncia que está próximo o tempo em que já não se en- 1111111 1• lmguenote de Castres anotou em seu dhfrio familiar:
contrará uma casa, um único refúgio em que não se ouçam
queixas, lamentações, gritos de aflição, pois terríveis cala-
11:111 12 de agosto, pela manhã, enquanto estávamos na pré-
midades vão cair sobre nós! O cometa pressagia sobretudo
1ll<'n, aconteceu um eclipse de Sol muito pequeno, contra
a perseguição e a proscrição dos padres e dos religiosos. O s
11N prognósticos dos astrólogos que o faziam bem grande,
jesuítas estão particularmente ameaçados pela vara do Se-
nhor. Em pouco tempo a penúria, a fome, a peste, violentos 1•11111 presságios funestos de seus efeitos, de tal modo que
incêndios e horríveis assassinatos lançarão o terror em toda l11 11rnis se esperou um eclipse com maior consternação e pa-
a Alemanha [profecia de Paulus Magnus]. 1• 1 voi· ela maioria das pessoas, que se fechou nas casas com
Essa estrela prodigiosa nos pressagia calamidades bem lfll{OS e perfumes. Para mostrar como nós [os reformados]
mais terríveis que um simples cometa, pois supera em gran- il,wínrnos estar isentos de temores sob a proteção de Deus,
deza todos os planetas conhecidos, e não foi observada pelos 111rn1tei a cavalo durante o eclipse [...].m
sábios desde o começo do mundo. Anuncia grandes mudanças
na religião, depois uma grande catiistrofe sem precedente que 1i•~ccmunho concordante em Lll chorogmphie ou Description
deve atingir os calvinistas, a guerra turca, terríveis conflitos do teólogo e historiador Honoré Bouché:
l '111111J11ce,
entre os príncipes. Sedições, assassinatos, incêndios nos ~mea-
çam e estão à nossa porta [profecia de Albinus Mollerus).1•" flor ocasião de um eclipse que aconteceu pelas nove ou
il1•1t, horas da manhã de 12 do mês de agosto, fizeram-se
Os religiosos hão deixavam de aproveitar a ocasião desses ,tN mniores tolices, não só na ProvençH, mas também por
sinais celestes pai-a conduzir os cristãos à penitência pelo anún- todo n França, na Espanha, Itália e Alemanha, que jamais se
cio de castigos próximos. Mas é evidente que eles próprios 1111virnm contar. Alguns, tendo feito correr o boato de que
compartilhavam os temores do povo, que eram também os dos 11110111 quer que se encontrasse no campo no momento do
chefes de Estado. A aparição do cometa de 1577 assustou tanto 1'1iHpsc não passaria do diH, deram ocasião aos mais crédu-
o eleitor Augusto, da Saxônia, que ele pediu ao chanceler l11Nde manterem-se fechados em seus quartos. Os próprios
Andreae e ao teólogo Selnekker que compusessem preces litúr- 11111dlcos autorizaram essas bobagens, obrigando a manter
gicas especiais e ordenou que fossem recitadas em todas as 1111 portas e as janelas fechadas, e não ter nos quartos outra
paróquias de seu Estado.1•' 1 1lnl'ldncle que não a das velas [...], e com o boato que correu
112
113
***
de que nesse dia todo mundo devia perecer, jamais se viram
tantas conversões, tantas confissões gerais e tantos atos de A crença no poder das estrelas aumentou na cultura diri-
penitência: os confessores tiveram grande trabalho duran- Mmlt~ depois do século XIII.i;4 O retorno progressivo à An-
te vários dias antes, e nessa ficção e medo imaginário, só ll~u1dade e à magia helenística, a tradução por Fecino doses-
a Igreja tirou proveito das loucuras do povo. Não aprovo " hos h:rméticos, a difusão do Picatrix,* a recolocação em
portanto o que se fez em muitas igrejas desta província, em l l1t•11laçao das obras do astrólogo latino Firmicus Maternus -
que se diz que o santo sacramento foi durante todo esse dia 11,~ns poucas '.ndicações escolhidas entre muitas outras - pro-
exposto em evidência: tendo os eclesiásticos aprovado, por \llll'llrnm 1~m mteresse novo pelas potências astrais, um interes-
111
tal ação, a louca crença do povinho. 1 C)l'IC a ~mprensa decuplicou. Entrou também em linha de
1111111'. ,:i cnse da Igrej~ a ~artir do Gran~e Cisma. A contestação
Sobre a inquietação dos lioneses em 1654, consultemos 1111~ cs:r~turas ecl_esiast1cas e os conflitos doutrinais criaram
ainda Le tombeau de l'astrologie (1657) do jesuíta Jacques de Billy. 1111111 du~1da, uma insegurança e um vazio de que se aproveitou
Lembrando as previsões terrificantes que haviam precedido o li 1111vo 11nyulso da as~rologia. Esta, com Nifo, Pomponazzi e
eclipse, ele conta ironicamente que elas haviam lançado C 111 d1_1n'. na_o receou cnar o horóscopo das religiões - inclusive
1111111•1stiamsmo. Invadindo as consciências, assediando O saber
[...] tal pavor nos corações que mesmo alguns dos sábios l,1 k ~. notar talvez por esse novo triunfo que o medo das estre~
sentiram sua estabilidade abalada; todo mundo correu ao I~• 1111'1\ava a ser 1~1ais forte que a esperança cristã - isso espe-
tribunal da confissão para expiar os pecados e aí aconteceu l11l1111lnte nos meios cultos da Itália da Renascença. Da intensa
uma coisa divertida na cidade de Lyon, pois um padre, ven- tlh ll~ifo 9ue_se dedicou a ela dão testemunho os afrescos dos
do que estava sobrecarregado por seus paroquianos, que o i 1h11 1los 1~_a lianos - em Ferrara, Pádua, Roma - e, em geral, a
procuravam em multidão para se confessar, foi obrigado :1
subir ao púlpito e advertir o povo de que não era preciso
l 11lllllf(l'O fia e a poesia que a Renascença consagrou aos plane-
i •- 1)fio testemunho também múltiplos fatos relatados pelas
apressar-se porque o arcebispo havia adiado a solenidade do H111k11s.'11 Na época da Renascença, no país mais "esclarecido"
eclipse até o domingo seguinte.
113 1~ I•11 rnp:1 - a Itália - , a astrologia é soberana. Para todo
111111 n1111climento im~o~tante - guerra, embaixada, viagem,
O pavor provocado pelo eclipse de 1654 tem uma caus:1 ' ,1 1111111to - , os pnnc1pes e seus conselheiros consultam as
particular: perito;. astrólogos haviam calculado que, tendo o 1li li1N.1'~ Pede-se a Marcílio Ficino que indique a data mais
dilúvio ocorrid6 em 1656 a.C., o fim do mundo aconteceri:1 tn 11plPln pnra o começo dos trabalhos do palácio Strozzi. Júli-o
simetricamente 1656 anos após o nascimento do Salvador; o li 1 • 1111 X e Paulo_ m fixam o dia de seu coroamento, de sua
Ili 1,tdu lllll uma cidade conquistada ou de um consistório em
eclipse marcaria então o começo do cataclismo final. Mas t:1I
"prognóstico" não teria podido ser proposto às populações sem
a imensa inquietação que criava a cada vez a aparição de um 1 l .10,1• 111nnu:1l
. de magia, composco
. em árabe no século •x graças ,a ma ten:11s
· ·
fenômeno celeste um pouco incomum e sem a crença muito 1111th li~ 1• <lrlcntais, e trad~zido para o espanhol no século XIII, contribuiu
111h lllt 1111• pnra o novo destino da astrologia. O título latino Picatrix parece
firme de que as estrelas simultaneamente comandam o destino
111111 1h1h11·111:1ção de Hipócrates.
dos homens e anunciam as decisões divinas.
115
1 1 .-t
função da carta do céu. Fora da península, mas talvez por cau- 11urt Também no cheio da Lua, não semeeis jamais coisa
sa do exemplo italiano, as pessoas se comportam e se compor- 11lguma.159
tarão ainda por muito tempo da mesma maneira. Luísa de
Savoia, mãe de Francisco 1, toma como astrólogo Cornelius l(sscs avisos valiam também para os camponeses ingleses, a
Agrippa, célebre mágico, e Catarina de Médicis escuta Nos- 111111111 os autores de tratados de agricultura do final do século
tradamus. E m 1673, Carlos II da Inglaterra interroga um astró- \ \ 1 noonselhavam a colher na Lua minguante e semear em sua
logo para saber quando deve dirigir-se ao Parlamento. 25 anos 111~1• 1•rcscente. 160 Os europeus da Renascença levavam em conta
antes, o "igualitário" William Overton perguntara a um co- 11• lllliCS da Lua para muitas outras operações: cortar os cabelos
nhecedor das estrelas se devia desencadear uma revolução em 1111 IIN unhas, tomar purgação, praticar sangria, partir em via-
abril de 1648. O próprio John Locke acreditará que as ervas
medicinais devem ser colhidas em momentos precisos indica- r• 111, comprar ~u vender, até ~omeçar um ensinamento.161 Na
llf,lhlll.lrra do seculo XV, era ameia uma imprudência casar-se
dos pela posição dos astros.157 Se esse era o comportamento, no 011 ir morar numa nova casa - quando a Lua era minguan-
final do século XVII, do autor de A racionalidflde do cristianismo, 11 J\ Igreja medieval lutara em vão contra essas duas crenças.'"'
adivinha-se a influência da astrologia - e portanto o quanto 1 -~,•~ comportamentos mágicos enraizavam-se na experiência
era grande o medo das estrelas - na época de Shakespeare. 11illt111nr de uma civilização rural. Mas tinham sido teorizados
Segundo K. Thomas, na Inglaterra elas nunca estiveram tão 111 lu 11strologia erudita, mais do que nunca prestigiada na época
em evidência, particularmente em Londres, quanto no tempo 1h• 1,1ttcro e de Shakespeare. Ainda em 1660, um perito inglês
de Elizabeth. Os astrólogos se teriam beneficiado, além do cn- IOUl(ll rava que uma criança nascida no momento da Lua cheia

nal da Mancha, da desvalorização do clero provocada pelo re- f,111111ls teria boa saúde. 16J As pessoas instruídas sabiam que a Lua
púdio do catolicismo. 111111mia a fisiologia feminina e mais geralmente a umidade do
Contudo, a desconfiança em relação à Lua, ligada ao medo 11 11 fHI humano; governa portanto o cérebro, a parte mais úmida

da noite de que se tratará no capítulo seguinte, não foi mais 1h• llosso ser, e é assim responsável pela demência dos tempera-
antiga e mais geral que a ciência dos astrólogos? Em todo caso, 11111111os "lunáticos". 164 A expressão erudita do temor ancestral
inúmeras civilizações de outrora atribuíram às fases da Lu;1 1111 l,1111, ei-la ainda evidente nos conselhos que William Ceei!,
papel decisivo sobre o tempo, assim como sobre o nasciínento 111l11ls1To das Finanças de Elizabeth r, dava a seu filho, reco-
e o crescimento dos humanos, dos animais e das plantas. N.1 1111111dnndo-lhe particular prudência na primeira segunda-feira
,11 11hril (aniversário da morte de Abel), na segunda segunda-
Europa do comec;o. da Idade Moderna, provérbios e almanaques
11 li•n de agosto (destruição de Sodoma e Gomorra) e na última
franceses lembram como entender-se com esse astro capricho-
''Hllllda-feira de dezembro (dia do nascimento de Judas). K.
so e inquietante e como interpretar suas formas e cores:
1 h111lli1s reconhecia na enumeração desses três interditos (ain-
11111•c·spcitados por certos ingleses do século xrx) a versão defor-
No cinco da Lua se verá que tempo todo o mês dará [... 1.
11111il11 e "biblificada" de um conselho formulado por Hipócrates,
A Lua é perigosa no cinco, no quatro, seis, oito e vinte [...I 11111• llpontava como impróprias às sangrias as calendas de abril
a Lua pálida faz a chuva e a tormenta, a prateada, tempo 1 rh• 11gosto, assim corno o último dia de dezembro; esses tabus
claro, e a avermelhada, vento. 1;s 1111 11111 transmitidos à civilização medieval especialmente por
Lua em minguante, não semeeis nada, ou nada crcs- l•li lt11·0 de Sevilha. 16'
116
117
Raciocinar sobre o poder - da Lua ou ao menos da maio- 1111111<:i:1, que se faz pelo azeite e pela fuligem sobre a unha;
ria dos astros-, traçar um horóscopo e dar consultas baseada, 1111~cinomancia, que se faz pelo crivo ou pela peneira; à bi-
no conhecimento do mapa do céu exigiam um nível de instru- ltllontnncia, que se faz por um livro e particularmente pelo
ção que não podiam ter os adivinhos e as adivinhas das aldeias, ,11 h1•rio; à cefalomancia, que se faz pela cabeça de um asno;
as quais no entanto deviam responder às interrogações inquic 1111pnomancia, que se faz pela fumaça; à axinomancia, que
tas da gente dos campos. E parece certo que, embora o preslí- ,1· 1111, pelos machados; à botanomancia, que se faz pelas cr-
gio da astrologia tenha aumentado durante a Renascença nas i ,tH; ~ ictiomancia, que se faz pelos peixes; àquelas que se
cidades e junto às elites, as múltiplas práticas populares de adi l,1111111 ou pelo astrolábio, ou pela dobradura, ou pelo lou-
vinhação continuaram quase inalteradas em quantidade e e111 11 Iro, ou pelo tripé, ou pela água benta, ou pelas serpentes,
qualidade, ao longo de imensa duração que se inicia na noit·c 1111 pclns cabras, ou pela farinha ou cevada, ou pela salga,
dos tempos e desemboca no limiar da era contemporânea. q111• nõo é outra coisa senão a agitação e o estremecimento
Assim, as diretrizes da Igreja, que visavam vários públicos :10 d11~ olhos; ou à catoptromancia, que se faz por espelhos; ou
mesmo tempo e vários níveis culturais, mas se dirigiam espe- ,1 d111 ilomancia, que se faz por anéis.
cialmente aos pastores encarregados das populações rurais,
tratam ainda mais das outras formas de adivinhação que da N11 ~cquência, J.-B. Thiers condena naturalmente toda adi-
própria astrologia. Ainda a esse respeito, o livro de].-B. Thiers l11h1l\'llo pelos sonhos, pelo voo, pelos gritos e comportamen-
constitui um testemunho etnográfico de excepcional impor- 1 d11N nnimais, e pelos presságios, bons ou maus, tirados de
tância. Pois suas enumerações, redigidas, é verdade, numa lin- 11111111,·os e de acontecimentos fortuitos. De todas essas práti-
guagem erudita, deixam perceber a diversidade dos método~ • 1•~1•rcve ele, "não há uma que seja isenta de pecado".166
pelos quais, no estágio mais cotidiano e mais humilde, tentav:1- lt1•N1111rnmos em uma palavra esse catálogo e tudo o que ele
· SC conjurar o medo do que está oculto seja no presente, seja no 11l11 llll'ltdc: outrora o medo estava por toda parte - ao lado de
l 1 ,llnntc ele si.
futuro, prestando a adivinhação esse duplo serviço. O autor
deixa clara sua condenação

[...] da adivinhação em geral [...] a cada espécie de adivinha-


ção em particu lar: à necromancia, que se faz chamando os
manes ou :,s sombras dos mortos que parecem ressuscita-
dos; à geomancia, que se faz pelos sinais da terra; à hidro-
mancia, que se faz pelos sinais da água; à aeromancia, que
se faz pelos sinais do ar; à piromancia, que se faz pelos sinais
do fogo; à lecanomancia, que se faz por uma bacia; à qui-
romancia, ou exame das linhas das mãos; à gastromanci:i,
que se faz por vasos de vidro bojudos; à metoposcopia, 011
inspeção das linhas da fronte; à cristalomancia, que se foz
pelo cristal; à cleromancia, que se faz pela sorte; à onico-

,,o
2. O PASSADO E AS TREVAS , , li 11'.11. ~res~nça do _assassino, apontado assim à justiça. O irmão
N111II 1:11llep1ed, teologo, que publica em 1600 um Tmicté de
l',,11p11ri1io11 des esprits... , ensina categoricamente: "Se um bandido
,1pl'Oxima do corpo que ele tiver matado, o morto começará a
111111111r, suar e dar algum outro sinal": Invoca sobre O assunto
• ,11111111idad~ de Platão, de Lucrécio e de Mardlio Ficino. O
1. OS FANTASMAS llltiltt·o Fél1~ P!atter vê a coisa acontecer em Montpellier em
Outrora, o passado não estava realmente morto e podi:1 I• \ (1, No ~nm_eiro ato de Tingédia do rei Rican:lo III, Shakespeare
irromper a qualquer momento, ameaçador, no interior do pre- (,e, 11 ,·orteJo fúnebre de Henrique VI passar d iante do assassino.
sente. Na mentalidade coletiva, muitas vezes a vida e a morte Al11•11tc deste, o cadáver sangra. Jobé-Duval asseg ura que às
não apareciam separadas por um corte nítido. O s mortos encon- 'llllfllS da Revolução certos tribunais da Bretanha ainda acre-
travam-se, ao menos durante certo tempo, entre esses seres l1t ,1w111 nos "sangramentos" das vítimas. Com razão, H. Platelles
leves meio materiais, meio espirituais com que mesmo a elite da 111111111r:1 esse ordálio a outras indicações que atestam o caráter
época povoava, com Paracelso, os quatro elementos! O médico 1m ll1111te, no universo mental de outrora, da fronteira entre a
alemão Agrícola, autor do célebre De re metal!ica (publicado em 11111 t' 11 morte: as relíquias perpetuavam na terra a existência de
1556), assegurava que várias espécies de espíritos vivem nas 1111111110s privilegiados, os santos; e estes estavam habilitados à
gale rias subterrâneas: uns, inofensivos, assemelham-se a anões 1111 ~••• Cadáver~s'. no direito germânico, podiam agir juridica-
ou a velhos mineiros com avental de couro em torno da cintura; 1111 llll', Um adagio conhecido dizia: "O morto agarra O vivo",
mas outros, que por vezes tomam a forma de cavalos fogosos, 11111~, pela herança que deixava, tinha poder sobre os vivos. Mas
maltratam, expulsam ou matam os trabalhadores. A. Paré con- li IIIIH'lO podia agarrar o vivo de outra maneira. As danças maca-
sagrou um capítulo inteiro de seu livro, Des monstres, a provar 111 •~ pu,iham em cena o invencível esqueleto que à força arrasta
que "os demônios habitam as pedreiras". Ronsard estende-se 1111i1 Ntut ronda fúnebre pessoas de qualquer idade e qualquer
longamente no Hymne des dai11ums sobre os seres ao mesmo 11111llç1lo. Enfim, em todo o Ocidente, mortos eram julgados e
tempo imortais como D eus e "cheios de paixões" como nós, que 11111lt111ndos.
• Em 897, desenterrou-se em Roma O cadáver d o
percorrem o espaço sublunar. Uns são bons e "vêm no ar [... j/ I' 11111 1'º!·moso, que e_ntão foi condenado antes de ser lançado no
Para nos fazer saber a vontade dos D euses". Os demais, ao con- 111111'. Conduta medieval? Não só isso. Quando se descobriu em
trário, trazem à t~rra: "Pestes, febres, langores, tempestades e ll 1-lh1l11, em 1559,_que um rico burguês, J ean de Bruges, morto
trovão. Fazem sons no ar para nos assustar". 2 Anunciam a·s des- 111 ~ 11110s antes, nao era outro senão o anabatista DavidJoris, 0
graças e são os h"óspedes das casas mal-assombradas. L. Febvrc 111 IHM rado mandou exumar o caixão e retirar o corpo, que foi
mostrou com razão que também Rabelais aderia a essa visão 11111 lo ele uma execução póstuma.• Se os mortos eram julgados e
animista do unive rso,3 então partilhada e vivida pelos homens u 1 11111dos, como não acreditar em seu temível poder? Em 22 de
m ais cultos e pelas populações mais arcaicas <la E uropa. •lu li de 1494, perto de Lyon faleceu Philippe de Crevecoeur
Em tal contexto, a concepção da Igreja a respeito de um:1 11111 1111 íra a caus~ ~e Maria de Borgonha após o fim trágico d~
separação radical da alma e do corpo no momento da morte n::io 1 11 los, o T~mer~no, e entregara Arrasa Luís x1. Ora, naque-
podia progredir senão lentamente. Ainda no século xvu, nume- 1~ 1111hc, _várias vmhas foram perdidas na França, pássaros fize-
rosos juristas dissertam sobre os cadáveres que se põem a s:111- 11111 ouvir "estranhos gritos", a terra tremeu em Anjou e em

120 121
Auvergne. Por toda parte onde seu corpo passou para encon1 t 111 • 1 NC!I um espírito se mostrará na casa e, percebendo-o,
em Boulogne-sur-Mer a sepultura que escolhera, "sobrevicn1111 1111•~ se lançarão entre as pernas de seu dono e daí não
horríveis tempestades e cruéis temporais, de modo que c:1s11~, 11111111•1fo sair, pois temem muito os espíritos [...]. Out ra vez
estábulos, apriscos, gado, vacas e bezerros desceram co1Tcntt'l1I 111111111 virá puxar ou levar a coberta de um leito, se pod
abaixo".7 Agora eis aqui dois exempla antigos novamente rcl:\111 11111l11in ou debaixo dele, ou passeará pelo quarto. Viram-
dos em um manuscrito do século XV consagrado às vidas d1 • IH'~soas a cavalo ou a pé, como fogo, que eram bem co-
santos. Um homem tinha o hábito de recitar um de profi1111lh 11111 t idns, e que estavam mortas antes. Por vezes também
sempre que atravessava um cemitério. Ora, um dia ele é arnc11d11 111111h•s que morreram em batalha ou em seu leito vinham
por seus "mais mortais inimigos". Corre para o cemitério 111111- h1111111• seus criados, que os conheciam pela voz. Muitas
próximo e é defendido "vigorosamente" pelos defuntos, cad:1 u1 11 , ,,,~ 1111viram-se espíritos à noite arrastando os pés, tossin-
tendo "na mão um instrumento do ofício em que servira em vid11 1111• N1ts pirando, os quais, sendo interrogados, diziam ser o
[...] do que seus inimigos tiveram grande temor e fugiram todc1~ •1111110 deste ou daquele. 11
apavorados". O outro relato é parente próximo do preceden1 1• •
vem logo depois dele na crônica: um padre celebrava todos 11~ 1)111111110 tais fatos se produzem e uma casa está assombra-
dias uma missa para os mortos; foi denunciado a seu bispo (s1•111 li 1111 1111lrio deve continuar a pagar ao proprietário as anui-
dúvida porque se considerava esse rendimento muito lucrativo), ' 11111hinadas? A essa pergunta, responde gravemente o
O prelado proibiu-o de celebrar o ofício, mas, depois de alg-11111 1 , l'l1111rc Le Loyer, conselheiro no tribunal de Angers:
tempo, ele veio a passar por um cemitério. Os mortos ass:1!111
ram-no. Para ser libertado, precisou prometer restituir ao p:idtt '11 t"dstc, escreve ele, "medo justo e legítimo dos espí-
o direito ele dizer missas para os mortos. 8 Apologia da or:1~·1111
11111~ ~111c assombram uma casa, perturbam o repouso e
pelos defuntos, certamente; mas, ao mesmo tempo, testemu11hn
l11q11l11111m à noite, [se portanto] o medo não tiver sido vão
da crença nos fantasmas. A partir daí pode-se perguntar se 1111
11 lnt·nt:hio tiver tido alguma ocasião de temer, nesse
por simples jogo que Shakespeare evocou o espectro do p:ii d1
, 1~11 o locatário permanecerá quite dos aluguéis pedidos,
Hamlet e que Tirso de Molina animou a estátua do comend:1dn1
111111 de o utra forma, se a causa do temor for considerada
Os espectadores dessas peças consentiam em uma ficç.ão c:OIII
111•111 1• lcgít ima." 11
que não se iludiam? Ou então - o que é mais provável - :1d1•
riam em sua maioria à crença nos fantasmas? Com efeito, 1•111
bem esse o caSQ de Ronsard e de Du Bellay. Segundo o primci 1·0 1 1 , 1111111111 o utrora duas maneiras de acreditar nas aparições
Denise, a feitic'e ira do Vendômois, precipita-se para fora à noi11•1 111111 IIIN, Uma concepção "horizontal" (E. Le Roy-Ladurie),
comanda a lua prateada. Hóspede dos lugares solitários e dm 111 ,111111n, nntiga e popular, defendia implicitamente "a sobre-
cemitérios, ela "desempareda" os corpos dos mortos "em s1111~ 111 ht do duplo" - a expressão é de E. Morin:u o defunto
sepulturas fechadas".'' Du Bellay retoma o mesmo tema. Tamli\'111 111 11111• nlma - continuava a viver certo tempo e a voltar aos
ele, apostrofando uma feiticeira, lança-lhe esta acusação: "Pod1•- 11, ~ d1• sua existência terrestre. A outra concepção, verti.cal
tirar sob a noite escura/ As sombras de sua sepultura/ E viok11 1111~11111dcntal, foi a dos teólogos, oficiais ou oficiosos, que
tara natureza".10 O teólogo Noel Taillepiecl, falando da reap:11'1 li 11 ,1111 1•xplicar os fantasmas (expressão que não é de época)
ção dos mortos, é absolutamente categórico: 111 IIIHII de forças espirituais. Sigamos a esse respeito a argu-

122 123
mentação de Pierre Le Loyer e de Noel Taillepied, que se i\lns eis aqui ainda outro adversário a ser eliminado: o pro-
encontra, aliás, em todos os demonólogos do tempo. Pierre L c 111111 ismo. Pois o ministro de Zurique, L oys Lavater, em uma
Loyer pretende "construir uma ciência dos espectros": para o 111 11 publicada em 1571, negou qualquer aparição das almas dos
que emprega um bom milhar de páginas muito cerradas. Desde 1111 111s. Essa negação decorre da negação do purgatório pelas
o início, ele distingue fantasma de esputro. O primeiro "é a .,,1)1111 dn Reforma. Daí o raciocínio de Lavater: só há dois luga-
imaginação dos furiosos insensatos e melancólicos que se con- • pnrn onde as almas se ret iram após a morte dos corpos - o
vencem do que não é". O segundo, ao contrário, é uma "verda- lill~o e o inferno. As que estão no paraíso não têm necessida-
deira imaginação de uma substância sem corpo, que se apresen- 111• ~cr ajudadas pelos vivos, e as que estão no inferno jamais
ta sensivelmente aos homens contra a ordem da natureza e li ,lo de lá e não podem receber nenhum socorro. Assim, por
causa- lhes pavor".1•1 O caminho de Noel Taillepied está muito (llt ,111 nlmas sairiam, umas de seu repouso, outras de sua pena?' 8
próximo . do seguido pelo jurista angevino. Os "saturninos", p11 ludo católico, n ão se podia senão rejeitar incisivamente essa
escreve ele, ruminam e forjam "muitas quimeras". .i\tluitas pes- t~11111cntação. Ao contrário, sob a pena dos defensores do cata-
soas medrosas "se persuadem de ver e ouvir muitas coisas assus- i 1~1110 1 um discurso teológico que havia muito tempo procura-
tadoras das quais não há nada". Do mesmo modo, "aqueles que li l1th.1j,(rar as velhas crenças na presença dos mortos entre os
têm má vista e ouvido imaginam muitas coisas que não são". ho~••• nclqufre agora todo o seu vigor e sua plena lógica, refor-
Além disso, os demônios, enganadores por definição, podem 111111 •sc com exemplos tirados das Escrituras e com os teste-
"impedir a visão do homem" e "mostrar-lhe por aparência uma 111111h11s de Santo Agostinho e de Santo Ambrósio. 10 Deus pode
coisa pela outra". Enfim, pessoas fazem farsas às outras e "se 1 1111hlr que as almas dos mortos se mostrem aos vivos sob as
mascaram para provocar-lhes medo".i; 11111 ndns de seu corpo de outrora. Pode também autorizar os
Permanece verdade, no entanto, que os espíritos aparecem 11111~, "que vão e vêm do céu à terra", a revestir uma forma
em certas ocasiões. Nossos teóricos batem-se portanto em h111111111n. Eles ganham então "um corpo que formam do ar [...]
várias frentes. Denunciam a credulidade do vulgo. Mas atacam 1h 11io111clo-o, acumulando-o e condensando-o". Quanto aos
do mesmo modo a incredulidade dos "saduceus, ateístas, peri- l 111011ios, podem por sua vez aparecer aos homens seja aden-
patéticos [...] céticos e pirrônicos", que negam a existência dos 1111il11 o ar como os anjos, seja emprestando "os cadáveres e
espectros. Culpam Epicuro e Lucrécio e todos aqueles~ que tll 111~•1111 dos mortos". 21 E ssa última crença explica os versos cita-
dizem que não há. de modo algum substâncias separadas dos i, .. ti,• Ronsard e Du Bellay, já que evocam a ação de feiticeiras
corpos. Pierre Le'Loyer opõe-se assim a Pomponazzi, para llm I mnitérios, e aqueles que Agrippa d'Aubigné consagra, no
quem "a imaginação dos espectros provém [apenas] da sutilez:i 1111 , 11111 espírito, a uma erínia que simboliza as feiticeiras de
da visão, do olfato e do ouvido, pelos quais nos persuadimos de 1 11111~ os lCmpos e a mais odiosa delas, Catarina de Médicis:
muitas vãs imagens".' 6 Combate do mesmo modo Cardan, que
"relata sem razão e experiência [que as] sombras que aparecem À noite e/11 se espojn nos hediondos cemitérios [...]
sobre os sepulcros [nascem] dos corpos enterrados, [os quaisl [8./n] desenter-m sem pavor os pavorosos cmpos,
exalam e impelem para fora uma impressão de forma e de esta- Depois, enchendo os ossos com rt forç11 dos diabos,
nua semelhante a eles. Que inépcia maior se pode cogitar que Osfnz surgir em pé, terrosos, horríveis.21
a de Cardan?".'7

124 125
Mas todas essas aparições só acontecem com a permiss:Ht 1 ,1
de Deus e para o bem dos vivos. Portanto, se a sobrevivênci11 H Preferirias antes não existir a te encontrares nos tor mcn-
dos corpos defuntos é rejeitada como um erro no plano teórico, lm do geena?
é recuperada, no entanto, pelo discurso teológico. Este, valo, i U No inferno, entre os sofrimentos dos sentidos, qual é o mais
zando a alma e desvalorizando o duplo, permite aos mono~ 111111oso?
reaparecer na terra para fazer ouvir uma mensagem de salv:1 Ili A pena da danação, isto é, a privação da visão de Deus, é
ção. Os fantasmas vêm instruir a Igreja militante, pedir oraçik~ 111111N penosa do que os sofrimentos dos sentidos?
que os libertarão do purgatório ou admoestar os vivos parn q111
vivam melhor. C I\ progressos da dúvida metódica, a partir da época de
Revelador, a esse respeito, um manual de exorcista da m c111 1 1111·s, levaram pouco a pouco os homens de Igreja a dcs-
de do século XV (por volrn de 1450) - o Livre d'Egidius, d efo d« ll 111•111 mais dos fantasmas. Publicando em 1746 um 'I'rnité
Tournai - que comporta, entre outras, duas séries ele pergu11 l , 11/1/lfll'itions des esprits, o beneditino Augustin Calmet n ão
tas a serem feitas respectivamente às aparições de almas d11 lt 1 11111 rejeitar muitos relatos atestados por Tertuliano,
purgatório e às aparições dos condenados:13 h1 \w>stinho, Santo Ambrósio etc.

A uma alma do purgatório: , , tdns dos santos [escreve ele] estão repletas de aparições
l. De quem és ou foste o espírito? 111 pt"ISOas falecidas; e se quiséssemos reuni-las, p reen-
2. Faz muito tempo que estás no purgatório? 111 d111110s grandes volumes.N [Acrescenta mais adiante:]
[...] l1111h•dttmos amontoar inúmeras passagens dos antigos
12. Que sufrágios te serão mais úteis? 11111 111111, mesmo dos Pais da Igreja, que acreditaram que as
13. Por que vieste aqui e por que apareces aqui com 111;11 11l111111j npareciam frequentemente aos vivos [...). Esses Pais
frequência do que em outros lugares? 111 il11nv:11n portanto no retorno das almas, em suas rea-
14. Se és um bom espírito esperando a misericórdi:1 d1 l• 11 l~•tics, em seu apego ao corpo; mas nós não adotam os
Deus, por que te revestiste, pelo que se diz, das aparênrtit 111 11p111ião sobre a corpore idade das almas [.. V 1
diversas de bestas e animais selvagens?
15. Por que vens aqui em certos dias ele preferência a rn, 1111, esse beneditino "esclarecido" tem consciência do
tros? 1h qm· muitos escritores c ristãos - até alguns dos m ais
Ih 1111•~ não haviam realme nte rejeitado a antiga concep-
A uma ali~a danada: l 1 111hrcvivência de uma espécie de duplo. Para ele, ao
l. De quem és ou foste o espírito? 1~111,, 11 morte institui uma separação total entre o corpo e
2. Por que foste condenado aos suplícios eternos? 111 , l'~ltl não ronda o local em que o defunto viveu. Mas
3. Por que vens, pelo que se diz, mais frequentemente :1 nh , p1 onunciado esse julgamento categórico, dom Calmet
lugar? 11 ~1111 mesmo ao essencial - porque crê no purgatório - ,
(...) 1111111 • de Le Loyer e de Taillepied. "Embora haja frequen-
5. Proc uras aterrorizar os vivos? lllt ·•, «'~t·rcve ele, "mui.ta ilusão, prevenção e imaginação no
6. Desejas a danação <los viajantes [que somos na terra!? 11111111 das operações e das aparições[...] das almas sepa-

126 /27
radas dos corpos, há cont udo realidade em várias dessas cois11~ IN que sugam no pescoço o sangue de suas vítimas, que

e não se pode razoavelmente colocá-las em dúvida [...]".'º El11, 11·cm de langor. Quando se desenterram os mortos suspeitos
intervêm então na ordem de Deus ou ao menos, se resultam d11 •C'r esses espectros maléficos, eles são encontrados como
operação do demônio, na permissão divina. Portanto, indirctn m, com sangue "ver melho". Então, sua cabeça é cortada e
mente encontram-se de novo creditadas todas as aparições, scju 11locam-se no fosso as duas partes do corpo, cobrindo-as de
das almas do purgatório demandando orações, seja das almn- 1vlvn.
danadas que chamam os vivos à penitência; até época rece111t•, Fstá claro que esses vampiros desempenhavam então o
tais temas foram bastante familiares aos pregadoresY 1wl de bode expiatório, comparável àquele atribuído em ou-
Discurso teológico sobre as aparições, o livro do benedi11 ,_ l'nntos da Europa aos judeus durante a peste negra e às
no, como todos aqueles escritos por seus predecessores sobre 11 ltl,•oiras nos anos 1600. Em suma, não é melhor pôr a culpa
mesmo assunto, é também enfoque etnográfico sobre a 01111 ,1 • 111ortos do que nos vivos?
crença nos fantasmas que a Igreja se esforçou em transform:tr' , l>om Calmet conta ainda, servindo-se de um relato d e
q ue permanecia viva em plena Europa clássica. Pode-se resu 111rncfort, o pânico que se apoderou dos habitantes de Mi-
mi-la assim: durante cer to tempo após seu falecimento, IIN 11111~ 110 final de 1700. Um camponês conhecido por seu caráter
mortos continuam a viver uma vida semelhante à nossa. Volt:1111 ,lo e briguento fora morto misteriosamente. Ao sair de sua
aos lugares onde se desenrolou sua existência, e às vezes p:1111 1111h ura, pôs-se a perturbar a paz da ilha. Dez dias após seu
prejudicar. Dom Cal met nos faz compreender, por meio de 11111 1111hnmento, desenterraram-no publicamente: um açougueiro,
caso-limite, a força de que ainda podia revestir-se essa convii• 11 ~1•111 dificuldade, arrancou-lhe o coração, que foi queimado
ção. Po r ele, conhecemos, de fato, com muitos detalhes a epicl1• 1 pt 11Ín. Mas o fantasma continuava a inquietar a população. O s
mia de medo dos fantasmas, e especialmente dos vampiros, qrn ,111•~ da ilha jejuaram, organizaram procissões. Foi preciso
se propagou no final do século XVII e no começo do século XVIII 1111111r novamente o cadáver, que, colocado numa carroça, ber-
na Hungria, Silésia, Boêmia, Morávia, Polônia e Grécia. N11 \ 11 l' se debatia. Afinal foi queimado. Então cessaram suas
Morávia, lê-se na obra, é "bastante comum" ver os defuntm I' 11 lr_'.Ões e infestações". O temor dos vampiros continuava a
colocarem-se à mesa com pessoas de seu conhecimento. St111 1,111 no século XIX na Romênia - o país de Drácula. Um via-
dizer uma palavra, fazem um sinal de cabeça a um dos conviv:1~,
1111' Inglês observava em 1828: "Quando um homem terminou
que "infa livelmente" morre alguns dias depois. L ivranÍ-se dt·~
1111 tlins de maneira violenta, ergue-se uma cruz no lugar onde
ses espectros desenterrando-os e queimando-os. I a Boêm ht,
1 1wrcceu, a fim de que o morto não se torne um vampiro"/8
por volta da mt'!sma época, livram-se dos fantasmas que dc,n
< )s fotos relatados por dom Calm et não constituem senão o
Iam certas aldeias exumando os defuntos suspeitos e passando
11 ~l'1 111onto de uma realidade amplamente difund ida: a crença
- lhes através do corpo uma estaca que os prega ao solo. N 11
111 1111111 nova vida terrestre dos mortos, ao menos durante cer-
Silésia, lê-se ainda sob a pena de dom Calmet, que se rec11s:111
111111po. No começo do século XVIII, o muito jansenista mon-
dar fé a esses contos macabros, encontram-se os espectro~ ",l
noite e de dia"; percebem-se as coisas que lhes pertenccn1111 1111111• Soanem, visitando sua pequena diocese de Senez, des-
1l11r mm inquietação que ainda se praticam na montanha
mover-se e mudar de lugar, sem que ninguém as toque. O 11111
co remédio contra essas aparições é cortar a cabeça e quci111111 l1l,1~1)llS ele pão e leite sobre as sepulturas, no ano que se segue
o corpo daqueles que voltam. Na Sérvia, os fantasmas são v:1111 1111111c de um parente.i9 Meio século antes, o padre Maunoir

128 129
inserira em seu catecismo em bretão uma pergunta e u1111111 -.•~ l11tos etnográficos e muitos outros que se pode-
posta bastante esclarecedoras: "O que dizeis [...] daqll<:k 11 1111 111111 Implicam a duradoura sobrevivência, em nos-
amontoam pedras em torno da fogueira de são João, d i1t1111I A11 111 lcluntal, de u ma concepção da morte (ou antes
um pai-nosso diante delas, acreditando que a alma dos llHII I• 1 p111prl11 das "sociedades arcaicas", no sentido em
seus parentes defuntos, virão ali se aquecer? [...] Eles pce11111 1 1111!1 lt M.orin. Nessas sociedades, os defuntos são
Indo ao Finistere em 1794, Cambry notará: "Todos os 111111I• 11111 )1 IH 1·0 particular, com quem é preciso contar e
[acredita-se aqui] abrem as pálpebras à meia-noite [...]" No 111
1 p11~11lvcl, ter relações de boa vizinhança. Eles não
trito de Lesneven jamais se varre uma casa à noite; prc1c11d1
1,, 1111111 1uno rtais durante certo tempo. Essa amorta-
que é dela afastar a felicidade, que os mortos por ali p:1ssl'l11111
11 1111dn111<nmento da vida por um período indefinido,
que os movimentos de uma vassoura os fere e os afos111 '
Ili 11 ~~111•inmente eterno. Em outros termos, a morte
Bretanha constitui seguramente um espaço privilegiado p111 ,1
11111 11 11tl11 como algo pontual, mas sim progressivo.37
estudo dos fantasmas na civilização de outrora. "Se niio Sl' p1t
1111 1 11•1111111indo a obra de]. G . Frazer sobre o temor
gou antes o cadáver a seu caixão, reencontramo-lo, no 111111111
, \'11111°y escr eveu:
seguinte, encostado na cerca de sua quadra", escrevia /\ , 1
Braz em La légende de la mort,JJ que esclarecia: "O defumo 11111
ser va sua forma material, seu exterior físico, todos os sc 11°, 111 11111111111(11 n Madagascar, da Nigéria à Colômbia, cada
ços. Conserva também seu traje costumeiro [...]".34 Adm itl11 h 1111•, 1wocn, alimenta, utiliza seus defuntos, mantém
outrora nessa província que a terra pertencia, de dia, aos vh 1 1111111 lo c:om eles; atribui-lhes na vida um papel posi-
e, à noite, aos mortos. Mas então pode-se falar de "fantas11111 111111111100 0 s como parasitas, acolhe-os como hóspedes
perguntavam-se A. L e Braz e Van Gennep? Em todo c:1so 1 11 1111 11111110:i desejáveis, atribui-lhes necessidades, inten-
Bretanha pensava-se que os defuntos constituem uma v1•11I 1" 11lt•rl 'N, '"
deira sociedade, designada por um nome especial, o "A 11111111
plural empregado como singular coletivo. Seus membros ll11h1 11 11111• crn verdade recentemente nesses países não
tam o cemitério, mas voltam, graças à escuridão, para visi1111 11 11 1111 lll lllbérn, ao menos em certa medida, em nossa
lugares onde viveram. É por isso que não se varrem ns <:il ~II • h 11111 período relativamente próximo de nós. Cer-
meia-noite. As almas dos mortos se reúnem três ve~es ao 11111 1 p111c1IN 0 delimitar "em certa medida", pois o discurso
na véspera do Natal, na noite de são João e na noite de ' li1d11 1 ,1tiII c• os mortos, cujas grandes linhas retraçamos,

os Santos, desfilando em longas procissões em direçiio du ~ , 1·ctomo aqui as distinções de E. Morin - em


lugares de 1:e~nião.35 Essa coabitação com os defuntos ac:11w 1,1 111°11 "~ol'icdades arcaicas" em "sociedades metafísicas"
va certa farniliaridade com eles. Entretanto, e ao mesmo Lc111p1, li 1111 11 Ideia de uma separação radical dos vivos e dos
os mortos provocavam medo: não se devia ir à noite a um l '<'I III \ li11! 110 cotidiano vivido e nas mentalidades coletivas,
tér io e atribuía-se um papel considerável ao "Ankou" - (1h 11111 , , it~NIIS duas concepções, teoricamente alérgicas uma
morto do ano em uma localidade, este preenchia na pan'1q11I ,1~1llll'cvivência do "duplo", por um lado, e a separação
durante todo o ano seguinte, o papel do lúgubre ceifeiro q11 1111111 ,, do corpo, por outro-, de fato coabitaram.
ceifa os vivos e os amontoa numa carroça desconjuntad:1 r11111 li• 11·1 c 11111po rtamentos complexos, ou até contraditórios,
0

rodas rangentes.36 11 ,1111 11111 pouco em toda parte uma agonia e um faleci-

130 131
menta, alguns eram incontestavelmente g uiados por um medo 111111•to, t inha provavelmente um significado inverso. Sem
mágico do novo defunto e mesmo do moribundo. Por exemplo, hh1 não se tratava do óbolo a Caronte, e sim de um rito de
o costume, atestado em m últiplos lugares, de jogar a água do~ 1p111 cios bens do defunto. D essa maneira, a herança era
recipientes que se encontravam na casa, ou pelo menos na d11111 uh Ido em boa e devida forma, e o antigo proprietário perdia
ra mortuária. Q ue esse gesto tenha sido identificado como 11:111 li 111otivo para d isputá-la com os vivosY Na Bretanha, uma
cristão pelos homens de I greja é comprovado pela atitude d11 o 1•11ixifo depositado sobre uma "pedra dos mortos", as pes-
Inquisição brasileira, que considerava essa prática indício de q111 1prcssavam-se em reconduzir à granja a parelha que cond u-
os cristãos-novos haviam recaído no judaísmo.i9 Qual e ra a siK 111111\\Íde, para impedir o novo mo rto de subir novamente no
nificação desse costume? Pensava-se que a alma, ali tendo ~1 111• voltar para casa.~6 As pesadas pedras tumulares de nossas
lavado antes de evola r-se, poluíra o líquido com seus pecadm / 111~11 de nossos cemitérios não constituíram um meio - mui-
Ou então que agindo assim impedia-se a alma, ao partir, 11! ',,•~ ineficaz - de impedir os mortos de assombrar o mu n-
afogar-se, o que teria podido acontecer se ela tentasse beber 011 1111~ vivos? E os trajes de luto não eram um gesto de dissuasão
mirar-se na água - razão pela qual se velavam os espelhos? A, 11 hu;1lo aos defuntos? Já que se conservava sua lembrança de
d uas explicações foram sem dúvida aceitas conjuntamente, 1111H1 li 11 ,1 visível, que razão tinham eles para invejar e persegllir
aqui, outra acolá. Em todo caso, importava facilitar o tresp:1q~1 p,111111tes que ficaram na terra?
por medo de ver a alma do agonizante demorar-se ali onde j:í 111111 ~ 1•ondutas d itad as entre nós pelo temor dos mortos
devia perma necer. No Perche, no tempo do padreJ.-B. Thil·1~,
1 111 ~cr utilmente aproxim adas de outros comportamentos
dispunha-se o leito do moribundo paralelamente às vigas do 1r1111
1111 \1110 significado detectáveis em outras civilizações afasta-
pois traves t ransversais poderiam constituir obstáculo à últi11111
1h1 nosso pelo tempo ou pelo espaço. L .-V. Thomas cita a
partida.~º Em Berry, abriam-se amplamente as cortinas em 1rn·1111
pr 11p6sito os seguintes costumes:
do leito do moribundo.41 Em Languedoc, retirava-se uma 1dh11
ou uma ardósia do telhado para permitir a elevação da alm:1, 011
N,1 umiga Grécia, os fantasmas t in ham direito a três dias
ainda, com o mesmo objetivo, derramavam-se sobre o ros10 ilu
111 pt'llSCnça na cidade [...]. No terceiro dia convidavam-se
novo defunto algumas gotas de azeite o u de cera.41 També111 ~,
huloN os espíritos a entrar nas casas: servia-se-lhes então
pôde identificar costumes contraditórios a respeito dos- pas,r111
11111 111ingau preparado em sua intenção; depois, quando se
dos fantasmas, uns visando facilitar-lhes o retorno aos lu~:111
que lhes eram•familiares, os outros, ao contrário, procur:1111111 l11l1t11v11 que seu apetite estava acalmado, declarava-se-lhes
extravi1í-los i:füra longe de sua casa e de seus campos. i\1as 11111111 11111 firmeza: " Espíritos amados, haveis comido e bebido;
outra atitude postulavam a "sobrevivência do duplo". No Pcrd11 •N' 11 11 Ide embora".
quando o cortejo fúnebre dirigia-se à igreja, os particip:11111 Nn África [...], para incitar certos defuntos a não mais
colocavam cruzes nas encruzilhadas a fim de que o morto 1\·1•11 111111I', mutila-se seu cadáver antes do sepultamento, rom-
contrasse o caminho de casa.'1 Nos bosques da Vendeia, col111 ,, 1" 111111-lhe por exemplo os fêmures, arrancando-lhe uma
va-se uma pedra polida no caixão: mais uma vez para perrn i1 i1 1111 1111 1h11, cortando-lhe uma mão: por vergonha, por impossi-
defunto reencontrar seu caminho quando retornasse entre "11 l11lld11dc física, serão forçados a ficar onde estão; se se trata
próximos.44 Mas o costume amplamente difundido na F r:111~·11d1 1, 111111s mortos, não há senão um meio: assegurar-lhes fu-
outrora de depositar uma moeda no ataúde, ou mesmo na 11111 1 1111 1114 dignos deles.

133
O rito relativo ao suicida que acabamos de descrever é eví-
Na Nova Guiné, os viúvos não saíam senão munidm
mcmente ambíg uo. D o ponto de vista etnográfi co, significa
de um sólido cassetete para defender-se contra a sombra d11 lll' se queria impedir o culpado de reencontrar o caminho de
desaparecida (...). No Queensland, rompiam-se os ossos dm 11 t·asaH - razão pela qual o faziam passar pela janela e com
mortos a golpes de porrete, depois colocavam-se seus joelhe,~ 111~to voltado para baixo. Mas, para a Igreja, aquele que puse-
ao nível do queixo; para termina r, seu estômago era ench i 11111 a seus dias desesperara do perdão d ivino. Excluíra-se
do de pedregulhos. Foi sempre o mesmo medo que incitou ,1111 da comunidade cristã: o que era marcado de maneira
certas tribos a colocar pesados blocos de pedra sobre o peito ll•nsiva. D e fato, encontramo-nos aqui diante de um dos
dos cadáveres, a fechar hermeticamente com lajes pesadas a~ 11111crosos casos de cristianização de comportamentos pté-
criptas, a prega r do mesmo modo as urnas e os ataúdes: · t1~1nos ou, em todo caso, não cristãos na origem. Da mesma
l1111cira, pensou-se por muito tempo, e em todas as orlas ma-
No Ocidente, ao menos a partir do século XVI, o temor de ~l'I 11111111s, que os mortos no mar, por n ão terem recebido uma
enterrado vivo, isto é, quando se era apenas vítima de um so110 1111ltura, continuavam a vagar sobre as ondas e perto dos re-
letárgico, ganhou proporções consideráveis. E le era amplamc11 lh•~. Na Bretanha, essa c rença, atestada no século IV de nossa
te difundido no Anjou do século XVH e se estendia pela Europ,t ~. 11inda permanecia viva na metade do século XX, especial-
do século XVI II.48 Mas esse temor era também o medo que M' 11 llll' nas regiões próximas do cabo de Raz e da baía dos
tinha das pessoas do círculo de convivência e durou muito tclll 11110s. Comumente se considerava que os mortos no mar
po. Contaram-me que na Sicília, há vinte anos, uma famíli11 1l\'11111 condenados à vagueação até que a Igreja on1sse por
recitava todas as noites o rosário durante longo período para w 1 - ,\ inda em 1958, celebrou-se em Ouessant o proelln de uma
proteger do eventual retorno de um parente que talvez houvcs,t• \1 111 freira que se afogara tentando salvar uma criança e cujo
sido enterrado antes de estar morto.4'' Precaver-se contra u 111 li p11 niio fora encontrado. O Télégr11111111e de Brest, que relata a
defunto tornava-se ainda mais necessário se este era um suicid11 111111,ni:1, faz compreender que se tratava de um substituto de
Na Grécia antiga, cortava-se-lhe a mão direita. Sua vontade d1• l11t10 e de enterro, onde se utilizavam figuras vicárias para o
morrer era considerada uma manifestação de ódio em relaçiío 11 li p11, o sudário, o ataúde e a sepult ura:
vida e aos vivos.soNo O cidente "moderno", faziam-no sair da c:1,11
onde jazia, seja lançando-o pela janela, seja - por exen1plo c111 1J111n cruz de cera branca, signo do cristão, símbolo do de-
Lillc no século ivu - fazendo-o "passar por baixo da soleira d11 lt111to, é colocada no domicílio do afogado, sobre uma mesa
1 t1lll'l'la com um pano branco. A pequena cruz repousa em
casa por um bi,raco, com a face contra a terra como um animal",''
Gesto de conjuração que lembra que, em muitas civilizaçfü·~, 11111nl sobre uma touca. D ois círios acesos enquadram a cruz.

todo morto é maléfico. O padre Thiers conta ainda que 110 1>h11nc dela, um prato com um ramo de palma mergulhado
Perche a roupa branca usada pelo defunto durante sua doc11~11 , 111 1ll{t1rt benta. Com a chegada da noite, começa o velório.
devia ser lavada à parte para impedir "que causasse a mor11 No dia seguinte, precedido da cruz, vem o clero, como
daqueles que a usariam depois dele".51 Do mesmo modo, a colo 1111111 n encomendação do corpo. O padrinho leva respeito-
11111111te a pequena cruz de cera re pousando sempre sobre
cação na mortalha devia ser feita não sobre a mesa do quarto
1 l1111t•11 que lhe serve de ataúde. Atrás dele, os parentes, os
onde ocorrera o fa lecimento, mas sobre um banco ou no ch:111,
11tlll{OS.
senão "alguma outra pessoa da casa [morreria] no mesmo ano"."
135
O cortejo fúnebre dirige-se lentamente para a igreja.
Depõe-se a pequena cruz sobre o catafalco, e o serviço de dl1l11tos-fa~ta~mas: aqueles que haviam morrido no momento
enterro é celebrado. No final do ofício, o padre deposita a 1111 llíl prox11rndade
. de um rito de passagem que, por essa razao,
-
cruz de cera em um cofre de madeira situado no altar dos liRo se realizara (fetos mortos, casados falecidos no dia das bo-
mortos, no transepto. A cerimônia está terminada.55 d1111 etc.). Um etnólogo polonês, L. Stomma, trabalhando em
d11m11nentos de seu país da segunda metade do século xrx a _
li~ou qum · h , na
Outrora, se se encontrava no mar "uma batelada de mari- ,, . , entos
f casos de mortos transformados etn "demo-•
nheiros defuntos", era preciso dizer um Reqttiescant in pnce 0 11 1111111 , isto e, antasmas, como acreditavam seus próximos:6'
mandar celebrar uma missa para eles: cristianização evidente d:1
crença nos fantasmas dos marinheiros desaparecidos e nos "bar- I 111~.~urins de 1110,·tos tnmsfo,·-mados em "demônios" N1ímern de casos
% doscnsos
cos noturnos" conduzidos por mortos.56 Quanto aos holandeses, 1 11111<1s mortos 38 i,6
percebiam nos dias de tempestade um barco maldito, cujo c:ipi \hortndos 55 li
tão, por uma ofensa feita a Deus, estava condenado a vagar etcr C I l1111ças não batizadas 90 18
namente nos mares do Norte.5' Essa reinterpretação moralizante 4 \lulhcrcs mortas durante o parto
e cristianizada de uma das lendas relativas aos "navios fantasmas"
10 2
\h1lhcrcs mortas após o parto, mas antes das
é muito semelhante a outras do mesmo tipo. Em Flandres, no 11,1_ ,lc purificação
14 2,8
século xv, dizia-se, por uma espécie de camuflagem da crença 1111
N11IV()S mortos pouco antes do casamento 14
metempsicose, que as gaivotas eram as almas dos maus obrigad:1~ 2,8
C ,1-ntlos falecidos no dia do casamento 40 8
por Deus a um movimento perpétuo, à fome e ao frio do inver
~nh hlns
no.58 Mickiewicz, em Os antepassados, põe esta queixa na boca do 43 8,6
1111111:·11n lo:s- - - - - - - - - - - - - - 2 : : __ _ _ ~
::c;:
danado: "Preferiria cem vezes ir para o inferno [...] a vagar assi111 38 7,6
pela terra com os espíritos impuros, a ver os vestígios de minh:1~ 1 \l111(1Hlos 101 20,2
antigas orgias, os monumentos de minha antiga crueldade, 11 1 1ti h•~1:1i:,i::
10:s-:;d-;:c:m:-::o:::r:::::tc-:v:-;-io-,
_1-=-
c,-:1t-a_o_u_n-::ã-o-n-at_u_ra-:l--_::~_ _ __:.'.'.
15 3
vadiar incessantemente, sedento, esfaimado, do poente à auror11 1 1lillitlS
15 3
1 da aurora ao poente [...]".59 Outrora, na maior parte das proví11
cias da França, acreditou-se nas "lavadeiras noturnas", obrig:1d11r1 500 100
1
até o fim do mundo a bater e a torcer a roupa porque havia111
cometido infantiddios ou enterrado parentes de maneira indig1111 l h•~tncam-se particularmente nessa interessantíssima esta-
ou ainda trabalh'àdo muito frequentemente aos domingos. 60 Ih ti li t:ntegoria das crianças mortas antes do batismo (n"' l, 2
Mais geralmente, tinham particular vocação para a vagm:11 li, 111 1 lmal 38,6%, e a dos afogados, 20,2o/co . Um elo tena
· ex1s-
·
ção post mortent todos aqueles que não se haviam beneficiado d1•
111t p111 tnnto, entre crença nos fantasmas e malogro trágico de
um falecimento natural e, portanto, tinham efetuado em co11 111111 de passagem, e até, mais geralmente, entre fantasmas e
<lições anormais a passagem da vida à morte - logo, defunto~ llm do espaço ou do tempo cumprindo função de fronteira
mal integrados a seu novo universo e, por assim dizer, "mal l' l11 11, lhlN~ngem. Assim, mais de 95% dos mortos estudados por
sua pele". A essa acrescentava-se uma outra categoria de c:111 11111111111 e que se tornaram "demônios" foram enterrados nos
Ih~ 1h1 11111 terreno ou de um campo, à beira de uma estrada
/36
137
ou de um lago. E, em mais de 90% dos casos, eles aparecem :10 A Bíblia já expressara essa desconfiança em relação às tre-
meio-dia, à meia-noite, ao amanhecer ou ao crepúsculo. Nl:ts , , comum a tantas civilizações, e definira simbolicamente o
essa relação entre "passagem" (no sentido mais amplo) e fant:1~ d,-1 ino de cada um de nós em termos de luz e de escuridão1 isto
mas foi ocuJta por uma cristü111ização crescente, que desloco11 .11• vicia e de morte. O cego, diz ela, que não vê "a luz do clia",
cada vez mais as perspectivas e insistiu na noção de salvação. P.m~ui um antegosto da morte (Tobias, 3,17; 11,8; 5,lls). Quan-
i111 lurmina o dia, então sobrevêm os animais maléficos (Sal-
111~, 104, 20), a peste tenebrosa (Salmos, 91,6), os homens que
Os fantasmas cristianizados foram muito numerosos. No~ 1h•111111 a luz - adúlteros, _ladrões ou assassinos Uó, 24,13-17).
Bálcãs, convenceram-se de que os excomungados permaneci:1111 - 1111, é preciso implorar Aquele que criou a noite que proteja
na terra enquanto não estivessem reconciliados,'•! e por tod11 homens contra os terrores noturnos (Salmos, 91,5). O in-
parte na Europa católica acreditou-se nas aparições das alm:tN 1111, - o xeol - é evidentemente o domín io das trevas (Sal-
do purgatório que iam pedir aos vivos orações, coletas de <lon:1 111-, 88,13). Em compensação, o dia de Iahweh será o da e terna
tivos, a repan1ção de erros cometidos por elas ou a realização d1• l•11dnde. Então "o povo que caminhava nas trevas verá uma
votos não cumpridos. Morada das almas que ainda não ari11 t11111l1J luz" (Isaías 9,1; 42,7; 49,9; Miqueias 7,8s). O Deus vivo
giram seu destino definitivo, o purgatório tornou-se o grand1• 11111111:iní os seus (Isaías 60,19s).
reservatório de fantasmas. C ) próprio Cristo precisa atravessar a noite de s ua paixão.
O cristianismo encarregou-se então pouco a pouco d11 l11w 1cl:1 a hora, entrega-se às ciladas da escuridão Uoão 1.1,10),
crença nos espectros, dando-lhe uma significação mor:il 1• •11111_1 se entranha Judas (13,30) e se dispers:1111 os discípulos.
integrando-a numa perspectiva da salvação eterna. Mas, cn11·1• li tjUIS afrontar essa "hora e o reino das trevas" (Lucas 22,53).
o discurso teológico sobre as aparições e o cotidiano vivido, li 111omento de sua morte, um manto noturno se estende pre-
uma distância subsistiu, mais ou menos larga segundo os Sl:lo -llll'lllllCnte sobre a terra (Mateus 27,45). Mas desde que é
res geogníficos e os níveis culturais. Van Gennep tinha r;1;,,:lci 111111•lnd:1 a mensagem evangélica e que Cristo ressuscitou uma
de escrever:6i "[•••] A convicção de que o morto pode voltar pa, 11 I" 1,111,n brilha no horizonte da humanidade. Certamente o
casa apesar de todas as precauções que se tenham tomado lnl 1,1 ,111, cliz são Paulo, ainda se encontra "na noite". Mas "avança
muito forte na França (e em outras partes) durante séculm, 1111 dia próximo que a ela porá fim" (Romanos 13,12). Se ele
mais ou menos em todos os meios, e só se atenuou hií uma cc11 11 •1111.1r ."chocar-se contra as montanhas ela noite Uoão 13 ,16),
tena de anos, muho lentamente nos meios rurais, mais deprl:~\il • 1111v1r o apelo de Cristo para tornar-se "filho da luz" Uoão
nas cidades e nós centros operários".64 '''•), Pnrn velar contra "o pr íncipe das trevas" (Efésios 6,12),
• lt'VCStir C risto e suas armas de luz e rejeitar as obras de
,_ ( Romanos 13,12s). Deus nos ajudará a libertar-nos da
2. O MEDO DA TOITE Ih C>s apocalipses judaicos já haviam descrito a ressurreição
Fantasmas, tempestades, lobos e malefícios tinham m11i1 ,1~ 1111 11111 despertar após o sono da noite (Isaías 26,19; Daniel
vezes a noite por cúmplice. Esta, em muitos medos de outrn1111 1, 11111 retorno à luz após o mergulho na escuridão total do
entrava como componente considerável. Era o lugar onde 11 1 N1•~sc rasto, a liturgia católica dos funerais inclui esta pre-
inimigos do homem tramavam sua perda, no físico e no mor:11 1 hu• ns almas dos fiéis defuntos não sejam mergulhadas nas

139
trevas, mas que o arcanjo são .Miguel as introduza na luz sant :11 lll•ll'tC próxima do sol. E le "vomitará vermelho, depois não
Faze brilhar sobre eles a luz sem fim".
65
li1nl mais lá"; e se estenderá definitivamente a noite que é "a
O temor de ver o sol desaparecer para sempre no horizo111 (• N•l\'no daquilo que é". O romance de C. F. Ramuz66 evoca com
perseguiu a humanidade: como provam, entre muitas outras, :111 U•h•1,11 n profunda tristeza que reinava outrora nas aldeias de
crenças religiosas dos mexicanos antes da chegada dos espa h1111w1tanha durante a longa estação fria: ali os suicídios eram
nhóis. Para os habitantes do vale do México, na idade de 0111'0 1111tmtes. Ainda hoje eles são mais numerosos durante os
da civilização de Teotihuacán (300-900 d.C), os deuses havi:1111 \'11 110s anormalmente longos e nevosos.
se reunido - precisamente em Teotihuacán - para criar o sol i\llus o temor de um desaparecimento do sol não é exclusivo
e a lua. Para fazê-lo, dois deles lançaram-se a um braseiro, d:111 llll•xicanos de outrora e dos habitantes dos vales de ontem.
do nascimento assim aos dois astros. i\tlas estes permaneci:1111 Sh11cnon fala como de uma evidência das "crianças que têm
imóveis no céu. Então todos os deuses se sacrificaram p:11•11 1li1 do c repüsculo" e que também se fazem a pergunta: "E se
fazê-los viver de seu sangue. Em seguida os astecas pensar:1111 111 11tlo voltasse amanhã [...]. Não é", acrescenta ele, "a mais
que deviam renovar esse primeiro sacrifício e alimentar o snlt 1h1111111:(Ústia do mundo?""7• Entretanto, os bebês muitas vezes
daí os sacrifícios humanos. Se ele não recebesse a "água prccin li Illm medo da escuridão. Inversamente, cegos que não
sa" do sangue humano, corria o risco de parar de girar. D css1• 11111 c•um a luz do dia são assim mesmo tomados de angüstia
modo, a inquietação estava no auge a cada f1m . de "secu
, 1o ", 1111 1111il11 vem a noite: prova de que o organismo vive no ritmo
seja, a cada 52 anos. O povo esperava com terror para sabei' NI 1111l\1llrso. Com]. Boutonier, é útil distinguir metodologica-
o sol renovaria seu contrato com os homens. A última noite d11 111• medo na escuridão e medo da escuridão, mesmo que se
"século" era passada no temor, com todas as luzes apagadas. /\ t ,~,• inverteras afirmações desse autor. 68 O medo na escuri-
esperança só voltava quando o astro afinal aparecia, tendo 11111 11 1lq11cle que experimentavam os primeiros homens quando
sacerdote acendido o fogo novo sobre o peito de um sacrificaclo 11111• 1/C encontravam expostos aos ataques dos animais fero-
A vida podia recomeçar. 1111 poder adivinhar sua aproximação nas trevas. Assim,
"Se o sol não voltasse", essa angustiante interrogação clu~ 1-,11'11111 afastar por meio de fogueiras esses "perigos objeti-
mexicanos de outrora forneceu o tema e o título a um rom:1111 t 1•~11cs medos que voltavam todas as noites sem dúvida
de C. F. Ramuz (1939). Para os habitantes de uma aldeia ck: v11h 111111'1.ll l'Om a humanidade e ensinaram-na a temer as arma-
que dá as costas ao sol, este se esconde atrás das montan h_:1s d1 hi. iln noite. O medo 11a escuridão é também aquele sentido
25 de outubro à 13 de abril. Mas, naquele inverno, ele est.1 :ll11 lt 111111tc por uma criança que adormeceu sem dificuldade,
da mais ausente ·q ue de costume. Está doente, esfria-se e c111't1 1h pois desperta uma ou várias vezes tomada de terrores
lhe-se, "já não tem poder suficiente para dissipar a névoa" 1111111~. De olhos abertos, parece ainda olhar as imagens
"uma névoa amarelada [...] - estendida de um declive ao 01111 11 1 l,Hllll'ns de seu sonho. Trata-se então de "perigos subjeti-
como uma velha serapilheira, um pouco acima da aldeia". O dh1 1• 1•SNCS constituem talvez a principal explicação elos
tornou-se "algo de cinzento e de vago que se desenrosca lcnht lo. 1111c nos invadem à noite. Mesmo "para bom número de
mente da noite do outro lado das nuvens como por trás de 11111 h11•, 11 Inquietação neles desenvolvida pelas trevas, se existe,
janela embaciada". Essa permanência incon~um da bruma _lc~111, lt I il1•~NC sentimento de que alguma coisa de temível vai
velho Anzévui - que sabe ler os grandes livros - a prole, 11111 111 ~•• 1<ohrc eles, saindo da sombra, ou os espreita, invisível".1•9

140 141
"Eis aqui o momento em que flutuam no ar/Todos esses rumo - 11, •Whtrai à vigilância de outrem e de nós mesmos e é mais
res confusos que a sombra exagera", escreve V. Hugo, a q m:111 11111111111 que o dia aos atos que nos reprimimos de encarar, por
Musset responde em O salgueiro: 111~1 111\nci_a ?u temor: audácias inconfessáveis, empreendi-
! IIION c r1m111osos etc. Enfim, o desaparecimento da luz nos
()_h! Quem não sentiu o coração bater mais rápido Ili l11n no isolamento, nos cerca de silêncio e portanto nos
A hora em que sob o céu o homem estrí só com Deus? 1 •111111cgura". Umas tantas razões convergentes que explicam
Quem não se voltou, crendo ver atrás de si l1111111otnção engendrada no homem pela chegada da noit e e
Alguma forma deslizar[...] t ~l•ll'~os de nossa civilização urbana para fazer recuar o
É certo que entiio o Pavor sobre nossa cabeça 11111110 d:i sombra e prolongar o dia por meio de iluminação
Passa como o vento no cimo dos bosques. ;o lllld nl.
"Um homem que acredita nos fantasmas", escreve M:111
passant, "e que imagina perceber um espectro na noite, dt:V\1
sentir o medo em todo o seu pavoroso horror".7 ' E cont:l 11111 No 11omcço da Idade Moderna, como era vivida a noite?
111 t tu>11• nilo seria demais para responder a essa imensa ques-
caso típico de terror noturno: um guarda florestal matara 11111
caçador furtivo exatamente dois anos antes numa noite de invt:r
1 \11 IIH.mos pode-se acentuar brevemente qne ela conserva
no. N esse aniversário, ele, com um fuzil na mão, e sua fam íli11,
1A11 11111•r1 muitos - e talvez até aumente - suas característi-
estão convencidos de que a vítima virá chamá-los, o que j,i rl'1 11l11111111ntcs.
'1, rn, provérbios asseguram que a noite traz conselho, não é
no ano anterior. Em meio a um silêncio angustiante, eles 011 Vl' III
1 1,111\0 dn sombra de que se acompanha, mas do prazo que
efetivamente um ser que desliza ao longo da casa e arranh:1 11
1p íl1 1 1rn1 cs de uma decisão. Aliás, os provérbios lamentam
porta. Uma cabeça branca aparece contra o vidro do posl Íl{O
t I Ili ltHlo: "A noite é negra corno não sei o quê"1i - e temem
com olhos luminosos como os de uma fera. O guarda atira, 11111~
1111111dilhos: "A noite, o amor, o vinho têm sua peçonha e
não abre a porta senão ao amanhecer: matara seu cão."
1111" ' 1'•'In é a cump , 1·ice dos seres maleficos:
, "As pessoas de
Que os "perigos objetivos" da noite tenham levado 11
li 111111111 o di:l, e os maus, a noite".; "Só andais à noite, como
5
humanidade, por acúmulo ao longo das eras, a povo.-í- la d1
1 1111111 1'1\rlllHll'l'O e os lobisomens.";,, Inversamente, os provér-
"perigos subjetivos" é mais do que provável. E dessa rnam:ir,1
1 111111111 o lo uvor do sol: "O sol não tem igual".n "Onde O sol
j:í o medo na es,curidão pôde tornar-se mais intensamcnll' f
t 1111111• 111lo tem nenhum poder." 78 "Quem tem o sol nunca
mais geralmen~ um medo da escuridão. Mas este último cxi~
11111111, 11 1• "(.)ucm tem o sol não morre jamais."8º
te também por outras razões mais internas e que se prendl'III
1111, o nnscer do dia é saudado pelos marinheiros como a
à nossa condição. A visão do homem é mais aguda do que :1 dt
1 111~ 11 d11 sn.lvação após uma noite de provações. Escreve
muitos animais, como o cão e o gato; desse modo, as tn.:v11-
deixam-no mais desamparado que muitos mamíferos. All1111
disso, a privação de luz atenua os "redutores" da ativid:ult Oepois de prncelosa tempestade
imaginativa. Esta, liberada, confunde mais facilmente do q111 Noturna sombra, e sibilante vento,
durante o dia o real e a ficção e corre o risco de desorientar 141 'l)y,z 11, mrmhã serena claridade,
fora dos caminhos seguros. É ainda verdade que a escurid1111 lüpemnça de porto, e salvamento:
1 , t ")
11111• têm sua sepultura nas encruzilhadas e nas ondas, já re-
Aparta o Sol a negrn escuridade,
Removendo o temor ao pensamento8'. 11111111ntm a seus leitos suspeitos. Pois, por temor de que o
11111 l11i:i sobre suas faltas, exilam-se voluntariamente da luz
Como se o furacão se acalmasse necessariamente com o 1 11111110 p:ira sempre unidos à noite de fronte negra. 85
retorno da clar idade. Em terra também a noite é inquietante,
Em Sonho de uma noite de verão, Píramo exclama: l',11 ,1 ns mulheres velhas que, no serão, trocam as palavras
lllhh1N NOb o título de Les Evangiles des quenouilles,86 os sonhos
Ó noite terrível! 11- 111111 siio produções do psiquismo. Ao contrário, são trazi-
Ó noite de cores tiio negras! 1111 1•,i1erior e impostos àquele que dorme por um ser ma-
Ó noite que estti em toda parte onde niío é dia.' 11 ,, misterioso chamado Cauquemare ou Quauquemaire (no
Ó noite! ó noite.' ai.' ai.' ai.' 8' 1 t /11/ftt'he-Vieille). As diferentes menções da coletânea em-
Mesmo para a elite culta, ela está povoada de esp1n1 0~ 1111 111'11 o singular - ser "cavalgado pela Cauquemare" - ,
temíveis que "desorientam os viajantes rindo de sua pena"."' 11 11 pllll'll l e, nesse último caso, estabelecem uma filiação

o sinistro encontro dos animais mais ameaçadores, da morte l ' • ~~1 111 personagens perniciosos e os lobisomens: "Disse
dos espectros, especialmente aqueles dos danados. "Quando li 11111111 velha: se um homem tem tal destino de ser lobiso-
língua de ferro da meia-noite contou doze", lê-se ainda na mes 11 • 1lll'fci l [acaso] se seu filho não o for e, se tem filhas e
ma peça de Shakespeare, então começa um tempo inum,1110: h11111 lllho, focilmente são Quauquemaires".~7
1 11111 "tlns mais sábias" da assembleia responde à preceden-
Eis a hora em que o leão ruge, l I l1111111do que é preciso precaver-se contra os "funestos
Em que o lobo uiva para a lua, tlli1~ 1111Nim como contra os duendes, Quauquemaires ou
Enquanto ronca o rude lavrndo1; 11111111h, po is eles trabalham sem ser vistos".8R Assim, os
Estafo.do por sua penosa tarefo. 111111 ~ ou causadoras - de pesadelos são agrupados no
Eis a hora em que as tochas crepitam apagando-se, l II ili• 1111111 perigosa categoria onde se encontram desor de-
Enquanto a coruja, com seu pio agudo, 1111111,,, 111> lado deles, duendes, fantasmas e lobisomens. As
Lembra ao m.ise1·ável, em seu leito de dor, 111 11 11111·11 tentar escapar ao domínio cios seres que pertur-
A recordação da mortalha. 1 ,11,01 1rocam entre si conselhos e receitas: "Diz uma das
Eis a hora da noite 11 •- 1..,1, que quem vai deitar-se sem levantar a cadeira
em q1Ie as sepulturas escancaradas tt 1111111 se descalçou está em perigo de nessa noite ser
Deixam esmpar cada uma seu espectro, 1111 p11l11 Q uanquemaire (...]".~9 Perrette Tost-Vestue diz
Parn que vagueie pelos caminhos da igreja. 8' 1111-,1 q11c :ts Cauquemar es mais temem é "uma panela
Em compensação, a aurora marca o momento em q111 ,
1 11 111·11dn do fogo".9° Ao que uma outra responde: " [...]
h 1111 q11c n Canquemare venha à noite ao seu leito, con-
terra vai novamente pertencer aos vivos:
1111 ,11 1111111 cadeira de madeira de carvalho diante de um
À sua aproximação, os espectros vagando aqui e ali voll11111 11 1 ~1• cln vier sentar -se nela, jamais poderá levantar-se

em bando para seus cemitérios; todos os espíritos dam11l11 11111 1111• dia claro [...]".'11 Uma outra assegura que ficou

145
1 ,1 A claridade da lua se apaga e se torna pálida e obscu-
"livre da Quauquemaire" depois que a "fizeram pegar VTII pa 1111" 111. l•:sta, outrora, com seu clarão enganador, cegou todo o
colhidas na noite de são João e destas fazer IV pequenas crui,1•- lt lmnho de ovelhas; de modo que elas se afastaram de seu
9
e colocá-las nos quatro cantos do leito". l . • " •
111111tor e de seu pasto e, seguindo a luz da lua e a voz do leão
Em compensação, uma das narradoras que 1am_a1s sof 11111
abusos" por parte dos "duendes" não sabe ~orno livrar-se 1h1
'I"'' 11:; chamava, perderam-se no meio dos bosques e dos
1 t _,wms.98
Cauquemare. E ouviu dizer que "quem mmto [or?enha] su11
vacas na sexta-feira por entre duas pernas por tras, a Q111111
quemaire logo o atormenta".')) Vem em resposta uma rcn•h11
111µ11 11ndora, a lua tem portanto relações com o inferno; no
llt 11•di t11 também Ronsard quando assegura que Denise, a
infalível: "Não há erro", diz uma das fiandeiras, "quem qlll'I
1 lt 11 dn Vendômois, "comanda a lua prateada".9''
ficar livre da Quauquemaire, adormece com os braços cm c1·111
e quem teme o duende, veste a camisa de trás para f~entc".''
1 l>1 1111rnci ra mais geral, a cultura dirigente, entre os séculos
\\ li, no insistir, com predileção mórbida, na feitiçaria, no
O medo da noite na civilização de outrora esta aco111p11
nhado, como já assinalamos, de uma desconfiança gcr:1! 11111 111-11111 e na danação, incrementou o lado inquietante e
relação à "fria" lua, "soberana das ondas" - essa cxpn:ss(ío ,h Ih II dn noite (e da lua). Era graças à sombra que se desen~
Shakespeare não se pretende elogiosa. Quando ela es~á "p:~1111 lt1 1 1ll'l'Uditava-se, a maior parte dos sabás, sendo solidários
de cólera", "enche o ar de umidade, de modo que prohfcr;111111 111 11 1•~curidão. E o inferno, na época mil vezes pintado e
1 1111, ,1 representado por Dante e seus sucessores como o
resfriados".'' 5 A se acreditar no poeta inglês T. Dekker (1~7
-1632), todo mundo vigia com uma curiosidade angusti:1d11 li 1111rk• o sol se cala", onde a água é negra e onde até a neve
li 1111 hr:incura.ioo Satã - é uma banalidade - é o sobera-
aspectos do astro errante.
Sabe-se que ela pode produzir a loucura. E, qu~ndoy:111 11
1
tl ~11111hrn, onde sua feroz imaginação inventa os piores
"chorar", é que anuncia alguma desgraça. Em conJunç:10 t'HIII h1~ pnrn enlouquecer <:; martirizar os danados. Bosch,
outros planetas, traz a peste. Diz-se que encerra um ho 1111 Ili l~11tlt1•~c no autor de A divina comédia, foi inesgotável
carregando um feixe de sarça nas costas e calçado de s:1p11111 t ~~,• 1uma. Mas também para um humanista como G.

com grandes cravos - personagem que ocupa um lug:11 1h 11111duiro da tradição greco-romana das viagens aos in-
destaque nos contos de mulheres velhas;96 Entretan~o, 111111111 1 dn discurso cristão sobre o império satânico, este não

civilizações encaravam a lua como um s1mbolo amb1g_uo \' 11111 1 ~1111~c> o domínio de uma noite sem remédio. Há aí um
poder ambiva1ente. Ela cresce e decres:e. Morre, depois n·vht t 1111111111 geralmente aceito pela mentalidade da época.
Significa os7 ciclos da vegetação. Insp1rou ou acomp:rnh1111 111 1 voc:11 o mundo infernal, G. Budé fala ora do "sombrio
1
fantasias relativas ao princípio "vida-morte-renasci1rn.:111 o' 111' •h undo "no fundo do abismo que mergulha no mais
Mas, na Europa do começo da Idade Moder?a, os :'.sp1•t lt 11,li 1 ~oh a terra", ora de uma "caverna escura e terrível",
negativos da Lua é que são sublinhados_, na med,_da precis:1111111 111 IHRo para forçados horrível e escura que é o Styx,
te em que ela é a cúmplice dos malefícios da nmte. Revcl:id111 1h homens". Ou ainda descreve "o poço que jamais
esse respeito o célebre poema de H. Sachs consagrado_a l .1111 h 11
11,111 onde será eternamente "prisioneira uma multidão
0
"rouxinol" de Wittemberg. Graças ao canto desse passar111111 , ,h1 pobres, de velhos, de jovens, de crianças [sic], de
anuncia afinal a manhã, 1o1il11~ l' de sábios, de iletrados e de eruditos". E para ele,

147
assim como para todos os seus contemporâneos, Lúcifer é o Assim criava-se um espaço quente a cuja porta a noite se
"príncipe das trevas terríveis", um "malfeitor na escuridão" t' dulinha e onde um rito de sociabilidade amistosa e tranqui-
- expressão retomada de Homero - a "Erínia que habita :h liiadora vencia, por algumas horas, as ameaças da sombra.
trevas. 101 Nos campos, era de uso um pouco em toda parte organi-
Assim, pelo jogo de uma dupla insistência, por um lado 1111 111r tais serões, que se reproduziram até o limiar de nossa
astrologia e por outro no poder de Satã - aspecto que scnl 11poca.ioi As cerimônias de Natal e as fogueiras de são João,
desenvolvido mais adiante - , a civilização europeia, no rn ,,~ "noitadas" dos camponeses bretões, as algazarras que
meço da Idade Moderna, parece ter cedido, com a ajuda d11 1111,rcavam as noites de bodas, os tumultos, as reuniões de
imprensa, a um medo aumentado da sombra. 11orcgrinos v indos d e muito longe e que, chegado o fim da
J11r11nda, esperavam a aurora na - ou nas proximidades da
ig reja que era o objetivo de sua viagem: todas essas ma-
Existia no entanto certa vida noturna, tanto no ca111p11 111 lc.:stações coletivas constituíam uns tantos exorcismos dos
como na cidade. N o inverno, enganava-se o tédio e e ncurt :1v11 11 t•rores da noite. Além disso, a Renascença viu aumentar,
-se o tempo de escuridão, reunindo-se para serões que podi:1111 1111 ~·nmada social mais elevada, o número das festas que se
durar até a meia-noite. E o que na Borgonha se chamava dt il1•~1.1nrolavam após o fim do dia. Montaigne, de passagem
frmignes. Tabouret D es Accords escreve no século XV I: p111 Roma em 1581, assiste a uma justa noturna apresentada
1111111 campo aristocrático.io~ T. Dekker evoca, alguns anos
Em toda a região da Borgonha, mesmo em boas cid:ul1••1 111111s tarde, as danças, " fantasias e mascaradas" organizadas
porque elas são po voadas de muitos pobres vinhateiros q111 1111 l .ondres, para as grandes ocasiões, nas casas dos ricos à
não têm meios de comprar lenha para se defender da ofc1"''
1111ht·, h luz de tochas.1º1
do inverno, muito mais rude nesse clima do que no resto d11
França, a necessidade, mãe das artes, e nsinou essa inve11~·1\11
111• lodo modo, a noite é suspeita, pactua com os debochados,
de faze r em algu ma rua afastada um casebre ou consl 111
l•1l11k~ e os assassinos. Assim, punia-se de maneira mais rigo-
ção composta de várias varas fincadas na terra em círr11l11
,1q1wles que haviam atacado alguém após o fim do dia ou em
e curvadas em cima e no copo; de tal sorte que rep n.'w 11
t hlUIII' nfostado, pois então a vítima podia defender-se menos
tam a copa de um chapéu, o qual é depois recoberto m 111
111 11111is dificilmente obter socorro.106Ainda em nossos dias, o
bastante terra t esterco, tão bem ligados e misturado~ qm
a água não pode penetrá-los. Nesse casebre, entre du:1~ 1'11 1111111•11111 considera a escuridão "circunstância agravante" de
1111111'. O elo entre trevas e criminalidade é aliás permanente
ras do lado que é mais defendido dos ventos, de ixa-se 111111
pequena abertura da largura de um pé e da altura cll' dol 11111111 1'01110 tal. Em uma sondagem do IfOP [lnstitut Français
para servir de entrada, e em toda a volta há assento, 11 1 t11111l1111 Publique] de 1977, a falta de iluminação é citada como
tos de pano mesmo, para ali se sentarem várias pessoa~. 1 t ,h lll~cgurnnça por 43% do público nas cidades francesas de
reúnem-se habitualmente, depois da refeição, as mais 111111 ,11 1()() mil habitantes e por 49% na aglomeração parisiense.
filhas desses vinhateiros com suas rocas e outros trah:1 11111 li 1 11111N, cm Missouri, experimento u, um ano depois de haver
e ali fazem serão até a meia- noitc.'ºi 14.11111111 importante programa de iluminação, diminuição de
1l11~ 11111hos de automóveis e ele 13% dos assaltos.10;

149
O poeta inglês da Renascença T. Dekker, que sabe do qu11 11h1r fora dos circuitos balizados pela luz. O alemão N emeitz,
fala, faz da noite londrina, no tempo de Elizabeth e de Carlos 1, 11uhlicando em 1718 "instruções fiéis para os viajantes de condi-
uma descrição sem complacência. Todos os criminosos, cov:11 '411", escreverá a esse respeito:
des demais para mostrarem-se ao sol, "saem de suas concha~"
Os lojistas, que m ataram o tempo durante o dia, com ar i1111·11 Não aconselho ninguém a ir pela cidade na noite escura. Pois,
tável e moroso em sua lojinha, entram furtivamente num:1 111 ombora a vigilância ou a guarda a cavalo patrulhe por toda a
berna de onde saem cambaleantes - alguns desabam 111111111 llidade para ali impedir as desordens, há muitas coisas que ela
valeta. Os aprendizes, apesar dos compromissos de seu co111 1·11 111io vê(...]. O Sena, que atravessa a cidade, deve arrastar quan-
to, arriscam-se por sua vez a uma escapada em direção ao c:1h11 l idades de corpos mortos, que devolve para a margem em seu
ré. Jovens casados desertam do leito conjugal. Gritalhõcs ~,
,•urso inferior. Portanto é melhor não se deter por muito tem-
juntam em torno do guarda que detém um bêbado. Prosti1 111 11~
po em parte alguma e voltar cedo para casa.'"
aparecem nas ruas, que percorrem até a meia-noite. Se as t rcvn•
são suficientemente espessas, o severo puritano, que ao lua r 111111
No entanto, na época da Regência, a vida noturna era infi-
ousaria aproximar-se de um bordel, atreve-se a ir à casa de 11 11111
lt 11111cnte mais animada que duzentos anos antes. Interpretando
cortesã. Pelas ruas escuras, as parteiras vão presidir ao 11:1~1'1
mento de bastardos, que em seguida farão desaparecer <k~lf Jll l~os regulamentos que determinavam aos donos de cabaré
, h11r o estabelecimento após o toque de recolller soado em
mundo. A noite é mais perigosa quando os a labardeiros em vi
gia estão adormecidos numa encruzilhada, roncando ruido~11 llll l'•Dame, o Châtelet em 1596 decidiu que duraria das sete
mente. Além disso, "sente-se" de longe sua presença, pois <'O li 1IN d:1 noite de 1° de outubro até a Páscoa e das oito horas da
meram cebolas para proteger-se do frio. Assim o .Mal poil1 •• 1111 :ité 1° de outubro.m As portas das cidades eram fechadas,
prosseguir, sem ser perturbado, sua dança noturna na gr:111d1 11lvidnde artesanal cessava, as pessoas de bem não tinham mais
cidade, ao passo que os galantes, na soleira das tabernas, ·w111 1h1 11 fazer fora após o toque de recolher. Seu lugar era em rnsa
bam dos soldados adormecidos da guarda.io8 T. D ekker crntt11 11•do, na cama. Assim pensaram outrora todos aqueles que
em Londres um bom milhar de cabarés.109 Alguns são ma111idm 1m11n pelo rebanho cristão. O padre Maunoir, que evangeli-
por bruxas cafetinas de duplo ou triplo queixo. Elas bebc111 li 1 11 13retanha de 1640 a 1683, ouvindo falar das "noitadas"
cores e aguardente e usam no dedo médio, como as prostil 111 11- t,1,,, associou-as aos sabás de feiticeiros e combateu-as feroz-
que fornecem como caça, um anel com caveira. Em suas c:1'111~, 11111, Do mesmo modo, as écrnignes pareceram suspeitas às
abertas dia e noite: oferecem aos visitantes as famosas anll'hll 1111s de Igreja. E ram ocasiões de rixas - as cartas de remissão
cozidas, símbolo ha literatura elisabetana do infame comfrd11 11111111111 com efeito algazarras à saída dos serões114 - e pretexto
do submundo."º A escuridão permite naturalmente a at ivid1uh ,~ "Indecências". Daí as interdições eclesiásticas. Lê-se em um
dos arrombadores, que atacam de preferência as lojas dos 1111 11 111l11111ento sinodal de Saint-Brieuc, no ano de 1493:
<ledores de tecidos e de ourives, negociantes abastados. 11111,1
maior segurança, acontece-lhes comprar a cumplicidadt• ,h1 hl lllll um sínodo precedente, para cortar esses abusos inep-
vigia ou do guarda-noturno.'" 111~ e escandalosos que se produziam muito frequentemente
Mesmo na Paris do século XVIII, cujas principais artéri:1~Nl1ti IIIIN reuniões de fiaduras, havíamos proibido essas reuniões
então iluminadas por um as 5500 lanternas, não será 60111 1 li 1111 nossa cidade e na diocese inteira, sob as penas editadas

150 151
bnirros, o honesto espião que descobre as práticas noturnas e,
nos estatutos desse sínodo. Sabemos que essa proibição foi 1111como o fanai na popa do navio, servindo de guia e de recon-
violada várias vezes. É por isso que renovamos especialmen- f1lt'to aos marinheiros nas mais negras trevas, percorre a cidade,
te esses estatutos, e proibimos novamente todos os nossos • qual poupa frequentemente muitos incêndios perigosos".119
súditos e de qualquer condição de manter doravante essa~ i 11dos têm portanto interesse em escutar e em praticar seus
reuniões e fiações com danças, loucuras e extravagânci:1s, 4hios conselhos: pois a noite é perigosa para o corpo e para a
de a elas assistir ou a elas comparecer sob pena de excomu t lmn, é a antecâmara da morte e do inferno. O sino do vigia é
nhão [...].115 • o toque a finados:

Evidentemente, as écraig;nes continuaram. Quanto aos "se• Nornens e crianças, meninas e mulheres,
rões de santos", no decorrer dos quais as pessoas se encontrav,1111 Não é tarde demais para emendar vossa vida:
em uma igreja ou em um cemitério, eram muitas vezes cm~sa_d1• Fechai à chave vossas portas, no cnlor permanecei deitados,
"divertimentos", "jogos", "danças", violações e outras vmlcn /~grande perda a de urna virgindade.
cias. A ponto de em Notre-Dame de Paris, para o serão de 15 d1• 1) meia-noite festejar é muito esbanjm;
agosto, 0 capítulo fazer entrar na igreja soldados _encarre?ados As desordens dos criados fazem a ruína dos patrões:
de punir os fomentadores de desordens.116 R. Vault~er reurnu v:i Quando ouvirdes este sino soar
rias cartas de remissão relativas a excessos cometidos por oca Cnde que é vosso último dobre [...]. 120
sião dos serões religiosos, por exemplo estas:
'1\11 é a lúgubre ladainha do "despertador" londrino, por
[1383] A noite da festa de Nossa Senhora em setembro 1.. ,1 fll, d11 qual é preciso reconstituir a angústia milenar diante de
[em] que há grandes serões e reunião de pessoas na grand1• 11111 noite mal dominada. Lembramos anteriormente a profecia
igreja [da Charitésur-Loire] [...] [rapazes] ~ue velavam 1111 11\pocalipse: o novo céu e a nova terra prometida não com-
festa, armados, subjugaram um companheiro que enco11 li 11111~0 mais mar. Do mesmo modo, não conhecerão mais a
7
traram na igreja sobre uma mulher desonestamente.'' 1111•, A Jerusalém eterna será iluminada pela luz sem declínio
[1385] [Um certo Perrin foi] por grande devoção a N os 1 11 Deus (Apocalipse xxr,5; xxr,23; I João I,5).
sa Senhora de Barres, no bailio de Orléans, por tentação do
inimigo, e esse Perrin e alguns outros rapazes se puser:1111 11
dançar na dit.a igreja, com vários homens e mulheres [...!, 1•
para isso f:tz.er, os ditos companheiros apagaram as cancli.:i11~
e jogaram-nas atrás do altar e quebraram as lâmpadas", d1•
pois amordaçaram uma mulher."8

O Inimigo aproveita portanto da noite para induzir ao llllll


o ser humano fragilizado pelo desaparecimento da luz. D :1í 11
necessária presença nas cidades de outrora do guarda-not11rn11
que faz a ronda com sua lanterna, s~u sino e _s~u cão. Ek ,,,
segundo T. Dekker, "a sentinela da cidade, o v1g1a de todos 111
153
3. TIPOLOGIA DOS
COMPORTAMENTOS 1111 ,, novamente a Inglaterra, depois devasta a França de 1370
11 76, para passar mais uma vez para além da Mancha. A Itália
COLETIVOS EM TE.NIPO DE PESTE 1811 1•st:iva mais bem aquinhoada. Um cronista de Orvieto ano-
Ili 11A primeira peste geral ocorreu em 1348 e foi a mais for-
' I>opois acrescentou: "Segunda peste, 1363. Terceira peste,
H 1. (juarta peste, 1383. Quinta peste, 1389". Uma outra mão
1111plctou: "Sexta peste, 1410". "Outras mãos", comenta E.
1. PRESENÇA DA PESTE' •1 111111tier, "teriam podido continuar a lista para o século xv."•
Sobre a tela de fundo constituída pelos medos coti~ianos jd I• ,,ludo o caso de Châlons-sur-Marne. As datas de epidemias
identificados (sem se pretender deles ter leva~1tado um 111ve1;t:I 1 hl111lc parecem obedecer a um r itmo e salienta-se um ataque
rio completo) destacavam-se, a ~ntervalos_ma1s ou menos proxl 1 d1k 11d:1: 1455-7; 1466-7; 1479; 1483; 1494-7; 1503; 1516-7;
mos, episódios de pânico colen:o, especialmente./uand~ u.1~1 \l 1 1, 1 l)aí esta análise de J.-N. Biraben:
1
epidemia se abatia sobre uma cidade ou uma reg1,10. Ma1s Íl l
quentemente, na Europa, tratou-se da peste, sobretudo dur:1111\' '11· ~t• ncompanha a história da peste em uma cidade nessa
os quatro séculos que correm de 1348 a ,1~20. ~~tretanto, 1111 p1 wn 1...], constata-se que ela era responsável, a cada oito, dez
decurso desse longo período, outros co;1ta_g1os_ d1z1maram :·"11 1111 quinze anos, por violentos surtos em que toda a cidade e ra
bém as populações ocidentais: a sudamma mgle~a nas dl~1,_ 11l11Hldn, perdendo até 20, 30 e mesmo 40% de sua popula-
·~ · Alema, ha nos séculos XV e XVI, o nfo nos cxr1 \ 111, (1'ora desses paroxismos, persistia em estado semiendê-
Bntamcas e 113 , 1 •
citos da Guerra dos Trinta Anos, e ainda a varíola, a gnp1• 1111t 111 vagando caprichosamente de uma rua ou de um bairro
pulmonar e a disenteria: todas as três ativas no século XVII 1. ' ( 1 11 11111 ro, sazonalmente, durante um, dois e até cinco ou seis
cólera, em compensação, só apareceu nessa parte do,~undo l 'III 111111~ ~cguidos, depois extinguia-se durante alguns anos. Rea-
1831. U ma leitura atenta dos textos da alta IdadeMedrn pen11I l' 111111111 então sob essa forma "atenuada" que precedia muitas
tiu recentemente concluir que a peste fora virulenta na Eurnp11 1•~ 11 forma "explosiva" antes de segui-la.6
e em torno da bacia mediterrânica entre os séc_ul~s _v1 e \lllli
com uma espécie de periodicidade dos surtos ep1?em1sos c11)11 1ti 11111•11izado, implacavelmente recorrente, a peste, e m
1
3
picos se davam a cada nove a doze anos. J?ep01s ela pa'.·~l•: 11 1 1h ~ou:; reaparecimentos repetidos, não podia deixar de
7
desaparecer nQ século 1x, mas para ressurgir bru~al~ent~ l Ili lltl~ pupul:ições "um estado de nervosismo e de medo". Na
1346 nas 1113.,rgens do mar de Azov. Em 1347, atmgm Co11~ 11 11111 rc 1347 e 1536, J.-N. Biraben identificou 24 surtos

tantinopla e Gênova e logo toda a Europa, de Portugal e d" 111 ,1~, ~til'undários ou anexos de peste em 189 anos, ou seja,
Irlanda a i.Vloscou. As devastações da "morte negra" _estendi 111 11111110s a cada oito anos. Em um segundo período, que
ram-se pelos anos 1348-51, eliminando, assegura Fro1ssan , "
1
111h d 11 l 'i36 a 1670, não se contam senão doze surtos (um
terça parte do mundo". , 11 , 1 11 11os).~Após o que, a doença parece desaparecer,
Durante todo O resto do século XIV e ao menos ate o co1111 ,11q<li' violentamente na Provença em 1720. Desse
li 1 1111111/jtl, mas também mais geralmente no Ocidente,
ço do X VI a peste reapareceu quase a -cada· ano emBum lug:11· 1111
outro , da ' Europa ocidental. Em 13,9, e1-la na e'lg1c,1
. ~· li 1 , 1111dtilnico da peste diminui a partir do século XVl,
Alsácia; em 1360-1, na Inglaterra e na França. Em 13(,(), ti 111h1 1d11tln m:iis as explosões mais violentas: em Londres

155
dico, mas Galeano, Hipócrates e até Esculápio teriam con-
em 1603, 1625 e 1665; em Milão e Veneza em 1576 e 1630; 1111
Espanha em 1596-1602, 1648-52, 1677-85; em Marselha c111 forido um certificado de robusta saúde, tomaram a refeição
1720. Essas datas e essas localizações não constituem, supõc-st•, cln manhã com seus parentes, seus camaradas e seus amigos
senão alguns pontos de referência na diacronia e na geogral'in t·, chegada a noite, sentaram-se no outro mundo à ceia de
das pestes do período barroco, pois as epidemias de 1576-85 1• ~uus ancestrais."
1628-31 estenderam-se na realidade a uma grande parte d11
Europa.9 Por mais violentas que tenham sido essas explos<iCN A avaliação de Boccaccio é exagerada. É mesmo exato,
- em particular a última na França, a de Marselha - estava111 1110 certos historiadores afirmaram, que Florença teria con-
cada vez mais separadas umas das outras por anos em q111• 1111 110 mil habitantes em 1338 e 50 mil apenas em 1351? K.J.
nenhum óbito suspeito era assinalado. O mal se tornava e ntílo 11111h estima que a cidade do Arno reunia 55 mil almas em
mais esporádico e localizado, e depois de 1721 desapareceu do 17 e 40 mil quatro anos mais tarde, ou seja, assim mesmo
Ocidente. Mas anteriormente, durante quase quatrocemoN Phl punção próxima de 30%. E, ao passo que a população
anos, a peste fora, segundo a expressão de B. Bennassar, " u111 11111cçava a crescer na segunda metade do século xrv, a "pes-
grande personagem da história de ontem".10 lJ1111ln" e liminou novamente 11 500 pessoas em 1400 e talvez
Grande, porque sinistro. Julguemos por seus crimes, q111• 111II cm 1417. Quanto a Siena, teria sido povoada por 20 mil
causaram estupefação aos contemporâneos: "Houve, dur:rnto 1111111 um 1347, 15 mil em 1349, 12 500 em 1380. 13 Segundo os
esses dois anos [1348-9]", escreve o carmelita parisiense Jean de• 1111 lndores britânicos, a Inglaterra teria sido amputada de
Venette, "um número de vítimas tal que jamais se ouvira dizei, 0 , ilc seus habitantes entre 1348 e 1377 (tendo 3 757 000 n a
nem se vira nem se lera nos tempos passados".11 E Boccaccin l11111li111 data e 2 223 375 na segunda)." A peste negra e aquelas
precisa na introdução de O decmnerão a respeito de FlorenÇfl: 11 ,,cguiram foram aqui, senão as únicas, ao menos as prin-
1"1" l'éSponsáveis pelo desastre.
A crueldade do céu, e talvez a dos hom ens, foi tão rigoros111 I• IH 11gora alguns trágicos recordes: Albi e Castres perde-
a epidemia grassou de março a julho [1348] com tanta vio Ili ,t 111urnde de sua população entre 1343 e 1357, e em 1350 o
lência, uma multidão de doentes foi tão mal socorrida, 011 111,IKlo teria eliminado - cálculos discutíveis, é verdade -
até, em razão do medo que inspirava às pessoas sadd.1vc i•,1 , iloN habitantes de Magdeburgo, 50 a 66% dos de Hamburgo,
abandonada em tal privação, que se tem alguma segura ru do~ de Bremen.'5 A peste negra devastou sobretudo as
zão de estiin~r em mais de 100 mil o número de homc1111 l••h~, mas nem por isso os campos foram poupados - em
que perdeu a vida no recinto da cidade. Antes do sin ist rn, •N1:lvry, na Borgonha, viu desaparecer 1/3 de sua popula-
não se imaginara talvez que nossa cidade contasse tal qua11 1 N11 S11voia, os lares da paróquia de Saint-Pierre- du-Soucy
tidade deles. Quantos grandes palácios, quantas belas c.1s11N,
1111111 ele l08 em 1347 a 55 em 1349; os de sete paróquias
quantas moradas, outrora repletos de criados, de senhOl'c•-
lnh,,~, ele 303 em 1347 a 142 em 1349.16 Etn certos domínios
e de damas, viram afinal desaparecer até seu mais hu111il
11l1,1tl ln de W inchester, onde se contavam 24 óbitos de carn-
de servidor! Quantas ilustres famílias, quantos impom·11
1 , • 1~m 1346 e 54 em 1347 e em 1348, sobe-se brutalmente
tes domínios, quantas fortunas reputadas ficaram privad11•
Il i tl m 1349".n Quer-se uma estimativa global, na escala
de herdeiros legítimos! Quantos valorosos senhores, hl·lit-
damas e graciosos rapazinhos, aos quais não só o corpo 111( l 1111 1p11 ocidental e central, das devastações provocadas pelo
157
flagelo em 1348-50? Podemos ater-nos à que forneccr·n \ ,. * *
Renouard: "[...] A proporção dos óbitos devidos à peste em , ,,111
ção ao conjunto da população parece ter oscilado entre 2/ I 1 11 final do século XIX, ignoraram-se as causas da peste
1/8 segundo as regiões". 18 Portanto, Froissart tinha sem di',vl,1, • 1 lt\ncia de outrora atribuía à poluição do ar, ela própria
rnão de pensar que 1/3 dos europeus sucumbira ao cont:111l11 111111111 seja por funestas conjunções astrais, seja por emana-
tendo este sido, no entanto, particularmente severo na Ir:-íl i:1, 11 11111 l'idns vindas do solo ou do subsolo. Daí as precauções,
França e na Inglaterra. i.\11~ olhos inúteis, quando se aspergia com vinagre cartas

A Europa, tomada cm bloco, não iria conhecer mais 1111d1 rl11111 quando se acendiam fogueiras purificadoras nas en-
epidemia tão trágica quanto a de 1348-50. Contudo, os r c tol lh,1ilns de uma cidade contaminada, quando se desinfetavam
nos ofensivos do contágio ganharam ainda, na escala urlrnirn hl1111r., roupas velhas e casas por meio de perfumes violen-
regio~al, ou até nacional, ares de catástrofe. Paris teria pcnl11h, ,h 1111xofre, quando se saía para a rua em período de con-
40 mil almas em 1450. 19 Londres, que contava cerca de 460 11111 1 111111 uma máscara em forma de cabeça de pássaro cujo
habitantes em 1665, viu perecerem da peste 68 500 deles 11;1q11t 11,1 preenchido com substâncias odoríferas. Por outro lado,
le ano.1ºMarselha, no começo do século XVIII, reunia um po111 t1 011lt 11s antigas e a iconografia quase não mencionam como
menos de 100 mil almas; a epidemia de 1720 eliminou cerc:1 111 1 11111t·1irsor de uma epidemia a mortalidade maciça dos
50 mil delas (incluído o território das redondezas).11 A mc~11111 111111ual A. Camus insiste em A peste. O papel da pulga era
proporção, mas agindo em massas humanas mais densas, 1°111 1111111111c ignorado. Em compensação, todos os relatos de
Niípoles em 1656. E ssa cidade, desmesuradamente povo:11111 111 ,t clescrevem o perigo do contá io inter-humano. Esse

agrupava então de 400 a 450 mil habitantes. A peste ceifou 2·1U 1~11 1 hoje o sabemos, é evidente no caso da peste pu manar,

talvez mesmo 270 mil.11 Consideremos agora em sua globalidu , l 111nsmite pelas gatinhas de saliva. Mas a pesquisa médi-
de a Itália e a Espanha do século XVII. A alta Itália (de Vc11l't il 1111tl 111terroga-se sobre o "dogma do rato" no que concerne
ao Piemonte e a Gênova inclusive) teria conhecido uma h:li, 1 li hubônica. Sem dúvida, a história dessa doença desde as

demográfica de 22% entre 1600 e 1650, ocasionada princip11I 11, permanece ligada à do rato. Mas, em inúmeras epide-
mente pela peste de 1630, tendo a epidemia destruído 3)% cl 1 tl11 peste bubônica, parece que o fator multiplicador, o
população de Veneza, 51% da de .Milão, 63% da de Cremon:1 1 111 lp1tl ngente de transmissão teria sido, não o parasita murí-
Verona, 77% - ~ombrio recorde - da de .Mântua. No tot:1I, 11 1 llhlN n pulga que ataca o homem, a qual passa de um hospe-

Itália, durante ~ primeira metade do século xvu, perdeu 1-1'\, 111 ,tl(Onizante para um hospedeiro são. A mortalidade não
de seus habitantes (l 730000 almas).n As perdas teriam sidtt l I llnplicado então necessariamente um antecedente epizoó-
comparáveis na Espanha, que era menos povoada. As "t 11•, , Dní as devastações do contágio nos bairros populares
grandes ofensivas da morte" (por peste) - 1596-1602 16•1H 11 11 pnrnsitismo era mais denso. A partir daí, se as purgações
-52, 1677-85 - teriam eliminado 1250000 vidas. Ba:celo1111, tlll(l'ias, se o temor da transmissão do mal pelas dejeções
em 1652, perdeu cerca de 20 mil habitantes em 44 rnil. H S1, ,humtcs, se o abate de animais em que não se encontram
vilha, em 1649-50, enterrou 60 mil mortos em 110 ou 120 111 0 1~ 111 knvalo, boi etc.) de nada adiantavam, em compensação
ha_bitante~.2; A peste foi portanto uma das causas principais d 11 11111 rncnte queimar os tecidos, especialmente os de lã nas
cnse sofrida pelas duas penínsulas no decorrer do século X\'11 ti 1•1111tt11n inadas. É bem verdade que era preciso, se pos~ível,

IS9
fugir ou, na impossibilidade disso, isolar e isolar-se. Tanto 111111 111111urin tornou-se tão extrema que já não se encontravam
que a peste bubônica dava lugar frequentemente a uma compll l\'111•s 1 mesmo com dinheiro [...). Desse modo, os pobres
cação pneumônica secundária. O bom senso popular t i11 h11 1111 111111 pão carcomido [...], tremoços, rábanos e ervas de
portanto razão a esse respeito contra os "eruditos" que se n•1li 11111 1•~pécie. Os rábanos eram vendidos a 16 sous o stllre e
savam a crer no contágio. E foram afinal as medidas cad:1 VI li ~11111 nssim não eram encontrados. Desse modo, viam-
mais eficazes de isolamento que fizeram regredir o flagelo. 11Hpobres, quando estrangeiros traziam rábanos em suas
A essa profilaxia parcialmente correta, correspondin 11111 1111,•111,1ncorrer empurrando-se para comprá-los; pareciam
observação exata dos sintomas da doença, em particular sol> 1it111 111 1111 ~:sfo.imadas partindo para o pasto [...). Seguiram-se
forma bubônica: descrição dos "carbúnculos", localizaçfo tl11 1 11\IIN nt rozes, incuráveis, desconhecidas dos médicos,
bubões, destaque dado, no quadro clínico, à língua intu11H' t 111111•giões e de qualquer homem vivo, que continuaram
cida, à sede ardente, à febre intensa, aos calafrios, à irreg uliu 1 Ili 111111• seis, oito, dez e doze meses. D e maneira que uma
dade do pulso, ao delírio muitas vezes violento, às perturh:t~•l'\1 1ll11ltl11dc de pessoas morreu em 1629.28
do sistema nervoso, às cefaleias, ao olhar fixo. Um m édirn il
Marselha observou em consequência da epidemia de 1720:
I\I \( :1,:NS DE PESADELO
[A] doença começava com dores de cabeça e vômitos 11 ~ •
guia-se uma forte febre[...]. Os sintomas eram, comu1111•1tt1 •~ 111\ornções, por excessivas que sejam, constituem uma
calafrios regulares, um pulso fraco, frouxo, lento, fn.:q111 li ll htl'I n ser incorporada ao dossiê "daqueles que acoplam
te, desigual, concentrado, um peso na cabeça tão corn.l1h 1h 1111l,,qi1,tência e ciclos pestilentos". 29 Mas elas se im:e-
rável que o doente tinha muita dificuldade para suste11111 1 l 11111 11,111 cm uma representação mental das epidemias
parecendo tornado de um atordoamento e de uma l)l' l 1111 1111 lnlmcnte no caso da Itália do século xvu, ocorriam
bação semelhantes aos de uma pessoa embriagada, o 11lh 1 1111• cloi:i outros flagelos tradicionais: a fome e a guerra.
fixo, marcando o pavor e o desespero [...).21 1 ,, 111 1lo uma "prag],_'.'....ç_Q!!lpa_x ável às UJê a.tingiram_o
1111 lllUSlllO..temp..ojden_t.ifica_cfo.S:Qil19 _mna 11_qveul.de.vo-
As pessoas de outrora igualmente observaram que :1 p, 1 11111 ciht:gn do estrangeiro e que se desloca de país em
atacava sobretudo no verão (nem sempre, contudo) ~ :1 111111 li 111•ln pura o interior e de uma extremidade à outra de
prefere com efeito uma temperatura de 15-20º em uma :tl 11111~h 1uh , •it1111c:ando a morte à sua passagem. É ainda descri-
ra com 90 a 95o/o de umidade-, que prejudicava mais es1w1 l•I ' 11111 tl1111cavaleiros do Apocalipse, como um novo "dilú-
mente os pobres, as mulheres e as crianças e que dizim:1v11 f 1111 1111111111 11 inimigo formidável" - é a opinião de D. Defoe
predileção populações vítimas de penúrias recentes. Lc 11~1/h 111 1 111do como um incêndio frequentemente anunciado
lll peste, de César Morin (Paris, 1610), inclui um capítulo i111 h11 111 111 1•11s10 de fogo de um cometa. Na Provença e na
lado "Como a peste acompanha comumente as grandes 1111111 ili 111111•orn, pessoas viram "a centelha da peste" atraves-
E se podem ler sob a pena de um obscuro cônego lornu:1rd1 11 q1 11th1dl' e, saindo dos cadáveres, precipitar-se sobre as
foi testemunha da peste de 1630 em sua pequena cid111h 11 111 111111lo com boa saúde.10 O sentimento de ser con-
Busto-Arsizio, estes esclarecimentos relativos ao ano de IMII l 1 ,, 11111 incêndio era talvez reforçado pela frequente
1111 11 V\ll'ii o e epidemia e pelo hábito de acender nas

160 !61
encruzilhadas fogos purificadores, espécies de coutre-feux.* Soh1t li 1111111 p111·n os homens de Igreja e para os artistas que
tudo, comparava-se a contaminação a um grande incênd io11 \ 1111 f' l'llÇUS iis suas encomendas, a peste era também e
intensidade da epidemia", Boccaccio observa em O dcm111111,1 111 1111111 d rnva ele flechas abatendo-se de súbito sobre os
"aumentou pelo fato de os doentes, por suas relações co1 ldh1 I" 111 vontaae de um Deus encolerizado. Certamente, a
nas, contaminarem os indivíduos ainda sãos. Assim é t'OIII , ,111111,•ior :10 cnstiamsmo. O canto J da Ilíada evoca o
fogo, alimentado pelas matérias secas ou gordurosas que llw ft,l1 111" \p11lo que desce, "com o coração irritado, cios cimos
contíguas".Jt D. Defoe escreve por seu lado: "A peste é í.'111111 11111, 11111<!0 :10 ombro seu arco e sua aljava bem fechada.
um grande incêndio que [...], se irrompe numa cidade ,1111111 1111- 11•~No11m ao ombro do deus encolerizado", que dizima
densa, aumenta sua fúria e a devasta em toda a sua extc11sn11 111111 11111 "mal pernicioso".HMas foi a cultura eclesiás-
A imagem do abrasamento reaparece também sob a pc1111 1h 11111111011 e popularizou essa comparação.J,1 no final do
um médico marselhês que viveu a epidemia de 1720 e f":1 l11 ti 111 , h11 \111es de Voragine mencionara na Legenda ti1w ct1;8
1

"espantosa presteza com que a doença passou repentin:111111111 11,h• iftto Domm1gue percebendo no céuo'"Crig o h_ª_çj-9
de casa em casa e de rua em rua, como por uma espfrll• ,1, 111ll11 1l'ês lanças contra a humanidade cul ada de or-
incêndio [...]. E la atingia essa grande cidade com a rapid1•1 il• hpfilt•i, e uxúria. Clero e fiéis, vendo a peste negra e
um abrasamento".11 11111 11 scguií:ãm ao IÕi1go cios séculos como punições
A comparação entre peste e fogo, ei-la ainda nos rcl:ll ON ti, 1~•l 111llnram naturalmente os ataques cio mal aos golpes
um cônego italiano e de um pastor valdense, relatando a11ilu1, 1 1h IltlOh llS lançadas do alto. Assim, o registro da muni-
terrível peste de 1630, verdadeira "tempestade de afliçik~", t 1 1,h .!1•( )rvieto, na data de 5 de julho ele 1348, constatava
padre de Busto-Arsizio, de quem já citamos o tcstc111111tl11, 111,1 111ort:1 liclade em virtude da peste que nesse momen-
escreve com ênfase, jogando com o nome de sua cidade (11r,1/ 1 1t ,li I u1.111cnte suas flechas por toda parte".30 A iconogra-
chamuscado, queimado): h11111 se dessa comparação e difundiu-a nos séculos XV
111111,1 1111 lt:ília como para além dos Alpes. As flechas da
Ai! cara e desgraçada pátria! Por que não choras, ú 1111 ti 1 ,11m11uccm pela primeira vez sobre um painel do altar
to? [...]. Queimado e consumido, quase reduzido a ti~•c)t1, 1 11111 111 11s descalços (1424) de Gõttingen.4° Cristo as lança
cinzas, tornou-se Busto desolado e desabitado [.~.]. /\HIii 111,1 ,lt111sn sobre os homens. Dezessete personagens são
já não se pode dar-lhe nome mais verídico do que 1311, 1111 1 ulu~ por elas. No entanto, vários outros são protegidos
queimado;. pois que está totalmente incendiado.H Jlll~l111ro t 1111h• IIH\nto ela Virgem - este último tema será retoma-
valdense)hé dá a réplica quando menciona Pignerol, rn11h 11111 v1•1.t•s. Um afresco de B. Gozzoli em San Gimign:ano
peste está] ainda muito inflamada.JS 11111~1 111 Deus pai, a despeito ele Jesus e Maria ajoelhados,
1 111 ., 1lcc:ha envenenada sobre a cidade que fora atingida
Um religioso português do século XVJI, evocando p111 11111111i nnção no ano anterior. Um díptico de Martin
sua vez a peste, descreve-a como um "fogo violento e i11q1 lt11, (po1· volta de 1510-4) conservado em Nu~embert'
tuoso".10 111 1h111t rn essa representação coletiva da peste. A esquer-
d111 de um céu tempestuoso os anjos atiram flechas
• Queimada que se efetua para circunscrever um incêndio. (N. 1•:.J 1!111111111 idade pecadora, mas que se arrepende e implora.

162 163
A direita, Cristo, à prece dos santos antipestilentos, clcté111 ,1 11111puNito ela epidemia de 1348, o carmelita parisiense Jean
punição com a mão. As flechas desviadas de sua trajetória i11I 111• ohscrvava: "[As pessoas] só ficavam doentes dois ou
cial afastam-se da cidade ameaçada e vão perder-se alhures. 1'111 I•• 1· 111orriam rapidamente, o corpo quase são. Aquele
vezes, o aspecto castigo não é diretamente expresso, mas :1p1 I• , -rnv:1 com boa saúde, amanhã estava morto e enter-
nas o resultado do decreto de punição. Em um quadro alc1rn1t, ll111 médico espanhol, descrevendo a peste de Málaga
anônimo, contemporâneo do precedente, personagens são ~11hl li, h1•,,in :1 mesma observação: "M.u itos morriam repen-
tamente atingidos por flechas, todas vindas de cima. S:10 :11 111 lllt, outros em algumas horas, e aqueles que se acredi-
gidos na virilha e nas axilas (localizações freqüentes dos h11 11h 11s caíam mortos quando menos se pensava"." Sobre
hões), mas também em outras partes do corpo. Uma 1111111111 111111 de Londres, em 1665, escreve também D. Defoe em
transpassada cambaleia, um me nino e um adulto já estão c~11•11 , /11,/1111110 da peste: "O furor ela epidemia era tal, as pes-
<lidos, um morto, o outro agonizante. Um homem na for~·n il 1 111111 doentes tão rapidamente e morriam tão depressa,
idade não escapar:í ao dardo que se aproxima deleY • l111possível informar-se a tempo e mandar fechar as
As flechas lançadas por Deus evocam ainda a pcstl' 11 11111 11 exntidão que teria sido necessária":5 Descrevendo
esteia funerária de um cônego em Moosburgo (igrej:i de ~111, h,1 l11l111inante da doença, um médico m arselhês que
Kastulus, 1515), cm uma pintura da catedral de Münstcr, 1111 • • 1111111minação de 1720 observava por sua vez: "Algumas
uma tela de Veronesc conservada no museu de Rouen. U111 1, 111111•1·it1m subitamente, outras em dois ou três dias".46
-voto da igreja de Landau-an-der-Isar as mostra chovc111h1 11 ,·q11t1ntcs menções de pessoas falecendo na rua enquan-
sobre cada casa da cidade. Uma variante desse tema faz p:1~~.11 11111 •~11v11111 na direção de um lazareto.
a flecha ela mão de D eus para a da Morte. Esqueleto cheio ili ,~ 11hserv:1ções, geradoras de uma inquietação muito
esga res e por vezes galopando sobre cadáveres, ela :11-rcnw~ 1 t 111111vel, aderem à realidade. Se a peste é pneumônica
suas armas sobre os vivos de todas as condições ocupado~ 1•111 •• 111, l11kin-se brutalmente, progride no organismo sem
trabalhar ou em divertir-se. Assim, por exemplo, na biblio11•1 1 11111 defesa séria e a "morte sobrevém dois ou três dias
comuna l dos l11tro11nti em Siena (1437), em Saint-Eticnnc d1 ,h1 1•11mcço das perturbações, e m 100% dos casos".47
-Tinéc (1485), no palácio Abatello de Palermo (é um Tri1111/11 d 1111 ,1 lornrn bubônica clássica, manifesta-se de imediato
morte do século xv), em uma gravura de J. Sadeler (gahi 111111 111o1 1t, hrc de 39-40º, com um quadro clínico impressi o-
das Estampas, Bruxelas) e em uma gravura anônima inglc~n ,h pulso rápido, conjuntivas dilatadas, olhar brilhante,
1630 q ue mosn;a os londrinos fugindo de três esqueleto~ 11111 t 1 , l1111·n seca. Os bubões só se desenvolvem em segu ida,
os ameaçam Cf>111 suas flechas. 111 ,h •IH horas. Mas podem não aparecer: trata-se então
O que os artistas queriam também acentuar, além do 11 I• ~11pl lcúmica. Nesse caso, ou o bubão não teve tempo
pecto da punição divina, era a instantaneidade do ~1taq111· 1lt 111o11 'll', ou então os gânglios atingidos estão situados
mal e o fato de que, rico ou pobre, jovem ou velho, ning111 111 11111l1111damente para serem percebidos com facilidade.
podia va ngloriar-se de a ele escapar - dois aspectos das cp11li 1l111111clo essa forma da doença que causou estupefação
mias que impressionaram vivamente todos aqueles que viv1·1,1111 111111111porâneos das "pestilências" de outrora. Pois se
em período de peste. A insistência na rapidez reg istr:Ht' 1111 11l1 hl ele maneira fulminante, com temperatura de 40 -
todos os relatos de "pestilência". 1111111h•~rn-sc especialmente através de perturbações n er-

/64 I 65
vosas e psíquicas, hemorragias espontâneas da pele, das nrn('tl p1 upl'>sito da epidemia de 1599 na Espan ha setentrional,
sas e das vísceras e provoca a morte em 24 ou trinta hor:1N,' 11111111snr recolheu os seguintes testemunhos - Valladolid,
Um cirurgião marselhês anotou em 1720: "Não escapou lll 1 11111ho: "Morreram em pouco tempo algumas pessoas da
nhum doente de todos aqueles nos quais não apareceu nc11h11 111 lmlodc e o maior número é de pobres"; Sepúlveda, 26
ma erupção".49 •li1 ll "Todas as pessoas que morreram nessa cidade e em
A iconografia não deixou de ressaltar ou mesmo de exag-e1111 lt 11 ,1 -iilo muito pobres e não tinham (...] com que sustcn-
1 1 li
o caráter súbito da morte por peste,50 que os holandeses do sét-11
lo XVII chamavam de "a doença apressada". Esse tema apa n•1 t I' 1111 D. Defoe, a peste de Londres em 1665 operou devas-
de início em miniaturas consagradas à procissão organiz,Hl:11•111 , ~tilH'otuclo entre os numerosos desempregados da capital:
Roma pelo papa Gregório I por ocasião da peste de 590. As '/), 1 1111 111111 crise mais furiosa, de meados de agosto a meados
11 riches heures du duc de Berry (Chantilly), as de Pol de Limhoi1q1 111111hl'O, ela levou 30 a 40 mil desses infelizes que, se tives-
(Nova York, Cloisters), e as do mestre de Saint--Jérôme (Bodlch111 1\'I\ Ido, teriam certamente constituído um fardo insuportá-
11111 •HIil pobreza"_;,
1

L ibrary, Oxford) representam pessoas que desabam de rcpc111t


no decorrer da cerimônia. Em um desenho de G. Lochn.:r, 1
l 111 Mnrselha, em 1720, os escabinos falam "do povo miúdo
11,t 11qucle que quase sempre era atingido pela peste". E o
peste em Berna em 1439 (Berna, Biblioteca Nacional), duas IH''
IC1111 ~ precisa: "Essa praga foi funesta para esses pobres ino-
soas que acompanhavam um enterro são aniquiladas de súhh11
1 -• pnrn as mulheres grávidas que eram mais suscetíveis que
Em duas gravuras holandesas, uma anônima, a outra de \IV, d
11111 ,1Npessoas e para o povo".n
Haen, veem-se carregadores de caixão que desmoronam, c:1i111h1
11111 ros testemunhos no entanto vão em sentido contrário.
com eles o ataúde (J\lluseu Van Stolk, Roterdã). Insistem :1i11d,
11111 ,,mos o texto de Boccaccio citado anteriormente:
na morte súbita A grtmde peste, atribuída a J. Lieferinxe ( 1!111
t imore, vValters Art Gallery), A peste atingindo os soldados 1·1J11l11
l)111111tos grandes palácios, quantas belas casas, quantas
nos (1593), gravura de J. Sanredam (Museu da Universidad1· 1h 11111111dus, outrora r epletos de criados, de senhores e de da-
Medicina de Copenhague), a ampla tela de A. Spadaro, 1J.~1i1 111,111, virnm afinal desaparecer até o mais humilde servidor!
decimentos depois dn peste de 1656 (Nápoles, Museu S. Martino), , 1)111111Lns ilustres famílias, quantos imponentes domínios,
obra de N. Mignard, A peste de Epiro (Paris, Instituto~Pas(c111 l 111111 11111s fortunas reputadas ficaram privados de herdeiros
Esta apresenta um cirurgião que acaba de fazer uma incisfo t'lll
h11h1111os!14
um bubão e que desaba deixando cair sua lanceta.
l l1•~rrcvendo, com base nas melhores fontes, a peste que
11~11111 Milão em 1630, Manzoni, em Os noivos, nota que a
Os quadros de Nuremberg e de l\1uniquc anteriormrnl1 ,li 11tln 1 deinício confinada nos bairros pobres, ganhou em
descritos, porque evocavam flechas mortais vindas do 1'1'11 11hh1 o resto da cidade: "A teimosia dos incrédulos cedeu
faziam- nas voar em direção de uma cidade inteira, atac:111d1, 11111 ~ evidência, sobretudo quando se viu a epidemia, até
indiferentemente todo mundo. No entanto, alguns docrnm:11111 tA111 11111ccntrada no povo, expandir-se e atingir pouco a pou-
dão a entender que a peste era seletiva e que dizimava sohn·111 1" 1~1111ngens mais conhecidos".55
do os pobres. 1 111 Marselh a, o contágio espalhou-se igualmente por toda

166 167
a cidade, partindo, é verdade, dos bairros mais populosos. O dr. •111111lculos alucinantes nas ruas somam-se parn criar o insu s-
Roux, mesmo reconhecendo que os pobres foram as principais 1 1111\vcl. Havia em primeiro lugar o martírio dos doentes da
vítimas, assim concluiu: "Ela [a peste] ataca indiferentemente Ili .i1•, "Calor insuportável, sufocamento sentido pelos doentes,
toda espécie de pessoas, homens, mulheres, jovens, velhos, fra- r.1i11• furiosa, dor intolerável nas virilhas e nas axilas": é o qua-
cos, robustos e abastados, sem distinção".56 hu 1•1fnico montado em 1650 por um médico de Málaga.6° Os
Em suma, se não se fugira a tempo, rico ou pobre, jovem 11111 !(iões acreditavam fazer bem tentando abrir ou cauterizar
ou velho, estava-se ao alcance da flecha do horrível arqueiro. 111111ores recalcitrantes. "Alguns eram tão duros", relata D.
Imaginada pelos meios eclesiásticos leitores do Apocalipse ~• l>1 l11c, "que não se podiam abri-los com nenhum instrumento;
sensíveis ao aspecto punitivo das epidemias, a comparação 111,111, c:mterizavam-nos de tal maneira que muitos pacientes
entre o ataque da peste e o das flechas que se abatem de im 1111111rnm enlouquecidos por essa tortura."" Passemos do si 11-
proviso sobre vítimas teve por resultado a promoção de sfo 111.11 110 coletivo. Eis Marselha em 1720, tal como a vê um
Sebastião na piedade popular. Atuou aqui uma das leis qut' 111111111porâneo: os "vapores malignos" saem das casas onde
domina o universo do magismo, a lei de contraste que muil:I~ 1111d11°cem cadáveres e elevam-se das ruas cheias de colchões,
vezes não é senão um caso particular da lei de similaridade: o 1111111s, de panos, trapos e toda espécie de imundícies que
semelhante afasta o semelhante para suscitar o contnírio.'
1h111111. As sepulturas repletas de cadáveres mostram "corpos
Porque são Sebastião morrera crivado de flechas, as pessoar,
11111,11111osos, uns inchados e negros como carvão, outros
convenceram-se de que ele afastava de seus protegidos as dn
1111l111l•nte inchados, azuis, violetas e amarelos, todos fedoren-
peste. Desde o século VII, ele foi invocado contra as epidemia\
1 «'~IOuraclos, deixando o rasto do sangue podre" [...].61Uma
Mas foi depois de 1348 que seu culto ganhou grande impulso.'
11 1•1·11 então, mesmo para os sobreviventes, um trauma psí-
E no universo católico, desde então até o século xvm inclusiw,
Uh II prnfundo, reconstituído para nós pelo texto transtornado
quase não houve igreja rural ou urbana sem uma represenrac;fo
11111 l'Cligioso testemunha da peste de 1630 em Milão. Ele
de são Sebastião crivado de flechas.
Um padre português, descrevendo em detalhe uma igr~•111
do Porto em 1666, não deixa de mencionar a figuração de ~:111
Sebastião: ~ 1 1 n confusão dos mortos, dos moribundos, do mal e dos
H' llos, os uivos, o pavor, a dor, as angústias, os medos, a
A imagem d'o santo mártir tem também uma chave ~li\ 111wldnde, os roubos, os gestos de desespero, as lágrimas,
pensa a umà flecha que lhe traspassa o coração; essa ch:I\ 1 '" 11111.:los, a pobreza, a miséria, a fome, a sede, a solidão, as
lhe foi remetida pelo senado municipal durante a peste q11t 111 h,Ocs, as ameaças, os castigos, os lazaretos, os unguentos,
grassou há setenta anos - Deus nos proteja de seu rc11 11 ~ 11pcr:1ções, os bubões, os carbúnculos, as suspeitas, os
no - à fim de que o santo livre esta cidade de tão grand• 1h htlccimentos [...].63
mal, como o fez desde então até o presente. D esse 111od11,
ninguém ousa retirar-lhe essa chave.;•, l1111tl(lll1S de pesadelo, torrente desordenada de termos cuja
11111l11~•l1o, no entanto, recria a trágica coerência do vivido.
As crônicas de outrora que descrevem pestes consti1111•111
como que um museu do horrível. Sofrimentos individu:11\ 1

l lí9
3. UMA RUPTURA INUMANA 1 111•ijtc propr iamente dita"; "é um mal comum"; trata-se de
h11•~ lorçãs e duplas, difteria, febres persistentes, pontadas,
Quando aparece o perigo do contágio, de início p~ocur:1-Si' hll 111~, gota e outras semelhantes[...] Alguns tiveram bubões,
não vê-lo. As crônicas relativas às pestes ressaltam a frequ enH' •• I ,1!que] saram facilmente".66
negligência das autoridades em tomar as medidas que a iminên l)1111ndo uma ameaça de contágio se delimitava no hori-
eia do perigo impunha, sendo verd ade contudo que, uma VCI 1111 tl1• uma cidade, as coisas, no estágio do poder de decisão,
desencadeado o mecanismo de defesa, os meios de protc:<;1111 11 ,1111-sc geralmente da seguinte m aneira: as autoridades
foram aperfeiçoando-se no decorrer dos séculos. Na Itália, c lll 11,li1v,1111 examinar por m édicos os casos suspeitos. lvluitas
1348, quando a epidemia se espalha a partir dos po~to~ . • ONSCS médicos faziam um diagnóstico tranquilizador,
Gênova, Veneza e P isa-, Floren ça é a única cidade do 1ntcn rn 1 1 lp11mlo-se assim ao desejo do corp o municipal; m as, quan-
11
que tenta proteger-se contra o atacante que se aproxim.~. •· A~ lhlN l'Onclusões eram pessimistas, ou tros médicos ou cinir-
mesmas inércias se repetem em Châlons-sur-Marne em Jllllhll 111,1111 nomeados para u m contrainquérito, que não dei-
de 1467, onde, apesar do conselho do governador de Ch:1111 ,lt dissipar as p rimeiras inquietações. Tal é o roteiro que
pagne, as pessoas se recusam a susp ender es~olas e sermões,' 11111h w rificar em Milão em 1630 e em Marselh a em 1720.67
em Burgos e em Valladolid em 1599, em Milão em 1630, l'lll 1111111~ e tribunais de saúde procuravam então cegar a si m es-
Nápoles em 1656, em Marselha em 1720, sendo que essa c~HI (hlt 11 11ílo perceber a onda ascen dente do perigo, e a massa
me ração não é exaustiva. Por certo, encontram-se em tal :ll 1111 111 •~1111s se comportava como eles, como muito bem obser-
de justificativas razoáveis: pretendia-se não assustar a pop1il11 l ,111w ni a propósito d a epidemia de 1630 n a Lombardía:
ção - daí as múltiplas interdições d e manifestações de luto 1111
começo das epidemias - e sobretudo não interromper as rc:h1 li1111is notícias que chegavam das r egiões infectadas,
ções econômicas com o exterior. Pois a quarentena para 111111 h~-1111 l'i;giões que formam cm to rno de [Milão] uma li-
cidade significava dificuldades de abastecimento, ruína dos 111 11h,1 ~11111icircular, distante em alguns pontos apenas vinte
gócios, desemprego, desordens prováv~is ~as ruas ~te_- Enq1_11111 11tllh11N, cm a lguns o utros só dez, quem não acreditaria em
to a epidemia só causava um número l11111tado de ob1tos, :11 111h1 111111111H11<)ç:io geral, em precauções diligentes, ou ao m enos
se podia esperar que regredisse por si mesma antes de ~d<::v:,~I 111 111 1111111 estéril inquietude! E, no entanto, se as memór ias
toda a cidade. Porém, ma is profundas que essas razões co11 li•• 1~ , p111•n concordam num ponto, é cm atestar q ue n ão foi
sacias o u confessáveis, existiam certamente motivações IIH'IIII 1111 A penúria cio ano precedente, as extorsões da solda-
conscientes: q 'medo legítimo da peste levava a retardar 1wh· , ,11 os pesares de espírito pareceram m ais do que sufi-
maior tempo' possível o momento em que seria encarada tlr 1111111 p11ra explicar essa mortalidade. Nas ruas, nas lojas,
frente. Médicos e autoridades procuravam então engan:11' 11 1 , ,1~1rn, ncolhia-se com um r iso de incredulidade, com
mesmos. Tranquilizando as populações, tranquilizavam-st· p111 111111111 lns, com um desdém mesclado de cólera aquele que
sua vez. Em maio e junho de 1599, no momento em que ;\ IH'~I 1111 11\111 uma palavra sobre o perigo, que falava de peste. A
g rassou u m pouco por toda parte no norte da Espanh:1 11111 Incredulidade, digamos melhor, a mesma cegueira,
quando se trata dos outros não se teme empre~ar o 1r 11111 1111 ~11111 obstinação prevaleciam no Senado, no Consdho
exato - , os médicos de Burgos e ele Valladohd fizeram d l11 1h111111ltks, junto de todos os corpos da magistratura.º"
nósticos lenificantes dos casos observados em sua cidade: "N 1

170
171
As mesmas atitudes coletivas reapareceram em Paris p t11 p1ullom que fugissem "logo, para longe e por longo tem-
() dt1cm11,e1
·ão é feito de alegres relatos de jovens que esca-
1
ocasião do cólera de 1832. Na terceira quinta-feira da quarc,~ '

ma, Lc Moniteur anunciou a triste notícia da epidemia qu11 11111 do inferno florentino em 1348. "Parece-me bem indi-
começava. Mas de início as pessoas se recusaram a acredi1 111 111 p111•11 nós", aconselha Pampineia no começo da Primeim
nesse jornal demasiadamente oficial. H. Heine conta: 11,1,/111 "seguir o exemplo que muitos nos deram e nos dão
111111 1 INto é, deixar estes lugares."11 Os ricos, é claro, eram os
Como era a terceira quinta- feira da quaresma, como fnln 11111111os :1 fugir, criando assim a apreensão coletiva. Era então
um belo sol e um tempo encantador, os parisienses agi1li 1111 1tl11do das filas junto aos órgãos que liberavam os salvo-
vam-se com mais jovialidade nos bulevares, onde se vir11111 1111h110Ne os certificados de saúde, e também a obstrução das
até máscaras que, parodiando a cor doentia e a figura dcN • 11plcws de coches e <le carroças. Acompanhemos o relato
feita, zombavam do temor do cólera e da própria doen~•n 11 1>ufoc:
N a noite cio mesmo dia, os bailes públicos foram mais l'n'
quentados do que nunca: os risos mais presunçosos q 1111~1 1 1( )s mais ricos, os nobres e a gentry do oeste [de Lon-
encobriam a música brilhante; as pessoas se excitavam 111111 111 ••~, cm 1665] apressavam-se em deixar a cidade com suas
to com o chalmt, dança mais que equívoca; devorava-se todu 11111rlins e seus criados [...]. Em [minha] rua [...], não se viam
espécie ele sorvetes e de bebidas frias quando, ele súbito, li , 11110 ca rros e carroças carregados de bagagens, de mulhe-
mais alegre dos arlequins sentiu demasiado frescor nas 1w1 1, ~. dl• crianças, de criados".))
nas, tirou a máscara e revelou para espanto de todo m111uh1
um rosto ele um azul violeta. 69 11 •'Xll111pl.o dado pelos ricos era imediatamente seguido
111d 11 uma parte da população. Como em Marselha em
E m Lille, no mesmo ano, a população recusou-se a acn•dl li "I ..1Logo que se viu mudarem-se certas pessoas de con-
tar na aproximação cio cólera. Considerou-a num prinwl111 111 1111111 infinidade de burgueses e outros habitantes imita-
momento como uma invenção ela polícia.7° 1111~: houve então um grande movimento na cidade, onde
Constata-se então, no tempo e no espaço, uma e~écic 111 1 1 ln mais do que transporte de móveis". A mesma crôni-
unanimidade na recusa de palavras vistas como tabus. Evi1111•11 11• 1 1~11 ninda: "As portas da cidade são insuficientes para
-se pronunciá-las. Ou, se eram ditas no começo de uma cphh 1 1w1H11 r n multidão dos que saem (...]. Tudo deserta, tudo
mia, era e m uma locução negativa e tranquilizadora como "11íl11 1tli11111, tudo foge".7•
é a peste propriamente dita". Nomear o mal teria sido :1t nlf h, 1111•~111:1 cena se renovou em Paris na época da epidemia de
e demolir a última muralha que o mantinha a distância. ( :1111 ti ili• 1832. Evocando a "fuga burguesa" que se produziu
tudo, chegava um momento em que não se podia mais cvh,11 , 1 C)h<;valier anota: "Nos dias 5, 6 e 7 de abril, 618 cavalos
chamar o contágio por seu horrível nome. Então o p1nh, 1,, ~,lo r<;servados e o número dos passaportes aumenta de
tomava de assalto a cidade. 11111111Npo r dia; Louis Blanc estima em setecentos por dia o
A solução sensata era fugir. Sabia-se que a medici1111 11 ltt 1h11, pessoas conduzidas pelas empresas de transporte"_;;
impotente e que "um par ele botas" constituía o mais sq~111 1, 1l11os nfio eram os únicos a sair de uma cidade ameaçada
cios remédios. Desde o século XIV, a Sorbonne aconselh:11·11111 1111 ,111ti11nção. Pobres também fugiam: o que é atestado em

172 173
Santander em 1597, em Lisboa em 1598, em Segóvia no ano ,·cspeito, entre mil outros documentos semelhantes, uma
ti ll~lll'
seguinte (as pessoas refugiam-se nos bosques)/ 6 em Londres no 111 111 escrita de Toulouse, em junho de 1692, pelo magistrado
decorrer das epidemias do século )..'VII etc. Um médico de Mála- M,11111-'lorrilhon, que teme uma epidemia:
ga escrevia por ocasião da peste de 1650: "O contágio tornou-se
tão furioso que [... ] os homens puseram-se a fugir como ani- 1111 aqui grandes doenças e pelo menos dez a doze mortos
mais selvagens nos campos; mas, nas aldeias, os fugitivos eram pm dia em cada paróquia, todos cobertos de púrpura. Te-
recebidos com tiros de mosquete".77 Estampas inglesas da época 111os duas cidades em torno de Toulouse, Muret e Gimond,
representam "multidões fugindo de Londres" por água e po r 1111dc os habitantes com saúde desertaram e se mantêm no
terra. D. Defoe assegura que, em 1665, 200 mil pessoas (e111 1·1111wo: faz-se a guarda a Gimond como em tempo de peste;
menos de 500 mil) deixaram a capital,78 e consagra uma parte de 1111fi m, é uma miséria geral. Os pobres trarão para cá al-
HIIIIHI desgraça se aqui não pusermos ordem prontamente;
seu relato à odisseia de três refugiados - artesãos - que encon-
tram no campo um bando de errantes. Como os três vagabun- 1mha lha-se em tirá-los da cidade e em nela não deixar en-
dos pretendiam atravessar urna floresta em direção de Rurnford 11'111' nenhum mendigo estrangeiro [...].
e de Brentwood, objetam-lhes que "grande número de refugia-
dos de Londres havia ido para aquele lado, vagando na flores1:1
11,111 uma carta posterior (sem dúvida de julho), Marin-
de Henalt, que confina com Rumford, sem meios de subsistên-
l1111 ilhem expressa seu alívio: "Começamos a respirar um ar
1111 lh111• desde a ordem que se deu para o encerramento dos
cia e sem habitações, vivendo ao acaso e sofrendo ao extremo
111,l1111s",H11
por campos e vales, sem recursos".79 Assim, em teoria, tinha-se
l'ni• precaução, também, matam-se em massa os animais:
razão de fugir da peste. Mas essa mudança improvisada e cssl'
11111, 11s, cíles e gatos. Em Riom, em 1631, um edito ordena aba-
afluxo às portas de uma cidade que logo iriam fechar-se ganha
t t u,1los e pombos "para deter a propagação do mal". Uma
vam ares de êxodo: muitos partiam para a aventura sem sahl!t'
~1111 loiitc de J. Ridder (Museu Van Stolk, Roterdã) apresenta
aonde chegariam. Cenas que anunciam aquelas que, por 11111 1 ~1111" que fuzilam a queima-roupa animais domésticos. A
outro motivo, a França conheceu em junho de 1940. 1111h1 que a encima recomenda matar "todos os cães e todos
Agora eis aqui a cidade sitiada pela doença, posta enJ q11:1 IMIIIN 110 recinto comum e, fora deste, a uma hora de marcha
rentena, se necessário cercada pela tropa, confrontada com 11 11111111111'."' Teriam sido abatidos em Londres, em 1665, 40 mil
angústia cotidiana e obrigada a um estilo de existência em rup 1 • 1 11111 número cinco vezes maior de gatos."'
tura com aquele~; ·que se habituara. Os quadros familiares s~n l I ulos as crô nicas da peste insistem também na interrupção
abolidos. A insegurança não nasce apenas da presença da docn l 1 111111tí rcio e do artesanato, no fechamento das lojas, até das
ça, mas também de uma desestruturação dos elementos qu1• 111,1•, ltn suspensão de qualquer divertimento, no vazio das
construíam o meio cotidiano. Tudo é outro. Antes de ma i~ 1,~ • ' dns praças, no silêncio dos campanários. O religioso
nada, a cidade está anormalmente deserta e silenciosa. Muit:11, 11111t110s já citado, que exalta a coragem de seus confrades
casas estão doravante desabitadas. Mas, além disso, apressaram 11111~ 110 decorrer das epidemias anteriores, é um bom teste-
-se em expulsar os mendigos - associais inquietantes, não silo 11111111 do que a peste representava para seus contemporâneos
eles semeadores de peste? E são sujos e espalham odorl'~ 1~ ~ llm•11sas perturbações que provocava nos comportamen-
poluentes. Enfim, são bocas a mais para alimentar. Reveladorn, 1 111!1 llnnos:

174 175
A peste é, sem nenhuma dúvida, entre todas as calamida- qlll' ni'io se voltará a ver. Os homens, perdendo sua coragem
des desta vida, a mais cruel e verdadeiramente a mais atrm .. 1111111 mi e não sabendo mais que conselho seguir, vão corno
É com grande razão que é chamada por antonomásia de o 1tlf(0S desesperados que tropeçam a cada passo em seu medo
lvl.nl. Pois n ão há sobre a terra nenhum m al que seja compa• ,. 11111 suas contradições. As mulheres, com seus choros e
rável e semelhante à peste. Desde que se acende num reino _,111N lnmentações, aumentam a confusão e a aflição, pedin-
ou numa república esse fogo violento e impetuoso, veem-se 1lu 11m remédio contra um mal que não conhece nenhum.
os magistrados atordoados, as populações apavoradas, o go ,\ ~ crianças vertem lágrimas inocentes, pois sentem a des-
vemo político desarticulado. A justiça não é m ais obedeci HI111,:11 sem compreendê-la.81
da; os ofícios param; as famílias perdem sua coerência e :IN
ruas, sua animação. Tudo fica r eduzido a uma extrem a co n- C 111•111dos do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns
fusão. Tudo é ruína. Pois tudo é atingido e r evirado pelo ,- 11111 ros no próprio interior da cidade maldita, temendo
peso e pela grandeza de uma calamidade tão horrível. ;\ ~ 1111 ,1111inar-se mutuamente. Evita-se abrir as janelas da casa e
pessoas, sem distinção de estado ou de fortuna, afogam-Sl' 1111 ~ rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em
numa tristeza mortal. Sofrendo, umas da doença, as out ras 11 1om as reservas que se pôde acumular. Se assim mesmo é
do medo, são confrontadas a cada passo ou com a m orte, li 1 1~11 ~nir para comprar o indispensável, impõem-se precau-
ou com o perigo. Aqueles que ontem enterr avam, hoje s~o 1 ~ F1•cgueses e vendedores de artigos de primeira necessida-

enterrados e, por vezes, por cima dos mor tos q ue na véspcr11 11~•• çumprimentam a distância e colocam entre si o espaço
haviam posto na terra. 11111 h1rgo balcão. Em Milão, em 1630, algu ns só se aventu-
Os homens temem até o ar que respiram. Têm medo 111 1111 run armados de uma pistola graças à qual manterão a
dos defuntos, dos vivos e de si mesmos, pois que a mor11• l l,l1111l11 qualquer pessoa suscetível de ser contagiosa.84 Os
muitas vezes envolve-se nas roupas com que se cobre m l' 11111•t l'OS forçados acrescentam-se ao encerramento voluntá-
que à maioria servem de mortalha, em razão da rapidez do 1 11i1111 reforçar o vazio e o silêncio da cidade. Pois muitos são
desfecho f...). l11q111•11dos em sua casa declarada suspeita e doravante vigiada
As ruas, as praças, as igrejas cobertas de cadáveres~apn: 1 11111 f(ll:lrda, ou até trancada com pregos ou cadeado. Assim,
sentam aos olhos um espetáculo pungente, cuja visão to rnn 1l1h11lc sitiada pela peste, a presença dos o utros já não é um
os vivos invejosos da sorte daqueles que já estão mortos. Os 1111l111•to. A agitação fam iliar da rua, os ruídos cotidianos que
locais habitados parecem transformados em desertos e, prn t111,1w lll os trabalhos e os dias, o encontro do vizinho n a so-
si só, essa soTidão inusitada aumenta o medo e o desespero, l! 1 1h1 porta: tudo isso desapareceu. D. D efoe constata com
Recusa-se qualquer piedade aos amigos, já que toda pied:1d1• 11111111 essa "fa !ta de comunicação entre os homens""' que
é perigosa. Estando todos na mesma situação, mal se tel11 111 1,,rl1.n o tempo da peste. Em M arselha, em 1720, um con-
compaixão uns dos outros. 1111111,l nco assim evoca a cidade morta:
Estando sufocadas ou esquecidas, em meio aos horron·N
de tão grande confusão, todas as leis do amor e da naturc1/.il 1 1 1 Silêncio dos sinos [...], calma lúgubre [...], ao passo que
as crianças são subitamente separadas dos pais, as mu I lw 11111rc1rn ouvia-se de muito longe um certo murmúrio ou um
res dos maridos, os irmãos ou os amigos uns dos oul l'CIN 1111110 1' confuso que atingia agradavelmente os sentidos e ale-
- ausência desoladora de pessoas que são deixadas viv:1s 1• 111,IVII 1...1, já não se eleva mais fumaça das chaminés sobre os
telhados das casas do que se não houvesse ninguém; [...] tudo li li ~ que se :1proximam dos pestífe ros aspergem-se com vi-
está geralmente fechado e interditado. _,,, 1wrfomam suas roupas, em caso de necessidade usam
1 11 ,INi perto deles, evitam engolir a saliva ou respirar pela
Em 1832, sempre em Marselha, a epidemia de cóle ra pro ti 1 )N pnelres dão a absolvição de longe e distribuem a comu-
<luzirá os mesmos efeitos. Como p rova, este testemunho: "1\ ~ 1 11 prn meio de uma espátula de prata fixada a uma vara que
janelas, as portas permaneciam fechadas, as casas não d:w:1111 1 11h111pnss:1 r um metro. D esse mo do, as relações hu m:inas
sinal de vida senão para lançar fora os corpos que o cólc111 1111 ,ll111cnte conturbadas: é no momento em que a necessida-
matara; pouco a pouco todos os lugares públicos foram fecho lm11111 ros se foz mais imperiosa - e em que, ele h ábito, e les
dos; nos cafés, nos círculos, uma morna solidão; o silêncio d11 111 ,111 lll,l'flVam dos cuidados - que se abandonam os doentes.
sepultura estava por toda parte"Y· 1 1111111 de peste é o da solidão forçada.
Silêncio opressivo, e também universo de desconfi:111~·11 l 1 ~1• cm um relato contemporâneo da peste ele .Marselha
L eiamos a esse respeito a crônica italiana da peste de l(d (l I 101
recopiada po r Manzoni:
li I tlmmte] é fechado em um sótão ou no aposento mais
[...] Enquanto as pilhas de cadáveres, amontoados semp11 1,, 11111l0 da casa, sem móveis, sem comodidades, coberto de
sob os o lhos, sempre sob os passos dos vivos, faziam d:1 d 1 lh11~ trapos e daquilo que se tem de mais gasto, sem ou tro
dade inteira uma vasta sepultura, h avia algo de mais fu111·~ 11l1\ lo pura seus males que n ão uma bilha de água que seco-
to, de mais h ediondo ainda: e ra a descon fiança r ecíproca, u 11111111, no fug ir, junto de seu leito e da qual é p reciso que ele
monstruosidade das suspeitas [...]. Não se suspeitav,1 apc1111• 111 l111 No~inho apesar de seu langor e de su:1 fraqueza, muitas
do vizinho, do a migo, do hóspede: esses doces nomes, e,~, 1 11 ~ ohrig:ido a ir buscar seu mingau à porta do quarto e
ternos laços d e esposo, de pai, de filho, de irmão eram oh 111 1,1- 1nr-se depois para voltar à cama. Por mais que sequei-
jetos de terror; e, coisa indig n a e horrível de dizer, a 1111• , 1 1 111111111, nfo há ning uém que o escute [...].88

doméstica, o leito nupcial eram temidos como armaclillrn


como locais onde se escondia o vene no.87 1 1111111111cntc, a doença tem ritos que unem o pac iente ao
111 11 111; e a morte, ainda mais, obedece a uma lit urgia em
O próximo, é perigoso sobretudo se a flecha da p este j11 11 •11t•1•dcm toalete fúnebre, velório em torno cio defunto
ating iu: então; ou é encerrado em sua casa, ou então enviado 11 1~ 11111111 ntaúcle e enterro. As lágrimas, as palavras em voz'
pressas para algum lazareto situado fora dos muros da cidad1 ,_ 11·rnrelações, a arrumação da câmara mortuária, as
Que diferença do tratame nto reservado em tempo comum 1111 - • 11 mrtejo fina l, a presença dos parentes e dos amigos:
doentes q ue parentes, médicos e padres cercam de seus c111tl11 11111~ 1•onstit utivos de um rito de passagem que se d eve
dos diligentes! Em período de epidemia, ao contrário, os p111 1111l111 1111 ordem e n a decência. Em período d e p este, como
ximos se afastam, os médicos n ão tocam os contagiosos, 1111 1 11 ,1, 11 fim dos homens se desenrolava, ao contrár io , em
fazem-no o menos possível ou com uma varin ha; os c irurg 1111 1 111 , 111, ustentáveis de horror, de anarquia e de abandono
só operam com luvas; os enfermeiros depositam ao a lcn ncr 111 ,_1111111•s mais profundamente enraizados no inconsciente
braço do doente alimento, medicamentos e pensaduras. ·1c,d11 1 1 1 I• 1n cm primeiro lugar a abolição da morte pi:rsonali-

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zada. No auge das epidemias, era às centenas, até aos milhares (...] Todo o espetáculo estava repleto de terror: a carreta le-
que os pestíferos sucumbiam a cada dia em Náp_oles, L?ndn.:s vava dezesseis ou dezessete cadáveres envoltos em panos ou
ou Marselha. Os hospitais e os acampamentos 1mprov1sados, cobertas, alguns tão mal recobertos que caíam nus entre os
arranjados às pressas, ficavam cheios de agonizantes. Como outros. A eles, pouco lhes importava, e a independência não
cuidar de cada um deles? Além disso, muitos não chegavam até importava a ninguém, estavam todos mortos e iam ser con-
os lazaretos e morriam a caminho. Todos os relatos de epidc fundidos juntos na forma comum da humanidade. Bem se
mia de outrora mencionam os cadáveres na rua, mesmo cm podia chamá-la assim, pois ali não se fazia diferença entre
Londres, onde as autoridades, em 1665, parecem ter dominado ricos e pobres. Não havia outra maneira de enterrar e não se
menos mal do que em outras partes os múltiplos problema~ teriam encontrado caixões em razão do número prodigioso
nascidos da contaminação. U111 diririo do ano da peste, de 1), dos que pareciam em uma calamidade como aquela."º
Defoe, esclarece: "l\llal se podia passar por uma rua sem ali Vt'I'
alguns cadáveres no chão".' 9 A partir daí, já n~o sAe :rata_ mais d1• () seteiro posto em cena por Defoe conta ainda que em sua
pombas fúnebres para os ricos ou de uma cerm_~oma, amda (llll' 11111oqnia "as carroças dos mortos foram encontradas várias
modesta, para os pobres. Nada ck toques de hnados, nada di• 111•~ pnradas às portas do cemitério cheias de cadáveres, sem
círios ao redor de um ataúde, nada de cantos e, muitas vezck, 1111 11tlnr de sineta, sem condutor, sem ninguém".9' As cidades
nada de sepultura individual. No curso habitual das coisas, d1I 111111•sccadas não conseguiam absorver seus mortos. Desse
-se um jeito de camuflar o aspecto horrível da morte graça~ 11 111111h11 durante as grandes contaminações nada mais distinguia
um cernhio e à cerimônia, que são uma espécie de maquiagc111, 111111 cios homens do dos animais. Já Tucídides, descrevendo a
O defunto conserva sua responsabilidade. Ele é a ocasiRo d1 1hh1lllin (que sem dúvida não era uma peste) de 430-427 a.C.,
uma espécie de culto. Em período de peste, ao contr,í1·10, \1~111vnrn: "[Os atenienses] morriam como rebanhos" (u,51).
considerando-se a crença nos eflúvios maléficos, o import:11111 fl11111t1smo modo, abandonados em sua agonia, os contagiados
é livrnr-se dos cadáveres depressa. Depositam-nos apressad11 q11t1lq11er cidade da Europa entre os séculos XIV e XVIII, urna
mente fora das casas, descem-se até pelas janelas com a ajud:1 d1 111ortos, eram acumulados desordenadamente, como cães
cordas. Os "corvos" agarram-nos graças a ganchos fixados 1111 1, ,trnciros, em fossas imediatamente recobertas de cal viva.
ponta de longos cabos e amontoam-nos de qu~lq_u er mfü1~·11li 1,1 t1N vivos é uma tragédia o abandono dos ritos apaziguado-
nas horríveis carroças evocadas por todas as cronicas rebt 1v11 tjlll' 0111 tempo normal acompanham a partida deste mundo.
às contaminaçõd.. Quando esses lúgubres carriolas ap,1rcn·111 11,111do fl morte é assim desmascarada, "indecente", dessacra-
em uma cidade precedidas por tocadores de sinetas, é o si n:d tlt 11,111, 11 usse ponto coletiva, anônima e repulsiva, toda a popu-
que a epidemia transpôs todas as barrei:as. Nã_o é_ preciso p11 1 11 , ltl' l'C o risco do desespero ou da loucura, sendo subita-
curar muito longe de onde Brueghel tirou a ideia da c:irrn~ 1 111, 1wlvada das liturgias seculares que até ali lhe conferiam
cheia de esqueletos que figura em seu Triunfo do 111or11•, il11 11111v11çi'lcs dignidade, segurança e identidade. Daí a alegria
Museu do Prado. Para um homem da cidade, nessa époc.1, 1•1,1
111111 ~t1lhcses quando, no final da epidemia de 1720, viram
normal vivenciar ao menos uma peste e assistir ao estupcfil'1111
1111111111 c cn 1-ros fúnebres nas ruas.91 Era o sinal seguro de que
te vaivém das carroças entre as casas e as fossas comuns. l .1•111
llll•IKIO deixava a cidade e de que se retomavam os hábitos e
mos ainda a esse respeito D. Defoe: 1ll11fl11lns tra nquilizadoras dos tempos comuns.

181
Interrupção das atividades familiares, silêncio da cid:1d1 , 11111h ln, e às vezes ouvir cantores e instrumentos musicais, e
solidão na doença, anonimato na morte, abolição dos ritos c.:olt• 111111~ vllics ler e ouvir alguma leitura agradável" [...].''6 Um
tivos de alegria e de tristeza: todas essas rupturas brutais t'O lll IhII lrn•cno do século XVH afirma com ênfase a respeito da
os usos cotidianos eram acompanhadas de uma impossibilid:uh t '1( )h I ranquilidade! Cara amiga da alma, guardas as celes-
radical de conceber projetos de futuro, pertencendo a "inicintl 111111•~ d:1 saúde".'n Um de seus colegas de Auvergne vê do
va", doravante, inteiramente à peste.91 Ora, em período norn111 I, 11111 ,nodo, no comportamento dos estóicos, um excelente
mesmo os velhos agem em função do futuro, tal como aqut•li 1,1 1ws1.c " pelo fato de que são "sem medo, sem t emor, sem
de La Fontaine, que não só contrói, mas planta. Viver sem pl'II l\1l111 t' com efeito, todos os mais doutos consideram que tão
jeto não é humano. No entanto, a epidemia obrigava a consid1• 1111111• o pavor desse mal é capaz de provocá-lo em um ar sus-
rar cada minuto como um sursis e não ter outro horiz.01111 111 l~NO vem da imaginação e do coração apavorado que está
diante de si que não o de uma morte próxima. Lamentando 11•1 - . . ,,~
f1,11 o 11ue nao resiste mais a esse veneno .
permanecido em Londres, o seteiro de Defoe esforça-se em snli ~1••~111:1 o pinião ainda sob a pena do erudito italiano Mura-
de casa o me nos possível, confessa continuamente seus pc.:c11 l, q111• publica em 1714 um tratado sobre a maneira de se
dos, abandona-se a Deus, fia-se no jejum, na humilhação e.: 1111 1 111 ,11 1•111 período de contágio:
meditação. "O tempo que me restava", escreve ele, "eu o e111p1·1•
gava e m ler e em escrever estas notas sobre o que me acontc.:eln \ 11prccnsão, o terror e a melancolia são eles também uma
a cada dia."'14 Em Marselha, em 1720, quando se torna evidc.:1111• 1111~11•, pois abatem nosso otimismo [disordinando la fanta-
que o perigo está por toda parte na cidade, um contempor.'l ,wo ,1,,i 1• d ispõem a massa dos humores a receber facilmente e
confia a seu diário esta declaração de impotência: "[Dorav:1111 1• ,h 1111u1 certa maneira a atrair de longe o veneno que reina
não há] outro partido a tomar senão implorar misericórd 111 11111 111•1, como a experiência mostrou em uma infinidade de
ao Senhor, preparando-se para a morte".''5 Desestruturando o 1 illillN,w
ambiente cotidiano e barrando os caminhos do futuro, a pc.:SI\'
abalava assim duplamente as bases do psiquismo tanto ind ivl N11 mesmo espírito, o autor de um documento estatístico
dual quanto coletivo. 11111 111porâ neo da epidemia de cólera de 1832 escreveria:

\'11 11111-se as vivas emoções da alma como podendo agravar


4. ESTOICISMO E DESREGRAMENTOS;
11111 111uitos casos o estado dos doentes e até como podendo
DESALENTO E LOUCURA
, 1111Nnr a doença; foi assim que se colocaram no número das
A medicina de outrora considerava que o abatimento mor.ti 11111~ns do cólera os excessos de trabalho, os assomos da ni-
e o medo predispõem a receber o contágio. Múltiplas obr:1•1 1111 os pesares inesperados, todas as afecções morais enfim,
eruditas publiG1das do século XTV ao XVIII convergem sobre css1• , ~olll'ctudo o medo.'ºº
ponto. Paracelso acredita que o ar corrompido não pode por ~1
só provocar a peste. Ele só produz a doença ao combinar-se c111 ( lpl11iões desse gênero explicam que no século XVII, por
nós com o fermento do pavor. A. Paré ensina que em período d1• 1~hh1de uma epidemia de peste, os magistrados de Metz: te-
"febre pestilenta" "é preciso manter-se alegre, em boa e pequc.:1111 1h 1111 rn·dcnado divertimentos públicos a fim de devolver cora-
182 183
gem e ânimo aos habitantes dizimados pelo contágio. Um qua- 11111q1~wtamento de pessoas que, em período de contágio, caem
dro de A. Mignette (Museu de Metz) lembra essas festividades.'"
1 111111 1rcnesi nos excessos e nas libertinagens. "Todos se entre-
11
• 11 11111 , escreve Tucídides, "à perseguição do prazer com uma
Mas até onde se deve levar o bom humor? A. Paré precisa os
conselhos citados mais acima propondo aos habitantes de uma 11111h1t1i11 que anteriormente escondiam."104 Boccaccio lhe faz eco
111 f) tl11cnmeriio:
cidade atingida pela peste que evitassem frequentar as mulhen.:s
e os excessos à mesa: 1P11 n1 outros], entregar-se francamente à bebida como aos
w 11ieres, dar a volta à cidade divertindo-se, e uma canção
Tanto mais que por estas [as mulheres] as forças e virtudes
IION lfüios, conceder toda satisfação possível às suas paixões,
são diminuídas e os espíritos se dissolvem e enfraquecem,
1 li• e gracejar dos mais tristes acontecimentos, tal era se-
principalmente logo após a refeição, porque se debilirn o
~ 11 ndo suas palavras o remédio mais seguro contra um mal
estômago, e por esse meio se produz uma falha de digestfo,
l1lt1 nt roz. Para melhor passar de tal princípio à prática, iam
da qual provém corrupção e outros infinitos acidentes; pelo ill11 e noite de taberna em taberna, bebendo sem constrangi-
que se pode concluir que a dama Vênus é a verdadeira pesl\' 11111nto nem medida. Mas era bem pior nas moradas particu-
se não é usada com discrição. Assim, é preciso precaver-Sl• h11'cs, por pouco que eles ali acreditassem encontrar matéria
de viver em ociosidade e de comer e beber sem discriçiio: 1h• prnzer e de distração. 10i
pois tais coisas engendram também obstruções e humorcN
viciosos, pelos quais aqueles que fazem tais excessos est~o I• 111 Um diário do ano da peste D. Defoe observa por sua vez,
mais sujeitos a contrair a peste.rni fllt1p1 11d1:o de Londres em 1665, que "todas as espécies de cri-
•• ,, 111csmo de excessos e de deboches, eram então praticados
Convém então proscrever toda relação sexual em tempo dt• 1 hh11lc".
100
Asseguram-nos que em Marselha, em 1720, "via-
epidemia? Essa era a doutrina de um cirurgião de Metz, cuj11 1111 rc o povo, um desregramento geral, uma licença desen-
opinião é no entanto combatida, em 1630, pelo médico de C lc,· d1 h1, uma dissolução horrível".107 Tais comportamentos não
mont, Bompart, apoiado na autoridade de um colega germii nl 111 ~pondiam evidentemente em nada àqueles, lúcidos e sere-
co: "Um douto alemão diz que a separação dos homen; e dn~ lll lll'C>nizados pelos médicos. Eram tudo, salvo coragem.
mulheres torna triste e melancólico e que ele viu morrer c111 li• 11111pcnsação, pretendiam-se por vezes provocantes, como
uma cidade todas as mulheres separadas dos homens e não rn t4 111nvoc.:ação pudesse conjurar a doença. Daí cenas que se
"' • ~ - " 10} 11,11 111 cm levar para o palco ou para a tela, a tal ponto pode-
nhece outra causa· para isso senao a separaçao .
Com pouc~s diferenças de detalhes, todos esses pdt il'llil Ili 111ll'UCcr inverossímeis. Em Londres, em 1665, um pobre
ensinam finalmente a mesma coisa: evitaremos melhor a pcs11 111 111 l'o m boa saúde, mas que acaba de acompanhar até a
se não cedermos ao pavor, se nos armarmos de bom humor e d1 11 1 1111111111 a carroça que levava sua mulher e seus filhos, é
forte dose de serenidade estoica. Mas são palavras e consclh11 111,ltlo, abatido, a uma taberna. Ali, é atacado por pessoas
de uma elite intelectual e moral. Uma multidão comumc1111 111 11111111: por que não volta para a fossa de onde vem? E por
não se preocupa com estoicismo, e não era por otimismo qw 111111 Nnltou para dentro para subir mais depressa .ao céu?
alguns se abandonavam à bebida e à luxúria. Todas as crôn i1•11, 1111 11 Nclciro de D . Defoe, que assiste à cena, toma a defesa

de epidemias mencionam com efeito, como uma constanll·, H lllh 11'1,, c,i-lo por sua vez objeto de zombarias: estaria melhor

1R4
185
em casa a dizer suas preces esperando que a carroça dos monoN 1' 111 Londres, em 1665, verificaram-se os mesmos compor-
venha buscá-lo!'º" Em Avignon, em 1722, enfermeiras for:1111 11111111os, como nos informa Thomas Gumble em sua Vida do
demitidas por seu desregramento, e também porque havia111 HII ,1/ J\llonk:
"pulado sela" sobre cadáveres de pestíferos.'°'1
Esses gestos sacrílegos talvez fossem bastante raros. Frt• ''l ..11 A impiedade e a abominação ali reinavam com t:anta
quentes, em compensação, eram as bebedeiras e os desrcgrn 1, 11 ~•n - o que tenho vergonha de dizer - que enquanto em
mentas inspirados pelo desejo frenético de aproveitar os ú li 1 1111111 t·asa gemia-se sob os laços da .M orte, acontecia muitas
mos momentos de vida. Era o carpe diem vivido com 1111111 11 ll'N que na casa vizinha as pessoas abandonavam-se a toda
112
intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um ho1 1 ~plklc de excessos".

rível trespasse. Tucídides e Boccaccio descreveram, com 1800


anos de distância, o mesmo fenômeno: l11111tlmcnte, também essa sede sôfrega de viver era provo-
l 1 111110 medo ele um prazo no qual as pessoas se esforçavam
[Em Atenas, no século LV antes de Cristo] Buscaram-se 11~ 1 111111 punsar, aturdindo-se. A exaltação descontrolada dos
proveitos e os prazeres rápidos, já que a vida e as riqucz11~ 11111 ~ cln vida era uma maneira de escapar à insuportável
eram igualmente efêmeras[...]. O prazer e todos os meios p111 11 1 ~1111 dn morte."
1

alcançá-lo, eis aí o que se julgava belo e útil. Ninguém l ' I 11 C 1111 1'11 tentação quando parece que a peste não se deterá
detido nem pelo temor dos deuses, nem pelas leis humanas: jil lfttt 1lp11Ntur matado todo mundo: ceder ao desalento. Existem
não se fazia mais caso da piedade do que da impiedade, cb1h t.11111011 insustentáveis que acabam por abalar os caracteres
que se via todo mundo perecer indistintamente; além di~•111 1 1li 111~·s. O monsenhor de Belsunce, que não quis de modo
não se pensava viver tempo bastante para ter de prestar c:o111 11 11111 d11ix11r Marselha em 1720 - e o fez saber - , que viu
de suas faltas. O que importava bem mais era o veredic10 hl
t 11 1 1111zc pessoas em sua casa, que confessava e consolava
dado e ameaçador: antes de sofrê-lo mais valia tirar cl:1 vld11
111111 ll11111dos " lançados para fora de casa e colocados entre os
algum prazer."º t11~ ~lll>rc colchões", conheceu no entanto a fraqueza e o
111 1, d11rnnte algum tempo, deixou de sair. Escreveu em 4
Em Florença, no século XVI, Boccaccio, após ter evoc111h1
li 111hrn ao arcebispo de Arles:
aqueles que, por ocasião da peste negra, só buscavam pr:m•t
distração, assini.comenta sua atitude:
111, 11111itn dificuldade em mandar retirar cento e cinquen-
Nada mai: fácil, aliás. Cada um perdia toda espera11c;11 1h
111 ,11 hlvc.;rcs serniputrefotos e roídos pelos cães, que estavam
1 1111 11tl11 de minha casa e que nela já punham a infecção, de
viver e deixava ao abandono tanto seus bens como su:1 p111
1111111 111•11 que me via forçado a ir morar em outro lugar. O
pria pessoa [...]; o prestígio e a autoridade das leis hu111111111
esfacelavam-se e desmoronavam inteiramente. Os gu:11'<llnr 1111 ,, 11 espetáculo de tantos cadáveres de que as ruas estão
e ministros da lei estavam todos mortos, doentes, 011 !Ih 111 ln.li l1npediram-me de sair !ui um bom número de dias
desprovidos de auxiliares que toda atividade lhes est:wn 111 11 puclcndo suportar ne m um nem outro. Pedi um corpo'
terdita. Qualquer um tinha portanto licença para agli 111 1 1111111cln p:ira impedir que se ponham mais cadáveres nas
11 ,1111i11ha volta.114
sabor de seu capricho."'

IH6 IS7
No momento em que o bispo de Marselha formulava essa '1111\11 e por uma sombria coragem. "Um são fazia já sua fossa;
confissão, os escabinos da cidade escreviam ao marechal de 1111 to~ nelas se deitavam ainda vivos; e um trabalhador dos
Villars, governador da Provença, para comunicar-lhe sua total 111• li~, co~1 as mãos e os pés, atraía a terra sobre si, morrendo."
impotência. A epidemia estava então em seu paroxismo. Em um 1 \lontn,gne compara esses enterrados vivos voluntários aos
estágio comparável do processo de contaminação, Um dirírio dn tld,ulos romanos "que foram encontrados, após a jornada de
ano da peste, de D. Defoe, dá a conhecer as mesmas reações cm C 1111111•~, co~ a cabeça mergulhada em buracos que haviam
Londres, em 1665. Magistrados e população abandonavam-se 1111 11 oneh1do com as mãos, sufocando-se".119

ao desespero: 1 li 11, fotos comparáveis se produziram em Málaga e em


11111111 CN n:1 metade do século xv11. Tratava-se portanto de uma
Finalmente, o lorde-prefeito deu a ordem de não mais fazer Ili 11tlc• que se repetiu de um país a outro sob o efeito das mes-
[fogueiras nas ruas], baseando-se sobretudo no fato de que :1 1111, 1 11IIMlS.
peste estava tão violenta que desafiava evidentemente todos o\ ''I•~~o contami1~ação", escreve o médico de Nlálaga, "provo-
esforços, e parecia antes aumentar do que diminuir à medi~l:1 111 h111•1·ores sem igual. H ouve uma mulher que se enterrou
que mais se fazia parn combatê-la. Esse desalento dos mag1i, 1 1p111 li niio servir de alimento aos animais, e um homem que,
trados vinha com efeito antes de sua impotência do que ele sua 111111 ~1ip11ltado a filha, construiu seu próprio caixão e ali mor-
120
falta de coragem [...]; não poupavam nem seu esforço nem sua li 1111110 dela [...]." Por sua vez, Um diário do n110 da peste, de
pessoa, mas nada adiantava, a epidemia grassava, as pcsso:1N 111,1111.:, fa_z menção a "esses pobres loucos que queriam [...]
estavam terrificadas ao mais alto grau, de maneira que clt:~ li 1 11 dclfr,o, enterrar-se a si mesmos".111
acabaram por abandonar-se, como d.1sse, ao desespero. '" \l,~~~cmários franceses em Alto Volta, atual Burquina Fasso,
1 1 11 11~1ifo elas fomes de 1972-3, garantiram-me ter sido os
Um dos resultados desse desencorajamento coletivo, rcl:1111 I' , 1,1dorcs de comportamentos similares, atestados também
D. D efoe, foi que dali em diante os londrinos já não procura t 1111,, u cerco de La Rochelle, em 1628.
vam evitar uns aos outros, n ão ficavam mais fechados em c:1~:1, 1li \t'rcvcndo a peste de Milão em 1630, A. Manzoni ob-
iam a toda parte e não importa onde: para que tomar prcc:HI 1 "i\11 '!1esmo tempo que a perversidade, aumentou a de-
i ,, 111 I' b
ções, d 1.ziam
· ., que " vamos to dos passar po r 1·sso"'. 11'· ( )
eJes, Jª Ih ,l , !. em. certo que uma população acometida pela
desespe ro e o abatimento, contudo, levavam alguns para nl~,11 1, 111111 ~•r:1 es~re1tada pela loucura. Essa se traduzia seja por
cio fatalismo. Um se tornava "lunático" ou "melancólico", 0111111 111 l11tl1v1dua1s ab~rrantes - acabamos de lembrar alguns - ,
sucumbia ao desgosto após o desaparecimento dos seus, aqudc• 11111 rnlcras _coletivas que serão evocadas mais adiante, uma
morria de medo, outro ainda se enforcava.111 D. D efoe asscg11 li 111111 cxclm a outra. Tais atitudes se explicam pelo des-
ra: "[...] Não se poderia crer no número de pessoas que, sol, 11 1111,tttll'nto das estruturas fami liares, pela clessocializaçiío da
furor cio mal, na tortura causada pelos tumores, em dclí1111, 1 . p,~ln alteraçii? das relações humanas, p ela ang ústia per-
presas da loucura, agrediam a si mesmas e punhan: fi111 11 1 111,, l' pelo sentimento de impotência. Em seu Um diário do
vida".m Lembremos aqui o caso, assinalado por Montatgnc, eh ' /111/1". D. D efoe menciona dezesseis vezes o caso de doen-
camponeses ameaçados pela peste que cavavam sua pr<'>pl'l11 111 l11d11 :1s jan:l~s para gritar sua angústia, e as palavras
fossa e ali se deitavam para morrer, assentando eles própt to l,,11,11m, dehno voltam frequentemente sob sua pena.
a terra sobre si: gesto marcado ao mesmo tempo pela descspt , 11111v11, estes dois textos:

189
[...] Esses terrores, essas apreensões do povo levaram-no 11ll~mo, da demência e do macabro.118 As "projeções" icono-
a inúmeros atos de fraqueza, de loucura e de perversid:1d1• lh 11~, espécie de exorcismo do flagelo, constituem, com a
para os quais não tinha necessidade de ser encorajado.,:, M1 1• li ngressividade, reações habituais diante de um medo
À medida q ue a desolação crescia nesses tem pos tc1 _,. t rnnsforma em angústia. H. Mollaret e J. Brossollet
ríveis, o estupor do povo aumentava. Em seu terror, 11~ 111111 rttzão de mostrar a esse respeito que a peste fora "uma
pessoas realizavam mil ações tão delirantes quanto as do~ Ih 11hcstimada d e inspiração artística" do século xrv ao xrx,
doentes em suas torturas, e era muito comovente vê-l:1~, 1h 11~ nfrescos de Orcagna, em Santa Croce de Florença, até
rugindo, chorando, torcendo as mãos na rua [...].m l'r,11/i•r11s de Jafjà, de Gros, e O hospital dos pestífe,·os, de Goya.
1111• 11111is ou menos certo que o tem a da dança macabra nas-
Que pesadelo a vida em urna cidade onde a morte vela j1111 1111111 11 grande pandemia de 1348, e é significativo que sua
to de cada porta! Um di,írio do ano da peste, de D. Defoe - no~ 111 ~c-u11cia se tenha situado entre os séculos xv e xvm, isto
so melhor documento sobre uma peste embora se trate ele 11111 1111 ,111tc o tempo em que a peste constituiu um perigo agu-
romance - , estií repleto de cenas a lucinantes e de ancdo111 1111 ,1 li~ populações.
119 O elo entr e peste e encomenda de
perturbadoras: pessoas que urram quando penetra em uma r1111 1~ 111111~11 macabra é especialmente atestado pela de Li.ibeck
a carroça dos mortos; um doente que dança nu na rua; m:11•• 111 h ukirche, 1463), pela de Füssen (capela Santa Ana, 1600)
"levadas ao desespero, ao delírio, à loucura", que mat:1111 M'II 1 111111 l'SS:t cidade sido devastada por epidemias em 1583, 1588
filhos; um pestífero atado ao leito q ue se liberta pondo fogo t'tll 1 1111 e pela de Basileia (1439), reproduzida por Merian.
seus lençóis com uma candeia; um contagiado "louco furio\O 11 111ll Stino e a sobrevivência desse tema, um esclarecimen-
0

q uc canta na rua como se estivesse bêbado e que se lança ~oi 11, " 111lndor: a dança macabra desenh ada por volta de 1530
uma mulher grávida para beijá-la e lhe passar a cont:1111 i11u l l11lll11in, o J ovem, em L ondres (onde ele próprio morreu de
ção.w O que há de surpreendente se nos espíritos assim tr:11111111 t 11•1c anos mais tarde) teve 88 edições diferentes entre
tizados se desenvolvia a propensão à morbidez? Ainda a p111 li, 1HH4.U0 São ainda o espírita e o repertório iconográfico
pósito da peste de Londres em 1665, Samuel Pepys fala tl11 11111\'IIS macabras que reencontramos nas g ravuras de um
" loucura que leva o povo da cidade (porque isso lhe é proil,11[111 1111 do s6culo xvu, Stefano Delia Bella (por volta de 1648),
a acompanhar os corpos cm multidão, para os ver ent~rr:11 "' 111 111111dcrn ser uma evocação da peste de Milão em 1630:
Assim faz igualmente, ao menos uma vez, o comerciante q11, 1111 lt•vn uma criança, arrasta um velho para a sepultura,
supostamente r~dige o re lato de D. Defoe. Levado " irresi,111, 1 11111 jove m em um poço, foge com uma mulher, com a
mente" pela "luriosidadc", dirige-se para perto de um "ahi\ 11111 1 11111·11 baixo, sobre os ombros.'3'
- uma fossa - onde já foram amontoadas quatrocem:1, pt ( 11111 11111 rea lismo mórbido, os artistas se esforçam em
soas. E vai até hí à noite a fim d e ver lançar os corpos, p111~ 11 1 li II l'llníter horrível da peste e o pesadelo acordado vivi-
dia não teria visto senão a terra recentemente remexida.'' 111~1 ontempor âneos. I nsistiram - como dissemos - nos
Essa anedota faz compreender como e por que ;1 p1 1 , ~ fu lminantes e naquilo que o contágio tinha de mais
negra e aquelas que a seguiram em um ritmo apressado 11111111 ,, ,li· mnis inumano e de m ais repugnante.U1 Certos deta-
ficaram a inspiração da arte europeia, orientando-a 111:11>1 11 1111 11111 como um tópos, por exemplo o da criança que se
que anter iormente para a evocação da violência, do sofri1111 111 ti 111 ~cio frio do cadáver materno. Encontramo-lo, entre

190 191
outros, em um desenho de Rafael, em São Roque orando pelo,,· 111lnro não poupa ao espectador nenhum detalhe: as convul-
pestíferos, de Domenichino (Gênova, Palácio Rosso), nas <lua~ ' l' ns súplicas dos agonizantes, as inchações da putrefação,
telas de Poussin consagradas respectivamente a Uma epide111i11 \'l~ucras disputadas pelos ratos, os mortos carregados às cos-
e'lll Atenas (Richmond, Galeria Cook) e à Peste dos filisteus (Lou 1111 cm cadeiras etc. A essa iconografia que não era senão
vre), e em todas as obras que engrandecem os devotamenLOh 111,1~indamente verídica, correspondem não só os relatos da
sucessivos de são Carlos Borromeu, depois de seu sobrinho li 11, rnas também a evocação da peste por Scudéry:
Federigo em Milão. Ele figura ainda no primeiro plano d11
composição de Tiepolo, São Thecle libertando Este da peste (c:llt• ( ).r mortos e os moribundos desordenadamente estendidos
dral dessa cidade) etc. , /( estão horrivelmente em todos os lugares confundidos.
Um número importante de representações figura dn . /qfl,i, um, todo lívido, horroriza a vista,
sugere, pela atitude dos personagens, o fedor dos agoniza1111•• Ili, o outro, todo pálido, é um morto que se move;
e dos cadáveres. Um tapa o nariz e se afasta do moribundo /1.' f/tiando se veem cair todos esses espectros moventes,
com um esgar (A peste em Basileia, de H. Hess, Kupferstil'11 Nilo se discernem mais os mortos e os vivos.
kabinett, Basileia); aquele - um médico - só se aproxima 1h1 81111,r olhares são horrendos, sua boca está entreaberta.
doente com um lenço aplicado sobre o nariz (ilustraç:fo 1h1 Ntlo têm sobre os ossos mais do que uma pele toda verde;
Fascicul Medeâne te Antwerpen, Museu Histórico da Mcdici1111 U nesses pob1·es corpos semidescobertos,
Amsterdã); um outro, na Pestilenza, de G. Zumbo (cera cnl11 limrc tl podridão, veem-se pulular os vermes [...].m
rida do Bargello, Florença), que deposita um cadáver e m 111111
urna, atou um lenço sobre o nariz e lança a cabeça para 11 11 li 111 nndo-se da segunda metade do século XVI e do século
num gesto de horror. Muitos pintores, entre os quais Po11·ml11 li, llllo nos surpreenderemos de que os artistas transalpinos
colocam ao lado da criança de peito crispada sobre o corpo 11, \'h•lll'l\111 na Itália, corno Poussin e Rouhier, e com mais for-
mãe um terceiro personagem que, tapando o nariz, tent:1 lt•I111 1111 os italianos, tenham atribuído em suas obras um impor-
a criança. 1111{111' às epidemias que devastaram então a península. Por
Enfim, os artistas quiseram reconstituir - sem dul'hl, 11111111"As Cenas de peste foram assuntos favoritos do gravador
para livrar-se dele e neutralizá-lo - o horror cri_;1do p111 Ili 1110 G. B. Castiglione (dito "II Grechetto") que as reali-
1
acúmulo dos cadáveres e pela insustentável promiscuid:1d1• 1h 11111 volta de 1650" H e que certamente conhecia A peste dos
vivos e dos mortos. Corpos esparsos nas ruas e que apod n 11111 111 que Poussin pintara por ocasião da g rande contamina-
antes que sejam levados, carroças ou barcas sobrec:11-rt'/{1111, th 1(1,10. Uma observação análoga vale para a Espanha. B.
que rompem7 sob o peso, cadáveres puxados com ganrl111~ 1 11~~~11r fuz justamente notar que as telas de Valdes Leal, Os
atados à cauda de um cavalo, doentes e mortos tão espn·111hl, ,l,11111ros e A morte cercada dos emblemas da vaidade humana,
uns contra os outros nos lazaretos superpovoados qm: 111111 Ili I u111postas por um homem que havia sido a testemunha
pode dar um passo sem caminhar por cima, umas rn111as 1111 11 l111dn da peste de Sevilha a qual, em 1649, dizimara 60 mil
autênticas que voltam infalivelmente, de uma compo~l~11l• IJll 111il habitantes.m Se há tantos crânios, sangue e morte,
outra, nas gravuras que L. Rouhier consagrou em J657 1\ /\ • 1 11111cs lívidas e olhos transtornados na arte do "século de
de Roma (Copcnhague, Universidade de Medicina), :1ssi 111 1111, 1100 é em parte por causa das epidemias que, em ondas
na célebre Pinzza dei Nl.ercatello em Nápoles em 1656, 011!11 h ,1~, perseguiram então a gloriosa mas frágil Espanha?
192
l 93
5. COVARDES OU HERÓIS? 111lonnr sua paróquia ou seu estabelecimento religioso e toma
1111111,~ para facilitar a assistência espiritual aos doentes. Mas ele
Para compreender a psicologia de uma população atornll'II
111111 retira-se às pressas para o convento Santelmo e só sai
tada por uma epidemia, é preciso ainda destaca~· um ele111cn111 h 110 fi nal da contaminação.'" Em Marselha, em 1720, os
essencial: no decorrer de tal provação se produzia forços:1_1111•11
te uma "dissolução do homem rnediano".u6 Não se pod1;1 ~1 1
u11~
Ili de são Vítor rezam pela salvação comum atrás das espes-
111111·0 lhas de sua abadia. Os autores de Nlarselha, cidade morta
senão covarde ou heroico, sem possibilidade de _aca1'.tona1· ~, l 11111•cm, além disso: "Burgueses e notabilidades fugiram, na
entre os dois. O universo do meio-termo e das me1as-t11~tas. q111 lrn h11 cônegos da catedral, das paróquias de são Martinho e
é comumente O nosso - universo que repele para a pcnfonn li 1\, 1°1H1les, fidalgos, comissários de paróquias ou de bairros,
.
excess os de virtudes e de vícios - via-se bruscamente aboli1 11 h1111cs, médicos, advogados, procuradores, notários, aban-
do. Um projetor de alta potência era repen~inamente ':po111111 11 111 ,1111 rebanho, responsabilidades, negócios, paciente ou
para Os llomens . , desmascarando-os sem .piedade: muitos
• . 111111 1111 11, 1u Daí esta acusação de um contemporâneo:
reciam covardes e odiosos e alguns sublunes. As cronH.:a~ 11111 •
inesgotáveis sobre esses dois aspectos da inumana rcali_'. li11h 1'111lu-sc dizer para a vergonha dos padres, cônegos e reli-
Relatando a peste de 1348 na França, Jean de Venerce :111_1·11111 jlh •~nN retirados nos campos vizinhos que, desde que per-
"[...] Em muitas cidades, grandes e pequenas, os padres, ~'. 111111 ih 11111Nos verdadeiros ministros do Senhor[...], três quartos
dos pelo temor, afastavam-se". 137 Grassando a peste em v\ 11 li li 1111~ p1•~tíferos morreram sem confissão, para grande pesar
berg em 1539, Lutero constatava, desolado: 1h llONNO digno prelado". 143

E les fogem uns após os outros e mal se pode ~nconu·,111 111 1h 11111is religiosos dos homens de Igreja - aqueles que
g uém para tratar e consolar os doentes. Em m111lrn op11llí11 • li 1111,1'111111 - assim como os habitantes que tinham ficado
esse medo, que O diabo põe no coração dessas pobres 111 l 11111 (lllllitas vezes por não terem podido partir) eram natu-
soas, é a peste mais temível. Fogem, o medo per~urllll ~li 1111 11t11nrgos em relação aos ausentes voluntários. AJém
cabeça, abandonam a família, o pai, os parentes; a1 cs1 1\ ~1 11 lt 111 uv11 m acreditar ou fazer crer que a morte não poupa-
nenhuma dúvida o castigo por seu desprezo ao Eva11µ(• lh11 Ili ''" f'11gitivos do que os outros. Redigindo em 1527 um
, 1cup1ºdez.
por sua l1ornve • "" 111 -11hrc.: a questão - deve-se ou não fugir da morte em
, ,11 pcste? - , Lutero afirma: "Satã persegue aquele que
Em Sant~;der, em 1596, o alcaide-mor retira-se parn 11111 •li l111(c aquele que fica, de maneira que ninguém lhe
aldeia com toda a sua família. Em Bilbao, em setembro d_\' 1\li 111
No mesmo espírito, uma gravura inglesa do século
assinala-se que os padres das paróquias n~o querem adm111l~11 11111 1111 usqueletos armados de flechas que atacam pessoas
os sacramentos aos contagiosos do hospital, que morn:111 1' lt• 11h1N um uma carroça e que se afastam em vão de uma
socorro espiritual para "grande escândalo e murmúr_i~' da P"I' 11111111minada.m Por seu lado, o cônego de Busto-Arsizio
lação.')'' Nlanzoni, evocando a peste de 1630 em M1lao, ;111•~1 ' 1l11 l11tlo mais o leque das punições:
"destruição ou a fuga de tantos homens encarregados dl: "' l,11
de prover a segurança pública".1'" Em N~poles, _em 1656, 11 1 \141• 11111I o homem que quer escapar à mão de Deus e a
<leal-arcebispo, desde o início da epidenua, pro1be os p:uli t lh1ulllos [...]. Nenhum daqueles que fugiram de Busto em

/()4 195
razão do perigo de peste pôde tirar vantagem disso [...]. UnN ,\llcsmos comportamentos em Londres em 1665, segundo
pereceram de morte trágica, outros foram castigados dur;11111• 1>ufoc:
sua vida por longuíssimas enfermidades, outros foram p1111í
dos em seus bens, tendo seus negócios ido de mal a pior: ad j..,I Era uma época em que a salvação particular ocupava
vertência [...] dada por Deus [...] de não fugir das adversiclacb 111nto o espírito que não se tinha tempo de pensar nas mi-
enviadas pelo céu, pois, finalmente, tudo se paga pela vicb.11 u1rias dos outros [...]. O instinto de conservação da própria
vldnpa1·ecia verdadeiramente o primeiro princípio. Os filhos
E ssas admoestações e a estampa inglesa, onde se ent011 11hnndonavam os pais, mesmo quando os viam debilitar-se
1111 maior aflição, e por vezes se viu, mas menos frequente-
tram as intenções democnhicas e niveladoras das danças mac.1
bras, chegam a convencer? É um fato, em todo caso, qut· 11 111unte, pais fazerem a mesma coisa com seus filhos. m
maioria daqueles que não tinham podido fugir, não pc11sa1ul11
lJm espetáculo idêntico se repete em Marselha em 1720.
senão em sua própria conservação, evitava cuidar de seus p1 o
111111 prova este testemunho sobre crianças abandonadas:
ximos que haviam adoecido.
1,1111 crianças cujos pais desumanos, em quem o pavor do mal
Como um refrão, volta sob a pe na dos cronist:is a co11s1:1111
f11111Vn todos os sentimentos da natureza, punham para fora,
ção de que o contagioso é abandonado por seus parentes, :11111
111111 lhes como única coberta apenas um velho farrapo, tor-
gos e vizinhos. Escrevendo de Avignon em 1348, um côncg-o d1 111lt1• SC por essa dureza bárbara os assassinos daqueles a quem
Bruges relata: "[...] O pai não visita o filho, nem a mãe a f'ill111o li II nntes glorificavam-se de ter dado a vida".'51
nem o irmão, nem o filho o pai, nem o amigo o amigo, 11c111 11111 l I ntn-se de um tópos que se repetiria de crônica em crôni-
vizinho o vizinho, nem um parente por afinidade um parl'lll1 llt 111 mais, acreditamos nós, trata-se do compor tamento de
por afinidade, a menos que queira morrer imediatamente l 'IIIII 111,,~ torturadas pelo medo revivido de uma cidade a outra e
ele [...l".147 Eis ainda o testemunho de Boccaccio: "O dcs;1~111 11111 ~6culo ao seguinte, como todos aqueles que descrevemos
lançara tanto terror no coração dos homens e das mulherc~ q111 1h , orrer do presente estudo.
o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã o irn 11h1 /\ 1·ovardia de uns acrescentava-se a imoralidade cínica de
muitas vezes mesmo até a mulher o marido. Eis aqui o qu, ..., 1111~ <)litros - verdadeiros saqueadores de destroços-, qua-
mais forte e quase inacreditável: os pais e as mães, como " ' 11 11011 da impunidade, já que o aparelho repressivo desmoro-
filhos não fossem ma'ls deles, evitavam ir vê-los e ajud,í-lo~".11 111 ''C:nda um", escreve Boccaccio, "tinha licença de agir ao
Por ocasião de 11ma peste que atinge Brunswick em I rn11 11 de seu capricho."•SJ A maior parte das más ações era
um contemporâneo escreve: "Muita gente de coração sc111 plt 1111 ldn por aqueles que em Milão eram chamados de monatti.
dade expulsa de suas casas seus filhos e seus criados dm·111t 1,,rmo designava os homens que retiravam os cadáveres
joga-os na rua, abandonando-os à sua desgraçada sorte"."'' 1,1~11s, das ruas e dos lazaretos; que os transportavam em
O cônego lombarda que viveu em Busto-Arsizio a cpid1•111l11 111\11~ para as fossas e os enterravam; que conduziam os
de 1630 afirma, por sua vez, que se um irmão, uma irnd, 111111 111•~ nos lazaretos; que queimavam ou purificavam os obje-
mãe ou um pai caísse doente, os demais membros da fo,11111 l11l1•ctndos ou suspeitos. Isentos de qualquer vigilância,
h1giam para longe "como o diabo foge da água benta e crnrn, ,,_ deles exigiam resgates daqueles que não queriam ser
fossem pagãos ou huguenotes".150 httldos ao hospital, recusavam retirar os cadáveres já em
197
putrefação a menos que recebessem alta_ som~ e pilha_v:_1111 11 111w11111, seis médicos em oito falecem em 1348) e também os
casas onde entravam. Como forçados haviam sido requ1s11 11d1, ldt loN: e m Orvieto, 24 morrem no decorrer da peste neg ra
em Marselha, em 1720, para preencher a função de "corvo• nft11 ~u encontram senão sete substitutos para sucedê-los.m
toda espécie de rumores sinistros correu a seu respeito: ro11l 111 11l,u•11vcl, a provação esmaga uns e exalta outros. Jean de Ve-
vam impunemente em todas as casas onde iam apanhar crn'plt lh 1111, o elogio de religiosas parisienses em 1348:
mortos; para não voltar duas vezes a uma mesma mornd:1 , 11111
çavam na carroça fúnebre os agonizantes ao lado dos cad:lv1111 1, 1111 santas irmãs da Santa Casa, não temendo a morte,
etc. Enfim, em toda cidade contaminada, falsos "corvos" c11I 1,1 111111priam sua tarefa até o fi m com a maior doçura e hu-
varn nas casas para saqueá-las e muitos roubos eram comctl1h1 1111lclade; e, em número considerável, muitas das ditas ir-
nas que estavam abandonadas.1H Ainda que a populaçã'.> 11•11h • llltlN, mais de uma vez renovadas em consequência dos va-
exagerado o horror e o número das más ações comet1d11 1, 1111 lrni da morte, repousam, como se crê, piedosamente, na
período de peste, a coisa não deixa nenhuma dúvida. D. l )11111, 1111 de C risto.';'
não acredita que na Londres de 1665 enfermeiras tenh:1111 th 1
xado morrer de fome, ou até sufocado, contagiosos de qlll 11 1 11111 oc:isião da epidemia de 1599, se os padres de Bilbao
cuidavam, nem que guardas de uma casa fechada pelas :rn1 11t1 111 jlOtlCO corajosos, em compensação, em Burgos, em Val-
clades tenham apressado a morte daquele que ali se encon11 ,t 111111 llfl1 Segóvia, os religiosos consumiram-se à cabeceira
doente. Em compensação, ele precisa: "Mas que tcn h:1 h1t\ hl 1h11111t'CS e administraram os sacramentos "com a maior
muitos roubos e ações perversas nesse tempo terrível, 111111 l111tllilt1de",158 com risco da própria vida. Em Milão, em 1575
posso negar, pois a cupidez era tão forte em alguns que 111111111 Ili, Nilo Carlos Borromeu, depois seu sobrinho Federigo
corrido qualquer risco para pilhar".m n ,1111-se a deixar a cidade, a despeito dos conselhos de seu
Face aos saqueadores de mortos ou de casas abandrn1111ln uh I Percorreram as ruas, visitaram os lazaretos, consola-
daqueles - muito mais numerosos - que cedem simpleNJltl Ili '" 11cstíferos e encorajaram aqueles que os assistiam.15"
ao pânico, eis os heróis que dominam seu medo_ e aqut·l1•- 1p1 1 tl lt'~lll:l cidade, em 1630, os capuchinhos foram sublimes.
por seu modo de vida (especialmente nas comu111dadcs l't•ll~I• 11111111mporâneo citado por .M anzoni testemunha:
sas), sua profissão ou suas responsabilidades se expõt:11,! 11,, 1 , ·•
tágio e dele não se esquivam. A peste negra leva todos o~ 11111 1 1 ~,• esses padres não tivessem existido, a cidade teria sido
tinianos de A".ignon, todos os franciscanos de Carcassrn\t' 1 1 1111h111llnda inteira; pois é uma coisa miraculosa que tenham
Marselha (nesta cidade eles eram 150). Em Mag uclrn11 1, 1t 11111lldu, em tão curto espaço de tempo, prestar tão nume-
restam senã6 sete franciscanos em 160; em Montpc ll il•t, 111 11~ ~crviços à população, sobretudo se se considera que
em 140; em Santa Maria Novella de Florença, 72 e111 1~li t nAtt 111l•cberam senão fracos recursos ela cidade e que con-
conventos dessa ordem em Siena, Pisa e Luca, que t'tllll 1111lrnm com sua sabedoria e sua inteligência manter no
menos de cem frades, perdem respectivamente 49, ~•/ t 11 nto t:tntos milhares de desafortuna<los.' 60
Conselhos municipais são igualmente dizimados. l•:111 V, 111
71% dos membros do Conselho são levados; em Mrn11111 li 1•11puchinhos, que foram com os jesuítas os principais
11~

83%, em Béziers 100%, em Hamburgo 76% . Evide1111'1111 t• 1 tln Re forma católica, jamais enfrentaram hostilidade
os médicos são em particular atingidos pela c pidl·1ttl11 1 1~• ,lv11l ~ que sofreram os membros da Companhia de

/ 98 199
Jesus, isso se deve especialmente a seu devotamento du:antc li~ Ili ~c deixar deter pelo "perigo evidente", enfrentaram todas
pestes, por exemplo, na Paris de 1580-1. 1:'-s pop~la?oes lhcH lll'l{Ôncias ao mesmo tempo: abastecimento, desemprego,
estavam gratas por sua abnegação nessas c1rcunstancias tr:í(,(1 111111 pública, limpeza das ruas, retirada dos cadáveres et c. 163
cas (e também durante os incêndios). Na França e em oul l"IIH 11111110 aos padres e aos religiosos que não haviam abandonado

partes, muitas municipalidades no século XVII ~avorece~a111 n li posto, foram ceifados pela peste, ou seja, 49 capuchinhos,
11hscrvantes, 29 recoletas, 22 agostinianos reformados, 21
implantação dos capuchinhos na esperança ~e d1~por assim <k
11t1i1i; e no total mais de 1/5 do clero marselbês. 164
confessores e enfermeiros em tempo de epidemia. Mas css1••
religiosos não tinham o monopólio da cor_agem. E~1 ~656, clll
Nápoles, enquanto o arcebispo se recolhia, 96 rehg10sos _<.'li
milianos em cem morreram da peste; em 1743, em M ess11111i
r, DE QUEM É A CULPA?
dezenove em 25. Por várias vezes Um diário do ano da peste, d, 1!011 mais chocada que estivesse, uma população atingida
D. Defoe, dirige cumprimentos às autoridades da cidade 1h ln jll'StC procurava uma explicação para o ataque de que era
Londres obrigadas a enfrentar a epidemia de 1665. No comcc,'ll 111111, lfocontrar as causas de um mal é recriar um quadro
da contaminação, o lorde-prefeito, os xerifes, os alder11~e11 ~ o~ 11quilizador, reconstituir uma coerência da qual sairá logica-
membros do conselho comum fizeram saber que não de1xaru1111 lllll n indicação dos r emédios. Ora, três explicações eram
a cidade, manteriam a ordem, distribuiriam os soco_rros 1 11111l11das outrora para dar conta das pestes: uma pelos erudi-
cumpririam da melhor maneira seu encargo. O que f1zcn1111 111outra pela multidão anônima, a terceira ao mesmo tempo
sem excessos inúteis: 111 11111ltidão e pela Igreja. A primeira atribuía a epidemia a
li 1 1•orrupção do ar, ela própria provocada por fenômenos
Os magistrados não falharam em sua tarefa, foram _tão \Ili 1,tc•N (nparição de cometas, conjunção de planetas etc.), por
lentes quanto haviam prometido ser. O lorde-prefeito e n, fl,111111cs emanações pútridas, ou então por ambos. A segunda
xerifes estavam continuamente nas ruas, e sobretudo 0111h 1111111 ncusação: semeadores de contágio espalhavam volun-
se encontravam os maiores perigos, e embora jamais tive" l~1111intc a doença; era preciso procurá-los e puni-los. A t er-
sem de ver as multidões amontoar-se em torno del:s, 1111111 11 111 1111sogurava que Deus, irritado com os pecados de uma
recusavam, em caso de urgência, receber as pessoas, esc111111 1111h1~•1fo inteira, decidira vingar-se; portanto, convinha apa-
seus lame11tos e a exposição de suas queixas.161 111I lo fazendo penitência. De origens diferentes, esses t rês
11101111111 explicativos não deixavam de interferir nos espíritos.
Em Mar;elha, a atitude do monsenhor de Belsunce foi 111111 11- podia anunciar sua vingança próxima por meio de sinais
ostentatória. Por outro lado, dissemos que por um momento 1•h 11 IIN: daí os pânicos provocados periodicamente pela passa-
cedeu ao m edo e, segundo sua própria confissão,_ teve u11111 li dn~ cometas e pelas conjunções planetárias consideradas
"fraqueza".162 Permaneceu no entanto, no pleno sentido do WI 111111111cs, por exemplo quando Marte "olhava" Júpiter. Além
mo O pastor de seu rebanho e um exemplo para os marsellwtil 11, IIN teólogos ensinavam que demônios e feiticeiros se tor-
qu: bem precisavam disso. Pois a m~i~ria dos. respons:lwl 111 llll ocasião os "carrascos" do Altíssimo e os ao-entes
o de
havia fugido. A coragem dos outros fm amda maior, em p:11 li 111"1lt;n. Em consequência, nada de surpreendente se seres
cular a de quatro escabinos que permaneceram no lugar e q111 1 lh·os, agindo sem o saber como executores dos desígnios

')/)/)
201
1Nesse mesmo
Je ano
d u de 1348' 1~º mes ~ 0
divinos, espalhassem voluntariamente sementes de morte. Adi ·:1rmelita de agosto [escreve
do oeste an e venette] ' vm- • b p • .
se so re ans, mi d1reção
cionando os três tipos de causas, o cônego de Busto-Arsizín , uma estre 1a n · d .
110 c repúsculo [ ] S i~1to gran e e muito brilhante [...]
começava assim seu relato de maneira muito significativa: ··· · e eia um comet ·
do de exal .- a ou um astro forma-
. açoes e em seguida esvaecido em . .
Memorial do dest ino fatal e do horrível espetáculo de 1111111 110s astrônomos O cuidado d d .d. ~apore_s, deixo
linha sido o pressá rio . e_ ec1. Jr. Mas e poss1vel que
doença pavorosa, contagiosa e pestilencial que sobreveio 110
ano de 1630, principalmente por permissão divina; depoÍN1 Imediatamente em
pnl'tcs.nº
i _da epidemia que se seguiu quase
ans, em toda a França e em out.-as
pela obra e pelo malefício diabólico dos unguentos; enti111,
pela influência das estações, constelações e planetas iniin\

nh11~ido obra das iºnfl ~ _m em e prudente: "Que a peste


gos da natureza humana[...].'º; l)1111nto a Boccaccio ta b, ,
uencrns astrais O I. 1 d d
A opinião comum procurava portanto encontrar o 111.'íxin111 lt111 ldndes e q D . ou esu ta o e nossas
•11hr1• os ho ' ue eus, em sua
. _ ª co era, a ten11a precipita-
JUSt· 'l
de causas possíveis para tão grande desgraça. Mas quanto :HI~ mens como pumçao d e nossos cnmes,.
eruditos, por vocação e deformação profissionais, insistiam 1111N 1111111lfcstara ai fato é que
/\ nutr; ', ' 1~un_:- anos antes, nos países do Oriente"_1,1
explicações "naturais" pelos astros e pelo ar viciado, rejeit:ll1tl11 • exp icaçao "natural" (d e resto nao - contraditó-ria
por isso mesmo obstinadamente a noção de contágio, no en11111 1 ,1 precedente) t·a· . d .
zia envar a peste d . 1 - .
to avançada desde o século XVI por Fracastoro e Bassi111111 •11111111:; de cadáveres na-o enterrad os d ed exa, açoes · d malignas
1.
111111 undczas do sol T, d . , e epos1tos e ixo, até
Landi.
Em 1350, a Faculdade de Medicina de Paris, cons11h111I 1 11111 ,1 pelas autorida~~s e:t:v·u~1 a~p~cto de profilaxia posto
sobre a peste negra, expressou a opinião de "que a causa :1f:1NIU •1h1 por cima e . a un a o na dupla teoria do ar
.. ,~ , por baixo que acabamos de lembrar: fogos e
da e primeira dessa peste foi e ainda é alguma constel:11;1\11 " 11111 ,, 11iascaras protet . 1amento dos doentes e das
celeste [...], conjunção que, com outras conjunções e cclipril' • 1111111111inadas lim o_ras, iso
cansa real da corrupção absolutamente mortal 'uhlvcrcs, mor~e d pez,1_das_ ruas, ~faseamento apressado
6 do ar que 1111 11111didns entre os ª!11ma1s considerados suspeitos etc.
cerca, pressagia a mortalidade e a fome [.. .)"."'
O mesmo sentimento continuava a ser partilhado JJ.O sfr11h, llh ,, t·ons~ituí·1mª:11:~a1~.ªlgumas eram medicamente pro-
XVII pela maioria dos médicos: "A má qualidade do ar", csl' II 11
l I rn1u'ibuían~ a~ l isso uma arma psicológica contra
M,1111 inham' na p 'dalutar contra o desencorajamento cole-
um deles, "poíle ser cansada por influências malignas e p11l 1
1111111 dn ;)este'. c1 a e certo tono e a vontade de combater
sinistras coniunções dos astros".16; Um outro põe igualt1111111
em causa "a posição e o movimento dos astros que s11~('l11111 jllll'l:lnto,
IONÍI i,,·1s ae noçã o d e ar corrompido
. desembocava em
átomos de malignidade, semeiam vapores de arsênico e I n11111 • , m compensaç-o · uma popula-
a morte do ar".16ij Ainda cm 1721, o médico do rei da Pl'II 1
I
,1111 1li•r1r d r - a ' que proveito
lh dlNt11nt:sexp icaçao da malig~ü~ade de astros demasia-
considera que a peste é provocada "por máculas morhíl h 1 para serem acess1ve1s . 1
concebidas e procriadas por exalações pútridas da temi rn1 1111 ,1111plnmcnte difundida de alto a b ~o ªJJr i~mano? A
maligna influência dos astros" (...].16'1 Espíritos críticos prcl1•1 htl 11111111110 dos I a1xo a sociedade, no
contudo deixar aos técnicos a responsabilidade dess,1s expl h •111111111t11 r a a~1;~:;~: :n~1:;~ci,~
didadd,e dods cometas só
CI a e on e se tornava
ções, sem se pronunciar eles próprios.
203
nítida a ameaça da contaminação. D. Defoe assegura que li dl-1,llllC analisada anteriormente). Leprosos foram efetivamen-
aparição de um cometa em Londres, em 1665, semeou o pavrn 111•11sndos, :m 1348-50, ele terem espalhado a peste negra. O
num momento em que já se falava de epidemia. As vendas d1• I" t'IO hornvel de suas lesões passava por punição do céu.
prognósticos alarmistas multiplicaram-se. Já não se falava sc.:111111 lJ1,111 se que eram dissimulados, "melancólicos" e debochados.
de profecias, de visões, de fantasmas e de sinais nas nuvem,• 111l11nva-se também - concepção que pertence ao universo
Na realidade, a crença astrológica na ação dos astros sobre o 111 1•14h•o - que, por uma espécie de transferência, podiam
era recuperada pela religião, e uma evolução operava-se 1111 1 11 se de seu mal satisfazendo seus desejos sexuais com uma
opinião que re tinha sobretudo o papel de anunciadores dn~ _,111 sii, ou então matanclo-a.'73 Em 1321, portanto 27 anos
vinganças divinas reservado aos signos que apareciam no céu 11 h \ dn peste negra, leprosos acusados ele ter envenenado
cidade ia ser destruída. D e quem era a culpa? m l' fontes tinham sido executados na França. A respeito
O movimento primeiro e mais natural era o de ac11~111 l11do11s, demo_nstro~-se pertinentemente que, no império,
outrem. Nomear culpados era reconduzir o inexplicável :, 11111 1111,~sncres ele israelitas, acusados ele ter envenenado nas-
processo compreensível. Era também pôr em ação um remC-.1111 Ili v, hnviam precedido e não seguido a chegada dos flagelan-
impedindo os semeadores ele morte de continuar sua obra ncf11 1 ,, invasão da peste. Queimaram-se judeus em 1348 em
ta. Mas é preciso descer a um nível mais profundo: se a epidt·111h1 111u,1r1, onde a peste só apareceu em 1350. Em Estrasbur-
era uma punição, era preciso procurar bodes expiatório, 41111 ' 111 Colônia'. vários meses decorreram entre o suplício cios
seriam acusados inconscientemente cios pecados ela coletividuilr 11~ 1• o surgimento ela pcste.' 74 Contudo, nessas cidades,
Por muito tempo, as civilizações antigas procuraram ap:w.i1-111111 ti _.. dos pro~ressos da peste através da Europa, e portanto
por meio ele sacrifícios humanos a divindade encolerizacl:1. S1 t • 111,111~·ns de Judeus estiveram ligadas de alguma maneira
que, aterrorizadas pela onipresença da morte, as pop11l11~(11 hli 11tin. No entant? permanece verdade que, no Jugement
atormentadas pelas epidemias não repetiram por v:írias v111 ' 1 dr N11v11rre, Gmllaumc de Machaut situa nitidamente o
1

involuntariamente, na Europa dos séculos XIV-XVIII , essu N1llt Ih 1111111unto elas nascentes pelos israelitas antes e.lo apareci-
grenta liturgia? Essa necessidade ele abrandar a cólcrn .1, 1
' 111 peste. Para ele, a ordem dos fatos foi a seguinte: em
potências supra-humanas conjugava-se com o desrcc;;1lq111 ,1 1111 l11gnr, prodígios no céu, tremores ele terra e sobretudo
uma agressividade que a angústia fazia nascer em todo· 1(111) Ih h1~ tlc toda espécie (heresias e crimes, especialmente a
humano acometido pela epidemia. Não há nenhum reli1111 ti 1 111 elos poços pelos judeus); depois a decisão divina d e
peste que não evoque essas violentas descargas coletiva,. 11, li t•ó le~a do Soberano Juiz manifestando-se então por
Os c ulpados potenciais, sobre os quais pode voll 111 1 ,1, 111 rríve1s tormentas e horríveis tempestades: enfim, a
agressividade coletiva, são em primeiro lugar os estr:1111(1 h1 ,li\ ldn i\ corrupção cio ar pelas tormentas e tempestades
os v iajantes, os marg inais e todos aqueles que não e~1.1<1 li 1111,11'ior.'71
integrados a urna comunidade, seja porque não qucre111 1111 li I" •li• n~grn eclodi~ : n.tão em ~ma atmosfera já carregada
suas crenças - é o caso cios judeus - , seja porque foi p11 11 1 1111111s1110. De 1111c10 susp eitos de querer dizimar os
por evidentes razões, isolá-los para a periferia do IP 11p1, p111 111cio cio veneno, em seguida os judeus foram bem
como os leprosos-, seja simplesmente porque vêm d1· 11111 , 1111111• e por ve:tes muito cedo, como n a Espanha -
lugares e por esse motivo são em alguma mecl id:1 ~11-11111 • ti, tc.•r semeado o contágio por meio desses envenena-
(reencontramos então a desconfiança em relação ao 1111/1,1 1 Nu Cntnlunha, pogroms eclodiram desde 1348 em

205
Barcelona, Cervera, Tarrega, Lerida etc. Assim, em Tarrcµn, 111 flamenga da epidemia que os ac01nece.•;•, Ela foi trazida,
massacraram-se mais de trezentos deles ao grito de "lv1orcc no~ u•dita-se, pelos navios vindos dos Países Baixos. Na Lore na,
traidores!"_,;,, Tratando-se do resto da Europa e especialmc111t• Ili 1627, a peste é qualificada de "húngara" e em 1636, de "sue-
do império, o relato de Jean de Venette, em que a orde m do~ "1 lllll Toulouse, em 1630, fala-se da "peste de Nlilão".1~0 Ora,
fatos se encontra modificada em relação à realidade, forn cl'I' • 110111bardia, nessa data, o que se diz? Eis a resposta do cône-
-nos a prova de que a opinião comum viu cada vez 111.-iis 1111~ 111110 contou a história da epidemia em Busto-Arsizio: descen-
judeus os maiores responsáveis pela "morte negra": 1 ,1111 a Itália para defender em Mântua a causa do duque de
11111·s, os franceses foram de início vitoriosos. Depois as tro-
A ideia de que a morte provinha de uma infecção do 11 1 1 • l11~pcriais detiveram seu avanço. Então os inimigos - pois
das águas fez imputar aos judeus a corrupção dos poços, !1111 1111111· é partidário dos Habsburgo - imaginaram contaminar
águas e do ar. As pessoas insurgiram-se então cruelmcllll pttpulações com pão enfeitiçado. Nosso narrador de início
contra eles, a tal ponto que na Alemanha, e em outras p111 11 ttuis acreditar em semelhante delito, mas teve de render-se
tes onde habitavam judeus, numerosos milhares de jud1•11 \'hl~ncia, pois "muitas vezes foram encontrados desses pães
foram mortos, massacrados e queimados pelos cristãos,! ' 11 il1vorsos locais de nosso território. Posso atestá-lo e foi
lt 11111nha ocular disso".' 8 '
A sequência do texto merece, por outras razões, ser c i1 11d11 \1 lt ude clássica essa de nosso cônego. Em Chipre, durante
11 •111 n.cgra, os cristãos massacraram escravos muçulmanos.
Encontraram-se, diz-se, muitos maus cristãos que t:11111 111111 1 Uu~sia, em período de epidemia, culpavam-se os tártaros.
lançavam veneno nos poços, mas, para dizer a verdack-, 1111 h 1111111 forma mais benigna, no momento da peste de 1665
envenenamentos, supondo-se que tenham realmente e., 1~, 1 1 l ,,mdres, os ingleses foram unânimes em acusar os holan-
do, não podiam produzir tal catástrofe nem ating ir 111111,1 ~ 1111111 os quais a Inglaterra estava então em guerra.182 Uma
pessoas. A causa disso foi outra: talvez a vontade de 1)c111 '"~110 idêntica volta no ano seguinte no momento do grande
talvez humores corrompidos ou a má qualidade do :1 r 011 il 1 111ll0 de 1666.
terra? 11•H·ciro degrau da escalada acusadora: a identificação dos
l111iloNno próprio interior da comunidade atormentada pela
Notar-se-á o espírito crítico desse clérigo erudito. No 1111 li 1111l1111ção. Qualquer um, a partir daí, pode ser considerado
mo sentido, o pap:,i Clemente VI recriminou, em sua bul:, d1 ,, 111h11igo, e a caça aos feiticeiros e às feiticeiras escapa a todo
de julho de 1348, aqueles que .-itribuíam aos judeus a rc~pllll , 111, 1111, Milão passou por essa atroz experiência em 1630. Acre-
bilidade pela peste. Sua argumentação era esta: como é pn 1 111 ••• ver as muralhas, as portas dos edifícios públicos e das
vel, se essa acusação é fundada, que israelitas sejam vít i1 1111~ 11 1111111das de substâncias venenosas. Dizia-se que esse vene-
contágio ou que a epidemia irrompa em localidades 011d1• 111 1 11 omposto de extratos de sapos, serpentes, pus e baba de
residem judeus?';" llh 11111, l~videntemente, tal mistura era uma receita diabólica
Não podendo os judeus constituir os únicos bodes c,~phll 11 11111 por Satã a pessoas que tinham feito um pacto com ele.
rios, foi preciso, como indica Jean de Venette, procurar 111111, 11111 din, um octogenário reza ajoelhado em uma igreja;
culpados, de preferência os estrangeiros. Em 1596-9, n~ • ~1•, 1 , q11~1r sentar-se. .i\!Ias, antes de fazê-lo, limpa o banco com
nhóis do norte da península Ibérica estão convencido~ d11 111 11111, ( :•csto infeliz, que mulheres interpretam imediata-

'l/1'7
mente: e le envenena o banco! A multidão se amontoa, golpc:i11 11111•hrn em 1530 e 1545, em Lyon em 1565 ou em Milão em 1630
o velho, arrasta-o à prisão, onde é submetido à tortura. " Eu vi -••mmportava como os parisienses em setembro de 1792 quan-
esse infeliz", conta Ripamonti, "e não soube o fim de sua dolo 1 u. prussianos chegaram: elim.inavam os inimigos internos.
rosa história; mas creio que só teve a lguns momentos de vida."" 1 lt'111 l530, em Genebra, descobriu-se a conspiração urd ida
Nenhuma dúvida, em compensação, sobre o fim trágico d11 li "••~pa lhadores de peste" e que reunia, pelo que se acreditou,
comissário da Saúde, Piazza, e do barbeiro Mora, acusados prn 11•~ponsável pelo hospital dos contagiosos, sua mulher, o
mulheres de terem untado portas e muros com uma substfot'l11 ru,l(itlo e até o capelão do estabelecimento. Os conjurados,
gord urosa e amarelada. Em agosto de 1630, erigiu-se em Milsl11, h111midos a tortura, confessaram ter se entregado ao diabo,
perto da porta do T icino, uma coluna monumental, que tr:11111 1111 troca, indicou-lhes como preparar a quintessência mor-
esta inscrição redigida e m latim para m aior solenidade: 1 l•11rnm todos condenados à morte. A inda em Genebra,
td111t• n epidemia de 1545, 43 pessoas pelo menos foram jul-
Aqui, onde se estende esta praça, elevava-se outrora a loht 1•• 1 omo "espalhado res de peste", das quais 39 foram execu-
do barbeiro Giangiacomo M o ra, que, tendo conspirnd11 111• 1•:m 1567-8, foram mortos ainda treze "fomentadores" e
com G uglielmo Piazza, comissário da Saúde P ública, e r o111 1 1\ 11 pelo menos 36. Nesse ano, um médico da cidade, Jean-
outros, enquanto uma peste horrível exercia suas dcv:1s111 111111111· Sarrasin pub.licou um tratado sobre a peste no q ual
ções, por meio de ungucntos mortais espalhados po r tod11 111111~1 rnva que, nesse gênero de epidemia, a ação maléfica
os lados, precipitou muitos cidadãos para uma morte c:1·111•1 1 11v1 ncnadores e "fomentadores" era indiscutível. D urante
Foi por isso que o Senado, tendo declarado ambos ini1111w1 11111111 grande pânico provocado em G enebra por uma peste
da pátria, ordenou que, colocados sobre uma carr et:1 cl1•1•11 tlt lrd 5 - os tribunais decidiram a execução de seis "espa-
da, seriam torturados com um ferro em brasa, sua 111:10 ,li 1111 1 ~" de contágio. Em Chambéry em 1572, as patrulhas
reita cortada, seus ossos quebrados; que seriam cstcnd ld11 1111 11111 ordem de atirar nos " fomentadores". N o Faucigny,
na r oda e, após seis horas, mortos e queimados; em scµ111il 11 1, I, dnco mulheres pelo menos foram queimadas e seis
e para que não restasse nenhum traço desses homens n 11111 11, l11111ldas, sempre sob a acusação de ter espalhado a pes-
nosos, que seus bens seriam vendidos em hasta públ irn, ,,1111 \ 1111, outras pessoas foram citadas diante dos tribunais pelo
. cinzas lançadas ao rio; e, a fim de eternizar a memóri:11lt·- 1 11111 111mivo.185 Assim, não ocorreu outrora nenhuma epide-
fato, o Senado quis que esta casa, onde o crime fora p1t•p 1 ' 111 11 crença em uma quinta-coluna e em u m complô no
rado, fosse demolida, sem jamais poder ser reedifirnd11 lt11 tio~ muros. Acabo de escrever "outrora". Mas R. Baehrel
que em seulugar fosse erguida uma coluna que se ch:1 111111 1 11 1 ljlll' cm 1884, no Var, por ocasião de uma epidemia de
lnfâ111ia. Para trás então, para trás, bons cidadãos, dt· 111111 11 11 ~1· fa lava de "semeadores de cólera", de "doença inven-
que este solo maldito não vos macule com sua infi\111 111 111 11 1•1 11 icos para fazer morrer as pessoas pobres", e de
Agosto de 1630.184 1 I• ••~pcciais lançados por personagens misteriosos, intei-
lllt v1•s1idos de preto.'86 A história das mentalidades não
Essa "coluna infame" permaneceu de pé até 1778, lc111l11 ,111 1 111 lll1,1r os mesmos cortes cronológicos que a história polí-
que tal suplício não era excessivo para pessoas que haviam "11111 tl 1 , 1111/\111 ic:1.
pirado" contra a " pátria". R. Baehrel teve razão de ap1 o~1111 Ili tt 11~ semeadores voluntários da peste, não havia os
"epidemia" e "terror". Sitiada pela peste, uma populaçiio t, 111 p1•~t ffcros, subitamente tomados pela vontade de fazer

209
os outros partilharem de seu mal? Lute ro, no tratado mcm·1u li llns mentalidades, permanece a acusação vanas vezes
nado anteriormente, interroga-se sobre a questão após h:1\lt 1 Jltln contra os pest íferos, a náloga àquela outrora lançada
descrito o fato corno autêntico e analisado com muita s111i1(•1 1 lr11 os leprosos.
suas possíveis razões psicológicas: ( 111 ~cmeadores de peste eram _uma corja diabólica. E não é
" "'preender que aqui e a li tenha se acreditado na ação de
M i1s existem ainda maiores criminosos: vários, sentindo 111 l,tmasmagóricos - fadas ou fantasmas - , manipulados
les o ger me da doença, misturam-se, sem nada dizer, :1 ,1•11 1h•111ônio, e que espa lhavam a doença. No Tirol, falava-se
irmãos, como se esperassem descarregar neles o veneno q111 Ili luntasma de longas pernas e de manto verme lho que
os devora. Tomados por essa ideia, percorre m as ru:1s, p1 \'11 11 epidemia em seu rasto. Na Transilvânia e na região
netram nas casas, chegam até a beijar seus filhos 011 ,1 11 1'111111s de Ferro, esse papel era desempenhado por uma
criados na esperança de salvar-se a si mesmos. Quero 1•111 , lujnnte", misteriosa e eterna feiticeira, vel ha e gemente,
que o diabo inspira tais ações, e que é apenas ele que dt•ht _,ido preto e xale branco. Na Turquia, conhecia-se um
se deve acusar; mas disseram-me também que uma e~pt11li 1 1h1 peste que tocava suas vítimas com uma lança. Em
de desespero invejoso leva algumas vezes esses in fcli1,1•, 1 11, d11,in-se que um diabo negro de olhos brilhantes percor-
propagar assim a peste, pois não querem ser os único~ u 11 11111s e entrava nas casas.
atingidos [...]. Se o fato é verdadeiro, ignoro-o. Mas, 11111
mente, se assim é, chego a perguntar-me se nós, :1lc11ull
somos homens ou demônios.1~1• • tjllt' cm uma cidade atacada pela epidemia podia-se tem er
11111 11111 e q ualquer coisa, já que o mal permanecia miste-
Não se duvida de que comportamentos do tipo desses ,h 1111 l'Cdcr diante da medicina e das medidas de profilaxia,
c ritos por Lutero tenham r ealmente existido, ao meno~ 1·111111 jlll I tl,•fosa parecia boa. O tempo de "pestilência" via então
condutas isoladas. Mas que te nham sido frequentes é 111111 11111 .11 cm-se os charlatães e os vendedores de amulet os,
difíci l de admitir. Em compensação, é certo que a crCll\'11 Ili• ,~ ~ 1• 111tros miraculosos. Como em Londres em 1665.'"
contagiosos semeadores voluntários da peste era ampla1111111 11 l,11 ,1 1). Defoe, muitos m édicos e charlatães morreram.
difundida nas cidades acometidas pela e pidemia. D. 1)1 h ili quem se valer? Restava a medicina da religião. De
atesta que era comumente aceita pelos londrinos em IM ~ li 1 11111srnnte a Igreja, referindo-se aos episódios do Ami-
que os médico$ discutia m entre si as razões dessa prop,•11 , 1 tlltl'lllO e especialmente à história de Nínive, apresen-
per versa dos ~nfectados para infectar os outros. Os pest 11t 11 ' 1l11111id:1cles como punições desejadas pelo Altíssimo
tornavam-se semelhantes a loucos furiosos? Era a co1'1'1tp\, li 1tl11, 11:ss:1 doutrina foi por muito tempo aceita tanto
da natureza humana q ue não pode tolerar que outrem st·j,, 1, h 1, 1 111 ,·~cl:i recida da opinião quanto pela massa das pes-
quando se sofre? E m seu desespero, os contagiosos tor11a11111 11111 ,~ t·ivilizações estabeleceram espontaneamente esse
-se indiferentes a tudo, inclusive à seg urança dos 0111 roN t 11, 1,1l11111idade terrestre e cólera d ivina. O judeu-cristia-
autor do Diário acredita simplesmente que os habit:11111•\ il 11h111lnvcmou. Mas é verdade que os homens de Ig reja e
aldeias vizinhas de Londres encontravam aí um pretcxltt p 11 1111 11h•~ nrrnstavam o reforçaram de todas as maneiras.
rechaçar os fugitivos, acusando-os de ser doentes sád irn•1p1, 111111111111·os os testemunhos que exprimiram através das
curando propagar o contágio.1s• O importante para 11m, ,11-1 111'~0 re ligioso sobre a desgraça coletiva segundo o

210 2ll
qual todo mundo é culpado e não apenas alguns bodes expiat6 1111111 1.:0111 paciência [o decreto divino]", escreve Lutero, "sem
rios. Lutero, A. Paré, são Carlos Borromcu, D. Defoe, o mon 1111•1•11x,por nossa vida pelo serviço do próximo." A. Paré dá o
senhor de Belsunce, para citar aqui alguns nomes significa "110 conselho: "Se lhe apraz [a Deus] [...] golpear-nos com
tivos, são unânimes em seu diagnóstico. Uma peste ~ "11111 •~ Vllrgas, ou com algumas outras segundo seu conselho
decreto de Deus, um castigo enviado por ele" (Lutero). E "ulll 111111 ~ preciso suportá-lo pacientemente, sabendo que é tudo
dos flagelos da ira de Deus, [e] nós não podemos senão cair 1111 ti nosso proveito e regeneração".19z Em país muçulmano, o
extremo de males quando a enormidade ele nossos pecadm 1111 ~o religioso sobre as epidemias era fundamentalmente
incitou sua bondade a retirar sua mão favorável de nós e IH lN Ili h 111 insistindo contudo ainda mais nos méritos daquele
enviar tal praga" (A. Paré). Ela é "o julgamento de D eus", li 111rn•1·c do contágio. Maomé declara com efeito que, se a
~punição", escreve D. Dcfoe, que lembra o texto de Jeremi11~ h , lllll flagelo com que Deus atinge quem lhe apraz, "todo
5:9: "Não visitarei a estes, diz o Senhor, e não se vingará mi nhu 11111• 11no foge só será atingido se Deus o previu e então ele
alma de semelhante nação?". 190 11111 '1111Írtir' como aquele que morre na guerra santa". 19J
Na França, o clero retoma o mesmo raciocínio por ocasi1l11 ~• 1111nda consequência é que é preciso emendar-se e fazer
da epidemia de cólera em 1832. L. Chevalier lembra algu11111~ 1111111 l11. Abordamos aqui, pelo ângulo da peste, esse grande
dessas afirmações clericais: 1111•110 dn culpabilização das massas europeias, ao qual vol-
11111~ rnn uma obra posterior. Médicos dos corpos e das
Todos esses infelizes morrem na impenitência. Mas a cóll-1 11 I• l11Hlstin1111 sem trégua sobre o único verdadeiro remédio
do Deus de justiça vai crescendo e logo cada dia contar:í Nl'II li 1 11 ,,ontágio: "E ainda mais que o mal é grande", escreve
milhar de vítimas; o crime da destruição do arcebisp!l!hl l 1111, ''ti preciso recorrer prontamente ao remédio único e
está longe de ser expiado [são Rogue]. 1 11111• j,(r:lndes e pequenos cedo imploremos a misericórdia
Espíritos meditativos fazem observar que, por 1111111 H1 li~ por confissão e lamento de nossos delitos, com segura
exceção funesta, só Paris foi atingida no meio da Fn111~·11 1 111\110 e propósito de emendar-nos e dar glória ao nome
a cidade da Revolução, o berço das tempestades pol ÍI i1•11 1) li~ 1,..1"."" Eis agora a poção prescrita por um pregador
o centro de tantos vícios, o teatro de tantos atentados l/ 11 h 11111 Cllll l613:
Quotidienne].
Despercebido [o cólera], pairava nos ares e, detendo ~' l11111111lr1uncnte jejua e ora; depois, toma um quarto de ar-
sobre o foco ,cle corrupção, lança-se como um abutre soli11 1" 111hmcnto de Nínive, mistura aí dois grandes punhados
a cidade da~desordem, surpreende-a em meio a seus pn111 1 li 1111 snngue de Cristo com toda a esperança e a caridade
res e ali cei'fa de preferência esses homens sem freio q111• •• 1 111111 lls capaz e deita o todo no recipiente de uma cons-
entregam aos excessos das paixões e dos gozos brutai~ 1/ , 1 111 hl purificada. Em seguida, faz ferver no fogo do ani.or
Gazette d~uvergne] .191 1111111111111 n negra espuma das paixões mundanas cheire mal
11 lt 1111Nl~mago - o que julgarás pelos olhos da fé [...). 195
Duas consequências decorrem dessa doutrina const:111111
primeira é que é preciso aceitar com docilidade essa puni~·1\o, 111111 IIN e protestantes falavam portanto a mesma lingua-
não ter medo de morrer da peste. Se se tem responsabilid111h l• ~p11lto da peste e aconselhavam sob formas diversas a
fugir é um pecado e ficar, um ato meritório. "DevcmoN• ll lt 1,1p UI ica de arrependimento, a que uma boa parte das

212 213
populações atingidas pela epidemia esforçava-se em recorrer. 1) 11111 •~ outro, e fazendo não sei quantas preces para implorar
Defoe observa: "Nada era mais estranho de ver que a cor:l!(l'lll 111luu1 que detenha a peste e as chuvas incessantes".2011
com que o povo se dirigia ao ofício público de D eus, no pró pl'l11 li 11110-se revelado insuficiente essa imploração de 2 ele
tempo em que as pessoas temiam sair de casa por qualque r 01111 11 l 11, 111ut11neçou-se no dia 20 e em todas as quartas-feiras
razão".196 E le diz ainda que os londrinos davam prova de um "'l.1•111 111111•~ 11t6 o fim da calamidade, ficando então proibido qual-
extraordinário nos exercícios religiosos" e que os fiéis vinh:111111 • 11111{\rcio, como nos dias ele festa.
11
toda hora às igrejas, quer o ministro ali oficiasse ou não.1• l•'.111 l 111 pnís católico, as autoridades eram obrigadas igualrnen-
.iVIarselha, em 1720, os padres que permaneceram na cidade c1·:1111 111 pcwíodo de contágio, a organizar manifestações públicas
''assediados" pelos fiéis. Não eram mais, testemunha um t ri11I 1111111 o estilo próprio da confissão romana: todas iniciativas
tário, "do que confissões mescladas de gemidos e de lágri11nt Ih 11~ pelas quais uma comunidade tranquilizava a si mesma
amargas".1'" O cólera de 1832 provocou igualmente em Paris, 11111 111h ndo os braços para o Todo-Poderoso e, a esse respeito,
L illc, em Marselha ou em Londres a mesma recrudcscênt lit Mpl111 dns implorações católicas era mais fornida que a dos
(provisória) de piedade: "A epidemia que devasta Marsclhu" 1,111tcs. Daí os votos pronunciados por uma cidade inteira
escrevia La Gazette, "não foz senão tornar mais vivo o zelo 1·1•11 li111 lndn Salute em Veneza e vários calvários bretões, espe-
gioso de seus habitantes. Todas as vezes que o santo vi:ít irn 1 1111111• cm P lougastel-Daoulas, 201 são a consequência ele tais
levado na noite, uma multidão de cidadãos se vê no dcvc.:t' 1h 11, ~11~, nssim como ~s "colunas de peste" que juncam ainda
1
dirigir-se imediatamente à igreja para acompanhá-lo". "' l 1111111h11 do sul, a Austria e a Crmícia, sendo a de Viena
Entretanto, as iniciativas individuais não bastavam. S1•111h, 1,, 11111is célebre. Seus fostes são muitas vezes ornados de
uma cidade inteira considerada culpada, sentia-se a necessid111h 11 ~ 11 l1•vos nrredondaclos simbolizando os bubões. Só a Áus-
ele implorações coletivas e de penitências públicas cuja 111111111 1111111 11111is de duzentas dessas colunas. Ao mesmo registro
midade e o aspecto, se ouso dizer, quantitativo, poderiam t II ll't 1111h 1IN <:omunitárias ligavam-se os gestos solenes de consa-
impressionar o Altíssimo. U ma estampa inglesa do século \\ li 11, 1111 como o de Belsunce consagrando Marselha ao
mostra a multidão reunida, em tempo de epidemia, dia11t1• 11 11111 :lll'nçiio em 1~ de novembro ele 1720, as peregrinações
catedral Saint Paul para escutar um sermão. A legenda ill 111111li'ios dos santos protetores e, enfim, grandiosas pro-
"Senhor, tende piedade de nós. Prantos, jejum e prece~. 11 111 l•~NIIS podiam situar-se em diferentes momentos em
1625, o Parlamento decidiu um jejum solene para 2 de j1ilh11 11 11 1 piclcmia: antes, ele maneira a afastar o flagelo que
Nesse dia, o rei, QS lordes e os juízes ouviram dois sermt>1·11 1111
1 1 IIIIN proximidades; depois, corno ação de graças; ou
Westminster. l ~.m· conde, um bispo e um barão anornv:1 111 11
1111110 cm Marselha em 1720, quando a epidemia já
nomes dos ausentes. Os membros das comunas, por seu huh
11 ,1 11 çlcclinar, último esforço ele prece antes da chegada
ouviram três sermões em Sainte-.i.Vfargaret's. O primeiro d111 1111
111111ili11nl, quando a calamidade estava no auge. 20' Nesse
três horas, cada um dos dois outros duas horas. No mcs11111 tll 1
, 1 ,11m, n procissão era reclamada com insistência pela
fizeram-se dois sermões em cada paróquia de Londres. ( ) 11 1
dente toscano espantava-se com alguma ironia com a ma~•,11 il,
ld~ l11 ~ hie rarquia reticente: o que se pode verificar em
1111 l(dO. O cardeal- arcebispo Feclerigo Borromeu temia
preces assim acumuladas. As pessoas, nessa celebração de.: j11ji111
1, 1111 os r iscos de contágio que podiam nascer de um
observada em todas as paróquias da capital, "mantêm ,,1 li
igreja durante todo o dia, cantando salmos, escutando st·i 11111 1 ,111111111mc nto, os excessos supersticiosos da multidão e,

714
215
enfim, a ocasião que essa liturgia de massa podia fornecer ~ Murnlha e exorcismo, a procissão contra a peste liga-se a
ação dos envenenadores. 103 Mas precisou ceder ao pedido dn 111- 1111tito antigos de circum-ambulação destinados a proteger
municipalidade e ao voto público. Em 11 de junho, o relidrio 1111 mlccividade contra forças e espíritos maléficos. Nos sécu-
de seu tio, são Carlos, saiu às ruas de Milão. 1( \' li e XVIII, em várias cidades e aldeias da baixa Lusácia, da
lf1h11 dn Sérvia, da Transilvânia, da Moldávia, da Romênia, as
-1111~ defendiam-se contra a epidemia fazendo moças nuas
Tais procissões impressionam por vários aspectos. Em pi'! 1•11111111, vezes também rapazes nus) cavarem um sulco em
meiro lugar, como os jejuns decretados em países protestantc~i 1111 cln localidade, ou dançarem percorrendo esse círculo
constituem cerimônias penitenciais: uma população intci11l Mh II que afastava a ofensiva da desgraça.107 O itinerário pro-
confessa suas faltas e implora perdão. O clero canaliza e c<HI li cln procissão é comparável ainda às "cinturas de cera"
trola manifestações expiatórias que, no tempo da peste ncg1•111 rt11 ld11s à Virgem ou aos santos antipestilentos por munici-
tinham dado lugar às histéricas e sangrentas vagueações d11~ hh11lnN cm apuros. Em 1384, os cônsules de Montpellier
flagelantes. Certamente, as procissões dos séculos XVI-XVIII 11•111 n Notre-Dame-des-Tables um círio que faz a volta
comportam brztt11ti [flagelantes], mas que se integram no i1111• 111111 ,Ilhas da cidade. Amiens faz a mesma oferenda em 1418,
rior de um cortejo ordenado e hierarquizado. Contudo, o cllnl llplt HllC cm 1453, Louviers em 1468 e 1472. Chalon-sur-
ter penitencial claramente afirmado oculta um outro, mc1111 111 11111 1494 (em honra de são Vicente), Nantes em 1490,
evidente à primeira vista: o aspecto do exorcismo. Não é p111 11• 11111 1501 (em honra de são Sebastião), Mantes (em 1601)
acaso que o desfile sacro de 1630 na capital lombarda passa 11 p111 h11111 ll de são Roque.'º"
todos os bairros da cidade" e se detém em cada encruzilh111h1 H11111ltlio para toda a cidade, a procissão é uma súplica de
Trata-se de beneficiar todos os recantos da cidade com os d hl li I hh1de. Só são espectadores forçados aqueles que, blo-
vios protetores que emanam do corpo do santo, ele que 55 111111 111• 11111 casa, olham por suas janelas fechadas. Todos os
antes se consumira generosamente na cidade pestífer.1. Nn11 , t'lérigos e leigos, magistrados e simples cidadãos,
distante de Milão, em Busto-Arsizio, houve uma prociN~íl11 lm11~I' confrades de todos os hábitos e de todos os guiões,
desta vez em honra da Virgem, igualmente no ápice do co11l1I 1111'111ima dos habitantes - participam da liturgia, oram,
gio, e o cronista nos diz que "por voltas e desvios" ela co111111 11111, l'il ntam, arrependem-se e gemem. Como é preciso
nou "muito minuciosamente" a localidade, dirigindo-se 111111 1111 lodns as ruas e a multidão é enorme, a procissão dura
bém para fora dos muros, onde se encontravam "as c:iln11111 1 h IH()O, Mas, independentemente dessas razões concre-
dos contagiosos~io-i Assim, o rito só tem sentido se pcrsc~\11 1, 111 11 l,m que uma cerimônia religiosa seja longa. Pensemos
mal na totalidàde do local habitado. Esse papel conju rn1 t'l1 I• 1111• ili• fc espanhóis, que duravam todo um dia, e lembre·-
destaca-se ainda mais com a ajuda de comparações. Em 1\ h11 111 q 1111 eram os dias de jejum inglês em tempo de peste,
selha, em 16 de novembro de 1720, o bispo lança do ali o ,1, 111111111• do sermão ininterrupto. Uma súplica em tal peri-
campanário dos Accoules, na direção dos quatro p onto~ 1111 1 111 p11Nsibilidade de ser escutada pelo Céu se se prolonga
<leais, os exorcismos litúrgicos contra a peste. 1º' Em Scvlllt 1111 tllm\l C para forçar a atenção e a compaixão do Juiz
em 1801, por ocasião de uma epidemia de febre amarcl:1, 11111 1 11lo. 1~, para que ele veja e ouça melhor o lamentável
tra-se à multidão, do alto da Giralda, um fragmento cb ""'ti, 1h1- humanos, é preciso o máximo de círios e luzes, as
deira cruz que já detivera a peste de 1649.106 1h •- 1lngclantes e uma espécie de prece 11011-stop. Em sua
216 217
crô nica da epidemia de 1630, o cônego de Busto-Arsizio, q ,11111 ~11 ll11minou-se e o carcereiro descobriu perto de seu co rpo
do relata a grande procissão cm honra da V irgem , ins1~1t• 11, e t 1\'tlo traçada por um anjo: "eris in pcstis pntronns".m Mais
fato de que se cantaram "continuamente" as litanias de M :11 111 1 , 1IN rulíquias de Roque foram transladadas de Montpellier
de que, do começo ao fim do rito, os sinos das ig rejas ~0.11 11 • \ 11 11c:r.:1; desde então o prestígio do santo cresceu rapida-
de maneira inincerrupt,1.:09 Eis-nos no co ração de um:i rt·h1tl 1 111 , 11 po nto de ultrapassar o de são Sebastião. A iconografia
quancitiitiva de que descobrimos aqui, c m situações-li 111i1t , 1 111111011 o ciclo inteiro de sua vicia - como na igreja d; con-
motivações mais profundas. 111 d,• sito Roque em Lisboa, na Scuola San Rocco de Veneza
Em um perigo cão urgente quanto o da peste, era p1r 11 1, pint uras célebres de Tintoretto) e na ig reja ele são
garantir todas as possibi lidades a favor e portanto abr:rnd li 111111,•o ele Nuremberg - , ora ilustrou certos episódios de
Todo-Po deroso encole rizado recorrendo às preces do~ 111111 li 11d11. A representação mais estereotipada, repetida em
cessores mais qualificados. As pessoas se persuadiam d1· 1111 h111 , ele exemplares - prova da ubiquidade de um medo - ,
Maria jamais participa da cólera divina e de que só inl('l'I I il 111111 o com seu bastão e seu cachorro, apontando com 0
para abrandar a justiç a rigorosa de seu Filho. O Morti/11g11• ti 1 11 li11hiio de sua coxa. A são Sebastião e a são Roque 0
C. Reittcr suplica a ela nestes termos, em 1508: "/\1111• 111 11 1 li inquietude populares acrescentaram no total b~m
abandonados teu refúgio, ó Mãe! Nós nos escondemo~ 11 ,111 1 l11q11unta santos antipestilentos de menor envergadura,

quilos sob tuas asas, fora de alcance da negra pes te e dt• ~• 1, 1111 li<•tdarme nte venerados aqui ou ali. No encanto, são
raios envenenados"." º A V irgem do manto que prot t'H' ti 111 llurro meu . alcançou um renome considerável, que 0
peste fig urou a partir do século XIV e m pinturas it:il i11 111 1111 pouco abaixo dos protetores maiores. Seu devotame nto
francesas, alemãs etc. - um tema que se perpetuou 1111 1111 ,, l 1piclemia de Milão em 1575 e o fato de seu culto te r
século XVII. Mas ele logo se enriqueceu de acrésci111m , I", 111111 ,ijndo pelo papado e pelos jesuítas explicam as invo-
muitas vezes se represe ntou Maria reinando em glóri:1 1•1111 que• lhe dirigiram os catól icos acometidos pela peste.
santos antipestilentos e recebendo por seu inte rmédio .,~ I" 11 1•11tnnto, preces, missas, votos, jejuns e procissões não

ces dos doentes. 111111 1udo. Se a epidemia continuava igualmente virulenta


O s santos antipestilentos mais frequentemente invrn 111 1111N~e instalavam doravante em uma espécie de tor por:
eram são Sebastião e são Roque. As duas fontes hagio1;111ll11 1 1,111111vnm precauções, negligenciavam seu aspecto: era a

que fundiram a vicia e a lenda deste (t 1327?) contam que l!11q11 11,, do nhatimento. De maneira significativa, D. Defoe,
nascido em Montpellier e seguindo depois para a lt:í li:1, 1111 1 h 1 ,,~~inalado "a coragem com que o povo se d irig ia ao
atingido pela e;ste e expulso de Piacenza. Refugio u-se l 'II I 1111 p1llilwo de D eus", acrescenta imediatamente de pois: "Falo
cabana n as redondezas da cidade. O cão de caça de u111 •H•llh 1 111p11~ nncer io res ao momento do desespero".m E então a
da vizinhança co meçou a roubar pão da mão e da mcs:1 dt 1111,1 1ll•clinava bruscamente, tomava impulso novamente,
dono, que ia levar regularmente ao doente. Intrigado, o drn 1 , 111·,llmava_. Aí explodiam os Te Dem11, surg ia a alegria
chamado Gottardo, seguiu um dia o cão e comprccndc11 11111 1 1 ~e m:in1festava, antes mesmo que fosse sensato, o
nobra. Ele então alimentou Roque até sua cura .. E 111 11 111 1 1 il11~ <"nsamentos que todos os cronistas da peste anota-
santo converteu Gottardo, que se tornou eremita. Rnq111 1111 ,tprís outros. Em Marselha, desde novembro de 1720,
volta a Montpellier, não foi reconhecido pelos seus. · 1, 1111, 1 1111 v,wdndcira "mania": "Não ficamos menos surpresos ,
por um espião, foi posto na prisão, onde morreu. E ntfo 111 ,1 1, t,1111po, de ver uma quantidade de casamentos no povo
218 2 19
[...). O furor de casar-se era tão grande que um dos casados t~l_i_c •I. MEDO E SEDIÇÕES (I)
não tivera a doença do tempo desposava muito bem sem d d t·
culdade o outro cujo bubão mal se fechara; assim, viam-si•
213
muitos casamentos empestados".
Quase quatro séculos antes, Jean de Venette escrevera:
1,

Quando a epidemia, a pestilência e a mortalidade tinh11111 1 ! >IIJ ~TIVOS, Lil\llITES E MÉTODOS


cessado, os homens e as mulheres que restavam casavam-NI I1\ 1NVESTIGAÇÃO
sucessivamente. As mulheres sobreviventes tiveram um 1111
mero extraordinário de filhos [...]. Ai!, dessa renovação d11 M111tns vezes menos mortais do que as epidemias, porém
mundo, o mundo não saiu melhorado. Os homens foram d1• lrnquontes, as sedições de toda natureza marcavam com
pois ainda mais cúpidos e avaros, pois desejavam possuir lw111 Ili 1•lolô11cia os tempos fortes de uma inquietude coletiva
11111• ns explosões, permanecia silenciosa, até mesmo sub-
mais do que antes; tornados mais cúpidos, perdiam o rcpo11"11
111 ,1 ' 1<, memos a Aquitânia em suas mais amplas dimen-
nas disputas, nos ardis, nas querelas e nos processos. m
\ 11•~ Marie Bercé ali enumera, entre 1590 e 1715, de 450
Tinha-se esquecido o medo; mas por quanto tempo? nh,111111s revoltas populares, esclarecendo que entende por
111111 li formação de uma tropa armada que reúne em seu
JIIII Ili lpnntes vindos de várias comunidades de hábitat e
111,11116111 como exército por mais de um dia.' O século
fl 1111 (1~ - excluída a Revolução de 1789-99 - foi mais
N11 llntnnto, Daniel Mornet, compondo uma lista -
Ih •~11 i1tcompleta - das rebeliões acontecidas na França
1 l 7H7, chega sem esforço a uma centena/ Quanto a
U1111l\ identifica 275 delas no campo inglês entre 1735
l1111h• liC então falar, na civilização da Europa pré-in-
1 111111 11 condição ele não tomar a expressão ao pé da
1111111 "t•otidianidade da revolta".>
1111h1 que se segue é, como o de G. Rudé, um enfoque
11
1111 ,1 11 mu ltidão na história", mas com um objetivo
111qrn1l11 dos historiadores que têm recentemente tra-
11111 1111sc tema. Não voltaremos fundamentalmente
1111 111111 rovertido da luta das classes nas rebeliões e
111111 Ol'II. Não levantaremos a questão de saber se a
11 pi oporcional à distância social entre os rebeldes e
~ 1 h,~ Nffo descreveremos pura e simplesmente os
l11h 111 ln".• l•:m compensação, a pergunta feita neste

220 221
capítulo e no seguinte é esta: que papel desempenhava o 1rn•1h, 111 Ili~ salvo breves confrontos com o vigia. No entanto as
nas sedições da época pré-industrial? Respondendo ao v1111, tlilndils, quando se recompuseram, reagiram severamente.1
outrora expresso por G . Lefebvre,S retomando com 11m1 1 t \ l'Ontcstações c~nscientes de si m esm as é preciso opor,
esforços e, graças aos estudos recen tes, os trabalhos de C;, 1 • l'I•· 1•rn Lyon no seculo XVIII, três rebel iões amplamente
Bon," tentei aqui, fora de qualquer sistema preconcebid11, 11111 111111cns, a chamada "dos açougueiros" em 1714 a bre ,
estudo comparativo dos temores de antigamente à medida 1111• 111 llht 1" r~beliao ·- ' , 'e
do colégio de medicina" em 1768, e O ata-
conduziam à sedição. I essa ótica, deixei de lado, como r:111,_ i,~l111rre1ras de ~lfândega em 1789. Nesses três casos, uma
pouco repr esentativos da época estudada, os movi11w111 1 1h11 que se reuntu sem o bjetivos precisos, acolhe rumores,
maduramente premeditados, org anizados e conduzidos Sc."j-11111 11111 11 os! ataca pessoa~, pilha e saqueia. Tal era O compor-
do uma estratégia elaborada. E m compensação, cntr:1111 ,1 11111 hnlmual das n~ultidões em cólera e é ele que nos reterá,
pleno direito no inte rior cio espaço que nos propomos csl'hu, 11111•do estava muito mais presente aí do que na ação refl e-
cer as revoltas po pulares tais corno as definiu Yves- M1111 111 111lilrfrios da seda.
Bercé, as "fíirias tumultuá rias" de to das as orde ns, e t:1111h11, 11!~1 ln\·iio entre os doi_s tipos de contestação coletiva pode
as contrassocied ad es agressivas - tal corno a de MünSH't 111 11111 ,11111 no estudo das )Ornadas tnígicas que marcaram na
1535 - , cujas am bições e ações eram t ão utó picas q111· 11 1 " puríoclo 1789-99. Em 1789, o ataque da manufatura
tinham nenhuma possibilidade de conduzir a uma tom:Hht il 1111111, 11 _comada da Bastilha, o Grande Medo (que foi a
poder um pouco duradoura. Portanto nos p renderemos ,nht 11111,11w111 de uma gra nde va riedade de alertas locais), a
tudo às explosões súbitas, às violências excessivas, às 11topl h~ 11111·1.· Versalhes para reconduzir o rei; em 1792, os mas-
sa ng rentas e às rápidas debandadas, tendo podido 11 11111 cl, ~•1W1~1bro - alguns movimentos que foram essencial-
outras, con tudo, inscrever-se como uma sequência p:1 ri II ui l111p11l~1vos, tradicionais em suas motivações e em seu
no filme de ações mais coerentes de oposição: assim , os t 1111 1111,11, desprovidos de programação racio nal, desenvol-
portamcntos aberrantes dos quiliastas da Boêmia no intc11111 ti ' 111111 11 lmente, extinguindo-se com rapidez e que não
campo taborita em 1419. Mas tornamos a dizer que es~:1~ 11 1 1111 o encargo do futuro em um plano d e luta coerent e.

rências oposicionais eram raras outrora. 111111 IINll\'iio, as insurreições de 10 de agosto de 1792 e de
1
D uas séries de exemplos farão compreender mclbrn o II 111111 ,de junho_d_e 1793 foram organizadas e enquadra-
tério ele seleção que mantivem os. Em Lyon, no século ~\ li i II divisões pans1enses decididas a livrar-se sucessiva-
vê-se nascer úma con testação social de tipo moderno. <h 111 1111 t 1•1 l' cios girondinos. Esta análise revela o divórcio
rários da sella não se revoltam nos tempos de penúria 1111 11111 111, l'lll todo o decorrer da Revolução Francesa e a
1
desemprego. Seus movimentos organizados, particul:111111 1 ,1, n111luios e de interferências mo mentâ neas, o povo
em 1744 e 1786, ocorrem em períodos de trabalho assq~111 11!11,11111 e rural, d?s burgueses de todos os níveis que
e de relativa prosperidade, durante os quais sua subsis1ê11rl11 1 I' 111 Ido cios movunentos de multidões. D e um lado
de suas famí lias não estão ameaçadas. Ora contra um 1q 111 1 1 1
1 irracional, o mágico, os pavores mais diversos,~
me nto que os oprime, o ra para que os comerciantes não 11•11h l 1 1th11lt• de ouro, a veneração (logo abandonad a) pela
a liberdade de impor seus preços aos mestres por t:111'111 111111111111:1" promovid a à catego ria d e estátua abençoa-
operários ela seda se organizam, se reúnem, decidem :1 ~I 11il11dd11 pelas ruas como outrora o relicár io de santa
Não cometem nem pilhagem nem incêndio, <e: não h:1 11111 1 tl11 outro lado, projetos políticos, o senso tático, 0

223
espírito de organização. A clivagem entre esses dois universo- rn11va mais evidente, os estudantes exigiram a supressão dos
parece ter passado pela propriedade privada. Tudo se dá co11111 llllllrsos e da seleção, um controle contínuo dos conhecimen-
se a posse de um mínimo de segurança econômica houvcNNt Ulll substituição à "loteria" do exame terminal, o uso das
sido a condição necessária de uma racionalização efetiva du 11111t;ões durante as provas escritas, a possibilidade de traba-
11 até de preparar dissertações - em equipe (o que sup1·i-
conduta política.8
Uma investigação histórica sobre o papel do medo nas sctll lrl11 n apreensão individual). Quiseram impor a seus professo-
'lllC os apoiassem mais, que ficassem mais perto deles, que
ções de outrora encontra forçosamente o debate biológico q111
opõe, a respeito da agressividade humana, aqueles que a cn•11111 1111111nt ivessem entre docentes e discentes a barreira do curso
~l•o ral. Sentindo-se malpreparados para a vida ativa e para
inata àqueles que a consideram adquirida. Existe, como aÍi l'lllll
1 novações que ela exige então da maioria de nossos contem-
K. Lorenz, um instinto que combate no cérebro, ou então, 1111
rR1111os, eles desejaram que se lhes ensinasse a aprender.
contrário, o ideal bíblico do lobo comendo ao lado do cord11l1 11
11111 1 na época, declararam desejar a cogestão das universida-
só é impedido de realizar-se por "maus hábitos" e frustr:iç,w,
111111;11s ao que pensavam poder bloquear os mecanismos de
O historiador não é biólogo e não resolverá por meio 1h
\1l11, ltssas reivindicações eram as da maioria dos estudan-
suas exclusivas forças um problema talvez mal aprescn1 :11111 1
1111•~1110 daqueles que eram pouco politizados: tratava-se de
que, de qualquer maneira, ultrapassa seu campo de invcsl 11411 11 ~posta a uma inquietude que não era sem fundamentos e
ção. Em compensação, ele pode trazer sua contribui~·ilo 1111 •• 1111 pais compartilhavam amplamente.
debate e mostrar, com dossiês à mão, que a maior p:irtc 1h1 M 11,oj 11111 outro medo mais difuso, menos concretamente
sedições na Europa dos séculos x1v-xvm eram reações d1•l111 -~11 (depois, ganhou mais e mais consistência) acrescenta-
sivas motivadas pelo medo de um perigo real, ou parcial 11111111, 1111 precedente. Foram os jovens, no mundo inteiro, que
imaginário, ou então totalmente ilusório (mas, certame111 c, lllh t ,1111 1 cm primeiro lugar, o grito de alarme diante dos peri-
sentido como tal). As revoltas, variáveis em duração e cm :11111111 ilo materialismo inumano do crescimento pelo cresci-
tude, constituíam então respostas tranquilizadoras a sit 1111~/ll 111 Mnis interessados do que os adultos no que seria o
angustiantes. Tal análise constitui evidentemente um 1110th 1 11111 1111 humanidade amanhã e depois de amanhã, mostra-
parcialmente transponível no tempo e no espaço.
Com efeito, o movimento estudantil que abalou a ~h 11111
'\llt 11uss:i ~ivi~iz~ç~o desvia-se d? caminho, que técnica e
,olt• 11ilo sao smommos, que as cidades se tornam inabitá-
em 1968 pode, parece-me, ser explicado pela soma dt• 1h11 11111· 11 p()luição ameaça a Terra de asfixia, que o excesso de
medos: um, conjuntural, o outro, ao mesmo tempo 111e1111,1 /111 11,,1~1lo e de tecnocracia constitui uma opressão invasora.
so e mais profundo. O primeiro se relacionava com o l 111111 1 ,, l11q11ictação pelas perspectivas e pelo futuro próximo,
imediato: com efetivos crescentes nas universidades, o 11111111, 111,w111n-se um medo global e uma interrogação legítima
dos excluídos por ocasião dos exames e dos concursos s(i 1111111 11 1111 11 ro da humanidade. Na França de 1968, as duas

aumentar. Não foi por acaso que a chama se produ;,,iu ~~ \1 111- 1h• ,•onsciência, geradoras de pânico e de recusa, prati-
peras do encerramento do ano universitário. Cada w 1 111 lh , 11 deram ao mesmo tempo.
numerosos eram aqueles que se davam conta de que ji1111 ,, 1 11pcnas por suas causas, mas também por seu desen-

poderiam ter acesso às carreiras com que haviam s1111h111 111• 11 1•11idosa contestação de maio de 1968 esclarece de
Tomados de pânico diante dessa perspectiva que a c:1d11 ill ttl 11111°ontiva9 as sedições de outrora, tal como logo as

225
224
111 li1hricante de móveis da localidade, cuja empresa tivera um
analisaremos. Encontram-se com efeito como denominadon;N
1111111 desenvolvimento, foi acusado pela opinião pública de
comuns a estas e àquelas a violência e a festa - uma e_ oull'II
111111k•1: d~oga nos pés das mesas e cadeiras que fabricava. Os
aproveitando-se de uma relativa vacância de poder-:--, o '.c~n.o
111 IIN ,linutaram-lhe
•, o crédito. , a. clientela
_ , voltoti - Ihe as costas,
clasmo, a desforra dos silenciosos, a proliferação do_ 1111agm:1 no,
1111 mccdores esperaram mais mformações antes de abastecê-
a explosão súbita que surpreende todo mundo, os, ªJ_untamcnlo~
~• 1 li, 120 empregados da fübrica precisaram descer à rua para
de amplitude imprevisível alguns dias antes, ª. '.ap1da desa~_l'l'
111 , tnr contra um rumor que, por suas consequências, amea-
gação de uma massa logo fatigada e desmobilizada e, c~111111,
i 11~ de desempregoY
após esgotamento de uma curta epopeia, um rasto de 1111~0 1111
O \ 1111,llise _s?ciológica conduzida por Edgar Morin e sua
memória coletiva e um medo duradouro nas pessoas bem s1~1111
1111111 11 ()l'Oposito dos acontecimentos de Orleans em 1969 -
, O "terror" de 1968 para retomar em um de seus senudo~ . d'fº nao
d as. , . A • d " 11 11li1xnr 111 i e~ente o historiador dos rumores de outrora.
de outrora um termo que era muitas vezes smontmo e co11111
1 111111orc~ e sedições estavam quase sempre ligados; e quem
ção" popular, constituiu portanto a retomada de ~m comp~>1,'III
111111111' diz me~o: Edgard lVIorin mostrou que um rumor
mento de multidão que vai ao encontro, para alem das t:H 11'1l
operárias e da estratégia dos revoluci_onários metódicos, 1li1

l 111111 passa fma camada emersa de um mito que não é
11111 ,d, nem 1solado, nem acidental"; que é oriundo das pro-
condutas sediciosas dos homens de antigamente. .
Devemos falar então de "Idade Média moderna" e d111 1
li ,,,~ de um subsolo inconsciente; que, uma vez lançado,
10 1111 t li"~c. co1~0 uma força "selvagem" capaz de propagação
que a modernidade secreta novos arcaís~1~s? Não é t111t1•~ 11
h 1,1111 1·. Suscitando ao mesmo tempo atração e repuJs:- J
revelação de que a racionalidade - superficial - d_e nossa dvl ·r· ao, e e
1 11 Y111·1·1ca~ã~ dos ~atos, alimenta-se de tudo, produz
\ização camuflou, mas não destruiu, reflexos colet~vos qul' 11111
t,1~1•~ c~n multiplas direções, faz-se acompanhar de pro-
esperam senão as ocasiões propícias para se manifestar llll\'11
lll.11t1ll'1cos, atravessa as barreiras de idade, de classes so-
mente? O que é provado pelo estudo dos rumores q'.,c rn11tl
nuam a circular um pouco em toda parte em nossas c1d:1cl1·N,h
il, Nl'XO, s~n_do acolhido contudo com particular favor
11 111pos ÍCrnJ!1mos. Passando do estatuto de "diz-se" ao de
século xx. Nesse domínio também, que é vizinho do prcn·d1 li
ti, 11111mor_e uma acusação que denuncia culpados acusa-
te, pode ser útil remontar do present~ ao passad?. .
• 1111 11'~ ocl_,o~os. No final do ciclo, contrariado por diver-
Em 1946, a colônia japonesa das ,lhas Havai_ acre~llotl Ili
111 ' ,~Ot•s, ~liss1pa-se em um bulício de minirrumores e de
memente durante quase um ano que os amencanos l111vh111
1111111~ dur,vados e subterrâneos. Nem por isso está morto.
perdido a guei;;ra na Ásia e que o governo dos Estados Uulih
11 11h 1 11111·11 n son:b~·a, espera uma nova ocasião para subir à
se esforçava pol· todos os meios em camuflar a :erdadc. l l
Ih li , ~,• m.:cessano sob u rna outra máscaraY
de 1959 nutnerosas cidades da França, em particular 01'11•1111
111 1, l l'lÚll série de investigações conduzidas sobre reali-
foram ; palco de rumores insi~t:ntes d!ri_gidos contra pnip11
11111 111porâneas ou 1:elativamente recentes pode, por sua
tários de magazines de vestuano fernmmo. Esses m:1µ111111
111 li IIOSSC) conhecimento das violências coletivas de
teriam servido de antecâmara ao tráfico de mulheres \11·11111
l 1,1t11••w do estudo dos milenarismos dos séculos x1x e
sendo que as pessoas visadas por esses boatos eram no 111111 ti
111 11lu~ pela espera de um "grande dia" e muitas vezes
vezes judeus instalados recentemente. Em D_ol-_dc-_Bn •l111 t
11h uh,~, como outrora, de uma fé messiânica em um
em 1975 a detenção de um aprendiz de cabele1re1ro 1111plil ·
1(111 l11111n11r:1ria uma comunidade feliz, se possível no
em um ~aso de narcótico logo engendrou um delírio r11h li

'f
1,I 726
227
centro de uma "terra sem m al".14 Esses movimentos podc111 "' 1 , lloiro a desagregação social grassa há muito tempo em
simplesmente refor madores ou verdadeiramente revolucio111I 11 11ilêmico.'6 Pensemos ainda a seita criada nos Estados
rios e, portanto, conter cargas desiguais de agressivid11d1 .. por Father Divine após a crise de 1929 e que continua
podem provir de desequilíbrios surgidos do interior em 11111 l 1, f 11,is do líder negro trazem a este "seu dinheiro, seus
sociedade dada ou de uma desorganização social provocad:, pt11 •-• llllllS pensamentos e seu amor". Em troca, nas residên-
fator es externos; podem recrutar adeptos em todos os 11fv11 U " 111l11os" onde mo ram, são alimentados e vestidos gra-
sociais - é o caso dos milenarismos moderados - ou ser <0111 0
1 1111•, ou quase. Nesses paraísos terrestres, Father D ivine
postos apenas de e lementos saídos da camada socia I in fcrirn I•• ,h lc.ir os jornais, de ouvir rádio e de ver televisãoY O
"classe pária" de que falava Max Weber). r em por isso dl·1,1111, 1 t11l1'inl da seita se explica pela busca de uma segurança
de revelar denominadores psicológicos comuns. 11111 1c111po econômica e psicológica, em um momento
Quando D avid Lazzaretti, nos anos 1870, criou seu 1111111 111 l'onsequências da crise de 1929 perturbavam a exis-
rnento messiânico e suas comunidades agrícolas nos campo~ 1'1 ti, 11111i1ns pessoas de condição modesta. Se a comunida-
sul da Toscana, os camponeses dessa região - em geral pl''IIII 111 p111·tl11ra nos Estados Unidos é porque o êxodo dos
nos proprietários - estavam traumatizados por toda espfrh 11 11,11 ,, ns cidades e o dos negros do sul para o norte do
inovações que perturbavam um equilíbrio tradicional. /\ 1111111, 1111111111m a alimentar, nas pessoas mais traumat izadas
de italiana realizada havia pouco significava para eles um:1 1111 tlr~locamentos, a necessidade de refugiar-se no inte-
rede de comunicações, impostos diferentes daqueles do pn~ 1 1111, 111 urns de acolhida protetoras e ao mesmo tempo
do, uma comercialização até ali desconhecida dos prod1111 111 11•lnçiio a uma sociedade que as abandonou. Assim,
agrícolas. As más colheitas ocorridas nesse co ntexto acah11h111 lu ~•• 0 111 comunidades fortemente organizadas, elas se
de criar a desordem e a desorganização das relações srn l 11 1 1 11111 Deus que as "livrará da opressão dos dominado-
Reagindo contra essa situação, L azzaretti formou , sob o 111111, 111 ,11Mrcg:1ção dos segr egadores".
de Sociedade das Famílias Cristãs, comunidades rurais 1111111 111111111innmentos antropológicos mais sugestivos sobre
estruturadas. Mas ele se tornou cada vez mais agressivo r, 1~1 l11111os de outrora nos vêm sem dúvida dos estudos
relação ao E stado italiano e à I greja oficial. Passando prn· "' 1 111111· o culto melanésio do cm:go'~. A implancação polí-
rei inspirado que inauguraria a última era do mund<1, p,111° 1110111kn dos europeus e a ação missionária nos séculos
com 3 mil dos seus ao ataque da cidade mais próxima p111 11 ,1 11111vocnrnm nas populações da Papuásia um choque
instalar o reino de Deus. Foi m orto pela tropa após 11111 1111 h11 1• 11111n espécie de questionamento de sua identida-
combate (1878).'5 11 1111110 o numento das tensões muitas vezes bastante
Ao longo dos séculos XIX e XX, o Brasil viu nascei' 1111111 li 11~ Indígenas e os colonizadores. Daí o nascimento e
mais movimentos messiânicos do que a Itália. Isso ~,· ti, 1 1111 l11tlico do mito do cnrgo: no dia da vingan ça e da
explica Maria Isaura Pereira de Queiroz, ao fato de q111 11111 h111·co n vapor conduzido pelos ancestrais traria aos
movimentos messiânicos, quando eclodem no univcn,o 1111 111,111 e toda espécie de alimentos e de bens terrestres.
constituem mecanismos que visam à reorganização ela~ ~,111 -• preparavam para a vi nda do navio-milagre em
dades camponesas. Quanto mais a estrutura e a org:1111, 11 11, 1 de intensa excitação. Convulsões e tremores
dessas sociedades camponesas são frágeis, mais h,í po~~il1llhl 111111 1111111 compensação aos fracassos e às frustrações
desde os movimentos messiânicos se formarem. Ora, 110, , hl ult• 11rnltrarnda. Já não se tinha medo de violar os
.,.,ô
229
tabus da moral cotidiana mais ou menos impostos <lo extcrirn O que é verdade para as cruzadas populares o é também
A chegada do "barco dQ cargo" ia inaugurar o começo de 11111 111 osdgrupos de flagelantes, ao menos quando en~ 1349
longo período de felicidade, o triunfo de uma outra moni\ ,. 11 1lllllu
1 o na Alemanha d· - e nos Países Baixos, se u movunento
. '
estabelecimerito da igualdade entre súditos do novo reino. ,~ º:~-~.e ~a - ireçao da "busca do millenium militante e san-
thll '~ . 'stao desde então convencidos de que suas violên-
• 11111 ifi~a?oras e a morte dos ímpios desembocarão nos mil
•-1•1lc.:fileóli~1dade prometidos pelo Apocalipse. Essa radicaliza-
2. O SENTINlENTO DE INSEGURANÇA i 'l'U g1ca ._ _ se explica
,, por mo d'f' -
1 1caçoes . . no seio
sociais ' de
,.
Essas análises de fotos recentes ou atuais esclarecem rct 1·rn1 • ''.'1f.l'lll~1zaç_oes. E com efeito o momento da defecção dos no-
t ivamente as violências milenaristas que se sucederam na F.11111 ' dos bmgue_ses. Aos artesãos e aos camponeses ue er-
pa ocidental do século XLI a meados do século XVI, e até 111111 n; 1!lll~ no mov11nento juntam-se, cada vez mais nu!er!os
além. O que se encontra por trás do tabelião Tanchelm (t 11 11l li 1111ut~• foras da lei _e clérigos em ruptura com a Igreja:
que é por um momento o senhor de Anvers, e nas cruzad:l'l ti~ ttlfl c1: m uma configuração crescente de contrassocie-
"pobres" e de "pastorzinhos" que se põem em movimento 11111 ,1~rc.ssd1va ao~ gr~~os de flagelantes. O mesmo fenômeno
v,1rias vezes entre 1096 e 1320, semeando o terror à su:1 p:1•1- 1 fIV 11 ). a mais mtidamente por ocasiao
11lllll •- d a guerra hussita
gem? Sobretudo, parece, um proletariado que precisamc11t1• ,,
vocábulos pobres e pastorzinhos deixam adivinhar. Esses clc~l'Iil 1 plll,f.l''.IÇiio de João Huss é essencialmente religiosa: os abu-
cios têm dupla proveniência. Quando são oriundos das cid:uh 11 IHI<lJ.n ~ revoltam; _recusa as indulgências para pseudocru-
em particular das dos Países Baixos, representam, no mrn1 11•11t• 1h"tllJllr1a padres dignos e pobres, a' abol1·ç:;"º d a 1uerarqma
. .
em que se desenvolvem a urbanização e a indústria têxtil, 11111 1h l 11•11 te 1. seu tempo, a comunhão sob as , d uas espec1es
, . a
1
pletora de mão de obra constantemente ameaçada pelo dl· ,t tu 1li i 11t111N•cc1cla a todos (assim' empree11de t ra duz1-. 1a para' 0
prego e pela fome. Se são rurais, advínhamo-los encurr:1hult ti o entanto, no fim de sua vida, precrando entre os
na miséria pela rarefação das terras exploráveis, obri~:1d11 1111 ~1•N1 ela Boêmia meridional' ele se tor·naº .
-~~~~~tt
tornar-se diaristas e por vezes mendigos. Assim, as est rullll 1•~ 111 111sos sociais • e• contra O Anticristo e seus servi.dores
1
• "' li ric :1 lg reJa hierárquica. Queimado em C .: .
nascentes de uma economia mais aberta do que a da c_r:1 111111
já rejeitam - e expelirão para fora de si mesmas dum nu.: v1l1 l1

11t, t , • (
1 t 11 IH> 1cret1co recusara-se especialmente a subs .
onst.1ncia

séculos - infõlizes que não estão integrados nem à cid:u l1• 111 111111\'1\0 ele \ i\Tyclif) ' torna-se · um I1 ero1
,. nac1ona
. 1. Üerever
ra a
cresce nem ao ~miverso rural, portanto pessoas sem cs\1111111 111~ \11 t
1 p 1cspcrtada por sua morte e pela d e seu amigo .'
disponíveis para todos os sonhos, todas as violênci,1s, 1rnh1 11111 , t' roga propaga-se em uma população há muito
desforras que profetas lhes propõem. Engrossados por ~ol,liul 111111tl11111
11 , po r razões econômicas
1 •• d • · As elesvaionzaçoes
. -
sem emprego, clérigos em situação irregular, nohn·~ ,~' li o t ,1 os preços enfraquece m o modesto oder
dinheiro e criminosos de toda laia, reunidos atrás de 1111 1111 1 ,los humildes. A exr)loração do rnu11do campones p ~
que se dizem por vezes portadores <le uma me11st1p;c·111 ,i/1 li111 1n i 1uplo movimento de corveias senho na1s . . mais .
proclamam a vinda iminente de um tempo de igualdack, 11111 i t(1lt' 110 .1rnssac1o e de um fisco pontifical mais exigen-

eram os judeus inimigos e sanguessugas dos cristãos, q1111 11111 1•~pol1:1clos dos rurais afluem para as cidade
l, p. . s,e1n
pela força reconduzir a Igreja à sua primitiva pobrez:1. 11111
, 1 1ng:1, que at1nge 35 mil habitantes por volta de

231
111 t•~s de si para esperar o retorno do Cristo rei na cida-
1400. Contar-se-iam então ali 40% de indigentes. Revcla11d11
11111. Os anos 1420-1 marcaram a etapa quiliasta da revo-
insuficiente a oferta de contratação em canteiros de obrn ~•0 1111
111l11wita. Uns cinquenta padres, pequenos pregadores
o da catedral, a municipalidade vende aos milhares objeto•, 1111
desafortunados da cidade precisaram empenhar para to111111 11 , 11111st ituem então a elite no poder na nova Jerusalém
1
empréstimo o dinheiro necessário à sua subsistência."' Q 11l III 111h• mnfluem miseráveis da Alemanha, da Áustria, da Es~
ocupará do papel das dívidas nas angústias dos pobres?
11 llht ,, dn Polônia. Em Tabor, a distinção entre clérigos e
Contudo, a guerra hussita (1419-34) não é um simplc•, 1111 1h ~,,pareceu; a Igreja não é mais uma instituição; rejei-
sódio de luta de classes. Dos "Quatro Artigos" de 1420 1111 11 li\ 1111 presença real na eucaristia e abandonou-se a cren-

definem a oposição a Roma e ao rei Sigismundo, um únil'II li 11 11111 ~ntório, nos sacramentos, na prece aos santos e nas
incidências sociais: a exigência de secularização dos hc1111 ,t 11111\'0cs. A propriedade privada foi abolida, assim como
Igreja. Os três outros exigem a liberdade de pregar, a _rn11111 h1111~ 11o s encargos senhoriais. Prediz-se ao mesmo tempo
nhão sob as duas espécies e a punição dos pecados mon,11s pil ,l,1 p11íxima nos mil anos de felicididade. Então "os indi-
autoridades civis. Há então nobres e burgueses hussit,1s 1 ,h l~nriio de ser oprimidos, os nobres serão queimados
"calistinos", assim chamados por causa da reivindica~·,,11 ,1 11111111 no braseiro [...], todas as taxas e impostos serão
cálice para os leigos, são moderados, reformistas que :1<.:1111111 ••• ning uém forçará ninguém a fazer o que quer que seja,
por entender-se com o Concílio de Basileia e com Sigis11111 111I 1h1~ 11uriio iguais e irmãos".2; N a própria Tabor, depois
Mas, ao lado deles, surgem radicais que são no mais d:1s v, 11 11111·1c onde os taboritas pusere m os pés, as dores hu-
pobres, desenraizados e que tendem a cair no milc11:11•l~111 ,h ~11p11rccerão, as mulheres darão à luz sem dor. A ida
Desta vez ainda, insegurança econômica e psicológica, dt< Ili 1111111ii11 de milenaristas originários do norte da França
lado, e esperanças apocalípticas, do outro, encontram-Sl' 111 ) 1111 tios Países Baixos (beghards ou irmãos do Livre Es-
das. É em 1419 que se forma essa ala hussita radical co111p1, t 111111111c nte contribuiu para reforçar o quiliasmo dos
de camponeses indigentes, de criados, de trabalhadores li ~ ,,1 • 111111s r:idicais, entre os quais alguns teriam caído no
22
riados, de fidalgos e burgueses empobrecidos e de prcw11h11 11111, 11olcbrando "festas de amor", praticando o nudismo
itinerantes. Eles se reúnem no campo em vastas pereg ri1111~1, , , ,il111ndo a emancipação sexual.
tentam fazer sua junção com os pobres de Praga. A ca1li111I Ih 11, 11111101 o chefe militar dos taboritas, João Zizka, o
rá finalmente nas mãos dos moderados e rejeitará seus d1 11111, 111 , ,111l ho, não era quiliasta e ligava-se ao cálice. Con-
1
tos mais agita€1os. Mas na Boêmia meridional e o cidl lll 11 111 q1w ns loucuras milenaristas enfraqueciam o campo
heresia se instai~ solidamente nas cinco cidades escolh id11, 1° lt t, 111wscguiu e mandou queimar os adamitas. A partir
Deus. No momento - próximo - em que termin.ir:I 11 11 li
11li111'1111s sob seu comando - e depois de sua morte
do Anticristo, é ali que Jesus descerá novamente à terrn , 1h 111111 dl) padre Prokop, o Grande - puseram os pés no
1420, os radicais começam a erguer sobre o pico ontk NI II
1111 t 11duziram em suas fileiras certa hierarquia. Tabor
vava o castelo de Hradiste a fortaleza revolucionári,1 dt· ' l 111,
1111111 cidade, com um número crescente de artesãos.
que se tornará progressivamente uma cidade. Aqueles q tH' 1, ,,
1111111111 nessa república democrática os camponeses e os
troem febrilmente as primeiras casas e as muralhas s~o N11l11
1111lh1111 realmente participar da vida política e desem-
tudo servos, camponeses, criados. Habitantes de a ldciuH \ 1
1111 p11pt1I religioso: razão pela qual ela estava destinada
nhas queimaram sua própria casa e cortaram assim 1rnl11
233
à morte no contexto da época. Em 1434 os taboritas l'rn 11111 1 "11lu111entos desclassificados da velha sociedade feuda l e
vencidos em Lipany pelos hussitas moderados e pelos c:11(,lit 11 Ili ,li 1v11 e elementos do proletariado não desenvolvidos
coligados; contudo sua resistência se prolongou até 1452. 11, •llH'll:1S embrionários, da sociedade burguesa moderna
O laço entre milenarismo e insegurança econômica 1• l I d1· nascer".u, Na região do Reno, entre 1500 e 1520
portanto também psicológica - é reencontrado, um _sfr11h, Ili ,1111 diversas sublevações conhecidas sob o nome coleti-
após o quiliasmo raborita, nas motivações e na ação da L>[.(ll 1h1 /111111/,1·c/mb (tamanco), que reuniram seguramente cam-
Eleitos, que, sob o impulso de Müntzer, interveio em 152 ~ 111 1 •• 11111s também pobres das cidades, mendigos, mercerní-

revolta dos camponeses alemães. Embora a derrota de Mii111 , , 1 11 ,1111 l:S ... Ora, o Bimdsclmh v isava a uma revolução radica 1
tenha sido também a dos camponeses, já que combatera11, j1111 1 1d11 por sonhos apocalípticos, que um Liv1'0 dos ce111 cnpí-
tos não se deve confundir as reivindicações moderadas <k 11ll ~1 1ho no início do século xv por um revoluciornhio do

co1~1 o programa incenclüfrio do outro.24 Os principais t c111111 lt11111, nos faz conhecer: uma vez vencidos os exércitos
da revolta foram a Alsácia, a Alemanha do oeste e do sul, 11111!. Ili li , INto e eliminados os blasfemadores, a justiça reinaria
Müntzer não exerceu, ao que parece, nenhuma influênci.1. /\ 1t 111 1 111111111, e todos os homens seriam irmãos e iguais. As
disso, os "rústicos", a despeito desse apelido pejorativo, li 1 tl\ •I~ do Bundsclmh permaneciam vivas no momento em
constituíam uma massa misedvel que teria se rebelado po1 IIIU h11ll11 n g uerra dos campon eses em 1524 e estes puseram
impulso desesperado, brutal e irrefletido. Foram guiadcm p1,, 1111111 tHll suas bandeiras. P or outro lado, a Turín gia e o
inúmeros magistrados municipais, que dispunham de «'l'I 1 i. l\íl1tl:1, onde se situou a ação de Mi:intzer, havia muito
experiência administrativa, e por padres partidários das id11 11 ,1111 Il i ravessados por agitações milenaristas explicadas

novas.H Os doze pontos principais ele seu programa n~o 111,111 1tt\ 1111 ldnclc da Boêmia e pela presença de minas de prata
utópicos. Reclamavam para as comunidades o direito de 1·lt Iº • 111 i',wickau e em Mansfeld. Ondas de trabalhadores
e de destituir seus pastores, a redução ou a supressfo d:1~ 111 1 ~i.1111 pnr:i essas minas, onde o excedente de mão ele
mas, taxas e corveias, o restabelecimento dos antigos 11 ~0 ~ 11 11 111i11ico. Além disso, parece que a indústria t êxti]
justiça, a liberdade de caçar, pescar e utilizar os bens co1111111111 1111líl11'l linha estado em crise. Foi frequentando os tece-
N,1 realidade, um estrato social cuja posição econômica 111l'll11 11 lt1lrn11 que Thomas .M üntzer, um padre versado nas
rara durante o período precedente estava agora inquieto rl h,111 111 ,_ 11 que de início seguira Lutero, converteu-se ao
da ascensão dos principados absolutistas no interior do l11tp 11111 11•vlll1tcionário. O fim do mundo corrompido está
rio. Essa ascensão. dos Estados significava, para a m:1iol'i11 ti, 11 dl1lt1 d e, os eleitos devem sublevar-se para abater o

camponeses, tai(as novas, o direito romano em substittti\·1111 1 1 111, IIN inimigos de Deus. "Cada um deve arrancar as
costumes e a crescente ingerência da administração ccnt 1'111 li l 1111til111s dn vinha do Senhor [...l, Ora, os anjos que
negócios locais. 111 l11l1•t· para essa tarefa não são outros senão os de-
l\1as correntes milenaristas, difundidas especialrn1•111t • 11 ldorcs do Senhor [...], pois os maus n ão têm ne-
partir da Boêmia, interferiram nessa revolta; e seus p l'llp11 1111 1111 de vive r, a não ser enquanto os eleitos a isso os
dores foram esses mesmos elementos social e psicologit·:11111 1,., 111 ·• l lmn vez destruídos os inim igos de Deus, os mil
frágeis que já encontramos nas cruzadas de "pastorwtl11 lt 111 l1l11dc e igualdade poderão começar. Os campone-
nos grupos d e flagelantes e nos meios extremistas de ' I 11h 11111111~111, 1·cvoltados que não tinham obtido a caução de
Era o lumpenproletariado _de que falou Engels. Reu11:1i , 11N1 , 1li, 1ti 111 o npoio de Nli.intzer, que foi ao seu e ncontro

235
1hll11,
1 1 foram proscritos e deles se fez tima rog
i, . dºrnnte d a
ue1ra
com seus discípulos mais fanáticos. Foram vencidos juntos l!lll
15 de maio de 1525 em Frankenhausen. Müntzer foi decapilil
ht "º.: desforra de uma cultura oral sobre uma cultura escr i-
111111mlerada opressora.
do dez dias depois. l>csde
A explosão milenarista mais violenta do século XVI - 1 1111 d fevereiro de 1534 o bispo de Mu"nste1· • c omeçarn as
,,1 < ~1 es C_?ntra a ci_dade rebelde e reunira tropas para um
também a roais esclarecedora para nós - é a que triunfou 11 o, Lste . nao fez mais do que reforçar tanto a exa 1taçao - ea
momentaneamente em MünstJr em 1534-5. O papel desemp1
11-1111 ~in cidade quanto o terror que seus novos chefes ali fize-
n hado no decorrer dessa tragédia pelos elementos mais "dcsl11
111 11111•1-~ r. Ter:do Jean !"latthys sido morto no decorrer de
cados" da sociedade da época aparece aqui em plena luz. NcM~11 li 1 ~111 tida, Joao de Le1den, um filho natural que de . , .
li 111 ·c d' d
cidade episcopal, as gui\das tomaram o poder em 1532, cxp11I i 1 ·n tz e a lf:arnte, . depois comerciante sem clienteh !Jl!CIO
saram o bispo e instalaram a Reforma luterana. lvlas, na mcs1111 111111 se o chefe da nova Jerusalém. A legislação sobre o tr~~
época, uma agitação anabatista sustentada por profecias sohic•11 1h11 1•:nnsformou os artesãos em empregados públ ic . .
mille11iu111 desenvolvia-se nos Países Baixos e na Vestfá)i;1. I•'.~ 1 IM 11111Ul bíblica foi instaurada (com exclusivo benefíci:sdo:
propaganda tinha sucesso particularmente entre os miscdv, 1 1111111) e, enquanto a cidad~ repelia as tropas do bispo, João
e os desenraizados de toda espécie. Expulsos um pouco em 1111I I , ldu'.'. se fez proclam~r re1. Vestia-se com trajes suntuosos,
parte, esses anabatistas refluíram para Münster. li ,1 se de uma corte, impondo à massa austeridade rio-oro-
"Assim chegaram", escreve um contemporâneo, "hol:1111h 1111 Mllnrda era composta de imigrados • 1~o d a opos1çao · -b era
ses, frísios e celerados de todas as origens, que jamais se h.lVlilll' 1'1111 1•0111 a morte. . Incansavelmente, diz,·,,,.-se a, popn 1açao-
fixado em parte alguma: alcançaram 1\tlünster e ali se n •1111I li 1:1111po das tnbul~ções chegava a seu termo. Cristo ia
ram." Outros documentos falam de maneira semelhante i.11111 1111, 1Nlnbelecer. . seu remo em Münster. Desse remo, . o povo
"fugitivos, exilados, criminosos e pessoas que, tendo dil:1pi1h11I, 111 p111•1tna, armado do gládio de justiça, para estender o
a fortuna de seus pais, não ganhavam nada por sua p1·111111 11t1 de Deus até os extremos da terra. Mas, na noite de 24
indústria (...]".' 8 11111l111 de 1535, os sitiantes lançaram um ataque surpresa e
N ão se poderia sublinhar melhor o laço entre milcn:11'1~111 hI ili ,1111-se da cidade esgotada. Todos os chefes anabatistas
revolucionário e população marginal, urbana ou r11r:d, l 1 111 11111Nsncrados.
fevereiro de 1534, os anabatistas guiados por dois necrl:,rnh 1 ld11ologia milenarista, em particular em sua versão vio-
Jean Matthys./:!Jan Beukels Qoão de Leiden) apoderar:1111 "' 11 1111 uma resposta radicalmente tranquilizadora à angústia
prefeitura e i-da· direção da cidade onde o delírio profé111 n 1 111111 que se sentiam rejeitadas pela sociedade e viviam no
durante mais de um ano realidade cotidiana. Católicos 1• h11 1 ,h 11~:rder: toda identidade. Assim, procuravam refugiar-

ranos foram expulsos como "ímpios" em meio a uma 1,·11q1 ll1Bll{lll:fr1~: o qu_e lhes era permitido pelos sonhos apoca-
1 ,1 q11c o _c1rterc1ense calabrêsJoaquim de Flora (t 1202)
tade de neve. O resto da população se fez rebatizar. · 1iul11
contrat•s, todas as cautelas de d(vidas foram queimadm . ( 111 11111 11ovo impulso. Homem de paz, esse santo religioso
tituíram-se depósitos de roupas, pertences de cama, rnohlll11t ,~ (purn 1260) o começo de uma era do Espírito, no de-
utensílios e alimento geridos por sete "diáconos". A prnpt lt 1 ,1 1 4111nl a l~m~rnnidade, doravante governada por mon-
1111111•10r-se-rn a pobreza evangélica • Mas, 0rranh an d o uma
de privada do dinheiro foi abolida. Alojamentos for:1111 li 11
~11 iu> mesmo tempo revolucionária e antiascética, essa
sitados para numerosos imigrantes. Todos os livros, 1011
237
l 1~pccialmente
, , . _o caso em . Münster· N:-ao viam
·. contrad1çao. -
profecia tornou-se, no espírito dos quiliastas agressivos, o amí 11
- • 1 oneraste:
. nao
r se devia honra e glóna . aque
. 1e que, magi- .
cio de uma nova idade de ouro que seri,1 exatamente o invcn,11
1111•111 c, ia .transrormar
• a face da Terra e cond uz1r. seu peque-
daquela na qual uma sociedade odiosa os obrigava a viver. N11o
1111110 e1~1to a conquista do universo? Assim não se p .
haveria mais servidão, nem impostos, nem coações, nem pro 111111•ii;óna relação das forças entre os soldad,os do .,,ens_ava
priedade privada, nem tristeza, nem dores. Um universo 1\t 11• litc , . . . nu,.,enm111
1~) ·ontave1s
· b m1111igos. Deus comb·'t1·a
· " ' com se us serv1"do-
miséria e de injustiça, mediante, é verdade, a travessia de u111
período trágico, poderia se metamorfosear em terra d e felicidn I\ 111~p01s,
' 0 ll em
ruscamente, em Frankenhausen em 15 d
M·· ,
unster, em 24 de junho de 1535 era 0 d
e nu10
..

111 o eh
de. Esse mito do retorno a um paraíso terrestre constituía 1111111
i' ' ,. oque :ontra uma realidade que guardara, consistên- es-
tranquilização urna vez que extraía das Escrituras dupla g.11'111\ , 111cza. Entao era a debandada. Mas nem por isso o mito
tia. Pois não apenas era anunci,1do para um futuro próxi111111 \11 IIIOl'tO. 1
mas realmente existira no momento da criação. Era preciso, 1 ( 111 111ilenarismos revolucionários não constituem senão
claro, não permanecer passivo à aproximação dos prazos nprn•11 ' - 1·mutes
1h1 t'llSOS · que permitem perceber com uma lente umade
lípticos. Os eleitos deviam apressar a hora da grande reviravolt11 1 1110 tna relação i_nais geral entre marginais e violências
e facilitar o advento do mi!lenimn rompendo os obstáculos q111 lhll~ 1 e outro~ª: Pms em muitas sedições entravam em cena
se opunham ainda a seu triunfo: e isso acabando com o pOlh 1 11111111hnndo I . dmgentes
. que eram
' freq uentemente artesaos, _ '
dos ricos e da Igreja, queimando os castelos e os convc11111 , ,_ 11111 m sendas na sociedade. As agitações urbanas dos
destruindo as imagens. Encarregados dessa missão vingadrn 111 1lm l.,IV•XVIJI e ,:specialmente as que marcaram em Paris o
dessa obra purifica<lora, indivíduos que, isolados, não pass:1\111111 \li dn Revoluçao Francesa teriam sido menos numerosas
de excluídos, doravante sentiam neles uma força invendv11 m ~11llf(rentas
1 - sem a presenç·1' nas c1·dades de uma 1mpor-
. . e
Convencidos de constituir uma elite de santos, comunid11d1 1111p11 nçao flutuante em busca de pão e de trabalh E . .
', ll'~lo ,, d "'9 - . o. sses
paracléticas, ilhotas de justiça no seio de um mundo con·rn11pl c.1 os ·. que nao tinham nada a perder clese'avam
do, não podiam mais admitir hesitações nem discussões. :0,11, 11th ldn,l\'I no1·,mais- profundo
. de si mesmos um estat t J . I
-, u osoc1a
certeza e sua intransigência tornavam-se cortantes como o 1\111 •111 1 n Jª nao senam criaturas abandonadas. E toda oca-
1
dio, sobretudo se se encontravam ao abrigo das muralh11, 1h 1111 • ,,rn boa para vingar-se dessa frustração.
uma cidade santa - Tabor ou Münster. Àqueles que sê e rg11 h1111
em seu cami11ho, não prometiam senão a morte. Eram o~ j11
1,1h1\'1lo entre revoltas e sentimento de insegurança d .
tos; os outrQS, ·c ulpados; e soara a hora do castigo dos iní11tl1111
de Deus. E~sa tranquilização ideológica ora forçada por 11111 i I i•scla recida por uma nova perspectiva que
h11 ,1 lllll cio. frequente
t~r:
entre as violências colet'1vasg e a
obediência, também ela tranquilizadora, a um chcfr qu .d
ganhava traços de salvador e messias - Tanchelm, Münt1.1•1li" li 11" 11111 1e1e f 'm a suscitada por uma vacancia d O pod er
A •

João de Leiden. Creditado de poderes miraculosos, ele cr:1 "p , ••~Mil n_preensão então atingir pessoas normalmente
e por vezes mesmo um rei, com tudo que esse título 01111 Ili ,111~ 1\ NOC~edade. No vazio deixado pela anulação ela auto-
comportava de sacralização. Seus fiéis, que viviam eles propl h 11 I li li'º!ª r-se t~da espécie de temores que remetem a
no despojamento, aceitavam então vê-lo suntuosamc111c v,•~I • '
"'"' lul1111gos reais ou unaginári ' ·os• Cons1·c1erem-se como
do, cercado de uma corte e de um cerimonial monárq11 í111 1111 1 ~lllllplo, em 1358 ' os distúrb1·os revoluc1onanos
· , '. d e

239
<) elo cronológico, se não constante ao menos frequente,
Paris e a Jaqueira.* No segundo plano psicológico desses movi
mentas, descobre-se a desordem provocada pela derrota d1• 111• vacâ ncia do poder e sedições destaca-se com evidência de
11111 lista mesmo sumária. A morte de Carlos v em 1380 e a
Poitiers (em 13 de setembro de 1356).
\'11~ilo de Carlos VI, que só tinha doze anos, foram rapida-
Com O que [escreve Froissart) os nobres_ r:i?os fo~·am d11 1111• seguidas de distúrbios urbanos dos quais os principais
ramente enfraquecidos, e em grande m1sena e tn?uhl~·110 lrnllrnm em 1382 em Rouen ("o tumulto") e em Paris (re-
mergulhados (...]. Se os reinos da Inglaterra e os. m g~cs1•, llA11 tias "maças").31 O reinado do rei demente - e como tal
e seus aliados regozijaram-se com a captura do rei J oao d1 11111, de governar - foi ainda marcado em Paris pela
França, os reinos de França foram dura1:1ent~ perturb;1d11, 111 wiçiio Cabochienne (1413). A grande revolta dos campo-
e ultrajados; houve bastante razão, p01s foi u1:1a g ra 11d1 ' 1111.('leses se produziu quatro anos apenas após a morte de
e aniquiladora desolação para todas as categorias ? e p1•, 11111.lo 111, que faleceu em 1377, depois de um reinado de mais
soas. E sentiram bem então os sábios homens do reino q111 l111111unta anos. Seu filho, o Príncipe Negro, o precedera de
grande ca Iam idade daí nascer_ia; pois os reis, seus scn h o1,'11 Ili• 1111.: ses na sepultura; então foi seu neto Ricardo quem o
e toda a elite na boa cavalaria de França estavam 11101111 1h 11. Tinha só catorze anos quando "essas pessoas más -
ou capturados e os três filhos do rei que hav!am retorm1d11 lllpnncses - começaram a erguer-se [...] como Lúcifer fez
1
Carlos, Loeis e João, eram muito jovens de idade e de l'UII li 1 1hl11s".13 A revolta da Boêmia coincidiu com a morte do
1
selho· não tinham neles pequenos recursos, nenhu111 d11 \ 1111•1•slan (1419); as guerras religiosas na França, com a
ditos'filhos queria empreender o governo ~o dito rc_i110 111 h1l)WISe permanente do poder que começou com a mor-
Com tudo isso, os cavaleiros e escudeiros que u11lrn111 p11rndn de Henrique II e culminou com o assassinato de
retornado da batalha estavam tão feridos e desgostosoi, 1h1 1h111c• Ili. A inquietação durante o reinado deste foi conti-
conjurações que voltavam de má vontade para as h o 11N 11 1111111 s ustentada por sua ausência ele descendência.
dadeslº. 111111111c, a abjuração de H enrique IV produziu um choque
l1\ult•o salutar: a França teve o sentimento de ter nova-
João, 0 Bom, cativo; os filhos do rei jovens clema i~ p1t1 11111 verdadeiro rei. Quanto à Fronda, produziu-se du-
governar; os melhores cava~eiros _n:ortos ou capturados!" t:lr•, d 1111111 1'cl{ência.
súbito, 0 vazio na existência cot1d1ana de cada t~rn, o dt ~11111 11 11 1111 d(1vida no início da Revolução Francesa que se
mento elas proteções ordinárias. Tornando-se ~ns1osos, rn111111 111 ,11111 ir mais nit idamente os efeitos psicológicos pertur-
1 neses e citadió.os sentem que devem eles propnos co111111 11 il1111111 vazio político. Retomemos brevemente o filme
mãos seu destino e, em primeiro lugar, castigar os maus 1·1111 11111 11l111cntos. Em maio de 1789, os Estados Gerais se
1
Jheiros do soberano e tantos n~bres que, em vez _d e 11101'1 l'I 1 1p111 t•onvocação de Luís XVI. Mas em 19 de junho o r ei

1
Poitiers, fugiram ou traíram. E apenas justo queunar Sl'II ~ ' • 1, • lhlN sessões e, no dia 23, determina que só deliberem
telas e lembrar-se dos rancores por longo tempo :icu11111li11I l1111111111t•, N o dia 27, volta atrás nessa decisão e aceita
. . li
1
contra sua tirama. 11 l11N do ravante Assembleia Nacional. Na realidade,
11,1,~11 de um ardil, já que ele reúne tropas e, em 11 de
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• Sublevação dos camponeses franceses contra os senhores. (N. 1 ) 111111• Nccker. Seis dias depois, chama-o de volta, ensi-

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') ,1l/l
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nado que foi pelos acontecimentos de Paris. As tropas rcwr 1 MIWOS MAIS PRECISOS
nam então às suas casernas, para g rande inquietação chi cla~,r
abastada. Em 4 de agosto, a Assembleia Nacional vota n 1> sentimento de inseg~rança, ao menos nas formas que
supressão (teórica) dos direitos feuda is. Mas o rei recusa-se li 11111110s de dcs~rever, m mtas vezes era mais vivido do que
referendar a decisão dos deputados. Conduzido a Paris em 6 de 1 1111c11te consciente. Em compensação, certos medos mais
outubro pela mult idão exaltada, aceita então os famosos clccn• • ,~os, e que nem sempre eram imaginários, freq uentemente
tos. Além disso, durante esses dez meses ardentes, os fram·1· llllll'lnvnm as revoltas. Insurgindo-se por várias vezes contra
ses, divididos entre imensas esperanças e vivas apreenst,1°\ 1 _p,1nh6is desde o século X'VI até o século xv111 (e muito mais
assistiram à desagregação do exército, à fuga dos no bres m11I~ IU 11d1111~e~1te do qu~ a historiografia oficial por lon go tempo
em evidência, à substituição das paralisadas autoridades lornl h1111 ntl1vmhar), os mdígenas do México e do Peru sabiam-se
por novas municipalidades apressadamente formadas. A ann,1 1\,ldos em sua identidade mais profunda pela cultura dos
dura estata l do Antigo Regime dissolveu-se; ao que se acn•,, u1111111ndo_res e especialmente pelo batismo, pelo catecismo e
centou a ameaça da bancarrota. Daí um sentimento profu11d11 I~- liturgias dos missionários europeus. D aí suas retiradas
de insegurança em um país que se acreditou aberto aos saqu1•11 t 11111s ~ara as zona_s montanhosas, seus ataques súbitos con-
dores, aos complôs, aos exércitos estrangeiros. Era prcdN11 ,_ 1tldc1as de colo111zação e de c ristianização, suas violênc ias,
u rgentemente inventar os meios de uma autodefesa e elimi11111 111 1 nr~·c r das reb_eli~es, contra os religiosos, as igrejas, os
os múltiplos inimigos cuja ação se temia. Tal foi o clima qu1 , .,~ imagens cnstas etc. No Peru e no México do século
permitiu a multiplicação e a difusão dos pavores locais conhr 1 • ~~ns insu_rreições ganharam por vezes uma coloração
ciclos sob o nome de Grande Medo.3; Poderíamos ainda b:1,1•111 1 11,11 l111_n n~mto reveladora do choque entre duas culturas:
a demonstração em exemplos mais recentes. As inúmeras :1111 11111 pr11ne1ro momento, o Deus dos cristãos vencera os deu-
tações que a França conheceu em 1848 se explicam pela t'ílll 1111 ,IIN e os espanhóis, os indígenas. Mas "agora o mundo
junção de uma agressão fiscal (imposto de 45 cêntimos) rn111 1 li 1\ 11 ~cu retomo, Deus e os espanhóis seriam vencidos
vacância da legitimidade (governo de uma assembleia prm 1 11 1 1 1, e todos os espanhóis mortos, suas cidades tragadas ~
sória).i5 111 111 1111cher-se para afogá-los e abolir sua memória"_i,, Eis
O vazio de poder é um fenômeno ambíguo. Deixa liv11 11 oi 1111 México, em pleno século XX, uma situação aparente-
caminho de forças que permaneciam comprimidas en<fu:11110 , Ih 111vcrsa, o nde o catolicismo é, desta vez, vítima da perse-
autoridade era sólida. Abre um período de permissivid:uh 111 Nos campos do centro do país ele foi reforçado no final
Desemboca na esperança, na liberdade, na per missão c n., ll·,1 1 • 1110 XI~ p~r um renascimento da pregação e tornou-se a
Não secreta, 1portanto, apenas o medo. Libera também •1111 1111 ~11hstanc,a da consciência popular em um momento em
contrário. Como negar no entanto a carga de inquietaçiio 11111 11 ,1111 idcricais das ?randes cidades - burocratas, burgne-
encerra? Ele cria uma vertigem; é r uptura com uma co111 i1111I 111llhnrcs - quenam destruir o clero, a Igreja e a fé. É
dade; logo, com a segurança. É portador de amanhãs i1Jlºl'l l11 1 11111 t·mnbate entre duas culturas. Nos anos 1920 u m
que serão talvez melhores ou talvez piores que ontem. E µ1•11 111.!11 que exprime bem o radicalismo antirreligioso ~ntão
dor de uma ansiedade e de um ener vamento que podem l.u li ,h 1 111lo teme afir mar:
mente conduzir às agitações violentas.

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[...] É preciso penetrar nas famílias, quebrar as estátuas e 1111 Voltemos agora à Europa e, recuando no tempo, descobri-
imagens dos santos, pulverizar os rosários, despregar os cr11 11111s facilmente na origem de certas sedições outros medos
cifixos, confiscar as novenas e outras coisas, trancar as pOI 11110 fundados, mas também eles acompanhados de uma proli-
tas contra o padre, suprimir a liberdade de associação p11111 111\'IIO do imaginário. Durante vários séculos, as populações
que ninguém vá às igrejas conviver com os padres, supri1 11lt • puquenas cidades e das regiões descampadas temeram com
a liberdade da imprensa para impedir a publicidade clcri1·11I, ,111 rnzão o vaivém dos guerreiros, ainda que não fossem ofi-
destruir a liberdade religiosa e afinal, nessa orgia de intolL 1l1111.1 11te inimigos. Na França, esse temor parece ter tomado
rância satisfeita, proclamar um artigo único: na Repúhl i1·11, 1p, 1 1rn época das grandes companhias e só declinou progres-
só haverá garantia para aqueles que pensam como nós." 1111m11te a partir do momento em que Luís XIV e Louvais
111111111 casernas e impuseram ao exército disciplina mais estri-
Na lógica de tal programa, o presidente Calles (1924-8) d1•d h oissart, contando os acontecimentos do ano de 1357, relata
de em 1926 o fechamento das igrejas e a expulsão dos pad1 1• 1111 n~ más ações desses soldados-bandidos na Ile-de-France:
Durante cinco meses os mais zelosos dos católicos mexicanos
essencialmente camponeses - tentam, à custa de penitências e d, 1 ,11 l~les] conquistaram e roubaram dia a dia todo o país en-
preces, obter do céu que abrande o coração do novo faraó. M :1s t 1h t I e• o rio Loire e o rio Sena; por isso ninguém ousava ir en-
permanece empedernido. E ntão, ameaçados de perder a al111111 111• Pnris e Vendôme, nem entr e Paris e Orleans, nem entre
despeito dos conselhos de prudência da hierarquia e do V:Hit·11111, l1,111ls e Montargies, nem ninguém da região ousava ali per-
espontaneamente os cristeros sublevam-se, depois se organiz:1111 1 llllllHJcer; antes todas as pessoas dos descampados tinham
durante três anos, impedem a vitória das tropas governamcntnl ••· 1•cf'ugiado em Paris ou em Orleans [...], e não permanecia
Inevitavelmente, os medos legítimos que acabamos dt: 1•111 1111l\'II, cidade nem fortaleza se não fosse muito bem guarda-
car diante de perigos que eram muito reais foram reforçndit tl11, que não estivesse agora toda roubada e perseguida (...).
por temores suscitados pela imaginação coletiva. Nas pop11li1 1 t nvn lgavam pelo país em bandos, aqui vinte, ali t rinta, lá
ções indígenas do Peru central, por volta de 1560, espalho11 1 1111111·cnta e não encontravam quem os desviasse nem com-
o rumor de que os brancos tinham chegado à Améric:1 p11t , l1,111•NSC para lhes causar dano.4 1
m atar os indígenas, dos quais utilizavam a gordura com<>nw1II
camento. Os indígenas fugiam então de todo contato colll 1, " • Hl'llndes companhias grassaram também no século XIV
espanhóis e rectlsavam-se a servi-los.'" Entre os Tarahu11111111 1111111111dia, no vale do Rhône e em Languedoc. Nesta últi-
do México, que se revoltaram várias vezes contra os ocup:11111 1111h10, os bandidos lutavam seja por sua própria cÓnta, seja
especialmente em 1697-8, os feiticeiros afirmavam que o~ ~11111 1l1h1 d1· Jean d'Armagnac ou do conde de Foix, então em
das igrejas atraíam as epidemias, que o batismo contamin11l'1I 11 t 1,1 No decorrer dos anos 1360- 80, a miséria tornou-se
crianças e que os missionários eram mágicos.i9 Quanto 111, h 1 1 110s campos do sudoeste, incessantemente percorddos
a-isteros, no início da atroz repressão antirrelig·iosa, pcmn 11llt l1111m111s ele armas ávidos ele pilhagem. Já não havia segu-
que o dia do Juízo chegara e que não estavam às voltas <.:OIII " p11111 o camponês, e o mercador já não se aventurava pelos
exército do governo, mas com o do próprio Lúcifer": º 1111h1111, Viram-se então pobres pessoas abandonar em sua
11,1 1111s se refugiaram nas cidades fortes, os outros se rea-
l'"' ,1111 nos bosques e também se puseram a pilhar para
viver. Estes eram os Tucbi11s, cujo nome remete à toucbe (isto 1 , 111los fra nceses dos dois campos conduziram-se muitas vezes
fração de floresta), onde esses infelizes buscavam asilo: : S1•11 1111 \lllteadores. Em 1578, nos Estados do Languedoc, hostis
número e sua pilhagem foram sobretudo importantes por voll 11 p101cstantes, é verdade, era desolador ver
de 1380 no alto e no baixo Languedoc e em Auvergne.
Os testemunhos sohre os malefícios causados pela p:1'~11 1,1 ri terra coberta do sangue do pobre camponês, das po-
gem e pelo alojamento dos homens de tropas são inúmero, 1111 111 I'\ mulheres e crianças; as cidades e casas dos campos d e-
longo dos séculos do Antigo Regime. Em 1557, Milão enviou 11 _.., 1ns, arr uinadas e na maior parte queimadas e tudo isso
Filipe II um embaixador, que declarou ao rei: 1111" o edito de pacificação (de 1576) [...]. Tão é pelos tár-
1110s, pelos turcos nem pelos moscovitas, mas por aqueles
Esse Estado [o ducado de Milão] está em sua maior p:11 lt 11111• nnsceram e foram alimentados no dito pnís e que pro-
tão destruído e arruinado que já numerosas terras fo n1111 lt ,~n m a religião que se diz reformada.••
abandonadas[ ...]. Essa ruína provém de tudo que pesa ~0l11 1
o Estado: tanto os impostos extraordinários [...] qu:11111111 \ C:ucrra dos Trinta Anos reavivou em grande parte da
alojamento dos soldados. Estes são uma tal carga parn 11 r111111 o temor da passagem e do alojamento dos homens de
populações que é coisa inacreditável. E isso tanto mais q111 li (,
seu comportamento é sem piedade nem medida, cheio 11. l 111 Is r1veut11ms de Si111p!icissi111us, romance escrito por uma
crueldade e de cupidez. [D aí] a exasperação dos súditos, lllt 1111111hn da Guerra dos Trinta Anos, um soldado declara: "O
mesmo seu extremo ck sespero. [Daí) a calamidade e a d1 11111 ,11 rega quem quer que se deixe levar pela piedade; ao diabo
truição ele certas cidades [...], como Alexandria, Tortrn11 111 ljlll'I' que não mate impiedosamente o camponês, quem quer
Vigevano com seus territórios, e da maior parte da rq 1ln11 111111•11rc nn guerra outra coisa que não seu proveito pessoal".
de P.ídua, em particular a Lomellina, onde[... l ini.'11111•111 11 lll'rt'>i ele Si:mplicissi11111s conta como sua aldeia foi pilhadn por
habitantes, após terem perdido o que os fazia viver, p.1111 11 •1p11 ele soldados e como seus habitantes foram torturados:
ram e se dispersaram por outras regiões.u
1111~11'11111-se então a retirar da porca dns pistolns as peder-
Na segunda metade do sécu lo XIV, as guerras religios:1~ p111 11111,1'1, mns para substituí-las por polegares de campone-
vocaram por v:íçias vezes a ida de soldados estrangeiros à Frall\ 1 1 ~ ,, IOrlllrar os pobres miseráveis, como se se tratasse de
espanhóis, itaijanos e suíços do lado católico, suíços igunl1111•11h 11111 1111111· feitice iras. Ali,ís, os soldados já haviam lançado ao
ingleses e sobretudo alemães do lado protestante. Este~ 11h l 11111111 11m dos camponeses feito prisioneiro, e trabalhavam
mos, que fornm vistos sucessivamente em 1562, 1567-9 e 1\ 1 111 ••~qucntá-lo, embora ele ainda não houvesse confessado
deixaram uma sinistra lembrança. Em 1576, João Casi111i1 11, 1 li 11111, A um outro, haviam ntado em torno da cnbeça uma
filho do Eleitor pa latino, não tendo recebido após :1 p:11 1h 111,111que apertavam com um garrote, e a cada volta o san-
Beaulieu as indenizações prometidas por H enrique Ili, pcrt11llh 11, jurrnva pela boca, pelo nariz e pelas orelhas [... ].:5
que suas tropas pagassem a si mesmas por habitante. El:t~ 10111 ,
ram de assalto aldeias que resistiam, e cometeram excessm 111 1111 li110 de G rimmelshausen é exagerado? Por certo, circu-
ríveis. Além disso, durante esse longo período de lutas c ivP11 1 11 11111111rcs nterrorizanres que agravavam ainda mais uma

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realidade já sinistra. Além disso, a jactância e as ameaças do•1 111• os homens de guerra estavam nas proximidades, o toque a
soldados contribuíram sem dúvida para dar crédito à históri11 l1111e soava em várias paróquias, e os trabalhos dos campos e
das crianças postas no espeto, que reapareceu no momento d11 111crcados eram interrompidos, sentinelas eram postadas nas
revolta do papel timbrado na Bretanha.46 Mas - testemunho~ Ili 1•11zilhadas. As aldeias simples armavam barricadas de barris
entre muitos outros - documentos emanados do parlamc1110 111• carroças. No pior dos casos, os camponeses entrinchei rn-
de Bordéus provam que, em 1649, camponeses de Barsac e d1 111 se na igreja, último refúgio da comunidade rural. As cida-
Macau foram expostos ao fogo.47 Y.-M. Bercé, investigando • dotadas de muralhas fechavam suas portas, organizavam
com minúcia os malefícios dos homens de guerra no suclol.:~11 1111111s sobre os muros, do alto dos quais arcabuzadas eram
francês ao longo do século XVII, é taxativo: viviam à custa d11~ 111,ulns sobre as tropas que se aproximavam. Por vezes até as
populações. Violavam as mulheres. Extorquiam dos habit:1111~·~, lil11ilcs organizavam expedições de dissuasão contra compa-
por meio do terror, a confissão do esconderijo de seu dinhci111, hl11~ que ainda estavam a certa distância. Assim fizeram
amarrando os homens, arrancando-lhes a barba, empurrando 11111 morillon e Périgueux em 1636, Mur-de-Barrez em 1651.1º
-os no fogo da lareira, atando-os a um poste para golpd-1011 i\1. 13ercé observa que essas rebeliões sobrevieram em 1638-
Saqueavam as casas onde não encontravam bastante dinhci1111 111• 1•111 1649-53, isto é, no auge da Guerra dos Trinta Anos e
estripavam as barricas, estropiavam os animais doméstirm, 111111c a Fronda, períodos de grande insegurança que viram
massacravam as aves de criação. Ao deixar um alojamento, lcvu 111111•ccr velhas formas de autodefesa local que engajavam
vam mobílias e roupas, louças e cobertas.~• Ora, os ofici:1is 11ílt1 l 1 1111\ll comunidade.51 Além disso, elas se produziam sobre-
faziam nada para deter as pilhagens, que eram o melhor ch:111111 111 1111 fim do outono, quando os homens de guerra iam ocupar
riz para o recrutamento. 1, 11l11jnmentos de inverno, e na primavera, quando partiam
Mesmas violências no norte da França quando os mcn:r 111I Mll1C1nte para as fronteiras.11
rios de Rosen, recrutados por Mazarino, foram enviados w1111 11 1 1tomar da passagem dos guerreiros ia ao encontro daque-
os espanhóis depois de 1648. Os habitantes das regiões de C:11 i~1 11111111 l(Cral em relação a todas as categorias de errantes, mui-
Bapaume, Saint- Quentin precisaram refugiar-se nos bosq111 •• 11•~ confundidos com delinquentes. Logo falaremos do
armar-se de forcados e foices, constituir "maquis". São Vin •1111 111 rios mendigos. Mas notemos desde já que os europeus
de Paula queixou-se em vão a Mazarino das extorsões de H11111111 1,1111 durante vários séculos boas razões para associar men-
Mesmos excessos também por ocasião da Fronda em torno 1h 1111 1111• soldados a vagabundos. Errantes encontravam uma
Paris: mulheres violadas, camponeses espancados, igreja, _, ,, 111 provisória para sua miséria aceitando as ofertas dos
queadas, vasos 7sagrados roubados, cereais não maduros rn11, 111,ulorcs. Por vezes, também eram alistados à força. Inver-
dos para alimentar os cavalos, vinhas arrancadas, rebanhos 11111 1111•, 1.c>Jdados desmobilizados formavam frequentemente
tados. Triste crônica que se pode reconstituir graças às Rd11th11 lm tlt· foras da lei que pilhavam para subsistir: foi assim na
chnritnbles inspiradas na época pelos devotos da capital.4'' 1111111 l 559;1i no Franche-Comté em 1636-43, tendo os
A reputação dos soldados era tal que, ao anúncio d1• ~li 1111 11111 exército imperial em retirada se fragmentado em
chegada para um acantonamento, as populações punh:1t11 1 1111~ l{l'upos de salteadores.54 Se a guerra recomeçava, o
frequentemente em estado de alerta. Desobedecendo as m d111 ll1~11111 podia adormecer momentaneamente em tal ou tal
reais, elas podiam entrar em rebelião. Y.-M. Bercé est11do11 1 , 111ltt1ndo os salteadores a ser soldados e partindo para as
dessas revoltas na Aquitânia dos anos 1590-1715. Ao st· ~11111 11 ,,_ foi o que sucedeu na Itália em 1593 com a retoma-

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da das hostilidades entre turcos e os Habsburgo. 51 Por outrn~ A alimentaç~o, na Europa de outrora, era desequilibrada
razões ainda, existiam múltiplas comunicações entre exércitm P•11· excesso
: . d e fannaceos.:
· , · t-·1c1ente
111_su · em virnmi nas e proteí-
e grupos de vagabundos: inúmeros rouleurs ou biílnrdeurs lancln n11~,: marcada pela alterna neta sobre a frugalidade e a comilan-
rilhos] deser tavam uma vez recebida a recompensa, ainda q111 ' nao chet?~1do esta última (que era rara) a exorcizar a obses-
para se reengajar periodicamente.;6 Além disso, os exérc1111~ 11 ~la, p~nuna em gran~e ~a~te. da po pulação. No primeiro
arrastavam com eles filhos de militares, velhos soldados, f11 g1 UM•" c,~u.e as obras de m1sencord1a, a Igreja colocava, não sem
tivos, assassinos, padres em ruptura com a Igreja e prostiu11:1~, ,,lo, al_m1entar os que têm fome".61Embora severas nascida-
Enfim, na Rússia do século XVII, na França de Luís XI\', 1·111 \, as cnses de cereais e ram ainda mais duramente sentidas nos
Portugal dos séculos XVIII e XIX, pessoas do campo, fo gi11d11 t11pos, onde, co_m o lembra P. Goubcrt, a maioria dos pequenos
da conscrição, t0rnar:im-se errantes obrigados a roubar p:111 lltponeses precisava comprar seu pão. Em certas províncias da
viver.5" Assim, o Antigo Regime produziu, do século XI V 1111 111\::1, 3/4 dos camponeses eram incapazes de alimentar a
XVIII, um universo marginal de soldados-salteadores, cuja si111~ 11111 111 com sua explo~aç?o ~grícola.•1 Circunstância agravante:
1111s11~0 de carne d1m111um na Europa nos séculos XVI-XVlll
tra reputação continuava viva quando eclodiu o Grande fvh-il11
de 1789 e a maior parte da França se pôs em estado de all'It 1 lt 11l11çao ao que era na Idade Média. Pois, com O crescimento
111
para ataca r fantasmas. 11 1.fl'tÍ~co, as culturas, g!obalmeme, sobrepujaram a criação
lllllll~Js ~,_com elas, a alimentação cerealista.6l A tirania dos
ti, ~•gmftcava que a hierarquia das qualidades do oão do

4. O TEMOR DE MORRER DE FOME 1, lll'nnco ~o mais escuro, recobria a hierarquia soei;! e 'que
11lhdtns ritmavam os cortejos fúncbres,6' uma subalimenta-
Uma outra grande apreensão de outrora, e muito just il 11 1 1
i• 1ili111do os mal nutridos e abri ndo a porta às epidemias.'·'
da, era a de morrer de fome - "n bel/o, peste, et fome libcm 11111 I· 111 110s~a so~iedade ocidental de abundância, temos difi-
Domine"-, uma apreensão que "se incorporava[...] às cst:1~·111 11,.t,, crn 1magmar que há apenas algumas centenas de a nos
ao escoamento dos meses, até mesmo dos dias"5'' . Em tempo 11 1•111 1111 morrer de fome em nossas cidades e em nossos cam-
crise, provocava pânicos e desembocava em loucas acw,:1~111 Nu l'lllanto, são inúmeros os testemunhos a esse respeito.
contrn os pretensos açambarcadores. 1111111•1110s alguns deles, que siio apenas uma amostra no
Dentre os motivos que explicam a sorte da história dl' ,111 1~1 11 no espaço.
(o filho de J ató) no teatro alemão do século xvr, figura •o 11 1
1lllt'l:tclc ~o século XV, o rei René descreve nestes termos
dúvida a situàção alimentar do país e da época. Outrora o vi, li d1t\ VII 3 sinrnção cm Anjou: "Assim, pela esterilidade e
do faraó preservara o Egito da fome; construíra e encher:, 1'1h· ,1, lwns que houve em vários anos passados e ainda há
ros no tempo da abundância e anulara assim os efeitos <lc~:,~t 1, jlll'~t'llte, a maioria daqueles que estão deitados na palha
sos dos anos posteriores de penúria. Fora, portanto, o 111111111 , l1to nus e descobertos, morrem, eles e suas famílias
do "príncipe provedor"."° Comentando a frase do pai-nos,o ' t , il, lomc".M •
pão nosso de cada dia nos dai hoje", Lutero fazia observar il(II ti '111111t·n da abadia Saint-Cybard de Angoulê~e relata que
mente em seu Gm11de cfltecismo que as insígnias de um sol 11•1111 Ih
11 ".•~erno de 1481-!, um pouco por tod:i parte, o
11
piedoso deveriam antes ser ornamentadas com um pão d11 111 1 111rn I ta de fome e nao comia senão raízes de ervas e
com um leão ou com uma coroa em forma de losango. 1 1 , llt'~sc tempo, só se encontravam pobres pelos carni-

251
nhos e salteadores pelos bosques [...]. O pobre povo compr:w:1 o l' fraco, sem que no entanto o padre fosse advertido, senão
farelo6' e o mandava moer com aveia [...], os outros comia111 li 1111nndo, num domingo [...], uma de suas irmãs veio dizer ao
aveia toda pura; ainda assim não se podia encontrá-la".r,x putlre que seu irmão morria de fome, sem dizer outra coisa.
Em Roma no momento da cruel penúria de 1590-1 , um ( > pastor deu um pão para que lhe levasse imediatamente;
' de notícias (nvvisi) escreve: "Todos os d111N
redator de folhas ' 11111s não se sabe se a irmã tinha ela própria necessidade dele,
fica-se sabendo que alguém morreu de fome". O papa Grcg61'111 1111110 parece; ela não o levou a ele e, no segundo toque de
XIV já não sai de seu palácio a fim de não escutar os cla11101•1•, vtlsperas, o pobre morreu de fome. Não foi só esse que tão
de seu povo. Mas, no decorrer de uma missa em São Pedro, n~ 1ll pressa morreu na falta de pão, mas vários outros, e aqui
assistentes se põem a gritar e a pedir pão.69 Eis aqui <1ind11 11 P nns outras aldeias, também morreram um pouco por vez,
situação na Suíça em 1630, ano de colheita desastrosa: na r Cl-(IR11 1111is viu-se este ano uma grande mortalidade. Só em nossa
de Vaud, "os pobres estavam reduzidos a extremos lament:ív11 I-, f11ll'1Íquia morreram este ano mais pessoas do que as que
alguns morreram de fome, outros comeram feno ~ er~:1~ d11 llltll'rem em vários anos [...]. Estávamos realmente cansados
campos. O mesmo acontecia nas montanhas e aldeias v1wll111 1h•1•stnr no mundo. 74
de Genebra, que se serviam de farelo, de repolhos, de fruurn dt,
carvalho como alimentação".70 t•~st:s testemunhos significativos, é preciso acrescentar
Voltemos a Anjou, desta vez no final do século XVII. 11 111 lm 11inda mais terríveis do tempo da Guerra dos Trinta
março de 1683, habitantes do Craonnais foram a Angcrs 1111111 1• dn Fronda. Um padre de Champagne conta que um dia
<ligar pão, "com rostos pálidos e desfeitos, que pr~vol''.l\'11111 h ~011s paroquianos, um velho de 75 anos, entrou em seu
igualmente medo e compaixão".71 O diretor do sem1náru1 ih hll1\11io para assar em seu fogo um pedaço de carne de ca-
Angers, Joseph Grandet, a quem se deve esse testcn1111ll11, 111111 l<) de sarna havia quinze dias, infestado de vermes e
decide então com alguns companheiros ir cm socorro das p1111 1 1111 11 um lamaçal fedorento.7' Em Picardie, contemporâ-
quias mais miseráveis e são esperados por "milhares de pol111 11-~tllfUram que homens comem terra e cascas, e "o que não
ao longo das sebes, com rostos escuros, lívidos, di111i11111th1 rf,1111os dizer se não tivéssemos visto e que causa horror,
como esqueletos, a maioria apoiando-se em bastões e :ll"l'IINIIIII 111111111 os próprios braços e mãos e morrem no desespero". 76
do-se como podia para pedir um pedaço de pão"." E111 1(1111 1111~ 1•ondições, não nos espantemos de encontrar casos de
nova penúria muito grave. Um cônego de Angers pode t 'hl 11 1t1lh11110. Na Lorena, uma mulher foi condenada à morte
ver: "A privação é tão .grande que vários morrem dl' 101111 1 , 11111ido o filho. Em 1637, segundo um magistrado que
mesmo nesta croade de Angers".n 1111111 Investigação em Borgonha, "[...) as carniças dos ani-
Durante essa mesma crise cerealista a situação 111111 11 llttll lON eram procuradas; os caminhos estavam cobertos
melhor no norte do reino. Como prova, o diário deixado 1111 •hlH1 11 maioria estendida de fraqueza e agonizando [...).
padre de Rumegies: 1 , hogou-se à carne humana".n Nos tratados dos casuís-
t 11h11•-sc uma prova indireta de que a antropofagia não
Durante esse tempo só se ouvia falar de ladrões, de Ili' 1 11, 11111 nos séculos XVI e XVII.78 Se esfaimados, para não
mortas de fome[...]. [Um pobre homem] era viúvo; llíll• 11111sumiram a carne de um cadáver humano, conse-
acreditava que fosse tão pobre quanto era; estava c111•11111 1 1111l11l!(ência da maioria dos casuístas. Villalobos declara
do de três filhos. Ele ficou doente, ou antes, ficou cx11•1111, 11111· lil' cst,1 autorizado a tomar remédios cuja composi-
1111n1ido a penuna se aproxima; mas também os pequenos
ção inclui carne humana, é pcnnitid~ comê-la so\~ioform:, ih
nponcses que, nos anos ruins, nem sequer têm grão para a
carne de açougue em caso de "necessidade ex~re~a . .,
11111cirn; os diaristas sem trabalho quando colheitas e vindi-
Voltemos dos casos-limites a situações hab1tua1s em pc1 uul11
-•111 destruíd.is pelo granizo; e todos os biscateiros prontos
. d - U a delas típica foi admiravelmente an:11!~11
de carestia o pao. m ' ' 1- 11til' na mendicância quando o pão se torna muito caro e
. . . em Beauvais em 1693-4, um tece ao, 111111
da por p . G oub ert, eis ' ' . f Ili ti t r 11bnlho.81 As cifras extraídas dos registros paroquiais
f'U as todas as quatro fiandeiras. A :1111 i
mulher e suas nes 1 1, ,
. A
' ' 11111111111 a esse respeito os relatos dos contemporâneos. O
h 108 l * (1296 deniers)** por semana e consome pe1o i_1w1111
11pl11 de Beaugé (em Anjou) é esclarecedor: "No primeiro
gan a ]'bsos l pa-o Com o pão preto a cinco deniers a lih1·11,
setenta 1 ras <e · l) 1 1 _, l'l' de 1694, no momento em que o preço do alqueire de
vida está garantida. Com o pão a doze denie~s (un'. so 'e a s~ 1111 1 11111 triplicou em relação a 1691, morrem 85 pessoas, contra
na mais difícil. Com o pão a 24 deniers, depms a tn_nta, ~4_d_c11lt 1 111 l'imcstre correspondente de 1691, 33 no de 1692, vinte no
. em 1649, 1652 , 1694 e 1710 - , e a rmsena:
_ 0 que acontece ln•Jt II correlação é evidente"Y Em Beauvais, a penúria de
1 11l11va à sepultura" de 10 a 20% da população.8~ Esses cál-
Agravando-se a crise agrícola quase sempre (e com cc1'II ' 11 1l1<icos em sua aridez, testemunham por muitos outros.
'1693) com uma crise manufatureira, o trabalho clw1i,1 111111p11 pré-industria l, os anos de subalimentação aguda,
em · li• 1,
faltar, e portanto o salário. As pessoas se pnvam; P''.l ,s
1t11h111 sequelas desta (receptividade às epidemias, abortos
que se encontrem a 1gu ns tostões guardados para os . 1111111 11111 muito tempo anularam os ganhos demográficos conse-
dias; recorre-se ao penhor; começa~se a ab~orver :: 111:11 li 1111 longo dos períodos de recuperação.
- de farelo
tos repugnantes: pao ' , urtigas .cozidas, sc1111 Ili•1 l111l11~nqueles que viviam comumente no limiar da pobreza
as de o-ado recolhidas nas m:ll 1111\ li ~ 11r11m numerosos - tinham razão, portanto, de ter
desenterra d as, entranll
, o 1 1
sob diversas formas, o "contágio" se esp~lha; dcpo ~ , 11111111110 o preço dos cereais encarecia. Daí rebeliões "fre-
. , . a come as "febres penuc1osas e 11101 llh i 1· hnnais"81 nos anos de carestia, e sobretudo nos meses
aperto, a m1sena, 1' , . ,. , 1
as" A família é inscrita no posto dos pobres em dc1.111111 111 ~~11fr11. Na origem imediata dessas rebeliões, duas espé-
~e Í693. Em março ele 1694, a .filha mai_s nova_ m11rn•1 11 11111t1cc imentos: de um lado, transportes de cereais para
. . elha e o pai De uma família parucul:11·1111111 111 1lil11l11, da cidade ou da província; de outro, a raridade
ma10, a mais v . ., ~ tl
feliz J'á que todos trabalhavam, ficam uma viuva e u11111 li 111,1~ pudnrias e os balcões vazios logo pela manhã porque
'
Por causa,do preço do pao.
- so ,l,t hwn levada às primeiras horas do dia pelas melhores
l 111 110, 11 inquietação se produzia especialmente entre
7
• - d debilidade cios rendimentos :11:(dt 111 1 ll11 11•~, e passava-se de apreensões justificadas a medos
Assim, em razao a _ . "' . ,
da relação precária entre produçao e _dem~grafia, u:.":'. 1 ~, , 11, t' 11 condutas de violência. Espreitavam-se e pilha-
. d te u' m'1da e uma colheita mirrada amc,1,,1111 1 i 1,11111portes de cereais nas estradas ou descarregavam-
d emas1a amen ' . . 1 1
1\ 1l1111•cas de comerciantes à sua passagem perto do cais
mente d e morte parte d a' população: os md1genccs
_ < c 1111 11
.
. 1 1, \1 1,•ombavam-se as portas dos padeiros, saqueavam-
ongens, e, c laro, essas
. "bocas, inúteis" que sao expulsas t n~, 1
' 111hlllccimentos, que por vezes eram até incendiados.
1 , pnlllOSO no fato de que penúrias agudas - aliadas,
* Moeda de valor fixo, de prata ou, nwis tarde, de cobre. (N. ' I,)
1~ p11~sons, a uma subalimentação crônica - tenham
.. Moeda cujo valor variou muito. (N. T.)
255
fomentado loucos terrores e provocado cóleras coletivas. Tr11111 111h•~ arcaicas na camada popular. Nunca, em todo caso, escrc-
va-se de homens e mulheres acossados pela fome/ 6 que pt11 1 t•fcbvre, "os distúrbios frumentícios foram tão numerosos
c uravam imediatamente responsáveis de fisionomia h111111111, 1111l11rnnte a segunda quinzena de julho de· 1789",88 em parti-
para uma situação criada por causas anônimas e dema~1111I 1 1 11m nrredores de Paris: comboios, granjas e abadias ataca-
mente abstratas para eles: os imprevistos do clima, a debilich11l1 11111 pessoas em busca de cereais; assassinatos ele mo leiros e
dos rendimentos, a lentidão dos transportes. Os bodes cxpl11111 111wrcinntes de grãos; pânicos e preparação para o combate
rios e ram os padeiros, os moleiros, assim como os comcrl'll1111• 1111 tio toque a rebate quando, no mercado de tal localidad e,
de cereais e os açambarcadores acusados de rarefazer a rt i111'111 1111111s1lrios parisienses vinham buscar cereais etc. A agitação
mente os g rãos para aumentar sua circulação e, se necc,,,lt t• tt ,11111 cm 1789 pela penúria e que deu origem ao mito do
vendê-los mais longe com maior lucro. Por toda parte, em 11111 tu dt• fome" conduziu em muitos lugares à criação apressada
po de revolta frumentícia, gritava-se: "Os padeiros querc111 111 lllh lu~ locais e abriu caminho para o medo dos salteador es.
matar de fome!"; e por toda parte ameaçava-se "assá-los c111 , 111 ll11 1111e supera a anedota e revela o quanto se temia a falta
fornos"; por toda parte os "monopolizadores" e os cspcc11h11l1 1 t 111 re os revoltosos que conduziram em outubro Luís XVI
res eram tratados como "avarentos", "usurários", " inimiKm 11 l 1111flit1 de Versalhes a Paris contavam-se muitas mulheres
bem público", "lobos ávidos". As populações superCX('h,111 1t1h11111 ido antes de tudo procurar "o padeiro, a padeira e o
faziam as autoridades participarem de suas a ngústias e d1• 1" 111 p11dnria". o decorrer da Revolução Francesa, o proble-
rancores. Intendentes, cortes d e justiça, escabinos o rck-11111 11, 1 •~11111cnto" - um termo sig ni ficativo - apresen tou-se de
confiscar os cereais das carretas, deter os barqueiros, viuhtt , 11111tl11, e rebeliões da fome se produziram durante a pri-
padeiros, revistar os celeiros, procurar os "monopolizaclo11 1 111•1-1 rn do :mo JlJ (1795) em Rouen, em Amiens e em
A situação alimentar e demográfica melhorou no d1•11111 l 11111111in-cn-Laye.19
cio século xvm em certo número de províncias francesa, , i\ l 1
medo de faltar pão tinha atrás de si um passado tão lonµo 1 \h,
disso, no próprio ano· em que Turgot decidia imprudcn1t•1111, 11 1 l'i< :O: UM ESPANTALHO
pela liberdade do comércio dos cereais (setembro de 1'/l lt
colheita foi má. Volta-se imediatamente aos piores tef11111 1t 11111t•dmentos de 1789 não devem levar a uma genera-
antigamente e às condutas violentas, cujo rito as 1111111111 1 "1•~~iv:1. Penúrias e sedições não estão forçosamente
haviam elaboràdo havia muito tempo: depósitos d e trig-o 1 111 111111111110s o caso da Inglaterra nos séculos XVI e xv1 1.
cados pilhad8s ao r edor de Paris, ataques a padarias e111 11111 11111111 de períodos que tiveram colheitas particularmen-
em Versalhes por bandos descontrolados. Para :1p:t1(1II 11111m os anos 1594-8 - não foram ali m arcados por
incêndio - a "Guerra das Farinhas" - o ministro p11,, 11 11 \lllt:i popular. Inversamente, a rebelião de Wyatt
reunir 25 mil soldados.81 Alg uns anos mais tarde, c m rn1íl11 1 1 do norte do país em 1569 coinc idiram com boas
más colheitas de 1785, 1787 e 1788 e do terrível gelo do 1m I•111 sua grande Histoire des croqurmts, Y.-M. Bercé
de 1788-9, os franceses retornaram uma vez mais - c 1•11111 l111111lmcnte o par fome-revolta. "As r ebel iões fru-
de escala - aos comportamentos mais tradicionais do, lo •••1 • \l'l'Cvc ele, "não são senão um modelo, e um dos
de penúria. De maneira que, se houve então ação inov11d111 •1111•111cs, d:is violências coletivas [na França] do sécu-
camada burguesa da sociedade, viram-se mais cio 11111 111 11111' n miséria provocada pelas duas grandes des-

257
graças cujos retornos periódicos estudamos - . passagem cio •nos 1642-8, a Inglaterra, nos séculos XVI e X\I JI, conheceu
homens de guerra e penúria - tenha, em mais de um cn~1 , l1thal muito menos revoltas populares do que a França da mes-
exacerbado a sensibilidade e a agressividade das popul:i~·1\1•, pocn. E a razão dessa diferença, para E. S. L. Davies, é esta:
preparando psicologicamente o terreno para revoltas postei 111 lnl(IUlCrra, durante esse período, "as classes inferiores foram
res, a coisa é certa. Ocorre que as rebeliões antifiscais, de q,11 1 1 l'llmpletamente isentas de impostos, em contraste gritante
preciso falar agora, tinham muitas vezes maior ampli111cl1' 1 11111nc se passava na França, onde o imposto foi a ocasião, se
duração do que as perturbações frumentícias, tendo desc111p1 1 11111sa, de grande parte das revoltas do século xvn".95
nhado um papel essencial na história rural e urbana da f.11r11111 l 111tnndo-se da França, inúmeros exemplos, mesmo ante-
de outrora e, além disso, a taxação ou a ameaça de novas 111~,1 • ,111 s~culo xv11, servem de apoio a tal análise. Carlos v, às
frequentemente serviu de detonador a movimentos scdicio~11 til~ ele sua morte (1380), decidira a abolição dos impostos
Lembremos, por exemplo, que na Itália a revolta de Pcn\11 • r, loN ti fim de a liviar seu povo oprimido. Mas logo precisou
contra Paulo rn em 1540, as de Palermo e de Nápoles c111 lfi 1 111 h•1·cr os impostos imprudentemente suprimidos: segui-
contra os espanhóis começaram por recusas de aumc 11111 11 ' 11~ rebeliões urbanas de 1382.96 A revolta das comu nas de
impostos. Consideremos contudo mais atentamente os 1•11 11 11111 um 1548 foi um protesto contra a extensão da gabela
inglês e fra ncês, que são os mais bem conhecidos. 11\ lltdns do sudoeste do reino - extensão revogada por
97
A sublevação dos trabalhadores ingleses em 1381 ganhou • lh(llt' li em 1549. Ao longo do século >..'VII, graves rebe-
longo de seus desenvolvimentos uma coloração antisscnhrn 111 111 ln11111s e rurais tiveram por o rigem, na França, a sobre-
(v.írios castelos queimados; reivindicação da abolição cl:1 ~, 1t 1 11-, 111 ou a ameaça de novas tributações: a dos miseráveis
dão); tingiu-se ao mesmo tempo de esperanças milenarist:1~, , ., h t Normandia em 1639, por causa de um projeto de ex-
a fa mosa referência à idade de ouro atribuída ao pregadrn J11l11 11 1h1 l{nbehi a essa região, que dela estava isenta;98 as de
Ball: "Quando Adão cavava e Eva fiava, onde estava o 110l11 li I rl1• Caen no mesmo ano, em razão do novo edito das
No entanto, ela foi provocada pelas exigências fiscais do 1111 111,, il1•vcndo um visitante-provador controlar doravante as
lamento: as poll-tnxes de 1377 e 1379, capitações desig11:il1111111 tt, 11111 <.'ada cidade e burgo -visita acompanhada de uma
divididas que, em certas aldeias, podiam exigir de um 11,:111 ,li, 11 il11~ camponeses do Angoumois e da Saintonge em
dor braçal uma soma ig ual ao salário de três dias de 1n1h,tl11 • ilu Ptll'igord cm 1637-41 - "a maior sublevação campo-
superior a qualquer imposto anterior:n Quando H e nriqw \ t• li1 l1h111í rin da França com exceção da guerra da Vendeia",10º
em 1513, quis instaurar novamente a capitação, essa 11·11111 ,
7
l 11, 11111ha e do Rouergue em 1639-42: todas motivadas
acarrecou distúrbios em Yorkshire.~) No século XVI 1, a t·.1·, 111 , 1 111111 1110 das derramas.
sobre a venda das mercadorias decidida no momento 1•111 ,, • 11)11it·n cl:is sublevações antifiscais tanto em Paris como
eclodia a guerra civil, suscitou uma série de rebeliões c 111 lf1 (, 1111111, 1648, o primeiro ano da Fronda, merece uma men-
e o governo aboliu-a sobre os produtos alimentícios.''' <>•1 hl • 11 • hd, A exasperação con tra o imposto, a indignação
riadores britânicos observam que apesar dos distúrbios 1 1 1111111'11 os coletores explicam a atitude dos parlamentos
cialmente políticos e religiosos - que eclodiram sob l li 1111 1111, ~110 que esta encontrou na opinião. Reciprocamente,
vu e Eduardo vr em razão da luta contra o catolicis1110 t' d111 1111 1h111 nsscmbleias soberanas às novas medidas fiscais
cação à venda dos mosteiros, que apesar mesmo da g-111•11 1 1 1111 \11 1 edito da tarifa; renovação do tributo para con-
2>9
servação de cargo) estimulou múlti?las recu~as coletivas <\li A~rebeliões antifiscais - em particular aquelas que eclo-
tributações. "Acreditou-se que com isso estan~ acabado n li 1 fl11t 1H1 França no século XVII - foram frequentemente ges-
rorismo fiscal, o reino dos arrematantes de impostos e du 111• desespero provocados por um excesso de miséria e pelo
intendentes considerados como seus sequazes."'º' E m b<>111 · 1t 1111 cio agravamento de uma situação já insuportável. Em
revolta de que a Bretanha foi palco em 1675 tenh~ t_o mado 1111 111tlurno de queixas dos estados da Normandia datado de
campos aspectos antissenhori~i~, com ataque,_5 a vanos cas~~ln •, lomos:
e O desejo - expresso no Cod1go Campones - de abol11 li
encargos dominiais tais como direito feudal sobre as sc1ll'1t-, N1111hor, trememos de horror diante das misérias do po-
corveias etc., o ponto de partida da sedição em Renn~s e t•llt h11• cn~nponês; vimos alguns deles, nos anos precedentes,
Nantes, todavia, foi ainda a hostilidade a novas taxas: 1rnp1 m111 1111•~iip1tarem-se para a morte por desespero dos encargos
do papel timbrado, estampilha do estanho, tributação solll'I' 11 11111• nno podiam carregar, outros que eram retidos na vida
venda do tabaco. Além disso, correu o rumor de que a Brct:111h11 11111•s pela paciência do que pelo prazer ou pelos meios de
ia ser submetida à gabela. Os camponeses, que deram co_n~i1111I 11111111:rvá-la, atrelados ao jugo da charrua, como os animais
dade à agitação urbana, não deixaram de atacar o~ escr:1tonrn11h 111• 11rreio, laborar a terra, pastar a grama e viver das ra.ízes
impostos das granjas e, se atacaram castelos, _f01 muitas Vl'II 11111• esse elemento parecia ter vergonha de negar-lhes, por
porque desconfiavam que os nobres que os habitavam - dcll'II 11t ~ustentado seu nascimento, vários refugiados nos países
tores de algum cargo régio - eram algum daqueles q 11t• l 1 P•I 11111g_eiros ou províncias para esquivar-se a seus impostos,
, . 'º'·
· a gab ela na provmcrn. 111111\quias abandonadas. Nem por isso, contudo, nossas der-
introduzir ,
Antissenhorial sob certos aspectos, a revolta dos Bo11111 1111111111 diminuíram, mas aumentaram a ponto de ter tirado
Vermelhas da Bretanha não era antinobiliária: desejav:1111 q111 li 1 ,1111isa que restava para cobrir a nudez dos corpos e de ter
as moças nobres escolhessem maridos "de condiç~o comu 111" ~ ll111 mclido as mulheres, em vários lugares, pela confusão de
os enobrecessem.'°1 Mais geralmente, as pesquisas rcc~1111 -.111 própria vergonha, de encontrar-se nas igrejas e entre
provam que sob o Antigo Regime a maior parte das scd1~•1'11 11, 1•1•lstiíos. De maneira que esse pobre corpo, esgotado de
camponesas foi menos hostil aos nobres do que ao g1'.vt'III!• 1111111 Nua substância, a pele colada sobre os ossos e coberta
central, distante, anônimo, opressor, incessantemente 1nv1•11 11p1•1111s de sua vergonha, não espera senão a misericórdia de
tando taxas. Na França, foi nos séculos },,_'VI e XVII que :1 l'l'l' lt
1 \ 11•~11 Majestade.101
violenta do fisco agressivo de um Estado_ cada vez mais h111 11
crático e cehtralizador se manifestou mais frequentemcntt•, 1 lttlplk-n hiperbólica para comover um ministro? Sem dúvi-
não foi raro, então, ver a burguesia nas cidades e os nobn ·H 1111 11111• 111mbém evocação de uma realidade cotidiana da épo-
mundo rural fazer causa comum, ao menos durante cer to 111111 1~1111111 encontraríamos mil outras descrições concordantes
po, com o povo miúdo revoltado.'º~ De resto, nos campo~, 11 l 11111p11 vítima da Guerra dos Trinta Anos. A entrada da
nobres residiam ainda muitas vezes em seus castelos. 1'.I 11111 li\ 1111•ssc conflito teve como resultado duplicar em alguns
conhecidos; faziam figura de protetores naturais. Se em 171N 1 t 1•11 ,·ga fiscal suportada pelos camponeses franceses.
campesinato se voltou contra os nobres, foi ?orque_ 1111111 1 111 111 l111eira vez, as exigências régias ultrapassavam franca-
haviam adquirido o hábito, no decorrer do seculo XVIII , 11 li ,,~ dn Igreja e, ainda mais, as dos senhores." 106 Impostos
morar na cidade, e a população perdera o contato com ck•,, li ltt~ c derramas progrediram ao mesmo tempo; daí as
?t; 1
revoltas urbanas contra esses impostos que atingiam espcdul llltllt ldiio se dirigira à prisão para libertar aqueles que a iini-
mente os artesãos e as revoltas rurais contra os aumentos thl 11th1dc dos homens de finanças ali lançara.
derramas que alcançavam sobretudo os camponeses, tc11d11 I•Ili t:il clima de efervescência e uma vez superado certo
contudo os projetos de extensão ou de agravamento da g:1l 111h1 111111 de excitação, contava menos o imposto temido do que
a unanimidade das cidades e dos campos. A duplicação do hl ~111•ulnr mitologia antifiscal, menos a realidade do recolhi-
impostos significava, para pessoas que viviam presas ao li 111h11 11111 do que a imagem terrível que dele se fazia.
da miséria, uma ameaça de morte - rápida ou lenta - c cxpll
ca a inquietação coletiva ao anúncio de novas medidas fisrnl
O intendente Verthamont descreve a rebelião de Périguc11x 11111
1635 como "uma doença de todos os povos daqui, um dcs(.(ONI••
das sobrecargas, um aborrecimento que poderia degenera i' 1'111
um completo frenesi de pilhagens, subversões e assassin11111
uma loucura, uma melancolia".107 O desespero desdobr:1v11 ,
em cólera diante dos procedimentos de cobrança - "i11~11
lências" que, em razão das urgentes necessidades do l•:~111d1,
transformaram-se, na época da Guerra dos Trint,1 Ano~, 111,
terrorismo fiscal. A cobrança das derramas conduzia a coll~ll•
individuais com apreensão do gado e dos móveis ou a <:011~(11
comuns que se exerciam contra toda uma aldeia. A cnd11111I
das revoltas rurais obrigou à formação de um verdadd111
odioso exército do imposto (os "fuzileiros das derr:111111' •
Contudo, a paixão antifiscal e a psicose da gabela 111
quentemente difundidas de uma região a outra pela gcnl\l ti
grandes estradas - voltavam-se particularmente co11t 111 t
comissionados das granjas e seus oficiais públicos. Ac u;;:1d11• 11
enriquecer depressa à custa do povo e do rei, os cohr11d111,
de impostos e~traordinários ou gabeleiros eram os inl111l111
públicos das çoinunidades, "canibais" que era preciso p1111II
antiego da b~a consciência coletiva. Daí a liturgia d;1 rcl11 li
quando ela era dirigida contra o gabeleiro: o ataque dt
alojamento ou do albergue onde ele acabava de inst:11111 ,
"condução" pelas ruas do personagem escarnecido t:1111 111 111
marido traído, em meio a uma espécie de algazarra, a rn111I
nação à morte do pérfido, de quem muitas vezes se clizi:1q111
arrependia antes de morrer - lenda adequada para cc>11l l1111
os revoltosos em sua legitimidade. Além disso, desde o ,•11111
263
262
llh ,, do ~mnor", nem de meios policiais suficientes para
s. MEDO E SEDIÇÕES (II) 11111 os aJuntamentos e a autoexcitação da multidão. Alguns
h,11110s que outrora criaram comoções nos parecem total-
li uhorrantes. Mas não vimos, em 1953, o apresentador de
11 ,1tlcin de rádio americana provocar um pânico coletivo ao
111 h11• n c hegada de marcianos em discos voadores?º O que
li Ili uqui é o que a opinião, ou uma parte dela, acredita
1. OS RUMORES l\'1 I, l•:m 1768, o colégio dos oratorianos de Lyo n é inva-
A imaginação coletiva trabalhava sobre toda espécie de Ili 1 p1111 multidão e saqueado. Acusam-se os religiosos de
mores. Às vésperas da sublevação conhecida na Inglaterl'II 1h, 11(111 um príncipe maneta. "Todas as noites", conta-se, "são
século XVI sob o nome de Peregrinação de Graças, brn\111 l1~ 1111s redondezas do colégio crianças às quais se corta um
inquietantes e maldosos circularam de aldeia em aldeia: ?s. vl~I 111111•11 experimentá-lo no pretenso príncipe." A rebelião faz
tadores dos mosteiros que o rei mandava fechar eram, d1,.1:1 hl 1hloN.' Expliquemos psicologicamente esse acesso de cóle-
homens corrompidos que se enriqueciam com despojos do l11ll11s não acreditavam impossível, outrora, essa extraor-
conventos.' Estava-se mais convencido ainda de que, com 1111 l'irnrgia. Por outro lado, desde a expulsão dos jesuítas,
. . , 'jllli
ação espoliadora, começava "a ~estruição da sant~_rel1g1:.,o 11111 lnnça se mantivera na opinião em relação a seus suces-
Notícias alarmantes precederam igualmente a rebehao da< ,OI ' t, 11111iderados capazes dos piores malefícios. Enfim, cir-
nualha cm 1547-9: o novo Prayer book, acreditava-se, não 111111 1111 pododicamente, em Lyon como em outras partes,
3
autorizaria o batismo senão aos domingos. Na realidade, 1 h
1 .- d1• raptos de crianças: ora acusavam-se os boêmios e
aconselhava simplesmente que se agrupassem as cerimô11h1 11111111011, ora os oratorianos no caso presente, ora a polícia.
batismais no domingo a fim de que tivessem lugar na prese'.'\ , 11111,hl de Lyon pode então ser comparada àquela que ensan-
lltHI Pnris em maio de 1750 e no decorrer da qual houve
da comunidade dos fiéis. Mas estes acreditaram que os 1-ccl'lll
-nascidos doentes corriam doravante o risco de morrer M' lll 1 il,, homens. Dizia-se que oficiais de polícia em traje civil
batismo e de ser assim destinados ao inferno. Daí a inquiet:l\'111
1 l,o ,1111 os bairros de Paris e raptavam crianças de cinco a
111111~. ' lendo uma delas gritado quando era lançada num
das populações. . .. _ ~ , .
••~se foi o rumor que se espalhou-, o povo se reuniu
I mpossível' ao menos tratando-se da c1v1ltzaçao pre-md11' 1 li I ltlo, O advogado Edmond J.-F. Barbier conta:
triai, separar'cumores e sedições, quaisquer que tenham s1111
as dimensões cronológicas e geográficas destas. Na Frarn;:~ d
hoje, um alarme como o de Orléans em 1969 pode ser don111111 1 1 l lliisc-se que o objetivo desses raptos de crianças era
do a tempo e não desembocar na rebelião. Outr~ra, e1:1 cn.'11 I"' l111vin um príncipe leproso, para cuja cura era preciso
1111 l11111ho ou banhos de sangue humano, e que, não o ha-
pensação, era difícil interromper os rumore~- ~ois mut_to 111
11111111111is puro do que o das crianças, tomavam- nas para
quentemente obtinham crédito em todos os 111ve1s da S_?Ctcd:ult
1111111 lns dos quatro membros e para sacrificá-las, o que
inclusive nas esferas dirigentes. E, mesmo que esse nao foss1•11
\11h,1 ulncla mais o povo. Não se sabe em que são basea-
caso, as autoridades não dispunham nem de meios de infor11 111
ção (jornais, rádio, televisão), graças aos quais se pode ,t~11111I i•- 1 ~"IIS histórias; esse remédio foi proposto no tempo de
1111~1!111ti no, imperador que não quis utilizá-lo. Mas aqui
acalmar uma inquietação coletiva por meio de uma espec1c il
265
não temos nenhum príncipe leproso, e, ainda que hott\, l•ll\ 1lS, a cura através da saúde de outrem), a identid ade
se, jamais cr ianças de seus pais e mães. Pode-se Lei' tllt, 111 dos bodes expiatórios aparece como secundária. Ora-
a alguns oficiais de po lícia q ue, se tenha necessicl:1d1 ,1 n1.-, oficiais de políc ia ou comerciantes de bonecas t inha m
crianças p ara enviar ao Mississippi. Mas apesar clis~o 111, 111111110 por meio de gestos m al interpretados as apreensões
é de p resumir-se que haja alguma o rdem do minisLrn p 11 h 11111s do público. Novos testemunhos sobre estas: em
aqui raptar c r ianças de seus pais e mães. Pode-se te1 1111 • polícia precisou pedir aos padres de Paris que acalmas-
a alguns oficinis de polícia que, se encontrassem c rillll\ , li 111hnnho, mais uma vez convencido d e que suas c rian-
sem pa i nem mãe ou aban donad as, poderiam apreendi• l 1 111, ,1111 cm perigo;• e, em uma d ata tão tardia quanto 1823,
[pode ser] que se lhes tenha prometido uma recomp~11,11 , , h1r no Dictiom,nire de police 111odeme, de Alletz, no ver-
que ten ham abusado dessa orde m [...]. Aliás, não se 1°11111 l111•111c": "É proibido espalhar o alarme entre o povo, por
preendc nada desse projeto: se é verdade que se tem 1w1 1 1h 1,ilsos rumores ou de falsas n otícias que podem inquie-
sidade de crianças dos dois sexos p ara estabelecimcn10~ 11 1111 111,sustá-lo, tais como o temor da penúr ia, o rapto de
América, há uma grande quantidade delas tanto nos 1·111 1 1,' 1i l C.9
tados do fa11bo11rg Saint-Antoine quanto nos outros :1~!111 l 111 11111 ro tremor coletivo tenaz revelado, ao menos n a
11, 1wlos rumores e sedições de o utrora é o do imposto
U m mês mais tarde, o rumor dos raptos de crianças cirt·11I 11 1 \'tdn. Esse mito parece ter atingido seu máximo de
em Toulouse. É ainda o advogado Barbier quem nos inforn111 1 hl111ll• no século XVII e n o começo do século xvm , ép oca
111\1\11 galopante do fisco, fican do a opinião pública dora-
Esse pavor teria alcançado as províncias. Diz-se que c111 l 1111 1" 1 1111dida de que, do Estado, tudo se podia temer. Mas
!ouse homens que vendiam bonecas quase foram 111rn·111 l 1\11 profundamente vinculado à h ostilidade de uma civi-
pancadas, con siderando-se que era um pretexto p:1r:1 111 11 11 11 1,~l•ncialmente oral em relação às escritas de pagamen-
c rianças, e admite-se, agora, que todos aqueles que 1011111 11h lpl kaclas pela burocracia centralizadora e dada ao pape-
mortos ou então maltratados nos tumultos de P aris, l"rn 11111 l 1111•111 1568 q ue se criou o imposto dito de controle dos
-no po r engano ou suspeita [...].1 1111~11Vcl por ocasião de produção na justiça de extratos de
1111• p11roquiais. Renovado em 1654, foi agravado pela cria-
Essas três "comoções" remetem à convicção outrora :1111pl, i 1,li !(OS de escrivão em 1690 e, depois, de controladores
mente difundida de que criminosos roubavam crianças. Qu,11111 11111~ um J706. A inquietação n ascida dessas decisões acu-
vezes não se amedrontaram as crianças desobedientes co11t 1111 1,~ dl•Scmbocou po r várias ocasiões em rumores intran-
do-lhes que bichos-papões chegariam para levá-las! Como 1111 ,111111 1•~ e em "comoções" populares a partir de um ed ito
va, no começo mesmo do século XX, a iconografia m o raliz11 111 11111prccndiclo ou ele um edital m a l lido. "A cada filho que
das g ravuras populares de Epinal. Esse medo, e m dois dos 111 1 ulllt't,.., vierem a ter doravante, terão ele da r uma ce rta
evocados anteriormente, juntava-se, reforçando-a, a ess:1 <11111 ,li 1lt11hciro" - esse imposto m ítico sobre os nascimentos
crença, d e modo a lg um insensata para uma m entalidade 111111•1 11,111 ~ed ições em Vi llefranche- de-Rouergue em 1627, n as
ca, de que, para curar um principezinho doente, é pn·1I 1 ,Ir G uynne em 1635, em Montpellier em 1645, e m
sacrificar uma criança saudável e provocar assim uma tr:u1~h • ~111111c em 1665, cm Pau em 1657, em Aubenas em 1670,
rê ncia de saúde. No que conce rne essas duas atitudes (o r1111I h111111111c cm 1706 e 1709, no Quercy em 1707. No tempo da

266 267
Fronda, o Catéchisme des partisans (1649) denunciou os ho1111:11• Urlt· seu sal e de vendê-lo livremente, com exceção de pagar ao
de negócios "que outrora tinham sido ousados a po_nto de prn l 1111rn taxa igual a um quarto do valor produzido. Mas a revol-
por ao Conselho estabelecer impostos sobre o bansmo s:1!(1'11 1l11s miseráveis de Avranchin eclodiu em julho de 1639, antes
do das crianças".1º Imaginou-se igualmente que casamenlott t 1111nlquer texto oficial de estabelecimento da gabela tivesse
enterros também iam ser taxados; vilipendiaram-se os cobr:1d11 11 publicado. E m suma, gritou-se antes de se sentir dor e sem
res de impostos que "se alimentam dos suspiros e se divcrll•III ~liln se teve razão, já que, diante da extensão da sedição, o
com lágrimas". Também em Villefra~che (1627), Pau _(168l) t 111110 renunciou a seu projeto. Ocorre que, amadurecido
Bayonne (1709) acreditou-se em um unposto sobre a agua 1h1 11111 espera inquieta e alimentado por toda uma mitologia
nascentes dos rios, "sobre cada cântaro de água que as mnllw11 IIIINrnl, um rumor basta para incendiar a pólvora; acreditou-
tirassem da fonte". 11 Umas tantas formas do temor profundo tl1 ljlll' 13esnadiere-Poupinel, tenente no presidiai de Coutan-
ll'll½ia o edito temido. A multidão condenou-o à morte e
ver instituir um imposto sobre a vida.
Estando doravante assegurado que, na França dos séc11l11 r11111hin entrou em insurreição.'; Em 1675, se as desordens de
XVI-XVII, o fisco esteve na origem das revoltas mais numcl'illlll 11111 N é de Nantes provocaram uma sublevação dos campo-
e mais graves, basta abrir as crônicas da época para nelas 1111 11 ' chi baixa Bretanha, foi porque na Cornualha correu a
lizar os rumores que serviram de detonadores para a. c~,lt•11 h h1 de que um lugar-tenente do rei estava encarregado de
popular. A maior parte, nas regiões isentas de g~bela, refor~11 " 1111111,ir a gabela nas dioceses de Vannes, Saint-Pol-de-Léon,
ao imposto sobre o sal, cuja intenção de generalizar em amh11I 1 11h11• e Quimper. Bandos armados atacaram os "gabelei-
1) pnrlamento de Rennes precisou promulgar um edito
da ao governo. Mas era tal a sii~istra reputação dessa ~~x:1 q111
qualquer novidade fiscal era mmtas vezes ~hamada ~de galwl~ 1li ,111clo falsos e sem fundamentos os boatos relativos à
pela opinião inquieta. Em Bordéus, em maio de 163), espa\111111 l,1 11 !Ornando públicas penas contra aqueles que os propa-
-se O rumor de que "se queria estabelecer a gabela do snl li 111,1~ Era tal, então, a ansiedade permanente criada pelo

cidade". Fez-se igualmente correr pela cidade o boato dl.! "q111 1 •llll' outrora bastava lançar um rumor de novo imposto

se queria cobrar dois escudos por tonel, ~i~co sous por c:1cl:1_11111~ 1h ~pcrtar "comoção" popular. Como em Cahors em 1658:
e trinta outras mil falsidades"!1 1 A mult1dao atacou a prckll Ili • 111 ,11•m·te dos impostos indiretos decidido o estabelecimen-
e massacrou "gabeleiros". O exemplo bordclês foi s:guidn Ili 11111 t'Ompoix cabaliste (registro que servia para estabelecer
sudoeste, especialmente em Périgueux e em Agen,- _Em l11111 1 dn~ tributações), "os comerciantes e os hospedeiros ali-
gueux, a desqrdem eclodiu, e_m jun~o'. "com as not1cias.,clw~11 Ili II povo miúdo, dizendo e publicando por toda parte
das de .Borc!éus de que o rei quena impor uma cont11hu l~111 1 1 11 l{nbela, e o povo miúdo era tolo o bastante para acre-
sobre os hospedeiros e outras taxas vulgarmente chamad1w ti 111-•i•,".17
gabela".u Quanto à sedição de Agen, ~ambém de junho tk lfil 1111 l'lllllOr nasce, portanto, sobre um fundo prévio de
"chegou com a suspeita de que se ~rnha estabelecer a !-{1thrl 1 ltl\lk1s acumuladas e resulta de uma preparação mental
na cidade e de que havia muitos habitantes [...] que tom:1v11111 · ti 1111111 convergência de várias ameaças ou de diversos
partido dos gabeleiros".'4 Evidente~nent_e, nem sempre l'N 1 l1l11lt1tl qoe somam seus efeitos. Em 24 de maio de 1524
rumores eram sem fundamento. R1chelieu realmente p t>1l~1 • ,h•vnstada pelo fogo. Outrora tais incêndios eram fre~
em suprimir na baixa Normandia o pr_i~ilégio do 111~1·t lmul/h 1 , • Ili cidades onde muitas casas eram de madeira. Mas as
que dava às regiões que dele se beneficiavam o dtre1to eh: p111 , ~" 1•onvencem de que "gente desconhecida e disfarçada"

269
268
se introduziu na cidade e fez crianças de doze a catorze 111111 r1III' e em 1523 chegaram a ameaçar Paris. A pontO de o
nela atearem fogo. V,irios desses meninos são enforcados. 1\111 1 w ccisar proibir, nesse ano, que se tocassem os sinos no
é mais difícil descobrir os verdadeiros bota-fogos, aquele~ q11 th l'o dos os Santos "a fim de que possamos ouvir algum
tinham comandado a operação, "pois todos os dias eles 111111111 111,il roído mais facilmente".21 A "traição" do duque de
vam de trajes: algumas vezes estavam vestidos de comerc i1rnlt th11t1 (fevereiro de 1523) abalou a opinião. E quando se
outras vezes de aventureiros, depois de camponeses, a l).(1llllil 1111111 1 no mês de julho, que Francisco 1 ia partir para a
vezes não t êm cabelos na cabeça e por vezes os têm, em s111111 11 (Ih• foto, ele não ultrapassou Lyon), os par isienses tiveram
não se pode reconhecê-los".'8 O medo dos bota-fogos rnpltl 1 Ili l111cnto de serem abandonados. Acrescentemos ainda o
mente alcança Paris, para onde é levado de Troyes um pa i 1·1111• 1110 do "perigo luterano", o gelo do inverno de 1523-4, de
filhos, garante-se, contribuíram para o incêndio e que a jllNI 1\ ~ li li que a entressafra da primavera foi difícil, as procissões
executou. Na capital, correm múltiplos boatos: "A misturn )1111 • h111't11m se multiplicado em Paris, ora por causa do tempo,
a queima" foi preparada em Nápoles; "A cidade de l'nd• I"" 1•nusa da guerra. Compreende-se que tal conjunção de
outras cidades do reino [estão) ameaçadas de queimar"; o 11111 li I l111untos inquietantes tenha traumatizado a opinião
tador é o condestável de Bourbon .19 Vinte e dois alern:h-11 ~ h lt w1c1 que a tenha tornado crédula a todos os boatos alar-
presos "sob suspeita" no faubonrg Saint-Denis. "lnter rog-ntl11 lt - 11 que tenha despertado nela o medo dos vagabundos.
revelam-se inocentes. Mas a municipalidade ordena "aos co11111 ~11111·11 mesmo do incêndio de Troyes, o parlamento orde-
1
ciantes, burgueses e habitantes" que fiquem de vigia à 11oi1111 11 11t1dos os desocupados e pessoas "sem eira nem beira" que
que continuou [...] pelo espaço de dois anos". O parl:11111'111• 11,~1111 1 11 cidade. Como não acreditar que havia bota-fogos
ordena ainda que se mantenham lanternas acesas dia nl\1 rh1 1 lt•~?
casas depois das nove horas da noite e que se tenha ágrn, p1, ( l 111111or pode tomar o aspecto de uma alegria insensata e
manentemente em "recipientes" na proximidade das porl 1llt, \ 111111 louca esperança - falamos da crença recorrente n a
fogueiras de são João e a festa de são Pedro e são Paulo 1, 1\ 111 tios impostos. Porém, no mais das vezes, é espera de
proibidas naquele ano. Vagabundos são presos e, aco1-rc111 111h, 11111111 únio. Não é surpreendente, levando-se em conta o
dois a dois, obrigam-nos a limpar as fossas da porta S11l111 1 111 1q111do no fundo do psiquismo coletivo pelo temor de
-Honoré. Em tal clima de suspeita, nada de surpreendcnll' 111 l111postos e pelo dos errantes, que muitos dos boatos pro-
acredita ver "portas e janelas marcadas de cruzes de ~11 111, 1h111•~ de outrora tenham se relacionado com uma ou outra
111
André, negra~,. feitas à noite, por gente desconhecida". • 11p1•ucnsões permanentes, O Grande Medo na França de
O que e·n contramos na origem dessa inquietação col1·11\ 1
111 , 11111 que, em um tempo de dissolução da autoridade, tais
Bem profundamente, sem dúvida o medo dos homens d:1 KIH 1
11 1 , puderam desempenhar um papel histórico fundamen-
ra e dos vagabundos - vimos que a opinião pública os 1111 111 1li•
l,1~, du maneira mais geral, a impor tância e a função dos
uma mesma suspeita. Ora, um concurso de circunstâ ncia~ 111,
111~ 1111 civilização do Antigo Regime foram subestimadas.
mite que esse temor volte à cona. A guerra recomeçou 11:1 111111
desde 1521 e foi marcada por uma série de derrotas. Alé111 cll- ,
111 ,~no, ou melhor, sua reaparição periódica era uma cons-
acaba-se de saber da morte de Bayard. Ações militares dilll 11 1111\ lcl11 dos povos; uma estrut ura, como a própria revolta.
0

desenrolaram-se também na Provença. Do norte do rci 1111, 1 11111111• Medo não fez portanto senão aum entar, em um pla-
ingleses, aliados ao imperador, avançaram perigosamcn1 1· 11111 111,1,1• 1111cional, u ma realidade que conhecera nos séculos
271
anteriores múltiplas ilustrações de dimensões desig uai•, 111 11 1111c dela se teve ultrapassou os limites do real e do possí-
tempo e no espaço. A propagação de boatos alarmantes - •11111 ~Him, um rumor é no mais das vezes a revelação de um
pre circulando através dos canais não institucionaliz:idm 11hi, isto é, de uma traição. Os r elatos de rebeliões antifiscais
marcava o momento em que a inquietude popular atinl,{ill 1 11 1 111plctos de fórmulas tais como "conspiração da g abela",
paroxismo. O alerta do instinto de conservação por meio 11 1 t1111,1~·ílo do partido dos gabeleiros" ou do "partido da eles-
ameaças persistentes contra a segurança ontológica de um iu 11 , 1111e remetem claramente a uma maquinação de dimensão
po, as frustrações e ansiedades coletivas acumuladas cond111h1111 llhtl dn qual se conhecem, todavia, os agentes locais. D o
- e não deixariam de conduzir novamente em casos se111clh w 1111111odo que em 1524 acreditou-se em uma ação combina-
tes - a projeções alucinatórias. 2i O rumor aparece entiio 1•11111 •• ltota-fogos e em 1776, por ocasião da "G uerra das Fari-
a confissão e a explicitação de uma angústia generali1,ad111 , , ' 1•111 um complô dos provocadores de fome.
mesmo tempo, como o primeiro estágio do processo de cl1• I• C1, 111nssacres do dia de são Bartolomeu em 1572 e dos dias
calque que vai - provisoriamente - livrar a multidno d11 , 11111•~ um Paris e em várias cidades da França só se explicam
medo. Ele é identificação de uma ameaça e clarific:11;1111 11 ~111111•111nente pela certeza coletiva de um complô protes-
uma situação que se tornou insuportável. Po is, rejeitando 1111 I l· 111 consequência do atentado frustrado contra Coligny,
incerteza, a população que aceita um rumor faz uma :ll"ll'III~ 1 lhh1 de Médicis fi zera com que se decidisse pela execução
O inimigo público é desmascarado; e isso já é um alívio. 1\11~li • 1111 número de chefes huguenotes. Mas o governo não
em sua versão otimista, o rumor aponta um ou mais c ulp111h ~ l111unção ele m assacrar todos os reformados de Paris.
Corno durante a Fronda: os impostos iam desaparecer, 1• 11,, 1 poder real foi ultrapassado pela rebelião parisiense, que,
Mazarino quem impedira o rei de realizar esse gesto , 111111 1 ,111~ npelos à calma por parte das autoridades, tomou de
E ssa projeção paranoica fazia reaparecer periodicu 1111Ili 1 1~ 1•1111s da capital durante quase cinco dias com seu cor-
outrora, tipos ritualizados de bodes expiatórios - g:1h1•lt li 111 ocidades: vítimas desnudadas, arrastadas e lançadas
provocadores d e fomes, salteadores, heréticos. Gr:1~·:1H 11 t 11, 1111tlhcres grávidas estripadas, cestos cheios ele crianças
denominações (por trás das quais se colocam rostos), 111 1111 111I f d11~ tH> rio etc., gestos que se assemelham àqueles prati-
tividade se posiciona como vítimaN - o que efetiva me nti' 1 1 "" ,i\1•11l0 XVI pelos tupinambás do Brasil contra os p ri-
mais das vezes - e justifica antecipadamente os atos-<k• 111 li lm dt• guerra, à exceção apenas do canibalismo fina l.15
expedita que não deixará de executar. Além disso, i111p111,111 , rn• íuror popular tal que "suas majestades mesmo [...]
ao acusado (oo aos acusados) toda espécie de crimes, vlt li· 111,1111 evitar o medo no Louvre"?16 J eanine E stêbe cons-
negros desígnios, ela se purifica de suas próprias i1111•11~• 1 11~ dt1is editos de pacificação de 1562 e 1570 tiveram
turvas e t ransfere para outrem o que não quer reconh1•111 11lt11do comum o desencadear ela violência popular nas
si própria. 1111111• os católicos eram maioria. Estes acreditavam que
Escapando a qualquer controle crítico, o rumor 1, 111I llh 111dns as insolências seriam permitidas a seus adver-
aumentar os poderes do inimigo desmascarado e :1 ~i, 1111 h· 1"', 111)roveitando-se das concessões do rei, iam esfor-
centro de uma trama de cumplicidades diabólicas. Qu:11111 111, 111 dominar o reino. Um padre de Provins, Haton,
intenso for o medo coletivo, mais se estará inclinado :1.1111 ,1 1 ,1, mnneira significativa: "A dita paz [de 1570] feita
em vastas conjurações apoiadas em ramificações advl'l'~II~ h111111111111te chefe e seus chefiad os muito pareceu ser van-
que a quinta-coluna seja um mito. Mas em qualquer 111111 t 1 ,e liberdade huguenote, o que, na verdade, é [...] ".27

273
Os editos de pacificação eram portanto sentidos pelos c111n ho~que fazem a história real". 10
Graças às penúr ias que pre-
licos como traições, já que se concediam privilégios a pcsso11 111111 o verão de 1789, reapareceu a convicção, já presente
que a massa do povo via como rebeldes e heréticos. O t·1iro1 1776, de que m inistros e autoridades locais haviam con-
mento de Marguerite de Valois com o protestante Henriqm• 1h 1111111111 "pacto de fome" à custa do povo. Contudo, a reunião
Navarra, celebrado em 18 de agosto, pareceu uma confir11111~•n11 h rndos Gerais suscitou imensa esperança. Mas sem tardar
dessas apreensões: o que os huguenotes não poderiam pn:11111 11ntrnram em conflito com o governo. A opinião pública
der doravante? Por outro lado, é certo que, em consequê ncin 11!1 IIIIVtll\Ceu, não sem motivo, de que os privilegiados rejei-
atentado contra Coligny (22 de agosto), os protestantes dcNIJ 111 ns re formas e tentariam dissolver a nova Assembleia
zeram-se em palavras ameaçadoras: iam vingar-se. O di11 } 1 11111111, retomar o controle do Estado e manter os campone-
feriado, foi propício às reuniões de multidão nas igrejas. ( 1 •11ltj11gndos. A partir de 15 de maio, correu o boato de que
pregadores clamaram bem alto que os calvinistas qucl'l11111 tt\'111'1\0 reunia tropas ao redor de Paris. A demissão de
matar Henrique de Guise. Este fingiu sair da cidade, o q111 ~11 pnreceu a confirmação dos temores mais sombrios. E é
inquietou os parisienses, que talvez se acreditassem priv:idrn• ,h 1 \ 111·dnde que, sem a rebelião parisiense de 14 de julho, a
seu defensor. À tarde, circulou um rumor alarmante: M rnll 111hlt1i11 estava perdida. Em todo caso, Paris, às vésperas da
morency, que diziam injustamente ser huguenote e <]Il i.' 11 111111 dn Bastilha, estava repleta de rumores alarmantes: os
parisienses detestavam, avançava com tropas para a caph11I li 11111·~ acreditavam na entrada iminente de soldados estran-
"Desde essa hora [dezesseis horas], correu por Paris u m hrnH11 •• S1• pegaram em armas foi porque, como seus ancestrais
de que o rei enviara o marechal de Montmorency para l"n ~ h, 1'1 J, julgaram-se em estado de legítima defesa: atribuía-se
vir a Paris com um grande número de cavalaria e de info11 1111 l11 1h11 111•1\nI de Broglie a intenção de "ceifar Paris".
de que portanto os parisienses tinham ocasião de prec:ivc1 hl \'h6ri:i popular do 14 de julho não tranquilizou, pois
mas esse boato era falso". 28 1111 11 oomeço da emigração. Essas partidas pareceram uma
Enfim, quando os responsáveis pela municipalidade 1'01,1111 li .i111lu111entar do "complô aristocrático". Tinha-se como
convocados ao Louvre na noite de 23 para 24 e convid:1d11~ , 1111111 os emigrados carregavam ouro, com o que pagariam
ar mar as milícias da cidade, foi - asseguraram-lhes - pmq11 1 11111 los estrangeiros graças ao acordo dos soberanos da
era preciso defender o rei, a prefeitura e Paris contrn utn ('11111 1p,1 A França de repente sentiu-se ameaçada em todas as
plô protestante. A partir daí, quando o toque a rebate se pi'\, , lt 11111 cl rns. No final de julho, Bordéus esperava ver chegar
soar, como a população, cujos nervos estavam à prova l1111 I • 1111 l'~p11nhóis; Briançon, 20 mil piemonteses; Uzerche, o
vários anos e •,qu·e acabava de viver no pesado calor de :lKll~l1• 1 11'/\ rto is com 40 mil homens. No leste, assinalava- se a
dias de ansiedade, não haveria de acreditar na realidade d11 , h,1d1• tropas imperiais. Na Bretanha, temia-se um desem-
conjuração? i\tlassacrar os huguenotes tornava-se n 111 :li 11 11 111 lnf('lês. Mas como os emigrados, ao amadurecerem seus
legítima defesa. 111~ dt· retorno e de vingança, não teriam procurado cum-
A obsessão dos complôs planou igualmente sobre a F l'1lll\, 1~,h ~ 1111 própria França? Então se desenvolveu, após o 14
nos primeiros anos da Revolução Francesa. G. Lefebv re t· 111 li 11ll1111 11 certeza de que os errantes tão temidos - e tão
veu com razão que o Grande Medo foi "uma gigantesca IH li h I • 1m11N IHI época - eram recrutados pelos aristocratas de
falsa"." O conluio dos aristocratas e dos salteadores, no q11 1 1 1 dl• fora. A "cabala infernal" jurara a perda do país
acreditaram todos os franceses, foi em todo caso um d1•~ 1 111111 ~1• nos " traidores internos". Estes, "execráveis instru-

? 7 á. 275
mentos da tirania", iam tentar matar a França de fome e i11c1111 1111~ emissários do conde D'Artois. Considerando as autori-
diar suas aldeias e seus campos. Não se surpreende, e ntilo, q111 - dunrnsiadamente timoratas, a multidão mata uma dúzia de
o paroxismo do medo tenha ocorrido no momento da colhdt11 1111~, entre as quais o procurador-geral síndico e quatro
Pegando em armas para defender-se contra os saltc.1dol't 1111111s do diretório do departamento, assim como o promo-
cidades e burgos confirmavam por isso mesmo a existêncin 1h, 11111,1100 junto ao tribunal criminal.33 Esses fatos e muitos
complô e reforçavam a inquietação coletiva. Por certo, 1111111 m que foram enumerados por P. Caron reconstituem os
toda a França foi palco de rebeliões e de incêndios de castelo~ li I t•s de 2 e 3 de setembro em seu contexto nacional e pro-
111111• niio foram nem premeditados, nem "organizados", mas
Nlas toda a França tremeu.
"Tumultos homicidas" e "crimes de multidão" provol'111h1 lt,11 11111 todos de uma epidemia de medo.
pelo medo marcaram também na França o verão de 1792, qltt 1,~,, llj)idemia, repitamos, não era sem fundamento: os
viveu especialmente os massacres parisienses de 2 e 3 de sc111111 111•1~ mais delirantes que então circularam se explicam
bro. Mas estes não foram senão um episódio- o mais sanf.{11111 li ~1•1111wc por uma longa preparação mental e pela tomada

to - de uma série de assassinatos perpetrados nos quatro c:111111 111~1'1Üncia de uma situação perigosa (ao menos para aque-
do país no clima de inquietude e de suspeita criado pela l:{11l11111 1111 111•11111 favoráveis à Revolução). O exército sofria reveses;
pelos primeiros reveses e pela certeza de que os inim igoN1h, 11 d,• julho, a Assembleia Nacional declara "a pátria em
exterior tinham cúmplices no interior. Em Naves, no Ar&d1 11'\ 11 manifesto de Brunswick, conhecido em Paris em 1"
em 9 de julho, tendo sido aprisionados nove padres refr.1t :11h, 1111~111, 1·ealmente ameaçara a capital de uma "execução
corre o rumor de que eles desapareceram, a multidão se dii ljl' 1111 '1 de uma "subversão total"; a jornada de 10 de agosto
à prefeitura, descobre-os e abate-os a pancadas, salvo u111 q111 lll" l'U llC:t e o rancor dos "patriotas" só podia estar vivo
d ,Upltllcs que se suspeitava serem partidários do rei -
diz ter jurado a causa revolucionária.n Em Marselha, cm lO 1h
julho, espalha-se o rumor de que um comerciante de tl·t•l1h1 11111•nt:írios e aristocratas. Os parisienses, contudo, só
organiza um complô contra os "patriotas". Conduzido :'1 pl'l~íll• t 1111 mnta bastante tarde da proximidade dos exércitos
são encontrados com ele "cartuchos de um modelo panicuh11 1111, li 0111 embora os prussianos houvessem tomado Longwy
No dia seguinte, um tumulto força a entrada da prisão e o 11111 1 1h• llf,(0sto. Foi na noite de l" para 2 de setembro que
li 11 honto, na capital, de que Verdun sitiada se rendera
sacra. iVlas, antes de morrer, ele denunciara dois msstn'l4 ,1
armas, apontando-os como chefes do complô contrarrcvoh11 111 111111 11clinntado em algumas horas em relação à realidade.
nário. Eles são encarcerados. Ora, no dia 22, por volta d1111 _, 1 ",, o inimigo estava às portas! A comuna fez soar o
1 111hn~c e disparar o canhão de alarme, pediu aos pari-
horas da ma~,hã-, "tendo o povo sido posto em ferment:1~·1111, li
véspera, pela 'descoberta feita à beira-mar de uma grande q111111 11111• fo rmassem um exército de 60 mil homens, pres-
111 d1•~n rmamento dos suspeitos. Foi nessa atmosfera de
tidade de botões amarelos em boças [sic] para fraques e I i'111h 1
sobre os quais estil impressa urna grande flor de lis br:1111°11'" •• li 11\'llo que "chefes" - artesãos e federados - , com a
prova da conjuração parece gritante. A multidão penei I o 11 /111 dl' tumultos anônimos mais ou menos importantes,
Ili 111111 prisões e procederam a julgamentos e execuções
prisão e mata os dois mestres de armas. No final do mcs11111 111
de julho, os habitantes de Toulon ouvem dizer que um n111111l , l1'lcs acreditavam em um "complô das prisões": en-
11
" • p11ll'ÍOtas" partiriam em combate no front, os pri-
contrarrevolucionário está a ponto de eclodir: um fortt' ~11
1 1li 1lx11dos sem vigilância sairiam para a cidade e facili-
incendiado, os patriotas decapitados, um outro forte scr:í 1•1111
277
276
cariam a entrad a e a ação dos inimigos. Essa convicção p:111•1 I, ltm inimigos: Paris, desguarnecida pela partida dos homens
a inda mais plausível pelo fato de várias prisões e diversos lrn 111 11,, vni ser abandonada aos traidores internos.
que faziam as vezes de prisão estarem situados no próprio ('Ili 1 l l(llndo o r elato d e um padre, desde os dias 29-30 de agos-
ção de Paris: ilhotas de traição de u ma cidade sitiada 011 q 111 1111 l(t1rns" teriam g ritado aos "esbirros", no decorrer de uma
corria o risco de sê-lo. 1 tl11111icilia r do colégio de Navarra: "Coragem, me us ami-
Entre as vítimas dos massacres, houve mais prisioneiro~ 111 p11•ciso matar sem piedade todos esses pat ifes aristocra-
direito comum do que "políticos". A proporção geral ent n· 1111 1111111~ esses ladrões que querem nos matar".
e outros teria sido, tomando-se a estimativa baixa (737 cll• 11111 l 111 l de setembro, soldados dizem à multidão que o lha a
lado, 353 do o utro), de 67,61% para os primeiros e 32,38'Y., p111 • li' 111 de carros cheios de prisioneiros a caminho de Abbaye:
os segundos, e considerando-se a estimativa alta (1003 e 111'I ,,111 vossos inimigos, os cúmplices daqueles q ue entrega-
de 71,9% para os primeiros e 28,1% para os segundos.•·• l1 11p11 \, 1d11n, aqueles que só esperam vossa partida para decapi-
sível pretender, em consequência, que os de "direito co11111111 11 "'~ filhos e vossas mulheres".
fossem mortos "a lém da conta" o u por "arrebatamento" e "1111 ,, 11. Roland fala d a "repugnância" do "povo" em "abando-
briague;,. de ferocidade". A explicação é outra e está lig-:1d11 111 , 11~ lurcs deixando atrás de si lobos devoradores que, logo
medo visceral dos salteadores. As pessoas sem eira nem lwiht , 111 rdus, lançar-se-iam sobre o que de mais caro ele teria

sem moralidade, que tinham sido condenadas por culpas cll~, t li 111o1clo".11
sas, não deixariam d e vender-se pela melhor oferta . C ntll , 1._,,~ frases são, no mais das vezes, pronunciadas por ho-
ajuda do our o do clero e dos nobres, seriam p reparacl:h p 11 \ l1111 refletem claramente palavras fem ininas repetidas de
tornar-se a massa de manobra e os faz-tudo dos ini mi~o~ il li l.11 : esposas e fil hos se verão sem de fesa; sua vida está em
nação. Era preciso, portanto, suprimi-los com urgênci:1. 11 , N" <:wno não imag inar igualmente um papel dete rmi-
"justiça necessária do povo" despertou mais tarde ho11111 , 1 ,1,,,. mulheres por ocasião das rebeliões em Paris, Lyo11 e
aversão. .Mas no momento mesmo, muito pouco se fa lou d l , ~111\1 1 oco rridas em meados do século XVIII quando dos p re-
e m Paris, onde a preocupação primeira era com o ava111;0 1h1 11 1,11110s de crianças? Quem teme em primeiro lugar esses
tropas estrangeiras. Além disso, parece que a maioria dm p1111 \1 11111<> :'IS mães?
sienses acreditou no "complô das prisões". ~ 11111 Ir daí, compreende-se melhor por que tão frequente-
,,~ 11111lheres desem penhavam um papel motor nas "co-
, •" prnvoc:1d:1s pela carestia e pela escassez de cereais.
1l1 l1 111di11m, por uma espécie de reflexo biológico, a v ida d e
2. AS MULHERES E OS PADRES NAS SEDIÇÕES;
O ICONOCLASMO 1111111~ e a existência física de seu lar. "O elemento mais
i.1111• !tias rebeliões frumentícias]", escreve Y.-M. Bercé, "é
Os trágicos acontecimentos do verão de 1792 convid11111 t ll\11 de mulheres. Até n as emboscadas camponesas, à
insistir no papel das mulheres nas rebeliões e nos "cri1111•- ,1 11,t~ f( l'1lndes estradas, havia mulheres armadas de ped ras
multidão" de o ut rora. Com efeito , lendo nas entreli11h11- 1 1,111, ,1111-se nos tumultos do pão caro sem outro programa
relatos de todas as tendências redigidos pelos contempo111111 • t1A11 11 ungústia do futuro e a justiça dos p rovocadores d e
dos m assacres de setembro, adivinham-se as palavras inquh t • l l111n ntitude r epetida inúmeras vezes por ocasião dos
das esposas e das mães, em casa o u na rua, à aproxim:1~·.111 ,1 1l,111~ que marcaram os começos d a Revolução Francesa.

""'º 279
O aumento dos impostos ameaçava reduzir à men<licid11d1 1 1111 civilização pré-industrial. Assim, na Inglaterra do
punha em risco a própria existência de uma parcela da pop11h1 IP~n do século XVII, elas participaram amplamente das re-
ção de uma cidade ou de uma província; assim, não é de NIII ' ~ 1•1mtra as enclosures e pela manutenção dos bens comu-
preender que as mulheres abrissem caminho às rebeliões 1'1111 N11o estiveram mais ausentes das agitações violentas
fiscais por meio de explosões públicas. Em Cahors, em 16~7, 1•li1 l111111<111s pelas dissensões religiosas. E m Edimburgo, em
queimam publicamente o banco onde se sentam os ele1to•I li 11 11•~istência ao Pmyer book de Carlos I começou com u m a
catedral, bem como os móveis de seu auditório.i, Em Agcn, 1111 1•11 mnnifestação da "canalha das servas" em Saint Giles'
1635, em Caen, em 1639, são elas que desencadeiam a reh11ll111, li h. l•~las interromperam a leitura do deão, lançaram tam-
- aqui investem contra um policial das gabelas, ali cc~·<:11111 t, 1 • 1111 direção do bispo e, tendo este se esquivado, apedre-
alojamento do cobrador das derramas.3" Em Montpell1c1-. 1111 li 111uit:1s e vitrais. Do mesmo modo Crespin e o autor da
1645 as donas de casa que fazem manifestações contra o 11~1• ,, ,•,l'li'~·irrstique des Egüses réformées atestam conjuntame nte
são c'onduzidas por uma virago que declara que é preciso i1· 11111 1 11111llwrcs participaram de todas as fúrias iconoclastas que
a morte ou exterminar os a rrematantes de impostos que lirn111 1 111111111 ns estátuas dos santos no século XVI n a França e nos
pão da boca de seus filhos/' Em Limoges, em 1705, o i11c0111lh lliwms.44 Deve-se dizer que e las "transferiam" então para
das casas dos gabeleiros é provocado por uma "multidão dl' 11111 11111111 1•cligioso uma atividade sediciosa que exerciam m ais
)he res, moças e crianças da escória do povo miúdo, niio w111l1 111t•111cntc contra os açambarcadores e os agentes do fis-
4
seus maridos e pais aparecido de modo algum". º O mcd11 ti 1 ,plk:ição fundamental me parece outra: as mulheres

gabela parece ter sido, portanto, de início, uma º?sessão h•111I Ili 111111 medo antes dos homens, quer se tratasse de pão,
nina. Como prova, ainda esta anedota: num donungo de 1ft li 111~, 1wrlosures, ladrões de crianças ou religião. Eram elas
na pequena ig reja de L annes, nos Pireneus, o padre pre)llll 11 1111111•lro percebiam a ameaça, acolhendo e difundindo os
para ler uma pastoral do bispo. "A maior parte do público q11 •1 111111unicavam a angústia a seu círculo e estimulavam
estava então na santa missa acreditou firmemente que ele q11111 11 1111'~1110 as decisões extrem as. Ou melhor, incitavam-

tornar pública exatamente a gabela e que por esse meio c~\11\,rn 111111111• 11 iniciativa dos gestos irreparáveis - dos gestos
perdidos; o público e sobretudo as mulheres e moças q111 11 111111 lllznva m, uma vez que deviam intimidar, ou mesmo
est avam começaram a gritar contra o dito padre.''" Qu:111111 • li 11 11 11dvcrs,frio.
mítico imposto sobre a vida, são as mulheres, em primeiro 11111 1 111 , 11111cza, existe um militantismo feminino que contri-
e sobretudo, qu_e creem nele. Em Montauban, em 1691 , 11111.I 11111 1 ~11111plo, para transmitir às gerações do século XIX a
um comissionado de finanças mandado afixar um edital 11111111 li 1h1~ 11110s ardentes do final do século XVIII. Pensamos
ciando a venda de novos cargos, "espalhou-se um boato t•11t 11 111, 111111•11s, na viúva Babeuf e na viúva Lebas.45 Em nosso
povo miúdo, e sobretudo entre as mulheres da mais baixn 11 11 I' 11,11I' llUC mulheres são as verdadeiras inspiradoras do
<lição, de que se queria fazê-las pagar seis deniers a cada <'111111 li 1,1il111• •Mcinhof. Contudo, meu propósito aqui não é
que lavasssem, dez sols a cada menino que dessem à l\1!. t' 1111 1 •~ 111"1 t·ontínuas, mas sim gestos espontâneos e precisos,
sois a cada menina".41 Seguiu-se um começo de rebel1:1t1 r11111 l 11t1 ~1• 1•cpctiram como constantes através das épocas, no
participação de duzentas ou trezentas donas de casa . 1h 11u,vimcntos sediciosos não premeditados. Ora, t ra-
.Múltiplas pesquisas ressaltaram, recentemente, a v:11'11•11 • 1 11111 111111portamento que não desapareceu. L. Pliouchtch
dos movimentos sediciosos nos quais as mulheres 111111111 111, 11111 1%7, em Prilouki, na Ucrânia, os milicianos t or-

?Jl 1
O aumento dos impostos ameaçava reduzir à mendicicb11lc 1 Ili 1111 c ivilização pré-industrial. Assim, na Inglaterra do
punha em risco a própria existência de uma parcela da pop11l11 111~11 do século XVII, elas participaram amplamente das re-
ção de uma cidade ou de uma província; assim, não é de •1111 ln1•~ t·ontra as enclosures e pela manutenção dos bens conm-
preender que as mulheres abrissem caminho às rebeliões 111111 " N~o estiveram mais ausentes das agitações violentas
fiscais por meio de explosões públicas. Em Cahors, em 1637, <1111 h11111d11s pelas dissensões religiosas. Em Edimburgo, em
queimam publicamente o banco onde se sentam os eleitor, li 1111•csistência ao Pmyer book de Carlos I começou com uma
catedral bem como os móveis de seu auditório.J1 Em Agcn, 11111 11-11 m11nifestação da "canalha das servas" em Saint Giles'
1635, en~ Caen, em 1639, são elas que desencadeiam a rclK·ll~11 111 h, l~lns interromperam a leitura do deão, lançaram tam-
- aqui investem contra um policial das gabelas, ali ccrc:1111 1, 11 ~ 1111 direção do bispo e, tendo este se esquivado, apedre-
alojamento do cobrador das derramas.is Em Montpellier, 11111 Ili 11111•ti1s e vitrais. Do mesmo modo Crespin e o autor da
1645, as donas de casa que fazem manifestações contra o Il,1111 /1,. 1rl'rMsinstique des Eglises réformées atestam conjuntamente
são conduzidas por uma virago que declara que é preciso ir pai 1 1111111\orcs participaram de todas as fúrias iconoclastas que
a morte ou exterminar os arrematantes de impostos que tirn111 ,, 11111 11111 :is estátuas dos santos no século XVI na França e nos
pão da boca de seus filhos.)') Em Limoges, em 1705, o incé111lh• , th1ixos.HDeve-se dizer que elas "transferiam" então para
das casas dos gabeleiros é provocado por uma "multidão de 11111 11111110 religioso uma atividade sediciosa que exerciam mais
lheres, moças e crianças da escória do povo miúdo, não t1•111h, 111111 rnncnte contra os açambarcadores e os agentes do fis-
seus maridos e pais aparecido de modo algum":º O m edo d1 nplicação fundamental me parece outra: as mulheres
gabela parece ter sido, portanto, de início, uma ohsessiio ll'lttl 11111 110111 medo antes dos homens, quer se tratasse de pão,
nina. Como prova, ainda esta anedota: num domingo de IMll •- 111~, 1111closures, ladrões de crianças ou relig ião. Eram elas
na pequena igreja de Lannes, nos Pireneus, o padre pre!l:11·11 1 111 l11wirn percebiam a ameaça, acolhendo e difundindo os
para ler uma pastoral do bispo. "A maior parte do públirn 11111 Ili 1 ~, rnmunicavam a angústia a seu círculo e estimulavam
1 1

estava então na santa missa acreditou firmemente que ele q11111, 1 11 mesmo as decisões extremas. Ou melhor, incitavam-
tornar pública exatamente a gabela e que por esse meio es1111•11111 li 1i1111nr a iniciativa dos gestos irreparáveis - dos gestos
perdidos; o público e sobretudo as mulheres e moças qt11• 1111 lt 111q11ilizavam, uma vez que deviam intimidar, ou mesmo
estavam começaram a gritar contra o dito padre."41 Q1fa111 0 111 1tlh11 o odversário.
mítico imposto sobre a vida, são as mulheres, em primeiro 11111,11 C 11111 <'0rteza, existe um militantismo feminino que contri-
e sobretudo, qúe. creem nele. Em lVlontauban, em 1691 , 111111!1 11111 11,xumplo, para transmitir às gerações do século XIX a
um comissionãdo de finanças mandado afixar um edital :1111111 11 ht dos anos ardentes do final do século XVIII. Pensamos
c iando a venda de novos cargos, "espalhou-se um boato c1ll l l 1 11111 1• out ras, na viúva Babeuf e na viúva Lebas.45 Em nosso
povo miúdo, e sobretudo entre as mulheres da mais bai x:1 11111 , p1ll'CCC que mulheres são as verdadeiras inspiradoras do
dição, de que se queria fazê-las pagar seis deniers a cada cn111I 1 lh1111lor-Meinhof. Contudo, meu propósito aqui não é
que lavasssem, dez sois a cada menino que dessem à luz e 1•1111 h11 11~•1\cs co ntínuas, mas sim gestos espontâneos e precisos,
sois a cada menina".4' Seguiu-se um começo de rebelifo t '!IIII 1h1~l1111c repetiram como constantes através das épocas, no
participação de duzentas ou trezentas donas de casa. . 111 dt• movimentos sediciosos não premeditados. Ora, tra-
lVIúltiplas pesquisas ressaltaram, recentemente, a v:1nrd111I i, 11111 comportamento que não desapareceu. L. Pliouchtch
dos movimentos sediciosos nos quais as mulheres ton 11111111 111111, um 1967, em Prilouki, na Ucrânia, os milicianos tor-
turaram e mataram um jovem operário, sem armas, preso p111 (llt •cissões ou simplesmente da missa dominical. Locais
engano à saída de um baile. Alguns dias mais tarde, c.:011111 , 1l,114l11dos de agrupamento, a ig reja paroquial e se u átrio -
cortejo fúnebre passasse diante do posto policial, uma 1111111111 111111itério vizinho - constituem frequentemente os epi-
gritou: "Abaixo os ss soviéticos!". Outras mulheres reto111111 1111, ro~ ele onde se propagam os "furores" populares. Além
em coro esse slogan, depois os homens. A multidão se pn:dpi11111 ti igreja é geralmente uma construção sólida, algumas

então para o interior das dependências da milícia, saqueou 11 111111ificada: eventualmente, será um refúgio. D e qualq uer
moeu de pancadas os milicianos46 - ilustração comemprn ,1111 li 11, cstá no próprio coração da vida coletiva. Existe, toda-
da iniciativa feminina nos gestos de cólera coletiva. 11111 local diverso da casa de Deus onde as pessoas se encon-
Os "ritos da violência" nas sublevações de outrora sact 11111• lt1,11ucntemente: o cabaré. Assim, as notícias, verdadeiras
ra bem conhecidos e a pesquisa recente fez justiça às ac11s1I\II' I,,,~, pro pagam-se de albergue em albergue. Igreja paro-
e pseudodescrições dos ricos que representavam o povo 1111 "' " 1•11h11ré são, na sociedade de outrora, os dois polos onde
tado como uma "turba enlouquecida", uma " besta de mil n 1l1 •111 IIN redes de sociabilidade, sobretudo para as camadas
ças", um populacho d esenfreado "sem ordem nem cht:11• '
1
11,h•~. Do ponto de vista enfocado aqui, são mais comple-
qualificativos utilizados no século XVI por Guillaumc 1'111 ,1111 .,, ~ 11111 do outro do que faz crer o discurso clerical da

para caracteriz,u as sedições de Lyon provocadas pcl:1 c1111 li ~,1111pre agressivo contra os cabarés.
dos cereaisY Descrevendo o carnaval sangrento de Ro 1111111-,, 11111 li iclão não age sem chefes e só adquire segurança
1580, E . Le Roy-Ladurie viu ali uma espécie de p~irntl11111 111 h vncla por eles.49 Ora, quem são esses homens fortes
exemplar, de "tragédia-balé cujos atores representar:1111 11 d 11 11111 ~(i tempo a fazem estremecer de medo mostrando-lhe
çHam sua revolta". A propósito desse "drama elisabet:11111'' 1 IIM••~ ~lllC a ameaçam e a tranquilizam pelo engajamento
acentuou a recorrência dos fantasmas de antropofagin 1 1 11, N1111 cidades, em geral, são artesãos, de maneira que,

tema conexo da troca de mulheres.48 Inútil reprodtw.i,· 11q111 , d11 npnrente incoerência das sedições urbanas, é preciso
que já foi bem dito em outras partes. Em compensa,·11111 li lu I ti vivn estrutura das corporações e das confrarias de
mostrar em que e por que a sedição era um remédio 11111 , ,\ l1tN, entre esses artesãos, da Insurreição Cabochienne
medo coletivo, sobre tudo nessas jornadas ciclônicas o~d1• 1111 11 ,1 lttwolução Francesa, não nos surpreendamos de en-
vinha por inteiro a situação de multidão e onde se 01w1 ,11 , t 1111 primeira fila os estalajadeiros e os nçougueiros.50 A
salto à violência com a esperança - e até a certeza - d11 ••il 11 ,,-~odn o vinho e o sangue: tem necessidade daquele

ção pela força•. .Em primeiro lugar, não há passagem ~ 11 1, 11 t ,, tlc beber e daquele que provoca a morte. Mas, tan-
que não sejá acompanhada de rumores que a um so 1, 11,1 t 11111111 como na cidade, existem outros chefes cuja im-
impressionam e exaltam - clamor da multidão, e sol11 , li 1 111111lvcz não tenha sido suficientemente sublinhada: os
toque a rebate e rufar de tambores. Sinal e prova d1• q111 ,li lwoja em contato com o povo. Porque pregam, são
entrou em um tempo diverso daquele das ocupações h11lil111 t1l,tth1 lros guias. Na Europa do Antigo Regime, aqueles
eles convidam à superação das inércias, das m onmo11 11H1 1 1 1 "11IOncia têm a multidão nas mãos fazem-na alterna-

interditos que são o tecido cotidiano da vida. Po r out 111 1 i 111 IIHJI' e esperar, chorar e cantar, obedecer ou r evol-
uma coletividade adquire confiança só pelo fato de 1'1'111111 A11111111clcs que falam em nome de D eus.
Daí a multiplicidade das "comoções" e sedições que 1•,11h, t 1 11111• os padres e os pregadores católicos, de um lado,
por ocasião das feiras, dos mercados, das festas dos p:u 11 111 1, 11,ttlmcs reformados, do outro, desempenharam um
papel de primeiro plano nas guerras religiosas do século \ \ 1
hro, Quantas vezes, no decorrer dos conflitos religiosos do
111 ~VI, os "pregoeiros" católicos n ão taxaram de fraq ueza
parece banalidade. No entanto, a historiografia sa li..:1111111
lh1111nis encarregados de castigar os "luteranos", não com-
sobretudo a ação dos governos e dos grandes, e não vemos 1H1II
r11111 Catarina de Médicis a Jezebel ou H enrique III a Acab
cientemente que Catarina de Médicis, Coligny, Guilhcrn1111 11
Tacitur no, mais seguiram do que comandaram os acrn111111 lll purmitiam a introdução de uma nova religião não
m entas.;, Aqueles que lançaram os cristãos uns cont 1·11 11 •• 1wrniciosa que a de Baal, e não tornaram o protestantis-
outros, em particular nas cidades, foram obscuros ornd111t •ponsável pelas desgraças - tal como a derrota de Saint-
fanatizados, militantes que trabalhavam em plena massa h111111 nt 111 - que a cólera de Deus enviava à França!57
na porque dispunham de um púlpito e, no plano local, º ''KIIIII • pnigadores reformados, evidentemente, não ficavam
zavam com evidentes intenções agressivas cantos públicrni 11 11 ~1111 responsabilidade nas "fúrias iconoclastas" e nas

salmos ou procissões armadas. Um historiador do século p11- • lhl\l'ICS nmorte dos "idólatras" foi capital. Sua referência
do escreveu com razão a propósito dos distúrbios da P rovl\11\ lt ~poito era o D euteronômio (13:7-12):
no século XVI: "Não há sedições [...] nas quais não se w)i111
monges franciscanos, capuchinhos, carmelitas, domi11 11•11111 11111 irmão, filho de teu pai ou filho de tua m ãe, teu fi-
fazer as noções mais atrozes e dar os primeiros golpe•, 111 111, 11111filha, a esposa que repousa em teu seio [...] procura
massacres".51 São muitos os fatos que corroboram essa :11i1111t 1111,IMc secretamente, dizendo: "Vamos servir a outros
ção. Em 1560, em Rouen, padres seguidos de seus p:1roq11I 1 11-• ~ 1...]", não consentirás em sua palavra, n ão o escuta-
nos desfilam nas ruas para a procissão do Corpus Do111h11 lt•tl olho será impiedoso [...]. Sim, deverás matá-lo, tua
Reformados que estão às janelas recusam-se a prestar hon 111• • 11 ~,,1·11 :l primeira contra ele para dar-lhe morte e a m ão
santo sacramento. A multidão católica invade e saquci11 •11 t11il11 o povo continuará a execução.
casas_ll Em Toulouse, em março de 1562, u m cônego prcK'' 1111
ardor a quaresma, atacando alternadamente os protest:11111•N 1 1 lh11111cnte, em Rouen e em G ien em 1562, destruições de
magistrados suspeitos e anunciando os efeitos próxi11111- ,1 t• li11 11111 perpetradas em consequência de pregações onde
cólera divina.54 Em Orange, em fevereiro de 1571, os Sl'll111• 11 1h 111oronômio.;8 Em Lyon, no mesmo ano, um pastor,
incendiários dos monges mendicantes têm como conscq11P111 111 1111 miio, participou do saque da catedral de são J oão.;,,
onze dias de massacre dos huguenotes.55 Em OrleanS: 011111 1 Ih 11~ nilo deixaram de salientar a relação entre pregação
25 de agosto de 1572 chega a notícia do dia de são B:1 rtol11111 l,11111111 que aparece, entre outras, nesta carta destinada
parisiense, a 1hultidão católica é amotinada por "certo pr1•14,11I 11111111 de 1566 por Margarida de Parma a Fi)jpe TI:
do rei cham;do Sorbin, ignorante e turbulento dentre 1od11
doutores da Igreja romana" e invade as casas dos protcstnlll• 111 111t11do rcs] pensam que todas as coisas lhes são permi-
Em Bordéus, em um sermão pronunciado no dia de são M 1111 1lt•~11•ocm imagens, pregam nas igrejas, causam impe-
do mesmo ano (20 de setembro), o jesuíta E. Auger csp111111 11111~ IIOS católicos, fazem o que bem lhes parece para
de que a cidade ainda não tenha seguido o exemplo d:1 t•,11111 1 111 11 ~•o ntestação da justiça [...]; esses novos nunistros,
Acusa o governador de pusilânime, censura-o por "dornill t
ilrn 1•~1 destruidores de imagens e condutores dessas
sua prostituta", anuncia a vinda do anjo exterrnin:1dn1 , 1
ser mão põe fogo na pólvora: a carnificina começa c lll 1
,,,1, ~ 111ostram-se por toda parte. º
6

285
284
Nenhuma dúvida pode subsistir sobre o fato de qu1• 11 R11 há nada de surpreendente no fato de padres terem
demolidores de imagens que grassaram nos Países Ba iXOH 1111 lllpl111hado papel determinante nos movimentos milenaris-
decorrer do verão de 1566, tenham sido efetivamente fon:11 1 , 111 l111scavam nas Escrituras seu projeto de revolução social.
dos. Um dossiê estudado atualmente pela sra. Deyon e prn \ 111111 numerosos em Tabor em 1420, e M üntzer fora mon-
Lottin destaca essa evidente sucessão dos sermões e das vlnl 11 .11,11 niano antes de formar a Liga dos Eleitos. É mais
cias iconoclastas. Pois estas foram precedidas, de Vale111:ic11111 n11nte observar que a "sublevação dos trabalhadores"
a Anvers, por uma pregação maciça, ao ar livre, às por1 1w 11.1 l'- om 1381, a despeito de várias reivindicações igualita-
cidades.61 Essas "prédicas das sebes" começaram no fi1111 I 11 1 11omunizantes, tinha em vista objetivos concretos e
junho e culminaram por volta de 10 de agosto - data do IHII li 1•111~ lJUe não eram forçosamente utópicos - abolição da
das pilhagens-, eletrizando auditórios cada vez mais 1111111111" IR11 1 partilha dos bens de Igreja entre as paróquias etc.
sos, que podiam chegar a 15 mil pessoas. Frequentemcllll , 11111 cios chefes da revolta foi um pregador errante, John
assistentes iam com suas armas, prontos a deixar-se :ll't 11!11 ti 111111 11elquirira o hábito de arengar os camponeses "aos
pelo pregador a alguma ação explosiva. Um "discurso 11, 1111111N depois da missa, quando todas as pessoas saíam do
comoções ocorridas entre o povo tumultuado na cid11tl1 11 li o", Então, "ele vinha ao claustro ou cemitério, e ali
Enghien" relata: "'' ,. f'n½ia o povo juntar-se em torno dele" [...] Assim con-
,1-~11111 em um texto que esclarece um panorama mais
Que, no dia xxvn do dito mês de agosto de XV I" !, XVI, p, 1 11111• o ela sublevação de 1381.
manhã, se fez a primeira pregação no bairro de E11Hhl111 h 11•1•ontes estudos sobre os miseráveis e os vagabundos
no lugar chamado de Heerhouwt [...], por algum mlnl~t, 1111 1•11111 efeito a presença frequente dos padres, especial-
acompanhado de grande número de pessoas de Audl·11111 ,I 1l11~ pndres da paróquia, nas revoltas que atravessaram a
munidas de diversos i-nstrumentos, como também v:írl11 11 • ,111 ~éculo xvn. Na baixa Normandia, quatro padres
Enghien [...). dlll pn1·te ativa na insurreição contra os gabeleiros. U m
Do mesmo modo, do Heerhouwt o povo da dil 11 pi M11l'ci, vigário de Saint-Saturnin, nas redondezas de
gação com seu pregador ou ministro tinha vindo li 11~, 111111 ~, rnlvez tenha sido mesmo o verdadeiro chefe da
rynes e à igreja de Chartrois, onde jantaram, e aqul'li 1I
IA11 1)urante os distúrbios das comunas de Angoumois e
claustro de Chartrois que administravam os bens t· p11111
IIIHI ( 1636), viram-se chegar a Blanzac "cerca de quatro-
sões ali estavam; e ao mesmo tempo saquearam a if,\l'tth1 ,1
li11111uns armados de arcabuzes e de piques distribuídos
dito He1·ryiies e Chartrois, juntos rasgaram os livro~ tl1 ,
, 1111 (JUinze companhias conduzidas por seus padres,
biblioteca.
11111111hnndo em boa ordem ao som de alguns pífaros e
1 111 11' fa lta de tambores".<,) Encontram-se padres igual-
Em outro documento da época, um pregador prov1111 h 111
• Ili I t' os revoltosos do Périgord (163 7-41): "Alguns
de Genebra e preso após o fim dos distúrbios, con fos~11 111
, 11111 n um contemporâneo, "estavam à frente dessa
entrando com um bando em uma igreja do Cateau-C:11111111
~• 1 , Um outro testemunho garante que "um padre se
11
"tomou uma pia de água benta de cobre, que at-rCllll"INIIII
chão. D e lá foi a uma capela rasgar um gonfolão. En1ílo1 1111 1111 µi-nndemente na rebelião e sublevação da comuna de
fizeram o mesmo e houve ali uma confusão". ,1p,11• cnusa da valentia de sua corag"m e também por
10L 2S7
sua força". Padres e v1ganos solidários aos rebeldes devl11111 1•111 ln mente mudada a sua destinação original. E nfim,
"banir o vício [...], exortar o povo cristão a preces e or:wf11•~ r -•• in ampliar à América a investigação sobre os laços
Deus com proibições contra os blasfemadores e esc,md,\111~11 1c volt:is e homens de Igreja. O México revelar-se-ia então
que se voltarem contra a honra e a glória de Deus". 64 111po de estudo privilegiado: Hidalgo e Morelos, que dfri-
Nos Pireneus, são ainda padres que conduzem as n.: vnh 1 l 1111 primeiras sublevações com vistas à independência
antifiscais· do vale de Aran (1643), Sonle (1661), Lavednn (IM •11 11mm encarregados de paróquia e, além disso, conhe-
e 1695).65 Em 1675, vários padres se colocam à frente do~ 111111 1111 1ncnos seis padres "agraristas" que estiveram à frente
poneses bretões em cólera na região de Carhaix e de (;rn11ll1 111 1111 cnmponesas no México entre 1827 e 1894_;, Outrora,
Alguns serão condenados às galeras, entre os quais J ean 1)1111 11 111·11 o h omem que dava segurança a uma paróquia,
de Carhaix, "comprovadamente chefe dos revoltados e 111111I 11111•1 cm caso de dificuldades, indicava o caminho a
feito alguns habitantes dessa cidade assinarem um ccnil h 11I 1l11dn que fosse o da rebelião.
de capitão dos revoltados preenchido com seu nome",•• 1 1 llilll t1 preciso demonstrar que o motim urbano (seguido
1680, o intendente de Poitou escreve a Chamillard: "Não p111I 11h 11111:1 rebelião mais longa) e a efervescência que mar-
ríeis compreend er quanto esses padres fazem m:11 Ili • l1111111 de uma revolta camponesa muitas vezes revestiam-
departamento","1 pois pregam contra as derramas e as rei l11111, ' h il li :1ção de outrora, de um caráter festivo e báquico.72
escondem os móveis de seus paroquianos antes das apn·1111 f 11 111·,1111-se ali a atmosfera e os ritos do carnaval, o tema da
e incitam à resistência. Integrados à comunidade p:u•rn1111 1 11 ~111'1111 que as festas dos loucos medievais conheciam, o
esses padres são naturalmente seus porta-vozes e seus t 111 1 111, ,l11111in:tnte dos jovens cujos agrupamentos, agora o
em período de efervescência. Assim, sua atitude diícn• , 1l11h11 m na sociedade tradicional uma função de polícia
menos antes do século xvm - da atitude dos missio111l1lt1 1 1111111'~. Na alegria ruidosa afirmavam-se a unanimidade
interior. Estes - Eudes, Maunoir, Grignion de Mo nilotl 1, 1111t11iOncia coletiva, a personalidade de uma comuna ou
por certo esbravejam contra os ricos e, por ocasião elas 1•1111,h 111111111 11 solidariedade de um grupo que, por essa reação
bancam os conciliadores. Contudo, mensageiros da h i1·n1111111 h11•~11, nfastava os pesadelos que o p erseguiam. Essa
recomendam a ordem e a submissão. "Suportai tudo ~l'III 11111 11 tlu medo era acompanhada de uma desvalorização
murar": esse é, em um de seus cânticos,''" o co11sd l111 111 111lv11rs:1rio do qual já não se avaliava a força nem as
Grignion de iVIontfort, que escreve alhures: "Veem-Sl' 1111111 lhl uh•~ dc reação posterior. Ocupava-se uma prefeitura,
pobres sofred~res/ Mas poucos pobres pacientes".''" 1•: 11111111 11 1 l{lthcleiros, recusava-se o pagamento do imposto,
maledicênciJ atroz/ De falar mal dos reis".iO Conhece •,11111 1 11 11 • um regimento como se por trás dos homens e das
tir dos trabalhos de R. Mousnier e de seus alunos, o p11111 I 1 h • 11111tn lmente escarnecidas não houvesse um Estado,
nobres nas revoltas do século XVll; mas convinha tn111lw111 l11 111,11111" de reserva e a solidariedade entre os possuido1·es.
tir no dos padres das paróquias. E valeria a pena, 11:1 1•11111 li 11111, 1111 1•xccuções das vítimas nem sempre se faziam -
dade de uma história longa das mentalidades que t r:111~1111111 11 1111 nn:irquia que muito se descreveu . .i.\1uitas vezes
os cortes cronológicos e ideológicos, estudar sístc111:1111,1111 1 1111m npaziguar a culpa,condenava seu antiego reite-

o lugar que tiveram nos acontecimentos revolucirnHII h· 1111111,1~ judiciárias cujo modelo permanecia vivo no
1789-99 os amigos padres e os edifícios do culto, nw~.11111 I , 1t11~1•i011cia coletiva - procissões punitivas, julga-

288 289
mentas populares antes da condenação à morte, execu,01 1111 mesmo momento: "Eles destruíram todas as estátuas;
públicas na praça principal ou, em todo caso, no lugar hahi1 111d 111111 ns telas dos quadros no lugar cios olhos ou do nariz dos
mente previsto para isso. Por essa desforra dos silenciosoH, 1 111• perso nagens representados; até as imagens da Mãe ele
massa dos anôn imos tomava as rédeas de seus negócios, g:111h11\ 1 • l1wnm tratadas dessa maneira".
coragem ao institucionalizar-se. Além disso, múltiplos n.:ht111 1odos os testemunhos concordam: a multidão iconoclasta
provam que as matanças eram raramente cegas e as pilha1-11111 p1uu11ra pilhar, mas destruir. Quebram-se as imagens a
menos frequentes do que se acreditou. Uma população em i'lih p • 1k machado ou de pique: retiram-se os quadros e sapa-
ra se tranquilizava através dessa espécie de disciplin.1 i11w1111 l ~obre eles.'"' Em Ulm, em 1531, com cordas e correntes
mais ou menos conscientemente respeitada. 111111 ~e cavalos aos órgãos da catedral, e são arrancados para
Em t>o-era!, a rebelião não se contentava em matar seu~ htl 1111 ll{rcja e reduzidos a um monte de madeira.;s Leiamos
migos. Quantas vezes, durante a Revolução Francesa, nfo ·w li h 111 11 relato do que se passou em Valenciennes em 1566:
desfilar nas ruas, na ponta dos piques, a cabeça das víti11111•1l 11,
mesmo modo, no dia de são Bartolomeu, Coligny morlU lt 1I~ h11g uenotes da cidade] entraram furiosamente n as
castrado, decapitado, lançado ao Sena, depois içado e pc11d111 1 1. 1, j111,1 tanto elas paróquias como das abadias, asilos, sem
do pelas pernas no patíbulo do Montfaucon; inúmeros p1111! 1 nh11m:1 exceção. E, chegando lá em grandes bandos, ar-
tantes, por ocasião do mesmo massacre, uma vez condc11111h1 li 11h1Ne munidos de bastões, atiraram abaixo os crucifixos
morte, foram desnudados, arrastados pelas ruas, e111p111·1111li lltllll(cns dos santos, com muitas blasfêmias e muitas pa-
no rio. Essas terríveis encenações podem ser compar:1d1tN 1, ~11111 ln fomes, depois destruíram e quebraram as tribunas,
autos de fé ou às fogueiras em que se queimava o b <Hll'l 11 ,1 111,l11N, t:Crcados elas capelas, altares, assentos, fontes batis-
um condenado por contumácia ou à atroz mascar:1d:1 n•li 11 I htl•, vitrais, depois queimaram os ornamentos das ditas
anteriormente, no decorrer da qual a municipalidade p1111t li 111111 de tal modo que o ouro fundido dali fluía em várias
tante de Basileia, em 1559, mandou desenterrar o c:1d1l\111 1 11 111~ 1...1. Ainda rasgaram e depois queimaram as cortinas,
anabatista DavidJoris, morto pacificamente três anos :11111 , 11111111~, g uardanapos e outros panos que servem ao ofício
o nome de Jean de Bruges. Arrebentou-se o caixão, 1i1'011 1 111111 queimaram e rasgaram todos os livros das igrejas,
defunto, que foi erguido contra um poste. Ao lado, cohl1'1II li lflll tll'll orna grande pena e desolação de ver assim esses
-se os livros que ele escrevera e uma efígie do perigoso li1•11 li • '""'consagrados e dedicados a Deus ficar em tal estado,
Depois, foi qú~imado tudo.73 Durante a Revolução Fn1111 · 1l,111111los por esses maldosos libertinos e pessoas sem n e-
fanáticos tiratão igualmente os cadáveres reais de su:1s •111111111 111111111 rnião, e uma grande mágoa para os católicos.'6
ras de Saint-Denis e destruirão em Anet , o corpo ai11d111111,
de Diane de Poitiers. Essas liturgias macabras ajucl:1111 11 1 h ,1111 wl11smo é um ódio cego? Ou antes um rito coletivo
preender o iconoclasmo ele todas as épocas. Em Sai nt ( 11tll , 1~1110? Vitrais, estátuas, pinturas, órgãos mesmo - ou
1529, todos os altares foram destruídos, as imagens q111 1li1 , 11Chlvcres em suas respeitáveis sepulturas - represen-
a golpes de machado ou de martelo: "Encheram-sl' q11111 1' 1111 11mn multidão em cólera, mais do que seres inani-
carroças com os despojos lançados fora da igrej:1", C'il'l 11 1 111111c1·v:wam algo do poder tirânico, ou até diabólico,
contemporâneo, "depois foi aceso um grande fogo 1• 11111 111\1\0 se esforçava em destruir. Se se decapitava Luís
consumido pelas chamas". O governador de N e uen\11111q1 , h,111do pncificamente dormir seus ancestrais em belos
2 91
monumentos cercados de respeito, não se destruíra inteirarn1111 1576: Este ano ver-se-á [o povo] exceder-se totalmente
111111 dos limites de seu dever e movimentar-se e erguer-se
te a realeza. Essa permanecia de algum modo ameaça~orn. 1lit
111 w·nndes querelas contra seus superiores, dos quais vá-
mesma maneira, para os iconoclastas do século XVI, a 1do\:111 h1
1111~ Ncrão punidos por justiça, contudo sua falta[...] grande-
romana e O poder clerical não tinham desaparecido se seus sl111
111111111: diminuirá a autoridade dos oficiais públicos.
bolos permaneciam de pé. Em compensação, a estát~a 1_m'.tlll1
1590: Além disso haverá uma grande discórdia entre o
da, 0 rosto pintado do qual se foram os olh~s, o cadave1 u_1111
1111\'111 Umto em relação aos superiores como aos súditos, e
formado em fantoche ridículo são dessacralizados e desp~>1111l11
1111-'~lllo o filho contra o pai, a mulher contra o marido e o
de seu poder mágico. Maltratando-os de todas as mai~c11·11N, '
1vldor contra o mestre.
multidão provou a si mesma seu próprio poder e redu,,1u o 1111
1602: É preciso temer [este ano] as iras, furores e sedi-
migo à sua mercê: ele se tornou inofensivo e lastimável. /\~Nlt11 8
1 • tios povos/
uma fúria iconoclasta revela a profundidade de um medo c•nl•
tivo e aparece como o último meio para conjurá-lo. ) 111mor do povo anonuno muitas vezes precisava- se,
1111 11ldade como no campo, no temor mais concreto dos
11111~. Com efeito, nas estradas e nas cidades da Europa
3. O MEDO DA SUBVERSÃO hllHII Regime, houve muitos outros vagabundos que não
Frequentemente as rebeliões acabavam depressa e 1111111 1 hp1 rnluros instáveis dos exércitos, estudados anterior-
revoltas eram vencidas. Para os sediciosos desarmados, rlWJ(•1 ,\ ltmcionemos, por certo, a partir do século xv, os
então O momento da recaída no medo. Temia-se ,1 rcp1 < •
1
111•, 111111bém chamados de "sarracenos", "egípcios" ou
que podia efetivamente se revelar terrível - foi assim Clll 14 m", 11uc acolhiam em seus grupos diversos desclassifica-
após a derrota dos camponeses alemães e, em, 1567, ~1u11t11h 1 " 1 ll{tl nos, "a juventude libertina de todas as nações",

duque de Alba se tornou governa1~te dos Pa1~e_s Ba1 x<P1, 1111 111 'i, Mi.\nster em sua Cosmografia.;9 Marginais por seus
ainda, após o fracasso de um movunento annfiscal, podht 1 • t• h11bitos, os boêmios causavam medo. Eram acusa-
temer, não sem razão, um retorno inflexível dos gabd1•li 11 11111hnr crianças. Mas os errantes mais numerosos
um novo endurecimento do aparelho do Estado. ~ 11- "homens supérfluos" de outrora,80 essas vítimas da
Em contrapartida, ficava entre os vencedores c as p11• 1 11 11111111ômica já encontradas a propósito das violências

bem situadas,a obsessão da multidão anônima e incolll l'tllil 11,111~1 foreiros excluídos pela ação metódica dos agiu-
"terrível re~ariho a ser governado", confessava um ad1111 11l-11 • 1h• 1crras; trabalhadores rurais no limite da sobre-
dor normando em 1709/7 e o temor da inversão das hh t ti •' Ili rnzão do crescimento demográfico e das fre-
quias. Testemunhos inesperado_s a esse _r«:_spei:o, o dm 11111,,. i" 1111ri11s; operários urbanos atingidos pelas recessões
de "prognósticos" cujas sombrias prev1soes, 111cans:1v1•l1111 t 11• I' polo desemprego. Todos esses verdadeiros mendi-
1 11111illl, acreditava-se, acrescentavam-se muitos falsos
repetidas, parecem refletir a inquietude pe~manentc d1• 111
aqueles que se agarravam à ordem estabelecida: • liilsos indigentes, deambularam durante séculos da
tll ,, 11 t•nmpo e inversamente, aumentando seu número
1111 ,1,, l'l'ise: o que ocorreu às vésperas da Revolução
1518: Erguer-se-ão grandes disputas e adversid:1dt", I
tre o povo comum e a nobreza.
293
lvfoitos testemunhos atestam o m edo dos mendigos sc111 hl • 1•~s1:~ distúrbios s~o vadios e homens de má natureza que
na Europa a partir do tempo da peste negra por todos aq111ih 1111~~11cm nada ou nao possuem grande coisa por seu traba-
1• ~ir Jo hn_ C::heke declarava aos revoltados de N orfolk, em
ricos e menos ricos, que tinham o suficiente para viver e 111111
.,,, I tif sed1t1on (I 549), que sua ação "provocara uma bal-
sentiam ameaçados pelo "deslocamento" e, portanto, pcl:1 ih
l I pllpula~·• uma algazarra de vagabundos e um levante em
socialização. E as pesquisas recentes sobre a vagabund1111111
111• lndroes". 8;
revelam que os homens sem família aí predominavam , o q11
aumentava ainda mais o medo que despertavam e explic:I 111111
l>• V1lj,p1bundos não passam de delinquentes e de sedicio-
1,1111bérn o que afirma em 1659 um preboste-crernl dos
bém que eles tenham procurado constituir-se em bandos.'' 111
1111" dn Itália: º
1363, o bispo de Paris deplora uma calamidade nova: ,1s 1'1 111 ,1
capital são invadidas por uma multidão inumerável de 11111111h
Ili 11• cs5.:'l gente, vagabundos e egípcios, a vadiagem faz sua
gos. A questão da vagabundagem retorna na grande Onlo111t1II
ti p11 1•11çao _ra~·a entrar nas bebedeiras, sem-vergonhices,
ce Cabochienne de 1413. Sessenta anos mais tarde, uni 11111 ,1
parlamento de Paris decide que os vagabundos scr:lo 111
r."~, hlns~nuas, querelas e sedições [...]. As rodas e os pa-
111l11N cstao frequentemente carregados desses monstros
curados e detidos para ser em seguida expulsos ou c:1s11111111 11 , 111ousando-se a obedecer o preceito divino de traba-
segundo um procedimento expedito. Legislações clcs~l' 111
1 •1 p11rn ganhar a vida com o suor de seu rosto, caem em
que serão repetidas e agravadas doravante em toda a 1,111111 1l111·t llli vergonhosas e daí cometem furtos, sacrilégios e
traduzem o duradouro sentimento de insegurança que op1111, •~~l 1111 tos pavorosos.85
durante séculos os habitantes estáveis das cidades (e dn~ 1 li
pos) diante do espetáculo dos "caymans e caynunules" q11l' 1li, 11 ,l11t1in cios "sem eira nem beira" e que "moram em toda
82
lavam de uma província a outra. p111•11111~0 en~i~1entemente suspeita na época, e a socie-
1
Em setembro de 1523, depois da "traição" do co11d1, 11 111•1111w 1de11t1f1ca marginalidade à criminalidade. Con-
de Bourbon e enquanto Francisco I estava doente c111 t 1111 uma cidade os mendigos não constituem mais do
Paris receou uma "comoção" dos mendigos. li 1% do número dos h abitantes, a inquietação não será
\1,111 se transpõem o limite de 10%, então a população
Durante esses dias [conta N. Versoris] os maus sold111h 1111 1 t 'Ol'l'C o nsco de cair em gestos de pânico.~6 Ora, na
recolhei;am em P aris em grande número, esperandu 1h ilm ~ócu los XV~-XVIII, essa proporção foi frequente-
dia pai,;a ooutro a chegada dos inimigos para que, 1111111 uh 1,1p1111s,1da. Dai um retrato falado extremamente ma-
a eles, pudessem à vontad e pilhar, destruir e devas1111 111 lm I lll(llh~rndo~, pr.?gressi~amente desenhado ao longo
de, de maneira que nesse tempo eram mais temido~11~ tt tlm puln 11nagrnaçao coletiva. E les são os "fortíssimos"
81
soldados da cidade que os inimigos. 111111•111~ ladrões" que espreitam suas vítimas n a sombra
Ili 11111 1c mpo em que o roubo é considerado mais c ri-
Na Inglaterra de Henrique VIII e de Eduardo \' 11 , º~/
111 ljllt' 11 rixa ~in_gança. São instrumentos aponta-
eclodiram numerosas revoltas, as autoridades acrcd l1111 ,11, ,,. 1111fos dos 1111m1gos do rei e do reino" - assim
erradamente - que os rebeldes eram sobret udo 1111111111 1' J,I os cscabinos de Troyes e de Dijon. Muitos médi-
Cranmer escreveu em 1549: "Os principais resprn1•11\\1 I 111 ll!IS de ser vetores da peste. Mas A. Paré vai mais

295
longe ao catalogar entre as treze causas dos monstros a "aNt 111 1 &h pohres são espectros horrendos que perturbam o repouso
dos malvados biltres da hospedagem", mendigos que i11111 11 111• pnrticulares, interrompem, a alegria das famílias e arrui-
porta em porta. Na verdade, os próprios vagabundos são 1111111 ftdlll II tranquilidade pública. E preciso fazer calar o clamor
tros, capazes de todos os crimes. A. Paré afirma com c fd111 111•~1•~ miseráveis que perseguem os pacíficos burgueses até
111 ~uns casas e se juntam em criminosos movimentos.89
[...] Com certeza, tais ladrões, biltres e impostores, p11 11111
ver em ociosidade, jamais querem aprender outra :1r1t• qu 1111111lhimte testemunho nos faz compreender por que, na
não tal mendicância, que na verdade é uma esco la cl1• 11111 r p111'le das obras da época relativas aos mendigos e que
a maldade, pois tais personagens, poder-se-iam cnrn111t , ft11 de modo algum inspiradas pela caridade cristã de um
mais próprios para exercer caftinismos, para semc:1 1· \11 11 1i111t , os vagabundos são representados como formadores
nos pelas aldeias e cidades, para ser bota-fogos, p:11·11 111
11111 t'ontrassociedade com jargão próprio e organização
traições e servir de espiões, para furtar, para viver de r1111li
11 ,ulvn, autoridade monárquica no topo e língua misterio-
e toda outra má prática? Pois além daqueles que se 1;,,, 11 11,
ll ht contrassociedade assim descrita não podia deixar de
a si mesmos e que cauterizaram e estigmatizaram seu~ 1, ,
lrn1111cada como uma ameaça para a ordem estabelecida.
pos, ou que usaram ervas e drogas para tornar suas 1•h111
h•l(islnção inglesa dos séculos xv-xvm é, mais do gue
e corpos mais horrendos, existem os que furtaram cd1111,
1111•1 mitra, reveladora desse medo da subversão pelos vaga-
pequenas, e lhes quebraram os braços e as pernas e 1'1111111,
os ol?os, cortaram a língua, apertaram e afundar:1111 11 11
111~o qual se apoderou das classes dirigentes.90 O estatuto
to, dizendo que o raio assim as ferira para (carrcg11 111h1 11 pl'cvia que eles seriam perseguidos, transferidos aos
no meio da multidão) ter pretexto de mendig,1r, e 11•11 I, 1111,ls do juiz de paz, fustigados até sangrar, depois reenvia-
deniers. 87 ti htJ(III' de seu nascimento ou para a localidade onde mora-
1h1111ntc mais de três meses. O ato de 1547, ainda mais
. Esse texto pode ser comparado à abundante Iitcr:H 111 11 111 1•~1ipll la que qualquer homem que fique três dias sem
f~1 consa~rada à indigência a partir do célebre Liber v11pJ!l111 lh111 será marcado com ferro em brasa, depois entregue
(fim do seculo XV, começo do século xvr) e na qual se c 111•0111, 1 ~1•1•vo por dois anos seja ao denunciante, seja à sua comu-
especialmente, o Vagabondo de Rafael e Frianoro ( 1(i} 1) 1 111 ll{Clll, sendo a fuga punida da primeira vez com a escra-
vagabundo", escreve com justeza B. Geremek, "aí ap:11·1•11 1 11111•p6tua, e da segunda vez com a morte. Os filhos dos
os traços do velhaco, do impostor, do escroque, e o olt)I 11 h11wlos serão tomados como aprendizes, os meninos até 24
didático dessa literatura é mostrar claramente os ins1 ru1111111 11~ 111cninas até vinte anos, sem direito a nenhuma remu-

~ as técnicas_da tra~aça. No segundo plano desse qu:1d1111 111 R11, () estatuto de 1547 é revogado três anos mais tarde;
Jeta-se o perigo socrnl que esse mundo diferente c:ons1í1 ui I' 11111 isso não diminui a caçada aos vagabundos. Os anos de
a ordem estabelecida, para a sociedade organizada."" h1,, 11 •, especialmente, marcam-se por campanhas de buscas
eco ao temor sentido pelos possuidores, mas coloc:andn • 11111111igos, que são açoitados publicamente. Voluntários
lado dos deserdados, o teólogo jansenista Godefroy l '1•1111, 11111111 dessas sinistras batidas. Só em Devon, 74 vagabun-
escreveu, em 1676, com uma pena cuja ironia é sing-11 '1111111, 11 ,•ondenados à morte em 1598. Na Inglaterra, assim
moderna: 1 1111 continente, em suas lutas contra a mendicância as

?OÃ
autoridades conjugam assistência e repressão, confinamc111 11 1 polít ico: nesse estado, o mendigo sem princípios, ou pelo
expulsão, e o século XVH opta cada vez mais pelas casas de li 11 1111 lll)S sem hábitos de honestidade, não resiste muito tempo
balho (e de correção) e pelos asilos gerais. Trata-se entílo 1h • 111111 nção do roubo. Em breve já não há outro freio às suas
socializar à força marginais que por vezes preferem as galei li~ 1 hh 1l1111 de rapina senão o temor das penas devidas aos mal-
h l111rcs, e depois de adquirir bastante habilidade a ponto de
essas lúgubres prisões.
A classe perigosa para as autoridades e para todos os p11 ttllvonccr-se de que escapará às buscas da justiça, torna-se
11 1111.lll0S rapinador jornaleiro e muitas vezes ladrão pro-
suidores de outrora é, então, prioritariamente a dos mc111llt11•
itinerantes, que, acredita-se, transportam com eles todrn, 11 n,~lrn111I. Entre os salteadores, há bem poucos que não se
pecados do mundo, inclusive a heresia, a libertinagem, a IH'hl 1 11h11111 transformado nisso por essa profissão funesta de
e a subversão. i\1esmo isolados, frequentemente pedem a t ~11111 1111 11 mendicância é o primeiro passo e a indigência a pri-
la "com insolência". Reunidos em bandos nos descampad1 1~ 111• li II cnusa.93
pois na sociedade rígida e estruturada do Antigo Rcgi1H1 ,
homem solitário dificilmente pode sobreviver - , :m1c11111 1 11li ,1 1•0111preender o Grande Medo, era preciso lembrar
granjas afastadas, roubam nos celeiros e nas estrebarias, plll111n 11111140 pnssado e esse pesado passivo. Se, na época, todo
as igrejas, ameaçam furtar os camponeses e queimar suas 1'11 1 111 t1t11·cditou nos salteadores, é que se tinha, com ou sem
Nos campos, ainda mais do que nas cidades, o temor do irn 111 11 h1füito de temê-los. Mas em 1789, por causa de uma
dio por muito tempo acompanhou o do vagabundo-s:1ht 111h11 li l,1~11111 precedente cio poder, esse temor ancestral ganhou
e vemo-lo ressurgir por ocasião do Grande Medo. /\~~1111 udlmfrias dimensões. A crise econômica e a penúria
despeito da formação de esmolarias urbanas a partir do •<111111 Ili ,111111cntaclo em todos os países o número dos errantes.
xvr, apesar da criação da jurisdição dos marechais (n:1 li, 11111 1 1111111cro deles procurava trabalho nas cidades, onde
sob Francisco I e Henrique II) e da vigilância de "caç:1 h11111h Ili ,1\ ti n população flutuante e multiplicavam os riscos ele
dos'' às portas das cidades, apesar das draconianas leis í111d1 tl11i,~. l,uís XVI, no começo de julho, tomou esse perigo
no que diz respeito aos pobres, apesar dos confin:11111111 p11111•:<ro para reunir tropas nas proximidades de Paris.
11 11 de julho - acontecimento que, na época, despertou
(intermitentes) de mendigos em toda a Europa do século \\ 11
apesar da "beneficência" que se desenvolveu na época d:1~ l ,11 1 1111tls inquietação do que entusiasmo - , espalhou-se na
o problema dos errantes - frequentemente assimif:ul11~ 11 lto11to de que as municipalidades, para evitar novas
salteadores - permanece no final do Antigo Regime. N011 1•• t•xpulsavam os indesej,íveis que iam agora espalhar-
vê 11111 bando ~hamado "do Forez" estender seu campo d!' 11~ ' 111do o país.°' Desde então, acreditou-se ver salteadores
entre 1750 e 71773, a mais de cem localidades dessa provim,_ l I plll'IC: dizia-se que est avam no bosque próximo; avan-
Assim, est,í comumente difundida na França, às véspl'I11 1111 1111diando as colheitas e as casas; haviam se colocado
11 ilns nristocratas (como outrora a soldo dos inimigos de
Revolução, a opinião de que todo mendigo é um carnl!d11111
crime. Um presidente do órgão dos pobres de Mamcr~ 1•-11 111 1), pnssavam as fronteiras à força; anunciavam e p,·e-
111 11 1'11cgada de exércitos estrangeiros. Encontravam-se
em março de 1789:
1111j1tl{ndos em um mesmo alarme o laço que se estabe-
A mendicância é a aprendizagem do crime: ela c.:0111 t1\1I 1 11llt1ll)nnlmente entre soldados e salteadores, a sinistra
fazer amar a ociosidade que será sempre o maior 11 1111 1111 li\ ,1 1l11lxada pelos mercenários desde o tempo elas gran-

299
298
des companhias até o de Mazarino e a convicção de qut• 11
vagabundos estão disponíveis para todas as traições e p 111•11 •
piores subversões.

"Medos recíprocos", "ciclo infernal de medos": essas cxp11


sões não vêm espontaneamente ao espírito ao fim deste cNI 1111,
sobre as sedições de todas as espécies que o Ocidente conlw1111
após a era feudal e antes da era da grande indústria? Par:1 111111
per esse círculo maldito, era preciso que fossem reunidas 111111
tas condições: uma alimentação mais abundante e mais rcKlll111
o escoamento da superpopulação rural, o emprego nas l:tlu li ,
da mão de obra disponível, impostos mais justos, enq11111h ,
mento administrativo mais sólido, sufrágio unive rsa 1, 11111
organização sindical. Sob muitos aspectos, a Revolução Fl'll 1111 St Kunda Parte
1

foi ainda no plano popular uma manifestação dos medoN111111


gos. E não teria desbloqueado o futuro nem securi,.:111111 11 c:ULTURA DIRIGENTE
limite, a mentalidade coletiva se não tivesse sido progn•,j~h
mente acompanhada por uma revolução econômica e tél'llh 1
F <) MEDO

7
~no ocidental é que ela viveu todos esses medos sem se deixar
6. "A ESPERA POR DEUS" r11lisnr por eles. Pois não se sublinhou suficientemente que
11v1• no mesmo tempo angústia e dinamismo - sendo este
1,1l111cnte designado pelo termo Rennsce11ça. O medo suscitou
1
1• 1111tídotos - estudaremos isso em urna obra posterior.
,\ pesquisa histórica em grande parte varreu a lenda dos
11 1111•1•s do ano mil, fundada em textos pouco numerosos e
1. .MEDOS ESCATOLÓGICOS E O NASCIMENTO
h l'iores aos pavores que pretendiam fazer reviver. "Durante
DO MUNDO MODERNO 1111 século x, um único personagem", escreveu Ed. Pognon,
As explosões periódicas de medo suscitadas pelas peste~ 1111 11l111iu ao mundo regenerado por Cristo um termo de mil
meados do século xvm, as frequentes revoltas ampla11w111 1 " 11 nnda permite afirmar que ele tenha assustado muita
provocadas - ora pelo temor dos s?ldados ou dos _salteado1 t' Ih 111 Em compensação, é "no final do século xv, nos triun-
ora pela ameaça da fome ou do fisco - escandlfam'.. rnllll• 1ln novo humanismo, que aparece a primeira descrição
vimos, uma longa história europeia que se e,stende do hnul 1h, h1•l'ltl11 cios terrores do ano mil"2 sob a pena do beneditino
século Xlll aos começos da era industrial. E preciso, tod ll\'lit 1l111111Í\1S (1462-1516), redator dos anais do convento de
individualizar no interior desse meio milênio uma seq11ê1111 1 h1111, Trithemius era ele próprio um letrato desligado das
de maior angústia - de 1348 a 1660 - no decorrer da q1111I 11 1111~ cln escolástica e que descrevia com condescendência as
desgraças se acumularam particularmente na Europa, :1í eh thl l11Nde um período bárbaro. Mas terá sido por acaso que
pertando um abalo duradouro dos espíritos_: a p~ste negr:1: q111 111111 cio medo do ano mil nasceu no começo dos tempos
marca em 1348 o retorno ofensivo das epidemias morl :1Htl 1 h11111~? Não se atribuíram então aos contemporâneos de
sublevações que se revezam de um país a outro do século XI\' 111 Ili 111111ores que eram mais autêntica e amplamente os dos
xvm· a interminável Guerra dos Cem Anos; o avanço l 1111 1111 1111 dos séculos XIV-XVI?
inqu/etante a partir das derrotas de Kossovo (1389) e Nid ipttll
11
r 11lnmcnte não se esperou esse período atormentado para
(1396) e alarmante no século XVI; o Grande Cisma_ - t"•I 1111 1 ,11•hugada do Anticristo e o fim do mundo. Aquela e este
clalo cios escândalos"-; as cruzadas contra os huss1tas; a d1•1 1 1111 l1w11m considerados certezas pelos cristãos, e Santo
ciência moral do papado antes do reerguimento operado p11 1111ho consagrou todo o livro XX de A cidnde de Deus à
Reforma católica; a secessão protestante com todas as s111111 · 111~1111çi'lo de que esses dois prazos são inelutáveis - pois
quelas - excomunhões recíprocas, massacres e_ g111•11 1 l,11l11N por inúmeros textos sagrados - embora não se
Atingidos por essas coincidências trágicas ou pela 1ncc~•ollll ,h 111odo algum prever seu momento. Em todo o decorrer
sucessão das calamidades, os homens da época proc11 rn1 11111 1h Módin, a Igreja meditou sobre o fim da história huma-
-lhes causas globais e integraram-nas em uma cadeia expli1•111I l 11111111 foi profetizada pelos diferentes textos apocalípti-
Transpondo um novo patamar, desembocamos portanto 1111111 1 111h1 11mo-nos, entre outros testemunhos a esse respeito,
1

no nível da reflexão - sobretudo teológica - que a épm'II 11 11 ,1d1 1 vinte manuscritos espanhóis dos séculos X-XIII que
tuou sobre seus próprios medos. Essa reflexão esteve elu I" 111 11111 o Commentnires de l'apocn~ypse, do monge Beatus
pria na origem de novos m edos mais _vastos e m~is enfc it i~•11111 1111111 1 q11c escreveu no final do século VIH.3 O célebre
do que aqueles identificados até aqui. Mas o milagre d11 1h ti /'" d1• S11int-Sever (século XI), com seus monstros fantás-

303
ticos é também um manuscrito ilustrado de Comme11tnir,·1 eh IJ) Esperavam assim escla recer e apaziguar os espíritos.""
Beatus.4 Quantas magníficas igrejas francesas dos séculos X111 11111 cnc~o " um~ atmosfera de fim do mundo" (J. Lortz).
XIII - em Autun, em Conques, em Paris, em Chartres CH', '"'11~0 1mpress1onante dos pesquisadores que precisávamos
evocaram por sua vez a cena do J uízo Final! Esta ÍOl'lll' t 1 11 111111, mas sublinhando - o que muitas vezes se o m ite -
igualmente o tema de vários poemas latinos compostos :11111 • •~1·s terror:s.' ~ais reais do que os do ano mil, transpuse-
do período de nosso estudo por Commo diano de G az:i (~1·1 li 11 <'llrte artificialmente estabelecido entre Idade Média e
lo m), santo I-Iihirio de Poitiers (IV), são Pedro D amifo (\11 "" ,,11ça. Eles foram con temporâneos do nascimento do
Pedro, o Diácono (xc), são Bernardo (xm) etc.5 n,111 lll()derno.
Contudo, há unanimidade entre os historiadores cm cw1 1 C 11m•rctizemos por meio de uma comparaçiio significativa
derar que se produziu na Euro pa, a partir do século XI\', 1111, "" 1111são e essa dramatização das esperas apocalípticas: em
reforço e umll difusão mais ampla do temor dos d err:1d1•h1, 11111111•11, a "catedral velha" comporta um Juízo Final do
tempos. É nesse clima de pessimismo geral - físico e 111111 ,1 111 \li pintado sobre uma parede lateral e portanto visível
- sobre o futuro da humanidade que é preciso situar o '\11h1 111111 desig ual para os fiéis. No cen tro do afresco encontra-
-se quem puder" lançado em 1508 pelo pregador Gcill'I, 11 i 11~10 .en~ maj:stade, hienítico, sereno e nimbado de gló-
catedral de Estrasburgo: "O melhor a fazer é manter-se l.'111 , , • 1111 direita e a sua esquerda, figuram naturalmente os
canto e enfiar a cabeça num buraco, apegando-se e m scµull 1 1 11~ condenados. Mas - fato bastante raro - embaixo
mandamentos de Deus e em p raticar o bem para ganh:11· 11 11 h111h1r, o artista representou o limbo. No to tal, uma com-
vação eterna".6 Para Geiler, não existia nenhuma espcra ll\ 1111 " pouco traumatizante. Na "catedral nova" (séculos xv-
que a humanidade se aperfeiçoasse; o fim de um m11nd1 1 1111 11111• lica ao lado da precedente, e ncontra-se também um
rompido constituía doravante uma perspectiva próxi11111 1111111. "'.J:1s, desta vez, está pintado sobre a parede d a absi-
outono da Idade Média, escrevia Huizinga, o sentimc nw 1111 h t clt· frente para o público. Além disso suas cenas são
é que "a aniquilação universal se aproxima".7 "Parece", ohN11, 1111 interior de um formato maior do q~e os cinque nta
va E. Mâle, "que as ameaças do Apocalipse nunca preoc1111111 11 1111\ •11andros pouco legíveis situados abaixo e que con-
tanto as almas [...]. Os últimos anos do século XV e os p111111 11 11 tlm 11lhe a vida de J esus. E nfim, o limbo desapareceu.
t, lt1fl rno d ividem ao m eio a totalidade do espaço pin-
0
anos cio xvr indicam um dos momentos da história c111 q111
Apocalipse apo derou-se mais fortemente da imag in:1\ 1111 11 11 111111111to, Cristo está voltado para os condenados e
home ns."" E,. Delaruelle, evocando "o interminávcl ( oi 1111 11111 l(C~lO de rejeição que anuncia o da Sistina.
Cisma", notou que ele marcou "o reingresso cm 1111111
apocalíptica".9 Eis ainda outros j1;1ízos concordantes ci1.11l11 1
H . Z:1r11t em A eJpera de Deus. 10 "E sem dúvida i ncontc~t 1111 l 11 li \'i l.li'. ITURAS DIFERENTES DAS PROFECIAS
a multidão daqueles que acreditam ter ouvido a tro111l11 t 1 li \I.I PTICAS
último dia jamais foi tão gigantesca como entre 1-1-30 1• 1 111111111 ,1111c estabelecer uma distinção metodológica
(Stadelmann). " Homens do mundo clerical", lcmhr:1 p111 11 l11wrpretações diferentes dos textos proféticos rela-
lado A. Danet, "chegam até a organizar debates pí1bli1·11~ 11 uh 111111s ct:ipas da história humana, insistindo uma na
os sinais do fim dos tempos (por exemplo, e m Colo11I, ih 111il :inos de felicidade, a outra no Juízo Final. As
origens do milenarismo são anteriores à era cristã e se enr:1(•111111 L'fll e ao poder da Igreja e foram perseguidos pela h ierar-

nas esperanças messiânicas de IsraelY Isaías (54 e 55), Ezcqull 1 1 Nn Alemanha, nasceu e perdurou a crença de que Fre-
(40-48), Daniel (2 e 7) e mais ainda as profecias pós-n rlh• i& 11 11 ia ressuscitar. Vingador elas injustiças, ele seria o
anunciaram a chegada de um messias que inauguraria u11 1 111 1111 llllor dos últimos dias". Diferenciaram-se assim ao longo
ríodo de prosperidade e paz. A noção de um reino inter11H•dh1 Ili~ duas cor rentes milenaristas distintas. U ma, na qual se
rio, espécie de paraíso terrestre provisório intercalado c111 , 1 1 Ili mmumente mais atenção, optou pela violência. Os fl age-
tempo atual e a eternidade, delimitou-se na literatura jrnh1h 111volucionários do século XIV, os extremistas de Tabor
através do livro dos Jubileus (22,27), das parábolas de l !l-111111, I IJO, os exaltados que seguiram Müntzer em 1525, os ana-
(61-68) e do livro de Esdras (8,28...). Dos meios judeus, a (' H tt 1t~ litnáticos que tornaram o poder em Münster em 1534
ça no reino messiânico foi transmitida aos cristãos 111 h , 1111110 vimos,º milenaristas que queriam a ferro e fogo
Apocalipse de são João (xx). Nesse texto célebre, o ap(m111I, li n chegada do reino de felicidade e igualdade sobre a
anuncia que o anjo de Deus acorrentará Satã por mi 1 11111, S11f{uindo seu rasto, encontram-se no século xv11, na
Então, os justos ressuscitarão com Cristo e serão felizes ~11111 h 11 11 de Cromwell, os "homens da Quinta Monarquia" e
a terra durante esses mil anos. A mesma profecia rc:1p11111 111 (ou tcrmssiers) de Winstanley, também eles convenci-
com algumas variações, na epístola de Barnabé (século 11 , ' 11111· era preciso apressar a chegada da última era do
4-9). São Justino, por volta de 150, santo I rineu, por voh11 ,1 111 ,l11rnnte a qual os santos reinariam com o Cristo retor-
180, adere m totalmente ao milenarismo, que, no final do iu 111 1 • l111iu no e ntanto outra corrente milenarista, mais dire-
lo ll e no começo do século seguinte, tem ainda os fa vrn11• 11 lh lld _no espírito de Joaquim de Flora, e que excluía as
Lactâncio. Em compensação, Santo Agostinho, que de 11th 1 • ilc• f.orça. Para aqueles que a ela se ligavam, logo che-
aceitara as teses milenaristas, denuncia-as em A cidade ,fr / lt 11 111111po em que Cristo seria durante mil anos o rei de
(cap. x.,-x:). Mais ou menos subterrâneas durante algumas l'PIII 11,1 l'cgenerada da qual o mal e o pecado t eriam desapa-
nas de anos, vemo-las aflorar novamente por ocasião elas 111, I \pos essa sequência de santidade e de paz, ocorreria o
tas sociorreligiosas - as de Tanchelm e de Eudes de 1'1'11111 l 111,d, l•:studos recentes14 demonstraram, contrariamente
- que eclodem na Europa do norte e do noroeste no ~,11111 1 111•rcclitou por muito tempo, que na Inglaterra dos
XI e no começo do século XII. Mas são as obras <ÍO c11htl11
1 f1II IMíO _e mesmo entre 1640 e 1660, essa escatologia
Joaquim de Flora (t 1202) que relançam o milenarismo. S1•11111 1 1 1111cff1ca, que se assemelhava à da primitiva I greja,
do ele, o mJnclo, após ter vivido sob o reino do P:li (1\ ttll ~l 11 111dito na opinião geral do que os projetos revoluc.io-
Testamento), depois sob o do Filho (Novo Testamcn1 11)1 , 1111~ " homens da Quinta Nlonarquia". Estes não cons-
1260 entrará no reino do Espírito. Então, os monges !-(OVI 11
111 -11111lo uma minoria de ativistas. As duas correntes
rão o universo e a humanidade se converteni à pobrez:1 1·111111
11•1 ,111 11ilo desapareceram da civilização ocidental com a
lica. Será o sabá, a era de repouso e ele paz. O universo li 1•
\ ln dn monarquia na Inglaterra. D o lado das esperas
tornado um mosteiro povoado de santos que celebrar:io II flh
,1l11dn hoje adventistas e testemunhas de Jeová conti-
do Senhor, e esse reino durará até o Juízo Final.
llM lll1t cl11r a hora em que começarão os mil anos de paz
Essas pregações, piedosas e pacíficas na origem , 1•1111
11- q1111ls Satã será acorrentado.'5 Por sua vez, no século
tuíram entretanto fermentos de contestação. Os fr:11wh11 li
ll,1 11 o Brasil conheceram violências messiânicas.'º
"espirituais" que se valiam de Joaquim de Flora opuscn1111
W7
Mas uma outra leitura dos textos relativos às últimas seq11ê11 1111nci:1m à terra cataclismos terrificantes; a aparição, sobre um
cias da história dos homens conduzia ao temor do Juízo Fi1111I, r, 1,~íris, do Juiz sentado em um trono resplandescente, com a

Numerosas passagens das Escrituras anunciam com efeito c~~il p11d11 na boca, cercado de animais fantásticos, de querubins,
hora temível, encontrando-se a principal em são Mateus (24-25)1 i. 11póstolos e dos 24 s,ibios; a ressurreição da carne; o livro da
hli1 1· ela morte; a separação dos eleitos e dos condenados, os
I mediatamente após a aflição desses dias, o sol escurcccnL 11 h1111iros entrando de manto branco na deslumbranteJerns:além
lua perderá seu brilho, as estrelas cairão do céu e as po1~'11 h~11', os demais precipitados nos tormentos do inferno.
cias celestes serão abaladas. E então aparecerá no céu o si1111I 1) que caracteriza a partir do século XIV a iconografia e a
do Filho do homem, e todas as raças da terra baterfo 1111 1111 um consagradas ao Juízo Final é o destaque dado: a) à
peito; e ver-se-á o Filho do homem vir sobre as nuvcn~ 1h1 1h•d11de e ao caráter apavorante das provas que se abaterão
céu com poder e grande glória [...]. Ele colocará as ovclh11 1111 1 li humanidade - os quinze sinais do fim do mundo que
à sua direita e os bodes à sua esquerda. Então o rei di d 1111 1h11 o Venerável, dizia ter lido em são Jerônimo; b) à severi-
da direita: "Vinde, abençoados de meu Pai, recebei co11111 1h cio Deus justiceiro - ele provocava medo em Lutero e na
herança o reino que vos foi preparado desde a fumb,,-:10 1h1 hII porte dos cristãos conscientes de sua geração; em um
mundo [...)". Então ele dirá aos da esquerda: "Ide para 101111 1 11 lfinnl de Lucas de Leiden, ele delega a Satã o cuidado de
de mim, malditos, no fogo eterno que foi preparado p:11111, 1111h111 ô livro em que são inscritas as ações humanas (Museu
diabo e para os seus anjos" [...]. 111ldcn); c) à atrocidade dos tormentos infernais, ao passo
1111 ~6culo xm os artistas, no mais das vezes, nos detinham
Essas passagens do evangelista inspiraram, mais do q111 h11ilnr do lugar dos suplícios. Ora, com suas dominantes
todas as outras, a iconografia do Juízo Final nos tímpano~ ,h, • " •IN, "nas catedrais das grandes cidades assim como nas
séculos XII-XIII. Ora, elas são corroboradas não só por t1·~111 ht" dns aldeias alpestres mais afastadas, esse tema impres-
paralelos de são Marcos (XII e XIII) e de são Lucas (x 11), 1111 111111,, do Juízo Final difundiu-se por toda parte"'8 no século
também por Isaías (XXJV-XXVll), por Ezequiel (1°, V III , \ t 1111 ~óculo XVI. Pois às obras grandiosas de Albi, de Orvieto
XXXVII: neste capítulo, são anunciadas a reunião dos ossm 'll'I 1 1 SIKnorelli) e da Sistina, às composições de R. van der
e a ressurreição da carne), por Daniel (II, VJI, XII), por íiu1111 li • ~1h111 (um Beaune), de J. van Eyck (Museu de Leningrado) e
sos salmos, especialmente o salmo 50 próximo do capítu lo J~ ti M, 111ling (em Gdansk), ao célebre Apocalipse gravado por
são Mateus, pela Primeira Epístola aos Coríntios (xv,52), pt 1 1, t'tll't'Cspondem doravante, disseminadas por toda parte,
Primeira a Ti7nóteo (rv,13-17) e afinal, é claro, pelo Apcll'11 llp 111111t<;õcs do Juízo Final que por seu número atestam a

cujos elementos complexos e mesmo contraditórios assorlillll ll ~1h1 desse medo. J. Fournée, estudando os vitrais da cate-
promessa do millenium à profecia de um Juízo Final q111• 11 1 i1h ( :uutances consagrados a esse tema (segunda metade do
seria precedido por nenhum tempo prévio de paz m1 lc1·1·11 111, 111 , \'), compara-os a outras obras realizadas na Normandia
o Cristo retornado. Da confluência dessas profecias" l' d1 11 111csmo assunto: três são dos séculos XH-xm, seis do
imagens formou-se uma representação cada vez mais c11 dq111 111 , 1V, seis do século XV, dezesseis do século xvr e uma
da e continuamente mais trágica, à medida que nos aprml111 1111 \O do século xvn.'9
mos do século XIV, do drama derradeiro da história 1111111111 1h1ns grandes visões escatológicas que acabamos de dis-
Seus principais componentes são: os anjos cujas trrn1il 11 1 11 11 do milleniwn e a do Juízo Final - revestem, ao
menos em suas formulações mais categóricas, significações lw111 l 1• lémporal. Tam bém ele criará um paraíso, para maior
diferentes. Uma pode ser qualificada de otimista, já que 1k•h11 11111 de Lisboa e de Portugal. Dirigindo-se a J oão 1v, asse-
perceber no horizonte um longo período de paz no decorre,•til• li lht· que esse império bem-aventurado será constituído
qual Satã será acorrentado no inferno. A outra é de colori1~ 1l11 1111 numento da fé, para a glória da Igreja, para a ho111"a da
11 portuguesa, para o crescimento dos bens da fortu na e
bem mais sombria. Certamente, o Juízo Final situa defin illv1t
mente os eleitos no paraíso; mas quem pode dizer com :1111\'t l 111ulor abundância dos bens da graça".12 Em um outro tex-
dência que estará entre as ovelhas à direita do Soberano J11I h111·11, situando-se com antecedência no tempo abençoado
Este se mostra duro e severo. O último dia da humanid:11h 1 111 11foliza, admira o desígnio divino que escolheu Lisboa
bem o da cólera: dies irae. Segunda distinção essencial: ;1 <'1111 11 111pilal da terra regenerada: "O céu, a terra e o mar con-
111, nesse admirável sítio, para a grandeza universal do
cepção do 111il!eni11111- tendeu a tingir-se, no Ocidente :lNNhll
1h1 e para a harmonia, também universal, dos súdit os".
como entre os adeptos melanésios do cargo, de uma color11~1l1 1 11
11 1 1 () sítio mais proporcionado e mais apto à destinação
materialista, no limite pouco cristã, em particular c nt 1·11 11
ll11 1•~colheu o Supremo Arquiteto: a construção desse alto
quiliastas revolucionários. Durante os mil anos do reino tl11
1 h1 lo império do mundo]".
santos, sofrimento, doença, miséria, desigualdade, expl01·11~1II
do homem pelo homem terão desaparecido da terra. S1•111 1, 1 1 tdnde] espera entre seus dois prom ontórios, que são
r etorno à idade de ouro - eterna aspiração human:1 q111
1111111 dois braços abertos, não os tributos de que o su ave
alguns, em Tabor ou em .M ünster, imaginaram como 11111 f111&11 tlt:sse império terá libertado os povos, mas a voluntá-
autêntico paraíso. Esses elementos concretos não estão :lllljlll l 111l111diência de todas as nações que descobrirão sua soli-
tes do milenarismo moderado do padre Vieira, jesuíta p,111 11 l111 l111l11dc, mesmo com as populações ainda desconhecidas
guês que, no século XVII, promete a seu soberano o impél'iu 1h h1111 11 q ue então terão perdido a injú ria desse nome."
mundo.10 Portugal nesse tempo é com efeito atravess:1dt1 p1,1
cor rentes messiânicas que se baseiam nas mensagens i nspi 11ttl 1 \ h 1111 1111unciou o começo desse tempo de felicidade para
(as trovas) de um sapateiro do século XV1 e que foram dil'11 111h (r1/IJ l' [700.
das pelos monges de Alcobaça. No tempo da ocupaç;iío 1•~111 l111111d11-sc a esses sonhos encantadores, a representação
nhola (1580-1640), recusa-se a acreditar na morte d11 1 li 11 l•'lnnl dirigia os corações e as imaginações para preo-
1
Sebastião, desaparecido11 na batalha de Alcácer Quibir ( 1\ 1 01 ~ 111.im diferentes. Aqui o acento recaía no destino eter-
1

Ele retornar~ para restituir glória e liberdade a se u jHl\'11 1l11111s, na cu lpabilidade pessoal, na necessidade de ter de
revolução anticastelhana de 1640 exalta as esperanças 111tl1li 111 h1 ~cguido ao longo dos dias o exemplo e o ensina-
ristas. Doravante, e incansavelmente ao longo de su:1 c:11'1111 ' 1h ,lt-sus à busca da felicidade terrestre. Em suma, do
Vieira (1608-97) prediz aos sucessivos reis de seu p,1ís u111 1h 1h l'INIII dn hierarquia eclesiástica, a espera do milleniwn
tino fora de série. Cometas, tempestades e inundaçõc~ 11111 , 11 t11)<11Cla de múltiplos desvios possíveis, suspeitos aos
cem-lhe anunciar a passagem ao millenimn, no decorrer do 1111 1111 IIIIIK istério (Vieira teve contas a ajustar com o Santo
o papa e o soberano de Portugal governarão juntos um 111111111 1 • ••ln ncompanhou efetivamente inúmeras heresias, ao
pacificado, os turcos tendo sido vencidos e os judeus crn11l11 1111, 11 última prestação de contas se revelava um meio
dos à verdadeira fé. O ra, esse reino será a um só tempo 1•~plt 111111 11íicaz nas mãos da Igreja para reconduzir os cris-

-.i 1 /
tãos ao bom caminho. Portanto, não foi por acaso que a csc111u No ano em que entra para a ordem dos dominicanos (1475),
logia que anunciava a iminência do Juízo Final foi difund11h1 11·1ligc UI_!l curto opúsculo, De co11te111plu 111m1di, em que se lê
sobretudo por aqueles dentre os homens de Igreja q ue estav11111 li 11sc: "O vós que sois cegos, julgai hoje vosso próprio caso,
mais tomados pela preocupação pastoral. Isso é verdade c~p, 111 vós mesmos se o fim dos tempos não chegou!"2" Nos ser-
cialmente para os g randes Reformado res protestantes. , pron_unc!a_dos em Fl~rença em 1490 e 1491, prediz que os
As divergências entre milenaristas e profetas de um J11 (111 1111•1~tvc1s v1c1os da Igre1a anunciam a proximidade do Juíw
Final próximo provinham especialmente de inter prct:u;rn •I, ununciando dez razões para crer nesse prazo próximo.111
d iferentes das visões de D aniel (2 e 7) relacionadas ao Apoc:1 IipM • ,1p<>s 1492 e ~obrc~udo a partir de 1494, ele passa prog1·essi-
Daniel anunciara as quedas sucessivas de quatro império, l 1111• para o milenarismo que osfmticelli haviam difund ido cm
geralmente identificados e m seguida pelos teólogos como o do hll\'11 desde_o século XIIJ. Sem dúvida, ele profetiza em pri-
assírios, o dos persas, o dos g regos e o dos ro manos. Um q11111 111 lugar a vinda de Carlos vm, ameaçando a cidade do Arno
to reino devia sucedê- los, erguido pelo Deus do céu - n•11111 h1h11 inteira com grandes tribulações, se ela não se converter.
que jamais ser ia destruído e não passaria a nenhum outro pm 11 tor~iando-se o chefe espiritual de Florença, promete -lhe
Seria preciso identificá-lo ao millenium de são João, dur:11111 •· h•lw1clade e prosperidade se doravante ela for fiel a seu rei
qual Satã permaneceria acorrentado? Nesse caso, o Juí:w Fl1111 111 1t:ln será então a nova J erusalém, cumulada de riquezas: '
ficava retardado para alé m desses mil anos de paz. D evi:1-M', 11
contrário, considerar que o nascime nto d e Cristo marrn1 u 1, 1)11 mesmo modo que o mundo foi renovado pelo dilúvio
in ício do 111il/e11im11? - já não correspondendo este exat:rn11•11t1 111111s envia su~s tribulações para renovar sua Igreja par~
a 1 milhar de anos? Se sim, este doravante estava no fi111 ~1111lllcs que esnverem na arca [...J, E e is o que diz nosso sa[-
como provas, as desgraças dos tempos - e o Império Ro11111111, 11111 "Cantai um canto novo ao Senhor". Ó vós a quem D eus
prolongado 110 Sacro Império Romano-Germânico, logo li l 1 -. 11l hcu, ó vós que estais na arca [os florentinos], cantai um
desaparecer. A ruína do mundo aproximava-se portanto :i fl' 1111 11111'. no_vo porque Deus quer renovar sua I g reja!
eles passos. 14 I•steJ~S segura, Florença, de que se teus cidadãos pos-
Po r mais reais que tenham sido essas distinções - :1 p1111t 1 1111111 ns virtudes que descrevi, abençoada senís tu, pois logo
de polê micas oporem na Inglaterra do século À.'VII partid:í1 tu , 1 1111 nnrás essa J erusalém celeste,
adversários de um entreato d e mil anos de felicidade :11111•N rh t\ nu ncio estas boas novas à cidade de Florença: ela será
Juízo Final15 • -, não constituíram, no entanto, barreir:1, li~ 1 Ili 1I, l(lo riosa, ma is rica, mais poderosa do que n u nca. Em
das. Havia passagens ele um esquema escatológico ao mil 111 1 I" h11ciro lugar, gloriosa aos olhos de Deus assim como aos
que bem mostrou D. Weinstein a propósito de Savo narol:1.'• r 111, homens, pois tu, Florença, tu senis a reforma de toda
primeira parte de sua carreira, isto é, antes de 1492, o 1111111, 11 ,llln; cm ti começará a renovação que brilhará em todas
guia de Florença partilha com muitos de seus contempor111111 ill1·t•\'Õcs, pois é aqui que se encontra o coração da Itália,
a convicção de que o fim do mundo está próximo. E111 11111 11 m 1·onselhos reformarão tudo à luz da graça q ue Deus
canzone que data sem dúvida de 1472, ele escreve: 1 , 1111ccderá; ~m segundo lugar, Florença, t uas riquezas
1111 1ncontave1s e Deus multipl icará tudo a teu favor. Em
[...] Talvez mesmo te11hfl chegado esse tempo 11 ,,11•0 lugar, estenderás teu império e goza rás assim do
Que foz tre111er o infamo - o Dia do Juízo. 11 11h11 temporal e do poder espiritual [...].30

3/ 3
Savonarola reencontrava assim a concepção milen:1m11 1111111 colheita. Importava, então, alegre e rapidamente, fazer
tradicional, a uma só vez otimista e orientada, ao menos p111 11 ,11 n massa dos índios no recinto protetor da Igreja. Que
cialmcnte, para os bens terrenos. h11• missão a da Espanha e de Portugal! Quando Jesus retor-
Na prática, nem sempre é fácil decidir, neste ou n:111u1•h 1, lissas duas nações poderiam apresentar-lhe milhões de
caso particular, se nos encontramos cm presença de um 111111 11~ 1•onvertidos que o Soberano Juiz colocaria à sua di reita.
narismo ou da crença em um fim do mundo próximo. Poi~ ~, 1 1''" Casas contudo via os acontecimentos próximos sob
eternid,1de bem-aventurada posterior ao Juizo F inal foi clcM'I li 1 , mnis sombrias. Para ele, tendo os espanhóis se conduzido
em termos de "novos céus" e de "nova terra", essas exprcssl'H 111 lltnlls cristãos no ultramar e, tendo "transplantado a
convêm igualmente bem ao reino dos santos do 1J1il!1·1111111 , 111 110 mesmo tempo que a cruz", era preciso esperar que
Além disso, a expressão " último tempo" pode aplicar-se t:111111 1 11, ~•• vingasse de um povo tão inficl.n M as a Amér ica não
véspera do Juízo quanto ao período anterior à entrada no 1111/ 11111111fo o lugar onde se expandiria a Igreja dos últimos tem-
le11i11111. É provável que essas confusões existissem às vezt·~ 111 \\~1111, para o defensor dos indígenas, a esperança escato-
espírito daqueles que estavam tomados pela espera esc:1wl1110 1 1•11t·ontrava-se associada à convicção de que a Espanha
ca, por exemplo, Cristóvão Colombo. E le teve a convic,,1111 11 • 1,1111lgada.
ter sido eleito por Deus para levar o cristianismo aos p1111 11~ "novos céus" e a "nova terr a", que, segundo são Pedro,
pagãos de além-ma r. E escreveu em uma carta datada ele 1\(Ili 11!,1 tl1•vcm acolher a hum anidade qua ndo e la estiver liber-
"Fui eu que Deus escolheu para seu mensageiro, mos11 ,1111h, d11 111•1·ndo e do infortúnio, navegaram portanto de um
-me de que lado se encontravam o novo céu e a terra 11e 11 ,1 il 11111 npocalíptico ao outro, isto é, do 111i!leni111n à descri-
que o Sen hor falara pela boca de são João em seu Apoc:1lq1~1 lu. dins posteriores ao Juízo Final. Se se crê nas Conversas
de que Isaías fizera menção anteriormente".31 "• l ,111cro, para quem o fim do mundo era iminente, ima-
A descoberta da América e de uma humanidade :llt' 1•111, regenerado pela eternidade com o uma
desconhecida foi igualmente interpretada pelos rcli11l11 1 concepção muito concreta e próxima da
recentemente desembarcados no Novo Mundo como o ,11111' 1
de que o reino dos santos estava próximo (assim o julgar:, \ li 11
no século xvn), ou então de que o fim dos tempos j.í 11:10 111111 1 1 \ 1,irra não será nua, árida e desolada após o Juízo F1 nal,
ria. Pois, entre, os textos relativos a este, figuram du:1, p 11 11 •110 Pedro disse que esperamos uma nova terra onde
gens dos Evangelhos de são Marcos e de são Mateus qu1• 1111 •ltlt I n just iça. Deus, que criará uma nova ter ra e novos
cama conversão dos gentios justamente antes da pad1~i11• 11 11 11,, 1111 colocará cãezinhos c uja pele será de o uro e c ujos
é preciso em primeiro lugar que a Boa Nova seja prol'L1111111I 111 ~11r1lo de pedras preciosas. Não haverá mais animais
todas as nações" (Marcos, x1v,l0); "Essa Boa Nov:1 do 1(1 li 1111\olll'OS, nem bichos venenosos como as serpentes e os
será proclamada no mm1do inteiro em testemunho cli,11111 1111 ,, l(IIC se tornaram m aléficos e nocivos por causa. dos
todos os povos. E então virá o fim" (Mateus, x x rv, 1-1). ,11111~ dn terra. Esses animais não só deixarão de nos ser
Qualquer que tenha sido seu conteúdo exato, :1 cs111•1111 li 11, 1•omo se tornarão amáveis, bonitos e car inhosos, a
tológica que motivava o zelo de muitos missionários dt·•H 1111 t ,h que possamos brincar com eles.H
cados na América não deixa nenhuma dúvida. Soar:t ., h111 ,

315
A partir daí, a espera do Juízo Final podia ser associ:11111 1 Vum, Senhor Jesus, vem!", escreve em 1639 B. Derschow,
um sentimento de libertação. As Conversas à mesa trazem 1•~1, 'Nº de Konigsberg. "Põe um termo neste mundo mau.
outra palavra do Reformador: nr tuns criaturas. Toma-nos em tuas benditas mãos. Leva-
111tlos juntos para a luz e para a felicidade eternas no lugar
Ó meu Deus! não adies tua vinda; espero o dia em q11t· 11 1111 uh:gria." 37
nascerá a primavera, quando o dia e a noite têm igual du N11 mesma época, teólogos ingleses exprimem uma aspira-
ração, e em que haverá uma belíssima aurora. Mas eis q1111I hlclnt ica. O puritano R. Baxter escreve em The saints ever-
são meus pensamentos, e quero pregar a esse respeito. 111111 ll Ir.1·1 (1650):
pouco tempo após a aurora, virá urna nuvem negrn e espl'
sa e três raios se farão ver, e um trovão se fará ouvir, e o 1111 111 cssa, ó meu Salvador, o tempo de teu retorno; envia teus
e a terra cairão na maior confusão. Louvado seja D ei" 11111 111m e faz ressoar as terrificantes e alegres trombetas". Em
nos ensinou que devíamos suspirar por esse dia e espc111 h, 1111111 parte volta a m esma esperança: "Ó dia abençoado[...],
com impaciência! Durante o papado, o mundo inteiro 11111, 1111o~i111a-se esse dia de alegria e de bênção? Sim, chega a
pensava nisso senão com pavor, como testemunha o hhu, 1 111clcs passos, aquele que vem virá, ele não tardará".18
que se cantava na igreja: Dies irne, dies ilia. Espero que 1•
dia não esteja distante, e que o vejamos em nossa vida .11 1111111s anos antes, R. Sibbes afirmara: "Devemos conside-
11110 11111a graça o segundo retorno glorioso de Cristo''.l9
Alguns anos após a morte de Lutero, vemos Bullill),I 1 ,1111, :is duas esperas escatológicas podiam ser fontes de
sucessor de Zwínglio em Zurique, consola r os prole~t.11111 1111\,1, Mas é certo que foram mais frequentemente causas
exilados longe de seu país de origem anunciando-lhes o 11111 1111 1• que a imaginação se voltou sobretudo para as desgra-
próximo do mundo: 111 d1 1vinm preceder tanto o 111ille11iu111 como o Juízo Final
p111prio particularmente temível. Quer se esperasse um
E mesmo dedico e consagro esta o bra [os Ce11J. sermu,·1 1111• 11111, 1:ra raro que não se concedesse um luga r importante
o Apocalipse] a todos vós que estais dispersos por d iw 1-11 Ili h, mo. Para alguns, sua chegada à terra era iminente.
povos e reinos, que sois os únicos consagrados a<Y'Sl'11h111 111111 os, e le já nascera. Essa figura sinistra não pertence ao
Jesus o Filho de Deus, esperando sua vinda em juírn, 111 111111~1•, ninda que, ao constituir-se na imaginação coletiva,
qual finalmente seremos por certo libertados de tod11~ • ltlo prog ressivamente associada à " Babilônia, a grande,
opressõesi'e então será feita indubitavelmente essa re~111111 , l li 1h1111ônios" e à "besta escarlate" evocada pelo Livro das
ção esperada por todos os tempos e repleta de toda l'c lidil 1 111\111'~. 1~m compensação, o Anticristo, seja como persona-
de, tão clara e firmemente prometida e fielmente a1111111'1111I hulh lchm l, seja como personagem coletivo, vem das epís-
tanto pelos profetas como pelos apóstolos.15 1, ,íl11 João e da Segunda Epístola de são Paulo aos tes-
11~1•,. A cristandade jamais falara tanto do Anticristo
Na poesia protestante alemã contemporânea, das desg 111\ , 11 p111•1ir do Grande Cisma. Viveu-se na obsessão do
da Guerra dos Trinta Anos, o fim do mundo e o Juízo Fi1111I 11 111 f111pio, do ser perdido, do adversário, aquele que se
frequentemente evocados como a libertação à qual aspira111 1l111ixo de tudo aquilo que leva o nome de Deus ou
almas piedosas. 36 11111 1'11lto, chegando até a sentar-se em pessoa no san-
,,,,
317
ruário de Deus, promovendo a si mesmo como Deus" - n11~h11
r, 11 morte de Carlos Magno e o começo do século XI tam-
1 11 1i11ha proporcionado à Europa uma pesada colheita de
o descrevia com antecedência são Paulo aos tessaloniccnsc•1, " \
pregação - em particular os sermões de são Vicente F él'1'111 1 111ld11de. Mas "o Ocidente do século X, essa região d e flores-
de .Manfredo de Vercelli - , a difusão da Legenda áure11, q m•, 111 1ilhos, feitiçaria, régulos" - assim o descreve G. Dubyu
capítulo do advento, anuncia quais serão as imposturas cio 1111 1,1 demasiadamente rural, demasiadamente fragmentado,
migo de Deus, o teatro religioso, as múltiplas Vidfl do //utli 1/11 11•h1damente pouco instruído para ser permeável a intensas
41
propagadas pela imprensa nascente, a pintura e a gr:w111 , llll'S de propaganda. Ao contrário, quatrocentos anos mais

graças a Signorelli e a Dürer, popularizaram o temor d1 1 , 1111: urbanizou-se e ao mesmo tempo sua elite letrada
poderoso inimigo de Deus e dos homens. Com a ajud:i do 111111 lh11twsc. Pregadores agora podem sacudir com vigor multi-
judaísmo, tal pregador e tal Vida do mau Anticristo acrccli1 111 11111 1 hndinas e fazê-las passar, no tempo de um sermão, do

poder assegurar que ele provavelmente nasceria - ou q111 1 li,) 1•sperança, do pecado à contrição. As grandes angústias
nascera - de um "debochado judeu abominável" que conh1•11, t11h11{ÍCas não teriam podido marcar profundamente a men-
carnal mente :i própria filha.42 Outros, cada vez mais nu111<:111, l111h• coletiva, em particular nas cidades, sem as grandes
à medida que se ampliavam as polêmicas religiosas, iclcntll h , 11\fll'S populares às quais são Vicente Férrer, especial-
ram o Anticristo com o inimigo que combatiam. Para vV)•• Ili h, dou um novo estilo no começo do século XV. l\llonges
João Huss e Savonarola, foi o papa. Para a cúria rom:rnn, 11 Ih 1111tcs deslocam-se doravante de uma cidade a outra, por
Savonarola, depois Lutero. Para os extremistas que SCf1llhll1 1h•ll.llldo-se por muito tempo em uma delas para ali fazer
Müntzer, o Anticristo tinha dois rostos: o de Lutero l' n 11 1 h• completa de sermões. Esses nômades do apostolado

papa. Para Lutero também ele tinha dois nomes: o p:1p11 1 11111111 ntcs de tudo à penitência, anunciando castigos próxi-
turco. Como, nessas condições, não se temeria, mesmo q111 11-111111!1$ vezes são acompanhados ao longo de seu périplo
esperasse um millenium próximo, a ação do ser demoní:11·111111 11111iHlntes", antigos ouvintes de ontem que querem pro-
multiplicaria na terra mentiras, crimes e sacrilégios? O l111 111 l ~1111 cura espiritual e realizam, em consequência, uma
imediato era portanto muito sombrio diante dos ho111c11'1 ljl• h ili• peregrinação de expiação. Retracemos brevemente o
foram sucessivamente contemporâneos de João H uss e, d1•p111 •1111 de são Vicente Férrer. Partindo de Avignon em n99,
da Reforma. ~ 1111 fll'imeiro lugar na Provença, na Savoia, em Dauphiné,
l 11111111c, talvez na Lombardia. De 1409 a 1415, percorre
li, .\l'ngão e a Catalunha. Em 1416, volta à França, passa
3. OS MtIOS DE DIFUSÃO DOS MEDOS 111il1111sc, atravessa o maciço central, as regiões do Loire,
ESCATOLÓGICOS Ili 11111in e termina seu apostolado na Bretanha, onde mor-
\ ,11111cs em 1419. Em vinte anos no total, calculava E.
Se a obsessão do Anticristo e o medo do fim do m11111h1
11 ll111 Vicente "sulcou um território grande como uma
apreensões de origem clerical - atingiram a partir de 1111 111
Ili li1 ll França e pôde portanto atingir de uma maneira ou
do século XIV camadas da população provavelmente 11111 i111111
11 \ ,l1•ios milhões de ouvintes"." Ainda que essa estima-
amplas do que no ano mil, isso se deve não só às desg1·11\1I
época, mas também, e talvez sobretudo, aos meios de 111111
i• 11111 po uco otimista, pois se tratava sobretudo de uma
11 1111h11na - e as cidades muitas vezes só tinham uma
desses terrores escatológicos. Pois o período que se Pkli 1
319
população modesta - avalia-se por esse itinerário o i111p1111 ho extenso, possuindo duas lojas em Paris, um depósito
que pôde ter sobre a sensibilidade e a imaginação coletiv11111111 111111'6 e comerciando com a Inglaterra, não deixou de fazer
dominicano convencido da iminência do Juízo Final. 0 1'1h II 1 li llll1 suas publicações uma Art de bien vivre et de bien
não foi senão um dos inúmeros pregadores que comovc.: r11111 , t,, ~ {Jual devemos prestar atenção.5° Era uma edição que
multidões da Europa a partir do começo do século XV, 1{1 I• 111111111va ilustrações ao mesmo tempo simples e chocantes
nhamos, entre aqueles que insistiram nos prazos escatol6Kh 1o 111prcsentam os quinze sinais anunciadores do fim do
Manfredo de Ver celli, são João de Capistrano, o irmão Rit1lht1 1 1h g sse tema iconográfico teve então grande sucesso.
que se consagrou ao serviço de Joana d'Arc, e - cuidc11111 ,1 1111111111mo-lo nas margens dos livros de horas ou nos
não omiti-los - vVyclif, João Huss e Savonarola. v\Tycli l', up, 1, (1111 catedral de Angers). Toda a Alemanha conheceu
sar do tédio que exalam para nós suas homilias, pretc.:11d1•11 h 111 os quinze sinais pelas gravuras em madeira de um
pregador popular, e sua ideia de fundar "os sacerdotes polu 1 11h hrc chamado Der Entkrist.51 As prensas difundiram em
é uma iniciativa comparável às missões itinerantes dos rull11l1 IIINIIS exemplares e em diversas línguas não só a Vida do
sos mendicantes. Quanto a João Huss e a Savonarola, s11l11 , /1/11, mas também as Revelações de santa Brígida da Suécia,
da ascendência que conquistaram sobre as populações de 1'1,11 11,/11 rlmw (que nos interessa aqui pelas páginas que con-
e de Florença. ,11, nclvento),51 assim como as previsões alarmistas dos
O teatro religioso contribuiu por sua vez para di f11 ndh l11MIIN, Só o Prognosticon, do eremita alsaciano Jean de
temor ao Anticristo e ao Juízo Final, porque as reprcscnlll\l, 1 11ltt11'!(Cr, não foi impresso menos de dez vezes na Ale-
tinham lugar diante de multidões consideráveis e mobi Ii1111 li h111111 rc 1480 e 1490. Baseando-se em uma nociva conjun-
um número importante de atores. Um Ludus de A111hli11
l.i111 urno e de Júpiter em 1484 e em um eclipse do sol em
escrito no século XII era correntemente representado no~ plll
1 h• previa guerras, ruínas e outras desgraças; uns tantos
de língua germânica trezentos anos mais tarde. Em X1111ti,
111- do fim do mundo. 51 Os múltiplos prognósticos publi-
fez-se uma representação com grande pompa e com ;1 p1111h
, 111 t•onsequência dessa obra associaram, como o fazia
pação de vários milhares de atores: "O que imprcssio111111
nlull'l{Cr, "temor saturniano" - pois considerava-se
mais alto grau os assistentes"Y Os acasos da docume nt:l\'1h111
111 1 11111 planeta nefasto - a profecias escatológicas. Em
a conhecer grandiosas encenações do Juízo Final em,M1111lq
1 11111ro escreveu um prefácio para a tradução alemã do
em 1518 e em Lucerna em 1549.46 Na Alemanha do s~<:11111
1//11111,11 Sondagens entre os livreiros permitem avaliar
continuou-se ..a escrever dramas escatológicos, como ;J 'l),11', 1
111 ,tll II importância da literatura que trata da fase derra-
do Juízo Fh'lfll' redigida em 1558 pelo "mestre cantor" 11 1
Sachs, que aderira à Reforma.47 Além disso - no imp111l11 l I ltl1116ria humana. Há o catálogo de livros publicado ;por
verdade, muito mais do que na França48 - , os m ist~f'i11• 1 1lt ,111dius em Frankfurt em 1625. Sob as rubricas "Juízo
Paixão comportavam muitas vezes como final uma evoc:1~•111, ,1 111~~urreição dos mortos", "despertar dos mortos", "eras
Juízo Final: por exemplo, em Friburgo em 1599.4'' 111111111, " Revelações de são João", "Profecias de Daniel",
A imprensa e a gravura desempenharam evidc nl\•111111 1 1111 ~e 89 títulos de obras editadas desde 1551, das quais

grande papel na sensibilização do público à espera dos 1111lt11 1 ltiOI e 1625.SS


dias. Antoine Vérard, que por volta de 1500 era o g ra11d1• 1 hj Ih 1,1 logo voltarei a isso - acreditava na proximidade
cialista das edições ilustradas em língua francesa e alin~h1 ,, 11 1•111111. Ora, a imprensa deu tal difusão a suas obras que

v.n 321
ele é certamente um dos que mais contribuíram para ~1•11111h 11111, de todas as maneiras - pela pregação, pelo teatro
zar as angústias escatológicas, ao menos nos países que op1111 11 1111, pelos cantos de Igreja também, pela imprensa, pela
pelo protestantismo. Calculou-se que entre 1517 e 152~ 111111 t 1 1• por toda espécie de imagens - , os ocidentais do
vendidas mais de 2 mil edições dos escritos do Refoi 11111il 1h1 ldnde Moderna viram-se cercados pelas ameaças apo-
redigidos nesse intervalo.56 Ora, ele só estava no COlllC\' CI 1h lt 11•• 1L Wõlfflin teve razão de escrever, a propósito das
carreira. O sucesso de sua tradução da Bíblia foi 111111111 1h l>llt'er: "O sentimento do fim do mundo estava então
Durante sua vida, conhecem-se 84 impressões ori!{in11I~ 1 Ih li o de todos". 60 No mesmo espírito, um bom conhece-
feitas a partir delas. Ora, a Bíblia de Wittenbcrg, cuja p1111111 lmnanha do século XVI, J. Lebeau, escreve:
edição data de 1522, comportava uma cópia ligeiraml'lll11 1111 1
ficada do Apocnlipse gravado por Dürer em 1498. J:í :1 1111111, p1 nlocias apocalípticas [...] eram [...] inteiramente fami-
Colônia (1480) e a de Nuremberg (1483) eram ih1~11·11d11 1 ll, 110s contemporâneos. Essa época, que foi marcada por
figurações do Apocalipse que Dürer certamente l c\11' ht1l 1 11111• descobertas e conquistas, jamais teve, por assim di-
olhos. Mas esse visiomhio de 27 anos deu tal vcrd:1d1 11 1 11 ~1111timento de que via despontar a aurora de um tem-
"mundo de metal sonoro onde ressoa o casco dos 1•1111111!1 1111vo, Obsedada pela ideia fixa do declínio, do pecado e
choque das espadas" (E. Mâle) que todas as rcprcsc111 11\111 J J111m, teve, ao contrário, a certeza de que era o ponto de
teriores do Apocalipse realizadas na Alemanha no d1•1•111111 ~,1du dn história. 6 1
século >..'VI foram daí por diante cópias da de Diin.:r," 11111111
por aquelas publicadas, desde 1523, por Burgk111:1ir, S1 h1 Ili h
Holbein. 58 Também na França logo se conhecer:1111 11,, JII t 11111 Ml•:I RO TEMPO FORTE DOS MEDOS
de Dürer, já que desde 1507 algumas delas fora111 1·t•111111h1 ( \ 1()LÓGICOS: O FIM DO SÉCULO XIV
nas margens <las I-Jeures à l'usage de Rome. Mas foi 11 11111li l 1 1)M ltÇO DO XV
pleta das ilustrações da Bíblia de vVittenberg que i111lt 11111
Bíblias francesas publicadas cm Anvers em 1530 e l ' III 1 \11
llhlplrnl indícios permitem datar da segunda metade do
1541 e 1553. E . Mâle descobriu, além disso, 0111,·,w11111 li 1•~Hn ascensão da angústia escatológica. Sua difusão
difusão na França do Apowlipse de Dürer e dc111011s111111111í 1111111 dn diacronia se explica pela coincidência ou pela
111 ••~~no das desgraças que já enumeramos: instalação
iconografia célebre inspirara os artistas que n·11l l1,11 11
decorrer do século XVI os vitrais de Saint-M:1r1i11 d1 \ 1 .,11111 de um papado cada vez mais administrativo e ávi-
em Troyes, de Granville e Chavanges em Aubc, dt' 1•1•111 ••11tlt111 G rande Cisma (encontrando-se todo europeu,
em Aisne e da capela real de Vincennes. Vê-se t :1111'111111 li ,, 1111111ngado por aqueles dois papas a quem não obe-
dral de Limoges, no túmulo de Jean de Langc:tl' {I 1 11 1 ,1p111•ocimento desastroso da peste, Guerra dos Cem
baixo-relevo em que estão representados os q11111, 11 1 t 1 ~11\ tl l urco etc. Galienne Francastel observa: "Em toda
armados com o arco, a espada, a halanç:1 t' 11 111,I ltl ,111 11éculo XIV [...], a ilustração do Apocalipse é um
Impossível não reconhecer aí a influê ncia de Di\t 1•1 1 1 h 11111 om moda. Começando como tantos outros, na
mesmo modo um elo evidente entre o artist:i :ik-111011, , li 11 11111umental francesa [...], estende-se progressiva-
madoJean Duvet, que publicou em 1561 o m:1i~ vl111 t1• 111l11lnturn, ao retábulo e ao afresco. Atinge seu apogeu
calipse feito por um artista francês. 111111 século XIV [...]".62 O surgimento dessa iconografia
em Veneza situa-se em 1394.01 Do mesmo modo, P. Br:Hlll~I• • l,11 hnviam popularizado a ideia de que o Anticristo era o
aponta a novidade do tema do Juízo Final na arte alc11111 ,1 111110 tal.h7 Essa foi também a afirmação de Wyclif que,
começo do século xv.•·1 E parece-me certo, levando-se c111 1111 lt h1 f'nvoráve l a Urbano VI , acusou em seguida opapa de
ta a ação dos pregadores, que o temor do fim do mundo p11 111• ser um Anticristo ta l como seu adversário ele Avi-
leceu amplamente na época sobre a esperança de um 1111//1111 l 1111 e outro, dizia ele, eram "como dois cães sobre um
de felicidade, que foi antes o aparnígio de minorias ativi~t.1 /\ Ig reja hierárquica tornara-se a sinagoga de Satã; a
João XXII , pontífice em Avignon de 1316 a 1334, i11it11I 1 p11pnl era uma invenção diabólica; as excomunhões
de Luís da Baviera e dos franc iscanos "espirituais", 1°11,11~ , ld\ por um papa e pelos bispos não eram senão censuras
por Marsílio de Pádm1 no Defensor pncis e contrn o q1111 Ih 111110.68
ergueu um antipapa de 1323 a 1330, já fora qualific111h1 1- ,11·11sações lançad,1s e repetidas de uma ponta a outra
Anticristo. Esse tipo de acusação volta com uma in,1•,I " lth•111 c - e cada vez mais frequentemente em língua
nova no tempo do G rande Cisma (1378-1417), cacl:1 11111•1 mlo podiam senão manter uma atmosfera de fim do
acusando o outro de ter o Anticristo como che fe. S1•l11, 1 11ilorçndas pelas pregações isentas de toda heresia de
exemplo, Mathias de )anos, cô nego de Praga, de qm·111 1 11l11'1lo de Vercelli ou de um são V icente Férrer. O pri-
Huss será discípulo. Ele desenvolve e dá a conhecer 111111 11111 dominicano que pregou em toda a Itália no começo
cladeira tipologia cio Anticristo, negativo, traço por 1111~11 1111 \ V, estava tão convencido da iminê ncia do Juízo
Redentor e que não podia ser senão um mau pastor i1P.l1111 1111 h•vnva as mulheres a separarem- se definitivamente
e ntre os cristãos, exercendo a autoridade religiosa "'I"' 1lil11~ pnra encontrarem-se se m vínculo no advento do
gozando das riquezas da terra e utilizando impuclt·1111 1111 I• h• teve um adversário na pessoa do franciscano são
- e para o mal - os bens próprios a Jesus Cristo: as F•11 !111, 111111 de Siena, que ta mbém percorria a península
e os sacramentos. E sse odioso hipócrita, essa m ent ir:1 1·111 11 11111 ~l' cm apaziguar os espíritos e que constatava com
da, esse veneno injetado pelo demônio no sangue ela IH1t 11 1~1,1111os invadidos até a náusea por profecias anun-
o papa fraudulento, C lemente Vll, que ousara erg ue r 'H' t 1 • 1 ,11lv1111Lo do Antic risto, os sinais do Juízo próximo e a
Urbano VI, pontífice verdadeiro e apostólico.1•1 .Joiio tl11 ,11 l14rcj11".1º lVIas, nesses t empos conturbados, para um
sua vez fala frequentemente cio Anticristo, e ele <lua, 1111111, 1 111· , angue-frio, quantos exaltados! são V icente
Ora descreve-.o em termos gerais como aquele qm· "1q1I li 111111 dominicano cujo zelo e influência mencionamos,
caminho doi mal", personagem supra terrestre, ill \11'1\ 11 1 l111•1111snvelmente que o Juízo Final teria lugar "cito,
o nipresente, lutando contra o bem e utilizando 11111 h 1pli , 11/,11· hreviter" ("logo, sem tardar, em muito pouco
vidores que são, por sua vez, outros tantos anticri~10•, 11, 1 ti 111·:1 sua fórmula favorita . E m dez sermões, sete
contrário, fornece uma designação precisa. Trat:Ht' 1•111 1111111 tema o Juízo Final.1 1 Iluminado por uma visão
J oão XXII, qualificado de prnecipuus A11techrist11s do 1111111 • 111 J\vig non no início de seu apostolado, ele se con -
porque "o furor, a infâmia e a vergonha do Amin""' 11 ' t II nnjo anunciado no capítulo xrv do Apocalipse,
pem nele".MMas, graças às discórdias da I g reja, :1lg,111~, 1 11111111 do céu, levando o evangelho eterno a rodas as

tos categóricos foram mais longe. E m Praga mcs11111, 111 111 111do cm voz alta: "Temei a Deus e glorificai- o,
do século XIV e no começo cio XV, J akoubck l" 1\11, 1 11111 11 horn de seu juízo". M ilagres o confirma ram

325
nessa missão em particular o de Salamanca. E le 111:11 :w11l111 1 Ili•<;UNDO TEMPO FORTE: A ÉPOCA DA REFORMA
dizer à mult,idão: "Eu mesmo sou aquele anjo visto p111 1 ~l•• ia produzido um apaziguamento relat ivo dessas
João", passa o cortejo fúnebre de u ma mulher que ia sei· 1'111• Ili•~ no decorrer do século XV enquanto se extinguia a
rada. O profeta interpela a morta, ordena-lhe_ que se k v11111 ti 1h1s Cem Anos, afastavam-se as lembranças do exílio de
que diga em voz alta se ele é o anjo do Apocalipse cnc:l r11•~ 1 1111• tio Grande Cisma e acalmava-se a febre conciliar? Se
de anunciar o Juízo Final. A morta se ergue, proclam:1 q111 1111v<1s progressos dos turcos, os pontificados escandalo-
é esse anJ·0 depois volta a ser cadáver.12 D esse modo, o p11 l1111l'êncio VIII (1484-92) e de Alexandre VI (1492-1503) e
, . "()
dor podia declarar com segurança a seus ouvmtes:_ . IHIIII h\ 1\ll difundida em toda parte de que a hierarquia ecle-
própria vinda do Anticristo e ao fim do mundo prox11111, 1 1 h111'11 rdava cada vez mais na corrupção teriam provoca-
prazo muito breve, prego-os ~omo ce~tos e sem temo,: dt 111 1111111 cio século XV, um revigoramento - duradouro -
dignando-se o Senhor a confirmar mmha palavra po1 1111•h• -~tics escatológicas.
milagres".JJ E porque são Paulo, na Epistola a~s Ro111 1 • 111vodem, com efeito, a foilia da Renascença e encon-
(xr,25-32), prediz a conversão de Israel a~tes do f_,m do~ I• 11 11111is eloquente expressão nos sermões de Savonarola.
pos, são Vicente Férrer esforçava-se mmto espec~al11w111, 11, Ido o profeta, discípulos ou imitadores retomam,
atingir os judeus com seus sermões e _em trazc-loN 11111 11111 1111ça inquieta e numa Itália a cada dia mais perver-
comunidade da I greja, mesmo que precisasse aco11sclh111 h 11111/l e os anúncios de sua pregação. No decorrer dos
cristãos que rompessem todo contato com aqueles q1 11• _, 1 1 IJII 1~ 15, o a rtesão Bernardino e os unti (os "ungidos")
tinavam em seus erros.;• 1'1111111 1 o frei franciscano Francesco de .ivlontepulcia no
É necessário insistir no papel que os judeus pa1·t•t I Ili 1 1111,lt idões imensas quando prega na catedral ou em
desempenhado na ascensão dos temores e das _cs111•1,111 C 1111•1•, o fi lho de comerciante Francesco da Meleto
apocalípticas que viveram nessa época _as populaçocii III hl li ,1 111 u11çiio da cidade do lis predizendo-lhe perturba-
t ais. Cada vez mais perseguidos a partir da peste llCHIII ' 111111/l, Seguramente, alg umas dessas profecias conser-
mas de pogroms, invejados pelo povo miúdo, ap11111t11h 11111l~rno milenarista pelo qual Savonarola acabara por
vindita das multidões por pregadores farniticos, c l1•~ 1111 11 11 1 liu-sc seu eco em várias obr as de Botticelli, em
ram a esperar a vinda próxima do Antic_rist~ - 'i_i I Ili"' 1111 11111 uma crucificação pintada em 1502.n Florença
que vingaria Israel oprimido e faria das igreias c rtsl ,,_ 1 111 ,111u111ada em três tempos - aqueles que Savonarola
bulos para 'os animais".75 Mas, por outro lado, ccl'I o 111111, lol ,1 1•~q11crda, a cidade sofre o castigo divino; no cen-
de judeus' espanhóis se converteu sincera_mente ao l' l 1~11" 11 11111 po r Maria Madalen a, arrepende-se aos pés da
mo e alguns se tornaram até membros mfluentcs dn l1 1 1111 111111 1 está banhada n a luz da revelação enquan to
Nada de surpreendente no fato de que tenham lcv111h1 111111110cc no setor onde grassa a cólera do Soberano
eles uma tradição m essiânica profundamente c11 t'lll1111I 111h 1111rismo (em sua versão mais espiritualista e joa-
alma de seu povo, reforçando assim a atmosfe ra aprn 1tll1 1 111 rnupc ma is ainda nas obras de Francesco da
- n a E uropa.16
q ue se a densava entao ,l111ldns po r volta de 1513. Os judeus, assegura e le,
1 1 1111 um 1517. Então começará a última revelação
1111- ilus Escrituras, e o Altíssimo escolherá para

326 327
realizá-la "um homem simples, para melhor p rovar su:, 11111~ 1• l,1111·, um outro Médici (o futuro Clemente VII), reiterou
ficência". A Nova Era começará e ntre 1530 e 1540, oc;o1·1•11111I, 1111ihições aplicando-as especialmente ao caso flore ntino.
nesse intervalo, a conversão dos muçulmanos. E ss:1 M1 ,,1 >. Cnntimori teve razão em mostrar que essas prccirn-
marcará o fim do quinto estado da I g reja. No início do ~, •1 •11 ~e dirigiam àqueles que an tecipavam um calendário
a trombeta tocará o advento do Messias, e a conversão 11111\ 11 ' 1ll{oroso dos prazos apocalípticos. 80 Pois no v Concílio
1

sal "pela qual o mundo inteiro viverá sob um único p a,1111 11 111>, muitos padres, a começar por Egídio de Viterbo,
Mas outras previsões contemporâneas das prccede1111•• 111 1·onvencidos de que a plenitude dos tempos era imi-
111111 mesmo começava a realizar -se. Mas se recusavam a
muito mais sombrias. Frei Francesco, que prega o adve11111 11
1513 em Santa Croce, suplica aos florent inos que ponh:1111 I• li 11 1.1111 arriscadas previsões datadas.
mo a suas discórdias, pois a vingança se aproxima:

Haverá sangue por tod a parte. Haverá sang ue na~ 111 l llil~l•imento da Reforma Protestante será mal compreen-
1 111lo o situarmos na atmosfera de fim do mundo q ue
sangue no rio; as pessoas navegarão em ondas de Mlllj 1,
\'11 1111Liío na Europa e especialmente na Aleman ha. Se
lagos de sangue, r ios de sangue [...). Dois milhões d l· dt 111
t11 •· ~uus discípulos houvessem acreditado na sobrevivên-
nios estão soltos no céu[...] porque mais mal foi rn111111 I
• IKruja ro mana, se não tivessem se sentido acossados
ao longo destes últimos dezoito anos do que no d111111 1
l1111110nc ia do desfecho final, sem dúvida teriam sido
dos 5 mil anteriores.n
1111 rnnsigentes em relação ao papado; mas para eles
11111,1 1hívida era possível: os papas da época eram e ncar-
T alvez Florença fosse poupada se se arrependesse; 11111 , 1
• llll'Cssivas do Anticristo. Dando-lhes esse nome co]e-
já não deve esperar novos profetas, a não ser falsas tcs1c1111111t,
11411 Imaginavam utilizar um slogan publicitário, e sim
de Cristo. Três sinais anunciarão a próxima vinda do i\ 111111 I , llh ,11 uma situação histórica precisa. Se o Anticristo
a queda do rei da França, a de Frederico <le Aragiio e 11111 111, 1 11111 Ro ma, a história humana aproximava-se d e seu
cisma na Igreja com a instalação de um antipapa pelo 1111111 , 1 1 111uro foi possuído pela obsessão do último dia. O
dor. Roma sofrerá os piores to rmentos. 111 ,1110 da Turíngia Jean Hilten em 1485 profetizava a
Mantendo a perturbação nos espíritos, compor1 :1111l11 1111 pni,ado para 1514-6, a d estruição de Roma para 1524
explícita ou implicitamente - a crítica da hierarquia ed1 _, 1 1 1 1111111do para 1651. Ora, Lutero estava em Eisenach
ca, essas previsões inquietaram as autoridades e cspel'i.11111 , 111 1llltcn ali morreu por volta d e 1500 e por vezes refe-
os M édici agora no poder em Florença e em Ro111:1, hl 11 1 111t,,•1 Em 1520, o Reformador exclama: "O último dia
haviam voltado à primeira cidade em 1512 e haviam rnl,11 11111111s".1<1 Em 1530, no momento em que se agrava a
na segunda um dos seus, Leão x, no trono pontifical , 1111 " " 1111•1·11, ele afirma na epístola dedicatória que precede
seguinte. Em sua décima primeira sessão (em 19 de 1il-111111I 111ht\ OU do livro de Daniel: "Tudo está consumado, o
de 1516), o v Concílio de Latrão, dirigindo-se aos prq1,11l1 , 111 1<11111:1 110 está no fim de seu curso e o turco no topo,
proibiu-os d e anunciar datas precisas para a chcg11tl11 111 du pnpado está reduzid a a nada e o mundo desmorona
Anticristo ou para o Juízo Final. No ano seguinte, o 1·11111 d 1111 IIN lados".8J Reencontramos as m esmas advertências
provincial de Florença, reunido sob a presidênc ia cio :11 11111 1 1'111/ifrio no Apocalipse.u Quanto às Co11versns l, 111esn, dão-

329
-nos inúmeros testemunhos sobre os pressentimentos csrn111lo r,1hunho um discurso muito significativo a esse respeito
gicos de Lutero: \1111 suma, dizia: o que foi profetizado pelo novo Elias,
novo são Paulo deve necessariamente se realizar. Só os
Um outro dia, o dr. Martinho disse muitas coisas rcfo1 • 11 1111N, os ímpios e os sodomitas podem duvidar disso. O
tes ao Juízo Final e ao fim do mundo, pois havia seis 1111 1 •ll{nificam tantos prodígios dos quais jamais se ouvira
vinha sendo atormentado por sonhos horríveis e :1p11111 untes, senão que Jesus "virá muito proximamente para
rantes a respeito do último dia. É possível, disse cll'1 'Ili 1 l' punir"?87
não esteja distante, e as Escrituras estão aí para no-lo ti, • 1 ohrc o papel desempenhado por Lutero na difusão da
crer. O que resta de tempo ao mundo, se o comp:11·111111 r11 1•scatológica, há um testemunho indireto esclarecedor.
aos tempos que já transcorreram, não é mais largo q111 JIIIIVÓJ!l de um pregador católico, Georges Wizel, que foi
mão; é uma pequena maçã, a única que se prende 1111111 hc\111 um autor de cânticos. D esde 1536, reprovou a pedago-
debilmente à árvore e que está prestes a cair. O s i11q1111h 11111rorizante do Reformador:
entre os quais Daniel viu o mundo dividido, os baliil(1111i1
os persas, os gregos, os romanos não existem m a is. () p111 l 111t1ro acreditou que, lançando o pavor nas almas, as atrai-
conservou alguns restos do Império Romano: é o 1'd11111 Fht 11111is facil mente para sua nova doutrina e foi por isso que
fecho do Apocalipse; ele vai romper-se. Ocorrem 1Hl 11 f11l1111 tanto do Juízo Final e do advento do Anticristo [...]. Se
muitos sinais que ali vemos muito bem e que a n11111 ht11 li \11,11to sopra, se a tempestade agita o mar, é o anúncio evi-
que o fim do mundo não está distante. Na terra, oi:11p111111 1lt 111c do Juízo Final, do advento próximo de J esus Cristo!
-nos com ardor em plantar, em construir, em acu11111li11 I• ( )rn, tudo o que Lutero escreve é lido com avidez, é
souros; todas as artes se desenvolvem, como se o 11 1111111 ri I nhido com fé, com veneração, como mensagens trazidas
quisesse rejuvenescer-se e recomeçar. Espero q11c I h u 11111 lllll e nviado celeste.'"
ponha fim a tudo isso. [Ent ão mestre Leonard disSl'II 11
matemáticos e os astrólogos pretendem que, no q11111h 1 ( 11111 udo, a afirmação de G. Wizel é simplista. Eviden-
gésimo ano [1540], as conjunções dos planetas}111111 11 h 1 111111 1.utero não é o único responsável pela eclosão na
grandes acontecimentos. - Sim, respondeu mestrl' l\ l,11 li 111h11 cl:1s angústias escatológicas. Pois Melanchthon, o pra-
tinho, isso pode durar alguns anos, mas nossos dt'IH 11 11' 11111111i11e, não é menos categórico que o dr. Martinho. Ele
dentes verão a realização das Escrituras, e talvez sd111111 ,lt 11 11pcrigosos últimos dias", do "Cristo cujo retorno está
nós as l uas testemunhas. 8; 1111 nlcance da mão" e que "vai voltar logo". "A santa
li Ili 11"1 diz ele ainda, "nos fornece claramente esse consolo e
Interrogado uma outra vez sobre o mesmo assunLO, ,, I' 1111\1,rtOncia de que o último dia deve chegar logo, após a
formador respondeu: "O mundo não durará muito tempo; 11th 111~110 do Império alemão."89 Melanchthon exprime suas
ainda, se Deus o permitir, uma centena de anos"."'· /\ t·11111 li ~lllll'C o fim do mundo em dois prefácios, de 1532 e 1558, à
popularidade de Lutero na Alemanha não deixou de rcl\1t\ li 1111/i1111· de Jean Cariou (t 1537), astrólogo, historiógrafo e
convicção, já amplamente difundida, de que o fim do 11111111h1 11111l10 na corte de Brandemburgo. Baseando-se nas profe-
aproximava. A pregação protestante retomou incansaVl'l1111111 li I h111icl e na sucessão das quatro monarquias, Carion con-
as advertências do dr. Martinho. E m 1562, um pasto r did11l11 1111110 Melanchthon, que a história humana chega a seu
termo. A mesma opinião é formulada por Sleidan em seu t'('h111 1 1 que o combate entre o papa-Anticristo e a Grande
tratado de título significativo, De quatt11qr smmnis imperii.1•(1\\/, 11111111 entrava em sua fase derradeira. O segundo advento
lllílll ia pôr termo a essa desolação do mundo e da I greja
Visto, portanto, que estes tempos presentes são mui111 1111 \'lllhn desde que Constantino "se fizera monge" e que o
seníveis e calamitosos, esse profeta [Daniel] deve ser 011, hl htlvcstre "se tornara rei de Roma". O fim do mundo peca-
cuidadosamente, o qual prega a nós outros que nascc11111 11 1ln 11 "recuperação" do verdadeiro cristianismo:' D o lado
fim do mundo, e é preciso contemplá-lo até o fundo, 11 111
1111,<os de Calvino, eis então Pierre Viret (t 1571), que
de que nestes males presentes estejamos munidos co11111 ,1
111 1111 Suíça, depois no Languedoc. Em uma obra curiosa
uma muralha e solidificados de certas consolações c.;0111 1,1
1111111 de diálogos, Le monde à l'empire et le monde démoniade,
ondas e tempestades que nos ameaçam.90
1 ltl 110 leitor:
Ora, a obra de Sleidan e La chronique de Carion consl li 111
C1 1111111do c hega a seu fim. [...]. É como um homem que
ram manuais cuja difusão foi considerável na Alemanhn 1 , ,
Jllt1h111ga a morte o quanto pode. Agora, portanto, provê a
outros países." Do mesmo modo, as conjeturas do teólogo h11
1111, tlN11 [...], renuncia à corrupção [...] e, tendo posto de lado
rano A. Osiander Sobre os últimos tempos e ofim do 1,m11do ( 1\ 1
tiveram sucesso internacional. 1111tl11um lugar tuas contemplações que te são tão desagra-
Também fora da Alemanha o tempo da Reforma é :tt·rn1111 1li ,,i~, npressa-te em deixar este mundo. Pois outras piores
nhado de um reforço dos temores e das esperanças apol'11llp11 1l,1111ltlndes ocorrerão do que as que vistes ocorrer.'15
cas. Lefevre d'Etaples considera que se chegou aos "1í ltll111
tempos da fé", daquela fé em que as multidões se compl'l111111 ll11lll11f,{cr (t 1575), que governou durante longos anos a
em torno do evangelho, como faziam no dia da multiplir,11 1 li ,h• %11rique, mesmo recusando-se a adiantar uma data,
dos pães para escutar o Messias. "Pois eles tinham vi11d11 ti 111 1•011siderava que a plenitude dos tempos estava quase
longe para ouv ir sua palavra. Assim será no último tempo tl11 1 ~i111 1

do qual estamos, como creio, muito próximos." 91 E m crn,111111


sação, as obras de Calvino podem parecer menos 1:íc11t·11 11tl 1 111110 que agora está bem claro pela muito evidente dou-
por preocupações escatológicas. No entanto, também ele d1•1 I 111111 dt• Nosso Senhor J esus Cristo, pelas respostas não am-
ra que a vinda, de Cristo está doravante ao alcance da 1t1:lo, ' 1 11~11111, dos santíssimos profetas de D eus e pela evidente in-
para Calvinq, assim como para Lutero, o papa é o Antit·1l~1t1 1p1 111nçiio dos apóstolos de elite de Cristo, finalmente pela
Roma a nova Babilônia. Recolocadas no contexto da t•p111 111111 ln conferência das coisas (as quais em parte, segundo
essas fórmulas não têm ambiguidade. Significam que Cnll 111 1, ~1umunhos das histórias verdadeiras, já se cumpriram,
em sua luta obstinada contra as superstições, considcl'll\'tt 111 jllll'h.: se cumprem diariamente sob nossos olhos) que as
um dos profetas dos últimos dias. D e resto, ele se enco1111 , 1111, 11l11s dos últimos tempos já se cumpriram e, por isso,
em um ambiente em que adversários e amigos pensav1111t 1, 111, 11 dln do Senhor está próximo [...].06
termos de fim do mundo. Entre seus adversários, é preciso t li
especialmente Michel Servet. Em sua Restitutio chrisit,11111111/ 1111 1 11 Reforma Protestante foi oriunda, em certa m e di-
médico espanhol esforçava-se em provar, baseando-se no 1\p 1111111 profunda fermentação escatológica e, em seguida,

332
contribuiu para aumentá-la. Parece-me que essa "espc1•11 1h fl UM DEUS VINGADOR E UM MUNDO
Deus" foi particularmente forte na Alemanha do século XVI, 11 I NV ll LHECIDO
qual, em clima de ansiedade, as conjunções de planetas c111 1~ ' 1 A1•1<traordinária importância atribuída na época ao tema
e 1525 criaram um pânico coletivo, alarmando Lutero e 1)111,, J1111,11 Final e aos cataclismos que deviam precedê-lo (ou
Mas vimos que em outras partes também a inquiet:1~·1\0 lt 11111 lt• 1\ passagem ao mitleuiwn) explica-se por uma teologia
grande. Se até hoje não se prestou a isso atenção sufic ic111t•, li 1)1111N terrível, reforçada pelas desgraças em cadeia que se
porque o demasiadamente vago e vasto termo Rennscençfl 1•111111 1,1111 sobre o Ocidente a partir da peste negra. A ideia de
n~a, pe_las imagens que veicula, a nos ocultar uma realiclnd1• •Ili ti 1llvi ndade pune os homens culpados é sem dúvida tão
11
f~1 mmta~ vezes sombria. Pois foi em plena "Renascen\'11 1111 1 1111nnto a civilização. Mas está particularmente presente
S1gnorelh descreveu em Orvieto os malefícios do 1\111 11 1I 1
h-11111·so religioso do Antigo Testamento. Os homens de
(que tem os traços de Savonarola)º' e Michelangclo pi111 111t jt1, IIJ,(llilhoados por acontecimentos trágicos, estiveram
dramático Juízo Final, da Sistina. Foi em plena "RcnaNl'l'lll
1111 que nunca inclinados a isolá-la nos textos sagrados e a
que o v Concílio de Latrão e o Concílio de Florenç:1 lc llt1t111
, 1111\• líl às multidões inquietas como a explicação última
frear a multiplicação das profecias apocalípticas n a pe11 (11,11t
1lR11 ~e pode colocar em dúvida. De modo que a relação
Na Espanha, o "pulular místico" que marcou a ép11111 ,1
1t lt11c e castigo divino - já neste mundo - tornou-se
Cisneros (t 1517) foi acompanhado de inúmeros an(1nciw, 1 .
11 ldência para a mentalidade ocidental. Quase não há
tológicos.')8 Na França, as imagens do Juízo Final inv:1dl111111
1111~ ~obre a peste ou relatos de epidemias (como ainda a
igrejas. E, ainda nesse país, pode-se considerar reprcSl'III 1111
1111 .ln epidemia de Marselha em 1720) que não a desta-
de um sentimento amplamente difundido (ao menos l'III 11
! 1) ttrccbispo de Toledo, Carranza, e o cirurgião A. Paré
clérigos) o Livre de i'estat et mutation des temps publ ir11d11,,
11111 1111 ig ualmente para dar conta do aparecimento da
1550 Pº: um cônego de Langres. Aí ele declarava: "/\1-4rn 11 11•
tanto digo que estamos no momento e nos apro.xi1111111111 1
futura renovação do mundo, ou de grande alteraçfo OII 1h
. ·1açao
amqu1 - [....
]" 99 l t duns causas da sífilis [escreve o cirurgião francês) a pri-
11 li 11 vem por uma qualidade, específica e oculta, a qual
Na Rüssia, igualmente, o temor do fim do mu1HÍ1 1 1h11
111 1~I1 1sujeita a nenhuma demonstração; pode-se contudo
ter aumentado nos séculos XV e XVI.'ºº Adquiriu-si· 11111 h
hábito de representar um Juízo Final na parede do t 1111111 1 1 li 111111 ln~ ira de Deus, que permitiu que essa doença caísse
ti,,
igrejas. O fiânão podia deixar de perceber ali a b:il:111~•11 I• 111, 11 !.fênero humano para refrear sua lascívia e desre-
e.º inferno em preto e vermelho, de onde surge u111 11 ,,111 p,, ~1h1 11011cupiscência. A segunda é por ter companhia de
g_1gante. No outro extremo do universo cristão, pod1 1 , , 1111111 1111 de mulher que tenha a dita doença.'°'
a111da em nossos dias um Juízo Final que os mo nges ttl{ll~tltt
nos pi ntaram em afresco na segunda metade do sfr11l11 \\ 1, 1 l,11 hI dn peste, as fomes, as guerras, até mesmo a invasão
paredes de seu convento de C uitzeo, no México: 11hiq 11 iihul 110. 1111m sempre interpretadas pela Igreja, e mais geral-
uma temível espera. 1" 11111 l(ttias da opinião, como punições d ivinas: flechas
1 111vh1das cio Céu sobre urna humanidade pecadora. Foi
11111 ~nvonarola apresentou aos florentinos os primeiros
episódios das guerras da Itália. Textos, muito oficiais, de trai 11 1111 J11iz proporciona e ajusta já neste mundo a punição ao
dos de paz falam a mesma l inguagem. l11w (Les tragiques, VI, versos 1075-9):
Lê-se no preâmbulo do tratado de Cateau-Cambrésis (l 5~11)
O irritado contra Deus é lltingido de cólera;
"[...] seja notório que, após tantas e tão duras guerras, com q111 Os glorificados de orgulho siio abatidos de piolhos;
aprouve a Deus[... ] visitar e castigar os povos, reinos e súdit11
Deus abate de pavor ofanfarrão temerário,
[de Henrique 11 e de Filipe n] [...], finalmente sua divina bo11d11
De fogo o incendiário, de sangue o sanguinário.
de dignou-se voltar seu olho de piedade para as pobre: cl'i11
turas".101 Do mesmo modo, o texto da paz de Ambro1sc, 1h liil opinião prevalece amplamente na época como o pro-
1563, que termina na França a primeira guerra relig~osa, dc~•ln Ili ,1incla - entre muitos testemunhos que se poderiam lançar
ra em seu preâmbulo: "[...] A malícia dos tempos qms, e NoN~1, 11• clossiê - as Histoires prodigieuses de Pierre Boaistuau
Senhor também por seu juízo desconhecido (provocado, é p11 no). 1!:sse erudito esforça-se, no entanto, em exercer o espí-
ciso crê-lo, por nossas faltas e pecados), soltar a rédc:1 d11 11 1 dtico e recusa-se a crer que toda desgraça provém do
tumultos [...]".rnl ulo. Mas, tratando-se das criaturas monstruosas, não deixa
Na época da grande repressão da feitiçaria (século XVI 1 1111 mar:
começo do xvn), teólogos e juristas ensinaram que Deus 111 ili, 1
demônios e feiticeiros como executantes de sua justiça. I• hem certo que no mais das vezes essas criaturas mons-
"Assim como Deus", escreve Jean Bodin, "envia as pl'•1t1 1111osas procedem do juízo, justiça, castigo e maldição de
as guerras e as fomes por intermédio dos espíritos mali1,11111 1ll us, o qual permite que os pais e mães produzam tais
executores de sua Justiça, assim faz ele com feiticeiros e pri Ili 1 ,1l11uninações no horror de seu pecado, porque eles se pre-
paimente quando o nome de Deus é blasfemado, como ~ h1111 1 lplrnm indiferentemente como animais brutos para onde
em toda parte, e com tal impunidade e licença que as Cl"IIIII\ 1 '4111 upctite os guia sem observância de tempo, de lugar ou
fazem disso ofício."IO• 111111·ns leis ordenadas pela natureza.'º'
É portanto da natureza de Deus, porque é justo, v i11µ11 1 1
O martelo dlls feiticeiras, baseando-se em um texto tem ív1•I tl1 C 11111udo, reina também a ideia de que D eus por muito
Santo Agostinho, explica que D eus autoriza o pecado 1l<II q111 11111 ,leu provas de paciência. Ele era o cordeiro pronto para
conserva o poder de punir os homens "para vingar-se cio 111111 11ln,>. Pensava apenas n a "ajuda" de sua Igreja, "e não na
para a beleza do"Universo [...]afim de que jamais a vcrg-0111111 il ~ 111\' II'' - assim se exprime ainda o poeta dos Tmgiques.'
08

falta seja sem :vbeleza da vingança".105 E m toda a tragédi11 l 1,111 1 "~•• período agora está findo e, enquanto se anunciam "os
cesa de Jodelle a Corneille (mas poderíamos igualment e 10111111 11111~ lcinpos e mais rudes dias/ Ele caminha para a vinganç,1
exemplos em outras literaturas da época), volta com insi~11'111 I ltt 11111is para o auxílio".109 Já era esse o sentimento de
o tema da vingança e especialmente o da vingança divi1111 1 111111• l)eschamps, contemporâneo entristecido do Grande
época dos massacres das guerras religiosas, como não s1• 11 li 11,1 1 il11 G uerra dos Cem Anos e da loucura de Carlos VI: não
imaginado Deus segundo o modelo do homem cm l'lll • t • , 1111 volta senão luxúria, orgulho, cobiça, ausência de justi-
Pôde-se escrever que "em grande parte, a noção de vi 11H1l1t1 1h 11m1or ,a peus. Uma situação tão escandalosa não podia
celeste domina a tragédia didática - e, acrescentari:1, :1 p111 1 1h11111·:
- do reinado de Henrique IV".'°º Para Agrippa d 'Auhif\111
337
[...] Chega o tempo ern que o Deus da natureza, 1,lll'e ro vai ao encontro, assim, sem se dar conta, de u1na
Que mais não pode sofrer coisa tal, lllpçílo da honra (divina) que se assemelha àquela que, no
Enviará 11 toda criatura 1111 humano, motivou os incontáveis duelos da Renascença.
Lágrimas de sangue e vingança cruel [...]. 11t11nsas que Deus não pode deixar passar sem perder o pres-
Não espero mais que o Grande Juiz tolere, 11, ' li1l documento nos reintroduz de maneira inesperada
Mas destruirá toda coisa mortttl 111111 poderiam fazê-lo de outro modo as Novelas de Bandello,
E a cada um que faz injúria daní jll'ÇOS de Shakespeare - no interior de um universo da
Lágrimas de sangue e vingança cruel. 110 Jlll"'II muito pouco cristianizado em que o Deus de amor se
11111•11 ele próprio preso na armadilha.
Se Deus não se vingasse, seria ainda digno de seu au i,111~1, Hlm, trata-se mesmo de uma armadilha. Pois aqueles que
nome? Não seria ele um "títere"? Essa é a pergunta fcit11 I"" 111,lt1111 os medos apocalípticos creem de boa-fé que é o
Lutero em sua Exortação à prece contra o turco, redigida e111 I\ 11 111 Jloderoso quem vai enfim fazer justiça. Mas não se dão
em um momento em que a ameaça otomana sobre a Eu rop11
t 11h• que são eles que aspiram a uma vingança de que Deus
:1 fazia particularmente pesada. Para o Reformador, que r:H'lt111
, ,11,1 senão o executor. Esse processo psicológico, percebe-
na como Eustache Deschamps, o mundo cristão acu1111d1111
h1 t'Cllll nitidez graças a um estudo de W Frijhoff sobre as
tantos pecados (no pensamento de Lutero, trata-se sohn•t 1111,
hu'lns Unidas dos Países Baixos dos séculos XVII e xvm.11 1
das superstições e idolatrias), desprezou tanto a divina p11h11,
1 111nfülica, muito menos tolerante religiosamente do que
que o Todo-Poderoso não poderá doravante permanecei 111,,
muito tempo de braços cruzados diante de tanta insol~1111
lt •• vezes se diz, católicos e protestantes vivem então lado a
11111 uma atmosfera de tensão e suspeita reciproca. Tal cli-
Está em jogo a sua reputação. Pode-se então legitirn:111111111
f111111•ucc a circulação de toda espécie de brochuras, panfle-
conjeturar a próxima destruição de um mundo empcdc111lil,
p11H1111ins repletos das mais diversas previsões. W . Frijhoff
no pecado:
111111111 l61 para o período 1540-1600, 563 para o conjunto
111111 XV JI, 89 para o século XVIII. Uma categorização mais
Com o tempo, como [Deus] poderia tolerar isso? É pll'I 1
1111111itc isolar as profecias apocalípticas no interior de cada
que em definitivo ele salve e proteja a verdade e~a j1111t 1\,
11lt11 lllHltro de 1540 a 1600, 119 de 1661 a 1700, treze de
que castigue o mal e os maus, os blasfemadores vc11<:1111 1
e os tirartqs. Senão, perderia sua divindade e, afinal, 11 • 1 ,1 IHOO. Notar-se- á de passagem sua proliferação no sé-
" 111 período de tensão máxima, nas Províncias Unidas,
seria m.tis considerado um Deus por ninguém se c::ul11 Ili
fizesse sem tréguas aquilo que tem vontade e dcspl'l"t11 1• duns fés rivais. Assim aparece com toda a clareza uma
sem pudor e tão vergonhosamente Deus, sua Palavra 1• _, 11 111 11111 l'C previsões - especialmente escatológicas - e
mandamentos, como se ele fosse um louco ou um títc1'11 111 ll\ 11, clinnte de uma comunidade, de uma outra comuni<la-
não atribuísse nenhuma seriedade às suas ameaças e iH ~li 1•1li, Os cataclismos que se esperam atingirão o grupo
ordens [...]. E em tal estado de coisas não tenho outro 1111 •1111 t• desembocarão na vitória daquele a que se pertence.
forto nem outra esperança senão de que o último di:1 11 11111 , 111 11\111eles que espreitam - esperando-o - a vinda do
nente. Pois as coisas chegaram a um extremo tal que 1111 ,li 1)1,, siio os católicos. Pois nesse Estado protestante eles
não poderá tolerá-lo mais."' ,h 111 pniticar seu culto de maneira semiclandestina; são
no
oprimidos de d iferentes modos, excluídos de muitos c1111111 11101 assim como aqueles que predizem o fim do mundo,
públicos e do benefício da assistência. Aspiram então :1 ,1111 1,111 vista a destruição de um ou de vários inimigos. A coisa
vingança: ou aquela que o cataclismo final realizad, ou \'Ili, hlunte quando se trata dos taboritas, de Müntzer ou de J oão
simplesmente aquela de que determinado soberano, o 1·111 ,1 111idcn. Mas é verdade também para são Vicente Férrer,
França ou o imperador - sempre um deus e:t: mochinn ~i, 111111 mnrola ou Lutero - e, na continuação do Reformador,
fora das fronteiras - , for-se-á o instrumento providc11, 111 lodos os profetas protestantes. Eles esperam, anunciam e
Ora, certas datas fora do comum do calendário parecc111 1 t 11 j,1111 ,1 destruição de um mundo pecador e empedernido
razão mesmo de sua singularidade, dever trazer esses d1••li tr,1o qual partiram em guerra e no qual reina o Anticristo
chos sensacionais: por exemplo, a coincidência entre o Cm 1111 c,11dc, este o papa, para Savonarola e Lutero. Assim, nas
Christi e o dia de são João Batista, que se produziu cn1 IM• 11111s cataclísmicas os homens exprimem sua esperança de
- ano dn besta do Apocalipse - e em 1734. Conhecemo~, pt l •tlll\'U por intermédio de D eus.
diário de um padre católico, o que se passou em Go1•~, 11
Zelândia, à aproximação do 24 de junho de 1734. Al111;111.u111
vindos de Amsterdã profetizavam grandes desgraç.1s pa rn , l t1411ck, a um segundo plano inconsciente de desforra, a
momento, considerando-se as conjunções planetárias. (h 11111 1ln é além disso inseparável, ao menos na época de que
grames temporários da Vestfália também anunciavam :H'lllll 111111~, de certa maneira de representar o tempo. Essa repre-
cimentos inauditos. Daí a inquietação dos protestantes de ( ,11 1•\•lo é complexa e comporta elementos sob certos aspectos
os dias que precedem a festa de são João, o magist rado 111.I 11114ôncos uns em relação aos outros, e a noção de ciclo
na uma busca de armas nas casas dos católicos. Na noite ,li ' h111• na de um vetor dirigido para a consumação dos sécu-
para 23 de junho, o alarme aumenta e as autoridades ck·l'l,h ,, 11 !'Ido anual faz retornarem com data fixa condições que
que as portas da cidade ficarão fechadas por dois dias. <)1 111 1q1clem uma vez por ano. Assim, é preciso não esquecer
é dia de feira. Os camponeses elas redondezas que chcg:1 111 1111, 111111•11 de são João se se quer aprnveitar as proteções que
seus produtos não podem entrar e voltam para casa esp:1lh1111ol C1 •nns coincidências só têm lugar uma vez por século.
nos campos por que passam boatos alarmistas: um c.\1111 li 1111 o Corpus Christi em 24 de junho. Um encontro tão
católico chega de Flandres, os escabinos de Goes scr~o 1111 1111 hu,ul não pode deixar, em virtude da lei mágica de simi-
sacrados, o templo da cidade será destruído por uma expl11 l11tlr1 de produzir acontecimentos também eles excepcionais
(pólvora e "rel.ojoaria" já estão preparadas); desde já se :1SWfllll 1 ,1111 nnunciados previamente. Contudo, essas prevjsões
que os católicos destruíram testamentos de protestantes. 1)1 11li.11 de reiterativo, pois se repetem sob uma forma ou
modo, no campo, certo número de casas pertencentes :1 r111,,I 1 , ocln aproximação da coincidência entre as duas festas:
cos é atacado por reformados em alarme. Mas, fina lmc1111•1 , , ~,• vurificou nas Províncias Unidas em 1666 e em 1734.
de junho se passa sem se produzir a restauração c,1tólic:1 1111111 t 1\ ,1111-se igualmente fatos incomuns para a Páscoa quan-
ciada, e a calma retorna, até o próximo alerta. Profecia e pllllh 1~ 111lubração caía na primeira ou na última data possível
estão portanto vinculados ao medo de outrem e à esper:111, 1 1 1 i.mdo neste último caso a coincidência são João-Corpus
vingança de um grupo oprimido. 11)1 111omentos verdadeiramente críticos do ciclo anual.m
Com variantes, esse modelo explicativo pode ser ge1111 ,1 M•- 11 essa concepção circular se superpõe, especialmente
zado. Aqueles que aspiram ao 111il/e11i111J1 e querem apre,,,11 111,1111111 mais cultivadas da sociedade, uma noção pessimis-

J.1. /
ta do tempo. Para os europeus do começo da Idade M oclt•11111 \'11m cheios de gado que se mantinha com força. As árvores
ele pouco se abre para as alegrias terrenas. Não incita aos p111 dl11111 de abundância de frutos, os campos estavam cobertos
jetos. Não se encamin~1a para um progresso material (ou l'~PI lrll(O [...]. Os homens viviam longamente". " 7
ritual) neste mundo. E, ao contrário, o velho ameaçaclol' 1h, N11 11pologética protestante francesa do século XVII, volta
Triunfos ele Petrarca. A Renascença assimilou-o progre~~II 1 11111 do es~otamento da natureza e da degradação corpo-
mente ao sinistro Saturno, o destruidor a uma só vez tc1-rf\11 1 1li1 humanidade. Du Moulin assegura que ela diminui"' e
decrépito, que se apoia em muletas mas se arma da foice, d11111 1d c~plica:
ra uma criança e firma o pé sobre uma ampulheta. Esse d1•111/1
nio temível não é senão outra imagem da morte. Sem d i'1vlil 1 1111domos também observar que as partes do ano não fazem
"ele nutre", mas também "aniquila tudo o que existe".'''' r 1 llhtis seu dever, como se dissolvem, a terra se cansa, as mon-
plano moral, é o revelador da verdade por ser quem des11rn111,11 1111h11s não dão mais tanta abundância de metais, a idade
os valores ilusórios. Volta-se então a seu poder dest.nilih11 1111 homem diminui dia a dia e não apenas a virtude e força
sobre o qual a Renascença insistiu incansavelmente, 11•1111 1111 IUILUreza, mas também a piedade e a honestidade; de tal
mitindo essa passagem ao período barroco. Mas, se o ten11111 11111110 que podemos dizer que o mundo está em seu declínio
constantemente representado como velho, é porque css:1 1111, 1tproxima-se de seu fim.11'>
gem é produzida por uma humanidade que se sabe e se 1,11111
velha. Para os cristãos dos séculos XJV-XVJI parece evid11III• l )111 rns apologistas reformados da época - Pollot e Cappel
independentemente mesmo dos signos anunciadores cio 1'111111, liil111onte - retomam essa lamentação. Ora, não é sur-
mundo apresentados pelos acontecimentos contemporíl 1111, 111lt1111c que piedade e honestidade decresçam ao mesmo
que o essencial da história humana já passou. O tempo se 11p111 li lllll' a força física. Envelhecer é apegar-se cada vez mais
xima de seu termo. Ora, os anos não trouxeram sabedfll h1 l•,1~ cln terra e, portanto, perder de vista as do céu. Viret
humanidade. Gerson a compara a um velho delirante 1111111111 l,11•1• usse elo lógico:
por toda espécie de fantasias, sonhos e ilusões e a crnrnlih 1
perto de seu fim. Desse modo, ela sai diminuída fisica11w111, ,1
) 111t111do está em seu fim. E, portanto, já é como um ho-
prova dos séculos.115 ~ 111111 1111c prolonga a morte o quanto pode. Por causa disso
Pierre Viret, na obra já citada, Le monde à l'empire... , 11 111 111
li 11111 1.:nclimento e seu coração estão inteiramente entre-
"Quanto maito mundo envelhece, mais a estatura e a id111h 11
1h1~ ,, entregues às coisas mortas, isto é, às coisas terre-
homens diminui, e sua força corporal se debilita".'"· l •'.ss1• 11 1
, que são como coisas mortas em comparação às coisas
não é isolado. Ao contrário, junta-se a uma visão muito 1111q1I
1t ~lt'N [...], quanto mais os homens se aproximam de seu
mente difundida ela cronologia que situava em algum:1 p 111 I• 11
111111 11'0, mais são cobiçosos dos bens terrenos que não são
passado uma espécie de idade de ouro e concebia a succ~11111111
li 111 ltH'l'a como eles. E desse modo, quanto menos deles
séculos como uma progressiva degenerescência mor;1I 111
também física - do universo. Para N icolas de Clamang114, 111
Ili llllllUSsiclade, mais os desejam.12º
escrevia no começo do século XV, quando os padres fo1.i11111
trabalho de pastor, tudo ia bem na terra, materialrnc11W 1111 11 1111, 1) medida que a humanidade se distancia da juventu-
do: "As cidades e aldeias eram mais povoadas; os c~I 1lh11I • 11h11lu madura, "todas as virtudes envelhecem" ao m es-
mo tempo que ela e "todos os vícios ganham maior vl111,1 A t\ lt ITMÉTICA DAS PROFECIAS
como se essa fosse a lei inelutável da decrepitude. N ,111 ,,
titios daqueles que anunciavam o próximo fim dos tem-
espantemos, e ntão, se "o século está m ergulhado em 11•11v,1
i 11 lininência da passagem ao 111illenit1111, baseavam-se nas
se "aqueles que o habitam não têm lu z". Enfim, no~ 1111111
,1, que os textos bíblicos são pródigos. D aniel (2 e 7)
tempos, esperemos as maiores desgraças, pois que a r:1~·11 h1111,
na, tornada débil de corpo e de alma, será impotente tll 11 l 1 1111c quatro impérios precederão aquele que "jamais
delas: "[...] Outras calamidades ocorrerão que não as q111 , 1 - • r II ído" e que, sob o quarto soberano, os santos serão
ocorrer. Porque quanto mais o século se fizer mais f'n111 1 1 11hl11s durante "um tempo, tempos e um meio-te mpo".
velhice, tanto mais serão os males multiplicados sobre 11q11 1 11111111 cronologia reaparece no Apocalipse onde está dito
que nele habitam. Pois a verdade cada vez m ais recua, l' 1111111 Ili 11 Mulher, mãe do Filho salvador, será perseguida pelo
1 r 11li111entada no deserto por "um tempo, tempos e um
ra se aproxima".'11
Pie rre Viret escreve em outra parte, no mesmo t•1q lflll 1 111po". Daniel assegura também (121) que "a abomina-
"Dei-me conta desse mundo que vejo como um velho 1•11111 rh ~olnção durará 1290 dias". O Apocalipse anuncia , além
arruinado, do qual a areia, a argamassa e as pedras e ~11111 11111 os pagãos pisotearão a cidade santa "durante 42
algum a pequena porção de muralha caem pouco a prnu 11 1 •• que as d uas testemunhas do Senhor profetizarão
que m ais podemos nós esperar de tal edifício senão 1111111 1111 1 160 dias" (11). A Besta satânica tem por número 666
súbita, até m esmo à hora em que nisso menos se pensa, 10 1 11llr11, ncorrentado na prisão do inferno, o demônio sairá
Tal era a concepção do tempo mais correntemc1111• 111 1111 li no fim de "m il anos" (20). Teólogos, matemáticos
pelos intelectuais da época. C omo não teriam perccliid11 111 111110s tr:iba lharam incansavelmente sobre esses dados
correspondência não fortuita entre os sinto mas - t•v1tl1111 Ir li\ 1111e e ram recolocados em u m quadro cron o lógico
para eles - do envelhecimento da humanidade e o •i ~Ili I , ttlo esquema mais simples era este: o mundo vivera 2
anunciadores do fi m do mundo profetizados pela Bíhli11l 1 r 11111re a criação e a lei, depois out ros 2 m il anos sob o
dois discursos sobre o destino g lobal do universo se <:rn 11•-11 1~ l,11, O do Messias te ria por sua vez uma duração de 2
d iam e se r eforçavam mutuamente. Porque o mundo c111 11 li 111• "' Alguns, no entanto, como Cristóvão Colombo
tudo ia mal e logo iria ainda pior. E quando guerra< 1 1h11 11111 ,1 urna soma d e 7 mil anos. Pois, aos seis dias da cria~
pestes e fomes. acrescentavam-se à corrupção e ~s di•,1111,h 11111111 do cálculo anterior - , acrescentavam um sétimo
da Igreja, ao esfriamento da caridade, à multiplica\·:ui cl11 1 1111111h•111e ao descanso de Deus. Alguns, enfim, levavam
7
sos profetas, ao surgimen to - já efetivo ou imim:1111• l 1,111ponto de ultrapassar um pouco a barreira dos 7 mi l
Anticristo, podia-se d uvidar da morte próxima de 11111 1111111,I 111111111•1·0s contudo eram aqueles que, pondo em dúvida
uma só vez d ecrépito e pecador? Ou ele ia dar lugar, :1p11~ il 1 h,111 demasiadamente igual entre as diferentes frações
máticas convulsões, a um paraíso terrestre que duraria 1111111 ,._, ••~forçava m-se em calcular mais finamente o tempo
- era a esperança dos quiliastas, ou então - hip<'11 1"i1 111 11-11111rcr:1 entre a aurora do mundo e o nascimento de
provável - ia desabar aos pés do Grande Justiceiro d1"n lilr 1111111tlo o De Antichristo de Malvenda, o leque d os cál-
céu para a suprema prestação de contas. 111111&0 nu merosos, esclarece e le - sobre esse espaço
h 111•st_cnclia-se de 6310 anos (es_timativa excepcional) a
r. 111 11101 chegava a 3928, Jansenms a 3970, Bellarm in o
a 3984. 1!~ A despeito desses pequenos desacordos, 11 i11HIII • 111porfineo, o cônego de Langres, R. Roussat, que escreve
teria imaginado uma cronologia longa como a que se 111111, I• IH, avalia em 243 anos a margem que separa "a data da
familiar a nós. Ao contrário, encerrava-se a história da ll't 1,11, 111li11;ilo deste presente tratado" da "futura renovação deste
uma duração breve e, levando-se em conta o tempo j:í d1•c11111 1lu. 011 de grandes alterações, ou de sua aniquilação". 119
do, não se podia mais creditar doravante à human id11cl1 111 lo logicamente, ele convida os "senhores edificadores de
número considerável de anos por vir. Cristóvão Colornl1111 • • lm, lorres, castelos e outros singulares e potentes edifí-
1501, raciocinava assim: 11 h•vn r em conta tal cálculo: para quê, doravante, erguer
1111\'0cs que, em tempo comum, teriam desafiado os sécu-
Desde a criação do mundo ou de Adão até o advento dt• ~ 1 111,_ nilo resistirão ao cataclismo final agora próximo? Para
so Senhor J esus C risto houve 5343 a nos com 318 d 111~. m1111dnde, a estação de construir passou. É chegada a hora
gundo o cálculo do rei dom Afonso, 115 que parece ~e1 11111 1, 1111nclimento.
seguro [...). Se a isso se acrescentam 1501, com 11111 111111 ,_ 11q11i, entre muitas que se poderia ainda citar, outra pre-
menos, isso d,í 6845 anos menos alguns meses. Po r l'N~111 ,,, 111111 cifras datadas de 1609 pelo senhor de Penieres-Varin.
ta não faltam mais do que 155 anos até o cumpri111en1111h 111 ,1, 1ldvertissement à tous cbrestiens sur /e grrmd et espouven-
mil anos, no curso dos quais [...] o mundo dever:í :1ral1111 i,h•,•11m1e11t de l'Anticln·ist et f,11 du monde, é dedicada ao
111 ili•Joycuse, arcebispo de Rouen, primaz da Normandia
Assim, uns tantos raciocínios e cálculos, umas 1:1111 11 ~ 1 111 l•'rnnça, e aparece com as melhores autorizações ecle-
liaçõcs diferentes, mas todas pouco generosas, do 1emp11 'I 11 - Do mesmo modo que vários sofisticados calculadores
resta transcorrer antes da entrada no mille11i11111 ou :inH·•, d1, li 1111111po, ele assegura que o dilúvio teve lugar no ano 1656
do mundo. Nicolas de Cusa, no século xv, prevê o fim do 11111, 11 1l'inçõo do mundo. Portanto, o início do reino do
do para o trigésimo quarto jubileu após J esus Cristo, prn 111,1 t 1-111 ("esse miserável reino que cobrirá a terra de um mar
para 1700. Lutero, como vimos, hesita, mas sob a pe1~p, 1li , ,, de desolações") começará em 1656 após Jesus Crisco. 130
de um horizonte cronológico estreito: sua geração ver.1 11 , 11, 11 1111scimento se situará em 1626, pois existe uma neces-
prim emo das Escrituras, ou então a seguinte. Ou, St' 1li 11 11111111•in entre a vida de J esus e a de seu inimigo. Ainda por
permitir, talvez a humanidade tenha ainda cem anos p1~l11 ft•, 11,,1111 ~cu império desabaní em 1660; o fim do mundo pro-
te? Ele não vai além.m Viret fornece, por sua vez, 11111:1 qu 11,
l 1111• dito acontecerá evidentemente em 1666, já que o
ficação pesada ele ameaças: 111 M(, é mencionado expressamente no Apocalipse.m
7
12
11111 lonnmos anteriormente, seguindo E. Labrouse,' o
O século perdeu sua juventude e o tempo declina p:1r1111\ li
1111,vocndo na Europa pelo eclipse solar de 1654, expli-
ce. O século foi dividido em doze partes, e as dez p :1111 1
, ,~c• pânico precisamente pela importância atribuída à
a metade da décima parte [é preciso ler: a décima p1111111t,
1 lrM1, especialmente pelos teólogos e prognosticadores
passaram. Não resta mais do que aquilo que está apo~11111,,
1111111,;, Com efeito, desse lado da barreira confessional a
de da décima parte [ele quer dizer a décima primei , 111 1
111111 nica é que era considerada canônica para o Antigo
111 11111, Orn, ela anuncia o dilúvio para o ano 1656 da
Claramente, esse cálculo significa que 21/2-+ do 1111
1 ,111 pnsso que ele se encontra anunciado para 2242 ou
concedido à humanidade já passaram. Mais nitid:11111•1111
347
2262 se se adota a cronologia dos Setenta.03 * Nos países u 1111 Ili l11 g rande Isaac Newton:m lista não exaustiva e no enrnn-
meios que optaram pela Reforma, inúmeros foram os opt1S\'1d11 ,lnHularmente impressionante.
e os sermões que anunciaram para 1656 o dilúvio de fogo 11111
ia consumir a terra. Os dois eclipses, de 1652 e 1654, acu11111 h111
do seus efeitos, não podiam deixar de produzir um res11h11il1 N <;1-;OGRAFJA DOS MEDOS ESCATOLÓGICOS
tão assustador. Mas a espera angustiada dessa iminente t'llhl Nu segunda metade do século XVI e na primeira parte do
trofe atravessou as fronteiras religiosas e políticas e, ni1111 11111 11 purece que o temor do Anticristo e das catástrofes que
como a França, atingiu também meios católicos. dlll ncompanhar seu reino, anteriormente difundido por
Em pleno século XVIll permaneciam portanto viv11~ li 1 1' 11istandade, permaneceu mais forte em terra protestan-
Europa a preocupação com o Anticristo e a espera do fi111 tl11 11111t· em país católico. Mencionamos mais acima o catálogo
tempos (ou da passagem ao ntillenium). Para John N:1ph•1 , h111iro Georg Draudis editado em F rankfurt em 1625: das
principal interesse dos logaritmos, dos quais foi o inve11w1 1 11 111 11~ escatológicas em alemão que ali figuram, uma única
facilitar os cálculos relativos ao "número da Besta" indicado 11• • ~Ido redigida por um católico; 68 eram devidas a autores
Apocalipse.!)• Segundo ele, 1639 marcava o começo d;i dcNlljll, 111111~, vinte a calvinistas.' 38 Em 1610, o reformado Nicolas
gação do "império anticristão" - a Igreja romana. Os ci 11q11111 h I podia fazer uma lista de 28 autores protestantes, origi-
ta ou sessenta anos seguintes veriam os formidáveis :1co111111 •• 1lt• dez países diferentes, que haviam proclamado que o
mentos dos derradeiros tempos, situando-se o dia do ,1111 11-10 era o papa. Entre esses autores, um cios mais notáveis
Final em 1688 (baseando-se no Apocalipse), seja cm 1 111 1 ,l11vida L. Daneau, que publicou em Genebra, em 1576,
(segundo Daniel).m Semelhantes cálculos eram cmTc1111•• 11 /1,11111/11.s de Antichristo, traduzido para o francês no ano
Inglaterra e ;rn América inglesa de antes de 1660. O p11111, 1111•' Essa obra é o resultado de várias décadas de reflexões
Thomas Parker anunciou o fim do mundo para 1649, o p11 lo1 1i1111cs sobre os textos escatológicos. Ele afirma categori-
teriano legitimista Ed. H all para 1650 ("ou nos dozt 1111 llh 1• com muitos argumentos que se pretendem racionais
seguintes"), Th. Brightman e T. Goodwin - dois teóloKtl~ q1 1 1 \ 111 icristo já se manifestou na história, que seu reino
contribuíram para popularizar para além da Jvlandi,:1 I\N 111, 1111 1H1 século XII e agora chega a seu fim . Trata-se eviden-
fecías de Daniel e do Apocalipse - para 1690, 1695 CH I 111111 11• do papado, cuja ruína final se situará no decorrer do
Assim, não só,,as previsões de Napier tiveram ampln dii'11N1h11 1, \ 11, 11Y Na lista que organizou, Vignier, muito modesta-
Inglaterra d~ época, mas ainda outras pessoas eminc11n·•• 1111 11011 se incluiu. No entanto, havia escrito um volume de
ressaram-se então pelos prazos escatológicos. Entre l'i11~1 1, 111111111 sobre L'Antéchrist romain opposé lt l'Antéchrist juif du
contram-se, por exemplo, William vValler, futuro gc11\'I111 ,1 I /11tll11rmine.. et autres (1604). 140 Mais conhecida do que
exércitos do Parlamento, John Pym, um dos Iídcrt•I d1 1 111 ,. n não menos vasta obra de Duplessis-Mornay, Le
Cromwell, evidentemente, John Lilburne, o chefe dos "l1111 ,1 ,l'llllffllité, c'est-lt-dire l'histoire de la papauté (1611), que foi
tários", Gerarei Winstanley, inspirador da seita dos di,u.,u,11, l1111111tc traduzido em inglês e conquistou para além da
1 1111111 bela popularidade.141
terrassiers), Henry Oldenbourg, secretário da Royal Sot·il 1\
111 kristo é o papa, afirma Duplessis-Mornay:

• Os setenta (ou setenta e dois) tradutores da Bíblia cm grego. ("' 1


É preciso que o chame pelo nome? Ele n ão fala o h11~t 1111 11111tismo, implantando-se na Inglaterra e na Escócia,
por si mesmo? e não parece que Satã teve prazer, 1•1111• '"" com ele a literatura apocalíptica do continente e
nhando-se em fazer ver ao mundo uma obra-prima dt , 1111 ns inquietações escatológicas. Traduziu-se para o
habilidade [como punição] de nossa cegueira, em no~ h1111 11 pnrtir de 1548 as Couject'/lres de O siander Sur les der-

este homem ao palco? Por quanto tempo, tão exprc~~111111, 1 tll/lf ct ln fi11 du 111011de e a partir de 1561 Les ceut se1"111011S
te, t ão claramente o Espír ito de Deus soberano, pcln 111, lt111mlypse, de Bullinger. Esse clima de espera explica
de seus profetas e apóstolos, nos advertiu da vi n<la do 1\ 111 u,11 escrevendo de sua prisão de O xford, em 1555, aos
cristo, de suas qualidades, de seus feitos, de seus co111p1111 m ~inceros da verdade divina", lhes ter anunciado o dia
mentos, de sua sede, de seu hábito e de sua conduta?'' 1111• nosso Cristo virá em sua glória: o que, estou certo,
l lilllf'lf'.Hl
1l1•1111rismos radical e moderado e crença em um fim imi-
Pode-se explicar facilmente a continuação, ou aré 1111 11
1111 mundo somaram-se na Inglaterra do final do século
a acen~uação dos temores e das esperanças escatoló~ir11 1
11,1 primeira metade do XVII para criar ali uma atmosfera
mentalidade protesta nte no final do século XVI e na prl111111
11,1 ilc escatologia. Porque até aqui insistimos sobretudo
parte do século xv11. Na Alemanha, a Guerra dos Tri111 111\11
1111111rismo, talvez seja preciso sublinhar quão frequente
teria podido transforma r-se - e por um momento t n1 11~h
111111111:io do último d ia e do grande Juízo. Um soberano
mou-se - em van tagem dos Habsburgo, cuja po lítica l' 1111
lt1ll11c 1, autor de uma Meditação sobre o Apocalipse (1588),
exércitos ameaçavam evidentemente a Reforma. Na Fr:111~11 t 1~ l'OlllO W. Alexander, G. Wither, J. Doone e, é claro,
protestantes, apenas parcialmente tranquilizados pelo 1' 1111 h1111 deram sua contribuição à literatura escatológica.'~6 O
de Nantes, tinham motivo para temer a contraofensiva rn1i,I /,1y, de W. Alexander (1614), não contém menos de 1400
ca. E ntão, o protestantismo, na defensiva, agar rav:1-.~1• 111,1 f , q11c descrevem com muitos detalhes as "doze horas" do
do que nunca à acusação tradicional - o papa é o A n11111 , 1 11111.0. Para esse poeta-homem de Estado - era amigo
- e à convicção de que o fim do mundo (ou para a ll{tl ll 11111 1 - os sinais prenunciadores da catástrofe fina l são
passagem ao millenium) daria um fim aos sucessos mrn11 i,111 1111 111 1• visíveis:
neos do inimigo de Deus. ~
Também para além da Mancha, a religião oficial ~l·111 l,t 1111•111 boatos de guerra, o Evangelho é pregado em toda
cercada de p1:;rigos ao mesmo tempo do exterior (a /11111•11,1 111, 11lguns judeus se convertem, o A nticristo se dá a co-
Ar?llada, de ).588) e do interior (a Conspiração da Pôlvrn ,1 1 111, 1•1', os diabos estão furiosos, o vício reina, o zelo esfria ,
1605). Na Inglaterra dos anos 1560-1660, teria sido 11111h 1 , t, 1•11fraquece, as estrelas caem. Toda espécie de pest es
não identificar pontífice romano e Anticristo, Igreja c:11 11l1t , 1,1111 so:ir a última trombeta: e por meio de sinais prodi-
"Grande Prostituta". Um puritano inglês constatava, 111l11 , , 1..-11~ vê-se claramente que eles anunciam a aproximação
ironia, em 1631: "Aquele que pode jurar que o papa é 11 \111 1 I Ilho cio homem.'~
7

cristo e q ue se deve comer carne na sexta-feira é protes1.1111,


Na biblioteca que o erudito Lazarus Seaman deixou ao 1111111 1 tll~1 urso poético apoiava portanto as afirmações dos
(1676), cinquenta obras em 6630 eram livros sobre o A 111 i, 1I 1 Th. Adam s, J . Mede, R . Maton, B. Duppa (um
a maior parte e m latim, publicados entre 1570 e 16~r, 1 que falavam incessantemente do "último tempo",

351
da "última hora", dos "últimos dias do último tempo". A CWII 11111 condições normais, mas como ver em tal fato o sinal do
paração que Th. Adams estabelecia com o escoame nto 1111 11dvcnto do Senhor?"º
estações é particularmente forte e reveladora:
11' 111 suma, a propaganda protestante utilizou o quanto pôde
Eis-nos caídos na profundeza do inverno. A pr i11111vt 1 11 11 n Igreja romana os diferentes textos apocalípticos das
passou; o verão teve sua estação; o outono deu sc11s l 111 1li urns, sob o risco de traumatizar ainda mais populações
tos. Agora o inverno sacudiu e derrubou as folhas e n:111111, 111 tinham bastante tendência a ver nos eclipses, nos come-
deixou senão árvores nuas, despojadas e estéreis. O íilt 11111 • nus conjunções astrais os sinais anunciadores de for midá-
mês do grande ano do mundo chegou para nós. Esta111rn1 t 11 1h•~graças. Em contrapartida, o catolicismo regenerado -
• , ,uln vez menos identificável com a religião do Anticristo
pleno dezembr0. 148
(1 podia acalmar medos que o adversário utilizava contra
l\lf'nificativo da contraofensiva católica a esse respeito é o
Na época da guerra civil, a queda do trono e a muh iplh •
1 phm-esco, truculento e violento do ex-protestante Flori-
ção elas seitas na Inglaterra pareceram a muitos teólogos IH' '
1 il1 1 Rnemond, intitulado Antéchrist (1597). Esse alto magis-
mistas as provas definitivas de que o demônio estav,1 soli11 1
111 1h1 boa nobreza sai em guerra contra as previsões fanta-
retorno de Cristo já não podia tardar.140 • 1h•seus adversár ios: "Todos os dias vemos escritos saírem
Ao contnírio do que se passava na Inglaterra e na All:11111111,
•111 profetizando essa ruína papal, e de toda a papamania
é manifesto, a despeito dos revigoramentos de medo co11u11111 I \ 1,111 deles]. São pessoas que perderam tanto óleo sobre o
1654, que a Reforma Católica provocou um refluxo das ,lll Kll~II 1Hpsc e Daniel [...]. É ali que encontram a ruína infalível
e elas esperas apocalípticas. Uma vez que a propaganda pro11•~1111 li 1\nticristo, o banimento do catolicismo da França, e mil
te apontava incansavelmente o papa como o Anticristo e 11 lfll 1 - l,tn~nsias".151
romana como a "besta" do Apocalipse, a resposta <lo :1dw 1 li 1 li 11 FI. ele Raernond, o Anticristo certamente virá, mas
1
não podia senão lançar a dúvida sobre essas afirmações d 1•11111 1 li 111\0 teria aparecido na terra. E, quando afinal ele se
damente peremptórias, ou até mesmo tornar ridículo 11111 t 111 • Ih 41111\ os protestantes estarão entre suas primeiras víti-
trofismo permanente que via em qualquer prodígio t11H ~li• p11IH nõo o reconhecerão, já que o identificaram errada-
precursor do fim do mundo. O pregador católico G eorg-c~ \ \ 1 h 111111 o papado. E nganaram-se de Anticristo.
anteriormente citado, deu desde 1536 o tom da réplica: l 11 Mnlvcnda a Bossuet, os teólogos romanos esforçaram-se
h 111po em diante em mostrar, baseando-se nos evangelistas
Se os raios brilham com um clarão desusado 11.1 Sill'•d11, 1 Ili 11 • XX de A cid11de de Deus, que nenhum cálculo permite
ali um milagre? O vento do norte desloca os tcll 1111h1 1111 nntecipadamente a data do último advento. 151 Fato
uma cidade, é a prova de que o Senhor desce do l 'l'II t \ 11111~• e revelador: a Itália, que na época da Renascença fora
julgar-nos? Encontrou-se em uma floresta um 11trnll• li 111 ,11111 por grandes angústias escatológicas, esqueceu-as
carvões acesos; a terra tremeu, o trovão estrondl·1111, 111 11111• li recuperação religiosa ali se fez sentir após o Concílio
nuvem muito espessa planou sobre a cidade; m;ts l' 11111111 11111, Desse modo, a Igreja católica insistiu daí por diante
tais fatos se produzam? Em Breslau, urna tot'l't' d1•-11I 111,1lli no juízo particular do que no Juízo Final.
vede que prodígio! Na Silésia, uma mulher n:io d1•11 1 1
7. SATÃ uh uras de Vézelay e o Elucidnrium, espécie de catecismo
hlo no começo do século XII por um alemão pouco conhe-
1111I' muito tempo chamado de Honorius d'Autun. 3 Ora,
0111 11 contém uma sistematização e uma vulgarização dos
1110~ demonológicos disseminados nos escritos cristãos
o~ primeiros tempos da Igreja e, por outro lado, é a pri-
1. ASCENSÃO DO SATANISMO 11 ,·eunir de maneira coerente as penas do inferno} Ao
1 111 tempo sedutor e perseguidor, o Satã dos séculos XI e XII
A emergência da modernidade em nossa Europa <wtch 1t1
1 111omc assusta. No entanto, ele e seus acólitos são por
foi acompanhada de um inacreditável medo do diabo. /\ 1{1111
tilo ridículos ou divertidos quanto terríveis; por isso,
cença herdava seguramente conceitos e imagens dc11io11h11
Ili NC progressivamente fami liares. A hora do grande medo
que haviam se definido e multiplicado no decorrer dn 1,111
1111111 ainda não chegou. No século xm, os nobres "Juízos
Média. Mas conferiu-lhes uma coerência, um relevo " 1111
difusão jamais atingidos anteriormente. I•" dns catedrais góticas colocam em seu justo lugar o
1111, seus suplícios e demônios. O essencial dos grandes
Satã pouco aparecia na arte cristã primitiva, e os :111 1 ,
11111111 esculpidos é então reservado ao Cristo em majestade,
das catacumbas tinham-no ignorado. Uma de suas mai\ 1111t l1
figurações, nas paredes da igreja de Baoui"t no Egito (séc11l11 \ 1 h pnradisfaca e à alegria serena dos eleitos. "Na arte toda
o representa sob os traços de um anjo, decaído, sem d11 1 Ili 1 ~lc·n do século XIII", escrevia E. Mâle, "[não se encontra]
h1111111 representação detalhada do inferno"/ embora Santo
co~1 ~n_has recu~·va_s, mas sem fei úra e com um sorriso 111 11111"
co 1ronico. Irres1st1vel sedutor nas páginas iluminadas da 111111 •- 1k· Aquino declare que não se deve entender de modo ape-
de são Gregório de Nazianzeno (Biblioteca Nacional, c11111 1 lnthi'> lico o que se conta dos suplícios de alérn-túmulo. 6
séculos VI e IX), herói abatido nas decorações de cen:,~ 'Mil l M,,~ li partir do século XIV as coisas mudam, a atmosfera se
orientais da mesma época, Lúcifer, outrora criatura J)l'l' il 11 I d posada na Europa e essa contração do diabólico consegui-
de Deus, ainda não é um monstro repulsivo.• !,, ulnde clássica das catedrais dá lugar a uma progressiva
Em compensação, os séculos XI e XII veem prodltzir ~, ,~11 demoníaca. A divina comédia (cujo autor morreu em
menos no Ocidente, a primeira grande "explosão diabcílit 11' 11 ll 1111trcn simbolicamente a passagem de uma época a outra
Le Goff) ilustrando para nós o Satã de olhos vermcllt11~, 11 11111111cnto a partir do qual a consciência religiosa da elite
cabelos e asas de fogo do Apocnlypse, de Saint-Sever, o dl,tl 1111111 deixa por um longo período de resistir à convulsão do
devorador de homens de Saint-Pierre-de- C hauvigny/ m d11111 111,1110. Ela só se recuperará no século XVII. Essa obsessão
nios imensos de Autun, as criaturas infernais que, cm Vl•111I h,1duns formas essenciais, ambas refletidas pela iconogra-
Moissac ou Saint-Benoit-s ur-Loire, tentam, possuem ou 111111, 11111 nlucinante conjunto de imagens infernais e a ideia fixa
ram os humanos. Assimilado pelo código feudal a u111 vn~ 11 1111 untáveis armadilhas e tentações que o grande sedutor
desleal, Satã fa z então sua grande entrada em nossa civili, 1t\ , 11 ,~n de inventar para perder os humanos. Bem antes de
Anteriormente abstrato e teológico, ei-lo que se coru;rrt 1, 1 llh ltnvi:un circulado na Europa relatos fantásticos concer-
reveste nas paredes e nos capitéis das igrejas toda cspt·1 11 11 1 • ,tm tormentos do inferno.1 Alguns chegavam do Oriente,
formas humanas e animais. Estabeleceu-se uma rclaç:io 1•1111 111 11 Vlsíio de são Paulo, que remonta pelo menos ao século IV.

355
Arrebatado para fora da terra, o apóstolo dos gentios ch1•11 1 ,111nrentos, impedem os glutões de comer os pratos de uma
portas do império de Satã. Depois, ao longo de seu ho111 11, ,1h11ndantemente servida, chicoteiam os adúlteros, cravam
périplo, vê árvores de fogo em cujos galhos pec:1do11•• •- 11111 chamas no sexo das mulheres que foram levianas.
enforcados, fornalhas, um rio onde os culpados siio 111111• , N11 França, no começo do século xv, as Tres riches heures du
menos profundamente imersos segundo a natureza cl1• , , ,, lltwry também mostram o interior do inferno com um
vícios, enfim o poço do abismo que desprende densn 1'1111111~, 1hr l'X.traído da Visão de Ttmgdal:' 0 Lúcifer, gigante coroado
odor insuportável. Elementos da Visão de são Pnulo enc:o1111 ,111 11 nlimenta das almas dos condenados, aspirando-as e
-se em lendas irlandesas, em particular na Visão de T1111gt!"I,, 111 11111l0-as alternadamente, deixando escapar chamas e fuma-
horrores nada têm a invejar aos que se pôde ler dcpoi~ 11111 •1111 horrível boca. E m nosso país, é na metade do século
divina comédia. Entre os espetáculos assustadores oferct:ido- I' 111 os suplícios do inferno entram na arte monumental. E .
esse inferno nórdico, eis especialmente um lago de fogo 1 11, 11111~lrou, a parti r de exemplos precisos (cuja lista eviden-
lago de gelo, animais formidáve is que se alimentam da~ 11 h11 11111 11iio é exaustiva), que elementos extraídos da Visrio de
dos avarentos e das almas dos religiosos infiéis a scu, 1111, ',,11/11 e das lendas irlandesas ilustram curvas de abóbadas
pântanos fumegantes cheios de sapos, serpentes e ouu·o~ 1111 11111111s em Saint-Maclou de Rouen, na catedral de Nantes e
mais horrendos. 1~11 Jus da Normandia, da Borgonha e do Poitou. 11 Vem
Os teólogos do século Xlll haviam negado qualquer rn111pl ,lupln procedência certo número de detalhes apavorantes:
cência a ess11s imagens de pesadelo. Ao contrário, dur11111i I 1'111~ forjadores que erguem pesados martelos sobre uma
época seguinte, elas forçam as barreiras. Denys, o C::11111 11111 feita de corpos de homens e mulheres superpostos; a
célebre teólogo do século xv (t 1471), redigindo um tra1:1d11 ,1 lhl c1ual são presos pecadores, os condenados deitados
quatro fins do homem (Quat1101· 11ovissi111a), nele introdu, 1111 1111111 grelha e regados com chumbo fundido, a árvore seca
descrição que reproduz os relatos irlandeses e mais pari i111111 11 IIN enforcados vivos etc.
mente a Visão de Tnngdal. 8 Nos anos imediatamente posll'I h11 P,11111udo no unive rso inquietante de Hieronymus Bosch
à peste negra, os suplícios do inferno aparecem com tod:11 I' '" pcs:ldelos infernais atingem sua maior violência. Nos
cie de alucinantes precisões nas paredes do Campo S:111111 11 /·11/11/ de Viena12 e de Bruges e no tríptico do Prado, cujos
Pisa e na capela Strozzi de Santa Maria Nova, em~ Fim 1•111 ,~ 111presentam respectivamente o paraíso terrestre, o jar-
Aqui o artista (A. Orcagna ou um de seus alunos) scg-11111 1 1l,1- delícias e o inferno, a loucura e a maldade diabólicas se
perto o texto•de A divina comédia.9 Um testemunho i111p11•--1t 111111lcinm com o sadismo mais monstruoso. No inferno de
nante sobre:essa "nova angústia" (G. Duby) é fornecido 11111 111 1•, 11111 demônio, cuja cabeça é a de um pássaro de bico
ciclo de afrescos pouco conhecido, porque decora ,1 igrl'j 1 11 11, h•vn um condenado em seu cesto. Um outro carrega
uma pequena cidade, San Gimignano. Trata-se do i111! 11 11 ombro um bastão no qual um condenado crivado por
(1396) de Taddeo di Bartolo, no centro do qual rci11,1 111 Ih 11l111 está suspenso pelos pés e pelas mãos. Um condena-
Lúcifer bastante semelhante ao do Campo Santo de J>i~11 1•· i 111111 girar eternamente a manivela de uma viela desmedi-
suas dimensões gigantescas, sua cabeça de ogro, seus chifrl";, 11 11111 1111lro está crucificado a uma harpa gigante. Satã, com
mãos poderosas que esmagam condenados ridiculamentc 1"'1111 1111 h11mc, tem olhos de fogo, boca de animal feroz, rabo e
nos. Nos diferentes compartimentos do horrendo rci11111 1h• 1r11to. No lugar do ventre, aparecem as grelhas de um
demônios desenrolam os intestinos dos invejosos, fazem 11111 1 lt1•t·cbe seus hóspedes a uma porta cujo contorno é subli-

Jn
nhado por uma fileira de sapos. Os infernos de Bosch, por 111111 h1111, 1~ Bosch mostra o anacoreta assaltado por toda espécie
impressionantes que sejam, apesar de tudo integram-se cm 11111 ,11111ilégios demoníacos e vendo nascer diante dele mil for-
longa série de obras poderosas que a pintura flamcng:1, 1h1 • 11h1cinantes: jarras munidas de patas, mulher velha vestida
irmãos Van Eyck e Henri Eles, consagrou ao tema do J ut 11 li ,, casca de uma árvore morta e cujo corpo termina em
Final e portanto - associação tornada obrigatória na ép111 • 111 VtJlho repreendendo um macaco e um gnomo, mensageiro
- à descrição detalhada do inferno; e essa produção ard~tl1 1 111lliza patins de gelo para correr sobre a areia. Eis ainda
1
toma lugar por sua vez em um conjunto mais vasto da pi111111 • li li\iticeira servindo um elixir a um sapo deitado em uma
desse tempo que reúne o grandioso afresco de Miche bnl,(clo 111 1 1 11111n jovem mulher nua atrás do tronco de uma árvore
1
fundo da Sistina e uma composição anônima pon11µ111 t111 t'ujos galhos vestem grande tecido púrpura, um a mesa

(começo do século XVI) onde se veem os demônios prcsidl11 Ili 11111me arrumada para um festim para o qual Antão é con-
1
uma vez mais o castigo dos condenadosY 11111 por rapazes e moças. O prestidigitador diabólico exibe
1 1 J. Baltrusaitis mostrou, através de comparações co111p111l11 11111 dinnte do eremita impassível, todos os recursos de sua
tórias, que a iconografia demoníaca europeia dos séc11ln~ \1\ 1111lgica: tenta aterrorizá-lo, fazê-lo enlouquecer, desviar-se
-XVI se avolumara com elementos originários do Oric111, ljll
1
,1~ ,llcgrias fáceis da terra. Trabalho perdido. Santo Antão
1

haviam reforçado seu aspecto assustador. A China enviou 11i.~III r •• 11111 para Bosch a alma cristã que conserva sua serenida-
1
ao Ocidente hordas de diabos com asas de morcego e s~•i11~ 11 111 11111 mundo onde Satã recorre incessantemente a novas
mulher. Exportou dragões de asas membranosas, gig:11111•- 11 111111 hns.
1
grandes orelhas e com um único chifre na testa.14 Q11111\111 li m,mções de santo Antiio seriam também chamadas de Os
Tentações de santo Antão, por meio das quais se pode :ihoilhll ,11111.1· de santo Antão. Pois o Inimigo ao mesmo tempo tenta
1 segundo aspecto das imagens satânicas mencionado ;11111•11111 li 111unta os humanos. Aterroriza por meio de sonhos, apa-
mente, apresentam interessantes analogias com a invcsl id11h li 11111 meio de visões - desta maneira se exprimem os auto-
1 pelo espírito do mal e pelas forças do inferno à Buda mcdlrn111I li () 11111rtelo d11s feiticeims: "Sonhos durante o sono e visões
ao pé de uma árvore. Como o eremita cristão, Çaky:111111111 1111• 11 vigília".17 Além disso, ele pode não só investir contra
submetido a urna dupla série de provas, procurand11 11111 li~ ltll'l'CStres e o próprio corpo, como também pode pos-
amedrontá-lo, outras seduzi-lo. Ele precisa então 1'l'•,l~1li 11111 i,ur humano sem o seu consentimento, que desde então
gigantes disfonpes, a arremessos de projéteis,_à noite, :1111111,I 11111111 r11 desdobrado. O martelo das feiticeims relata assim a
e ao dilúvio, ,tnàs também a mulheres de seios nus q111 1 I" '1-.1l11 de um padre possuído:
curam perturbá-lo pelos 32 t ruques da magia feminin 11 ,1' 1
cena, frequentemente representada na escultura e n:i pi 111111 11 1,11111 privado do uso da razão unicamente quando quero
Extremo Oriente, juntou-se no Ocidente ao relato de t 111111 1 1 ,Ih ur- me à oração ou visitar os lugares santos [...]. [Então
copta relacionado a santo Antão e vulgarizado entre 1111- I• 1h1111()11io] dispõe de todos os meus membros e órgãos -
Legenda áurea. Assim viu-se enriquecido o repcn61ltt ,t Ih li pescoço, minha língua, meus pulmões - para falar e
"tentações" que Bosch, Mandyn, Huys, Bles, Patinicr, 111 Ili II llltll \lunndo lhe apraz. Ouço, sem dúvida, as palavras que
etc. deleitaram-se em evocar com uma estonteante ex II h1 111111 1 p1011uncia por m im e por meus órgãos, mas não posso
de detalhes burlescos e monstruosos. No grande t dpll1 ,, li., 1l11111mcnte resistir; e quando mais ardentemente eu gos-
359
taria de entregar-me a alguma oração, ele me ass.ihn "'"' 1fü() e 1512. Mais de um terço da obra é consagrado a esse
violentamente, soltando minha língua com mais forçu,11 ~11. Pllra Murner, seria preciso não ceder à tentação de reen-
l'tll o paraíso terrestre. Mas os homens pecadores não cessam
Mas as tentações são afinal mais perigosas do que o~ 1,,, 1-1l{uir essa quimera. Assim, o mundo entregue à loucura
mentas. Daí a necessidade de prevenir os muito crédulos h11111 l111i,lt~1mente às avessas e é portanto mau por essência." Daí,
nos contra a esperteza de Satã. Uma obra muito difundith1 11 11111 Murner como em Brant, a denúncia em bloco dos
Alemanha do século XV intitulava-se precisamente Das '// 11/ t11111mtos carnavalescos, demoníacos por definição. O louco
Netz ("As armadilhas do diabo") e punha em cena um ere1ni111111 1 ilt• Satã. O carnaval é subversão e dissonância.
discute com Satã.19 Este expõe os meios - muito numeroNm
de que dispõe para corromper a humanidade. É a mesm:1 p11,
cupação moralizadora que inspira O jardim das de/ídm , 11 'i1\' li\NISMO, FIM DO MUNDO EMASS MEDIA
Hieronymus Bosch (no tríptico do Prado). Nesse falso p1111t1 A I< ll:NASCENÇA
terrestre, a fonte de juventude onde brincam belas mull11 t 1\11 Ioda parte presente, o medo desmedido do demônio,
brancas e negras, as frutas deliciosas, as flores, as cores tão 1h1lh 1111 loocura e ordenador dos paraísos artificiais, esteve
das e luminosas que fazem pensar em uma miniatura pers:1 1 1•1l~1 ltuln na mentalidade comum à espera do fim do mundo
uma atmosfera de encantamento. Mas a intrusão do burl1•~111 111111 110 capítulo anterior. O elo entre eles é sublinhado no
até do obsceno, sugere que se trata de uma miragem dc111011h11 ,h, 11hortura de O martelo das foiticeirns. "Em meio às cala-
Através de um tubo de vidro, um rosto estranho olha um 1·11111 , 1 1h• de um século que desmorona", [enquanto] "o mundo
a esfera de cristal em que dois apaixonados se acariciam. ,\ l"lljlll • 11 111•nso desce para o seu declínio e a malícia dos homens
da da esfera, vela uma coruja, a ave de Satã; à direita, um h,111111 111,1", [o Inimigo] "sabe em sua raiva que só tem pouco
nu mergulha no abismo. Além disso, esse painel central do t I lp1 111 1l ~11n frente. Assim, "fez crescer no campo do Senhor
co é enquadrado de um lado pelo verdadeiro paraíso tcrrcs1111 Ili I YI 11sfio herética surpreendente", a das feiticeiras.U Brant,
de Adão e Eva - irremediavelmente perdido e, do o utro, Iº 1 11 hulo, reúne em uma mesma síntese loucura, navegação
inferno, onde são punidos os desregrados das alegrias.sc11s1111I l111-~ol11 nem mapa, mundo às avessas e aproximação do
O "jardim das delícias" não é senão um outro nome d11 ''I• 11t1111, P:tra ele também, a virulência de Satã só se explica
raíso", e em ambos se procura uma felicidade tão ilusó ri:1q1111111 l111t111i11ci:1 da catástrofe final. No capítulo cm, ele exclama:
a que se esp,era uma vez por ano nas festas do Carnaval. 1'111 lt 1111111 virá! Virá o tempo! O Anticristo, temo, já não está
de todos esses mundos invertidos - universo de loucura "l\proximamo-nos bem depressa do Juízo Final."11 Tal é
Satã. No capítulo cvm de La nefdes fous (1594), Brant 1:1111 1111 111 11t•oncepção de Murner, para quem o mundo às avessas
loucos sem mapa nem bússola em busca dos paraísos bct11 111• 1 • 1111llroitado no dia agora próximo da parúsia. 24 Portanto,
turados. É aceito previamente que irão de perigo em pc:ril{t t jt ti 11 111111 ncaso que Lutero, por sua vez, foi possuído ao mes-
soçobrar finalmente em plena tempestade. 20 Todo 11111111111 '"\'º pelo medo do diabo e pela certeza de que o cataclis-
lltl 1•~l nv:1 então no horizonte. Como, acompanhando-o, a
avessas é uma mentira. Contudo, em La nef esse tem:1 1111111,
relativamente esporádico e limitado. Em compensaçfo, dt1111II 1111111 protestante do século XIV e do começo do XVII não
O exorcisrno dos loucos que o pregador Thomas .iVlunH:1· 11 1h, 1111111ocido com esses dois terrores conjuntos?

i /Í'
O dr. Martinho, a cada vez que se chocava contra um oi,~ ( )s tormentos de santo Antão eram assim estendidos à
táculo, combatia um adversário ou uma instituição, tinl111 11 l,1111111ha inteira. Nesse país, onde se desenvolve então a le.nda
certeza de reencontrar o diabo. Folheando-se sua obra, pcn•i• h111sto, os habitantes têm a convicção de que Lúcifer é rei.
be-se que Satã inventou o comércio do dinheiro, "imagi11011 11 Ili 11\'ivida não teriam eles experimentado tanto esse senti-
perversa fradalhada", deu ao culto divino "formas abomin:ívd •' 11111 se o teatro e sobretudo a imprensa não houvessem
- entendam-se as cerimônias da Igreja romana. Foi ele 11111 r11111li<lo amplamente o medo e, ao mesmo tempo, o deleite
inspirou a Johann Eck (o principal adversár~o de Lutero 1111 rhltl() do satanismo. Uma peça representada em 1539 põe em
Alemanha) um "desejo irresistível de glória". E ele que "nw1111 111 o papa Pammachius e seu conselheiro Pofírio evocando
pela voz e pela pena" do papa. Ele também que reina 1•111 IA, que os espectadores veem aparecer:
Mülhausen - a cidade de Müntzer - "onde não caus,1 sc111111
pilhagens, assassinatos e derramamentos de sangue". D1•~1 1 I•ll· tem grandes chifres, seus cabelos são todos eriçados,
modo, a luta contra os camponeses revoltados não é s6 11111 "111 rosto é horrendo, seus olhos são redondos e flamejantes,
combate "contra a carne e o sangue, mas também co11tr·11 11 , 1111nariz é comprido, torto e recurvo, sua boca, desmesu-
maus espíritos que estão nos ares [...]". Nesse "caso diab(1ll111 1,11l11111ente grande, inspira horror e pavor, seu corpo é in-
(a revolta dos camponeses), o demônio "tinha em vista dcvn1ot111 1t1lrnmente negro.
inteiramente a Alemanha porque não tinha outro meio p111 1
criar obstáculo ao Evangelho". 2; Assim como L11111111 I•111 11mJulgmnento de Salomão, o diabo ridiculariza a água
Melanchthon tinha pavor enorme do demônio e tem i:1 a 1·1111 t 11,,1 o sal consagrado e a bênção que o papa dá aos fiéis.
instante vê-lo surgir diante dele.16 Ili "1•omédia" intitulada O último dia do Juízo Final mostra
A polêmica confessional desencadeada por Lutero c ,o li 11011los saindo do abismo lançando grandes gritos. Arrastam
discípulos sobre tais bases só fez aumentar o medo do di:\111111 1 111phllns para o inferno, depois voltam e põem-se à mesa.
Alemanha protestante, onde teólogos e pregadores conV\'111 • 1 11111 rn "comédia" representada em Tübingen em 1580,
ram-se de que, aproximando-se o fim do mundo, Sat:i l:111~1" 1 1t\11los, a pedido de Jesus, lançam ao inferno não apenas o
contra os evangélicos sua última ofensiva. Sob o p:1piio111, 11, tllllS também Zwínglio, Karlst adt e Schwenckfeld: é
escrevia em 1595 o superintendente André Celichius, 0 •1 ill11 IPt1t11mente uma obra luterana. Sem dúvida, o teatro medie-
bretes e os duendes tinham frequentemente atormc111111l11 1 i• 111 l'St:ntara muitas vezes o diabo e seus acólitos. Mas
homens. "Mas"agora ferozes carrascos saem todos os d h1N111 Ili~ o de moníaco invadira a cena a esse ponto, superando
abismo, de rnodo que os homens são tomados de pavrn I ti 11111 11 mplamente os dramas de polêmica confessional. O
dor."1 ' E acrescentava a respeito dos casos de possess~o: t1h11110, com aspectos de grand-guignol, tornara-se o com-
11111 Indispensável da maior parte das representações tea-
Quase em toda parte, perto ou longe de nós, o 11(1111,•111 d, ~i.1111ns no final do século XVI. Um contemporâneo notou
possuídos é tão considerável que se fica surpreso e :ili ljiltl 1" cl 1
e essa é talvez a verdadeira praga pela qual nosso I•f1 ll11
todo o mundo caduco que o habita estão conde n:1dor1 li I' IJ11t1111lo um autor dramático quer agradar ao público, é pre-
recer.18 l 11llllCCssariamente que lhe mostre muitos diabos; é preciso
1111 11~MCS diabos sejam horrendos, gritem, urrem, lancem
clamores alegres, saibam insultar e blasfemar e acabc111 p111 1lomoníaca substituiu as vidas de santos, como prova este
levar sua presa para o inferno, em meio a rugidos sclv:1K1•11 11111nho melancólico de um letrado de 1615:
é preciso que o alarido seja horrível. Eis aí o que m.,is 1111 ~,
o público, o que mais lhe agrada.2•1 vlcln dos santos que nos falava outrora do amor e da miseri-
111 din divina, dos deveres da caridade cristã, que nos exortava
Espírito crítico e humor raros, na época, de um obscrv111h11 1 111·11ticá-los, hoje já não é de moda e não tem mais prestígio
isolado, contrabalançados por numerosíssimos proccssoN 11 11110 no passado junto aos bons e piedosos cristãos. Em com -
feitiçaria. 1w11Nnção, todo mundo compra livros de magia, imagens ou
O que foi dito anteriormente sobre a difusão das ani_.r1'rnll rl111ns sobre as ciências ocultas e diabólicas. 3'
apocalípticas graças à imprensa vale logicamente tambi:': 111 p111
a ascensão do satanismo no século XVI. Ela não teria essa :1111ph l11\IH'ensa difundiu o medo de Satã e de seus sequazes ao
tude, na Alemanha especialmente, sem o multiplicador pod1111, 1111 1ompo por meio de pesados volumes e publicações
so que foram o livro e folheto, por vezes enriquecidos de d1 1 h11 l' S, Entre os primeiros figura evidentemente em bom
nhos. O próprio sucesso das obras de Lutero deve ser lc111l111111 r II muito célebre O martelo das feiticeiras, do qual A. Danet
aqui. O dr. Martinho comunicou seu medo do diabo a celll l'llt Jl,011 pelo menos 34 edições entre 1486 e 1669: o que sig-
e centenas de milhares de leitores. 1111c ele 30 a 50 mil exemplares da obra foram postos em
De maneira bastante surpreendente - mas reveladoi 11 11 1111\110 na Europa pelos editores de Frankfurt e das cidades
pessimismo da época-, S. Brant, na versão alemã de s11:1 / .111• 1111• (1•11torze edições), de Lyon (onze edições), de Nuremberg
1 1
des fous, condenara sem equívoco a prensa de imprimir. () pl 11 1111 utlições), de Veneza (três edições) e de Par is (duas edi-
logo da obra declara, essencialmente, que a nova i11v1111~ 1 l )1111s grandes ondas de difusão podem ser identificadas
difundiu a Bíblia, mas que nenhuma melhora moral da í 11•-111 1UOe 1574-1621), correspondentes a duas campanhas de
tou. O capítulo I põe em cena o falso erudito rodeado d11 1h 1, \tl11 ,. de repressão da feitiçaria separadas pela Reforma
inúteis e estudantes frustrados e arruinados que cnco1111 11, 1i1111c e pela eclosão das guerras religiosas. No lote das
refúgio nessa indústria. Em outra parte, é menciona~_lo q111 h • ohrns alemãs consagradas ao satanismo encontra-se
imprensa, inventada há pouco, entra em decadência co11111 11 !1!fltro dos diabos, sem nome de autor, que em 28 anos,
outras profissões artesanais. Ela é novamente coloc11d11 11 Ili'~ 11dições (1569, 1575 e 1587), e as Instruções sobre a tira-
questão no capítulo consagrado ao Anticristo: foi ck q111, 111111111· do diabo, de André Musculus, cujo sucesso foi ainda
sugeriu pôr ~m funcionamento essa diabólica máfpii1111 111• f 1 < ) Teatro dos diabos era uma coleção inicialmente de
espalha em profusão a mentira e a heresia.;º Adaptando ll'í p11 ( 1\(11)), depois de 24 (1575) e enfim de 33 livros (1587)
vras de Brant, não é exagerado afirmar que a impre ns:1 1111 1111 1_111 ,11los ndemonologia. Calculou-seH que, entre as primei-
"máquina diabólica", na medida em que fez conhecer 11111111111 h\ll1•N e ns reimpressões, um mínimo de 231600 exempla-
rosto e os dons incrivelmente diversos cio Inimigo dos hrn111 1, 11l1r11s relativas ao mundo demoníaco foi lançado no
A se acreditar nos catálogos de incunábulos, entre 011 1111 1111 11lcmão na segunda metade do século XVI, do qual
ilustrados mais frequentemente editados na Fni11~·11 1 1 th 100 mil na década de 1560 e 63 mil na década de 1580.
Alemanha antes de 1500, figura a história de Satã (o /M/11/l 111, 1 11 história de Fausto suscitou umas 24 edições nos
Jacques de Teramo. Depois, na Alemanha protestant e, 11 11111 t1hl11tos a nos do século. Quanto às gazetas, brochuras e
folhas volantes, foram incontáveis. Divulgadas por masc.·1111• ,\~sim, contrariamente ao que acreditaram Stcndhal e mui-
mágicos e exorcistas ambulantes, explicavam os sonhos, rcli1111 1111tros depois dele, foi no começo da Idade Moderna e não
vam crimes e narrativas atrozes, ensinando a conhecer o f'u1111,, lilnde Média que o inferno, seus habitantes e seus sequazes
e a precaver-se das armadilhas diabólicas. Estavam replct 1111 1h 1~ monopolizaram a imaginação dos homens do Ocide nte.
histórias de possessão, de lobisomens e de aparições de Snt 1 wstcmunho disso para a França a lista dos libelos, tratados
Tal era no século XVI e no começo do XVII o pão cotidi:11111 11~ 11lmos e obras assinadas dos séculos XVI- XVII relacionados à
Alemanha. André Musculus escrevia em 1561: "Em nc11l111111 11\tlllin e ao universo demoníaco que Robert Maneirou fez
país do mundo o diabo exerce um poder mais tirânico do 11111 111 ,11· no começo de seu livro, lv1agistrados e feiticeiras na
na Alemanha".is De fato, é provável que o temor conjunto 1h, 11111 do século XVIl. 37 O autor desse trabalho notável não con-
fim do mundo e das investidas demoníacas fosse então 111111 httl menos de 340 deles: o ,que faz supor uma difusão de pelo
difundido nesse país do que em qualquer outro da Europ11, IIIIN 340 mil exemplares. E preciso sublinhar ainda que eles
Entretanto, o fenômeno foi evidentemente mais ge mi t t 1 rnnstituem senão a parte manifesta de um iceberg muito
certo, por exemplo, que atingiu também a França. Aqui i1-11111I 1• vnsto do qual nenhum historiador jamais poderá sem
mente a imprensa teve larga parte de responsabilidade 1111 111 hh1 ter a medida exata.
fusão do medo do diabo e da atração mórbida pelo sata11im111, No momento em que culminou na Europa o medo de Satã,
Voltemos um pouco atrás. Em 1492, aparece uma obr:t q11 11, 1m segunda metade do século XVI e no começo do },,.'VII,
combina todos os relatos anteriores relativos aos suplít 11, flt11111ntes obras apareceram em diferentes países, fornecendo,
infernais e lhes dá uma tipologia quase definitiva. Trat:1-~1• 1l1 li tltll luxo de detalhes e de explicações jamais atingido ante-
Traité des peines de l'enfer que Vérard reúne à sua Art de bi1•11 111, , 1111, ntc, todos os esclarecimentos que uma opinião ávida
et bien mourir publicada anteriormente. Sem excesso de i111111t1 j111•11 ter sobre a personalidade, os poderes e os rostos do
nação mas com método e clareza, o desenhista de Vé111111 t11lw1 do gênero humano. Literatura realmente internacional,
fazendo uma triagem no lote de representações inquie11111h 11onologia e geografia podem ser adivinhadas pela breve
originárias de fontes orientais e irlandesas, liga a cada pl't'1ll h MI I tlf.{Cm a seguir, certamente muito incompleta, mas signifi-
capital a punição mais apropriada: os orgulhosos são at11dn l\'111 tlcnndo entendido que um Jean Wier, que intercedeu pela
uma roda; os invejosos são mergulhados em um rio !4l'liíih• 11l111'lncin em relação às feiticeiras, acreditava no entanto com
serpentes e sapos devoram o sexo dos luxuriosos etc. ( )11t1 , ., ,1~ ~uas forças no poder de Lúcifer e de seus agentes:
livro de Vératd é logo imitado. Pois Guyot-March:1111 , p111
conferir maêor interesse a seu Calendrier des bergen ( I• 1 d 111/orcs Títulos dns obrns
1491), a ele acrescenta um capítulo consagrado aos suplícioh 11 lt,,111 Wier (alemão) De prnestigiis dne111on11111
inferno, que resume o tratado de Vérard e reproduz sem p111h"
1 ,1111bcrt Daneau (francês) De veneficis ... dinlogus
suas ilustrações. O Calendrier des bergers é imediarnmcntt· 1111, Deux trnitcz no11vcn11x tres utiles pour ce
na França inteira e seu sucesso será duradouro. E. M â lc: 11111 tcmps. Le preniier to11chn11t /es sorciers...
trou que ele inspirou diretamente os artistas que, no fi 11111 11 h 1111 Bodin (francês) Ln dé111ono11umie t!es sorciers
século XV, representaram os tormentos infernais no l{I 11111I
11h11rc llinsfeld (alemão) Trnctntlls de co11fessio11i/111s 111nleficorm11
Juízo Final de Albi e nas marchetarias das estalas de (;11111• , et s11gnn1111 ...
(começo do século xvi).36
1l " PRÍNCIPE DESTE MUNDO"
1590 Pierre Crespet (francês) Deux livres de /11 hayne de Snt1111,..
Discom·.r exécmble des sorciers... 11111cmatizando, pode-se dizer gue nessa época - e ainda
1591 Henri Boguct (francês)
1oi11po depois - coexistiram duas representações dife-
1595 N icolas Remy (loreno) Dc1110110l11tri11e libri trcs
1h• Satã: uma popular, a outra elitista, sendo esta a mais
1599 Pierre de Bcrulle (francês) Trnité des é11ergm11imes ti, Adivinha-se a primeira através dos depoimentos nos
1603 Juan Maldonado (espanhol, Tmité des 1111ges et des dé111011s •oN e das anedotas contadas por humanistas e por ho-
18
mas tendo vivido sobrcrndo 1h• Igreja. Algumas foram mencionadas anteriormente.
na França)
11111110 e no Jura, os documentos judiciários nos revelam
1608 William Perkins (inglês) A discourse of the da11mcd 11rt of
witchcmft
nmh11s vezes o diabo popular não é designado por um
lithlico, mas se chama Robin, Pierasset, Greppin etc. Só
1609 Fco.-Maria Guazzo Compendi11111 11Ta!eficor11111 I-' 1h o de Ajoie (bispado de Basileia), nos anos de 1594-
(italiano)
1 lt•s dão a conhecer cerca de oitenta nomes de demônios.
1612 Pierre de Lancre (francês) T11blem1 de l'i11co11sta11ce des 111,1111•11/1 1 cl 1•11ro constatar que a cor negra (característica de Satã)
anges et dé111011s
111 ~ t' ntribuída. Por vezes, com efeito, são verdes, azuis ou
1622 L'i11créd11/ité et mescrérmce t/11 sot 11/1'M•
pl11i11e111ent co11v11i11e11e... 111~1 o que parece ligá-los a divindades muito antigas da
Practic11 n:rum ci-iminalim11
1i1 do Jura.39 Somos então reconduzidos a um universo
1635 Benedict Carpzov (alemão)
f•ln cm que o diabo é uma divindade entre outras, susce-
1647 Matthew Hopkins (inglês) The discovery ofwitcbes
th ~Ili' adulada e que pode ser benfazeja. Fazem-lhe oferen-
1111 ~1110 tendo que se desculpar desse gesto em seguida
Além disso, a A história tnigica do doutor Fausto de M11111 1 l 1111 Igreja oficial. Assim fazem ainda em nossos dias os
é de 1581; Macbeth, de 1606; e as Novelas exemplares, til- llil 1111~ de Potosí que rendem culto a Lúcifer, deus do subso-
Ora, as feiticeiras e o universo demoníaco ocupam o p rl111111 11• tlqpois arrependem-se disso periodicamente no trans-
plano da cena na peça de Shakespeare, assim como n:1 111111 1 1 ,lt, suntuosas procissões em honra da Virgem. O diabo
de Cervantes intitulada "Cipião e Berganza". Todas essa~ 11111 1111 pode ser também um personagem familiar, humano,
são, por di~ere~~es razões, produtos da cultura erudit:i d 11 1 p 1 11111110s temível do que assegura a Igreja e isso é tão ver-
ca. O que s1gq1fica que o medo do diabo - com um pico 1•1111 11111• ~e chega bem facilmente a enganá-lo. Assim ele apa-
15;5 e 1~25 7- t~~ou sobretudo os meios dirigentes do 'Ili 111 Inúmeros contos campestres/º assim também nas
saiam teologos, JUnstas, escritores e soberanos. D cssl' 1111 .1 1111\1111 de infância do bretão P.-J. H élias:
dão conta novamente as cifras de edições. A obra deJc:111 lllnh
te:,7e, em :inte anos, vinte edições em quatro línguas. 1\ d1 I • li 11111 l'<i chifrudo [escreve esse autor] é o nome que damos
Rio, publicada em Louvain em 1599, foi reeditada caL01..,,l, v, 111ll11ho. Um diabo bastante particular. Não é o diabo co-
entre essa data e 1679 (e novamente em Veneza, em 17•17). I , 1111111 rcpresentado nas mesas de comunhão que o padre
1611, foi traduzida para o francês sob o título de Les co1111111•r, h~• 11uh~ suspende por uma corda de um lado ao outro do
1111, durante os retiros, para explicar o Juízo Final. Sabeis
et recherches magiques.
1111 Uma espécie de animal vermelho de rabo comprido,
369
encarniçado em picar o couro dos condenados li l11h111t 1111~11 ficha de identidade dos demônios - esclarece que
N ão1 É um diabo bem humano, com todo o ar de lllll 1, Impossível transformar um homem em mulher (ou inver-
bretão da baixa Bretanha que tivesse comido bc111, th lP)1 rnicr aparecer "as almas dos mortos" ou "predizer de
judeu errante que arrastasse seus calções pelo p:1ÍN 1 t 111 p II que deve livremente ocorrer".4) Mas, ficando assim
gue às tarefas nobres: concluir os casamentos, sc111(1111 ,, 1111 maniqueísmo no plano teórico, reaparece na prátka,
bilo nas refeições de bodas e nos serões, salgar o po1 t 11 1 N111 n<le destaque que o discurso religioso da época attri-
No catecismo, o senhor padre no-lo pinta crn1111 111 lII l111 igo de Deus e a seus anjos, dada a longa lista das
inimigo fidagal, aquele que quer nossa perda e d ltlj' 1 llltludcs que conservaram a despeito de sua queda.
falivelmente a seus fins se por um momento clcix111111, htll,,nção significativa: no catecismo de Canisius, o nome
ser vigilantes. "Quem está no espelho e que nu11c11NI \ f- 111!:ido 67 vezes, o de Jesus 53 vezes. Em O martelo das
interroga o padre. E a nós cabe responder em coro: 1111 ,1 w,, dll mesma maneira, o diabo é mais frequentemente
bo!". Pois bem, o diabo em questão, nas históri:1Nd1 1111 que Deus.
para ele nada jamais dá certo.41 1ft ,. os demônios são corporais ou espirituais? Único em
mu,1lista de teólogos, o grande tomista Cajetano - que
A cultura popular assim se defendeu, não sem s11Cl·~~t11 1 l 1111!'0lltl'OU em Augsburgo em 1518 - professa sua cor-
tra a teologia aterrorizante dos intelectuais. Em colllJWII • •1h1, indo assim contra a doutrina de Santo Tomás e. do
durante longos séculos da história ocidental, 11s pcsNrnl 1 1 lllo de Latrão. Mas, no pensamento de Cajetano, trata-
truídas consideraram seu dever fazer os ignorantes co11lw1, t Ili pos simples e incorruptíveis, capazes de se mover sem
a verdadeira identidade do Maligno por meio de sermlit'"• 1
lhhtN por obstáculos materiais.44 Os outros autores, em
cismas, obras de demonologia e de acusações. Já S:11110 \1
ll•lt\'Ro, são unânimes em pensar que os demônios, anjos
tinho esforçara-se em demonstrar aos pagãos de seu tl'lllp1t 'I
11,1 ~,to seres espirituais. Mas a diferença entre as duas
não existem demônios bons (A cidade de Deus, livro IX). 1lt 111
, 1• tílo importante? Santo Tomás, Suarez (t 1617) e
carar Satã foi um dos grandes empreendimentos d11 111h
11111 ros especialistas concordam com Santo Agostinho
erudita europeia no começo da Idade Moderna. B:1s1•11111h
t que, se os demônios foram condenados ao inferno,
em algumas obras essenciais que vão de O martelo 1111.r /11///1
lltltlllll't) deles sai dali para provar os homens. Vivem por-
às Controverses et recherches magiques de Dei Rio e :1 0 '/ lil/1
anges et de 8émons de Maldonado, passando pe los csr1h11
1111 ali' ' 1tcnebroso", em nossa proximidade imediata.41 Cal-
Lutero, A.1Paré e Bérulle, pode-se compor, física e 11H11 1tl111 111111\111 fala das "potências do ar que são os diabos".~ 6
te, o retrato do diabo da Renascença e de seus acólito•,, 1 11 11 • 1•11pirituais, mas nem por isso menos apavorantes. Às
medida de seu imenso poder. 1• que são dadas de Lúcifer nos "Juízos Finais" das igre-
Todos os autores afirmam seguramente que "11w~1111 1, ~ponde à descrição que Maldonado faz dele, plagiando
diabos ajoelham-se diante de Deus"H e que não tc11111111 11 11111 XI, do livro deJó, em que são evocados Behemoth e
martirizam os homens senão com a permiss:ío du li
-Poderoso; a esse respeito, o livro de Jó serve de p1·m 1t ,
constante referência. Além disso, eles não podem t udo. 1h 11 li ,111l111nl muito terrível, tanto pela grandeza desmedida
- o autor que consultaremos mais assiduamente par:11•11t1tl 11 1•orpo como por sua crueldade [...), sua força está em

'l71
seus rins e sua virtude no umbigo de seu ventre; ele 1•1111 A p11rtir daí, "quem pode resistir ao diabo e à carne?
a cauda como um cedro, os nervos de sua genit,íli:1 s'1111 IHlllíll' é possível que resistamos ao pecado mais insign i-
torcidos, e seus ossos como canos e suas cartilagcnN11111 11 Lutero, que faz essa pergunta, retoma por sua vez o
lâminas de ferro [...]. Em torno de seus dentes est:í o 1111 ,1 th•.1 6 (40 e 41): o demônio, dii, ele, "vê o ferro como se
seu corpo é como escudos de cobre, é apinhado de eNt 11111 p,1lhn e não teme nenhuma força sobre a terra". 51 Seme-
que se comprimem umas contra as outras; est,í ann 111 h1 1111111i11ção do poder de Satã convinha evidentemente à
todos os lados e não pode ser agarrado em nenhull\ h111,11 hl ,ln justificação pela fé postulada por um homem exan-
111lrnntado ao poder perverso do Maligno. Assim, Cal-
Desde o pecado original, esse monstro devorador 1rn 11, n,11111 que é loucura para o homem sozinho dar "combate
-se o senhor da terra, que arrancou ao homem decaído. 11111111 h11 t,lo forte e tão grande batalhador".
explica:
1111 l'Crteza aqueles que, confiando em si mesmos, pre-
Vitorioso na liça do paraíso terrestre, Satã despojou t1llll• ~C para batalhar contra ele não compreendem bem
de seu domínio e atribuiu-se o poder e o império do 1111111 Ili que inimigo estão às voltas, nem quanto ele é forte e
que estava destinado ao homem desde seu nasci11wnt11 Ili• luso na guerra, nem como está bem armado de todos
qual usa o título desde essa usurpação. E incess:rnl 1111111 l111l11s. Imediatamente pedimos para ser libertados de seu
ele o persegue por tentação, não deixando sua al11111 li 11 h•1 1 01110 da boca de um leão furioso e esfaimado, estan-
1

quila enquanto ela está nos limites do império que 1•lt 1 , 111 t•~tcs a ser imediatamente dilacerados e devorados p or
quistou e usurpou de nós. •• H1l1'l'ns e por seus dentes.s.
Ele até mesmo invade seu próprio corpo alg u11111•, \ 1
de modo que, como antes do pecado, incorporou-st• tlit li 11• 11 homem e Satã, há portanto "guerra perpétua e des-
pente, agora se incorpora dentro do homem:" 1l11umto do mundo". 55 Doutores católicos e protestantes
111111 cm pensar que o Inimigo esforça-se sem descanso
Daí as possessões. 1111lk 11r sua infeliz vítima da terra. "H á três espécies de
Essa doutrina convida portanto a tomar ao pé d;
kt t 11 1
1~1•1•uvc Maldonado, "sobre as quais o diabo pode exer-
mulas tais como "príncipe deste mundo", "príncipe d1•~t, ,,
11111dor: os bens do espírito, os do corpo e os externos."%
que povoam 'as obras dos homens de Igreja quando ck-~ t 1,11
do demônib:'' Lutero garante: "Somos prisioneiros d11 dl ,1
h1 1 que nada nem ninguém pode, em nosso universo,
1 ,l 11~1lo do mestre do inferno e de seus anjos malditos.
como de nosso príncipe e deus". 50 Ele diz ainda: "So111w1t , 111
e sujeitos ao diabo, e estrangeiros, hóspedes, no mundo 111 1111
11.-1!11? "É preciso saber", explica Del Rio, "que os demô-
o diabo é o príncipe e o deus. O pão que comemos, a ht•hlih111
tth111 operar de três maneiras", seja "imediatamente por
11111 locnl", seja mediatamente, "aplicando por verdadeira
bebemos, as roupas que usamos, ainda mais o ar qut• 1·11~1111
mos e tudo o que pertence à nossa vida na carne é portn11t11 11 1IN ooisas ativas às passivas, que é a doutrina comum
l11w1~", seja "ofuscando os sentidos com suas ilusões".57
império".51
Três quartos de século mais tarde, Maldonado :isst'fllll 11 1111111 11<) "movimento local", é verdade que os demônios
sua vez: "Não há poder sobre a terra que seja con1p111111l1 lltl/t•N de perturbar a ordem do universo, de "mover um
': 1"12
elemento inteiro de seu lugar ou de mudar ou impedir 111111 podem "despovoar um campo de colheitas e de frutos
dos céus". Mas, e m contrapartida, os corpos inferiores, i~I• 11 los ir para um outro", e por meio de encantamentos
do mundo sublunar, obedecem aos anjos e, portanto, 1111111, 11los destruir toda espécie de colheitas ou tornar o s
aos demônios. E, no interior desse espaço, "não h:í co1 p11 1 1•~téreis. 60 Podem, lançando ao ar certos pós que "o
grande nem tão vasto que os demônios não possam po1 1111 lo lhes põe nas mão s", fazer nascer lagartas, locustas,
impulso mover de seu lugar".1àl é esse "movimento lornl' 1 1111~, caracóis, ratos e outros bichos que minam e roem
ças ao qual "podem tão habilmente subtrair uma coisa :10~ 1111 1 os frutos, a menos que essas pestes dos campos e dos
[e] tão subitamente colocar u ma outra em seu lugar". '"1jn111 inoculadas de corrupção e putrefação pelo pt·ó-
Eis ag9ra em que consiste "a aplicação das coisas 111 h , 1111) 11 io".61
passivas". E a inda D ei Rio quem fala : h111 queimar casas, tirar cativos da prisão, "fazer levan-
ll'OS diante das cidades, fazê-las ser tomadas de assalto,
[...] Por alteração ou mutação das coisas, eles fazem 1111111,1 1 ,,~ vitórias em batalhas campais", o u ainda "eleva r os
zes maravilhas cujas causas são naturais, mas dcscwil11 , , • ,l~ honras e dig nidades".•2
por nós. Pois eles veem as substâncias de todas as col~ 1 , 1lli1ho é capaz de "cunhar e forjar moedas de ouro e de
rurais, conhecem suas particulares prop riedades, e as 1•~1iu 111110 quiser, até de [...] produzir a matéria delas". Co-
mais cômodas para aplicá-las, e não ignoram enfim 111•11h111 1111111~ os tesouros do subsolo, todas as riquezas "submer-
espécie de artifício ou de indústria. Pelo que não é prcl'i~11 , 11111r1\ todas as minas de ouro e d e prata, todos os escon-
precnder-se muitas vezes se fazem várias coisas que MI 11,,1 1h· pérolas e de pedras preciosas e "pode de tudo isso
ração da Nanireza jamais fizera, se por uma artificial :iplli , 111111c lhe agrada sem que n inguém ouse ou possa resis-
não a houvessem ajudado os demônios, servindo-se do~11111111 , 01110 também pode, muito mais fina e secretamen te do
nanirais como de instrumentos e ferramentas [...). · 1i11~ 111 111h111cr homem, tirar moedas das bolsas e secar os saqui-
connido jamais saem das fronteiras e limites da n:1t111w 1 h11los de d inheiro".63
1,111111 demônios íncubos e súcubos, e do acasalamento de
Uma vez estabelecidas essas bases teóricas, a lista clm pn 1 11h11 com uma mulher pode resultar um ser hu m ano.
res dos demônios não pode deixar de ser longa e 11lC11d1•11111 111111 1•01110 O martelo das feiticeims, 64 D ei Rio assegura q ue,
Sobre esse assunto, continuemos a ler a obra de Dei Rio, 11111 1-11, o verdadeiro pai não é o demônio, mas o homem do
reag rupa en1 um conjunto coerente os elementos de 11111:1, li 11 111t~1it niu a semente":65 belo exemplo de realização d o
demonológica que se desenvolvera no decorrer das era~ l' 11h u 11111 1110 local".
çara, por volta de 1600, sua maior amplitude. Seu lc~111 1 111111 os autores de O martel.o das feiticeiras igualmente e
indiferentemente dos feiticeiros ou dos diabos, delcg:111d11 , , 11 11111lor parte dos demonólogos, Dei Rio acredita que as
últimos seu poder àqueles que concluíram um pacto co111 ~,111 11 ,,~ podem ser realmente transportadas aos sabás aos
Os mágicos podem portanto fazer morrer o gado m1 1111 1, li 111 n~sistem apenas "por ilusão e fantasia de espírfro".
-lo doente por meio de pós, gorduras, olhadelas, p:1l:1v111• 1 t11,1 111 então a viagem "ora sobre um bode ou outro ani-
ques de mão ou de vara. Eles incitam os demôn ios cm frn 11111 1 11, -ohrc u m bastão o u cabo de vassoura, o ra sobre uma
lobo que entram nos rebanhos e apriscos " para ali dcv,1-111 ili• homem forjado ao ar pelo demônio".~
devo rar o gado". 5" 11111 tt11cstão então muito discutida era a da licantropia: as

375
potências infernais podem metamorfosear verdadcin11111111 11,1mo local, ou então depurando e multiplicando os espí-
homens em animais, especialmente em lobos? O m 111•111/t1 ,1 CI IINit ivos".11
feiticeiras e Dei Rio respondem pela negativa. E m compc11~1•~ 111 m, no mais das vezes, é o contrano que se produz,
duas possibilidades podem encontrar-se. Ou o demônio, "I' r1111mdo-se o demônio antes em "velar o entendimento
uma mistura e perturbação desigual dos [...] humores, e pot llll 1111, e por um adensamento de espíritos imbecis, impedir
excitação dos vapores próprios e convenientes à sua opct'II\ 1, 11111lnro naquilo que o toca".12 Ele pode também provocar
fará de modo a que "o homem forje em seu espírito as 111111~ 11111111 êxtases ou arrebatamentos "entravando ou desentra-
nações que ele quiser enviar-lhe", ou então podemos 1111- t 11~ ~cntidos externos".73
contrar na presença de verdadeiros lobos, mas possuído~ p, t1lt111do-se do futuro, Dei Rio teve o cuidado de esclare-
demônio, e nesse caso não esperemos ferir ou captu 1·111 11 111111 vimos, que o demônio não pode prever com antece-
animais. 67 A essas opiniões moderadas, opõe-se a de Je:111 11111111 1IN uções livres dos homens. Contudo, o inimigo tem
absolutamente categórica, que, baseando-se nos proccsNt 1 11111hecimento do futuro, pois adquiriu uma "experiência
vários licantropos, afirma: 111111 por meio de "diárias observações". Ele sabe as "facul-
1IUN coisas naturais", suas forças e virtudes. Assim, por
Ora, se confessamos que os homens têm o pode r dt• l.1 t11111s" pode predizer o que deve necessariamente ocor-
nascerem rosas de uma cerejeira; maçãs de um rcpolhtt t llp~cs, conjunções astrais etc. Além disso, pode "inclinar
transformar o ferro em aço e a aparência da prata c 111 11111 ll1th• dos homens por meio do apetite sensitivo"; conhece
e de fazer mil espécies de pedras artificiais que rivnll , IIN seus temperamentos e suas afeições [...] e o que se
com as pedras naturais, deve-se achar estranho q111• 1, 111111umente de uns e de outras". E portanto, ainda que
transforme a figura de um corpo no outro, visto o p111I Mumiroso por definição, pode prever com verdade (mas
grande que Deus lhe dá neste mundo elementar?'·" ,h, ~uns maneiras de enganar)
Essa mistura, atordoante para nós, de verdadeiro e dt• 1111 l II que devem fazer os homens e quando; ou então ainda
essa lógica fundada em bases absurdas levam aqui a,.co111i11li Ili 1)c;us punirá tal povo, que tal exército será destruído
Maligno um acréscimo de poder. 111 l{l~dio, pela fome ou pela pestilência, que fulano será
Del RiQ1 em questão de demonologia, é um espíri11 1 Ili 1111 to por fulano, que tal príncipe será expulso de seu tro-
ponderado~do que Bodin. Contudo, não terminou a c.:111111111 11 pttili ele pode coligir isso da diligência e fidelidade dos
ção das p~ssibilidades satânicas. Pois, com a pcn11 iw1lll1 111j111•11dos, e da negligência em precaver-se, ou de revelar
Deus, o demônio pode fazer velhos voltarem à sua pl'lt111 1 l 111 \pl'ecndimento.74
juventude - eis aí acreditada a história de Fausto;""1 pod11 1 1
dar a memória" ou, ao contrário, "debilitá-la e enfr:1q111t , l,110 1 Satã, de uma maneira ou de outra, conhece três
muito, ou até perdê-la de todo".70 "Esse mestre do111m I'' •• il11 fut uro.
[também] tornar o intelecto mais sutil e melhor, quamo , ~ lo • ,1~111•:1 o que diz respeito ao jogo apavorante do diabo e
ções do espírito e do juízo, por meio de disposições m:1i1, t lllt 11111, Po.is o Maligno tem costume "algumas vezes" de
das do órgão: a saber, expulsando os mais espessos h11111011 1 1'11Ncor pos dos mortos e de "aparecer neles". Seu poder

177
é particularmente grande sobre os cadáveres enterradwi 1 cmônios ou dos feiticeiros, as palavras "eles podem [... 1,
terra não consagrada. Porém, mais geralmente, sua ação ,111 miem [...]". O que não podem eles? O atamento da agu-
os defuntos se explica pelo poder que lhe foi dado sobrc 111, o desencadeamento súbito das tempestades,19 o avanço
junto das "coisas corporais". Ele fará então de modo a q111 11dor das geleiras nos altos vales alpinos:80 tudo isso é da
for o caso, cadáveres não apo<lreçam, que corações ou 1·111 p tência de Satã.
inteiros resistam ao fogo durante algum tempo, que os c.11111
e as unhas de falecidos continuem a crescer.;5
Os demônios dispõem portanto de certa autoridade ~111 AS "DECEPÇÕES"* DIABÓLICAS
os cadáveres. Mas - questão muito grave - podem eles "11i1 1 1lversário" sobre-humano, "sedutor", "ardiloso" e "enga-
rar realmente a alma do corpo, isto é, para a morte"; elll 0111, " - assim o define a Bíblia - , o diabo é um extraordiná-
palavras, têm eles o poder de matar? Dei Rio respo ndi 1 ll•lonista, um prestidigitador t emível. A literatura teoló-
afirmativa: Asmodeu não estrangulou os sete maridos dl• ~ 1 d11 época é inesgotável sobre esse tema e, pelos passes de
Satã niio fez morrerem todos os filhos de Jó? E "ele n:lo 111 11 demoníacos, explica todos os surpreendentes conheci-
grande número todos os dias por meio de malefíc ios 1• 11, " de que não se pôde dar conta de outro modo. O mar-
légios"?;6 Argumentação idêntica em Maldonado. À q111·~1 lo • fi,iticeiras disserta longamente sobre as "ilusões" pelas
saber se os demônios podem matar os homens, "rcspo11tl11 ,, 11 mestre coadjuvante do universo e seus agentes zombam
o podem", e cita novamente a sorte dos filhos de J ó e dm 11111•zn humana: "Os demônios, com efeito [...], que por sua
primeiros maridos de Sara17• Sessenta anos antes, Lu1c111 r , 111111cm deslocar corpos, podem por esse movimento atin-
nara no Grande cntecismo: lth1lns e os humores, portanto também a função natural,
1ll1,or, a maneira pela qual certas coisas são vistas pelos
O diabo, já que não é apenas um mentiroso, m:is 1111111 m 1· pela imagínação".H1
um assassino (cf. J oão 8:4), atenta incessantcmc 1111° 11 ,, 111 homem, por exemplo, de repente se encontra sem
nossa própria vida e descarrega sua cólera em nós 1·1111 11 N110 há dúvida de que os demônios tenham efetivam ente
acidentes e danos corporais. Daí vem o fato de qf1c 11111111 1 com a permissão de Deus - de retirar realmente o
um ele quebra o pescoço ou faz perder a razão; :1 :11111111 111 viril a uma de suas vítimas. Mas pode igualmente
afoga na água e inúmeros são aqueles que leva :10 ~uh •• de um malefício operado por uma feiticeira e, nesse
e a mu•itas outras desgraças atrozes. É por isso q111· 11111 11,11nos em presença de uma "decepção", "fazendo o dia-
não temos outra coisa a fazer senão implorar i111°11, 1 l,11 ~ fantasia e à imaginação as formas e as ideias de um
mente contra esse principal inimigo. Pois se D eu~ tlillt ll•o, sem membro viril, de maneira a que os sentidos
salvaguardasse não estaríamos, nem por um:i ho , ,11 ,, 11111r :1ssim é na verdade das coisas".82
de seus golpes.' 8
1•1tltW vmprcga :t palavra déception que, n o francês da época em estudo,
O registro das ações diabólicas é portanto dcs11wd ltl1w1 •1111 tlc enganar", sentido que também se encontra no Dicioná,.io
extenso, e não terminaríamos de elaborar essa list:1. N11 1 HtH 1//1 l(11g 11n pormgursn, de Caldas Aulete, no qual se lê: "decepção,

citados anteriormente voltavam como uma litani:1 , 11 ti l ,,,, l1111ro". (N. T.)

379
Então, "a decepção não provém do real, já que o p~1II No entanto, tudo isso na verdade não passa de um jogo.
em seu lugar, mas dos órgãos dos sentidos".83 O 111rn·1,•lt1 ,111 1111111ilo que desarranjou com seus malefícios, pelo que se
ticeims não tem nenhuma dificuldade em explicar, pol' 11111 ,,ll• pode curar. Mas em geral ele cura fazendo parecer
"ilusões" desse gênero, fatos por outra parte espat11t1N11 11 pessoa tenha recuperado o olho ou um outro mem -
homem que de uma hora para outra se transforma c 111 11111t lt11•ido. Pois não havia ferimenco, mas ele zombava dos
1 uma coisa clara que se torna escura, uma mulher vclhn 'Ili lhloNdaqueles que enfeitiçava ou daqueles que viam suas
ltlllN, n ponto de eles não pensarem em uma ilusão [...].
,~ente rejuvenescida, "assim como após as lágrimas :1 l11i I' 11
diferente do que era antes".8• A partir daí, parecem II l.111 1ilo grande é a astúcia de Satã e o poder que tem de
mente ociosas as discussões entre demonólogos~5 sol11'l' 11, 1, 1111•-se às nossas custas! O que há de surpreendente aí:
somens e os transportes aos sabás, j,i que aquilo que S111 1 , vidro [colorido] não muda as nossas sensações e as nossas
realiza efetivamente, ele procura fazer com que parc,·11 11 t ,f füe zomba portanto muito facilmente do homem por
obra sua. O importante, então, é armar-se de or:1,·C,11, 1 111 de seus encantamentos: este último pensa ver então
exorcizar e dissipar as "ilusões" do grande sedutor. Pol 1 1111111 coisa que contudo não vê, escutar uma voz, o trovão,
86
nessas "ilusões", ir ao sabá em imaginação, graças ao dh1l11 111 llnuta ou uma trombeta que no entanto ele não ouve.
pecar tão gravemente quanto ir lá de verdade.
Os quadros de H. Bosch são a ilustração pictóric:) du 1 11, 11111vicção de que o demônio engana continuamente os
geral da época nos "jogos enganadores" do diabo. A 1111d1lph 1, 1 0111 seus encantamentos atravessou toda a literatura
dade e o inesgotável burlesco dos seres e dos objetos - rii 1h11 h ,1, ou até científica, da Renascença. Calvino ensina que
res ou horríveis - que Satã faz surgir no universo do pll, 11111 ica ilusões com prodigiosas astúcias para desviar cio
flamengo dão a medida de uma angústia coletiva: o 11111111 1•11tundimentos e torná-los pesados neste mundo".8; A.
acreditava-se, depara continuamente com as armadilh:11, ,h, 1 1111 lt II ln o capítulo XXIX de seu livro XIX de "Como os
forno, e e~sas, mesmo "ilusórias", não são por isso mcno~ I' llhtNpodem nos decepcionar", e o seguinte de "As ilusões
gosas. Pois confundem a fraqueza humana, desoriem:1111 11 Ih,1N". Del Rio confirma, no final do século .l(VI, que o
píritos mais precavidos. Às composições inquietante\ 1h 1 11111, ''pai da mentira", pode recorrer "às ilusões e aos pres-
Bosch corresponde um texto significativo de Lutem: p11rn fazer crer que realiza prodígios acima de suas pró-
1111 \'IIN,"~ Finalmente, como o homem, a uma só vez jogue-
Por int~rmédio de suas encantadoras [as feiticcir:1•11, 111•c1111clor das ações demoníacas, não ficaria na incerteza
pode wejudicar as crianças, cegando-as pela a n gi'11,I ht 11~polco? Como distinguir o real da ilusão? Importa então
coração, enfraquecendo-as, fazendo desaparecer 1111, li h•1 Orn, "tudo o que se faz no mundo de uma maneira
mente uma criança e tomando o lugar da criança (lt-~111111 1 pode ser obra dos diabos". Assim falaram conjuntamen-
cida no berço [...]. 11111 /\l{OStinho e Santo Tomás: discurso mil vezes repetido
O encantamento não é [...] nada mais que uma 11111111 111111~0 da Idade Moderna.
nação e um jogo enganador do diabo, seja no caso 1h 111,\, ns diabos: o discurso demonológico emprega indife-
arruinar um membro, como no de atingir o corpo 111111 li 1111'1111.l o singular ou o plural. A ubiquidade da ação diabó-
ou então de raptá-lo. Ele também pode muito bem t':m t t 1 1 ,, 11 postular não só o extraordinário poder de Lúcjfer,
aos velhos. Então não é espantoso que assim enfeitil'l' 11 l 1 11111h6m a existência de um exército de anjos do mal que
380 JNI
obedecem docilmente a seu chefe como os anjos execu1:1111 • numerosos, e Suarez, em seu tratado De angelis, emite a
ordens d e Deus. Mesmo que o próprio Satã, como acredll Ili 1~11 de que cada home m é provavelmente duplicado, desde
certos teólogos, r esida no inferno, seus agentes habitam 1111 llllllllltO de sua animação, por um demônio especialmente
universo (ai de nós!) ou pelo menos circulam - e circuln ri111 li IH11(ndo de tentá-lo durante toda sua vida.91 Daí a necessi-
o Juízo Final - entre terra e inferno.H'I Daí uma multiplit 11\ 111rrelativa de um anjo da guarda pessoal.
d a obra diabólica e uma especialização das competênc i:1s t'I h111 ll111 documento de meados do século XV°' sintetiza de
nais. Homens de Igreja, protestantes e católicos, e nsin:1111 111 li 11 esclarecedora o imenso medo que a c ultura clerical
a lemães do século XVI que há demônios encarr egados resp11 11 111 .to de Satã e de seus mensageiros. Trata-se do manu al
vamente dos calções, das blasfêmias, do casamento, da Cll\111 ,1 11111INl:l - o Liv1·0 de Egidius, deão de T o urnai - já men-
bebedeira, da usura, das finanças, da dança, da fciti ç:11•111 1 ,1 1111 um um capítulo precedente a respeito dos fantasmas.
moda, da adulação, das mentiras, dos tribunais etc.'>O E111 tr,11 1141111tas a serem feitas ao demônio que perturba u m a
um secretário do duque da Baviera, em uma obra de 111111 11hl11dc humana são espantosamente precisas e ingênuas.
difusão e t ítulo sign ificativo, O império de Lúcife1; d á a co11l111 11, ,~ta, e por trás dele toda a Igreja, procura desvendar,
a geografia desse império. Uma primeira categoria de d, 111 • ,t l'~SC interrogatório, os mistérios do além, conhecer os
1 nios vive no inferno; uma segunda no a r inferior - o 1111 ,h· nção dos habitantes do inferno e os limites de seus
uma terceira na terra e mais particularmente nas florc~l 11~1 111 - <) homem de D eus dirige-se a seu adversário com uma
quarta nas águas do mar, dos rios e dos lagos; uma q11 l1111 1 111 d1• humildade: tem tanto a aprender com ele! Até lhe
11 subsolo; e enfim uma sexta - os lucifugi - nas treva~, , , 111,,.l'lhos. Tal jogo é evidentemente perigoso. Assim, o
movendo na escuridão.91Assim, são propostos aos lcitor't•~, 1 t.1, 11ntcs de entrar nisso, deve ter o btido a autor ização do
uma imperturbável segurança, sistemas de classific1l\'R11 11 AI1111 ter rezado devotamente "ele coração contrito", e te r-
anjos maus. Mas quantos são eles? Alberto, o Grande, allt 111 rtt1111lo do sinal da cruz":
que seu número é conhecido apenas por D eus. Culll~11 1111111111s a fazer ao demônio...
d'Auvergne·declarara contudo que, já que estão po r wdu 1111 1 <)unl é o teu nome?
são forçosamente muito numerosos.92 Essa opinião r~eltll\111, 1
() que desejas e por que perturbas este lugar mais do
mais tarde. Ia Jerusnlém libertada, Tasso, o grande prn l 1 11111ros?
Reforma Cai:ólica, evoca o exército furioso dos de111011l11 1 1 Por que tomas diferentes aparências?
tenta impe9ir as cruzadas de tornar a cidade sa nta. /\1111~ 11 1 1~ por que algumas de preferência a outras?
disso, no século XVI, fornecem-se as precisões nu11w1li 1 \ l1iw.cs isso para aterrorizar as pessoas daqui e os h a-
anteriormente haviam sido prudenteme nte evitadas. .)1·1111 \ 1 11111~ dn c idade? Ou tendo em vista sua destruição? Ou
em seu De praestigiis daemonmn (1564) calcula q m· t•h ~ ,t 111111 instrução?
7 409127, sob as ordens de 79 príncipes, eles próprio•, ~111, ti l l1 ns mais hostilidade em relação às pessoas desta ci-
nados a Lúcifer. U ma obra anônima publicada e 111 1\lt l 1 ili, 11uc em relação a outras, ou menos ou a mesma?
cabinet du roy de France, chega a cifras da mesma o rdc111: '/ Ili \1rn•mcntas os habitantes desta cidade mais do que os
demônios distribuídos entre 72 príncipes, todos oll1•d11 Ili 111111.·idndes? E [em caso afirmativo] em razão de qual
evidentemente a Satã. Mas para outros autores ele, ~1111 1 'lllllis pecados?
?O~
383
95
8. Atormentas mais os eclesiásticos do que os l1•lj111 l'~IIN chamou Satã de "príncipe deste mundo", disse "Não
em razão de quais pecados? 1h•~tc mundo (...]. O mundo me odeia", e advertiu igual-
9. Os eclesiásticos e os leigos de um e do 0111 l'!I , h ~cus discípulos: "Não sois do mundo [...]. O mundo vos
desta cidade consentem mais em tuas sugestões e 1111 1" ~ Síio Paulo foi ainda mais longe, chamando Satã de "o
teus semelhantes do que os das outras cidades, e c111 q11 1lt"IIC mundo".07 .M as, ao longo das eras, os teólogos ten-
pecados? 111 11 dnr à palavra mundo uma extensão de sentido que ela
10. Qual é o pecado com o qual tu e teus comp1111l11 h l 11 1 1\11 Escritura. Jesus e são Paulo não queriam designar
mais vos regozijais? E com qual boa obra mais vos t•lllt r, 1111de vivem os homens nem a humanidade inteira, mas
teceis? 1111 do mal, o mundo das trevas que luta contra a verdade
li. Por qual virtude os homens escapam melho1• t 111 hh1, Só deste mundo é que Satã é rei. Assim também o
facilmente à vossa tirania? Jt lho de João fala do Verbo que ilumina "todo homem
12. Quando tentais os homens na agonia, par:1 q1111I 1 1111 n este mundo" e designa Jesus como "Aquele que
cado os solicitais mais particularmente? , li II este mundo".98 Mas os homens de Igreja fundirnm
13. Quando alguém morre, tu ou um outro cspí11111 11 11• ~ontidos da palavra mundo e portanto estenderam à
ligno estais presentes, mesmo se o agonizante for 11111•11111 ltl,,d1• ela criação o império do Maligno. Jamais essa con-
14. Um bom anjo e santos o assistem, para dc fc111h 1 "'111ílntica, tão carregada de consequências, foi operada
justo na partida contra vossos perversos esforços? 11111110:; espírito crítico do que no começo da Idade Mo-
15. Essas mistificações que acontecem de Lc111p11 1' imprensa divulgou-a; o temor do fim do mundo
tempos pela ação dessas mulheres que chamarnrn, 1h 1111111 su:i credibilidade.
tais" [as feiticeiras] ou de uma outra maneira e (jlll' lh11I , 1111, é preciso corrigir o que Burckhardt escreveu sobre
a ignorância do vulgo são produzidas por um cspí111111 ~-• 1111ç:1. Esta não foi a libertação do homem senão para
ligno? Ou então, como? E existem tais mulhe res, 111111 Luon:irdo, Erasmo, Rabelais, Copérnico [...]; para a
ou animais [diabólicos]? Ou um espírito não podr ji1111 1 11i111 1: dos membros da elite ~~ur~peia, e~a f~i um s~nti-
transformar assim? 1 ,Ir• fr:iqueza. A nova consc1encrn de s1 f01 tambem a
16. Podemos obter de nosso SenhorJesus quê'd ,•11 ,11 1 1111111 mais aguda de uma fragilidade expressa conjunta-
deste lugar a fim de que não possas prejudicar nill/{111111 p,1h1 doutrina da justificação pela fé, pelas danças maca-
e que te'obrigue a fugir para onde não há seres h1111 111111, 1111l11s mais belas poesias de Ronsard: fragilidade diante
17?0 que devemos fazer para que assim sej:1? 111~ílo do pecado; fragilidade diante das forças da morte.
18. Como saberemos que nosso Senhor te :1f:i•,1t11111 f11pln insegurança, mais cruelmente sentida do que outro-
lugar e das outras habitações dos homens? ' ,pressa e justificada pelo homem da Renascença pelo
111111 0 diante dele da imagem gigantesca de um Satã todo-
Realmente paradoxal essa majoração desmcdicl:1 do~ I' r11~11 e pela identificação da multidão das armadilhas e das
res do Maligno: um exorcista se dirige modestamc111t· 111 1 f 11h,1N que ele e seus sequazes são capazes de inventar. As
se informar dos métodos de Deus. 1111 ljllC ensanguentaram a E uropa dos primeiros séculos
h111id:1de foram proporcionais ao temor que então se
1 ,lluho, de seus agentes e de seus estratagemas.
8. OS AGENTES DE SATÃ: •• lo franciscano Sahagun, que se esforçara em desc1·e-
I. IDÓLATRAS E MUÇULMANOS llA11 cm compreender, os costumes e os ritos dos mexica~
1~111 disso, para exprimir o dogma cristão, doravante se
111iliiar termos extraídos dos idiomas indígenas ou tra-
_,ns sagrados nas línguas vulgares da América: Satã
li dt1masiadamente nelas. 7
l. OS CULTOS AMERICANOS
1'11ru, Francisco de Toledo, vice-rei de 1569 a I581,
Na época da Renascença, os ocidentais têm a s11 rp1 1 , 11csse setor do N ovo Mundo o campeão da luta contra
const atar que o império do diabo é muito mais vnsto 1h, 'I lrht, Ele, os juristas e os teólogos redescobrem e reagru-
haviam imaginado antes de 1492. Os missionários e a ellt1 1 1 ttlu~ os argumentos inventados desde a descoberta da
lica em sua maioria aderem à tese expressa pelo pad n· 1\1, 1 1111n1 justificar a conquista de infiéis não submissos e a
desde a chegada de C r isto e a expansão_da verdade ir:1 11111 111 de seus tesouros: os incas pecaram contra o verdadei-
no Velho Mundo, Satã refugiou-se nas Indias, da qu1il ft , 1• ,111 obrigarem as populações a adorar ídolos, fechando-
de seus baluartes. Por certo - como vimos no capítulo 11111,, • 1111 o caminho da salvação;ª além disso, a idolatria é um
e como veremos nos seguintes-, ele continua a grass111 h 1 111111tra a natureza, pois é acompanhada necessariamente
mente em terra de cristandade. .Mas ali, a Igreja vela 1• 1111 t11pol'ngia, sacrifícios humanos, sodomia e bestialidad e .9
que_r que saiba colocar-se ao abrigo de suas trinchei r :tN 1 'I" " ·los, assegura Sanniento de Gamboa, legitimam por
tuais pode repelir as investidas do Maligno. Na A111t•1h 1 11 l11N n intervenção e a soberania dos reis da Espanha.'°
contrário, antes da chegada dos espanhóis, ele rei 11:w11 1, ,, 111 ,11; riquezas que os indígenas ofereciam às suas divinda-
mestre absoluto.' 11111 nn realidade consagradas aos demônios; devem por-
Os teólogos baseiam essa afirmação em uma ímag{'III 111 1" t 111ncer ao rei da E spanha. Pois o verdadeiro D eus não
da idolatria. E sta é qualificada de "diabólica"; não é lllllll !1111 111 hnr "a oferenda e o sacrifício da idolatria" - assim
errônea da religião natural, mas "o começo e o fim de 1111h, u 11111 um turifenírio de Toledo."
2
males". Essa tese anti-humanista, contrária ao otimi~11 111 1 ,1~ justificações religiosas proporcionavam um reforço
gioso de Pico de la Mirandola e de Ficino, foi rcjci111d111 ~•, ,lNr11i ões outrora fornecidas por Aristóteles para redu-
século XVI, p9r alguns religiosos e pensadores imi11c 1111•~ I' 1 11111iclffo "aqueles cuja condição natural é a de obedecer
Vitoria, a iq~latria cios indígenas é uma calamidade, 111111 ti
3 111111H", ~rn 1545, um humanista e cronista real, Sepúlve-
pecado. Tah1bém Las Casas considera que ela é 111111~ 111
11 ~,111 d iálogo D emocrates alter "sobre as justas causas de
doença do que um vício e, em sua Apologética hútoria, clt• 111
ti , 11111 rn os índios", servira-se p recisamente de Aristóteles
zia de seu conteúdo imoral e demoníaco, mostrando qup 1 1.
h1111111strar a inferioridade natural dos indígenas, oposta
substancial ao homem! No final do século XVI, M rn11 111j,
1li II lc Iode de seus conquistadores.
toma categóricamente a defesa das civilizações pré-rnl11111I,,
nas/ .Mas é precisamente n a época em que triun fa na /\ 111111
1111111111·0 agora [escreve Sepúlveda] "com a prudência, a in-
a política de extirpação radical da idolatria, a da "t:íbuln 111-.
1111 111•i11, a g randeza de alma, a temperança, a humanidade
ponto de se tornarem suspeitos (nos anos 1570) os csn 1111,
1111111µ-lffo desses homens [os espanhóis], esses sub-homens
386
[os índios] nos quais mal se encontram traços de h111111111 h&'111 favorecida pelo crescimento do mito de Santo To-
dade, que não só não têm nenhum saber, mas tamlHl111 11 A1•rcditava-se saber na Europa, segundo o testemunho de
têm o uso nem o conhecimento da escrita, não co11•,111, INt1lhos ap~~rif?s, que ele morrera na Índia. A conquista da
nenhum monumento histórico salvo uma vaga c nli 1 1 rh ,1, p~nrntm Jº~ar ,c?m os dois sentidos geográficos da
lembrança das coisas consignadas em certas pi11t111·11• , t,1lud,n. O~ m1ss1onanos e seus superiores ensinaram, espe-
nhuma lei escrita, mas certas leis e costumes b,üli111·0~ PIIH- no seculo XVII, que Santo Tomás fora combater a
li 111110 Peru e ali fora martirizado.' 5 Razão suplementar para
Esses "costumes b,irbaros" eram especialmente o •i ~,1111 11111~ tolerar agora a superstição assassina dos indígenas.
cios humanos, que horrorizaram os europeus e lhes 1111111 ) 1lls<mrso teológico contra a idolatria americana formava
ram um pretexto cômodo para a escravização dos i11dl~t • 111l11nco coerente, uma vez admitido de saída que as reli-
Exceção em seu tempo, Las Casas, sem excluir a idci:i 1h 1 111<1/gcnas - oráculos, ritos, representações da divinda-
\1111 de origem demoníaca. Lopez de Gomara, que foi
versões esporádicas, esforçou-se em mostrar que os i1 11oh11l1
de vítimas humanas eram, no Novo lvlundo, ínfimas 1111111, dt 111 de Cortez, assegura que os diabos falavam "com fre-
e, além disso, que esses sacrifícios sangrentos tinh:1111 11111 lil 1• fomiliarmen~e" com os sacerdotes e chefes, apre-
religioso. "Na Nova Espanha", lê-se em sua Apologétil'II /1/11 11il11 se a eles de mil maneiras, predizendo-lhes o futuro e
• nilo•lhes oferecer sacrifícios humanos Os indío-enas
"eles não as comiam de maneira sistemática, pelo q111 p
1l11111do absolutamente que fossem diab~s", obede~iam~
saber, mas apenas a carne das vítimas que sacrific:w11111 1
111p1•cscntavam-nos na forma como haviam se mostrado a
coisa sagrada, mais por religião do que por uma o ut 1'11 11111
( ,1lil11 então aos evangelizadores convencer os indígenas
Para Las Casas, sacrificar vítimas humanas ccm~t II Ili ,
1,11l11 uma de suas divindades e o demônio eram uma
prática imemorial muito difundida que exprime :1 11l'('I • 11
ti 111lsn. No Peru, eles destacaram Zupay, nome quíchua de
de oferecer à divindade o que se tem de mais prccio~ll, \
1111 lto que nã~ era exclusivamente malévolo. Zupay, rerno-
via-se demonstrada a religiosidade fundamental dos ii11h1 1 111•los colomzadores, tornou-se o equivalente ao diabo
Por certo, os sacrifícios humanos deviam ser d111,1 11 1 ( )s espan?óis tiveram a convicção de tropeçar por
proibidos. Mas, por outro lado, haviam afirmado ct,1t1Jllltl 111 1h', 1111 Aménca, no poder multiforme do Maligno mas
te Vitoria e Las Casas, os infiéis e os idólatras têm o cll11li , '
11111 1111n1m de que era o seu próprio Lúcifer que haviam
praticar sevs ritos tranquilamente, não podendo n ii1Ht11 11 1h 1 Velho Mundo nos porões de seus navios. Ora o diabo
obrigado~ crer no Deus dos cristãos. No final do sfr11l11 111 llfliliii é por excelência enganador. Assim, os r~issioná-
padre Ac~sta mantém - teoricamente - essa tcsc, 11111 li 11 ~•• dcixa:am impressionar pelas analogias que consta-
duzindo-lhe graves corretivos: ela já não é aplidvcl l ' I II 11111 11111• os ritos e crenças indígenas e os do cristianismo:
cuja evangelização começou, o que é o caso da f\ 11H·1li 11 1 ,1h~1inências, mosteiros femininos, cerimônias seme-
idolatria constitui então um obstáculo à graça cios cv1111111 li 111 l111tismo e à comunhão, certas formas de confissão,
incita os neófitos a voltar a seus ritos passados. l 111pl 1111111 de Trindade na religião peruana etc. Falaram de
portanto nesse caso o dever de extirpação e o h:111111111 1 1..",., ,, elc " usm·paçoes
~ " d emoruacas,
, sa 1vo se se considerar
toda "superstição diabólica [...], usando-se, se m·<'I'" 1111 ,-, q:1crc~1do prep_arar ~s p~pulações da América par a a
poder e da autoridade"." A rejeição do liberalis111n 1111 11~1 11 ,111 , deixara o diabo 1magmar essas analogias.18

~º º
uvint~s grandes quadros onde estavam representados o
Tendo sido desmascarado Satã - ou Zupay - , os l111lt1 11' ó mferno. O primeiro acolhia os indío-enas converti-
nas deveriam e deviam abandonar suas falsas divirnb<ll•~ I' -t'l{lllldo seus ancestrais e aqueles que se°obstinavam na
Deus pune os idólatras. Se ele retirou seu império cio 111 riu, Assustadora aculturação! Traumatizou profunda-
declara um pregador do século XV11, Avendano, foi porq111 l(l'upos humanos "nos quais todo o sistema religioso e
era idólatra; pela mesma razão tirou o seu a Nlontew nlll 1 uh,,11rnl Q repousava nos laços de parentesco e no cu Ito d os
agora, diz ele a seus ouvintes indígenas, o país esd d<:sprn111 •11, ue essa aculturação tenha - ao menos de modo
não é por causa cio trabalho forçado nem dos impostoNI \ I
(11111• ~~emplo, na regi~o d~ Pazcuaro) - atingido seus
vossos pais, embora tenham recebido o santo b.1tis11111, 1
m, 10 1 o _que S. Gruzmski demonstrou brilhantemente
abandonaram os lmncns e, às escondidas, continuaratn 11 1111111
li 11111a leitura ao mesmo tempo histórica e et . .,
o demônio. É por causa desse pecado de idolatria que rn, 111111 11 • , - ,, d . , nops1qu1a-
1- v1soes e mcl1genas do México que os jesuítas cita-
estão mortos, e não por excesso de trabalho, pois tr:1b1ilh11
mais no tempo do Inca [...]".
19 Ili
1 1~011s , relatórios
. , . 1580-1620•i i O que provam
dos anos
1 h ios (de ongem alcooltca ou psicótica) que se ex .-
A idolatria indígena teve portanto costas largas: jus11111 , . d ' . pn
colonização e suas pilhagens, e explicou até a destrui<,: ilo 1h11 1111 meio as palavras e das imagens cristãs, é que a acul-
gráfica das populações indígenas. Supremo passe de 1111\tilt , 11 11h rapassou o estiígio do consciente para penetrar nas
demônio ocidental: enganou seus mais ferozes advcrs1l 1111 1 11h•111s do ser humano. Trata-se portanto de um teste
necendo-lhes em boa hora uma ideologia que os lavav:11h ln 1 1111111; rcvel~dor_do que~ ~~oção de influências culinárias,
11111111 ou :•tua1s da rchgrno dos conquistadores. Os delí-
os seus crimes.
Com o diabo europeu, os missionários transport :1 1'11111 J --,•~ índios _remetem aos sermões dos missionários.
a América seu inferno de chamas onde colocaram s<:111 111 1 Ili il e sete _"visões" em 99 comportam elementos derno-
ção todos os indígenas que tinham vivido antes ela d1t•f{111I • 1111 l'opress'.vos. O paraíso aparece duas vezes menos que
cristianismo. O l Concílio de Lima (1551) recomi.:1ul1111 11111 <IS e.leitos estão três vezes menos presentes que os
padres que dissessem aos indígenas que "[...] como todrn, 11 111111IN, Além disso, o anjo da guarda é tão ameaçador
ancestrais, todos os seus soberanos se encontram :1[.(0111 11 111m11fortante, _e os santos religiosos podem adquirir
morada ele sofrimentos porque não conheceran/Di.:11111 111 tll h"• cl<: persegUidores· · No total , apenas. 3)- "v1soes
• - ,, em
adoraram, mas adoraram o sol, as pedras e outras c ri:11111 ,1 -•· i•cvcsten~ de uma tonalidade angustiante, ao passo
E o .pregador Avendano, já mencionado, inte rpi.:ln ,1~ li 111111 IIS ex~rnnem uma religião dualista que enfatiza a
genas nestes termos: "Dizei-me agora, meus filhos, d1 lt • li cr1~t1go. Evidentemente, os visionários revivem
esses homens que nasceram nesta terra antes que os r 1ip1111I 1111 lhes foram descritas não apenas do alto do púlpito,
aqui pregassem o santo Evangelho, quantos se ~nh 111 1111 tlltl tornadas sensíveis graças a uma técnica audio-
Quantos? Quantos foram para o céu? - Nenhum. ( 111111 11iprcsentações da crucificação, dos demônios e d
incas foram para o inferno? - Todos. - Quantas r:d11h11 1 ~ . etc. Em caso de necessidade, os n11s-
• lllll1,o ele cramos .os
Todas. - Quantas princesas? - Todas. Pois :1do1 111111 •1: 111sc:ivam-se. ~ara melhor convencer seu público
2
demônio nos huncr1s". ' ti C ,111,110 o _agostmrnn~ Antonio de Roa, que, no decor-
Para ser mais convincentes, os mission~rios, 1•111111 111~ pi ugr1çoes, submetia-se a toda espécie de maus tra-
padres Le Nobletz e Maunoir na Bretanha, apr<:Sl'lll 1I\ li
39 /
tos: humilhando-se por faltas fictícias, fazendo-se dcsph 1111111cntava e ameaçava erguer-se contra nossos homens e
espancado e ter resina de pinheiro vertida em suas ch1111,1 11lf·icá-los a seu templo como estavam acostumados: cois,1
sequência, punham-lhe às costas uma pesada cruz. q11<• 11 li Ili 11holava grandemente essas pobres pessoas. A represen-
portava pisando em brasas. E isso periodicamente. O s 1w11IU \ílll da verdadeira cruz fazia o mesmo, como confessou o
não podiam ficar indiferentes a tais espetáculos. ( )s 11 111 l'(lp1•io diabo que, requisitado, por essa razão não compa-
' t li mais. A virtude da ,ígua benta foi para isso de grande
jesuíticos notam que, no decorrer dos sermões, os i 11d11111
culpabilizados punham-se a gritar, a suspirar, a soluç:1r; 111111 flll'llito, como também as boas preces de todo o povo espa-
a cabeça nas paredes e no chão. Essa atmosfera tdg icn 1111111 hol, que se põe em boa devoção e faz do modo costumeiro
novamente nos dei írios dos indígenas evocados pelos 11 1,1 '111 lstiões para suplicar à Majestade divina que envie água
11111 necessidade, ou que a faça cessar, quando necessário,
rios dos missionários - delírios que retiravam do foi1li I h
monopólio exclusivo da comunicação com o além. l'oi~ 11, 1 p111·11 acalmar as doenças de que eles ou seus animais es-
fissão posterior que o visionário fazia ao padre pcr111hl 1 ~11111 gravemente afligidos, obtinham o que pediam com
uma "leitura" cristã daquilo que vira e ouvira e ao 111cs11111 1
r11ulc admiração desse povo índio, o qual pensava aliás
111 ••~sns desgraças e desastres lhes ocorreriam, segundo as
po servia-lhe de rito salvador e apaziguante. A co11~11I,
fltlllt'liSns e ameaças que seus deuses lhes faziam por não
vinha após o temor, e da mesma fonte. Percebe-se :1s~l111 lt1
11'111rcm massacrar os poucos cristãos que estavam entre
retamente, por documentação insólita e graças ao rn lt Ili•
, 1• po r não quererem mais seguir sua doutrina, ensina-
um h.í.bil pesquisador, como o discurso cristão torn:wu ~• , 11111 e religião. H
milável e aceitável para mentalidades indígenas a dc~1wlt11 1
obstáculos linguísticos e conceituais. E advinha-se crn1111 11111 1111111 6 g raças ao verdadeiro Deus que um punhado de
e ritos cristãos podem substituir entre os índios os 111 i111~ 1 1 h1)I" consegue implantar-se no México e difundir a reli-
do período pré-colonial. D e todo modo, conscic1111111111 11~1,1. No Peru, ele mostrou igualmente que era o mais
entre os homens de Igreja, a adesão ao cristianismo d11 \'h1 , ( 111110 em Puguira, em 1568: um demônio (alojado em
retar obrigatoriamente a renegação, por mais penosa q111 h lllplo) :1rruinava as colheitas e dizimava os rebanhos para
de todo um passado religioso. 11 população por ter aceitado o batismo; chegam dois
A I greja considerava tal ruptura necessária, j,1 q111• ~1 l11l1HIONque pedem ao céu um milagre, une os indígenas,
va de um combate entre Deus e Satã, entre os quais l'l'II pi Ili q11u ules amontoem lenha ao redor do templo e ateiem-
obrigatoriamente escolher. Ora, nessa luta feroz. Dcw, 1111 'IC"•" Nesse momento o diabo saiu lançando gritos e urros
nha por meio de milagres em favor dos cristãos. S1111 11 ~1111•~ e abalando as montanhas, como se devesse revirar
estava em jogo e ele mostrava, em múltiplas oc:1si<it·~, q111 1 , 11hcço para baixo [.. .]. O templo e a pedra foram quei-
mais forte que seu adversário. Assim, como não se ro1111 li 11•1 li bnse sem que restasse nenhum vestígio." Assim, "o
li 1h1Ncristãos estava vitorioso e triunfante, o da idolatria
[Fco. Lopez de Gomarn explica:] A princ ipa l 11•1111 ,11 11 ,111ossodo".25
mais induziu os habitantes desse país a deix;1 r ~11111, 11li, 11111111 demônio ao mesmo tempo o inspirador e o objeto
nações foi o santo sacramento do altar, cuja prL'Wll\11,, llu11,,•~ indígenas, era evidentemente necessário destruir
decia o diabo, o qual anteriormente os incitav:1 p11h1 1 111!11~, os o bjetos sacros e os arquivos do paganismo. Essas
destruiç_ões começaram muito cedo e prosseguiram aind:1 l'III p111{nnismo que subsistiam. Estando os indígenas batizados,
pleno seculo XVII. Desde 1525, o franciscano Martin dt• 1, 11111inm progressivamente o estilo religioso cristão. Mas no
~orufia aniquilou todos os templos e ídolos de Tzintzu1m .:111i , llll"O do século XVI, especialmente no Peru, percebeu-se que
cidade santa de Michoacán.1' · Um outro franciscano, Picrrtt 1h l ultos ancestrais subsistiam mais ou menos clandestim1-
Gand, declara em 1529 que sua grande ocupação com 1w 11 llll', ILntão começaram em 1610 as campanhas de extirpa-
i ujos tempos fortes situaram-se em 1610-21, 1626, 1649-69.
?lu1,1os consiste_ em destruir os edifícios e objetos religim,
1n~1~enas. Em Julho de 1531, Zumarraga, primeiro bispo 11, 11w11ram-se "visitadores" encarregados de desentocar a ido-
Mex1co, calcula que, desde o começo da conquista, dest ruír1111, ltl, rodigiram-se manuais do extirpador. O aparelho repres-
-s~ ~a Nova Espanha mais de quinhentos templos e mais dt 11 1h1s visitações reproduziu o da Inquisição, que, na América,
mil 1dolos. O soldado Cieza de León, que percorre o Per u t•IIII 1l11hn autoridade sobre os indígenas. O registro dos teste-
1_540 e !550, constata que por toda parte os grandes s1111111 1h11~, ns confissões, a instrução e o desenrolar dos processos
nos esta? em ruínas. "Deus quis", escreve ele, "que essa~ JII 111111 um procedimento análogo ao da Inquisição, excetuado
soas ouvissem o santo Evangelho e que seus templos houw ~-111 , ,mio. Por certo, a pena de morte estava excluída. Em com-
sido destruídos."" 11~110 , uma prisão especial (a Casa de Santa Cruz) foi edifi-
Ele re~1ta a propósito de Tamboblanco: "Os ant igo~ 1111, 11111 Lima para os pagãos impenitentes.
pios que sao chamados geralmente de huacas estão todo~ ti 11111lidade religiosa de hoje na América Latina demonstra
molidos e profanados, os ídolos quebrados e o demôn io t'.\ Jttll hl ttdo o caráter superficial da cristianização autoritária
de~ses luga~,es [...]. Neles fincou-se a cruz". A propc'i ~h11 1 11, ltln outrora pelo poder colonial. No Brasil especialmen-
~aJarnarca: Os templos e os bunms da região estão dcsi'l'lill 11h11s clandestinos subsistiram - e afloraram novamente
1dolos quebrados". A propósito de Huamachuco: "Todo~ 1 1111• os indígenas e sobretudo entre os negros trazidos da
t~m?los estão derrubados e seus ídolos destruídos; for:111 1~11I ( )~ cscrito_res e os viajantes dos séculos xvr-xvm não
t1tmdos por uma cruz para expulsar o demônio". 111111 deixar de assinalá-los. Ao lê-los, percebe-se que o dia
No m~smo e~pírito, o I Concílio de Lima (1551) p n•i•t 111 111 111 nos brancos e a noite aos escravos. Posto o sol, os
?es~os de 1dolatna, ~ontra os hechicheros (caciques e §:ll't•t I h , llhttNdo Brasil se fechavam aos brancos, que se trancafia-
111 ~1111s vastas moradas por temor dos escravos. E estes
md10s). O II Concil10 peruano - ainda em Lima, c111 1~,,
e1_1carrega os padres de conceder aos índios, publi<·u 11 11 111 11 ,tvnm a escuridão para reencontrar e exprimir uma
diante de esérivão, um prazo de três dias par:1 rcv,•1111 hllidndc que não podia moldar-se à forma do sistema colo-
lmams e sells ídolos. Uma vez localizados, se us :11111 1,11 1, l 11111 udo, para praticar com a maior liberdade possível
deverão eles próprios demoli-los completamente, "n.:v ii 1111,I 111111 j(lflS pagãs, os escravos recorreram aos símbolos cató-
ponta a ponta o terreno".18 1111 1•xtcriormente significavam sua integração à socieda-
1 11 ul{ista e, em profundidade, sua recusa coletiva d essa
Chegando ao Peru em 1570, o vice-rei Toledo d1, 1lili
bar ~om a raça dos velhos sacerdotes indígenas que "11 111 li" ,h 1,: porque as palavras da língua portuguesa eram
dos Jovens a luz da verdadeira religião".19 A política dit 11111 111- 110s seus olhos e veículos de uma dominação que
rasa" foi portanto desde o início a linha de cond 111 :1 p,,p11111 11111 1 ut ilizavam poucas palavras em seus cultos, mas um
na América. Contudo, durante a segunda met:idt· tl11 l I lt o de significação. A dança, a música e uma intensa
XVI, a Igreja não se alarmou exageradamente crn 11 111• ~ 1 , 11 111111 religiosa alienavam seu apego aos ritos de se us

395
ancestrais e sua vontade de não deixar destruir seu u11lv11 1 11 grande campanha de extirpação da idolatria no Peru
cultural. No Brasil, os senhores acabaram por não ma is lt•III 1111 om 1610, alguns meses após o edito de Filipe Ili, que
suprimir essas manifestações religiosas. Tendo um viaj:1111 1 ,1 11111•11 os mouros da Espanha (4 de abril de 1609). Essas
século xvrn parado uma noite na morada de um gr,111cl1• pi• 1114rcssões estiveram evidentemente ligadas por uma rela-
prietário, este perguntou na manhã seguinte: "Como p :l SNII 1 1·1111sa e efeito, muito se assemelhando o caso dos mou-
a noite?". "Bem, quanto à acomodação", respondeu-lhe o 1111 1111 dos indígenas, já que uns e outros continuavam a
vidado. "Mas não preguei o olho." E explicou por que: n :1 1111 hl 1 1111tigos cultos que deveriam ter abandonado depois do
de cantos, castanholas, tamborins e outros instrumc11l11 1111, O mal estava tão profundamente enraizado entre os
mantivera constantemente desperto, e "gritos tão ho rrívi:lr, 1111 •~ 11ne os remédios espirituais haviam se tornado inope-
lhe evocavam a confusão do inferno". Ao que o propl'i1•l1llt l>ní a expulsão. Era preciso, escrevia em 1621 o grande
retrucou: "Para mim, não há nada melhor do que esse lu11 11ll1 rp11ilor" Arriaga, evitar no Peru a renovação de sernelhan-
para do rmir despreocupado".19 b,, Reconhecimento de u111 \'li 1 1~11•c e combater a idolatria enquanto era tempo. Tudo
fracasso. 111h11•in da intensidade e do poder dos meios de cura que se
Impõem-se comparações entre a política de extirp:1~•(111 ,1 111 lllll ação." E depois - Arriaga não o dizia - como
idolatria praticada na América no final do século XVI e 1111 111 l,111 os indígen as? Então era preciso convertê-los.
meira metade do XVII e a agressividade que as autodd111I 1111111, porque tudo se prende ao jogo demoníaco e porque
demonstravam na Europa, no mesmo momento, no clrn 11f11l tll~pi\c de inúmeras tropas para perseguir a Igreja, eis que
religioso. Observa-se com efeito uma coincidência crono l111111 1~•11 dos protestantes da Europa se fazia sentir na própria
entre a grande caça às feiticeiras que ensanguentou o \11 Ili Ih 111 holandeses e ingleses ladeavam as costas do Chile e
Mundo e a luta sem trégua conduzida além do Atlântico rn1111 11111 o risco de entender-se, contra os espanhóis, com os
o paganismo. De um lado e de outro perseguia-se o 11111'!11 1111111 idólatras. Essa coalizão diabólica não constituía um
inimigo: Satã, e, evidentemente, servindo-se da mesma lill)III 1111111·11 a Igreja - e para a Espanha - no Peru? Dos anos
gem e das mesmas condenações. Os dignitários eclcsi:l~t lt, 1111' 11 metade do século XVIII, essa "chantagem com o heré-
convocados pelo vice-rei Toledo em 1570 decidiram q 111 1 1111 frequentemente debatida na América católica. Sem
feiticeiros indígenas batizados, e de fato apóstatas, dcvi:1111 l11•x11gcrava-se a gravidade da ameaça. O importante para
considerados heréticos30 e poderiam ser punidos com ;1 1111111 111111 se tenha acreditado nela.
assim como aqueles que se Ópusessem à evangelização. Do 1111
mo modo, os 'autores do sinistro O martelo das feiticeirns lrnvh11,
desde o pret~cio de sua obra indicado o objeto de sua im::1111111\ 1 \ AMEAÇA MUÇULMANA
inquisição: "Uma perversão herética surpreendente[...], :1 1111
sia das feiticeiras", acrescentando que Satã, "o Velho Orit,1111 ,1 i\mérica, a cristandade recentemente implantada mar-
desde a chegada à terra do "Novo Oriente", Cristo, n:io I t 111111 sua agressividade o sentimento de insegurança que
de infectar a Igreja "com a peste de diversas heresias". " /\~HIii 111111111uwa diante da idolatria. lvlas mesmo na Europa ela se
perseguir os "feiticeiros" de um lado e de outro do At l:i111h l 111 perigo: a onda turca deixaria um dia de arrebentar na
aprisionar, caçar e queimar heréticos constituíam um 1í 11 lt 11 11 do oeste? Os triunfos da "Renascença" e a dilatação

mesmo combate contra traidores da Igreja. i\!Ias nova rnl111, 11111111m do Ocidente cristão ocultam muitas vezes esta

396 397
realidade que coincidiu com as duas outras: a inquietaç:io p111
No passado fomos feridos na Ásia e na África, isto é, em
vocada pelos sucessos otomanos. Comparação signifirn1h 1
p11fscs estrangeiros. .Mas agora somos atingidos na Eurnpa,
entre 1480 e 1609, imprimiram-se em francês duas vezes 1111,l
1•111 nossa pátria, em casa. Objetar-se-á que j,í outrora os
livros sobre os turcos e a Turquia do que sobre as duas 1\ 1111
ricas.33 1111·00s passaram da Ásia para a Grécia, os mongóis mesmo
••• ust:1beleceram na Europa e os ,írabes ocuparam uma par-
No século XVI, o mundo otomano começa às margc11~ ,1,
lt• dn Espanha após terem transposto o estreito de Gibral-
Adriático e se expande por três continentes: de Buda a 1!11,.,I
do Nilo à Cri!neia, estendendo mesmo seu protetorado ;l /{I 1111 11111, Mas jamais havíamos perdido uma cidade ou uma praça
1omparável a Constantinopla.i;
de parte da Africa do Norte. As derrotas cristãs em l<oN111 ,
(1389) e em Nicópolis (1396), a tornada de Consta 111 i 1111pl
(1453), o fim do pequeno império grego de Trebi:wnd;1 ( l•lril 1 I• 11111 futuro papa quem assim fala. Na realidade, na Europa
a tomada do Egito (1517), a ocupação de Belgrado (J 5l1)1 líl, todo mundo teve medo dos turcos? F. Braudel destacou
desastre infligido em Mohacs (1526) aos cavaleiros hú11g"11111 11111110 a conquista otomana nos füílcãs fora facilitada por
a seu rei Luís, que ficou entre os mortos, a anexação mc1oilh n 1•~pécie de revolução social. "Uma sociedade senhorial,
das ilhas do Egeu e ntre 1462 (Lesbos) e 1571 (Chipre) fi w 11111 11 ,•om os camponeses, foi surpreendida pelo choque e des-
36
do sultão um augusto muçulmano. Ao mesmo tempo clt• 1 r1111011 por si mesma." Violentos distúrbios agrários tinham
sucessor de Maomé, "o servidor das cidades santas". Na E1111 111 \l'I.CS precedido a chegada dos invasores. Ao menos no
ele domina os Bálcãs e 2/3 da Hungria, Transilvânia, Molthll 1 111 \01 seu regime foi menos pesado do que aquele que o pre-
e Valáquia lhe pagam tributo. Em 1480, uma força tUl'<'II ,h 111, uxigindo os novos senhores - os spahis - mais encar-
sembarcou em Otranto. Mesmo depois de Lepanto (1571), , 1111 dinheiro do que corveias. Foi mais tarde, com o tempo,
corsários turcos e berberes continuaram a visitar as cost11', lt, 1~li unção camponesa voltou a ficar dura . .Mas no século XV
lianas. Lê-se no diário de viagem de Montaigne, que vis1t1111 1111111cço do XVI, inúmeros camponeses emigraram para os
península em 1580-1: ltol'los controlados pelos turcos nos Bálcãs. Ali aparente-
Ih 1111contravam condições de vida menos penosas do que
Os papas, e especialmente este [Gregório xm,.,. 157,> 11 11 Hlc1cs cristãs que abandonavam.l1 Além disso, no espaço
mandaram erguer nesta costa de mar [tirrena] granck-•, 1111 1~11 uo nquistado pelos turcos, o governo otomano "acabou
res ou sentinelas, aproximadamente de milha em 1111111 11 h1r quadros em que os povos da península [Balcânica]
para guatí1ecer o desembarque que os turcos aqui l:11li,111 11111111 lugar um a um para colaborar com o vencedor e, aqui
frequentemente, mesmo em tempo de vindimas e trn1111111I li. 1•11 rios a mente reanimar os faustos do Império Bizantino".38
gado e homens. Dessas torres, a um tiro de canhi\o, 111 11 li dnf, como evitar as conversões ao Islã? Dentre 48 grão-
advertiam-se uns aos outros com tão grande rapidez q111 Ili -• de 1453 a 1623, pelo menos 33 foram renegados. 39 No
seu alarme de súbito voou até Roma.H
,t~hhico do império, os funcionários eram cada vez mais
1111dos" progressivamente introduzidos na classe otomana
Em 1453, a queda de Constantinopla provocara um r li,11111 11111111tc.411 "Aos milhares" os cristãos - prisioneiros ou
psicológico no Ocidente. Aeneas Sylvius Piccolomini, o lt11111
11111'1•~ - renegaram sua fé para passar ao Islã. A lguns, no
Pio II, podia dizer melancolicamente:
1 il11 ~éculo XVI e no começo do XVII, foram assunto da
398
199
tllNO: Mas como D eus não quer que o reino do Tirano
crônica: Occhiali, pescador calabrês, tornou-se "rei d l• 1\ 1
[o senado]
sob o nome de Euldj Ali; Cicala, "renegado" siciliano, 111j•I Pese demasiadamente sobre o mundo, ele pre-
rado criança no navio de seu pai, corsário cristão, e q111
parou
almirante e depois ministro da Guerra do Sultão. M :1s 1111 1 Para fazer justiça o turco e o grande sultão.
desses casos ilustres, quantos fatos mais obscuros, poré111 1111 • 1 1mm: Este toma o que eles tomaram
ficativos, esparsos nas crônicas da época: epidemias de d1•h11 E lhes prepara guerras e sofrimentos
nas guarnições espanholas dos presídios da África do N1 ,1 Para lhes pespegar um bom golpe na cabeça.
número importante de renegados portugueses em On1111, AtllNO: Então seremos seus irmãos muito queridos
partida de Goa, fuga dos cristãos sicilianos em direção ~ij 11, E eles virão conosco, de traseiro nu, pegar
berberes, expedição marroquina de 1591 para Tomh111•111 1 Caranguejos moles, lagostas, douradas.
<luzida por renegados espanhóis:' Até os religiosos que ,,,111 1 ~ 1 1ORE: Eles não chamarão mais os pobres
vezes tomados pela vertigem da conversão ao Islã j:í q111 De cornudos, de imbecis, de ladrões nem de ca-
1630, o padre Joseph será aconselhado a chamar de v11h 1 chorros
capuchinhos disseminados no Levante "por medo til' q11, E não lhes lavarão mais os olhos com suas cuspa-
façam turcos".42 Enfim, os técnicos cristãos ajudaram 1111 11111,I radas":;
nização (parcial) do exército turco. Em 1573 um fr:111<•1i• 1
gurava, exagerando, contudo, e esquecendo o papel dw111111 11\· 111s :kidas, por certo, e aspirações de deserdados à vin-
1
"?s turcos adquiriram, através dos renegados, todas as •rnp11 M11No próprio governo veneziano não combate os turcos
11111 Intermitências quando suas poss_essões do Orientes-ão
ndades cristãs";! Assim:
•• l)c outro modo, prefere comerciar. Se no entanto um
[...] da Córsega, da Sardenha, da Sicília, da CaHbri:1, 1h 1 111 11no pôde ser evitado, negocia desde que possív_el.
nova, de Veneza, da Espanha, de todos os pontos do 111111 111 hom em 1540, depois novamente em 1573, dezoito
mediterrâneo, renegados foram para o Islã. No 0111 1t1 1, 111111•l l ,cpanto, quando Veneza, abandonando duas "santas
, 111 t•~~ivas, faz a cada vez uma paz separada com a Porta.
do, nada de análogo.
1111111 e na Espanha, denuncia-se a "traição". Mas a Sere-
Inconscientemente talvez, o turco abre suas p111111
111 t 1111hcce em primeiro lugar seu interesse. Além disso,
cristão fecha as suas. A intolerância cristã, filha do 1111111
não cha.i,na os homens; repele-os[...]. Tudo parte 11:1 dll li' d l' de laços a unem há muito tempo ao mundo otoma-
1 il1111 pe ríodos de guerra. Gentile Bellini, pintor oficial
do Islã, onde há lugar e proveitos:•
""' ~, <! enviado pela senhoria em 1479 para junto de
t 11, de quem faz o retrato e que o agradece atribuindo-
Peça inesperada a ser incorporada ao dossiê dos c..·rn1q11111
Ili I f11ilo de nobreza. Porque as influências orientais são
mentas "cristãos" em relação aos turcos, eis aqui u111 li11111,
1111 1111.: acolhidas em Veneza, Carpaccio, pintando o mar-
veneziano composto por volta de 1570. Ele põe c111 1·1•1111 11
1 ~11111 0 Estêvão, faz de Jerusalém uma cidade faustosa,
pescadores que se queixam amargamente do gove rno 1h 111111nm personagens de turbantes, e em 1547 aparece na
Sereníssima e chegam a desejar uma vitória dos 1>10111~1
,llt hll{Una a primeira tradução italiana do Corão.
sobre sua própria pátria:
401
São Francisco I e seus sucessores entenderam-se co111 11 o pnís em interdito; depois, a pedido de Carlos v, revogou
turcos para tentar atacar os Habsburgo pela retaguarda - 111, punição.48 Foi só mais tarde, no século XVI, que o medo dos
tinham realmente medo do perigo otomano e, conscq111•11l1 ~11lmanos apoderou-se dos espanhóis.
mente, não tinham consciência de "trair" a cristancl:1d11 l i11nga é a lista dos casos de não-assistência às nações cristãs
constante desunião desta diante dos avanços dos infiéis n•11 I l\'11dns pelos turcos. Por duas vezes nas dietas de Spira e de
no plano das mentalidades, que mesmo nas classes diriKt'III r,m,hcrg, em 1523 e 1524, delegados húngaros imploraram a
não se partilhavam senão intermitentemente as angús1i11- 11 1 militar do império. A cada vez, os alemães responderam
4
papado. Lembremo-nos, na segunda metade do século X\', ti, 1111111 denegação, ao menos de imediato. > Ora, _Belgrado caí-
esforços infrutíferos de Nicolau v, Calixto 11, Pio 11, S(.'~111 l li 1~2 1, e em 1526 foi o desastre de Mohacs. E verdade, em
etc. em promover urna cruzada coerente e poderosa. No 1111 r11pnrtida, que os franceses contribuíram em 1664 para a
gresso de Mântua convocado com esse objetivo em 1451J, l'h tl11 de São Gotardo, e os poloneses de Jean Sobieski para
declara tristemente: h,11111 do cerco de Viena em 1683. É verdade também que a
111,1 ~t• sentiu - um pouco - tocada pela longa resistência
Dormimos um sono profundo[...). Fazemos a gu1:rn1, 111 1111111 em Cândia (1665-9) e fez alguns gestos. Contudo, os
nós e deixamos os turcos livres para agir à vonta<k, I', 1 1 11 1111ceses enviados bem tardiamente por Luís XIV (em
motivos mais fúteis, os cristãos correm para as :11·11 \IIN 1 1111 um reembarcados quase imediatamente, quando mais
entregam a sangrentas batalhas; e, quando se tr,lla d,•1, h,1 11ocessidade deles. Por diferentes caminhos historio-
bater os turcos que lançam a blasfêmia à face de no~~n I h •~, vnmos ao encontro portanto do diagnóstico de i\tl. P.
que destroem nossas igrejas, que não querem 11:1d11 11111 11, 1111 E uropa, foram indiferentes ao perigo turco todos
50
do que aniquilar o nome cristão, ninguém conse11111 - • 111 que• não estavam diretamente ameaçados por ele.
em erguer a mão. Na verdade, todos os crist:ios cl,• 1111 IH 111 ontão sentiu essa ameaça? No plano local, popula-
dias esquivaram-se, todos se tornaram servidores 1111111 I 111 1•~111vam em contato com a violência muçulmana; no
N• 1,d, e m primeiro lugar e sobretudo, os homens de
Pio II morreu cinco anos mais tarde em A nco1111, 1h p1111 quem a religião cristã estava em perigo.
corajado: esperava os contingentes cruzados que ,,~íi l'lllh p1111tos quentes do confronto no final do século xv e em
Alguns anos antes - em 1456 - , a universida,k dt 1 ,h 1111•rcr do século XVI se situaram nas costas italianas,
protegendo-se atrás da Pragmática Sanção, opuser:1-Sl' ~ , 111 , 11, 1111s, e até no interior do império e no sul da Espanha.
ça na França do dízimo para a cruzada e o duque dl' llfllt 111 ~ ~oLores, o medo dos maometanos - turcos ou ber-
guardara para si as somas recolhidas em seus Est 11d, 1 1 lt ti vivido nas diferentes camadas da sociedade. A
ocasião.47 Atitude significativa também é a do clen J 1•-11, 111 t )1 ranto em 1480 foi acompanhada pelo massacre de
em 1519: Leão X e Carlos v acabavam de conclui !' 11111 ,.
111ll111n.:s de cristãos em condições abomináveis. Sem
ofensivo contra os turcos conforme o projeto de c1·11 1111l11
,1 111• uma relação entre esses horrores e a insistência
decidido pelo V Concílio de Latrão. Esse tratado p1 111111
1 111111 escolas de pintura, especialmente a de Siena, no
de hábito em semelhante caso, o levantamento 1k Ili, 1111
,lm ,·1111tos inocentes.51 A lembrança dessa carnificina,
clero da Espanha recusou unanimemente pag:í- lcl'i, hl 111
I" lus contínuas incursões dos navios inimigos, expli-
momento a cristandade não estava sendo arncad:i . 1~11111,
,,1/1"'}
403
c~ .q.ue no século XV! se tenha febrilmente equipado 11~ , 11111~•ulmanos, casas enclausuradas), celebram seu culto
s1cdrnnas e napolitanas com torres e fortalezas. t111,1111cnte, recusam-se a comer toucinho, a beber vinho,
Na Hungria, o avanço turco provocou o pâ nil'o, \1 1 1•tm1 cristãos ou cristãs. E, quando piratas berberes
derrota de Mohacs, boa parte da população de Ilude (e itl,111 1, 1k Tetuão o u de Salé desembarcam, levando suas
8 mil habitantes) fugiu. Os camponeses da plan ícic 11•1111 li hlllll longe no interior, eles os ajudam, pilham e
esco.nder seus filhos qua ndo os otomanos chegav:11 11 11 , 11111 lllcs. Em 23 de agosto de 1565, quatrocentos berbe-
aldern. Na parte do país ocupada pe los invasores dl' \ 1 t 1 ll1111doiras e tambores chegam até Orjiva (vertente su 1
dos habitantes teriam perecido.si Assegurava-se 1::1 I\ 11•1111 Nc•vnda). Acolhidos de braços aber tos pelos mo uriscos,
que o sultão, após a vitória de Mohacs, mandara cr:l\'111 111 111 11'l cnsas dos cristãos, investem contra a igreja, piso-
d.e su~ tenda~ mil ~abeças à guisa de troféus e que 80 111111 • 111to sacramento e reembarcam dois dias depois, levan-
s10ne1ros haviam sido massacrados.si Em Viena, e~pl'I t\ 1 11 1•111 ivos. E m setembro do ano seg uinte, 350 piratas de
com terror a chegada dos bárbaros. Quando os tun:m "111 1 h••l(Rlll a Tabernas (no norte de Almeria), semeando o
ciclas e incenclifrios" entraram em Linz em 1529 1... 1, 11~ 11 1111·1• cristãos, mas recebidos como irmãos pelos m otL-
~antes de Estrasburgo apavoraram-se. Io império, 11•1111, l,1111m os padres e os estalajadeiros e voltam para o mar
unagens dramiíticas alimentavam o medo. As gravu1·11~ 11, ~ , 111 lvos. Seiscentos voluntários seguem seus passos e
Schoen (1530) mostravam mercados turcos onde ~e 11 11,li 111 p111·n a f\frica do Norte.'• Na r egião de AJmeria, os
prisioneiras cristãs nuas, e cria nças empaladas ou cor·1111111 11~ 1•onstituem então 90% da população, não ficando os
dois pelos so~dados do sultão.H As apreensões a lem ih 1·,pll 1111 segurança senão ao abrigo das mura lhas urbanas;
que, a despeito das desconfianças recíprocas, dos rq{1t11h IA11 til' Málaga, contam-se 50% de mouriscos. Nlais ao
cios_ a.trasos, de um jeito ou de outro os príncipes do 1111p , •ti•~representam quase um terço dos habitantes da re-
catolicos e protestantes, forneceram a seu soberano 1,., 11 •, li 1u1ln nn: 31 715 fogos, em 1609, contra 65 016 dos cris-
sos. financeiros e militares de que precisava para c n 111 111 , lhm," Por toda parte onde os dois povos estão mistura-
perigo turco. 111111111111 situação colonial: os m ouriscos são relegados aos
• 1l11s cidades e às terras ruins do planalto. C o mo ódio
111 11(p1·ocos não oporiam essas duas sociedades imbrica-
Na_ Alemanha'. o infiel está nas fronteiras. Mas 11:1 I• \ jl 11,I ,~ 1111 oulra: a vitoriosa e a vencida?
ele esta nos própnos muros da c idade cristã, presLcs a p,11 11, 11111lld11 que se firmou no Mediterrâneo o domínio naval
com os berberes que chegam de improviso. o c111 ;111111 1111~ ,. dos berberes, o temor do perigo oto mano aumen-
século xvr, todos os muçulmanos da Espanha tornar:1111 " 1 ,1p1111ha no decorrer do século XVI. E le está no auge
princípio, cristãos. Em 1499, os mouros de Gran:td:1 t l11lt k,,, Iode, no Natal de 1568, a guerra de Granada, "guerra
sido convertidos por ordem govername ntal. A medida 1,11 11 11 I 1 ', ''!(ucrra de civilizações inimigas",58 que sacode todo
ra-se em seguida ao conjunto de Castela, depois ao~ p,11" 1 N,1verdade, o governo de Madri esperava essa subleva-
coroa de Aragão (1526). Mas, nestes últimos, os crist :i o•, 1111 lu 11tlo da conivência entre mouriscos e muçulmanos do
hav!am .se antecipado à decisão real e batizado à for\·:1, p 111 111 11 1•h• ncredita remediar o mal obrigando os primeiros a
sas mteiras, seus compatriotas muç ulrnanos. 55 D e f:1t o, 1111 1 111 ,1• t·o mo espanhóis e a falar castelhano, depois depor-
vertidos conservam sua língua e sua arte de vive r (ro ~t 1111, 11• p11rn o interior. Essas decisões tomadas desde 1566

-IO'i
explicam a revolta de 1568. Sete meses antes da eclosi'in ti 1 S\\d que não se deslocou o problema sem resolvê-lo? Eis
revolta, o embaixador da França as transmite a seu rei c cxplh • 1111 mouriscos no próprio coração da Espanha: em T oledo
lucidam ente seu motivo, o medo: '"' ít1lmente. Quanto àqueles, numerosos, que vivem em Sevi-
1 11110 estão prontos a facilitar eventuais incursões inglesas?

A respeito, Senhor, do alarme de Granada sobre o qunl 111 1 VulGncia, há as mesmas inquietações. De modo que a vitó-
escrevi não foi outra coisa senão um medo que tivcr:1111 111, 1h• l .cpanto (1571), por mais importante que tenha sido no
mouris~os naturais do país; os quais, porque se vcrifi11111 11111.lrrâneo, não fez desaparecer na Espanha o medo do pcri-
tinham entendimento com o rei de Argel [...J. Esse rd (ti 11111~ulmano. O mourisco permanece inassimihível, pois está
Espanha) quer por boas e grandes considerações qu1· t•h 1111 n um mundo infiel, hostil ao nome cristão. O atestado
se vistam à espanhola [...] e quer mais, que falem cspn11l111 "l'Onfissão de impotência é a grande expulsão de 1609-14:
e não algaravia. Fala-se em retirar toda a dita gera,;i'io 1111 1 de 275 mil indivíduos cios mais ou menos 8 milhões de
do dito reino e transportá-la para a Galícia e para as 1111111 h11111cs que a Espanha contava6' - 3,4% da população. Como
tanhas, tão afastados uns dos outros que não possam ('1111 h ti nça atual de repente se privasse de 1 800 000 pessoas.
pirar aqui perto com os mouros, e em seu lugar ret·11l111 • p1 ndso nada menos do que isso para não t er mais medo em
galegos e montanheses [...p•

A revolta eclode em consequência de rixas entre mo111 1-1 •


e cristãos-velhos. O Albaicin, a Granada indígena, não se 11111 M11N, fora das zonas de contato localizadas acima, os oci-
.M as a sublevação se propaga na serra Nevada e dura q11a~1• 1h 111-, 110 começo da Idade Moderna, não temeram verdadei-
anos. Os revoltosos, no auge do combate, são pelo 111c1HH1 1 1 1111• o perigo muçulmano; não o bastante, em todo caso,
mil, dos quais 45 mil armados. Berberes - 4 mil t:1lw1 111111 o gosto dos homens de Igreja. E is-nos portanto, quan-
combatem em suas fileiras. E ntretanto, em janeiro cll' l 1 1 1h\lxnm as fronteiras inflamadas, diante do caso exemplar
Euldj Ali apodera-se de Túnis e em julho os turcos dcSl'llll11 111 111cclo vindo de cima, que os responsáveis pela religião se
cam em Chipre: provas evidentes da conivência entre 111d11 1111 om inculcar em populações no mais das vezes reticen-
muçulmanos do c ircuito mediterrânico. Para os csp:111h11I 11 ~11111 imento de que a cristandade estava sitiada, são e les
inimigo está então ao mesmo tempo fora e dentro, um l' 11111h 1111111 que o experimentam. Existiu mesmo, em todo o
plo. Para reduzir a rebelião de Serra Nevada (e impedir qllt 1111 tio século XVI - e ainda depois - uma sensível defa-
alastrasse p.<:1ra a região valenc~ana), é preciso enviar 11111 1li 11tl11 10 111, na cultura escrita, entre dois discursos relativos
fe de guerra - dom Juan da Austria - e convocar I r111111 11111'1, G eógrafos, historiadores, viajantes, políticos e mora-

Nápoles e da Lombardia. Quando o fogo se extingue, 11~ 11111 ' ~lcll'(;nm-se em compreender o adversário, admiram as
ridades empreendem a deportação para Castela de ccrc·11 ,h 11 ••~ército do Impér io Otomano. O irenista Guillaume
ou 80 mil mouriscos: os das terras baixas que forncci:1111 vil, l lq111' é também um grande orientalista) não é portanto o
aos revoltosos. 60 A operação é efetuada em novembro 1•111 111 1 11p1·csentar uma descrição leal e objetiva do mundo
ao vento, à chuva e à neve. Vinte mil deportados morn·1li1111 11 historiador Paolo G iovio escreve que "Suleimã está
caminho. Em sentido inverso, chegam cristãos-vcl hn~ 1 1h1 pura a religião e para a liberalidade".61 N a Cosmogr11fin
colonizar as melhores terras do antigo reino de Gran:11111 111-11111, lê-se que os "turcos são grandes executores de

Ll.flK 407
justiça".6J O naturalista e médico Pierre Belon afirm:1 q111 , 111nrcou assim uma data importante na difusão do culto
muçulmanos são pessoas "pacíficas em todos os seus ass11111u 11111, Al.é m disso, desde 1572, apareceram inúmeras epinicies
O espanhol Laguna, ao dedicar a Filipe II sua Viagem 11 '/)11,1 1• ,lc vitória), compostas sobretudo nas universidades je-
(1557), parece, no texto p reliminar, ceder à paixão antio11111111 l)undros representaram a Virgem vitoriosa sobre o turco;
de seus compatriotas. Mas logo se revela que, comp:1 n1111h, 11i1fos barrocos exaltaram a cruz t riunfante do crescente."
Turquia à Espanha, o autor louva a primeira e fustiga a ~IIJIIII 11 llhcrtação de Viena em 1683, o estandarte tomado ao
da. 65 Quanto a Bodin, a Montaigne e a Charron, adm i n11111 \'ltli• foi enviado a Inocêncio XI e suspenso acima do pór-
comum a disciplina do exército turco, a sobriedade 1h• 11 Hlnl'ipal de São Pedro. Tendo a vitória sido alcan?da n_o
soldados e concluem que a "república" que alcança t:111rn1, \ li lmo dia depois da Assunção, o papa estendeu a I greJ3
rias não pode ser senão "bem ordenada".66 ,_,,I uma festa de ação de graças em honra do santo nome
Por certo, algumas dessas análises sem paixão e desNII~ il •• h1, n ser celebrada dessa data em diante sempre nesse
crições objetivas puderam contribuir para reforçar o 11tl•tl11 , N11s regiões da Ale manha que o avanço turco de 1683
otomanos. Para Montaigne, "o mais forte Estado que Sl' 111'1 ~ 11111 cantos religiosos, quadros, peregrinações, suntu~sos
senta ao mundo no momento é o dos t urcos".'•'E cabe a C h1111 A1 111s barrocos exprimiram o alívio e a alegria da Igrep.
exagerar: "O maior e mais poderoso Estado e império q111• 1 1 11,,111 não vê, consequentemente, o papel essencial desem-
te agora no mundo é o do Grande Senhor que, como 11111 h 11111 pelo clero no lon go combate contra os turcos? As
se foz temer por toda a terra e recear por todos os prf1wl111 ll11tl1•s dos infiéis são constantemente descritas nos ser-
monarcas do mundo". 68 No entanto, se a Igreja insistiu 11111111, ' hl.(ttram nas sequências das m issas contrtt turcos. S~o
perigo turco, foi aparentemente porque sentia a inér'l'lit ,1 m i 1IHorações nas quais se suplica a D eus que salve a c n s-
populações - e isso talvez mesmo na Europa central :11111 11 1h• dn invasão pagã. O avanço otomano é citado pelos
da, onde tod a uma parte da Hungria manifesto u d11 nuh1111 111111•~ no lado dos outros flagelos - epidemias, fome,
hostilidade em relação aos Habsburgo. Na metade de 1 ~r, 11 11111111lnções. Com base em Daniel e em Ezequiel, anun-
XV, Calixto III, assust ado com os sucessos de i\!Iaomé 11 1 111,I 111 1111 próximo do mundo pelas mãos dos t urcos. E, já que
nou que a cristandade inteira recitasse cotidianame1ftc o 11111 1n11 11:itá traduzido em latim, os teólogos põem todo 0
lus para implorar ao céu contra a ameaça otomana. N11 \1 11h11 lltn criticar as doutrinas do Islã.;i Não nos surpreen-
manha, por •ordem de Carlos v, as populações cat(il h ,1 ' p1u·t:mto, de encontrar m embr os do clero, sobretudo
protestantes ouviram soar todos os dias, ao meio-di:1, 11 11 11 ,-.,~, nos diversos fronts da luta cont ra o turco. No
dos turcos", que lhes lembrava a permanência do peri~o.' 1 11111 um que J ean Hunyadi de fende vitoriosamente Bel-
1571, Pio V instituiu um jubileu solene e preces públi<.w1 11 ll ' 111 1456, o franciscano italiano João de Capistrano é a
de implorar a p roteção divina para a frota que ia encont 1·111 ,, l 1 11•sistência.74 Proclamando uma nova cruzada em 1463,
sultão. Ele próprio sujeitara-se a severas penitências. lnf111111 ,h ,pucha para toda a Europa pregadores, sobretudo fran-
da notícia de Lepan to, criou imediatamen te uma festa <k Ntt ,,,. pnra comover as multidões.;s Em Nlohacs, per ecem
Senhora das Vitórias, que Gregório XIII fez então cclclll'lt1 1 1, .'i1tlspos e cinco bispos.76 No tempo de Pio v, capuch i-
o nome de festa do Rosário, a cada primeiro domingo dt• 11111 R11 os capelães da frota cristã. Por ocasião do cerco de
bro, em todas as igrejas providas de um altar do ros:írio, 1 11111 1683, Marco d'Aviano, ainda um capuchinho, torna-
409
-se célebre na cidade por seus sermões sobre a penitência. F, 11 li1mbém Lutero, em 1539, quando os infiéis "se dirigem
França, o que encontramos no século XVII entre os cx:1lt 111h, 11 Alemanha pela Polônia", surpreende-se com a placidez
que ainda sonham com cruzadas? O padre Joseph - se111111 ouscompatriotas. "É uma grande desgraça que permaneça-
um capuchinho - , sustentáculo das "milícias cris1ih" 11 1111 segurança, vendo-o [o turco] como um in imigo comum,
Charles de Gonzague e autor de uma tardia Turcirule. t\s dH, rn 110 o seria o rei da França ou o rei da Inglaterra."' 8
frações mais atuantes da Igreja católica renovada - jcs11 h11 A explicação constante que sustenta o discurso teológico
capuchinhos - parecem ter sido também os inimigo~ 111111 11110 ele trata do perigo otomano é a de que este é o justo
zelosos do infiel. l~n merecido pelos pecados da cristandade. Erasmo afir~a
No século XVI, os escritos de Erasmo e de Lutero i I II NI1 111 1) IJIIS "envia os turcos contra nós como outrora env,?u
bem o papel que os homens de Igreja mais conscientes di•~1111 11 11 os egípcios as rãs, os mosquitos e os gafanhotos [...]: E a
penharam diante do perigo turco e da representação <Jlll' ,1 1 m vícios que eles devem sua vitória".'" E Lutero o confmna
faziam. Por certo, ambos pertenciam ao império dirct ,11111 111 1111 /\xortação à prece contra o tnrco: "Em suma, é quase como
ameaçado pelas vitórias do sultão. Essa carteira de idclll 1111111 tio dilúvio (Gênesis 6): Deus olhou a terra e eis que ela
certamente explica em parte sua atitude diante desse p,,1lf 1 1•orrompida; pois toda carne corrompera seu caminho
1
Porém, mais ainda, eles desejavam, cada um com seu 11,111 111orra". º O mesmo raciocínio conduz senhores de Berna
8

próprio, ser guias para os cristãos de seu tempo. C:1hl11 Ih 1llilr cm 1543 "todas as danças, tanto de bodas como outras
portanto em primeiro lugar alertar uma opinião sempre Iu1 1 111 1•onjunto todas as canções frívolas [...] e toda algazarra,
a entorpecer-se e a esquecer o dever de solidariedade. , 11 urros (...]", em razão das recentes vitórias turcas: "Fatos
1111110 pe rigosos, que o Senhor nos envia por causa de nos-
Raça bárbara, de uma obscura origem [escreve Er:1s1111111 11 11elos".81Esse leitmotiv terá vida longa. N o sexto livro do
1530], com quantos massacres [os turcos] não afl Ífl ll ,1111 1111 /)(' veritate religionis dJristanae, de Grotius (1627) -
povo c ristão? Que tratamento selvagem não us:11·11111 , 1 1111111 que teve numerosas reedições em diversas línguas -:-,
contra nós? Quantas cidades, quantas ilhas, qu:1111 11~ I" (11 lns cios turcos são sempre apresentadas como um castigo
víncias não foram arrancadas à soberania cristã? ~.,I 1 1 11-,•1 Essa leitura dos acontecimentos, que não era apenas
situação parece ter adquirido tal aspecto que, se :1d11 Plt 1 , 1o1111c, permanecia familiar aos cristãos da época.
Deus não nos protege, ela parece prenunciar u11111 p1,,1 -~1111, [rasmo e Lutero dão como principal instrução aos
ocupação <"le todo o resto do mundo cristão [... j, pol~, 11 11- 11mcaçados pelos turcos emendar-se.
do fato áe que devemos considerar essas desgr;1~•11~ 11 , , ", escreve Q primeiro, "desejamos ter êxito em nossa
sendo comuns a todos em virtude da comunid:tdl' ,h 11 _, de livrar nossa garganta do aperto turco, ser-nos-á
sa religião, é de se temer que na realidade se tor1w111 I' dtlo, nntes de expulsar a raça execrável dos turcos, exti ~-
todos nosso quinhão comum. Quando queima :1 p1111111 111 IN'IOS corações a avareza, a ambição, o amor da dom1-
casa vizinha, vossos próprios bens estão em pcriKtti 11 ,1 hon consciência, o espírito de deboche, o amor da
com mais forte razão, é a cidade inteira que es_r:í t 11 11111 •• 11 1'r:\U de, a co' Iera, o o'd'10, a mveJa
· · [...] ."H3 O segundo
quando o incêndio atinge qualquer moradia. E p1 c11 1 1, 1,1 11N cristãos do século XVJ aos habitantes de Nínive e,
tão enviar socorro.77 n1l11 11c rios pastores, diz-lhes: "[...] Pregadores, exortemos
111 1,.. 1 primeiramente o povo ao arrependimento".80
Contudo, a despeito da comunidade do diagnóstico - 1 111 h•to."7 Ele o redige precisamente para responder a um escrito
remédio pelo arrependimento-, Erasmo e Lutero se scp111,111 l 111oro, Von Kriege wider die Turcken (1529). Erasmo manti-
sobre vários outros pontos. Lutero, quando fala dos t 1111 11 111h1ções epistolares com humanistas da Áustria, da Hun-
associa-lhes quase sempre o papa e o diabo, e até "o m11nd111 • 1• cln Polônia e ficou vivamente impressionado com a der-

carne"."' Para ele, existe uma aliança objetiva entre uns e 011111 tlt• Mobacs e com o sítio de Viena em 1529. Além disso, o
- complô satânico que ataca o mundo cristão enfraq11td1li, 11111 de Carlos V lhe pedira sem dúvida que reagisse pubJica-
pecador, ao mesmo tempo por meio dos exércitos oto111:rn11, ,1 11' t'Ontra o derrotismo de Lutero. O debate entre os dois
ll'IIN n respeito dos turcos é em todo caso revelador para
idolatria romana e de toda espécie de tentações corrup1rn 11•
alguém teve o sentimento de que a cristandade era 11111:1 l'lil, 1 p11is destaca os meios - sobretudo intelectuais e religiosos
1t1i~ sensibilizados para a ameaça otomana, além de colocar
sitiada, foi Lutero - e sitiada pelas forças dese nfrcadu, 1
inferno. Assim, ele chegou à conclusão paradoxal, expl'l'N~11, - ltu.:c tlm Erasmo muito inquieto, mas que conserva a ca-
lt tu, e um Lutero no qual a angústia chega ao pânico: se a
vários escritos de 1529, 1539, 1541, de que só as armas ,•~ph
nia is têm possibi Iidade de ser eficazes, pois que niio se 11111 ,
th 1•1'ist5 é atacada por Satã, só Deus pode defendê-la.
combater homens mas demônios:

E se vós vos puserdes em campanha, agora, contra o t 111


estejais absolutamente certos, e não duvideis, de q11 t• 1u1t, 1
tais contra seres de carne e osso, em outras pabvr:ts h11111
[...]. Ao contrário, estejais certos de que lutais rn11111 1
grande exército de diabos[...]. Assim, não confit.:i~ 1•111 ,,
lança, em vossa espada, em vosso arcabuz, em voss111111~
em vosso número, pois os diabos não se import:1111 t111111
[...]. Contra os diabos, é preciso que tenhamos :111Jm 111
de nós; é o que advirá se nos humilharmos, se sup1 1t 111 rn
Deus e se tivermos confiança em sua Palavra."·

Erasmo7 jamais foi invadido pelas angústias ohsidl111111


Lutero. Contudo, a escalada do perigo turco levou 11 11 11
ficar seu pacifismo integral do começo e a aceit;ll', 1111• ,
particular, a necessidade de uma guerra defcnsiv:1 1 11111
evidentemente esgotado todas as possibilidades ck 1ll'K111 I
e ter tomado a resolução de comportar-se como c.:r is11111111,
em relação a inimigos tão temíveis. Seu tratado / )I' li, li, 1
inferendo (J 530) exprime essa posição ao mesmo 11•11q111 ,
çada e realista da qual está ausente a visão ese:11111111,
1 110 judeu - verdadeiro "racismo religioso" - experi-
9. OS AGENTES DE SATÃ h1tlo pela Igreja militante entre os séculos XIV e XVII, numa
II. O J U DEU, MAL ABSOLUTO ••• de cerco um pouco companivel, não só exacerbou, legi-
11 t' generalizou os sentimentos hostis em relação aos
IIN tlns coletividades locais, mas ainda provocou fenômenos
lt•lçiío que, sem essa incitação ideológica, sem dúvida não
rh1111 produzido. Reencontra-se então um juízo já enuncia-
1. AS DUAS FONTES DO ANTIJUDAÍSMO li 11. C. Lea quando ele escrevia no começo de sua monu-
No momento em que Lutero confessava seu imenso 1111,I 1ti / listoiy ofthe lnquisition of Spain: "Não é exagerado dizer
do perigo_ tu~co, enfurecia-se também contra os judcw, 1111 n l1<1reja foi a principal ou mesmo a única responsável pela
em_um pnm_e,ro tempo, esperara conquistar para o E va11w•ll11 thlno de sevícias sofridas pelos judeus no decorrer da Idade
A s1multane1dade das duas denúncias não era fortuita. 1\ 111111, lh1",1 E acrescentarei esta emenda: mais ainda durante a
trário, ela esclarece uma situação histórica. Na Europa odtl11,
tal, o antijudaísmo mais coerente e mais doutrinal se m1111lh
tou durante o períod? em que a Igreja, pe1:cebendo i11i 111l111
por toda parte, sentm-se presa entre os fogos cruzado- li Nu entanto, por muito tempo a historiografia só teve
agressões convergentes. De modo que, no começo d:1 li li11I ,_ p111·a as manifestações do antijudaísmo popular. E é
Mode~n~, o tem~r aos judeus se manifestou sobretudo 1H1 pi, liuk que este existiu, principalmente nas cidades (mas
no rel1g10so. Foi a cultura no poder que parece tê-lo 1•1111 , pisód ios sangrentos no mais das vezes anteriores ao
alimentado. 1111 XVt). Os pogroms que acompanharam a peste negra na
Tal afirn~ação não visa simplificar um fenômeno co111plt , 111i111ha e na Catalunha e as violências de que os judeus
O~trora, assim como no tempo de Hitler, o antijudaís1110 11 1 111 vítimas em Paris e no resto da França com o advento
d01s componentes que muitas vezes se somaram: de u111 h11l11 ( ,111los VT (1380) r evelam, no plano local, os ressentimen-
hostilidade experimentada por uma coletividade - ou po1 11111 th• uma população - ou antes de uma fração desta - em
parte desta - em relação a uma minoria empreendedor:,, 11111 ~•lO nos israelitas. Usurários ferozes, sanguessugas dos
siderada inassimilável e capaz de ultrapassar um Iimiar 111111 , llllN envenenadores das águas bebidas pelos cristãos: assim
1
vel no plano do número ou do êxito, ou nos dois a~ 1111•~1111 ltlllll,(Íllam frequentemente os burgueses e o povo miúdo
tempo; e, do outro, o medo sentido por doutrinários que 1d111 111111 no final da Idade Média. Eles são a própria imagem
1:_if~ca~n o ju~eu com o mal absoluto e o perseguem w 111 " 11 "11111ro", do estrangeiro incompreensível e obstinado em
od10 implacável mesmo quando ele foi repelido para li>l'II d
11 11lli.gião, dos comportamentos, de um estilo de vida dife-
fronteiras. Mas afirmar que o discurso ideológico não li,i ~,•111
h' d11queles da comunidade que os recebe. Essa estranheza
a expressão teórica - uma superestrutura - dos senti11 11•1th
111•lln e tenaz apont a-os como bodes expiatórios em tem-
populares e de uma situação econômica e social seria lirnlt111 1
e~npobrecer a realidade. Do mesmo modo que o racismo hli h
1h• crise. Inversamente, muitas vezes aconteceu - p or
nsta deu ao antissemitismo alemão do começo do século 111plo na Espanha e na Alemanha no decorrer da peste
uma agressividade e uma dimensão novas, assim tamh1•111 1 Jt ,11 mas também na Boêmia no século XVI e na Polônia no
415
414
século XVII
. d - que soberanos e r b
J~l eus contra a cólera po ular 1; res tomassem a defosu ,h 11 me.: mais estreitos. Enfim, evidentes razões financeiras
t1tr~m por muito tempopuma. ati; ~nesdmo modo, os pup h11111 bom número de taxações, de anulações de créditos,
re aç,a o a eles. u e e compreens:io '" 1l~tics - estas por vezes seguidas de readmissões custosas
I or outro lado _ dr <1ue foram vítimas no decorrer da Idade Média as
·, • ' como nao observ · .
1 1 queixas : conomicas e financeiras m a~ que inve1as e ra%<i<•~ ,/ 1111iclades israelitas, verdadeiras "esponjas de dinheiro".
1 1 caso, açoes ancíjuda icas IJ O . . Ot1varam, em mais d<· Ili 1ltllc11ldades das t esourarias reais contribuíram grandc-
ord 1· · ntua1s nas ·
em re 1g 1osa não servia1 . - ' quais as acusaç<it:, ,1
'! Ve1~eza _no final do século ·x;~ sena? de pretexto? Como 111
C:h1?ggia (1378-81), era reci; A1~0s a desgastante g ucn·u ,h
n11• para a expu lsão dos judeus ela Inglaterra em 1290 e da
11\'II cm 1394. ·
Mns cm contrapartida dos fatos lembrados acima (e que
1 /

n~ss1ma pag~r os empréftimosºf;~udar os cid'.1diios d,1 S(•I• 1 ,1 o c11so de subestimar) - pogroms populares, antijudaís-
çoes, at1air dinheiro novo E 1~ çados, reanimar as tr:111~11 rlos comerciantes e artesãos por motivos sobretudo econô-
Pen ho11stas,
-· ·
Judeus essenc·· · 1•m ->82, o. Senado auto rizou ,,
ho~ - , outras verdades históricas devem ser ao mesmo
,) de M d 13 mente a 111st· J
" . as, ozc ,lnos mais tarde ' ,1 arem-se na <·11111 11po ressaltadas: a) as relações entre cristãos e judeus, antes
to?ª a riqueza mobiliária dos' /nul~u essa p ermiss;io. flol
10111po dos pogroms, não haviam sido sempre más; b) o
fugn para as casas" dos i·s 1· enez1anos corria o risco ,/1
d. d rae Itas Este. . . 1111 religioso desempenhou papel importante nessa degrada-
isso,. e recusar empréstimo a ~ s ciam acusados, :i/11111
Ili cl:ií a afir mação no máximo excessiva de J.- P. Sart re:
depositar como penhor ou. q alquer um que não pud<•~,
) 111·nm os cristãos que criaram o jude u ao provocar uma
fato
' ' a. e. xpu 1sao
- não t·o · 1io, prata ou pcdras prec10s·1 . s . /)

I 1· . . i rea men te a r d
co ?1ua Judia se manteve em Vi . pica a ~ uma import :11111
ant1c~nverso da Espanha a de ,;nled
na ongem '
. . '
za. A pnmeira sub/cv:1~·111,
t O e o cm 1449 d
111,wrupção brusca de sua assimilação";' e) no século XVI, esse
1t1r religioso tornou-se o elemento motor, a característica
11111inante do antijudaísmo ocidental. O judeu foi então uma
. por urn anônimo co1·11 . ' esencacl<·,111'
111ot1voin· · 1 erciante de d· ldN fnces do diabo.
- . 1c1a um brusco aumento d . o ies, teve 11111
sal no pe_la g uerra contra Ar·ig- c01mpostos tornado ncn•, Antes do século Xl, quase não se encontra traço no O ci-
a g uns nc • ' ao. furor p 1 dr111e de um antijudaismo popular. Em compensação, os judeus
os comcrc1anres 1·ude . opu ar ac1"º"
- conver d us convertidos ., · • . r hcneficiaram na Europa ca rolíngia' de uma situação privi-
sos - e serem os · · "º cnst1a 111\11111
P raga, no século xv, os a . . 1~st1gadores desse impo-'>-to ' I• ,,, lrl(inda: daí a multiplicação de suas comunidades, geralmente
, b , , 1 tesaos (em . •
e uma oa parte da rica bur . , particular os p cletc.:iro~) elurndas de ampla autonomia. Nas modestas condições cconô-
expulsão da importante co1fu~s1~ van ~s vezes demandara,11 it 111icas da alta Idade M édia, eles assumiram até o século XII boa
Ela era acusadil de exportar d:~~1:rael1ta ins talada na cidad, 1mrte do comércio internacional. Sua sorte invejável explica
c_~1pr~star a taxas usunírias e de l to para fora da Boêmia, tl1 1111c conversões bastante rumorosas ao judaísmo tenham então
s10es i~cendia r a cidade.• 1V1ais rnver tentado em várias O<',t •1ilo produziclas.6 Protegidos por títulos o utorgados, os israe-
tomerciantes cris tãos na econo .gera!mente, a ascensiio do~ 11111s eram homens livres, falando a mesma língua que a popu-
o ~n teve como resultado o ;11a oc1demaJ a partir do sfr11 li,ção local, usando os mesmos trajes, autorizados a se deslocar
recem-chegados ao comércio co~::ento ~ª. agressividade d,,~ 11 cavalo com armas e a prestar juramento na justiça. Estavam
na!, que tentaram ora suprim. a o trafico judeu tradin11 portanto praticamente integrados à sociedade local. A partir
ir, ora restringir a limites , ,lns cruzadas, sua situação no Ocidente se deteriorou, salvo na
416 COIII 1
Espanha, onde o agravamenco se produziu mais ta rde. M11 ln~ nas igrejas e, inversame nte, cristãos espanhóis iam ouvir os
subsistiram, por tempo mais o u menos longo aqui 011 ,ill rmões dos rabinos. O costume elas devoções em comum sub-
vestígios das condições favoráveis de que haviam se bc111·I I l,1in ninda em pleno século XV, já que em 1449, para conjurar
ciado anteriormente. Se o IV Concílio de Latrão (12 15) orcl1 11111 peste que desolava Andaluzia, os judeus de Sevilha, com o
nou aos judeus que se vestissem com trajes diferentes do rnrdo do arcebispo, organizaram uma procissão com os rolos
usados pelos cristãos, foi exatamente porque a coisa :1i111I~ 11 'lôrá que se seguiu imediatamente à do santo sacramento. A
não se tornara habitual.7 Se na França, de 1215 a 1370, d1111 ~11:rnha do séc ulo XII contava agricultores judeus e mesmo
concílios e nove decre tos reais prescreveram aos israc lit 11~ 11 olônias agrícolas israelitas. Mas a maior parte da "nação judia"
uso do círculo amarelo, foi também porque as autorid.ult vivia e continuou a viver nas cidades, dividindo-se e ntre arte-
tiveram dific uldade e rn incorporar aos costumes ess:1 SCl{ H os e ricos burg ueses. E stes haviam se tornado os financistas
gação de vestuário. A A lemanha não a aplicou se não frrn1 , 11 os reis. Elite urbana, os judeus espanhóis constituíam também
mente. Além disso, ainda que desde 1236 os judeus elo i111111 111n elite intelectual que traduziu em castelhano e deu a conhe-
rio não fossem mais considerados homens livres, mas '\1.:1\11 r nos letrados cristãos a ciência e a filosofia árabes.'º Essa
da câmara imperial", as autoridades continuavam :1 dar lrn~ , upcrioridade explica o papel importante desempenhado pelos
de le i à tradição t almúdica que deserdava os jovens isr:irl ll 1 mversos no século XV e ainda no XVI na vida cultural da
que abjuravam a religião de seus ancestrais. 8 A rupt111 ,1 111 panha." Tal era, na Idade Média, a Espanha das "três reli-
interior de uma civilização que permanecera por muito 11•111 (r,cs", um país tolerante porque não homogêneo. .Mas a ascen-
po comum operara-se, portanto, lentamente. Quando :1 1111 11 - tardia - de uma burguesia e de um artesanato cristãos,
são já era viva entre judeus e cristãos, nos séculos x 11 l' \1 11 tomada de consciência re ligiosa que acabou por criar a con-
influências recíprocas ocorreram entre os aristotclis111m 1 1 uisca, as responsabilidades missionárias que a descoberta d a
misticismos que se desenvolvenun no espaço cultur:11 d1· t 11111 111érica deu à Espanha, os progressos do I slã transforma-
uma das duas confissões.• Ainda na época da Rc11:1sc1•11~, m uma terra acolhedora cm um país fechado, intransigente,
Pico de La Mirandola freque ncou assiduamente os cruclll, nófobo.
judeus, ao passo que cristãos de alta posição, espcci:111111 111 Na outra ponta da Euro pa, também a Polônia foi por mui-
os papas, continuavam a se fa zer cuidar por médicos 1w1l111 Lcmpo, isto é, até meados elo século >..'Vil, um espaço ampla-
centes ao povo deic ida. ~ onte aberto aos judeus. Estes afluíram em consequência das
O país que, nos séculos XVI e XVI I, se tornou m:,is 111111h lvcrsas expulsões decretadas mais a oeste. País tardia me nte
rante em relaçãõ aos judeus, a Espanha, foi o que, anrcrilll 111111 tingido pelo cristianismo e pelo desenvolvimento econômico,
te, melhor os 'acolhera. No final do século xm, eles t·1.1111 11 Polônia repetiu a história do Ocidente com uma defasagem de
perto de 300 mil e viviam misturados à população. Cm1,111 rios séculos. Daí um período feliz para os judeus que tinham
israelitas convidavam-se à mesa uns dos outros. J:1111 :u,~ 1111 o instalar-se al i, no começo ela Idade M oderna, ao serem
mos banhos públicos e muitas vezes nos mesmos dias, :1cl1•-11, , rseguidos nas terras de cristandade. Desde o século xv, eles
to de certas interdições pouco respeitadas. Cristãos as,i,11,1111 riam cerca de 100 mil e mais tarde esse número aumentou.
circuncisões e judeus aos batismos. Em N ova C:istd:1 1 1•1 1 1 111 1565, o tribuno pontifica l na Polônia surpreendia-se com o
·uso chamar cantoras judias assalariadas para os c n1c rr11~ 1li llltuto insólito dos judeus polonescs:
tãos. "Infiéis" misturados ao "fiéis" participavam d:1, 1111!11

418 419
Nessas regiões, encontram-se massas de judeus que 1líl11 Fcrnand Braudel destacou justamente a evidente correlação
desprezados como em outras partes. Não vivem na s11 l1111I ll'l' os movimentos da conjuntura econômica e demográfica
são e não estão reduzidos aos ofícios vis. Possuc111 tt 11 , 1• perseguições, os m~ssa_cr~s, as ~xp_ul_sõ_es ~ ~~ co1!~ersões
ocupam-se do comércio, estudam a medicina e a astroiu11111 ~11das que são o martirolog10 da h1stor_ia Judia. O_s peque-
Possuem grandes riquezas e não são apenas contados t'lll l 1 • pastores" que, por volta de 1320, teriam extermmado 140
boas pessoas, mas por vezes as dominam. Não usam 1w11l1111 l'Omunidades israelitas no sul da França eram sobretudo
sinal distintivo, e lhes é permitido até mesmo port.:11· 1111111 111poneses expulsos do norte do país por uma sucessão de
Em suma, dispõem de todos os direitos do cidadiio.'J ncs. Os massacres dos anos 1348-9, particularmente na
t1111anha, foram consequência da peste negra. A expulsão dos
Testemunho significativo. Com efeito, os isracli11111 1111 tlcus da Espanha (1492) situou-se em nm período de longa
vivem na Polônia (muito descentralizada) da Re nasn•ll\il tcssão começada com o reinado de Fernando e Isabel e que
"século de ouro", não são confinados em g uetos. <:011111 1, ,sseguiu até 1509, talvez mesmo 1520. Do mesmo modo, as
Espanha do século x11, são os banqueiros dos reis e d:i nolt11 c,ilidas antijudias tomadas por Veneza em 1559-73 devem ser
Arrendam os impostos e as alfândegas, exploram min:w I li 11111das em um período econômico morno (1559-75) que cul-
restas, são por vezes proprietários de domínios import n1111•-, ti lnou com a guerra contra os turcos (1570-3). Mas essas apro-
de aldeias inteiras. Muitos são intendentes dos senho1'l'11 p11I 11u1ções levantam por sua vez uma pe~g~n;a: por que ~s
neses. Enfim, formam nas cidades boa parte da classe dm, 1111 deus são esses perpétuos bodes expiatonos. Somos entao
sãos e comerciantes.u O país está então coberto por u11111 1li 11, metidos novamente a um problema de mentalidade e, no pre-
cênc_ia de sin~gogas; algum_as delas são obras de arte. /\ p11111 lll'C caso, à ação de um discurso teológico sobre os espíritos.
do fmal do seculo XVI, os Judeus gozam na Polônia d1• 111111,1 No Ocidente carolíngio, na Espanha das "três religiões",
autonomia administrativa, sem precedente em outras p1111t 11 11 Polônia do "século de ouro" onde reinou a tolerância religio-
Vaad ou "Conselho dos Quatro Países" (Grande Poli)11h1 1 1 não houve verdadeiro antijudaísmo. Em compensação, foi
quena Polônia, Podólia e Volínia), agrupando represc111 11111, 1 :r acaso que este acompanhou os ímpetos de exaltação cr!stã
cada knhal (comunidade), reúne-se todos os anos por m·11Nl111111 11ue as violências contra os israelitas tiveram lugar mmtas
feira de Lublin . Todas as comunidades israelitas do pnÍN 111 1 1,cs nas épocas de Páscoa, permanecendo verdade, contudo,
tam suas decisões.14 O governo polonês favorecera 11,11 hti 11c o papado desaprovou ou refreou por muito tempo a escala-
desse conselho que facilitava o recolhimento dos i111po~111 li dos sentimentos antijudeus? Mesmo que algumas febres
bre a nação judi~ e que foi mantido até 1765. Nessa cLit:1, 11- 1111 mijndias se tenham produzido por volta do ano mil, foi a I
ção dos israeli~a's poloneses se deteriorara muito. E111 1r, IJI ,,11 zada que marcou o corte decisivo e inaugurou os, g:andes
cossacos de Chmielnitzki (de confissão ortodo:.::i) 111\ 1111 111ssacres de israelitas: na Renânia, em Rouen e sem duvida em
ram-se contra os senhores poloneses e seus intendcntcll )111h 1, nutras partes da França. "Era injusto", clamavam certos cruza-
Massacraram e pilharam tudo à sua passagem. Seguiu ~, 1111 los1 "deixar viver em sua pátria inimigos de Cristo", ao passo16
dupla invasão da Polônia pelos russos e pelos suecos. ( ) 1 1 11 11c eles próprios pegavam em armas para expulsar os _infiéis.
plo das violências antijudias dado pelos cossacos de Ch 111i1;[1111 1 Jl~se raciocínio anônimo foi retomado pelo abade Pierre de
marcou urna ruptura na história dos israelitas da Pol<>11 i11 11 t:luny no tempo da II cruzada, em 1146: "Para que_ir até o fim
data em diante a população lhes foi hostil. lo mundo xvn combater os sarracenos, quando deixamos per-
420 421
manecer entre nós outros infiéis mil vezes mais culpado•, 1111 no na prisão: 12e isso provam, por exemplo, os arquiv?s tão
relação a Cristo do que os maometanos". 17 Com a 11 c,·1111111, 111 conservados de Cuenca. Tratando-se da mesma epoca,
aparecem pela primeira vez as acusações de assassinato rit uni rl1 11licar-se-ão os processos das fei~iceiras - de que logo trata-
uma criança cristã e de profanação da hóstia, verdade iro <•111111 1110s - exclusivamente pela cobiça das casas ou dos campos
1
de_ deicídio. s Durante a peste negra certo número de p Ol-{111111 ll' podiam ter? Seria derrisório. Na v~rdade, a p~rseguição ~as
foi perpetrado na Renânia pelos flagelantes, bandos de 1111111 lliceiras ajuda a compreender a dos Judeus e_ vice-v~r~~- Nos
tentes místicos logo combatidos pela Igreja, mas que sc 1111111 ,1~casos, foram perseguidos, e a intenção era 1mposs1b1hrar os
vam por cristãos de elite. Além disso, as próprias aurorid,11h lllltes de Satã de causar maiores danos.
reli~iosas não haviam anteriormente sugerido que os j111h 11
podiam ser envenenadores? Desde 1267 os Concílios de llt'l•-1,u
e de Viena tinham proibido os cristãos de comprar vívcri•~ d11 2. PAPEL DO TEATRO RELIGIOSO, DOS PREGADORES
israelitas por temor de que estes, "que consideram os cd~t 111 , E DOS NEÓFITOS
como seus inimigos, os envenenem perfidamente".1'1 Tnrcnll\tll () teatro religioso foi, ao menos nas cidades, um dos grandes
análogas parecem ter sido decretadas no começo do século \1 l1los da catequese antijudaica. Mistérios e moralidades, sobrc-
'.1~ ~antão de Vaud e na França.20 Enfim, a longa crise da IM1t 1, 1tln nos séculos xrv e xv, dão aos espectadores múltiplas oca-
1~1ciada com o Grande Cisma, e alimentada pelas gucrra11 htt ncs de detestar os judeus ou de zombar deles. Entre os misté-
sitas, o avanço turco e finalmente a secessão protestanlc c 1111111 us os dramas de Cristo são os que põem mais frequentemente
draram nos meios eclesiásticos endurecimentos doutrithll 111 ~ausa os israelitas. Com efeito, estes têm papéis de primeiro
maior medo do perigo judeu. Daí a multiplicação dos c~t, li, l11no nas seguintes cenas: ]0 ) o debate entre Jesus criança e os
antijudaicos, os confinamentos, as expulsões, até 111cs 11 11 1 11 rnttores; 2°) a expulsão dos mercadores do Templo; 3•) a ten~a-
Espanha, a recusa de deixar os próprios conversos em pm 10~ d 0 de Jesus pelos fariseus; 4°) o conselho dos judeus que decide
responsabilidade. Os judeus haviam se tornado, por , 11, /lt morte de Cristo; 5°) a traição de Judas; 6°) a detenção de Jesus;
essenc~alme~1,te '.·eligi~sas, inimigos internos. Outra corn•ht\ 1 ) Jesus diante do grande sacerdote; 8°) os sofrimentos ~e Jesus
essencial, alias ligada a precedente: entre os séculos x 111 1, \ \ 11
uma vontade crescente de cristianizar foi acompanhad:1 111, 11111
11 prisão; 9°) o conselho dos judeus na manhã ?e sexta-fe1r~; ~Ü")
flnge]ação e a coroa de espinhos; 11°) o cairn~ho do. calvano e
denúncia continuamente mais vigorosa do "povo clcicidu" 1 1,rucificação; 12•) as tentativas dos judeus para nnpedir a ressur-
bem verdade, como escreveu]. Isaac, que a catequese dil11111 l11, ftli\·ão.13 Alternadamente são ressaltadas a cegueira, a maldacl~ e
o antijudaísmo é o "desprezo por Israel". 21 al'OVardia dos israelitas: eles se perdem nos meandros d~ ~•:s~1s-
A partir da'f, revela-se a insuficiência de uma histori1 lH1111 t lli't1 talmúdica, cumulam Jesus de golpes e de mJur~as.
que não perceberia no antijudaísmo senão uma inveja dc 1•111 ilh, )ivldcntemente, são afligidos por todas as taras físicas e morais _e
econômico e na perseguição dos israelitas apenas 11111 11111 lnvcctivados da pior maneira. São "mais cruéis que lobos", "m:1s
cômodo de apropriar-se de seus bens. Tais motivações p tH , 1 , dil11cerantes que o escorpião", "mais orgulhosos que um leao
to intervieram localmente em um momento ou em out10, 1\1, \'lllho" "mais raivosos que cachorros loucos". São "maus e
muitas vezes a Inquisição espanhola prendeu judeus ou c11111,, fr11pio;", "libertinos", "ignóbil e pervers.a progênie'.' e, para di~er
sos que não eram ricos e para os quais precisava pagar :1 11 111111 11 1udo, "diabos do inferno": assim se exprime o Mystere de la pass1on
422 423
. Gréban ,,antes de 1452)• Apos
de Arnoul 1 , ter VISt0 .
. tais CCIIIIII 1 do pela Virgem por ocasião de seus funerais e as mãos corta-
ouvido tais . acusações ' os · t .
assis entes eram evidentemente l c lllil llH que se ressoldam.' 6 Quanto aos mistérios consagrados ao
dos, ªº. saJr d~ espetáculo, a maltratar os judeus de sua cid:1d1•, , nclre Teófilo, mostram-no, uma vez destituído de suas fun-
estes amda nao houvessem sido expulsos Em 13'8 11 c'fos, concluindo um pacto com o diabo por intermédio de um
des de Frib . . . . > ' as auto,• t li
. d" urgo proibiram a representação de certas cenas 11 1111 udeu (ou de vários, algumas vezes). Mas o arrependimento o
dJU rns. Em Frankfurt' em 1469, protegeram casas isr:wllt11 nlva. Levada por sua vez ao teatro, a Lenda de são Silvestre põe
urante a representação de um mistério. z; mcena o santo discutindo com doze "fariseus" que abatem um
N? teatro sacro, os dramas de Cristo (dos quais as oh1·11N th touro só com a força do Shem Hamephoras. O santo o ressus-
um _H!eronymus Bosch oferecem transcrição pictórica) nílo ~1111 lrn graças a um sinal da cruz. Essa "disputa" é um caso parti-
os
desta u111cos a atacar
. os 1·udeus. A utos d. a c.Iestrwçao . - de Jern.r,1/r1 ' 1111lar de um gênero frequentemente levado ao teatro entre os
'c~m- a vmgança do Senhor punindo o povo deicida. , /111, 1éonlos xm e XVII: o das controvérsias entre judeus e cristãos.
do Anttcr1sto mostram os judeus esperando o falso ,.,,. ' .. ·. ) 1or vezes muito teóricas e abstratas, essas "discussões" que não

do /d:
rest b 1 , d' '
e;~ra, acre itam eles, o a~tigo esplendor de Isrncl. . /111,
o mal colocam todos os Judeus no inferno. A lcg'Ol'l111 ,/
1ncs~1.1.~ qw
IC desenrolavam diante de nenhum árbitro, contrariamente aos
outros debates da época, eram quase sempre ocasião de violen-
morte fazem o mesmo. Os d r,1mas . h agmgra
. 'f"icos tambc.· ;111 t'llll ' 11111 invectivas contra os rabinos e seus discípulos.
~ede~ a~p~o espaço ao antijudaísmo. No JV!istério da / l.l'.111111 1/ As comédias só ridicularizaram os judeus tardiamente: a
t.e... J lfana (nnpresso em Paris por volta de 1518) . . · 1 rn11tir do século XV e sobretudo do XVL Então se multiplicam
ousam • - . , quat, o Jlll flll DH caricaturas do usurário israelita. O antijudaísmo passou
toc~r O ca_ixao da Virgem e são subitamente atinHltlt,
~e_a 1 cegueira. Dois_deles aceitam o batismo e ficam cur:1dc >•1, 11 ontão do teatro religioso ao teatro profano. O odioso e ranco-
ois outros se obstmam e matam um ao outro Essa .. roso Shylock só foi possível - e só se tornou verossímil para os
remo t A , ·e . , cc11n, qur OHpectadores - em razão de todas as injúrias que os mistérios
d' I~i aos pocruos e fora popularizada pela Lege11d11 ,/111,,,
'.verbs1 icou-s_e em muitas variantes, entre outras esta: o COI I• 111 l111viam lançado anteriormente sobre o povo maldito.
f une, reda Quando Chaucer redigiu, por volta de 1386, o "Conto da
, V irgem, p1ece . d"d -
t o por saoJoão levando a pal11111',h
P?_ra1so, e pertur?ado pel~ atentado do sacerdote judeu Jl•plt11 11rioresa", quase cem anos haviam transcorrido desde a expul-
mas, I dor.. O :ll''\'nll)P N1lo dos judeus da Inglaterra, e, quando Shakespeare escreveu e
. que l tenta virar o caixão da Mãe do Sava fc;,, representar O mercador de Veneza, três séculos haviam se
J.M1gue corta com um brrolpe de espa d a suas rnaos - sacnlc,,·n~ , , 1111
permanecem pre pnssado desde 1290. Os mistérios foram no mais das vezes
d- d . s~s ao ca1xao. Jucleu maneta implor:i:-, O· 'pt 1
· - O ·
representados na França diante de assistentes que jamais
d ao ª Virgem e~ graça~ à intercessão de são Pedro, s uas 111111,
tinham visto israelitas. Embora estes houvessem praticamente
essecadasl5 Q
se tornam vivas novamente e voltan ' l aUllll. .•M'ltll
tacos. utras versões da h · , · - · 11th desaparecido da maior parte dos Países Baixos desde a peste
, . . mesma istona poem em ca11~11 negra, um cântico flamengo do século XV continua a chamar às
um UlllCO JU~eu: ~1as vários. Esses relatos popularizadm 1111, 11t·mas contra eles: "No tempo em que Deus terminara sua tare-
teatro ~os M1stenos são reencontrados na iconografia. t\~~1111 fo, foi traído por Judas e vendido aos judeus, esses falsos irmãos
um retabulo de origem flamenga do final do século X\ ' c111 d, 1... j. Que Deus os tome a todos execráveis e os disperse pelo
~ome~o do X~I que orna o altar-mor da capela de Ker~lcvo1 1111 mundo inteiro [...]. Com justo motivo, quer~mos castigá-los;
rgue-Gabenc (perto de Quimper) representa o milag-rt ' 111111 Morão esmagados; contra os judeus, eu grito: 'As armas!"'.27
424
425
wcstem contra os israelitas.i1 Quarenta e três anos mais tarde,
Um século mais tarde, Ronsard lamenta que Tito 11·1o 1, " época do Grande Cisma, pogroms em cad~ia ensang~entam
tenha aniquilado a todos: · l•:spanha. Desde 1378, o arcediago de Sevilh~, i.Vlartmez _d e
l'ijn, antigo confessor da rainha-mãe, esbr~weia contra os 1n-
Níio 11mo 11ndt1 osjudeus, eles p11sem11111n cr-uz
r11s a despeito das ordens do rei. . .
Esse ~risto, esse lvl~ssins que nossos pecados npngn, Novo profeta, ele declara : "(...] Não me posso 1mped1r de
[...] F,lho de Vespns/f/110, grande Tito, devins, regar e de dizer dos judeus o que deles di:se r~eu Sen~10~ Jesus
Destruindo s11n cidnde, destruir S1lfl rnçn risto nos Evangelhos". Ele afirma tambem: Um cnstao que
Se111 lhes dnr tempo, nem momento nem espnço 11,1llratasse ou matasse um judeu não causaria nenhum despra-
De prowrnr e111 outm pnrte outros diversos lugnrcs. 1" l'r ao rei ou à rainha, muito pelo contrário".H
Em 1391, aproveitando-se da morte de João 1 de Castela e
De~se mod?, uma cultura "cristã" tem medo de um i11i11ii11t • tio 11rcebispo de Sevilha, ele aumenta nessa cidade s~as v_iolên-
qu~ es~a no mais das vezes ausente, mas assim mesmo vivo, 1'111 hl\ verbais. Em 6 de junho, a multidão invade o batrro iudeu:
mais d1st~nte que :steja,_ comi~ua ~ :meaçar. É odiado porq 111 1 ms habitantes podem escolher a conversão ou a morte. De
temem. ~ como nao sena temido, Jª que matou um Deus? 1
~L•vilha, o incêndio ganha a Espanha inteira. Em Valência, a
. O discurso teológico alimentou portanto poderosa e ct 111 111ultidão ataca a nljmJJfl aos gritos de: "Martinez cheg_a! ~os
c1emernent~ o antijudaísmo. G eneralizou o ódio aos jwlt 11 juilcus, a morte ou a 11gua benta". Em Saragoça, o pnnc1pa~
que p~r muito tempo não fora_senão pontual e local. U 111 pupt 1 •~ilador é o sobrinho do arcediago. U ,m: teste,'.nunha cnst.a
es~encial nesse processo de cnação de uma mentalidade 11m 11 uh~crva: as pessoas se lançavam sobre as 11ljm1111s como se pai -
foi desempenhado por pregadores itinerantes - pon .111111 11~~cm XV II para uma guerra santa comandada pelo re_i''. ~º?º
sobretudo os monges i_nendica?tes - e mais geralmente pt•ln n Sicília terra aragonesa, é por sua vez o palco de v10lencrns
membr?s cio clero mais conscientes de suas responsahi I id11dt 1111ijudi;s.34 Ao contrário, o dominicano francês V icente
pastorais..Desde o . século Xlll, mas sobretudo a p:1r111 111 h •rrer, que percorre a Espanha (e parte da Europa oci?enta~)
G rande C isma, o dmamismo "cristão" fo i acompanh:1d<1 pt h 1 começo do século xv, acompanhado de flagelantes, e h_ost1I
medo deste eterno fantasma: Israel. 111
" , ualquer violência física contra os jud~u~ e ª. ~oda batismo
Informações dispersas no tempo e no espaço, mas c 111u , 11 1
!orçado. Mas, convencido de que o Anticristo Jª na_sceu ~ de
dant_es, esclarecem a ação direta ou indireta dos homt·11~ 1h 111c a conversão dos israelitas deve preceder o Jt~1z~ f111al,
l g1:eia na~ "comoções" antijudias. Por exemplo, na Esp:111 1, 11 111 1
,,rncura apressá-la. Entrando em sinagogas, el: desC)a~ta ver os
quinta-feira sant:í'd~ 1331, em G erona, cerca de trint:1 dr111111 ,~~istentes rejeitarem imediatamente a Tora e ace1ta~·cm a
e ~scol_a res concluz1dos por cônegos irrompem na 11/j11111,1 11 1
11111.. Apoiado pelas autorid:des ~ivis, obr'.ga as c~mum.~la~;i~
b:urro Judeu) e tentam atear-lhe fogo.30 Em Cervera, <;mlt 11111 111<1ias a escutar seus sermoes, sob pena de m1_l flm tns •
P?gro~ eclo?ira p~r ocasião da peste negra em 1348, :1 rn 11111 l'cm1endo que os recém-convertidos fossem desviados ~ova-
nidade 1srael1ta pedira às autoridades, dois anos antes, o :d,11111 11u:nte da verdadeira fé por seus antigos correligionários, V1cen-
mento de um_francis~ano que amotinava a população prn 1111 11 lL' Férrer está na origem, em 1412, dos primeiros guetos espa-
de se~s sermoes ant1Judeus.n Em junho de 1348, Pedro II il nhóis e de toda uma legislação antijudia. Para os israelitas
Aragao ordena aos vigários episcopais e ao capítulo catl·d, 11 1,h r~panhóis da época, ele é um " flagelo". Quando o veem chegar
Barcelona que acalmem (totnliter co11q11iescn11t) os pregaclo1 ,.., 1111
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a uma cidade, muitas vezes fogem às pressas. E não sem n111111 Na verdade, as autoridades protetoras dos judeus condu-
pois os cristãos, simplificando e deformando a mensagc111 1h1 lt11n um combate de retaguarda. Pois a ofensiva dos religiosos
zeloso dominicano, aí veem um convite para passar à :içiio. 1r111 desenrolaria doravante em dois fronts: o das multidões, pela
setembro de 1412, o rei Fernando é informado de que dup11I rcgação; o dos meios mais instruídos, por intermédio de obras
da passagem de "mestre Vicente" por Alcaniz, os crist 11, 1 outrinais suscetíveis além disso de fornecer argumentos aos
tomados de um "falso zelo", proíbem os judeus até da co111p11 ,rcgadore~. Na Espanha, duas obras com tít~los signifi~ati~os_
dos produtos de primeira necessidade e ameaçam sua seg11 1•1111 ontribuíram para reforçar o ódio aos israelitas: o _P~tg1~ f 1de1
ça nas ruas. 3º Três anos mais tarde, o rei escreve às aut0rid11d1 1( ) punhal da fé"), do dominicano Raymond Martmt (fon do

de Saragoça: éculo XIII) e o Fortalicimn fidei ("A fortaleza da fé"), do francis-


nno Alphonso de Spina (por volta de 1460). O primeiro desses
Soubemos que em razão das pregações de mestre Vic111111 lvros parece ter sido a principal fonte da teori~, tão a~pla-
e em pa~ticular P?rque ele declara excomungados aq1111h ncnte difundida em seguida, segundo a qual os Judeus sao os
que contmuam a frequentar os judeus, alguns inconsid111 ,1 1omens devotados de Satã.39 O segundo tratado, de que se
damente tentam e cometem diversas más ações e t r:111n1111 conhecem ao menos oito reedições em 58 anos (1471-1529), das
complôs contra os israelitas e a alj111na dessa cidade. Nó~ 111 quais três em Lyon, pode ser comparado em seu donúnio. ao
pedin~os par~ tomar toda medida para que os ditos juclt111 lt,lleus 11zaieficarurn. De saída, seu autor declara que deseiou
e a af;ama nao sofram dano nem violência, especi.111111•1111 fornecer a seus leitores, sob um formato cômodo, "armas con-
durante a semana santa.37 trll os inimigos de Cristo". Segue-se um catálogo numerado e
cronológico dos males dos judeus: "Seu quinto crime famoso
Esse texto resplandece quando se sabe que Fernando 111 teve lugar em Pforzhe1m · em 1267 [...]"; "seu s~t~mo_
' · [...]", e1_n
um admira dor de Vicente Férrer. Viena em 1420. Assassinatos rituais e atos de feitiçaria const1-
Roteiro característico é o da rebelião de Lisboa ern :liH'II 1h 1ucm o essencial dessa "negra enumeração". Do Talmud,_ é dito
1506 (na época da Páscoa): no decorrer de uma cerimünl11 11 11ue contém "múltipla~ frivoli?~des, abomina~ões e heresias ~ue
i~r~ja de são Do~i'.1gos, o povo de súbito grita "111il:1g11•'1 1 Vllo não só contra a lei evangelica, mas tambem contra a essen-
v1sao de um cruc1f1xo que se põe a resplandecer. J\lla~ 11111 tllll da divindade, contra a Escritura e contra a própria natureza:
homem na assistência emite uma dúvida: tratar-se-ia apc11111, 1h rnl'.ões pelas quais os judeus deveriam ser punidos". Finaln~e_nte,
um reflexo. Imediatamente chamado de "cristão-novo", J 1 , 111 11 perspectiva escatológica não está ausent_ e _do Forta!tcmm:
denado à morte e "'queimado. Depois dois dominicanos h1 1111 1111nndo surgir o Anticristo, os judeus se_reun~rao :,m tor~o dele
<lindo crucifixos, 'saem da igreja e excitam a multidão ao~ g111 11 11 0
adorarão como seu deus. Portanto, e preciso nao hesitar em
de "Heresia.
. l H eresrn.
. ,,,. D urante tres
~ . a rebelião se cl , 1111
dias, i:onvertê-los à força e, sobretudo, em batizar seus filhos.'°
1 11
cadeia na capital, provocando cerca de duas mil mortes 11111 Também na Itália, o país do Ocidente que assim mesmo
dos raros pogroms do século XVI. O rei estava então no 1\ ll-111111• permanecerá menos hostil aos judeus na época da Renascença,
Voltando a Lisboa, pune a cidade e ordena condenar à 11u11·11 11 IIN monges mendicantes esforçam-se com sucesso crescente em
dois religiosos fomentadores dos distúrbios. Mas cl1:~ 11111 l111por ao papado e às autoridades civis seu prograt~a de lu~a
foram executados, tendo sem dúvida fugido. Trinta e sci11 111111 contra os israelitas: expulsá-los, se possível; na falta disso, obn-
depois, são reencontrados vivos. 38 ~,1-los ao uso de um sinal distintivo e separá-los ao máximo dos

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cr!st~os. Os franci~canos fazem, além disso, campanha para 11 0111 Brescia, em Pavia, em Nlântua, em Florença, algumas provo-
cnaça~ d~ montepios que fariam concorrência aos judeus cu1 t't1das pelos sermões do próprio Bernardino de Feltre.
~eu pr~pno terre1~0, er~1pr~stando contra penhor sem juros. S1111 E le não é afinal senão o retrato exemplar do religioso zelo-
mcansavel pregaçao da ongem na Itália a uns trinta montepio~ 10 mas cego pelos perigos que se acumulam então contra a
entre 1462 (o de Perúsia) e 1496 (os de Treviso, Údine, Pisa 1 c11istandade. Seu mestre fora Bernardino de Siena, de tempera-
Florença):' Os arautos do antijudaísmo na península cham.1 111 mento muito mais moderado e iniciador do culto ao Sagrado
-~e então João de Capistrano e Bernardino de Feltre, dois fr:ll l ( :oração. Mas ele também detestava os judeus por duas razões:
c1~canos. Oyrimeiro (1386-1456) profetiza a chegada do Ani l 10us usurários, dizia ele, "extorquem dos cristãos seus bens
cnsto e o fim do mundo. Sempre em atividade, na Itáli,1 e 1111 torrestres"; seus médicos "procuram retirar-lhes a vida e a saú-
Eur~pa central, ele luta alternadamente contrn os frnticelli, n• de". Está então na lógica das coisas que um monge, chegando
huss,tas, os turcos e os j_udeus. Esse inquisidor nato, perseguido 110 poder na Itália do século XV, ali tome medidas contra os
pelos ~razos ap~c~lípt1cos, é o representante típico de 1111111 l•rnelitas: o que faz Savonarola em uma cidade onde até então
mentalidade obs1d1onal. Na Silésia, em 1453-4, põe em Ct'llil ~h:s haviam sido protegidos. Acusa-os de terem acumulado em
pr~cess~s de assassinatos rituais que terminam em autos dl' h ll'Ssenta anos um lucro de 50 milhões de florins(!) e faz decidir
11
11111 expulsão. Eles voltarão na bagagem dos Médici:
de ts~a~lr-ta_s. Ele c?nsegue até, por algum tempo, fazer revog,11
os pnvileg1os dos Judeus da Polônia. Também no império, a ação antijudaica dos homens de
l11reja mais compenetrados de sua missão e cios humanistas mais
Bernardino de Feltre entra na história judia em 1475. JJ1 1
lll'cocupados em regenerar a Igreja aparece com clareza. O vee-
gai~do a quaresma em Trento, cidade até então acolhedora p 11 1,1
mente franciscano Geiler, S. Brant, B. Rhenanus, C. Celtes,
?s israelitas, "ladra" - a expressão é dele - contra os usur:íd11
Fr11smo43 são unanimemente hostis aos judeus: povo usurário,
Jt~d~u: e anuncia a seus ouvintes que um acontecimento exl r:int
v11dio, odioso, que "perturba a sociedade do gênero humano" (C.
d1nano sobrevirá antes da Páscoa. Previne-os também corltr'll 11
Ccltes). Estimulados pelo convertido Pfefferkorn, os dominica-
cr!mes rituais que os judeus têm costume de perpetrar crnll t 1
nos de Colônia (em 1510) propõem queimar todos os livros he-
crrnnças à aproximação da Paixão. Ora, na terça-feira da St: 11111111
hl'cus. O humanista Reuchin, ao contrário, defende a literatura
Santa, um menino de 28 meses, Simon, desaparece e dcpol~ 1
h1ibraica e sugere destruir só as obras injuriosas ao Evangelho.
encontrado afogado. Todos os judeus da cidade são clct i1h1
Nom por isso ele é favorável aos judeus: "Todos os dias eles ultra-
Nove deles, submetidos à tortura, confessam-se culpados 1, ~1111 111111, maculam e blasfemam Deus, na pessoa de seu Filho, o ver-
executados. Os outros são expulsos. Por mais que Sexto 1\ 11, 1ludeiro Messias Jesus Cristo. Chamam-no de pecador, de feiti-
c~arasse em uma enc:íclica que faltaram provas à acusação e pi 111 10l ro, de enforcado. Chamam de bari11; de fúria, a santa Virgem
brsse_ venerar o pequeno morto, a corrente popular pm 111 1111 Mnria. Chamam ele heréticos os apóstolos e os discípulos. E a
movunento e enquadrada pelos monges mendicantes é dc11111~111 IIIÍS, cristãos, consideram-nos como estúpidos pagãos''.H
damente forte. Toda a Itália da região de Pádua se w 1111111 É nesse contexto que intervém Lutero. No começo de sua
Ser!nões ~ imagens espalham a história de Simon de Tren1 11, 1111, 1111·reira de Reformador, acalenta a esperança de convertê-los.
sera b~at1f1cado em _1582. Em Veneza, em Ferrara, em l{q{/lh t) vratado Jesus Cristo nascen judeu, que publica em 1523, está
em Modena, em Pavia as autoridades precisam impor silf: 11d 11 1111 rupleto de consideração e de amabilidades em relação a eles:s
pregadores. Rebeliões antijudias eclodem, nos anos st:g idiih l•oi o papismo, com suas idolatrias e seus escândalos, que os
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afastou da verdadeira fé. A Igreja, ao confiná-los na us11 m, 1111 judeus"Y "Eis mil e quinhentos anos que estão exilados e
acusá-los de "utilizar o sangue cristão para eliminar seu 1111111 rscguidos; entretanto, recusam-se a faze r penitência." Nação
odor" e de "não sei quais outras baboseiras", impediu-m 1h rrnnte, passando de um cativeiro a outro, eles despertam a
viver e de trabalhar conosco. "Se queremos ajudá-los, é a l1•1111, 1111bria admiração de Lute ro, que só explica essa maldição por
amor cristão que devemos aplicar-lhes, e n ão a lei papista." A111 111 justo castigo divino: "Observai tudo o q ue os judeus sofre-
logo Lutero mudou de lado. Os judeus não se convcrt 111111 m desde cerca de mil e q uinhentos a nos, e bem pior lhes
Melho r, ficava-se sabendo que reformados da Boêmia pn•I• 11 ontecerá no inferno [...]. É preciso que eles nos digam por que
diam festejar o sabá e fazer-se circuncidar. Enfim, justific11\ 1t ,1são um povo rejeitado por Deus, sem rei, sem profetas, sem
pela fé e judaísmo são alérgicos um ao outro. Em 1543, !I 1h 111plo; não pode m dar outras razões para isso senão seus peca-
Martinho publicou um panfleto de umas duzentas p:í1<l111 "~ [...)". "A cólera de D eus jamais se manifestou com mais
Contr11 osj 11de11s e su11s 111entir11s, imediatamente seguido de e11111, Al(Or do que sobre esse povo."
escrito ainda mais violento, Shem Hamephoms. Esses doi~ 1n1,, Já que os judeus detestam o verdadeiro Deus, são "filhos do
obscenos são verdadeiramente histéricos. lnho" e autores de toda espécie de "feitiçarias". Através deles,
111cro reencontra seu grande inimigo: Satã, inspirador do papa
Cristo [escreve o Reformador] não tem inimigos 111:11~ 1, l(Cneral dos turcos. Eis-nos portanto mais do que nunca no
nenosos, mais encarniçados, m ais amargos que os j11d111 m1ção dessa mentalidade obsidional que foi tão difundida nos
[Aque le] que se deixa roubar, pilhar, macular e m a ldiz1•1 Iº'' tilos da Igreja no começo da Idade M oderna. A cidade cristã é
eles só tem mesmo que [...] rastejar no seu traseiro, 11d11111 ,nltada por Lúcifer de todos os lados. As zombarias antijudias
esse santuário [e] glorificar-se em seguida de ter sido 1111 Lutero, a exemplo das cruzadas armadas contra os turcos, não
sericordioso [...): do que será recompensado po r Cri~111 11, 111cm grande coisa contra as forças do mal: "Ó Senhor! sou
dia do Juízo Final com o fogo eterno do inferno. I0111111il, 111nsiadamente pequeno para zombar de semelhantes diabos.
Judas enforcou-se,] os jude us talvez tenham envi:1d11 ~111 11 hem gostaria ele fazê-lo, mas eles são bem mais fortes do que
servidores, com pratos de prata e jarros de ouro, p:11.1 111. l ll11 zombaria, e têm um deus que se to rnou mestre na arte da
lher sua urina com os outros tesouros, e em seguida 111111 mbaria, chama-se o diabo e o mau espírito [...]".4ij
ram e beberam essa merda, e desse modo adquirir:111.111ll11 Mas curiosamente Lutero não preconiza contra os judeus a
tão penetrantes que descobrem nas E scrituras glm 11~ 'Ili ll'~ma arma que contra os t urcos: a oração. Sem dúvida porque
ali não encontraram nem Mateus nem o próprio k1 111~ 1 1 1rnta, como as feiticeiras e os papistas, de inimigos situados no
Quando Deus e os anjos ouvem peidar um judeu, q11111tt lcrior da cristandade. Contra eles, a maneira forte se impõe:
gargalhadas' e quantas cabriolas!' 6
Ser ia preciso, para fazer desaparecer essa doutrina de blas-
Quais são as razões de tantos sarcasmos? Lutero npl 111 fêmia, atear fogo em todas as suas sinagogas e, se delas r es-
seguramente a inveja dos artesãos e dos burgueses da J\ h 111 tnsse alguma coisa após o incêndio, recobr i-la de areia e de
nha em relação aos israelitas, usurários, parasitas, c~t 111111 huna a fim de que não se pudesse mais ver a menor telha e a
ros, "que nada deveriam possuir [...), mas se torna r:111 1 1111 menor pedra de seus templos [...]. Que se proí bam os judeus
patrões em nosso próprio país". Mas seus rancores siio \t1h111, ent re nós e em nosso solo, sob pena de morte, de louvar a
do religiosos: "Nenhum povo é tão duro de convertl:1 1111111• Deus, de o rar, de ensinar, de cantar.'9

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_ Lutero forneceu aos ~1azistas argumentos e prog r:1 11 111 ~ 11 1110, provocará a abjuração em bloco de todos os judeus,
açao.. 1\tlas durante sua vida o tratado Contra os j11de11.1• ,, 111 nlin ao converso Josué de Lorca a alta missão de defender o
mentnm e o Shem Hrnmphoms (que Hitler recolocou cm 1'11 111 1~1ianismo contra catorze rabinos. Um dos batizados de
lação com milhões de exemplares) só tiveram respcctiv:11111,111 11 tosa, o jurista Pedro ele la Caballeria, re?i~irá em 1450 um
d~ia: e ~rês ediç~es. Os reformadores suíços desaprova r: 111 1 , 11 n111do de título significativo, Zelus Chnst1 contra Judaeos,
v10lenc1a. Nos seculos XVII e XVIII, foi nas Províncias U11 ld11 ll'f/cc110s et inftdeles. Dezoito anos antes dessa publicação, um
na Inglaterra, países protestantes, que comunidades is1·,wlll , 11 ro renegado, Pablo de Santa Maria, compusera contra sua
puderam reencontrar, no interior do espaço cristão, 11111 i•~I 1 Ili lga religião uma obra muito violenta, o Scrutinium scriptum-
tuto ~~ toler~ncia. A atitude de Lutero nem por isso di.:i \li il, /11, Outrora primeiro rabino de Burgos, torn_ando-se e1~1
p_erm1tir ª':alisar com uma lente de aumento o e~tado di• 1•-111 " uida bispo dessa cidade, dom Pablo mostra os Judeus f~1·t1-
nto__ de ~mtos h_omens de Igreja no século XVI. E então q111 1 I ,1110s em suas crenças por seus sucessos na Espanha: dai sua
a nt1Jud_a1smo se mstala no trono pontifica I com Pau lo I v ( 1H 1,usa em acreditar no Niessias. Longe de lamentar o papel
-9) e Pro V (1566-72). O primeiro, quando era cardeal, s11Ki'I 11 , l'~ompenhado por seus ancestrais na condenação à morte de
a Paulo m a criação do Santo Ofício (1542); o segundo, 11111, 11-us eles continuam a blasfemar: crime que se acrescenta a
de ser papa, fora um grande inquisidor. A seus pont ifit•i11h, l'IIS l;omicídios, adultérios, roubos e mentiras cotidianas. Dom
remontam o encerramento dos judeus do Estado pont ifil'nl 111, 11thlo se regozija com os massacres de 1391, _que vingaram.º
guetos de Ro~,a e de Ancona e a redução da colônia jud l11 111 IIHl(Ue de Cristo e permitiram a inúmeros Judeus descobnr
margens do Tibre ao estado miserável que foi o seu até o ,11, 1 11 1, 11s erros e a eles renunciar.BN o final do século, os conversos
lo XIX. Agentes por excelência do papado, também os jcs 11 /t11• . ft11 os primeiros a exigir o estabelecimento da Inquisição na
destacam na Europa da época por sua hostilidade cm rt•ht\ h 1~p:1nha. Ameaçados pelas interdições que os estatutos de
aos judeus. Em Praga, em 1561, um deles, Jindrich J3lyssrn, 111 . rurcza de sangue - logo se tratará disso-:-- começa~,, ~ fazer
decorrer de sermões veementes, pede sua expulsão da cidnd, lll'~nr sobre os cristãos-n~vos, estes des~am a denunc1~ e o
O mais célebre pregador polonês do final do século x \' 1 1 1 , 1Ntigo dos falsos convertidos. Seu zelo e portan~o ?~plicado
jesuíta Pedro Scarza, que propaga a biografia miraculosu ,h •1111i por um temor preciso. Ao longo de toda ª. h1stor_rn ~uro_;-
pequeno Simon de Trento e aparece como acusador p1íhlit•n 1 111 1111111, a ação dos neófitos foi nefasta para as com~111dades Judias. E
um processo de profanação de hóstia.5' "IMrnelitas convertidos que os duques de Sav01a, em 1417 e em
, . O aspec~o teológico do antijudaísmo na época da Rcn:ist'PII\ 1 H66 confiam a tarefa de procurar e destruir em seus estados
e amda sublmhado pelo papel que desempenham ent:io 1•,•1111 m li~ros hebreus.H Renegado também o alemão Pfefferkorn,
recé~~co~wertidos. A~ontece-lhes justificar sua pass.1gc111 p,11 1 11111:, em 1516, reclama a interdição da _usu~·a, a obrigação_ para
o cnstrnnismo por meio de acusações lançadas contra sua 111111 11~ judeus de assistir aos sermões nas 1greJ3s e a s~press:o do
ga fe e contra aqueles que a ela permanecem fiéis. Jo:111 1111' 1nlmud, provocando o célebre debate com Reuchlm. Apostata
escreve-se a Henrique de Castela que judeus de Burgos /11 111111 ,tnda o pregador italiano Paolo Mediei, originário de Livorn_?:
º~'.sa~, retorna~, a suas ~asas da aijn.ma por medo de que.: <'1' 1 IH 11111 1697, ele publica uma brochura onde reaparece a acusa?ª.º
c11staos-novos os persigam e lhes façam muito mal". Os 11 11 1111 "assassinato ritual". Durante quarenta anos, percorre a Italra
mos fatos se repetem em Perpignan em 1394.ll Em 14 U, 1111111 11 hl'lldando contra o judaísmo.55
XIII, organizando o grandioso "debate" de Tortosa que, :l<'1i•tlt

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e a entregá-la a ele. Ela comunga em Saint-i\tlerry, recolhe as
3. AS ACUSAÇÕES DE PROFANAÇÕES E DE
santas espécies e as leva a Jonathas. Este golpeia e transpassa a
ASSASSINATOS RITUAIS
hóstia, que se põe a sangrar. Sua família se converte, mas,
Dois motivos de queixa principais alimentaram o ant ij11 quanto a ele, permanece obstinado. Preso, é executado. Na casa
daísmo de outrora: a acusação de usura, vinda do povo miúdo t do milagre, logo se ergue uma capela e religiosos se instalam ao
dos meios comerciantes, e a de deicídio, inventada e incansaV\'I Indo dela, desenvolvendo o culto do santo sacramento. Oito
mente repetida pelos meios de Igreja, que admitiram co11111 nnos mais tarde, eclodem sangrentos incidentes na Francônia.
evidência a responsabilidade coletiva do povo que crucifirn1 11 A propósito de um caso de hóstia profanada, um habitante de
Jesus. Já nitidamente formulada por Tertuliano, Orígencs 1• Rõttingen amotina a população. Todos os judeus da cidade são
pelos Doutores do século IV/<" essa denúncia teológic,1 arnpl l massacrados. O bando dos matadores vagueia em seguida de
ficou-se continuamente desde as cruzadas até o século XVII cidade em cidade na Baviera e na Francônia, executando todos
(inclusive), invadindo o teatro, a iconografia, os sermões e i1111 os judeus que não se convertem. Nunca antes os israelitas de
meros catecismos. Forneceu ao antijudaísmo econômico, c11J11• toda uma região tinham sido considerados responsáveis pelo
manifestações eram frequentemente locais e espontâneas, 1111hl 11(:)rime" imputado a um só. Foi o primeiro "genocídio" de

justificação teórica, ainda que fosse só pela ênfase nos tri111,1 judeus na Europa cristã.58 Assassinatos coletivos de judeus, con-
denários da traição. Foi coerente, sistemática, doutrinal e lt1, Nccutivos a supostas profanações de hóstias, eclodiram ainda
aparecerem como lógicas as perseguições sucessivas de que 11- llll\ Deggendorf, na Baviera, em 1337-8, em Segóvia em 1417,
judeus eram vítimas no tempo e no espaço. Povo maldit o lllTI Berlim em 1510. Nessa última cidade, a acusação levou à
e que desejara sua maldição no momento da condenaçfo dt execução de 38 israelitas e foi seguida da expulsão dos judeus de
Jesus - , estava destinado ao castigo. Obstinado ·em seu Jll'l'II llrnndemburgo.
do, continuava a acrescentar a seu crime inicial o do ca l'llll'I Nessas explosões de violência, o papel da Igreja é por vezes
empedern ido. Merecia portanto as punições em cadeia q111 difícil de precisar. Em compensação, permanece certo que a
sofria e que só terminariam no fim dos tempos, e especi.111111111 11cusação de profanação de hóstia acompanhou cada vez mais o
te essas expulsões contínuas de um lugar a outro que dl'I11111 ,lcsenvolvimento do culto do santo sacramento, como já fora o
origem à lenda do "judeu errante". l'IISO em Paris em 1290. Em Bruxelas, em outubro de 1369,
, Nação deicida, os judeus continuam a querer matar .k1,tl~ ,lcscobriu-se um roubo de hóstias em uma capela.59 Acusaram-
E por isso que tran~passam as hóstias e espal ham no d11\t1 11 ~c os judeus de tê-las depois lacerado na sexta-feira da Semana
santo líquido do cá)ice. Surgida na época da II cruzada, a \ 'I 111 Snnta do ano seguinte. Mas elas teriam sangrado e o delito teria
vieção de que os "matadores de Deus" hostilizam as cspt•1•li , Ido descoberto. Daí, condenações à morte, procissões expia-
consagradas resultou pela primeira vez em um episódio 1,1111 11'irias, a expulsão dos judeus, um novo brilho dado então na
grento em Belitz, perto de Berlim, em 1243: vários j11de11~ 1 11ldade à celebração do Corpus Christi, a criação de um oratório
judias foram queimados porque haviam sido acusados d«• 11 1 no lugar da sinagoga em que as hóstias haviam sido apunha-
cometido esse delito.57 Em 1290, ocorre em Paris o mibgn• d11 ludas, a construção, para conservar estas hóstias, de uma cape-
Promissórias, excelente exemplo de um relato que vai to rn111 ~• h1 votiva a Santa Gudula e uma bula - tardia (1436) - de
l•,11gênio IV atestando ao mesmo tempo o crime e sua descober-
nm estereótipo: uma pobre mulher sem dinheiro deixa-s<' ctm
vencer pelo emprestador judeuJonathas a conservar uma ho~ll11 "" C omo a peste devastasse Bruxelas em 1530, os habitantes
437
A .1 t:
invocaram
p o "santo sacramento do n1,·lagre"
, e a ept·dem,a
, · l'l'~ pol.o saber teológico contra todos os ataques de que a Igreja de
1
sou. e o que se agradeceu _ao céu por meio de uma procb~ilfl tintão se acreditava objeto. Não tendo conseguido perpetrar seu
que dora;ante se desenrola na em julho e seria mantida dur:1 11 11 delito no dia de Corpus Christi - observar-se-á mais uma vez
qu~tr~ se~ulo_s. Em todos os Países Baixos, do século X\' I 111 1 11 cio entre essa celebração e o sacrilégio - Langlois, já no dia
x_rx, v1tra1s, pmturas, gravuras e tapeçarias ilustraram a hi~lfl ~cguinte, arranca a hóstia e o cálice das mãos de um padre que
na.?ª d~voção de Bruxelas - exemplo típico da difusiio d11 l'clebra em uma capela de Notre-Dame e lança ao chão as san-
ª?~tJuda1smo pelos clérigos. Uma confirmação dessa responmi tos espécies. Ele é preso. Declara que não é um "frenético", que
b1hdade po_~e ser pedid_a à Itália do século xv. Esse país _ 1l' I 1 11!(iú com propósito deliberado, não crê na Trindade e espera o
mos a ocasiao .?e m_enc,onar novamente - resistiu 111,1is do qm mesmo Messias que os judeus. O austero e célebre Standonck,
outros ªº. ant1Juda1smo e ao medo das feiticeiras. Ali nfo ~, l;hamado como reforço, não consegue "reconduzi-lo das trevas
ma~a1~a111 JUd:us; ou se matou _pouc~, em consequência de 1111 , hverdadeira lu7,". Langlois tem a língua cortada, depois é quei-
fanaçao d~ ~~strns. Mas a ma,s notavel representação :inísdi 1 mado vivo. Como se o antijudaísmo fosse então necessifrio à
desse sacnleg10 se encontra em Urbino e foi pintada por p110i11 11pologética: na falta de condenar verdadeiros judeus (já não
U_cc~llo (1397-1475). Os painéis sucessivos de seu Milt1!!, l't• ,Ir, estão em Paris há cem anos), a Igreja faz surgir neojudeus dos
hostta mostram u~1 _emprestador israelita comprando a hcí~1i111h
11uais sai vitoriosa
m~rn mulher end1:idada, seus vãos esforços para queim:í- ln, 11 Os fatos que acabamos de lembrar não são senão alguns
1~1Jr~culosas manifestações do pão consagrado que se pnt• 11 l.llcmentos ele um pesado dossiê. As acusações de profanação
sangr~r, a c?egada dos soldados e o suplício do culpado. ( )1,1
,lc hóstias aparecem na Polônia nos anos 1450 em consequên-
esse ciclo foi executado em 1468 a pedido da confraria lorn l d,, 2
santo sacramento.60 l'ia, sem dúvida, das pregações de João de Capistrano." Na
França, alimentam o teatro sacro, fornecendo-lhe o tema do-
Para a Igreja militante, que no começo da Idade Mod,,11111
t'llVante estereotipado do Jvlistfrio da santa bóstia, em que se vê
?use: au111~1~tar seu domínio profundo sobre as poptd,,~·iit•~, 11
Judaismo_d1nge co}1t~a o cristianismo uma guerra perpé11111 p 11 mais uma vez um usurário judeu subornar sua devedora cristã
11ue lhe entrega uma hóstia consagrada. "Vontade me toma de
profanaçoes de hostia são um dos gestos belicosos a qut• •i
apega. J ean iviolinet, cônego ele Valenciennes, conta ct11 >ti 11 l'!'ucificá-la, lançar ao fogo e perseguir, e ao chão lançar, es-
re!at~ de _1493 o seguinte fato: 6' um padre de Ivrv, Jean 1,11111, magar, bater e apedrejar." Ela sangra, mas permanece inteira .
lo1s,, ~otavel conf~s~or", viveu algum tempo em Ávignon, 11,1111 A mulher e os filhos do judeu se convertem diante desse espe-
pont1f~~al on~e ~~ Jycleus são autorizados a residir. Estes rn11~, 11foulo. J\tlas ele se obstina. Na fogueira, reclama seu Talmu<l
l' invoca o diabo.6 3 Na antiga colegiada Saint-Trémeur em
~uem ~~~uz1-l? . Fazem-no prometer "renegar" a fé cri~l11 1
_de:tnnr pu?licamente o corpo de Nosso Senhor. O q111, 11 C:nrhaix, três pai néis de madeira do final do século XVI pare-
fora, para mamr notoriedade, na Notre-Dame de Paris, i~111 1 l llllll ter sido inspirados por esse mistério. O painel da esquer-

na catedral de uma cidade em que a fé é mais bem dcfr iulhhi iln mostra um judeu subornando uma mulher para comprar-
qu~ em qualquer outra parte graças à Faculdade de Teolog 111,' 1 lhe a hóstia. No da direita o judeu transpassa a hóstia com
mais recomendada do 1_nundo". Pois, "se pudesse corrornpt•i 11 um punhal, depois a finca na ponta de uma lança e a chicoteia.
desse lugar, o resto sena convertido facilmente". Bela ho11 u,1111 Mas no centro os doutores da Igreja asseguram o triunfo do
gem prestada à Sorbonne e ao papel de muralha desempciili ,11 11, 6
~1\ nto sacra menta. ;

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Pôde-se enumerar, durante a Idade Média, mais de <·11111 Ji:ndingen e dá origem a uma das mais célebres peças do teatro
casos de profanações de hóstiasro e mais de 150 processo~ 11, 11lcmão da época, o E11di11ge1· J11deuspieU2 Segue-se pouco de-
assassinatos rituais.61; Essas cifras, seguramente inferiores :1 ,., 11 pois - em 1475 - a morte do pequeno Simon de Trento, que
tidade, revelam contudo a dimensão de um medo. De um 1í11 it 11 desencadeia no norte da Itália um vento de pânico atiçado pelos
medo, pois os dois delitos incriminados são as variantes de 11111 pregadores. Desde o ano seguinte Bernardino de Fcltre reapre-
mesmo crime. O cristão, geralmente uma criança, supoNI11 1c1\ta em Reggio o roteiro de T rento, advertindo os pais para
mente condenado à morte pelos judeus (durante o período 111 1111e vigiem bem seus filhos à aproximação do tempo da Paixão.
Paixão), é a própria imagem de Jesus. Rnão pela qual ess:1 11, 1 Acusações de assassinato ritual logo alimentam a crônica entre
cução é frequentemente imaginada como uma crucific:1\·110 1478 e 1492 em Mântua, Arena, Portobufolle (perto de Treviso),
Além disso, os assassinos do Salvador não podem senão per·,il- Vcrona, Viadana (perto de Mântua), Vicenza e Fano. Em vários
tir no desejo de matar aqueles que creem nele. O que li:! 11 ,,,sos elas resultam em condenações à morte.'1 A Espanha, on-
surpreendente então se eles envenenam as fontes? E como 11n11 1lc a intolerância aumenta na época, não lhes fica atrás. O
haveria perigo para um cristão em con fiar sua vida a um 11 u1t11 /•'ortnliciu111 fidei contém entre outras uma lista dos delitos ri-
co j_u~eu_? T~do t~m coerência nessa terrível análise psicoMHl1 1 tunis imputados aos jude us aqui e ali. Tal catálogo, acompa-
do mtrmgo 1sraehta. Ele é "assassino ou filho de assassino 1 1 nhado de testemunhos que se pretendem autênticos, não pode
Como tal é que ele é tabu" CT-P. Sartre).~8 Em todo caso, d1•~1h wcnão reforçar o antijudaísmo crescente da opinião espanhola.
o século xn, a acusação de assassinato ritual está em fom : 1 1-:rn 1490, seis judeus e cinco conversos de La Guardia, perto de
formulada em 1144 na Inglaterra a propósito de um ap1'l'tHII lbledo, são acusados de magia negra: teriam crucificado uma
assassinado cujo corpo é encontrado em um bosque peno ,li cri:mça cristã, dilacerado sua carne "da mesma maneira, com a
No_rwich na quinta-feira da Semana Santa. Reaparece crês .11111 mesma animosidade e a mesma crueldade como o fizeram
mais tarde em Wurtzburgo por ocasião da pregação da 11 , 111 !Ncus] antepassados com Nosso Redentor J esus C risto", e mis-
zada: a descoberta do cadáver de um cristão no J\11ain provor,r 11 turado seu coração com uma hóstia consagrada.'• Dessa mis-
massacre de vários judeus. A partir de então o temor do :1~•01- tura, os conjurados esperavam a destruição da religião cristã.
sinato ritual obseda os espíritos. Conduz a processos 1 111 l'orturados, todos os acusados, salvo um, confessam. Mas a
Blois em 1171 (38 condenações à morte), em Bray-sur-Sci111• 1'111 l111 iança não tem nome nem rosto; nenhuma testemunha apon-
1191 (uma centena de vítimasro - e, na Alemanha do ~1·111h1 tou seu desaparecimento, e seu corpo não é encontrado. Paródia
XH:, a vários casoe sangrentos. Por mais que Frederico li , 11111 de processo. Mas doravante a Espanha vai venerar a "santa
me10 de uma bub de ouro de 1236, inocente os judeus d:1 11rll11 triança de La Guardia", assim como a Itália e a Alemanha na
sa acusação, a co1~vicção está agora muito profundamcnrc :111111 111csma época organizam o culto de Simon de Trento.
rada nas mentalidades. Em Berna, em 1294, ela ac:11-ri•tu • Papas como Inocêncio IV e Gregório X no sécu lo Xlll,
expulsão da comunidade israelita - em cuja memória a 11111111 fürgênio 1v no século xv, Clemente XIII no século XVIIJ 75 com-
cipalidade protestante fará erguer no século xv1 um 11101111 h11teram a crença nos assassinatos rituais cometidos pelos
m~nto de nome significativo: o poço do devorador de cri11 11~, judeus. Mas não puderam frear processos e violências senão
(Kmderfressenbrunnen) . Em Messina, em 1347, judeus :11'11~11 numa débil medida. Os elementos motores da Igreja, especial-
dos de crime ritual são executados." Em 1462-70, a Bav11'1 1 111ente os pregadores e os teólogos, estavam convencidos dos
comovida por um caso da mesma ordem, que eclodi• 111, ncgros desígnios da Sinagoga. Para eles, esta era uma anti-
440 4-f/
-Igreja, uma oficina do diabo. Todo israelita era um fei1 i<'11l11, 111 1>S na lei de Moisés. Coisas mais terríveis ainda foram feitas
em potencial. No começo do século xvm, é na própria c:Md1 ,11 tilo aos' ,
judeus, que vi com meus propnos ·
o li10s".'n·- , .
de Sandomierz - a Polônia se convertera então ao antij11d111 ] ,mnento excepcional! Em todo caso, para a oprniao publ 1ca
mo - que se localiza um grande quadro representando o :1~~11 dpoca não se tratava de uma farsa sacrílega, 1~as de um exor-
sinato ritual de uma criança cristã. 1-mo do qual se esperava súbita conversão. Assu:1,_o resultado
!portava mais do que os ,~~ios utilizados. A dec~sao ~e expul-
11 tomada pelos Reis Catoltcos em 1492 produzm cei ca de 50
4. CONVERTER; ISOLAR; EXPULSAR li nbjurações de última hora (pense-se nos dramas que uma
Existia contudo um meio de arrancar os descendcntt"\ ti, l't ida forçada acarretaria). . _ . _ .
Judas ao domínio de Satã: convertê-los. Os mais zelosos '1 01111111 Um batismo precedido por um a 1~s_truça~ c~1sta_ era ev1-
de Igreja basearam grandes esperanças nessa medicação lij1111I ontemente mais desejável que a admm1straçao 1!1o_pmada _do
a uma vitrine mágica atribuída ao batismo. A iígua b:11 i~11111I l'l'nmento. D aí a ideia de força r os israelit~s a assistir se~·i:11oes
expulsava o demônio da alma do judeu, que de súbito <kh 111 , 1 Igreja de sua localidade ou mesmo na smagoga reqms1tada
de causar medo e tornava-se inofensivo. Essa concepç:io i11H( \m esse fim. A prática parece remontar a~ século XIII e ter
nua era compartilhada pelas multidões homicidas. Como Jll 11 ll~<lido do zelo apostólico dos monges mend1ca1_1tes. No c~me-
11 do século xv, vê-se Vicente Fér rer emprega-la em ?ra,~de
va, os poucos fatos seguintes escolhidos de uma longa séri~•, 1111
que um analista de \i\Turtzburgo relata a propósito das cn11111h1 " 'ilia: ele t ransforma autoritariamente as sinagogas ~m igreps,
de 1096: "Uma multidão inumedvel vinda de todas as rcHlíl1 hriga os judeus a escutá-lo sob pena de multa. Na ep~ca, cre-
e de todas as nações ia em armas para Jerusalém e obrig:11'11 11 lhnr:irn-lhe várias dezenas de mil_h ares c~e conversoes. Em
judeus a se fazer batizar, massacrando em massa aquele.~ q111 , M14, 0 Concílio de Basileia generaliza o m~t?do: declara. ~u~
6
isso se recusavam".' Em Valência, em 1391, a multidão :11 111·11 1 ~ judeus devem ser ,obrigados, para sua ed1hcaçao, a ouv11 ~s
aijrmlfl aos gritos de "Aos judeus, a morte ou a águ:1 bcnLa". l 1111 1m:gações cristãs.'º E também? ~ue_ ped~ c~ _1516 o _c onve,-
pouco mais tarde, os edis de Perpignan escrevem a J ofo 1 1h thlo Pfefferkorn. Com toda a evidencia, as mercias locais '.oram
Aragão: "Que os judeus se façam cristãos, e todo tumuli 11 11t t ohst:kulo à realização desse programa, que no entanto, ~01 real~
7
fim".' No ano seguinte, na Sicília, a comun idade israe li1 11 1h llllmte posto em prática na época da Reforma Catohca n~s
monte San Giuliano é convidada a se fazer batizar sob a :11111 11 ll~tados da Igreja. Uma bula de 1577, completada sete anos mais
ça das espadas. Aqueles que recusam são mortos.;8 Em l ,i•1h1111 hmle decidiu com efeito que os judeus de Roma e do Estado
em 1497, às vésperas da Páscoa, crianças são arrancadas dt· •11111 1mnt/fical deveriam doravante envia_r ~erto número_ deles, ~or
famílias e conauzidas às fontes batismais. Algumas sc111111111 tll'nsião de festas cuja lista era def1111da, p~ra ou':,Ir sermoes
depois, seus pais são obrigados por sua vez a seguir o 11 1t0 11111 dl'srinados a convertê-los. Em 1581, M_on~a1gne pode escutar
caminho. O bispo do A lgarve, que desaprovou esses proccd i111111 0111 Roma uma dessas homílias incend1ánas geralmente pr~-
tos, contou mais tarde: "Vi as pessoas arrastadas pelos r:1l 11•il 1 llllllCiadas por conver tidos e muito frequente'.11ente ~1~ he_br~,.~
às fontes batismais. Vi de perto pais de famíl ia, a cabeça m io 1 lll, As despesas eram debitadas das comumdades 1srael1t~s.

ta em sinal de luto, conduzir seus filhos ao batismo, pnll (",11111 l'or mais brutais que fossem, esses méto~os_subentendia1~1
do e tomando Deus como testemunha de que queriam 111111111 nuqueles que os utilizavam uma espécie _de _ot1m1smo. Para eles,
11 ~ judeus eram espiritualmente recuperave1s. Do mesmo modo,
442
443
inúme~os rnist~rios medievais - dramas hagiográficos, n•plt lll'etam cânones antijudeus. 86 Sempre na França, aflora nova-
sencaçocs de mila_gres, "debates" entre a Igreja e a Sirrng-o1-1 11 onte a antiga disposição muçulmana que impunha aos judeus
comportavam abjurações de israelitas tocados pela grn~•it 1 1 11111 insígnia especial: de 1215 a 1370, doze concílios e nove
confronto de Tortosa (1413-4) é a ilustração mais brillrn111 1 ti Ollretos reais obrigam-nos ao uso de um círculo amarelo,"7 gue
uma menta!idade qu_e acreditava possível a conversão do lllt\• torna também progressivamente obrigatório na Itália e na
o~trora ele1~0 e pedia apenas para recebê-lo sem restri~·ilt1 111 -panha, ao passo que a Alemanha escolhe o chapéu cônico,
se10 da IgreJa, Para tal resultado, quais meios não teri:11 11 -111, 11111relo ou vermelho. Reconhecível na rua e na iconografia por
empregados? Bento xm intimou os rabinos mais instrn í,h 1- 11 11s11 do círculo ou do chapéu, submetido a taxas infamantes
Ara~ão a medir-se com o converso Josué de Lorca. DiscuN~(h 111110 se devesse perpetuamente comprar o direito de viver, não
eruditas _se desenrolaram diant_e de mil ou 2 mil espcct:1tllt1 1 ndendo prestar juramento senão em posturas humilhantes,
algu_ns vmdos de muito longe. A saída de cada certame, vli,11 1111 ondurado pelos pés quando condenado à morte, o judeu apa-
tes Judeus (estavam a serviço encomendado?) declar:1villll cc cada vez mais para as populações do fina l da Idade Média
convencidos e pediam o batismo. De janeiro de 1413 a no,, 111 11110 um estrangeiro incompreensível e inassimilável. Por cer-
bro de 1414, "o ano da apostasia", 3 mil neófitos desfil :1 1·11 111 111, 11, ele tem seus próprios costumes, seu estilo de vida, sua reli-
~ati_stérios de Tortosa."2 Sucesso impressionante, e no c 111,i111 lao. Mas a Igreja, e o Estado impelido por ela, ao isolá-lo de
limitado. Mas o que fazer dos demais judeus? nnneira crescente, contribuíram para reforçar sua alteridade e
Isolá-los ao máximo, a fim de que não contaminem 0 111 t l 11sim seu caráter inquietante.
tãos e não incite~ os ~ovos convertidos a voltar a seus 1111 1111, O Concílio de Basileia, em 1434, decreta que os judeus não
erros. A essa razao m:uor, acrescentavam-se outras consid,•1111 1 crão mais admitidos nas universidades e não deverão mais
do: proteger os cristãos da magia negra dos judeus; 11:io 111 , , uidar da saúde dos cristãos. Desde o século XIII, concílios e
pa_ssar o santo sacramento diante do olhar irônico de Sl'lllí 1111 prugadores proibiam incansavelmente os cristãos de apelar aos
3
m1gos etc." A política do apartheid ganha forma vcnl:1d1111 1 111~clicos israelitas. Essa interdição não foi respeitada por mui-
mente no ~~al do século XII e no século xrn, especi:1111 11111 tos reis, papas e particulares, antes e depois de 1434. Resta a
ª;
com ~ec1soes dos m e rv Concílios de Latrão (1 I79 l' 1 11 , 111speita lançada sobre a medicina judia, de procurar matar o
E~te_ult1~0 declara querer pôr um termo às relaçõc~ ,,11 11 corpo e sobretudo a alma dos cristãos: "Antes estar doente, se
cnstaos "e J_udeus (o~ sarr~,ceno~) e vice-versa.8• A fi 111 ~dt' •t1t hil é a vontade divina, que ficar curado com a ajuda do diabo,
cessem tais enormidades , os Judeus deverão dor;iv:llll c• 11 11 11nr meios proibidos. Fazer apelo aos médicos judeus é incubar
trajes diferentes1 não coabitar com os cristãos, não se 11 11 1-111 , 1crpentes no próprio seio, é criar lobos em nossa casa". Assim
n~s ~uas durante a Sen~ana Santa, e não mais ocupar 1\ 11 1~ 111 oxclama em 1652 o clero de Frankfurt. E os pastores de Halle
pub_hcas -_todas prescrições que, de início, a tolerante f,:Npilllh 11 superam, cinco anos mais tarde: "Antes morrer em Cristo que
da epoca so observará com reticência, mas que seriio rud11 1, acr curado por doutor judeu e Satã".88
mais_aplicadas em outras partes. Na França, estatutos ~i11t1tl,,1 A medicina judia é uma magia.
d~ seculo Xl!J ~roíbem os cristãos de empregar judcuN111111 A legislação do Concílio de Basileia89 marcou época na his-
criados, de partilhar refeições com eles e de encontr:i 111~ 111 tória do antijudaísmo, uma vez que reuniu interdições diversas
banhos públicos.85 Em termos mais gerais, d_ezessetc t'OI\I rlh decretadas aqui ou ali e acrescentou-lhes novas: proibição aos
dentre os quarenta que se reúnem no reino entre 11 9) 1, 1 1 c11istãos de ter relações regulares com judeus, de recorrer a eles
444 445
como médicos, criados ou amas de leite, de morar nas mcs11111 ljncente que toma o nome de Ghetto Veccbio. A eles se acrescen-
casas; proibição aos judeus de construir novas sinagogas, 1h nl um terceiro, o Nuovissirno, em 1633: no total três ilhotas
empregar trabalhadores cristãos, de se i~stalar sem perm i.~~1111 nNnlubres onde as casas podiam atingir sete andares e onde a
em novos locais, de ocupar funções públicas, de empn.:s1111 11 upação humana era a mais densa de toda a cidade.91
juros e mesmo de estudar o Talmud. Em meados do século XVI, o exemplo alcança Roma, OJ1de
Essas medidas, que só serão aplicadas desigualmente scµ-1111 lê então os papas haviam protegido a colônia israelita - con-
do os tempos e os lugares, haviam sido exigidas pela deleg11~·,111 c:scendência que se aliava contudo, de maneira bastante contra-
espanhola e constituíam uma espécie de justificação a poslt'l'/t111 h6ria, a sentimentos mais hostis. Pois pelo menos desde 1312
dos pogroms de 1391, da ação de Vicente Férrer e do "debaLc" 1h N judeus de Roma deviam pagar uma taxa especial destinada a
Tortosa. Vicente Férrer estava com efeito na origem do."cs1111 11 nnnnciar o carnaval. Esse tributo foi estendido por lvfartinho
to de Valladolid" adotado em 1412 pelas autoridades de C:1~11•li1 , cm 1421, a todas as comunidades israelitas do Estado ponti-
contra a comunidade !sraelita dessa cidade, onde ela era parti1•11 íknl. Por outro lado, por volta de 1466-9 instala-se o costume
larmente poderosa. As medidas que acabamos de em1mc1111 dL• organizar corridas em Roma durante o Carnaval. Os seis
para os judeus dessa cidade acrescentava-se a obrigaç:io 1h /'illii fazem correr sucessivamente os)~deus, os asnos, o_s jov~ns,
morar doravante em um barrio reservado. No ano seguinw 11 •- crianças, os búfalos e os sexagenanos. Por certo, o 1sraeh1tas
do~1inicanos de San Pablo cederam-lhes um terreno pol' 111,1 INlílo ali em boa companhia. Mas no começo do século XVI,
registrada em tabelião. Os judeus ali se amontoaram progn·~~j 111he-se que eles correm "descalços" e vestidos apenas com uma
vamente ao longo de oito ruas e em torno de duas praça~. ( 1 111nica de fustão, que seria cada vez mais encurtada. De fato,
barrio era fechado por muros e só comunicava com o extnlrn v~tíio quase nus, sendo intenção dos organizadores ridicularizá-
por uma única porta trancada a cadeado todas as noites. A chll\ l los. O que se apreende ainda melhor por comparação: no sé-
era_ entregue ao corregedor ao cair do dia.90 Havia muito Lc111i111 L•ulo xv, em Ferrara, o palio de são Jorge, patrono da cidade, é
os Judeus tinham o hábito de viver agrupados no interior dt.: 1111 111 torrido por prostitutas e judeus nus; em Pádua igualmente, de
cidade. Mas pela primeira vez um bairro israelita ganha fisio1111 1~ 17 a 1560, são atestados palii corridos por asnos, prostitutas e
mia de prisão. Tais confinamentos são em seguida decidido~ 1111 judeus durante a festa de santa Marina.93 Dessas atitudes ambí-
Piemonte - em Vercelli e Nóvero - em 1448,9' depois cm 1~ 1(1 ~IHlS eis ainda uma prova: sob o complacente e tolerante Leão
em Veneza, de onde parece ter vindo o termo ghetto. ~ ~. Rafael, representando O triunfo de Davi (1519) sobre as pare-
A Sereníssima hesitava havia muito tempo sobre a atit ud1• 11 eles das loggie do Vaticano, faz figurar de maneira evidentemen-
adotar em relaç~o aos judeus. Não aplicara realmente a cxp1il•t1l11 te pejorativa o Escorpião, símbolo tradicional da Sinagoga,
?e _1394 e, no ..começo do século xvr, uma importante col(H1 h1 Nobre o estandarte do povo judeu.''4
JUdta mantinhá-se na cidade apesar das queixas dos preg.1drn 1- Mas na metade do século }..'VI, a ambiguidade cessa. Em
e da host ilidade de uma parcela da administração. Em 151(1, 11 1553, a Inquisição romana faz queimar publicamente o Talmud
governo, procurando conciliar negócios e religião, decidc 111•111 • o que é aprovado solenemente por Júlio III na bula Cum sicut
criação de um bairro reservado, o Ghetto Nuovo. Como o q111 1/llpe1: Considerado repleto de injúrias e de blasfêmias em rela-
fora instituído pelo edito de Valladolid, ele será fechado ~ 1101!1 ~110 à religião cristã - e, além disso, um obstáculo à conversão
e suas portas serão vigiadas por guardas cristãos. Em 1541 , 11- dos israelitas-, o Talmud será doravante objeto de incansáveis
judeus levantinos são concentrados por sua vez em um h:1j 11 11 perseguições das autoridades romanas. E m 1557, a Inquisição

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proíbe os judeus de terem outros livros religiosos que 111l11 r untes de dezoito meses os pen hores sobre os quais terão
Bíblia. A partir de 1559, o Ta lmud figurará no índex:1 Aq1111 !prestado dinheiro. Não farão o comércio do trigo nem o de
que em 1553 dirigira a ofensiva inquisitorial contra o T:1111111.i uhmn produto necessário à alimentação humana. Não se
em 1555 torna-se o papa Paulo IV. Esse rude personagem .,~., , r,lo chamar de "senhores" por cristãos pobres.
eia estreitamente reforma da Igreja e antijudaísmo: no qu1• 1I Publjcado esse texto, o confinamento cios judeus começa
encarna e conduz ao poder a linha dura do catolicismo - 11 q111 wcliatamente em Roma, em Bolonha e em outras partes, assim
os pregadores sempre defenderam. Menos de dois mcsc:. 11p1, 11110 devem liquidar a preço baixo os bens que possuem no
sua eleição, sai a sinistra bula Cm1111i111is nbsurdmn: 111junto do Estado eclesiástico.•' Segue-se um período de cal-
oria com P io LV. Mas Pio v volta à carga. Não ousando expul-
É por demais absurdo e inconveniente que os judeus, 1·1111 r todos os israelitas do território pontifical, cm 1569 decide,
denados por Deus a uma eterna escravidão por causa dl.' ~111 Ili razão de suas "feitiçarias, magias e adivinhações", não mais
pecado, possam, sob o pretexto de que são t ratado~ 111111 ll•rá-los senão nos dois guetos de Roma e de Ancona.•• É o fim
amor pelos cristãos e autorizados a viver no meio deles, ~,, A\ comunidades hebraicas de Camerino, Fano, Orvieto, Spole-
ingratos a ponto de insultá-los ao invés de agradcc~- lo• 11 Ravena, Terrncino, Perúsia, Viterbo etc.•• O gueto de Roma
bastante audaciosos para se erigir cm senhores ali on1k· 1h n,11 doravante sobrecarregado, empobrecido. Deve ainda man-
vem ser súditos. Informaram-nos de que em Roma r 1111 lvr com seus denários a Cnsn dei cntecm11enii fundada alguns
outras partes eles levam a insolência a ponto de h:d1lt,11 1110s antes por Santo Inácio de Loyola para acolher os candida-
entre os cristãos na vizinhança das igrejas sem usa r ~111111 lON no batismo. Pio V morre (em 1572), seus sucessores serão
distintivo, de que alugam casas nas ruas mais elegantes 1, ,111 menos rigorosos em relação aos jude us. Mas o gueto de Roma
redor das praças nas cidades, aldeias e localidades o n1k· \ 1 fü·,,rá atolado em sua miséria até Pio IX. Incentivados por pre-
vem, adquirem e possuem bens imóveis, mantêm cri:1d11~ 1 Jtulores e bispos, guetos nascem um pouco em toda parte nas
amas de leite cristãs assim como outros criados assalari111l11 regiões italianas das quais os israelitas não foram expulsos: em
e cometem diversas outras más ações para sua vcrgo11l111 1 lcxandria (1566), no ducado de Urbino (1570), em F lorença
em desprezo do nome cristão [...].'"' (1~70), Siena (1571), Verona (1599), Pádua (1602), Mântua (1610),
<:,,sale (1612). Outros ainda surgirão mais tarde: em Módena
Medidas draconianas decorrem dessas considera~õc~ •,11111 (1(138), Gorizia (1648), Reggio (1669-71), Turim (1679).'ºº
apelo: em Roma e nas outras cidades do Estado pontifica l, 11 Os guetos não constituíam evidentemente uma solução parn
judeus deverãG no futuro morar separados dos cristãos c111 11111 o problema que os judeus representavam para as autoridades
bairro ou ao menos em uma rua com uma única entrada e s:1fd 1 uistãs: era um mau acordo. Muitas vezes a segregação não era
Só haverá uma sinagoga por cidade. Os israelitas nilo 11·11111 ,totiva, ao menos durante o dia. Como impedir em uma mesma
imóveis no exterior dos guetos e venderão aqueles em seu prnh 1 tidade um mínimo de contato entre os dois elementos da popu-
que estão fora das zonas reservadas a eles. Usarão chapéus :111111 lA\'iio? Assim, a partir do final do século XIII, recorrera-se, cm
reios. Não terão mais criados cristãos. Não trabalharão no~ d111 diversos países ou cidades, ao meio radical da expulsão. Ela fora
de festa dos cristãos. Não terão relações estreitas com t·l1••j 1 clocidida pela Inglaterra em 1290, pela França e pelo Palatinado
evitarão ligar-se a eles por contrato. Não utilizarão cm ,1•11 0111 1394, pela Áustria em 1420, por Friburgo e Zurique em 1424,
livros comerciais senão o italiano e o latim. Não poderilo Vl'II 1mr Colônia em 1426, pela Saxônia em 1432 e no decorrer do

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século XV por inúmeras cidades germânicas. A inveja dos 11111 5. UMA NOVA AMEAÇA: OS CONVERTIDOS
sãos e da burguesia e o temor da usura judia tinham motiv111h,
No entanto, o inimigo que se acreditava ter expulso reapa-
muitas dessas rejeições. Contudo, elas eram frequentc11w1111
recia sob uma outra forma, dissimulada atrás da másca ra do
acompanhadas de considerandos religiosos. A decisão fra1w1•- 1
convertido. Este realmente se tornara cristão? Não há dú.vida
de 1394 foi tomada por um soberano que era "movido pcl:1 ph
dade" e temia a "má influência dos judeus sobre os cristfios".1"1 ,\
de que muitos judeus batizados sob ameaça voltavam mais ou
menos clandestinamente a seus antigos ritos (nesse caso, e ram
de Colônia invocou "a honra de Deus e da santa Virgem".1111 11' 111
relapsos) ou ao menos, embora aceitassem suas novas crenças,
todo caso, as razões religiosas - isto é, o medo ao mais alto K' 1111
continuavam a não comer toucinho e a utilizar as fórmulas
da influência nefasta dos judeus sobre os cristãos e sobre os 11< 1v11
,•ulinárias de seus ancestrais. Tornavam-se desde então suspei-
convertidos - desempenharam papel determinante nas cxp11I
sões decididas por Fernando e Isabel para a Espanha e a Sid lh1
tos de heresia: inimigos tanto mais perigosos quanto mais se
em 1492, pelo rei de Portugal em 1497, por Carlos vu e Luís\ li cnmuflavam. Diante de um perigo tão urgente, Isabel e Fer-
para a Provença em 1495 e 1506, por Carlos v para o Reino d1 nnndo obtiveram do papa em 1478 a bula instituindo a In-
Nápoles em 1541, por Pio V em 1569 para os judeus do Es1,uh1 1111isição, que começou a funcionar dois anos m ais tarde em
pontifical que não se reunissem nos guetos de Roma c d1 Sevilha. O fervoroso e implacável T orquemada - um domini-
Ancona. No rasto da Reforma Católica, a república de Gêrn 11•11 cnno cristão-novo - foi nomeado seu responsável para toda a
expulsou os israelitas em 1567, Luca em 1572, o milanês em ISIJI 11:spanha. A despeito dos conselhos de moderação de Roma, os
etc.10J O edito espanhol de 1492, que serviu de modelo aos q111• ~I ll•ibunais da fé trabalharam com um zelo que aterrorizou.
seguiram, exprimira com clareza o medo ideológico se11111h1 Durante um expurgo de sete anos (1480-7), 5 mil conversos
pelos soberanos e seus conselheiros eclesiásticos: Ncvilhanos acusados de haverem judaizado deixaram-se "recon-
d liar" após as penas e humilhações habituais. Setecentos relap-
[...] Fomos informados pelos inquisidores, e por outras 1w~ NOS foram queimados. A vez de Toledo chegou em 1486. Em
soas, de que o comércio dos judeus com os cristãos aca r1 1•1,1 1111atro anos houve ali 4850 "reconciliações" e duzentas conde-
os piores males. Os judeus se esforçam ao máximo em scd11 1li nnções à morte. E m Aragão as violências da Inquisição - em
os [novos] cristãos e seus filhos, fazendo-os conservar o~ 11 pnrticular em Valência, Teruel e Saragoça - provocaram rea-
vros de orações judias, advertindo-os dos dias de festas j11di11~1 \'c1es populares hostis ao novo tribunal. No total, Torquemada
fornecendo-lhes pão ázimo na Páscoa, instruindo-os sohr1· ,1_ leria feito queimar cerca de 2 mil vítimas, a maioria conver-
alimentos proibidos, e convencendo-os a seguir a lei eh.: Mol ~os.'º5 Quando veio o decreto de expulsão de 1492, muitos
sés. Em consequência, nossa santa fé católica vê-se avilt:1du 1 judeus se refugiaram em Portugal, onde uma decisão de rejei-
humilhacra. Chegamos então à conclusão de que o único 1111110 \'tlo foi igualmente tomada em 1497. Foi então que se produzi-
eficaz para pôr fim a esses males consiste na ruptura defi II i1 lv,t mm as cenas, evocadas anteriormente, de pessoas arrastadas
de toda relação entre judeus e cristãos, e isso não pode '11'1 pulos cabelos às fontes batismais. Esses cristãos-novos natural-
alcançado senão pela sua expulsão de nosso reino. 10• mente se rejudaizaram logo que puderam. E ntão Portugal
111mbém obteve do papa sua própria Inquisição, que foi c r iada
Era bem este o objetivo: não mais tolerar quinta-coluna 1111 cm 1536. Ela não "celebrou" menos de 105 autos de fé entre
interior da cidade cristã. novembro de 1538 e abril de 1609.'o,; Alguns marranos portu-

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gueses se refugiaram na Itália e especialmente c111 1\ 111 /\linram-se por casamento aos cristãos-velhos, e os majs
onde Paulo III lhes concedeu salvo-condutos. Sobrcv,,111 1 os deles logo ocuparam postos eminentes na hierarquja
vação de Paulo IV. A Inquisição se abate sobre A nco11111•111 1 li\scica e nas ordens religiosas, sendo certo, com efeito, que
Vinte e dois homens e uma mulher foram quci11111d11- , , todas as conversões foram de pro forma. Assim, a abjuração
relapsos, 27 foram "reconciliados", trinta ac us:1drn1 1111 1 r,1 para os cr istãos-novos carreiras mais brilhantes do que
escapado da prisão antes do processo.'°' E ssas pCl'~111111I 1lus a que podiam pretender anteriormente.
sucessivas no Ocidente do século XVI explicam os jud1•1111 111 /\s frustrações e as invejas dos cristãos-velhos, mescladas. a
então buscado refúgio no Império Otomano e na Pol(\11 h1 I hostilidade antiga contra os judeus, coletores de impostos,
que lhes permaneceu aberto até o "grande dilúvio" d1• Ir, li lk11m a primeira sublevação anticonversas da Espanha: a de
Na história cristã do antijudaísmo europeu, podl'lll 11 ,1 1ilo em 1449.'º9 Pela primeira vez na Espanha, um corpo
tinguir duas faces e também duas mentalidades. 1.:111 11111 1 nldpal, encontrando base no "direito canônico e no dire(to
meiro momento considerou-se que o batismo ap:tgavn 111 11 I" e na enumeração de toda espécie de crimes e heresias
vertido todas as taras do povo deicida. Mais tarde, 1111 p1 ,111 1111iclos pelos cristãos-novos, decide que estes serão doravan-
colocou-se em dúvida essa virtude do batismo e co11sid1•11111 onsiderados indignos de ocupar cargos privados ou públicos
que o judeu conservava, mesmo tornando-se cristão, n 1111 11, lhledo e em sua jurisdição. Assim nasce o primeiro, em
dos pecados de Israel. Nesse momento o antijudaís11101111111 11, t1os estatutos espan h01s ,. de " pureza de sangue""º
.
-se racial, sem deixar de ser teológico. A hostilidade 1111- 1, ( :omo sempre no decorrer do período que consideramos, as
versos se explica em certa medida pelas cifras. E m V:1 l1~111111 , 11IL11des dos particulares são retomadas pelo discurso teológi-
decorrer dos excessos de 1391, 7 mil e talvez 11 111il 1111h, 11110, enunciado em uma atmosfera obsidional, dá uma dimen-
teriam se convertido para escapar à morte.'08 Atri bui 'H 11 1 1111cio nal, e até internacional, ao que não era de início senão

Vicente Férrer a conversão de cerca de 35 mil jude us (1• lt 111 1111111I e local. É então no mais alto nível cultural que se enta-
muçulmanos). No mesmo momento, outras abjuraçÕl'Ndllh ,1 l,1, 11pós os incidentes de Toledo, o debate entre adversários
mente enumeráveis se produziam em outras partes na l•>q11111h 1111111iclários dos estatutos ele "pureza de sangue". Desde 1449,
Enfim, o decreto de expu lsão de 1492 teria tido co1110 11111 1, utligidas várias obras de protesto contra os segregadores de
quência o batismo de 50 mil pessoas e o êxodo de 185 111II, ti 1l1•clo. O tratado de Alonso Diaz de Montalvo,111 dirigido a João
quais 20 mil teriam perecido nas estradas do exílio. Viv1•111l11, rnnsura os cristãos intolerantes em relação aos convertidos
conversos, como seus predecessores israelitas, essc11ti11 l1111111 11 dcstruírem a unidade da Igreja. Cristo é nossa paz; ele re-
nas cidades e sendo estas então pouco povoadas, dc11-~1• 1111, 111 lliou judeus e gentios. Rejeitar os conversos é fazer obra
mente o fenômeno quantitativo de "limite" que ccn:111u•1111 1 .i111ltica, até mesmo herética. Os revoltosos de Toledo foram
contribuíra para o nascimento do antijudaísmo esp:111 hol, 1\ h1, l11l111s de Cristo". Por trás do biombo da religião, cobiçavam
disso, os novos convertidos, graças à liberdade de :i,•11(1 qu IIH mater iais. De um fôlego mais amplo é o Defensorimn unita-
lhe s concedia o batismo, ocuparam as primeiras posiço1••1 11111 .lwistianae (igualmente de 1449), de um converso, dom Alonso
ainda do que na época em que praticavam sua ant iga l'l'lilll h ( :nrtagena, bispo de Burgos e filho desse dom Pablo de Santa
Transpuseram então, qualitativamente desta vez, um "1111111• 1111111 que, uma vez batizado, escreveu o Scrutiniu111 scripturttnmt
perigoso de êxito, sendo mais do que nunca os consclhci 1o~ 1h foi tnmbém bispo de Burgos. A humanidade teve uma origem
príncipes, os patrões do comércio e os arrematantes ele i111p11 1111'11 cm Adão e essa unidade foi reconstituída no novo Adão,
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452
Jesus. _Deus atribuiu uma missão particular ao povo j11d111 1,1 também a lista das iniquidades recentemente perpetra-
de <?nsto e fez nascer o Salvador entre os israelitas p 111 11,p, n 11:spanha por novos convertidos - negação da Trindade,
realizasse a fusão destes com os gentios. O s judeus q111 , t,1\'fo clandestina da Festa dos T abernáculos, continuação
vertem ao cristianismo são como prisioneiros de g 11c 11 ,1 Ili tu da circuncisão etc.11• O s judeus - conversos o u não -
dos que voltam para casa. A duração de seu cativeiro 11111 1111,1 11111 nação depravada, e os cristãos-novos herdaram o espí-
ta. Ao perseguir seus irmãos conversos, os cristãos 1•11ll11 1111 m:il de seus antepassados. Não se deve portanto dis-
Toledo agiram como cismáticos. E quem autoriza o ci,111111 , 1111, como reclamava Pablo de Santa Maria, entre "judeus
a unidade da Igreja é herético.111 Por sua vez, o pap:1 Nh 111 (uqueles que veem em Jesus o Messias prometido pelo
sempre em 1449, lançou o anátem a contra o estatuto :1111 h 1111 ~11 Testamento) e "judeus infiéis" (aqueles que rejeitam
so_ d_e '!'o ledo - uma bula cujo alcance em seguida ~• t,, 111)1 mas entre "judeus secretos" (os conversos) e "judeus
mm1m1zar ou contestar a autenticidade. h11~" (os obstinados). Eis-nos no coração de um racismo
No Scrutinimn scripturnnn11, dom P ablo de S:111111 \ 1 ~11·0 que explica em profundidade o temor de ver a cidade
aconselhara, dezessete anos antes do caso de Toledo, 11 1111 t A ~11bmersa, destruída por dentro, por seus inimigos de
ca aos cristãos-novos ameaçados: abater os empedc.:r11ld11 1 1111•, tornados ma is perigosos do que no passado graças a
proteger os conver tidos. A mesma linha de conduta 1, 11tl1 , 1 ,111111flagem.
nos anos 1460 pelo superior geral dos hieronimirns, 1\1 1111 l 111{<> daremos os pontos de referência que permitem acom-
Oropesa, a quem os franciscanos, em uma espé<.:Íl' d1 , h,11 no tempo e no espaço espanhóis da Renascença a difu-
pública, pedem ajuda e conselho para lutar contra 11 111111, dmestatutos de "pureza de sangue". Mas cm primeiro lugar
c rescente dos cristãos-novos no interior das o rdens , PI 11 1· 11 ,11110s, para além do século xv, na argumentação dos anti-
? L11111e11 nd re-velntionem ge11tiu111 de Oropesa é u111:1 11 I' , 1~os. A m ental idade de sitiados aí está mais do que nunca
importuna a esse pedido incômodo, pois sua o rdem t·rn11 ,111, Por exemplo, nas cartas e nos escritos diversos do arce-
tos conversos. Como Pablo de Santa Maria, e le disti11g111 1ui 111 ili•Toledo, Siliceo, que em 1547 consegue impor a exclu-
11 5
em. seguida judeus e cristãos-novos. O s prime iros ,,111 1 1, 1111~ n istãos-novos do capítulo de sua catedral. Siliceo vê
perigosos que os gentios, os heréticos e os c ism,hico, t\ l, 11 no horizonte o espectro da "Nova Sinagoga". O s judeus,
cristãos-velhos destroem a fé e a unidade da Igreja ao '•l 1'ft ,, 11l11s ou não, permanecem um povo inconstante, sempre
de qualque r homem de raça judia q ue se fez batizar. 1,· pi; r, Il udo pela infidelidade e pela traição. D o m esmo modo,
P?r~anto prot~ge~ os conversos contra seus antigos cn, H 111 11,uilo recusava-se a admitir neófitos de sua raça às funções
nan os: o que s1gmfica isolar estes últimos ou obrig:í-lo·, ,1 ,1 11p11is. Deve-se imitar essa prudência para a qual convidam
çar o cristianismo, se possível "com amor" ou, se 111•1 "- 11 lt111lns más ações e conjurações de que se tornaram culpados
" com cast'.gos• ".
113
eombate de retaguarda com uma :1r11111 111 1111vcrsos da Espanha. Muitos judeus só se tornaram cris-
enfraquecida: a virtude mágica do batism o. Arma t:1111 ,11111 prn' medo: querem vingar-se. Uma nova "Reconquista" da
da? Reveladoras a esse respeito a atitude e as contr:11111,111 1r111hn se impõe contra um g rupo que se infiltra no clero.
Alonso de Espina. Por certo, o Fortnlicim11 recomenda 11•• li ,t ,., Ig reja", escreve ele, "mal se encontra um q ue não seja
mos forçados. No entanto, a obra incendiária desse fr:11 11 1•1 ,. -• 11~, e a Igreja espanhola inteira, ou cm sua maior parte, é
de choque não é apenas um catálogo dos crimes come i 11111 1111uln por eles." Siliceo deseja, além disso, que um decreto
aqueles que continuam a obedecer às prescrições 1110\:III 11 llt 1 11~ conversos de praticar a medicina, a cirurgia e a far-
454 455
mácia - pois procuram matar os cristãos-velhos - e que scj11111 • cristãos-novos evitam recitar o pai-nosso. Não creem na
impedidos de entrar pelo casamento na família destes últimm ,ndade. Herdaram de seus ancestrais um ódio invencível ao
Duas precauções valem mais que uma. rl~I ianismo. E basta a qualquer um, para ser por ele infectado,
Tendo o estatuto da Igreja de Toledo encontrado resistrll 111, só sua mãe seja judia ou não tenha tido senão 1/4, ou mcs-
cias, em 1575 ele é defendido por um cordovês de família noh1 l, 111 1/8 apenas, de sangue judeu. .
Simancas, que ambicionava talvez uma cadeira de arcebispo,11 Como conciliar um antissemitismo tão radical com a teo-
Sua Defensio statuti toletani retoma as acusações clássicas, 11111 ll(ÍII do batismo? Como ficaria a eficácia do sacramento? Sua
com uma insistência particular na "perfídia judia" no tempo dt pncidade de criar um "homem ~ovo"? Não _faltaram re~pos-
Jesus. Do nascimento à morte do Salvador, todos os elemenio ••i os cristãos-novos não são pumdos em razao de .:'ua ongem
- estrelas, mar, sol - reconheceram sua divindade. M:1s o lupravada", e sim porque a experiência pro~1a que s~o f~equ:n-
judeus condenaram-no à morte e continuam a crucificá-lo 11 mcnte apóstatas (Simancas); apesar ~o ban~mo, as incl,'.naçoes
cada dia. Além disso, a ambição excessiva é uma característi1 11 llli\N se transmitem fisicamente dos pais aos filhos pelos humo-
desse povo pérfido. Assim, os conversos esforçam-se não s<í l'III ," (Castejon y Fonseca); Sane~ T om~s ~ar~,nte ~~e o~ 1escen-
apoderar-se dos benefícios eclesiásticos, mas também em f:11111 h,nics dos pecadores escapam as pumçoes espmnia1s me~e-
deles bens hereditários. A prova de que sua conversão é fr,, ltlns por seus ancestrais, mas podem ter que suportar sançoes
quenternente simulada está em que não querem entregar-~l' 11 111iuporais" por causa da infidelidade de seus predecessores
nenhum trabalho manual; seu objetivo secreto é despojar m (l'urrcfio). Pode-se justificar tudo quando a_ letr~ e~q_uec~ o
cristãos-velhos de suas riquezas. A solidariedade que os cl'i11 -plrito e quando se tem medo. Algumas _baltzas s1g111f1~at1vas
tãos-novos manifestam entre si não deixa de ser, também d11 1 IWt 111item acompanhar com o olhar a mare montante da_ mtole-
suspeita. Eles parecem um rebanho de porcos em que, qu:11ulu n\11l'in espanhola em relação aos conversos. E a esse res~e1to uma
11
um grunhe, todos os outros se põem também a grunhir e m l111•vc cronologia é mais marcante do que longas expltca~õ:s: R,
juntam flanco contra flanco para se proteger mutuamente. N11 1467: em consequência de uma sublevação dos cmta?~-
entanto, Simancas reconhece que existem conversos sincero~ nuvos, recolocação em vigor, em Toledo, do estatuto mu111c1-
Desde que aceitem esse purgatório terrestre, essa hibern:1~·1111 1111I de 1449. ,
social. Virá o dia em que, tendo o tempo feito sua obr.1, m 1474: rebelião sangrenta contra os conversos em Cordoba
cristãos-novos poderão afinal ser admitidos a todos os posto~. várias localidades da Andaluzia; os cristãos-novos são
lllll
Mesmo essa abertura desaparece da pequen a obra ra1H'11 u1l11ídos de toda fu nção pública em Córdoba.
rosa redigida por '!;Olta de 1674 pelo franciscano Francisco dt 1482: a corporação dos maçons de Toledo proíbe seus n:en~-
T orrejoncillo, a Çentinela contra judios, puesta e11 ln torre dr /11 III IIN de comunicarem seus segredos a pessoas de ascendenc1a
Iglesin de Dios.rn Um título significativo: a Igreja tem neccs\l 111,ll11. . ,
dade de sentinelas que velem pelo perigo judeu. Mas q11rn1 1486: os hieronimitas (que compreendiam um certo nume-
desconfiaria, à leitura de tal enunciado, de que os isracli1 ,,_ 111 ,lc conversos) decidem após anos de hesitação: n) enquan~o
foram expulsos da Espanha duzentos anos antes? No fu11d11, • Inquisição prosseguir sua tarefo, ninguém da _descendência
Torrejoncillo não estabelece diferenças verdadeiras entre judrn- ,lo• neófitos até a quarta geração poderá ser re:eb1d<: na ordem;
e conversos. A longa lista dos crimes dos primeiros (aí incl1111l11 ~) os cristãos-novos já membros da ordem nao terao acesso a
o seu papel na peste de 1348) basta-lhe para culpar os segundo~ , nhum cargo e não serão admitidos ao sacramento da ordem.
11
.f'f7
456
Quem quer que contrarie ~ssas disposições será excomu lll(il mpntriotas em matéria de "pureza de sangue" e vários de seus
do. Renegando a bula de N icolau v, Alexandre VI - um cSllil li1horadores imediatos, especialmente Lainez e Polanco, eram
nhol - aprova em 1495 essas disposições, que se torn:1 rli111 1 origem judia.
exemplares. · Tendo o regulamento adotado em 1547 pelo capítulo da
1489: Guipúzcoa, temendo um refluxo dos cristãos- nov11 tt•dral de Toledo feito jurisprudência e consagrado oficial-
para o país basco, proíbe todo converso de instalar-se na pi 11 ,1111c a exigência de li11lpicza na península, doravante a Espa-
víncia e de ali casar-se. h,, viverá durante muito tempo sob o reino dos estatutos de
)496: primeiras medidas de um convento dominicano 11 111c1.n de sangue que o século XVII não conseguirá modificar
de Avila - contra os cristãos-novos. n11ivelmente. Tinha-se assim definido um dogma e criado um
1497 (no mais tardar): Statutum contra Hebraeos (de fato l.'!111 Uh>ligados a dois valores espanhóis essenciais: a religião e a
tra os judeus convertidos) do colégio San Antonio de Sigüc 1w11 11111·n. A tensão, a ansiedade e a obsessão que suscitaram de
1515: o capítulo da catedral de Sevilha adota um estatuto 1h 11111oira quase permanente em todas as camadas de sociedade
"pureza de sangue" e se fecha aos filhos dos judeus-cris11t11 1111111 as contrapartidas de um orgulho e de uma identidade
"heréticos", o que é aprovado por Leão x, em 1516; Clemt·i11, 111quistados a esse preço. A Espanha tinha consciência de ser
VII estende a proibição aos "netos dos heréticos" (1532) e l'auh, lurtaleza da boa doutrina, a rocha contra a qual se rompiam
JII aos bisnetos (1546). 1rtt•sias e todos os assaltos do mal. Sua nobreza, diante do uni-
120
1519: estatuto anticonverso do colégio San Ildefonso d 'A k-11 Ili 111~o, estava ligada à sua excelência teológica. Tudo se passou

criado por Cisneros, que não estipulara nenhuma discrimi 1111 11110 se um país que só tardiamente tomara consciência de si
ção desse gênero.119 1111•~1110 tivesse necessidade desse negativo - o judeu - para
_1522: proibição a toda pessoa judia de se graduar pelas uni ~••~1•obrir-se, e este uma vez expulso ou convertido, vira-se na
vers1dades de Salamanca, Valladolid e Toledo. 11, l'l'SSidade de reinventá-lo. Sem o que sua coesão interna ter-
. 1_525: o papa autoriza os franciscanos a excluir dos ca rgw, 1 ... in encontrado ameaçada. Poderosa mas exposta, a Espanha
d1g111dades da ordem os descendentes de judeus e a não adm illt (111csistia a seus múltiplos inimigos conferindo a si mesma um
conversos entre eles. f11111' ele integração que a ajudava a definir sua personalidade.
1530: o capítulo da catedral de Córdoba adota um cst:U 11 111 Cli 11, "antes dos nacionalismos forjados pelo século XIX, os

de "pureza de sangue", ratificado por Roma apenas em 15.'i'i, 1111vus não se sentiam realmente ligados senão em um senti-
15~1: os domi~icanos de Toledo são autorizados por Rrn11 11 llllllllO de vinculação religiosa". 121 Para tornar-se ou "voltar a ser
a exclmr de suas fileiras os cristãos-novos. l 111°opa", a Espanha se fez "cristandade militante".'''
1547: o capítulo da catedral de Toledo, a Igreja prim:H'itil Mas por que a cristandade militante da época devia ser
da Espanha, por instâncias do arcebispo Siliceo, não admi11 1,1 1111 ljuclia? Essa intolerância acaso não seria a resposta a uma
mais os ,ca_nonicato~ sem averiguação da origem étnica. i\po~ 11111 1111 intolerância? Com seu talento habitual e grande profun-
controversias e hesitações, as aprovações oficiais chegam: d1 1lhl11de, F. Braudel faz observar que a atitude judia na época da
Paulo TV em 1555, de Filipe 11 em 1556. ll111111scença não era de modo algum "pacífica" e acolhedora. Ao
1593: e_m sua_ quinta congregação geral, a Companh ia dt 111111 rário, a "civilização" judia mostrou-se então "ativa, pronta
Jesus exclm os cnstãos de origem judia. No entanto, Irnício d11 111 proselitismo e ao combate". O gueto não foi "apenas o sím-
Loyola (t 1556) não partilhara, parece, as prevenções de st'11• li11lt1 dn prisão onde os judeus foram encerrados, mas também a

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cidadela para onde se retiraram por si mesmos para dcft•lltl, c,,c,plicação na medida, e tão somente na me_dida, em_q~~ vão
s~as cr~nç~1s e a continuidade do Talmud". A intoler:1nd 11 111 (lt1contro de uma tese central do presente livro ao d1ng1rem
d,~ t:n~, ~~do, no lim!ar do século XVI, "maior do que 11 ,h ltl e outra o olhar para as reações da Igreja militante. Pois
:nst~os . · Observaçoes de peso de um historiador q 111, 111, 11 lll'fl a cultura clerical que podia, majs que qualquer outra,
e _an1111ado por nenhum sentimento antissemita. Contudo, 111, Ili.li' os eternos deicidas - fantasmas malditos - ou a ameaça
poe~-se_ nuanças: por que a aceitação das comunidades )111 11, 11111 Deus pai rigoroso? Na época da Renascença - em_sen-
n? mtenor da Europa carolíngia, da Espanha das "trcs II h 11 nmplo - foram os cristãos mais "motivados" que, via de
g1ões", e da Polônia do século XVl, e a hostilidade postcriot 1111 , , 11, tiveram mais medo - e ,~ais consciente1rn~nte m~do -
relação a elas? E como as segregações sucessivas não l ('I lutu - judeus. Ao mesmo tempo, tmham medo da 1dolatna, dos
~eforçado a coesão e a singularidade do grupo rejeitado? ( )11 11 fl'llS, dos mouriscos - outros conversos - e. de todos os
m~ole1:â~1c_ia foi primeiro? "O que há de surpreendente st· 1,-.~ lt11lgos que, sob a ordem de Satã, atacavam conJuntan:ient,: a
rnn~ontanos se conduziram de acordo com a representa(ilo lf 11 du,lcla cristã. Somos levados então, superando as expltcaçoes
se tmha deles?"'. 24 Outr~ pergunta que duplica o efeito d:tN pi! rt leulares, a reinserir o antijudaísmo dos séculos XlV-XV1 em
cedent_es: se os Judeus tinham sido completamente expulswi 11, 111 1•onjunto e a recolocar a atitude em relação aos judeus em
um p~1s -:-- França, P~íses Baixos ou Inglaterra - e nem Sl'lfllt, 11111 8érie homogênea de comportamentos. N ão era só a Espa-
:º~stltuiam grupos importantes de convertidos, por qttl' 1, , hit cristã que se acreditava em perigo, mas toda a Igreja doceJ1-
od10 duradouro dos ausentes, pessoas que não se viam n.::11 11 1111 i1uc se sentia então em posição de fragilidade e?~ in~er_teza,
te há duzentos ou trezentos anos? Já não intervinham i•111 ,1t, mondo ao mesmo tempo Deus e o diabo, o Pat 1ust1ce1ro e
nem a no_ção de "limite", que certamente contou na E s p 111,h11 ilns as encarnações do mal - portanto, o judeu. .
nem as diferentes categorias de inveja a que podiam d 111• 1111 Antes do século XIV, tinha havido antijudaísmos: locais,
gem ui:n~ comunidade influente por sua riqueza e por s 11 n 1 111 tv11rsos e espontâneos. Em seguida, eles deram lugar prog~es-
tm:a? E imp~rtante então mergulhar nas profundezas do 11-1 lvitmente a um antijudaísmo unificado, teorizado, generaliza-
qmsmo coletivo. 111 clericalizado.
. Estabeleceu-se uma relação entre temor dos fanta s11111 -
an~1ssemitismo. "Se o medo dos fantasmas", escreve R. Lm•w1111
s~em, "?ar~ce urna coisa_inata justificada em certa med i1Íi1 iwl 1
vida ps1qmca da huma111dade, o que há de estranho 110 f:11 11 ,h
qu~ se tenha manifestado com essa intensidade no que diz 11 ,
peito a essa nação [judia] morta e apesar de tudo viva?""' t 11111
out:a abordag~m do_ ~ntijudaísmo de outrora explica-o 111 1,1
noçao de ~o~fhto _ed1piano. ~ judeu teria representado 11111 11 11
mundo cnstao o s11nbolo do mau pai" oposto ao Deus filh1t 11
que se refere a Igreja. A hostilidade a Israel decaído teria :i~•iltll
marcado o conflito entre os filhos depositários de uma 11w11~11
ge~_de_caridade e os ancestrais que permanecem fiéis~ ll'I ih
Taltao Imposta por D eus pai_m, Integro aqui essas tenu,1h•,t
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10. OS AGENTES DE SATÃ bios sobre os de Nossa Senhora. Esse único beijo o encheu de
III. A MULHER mn imensa sabedoria e do conhecimento de todas as artes.•
Essa veneração do homem pela mulher foi contrabalança-
n ao longo das eras pelo medo que ele sentiu do outro sexo,
Articularmente nas sociedades de estruturas patriarcais. Um
1cdo cujo estudo por muito tempo se negligenciou e que a
l. UMA ACUSAÇÃO DE LONGA DATA r6pria psicanálise subestimou até época recente. No entanto,
No começo da Idade Moderna, na Europa ocidental, :11111 hostilidade recíproca que opõe os dois componentes da huma-
judaísmo e caça às feiticeiras coincidiram. Não foi por ac.:111,11 1dade parece ter sempre existido e "traz todas, as marcas de
Do mesmo modo que o judeu, a mulher foi então identi firnd11 rn impulso inconsciente".2 De modo que o êxito de um casal
como um perigoso agente de Satã; e não apenas por homc11~ ih Clpende, ao menos em nosso tempo, da descoberta desse dado
Igreja, mas igualmente por juízes leigos. Esse diagnóstico l\'111 u·oftmdo e, em todo caso, da aceitação lúcida - por parte de
uma longa história, mas foi formulado com uma malevolê1u·h1 nda um dos parceiros - da heterogeneidade, da complemen-
particular - e sobretudo difundido como nunca anteriornw11 tnridade e da liberdade do outro.
te, graças à imprensa - por uma época em que no entanto 11 As raízes do medo da mulher no homem são mais numero-
a~te, a literatura, a vida da corte e a teologia protestante pn11 , l llS e complexas do que pensara Freud, que o reduzia ao temor
eram levar a certo destaque da mulher. Precisamos escl:1rt·1•111 du castração, ela mesma consequência do desejo feminino de
essa situação complexa e, além disso, acompanhar, a partir dL 1mssuir um pênis. Essa inveja do pênis não é sem dúvida senão
um novo exemplo, a transformação pela cultura dirigente de 11111 um conceito sem fundamento introduzido subrepticiamente na
medo espontâneo em um medo refletido. u•oria psicanalítica por um tenaz apego à superioridade mascu-
_ A atitu?~ 1~1ascu~ina em relação ao "segundo sexo" se111p11 llnn. Em compensação, Freud notava com razão que na sexua-
~01 co1_1~rad1tona'. oscilando da atração à repulsão, da adrn ir:1,·,111 lhlnde feminina "tudo é obscuro [...] e bastante difícil de estu-
a hostilidade. O Judaísmo bíblico e o classicismo grego cxpri11 il 1lur de maneira analítica". 3 Simone de Beauvoir reconhece que
ram alternadamente esses sentimentos opostos. Da idade 1h1 "o sexo feminino é misterioso para a própria mulher, oculto,
pedra, que nos deixou muito mais representações femiHi11:1s d11 11trn1111entado [...]. É em grande parte porque a mulher não se
que masculinas, até a época romântica, de certa manei rn 11 ruconhece nele que não reconhece como seus os seus deseJOS .
. "4
mulher foi exal~ada. De início deusa da fecundidade, "rn:ic d1 1'11r:1 o homem, a maternidade permanecerá provavelmente sem-
seios fiéis" e inJágem da natureza inesgot{ivel, com Atena tomn l'l't: um mistério profundo, e Karen Horney sugeriu com veros-
-se a divina sabedoria, com a Virgem Maria o canal de tod11 ,l111ilhança que o medo que a mulher inspira ao outro sexo
graça e o sorriso da bondade suprema. Inspirando os poetas, di• pt•cnde-se especialmente a esse mistério, fonte de tantos tabus,
Dante a Lamartine, "o eterno feminino", escrevia Goethe, "1111~ 1111'l'0res e ritos, que a religa, muito mais estreitamente que seu
arrebata par~ o ~!to". São João Crisóstomo, criança e mau alt.i,111, 5
1 0111panheiro, à grande obra da narnreza e faz dela "o santuário
rezava um dia diante de uma estátua da Virgem. Esta an i111011 ~,• 1111 cstranho". Daí os destinos diferentes e no entanto solidá-
6

e disse: "João, vem beijar meus lábios e serás cumulado de s:1111•1 1111s dos dois parceiros da aventura humana: o elemento mater-
[...). Não tenhas medo". O menino hesitou, depois apoiou 0 ~ no 1·cpresenta a natureza e o elemento paterno a história. Assim,
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as mães são sempre e por toda parte as mesmas, e os pai~~,,,, rnções sacerdotais eram recusadas e que era, em geral, proibi-
muito mais condicionados pela cultura à qual pertencem .1 Prn li de tocar em armas. A repulsa em relação ao "segundo sexo"
que mais próxima da natureza e mais bem informada de •11111 rn reforçada pelo espetáculo da decrepitude de um ser mais
segredos, a mulher sempre foi creditada, nas civilizações 11·1ull pr6ximo da matéria que o homem e portanto mais rápida e mais
cionais, do poder não só de profetizar, mas também de cu n11· 1111 ~l~ivelmente "perecível" do que aquele que pretende encarna r o
de prejudicar por meio de misteriosas receitas. Em contr:1p111 pirita. Daí a permanência e a antiguidade do tema iconográ-
tida, e de alguma maneira para valorizar-se, o homem defi11 l11 nl't> e literário da mulher aparentemente graciosa, mas cujo
-se como apolíneo e racional por oposição à mulher dio11isí11111 lurso, os seios ou o ventre são já podridão. Moralizado, esse
e instintiva, mais invadida que ele pela obscuridade, p11h1 11111111 tornou-se cristão, mas a alemã Frau Halle, a dinamarque-
inconsciente e pelo sonho. Em raz.ão de suas raízes profund11•1 n 1-:llefruwen e a sueca Skogsnufva - três representações da
a incompreensão entre os dois sexos pode ser descoberta 1•111 mulher que convida", mas cujo corpo pulula de vermes - são
todos os níveis. A mulher permanece para o homem um co11~ dr origem pré-cristã.8 Para a mentalidade masculina o arsenal
tante enigma: ele não sabe o que ela quer - constatação i'd t11 dus perfumes femininos não constituiu uma camuflagem da
especialmente por Freud. Ela o deseja herói e entretanto p1't1 t111'rt1pção latente, ou já presente, da parceira?
cura retê-lo em casa, pronta a desprez.á-lo se ele obedece. l•'. 111 1 Essa ambiguidade fundamental da mulher que dá a vida e
para ele eterna contradição viva, ao menos enquanto ele 1111t1 11111ncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especial-
compreendeu que ela é simultaneamente desejo do homc111 1 numte expressa pelo culto das deusas-mães. A terra mãe é o
aspiração à estabilidade: duas condições necess,írias para quem \11•11tre que nutre, mas também o reino dos mortos sob o solo ou
realize a obra criadora de que está encarregada. 1111 1lgua profunda. É cálice de vida e de morte. É como essas
Mistério da maternidade, porém mais amplamente :1i11d11 111 nns cretenses que continham a água, o vinho e o cereal e
mistério da fisiologia feminina ligada às lunações. Atraído pcl11 111111bém as cinzas dos defuntos.
mulher, o outro sexo é do mesmo modo repelido pelo flu x1J l~la "tem uma face de trevas", escreve Simone de Beauvoir,
menstrual, pelos odores, pelas secreções de sua parceira, pl·lo ~ o caos de onde tudo se originou e para onde tudo deve um
líquido amniótico, pelas expulsões do parto. Conhece-se 11 11111retornar [...]. É noite nas entranhas da terra. Essa noite onde
constatação humilhada de Santo Agostinho: "Inter 11ri1111m 1'/ 11 homem é ameaçado de abismar-se, e que é o avesso da fecun-
faeces nascinmr". Essa repulsão e outras semelhantes engend rn 1lltlnde, o apavora".9
ram ao longo das eras e de um extremo ao outro do planct11 Não é por acaso que em muitas civilizações os cuidados dos
múltiplas interdições. A mulher que tinha suas regras era tid11 111111·tos e os rituais funerários cabem às mulheres. Elas eram
como perigosa e impura. Corria o risco de ser portadorn d1• 11111Hideradas muito mais ligadas do que os homens ao ciclo - o
toda espécie de males. Então, era preciso afastá-la. Essa impu 111111110 retorno - que arrasta todos os seres da vida para a mor-
reza nociva era estendida à própria parturiente, de modo q,11· h• 1• ela morte para a vida. Elas criam, mas também destroem.
ela precisava ser, após o nascimento, reconciliada com a s<fcil' 1>11í os nomes incontáveis das deusas da morte. Daí as múlti-
dade por meio de um rito purificador. Apesar disso, em mui1 :1~ ,lns lendas e representações de monstros fêmeas. "A mãe ogra
civilizações, considerou-se a mulher um ser fundamentalm e1111• 1Medeia é uma delas] é um personagem tão universal e tão
maculado, que era afastado de certos cultos, a quem muit:1~ 11111 igo quanto o próprio canibalismo, tão antigo quanto a

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humanidade."'" Inversamente, os ogros masculinos são ra rm lcnnscença, desdobram-se na época em afirmações categóri-
Por trás das acusações feitas nos séculos XV-XVII contra tan111• 1111 sobre o atamento da agulheta - verdadeiro equivalente da

feiticeiras que teriam matado crianças para oferecê-las a S:1111 ,~tração, já que a vítima se via, momentânea ou definitiva-
encontrava-se, no inconsciente, esse temor sem idade do dc111~ hllinte, privada de sua potência viril.H
nio fêmea assassino de recém-nascidos. A deusa hindu K:1111 No inconsciente do homem, a mulher desperta a inquiet u-
mãe do mundo, é sem dúvida a representação mais grandirnot de, não só porque ela é o juiz de sua sexualidade, mas também
que os homens forjaram da mulher a uma só vez destruidrn·11 1 11111•que ele a imagina de bom grado insaciável, comparável a
criadora. Bela e sedenta de sangue, ela é a deusa "perigos:1" 11 11111 fogo que é preciso alimentar incessantemente, devoradora
quem é preciso sacrificar todos os anos milhares de animais. lf 111110 o louva-a-deus. Ele teme o canibalismo sexual de sua
o princípio materno cego que impulsiona o ciclo da renov.1~·n11 p111 ceira, assimilada por um conto do .Mali a uma enorme caba-
1

Ela provoca a explosão da vida . .Mas ao mesmo tempo espal ltu ~ t que, ao rolar, devora todas as coisas à sua passagem.'; Ou
cegamente as pestes, a fome, as guerras, a poeira e o <.:a 1111 1l11dn ele imagina Eva como um oceano no qual seu frágil navio
opressivo.11 À sanguinária Kali correspondiam de certa ma1wl rh11ua com precariedade, como um sorvedouro que o aspira,
ra nas mentalidades helênicas, as Amazonas "devoradoras" d, 11111 lago profundo, um poço sem fundo. O vazio é a manifesta-
ca,rne humana, as Parcas que cortavam o fio da vida, as l•:l'I ~Ro fêmea da perdição. Assim, é preciso resistir aos turvos
nias "assustadoras", "loucas" e "vingadoras", tão terríveis q111 1p1.1los de Circe e de Lorelei. Pois, de qualquer maneira, o
os gregos não ousavam pronunciar seu nome. A Dulle GrÍl'/1 ho111e111 jamais é vencedor no duelo sexual. A mulher lhe é
".Margot, a furiosa", de Brueghel, não exprime por sua vc1. 11 l,11nl''. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espirituali-
temor masculino diante do cego arrebatamento femin ino?': 1la1dc, de encontrar o caminho de sua salvação. Esposa ou
O medo masculino da mulher vai portanto além do tcll l!ll •mnnte, é carcereira do homem. Este deve, pelo menos, às vés-
da castração identificado por Freud. .Mas o diagnóstico dc~m 11111·11s ou no caminho de grandes empreendimentos, resütir
nem por isso é errôneo, com a condição contudo de desprend~ •- seduções femininas. Assim fazem Ulisses e Quetzalcoátl.
-lo do suposto desejo feminino de possuir um pênis que ,1 pNI ~111•11111bir ao fascínio de Circe é perder a identidade. Da Índia
canálise em seu início postulara sem prova suficiente. Dos~i~~ • América, dos poemas homéricos aos severos tratados da
clínicos, mitologia e história confirmam, com efeito, o medo d11 l(11lh rma Católica reencontra-se esse tema do homem perdido
castração no homem. Contaram-se mais de trezentas vers,,,,_
11111•11ue se abandonou à mulher.
do mito da Vflginn dentnta entre os _indígenas da Améric.1 cl11
Um homem ser amigo de uma mulher foi, por muito tem-
Norte, mito_. que se reencontra na India, por vezes com 1111111
variante igualmente significativa: a vagina não tem dentes, 1111, ~
i'º• considerado impossível. Tudo se passa, escreve .Marie-
( )dile .Métral, "como se [a amizade] fosse uma invenção dos
está cheia de serpentes. O medo da castração se exprime: 1111
longo de um capítulo inteiro de O martelo das feiticeiras: '.'i\~ homens para dominar seu velho medo da mulher". A ligação
11111istosa aparece então como um meio de "neutralizar a magia
feiticeiras podem iludir até fazer crer que o m:m~ro _}11"11 f-
retirado ou separado do corpo?"13 A resposta e: sim, sendo h 111inina, efeito do poder da mulher sobre a vida e de sua coni-
\'llncia com a natureza". A partir daí, "sujeitar a mulher é domi-
garantido, além disso, que os demônios podem realmente s11li
11111' o caráter perigoso que se atribui à sua impureza fundamen-
trair o pênis de alguém. Essa pergunta e essa resposta, q_uc Nt
encontram na maior parte dos tratados de demonologia du 1111 e à sua força misteriosa".' 6

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lvlal magnífico, prazer fun esto, venenosa e engan:1dm 111 , nhnvam-no assim como algumas mulheres que tinham sido
mulher foi acusada pelo outro sexo de ter introduzido 11:1 11111 , 111clas de espíritos maus e de doenças: Maria, apelidada de
o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva jucluh , "dnlena [...],Joana, mulher do Chouza, intendente de Herodes,
ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continh:1 trnh, 1,1111:1 e várias outras que os assistiam com seus bens" (Lucas
os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procum11 11111 111 ,1-4). Ao passo que todos os discípulos, exceto J oão, abando-
responsável para o sofrimento, para o malogro, para o dc~11p 1 llt o Senhor no dia de sua morte, mulheres permanecem, fiéis,
recimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Crn111, 1 pé da cruz. Serão as primeiras testemunhas da ressurreição:
não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando srn 11 11110 sobre o qual concordam os quatro Evangelhos.' 8 M:1s,
A caverna sexual tornou-se a fossa viscosa do inferno. ~de o início e especialmente com são Paulo, a Igreja teve difi-
1ltlnde em passar da te::oria à prática. A igualdade preconizada
111 Evangelho cedeu diante dos obstáculos de fato, oriundos do
Assim, o medo da mulher não é uma invenção dos :lM't'hl 1111exto cultural no qual o cristianismo se difundiu.' 9 Agiram
cristãos. i\tfos é verdade que o cristianismo muito cedo o int t:µ 11111 111j11ntamente contra "o anúncio contestador da igual
e em seguida agitou esse espantalho até o limiar do século \ l11nidade"1º dos dois cônjuges as estruturas patriarcais dos
1
Vale dizer que o antifeminismo agressivo que destacaremos 111111 1lu11s e dos greco-romanos e uma longa tradição intelectual
particularmente durante o período dos séculos xrv-xvrn 11:10 l'I 1 Ili', cio pitagorismo ao estoicismo, passando por Platão, gabava-
uma novidade no discurso teológico. Esta era uma justa lcit 111 11 ,, tio desapego à realidade terrena e exibia igual desprezo pelo
1
do Evangelho? Ao contrário, encontra-se nos textos que d:\o 1 t11hnlho manual e pela carne ("Totn 11111/ier in utero"). São Paulo,
conhecer o ensinamento de Jesus " um sopro de caridade q111· 1 qur está na origem das ambiguidades do cristianismo em relação
1
estende tanto às mulheres quanto aos leprosos" (Simonl' 1h 11 problema feminino, por certo proclamou o universalismo
Beauvoir)," e sobrerndo a exigência revolucionária de umn ig1111I \'llngél ico ("Não há nem judeu nem g rego [...], nem escravo nem
1 dade fundamental entre o homem e a mulher. Aos fariseus q111 l111111em livre, nem homem nem mulher: pois todos vós não sois
lhe perguntam se é permitido repudiar sua mulher por qualq1111 111\0 um em C risto Jesus" [Epístola aos gálatas m,81). Mas filho
motivo, Jesus responde: "Não lestes que o Criador, desde :1 rn l 11111110 de fariseu ao mesmo tempo que cidadão romano, ele
1
gem, os fez homem e mulher e disse: 'Assim então o 1101111•111 llllll'ibuiu para situar a mulher cristã em uma posição de subor-
j 1 deixará seu pai e sua mãe para ligar-se à sua mulher e os d11I~ 1hn11çiio simultaneamente na Igreja e no casamento. Exigiu que
farão uma só carne?' Assim eles não são mais duas, mas um:1 •,11 ll\11 \SC a cabeça velada nas assembleias de oração e, lembrando o
carne" (Mateus,xix,1-9, e Marcos x,1-9). A atitude de Jcsw, 1·111 1 l(Ullclo relato da criação (Gênesis u,21-24), escreveu: "Não foi
1
relação às mulheres foi a tal ponto inovadora que chocou nté ~t•11~ 11 homem, evidentemente, que foi criado para a mulher, mas a
discípulos. Se as mulheres judias não tinham nenhuma particip11 111ulhcr para o homem" (1 Coríntios XJ,9)- palavras parcialmen-
1
ção na atividade dos rabinos e eram excluídas do culw d11 h desmentidas pelo contexto - mas deste a tradição cristã
Templo,Jesus de bom grado cerca-se de mulheres, conversa cli11 ~•111cceu de se lembrar. Quanto à célebre alegoria· conjugal,
1
1 elas, considera-as pessoas inteiras, sobretudo quando são despi 11 1111•nou-se o fundamento "do dogma da subordinação incondicio-
zadas (a samaritana, a pecadora pública). E le associa mulherc, 1\ 11,11ln ela mulher ao homem" e contribuiu para "sacramentar uma
sua atividade de pregação: "Os doze", escreve são Lucas, "aco111 111111çiio cultural antifeminista".11 Lembremos seus termos: "Que

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as mulheres sejam submissas a seu marido como ao Senhor; {'OIII encontrado em santo Ambrósio, que também denigre o casa-
efeito, o marido é chefe [= cabeça] de sua mulher, como Crisio t 1cnto. É verdade que, ao exaltar a virgit~dade, ele propõe um
chefe da Igreja, ele, o Salvador do corpo. O ra, a Igreja se suh1111 lpo de feminismo inédito destinad_o a uma longa carreira: não
te a Cristo; as mulheres devem portanto, e da mesma ma11cl1t1 011<10 o casamento senão um último recurso, não trazendo a
submeter-se, em tudo, a seus maridos" (Efésios v, 22-24). 11111tcrnidade senão dores e aborrecimentos, mais vale deles des-
Duas passagens do co1pus pauliniano desempenharam p:1p1 1 h1r-se e optar pela virgindade, estado sublíme·e quase divino.N
importante na exclusão das mulheres do ministério presbitcrhil Jl,11·n são Jerônimo, o casamento é um dom do pecado. E scre-
-episcopal. Em primeiro lugar, I Coríntios XIV, 34-35: "Q111• li t111do a uma moça, a quem aconselha que permaneça virgem,
mulheres se calem nas assembleias, pois não lhes é perm itlth, lt• trata com desprezo o mandamento bíblico: "Crescei, multi-
tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a pn'ip1 h1 rllt·ni e enchei a terra".
lei o diz". A segunda passagem (I T imóteo II, 11-14) é igual1111•11
te categórica - Santo Tomás se baseará nela - e declara: "11 11 Ousas depreciar o casamento que foi abençoado por D eus?,
não permito à mulher ensinar e governar o homem".Am:1io1111 direis. Preferir-lhe a virgindade não é de modo algum de-
dos exegetas pensa agora que esses textos são interpolações. P1 li preciar o casamento [...]. Ninguém compara um mal a um
outro lado, são Paulo manifestou várias vezes seu reconheci11w11 bem. Que as mulheres casadas tenham orgulho de tomar
to em relação às mulheres cuja atividade apostólica secund:1v11 11 h.1gar atrás das virgens. "Crescei, multiplicai e enchei a ter-
sua. Seguramente ele não era um misógino. De todo modo, crn11 ra" (Gênesis 1: 28). Que cresça e se multiplique aquele que
pactuou com o androcentrismo de seu tempoY quer encher a terra. A ti, tua coorte está nos céus. "Crescei
Acentuaram ainda a marginalização da mulher na c u lt 11111 e multiplicai [...]": esse mandamento foi proferido após o
cristã, a fim de se constituir à espera do fim do mundo, pt1I paraíso, após a nudez e as folhas de figueira que anunciavam
muito tempo considerado próximo, a exaltação da virgi11cl:1dt os loucos abraços do casamento.15
e da castidade e a interpretação masculinizante do relato d11
queda no Gênesis (m,1-7). A partir daí, não nos surpreencl:111\11- A sexualidade é o pecado por excelência: essa equação pesou
de encontrar sob a pena dos primeiros escritores cristãos e d11~ Íflllt cmente na história cristã. O casamento que se acostuma às
Doutores da Igreja traços antifeministas solidamente fu 11d11 \'oh'1pias - sendo estas comparadas ao "pus" por Metódio de
mentados. Tertuliano, dirigindo-se à mulher, diz-lhe: "[... I ' l\1 ( lllmpo - opõe-se à contemplação das coisas divinas. Ao con-
deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e 111crg11 11 ilrio, "a virgindade", escreve Marie-Odile Métral, "integrida-
lhada na penit~ncia, a fim de compensar a culpa de ter trnid11 1h1 física, purificação da alma e consagração a D eus [.. .], é
a perdição ab gênero humano [...]. Mulher, tu és a porr:1 cl11 11 torno à origem [e] à imortalidade das quais atesta a realidade"u,_
diabo. Foste tu que tocastes a ,frvore de Satã e que, em prinwl ~1111clo o desejo considerado turvo, mau e insaciável, uma série
ro lugar, violastes a lei divina"Y 1lr relações se estabelece por muito tempo desde o tempo dos
A agressividade de Tertuliano e sua austeridade excessiv11 l l1111tores da Igreja, o que Marie-Odile Métral apresenta da
camuflavam uma verdadeira aversão pelos mistérios da mif II rt• 11 ~uinte maneira:17
za e da maternidade. No De mo11ogttmia, ele evoca com rc p11 l•ot
as náuseas das mulheres grávidas, os seios pendentes e as cri:111 t:11samento segundas núpcias animalidade perversidade
ças que berram. De certa maneira, o espírito de Tertuli:rno 1 virgindade viuvez divindade santidade

470 471
Nos meios de Igreja, tem-se doravante como vcnl111h 1111.inha papel positivo na geração, sendo a mulher apen as
dente que "virgindade e castidade preenchem e pov1111111 11101110. Não há verdadeiramente senão um único sexo, o
assentos do paraíso" - formulação do século X V I. M 11M, 1 ulil\o. A mulher é um macho deficiente. Portanto, não é
tando a virgindade feminina, a teologia não deixo11 d11 , 111 11111so que, ser débil, marcado pela imbecillitns de sua natu-
nuar teorizando a misoginia fundamental da cuh 111 ,1 'I um clichê mil vezes repetido na literatura religiosa e
inconscientemente adotara. Contudo, como concili:1r ~•NNI 11 h11 - , a mulher tenha cedido às seduções do tentador.
feminismo com o ensinamento evangélico sobre a igunl 1ht PI, l.)ln deve permanecer sob tutela.)' "A mulher tem nece~-
dade do homem e da mulher? Santo Agostinho conSl'f\111 1 1' tio macho não só para gerar, como entre os outros am-
graças a uma surpreendente distinção: todo ser huma1H11 ,h, 1 1 1111\S até mesmo para governar-se, pois o macho é mais

ra ele, tem uma alma espiritual assexuada e um corpo Sl'\ 11 ,1 lto por sua razao -
e mais. e .
rorte em virtu de." JJ
No indivíduo masculino, o corpo reflete a alma, o que 11R11 H1111to Tomás de Aquino esforçou-se contudo em dessacra-
caso da mulher. O homem é portanto plenamente i,11111-11 111 1111 proibições relativas ao sangue menstrual, adotando a
Deus, mas não a mulher, que só o é por sua alma e cujo, 111 u•~pcito, no interior, é claro, do sistema aristotélico, uma
constitui um obstáculo permanente ao exercício de s 1111 111 uh• que se poderia qualificar de científica. Para ele, as
Inferior ao homem, a mulher deve então ser-lhe sub111 ism1 ~ sfo o resíduo do sangue produzido em último lugar pela
Essa doutrina, posteriormente agravada em textos l,11 11110; ele serve para fabricar o corpo do filho: Maria não
mente atribuídos ao próprio santo Agostinho e a san111 \11 11lt uiu de outro modo o de Jesus.34 Mas tabus provenientes
brósio, passou com estes para o famoso Decreto de G raci111111 q, rundo das eras não se deixam abater facilmente pelo racio-
volta de 1140-50), que se tornou até o começo do século \ 111. Numerosos autores eclesiásticos (Isidoro de Sevilha,
principal fonte oficiosa do direito da Igreja 29 e no qual s1• 111111 n,111 de Bolonha etc.) e os canonistas glosadores do Decreto
ler: "Essa imagem de Deus está no homem [= Adão!, 1•1hui ( ,1 11aiano afirmaram, ao longo de toda a Idade Média, o
único, fonte de todos os outros humanos, tendo rccchid11 11 1111' impuro do sangue menstrual, referindo-se muitas vezes
Deus o poder de governar, como seu substituto, porque é n 1111, Ih hnmente à História natuml de Plínio. Segundo eles, esse
gem de um Deus único. É por isso que a mulher nã'o fo i li li N111' carregado de malefícios impedia a germinação das plan-
à imagem de Deus". Graciano endossa em seguida o tcxt11 ti
1111,cndo morrer a vegetação, corroía o ferro, provocava a
pseudo Ambrósio: "Não foi sem motivo que a mulher foi 1·1•li11l,
~,I nos cães. Penitenciais proibiram a mulher que estivesse
não da mesma terra de que foi feito Adão, mas de uma l'O~t1 I
11~11•uada de comungar, e até de entrar na Igreja. Daí, por
de Adão [--l''Foi por isso que Deus não criou no comc~·o 1111
11111~1fo, as mulheres serem proibidas de servirem à missa,
homem e uma mulher, nem dois homens nem duas mull11111 35
11 11111 os vasos sagrados, terem acesso às funções rituais.
mas primeiro o homem, em seguida a mulher a partir dck",
Portanto, santo Tomás de Aquino não inovou ao cn~l11 ,
A~sim, a Idade Média "cristã", em uma medida bastante
por sua vez que a mulher foi criada mais imperfeita , 1111 , 11h11 somou, racionalizou e aumentou as queixas misóginas
homem, mesmo quanto à sua alma, e que deve obedece, Ili l1ld11s das tradições de que era a herdeira. Além disso, a cul-
"porque naturalmente no homem abundam mais o disn •111I r11 1111contrava-se agora, em vastíssima medida, nas mãos de
mento e a razão". 3' 1v1as aos argumentos teológicos ele acrcM'l'II 1IHOH celibatários que não podiam senão exaltar a virgindade
tou, para equilibrar, o peso da ciência aristotélica: só o '101111111 11l11l'CCer-se contra a tentadora de quem temiam as seduções.

472 473
Foi bem o medo da mulher que ditou à literatura mon~NI h lhor enlaçada por uma serpente e cujo sexo é devorado por
esses arnítemas periodicamente lançados contra os all'III 1\1, 1 unorme sapo; na catedral de Rouen a dança de Herodíades;
falaciosos e demoníacos da cúmplice preferida de Satã. 1•nteclral ele Auxerre, a jovem que cavalga um bode: quatro
Odon, abade de Cluny (século x): "A beleza física 111111 111 111plos entre mil.
além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, :1 vi~ 11 Niio caiamos por nossa vez no simplismo. A Idade Média
das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem Sl'q111, phou cada vez mais Maria e consagrou-lhe imortais obras de
podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou cst1111 , , 11•1 e, por outro lado, inventou o amor cortês que reabi litou a
com o podemos desejar abraçar esse saco de excremento?"•• ,1~·iio física, colocou a mulher sobre um pedestal a ponto de
Marborde, bispo de Rennes e depois monge em J\111111 lll' dela a suserana do homem apaixonado e o modelo de
(século XI): lus ns perfeições. O culto mariano e a literatura dos trovaclo-
t iveram prolongamentos importantes e talvez tenham con-
Dentre as incontáveis armadilhas que nosso inimigo ;1nllh1 lh11{do a longo prazo para a promoção ela mulher. Mas a longo
so armou através de todas as colinas e planícies do 11111111h, ,1w apenas. Pois na Idade Média não foram interpretados e
a pior é aquela que quase ninguém pode evitar é a m11ll111 llll1.11dos como uma espécie de colocação à parte, fora de alcan-
funesta cepa de desgraça, muda de todos os vícios, Cjlll', 11 ' de personagens femininos excepcionais, de modo algum
gendrou no mundo inteiro os mais numerosos esdndnh, 111•csentativos ele seu sexo? A exaltação ela Virgem Maria teve
[...]. A mulher, doce mal, ao mesmo tempo favo de t·1•111 1 11110 contrapartida a desvalorização da sexualidade. Quanto à
veneno, que com um gládio untado de mel corta o c;on1~1II• h 1•otura cortês, não chega, mesmo na Occitanie, sua terra ele
até dos sábios. 3' 1111\•~o, a mudar as estruturas sociais.39 Além disso, continha
111 ~1 mesma uma evidente contradição. Por certo o fin'anwn (o
Os monges, naturalmente para justificar a si mesmos, 1111 111111' puro) concedia a iniciativa às damas e constituía uma
tavam de desviar os outros do casamento. Assim faz Rog1•1 1h ptkie de triunfo sobre uma m isoginia quase universal, sem
Caen no século XI: 11 Isso negar a sexualidade. O asag - isto é, o "pôr à prova",
1111 nudez de parceiros, abraços, carícias e toques, mas recusa
Acredita-me, irmão, todos os maridos são infelizt:s 1 1 1111rgasmo masculino - constituía afinal uma técnica erótica
Aquele que tem urna esposa feia, dela se desinteressa 11 , 11111 elogio do prazer•0 que rompiam com o naturalismo vulgar
odeia; se é bela, ele tem um terrível medo dos galante:, I" 1 h11sti l à mulher cio segundo Roman de la rose. Mas, se o amor
Beleza e vir tude são incompatíveis [...]. Tal mulher d:í :1 NI li 11 l~S sublimava e mesmo divinizava tal ou qual mulher excep-
esposo ternos abraços e lhe concede doces beijos, e clcst i 11111 hnwl e uma feminilidade ideal, em contrapar tida abandonava
veneno no silêncio de seu coração! A mulher não tem 111111h, p11\ pria sorte a imensa maioria elas pessoas do "segundo sexo".
de nada; acredita que tudo é permitido.i• 1>11( os palinódias do clérigo André Le Chapelain, que, no De
N/tll"V (por volta de 1185), após dois livros em que canta os
É o mesmo discurso injusto e odioso fundado erl 1111111 11i'1,1tos da clama e a submissão cio amante, lança-se em seg·uida
oposição simplista entre o branco e o negro - sendo o brn,1111 111 11111a furiosa diatribe contra os vícios femininos. Daí ainda
o universo do homem e o negro o da mulher - , expresso plll 110 passar do amor cortês ao amor platônico - o estranho
inúmeras esculturas medievais: em Charlieu e em Moiss:11,1 11 p1111doxo de um Petrarca apaixonado por Laura, angélica e
474 t/75
irreal, mas alérgico aos cuidados cotidian os do cas:111w111, nko é acompanhada de um doloroso esforço por mais rigor
hostil à mulh er real, considerada d iabólica: 11111. Nessas condições, pode-se legitimamente presumir, à
1111 psicologia das profundezas, que uma libido mais do que
A mulher[...] é um verdadeiro diabo, uma inimig:1 1h1 p 1•11 reprimida transformou-se neles em agressiv idade.41
uma fonte de impaciência, uma ocasião de clisp11t11• 11 • sexualmente frustrados que não podiam deixar de conhe-
quais o homem deve manter-se afastado se quer f{th 11 lcntações projetaram em outrem o que não queriam identi-
tranquilidade [...]. Que se casem, aqueles que encntll 1 , r 0111 si mesmos. Colocaram diante deles bodes expiatórios
atrativo na companhia de uma esposa, nos abraço~ 1111111 podiam desprezar e acusar em seu lugar.
nos, nos ganidos elas crianças e nos tormentos d:1 111 1111 ( :om a entrada em cena das ordens mendicantes, no século
[...]. Por nós, se está em nosso poder, perpetuarernoN1111 111 pregação adquiriu n a Europa importância extraordinária,
nome pelo talento e não pelo casamento, por livnm 1 11 111nplitude agora temos certa dificuldade de avaliar. E seu
por filhos, com o concurso da virtude e não com o d1• 1111 1111'1<> aumentou ainda mais a partir das duas Reformas, pro-
mulher.41 "lllc e católica. Embora a maior parte dos sermões de outro-
, 1tljn perdida, aqueles que nos restam deixam adivinhar bem
Bela confissão de egoísmo misógino que prova, no <·11-11 lmam frequentemente os veículos e os multiplicadores de
"primeiro homem moderno" de nossa civilização, o fraco l111p 1 111isoginia com base teológica: a mulher é um ser predesti-
to do amor cortês sobre a cultura di rigente ainda do111l11, 1 111 no mal. Assim, jamais tomaremos precauções suficientes
pelos clérigos. li 11 ela. Se não a ocupamos com sãs tarefas, em que não pen-
11111? Escutemos pregar são Bernardino de Siena:

2. A DIABOLIZAÇÃO DA MULHER 11 preciso varrer a casa? - Sim. - Sim. Faze-a varrê-la. É


É precisamen te na época de Petrarca que o medo d:t 1111ilh pt cciso lavar de novo as tigelas? Faze-a lavá-las. É preciso
aumen ta ao menos em uma parcela da elite ocidcnt:1I. ,\ , 11, pt 11cirar? Faze-a peneirar, faze-a então peneirar. É preciso
convém lembrar um dos temas dominantes do prescn11• 1111 l11vnr a roupa? Faze-a lavá-la em casa. - Mas há a criada!
ao mesmo tempo que se adicionam pestes, cismas, ~g,11•11 1 Que haja a criada. Deixa fazer a ela [a esposa], não por
temor do fim do mundo - uma situação que se instala p111 li tll'l'Cssidade de que seja ela que o faça, mas para dar-lhe
séculos - , os, mais zélosos dos cristãos tomam conscic:111·h1 11 1 ~11rcício. Faze-a vigiar as crianças, lavar os c ueiros e tudo.

múltiplos perigos que ameaçam a Igreja. O que se ch:1 1111111 1 S11 t II não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom p e-
"escalada da exasperação e do excesso" foi na realidade 11 1111• il1111inho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo.
tituição de uma mentalidade obsidional. Os perigos id1•111 li I•11quanto a mantiveres atenta, ela não perm anecerá à jane-
cáveis eram diversos, externos e internos. Mas Satã cs1111 11 J l,11 e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra.43
trás de cada um deles. Nessa atmosfera carregada ele 1011/11
tades, pregadores, teólogos e inquisidores desejam 1110111 1 Nus obras do pregador alsaciano Thomas Murner, princi-
todas as en ergias contra a ofensiva demoníaca. Além dis~11, 111 1111•111c em Conjuração dos loucos e em Confraria dos diabretes
do que nunca querem dar o exemplo. Sua denúncia do r111111 1 1111hus de 1512 - , o homem certamente não é poupado, m as

476 477
a mulher é ainda mais vilipendiada.44 Em primeiro lugn 1, 1 I 01•io provar suficientemente contra os inimigos de nossa
um "diabo doméstico": à esposa dominadora é preciso p1111 11 - transposição no plano teológico da sentença dos juris-
to não hesitar em aplicar surras - não se diz que el:1 l l ' lll , 1 "As mulheres - diante dos tribunais - são sempre menos
vidas? E~ seguida, é comumente infiel, vaidosa, vid11 1 eis que os homens".48
coquete. E o chamariz de que Satã se serve para at rair o tlltll Ao longo dos séculos, as litanias antifeministas recitadas
se~o ao inferno: tal foi durante séculos um dos temas illl'~/jlll 11~ pregadores quase só terão variações na forma. No século
veis dos sermões. Como provas, entre mil outras, estas p11111 1,Jean Eudes, célebre missionário do interior, ataca um dia,
acusações lançadas por três pregadores célebres dos séc11l11 uindo são Jerônimo, as "amazonas do diabo que se armam
e XVI: Ménot, .Maillard e Glapion. "A beleza na mulher l' 11111 p1•s à cabeça para fazer guerra à castidade, e que por seus
de muitos males", afirma Ménot, que, aliás sem orig in:1ll,h11I los frisados com tanto artifício, por seu refinamento, pela
brada contra a moda: fl,,, de seus braços, de seus ombros e de seus colos, matam
princesa celeste nas almas que massacram, também com a
Para se fazer ver pelo mundo [a mulher que não se co111111 l\111 primeiro lugar".49

ta com trajes que convém a seu estado] terá toda cs1ll:c•l1 11 No começo do século XVIII, Grignion de Montfort "decla-
vãos ornamentos: grandes mangas, a cabeça ataviada, o 111 lt ~uorra" a todas as mulheres coquetes e vaidosas, provedoras
descoberto até o ventre com um fichu leve, através do qrnd Inferno:
pode ver o que não deveria ser visto por ninguém 1... 1. 11 1 t
em tal libertinagem de trajes que ela passa, o livro de h111, Mulheres belas, rostos formosos
Como vossos eucantos são cn1éis!
sob o braço, diante de uma casa onde há uma dezcn:1dl' 111
Como vossas belezas infiéis
mens que a olham com um olho de cobiça. Pois bem, 11111 1 lt
Fazem perecer crimiuosos!
um só desses homens que por causa dela não caia no 1w1 1111
mortal:'
Pagareis por essas almas
Que fiz estes pecar
Para Maillard, a cauda dos longos vestidos "acaba de 111 1 , Que vossas práticas infames
a mulher se parecer com um animal, pois que ela já se U1c ,,~~, Fizemm afinal cmnbalem:
melha por sua conduta". E "os ricos colares, as corrcnH•~ 11,
ouro bem atad~s a seu colo" assinalam "que o diabo a 1c 111 1 , Enquanto estiver na terra,
arrasta com e!e, atada e acorrentada". As damas de seu l t• 111111 Ídolos de vaidade,
acrescenta ele, gostam de ler "livros obscenos que fol a111 tl1, Eu vos declaro ti guerra,
amores desonestos e da volúpia, ao invés de ler no grande li\ 1, Armado da verdade.rn
da consciência e da devoção". Enfim, suas "línguas [...] 1al{ill 1
las causam grandes males".46 Quanto a Glapion, con fosso,- ti l ,ombremos que se trata aqui de cânticos compostos para o
Carlos V, recusa-se levar em consideração o testemu nho ih 1 dos fiéis e que, no pensamento de seu autor, constituíam
.Maria Madalena sobre a ressurreição de Jesus: "Pois a 11111 1111 1 111ilmente sermões. Estes exprimiram de mil maneiras ao
entre todas as criaturas, é variável e mutável, pelo qul' 11 ll IIHO dos séculos o medo duradouro que esses clérigos consa-
478 479
grados à castidade experimentavam diante do outro scx11 I' 11 ,~mnd pénitencies* na corte de Avignon. Essa obra, esque-
não sucumbir aos seus encantos, incansavelmente o dceli11 ,11 nossos dias, merece ser exumada das bibliotecas.52 Foi
l' lll
perigoso e diabólico. Esse diagnóstico levava a extn1011ll11 r11~s11 em Ulm a partir de 1474, reeditada em Lyon em
rias inverdades e a uma indulgência singular em rcl:11;1111 ,, cm Veneza em 1560 - indicações cronológicas e geo-
homens. Como testemunho, este trecho de um panCHÍI li 1, rh 11~ que deixam adivinhar uma audiência relativamente
Henrique 1v pronunciado em 1776 em La Fleche pelo sup,, 1 11111111te, ao menos no mundo dos clérigos encarregados de
do colégio: Jlt' ns consciências. Ora, pode-se ler em sua segunda p:trte
lougo catálogo dos 102 "vícios e más ações" da mu lher. A
11•fipeito, assemelha-se muito, por sua estrutura e pelo
Deploremos aqui, senhores, a triste sorte dos reis 1•111 11
h1lis1110 das intenções, ao Fortalicimn fidei dirigido contra
dos artifícios funestos de que H enrique IV foi vít i11111 1
tlllllllS, Tudo o que O 11wrtelo das feiticeiras conterá de mais
sexo perigoso esquece as mais santas leis do recato l' 1h111, 111 110 é explicitado no De plauctu... com muitas referências
déstia, acrescenta aos seus encantos naturais os rccu1 n11 1'11•siástico, ao Livro dos provérbios, a são Paulo e aos Dou-
sua arte diabólica, ataca sem pudor, trafica sua vi, t 11111 • tln Igreja. Essas citações se tornam incendiárias porque
disputa a humilhante vantagem de enfraquecer nosNn 111, 1h•~l·oladas de seu contexto e extraídas arbitrariamente de
e de corromper seu coração.;' IWll'll favorável a um antifeminismo virulento. Encontramo-
11qni diante daquele que é talvez o documento maior da
Assim, o sermão, meio eficaz de cristianização a p111 t li 1tlldnde clerical à mulher. Mas esse apelo à guerra santa
século x m, difundiu sem descanso e tentou fazer pctll'I 1111 11 11 11 11 aliada do diabo só é compreendido se reinserido no
mentalidades o medo da mulher. O que na alta Idade M11tlh1 11 que o lançou: o das ordens mendicantes preocupadas

discurso monástico tornou-se em seguida, pela ampli:1~·1111111 1 11 cristianização e inquietas com a decadência do corpo
gressiva das audiências, advertência inquieta para uso tl1• 1• 111 ,1111.
Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos 1 11 11 C) livro 1 trata de maneira pouco original da constit uição
e vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã. 11111 jn. Ma~ o segundo expõe de modo patético a miséria da
1t111dade. E no interior dessa longa queixa que se situa, no
l~n XLV - o mais extenso do volume - a litania das cen-
• 1111dereçadas às filhas de Eva. Ora o franciscano põe em
Naturalmeme, os pregadores não faziam senão c.xpl111 ,, , 11111 "as mulheres" ou "mulheres", ora "certas mulheres",
distribuir amplàmente com a ajuda do jogo oratório tttl HI 1h 111111:; categoricamente "a mulher", e é contra esta como tal
trina estabelecida havia muito tempo por doutas ol>r11~ 1 111• instrui o processo sem que a acusada jamais seja assis-
estas, por sua vez, conquistaram um novo prestíg io /{111\, • jHll' um advogado. Desde o início, fica entendido que ela
imprensa que contribuiu para oprimir a mulher ao 1111 , 11lhn "todos os vícios" do homem. Mas, além disso, tem os
tempo em que reforçava o ódio ao judeu e o temor do 1111 ~
mundo. Por exemplo, o De planctu ecclesiae redigido ptll \• 1 1 1 11rdca l que preside a Penitenciária Apostólica, tribunal eclesiástico de
de 1330 a pedido de João XXII pelo franciscano Alv;i ro 11111 1t (N. E.)

480 481
e) Mulheres são "adivinhas ímpias" e lançam mau-olhado.
seus
l · S próprios
. . 'mt~· ·damen_te d iagnosticados pe la Escritun 1 : "i', umas, "muito criminosas", "servindo-se de encantamentos,
n: l;~~;a_lavra.s sao mel_1f_luas [...]; n• 2: Ela é enganadora 1...1 malefícios e da arte de Zabulão", impedem a procriação.
. d I t(a che1~ _de. mahc1a. Toda malícia e toda perversid:Hh vocam a esterilidade com ervas e composições mágicas.
~em. e ª EclesiaSt1co 25) [...); 110 44: É faladora sobretudo 111 cquentemente (notar-se-á a insistência nesse advérbio] sufo-
igre1a. [...]; n2 81: Muitas vezes tomadas de dclírío el s . 11, por falta de precaução, os fi lhos pequenos deitados [com
seus filh [ ) , a m:u.1111
os ... i 11" 102 : A1gumas são incorrigívei·s [ ]" 1I em sua carna. Frequentemente, elas os matam, tomadas de
Ad · d · ... · IMo. Algumas vezes, são as colaboradoras do adultério: seja
. , . es~c~to e suas mtenções metódicas, esse catálogo co11
temi epet1çoes e carece de coerência interna. Mais vale po n ·111 r1111e entregam virgens à libertinagem, seja porque se arran-
to
. reagrupar
. . , . em sete pon t os os argumentos principais de .11111 11 para fazer abortar uma moça que se abandonou à fornica-
teqrns1- tono, que . amalcramao' , a' rcve 1·ia mesmo de seu autor at'II (n"' 43, 79, 80, 81)
i,"
saçoes
d· .teolog1cas
d . ~ unemona
' mcd · · 1 d a mulher, autoritaris1111 ' 1 d) A acusação mais longamente desenvolvida - ela consti-
,is soc1e ~des p~tn~rca1s e orgulho do clérigo macho. 1o número 8 do artigo - é assim formulada: "A mulher é
3/ 9u,e1xa primeira, ao menos ao nível da consciência ch111 lnistro de idolatria". Pois "torna o homem iníquo e o faz
E
. va ,: ro1
•• o d'começo" e a " mae - d O pecad o ,,. Ela significa para ' seu· 111cter aposrnsia"; no que é comparável ao vinho que provoca
mre11zcs escendentes " ª expu . . Jsao
- d o paraisa
, terrestre" \ mesmo resultado. Quando nos abandonamos à paixão da
mul.her é então doravante "a arma do diabo" "a cor .~ . 1 rnc, erguemos um templo a um ídolo e abandonamos o ver-
toda le i" fi d . , rupç.1<1 e 1
" , a onte e toda perdição. Ela é " uma fossa profund11• tlciro Deus por divindades diabólicas. Assim fez Salomão,
flumh poço d cstre'ti o ". "Ela mata aqueles a quem enganou"; "11 l' não teve menos de setenta esposas - "elas foram quase
, ~,c a de dseu olhar tran._spassa os mais valorosos". Seu cot"11'1t1 1 11110 rainhas" - e trezentas concubinas. No tempo de seus
e da r e e o caçaclor,,· E' " uma morte amarga" e por ela fo11111 ·, regramemos, ele sacrificou ao~ ídolos que elas adoravam:
to os condena?os ao trespasse (introdução e n"' 6, 7 e 16). •1111·te, Thamuz, Moloch etc. E o seu mau exemplo que
f b)dE la atrai os homens por m e·10 d e c1rnmanzes . • mentm,, . 11 ~ucm os cristãos quando se acasalam com judias ou muçul-
~ ~m ; me I: or ar_rastá-los para o abismo da sensualidade. 01 ,1 111111s (n"' 21, 22).
~1ao 11.a 7~n uma unundície para a qual a luxúria não conduin" e) Pode-se reagrupar cm uma quinta rubrica uma série de
ara. me or enganar, ela se pinta, se maquia chega até a rn 11N11ras dispersas ao longo das 102 contas desse negro rosário:
1oca1 -na cabeça 'a cabeieira . ·d os mortos. Fundamental111c11t
' ~ , mulher é "insensata", "lamurienta", "inconstante", "tagarela",
cortes;, gost~ d e frequentar as danças que acendem o dc~r111 IM11orante", "quer tudo ao mesmo tempo". É "brig~enta" e "co-
T ransrorma. O hem em ma l", " a natureza em seu contr·íri11" 1kn". Não existe "cólera mais forte que a sua". E "invejosa".
especia
mai ,, 1mente no dom'11110 · sexua 1· "Ela se acasala com os· :1111 ' por isso que o Eclesiástico (xxv1) diz: "É mágoa e dor que
s , codloca-s~ ~o?re o homem no ato de amor (vício que 1t·1h1 11111 mulher inveja de outra. E tudo isso é o flagelo da língua".
provoca o ,,o d1luv . 10) ~ ou ' " contra a pureza e a santidade d11 ll•vnda para o vinho (ebriesn), que suporta mal. Ora, é um
casamento
Uma d ' aceita unll"- se a seu man.do a- m aneira . dos anim:d, •111·1:kulo vergonhoso o de uma mulher embriagada, e que não
- s esp?sam um parente próximo ou seu padrinho mli 1' pode dissimular (n"' 5, 8, 13, 14, 17, 18).
sao concubinas
. . de pad ' res ou d e 1e1gos.• '
Algumas têm rcl,H;<)1• 1) O marido deve desconfiar de sua esposa. Por vezes ela o
sexuais
5 23 24multo 25 26 cedo. após um parto ou no penodo , d as reg r:b (11 h,111clona ou então "lhe traz um herdeiro concebido de um
' ' , , , 27, 31, 32, 43, 45, 70). 4 83
482
estranho", ou ainda lhe envenena a vida com suas suspci111~ 1 rm um temperamento o rgulhoso e incorrigível, no que se
com seu ciúme. Algu mas agem contra a vontade do cônju111 •~llmelham aos judeus.
e dão esmola para além do que e le permitiria. Outras, "tom:111, Dessa análise, ressalta evidente mente que, por seu tom e
de uma inspiração fantástica, querem adotar o traje de viÚl'II, , or seu conteúdo, as acusações e imp recaçõ~s de Alvaro_P~l~yo
despeita do m arido a quem recusam a copulação canrnl 111ctem em ampla medida a toda uma literatura n11sog1na
D eixe-se à mulher toda a liberdade do casa l, e ela sení tir:inl1 , nlllrior em que se encontram reunidos poemas rnomísticos e o
"Se não caminha segundo teu comando (nd mm111111 tunw), ,•I1 l(Undo Ro111m1 de ln rose. Mas, ao me_smo_t~mpo, ela~ marca1~1
te envergonhará diante de teus inimigos". "Ela despn:111 1 • pi1ssagem a uma nova etapa do ant1fem1rusmo clerical. Par a
homem, e ntão é preciso não lhe dar autoridade." D e qu:1lq1111 11dhor apreendê-lo, leiamos novamente trechos de um De co11-
modo, como impedir que ela manifeste "um ódio quase 11111 11 trmpt1t feminae (cm versos) redigido no século Xll ?ºrum ~n? n-
ral" aos fi lhos e filhas de um primeiro casamento, a seus gc11111 Jl' de Cluny, Bernard de !"lorlas, c uja obra poética se d1v1d~,
e noras? (n"' 5, 11, 12, 15, 16, 20, 34, 77, 78) alul~, entre o louvor a Mana, o desprezo pelo mundo e a descn-
g) Ao mesmo tempo orgulhosas e impuras, as mu llw1, 'Rn terrificante do Juízo Final:
perturbam a vida da Igreja. Falam durante os ofícios e assi~111111
a eles de cabeça descoberta, apesar das recomendações de ~,li , A 11mlber ignóbil, n mulher pérfida, n mulher vii _
Paulo. Ora, elas d everiam cobrir os cabelos "em sinal de ,uh Nlnculn o que é puro, ru111i11n coisas ímpias, estraga ns nçoes [...].
missão e de vergonha pelo pecado que a mulher, em pri111tfo, A 111ulber é fem, seus pecados síio como n areia.
lugar, int roduziu no mundo". Monjas tocam e maculam 11 Níio vou e11tretn11to cahmínr as boas n quem devo abençoar [...].
panos sacros ou querem incensar o altar. " Elas se mamê111 111, Que n 1111í mulher seja agora meu escrito, que seja 111e11 discurso
interior dos gradis do coro e a li pretendem servir aos p:1tl11• [ • • •] • A

"Leem e pregam do alto do púlpito", como se para isso tivc,~1111 Toda mulbe1· se regozija de pensar 110 pecado e de vrve-/o.
autoridade. Algumas recebem ordens que lhes são pro ibida~ 1111 Nenlnmw, por certo, é boa, se acontece 110 enta11to que nlgmna
coabitam com clérigos. Outras vivem como cônegas rcg11li111 [s~a bon.
- est:ttuto que a Igreja não aprovou - e concedem a bêll\111 A 11111/ber boa é coisa 111d, e quase 11íio bd 11e11b11111n boa.
solene e episcopal (nc, 44, 57, 58, 59, 61, 65, 68, 73, 74). Anote11111 A mulher é coisa 111á, coisa 111alme11te carnal, carne toda iuteirn.
de passagem esse temor de um religioso de ver muHiert·~ ~, Dedicada n perde,; e 11nscidn parn cngnnm; pe1·íta em enga11111;
apodera rem da função clerical. Durante séculos, ele obscdo11 11 Abis1Jlo inaudito, a pior das víboras, beln podrídiío,
home ns de Ig r~a que temeram, pelo artifício dessa intru\:111 1 11 Atalho escorregadio [...], coruja bon-ívei, porta príb/icn, doce ve-
desmoronamepto de todo um sistema. Com 250 anos de di, 11111 [11e110 [...],
eia, o jesuíta Dei Rio faz eco a .Pelayo e fa la com indig n:1~·:w 1h Ela se mostra inimig11 daqueles que 11 amam, e se n~o~tr~ amig/1
uma "certa religiosa, a qual se fazia de padre e co111ung-:1v11 11 [de seus mnmgos [...].
povo com hóstias que ela consagrava":H atos monstruoso~ 1 111 • Ela 11iío excluí 11nda, co11cebe de seu pai e de seu neto.
repetição não teria deixado de arruina r de ponta a pon; ,1 1 Turbilhiíodesexunlidade, i11stn1111e11todonbismo, bocados vícios[...].
grand iosa construção eclesi,ística. Mas voltemos a Pelayo. ( :111 Enquauto as colheitas forem dadns nos cultivtl(/01·cs e confiadas
gando ao núme ro 102 de sua litania, o franciscano esp:11111111 [nos campos,
conclui q ue as m ulheres, sob um exterior de humildade, c,11111

484 4S5
! 1;'f!/rri,
~ssa eoa esm fera maltrlltará, opost/l à lei. 11111 da mulher, sua arte de se maquiar e de se pintar, os
Elr'. e_o delm: ~upremo, : o inimigo íntimo, o flagelo i111111111 1 tintos criminosos que a levam aos abortos provocados e aos
Po1 suas ast~CJ~s 1111:a so_é mais hábil que todos [...]. ÍIIIII icídios. Filha mais velha de Satã, ela é um "abismo" de
Uma loba nao e ?Juns 111a, pois sua violência é me11or, 1.liçiío. Mas esse discurso misógino, que era banal no mun-
Nem ·uma ~erpente, nem um leão [.. .). monástico, é retocado e agravado por Alvaro Pelayo de
A mulher e 1l1Jla feroz serl'11ente por seu "ror. - por SCII 1'111/11 rh1s maneiras. Em primeiro lugar - e isso é o essencial -
' 'flçao,
lornece muitos textos bíblicos como apoio de cada afirma.-
[por .r,•111 ,11
111 ,1ue assim se encontra fundada em direito. Em seguida,

AUma
. chama. . muito
, . .poderow . te;a
· · ms . em seu sero
. como um 11,,111 11 monstra com amplitude nova que a mulher é ministro de
mu111~1 ma se p111t11 e se enfeito com seus pecados 11h1tria - vimos a importância que atribuiu a esse tema-,
Ela se disfarço
. ' ela. J•e firlL ;f;co, el a se trrmsfonuo, se
s,.l'. ' mod(/i1t1 1 11• o marido deve controlar sua esposa e enfim que o elemen-
11,uwl 1 lcminino procura perturbar a vida cotidiana da Igreja. A
li ir daí aparecem os objetivos dessas advertências. Alvaro
Eugaur1dom
[...). por .reu, bn"Jho' rwd.ente no crmu,
. crime ela /ll'fl/11 I l11yo não dá somente conselhos a monges. Pregador e con-
•~or, dirige-se ao conjunto dos fiéis - clero secular e leigos
O quanto pode, elo se compraz em ser noâva [ ]
Mull,e1•fi'et1"da, ardente e111 enganar jlameiante
. ··· de
· ,f f ' , unidos. Seu desígnio reveste-se então de uma universalida-
Dertn · - · · ' · · '.I · · '' e 11"111, 1111e não tinham os dos beneditinos e cistercianos do perío-
. uçao prmienn, pior das partes, ladra do pud01:
11 1111terior. Ele está, quanto ao público visado, muito mais
Ela arra~1ca seus próprios rebentos do ventre [...].
10:<imo de Jean de Meung que de Bernard de Morlas. Mas,
Ela tn1c1do sua progenitura, abandona-a, mota-o, 1111111 mt,11/, ,,
• ucusações misóginas do segundo Ro111an de la rose, acrescen-
[mento Ji111, 1t, 1
11 o suporte de um sólido fundamento teológico e as preocu-
Mulher víbom, não ser humano, 1nas fera selvagem, e iujid li ,, l11t;õcs da pastoral.
1111 O antifeminismo virulento de Alvaro Pelayo e de seus
Ela é assassina da crian b . 1 •,111111 &•mclhantes, caminhando através dos múltiplos canais do dis-
111.aisfi . , . ça e, ~m_ma,s, da sua em primeiro l1111,11
e1 oz que a asp,de e 17llllS furioso que asfitriosar [ J ~ • 111~0 oral e escrito da época, não podia deixar de desembocar
Mulherpé1ftd
, ·, · a, nm/l·,erfi'etr·da, nmlher infecta. · ··· · 1111 jnstificação da caça às feiticeiras. Do mesmo modo, encon-
Ela e o trono •de Satã·. ' 0 p·udo1·. esta, a seu cargo; foge dela, ll'i1111 11111110-lo no coração das argumentações maniqueístas de O
fll//l'telo das feiticeiras. Este, segundo a feliz fórmula de A. Danet,
À leitura
Alvaro p J dessas b invectivas
' aca brun h antes, vê-se qu1111111 I ,•omposto por um redator que tem "o medo na barriga" e se
e ayo, so certos aspectos é pouco . . 1 N 11t11lc cercado por uma desordem satânica. As palavras cuja raiz
negro poema de_ Bernard de Nlorlas,' encontram~;~gJ_1~1:~ .,,,," 1 lllfll - mal, mal-aventurado, mau, maléfico, malefício -
amentas estereotipad
passage d . os_retomados pelo franciscano espanl11l,
' · ' 111wrnam incessantemente sob sua pena: até trinta vezes em
lan ado cm . a acusaçao contra a mulher má ao descrédil11 lllllll mesma página. 55 Ele vê catástrofes por toda parte, adul-
o l~gro ~n:i ª1~od~s ads mulheres; as queixas contra a perfícl li1, lc\l'ios e atamentos de agulhetas continuamente multiplicados.
' o encia o outro sexo·' contra a lUXUJ . , ..la l·ICSl' II h Nc tempo do pecado é o da mulher. Esta, entretanto, por
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veze~ é vista ~on~ mis_eri:órdia pelos seus olhos - 11 11111 I" nvingança, os dois principais móveis <la feitiçaria. É men-
explicar o anuncio feito a Maria? Ele se recusa en1ilo 11",li por natureza, não só em sua linguagem, mas também em
1
zar um sexo no qual Deus, para nossa confusiio, lll' lllfll 1111dnr em seu porte e em sua atitude".
56
:ras ~oderosa~"- Evoc_a Judite, D ébora e Ester·, ( ,1 1 1 111,n·;elo das feiticeiras conclui com Catão de Utica: "Se n ão
ungna e Clotilde. Baseia-se no Eclesiástico, nos l'r 111, 1 i 1,1 rijNC a malícia das mulheres, mesmo não dizendo nada das
em são .Paulo para "fa_zer o elogio das mulheres boas" 1• pi , ,,11·11s o mundo estaria liherto de incont:íveis perigos".6 1 A
mar fr,1z o esposo cuJa companheira é excelente.'7 l){,111 11 , ,,, 1, é ~ma "quimera [...]. Se,u aspecto é belo; seu contato ~éti-
traparcda~, entretanto, em um pesado dossiê que, 1111 11111 1 l llll companhia mortal".'·2 E "mais amarga que a morte, isto
vezes, opnme o ramo feminino da humanidade, rep 1"~' Ili lll' o diabo cujo nome é a morte segundo o Apocalipse".63
como culpado face a um ramo masculino considerado 1'11 ltr, l)111a diabolização da mulher - que se encontra, lado a lado
Para o redator ele O martelo das feiticeiras "a experiênciu 1111 lt 11 sexualidade, desonrada -: eis o resultado a que chegam
que a perfídia (de feitiçaria) se encontra mais frequc 11 11, 1111 , 111 11 "clima dramatizado" tantas reflexões clericais sobre o
64

en_tre as mulheres do que entre os homens.s9 Importa l'lll illi ll(O que representa então para os homens de ~g~eja - e para
P!1car essa despro_porção. Ora, as explicações abunda 111, lio 1, _,cjíl inteira que eles anexam - o eterno femmmo.
ci?as_p~r toda a li_teratura sacra, ela mesma ampliada (Htl 1 ,,
tnbAmçoes provementes da antiguidade pagã. C ícero, ' 1\,,1111
e Se~~ca, o Eclesiástico, são João Crisóstomo e Lact:i 1wl11 t, O DISCURSO OFICIAL SOBRE A MULI:IER NO FINAL
mobilizados para denunciar a malícia da mulher: 1)0 SÉCU LO XVI E NO COMEÇO DO SECULO XVll

Toda malícia não é nada perto de uma malícia de 111 1,lltt 1 A) O DlSCURSO DOS TEÓLOGOS
[...J. ~ mull~er, o que é ela senão a inimiga da a111 i,.udl A ação antifeminista de O martelo das feiticeiras, cuja_ ampla
pe_n a melutavel, o mal necessário, a tentação natura l, 111 ui 1 lhiNiio6s acentuamos mais acima, viu-se reforçada no fmal do
midade desejável, o perigo doméstico, o flagelo delcit rlv1 1 1 l 1110 XVI e no começo do século XVII por um discurso ecle-
mal por natureza pintado de cores claras? [...] U ma 11111 11;,, d~tico de múltiplas facetas. E de início os teólogos demonól~-
que chora é uma mentira [...]. Uma mulher que pensa 1111 1 IIH nffo deixaram de repetir O martelo das f eiticeiras. Dei R10
nha pensa para mal. 60
•~cgura que "quanto ao sexo, o das mulheres é mais suspeito",
Segue-se ~ enunciaçao
• · - estereotipada
· qui· ele é "imbecil" ~ "re~leto_de,r~_ixões voraz~s e veemen~es".
das fraquezas lllll i1111 l>ominadas por sua 1magmaçao, nao estando tao bem prov1d~s
da mulher: é crédula, impressionável, tagarela, inconst:1 n l(• 111111 l111111nto os homens] de razão nem de P,1'º_dência, el~s ~e <l:1-
ser e na ação" , , "d. ef''IC1e2te
· e
em suas corças de alma e de u 11·pt1' 11111 facilmente "decepcionar" pelo demomo. O erudito Jesm~a
semelhante a cnança pela leviandade do pensamento" 11 1,11 , onstata que as cartas sacras mencionam muito pouco "profeti-
carnal do que o homem ("percebe-se isso por suas ,m/ltJ.r,h, 11111 de Deus", ao passo que as dos ídolos foram legião entre ~s
torpezas"). "P~r natur_eza, ela tem uma fé mais fraca [...]. Fcm/1/tt ~tmtios. Além disso, "a volúpia, o luxo e a avareza" são os defe1-
~e~1. d: Fe e 1,~11:us, pois sempre tem e conserva menos fé."· 1t'III 1us comuns das mulheres, que de bom grado são "andejas,
afeiçoes e pa1xoes desordenadas" que se desencadeiam na i11vp vngabundas, faladoras, briguentas e cúpidas de elogios".06
488
489
No plano de uma civilização, as afirmações dos de111111111li 11plo o medo pânico da mulher e o dogma de sua fundamen-
gos dominicanos ou jesuítas eram talvez menos perigoSIINI' 11 1 inferioridade. Lembremos contudo, como contraponto, que
o "segundo sexo" que as dos casuístas, que, por inte rmédio ti, 11111 visitação canônica efetuada na Baviera na época do
confessores, tinham impacto considerável sobre as 111e1111dltl, oncílio de Trento revelou que ali apenas 3 ou 4% dos padres
des cotidianas. Baseando-se no Antigo T estamento, lk 1wtlh, ftl) viviam em concubinato.;o Diante de tal flagelo, uma socie-
ensina em sua Suma dos perndos que "a mulher fclesrnq1 111111 Allc religiosa de dominância masculina - e que pretendia
esse singular coletivo] queima ao olhar [...], isto é, ela se q111111, nscrvar esse privilégio - só podia reagir de forma desmedi-
e queima os outros". Mais adiante, ele acrescenta: A, Satã introduzira-se no lugar. Para são Carlos Borromeu, o
111fcssor não saberia tomar precauções em demasia com as
[...] Os antigos sábios nos ensinaram que todas e q11:1111w, 1 l'llitentes. Não as receberá se elas se apresentarem com "cabe-
zes o homem fala por muito tempo com a mulher el1• 11111 - frisados, rostos pintados e rebocados, brincos ou outros
sua ruína e se desvia da contemplação das coisas cclt•~II 111clhantes ornamentos cheios de vaidade".' 1 Rejeit ará igu al-
finalmente cai no inferno. Eis aí os perigos que h:t ('Ili 1, 1 ntc aquelas que usarem rendas, bordados e tecidos de ouro
demasiado prazer em tagarelar, rir e mexericar co111 n ttn, rsigirá de todas que compareçam ao santo tribunal de rosto
lher, seja boa ou má. E creio que é isso que pretc.:11d1• 11111 1hcrto "com decência, por um véu que não seja notavelmente
cluir o paradoxo do Eclesiástico que diz que "a i11iq11 l1h11I 1111sparente, feito de crepe, de linho, de lã, ou pelo menos de
do homem é melhor do que a mu lher de bem"'"' ll(lllll tecido de seda de uma cor modcsta".71 Salvo autorização
1111luramente ponderada de um superior, um padre de menos
Significativa das generalizações acusadoras por que,,., 11, p trinta anos não confessará as mulheres.n Quanto aos con-
logos e moralistas de então se deixam constante - e i1111111 -~ionários que lhes são destinados - indispensável segrega-
cientemente - levar, é a leitura que Benedicci propõt: d11 p1il 1 º- "que estejam em um local descoberto da igreja", deven-
vra MVLIER. Advertindo contra a "mulher dissoluta", 11111111 11 11 confissão das mulheres ser feita apenas durante o dia."
que ela "arrasta atrás de si" toda espécie de infortúnios 1•~ pll _,im, para a Igreja católica de então, o padre é um ser cons-
sos pelas seis letras da palavra: "iVI: a mulher má é o 11 11tl 1lt •ntcmente em perigo, e seu g rande inimigo é a mulher. A esse
males; V: a vaidade das vaidades; L: a luxúria das lux1Íl'i111,1 1 ~peito, ele não é vigiado - e não se vigia - jamais suficien-
ira das iras; E [alusão às Erínias]: a fúria das fúrias; R: 11 111111 111cnte.
dos reinos". 68 Em princípio, não se trata aqui senão dn "111111111, As Instruções rios co11fessores de são Carlos foram difundidas
má", mas se o,uso aplicou a palavra 111,11/ier ao conjunto do 111111 1 l1'1':1nça por ordem das assembleias do clero: daí a multiplici-
sexo, não foi porque este é globalmente perigoso? uh• das edições que nossas bibliotecas conservam. Em todas as
Mas deixemos as pesadas obras dos casuístas pelas lit1j11lh 111• consultei, as instruções do arcebispo são reforçadas em
las dos manuais de confessores e, em particular, pelas n:1.,111, 111•xo pela carta que são Francisco Xavier escreveu ao padre
lustntções aos confessoi-e.r de são Ca rlos Borromeu,"'1 que :1 1[11 1 l11~pnrd Barzé, encarregado da missão de Ormuz. Sem dúvida
pós-tridentina reeditou incansavelmente, durante vário~ ~11 11 p1•cciso ler esse documento lembrando que ele traça uma
los, em todas as dioceses da catolicidade. Então vert:11 111~ 1 11h11 ele conduta para um religioso encarregado de evangelizar
vivo como a autoridade eclesiástica difundiu ao n ível 111• 1 111 clcsses países do Oriente em que o ciúme masculino é um
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traço de civilização. .Mas os leitores europeus desse texto 0111 não se devem queixar senão na falta de uma devida submis-
rariam semp~e essa correção? Além disso, é evidenrc q111 1• são de espírito. Da mesma forma, esses aborrecimentos só
apóstolo das Indias, ao mesmo tempo vítima e agente de 111111 surgirão por sua própria indiscrição e desobediência.75
longa tradição antifeminista, desliza constantemente cio p:1111
cular (o O riente) para o geral. E le aconselha na verdade 11111 Essas linhas foram lidas a partir cio final do século xvr por
comportamento global do padre em relação à mulher ao dl·~I• ,Ilhares e milhares ele confessores, que desempenharam o
rir duas pesadas afirmações: a) a religião que importa é :1 d,, pcl ele diretores de consciência ele dezenas de m ilhões de
homens; b) em um conflito conjugal, o confessor jamais 11•111 au·s. Vê-se o desprezo pela mulher que elas veiculavam - des-
nhecení o erro cio marido diante ele sua esposa: 1,•1.0 que camuflava o medo de um ser misterioso e inquieta11-
1linnte do qual devia intervir a solidariedade masculina, isto
E pelo fato de que a leviandade de seu espírito (das 11111ll11 ,1 conivência cio padre e do marido.
resJ e ele seu humor dá comumente muito trabalho ;1<>, 11111
fessores, uma das melhores precauções que quanto :1 i~~11 1 li) A CIÊNCIA MÉDIC,\
pode tomar é cultivar mais as almas dos maridos, q11l' ~111,
cristãos, do que as de suas mulheres: pois tendo a n:lt 1111 , Ao lado dos homens de Igreja, outras pessoas ele peso - os
dado mais peso e firmeza ao espírito do homem, h:í 111111 11 dicos - afirmaram a inferioridade estrutural da mulher.
ma is proveito em instruí- los, considerando mesmo q111 , 11rclciros a esse respeito de concepções antigas, mas reto-
boa ordem das famílias e a piedade das mulheres dqw111h l11111do-as à sua conta, difundiram-nas amplamente, graças à
comumente da virtude dos homens(...]. 111prcnsa, nos diversos setores da cultura dirigente.
Tão reconhecei jamais o e rro do marido na prc,1•11~1 1\ esse respeito, levanta-se incidentalmente a questão de
de sua mulher, ainda que seja ele o mais culpado do 11111 111!11 11111• como é preciso interpretar o que o monge e médico Ra-
mas, dissimulando enquanto ela ali está, tomai-o dt· li11l11 htls escreve u sobre o "segundo sexo", especialme nte no Ter-
e incitai-o a uma boa con fissão. É aí que o fareis ver ~1111 1, ,1 livro dos fatos e ditos be1·oicos do bom Pantagruel. Pretendeu
obrigações para a paz e concórdia mútua, precavendo 111 1 tumar posição na "Polêmica das mulheres"? Esta começou
no entanto de mostrar-vos demasiadame nte partid:lr111 il, 1111 110 século e, desde 1503, Symphorien Champier publicara
mulher [...]. D e outro modo, se repreenderdes o 111111 hh, 1111 Nef des dames vertne11ses. Em sentido inverso, em 1513
diante de sua mulher (como elas são naturalmente ;,,0111111 1li ,11111eau publicou a primeira edição de seu De legibus comm-
teiras e pouco discretas], ela não deixará de espic:1ç1 111 1111/111s, que é uma obra viole nta cont ra as mulheres. Contudo
de censurat-lhe a falta que repreendestes nele [... ), cl1· 1ti 1'11lêmica", em sentido próprio, situa-se em torno dos anos
maneira que o marido não ficará senão mais despeitado 1 1 l I I0 ,1560. Em 1541-2, aparecem L'nmie de com; de La Borderie
mul her insolente. Por mim [em semelhante caso] 1... 1, 11111 livro hostil à mulher - e Ln pmfaite nmie, de Antoine
t raria às mulheres o respeito que devem a seus 111:1ri1lm h1111il, que, ao contrário, faz sua apologia. E m 1544 é que
lhes apresentaria as grandes penas que Deus preparn 11(1, 1mwc Ln délie, objet de plus hnute vertu, de Maurice Sceve. O
a imodéstia e arrogância daquelas que se esquecem d,• 11111 ,.,,/ro livro de Rabelais é de 1546. E m 1555, François de
dever tão santo e legítimo: aquele de que cabe a elas d i111 1li 1ll1111, que publica seu Fort h1expu[:ff1t1ble de l'ho1111eur du sexe
e sofrer pacientemente todos os aborrecimentos, dm q1111 111111, considera o autor de Pnntag;ruel e de Gnrgn11tua um

492 493
in_imi~o e un~ denegridor da mulher. Daí a ideia de qi lt' 11 / e hem, instruída em virtudes e honestidade, não tendo convi-
cerro _lroro sena uma tomada de posição na "Polêmica" 1,, 11111 ido nem frequentado senão companhia de bons costumes".
precisamente, uma resposta à Ln pnrfaite a.mie, de H ernl'I, nhelais é, além d isso, muito duro, no capítulo XLV lll, contra
Mas então por que Rabelais não nomeia Heroct 1111111 , , , corruptores de moças. Quando elas se tornam esposas, cabe
que, entre seus inimigos, não se constrange de nomear Cull 111, 11, maridos zelar por sua "pudicícia e virtude". Nlas não de
por exemplo? Para V.-L. Saulnier, é certo que o Terrl'irn li, , 11111eira tirânica. Panurgo aconselha, em primeiro lugar, acari-
t:m, de certa maneira, seu lugar no grande debate que opl)~, 11 lnr a mulher à saciedade para que ela não tenha vontade de ir
seculo
. , . ,XVI , os "cor t eses" e os "sat1ncos
' · " e que ele é u111 11•q111 outra parte. É verdade, por outro lado, que as mulheres são
s1ton ~ contraª. mulher, como a Délie é uma apologia do 11 11 1111 t11riosas; desejam o fruto proibido. Mostrar-se ciumento e tirâ-
J\IIas'. nem mais nen:i menos", V.-L. Saulnier contesta q111 111 nico é se preparar para ser traído.
belais ten ha pretendido escrever um livro especiahnenll' ,,11111 É bem certo, em compensação, que Rabelais recusa cer ta
a mulher e o cas~m~nto. "Dom inando o problema partic 11 1111 ,h aforação preciosista posta em moda pelos italianos e que con-
casamento, o obJet,vo geral [da obra] é o de uma averig 1111 \ li dena os apaixonados tolhidos que "se acomodam cm torno" da
porta~to de um~ meditação sobre o bom conselho." Solin· 111111 mulher e negligenciam por causa dela "a afeição que o homem
questao dete_rmmada - aqui o casamento - , Pantag i·iu•I 1 cll•ve a Deus [...], os serviços gue deve naturalmente à sua pátria,
Panurgo dec,d: n~ consultar as pessoas de posição, os qm• ~ h ta república, a seus amigos [...], a seus estudos" (cap. xxxv).
chamados ~e sab10~ e que têm a reputação de ser homl'IP, ,h Aqueles que fazem de Rabelais um misógino empedernido, vale
saber: o teoJogo H1ppotadeu, o médico Rondibi lis, o fjJ 11,,111t,
n pena opor a seguinte passagem extraída do Philogame 011 Amy
Trouillogan, o enigmático Raminagrobis etc. H omens dl· 1,11 1
,lrs nopces, um elogio do casamento publicado em 1578 por
vontade, os ~a ntagruelistas precisam constatar que nc ,1111 11 11
Fninçois Tillier. Este aí parafraseia pura e simplesmente o capí-
dos conselheiros sabe aconselhar: abdicam. Os sábios di•~I•
11110 xxxv do Terceiro livro, aliás citando suas fontes:
mundo são falsos sábios. O Terceiro livro é também um "d ouJ11
da loucura". "
Q uando esse douto Rabelais põe em destaque seu sábio-
. Qual é então ª, opinião de Rabelais sobre a mulher? Sq, 11
'an~ente a obra esta rechea1a de episódios libertinos, e 9 10 111 1 -louco Panurgo, que interroga um filósofo sobre se deve ca-
1~1u1tas ve~es zombet~iro. A_ pr_imeira vista, a mu lher ap:in•,, sar-se ou não, ele lhe responde nem um nem outro e todos
c_o mo _Iasc1~a, desobediente, md,screta e curiosa. i\t.las O 'li-nm,, os dois ao mesmo tempo. Isto é, é preciso ter u ma mut her
lrvro e d~d1cado °;i Margarida de Navarra, e Rondibilis, havl'llclll como se não se tivesse nenhuma; tê-la, digo, tal como Deus
o~or tu n1dade, louva.as "mulheres sérias". Além disso, R:iht•l11 1~ a pôs no mundo para a ajuda e sociedade, e não tê-la é não
nao ~ensa que~ ~nulher ten,!rn sido criada apenas para a "pcrpi• se apoltronar em torno dela, não se enfer rujar na negligên-
t uaç_ao da cspec,e humana . Ela o foi também para O "sonul cia, da qual nasce um amortecimento da afeição que se deve
deleite ~o homem", ~ara o "co~s?lo doméstico e a ma!lutcll\'illl dirigir a D eus, não colocar a seus pés a vontade que se
da casa . A mulher e menos v1c1osa do que frágil ("O ..,. .. 7 1, tem de socorrer seu país, de ter mão forte na república, de
f ·1·d d d º 1.,n1'
rag1 1 a e o sexo feminino", cap. xvm). Por isso tem necc~\, manter os amigos, não deixar seus estudos e negócios, para
cla?e de ~roteção e, em primeiro lugar, de boa educação e hrniN diverti r-se sempre na caça à mulher.n
pais. Da, o conselho de escolher uma esposa "oriunda de gc111 1,
494 495
Resumamos em uma palavra a posição de Rabebii. ~•111 111 l'ho". Daí se segue que D eus insufla a alma no quadragésimo
ção à mulher: indulgência e até mesmo gentileza, v.í l.i. D1•,11~ 1 1 pnra o menino e apenas no quinquagésimo para a menina.8'
n ão. Ela tem necessidade de ser mantida na coleira e.: 111111 1h l!~periência não prova que "a criança macho é mais excelente
desviar o homem das nobres tarefas que lhe são reserv:,dll•• , 1wrfcita que a fêmea"? Com efeito, a mulher grávida de um
Em um outro contexto, J ean Wier, médico do d11q111 1 ho "é mais disposta e robusta em toda a sua gravidez, e de cor
Cleves, teve o mérito, em uma obra célebre, Histoires, tlhp111, ai~ vermelha, o o lhar alegre, vivo, a pele mais limpa e mais
discours des i/lusio11s et impostures des diables, d~ també111 dt• 11h 1 111 do que a de uma menina" e tem melhor apetite. Além dis-
tear a indulgência em relação às mulheres, em pari irnl111 11·,1rrega mais habitualmente seu filho à direita, o lado nobre.
feiticeiras. Pois, diante do diabo, "o sexo femin ino l---1 é 11111111 111" partes direitas são [então] mais hábeis para todos os movi-
tante e m razão de sua compleição". Baseando-se succssiv11111111 umos", seu "olho destro é mais móvel", seu "mamilo direito
te em são Pedro, são João Crisóstomo, são Jerônimo, (.)111!11, llll'llta mais". 8~ Por mais evidentes que sejam os privi légios
lia no, Valério Máximo, Fulgêncio e Aristóteles, para 1e1111111, torais do macho, é Deus, contudo, que decide o sexo da c rian-
com Platão, e le repete incansavelmente que a mulher é ck li 111 r "parece-me", conclui Ambroise Paré, "que os maridos não
pernmento "melancólico", "débil, frágil e mole", que s1111 1111111 11cnsatos em encolerizar-se contra suas mu lheres e compa-
reza é "imbecil" e "enferma". "Pelo que Platão parece d11\ hl 11 t111rns por terem feito meninas".85 LaurentJoubert, "conselhei-
bem civilmente, a respeito de em qual número d eve rnlrn ,
1• médico ordinário do rei [H enrique 111], doutor regente,
as mulheres, se no número dos humanos ou no 11Ú111l'1'0 ,li,
\d11reler e juiz da universidade de medicina d e Montpellier",
animais." Assim, pode-se punir as mulheres tão sevcr:11111111
, mais longe que Ambroise Paré as explicações em matéria de
quanto os homens?;~
r,1~1lo. Aliás, discorda dele quanto aos papéis respectivos d~
Mas por que o segundo sexo é "enfermo"? Ambroisl' 1'1111
11111nte e da matriz, mas não se liberta das noções tidas como
que não é um antifeminista vir ulento, explica isso e ao 1·~111, ,
111lnmentais de calor e de frio, de seco e de úmido. Embora
aconselha a ternura em relação à sua companheira. 1\ 1:I \ 111111
hri1 ndo seu livro sobre os Erre1n-s pop11/ni1·es (1578) à rain ha
fácil libertar-se do peso da ciência aristotélica, segundo a q111d
dl l(llrida, então esposa do futuro Henrique IV, ele não deixa
quente vale ma is que o frio e o seco mais que o úmido. Or:1 1 p1t1
Ambroise Paré, assim como para a imensa maioria de se11~ e 11h dllrmar que o "macho é mais digno, excelente e perfeito que
gas, "a mulher tem sempre menos calor do que o homem 1,.. 1 \ r 111ca [...]", a qual "é como uma imperfeição, quando não se
partes espermáti~as desta são mais frias, e mais moles e 1111•1111 11h• fnzc r melhor":
secas que as do homem".79 Suas ações naturais não são por1 11111,
"tão perfeitas nela como no homem". 80 Se os ó rgãos scx11.11, ti l'ois a Natureza pretende fazer sempre sua obra perfeita e
mu lher são internos, contrariamente aos do homem, isso Sl' d, 1, ,lt'nbacla: mas se a matéria não é própria para isso, e la faz
à "imbecilidade" de sua natureza "que não pôde expelir e 11111~ ti o mais próximo do perfeito que pode. Então, se a matéri a
fora as ditas partes, como no homem". 81 Tratando da procri,1~1 1 p.irn isso não é bastante própria e conveniente para formar
o cirurgião de Lavai assegura que "a semente mais quente l' 111111 11111 fil ho, faz com ela urna fêm ea, que é [como diz Aristó-
seca engendra o macho e a mais fria e úmida a fêmea"."1 1,: p111 11•lc$] um macho mutilado e imper feito. Assim, portanto,
que - desdobramento do raciocínio - "a umidade é de 11w111,, il1•scja-se por esse instinto natural mais filhos do que filhas,
eficácia que a secura (...], a fêmea é formada mais t:irclc q111 1 ,uncla q ue tudo seja bom.86
,1(),:
497
~pesar dessa emenda ao mesmo tempo necess.íria l' p1111
convincente, LaurentJoubcrt quer explicar a seus leiton·•, 11111 , 1r~o oficial sobre o "segundo sexo" na época da Renascença
procriar meninos de preferência n meninas. Seu rnciod 11 l11, 1in incomple ta se dela se subtraísse o componente jurídico.
seguinte:81 a semente é "por si indiferente" e "será convcr1111111 , um grande reforço de citações extraídas de Aristóteles, Plínio
corpo masculino ou feminino segundo a disposição da 1111111 1 l)uintiliano, das leis antigas e das obras teológicas, os juris-
do sangue menstrual". A matriz é a partir daí compar.íw l 11 1111 111sultos afirmam a categórica e estrutural inferioridade das
ca_mpo. Uma terra demasiadamente úmida converte os g1,1t1 ,1 mlheres. Tiraqueau, amigo de Rabelais, é inesgotável sobre o
trigo ou de cevada cm joio ou em aveia estéril. Do mesmo 111111 1, ,~unto. E las são, diz ele, menos providas de razão que os ho-
lllllS.89 Portanto, não se pode confiar nelas.90 São faladoras, so-
uma semente masculina, embora apta a formar um 1111111 11
"degenera frequentemente em fêmea pela frieza e umidud1 ,j ft\l udo as prostitutas e as velhas. Contam os segredos: "É mais

matriz [...] e ~ela ~em_asiada?1ent~ grande abundância do ,111111 11 1rtc que elas" (ve/ iuvitne). Ciumentas, são então capazes dos
menstrual, c1 u e indigesto1 . Dai se segue que uma prot·, h1~, lorcs delitos, como matar o marido e o filho que tiveram dele.
operada no momento em que a mulher está a ponto de " l l' I 1111 , fois frágeis que os homens diante das tentações, devem fugir
flores" arrisca-se muito a engendrar uma menina ("pois l'lll,I•• 1~ ,·ompanhia das pessoas de má vida, das conversas lascivas,
matriz está muito úmida do humor que paira em torno d1 1 111~ jogos públicos, das pinturas obscenas. Convém-lhes ser
como uma lagoa"). Inversamente, ter-se-á mais possibilid,1cl, il hrias "para permanecer pudicas", evitar a ociosidade e sobre-
obter um menino se o ato sexual tem lugar logo após o 111 11 d, 111110 calar-se (11111/ieres mn:âmc decet silentim11 et tnciturnitns). As
regras, quando a matriz se tornou "seca e mais quente". 1•111tmças de Tiraqueau concernentes às mulheres são um longo
Tal é a mulher para os mais ilustres médicos da Rc na,n•11i , 1111llogo de interdições de toda espécie, das quais algumas são
u~ "macho mutilado e imperfeito", " uma imperfeição, q111111d1 1 rntomada de velhos tabus: não lhes será permitido ensinar na
nao se pode fazer melhor". Ela é como o joio e a aveia l'',11111 l~nijn nem entrar nos campos. Elas se absterão de fazer amor
em relação ao trigo e a cevada. Assim a fez a naturc;,.:1 q 111 , 1111111do amamentarem e durante suas regras. E, além disso -
estabeleceu em um estatuto de inferioridade física ... e nHll ,d \ 1~ nos enfim no terreno jurídico - exigir-se-á um juramento
ciê~1c~a médic~ da época não faz portanto senão rq 11 11 1 1l111111clas que são chamadas a assumir responsabilidade; não
Anstoteles revisto e corrigido por Santo Tomás de i\~111 11111 11"111arão contrato nem farão doação sem o consentimento de
Ora, pode-se adivinhar a audiência de um Laurent .Jo11ht 11 IIN próximos; e lhes é proibido fazer testamento sem o acordo
quando se sabe q1;1e a Biblioteca Nacional conserva nada 11 11 11 11 1111 rônjuge etc. Teórico da incapacidade da mulher casada, em
que doze ediçõe,s de seu livro sobre os En-eurs pop11/nircs p11 1ill 11 tempo A. Tiraqueau foi denominado "legislador matrimo-
cadas entre 1578 e 1608."" 111111". Seu De legibus commbia/ibus te ve quatro edições durante
1111 vida e dezessete após sua morte.'11
C) A AUTORIDADE DOS JURISTAS Um outro jurisconsu lto, B. C hasseneuz, comentando no
11 ulo )..'VI os costumes de Borgonha, declara que "a mulher é
1:'eólogos e médicos, apoiando-se uns aos outros par:1 d1'
11111 animal mutável, variável, inconstante, leviano, incapaz de
valonzar a mulher, forneciam conjuntamente seus argu11w111 11
,111,rdar um segredo".91 D aí a sucessão masculina ao trono da
comple~e ntares e, peremptórios aos juristas - a terccir:1 g 11111
111,1nçn. O conselheiro de Estado Le Bret declara a esse respei-
de autondade da epoca. De modo que a reconstituição do dl
to 1•111 1632: "A exclusão das fi lhas e dos machos saídos das filhas
498
-199
é conforme à lei da natureza que, tendo criado a mulher i111p111 Polivalência nefasta do úmiclo que o homem de outrora
feita, fraca e débil, tanto do corpo como do espírito, sub111c1l·11 1 trige continuamente contra a mulher: um excesso de umidade
ao poder do homem".')) E Richelieu aprova e encarece com n•li 11 matriz leva a engendrar meninas que, demasiadamente vis-
rência à Escritura: usos por natureza, dão livre curso a uma imagi nação de que
utii logo se apodera.
É preciso reconhecer que, como uma mulher perdeu 11 A "fragilidade" das mulheres não impede Rémy e Lancre
mundo, nada é mais capaz de prejudicar os Estados 11111 lc enviar muitas delas à fogueira. Mas Jean Bodin se recusa a
esse sexo, quando, ganhando domínio sobre aqueles q111• 11 l•rcditar nessn fragilidade; e nesse ponto se aproxima dos mais
governam, ele os faz muitas vezes mover-se como bem 1111 irulentos adversários do "segundo sexo" entre os homens de
parece e mal, em consequência, sendo os melhores p c 1H111 J~rcja. Polemizando contra Jean Wier, considerado por demais
mentos das mulheres quase sempre maus naquelas 11111• 1 lntlulgente, ele declara:
conduzem por suas paixões comumente fazem papel <k , 11
zão cm seu espírito [...].9' Que se leiam os livros de todos aqueles que escreveram so-
bre feiticeiros e encontrar-se-ão cinquenta mulheres feiti-
Texto significativo escolhido entre mil do mesmo teor q111 ceiras, ou então demoníacas, para um homem [...). O que
a cultura dirigente europeia produziu da Espanha à Rússia 1• d1 ocorre não pela fragilidade do sexo, em minha opinião: pois
Idade Média ao século XIX. Contudo, é evidentemente c1111·1• 11 vemos uma obstinação indomável na maioria [...]. Haveria
demonólogos leigos, a esse respeito primos próximos do, 111 mais evidência cm dizer que foi a força da cupidez bestial
quisidores, que se encontra, fora do espaço eclesiástico, o j111, 11 que reduziu a mulher à miséria por gozar desses apetites ou
mais pessimista sobre a mulher. E les precisam, com cf'd111 por vingança. E parece que por essa razão Platão colocou
explicar por que os tribunais veem desfilar dez feiticeiras p1111 n mulher entre o homem e o animal bruto. Pois veem-se as
um feiticeiro. Nicolas Rémy, juiz loreno, não fica surprcc11dl1h, partes viscerais maiores nas mulheres do que nos homens,
com tal proporção, pois "esse sexo é muito mais inclinndo 11 , , que não têm uma cupidez tão violenta; e, ao contrário, as
deixar enganar pelo demônio".'" Pierre de Lancre, conscllwlt11 cabeças dos homens são muito maiores e em consequência,
no parlamento de Bordéus e que foi no começo do séculéi \\ ti eles têm mais cérebro e prudência que as mulheres.07
o carrasco do Labourd, não fica mais surpreso com o Í:lln 1h
que "de preferêntia as mulheres são feiticeiras, e em 111:11111 Apoiando-se nessas constatações que qualquer um pode
número do que õs homens", pois: fw.ir, com base não só em Platão mas também em Plínio, em
(Juintiliano e nos provérbios hebreus, Jean Bodin repete após
É, um sexo frágil, que considera e toma frequentemente a, ~li 1111110s outros os sete defeitos essenciais que levam a mulher à
gestões demo1úacas por divinas f...]. E mais, elas abund:1111 1111 M1lçaria: sua credulidade, sua curiosidade, sua natureza mais
paixões vorazes e veementes, além de serem ordinaria1111·1i, l111prcssionável que a do homem, sua maldade maior, sua pres-
de natureza úmida e viscosa. Ora, como o úmido se cxcirn 111 h 111 em vingar-se, a facilidade com que se desespera e, afinal,
cilmente e recebe diversas impressões e figuras, elas n:io 11 1111 tngarelice. Diagnóstico, como se vê, altamente motivado e
samseus movimentos senão com dificuldade e bem rnrck-, 1• ,, 111111111nciado em plena caça às feiticeiras por um magistrado
homens mantêm menos obstinadamente suas imagina~·o1·~ 11111lto ouvido que é sucessivamente advogado no parlamento de

>OI
Paris, relator no palácio do duque de Anjou, deputado do \ 11 Segundo seu temperamento - e seu maior~~ menor med?
outro sexo - os juristas da Renascença se d1v1de111 quanto a
mandois nos Estados Gerais de 1576, lugar-tenente 1(1 1 ,1
111ição merecida por uma mulher culpada (ou a~im _considera-
depois procurador do rei no bailio de Laon. Em seu~ dllt
peremptórios confluem as asserções de três altas ciê11<'h1 ), Uns optam por uma indulgência desdenhosa msp1radaych~s
,~mas razões que a defesa do médico W ier em favor das f~1t1ce1-
teologia, a m edicina e o direito.
•• 1\ insuficiência de razão e a "imbecilidade" de um ser unper-
Sendo essa a natureza da mulher- mais má ou, no 111 (1111111
ho por natureza constituem, aos seus olho~, circun~tâncias ate-
mais leviana que o homem - uma lógica milenar, mas qu1 i'"'
lhllllCS. Tal é a opinião maduramente reflenda de T1raqucau:
diversos aspectos se torna mais dura ainda no começo d:1 ld111l
Nloderna, situa juridicamente o "segundo sexo" em uma rn111h
C) homem que comete a fornicação ou o adultério peca mais
ção inferior. Na França, é no século XIV que se fixa a lei fu111I 1
1(1':lvemente que a mulher, tendo em vista o fato de que o
mental que pretende que a coroa não se transmita nem :is 111111111
homem possu i mais razão q ue a mulher l...). _
res, nem pelas mulheres. Uma regra geral na Europa cio i\111 lj, Portanto, minha opinião é esta: tendo os homens mais
Regime proíbe-lhes o acesso às funções públicas. "A 1111111111 rnzão que as mulheres, graças à qual podem mais vigorosa-
ensina no século XIV o jurisconsulto Boutillier, freque111c111r111 mente que elas resistir às incitações do vício e, com~ dizem
editado duzentos anos mais carde, "não pode nem deve de 11111111 11s teólogos, às tentações, é justo que as mulheres seJam pt~-
algum ser juiz, pois ao juiz cabe enorme constância e discri,·1111 niclas com mais clemência. O que não significa não as punJT
a mulher, por sua própria natureza, delas não está provid11' absolutamente como se fossem animais brutos totalmente
"Igualmente, são privadas as mulheres [de ser advogadm ' '" privados de razão. Pois as mulheres possuem um certo g rau
corte] em razão de sua impetuosidade."99 Em Namur, um dc1•1t 1,, de razão [cnm foe111i11ne nliquid rationis br1be1mt].w"
urbano de 1687 proíbe as professoras primárias de e11si11,11 11
meninos: seria "indecente".100 Alguns tribunais admitem q111 , . No começo do século XVII, o jurisconsulto italiano Farinacci
testemunho de um homem vale pelo de duas mulheres.1"1 1-: 1,11 111hém aconselha apreciar com maior benignidade a culpa das
também o sentimento de Jean Bodin, que cita a esse rcspci1o, , mlhcres, sobretudo quando se trata de uma infração "contrá-
legislação veneziana (e a do Oriente), assegurando que .. rn1111 1~ ,111 direito positivo, mas não ao direito divino ou humano o~
testemunhas, as mulheres são "sempre menos confiáveis q111• 11 17
1 ,l11s pessoas". º M.ais amplamente, o direito romano - e aqui
homens". Contudo, em caso de extrema necessidade, isto 1·, 1lt , 111·ontramos Tiraqueau - pretendia que a mulher fosse me-
investigação sol;ire a feitiçaria, é preciso também receber " ;1~ pt " ~cveramente punida que o homem em caso de incesto (salvo
soas infames de fato e de direito [as mulheres] em testemunho"' 111 linha direta), de sacrilégio e de adu ltério.'º"
Por toda Europa de o utrora a mulher casada está "em pode, ,h \o contrário, o tem ível J ean Bodin não descobre para a
marido", ao menos "após consumado o casamento",'°3 e lhe dt•H 1111lhor culpada nen huma circunstância ate nuante, já que não
respeito e obediência,'IH pesando o dever de coabitação mais ,oJ;i, 1 1111 "fragilidade" de um sexo que lhe parece, ao inverso, "n a
ela do que sobre seu cônjuge. "Muito deve mulher séria sol 1·1•1 1i1111 rin" marcado por uma "obstinação indomável" e pela "for-
padecer antes que se ponha fora da companhia de seu marido" 1h1 cupidez bestial". Para ele, assim como para os autores de
Essa sentença de Philippe de Beaumanoir no Co11tu111e de ll,·11,1 1111,rte/o dns feiticeirns, a mulher é "a flecha de Satã" e a "sen-
vnisis (século XJIJ) continuava aceita no século XVll. h11•l11 cio inferno".
503
Mas é talvez em Pierre de Lancre que a recusa dn~ e l1111 1111 mulher casada. Assim, para garantir os créd itos desta
tâncias atenuantes é mais n ítida. D e um lado, ele rcco11l11 1, 1 tr,1 seu cônjuge, a jurisprudência costumeira francesa criou
as mulheres são "um sexo frágil que reputa e considcrn l 11 q11 ~milo XV II uma hipoteca legal onerando os imóveis do ma-
temente as sugestões demoníacas como divinas" e q11c dn• 1 t' os bens adquiridos. Nos séculos XVI e XVII, se os bens
jam vários sonhos que acreditam verdadeiros, segundo l 'N~I 1lt 111~111 da viúva pe rderam sua primazia, ao contrário a comu-
comum de que as velhas sonham o que querem". M:1s, c1111111t 1,k dos bens entre cônjuges se aperfeiçoou. Em caso de
parte, declara sem hesitar: 111ncnto do marido, cada vez mais a esposa passou a ser a
111liii ou tutora dos filhos.
A verdade é que a velhice não é uma causa idônea p111 11111 Uma vez anotados esses corretivos, permanece verdade que
minuir a pena de delitos tão execráveis que elas 'l' 111 , 1111scimento do direito romano, a escalada do absolutismo e
tumaram a cometer. E além disso é uma ficção di·1t11 1111 "modelo" monárquico (com seus corolários no plano fanü-
todas as feiticeiras são velhas, pois entre uma i n finid:1cl1 111, r) l' a ação conjunta - e que nunca fora tão forte - dos três
vimos durante nossa comissão na região de Labourd, h11 1 1 ursos "oficiais" apoiando-se mutuamente agravaram no
quase tanto jovens quanto velhas. Pois as velhas im,1111 1, lltt•t;o da Idade Moderna a incapacidade jurídica da mulher
as jovens [...]. 10• 11ln: o que foi observado por historiadores, juristas e soció-
"'· Essa incapacidade, preconizada especialmente na França
E staríamos errados certa mente se avaliássemos a po~l\1h ~éculo XVI por André Tiraqueau e Charles du Moulin, é
da mulher na sociedade da Renascença apenas pelas indin l\111 1,wnnte admitida pelo conjunto dos redatores de costumes.
negativas agrupadas no presente dossiê. Na realidade, n 11, 1 11111cnta o controle do marido sobre os atos jurídicos de sua
ram-se duas linhas de evolução, das quais uma era favor:íVl'I 1 , 1111~n: esses, salvo raras exceções, devem ser autorizados pelo
outra desfavorável ao "segundo sexo". Encontraremos c111 111111 n1uge. A mulher casada não pode mais substituir o marido
obra posterior a corrente feminista ,"º cuja audácia, cont11do 1 ,
preciso sublinhar desde já, considerando-se os obst,ículm q111
encontrava. Além disso, em certa medida pelo menos, a pr:11 l1 1 Para agir corretamente, é preciso (neste último caso) a au-
temperava a estrita teoria. Na França, por exemplo, ainda qw toridade supletiva da justiça. Ela é considerada como inca-
as mulheres não pudessem reinar sozinhas, contrariamc ntl' 1111 pn em si e identificada com um menor. Quando seu marido
que aceitava m os ingleses, regentes ou favoritas reais exerce, 11111 não pode reforçar sua capacidade, precisa da ajuda do poder
verdadeiro poder. Do mesmo modo, em todas as grandes citl11 público. Do mesmo modo, se ela se compromete sem a au-
des da Europa, as esposas de comerciantes por vezes tivcr11111 torização do marido, não só seu compromisso não obriga a
participação ativa nos negócios. Enfim, a jurisprudência 1w111 comunidade, o que é normal, mas é absolutamente nulo e
sempre se modificou, entre os séculos xrv e XVH, em um sc111 I não obriga a ela própria.m
do uniformemente desfavorável à mulher.111 O direito de pi,,il
ção marital, inscrito nos costumes medievais, tendeu a dcs:1p11 F. Olivier-Martin, redator dessas linhas, bem observara n a
recer. A separação de corpos, raramente concedida à cspm,1 1111clusão de sua Histoire du droit fmnçais essa deterioração, a
durante a Idade Média, pouco depois tornou-se mais frequcnH• I""1ir da Renascença, do estatuto jurídico da mulher casada.
Ao mesmo tempo, melhorou a proteção dos interesses fina11cc1 N1, [dade M édia, a autoridade marital, ligada ao regime de
505
comunhão de bens, visava assegurar a disciplin:1 do 1·11~111 1 1 devo por assim dizer fazê-lo de maneira tão ponde rada,
a última palavra ao marido. No final do Antigo Rc/{11111 111'1.l e comedida, sim,
de maneira tão perfeita quanto Deus
tornou uma instituição de ordem pública, indep1•111h 1,1 h111do o mundo, sem o que sou severamente repreendida,
arranjo matrimonial adotado. Antigamente, o marido t l 1 r1111lmente ameaçada, e por vezes beliscada, arranhada, es-
tre e senhor da comunhão", na era clássica ele se tot'IH 111 ' 111 n1wnda e maltratada de muitas outras maneiras das quais
e senhor ele sua mulher"."• Arnolphe exprimia bem o dh, 11 fto fnlaria em razão do respeito que lhes devo - em suma,
época quando pretendia que a esposa olhasse seu cc)11]111, 11 injustamente punida que creio estar no inferno.11"
mo seu marido, seu chefe, seu senhor e seu mestn.:".111
Assim, e a despeito da indiscutível escalada de 11 1111111111 l11dc está a igualdade dos sexos percebida por Burck hardt?
feminista na Europa do século XIV, agora já não se p111h , 11• pesadas tradições e afirmações peremptórias esforça-
subscrever a opinião de]. Burckhardt, que afirmava: " 1'111,1, _,, ontão em impedir a emancipação da mulher.
preender a sociedade na época da Renascença naqu ilo 11111 , Nno se deve portanto avaliar a situação concreta da mulh er
de elevado, é essencial saber que a mulher era consld1•1 ui 1111c11 da Renascença a partir de algumas soberan as ou de
igual do homem".11º O grande historiador suíço foi il11d ld,, 1 ums escritoras pertencentes ao "segundo sexo". Umas e
alguns casos italianos retirados de seu contexto e nilo 111111111 1 ti~ não foram mais que "álibis"119 que ocultaram a historia-
a promoção da mulher se produziu na época apesar dn•; ,1111 - 11pressados a condição real da imensa maioria das mulhe-
dacles no poder e da ideologia oficial. E la resultou de u111111 1h1 ~poca. A promoção de algumas delas não significou
testação cujo ganho de causa não era tão evidente.Julµ11111111, 1h11,nmente uma emancipação global.
antes por dois textos fornecidos pela Inglaterra elisahc1111111 ,
primeiro é extraído do De republica mzglormn (1583) de ' l 'lt11111
Smyth, obra consagrada à sociedade e às instituições i111~h• , 1 UMA PRODUÇÃO LITERf\RIA FREQUENTEMENTE
Ao lembrar que os servos "não podem ter nem a11tc 11 hl 11 11< )STIL À MULHER
nem jurisdição sobre os homens livres, pois não silo M' lllli,
( :onvém agora remontar por um instante o curso do tempo
instrumento, a propriedade e a posse de outrem", '1'111 1111
Smyth encadeia imediatamente e situa as mulheres 1):1 11111~111 1,1 lombrar a insistência ela literatura dos séculos xm-xv, na
11~·11 por exemplo, em sublinhar os defeitos femininos e vili-
categoria, pois "a natureza criou-as para que cuidem d11 li11
alimentem sua família e seus filhos, e não para que m•1111111 111llur o casamento. Ora, estamos aqui na esfera de uma cul-
111 crndita que extrai uma parte ao menos de sua substância
funções em tlma cidade ou em uma comunidade nacin1111I
assim como hão criou para isso as crianças de pouca id:1d1•" 11 1 "discurso oficial" das autoridades da época tal como acaba-
11• tlc reconstituí-lo, especialmente em sua argumentação
Tais sendo os princípios, eis aqui o vivido cotidiano
educação de uma menina - tal como Lady Grey o dcscrcvli1 111 ulugica. A segunda parte do Roman de /11 rose é, como se sabe,
humanista Robert Ascham (t 1568):
, 11111 desmistificação do amor cortês e do amor simplesmente.
1,1 claro, não é preciso privar-se do prazer sexual, declara
Quando estou na presença de meu pai ou de minh:1 11101 111 ele Meun por intermédio de Raison e de Genius. Mas esse
que eu fale, me cale, caminhe, fique sentada ou em pé, rn111,1 lt1ltc legítimo não é senão uma astúcia da natureza para que
beba, costure, brinque, dance ou faça qualquer outr:1 1111 l(lll' Assegurada a perenidade da espécie humana. Todo o resto

506 507
é só ingenuidade de um lado, logro do outro. Eis af Jllll 1 lo, Loucura, Servidão e Dissimulação, é levado para o lado
uma moral pouco cristã, mas que está acomµanh:1d 11 d1 t-lihoto - o "casamento espiritual" - por Repertório d e
antifeminismo próximo daquele que logo será exibido p111 li 111.118 Este, que fala em nome de Eustache D eschamps, m os-
varo Pelayo. Ami afirma, com efeito, que as mulherc~ \lltt , ' 111110 o casamento [para o homem, entenda-se] não é senão

veis e mais difíceis de segurar que uma e ng uia pega 1111 lllllllO, qualquer mulher e de qualquer condição, que se
pela cauda. No entanto, as virtuosas são excluídas dcs\l' 1, ,1 1''.11v Ele se baseia nos "antigos filósofos" para assegurar que
sitór io: restrição que não passa de uma brincadeira, pol 1.1 de mulher é começo de raiva e p erversão de homem"130 e
retoma imediatamente, confessando que, assim como S11l1111 'por mulher se perde todo senso e entendimento", ainda qu e
não encontrou uma sequer e q ue, "se tiverdes um:1, 1ul1111 ,1 1111~11 de amor" seja "honesta"rn - for tes argumentos, aos
xeis escapar!"120 O mesmo estado de espírito se cncrnll 1 1 1 1• ~l' rende Livre Querer.
La111e11tntious de Mnbieu escritas por volta de 1290 por 111111 I () upisódio para nós mais revelador do Nliroá· du 111nri11ge é
go que desposara u rna megera. Para ele também a 11111llw1 1 1 1\11wro XXXI, intitulado "Aqui se fala dos ardores desorden:1-
1 1111pudicícia das mulheres".131 Repertório de Ciência aí
guenta, curiosa, desobediente, invejosa, ávida, luxuri()~II, 11
da, hipócrita, supersticiosa, indiscreta e cruel. 111 111 o seguinte apólogo: "Um filósofo chamado Secons lera
.i\lfais ca racte rístico para nós é talvez o caso de 11' 11 1 Ih ros que n enhuma mulher é casta. Quis verificar tão neg r a
Deschamps, alternadamente ho mem de guerra, diplom111 111 1 l\ 110. Tendo deixado há muito tempo a casa de sua mãe que
fio. Esse contemporâneo da Guerra dos Cem Anos e do ( 11 11 111 viúva, volta a ela disfarçado de peregrino. Acolhido mas
Cisma - morreu em 1406 - é o representante sem ~~111t , 1tll'Onhecido pela criada, promete à patroa desta "grande
u ma geração merg ulhada no pessimismo. Repete i111·.111 , 11, nlegria e divertimento" se ela o acolher em seu leito.
mente que a Igreja está "afl ita", "deplorável" e "dc~oliul 1 111 cllsso, ele lhe oferecerá "bom dinheiro vivo" e irá embora
mundo tornou-se "tão mau que é preciso que Deus o pllll, 111,1 ~cguinte sem mais dar notícias. E ra todo b enefício e roda
Ele "vai de mal a pior".m "Cobiça reina com Vã G l<'1ri11,/ l 1 111 1111ç·a para a velha mulher que, ao ouv ir tais promessas,
lealdade, Inveja e Traição."m "Guerra dia a dia avan,,:1 1 1 1 , 111111-se do fogo de luxúria/ E cobiçou por sua natu reza/
11 ouro que se lhe prometia".'" O falso peregrino revela
isso se pode perceber/ Que o mundo se aproxima de wu 11111
Por essa espera de um Juízo Final iminente, Eustache ()l'\I h ,1,, 11 ~1111 identidade, e a mãe cai morta de vergonha.
junta-se aos pregadores alarrn is tas de seu tempo e, comi>11~ 111 , ~~im, um antifeminismo descontrolado conseguia arrastar
lógicos deles - pensemos em Manfred de Vercelli - , d, ~11 l 111111 o conjunto do "segundo sexo". O sinistro apólogo de
selha o casamênto: "Quem se casa está mal da cahc~·;1" 1 111 hc Deschamps nos ajuda a ler com uma lente de aumento
dúvida, sua obra contém baladas amorosas. Mas sua :li i11ul1 h l111111lnnte literatura das obras hostis à mulher que, das Q11i11ze
<lamentai diante da mulher é marcada por uma hostilid111l1 11 ,/11 111ariage à Nlégi:re ttpprivoisée, inundaram a Europa n o
bal. D e modo que qualquer homem desejoso de ser 11•11 111 ~o da Idade Moderna. A título de amostragem significativa,
casamento deve fazer-se cego e surdo e eliminar roda 111111 111111i, :1 partir de uma tradução francesa do começo do século
ção: "Quem bem viver quer no casamento,/ Cego seja 1 ~ li 1 1 11111 lrecho do Re1llédio de amor do humanista E neas Sílvio
sem nada ouvir,/ E se guarde bem de sua mulher i11q11 i1 li ' 11l11111ini, que iria tornar-se o papa Pio II (1458- 64). O texto
última obra - inacabada - do poeta é um esgotante 1\ l //11I h11 •·cmete às afirmações de um outro humanista do século
mnringe (em 12 mil versos) no qual L ivre Querer, a de\pl 11• 11,11 t i,;ta Mantovano, que era, é verdade, um religioso:

508 509
lvlantovano diz que o gênero feminino 11111iinio, uma mulher-homem (Siernau). No final da obra
É servil, desprezível, cheio de veneno: 1 morta por seu marido, e assim as coisas ficam bem.
Cruel e orgulhoso, repleto de traição, 1wq11cno livro", conclui Schubert, "foi composto com o
Sem fé, sem lei, sem moderação, sem m zrio 11 1il• inclinar as mulheres à obediência." Em 1609, um
Desprezando direito,j11-Stiça e equidade... 1111 de Zwickau publica um pesado volume, o Nifllus m11/ie1;
[Nlulhe1· é] inconstante, móvel, vr1gab11111/11, 1 "~l.lde de dominação que devora a maldosa mulher".
Inapta, vii, avarenta, indigna, 111 ~e duas reedições - em 1612 e 1614 - e logo um novo
Suspeitosa, fingida, ameaçadora, 11 d11 mesmo autor sobre a lmperiosis mulie1; em cuja intro-
Brigmnta, jàladora, ctípida, " ' pode ler: "Favorecida por um bom vento, minha sátira
Impaciente, invejosa, mentirosa, 111 todo pano em todos os países; penetrou em toda part,e ,
Leviana em crei; bebedora, onerosa, htos c.!Spirítuosos transformaram-se em prover , b.10s".
Temerária, mordaz, enganadora, 1111111 vento" - precisemos com efeito o sentido dessa
Caftina, devoradora, feiticeira, ~1111 n partir das reações indignadas de dois pastores que se
Ambiciosa e supersticiosa, , 111 com a fúria dos ataques contra a mulher. O primeiro,
Petulante, inculta, perniciosa, 11111 prédica publicada em 1593, queixa-se nestes termos:
Frágil, litigiosa, ativa.
Despeitada e 11111ito vingativa, 1·,•ldente que há bem mais autores que difamam as mu-
Cheia de 11dul11çr7o e de mau humor; l1111t•s e crivam-nas de insultos do que se os encontra para
Entregue a cólera e fl ódio, 11 l1111 dizer um pouco de bem. A bordo dos navios, nos al-
Cheia de fingi111-ento e simulaçr7o, h, 1f\11cs, nos cabarés, por toda parte espalham-~e -~e~uenas
Para se vingai· exigindo dilaçiio, l111111huras que divulgam em todos os lugares a lllJuna con-
Impetuosa, ingrata, muito cruel, lt 11 1111 mulheres e essas leituras servem de passatempo aos
Audaciosa e maligna, rebelde [...]Y4 111 losos [...]. E o homem do povo, à força de ouvir e de ler
,~il N coisas, está exasperado contra as mulheres, e quando
E ssas invectivas, comparadas às 102 acusações ele /\1\ 11
Ih 11snbendo que uma delas está condenada a perecer na fo-
Pelayo, demonstram que as litanias rnisóginas haviól111 ·111 1111
Mlllllrn, exclama: É bem feito!, pois a mulher é mais maldo-
nado um discurso estereotipado, uma maneira hahi1 illll ti
,1, 111nis ardilosa que demônios.m
falar da mu lher.
Foi por abso que, na Alemanha luterana dos ano~ 1\r,11
h11 1617, o segundo de nossos pregadores fala no mesmo
-1620, atormentado pela espera dos prazos apocalípticos, o 11111
1111111
à mulher atingiu uma espécie de pico, e especialmente pol' 11111
sa da imprensa? J. Janssen outrora reuniu a esse respci1n 1111,
1 ,1/\s mulheres são [...] objeto de um ódio singular; uma
dossiê .impressionante, do qual eis aqui algumas peças i 111p111 11111ILidão de escritores empenha-se em difundir contra o
tantes. Em 1565, um autor de sucesso, Adam Schubert, erl lht•
de título significativo, O diabo do111éstico, encoraja os ma ridt1~ ,
-••mfeminino as mais negras calúnias. O casamento é ui-
li 11jndo, contra ele é feita uma guerra aberta [...]. Dão-se
usarem o bastão contra a esposa, sobretudo se esta é um w11h1 1111vidos de bom grado a tudo o que se escreve contra elas [as
510 5!1
mulheres], as pessoas se deleitam com isso e c~'I·~ I" l dominante. A transição para a lo nga litania dos ditados
livros e essas rimas burlescas encontram g ran<h• \1 111! l(lllOS pode ser fornecida po r est a sentença: "Se a mulher
disputados nas lojas dos livreiros.111' vulc um império. Se não, não há no mundo animal pior".'·11
"mau a no e mulher sem razão não faltam em muita
Assim, as pessoas que sabiam ler na A lemanh:1 d1 1 111 fto".'° O marido precavido zelará portanto em ter o co-
portanto uma estreita minoria - disputavam :1 liH·1,li 111 lo cm sua casa: "Não suportes por nada que tua mulhe r
feminista que era ao mesmo tempo maliciosa, 0 11 1111 1,I h11 o pé sobr e o teu. Pois amanhã o ignóbil an imal deseja-
influência inesperada da imprensa, cujo destino 11111111 1 lo sobre tua cabeça''. 1•• Mas é possível realmente se fazer
tendência a ligar ao de um humanismo etéreo. rrcr por sua esposa? "O que a mulher quer, Deus quer."••s
Voltando agora à França - mas a experi2ncin Nl 'I l 1 , 9lll' uma mulher quer está escrito no céu."H6 Na vida de
me nte válida em outra parte - pode-se tentar p11 1111, 1, 11 homem terá de qualquer maneira necessidade do bas-
antifeminismo coletivo por um outro ângulo. P:11 11 1 , 1 llom cavalo, mau cavalo q uer a espora. Boa mulher, má
abrir as coletâneas de provérbios. A seu respe ito, i111pn1 h111 quer o bastão".'•1 Então é preciso casar-se? E . D es-
obse rvação que se aplica também às broch uras alc1111h 11, 'I", assim como vários provérbios, desaconselham-no for-
gação. Tanto as coletâneas quanto as brochuras rcf 1111111111 11•mc: "Quem tem mulher para ser vigiada não tem jorna-
testavelmente sentimentos populares. i\1as si'io ao 1111 ~111 ''''KUrada". "Quem tem mulher está perdido."Ha "Quem
po produtos da cultura e rudita. Os clérigos (cm sc11111h, 11 11111lhcr, tem briga."1• 9 "Quem mantém mulher e dívidas,
quando compõem listas de provérbios, operam 1111111 1li f\1111 na pobreza."'50 "Guarde-se de mulher desposar quem
nas máximas dos g regos e dos romanos, leem co111 1 , 11 , , 111 paz repousar."ll•
os livros do Antigo Testamento e, deitando por c,1•11111, C, _ defeitos femiiúnos justificam, n as coletâneas de ditados,
dos cotidianos, estão liv res para formulá-los /1 s 1111 111111 ndvertências desencantadas. A mulher é desperdiçadora:
para agravar-lhes a virulência. De qualquer modo, 1 1, 11 111 11 que o instruído labora, louca mulher devora".' 52 "As
as coletâneas de provérbios, ainda uma vez g rac,::,~ 1\ 11111•• 111 ll'S ~ó am am os rubis."151 Além disso, o luxo do vestuário
multiplicam-se na época da Renascença . E ela~ 1111111, , 1, v1:zes esconde - ou revela - a feiúra da alma: "Mu lher
mais das vezes, falam mal da mulher. Reunindo sc1111m 11 1r:ijc enfeitada a estrume é comparada. De verde d isfar-
das de diferentes horizontes, reforçando sua cin:1illl\1'l11, • 11 descoberto surge a porcariada". 1H Quanto à beleza, é
público, aumentam com isso a violência da misogi111111, 1 l1i1 e perigosa: "Beleza de mulher não enriquece homem".' 55
Um pesquisado r atualmente às voltas com cs~,• 111111 , • 11111lher, má cabeça. Boa mula, má besta."156 "Dize uma só
uma só vez polimorfo e fugidio calcula que, cm d l'/ 11111 11111111 mulher que é bela, o diabo lho repetirá dez vezes."lll
franceses dos séculos xv-xv11 relativos à mulher, M'lt' , 111, 111~11 o ho mem à força de chorar. Mas suas lágrimas não
lhe são hostism. Aqueles que lhe são favorávei s dcs1111 11111 , 1111 m·ns. "A toda hora cão mija e mulher chora."158 "Mulhe r
n1des da esposa boa dona de casa, dando a e ntc11tll-1 , 1111, 1~11tlo pode e chora quando quer." 159 "Choro de mulher,
llltl!i ele crocodilo." Daí a acusação de duplicidade lançada
160
tal pérola é rara: "De boas armas está armado q11t•111 , •~
mulher está casado"u8 • "Mulher boa vale uma corn11111 1~ 1111: "Mulher se queixa, mulher se lamenta. Mulher fica
1

lher prude nte e sensata é o ornamento do lar.""'' "( 1111 11 h q11nndo q ue r".161 "Mulheres são anjos na igreja, diabos
mulher de bem vive muito tempo bem."141Tal 11iio 1·, 11111111 ,11 1• mncacos na cama."161

51 2 513
Em uma época em que, de alto a baixo da sociedade, cx11h11 5. UMA ICONOGRAFIA FREQUENTEMENTE
-se mas também se teme ao extremo o po<ler <la palavr:i (p111t MALÉVOLA
semos na m aledicência que macula a honra, no intercsst• 111 l 1
E lementos e confirmações, se se ousa dizer, <lesse atroz
retór ica, na ação dos pregadores), as pessoas inquietam-s<.' vi\,,
requisitório são reencon trados nas estampas do século XVI.
mente com a tagarelice feminina que os homens devclll t•Nli 11
cguindo a sra. Sara F. Mat thews-Grieco,'11 estudaremos aqui,
çar-se em controlar. "Duas mulheres fazem uma assc111hh l,1
Jlnr exemplo, aquelas que fora m então gravadas na França. Ta l
três um grande cacarejo, quatro são pleno mercado." 11· ' "M11ll111
irodução é por certo ambivalente, ou melhor, hesitante, apre-
por sua vez deve falar quando a galinha vai urinar."",1 ºNn, ,
~11rando da mulher uma imagem alternadamente favorável e
digas à tua mulher o que calar queres."'65 "Uma mulher so 1 ,il,
l~~fovorável, de modo que uma desmente a outra. Assim, a dona
o que não sabe."166 Daí o desprezo que se demonstra prn I h,
"Grande milagre se uma mulher m orre sem fazer lout·111 11"1
ll' casa é valorizada, como em certos provérbios, ao mesmo
"Nlulher é um barco a vela que muda e se move com o vc1110 1
~111po como companheira afetuosa do marido e como mãe dos
"Mulher so zinha é nada."169 "O cérebro d a mulhe r é ti:1111 1h ll1rcleiros deste. A maternidade, em tal representação de Adão e
VII, é proposta como uma espécie de equivalente femin ino do
ó leo de macaco e de queijo de raposa.""º
O desprezo é frequentemente duplicado por verdadci1·11 h11 tr11halho masculino: Eva dá o seio a um bebê enquanto Adão
t ilidade em relação a um ser considerado enganador, irn·1•1q11 11V11; ou então repousa, fatigada, ao lado de duas crianças,
rável e maléfico. A esse r espeito, os provérbios retoma 111 , ~t ili , nquanto seu marido cultiva a terra. Outras estampas que põem
forma de acusações lapidares, o discurso dos celibat,írio:. (1111 111 cena os casais ceifeiro-apanhadora ou pastor- tosquiadora
cu linos) da Igreja. "Coração de mulher engana o mundo, p11I hmacam a ajuda que as mulheres podem proporcionar aos
nele tudo é malícia."m ".iVIulher e vinho têm seu vc1w1111 ' 1111ncns nas tarefas agrícolas. Ilustrações dos liv ros de horas e
"Mulher é mãe de todo dano. D ela vem todo ma l e 1od11 t 11 lt•gorias dos doze meses se comprazem em evocar as mulheres
gano."m "O olho da mulher é uma aranha."';, "Uma boa 11111lh1 t 11111indo e transportando os cortes de videiras feitos pelos
uma boa mula, uma boa cabra são três animais maldo Nt1~' 111mcns, ordenhando as vacas, vindimando, levando comida aos
"l\l[ulheres são muito ardilosas, e por natureza perigosas."' • \ •vl'lldores, ajudando o homem a matar o porco ou preparando
sim, a temível sabedoria das sentenças estabelece um cio l'lll 11 1 111nssa com que ele fará o pão. Na estampa, a mulher é ainda
elemento feminino e o mundo infernal: "Mulher sabe :11wÍ1111, 1111ula que fia e que tece; a que tira iígua da fonte; a que cozinha;
1 d .ia bo.
co " 177 "Mu li1er mais
. comumente ad'1vm . h a do quc 111111 1 que cuida dos doentes e dá aos mortos os últimos cuidados
palavra divina."'78 ·Ora, quantas adiv inhas de aldeia pcrl'l'<'I ,1111 111 porais. Mas todas essas ocupações conferem-lhe um papel
na época nas fogueiras! Então, por que o homem lamc 111 11 1li1 , 11111nor e à sombra do homem. No entanto - sendo as alegorias
morte de sua esposa? E sse falecimento não é u m favo r qt1l' 11111 llll'llieva is substituídas pela iconografia arcaizante - a forma
faz ao marido? "Luto de mulher morta dura até a pw 111 1 111lnina, m ais plástica que a silhueta masculina, é utilizada
" Deus ama o homem quando lhe tira a mulher com qu1.:111 11I II h 1111fcrencialmente para personificar abstrações: a Castidade, a
sabe mais o que fazer." 180 Esse último ditado se encontra 1:11111 11 (if. 111•tlade, a C aridade, a Natureza, a Majestade, a Religião, a
sob forma mais categórica e mais geral: "A quem Deu, q111 , dhudoria, a Força, até mesmo os "Nove Cavaleiros"; ou ainda
ajudar morre-lhe a mulher ".18 1 • f)uatro Virtudes cardeais, os Quatro E lementos e as Quatro
11 ICS do mundo. Valorização da mulher? Parcialmente, sem

514 515
dúvida, mas apenas parcialmente. Pois a ma iol' p111 t 1111111 alegorias nefastas, usam então o traje da época e
alegorias, como Minerva (ou as Amazonas) é, ni,~11 11 , 111,~cridas no cenário cotidiano. Assim, a mulher virtuosa
Virgem Maria, uma espécie de anti-Eva, seres (Jll l' 11111 11 lldn do real, ao passo que a mulher má é nele introduzid a
a totalidade de sua vocação feminina e são situadm, 11111 11 , 0110 direito. Seja agora a personificação dos pecados capi-

menos fora de seu sexo. Desse modo, não acrl'dh11 111 1Alon Davent - em 1547 - os representa acorrentados à
muita rapidez que o gosto pelas imagens greco -ro11 111111 1 rn da Justiça. Dois são encarnados por homens (11 gula e a
11111s os cincos outros por mulheres (orgulho, cupidez,
cionou os hábitos mentais e modificou de po11111 11 I" ,, 1
11, luxúria e preguiça). Em uma estampa popular parisien-
valores e as crenças. Temas reaparecem sob 01111·11 111111,
Hugunda metade do século XVI, apenas a avareza é figu -
Entre a dama com o licorne e Diana caçadora :10 h1d1, il
110 masculino (um homem contando seu ouro). Os seis de-
cervo há continuidade; Eva e Pandora desempcnh11111 11111
i vfcios são atribuídos ao outro sexo. A gula é uma mulher
papel, desencadeando com sua curiosidade conclcn:lvt•I 11111,
"cntada à mesa, vomita; a luxúria é Vênus acompanhada
rente de desgraças sobre a humanidade. O julga111c11111 1h 1
11111 amor; a preguiça é simbolizada por uma mulher dor-
não é muitas vezes nada além de outra versão do 111 11 11 11i 1
cio sobre a palha perto de um asno; a ira pela assassina de
este!1dendo a maçã a Adão. A nudez do primeiro c:1s11I 1111 hti 1
1 l l'Ínnça - e atrás dela arde uma cidade-; o orgulho por
do ~den, assi_m como os amores de Marte e V ênus, dt• ltlpll 11111istocrata ricamente adornada olhando-se num espelho,
Calisto, expnme o desejo, em um universo em que 11"' 11 11 1 11111 pavão a seu lado; a inveja por uma velha feia e nua,
dade ainda não fora condenada; o gozo em um par.1 í~o 1111. r,llda por serpentes. No segundo plano, o artista retratou o
- ou pré-cristão - onde ela ainda era permiticl:i , 1\1 11
h11 e evocou o Juízo Final.
jar~im _das delí:i~s, _rrovis~riamente recriado, afin:1 1 111111 I'' 1111,piradas pelas fábulas antigas ou pelo Apocalipse, as es-
de _1lusao. Ilusona e tambem a evocação de uma 1111111111 'I lptlli referem-se incansavelmente ao poder sedutor da mulher,
sena a uma só vez erótica e sem pecado. l'Onduz os homens à perdição. Aqui, um homem jovem de-
Doravante ela é uma armadilha. Por certo é a i111tlHI 111 1 o-colher entre o vício e a virtude, o primeiro representado
paz, mas igualmente desvia o homem de sua voca~·ílo 1111111 r uma cortesã vestida na última moda e sentada sobre um
ou intelectual. Soldados colhem frutos de uma macit•I1,1 1111 ~Ro, a segunda por um anjo simplesmente vestido com uma
tronco e o rosto são os de uma mulher e em seguid/11d1111 11 11 flutuante e coroado por uma auréola. Ali - é o tema da
cem em vez d e combater. Xantipa impede Sócrates di· 11li 1 . 11111 sentada sobre a Besta", tratado especialmente por Etienne
fa_r; uma cort'esã transforma Aristóteles em besta dr t 1111 , ph11me - "o mundo que, pelos prazeres que faz gozar, arras-
Eis-nos então novamente impelidos para o lado da 111 i•,1111l1tl o homem para o abismo", é personificado por uma mulher
que, segundo a sra. S. Matthews-Grieco, a partir de J 5(i() 1111 11111dn sobre uma besta de sete cabeças. Sorridente, coroada,
se agravado por um bom meio século na estampa 1'1·111111 , "' ldn de maneira exótica, com o colo desnudo, ela segura no
Observação penetrante: quando figuras femininas pcr~o11llt h11 n taça dos prazeres; e o demônio, que a espera nas chamas
cam nobres abstrações, jamais estão vestidas à moda do 4"(.i 11h , 11111 precipício, lhe faz sinal para se aproximar. Instrumento
XVI, no mais das vezes estão nuas ou vestidas com l OKll'1 1111 , pl)rdição, a mulher é Medeia, cuja história marcou parti-
tuantes à antiga e por vezes colocadas sobre um pcclcs111I 1111 11h111111ente o talento dos gravadores do século XVI: ela, que
cercadas por uma paisagem idílica. Quando, ao cont 1111111 1h11,iuJasão, ferveu drogas para Esão e finalmente matou seus

516 517
próprios filhos. Ela é igualmente Circe, que rranslú11111,,, ulws, representam as cenas de família e repreendem os
porcos os companheiros de U lisses. ltlos "complacentes" que deixam à esposa o comando da
A história de M edeia é duplamente signifícativu, p T rata-se ainda de uma "luta pelas calças", mas dessa vez
exprime ao mesmo tempo a sedução e a violê ncia lc•11 1111, l't• o homem e a mulher. Esta enfia as calças do marido, que
Dessa violência, os homens do século XVI têm 111l•cl11 , •111n, ocupa a roca ou está ajoelhado diante de sua compa-
prova, sempre a iconografia. Diana é uma vi rgem im1t 11 1 1111 megera, ou é espancado por ela. Variantes dessa s:íti ra
mas sua virgindade é inquietante e selvagem, enc:1 rn,1111h , fl'l'Cm também na abundante iconografia do "mundo às

natureza rebelde. Acteão, que v iu a deusa banhar •11 111, _,,~". Pois a subversão fem inina é uma das causas da inver-
transformado em cervo e devorado pelos cães. M:1rµo1 , 11 111, 1lns h ierarquias. Como tudo não estaria de cabeça para
sa (D11/le G1·iet), no célebre quadro de Brueghel,"' é \l'll1 ,111 u 11uando Filis cavalga Aristóteles e a mulher usa a espada
a encarnação da mulher intradvel e dominadora. 1\il :11'HHI 1 11,111to seu esposo demasiadamente pacífico se ocupa cm
loucas companheiras lutam contra os homens :10s q1111I 1 t\ insubmissão do "segundo sexo " fornece ain da a chave da
muito tempo o bedeceram. L ibertando-se, dcstroc•111 1 1h1 conhecida sob o nome "Bigorna e Cara de Pão-Duro".
,1p6logo já figura no C/erk's tale de C haucer e tem um vivo
Tendo um incêndio ao fundo, a megera aturdida e 111 1111111
-~o na França na época da Renascença. Ilustra, por exem -
um gládio dirige-se para o inferno, seguida de um l'WI 111
11111 teto do castelo de Plessis-Bourré em Anjou e a galeria
viragos em delírio.
111N1clo de Villeneuve-Lembron em Auvergne. A Bigorna,
O furor feminino é frequentemente de base cr(1t 11 11 1
11110 vive sen ão de homens bons", é um mo nstro muito
gravura de 1557 zomba dos maridos que não são sufirÍl'll11 11,
1111 e a Cara de P ão-Duro, "que não vive senão de boas
te viris. Quatro mulheres de idades e n íveis sociais d th 11,
ll1111·cs", é m agra como um esqueleto. A Bigorna é mesmo
punem severamente h omens sem calças "pela frente l' pt11 1
1111 hem nutrida, pois inúmeros são os homen s que se deixam
a fim de violar sua natureza mais orgulhosa". Um 01111111
li.li' para escapar às suas mulheres ralhadoras. A Cara de
burlesco, já conhecido na Itália no século x v, é li ,li 111 h
1>uro se queixa, ao contrário, da raridade das esposas ob e-
França e em Flandres - especia lm ente dunimc 11 ,i1 11111 llc•~. Assim, as mulh eres são pecado e revolta, especialmen-
metade do século XVI - sob o título de "a amorosa t·01111t pcrtencem ao grupo social inferior. Em Bra11/e des folies,
calças": mulheres travam uma batalha feroz pela po~,t ili IM t llVUra anônima por volta de 1560, quinze mulheres repre-
par de calções cuja braguilha acusa a forma do mc111l1111, 1, 1rndo ou t ros tantos defeitos dançam cm roda, cada u ma
Uma inscrição convida as combatentes a ter em 111:1 i111 111 111111 um chapéu com o relhas de asno na cabeça ou pendura-
"Trata com -,noderação, amorosa coo rte,/ Esse 111c111l11 11 1 1111 pescoço. N o centro, uma diretora do ba ilado, em pé
não é pé, cabeça, ombro ou mão/ P o r que batalhai~ 111111 , 111 11111 pedestal, toca trombeta. C inco das dançari n as usam
11
força,/ Mas o pai germinal do todo o gênero hum:1110 , ( ' ""
11o1~ distintas, mas as dez o utras pertencem manifestamente
do, a violência feminina ultrapassa esse estágio sexual. \ 1 , 1111vo miúdo, rural ou urbano, como se a perve rsidade femi-
de Margot mergulha suas raízes na sede de domi11:1,·1\11 ~ , • ,111mentasse à medida que se desce a escala social: indica-
sexo que suporta mal as leis do casamento e se revela '1ill\ 11 ' wr comparada aos inúmeros processos intentados contra
por n atureza. Daí a insistência com que as esta111p:1s, ~11111111 l11h1li11.cs feiticeiras de aldeia e ao papel desempenhado pelo
na segunda metade do século XVI, retomando :1 11,,111 1 1111110 sexo" nas sedições de outrora.

518 519
Além disso, importa sublinhar outra correlação. Frequl'II C:omo em uma edição ilustrada da La nefdesfous de Brant e em
temente a mulher velha e feia é apresentada como a encarn:1~•1l11 uma sequência de seis estampas murais de confecção parisiense
do vício e a aliada privilegiada de Satã. Na época da Renascc11~11 lmitulada O verdadeiro espelho da vida lm111rmr1... (segunda meta-
ela desperta verdadeiro medo. De modo que um tema litcr:fr111 do do século xvr).'86 A Castidade é aí figurada por uma mulher
e iconográfico que era apenas fugidio na Idade Média tornn hl ~l1lha e feia que segura um ramo de palmeira. Seu carro puxado
invasor no começo da Idade Moderna, sob as influências ccu1 por dois licornes esmaga Cupido. Mas essa não é a regra habi-
jugadas da Antiguidade mais bem conhecida, das obn1s 1h 11111I. A sra. S. Matthews- Grieco calculou - contagem provisó-
Boccaccio e de A celestina de Fernando de Rojas (1499), i\ rln - que, em trezentas alegorias, mal e mal se encontra uma
Renascença e o período barroco deixaram, especialmente soh 11 1111c confira à mulher velha um papel positivo. Em geral esta
pena de poetas pertencentes à casta aristocrática - Rons:11111 •lmboliza, segundo as necessidades, o inverno, a esterilidade, a
Du Bellay, Agrippa d'Aubigné, Sigogne, Saint-Amant etc. fome, a quaresma, a inveja (associação muito frequente), a alco-
um retrato ignóbil da mulher velha e feia, no mais das vc'/1 ~hcira e evidentemente a feiticeira .
representada como uma carcaça esquelética, "Respirante 111 (11111!1/ Tratando-se desse último tem a, às evocações de Manuel
Da qual se conhece a anatomia/ Através de um couro tra11s1111 l>tmtsch, Baldung Grien, Dürer e muitos outros artistas menos
rente" (Sigogne). Tem, além disso, os dentes "ulceraclo11 1 , 1111hecidos correspondem as imprecações de Ronsard, Du
negros", "o olhó remelento" e "o nariz ranhento" (Cati11 1h ll1111:iy e Agrippa d'Aubigné, elas próprias inspiradas por uma
Ronsard). De sua boca empalidecida, sai "XVJI um odor inf1•1 Jmcsia da Antiguidade doravante mais bem conhecida. Em uma
to/ Que faz espirrar os gatos" (Maynard). Saint-Amant foln 1h nilc de 1550, Ronsard se enfurece contra Denise, "velha feiti-
Perrette "de quem a boca cheira mais forte/ Do que alg1111111 oirn" de Vendômois, que os carrascos chicotearam seminua,
velha emplastro".'ª; Vale dizer que a mulher velha é a im:1g11111 11111s que, infelizmente, não executaram. Que possa morrer
da morte. Seus olhos são trevas; é um "esqueleto de pele e ON-11 1111(0! E que "seus ossos infamados,/ Privados de sepultura,/
[...]/ Retrato vivo da morte, retrato morto da vida [...]/ C:1r11 l~11 H jnrn dos corvos famintos alimento,! E dos cães esfaim ados".
sem cores, despojo da sepultura,/ Carcaça desenterrada, :11111 11 1~~n "Medeia" de aldeia sabe a receita dos filtros de amor, tira
da por um corvo". Assim a descreve Sigogne com todo o dcsc 11 oncs, frequen ta os cemitérios, aterroriza animais e pessoas. As
medimento barroco, que vê nesse "seco pedaço de madcír11 11 1 r,ll'çns más da natureza obedecem-na:
nessa "triste ordenação de ossos" um "fantasma [... que li1r
temer o temor, e dá medo ao medo".' 85 Só ao bafejar de teu hálito
Urna época que redescobria com deleite a beleza do jov1i111 Os cães assustados, pela planície,
corpo feminino ter sentido repulsa pelo espetáculo da dccrq1I Aguçam seus latidos;
tude não tem nada de surpreendente. O que realmente 111c1·1•1 1
atenção é o que se escondia por trás do medo da mulher Vl'lh11 Os rios para o 11/to recuam,
e feia. Em um tempo em que o neoplatonismo em moda l'll~I Os lobos seguindo teu rastro uivam
nava que beleza é igual a bondade, acreditou-se logica1t~•1H1 Tua sombm pelos bosques. 187
- e esquecendo as esgotantes servidões da maternidade - qw
decadência física significava malignidade. Sem dúvida, 11:1 h11 Mesmo pavor em Du Bellay, que, por sua vez, cobre uma
nografia algumas vezes a virtude é simbolizada por uma vdh11 1•lhn mulher de injúrias e de negras queixas. Trata-a de "feiti-

)20 521
ceira e caftina", "Górgona", "velha enfeitiçadora" e, retom:11uh 1 11. UM ENIGMA HISTÓRICO: A GRANDE
os temas mais comuns da literatura demonológica, precisa: REPRESSÃO DA FEIT IÇARIA
Por ti ris vi11hns cstiio gelndns, I. O DOSSIE
Po1· ti 11s planícies têm granizo,
Por ti 11s árvores gemem.
1. A ESCALADA DE UM MEDO
Por ti os lnvrndores lnme11tn111
Tendo o medo da mulher - metade subversiva <la humanida-
Seu trigo perdido, e po1· ti chornm
clt• - culminaclo no Ocidente no começo da Idade Modern:1, entre
Os pastores seus rebanhos IJUe mo1-rem. 168
11
~ teólogos
~ 1111hou
7~
e os juízes, nada de espantos9 se a ca às feiticeiras
então uma violência atordoante. E ne:ess~no ~v~car essa
Assim, uma poesia que se pretende humanista nos rcrn11
<luz às piores acusações dos inquisidores. As Górgonas c111111 1 dse aqui, mas no interior de u m quadro preciso, isto e, vmcu lan-
gem novamente e são agora identificadas como os sini~11 11 ilu-a às outras formas de medo já comentadas. ão se trata por-
1
agentes do in ferno. hlntO de reescrever uma hjscória dos processos de feitiçaria, ma~
Estava na lógica das coisas que uma época que tanto 1c1111111 ,ll• esclarecê-los recolocando-os ern um contexto global que, so
o Juízo Fin_al, o diabo e seus sequazes, redimensione o 11wd11 vk, permite situá-los cm seu justo lugar ao relacioná-los a uma
milenar do "segundo sexo". A despeito de uma reabilitaçiio q 111 rrligião e a uma cultura que se sentiram ameaçad~s- _ .
se esboça à margem das afirmações oficiais e de que traran:11111 Os imperadores cristãos do século rv, depois Just1mano no
em um outro volume, mais do que nunca uma civilizaçiio :l l ' t1 • 1 ( )ricnte, Childerico m, Carlos Magno e Carlos, o Calvo, no
a mulher. A c ultura da época, inquieta e ainda mal fin 11,11l11 ( kidente haviam ameaçado de punições severas aqueles que se
busca reforçar o controle desse ser demasiadamente próx i11 u I d, vmregassem às pdticas mágicas. Ao mesmo tempo, os conc_ílios
uma natureza ela qual Satã é "o príncipe e o deus". Par:1 a 11111111 lllllSuravam incansavelmente os "mágicos". 2 Contudo, a IgreJa d.i
ria <los homens da Renascença, a mulher é no mínimo sw,p t•II 1 ,dtn Idade Média no conjunto pleite.ira pela clemência e pela
e no mais das vezes perigosa. Forneceram-nos dela mcno\ 11111 l'l'udência em relação aos culpados. A estes, mais va~a deixar a
retrato real do que uma imagem mítica. A ideia ele que a ;11t1ll11 1 vida "a fim de que fizessem penitência" -carta de L~ao VII a. um
não é nem melhor nem pior cio que o homem parece ter \11111 dtcebispo alemão- ; e era preciso evitar ~erse?wr mulheres
estranha aos dirigentes da cultura escrita. Inocentes sob pretexto d e tempestades e epidemias - carta _d_e
( :rcgório rn ao rei da Dinamarca.i Além disso, u_m guia das ~1s1-
hu,:ões episcopais redigido por volta de 906 a pe~1do do ar~eb•~P.º
,k Treves - o célebre Cll11011 episcopi - denunciava como ilusona
, "velha crença nas cavalgadas noturnas na~ quais certa_s 1_nulher~s
•IL'rcditavam participar por ordem de Dma. Dar credito a tais

miragens era seguramente se deixar enganar por Satã .. Io cnt ~n-


to, já que se tratava de ilusão, não era o caso de pm~ • r.< Assim,
,linnte das massas que permaneciam amplamente pagas e de uma
521
522
lei civi.l ~eoricamente draconiana a respeito da magia, a auirn hl 1 Na matéria, Santo Tomás de Aquino inovou muito pouco.
de r~hg1osa_, .durante a alta Idade Média, dera provas du 1111 , ltrnpassou contudo em vários pontos a reserva do Cmwn episco-
relativo es~1nto críti~~ e, em todo caso, de pragmatismo. , 110 afirmar especialmente que os demônios podem impedir o
~ua atitude mod1f1cou-se a partir do final do século ~li ,,1 11 rnrnal ou ainda, sob a forma de incubi e de sucmbi, ter relações
o efei~o de duas causas interligadas: de um lado, a afirm:t\'IIII ,1, •1111is com os humanos.º Mas o doutor angélico insistiu antes na
heresia com os valdenses e os albigenses; do outro, uma VIIIII 1 1llvi11hação, ocupando-se apenas episodicamente dos malefícios.
de crescente ?e cristianização que os pregadores oriundm d1 111 compensação, capital foi a intervenção de João XXII, que fora
?rde~s mend1c~ntes exprimiram e atualizaram. A esc:il:id1t ti, rt1ucdida por retumbantes processos que provavam, todos, 111na
m~metude cle ncal aparece nos debates do IV Concílio dt• 1 11 ntlada da obsessão satânica. De 1307 a 1314, desenrolou-se o
trao, que tornou obrigatórias a confissão e a comunhão :llllllll 11~ ' le mplários, que confessaram - sob tortura - ter renegado
reforçou.ª _:,egregação d.os jude~s e obrigou os bispos, sob Pl'l1 ( l'isto e cuspido na cruz. No mesmo momento um bispo de
de de~os1çao, a perseguir e punir os heréticos de suas dion"H'' 11oycs era acusado de ter matado por magia a rainha da França
Depois, enqua~t? os cátaros eram vencidos no sul da Fr:111~ 11 1111venenado 11 mãe desta. Ele foi colocado fora de suspeita, mas
em 1231 Gregono IX nomeava o primeiro inquisidor o fi cinl 11:1 111(.{Uerrand de Marigny, antigo guarda do tesouro de Filipe, o
Alema.nha, Conrad de Marburgo, um fanático de assomlH11~,1 Ilido, foi enforcado em Montfaucon, em 1315, por ter tentado
austeridade que, durante um ano e meio, aterrorizou El'fui 1 11h1ur a morte do rei com a ajuda de mágicos e de bonecos de cera.
Marburgo_ e o vale d? Reno, até seu assassinato em julho di I• 11fim, em 1317, a condessa d'Artois, Mahant, foi acusada por sua
1233. Entao as fo?uell'as fora'.11 interrompidas. Mas, a pcdlih, w,, de ter mandado fabricar filtros e venenos por uma feiticeira
dele, o papa publicara sucessivamente duas bulas (em 12 11 1
til• 1Iesdin. Fora contudo inocentada.'° Foi nessa atmosfera turva
1233) que enumeravam todos os crimes cometidos pela st•h,i
t• porque ouvia falar de práticas mágicas na corte de Avignon que
~ont~a. a qual lutava Conrad. Tratava-se - acreditnv:1 111 11
lrnlo XXII, após consulta de bispos, superiores de ordens e teólo-
mqms1.dor e s_~u pontífice - de uma sociedade secreta em q 111
l(OS, redigiu a bula Super illius specula (1326)." Sendo a feitiçaria
os n~v1ços be1iavain o traseiro de um sapo e O de um gato pn ·io,
cloravante assimilada a uma heresia, os inquisidores recebiam
rendiam homenagem a um homem pálido, magro e frio cortHI
gelo. Em suas assembleias diabólicas, adorava-se Lúçj fcr, 11 ~ hnbil.itação para persegui-la. Pois os mágicos, adorando o diabo e
p~ssoas entre~avam-se aos piores desregramentos sexuais e, 1111 11ssinando um pacto com ele, ou mantendo demônios a seu servi-
Pascoa, _recebia-se o corpo do Salvador para cuspi-lo em scg,il ~º em espelhos, anéis ou frascos, voltavam as costas à verdadeira
da nas imundídes. 7 Eis aí desenhada a tipologia daquilo qt1<' lu, Mereciam portanto a sorte dos heréticos. Os cristãos tinham
l?gº. se chamarã de "sabá", e claramente situada, diante do cri•i oito dias para renunciar a Satã, abandonar as práticas mágicas e
tiamsmo, uma antirreligião ameaçadora. No entanto os sut: .. 1111cimar os livros que delas tratam. Desse modo estavam dora-
' · IX h esitaram antes de dar novo 'impulso~ ' ~
sores , d e G. regono vnnte formuladas temíveis equações: malefícios= feitiçaria diabó-
caç~ as seitas de1:1~níacas. Em 1275, Alexandre rv reje itou 0 ,4 lico = heresia. Encontrava-se fechado o triângulo no interior do
ped11~s _ de dom1111c~~os que lhe solicitavam um pode r'di• qual logo iriam acender-se inúmeras fogueiras.
mqms1çao ~ontra a fe1t1çar ia, só o concedendo se esta se encon Na sequência do século XIV, a intervenção da Inquisição
tr~sse marnfesta~11en.te ligada à heresia. 8 Combate de retag u:i ,· ,•ontra a feitiçaria torna-se mais precisa em termos práticos e
da. - a apreensao diante do poder do demônio aumentava. teóricos. Em processos intentados contra feiticeiras de Toulo use

524 525
t 1420 contra 34 entre 1421 e 1486 (data da publicação de O
l , H b.dos anos 1330- 40' aparece pe1a pnmeira
no. decorrer . . vez a pal.1
r,111rtelo dns feiticeiros); e 24 intentados diante dos tribunais leigos
vi a sn~n. a ituados a combater o dualismo cátar o, os inquisiclu
ill' 1320 a 1420 contra 120 entre 1420 e 1486.'~ Em 1387, 67 fci-
r~-~º La~guedoc colocam d iante de si, graças às confissth• &kciros e feiticeiras são condenados à fogueira em Carcassone
o t1 as so tortura, uma anti-Igreja, noturna, que adora S1111
11 por magia, ou por crimes, relacio nados às diversas heresias dos
encarna~o, e_m um bode, renega Cristo, profana a hóstia e :i 1111 v11lclcnses, beguinos e albigenses". Em 1410, assinalam-se pro-
os cem1tenos
dniões d. b, . e se . entr . eg a a rb .• , .
J e1 tmagens execraveis. As n•11 tl'SSOS em Veneza e novamente em Carcassone; em 1412, em
ia ohcas identificadas no século XIII por Conrad d,
limlouse e ainda em Carcassone. Túcleos de feitiçaria são
iv1arburgo levam agora esse nome odioso· soba"'',! AI . dlltectados pelas autoridades na diocese de Sion em 1428, no
mais tarde - em 1376 N. 1 ·. . guns :11111
. . .- ico au Eymench, que fora dur:11111 l>clfinado por volta de 1440 e mais geralm ente nos Alpes fran-
doze anos1 como mqms1dor-geral em Araga-o • , reg1stra
. por est-r1111 (l'Ses e suíços. O s culpados são frequentemente qualificados de
o r~s~ tado -.~e sm~ exp~riê1!~ia e a codifica para uso de seus rnh "hereges" ou "valdenses", e ao mesmo tempo acusados de ir pe-
rp:s_- e_~ Dnect~r11n11 mqms1tonm,, manual a ser comparado 1111 lo ar ao encontro do diabo. No Jura, constata-se também um
o1 tnlw11111
d fide, do feroz antissemita' Alfonso de Spma. . E yrnc1·11·
. 11 1
11111nento do número dos processos após 1430.' Depois, em 1453
~.~nce e qu_c _ler as linhas da mão e tirar a sorte não constill11·111 l' 1459, intervêm na França duas ações jurídicas sensacionais. A
dgestos ~ .heret1cos. . Em compensação ' , h a, h e1..es1a . d esde que m primeira, em Evreux, é dirigida contra um doutor em teologia,
emo mos esteJam de algum modo implicados. Se se lhes pn:,1;1 ( :uillaume Adeline, acusado ao mesmo tempo de pregar contra
homenagem
· :- d- no sabá. ou em outra parte - ha', culto de ,r, , /11111 11 realidade do sabá e de ter concluído um pacto com Sat ã.
se ~,10 ,to1_m1 os como mte rcessores junto de Deus, há culto th ( :ondenado à prisão perpétua, ele morre quatro anos mais tarde
duhn. E ~mda ser h_crético invocar os poderes do inferno (mc~1rn1 l'lll sua prisão. D epois, em 1459, começa o processo dos "valden-
sem
d lm:nn ·nem dul,n) com a ai·uda de figuras ' 1·na'g1
' ·cas, o li co1Ol':111 ~l's" de Arras, tendo dois suspeitos declarado, sob tortura, ter
\o uma criança em um círculo , ou le11do rormu ,::, 1as em um 1·1vro 11 l•ncootrado personalidades da cidade no sabá. A investigação é
l ~~ra_ tudo está acertado para a g rande caça aos feiticeiros e ,1'1 l'()!lduzida pelo inquisidor da cidade e sobretudo por dois domi-
fe1t1ce1r~s, d~ravante con fundidos com os valdenses e os dt:tro~ nicanos convencidos de que um cristão em três é feiticeiro. Os
as_ autonz:çoes foram dadas, o procedimento foi regulado ' " 12 acusados, dos quais dezoito serão queimados, depois de tor-
crrmes. . estao e . .catª.logad os. AI, em d"isso, a confusão crescentc.c111, ' , 111ra confessam terem participado do sabá e declaram verídica a6
1.1e1 es1
d·~ a e 1e1. t1çana faz com . q ue I d
os supostos cu pa os possam , 1,1 descrição que dele fazem os juízes segundo seus testemunhos.'
m i ere~tem:nte perseguidos, segundo os tempos e os lu :1n·~ Nlas no mom ento de morrer os condenados se retratam. Em
pelos tnb~ina1s d~ l~reja ou pelos tribunais leigos. g ' 111nho de 1491, todos os acusados são reabilitados. Remorsos
No fmal do seculo xrv, depois ao longo do século :-:, 111rdios, que logo deixarão de causar embaraço, pois o medo dos
aumentam os pr_ocessos de feitiçaria e os tratados que a con;k ' lciticeiros cresce entre os juízes eclesiásticos e leigos. No final
na:1~.' c01~1 uma _mteração de uns sobre os outros. Pois as olir.1~ do século xv, a alta Alemanha de um lado e a diocese de Côme
ilo outro são o palco de uma caçada ativa aos sequazes de Satã.
r
teoncas d1mpulswnam as pe rsegmçoes,
· A •
•- .
mas mversamentc s:1i,
Ao mesmo tempo, multiplicam-se os escritos incendiários
aEJmenta as ·f pela expenencia
- . dos J·uízes · Contab1 ' l·1,.,ara
., m-sc 1111
uro_p~ ~ c1 ras na_o exaustivas, certamente - doze proccs~o•, que incitam à repressão. Enumeraram-se treze tratados sobre
11 feitiçaria entre 1320 e 1420 contra 28 entre o Fomúcnrius
de fe1t1çana conduzidos pelos tribunais de Inquisição entre 1320
527
526
(1435-7) de Jean Nider, prior dos dominicanos de Ba~ih1h1 ' culo XVI e a primeira metade do século XVII
11111 nte tod o o se • 1·
mai-telo das feiticeiras (1486).17 O Fornúcnrius ("O for111 IKIIIII - d ceiticeiros e feiticeiras mult1p tcaram- se
- 11~ e execuçoes e 1 d .
1
• •

expõe as perseguições conduzidas na Suíça pelo inquisidrn 111 lh111Jntes cantos da Euro~a ocidentats~~~1~;JO ~~1gf;o~a~
de Berne e as conclusões que delas se pode tirar: foili1•111t, l icrsecutória seu paroxismo entre . . io
feiticeiras lançam malefícios, provocam as tempestad1•~, ,1 11, ,1 • d feiti aria se distribuíram cronologicamente assnn:
111 ~sos e ç d . e unda metade do
troem as plantações, adoram Lúcifer e vão pelo ar aos ~1!1111 111 XV, oito; primeira metade o XVI, tre~e, s g ' , d d
mulheres mágicas se especializam na fabricação dos fi h111 . . t de do ).._'V][ dezesseis; segunda meta e o
11• 1,nmeira me a , , -
amor, nos raptos de crianças e na antropofagia. Todos t• 111,I \ . Para o conjunto dos prebostaclos a1emaes e
1 1rcs; >..'VIll, um. d 224 processos de
fazem parte de uma seita demoníaca em que se renega 1)1,11 1 I\ ilc Luxemburgo, conservam-se traços e 1632 16501'
Formicarius é a primeira obra demonológica a insistir no 11111 606 1631 de apenas sete entre e
~ilt'ill entre 1 ~, fi e V\TMontern e R. Muchembled,1i
das mulheres na feitiçaria: 18 um tema que, cinquenta nnoN111 1 11 ~e tentar como J3 izeram . - ,.
tarde, O martelo das feiticeiras desenvolveria até a obsessiio. ' .f . prováveis concernentes as v1tl-
~1 upi,r algumas c1 ras certas ot1 , fi .
O martelo das feiticeiras fora precedido pela célebre l111h1 ,1 • desses processos em vários setores da ~uro1:_a que ora;
Inocêncio Vlll, Summis desiderrmtes affectibus (1484), pela q1111I 111t, 111 de estudos rigorosos. Tal quadro não e senao a soma e
papa da Renascença, de má vida e muito pouco preocupado 11111, lo~ >arciais. Mas ele precisa a cronologia, for~ece _ordens de
1' po-e em evidência os pontos altos da epidemia:
a religião, incitava os prelados alemães a reforçar a reprcss1l11 ti , lll1u-1.a e
feitiçaria. Esse texto é na realidade o eco dos fantasmas dos i11q11I Datas Total das exemçõcs
sidores germânicos que, na época, viam por toda parte malcf/1•111 ronbecidas
renegações do batismo, demônios íncubos e súcubos. Os a1111111
de O martelo das feiticeiras colocaram a bula pontifical no caht'\1l 11 ,loc~te da Alemanha (arual Bade- 1560-1670 3229
\\'uncmberg)"
lho de sua obra. Esta foi frequentemente isolada, sem raziio, 1111
l111(l11~ rra (Ho111e Circuit: Sussex, Sur~ey, 1560-1700 109
literatura demonológica, como apenas um dos elos de uma c:alt•li, h 11 ford, Kent, Essex): Assize Court.<-
infernal. Ela tem silêncios e meias lacunas, não diz nada do s11l11I 1590-1680 4400 (?)
11 r,cin16
e não fornece senão poucos detalhes sobre o pacto com S:11 :l, 11 1537-1662 132
1,~ncbr:i" 90
marca diabólica e as atividades coletivas das feiticeiras. Mas con !537-1630
1 ,1111ilo de Vaud'"
tribuiu mais que nenhuma outra antes dela para ideí1ti ficar 11 1533-1720 387
1 .mtõcs de Zurique, Solcure e Lucerna'"
1570-1670 > 500
magia popular como forma de heresia, acrescentando assim 11111 1 .1111ilo de Ncuchâtel e bispa do de Bas1·1.
eia "
crime civil a um crime religioso e incitando os tribunais leigo~ ~ 1599-1668 62
1'11rlnmento de Franche-Comté"
repressão. Por outro lado, anteriormente nunca se dissera co111 1576-1606 > 2000
l.1mma" > 355
tanta clareza que a seita diabólica é essencialmente constituída d1· 1606-50
l ,,;cmburgo"
mulheres. E o caráter sistemático do livro, sua metodologia dn 1500 1645 149
Condado de Namur'·'
investigação e do processo fizeram dele um instrumento de tr:t 1371-1783 161
i\tual departamento do Norte"
balho de primeira ordem para seus usuários. Tornou-se pai exce 1562-1736 144
!lhos Anglo Normandas" v;:lrias <.:cntcn:,~
lência a obra de referência dos juízes na matéria; daí seu sucesso: l.nbourd (país basco francês)"
1609
catorze edições entre 1487 e 1520, mais do que as teve qu.1lquer 1540-1685 o
Nova Castela"
outra obra anterior ou posterior de demonologia.19
5/ V
528
ll(Ulllmente apontadas por moças que sofreram crises _de
Por mais limitadas que sejam, essas cifras têlll II v,11111
ulsõcs como as responsáveis por sua possessão pelo Mahg-
por um lado, de corrigir avaliações fantásticas ou 1•~1,
,\lgllmas raras execuções de feiticeiros ou feiticeiras ainda
(Michelet falara de quinhentos feiticeiros queim;idrni t 11,
meses em Genebra, em 1513 ,39 e recentemente 11 , 11
r1111, lugar no século xvm no Ocid_ente, mas "?s processos
K,tl6m foram os últimos a propósito dos quais to da urna
-Roper afirmou que 150 fogueiras ali tinham sido 1111 ~,1
11111idade acreditou que sua existência estivesse amcaç~1da
sessenta anos que se seguiram à chegada de Calvi110)1'" 1 1 47
outro, de destacar a violência da perseguição entre t 5(i(), 11 11 ~ male fícios da feitiçaria".
,\ntcs desse tardio retorno ao bom senso, verdadeiros massa-
E sta, durante a primeira metade do século XVl, fic:i rn 11 h11,
hnviam se produzido em certos lugares que parecerai:1 às
mente limitada, atingindo sobretudo as regiões dos 1\lp1•• 1 ,1
llll'lclndes particularmente infectados pelo veneno dcmonmco.
Pireneus. Após 1550 e durante cerca de um século, cli1 lnl I'
1 pequena cidade alemã de \Viesensteig, 63 mulheres for~~11
ticularmente intensa na Suíça, no sul da Alemanha (rn1111i1 ,
lllhlllldas só no ano de 1562. Em Obermarchtal, modesta regiao
protestante), em Franche-Comté, na Lorena, em L11xc111l1111 1
e nos Países Baixos - em suma, ao longo de uma g ra1Hh· d111 1 1,1I de setecentos habitantes, 43 mulheres e onze homens pere-
. . 701 d 1 - 48 N 72
sudeste-noroeste. Na Inglaterra, e mais particnlannt·1111 11, ltllll na fogueira em 1586-8, ou seJa, 10 a popu açao. . as -
Essex, a caça aos feiticeiros e feiticeiras foi sobretudo vlnh 111 ltll'lns do arcebispado de Treves, 386 feiticeiras foram queimadas
sob o reinado de Elizabeth, a despeito de um pânico :is~llh~III llll'C J.587 e 1593.49 No principado eclesü1stico de Wurtzburgo,
50
mais tardio, mas bastante breve, em 1645.41 A reprcss1l11 li , vc novecentas execuções nos oito anos entre 1623 e 1631. Em
1111
igualmente muito dura na Escócia a partir do momento l'III 11111 lwcnau, em \Vurtemberg, uma localidade de 650 l_rnbitantes,
a Reforma ali triunfou (1560). No sul da França, no Lah1 • 111 11 111quenta pessoas em menos de nove meses foram quennadas em
as investigações impladveis do juiz De Lancre no final do 111 oito fogueiras coletivas.;, Quanto à missão confiada a De Lancre
nado de Henrique IV resultaram em viirias centenas de tii!{\111 1609 no país basco, não durou senão alguns meses e resu_ltou
111
ras. Algumas foram acesas também na mesma époc:1 1Hl pul no entanto em várias centenas de execuções.51 A Inglaterra foi em
basco espanhol:' No outro extremo da Europa, a onda rcp,•11• M,,rnl prudente na caça aos feiticeiros e às f~iticei:as. Co?tudo,_em
siva alcançou, no final do século XVI, a Dinamarca e ;\ '1'1·,111 IMS ano febril em Essex, os Ass1zes [tnbuna1s] locais fizeram
'
,uusnções . e executaram dezenove de1es.ll
a 36 suspeitos
silvânia.43 Tomou de assalto a Suécia nos anos 1660.44 Ati11µl11 11
Polônia quando ela perdia o fôlego no Ocidente, isto é, du r:11111
a segunda i11etade do século xv11 e no XVIII, ao mesmo tc11i1111
que invasões e pestes assolavam o país e que ele resvalav:1 1111 2. UMA LEGISLAÇÃO DE INQUIETUDE
antissemitismo. Na França e na Alemanha, mais tarde t'IH Esses processos e essas condenações à morte evidentem ente
Massachusetts, a obsessão da feitiçaria foi acompanhada 011 ~1• ao teriam sido possíveis sem a incitação repetida das autorida~
prolongou por fenômenos histéricos qualificados de "possl'~ 11
dos religiosas e civis. A bula Summis disede;mzt~s de 144~, q11c í~,
sões diabólicas" e que, após escândalos sensacionais, desemhn
1hamada de "o canto de guerra do inferno , foi com efeito scgu1-
caram na execução em Aix em 1611, em Loudun em lj34, c111 1
cln de vários textos pontificais que iam no mesmo sentido. F.111
Louviers em 1647 de quatro padres reconhecidos culpados d1•
1500, Alexandre VI escreve ao prior de Klosterneubu rg?. e_ w
ter enfeitiçado religiosas que eram suas penitentes.4 ; Em Sal~111 1
Inquisidor lnstitoris para informar-se dos progressos da fc 111ç:1
terra puritana, as infelizes vítimas enforcadas em 1692 haviam
f //
530
ria na Boêmia e na Morávia.s~Em 1513,Júlio 11 ordena 111111, 1 q1111ndo Carlos v instituiu em 1522 uma Inquisição de
sidor de Cremona que puna aqueles que adoram S:11ii t· 111111 lo nos Países Baixos, escolheu um leigo, Francisco van der
a hóstia com um fim maléfico. Em 1521, Leão X pro1t•, 11 1, membro do Conselho de Brabante, para dirigir a busca
ameaça de excomunhão e de interdito, junto ao ~t·1H11I, wl1•s que estariam infectados pelo veneno da heresia".55
Veneza, que se opõe à ação dos inquisidores de Brc~1 111 1 1hmtores em teologia lhe eram adjuntos, mas apenas a
Bérgamo contra os feiticeiros. Assim agem os p11pas d:1 1111111 1 de peritos. Mais tarde, o imperador precisou destituir
te Renascença italiana. Por sua vez, Adriano VI o nh•111 th•r l lulst e compor com Roma, mas o papa jamais pôde
inquisidores de Cremona e de Côme que persigam :1 11•11h 1 lhe o inquisidor de sua escolha. O absolutismo que se
com severidade. Seu sucessor C lemente VJI transmile in~I 1111 l\'11 e a repressão da feitiçaria, reagindo um sobre o outro,
análogas ao governador de Bolonha e ao capítulo de Sirn1, ( ,,, 111 como resultado comum a transformação do procedi-
não ficar impressionado com a repetição dessas injunçm·, 1 , lo l'riminal. A Idade Média permitia a livre defesa do acu-
a obsessão satânica que elas subentendem? Quanto :1m t• 1 1 pouco havia empregado a tortura nos processos civis. Na
tristemente célebres de João XX II e de Inocêncio v111, MIIJ 11 11111 Renascença, a justiça de Estado adotou o procedimen-
nemente retomados e confirmados por bulas de 1585 e 111' 1 h11111isitorial. Na França o decreto de Villers-Cotterêts
essas instruções gerais de Roma fazem eco, no plano loc:11, ,h IJ) l' nos Países Baixos os decretos criminais de Filipe 11
sões conciliares. E . Brouette calculou que, nas dioceses til•( , .1
li) para não citar senão dois exemplos comprobatórios
nia, Treves, Cambrai, iVIalines, Tournai, Anvers, N:1111u1 , ,\h 1
111l11receram o direito penal, generalizaram o emprego da
e Liege, dezessete concílios realizados entre 1536 e 16-1-3 h1111 1t
111,1, entravaram a defesa do suspeito, reforçaram o caráter
exigido a repressão à feitiça ria. Do lado protestante, as c,111111
11,lrio do procedimento. Uma instrução escrita e secreta
nhõessinodais atingiam igualmente os feiticefros. Nas P rovl1111
llluiu o debate oral e público: o que deixava sem defesa
Unidas, quinze sínodos escalonados de t580 a 1620 clil'if1l l 11,
condenação contra eles e os excomungaram. Do mesmo 111111
hhluos muitas vezes iletrados colocados diante de juízes
11lmnínio da escrita e com conhecimento exclusivo do con-
fizeram na França os sínodos de Montauban (1594), Monq11111
111 do dossiê. A "intimidação" tornou-se a ideia mestra do
(1598) e La Rochelle (1607).
11 procedimento. Enfim, se na Idade Média um processo era
Mas o poder civil mais do que apoiou a Igreja na,lut:1 r111111
a seita satânica. A obsessão demoníaca, sob todas as suas 1'1 H 11111 Wlll'III considerado um assunto entre pessoas privadas, no
permitiu ao ,absolutismo reforçar-se. Inversamente, a crn"11II 111 \O da Idade Moderna ele se transformou em um conflito
dação do Estado na época da Renascença proporciono u 11111 11 ,, sociedade e o indivíduo; daí a severidade, ou até mesmo
dimensão nova à caça aos feiticeiros e às feiticeiras. O s gov1•11111 1t1111iclade, de sentenças que se pretendiam exemplares.56
foram marcados por uma tendência crescente de anexar 0 11 111
menos controlar os processos religiosos e de punir as in fr:1\fll
contra a religião. Mais do que nunca, a Igreja se conÍl1 diu 11111 Um breve estudo da legislação le iga no império, nos Países
o Estado, ali,ís em benefício deste. Mas a urgência do perigo li hn~ e na Inglaterra, permite verificar a dureza crescente do
com que ela não pudesse ou não quisesse opor-se a essa :1111'\11 1ulo cm relação à feitiçaria, no século XVI e no começo do
ção. A criação da Inquisição espanhola em 1478 é só u111;1 tl11 11111 XVII. No império, a Nemesis cnroli11a, "monumento de
muitas ilustrações desse fenômeno de fagocitose. Detalhe n·\1 ll\11criminal", pubücada por Carlos V em 1532, consagra três

532 533
passagens à feitiçaria. O capítulo XLIV trata cios l'lll 11111 ~ efetuadas "mesmo sem causas legítimas [...] para grande
e daqueles que utilizam livros, amuletos, fórm11l n11 1 11 r1•w da justiça e de nossas ditas ordenações". El:i regulamenta
objetos suspeitos ou têm atitudes desusadas: podei· 10 11 11 minuciosamente a tortura. Mas, em sentido cont rário, seu
-los e submetê-los a tortura. O capítulo LJJ refcrl' 111 ,11 11 I.X ordena aos magistrados perseguir com vigilâncin feiti-
rogatórios: será preciso procurar saber quando e t'lll 1111 1 111 e adivinhos e puni-los com as penas mais severas.'•! Nesse
ceiros procedem, se se servem de pó envenenado 011 1h dn Europa, o texto legislativo essencial é no entanto o de 20
mágicos, se frequentam o sab,-í e se concluíram u1111n11 1,, 1llm de 1592, que abandona toda prudência na repressão.
diabo. O capítulo CIX, lembrando que o direito rrn11111111 1 Introdução reconstitui a atmosfera dramática nn qua l
o Código de Justiça) destinava ao fogo os m,-ígicos, rn Ili 11 , 1 Ili os conselheiros de Filipe JT:
-los a partir do momento em que prejudiquem o prm l1111
"Se alguém", lê-se na J\Temesis, "causou :11µ11 111 il 1 1,,1lt ntre outros grandes pecados, desgraças e abominações
outrem por sortilégio ou malefício, será punido crn11 111111 11111• esse miserável tempo nos traz a cada dia para ruína e
mesmo condenado à fogueira. Se alguém prat icou u li 111 11111fosão do mundo, as seitas dos diversos malefícios, feiti-
sem prejudicar a outrem, não será preciso pu 11 i- lo _, 11 1 \ 1ll•ins, imposturas, ilusões, prestígios e impiedades são cer-
medida em que pecou, e essa punição será deixada ~ 11p11 , 1 1t1111cnte os verdadeiros instrumentos do diabo que, de pois
do juiz". (art. c1xY8 1h1~ heresias, apostasias e ateísmos, avançam diariamente
Assim como Inocêncio vm fizera em 1484 c111 11111 1
• 1111 fro nteira para diante.
eclesiástico, o imperador por sua vez reconhcn·, 1111
documento legislativo leigo, a realidade das pnític:1s lll1l111,
Sn,<11e-se, como na bula de 1484 e na Nemesis carolina, mas
delas fornece uma enumeração que não pode seniio d111 \,
111111is detalhes do que nesta última, uma lista das "incontá-
sua existência e aumentar na opinião pública a obsi::.Nílll I'
lu1posturas de sortilégios, encantamentos, imprecações,
maquinações diabólicas. Contudo, na Alemanha , o 111
repressivo reforça-se ainda mais na segunda metade d11 , , , , lít•los e outros semelhantes malefícios e abominações"
1111Idos pelos mágicos. O leque vai da astrologia à adivinha-
XVI. As Constitutiones saxonicae de 1572 decretam que 10!111 h 1
ceira deverá ser queimada só pelo fato de ter c.:ondu td11 ,, Ili lns linhas da mão, dos filtros de amor ao atamento de
pacto c.:om o diabo, "ainda que não tenha feito nr:11 1•0111 ll1111111 das "invenções supersticiosas e condenáveis" para
arte".50 A mesma medida é tomada dez anos mais t:11 d1 I' 111111hnr o ar, enfeitiçar e encantar as pessoas" às curas
eleitor palatino e logo por diversos príncipes e cid111lt l11,, 1111turais" e pretensamente "miraculosas" dos homens e
Alema nha.que remanejam sua legislação nesse sentido.'·'' ~,ulo. Todas essas pniticas são detestáveis e diabólicas, :mes-
Nos Países Baixos, teoricamente terra de império, ( :111 li, ljtltllldo, para provocar essas curas, utilizam-se a ,ígua ben-
não ousara aplicar a Nemesis carolina. Entretanto, no co11d11d11 d I Hl(iC da cruz ou textos das Santas Escrituras. Essas pre-
Namur, por exemplo, os trib~ais leigos, entre 1505 e 1570, 1111 t 1 ~ nilo são dadas, contudo, senão para a informação dos

ram à fogueira 58 pessoas acusadas de feitiçaria."' A4,1so•1 1 t ti 1 ~. Autoridades e pregadores evitarão, em público, en trar

frequentemente cometidos pelas jurisdições rurais, e cont l'll 1~ • 1li111llhes desses horrores a fim de não excitar a curiosidndc
legislação real se esforçou em lutar por meio da ordenaç~o 1 111111 1111vo ou mesmo informar-lhe como essas " impiedades·" siio
na! de 1570.61 Essa deplora especialmente certas prisôcs <' 1 11 1ldns. E m compensação, o rei espera que

534 5H
[...J aqueles de justiça tanto eclesiástic::1 qu:111111 , 111 ndivinhos, enfeitiçadores, valdenses etc." e "se sabem
rão seus deveres de investigar e proceder rc.~ru 1 11 1111~, que procedam rigorosamente contra eles".
c_ontra todos aqueles que usarem pratica111cn11• 1111 , 1111 :ilgumas atenuações de detalhes (por ~~en~plo, a
tirem em tais~ malefícios para puni-los e111 rrn ,, 1 11 11~1to de práticas tais como o banho das femceiras), o
segundo os canones e bulas apostólicos e cm 1·w 1, 111 de 1592 foi repetido por Filipe II em 1595 e em 1606
pelas leis civis e ordenações [...J, [e) recomcnd:111 111 1 111quiduques.65 . •
os nossos conselheiros, oficiais e justiceiros e :11111 , ,1s ilhas Britânicas, assim como no connnente, a legisla-
salos fazer semelhantes informações e castigo, 1•,, 1111 1 ' e111tra a feitiçaria foi reforçada, ou até instituída, na
segundo as leis divinas e humanas. 11cl11 metade do século XVI e no começo do XVI I. "A revo-
o t'nlvinista", observa H. R. Trevor-Roper, "levou para a
A ordenação será dirigida às autoridades co111 1w1, 111, l'ill em 1563 a primeira lei contra a feitiçaria, inaugurando
"toda_s as cidades [e] aldeias" dos Países Baixos que l l'l ilt i ,(lculo de terror."«. O primeiro estatuto inglês condenan-
11 dnta de 1542, e foi agravado em 1563 por um ''Act contra
~...) olho e bom olhar para tudo diligentemente inv,•~11
1 11 njurações, encantamentos e feitiça~ia~"- ,?67
gover~~ esta-
informar desses abusos e crimes a fim de descobrir uq111 1 ' um efeito preocupado com a mult1plicaçao de at1v1dades
q~e por eles s~rão responsabilizados e culpados p:1111 1 1 , rllclns que tomavam a forma de falsas profecias, pre~isões
ga-los e espcc1alment~ i_nvestigar contra aqueles 0 11 111 1111 t rológicas e conjurações diversas. O Act decla.rava cnme a
que podem ser os m:us mformados de ser adivinho~ , 1111 1 ~m·nção dos espíritos malignos para qualquer fim que fosse,
clh
nçadores, feiticeiros, valdenses ou notados de sc 111 11 111 . ,110 sem intenção de provocar um malefício. Contudo,
11:atefícios e crimes; e se sabem de alguns, que pro1•,,il11111 , 11lonava as penas em função da gravidade dos casos. O crime
ngorosamente contra eles por todas as penas e cast iµm 1 1irn capital se os feitiços, encantamentos e malefícios hou-
veras e exemplares em conformidade com as ditas lei, dh 1 •~crn provocado morte humana. Se a vítima estava ilesa, ~u
nas e humanas sem a isso faltar, sob pena de ser co111 p:1l'III h1 tora ferida, ou se só um animal fora morto, o culpado sena
ao~ falto_sos! portanto, que cada um disso se guarde Sl ' q 1111 unido com um ano de prisão e com quatro exposições no
evitar a md1gnação de Deus e a nossa." r11lourinho. A reincidência, em compensação, a~arretava a
morte. Do mesmo modo, previa-se uma pena reduzida no caso
. Ressaltam desse documento várias evidências. O voc:1bu li1 ili,~ práticas mágicas que tendiam a procurar tesouros, ~ee~-
no da ordenação desliza constantemente do jurídico ao religlfl 1ontrar objetos perdidos ou provocar amores condenave1s,
s~ e ~ersegu~ a magia _antes de tudo como um pecado, COlllJ M u•ndo a reincidência sancionada com a prisão perpétua e o
ravc~a heresia e ao ate1smo. A ênfase recai menos sobre O d:11111 1 onfisco dos bens. Essa relativa clemência era, na época, um
ocasionado ao próximo - essa ainda era a dominante d::1 1, 11 111 flicuo em relação às exigências dos teólogos da I nglaterra eli-
S11~11_1,lis desi~l~mltes - do que sobre o fato de entregar-st• 11 ,,,bctana, que desejavam a morte de todos os mágicos, ~ne~mo
prat1c~s pro.1b1das, porque elas subentendem a intervilhçâo ih• dos dedicados à magia branca. O estatuto de 1604, mais ngo-
"espíntos malignos". Os juízes são instados à severidade e 11 roso, adotou as normas continentes. A. Macfarlane ressaltou
gov~:no não tolera~á seu esm~recimento. A delação é encor:1j:1 no quadro logo adiante os agravamentos trazidos pelo Act de
da, Jª que as autondades se mformarão dos "mais infamado, 1604 em relação ao de 1563:68
536 517
A despeito desse rigor aumentado, a tortura (salvo dm 11 ln (1588-94).n À mesma conclusão chega a sra. Dupon~-
o pânico de 1645 em Essex) parece ter sido pouco 111Ih lll1hat a respeito de Luxemburgo: ~li a luta contra a m~gia
na Inglaterra onde, por outro lado, os condenados l't 11111 11 praticamente após 1631; as calamidades que se abatem so-
forcados e não queimados. o ducado nos anos seguintes (especialmente com a entrad~ ela
111; 11 na Guerra dos Trinta Anos) parecem pôr um ponto f111al
rcpressão".14 R. Muchembled observa igualme~t': que no nor-
3. CRONOLOGIA, GEOGRAFIA E SOCIOLOGI A cln França os dois principais focos de persegmçao, e m 1590-
DA REPRESSÃO 110 e em 1610-20, situaram-se em um período de paz.1' O
udo dos processos de feitiçaria na alçada do par_lamento_ d_e
A cronologia, a geografia e a sociologia da caça aos fcit 11, lt ri~ também põe em destaque um período de severidade maxt-
e às feiticeiras foram precisadas por trabalhos recentes q1 w pi11, anos últimos anos do século XVI, quando se acalmam as g uer-
em destaque a complexidade do fenômeno. Existe um:1 rrn 111 • rcligiosas.76 D essas monografi_as_ esclarecedor.3s ~ond~rnmos
ção cronológica global entre o período das guerras rei igio~1t 1, l', se globalmente as guerras religmsas e a sequencia mais dra-
Europa (1560-1648) e aquele em que mágicos e 1m1gic:1s lu1 111 dticn da luta contra a feitiçaria coincidi~am, no plano _local
mais freneticamente perseguidos. Mas é preciso afirmar n1111 11 t líica-se frequentemente uma relação de mversa pro~o:c1ona-
R. Trevor-Roper que "essa recrudescência da epidemia dl• 11 Ili ducle entre operações militares e acusações aos .ma_g1cos. A
çaria por volta de 1560 [esteve) diretamente ligada ao rcto1·111111, 1111 radição entre os dois fatos é mais que uma aparencrn?
guerras religiosas"?69 Com efeito, esse historiador clccl:u 11 \
geografia o mostra: toda crise importante se encontra siui:uln 1111 p1·imeim ro11denaçíio segunda co11denaçiío
uma zona fronteiriça em que o combate religioso não é i1111•lt 1 1563 1604 1563 1604
mal [...]".70 Vários estudos locais desmentem parcialmc111~• ,, 1 l111 dn magia para procurar l ano de l ,modc pris:io
,~-11111·0s ou achar objetos prisão prisão perpénia morte
asserção. Situado em plena zona limítrofe entre as duas eottll
sões rivais, o cantão suíço de Neuchâtel foi no entanto prn1p111h1 •f'1,1rclidos. l ano de morte
11da magia result:1ndo em dano morte morte
pelas guerras religiosas. Mas conheceu entre 1610 e 1670 11111
l _,11ide ou aos bens de outrem. prisão
número significativo ele processos de feitiçaria." No bispado 1h morte morte morte
1/~n da magia res ultando na morte morte
Basileia, a parte protestante, contornada pelo vaivém dos sold11 ,1,, outrem.
dos, foi atingida entre 1600 e 1610 por grande vaga repn.:~•,1111 Mortos desenterrados (tendo em morte morte
Em compensação, o setor noroeste, católico, viu abrand:ir-NI' 11 1 l~in operações mágicas).
número dos ,processos nos anos 1620, no momento c111 qw \ Inda pedida aos espíritos mo rte morte morte morte
começou a ocupação militar, à qual se acrescentaram epidc111 h1 11111lignos.
lnwnção de: 1 ano de 1 ano de prisão morte
e fomes.n E . '\.\~ i\tlonter, a quem se devem esses dados, co11~1n1i1
prejudicar a saúde ou os bens prisão prisão perpénia
uma derrocada semelhante da repressão em Franche-Co11111• 1
111• outrem pela magia.
em Baden-vViirttemberg a partir do momento em qu~sscs dnl• 1 ano de l ano de prisão morte
causar a morte de outrem pela
territórios pendem para a guerra. E.1n Genebra, o mesmo his111 11111gia. prisão prisão perpénw
riador observa que os caçadores de feiticeiros e feiticeiras fo ~.1•111 induzir uma pessoa por magia a 1 ano de 1 ano de pris:io 1110 rtC

uma pausa durante o período de conflito agudo com a ca16li1 11 11111 amor desonesto. prisão prisão perpénia

538 519
A geografia das foguei ras mostra que a Itália ce111 1'111 1 Jrcja, mas é pouco significativo em relação às acusações de
1 meridion al quase não as acendeu (embora ali também se 111 nlcfícios que se ouviam comurnente, sobretudo nos campos.
truíssem processos de feitiçaria)77 e que a Inquisição se rcvt•l1111 Sobre a dominante rural da feitiçaria, os processos gcncbri-
1
clemente, inclusive no país basco,78 no momento mesmo c111 ljll• os são por sua vez esclarecedores ao não colocarem forçosa-
a loucura persecutória se desencadeava na França, nos 1'11f~1 ,, ll\nte em causa pessoas da própria cidade. E . \i\TiJliam Monter
Baixos, na Alemanha e na Escócia. É certo que a repressíln h,1 orcebeu, ao contrário, que as aldeias submetidas à autoridade
1 1

particularmente ativa em certas regiões de montanh:1 1 t'OIIII o G·enebra, que formavam menos de um sétimo da popubçiio
çando nos P ireneus, continuando em seguida nos Alpes l' ti, A república, estiveram na origem da metade dos processos.H i
1
1 sembocando mais tarde na Escócia. Mas como avaliar css11 \ 111 •~n
,[ estimativa sublinha bem a origerp sobretudo camponesa
1 relação? H. R. Trevor-Roper escreve de maneira catc!{('Hlt 1 n~ pessoas incriminadas de feitiçaria. E fácil adivinhar que elas
1

"As grandes caças às feiticeiras na Europa tiveram por cc1ll 1,, 1u·csentavam por toda parte um atraso cultural considerável cm
1
os Alpes e seus arredores, o J ura e os Vosges, assim con111 11 lnçiio às exigências e aos modelos de pensamento das elites
1
Pireneus e seus prolongamentos na França e na Esp:111 h11 rhnnas. E por vezes até, como por exemplo no Labourd, não
:I Essa nova afirmação (que aliás sugere o estabelecimento d1• 11111 hwam a mesma língua que seus juízes. Essas defasagens, <:om
elo entre feitiçaria e albigenses) demanda nuanças comp:11•11\11 ncza, mostram-se na época particularmente nefastas aos mon-
i 1
àquelas de que necessitava a correlação esquematicamc1111• 111 nheses (de Lambert Daneau a Pierre Bayle, a Savoia manteve,
tituída entre guerra religiosa e repressão do magismo. O 1111111 1 nível das pessoas inst ruídas, uma sólida reputação de país de
do ortodoxo não condenou à morte os feiticeiros. O rn , 1I, hlceiros). Mas parece também - e esta ideia não contradiz a
compreendia a totalidade dos Bálcãs, uma perfeita zo1111 1h ltlll'Íor - que a perseguição foi muito ativa nas zonas floresta is
montanha. Os "valdenses" de Arras no sécu lo xv e i11í111u,11, 1 111nis geralmente, naquelas que, em pequena ou em grande
processos de feitiçaria na França, na Inglaterra e nos P111 1 ,•nln, eram marginais em relação aos centros de decisão (é ain-
Baixos puseram em causa gente das plan ícies. Em compe11N1I\ li o caso do L abourd) e nas quais o Estado absolutista em via
- e aí está o ponto essencial a esse respeito - , é vcrd:ult• q11 11nrmação queria fazer-se mais bem obedecido.
as vítimas da repressão - à exceção dos "valdenses" de /\ 11 11 Outra const atação indiscutível: a luta contra a feitiçaria
de alguns outros - foram em geral camponeses. Assu11, 1•1111 llngi.u ao mesmo tempo países católicos e países protestantes.
1565 e 1640, a grande maioria das apelações ao parlamt:1111111 l1111ve entretanto maior severidade em uns do que em outros?
Paris por con1enações motivadas pela feitiçaria prnv1•111 11 , Monter desinchou as cifras de execuções tidas como aceitas
meio rural e. "mais da metade (57%), de pessoas lig111l11 1 ( :cnebra de Calvino e de seus sucessores imediatos. As auto-
terra". 80 Desse modo, não devemos deter-nos aqui na ki1 lt Ih hulcs locais não queimaram 150 pessoas83 nos sessenta anos
urbana da Espanha (A celestina de F. de Rojas) ou da Tt:11 111 , 'l"" Ir começam com a chegada de Calvino (1537), mas 132 entre
como diz Burckhardt, "exerce um ofício, [...] quer 1-11111h , 17 e 1662, estando incluídas nessa soma as condenações à
dinheiro" e é essencialmente "uma agente de prazer"."' /\~ 11 li lll'IC de "cevadores" e outros "fomentadores de peste" pro-
giosas possuídas - seus conventos ficavam na cidaffc 1111 nrindas em uma atmosfera de pânico por ocasião das epide-
foram assunto da crônica na França do século XVII, t:1111 ht1111 111~ de 1545, 1567-78, 1571 e 1615. 8~ Quanto ao sudoeste da
marginais em relação a nosso propósito. Seu compor1 111111 Ili v11111nha, de 1560 a 1670, E. Midelfort pôde estabelecer a
histérico esclarece, por certo, a demonologia dos ho11 w11, 11 ~uinte contagem a partir dos processos:85

540 5-11
Anos Regiões p,·otestnntes Rcgiõl'.,. m111//1,1
u ,J11sjeiticeirns e a Dei Rio. f:. J?e11io110111m:ieJc Jean Bod in
11,id:1 em latim por um calv1111sta holan?es. . , . ·-
Proressos E.wmçõer % exemções Proressos E.,Wll(Qfl
rocessos ,,, 11 plono da sociologia, é impossível hoJe ~dcnr_ a opmiao
l,•hclct e ver na feitiçaria uma rebelde impelida a uma
1560- 49 218 4,5 150 896 (1
-1600 ~lobal da Igreja e da sociedad~ t?ela miséria e _pelo
-ptiro".91 Muito apressadam_ente red1g1~a, a obra do h1~to-
1601- 114 402 3,5 167 1437 H,11
-70 l mmântico é a esse respeito desmentida pdas pesquisas
111•,. Em Essex, se parece certo que a maior parte ~as pe~-
1essesetor da Europa, a repressão foi inco ntc~I.I\ 1 111, "1,11s:idas de feitiçaria pertencia a uma camada social mais
mais severa nas regiões católicas. E, por outro lado, 1•lt1 ,, ,~111 do que suas "vítimas", cm compensação não eram
agravou no século XVII, ao passo que se tornou mcno, 11~, ,_ riamcnte as mais pobres da aldeia. "Nenhuma conexão",
11
em região protestante. Também na Alsácia a perseg ui~·1l111 ti VII J I. Macfa dane, "pode ser estabelecida entre pobreza
1
ca parece ter sido mais dura que a dos protestantes.'" 1'111 1 u-nções." 92 No Jura, E. vV. Monter constata que nem t?d~s
ainda asseverar que a Inglaterra perseguiu menos vio k·11111111 11 unas dos processos de feitiçaria são "pobres, mar~111a1s
a feitiçaria do que os Países Baixos ou a Lorcn:1. 1'vl11•; 11111, ,liNcordantes". Algumas delas pertencem à burguesia de
11,,hôtcl e de Porretruy. Nos setores rurais, várias são"oriu n-
poderia generalizar essas constatações locais. No Jura 1·~11111,
por E. W Monter, magistrados católicos e protestante:, j11l1111 1111 mundo das notabilidades, sendo esposas ou de um lugar-
e condenaram mais ou menos da mesma maneira."' Ma~ 11 nunlC", ou de um "castelão", ou am . d a d e um " mag1stra
. d o "º, 3
católica Friburgo foram muito mais indulgentes do q111• 11 1
uortc da França atual, o caso dos "valdenses" de Arras, que
calvinista cantão de Vaud, o que ressalta da seguinte I rn111
11
,,çou em 1459, permanece um caso aberrante ta~to ~or_seu
ração:•~ rillcr urbano quanto pelo nível soci.11 elevado dos 1'.1~nn~ma-
,. Mas a investigação de R. Muchemblcd sobre a fe1t1çana no
L11g_11r D11111s 1/rumdos Excmtfl{/os 8111,ülos ':h tios nr1 Ili mhr:iisis vai ao encontro das c~nclusões de Macfa,~1:~e: e~
Região de 1537-1630 102 90 6 90 ~111 geral as feiticeiras eram _ma1_s pobres que ~uas v1tH11a~ ,
V.1ud
, c não significa que as primeiras tenham sido necessana-
Friburgo 1607-83 162 53 25 33 1 111
rntc as mais deserdadas da aldeia". O escudo da sra. Dupo~t-
Por outro lado, a Escócia presbiteriana puniu sem picd:1111 11 lluuchat sobre o ducado de Luxemburgo desemboca tam~~m
"sequazes do diabo", ao passo que o Estado pontifical esc1p1111 1 :1 sociologia rel.1tivizada. Seguramente, fora das reg10es
111 11111
obsessão da fe'ítiçaria e a Inquisição espanhola foi surpree11d111 Luxemburgo e, em menor medida, de Bitburgo, a grande
1
temente mocferada em suas condenações nesse domínio.''' Jo:111 1111 ,iloria dos incriminados é de gente pobre'. e os confiscos de
11
não só protestantes e católicos tiveram os respectivos teórirn, d, h, 11~ consecutivos às execuções não propor~1ona1n, nos melho-
caça aos feiticeiros (como o calvinista Daneau, o rei da Esrrn t 1 r,, ç:1sos, senão produtos derrisórios.9' Muitas vezes mesn_10 o~
Jaime VI - mais tarde Jaime I da Inglaterra - , o l11tcr11 1111 ilumimentos relatam: "Não se pôde recuperar nada _devido a
Carpzov), como também eles se influenciaram recipfoca111e1111 1 puhrcza da dita executada". Em compensação, em Bitburgo e
esse respeito. O católico Binsfield cita os protestantes Eras111\ 1 uulis ainda em Luxemburgo, a repressão i~culpou ao m~sm~
Daneau; o holandês Voetius e o alemão Carpzov referem-se :l ( J h uipo pobres e pessoas importantes - magistrados, escab1110s,
5-13
542
ricos fabricantes de tecidos. "Nenhuma categoria socinl p111 1111c o acreditaram os contemporâneos e do que por muito se
ter sido poupada."''; Na alçada do parlamento de Paris, 1111 111 rmou. De todo modo, o elemento feminino forneceu - e de
do século XVI e no começo do xvn, a maior parte dos rn11, h ,, l{C - o maior contingente de vítimas.
dos por feitiçaria que recorre à apelação é de pessoas dl' e 111111 (,: muitas vezes difícil conhecer com exatidão a idade dos
ção humilde. Mas "outros, a julgar pelas multas que llt1•1 u~ndos. 1o entanto, E. W. Manter calculou, a partir de 195
infligidas, e que aliás afirmam que estão ali porque se rnltl~ 11 u,stras (entre as quais 155 mulheres) escolhidas nos processos
os seus bens, estão longe de ser pobres".96 Essas relil'11 li\• fços, ingleses e franceses, uma idade média de 60 anos:''9 vê-se
baseadas em minuciosas investigações afastam evide111c1111111 •im confirmado o estereótipo da velha feiticeira tal como a
as visões demasiadamente simplistas de Michelet. Os :H'u~,111, 1oca o imaginou de alto a baixo da sociedade.'ºº Enfim, quan-
eram sobretudo pobres. iVIas entre os incriminados houw ~1111 i\ situação familiar das mulheres incriminadas, uma estatís-
111 baseada em 582 casos (na Suíça, em Montbéliard, em Toul,
cientemente pessoas menos desprovidas - algumas ern 111 1111
111 Essex em 1545) registra 37% de viúvas, 14% celibatárias e
mo abastadas - para que se possa identificar a suposta kh 1~,
1)% casadas.1111 Ressalta desses números a super-representação
ria com uma revolta social.
11~ viúvas. Isso se deve sem dúvida ao fato de que, como acaba-
.Merece igualmente ser relativizada a fórmula cômod:1, 111~
11111s de dizer, as acusações de feitiçaria visavam sobretudo às
um pouco rápida, de "caça às feiticeiras". Por certo, pelas l'U/(11
tnulheres velhas, entre as quais muitas eram viúvas.
desenvolvidas no capítulo precedente, as mulheres foram :1, 111,11
É preciso obrigatoriamente estabelecer um elo, em especial
numerosas vítimas da repressão. Mas também houve ho1111•11
trntando-se das mulheres, entre acusação de feitiçaria e desvios
De uma região a outra, a distribuição por sexo das víti111:1, d11
,uuais? A resposta a essa pergunta deve ser vista com reservas
processos variou sensivelmente. Entre 1606 e 1650, nos prcl111
rm função do resultado das pesquisas locais. As que se referem à
tados alemães de Luxemburgo, 31% de homens e 69% de 11111 1111
Inglaterra e à Lorena não convidam a afirmar essa relação. Os
res foram levados à justiça por feitiçaria, mas nos prebos111il11 documentos relativos a Essex quanto ao período de 1560-1670
valões apenas 13% de homens e 87% de mulheres.?; Porcc.:11111 mostram que, em 25 casos de incesto, um único está associado a
gens estabelecidas nas outras regiões de perseguição, no es111d11 uma suspeita de feitiçaria. 1º1 D o mesmo modo, em 43 pessoas
atual das pesquisas e em relação ao número total dos procc~,o~, presumidamente feiticeiras descritas com muitos detalhes nos
dão 5% de homens no bispado de Basileia, 8% no cond:~do d, 111111,phlets de Essex, apenas cinco são apresentadas como tendo
Namur e em Essex, 14% no principado de Montbéliard 18% 1111 uma vida sexual irregular. Aliás geralmente não parece estreito
cantão de Soleu~e: no sudoeste da Aleman ha e no atual 'dep:11 111 - na Inglaterra - o elo entre acusação de feitiçaria e criminali-
menta francês do Norte, 19% no cantão de Neuchâtel, 24% l'III dnde em sentido amplo. Ao contrário, na região de Luxemburgo
Genebra e em Franche-Comté, 29% em Toledo, 32% l'llt dos anos 1590-1630 estudada pela sra. Dupont-Bouchat, a feiti-
Cuenca, 36% no cantão de Friburgo e mesmo 42% no de V:wd, ,·cira, na mentalidade coletiva, é no mais das vezes uma "galinha",
Sem dúvida, pode-se reter 18-20% como cifra média, sendo w , uma "puta" e uma "debochada", ou ainda uma "ladra" e uma
dade que cm Arras no século À'V, assim como em Luxemburg11 "mentirosa", sempre uma pessoa de "má reputação e fama". 1º1 De
no XVTI, a repressão da feitiçaria fazia de ordinário proporcion:11 t0do modo, contudo, tanto em Luxemburgo quanto na Inglaterra,
mente mais vítimas masculinas na cidade que no campo. E,11 na Lorena e na Suíça, a acusação popular visa menos a um desvio
suma, os homens foram mais numerosos entre os incrimin:1dm sexual ou a roubos do que o poder excepcional de pessoas fa.cil-

544 5-/5
mente vistas como perigosas, ou mesmo "maldosas" - elas 11111 111an, 27 pessoas acusadas de feitiçaria foram <]ueimadas em
vocam doenças ou matam; desencadeiam tempestades e l:111~1111, untro meses, no ano de 1613.'"' Em E llwangen (sudoeste da
feitiços sobre os homens, os animais e os campos. lllmanha), mais de trezentos condenados pereceram cm qua-
nta fogueiras em 1611-3.'º8 Em 1645, em Essex, então atingido
n· uma onda persecutória, 36 suspeitas foram aprisionadas;
Antes de terminar a constituição deste dossiê sobre :1 lt•III 1.llnove foram sentenciadas à morte pelos Assizes; nove morre-
çaria, importa ainda responder a algumas perguntas. 1,:, t 111 m t)OS calabouços; seis ainda estavam na prisão em 1648; só
primeiro lugar, em relação ao número de processos, qual l'lil , 11111 havia sido absolvida.'09 Mas essas multiplicações súbitas de
proporção das sentenças de morte? Vimos que impon n1111 111denações à morte não devem fazer esquecer a longa continui-
diferenças tinham existido a esse respeito de uma região :1 0 11t t , nilc da repressão. Genebra, durante o período que vai de 157 3 a
por exemplo entre o cantão de Vaud e o de Friburgo. Mas, t'OIII•• 1\62, conhecia entre um e quatro processos de feitiçaria por
10.110 Ao lado dos momentos de pânico, havia - também grave
regra geral, uma defasagem sensível existiu - felizmcnt t•I
entre o número dos processos e o das execuções. Combi11111ol1, n monótona recorrência de uma obsessão. O que é confirma-
li por vezes pela localização dos incriminados. No Jura, assim
os resultados de várias pesquisas já comentadas nas página~ 111,
uno em Essex nos séculos xvr-xvu, trata-se mais de endemia
cedentes, pode-se constituir a estatística a seguir, evide11t c111111
11 que de epidemia. O bailiado de Ajoie (bispado de Basileia)
te incompleta, mas ainda assim reveladora.'º~
1nbeleceu 144 processos de feitiçaria escalonados de 1590 a
Regiões'"' Dntns % das ,·x,·m çril'., rt/1 (122. Eles afetaram 24 localidades das 28 do bailiado.111 A vizinha
i-elnrão no 111í 1111·1 ,1 ,/, nhoria de Valangin (condado de Neuchâtel) deixou 45 proces-
i11<Ti111i111u/o.,· lN nos anos 1607-67, que puseram em causa dezesseis das dezoi-
República de Genebra J537-1662 27,7 11 nldeias desse distrito." 1 Essa distribuição relativamente ampla
Cantões de Zurique, Solcure e Lucerna 1533-1720 44 ~s11lta também a pesquisa de A. Macfarlane sobre E ssex, onde
Cantão de Neuchâtel 1568-1677 67,5 • ,03 incriminações por feitiçaria do período 1560-1680 espa-
Parlamento de Franche-Comté 1599-1668 62 )111nim-se por 108 das 426 aldeias do condado." 1
Luxemburgo 1606-50 64 Era então frequentemente uma região inteira que se via
Condado de Namur 1509- 1646 54 ll•sn - ou que se lançava - nas redes dos sinistros caçadores.
Ilhas Anglo-Normiíndas 1562-1736 66 l'~pressão, longe de ser sempre espetacular, revestiu muitas
Essex 1560- 1675 25 111,cs, no interior de certos limites de tempo e espaço, aspectos
Departamento do Norte (na França) 1371-1783 49 dt•uontinuidade e de extensão, sem chamar a atenção dos con-
l~111porâneos - e dos pesquisadores - por rumores particula-
Essas médias, calculadas sobre períodos bastante l,m1111 ri,~. Daí urna dedução que parece impor-se: os pânicos e as
dissimulam inevitavelmente breves conjuntura~e louca i11q11h pldcmias de feitiçaria não teriam eclodido sem a existência de
tação e extrema severidade. Por exemplo, em Genebra, por tlt ,1 11111 fundo endêmico de medo dos malefícios. Mas este viu-se
sião da epidemia de 1545, 43 "fomentadores de peste" li11,1111 111ivado por circunstâncias que puseram em causa tanto popu-
julgados, dos quais 39 foram executados.'º6 Em Chillrn,, 1111 11~11cs quanto juízes.

546 5-17
12. UM ENIGi\1A HISTÓRICO: AGRAN111 10ral oficial, dançando ao redor de um altar erguido em
REPRESSÃO DA FEITIÇARIA 1rn de Lúcifer, "o eterno Exilado", "o velho Proscrito injus-
wnte expulso do céu", "o Mestre que faz germinar as plan-
II. ENSAIO DE INTERPRETAÇÃO 11, Baco por seus chifres e pelo bode que estava junto dele,
IA \lra também Pã e Príapo por seus atributos viris. Sua sacer-
ll~n, "a noiva do diabo", representante de todas as servas
l. FEITIÇARIA E CULTOS DE FERTILIDADE 1l11gadas pela sociedade da época, Michelet a via como uma
11lcin de "olhar profundo, trágico e febril com grandes on<las
Tendo grosso modo reunido as peças do dossiê l'd111111 ~tlt'pentes descendo ao acaso", entenda-se "uma torre nte
repressão ela feitiçaria na Europa cio começo ela Idade Mt 11h 11 Jl"II de indomáveis cabelos".4 Assembleias rituais de campo-
eis-nos agora levados a raciocinar sobre elas e a tent:11· 1•~ ph1 t•s, assegura l\llichelet, já existiam nos séculos xn-xm, mas
essa crise - e esse medo. Duas tentações alternaclamc11l t' 1il no século XIV que elas ganharam esse aspecto de desafio à
ziram os pesquisadores: uma convidando a resolver css1· K'1111 I lt•lll estabelecida no momento em que Igreja e nobreza se
enigma histórico por meio dos comportamentos pop11 hn 1 tnnvam objeto ele crescente descrédito.
outra pelo dos juízes. Quanto a mim, gostaria de propot'i Ili~ I• /\ voga de que Michelet voltou a gozar atualmente devol-
cio a toda apreciação sistemática e unívoca ele um fen ô1111•1111 1 11 tll'édito à sua concepção do sabá. Na França, vários histo-
complexo, uma leitura sintética, que dê conta a uma si>Vt , ,1 1l11rcs de talento parecem crer no pacto diabólico - meio de
dois níveis culturais e de sua interação.' lv11mento de uma cultura mágica e animista que se recusa-
Na primeira parte do século XTX, eruditos alemães, 1 li nbcl icar5 - ou nas reuniões camponesas de caráter clemo-
Jarcke e F. J. Mone - católicos hostis à Revolução Fr:11111 1 dl'II, Elas teriam constituído uma "revolta imaginária e fan -
que acreditavam ver por toda parte temíveis sociedades s1•11> 1 •1kn", uma evasão, graças ao mito diabólico, para fora das
- identificaram a feitiçaria ele outrora com uma vast;1 1•1111-1o1 ll•~sões do presente. 6 Uma etnóloga cio CNRS [Centre Natio-
ração contra a Igreja.! Foi o mesmo ponto de vista, 11111•1 1h 1 1 de la Recherche Scientifique], que viveu trinta meses nos
vez exposto com uma calorosa simpatia, que Michelet cld11ttd1 \'rlrcdos normandos a fim de explorar a feitiçaria, volta por
em A feiticeira. Para o historiador romântico, o cr~~, i1111l-1u d vez a Michelet. Polemizando com Robert Maneirou, que
vitorioso matara a aristocracia do Olimpo, mas não ";1 111111! !ti 1 N•I a realidade do sabá, Jeanne Favret sustenta a existência
dos deuses indígenas, a população dos deuses ainda na p1 111~1 11 1h11cntível deste. A verdade da feitiçaria europeia, pensa ela,
imensidão do~ campos, dos bosques, dos montes, das fo111 1•-• 1 li representar em outra parte aquilo cuja expressão a Igreja
não só esses'deuses continuavam a "habitar o coração dor; t ti rulhh1: "O sabá é a representação que os exilados da sociedade
valhos, as águas rumorosas e profundas", como, aind;i 111111 11tlicval dão a si mesmos de sua libertação em um espaço
ocultavam-se na casa. A mulher os mantinha vivos no l'f 1111~ , tinido pela proscrição [...]".7
do lar. 3 Excedendo essas premissas fecundas a título de hlpt1h A afirmação comum a K. E. Jarcke, a F. J. Mone e a Michelet
se, mas apresentadas muito peremptoriameAte, i\tlicl1cl\ I 11111
0
Nlllldo a qual os cultos pagãos teriam sobrevivido em plena
mou a existência dos sab,ís. Ali os servos se vingavam d1• 11111 ri~rnndade recebeu há cerca ele oitenta anos a adesão maciça de
ordem social e religiosa opressiva, zombando do clcrn 11 1h _,,11isadores - etnógrafos ou ligados à etnografia. D ecisiva a
nobres, renegando Jesus, celebrando missas negras, clcs:il 1111111 11 respeito foi a influência de O ramo de ouro (The golden bough)

548 5-1-9
- primeira edição em 1890 - de J. Frazer, que, como CS{'111 clcscobr ia senão ritos de origem pré-cristã, da alçada de
N. Cohn, "lançou o culto aos cultos de fertilidade".' Sua 11h1 111118 puramente científicos, M. Summers detectava, com
marcou a da egiptóloga Margaret Murray, que, abandonntul li nos demonólogos de outrora, vasta conspiração diabólica
seu terreno privilegiado de pesquisa, publicou em 192 1 / 1 1111 Deus e a sociedade. Tendo-se voltado "durante trinta
witch-mlt in western Europe,9 depois uma obra de etnologia t'I1111 •" para essa sequência monstruosa da história humana, ele
parada, The god of tbe witcbes (1931). A tese central dcss:1s d11 lll'Ínva nestes termos seu grande projeto:
obras é que, até o século XVII, a Europa conservou o velho 1111
to de Dianus ou Janus, divindade com chifres e duas f"n11 I•~forcei-me em mostrar a feiticeira t al como era realmente:
que, simbolizando o ciclo das estações e da vegetação, sup11-1 n~nber, uma debochada e uma parasita; a recitante de um
mente morria e renascia. Thomas Becket, J oana d'Arc e ( illl l l lldo repugnante e obsceno; uma praticante dos venenos,
de Rais constituíram suas representações na esfera n:wlo1111 1h1 chantagem e de outros crimes; o membro de um a pode-
daí sua morte ritual necessária à ressurreição do deus. E:<11' 11 111Nn organização secreta hostil à Igreja e ao Estado; uma
representado por um personagem chifrudo que os jufac!, e• 11 hlusfomadora em palavras e em atos; um ser que domina-
logos tomaram por Lúcifer. Esse culto sem idade fora prcNI 1• \'11 os a ldeões pelo terror e pela superstição, explorava sua
cio por uma etnia de pequena altura repelida pelas invu , l 111clulidade e por vezes fingia curar; uma impudica; uma
sucessivas, mas que manteve contato com as populações: 1 1 nl11ll'tadora; a negra conselheira nas cortes das dam as lasci-
os cham aram de fadas e anões. As assembleias rituais cn1111 \'n" e de seus amantes adúlteros; a provedora do vício e de
duas ordens: os "divertimentos" semanais que agrupava111 Ili 111d11s as corrupções, enriquecendo-se do lixo e das imundas
participantes e os "sabás" de dimensões mais amplas. /\ dl•o lpl p11i -:ões da época.12
na era muito rígida. Para M. Murray, "a única explica~·1H1 I"'
o número imenso dos feiticeiros arrastados diante <los t 1·lh1111 1ws11r das reedições sucessivas de seus livros, M . Summers
e condenados à morte na Europa ocidental é que cst:111111 1 111 niio convence. Mas a ideia de que feiticeiros e feiticei-
presença de uma religião que estava difundida por todo o 1, ~1111111vam grupos est ruturados cuja coerência se afirmava
tingente e cujos membros se encontravam em todas as c11111111I rh1111 coletivos volta regularmente à tona: como no livro
da sociedade, da mais elevada à mais baixa".'º A of211siv11 111 n11l11ndês A. Runeberg, Witches, demons {l.nd fertility magic
dos séculos xv1-xv11 desmantelou essa religião milcn:11·. )1 que, com nuanças e retificações, situa-se nas pegadas

Contemporâneas das obras de M. Murray foram a, 1h 1, 111,hnlhos de J. Frazer e de M. Murray. Para A. Runeberg,
católico fa,;ático, i\11. Summers, cujas conclusões iam :10 11111 · _,,111hleias chamadas de sabás pelos teólogos realmente
tro das d; K. E . Jarcke e F. J. Mone, mas coincidi:1111 1111111, li ,1111 e não resultaram de alucinações nem de uma suges-
com algumas das asserções da erudita egiptóloga. Tbl' hh/lol 1lucln pelos interrogatórios dos perseguidores. Mágicos,
witchcraft mui demonology (1926) e The geogrnphy of 111//I•, melo verdadeiras associações, tinham herdado de um pas-
(1927)-republicadas recentememe11 - asseguram <.:< 11111 I, , l11111{ínquo as fórmulas e as liturgias (noturnas) capazes de
assim corno os livros de Murray, ter exi4:ido outrorn 1111111111 11111101rnr a fertilidade e prejudicar os inimigos. A. Runeberg
nização de feiticeiras que celebrava sabás e haver, no d111111 nou, nliás, que todas as palavras que significam "feiticei-
dessas liturgias, um homem que personificava a divind11d1 1I "l11h içnria" nas línguas europeias têm alguma relação com
rada - Satã, no caso. Em compensação, ali onde M. 1\ 1111 lllilnde. A Igreja, no fi nal da Idade Média, tomou a inicia-

550 55/
tiva de punir esse paganismo persistente, ao mesmo tcrnpu 111 ilusão criada por drogas. Mas é verdade que renegavam a
que declarava guerra aos cátaros. Perseguidos pelo 1111•~111 reja, beijavam o traseiro do homem ou do animal que sim-
poder, mágicos e cátaros fundiram-se em uma seita que 1••op11 lizava o diabo, entregavam-se a orgias e ao canibalismo.
ceu os ritos de fertilidade e se pôs a adorar Satã. Mas pm 11 , helião contra o conformismo social e religioso, esses grupos
das deformações dessa última fase o pesquisador reenco1111 11, 111 llistas foram o produto de uma civilização cristã opressiva e,
tos e segredos primitivos que visavam a tornar a natu rc1.11 lu 111 pccialmente, da Inquisição.
valente e fecunda. Os fatos realmente localizados pelas pesquisas de etno-
A obra de E. Rose, A razor for a goat (1962), consti111!1 ,,1 1istória permitem que se formulem as vastas generalizações e
muitos aspectos, uma crítica das teses de M. Murray, d,w 1111111 categóricas afirmações que acabamos de apresentar? J. Rus-
no entanto permanece tributária. E. Rose rejeita toda p1•1111, 11, por exemplo, apoia-se muito justamente na obra estimada
nência dos ritos de fertilidade, mas remontando à id11d1• 11, C. Ginzburg, Os andarilhos do bem.'3 Baseado em documentos
cavernas, afirma a continuidade no tempo das associ:1~•1)1•- ,1 DInquisição do Friuli, escalonados de 1575 a 1650, esse traba-
feiticeiros e feiticeiras, que se tornaram secretas no tc111p11 11 u pioneiro efetivamente revelou a sobrevivência de cultos de
repressão cristã. Seu deus, meio homem, meio animal, 1rn 111111 N ilidade após mil anos de cristianismo oficial. Os benandanti
-se progressivamente Satã, e as danças dionisíacas das 13111•111111 111n homens e mulheres nascidos com a membrana amniótica,
e das Mênades se transformaram em sabás frenético~, 1 111, 1c conservavam suspensa ao pescoço, como um amuleto. Nas
participantes, graças ao conhecimento de certas plantas, rnt11111 ucl:inças de estação, imaginavam sair à noite - enquanto
em estados patológicos. Com a perseguição dos séculoN \ \ 1 pnrentemente dormiam - armados de funchos e em grupos
-XVII, os grupos locais precisaram constituir-se em orµ1111I 1 rilcnados para combater os feiticeiros, também eles organi-
ções mais vastas e mais sólidas, embora subterrârn.::1s. \ 1111 ilos e armados de sorgos. Dessa batalha ritual dependiam,
delas teria sido - e sob esse aspecto E. Rose unc-Sl' 11 \1 nrmavam eles, colheitas e searas. A Inquisição, sem utilizar a
Murray e a M. Summers - a "Grande Convenção" da l1:N1111 1, rtura, acabou por convencer os benandrmti de assistiam aos
à frente da qual nos anos 1590 estaria Francis Stewart, o 1•111111 1111s e que eram eles próprios feiticeiros, mas sem puni-los
de BothweJI, que procurou por meios mágicos matar J:1i1111 \ t 11110 tais: na foHia, por volta de 1650, já não se condenavam os
O livro de J. Russell, Witchcraft in the Middle llw (111 't hioeiros. C. Ginzburg esforçou-se em recolocar os benandanti
marca, por seu lado, a retomada modernizada das 1c~I'- il 11 Friuli em um conjunto folclórico mais amplo, aproximando
Michelet, corrigidas ou completadas por elementos cx l 1111th 11s ritos dos combates simbólicos entre Inverno e Primavera,
de M . Murray e A. Reneberg: ritos milenares e liturgias 111,h twcrno e Verão; estabelecendo uma conexão entre benandanti
nadas tendo•em vista a fer tilidade, com danças, ba 11q11u11 -11111ãs, em razão de seu sono extático e de suas supostas via-
desrecalques eróticos, transformaram-se em sabás sob 11 1111 11,~ na noite a fim de garantir a fertilidade dos campos; lem-
são da sociedade cristã. Desde o século rx e, com 111:1i~ 11111 rn11clo a duradoura crença nas procissões noturnas dos mortos
razão, no século xm, na época das perseguições de Co11111d .t 110 cortejo feminino de uma divindade da fecundidade cha-
Marburgo, existiam seitas de "feiticeiros,1eréticos" adon11l111, 111dn ora de Diana, ora de H erodíades, ora de Hoda, ora de
do demônio. Mais tarde, elas se reuniram não mais ern pt11 (lt l'H1hta.14 O Canon episcopi e em seguida inúmeras outras auto-
mas em campos afastados. Por certo, as feiticeiras ni"ío st• 11111 hliulcs até o século }._'VI - Burchard de Worms, João de Salis-
giam em vassouras às assembleias noturnas - isso niio pu~-1" 111 y, Vincent de Beauvais, Jacques de Voragine, Jean N i<ler,

552 553
Martin d'Arles - atestam a persistência em toda a E.11 111, Ritos idênticos são assinalados por K. Thomas nas ilhas
dessa lenda15 que sem dúvida contribuiu para a criação do 111l1t rlt11nicas no começo da Idade Moderna. 21 Um autor inglês do
do sabá. llllô xv fica desolado ao constatar que "pessoas prestam um
Em um sentido mais amplo, a manutenção, no univ1•1 , 1ho ao culto, à lua e às estrelas". D e fato, em 1453, um aç o~-
cristão e até uma época tardia, de ritos, condutas religioMt• , uoiro e um lavrador de Stanton (Hertfordshire) são perscgm-
crenças herdadas do paganismo parece confirmar-se a cadu ,h, 11~ por terem afirmado que não existe out~a divin_dade que não
Hui e a lua. No século XVII, quando o puntano Richard Baxter
à medida gue a pesquisa alcança o humilde nível do vivido 111II
hllga à sua paróquia de Kiclclerminster, descobre que, e1~tre
diano. As investigações dos e tno-historiadores italianos I,
uns ovelhas, várias são ignorantes "a ponto de crer que Cristo
Bonomo, E . de Martino, L. Lombardi Satriani, G. D e 1~11~,1,
o sol [...] e o Espírito Santo a lua". W . Camden relata, ainda
do próprio C. G inzburg - sobre o folclore da penín~ul11,, 11,
11 século xvu, que os "selvagens irlandeses" - como os bre-
particular o do Mezzogiorno, destacaram a sobrevivência, 1111 ,
fll'S evangelizados por Le Nobletz - ajoelham-se d iante da lua
vés das formas sincréticas e sob exteriores cristãos, de , h11
uva e recitam o pai-nosso em sua honra, rito atestado em
báquicos pré- cristãos e resíduos pagãos.16 A esse respeito, ,,
cwkshire na mesma época. Em Londres, em 1641, uma seit a de
docume ntos são abundantes. Em pleno século XVII , rn isslrn111 •nturnianos" e de "junianos" presta um culto às divindades
rios jesuítas descobrem no sul da Itália camponeses que ac1'1•1II
plnnetárias.
tam na existência de cem deuses e outros na de mil. 11C c111 111111 No Luxemburgo dos anos 1590-1630, onde grassa uma
mais tarde, Benedito xrv vê-se no dever de proibir, no 1,: \1t1il1, dura perseguição da feitiçaria, m antém-se - deformada, é ver-
pontifical, os cortejos de pessoas nuas que continuam a li:~1, J111 dndc - a lembrança de Diana, popularizada sob o nome de
as "lupercais" (1742) e as danças, jogos e m áscaras das " h111 ., 11( ;cne". Ainda no século XVIII, inúmeras estátuas da deusa
nais" (1748). Pois, passada a Terça-feira Gorda, pessoas st• 1111 , uhsistiriam no ducado. D a mistura q ue resultou dos sucessivos
mirem entrar nas igrejas, m ascaradas e fantasiadas, e ali rt·1•11l111 11l11viões religiosos, dá testemunho em 1626 a estranha 01~açã_o
as cinzas nesse estado.18 Em Biscaye e no G uipuzcoa, J. ll11111111 fllt'itada diante de seus juízes por uma mulher da prov111cia
obser vou a longa sobrevivência de um laço entre os :1111 lu11 nrusada de feitiçaria. Nesse poema ritmado, que foi transcrito
locais do culto pagão - grutas, fontes e dolmens - e a d111 11 pela sra. Dupont-Bouchat, trata-se alte~nadame1:te (um pouco
doura crença, nessas regiões, até uma época recente, ''.c111 111111 wmo nos cultos afro-brasileiros de hoJe) de Cnsto e da cruz,
preside nta d:1s feiticeiras dita Mari, espécie de deusa das 11 11111 11c são João e do diabo, de árvores, de folhas e ele campos flori-
tanhas que viv~ nos altos picos das úe1·ras [...] e que é ch:111111do1 tios, de Maria e de deusas chama das "Enegias . " (Eumeni'd ~s')
A
. .,,
··
de a Dama 0 1; a Mestra". 1'1 Na Bretanha, no começo do M' I ttl1t ,\ essas indicações dispersas, é preciso acrescentar as que cl1~em
xvu, o padre Le Nobletz descobriu com espanto pessrn1•, q111 respeito aos diabos populares e as quais menci01:amos a~t~nor-
prestavam culto à lua e às fontes: "Era nesses mesmos 111111111 ll!llnte. Muitas vezes eles não são o Satã da Igrep, mas d1v111da-
[a baixa Bretanha) um costume aceito ajoelhar-se diante d11 11111 ih.:s familiares tão úteis quanto nocivas e que os camponeses
,, • JJ
nova e dizer a oração dominical em sua honra; um out ro 1111111 w ocuram tornar propicias.·
ele fazer no primeiro dia do ano uma efpécie ele sac.:ri 1'11°111 ,t Todos esses fatos espalhados no tempo e no espaço, e cios
fontes públicas, oferecendo cada um um pedaço de piio col)(II 11, 11uais as pesquisas superficiais não deixarão de alon~ar a lista,
com manteiga à de sua aldeia".'° esclarecem em certa medida o juízo de Freud, que afmna: "Os

554 H5
P?vos cristãos são mal batizados. Sob um fino verniz de cri 111111 11lizados do século XIV - tais como Bern_ard G~i e_Nicolau
111smo, permaneceram o que eram seus ancestrais, b.írh11t11 11\Crich - não tenham mencionado as seitas luc1fenanas e1n
14
p_oliteístas". Diagnóstico sumário, por certo, mas que o hlNll1 1n momento em que teriam estado em plena atividade._~lém
nador da Europa dos séculos XV-XVII não pode recusar co111 111 11 IN~O, M. Murray e aqueles que a seguiram_- mesm? c_nt1ca1~-
traço de caneta e que é confirmado ainda, ao menos no pl11111, II essa continuidade no detalhe - imprimiram sens1ve1s mut1-
local, por um olhar mesmo rápido sobre a Lucânia do cou)l'\i• ~i\cs nos documentos ingleses e escoceses dos séculos XVI-
do século xx. 15 VII que utilizaram. Nos relatos de processos, eles apagaram
, Mas cristianização incompleta, sobrevivência de um pull • detalhes inverossímeis para conservar apenas aqueles que
t~1smo de fato e restos das religiões antigas nem por isso si~III Rvnm certa coerência às reuniões dos pretensos sab.ís. Ora, se
f1~am cultos _coerente~ de fertilidade, manutenção de um p11111 1·cconstitui essa documentação em sua integralidade, por que
111smo consciente de s1 mesmo, ou organizações clandestin11111 h liminar os voos em vassouras para as assembleias noturnas ou
liturgias anticristãs. A única certeza fornecida pela docunll'lll il • transformações em sapos e manter a adoração do bode e~
ção atua!mente examinada é a de um sincretismo relig ioso q111 nnibalismo? E mais: por que rejeitar como lendári~ os assa:s1-
e1:1 particular nos ca~1pos, por muito tempo sobrepôs Cl"l'll\ il nn10s rituais outrora atribuídos aos judeus e declara-los auten -
ali~entadas p~la Igreia a um fundo mais antigo. lvlas as pnp11 lkos quando se trata de feiticeir~s? ~~n su_ma, toda uma escola
laçoes se consideravam cristãs e não tinham o sentimento 1h histórica recusou-se, nesse caso, a cnt1ca ngorosa da documen-
aderir a uma religião condenada pela Igreja. E devem ter iihh1 llti,:ilo. Esta - livros de demonologia e relatos d: processos
muito surpreendidas pela aculturação intensiva condu;,,id11 111 rontendo as confissões dos incriminados - prove_m to_da_ ~a
~uropa pelo~ missionários das duas Reformas, que, eles ,1lt11 rult ura dirigente. Deve-se acreditar piame~te _n~ unagman~
viram pagan'.smo por to?a parte. Esse era há muito tempo 11111 lll'C>Veniente de seu medo? Por certo - logo ms1stiremos ~e~se
espelho partido, um u111verso rompido. Certamente suhsiNI111 l'Onto _ pessoas de outro~a _u tilizaram, s_em_nenhuma du~1da
e_m nomes deformados de divindades e sob a forma de llll'ill il puNsível, procedimentos mag1cos para prejudicar _outrem. J\Ia~,
!,?ades e comport_amentos mágicos, mas sem um pante:io 1111 I.IIII tais casos, os documentos que nos restam poem ~m. causa
nnnamente orgamzado, nem sacerdotes (ou sacerdotisas), 1111111 Indivíduos muito mais do que grupos. Mesmo na Afnca do
corp_o de doutrina. Era talvez vivido, mas não era pens:1d0 1111111 wéculo xx parece difícil estabelecer a existê'.1cia de grupo.:' orga-
deseJado. Então os sabás existiram? nizndos de "feiticeiros noturnos" nos quais as populaçoes, n o
Com inúmeros historiadores - especialmente R. Ma nd 11111
1111tanto, acreditam firmemente .11
H. R. Trevor-Roper, K. Thomas, N. Cohn - inclino-n11.: 11111 ,t
1
a negativa. • Todos os autores que sustentam a continuid:Hlt•11111
long_o da Idade Méc~ia, de um culto pagão coerente (o qual I PI ht 2. NO NÍVEL POPULAR: O MAGISMO
t a~drnmente revestido aspectos satânicos) baseiam-se, ('Ulllll
M1chelet, em documentos muito posteriores aos dos séni111 Assim, a etno-história silencia sobre os sab.ís e não revela,
xvr e XVII - obras dos demonólogos e relatos de processo~, 1 1111 Europa do começo da Idade Moderna, nem cult?s _de fecu n-
p_or ~utro lado, não explicam como nem por que organii'.ll\lll diclade organizados, nem sociedades secretas satamca:' nem
ntuais que permanecera_m subterrâneas durante mil anos 11, 11 i•onspiração coerente contra a Igre/~· ~m compen~~~a~, ~I_a
pareceram em seguida. E sur preendente que inquisidores l'tllll ,!estaca com evidência - a ponto de Jª nao ser necessauo msis-

556 557
tir muito sobre esse aspecto - a longa permanênc ia dt• 1111 1,:ntre muitos documentos que mantêm a mesma lingua-
mentalidade mágica e a crença amplamente difun<licb 1111 p 1111um Confossionnal redigido em bretão no começo do século
de r excepcional de certas pessoas capazes de adoece r oul 111 , li é revelador dessa confusão no plano teológico entre práti-
matá-la, destruir ou impedir o amor, prejudicar o gad11 1 • hunfazejas, ritos do dia de são João, adivinhações, malefícios
lavouras. A leitura atenta dos processos de feitiçari:1 p111111h JllltllOS com o diabo:
muito frequentemente distinguir duas categorias bem dlll 111
tes de acusações feitas contra os incriminados. As q ue v~111 1 (}ualquer um que junte ervas, fora da noite da festa de são
população local mencionam apenas malefícios; ao cont 1•111111 Joiio, dizendo orações ou conjurações de qualquer espécie
formuladas pelos juízes giraram cada vez mais em 101•1111 1 1...J peca mortalmente. Invocar e nomear o diabo (...] p::ira
pacto e da marca diabólica, do sabá e das liturgias dc:1111111111 11tlivinhar ou para qualquer outra coisa é pecado mortal.
e, portanto, do crime de "lesa-majestade divina".1" /\ l'llh o lor familiaridade com o Inimigo ou fazer um acordo com
dirigente integrou assim em um sistema demonológico II h, , lc ou um pacto qualquer é pecado mortal. Acreditar nos
carnavalesco do mundo às avessas e dos fatos aberra ntt.:•, d1 11 -onhos pondo fé neles, com orações, para saber as coisas
pouco se duvidava e que, de alto a baixo da sociedade, ll~ I• por vfr, ou ocultas, é pecado mortal [...]. Observar as adi-
soas se recusavam a tomar como naturais - unrn cri1111~11 11 vln hações que se fazem com "arte" e inteligência vindas do
morre após ameaça dirigida aos pais, uma pessoa que t"i1•11 ,h l11imigo, pelo canto ou pelo voo dos pássaros ou pelo an-
te em consequência de contato com outra considerada ~ll~I"' 1h1r dos animais, como faziam os antigos, é pecado mortal.
a tempestade súbita que devasta um campo mas deixa i 111111 1 11:nfe itiçar ou conjurar uma coisa qualquer para adivinhar
do vizinho. O que mudava em função do nível c u h 111ui , , 1111 cuidar das doenças, como é [o caso] ao girar o tamis
interpretação de tais acontecimentos. Para as pessoas i,1 1111'1 p11 rn ndivinhar coisas perdidas, curar com vime membros
especialmente nos campos, eles resultavam do 1111111,1 , llllUbrados ou deslocados ou para outras coisas semelhantes
termo polinésia que designa uma força misteriosa se apll1 11 ,1 pecado mortal [...]. Qualquer um que ate a agulheta para
aqui - de que se beneficiavam certos indivíduos. Ma~, 11111 , rnlocnr mal e malícia entre esposos, além de pecar mortal-
juízes e teólogos, o que não parecia natural log ic:11 111•1111 , lllllllte, não pode ser absolvido se antes não desata [...]. Fazer
podia explicar-se senão por intervenção supra- h111 111t111t 1 11ll(1tma coisa com versículos de salmos para encontrar coi-
trás dos malefícios, ocultava-se o poder do inferno q111• 11 , -1IH perdidas, ou para enganar mulheres e moças, ou obter
fissões de pacto satânico e de participação no snb:í p1•11111t, _, 11 nmor e desposá-las, peca mortalmente [...]. Qualquer
afinal fazer sair da sombra. Para o senso comum - cltu 11111, 11111 que queira cuidar da dor de dente por meio de um cravo
partir de K. J'homas, um inglês contemporâneo ck· FII, 11 1l1vocndo em nome de Deus peca mortalmente. 30
- "não era considerado feiticeiro senão aque le d!' ljlll "'
pensava que tinha querer e poder d"e prejudicar aos h,11111, N t"ISC documento exemplar, são portanto identificadas
aos anirnais".19 Ao contrário, os homens do pode r 1 1 111 luitiçaria e caracterizadas como pecado mortal mesmo as
e religião apoiando-se mutuamente - amalgam:1r11 111 1111 ll1IN de cura e de adivinhação que eram acompanhadas da
mesmo conjunto magia branca e mngia iegra, adivi11l111~ 11~•110 de salmos ou de invocações a Deus, em outras paln-
malefícios, fórmulas que curam e fórmulas que 11111111111 1 ,11111lquer conduta que tendesse a provocar resultados

e outros não podendo agir senão pela força do dc1111\1ll11 11111tlinários sem a aprovação da Igreja e da medicina oficial.

)58 559
!?º mesmo mod_o: juízes de Lorena declararam a indici:1cl°' 1111 dianas se resolvem diretamente na/pela violência ou por via
essa a rte de ad1vmhar não procedia de outra parte que n:111 11, institucional (justiça). Se, em caso de recalque sistem:itico,
Espírito M aligno", que era "obra diabólica" e que "todas l'~~ 1 as tensões não chegam a exprimir-se, uma derivação para
superstições não passavam de urna verdadeira feitiçaria foq111I 1 o imaginário torna-se inevitável. D aí a anti-instit uição, ou
. dod.ta b"
na lOJa o .n D o mesmo modo o clero inglês, antes e 111111 instituição às avessas da feitiçar ia, da qual os conAitos se in-
ainda após a ruptura com Roma, declarou gue rra aos adivi11h11 vestem para exprimir-se em relações simbólicas por meio
e curandeiros "em quem muitos loucos", dizia Thomas 1\1111 1 das acusações. E ssas, que não são, contrariamente a uma
"têm mais con fiança do que em D eus" e que "contam 11111111 opinião muitas vezes sustentada, nem arbitrárias n em indi-
mais discípulos do que os maiores teólogos" - afirma~·:to !11 ferentes, inter vêm em certas ocasiões, a propósito de cer-
um nobre em 1680.ll tas relações sociais, no discurso. As acusações de feitiçaria
A distinção entre as duas concepções - popular e cl111-11 ajudam indiscutivelmente a descar regar urna agressividade
- e interessantes comparações com as sociedades afrie:11n1 reprimida por um tempo dema~iadarnente l~ngo, _rn~a te~1-
ajudam a compreender melhor a função do feiticeiro (c/011 ti, são muito duradouramente contida; sua funçao catar t1ca nao
feiticeira) na civilização europeia tradicional. Graças a ele (ou 1 deixa nenhuma dúvida. Assim deslocadas, representadas, as
ela) as de~graças insó_litas que atingem os indivíduos (pois p1111 oposições tendem, nem sempre chegando a isso, a se resol-
as calam idades coletJVas pensava-se antes na cólera ele D, 11 1 ver no plano da afetividade: o grupo precisa nec~ssaria,~en-
encontrava~ uma_ explicação. Elas tin ham por origem L:11 pt te escolher um bode expiatório sobre o qual vai polarizar-
soa da aldeia considerada malévola por causa de seu comprn 1,1 -se a agressividade. Essa desca rga emocional, ou a_b-rcaçã~,
me~to estranho, de suas a nomalias físicas ou de má repuLl\ ilt• acarreta por eficácia simbólica a abolição dos conflitos. Mais
multas vezes herdada da mãe ou de uma parenta. Ela t inli 11 urna vez, reencontramos o papel da violência orgnniznr~ora: o
acreditava-se - um poder excepcional, "mau olhado" ou "111 111 1 feiticeiro se torna uma vítima sacri6cial [às avessas], Já que
sopro", e conhecia funestas receitas. i\lias nem por isso se 11111 sobrecarregada do mal que habita o acusador [...]. Contrape-
bu íam a ela relações particulares com qualquer Satã. Era , po1 1 so anômico, a feitiçaria oferece a v,Hvula que permite o des-
mesma, causa de morte, doença, impotência sexua l. Ser m:lil~I•• recalque liberador sob a forma de uma violência ao mesmo
era ao mesmo tempo inveja e vingança, com capacicl:uh• 1h tempo espontânea mas estreitamente regrada: não importa
passar do sentimento ao ato. Na estrutura de uma sÔcil·ih11h quem pode ser acusado, não importa como/ 4
que ainda permanecia amplamente no estágio mágico, t:11 p,
soa e ra necessá\ia portanto como bode expiatório, sendo .ili 1 Em seu estudo sobre a feitiçaria togolesa, os dois etnólogos
verdade que certos indivíduos realmente procuraram des{·111p, 1•xplicam em seguida como esta preenche um~fimçno de ex~lim-
nhar esse papel nefasto de enfeit içador. São aplicáveis :1q111 11 1,,o ao dar conta da singularidade do acontecime nto maléfico e
análises apresentadas por R. Luneau e L.-V. T homas :1 p1 111111 uma f1111çno ho111ogeneizn11te ao declarar suspeitas toda conduta
sito dos Nawdeb:i do T ogo: 1• toda pessoa que se afastem da norma. O que é verdade pa ra a
,\frica do começo do séc ulo XX parece ter sido tam bé m pa ra
E m primeiro lugar, a feitiçaria torna-se um instrumc11111 .i~ ,1 Europa rural do começo da I dade Moderna.
libe-mçno das pulsões. Os conflitos ineJitáveis em uma rnlt'I 1 E m sociedades desse tipo é necessário coloca r diante cio
vidade em que predominam as relações interpessoa b 11111 poder de morte do feiticeiro ou da feiticeira aquele ou aquela
560 561
que descobre o tirador de sorte, que desenfeitiça, que c11 n11 tpt \'cr.es o inimigo".36 Essa ambiguidade de posição não pôde se-
acha os objetos perdidos. Que um possa enfeitiçar e 11111 111111 nno favorecer o diagnóstico sumariamente negativo que co n-
desenfeitiçar, "isso dá ao drama existencial do [universo! 111111 t fundiu em uma mesma reprovação condutas opostas por seus
co o caráter de um combate em que será vitoriosa a p1•1•~1111 uhjetivos, mas cercadas do mesmo m istério e por vezes prati-
mais forte . D e modo que [...] toda a comunidade é :11·, 11~1i11I cndas pelas mesmas pessoas.
nessa luta, para ela vendo-se impelida por uma necessltl111 l1 E is-nos em todo caso reintroduzidos nessa civilização do
qual não pode subtrair-se".is Daí o lugar considcr:ht•I qtt ttfoce a face" definida por K. Thomas e A. Nlacfarlane e q ue
todas as pesquisas sobre a feitiçaria ocidental agora nt 1•lh111111 ovocamos anteriormente.n Inútil, em consequência, insistir
aos adivinhos-curandeiros, cuja habilidade, também d n 111 h1h novamente sobre o papel essencial que a hostilidade entre vizi-
riasa, associava uma medicina e uma farmacopeia empí11111 1 nhos desempenhou nas acusações de feitiçaria. Estas, na m e di-
piedosas fórmu las extraídas da Igreja. K. Thomas pensa q111 111 1111 em que provinham da própria população, sob a forma de
Inglaterra pelo menos a passagem à Reforma e a rcjei\'llo 11, tlcmíncias de malefícios, foram um meio de exprimir de manei-
preces aos santos curandeiros deram momentancame11111 1111, rn aceitável - para outrem e para si - profundas animosidades
acréscimo de audiência a esses benéficos mágicos que se 111111,1 no interior das aldeias. 38
Na Inglaterra, e também na região de Cambraisis dos sé-
ram mais do que nunca o recurso dos aldeões inq uit·to~ 1
rnlos XVI e x v11 , como regra geral, os acusadores pertencem a
partir daí explicam- se a ir ritação e os anátemas do c.: k-rn 11111
um nível social superior ao de suas vítimas.i• Sem dúvida, é fácil
viu neles temíveis concorrentes. Contudo, a diabo! i:r.:l\'1111 ti,
,11ribuir culpa a um mais pobre, cujas possibilidades de defesa
magia branca pela cultura dirigente grassou igualme111t• 1111
Nilo reduzidas . .Mas sobretudo, pensam conjuntamente K . Tho-
país católico. Por certo, aí também ela resulrou de 1111111 11111 mas e A..Macfarlane, de maneira quase constante suspeitou-se
corrência. ivlas se pode perguntar se em todas as rcgi(IWt , l 1 11ue certas pessoas deserdadas ou em dificuldades quisessem
não foi, além disso, sugerida aos homens de Igreja e de lei p1•h1 vingar-se por algum serviço que lhes fora recusado. Formula-se
comportamentos dos próprios aldeões. A sociedade de rn11 11 111 mttão a pergunta capital: por que, em certo momento da história
secretava tanto o feiticeiro quanto o adivinho-curande il'O , t\ l,1 uuropeia, as denúncias de malefícios foram subitamente muito
aconteceu de uma pessoa ser cham ada, por bem o u po r 11 1111 1 1 numerosas? K. Thomas e A. Macfarlane constataram que na
desempenhar sucessivamente os dois papéis. Em r:1:r.~o d11 1nglaterra a iniciativa da caça aos feiticeiros e feiticeiras foi
poderes excepcionais que se atribuíam a ela, era altern:1d111111 11 tomada menos pelos juízes e homens de Igreja que pelos pró-
te temida e cortejada pela aldeia, solicitada ora par:1 prcj11d lt 111 prios aldeões. A partir daí, eles foram levados a buscar as causas
ora para curar,.ora para enfeitiçar, ora para desfazer o~ ld t 1 clcssa crise no interior de um mundo rural em via de mutação.
ços. Ou, ainda, aquela que por muito tempo o pera r:1 \'111 ,,- Os enclosuns ali se multiplicavam; a tradicional economia do
via-se acusada em caso de fracasso. Em um sentido an1pl11, ( , ''domínio feudal" dava lugar a especulações agrícolas mais moder-
Condominas escreve a esse respeito: "Acontece (...] (l lll' o 11 111 1111s; os ricos tornavam-se mais ricos e os pobres mais pobres, e
gico utilize para mau fim os dons q ue possui e que se l !tl m n número destes últimos aumentava. Nas estruturas anteriores,
feiticeiro. Além disso, o mágico de uma comunidade 111111 1 11s pessoas abastadas ajudavam os deserdados e lhes permitiam
frequentemente tido como feiticeiro ptlos membros d:i rn11111 Hnbsistir. Ao contrário, nas novas estruturas em via de insta lar-
nidade vizinha? Tanto é verdade que o estrangeiro é 11lll lt11 sc, o individualismo ganhou terreno e instituições m:lls o u

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menos anônimas de socorro aos desafortunados substituír:111111 Suíça, em Labourd, Lorena, Franche-Comté, Luxemburgo, por-
atos de caridade tradicional. Daí as recusas cada vez mais 11111111 tnnto, em regiões economicamente atrasadas onde não se pro-
rosas de ajuda em dinheiro e em gêneros a pessoas na misél'lu, duziam as transformações socioeconômicas ident ificad,1s na
que desde então podiam ser tentadas a vingar-se. Mas sobreuul,1 Inglaterra. As explicações inglesas não são então aplicáveis, sem
aqueles que recusavam auxílio experimentavam um complt•,11 modificação, ao resto da Europa. Em compensação, metodolo-
de culpa que transformavam em ressentimento contra os q111 l(icamente elas têm a vantagem de atrair a atenção dos historia-
pediam esmolas. Se uma desgraça acontecia a alguém que asslt11 dores para o n ível popular - menos para aí encontrar cu ltos
ficara insensível ao apelo do próximo, ele pensava automa1 in1 sntânicos e liturgias anticristãs do que para buscar nas denún-
mente que um malefício fora lançado contra ele pela pessoa q111 cias de malefícios razões peculiares aos próprios aldeões.
em vão lhe pedira ajuda. Tal teria sido, ao nível do aldc:ío, 11 Ora, de maneira bastante geral, na Europa do começo da
mecanismo psicológico profundo responsável pelas perseKIII Idade Moderna as populações deviam estar mais ansiosas, p or-
ções. Ao que seria preciso acrescentar, para a Inglatern1, 11 tnnto mais desconfiadas que antes. E por que essa ansiedade e
impacto da própria Reforma, que rejeitou em bloco tod;1s 1111 esse sentimento maior de insegurança? Por que esse pessimis-
receitas de urna magia cristianizada (água benta, invocações 111111 mo ampliado, justamente observado por J.-C. Baroja, que lem-
santos curandeiros etc.), mas, asseguram K. Thomas e A. M:11 bra o elo em outras civilizações entre feitiçaria e concepção
farlane, aumentou desmedidamente os poderes do demônio. 1)1 pessimista da existência?'º Os camponeses da época sofreram
modo que homens de Igreja e fiéis experimentaram a tcn1:1~•1111 110 mesmo tempo inflação galopante, severas penúrias, rarefa-
conjunta de atribuir todas as desgraças às forças demoní:11•1111, çiio das terras devido ao crescimento demográfico, desemprego
Diante delas, as populações teriam se sentido mais despoj:1d11- l'Strutural tendo por consequência a vagabundagem e, enfim,
do que anteriormente. Todas essas razões explicariam ta111l 11•111 distúrbios nascidos dos conflitos religiosos.
por que os processos de feitiçaria fi zeram mais vítimas cnl rc 11- A respeito destes últimos, sem dúvida se constata que muitas
mu lheres que entre os homens. Pois o elemento feminino ~ p,11 vezes, no plano local, guerras religiosas e processos de feitiçaria
excelência aquele que permanece ligado às tradições. Ora, c~1111 não coincidiram. Mas, de maneira mais geral, boa parte da
viam-se ao mesmo tempo reviradas pela revolução religioso 1 Europa ocidental e central - aquela precisamente onde os auto-
pelas transformações econômicas e sociais. res de malefícios foram perseguidos - foi afetada pelas incerte-
1.ns religiosas. Foi por acaso que a foília e a Espanha, que melhor
e mais rapidamente resistiram ao assalto protestante, foram
As deduçõcs·, dos dois historiadores ingleses são aplidvl'I~ menos atravessadas pelo medo dos feiticeiros e das feiticeiras?
ao continente europeu? A perseguição aos feiticeiros e fci1 il'1•I Fora desses dois países, os conflitos religiosos não puderam
ras grassou tanto em certos países católicos (França, J>aí•1t'- Nonão aumentar o sentimento global de insegurança. A esse res-
Baixos, sudoeste da Alemanha) quanto nas regiões protes,11 11 poito, agiu um fator pouco ressaltado até o presente, mas que, em
tes. E vimos anteriormente que, tanto de um lado como do minha opinião, teve relevância: o do enquadramento mais ou
outro da barreira confessional, teólogos e juízes insisti rn111 menos sólido pelo clero. A crise da feitiçaria produziu-se em uma
então, com um luxo inaudito de detalhes, sobre os podcrc.:~ d, lll'istandade em que o absentismo dos bispos e dos padres ganha-
Satã. Por outro lado, as vítimas da reprlssão nem sempre.: lo m proporções inquietantes, em que muitos párocos estavam
ram pobres. Enfim, processos por feitiçaria se desenrolaran1 1111 desacreditados e em que o nascimento da Reforma aumentou,

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durante certo tempo, as incertezas. Na Alemanha de meado.~ d11 3. NO NÍVEL DOS J UÍZES: A DEMONOLOGIA
século XVI, alguns padres rurais celebravam em um domill/{11 11
missa romana e, no outro, o culto segundo Lutero. Sentindo ht Em 1609, Henrique IV, dando mandado ao presidente do
mais entregues a si mesmas, as populações europeias teri.1111 ('11111 pnrlamento de Bordéus e ao conselheiro D e Lancre para irem
isso experimentado um acréscimo de inquietude. lltocessar "feiticeiros e feiticeiras'' do Labourd, escrevia-lhes:
É portanto impossível, para apreender em sua complcxlth,
de a grande perseguição da feitiçaria na Europa, não cstud111 1h [...] Os aldeões e habitantes de nossa região de Labourd nos
muito perto o comportamento dos camponeses. Eles cs111\111111 mandaram dizer e advertir que já há quatro anos encon-
mergulhados em urna civilização mágica. Frequentc1111•1111 trou-se na dita região um tão grande número de feiticei-
conheciam mal o cristianismo e o misturavam incons<.:Ít'lllt ros e feiticeiras que ela está quase infectada em todos os
mente a práticas pagãs provenientes do fundo das eras. /\t •l 1 lugares, do que recebem tal aflição que serão obrigados a
ditavam no poder maléfico de alguns deles; não é muito dm 1 abandonar suas casas e a região, se não lhes forem providos
doso que um ou outro pudesse acreditar possuir esse p111h 1 prontamente meios para preservá-los de tais e tão frequen-
excepcional e que procurasse servir-se dele por motivo~ il• tes malefícios.•1
vingança. Além disso, foram submetidos, no começo da ld111l1
Moderna, a uma série de provações que aumentaram sc11 p1 A.parece bem nesse caso uma "exigência" local dirigida às
simismo. Estas se produziram em um momento em ljlll' , llltondades, embora seja difícil determinar quem são realmen-
enfraqueceu o enquadramento paroquial - ao menos nm 1·11111 lr esses "aldeões" que pedem ajuda contra os malefícios. i\1as
pos - , mas também em um tempo em que o clero ccn :11 1111111 l~l~ claro que, mesmo quando as acusações vinham de baixo,
difundiu no nível rural a demonologia da cultura cn11III 1 li n preciso juízes - civis ou eclesiásticos - para acolhê-las,
Assim se explica que fragmentos desse discurso tenh:1111 ~hh duola_rá-las admissíveis e autenticá-las pela condenação dos in-
assimilados mesmo pelos camponeses e que, por outro lnd111111 rrlmmados. Além disso, é evidente que em diversos períodos e
Inglaterra aldeões tenham eles próprios feito denúnci:is ~s 1111111 1111 inúmeras regiões a perseguição das feiticeiras resultou da
ridades ou, como em Luxemburgo, participado das i11vt•r11111 1 Jlrt'1pria iniciativa dos homens de Igreja e de L ei. Esse fato
ções oficiais. Em suma, os processos de feitiçaria, a1i n11d1 ro~snlta, por exemplo, da pesquisa conduzida pela sra. Dupont-
produziram, refletiram indiscutivelmente profunda dcsc>11h 111 llnuchat no Luxemburgo dos anos 1590-1630. Nesse ducado
do mundo rural. Qualquer que tenha sido a respo11s:1billd111l1 1 mni_s g:r~lmente nos Países Baixos, o poder político dirigiu
dos homens de Igreja e de lei, sobre a qual logo vamos i1111l~t11 qucsttonanos aos prebostes incitando-os a provocar denúncias
a caça às feiticeiras não teria se produzido sem um mí11 i11111 ,1, 11 investi8:,ar_ os casos de malefícios:2 Além disso, nessa região,
consenso local, sem certa forma de sustentação ou de Clllllplh 1 lll1ls sem duvida também em outras partes, os carrascos foram
dade popular. É portanto metodologicamente neccss:ll'ln1 11 cmlndeiros batedores das feiticeiras a serviço de uma justiça
estudo dos múltiplos fatores que se somaram para provo('III 1 11111iieta. Não se pode portanto negar uma relação de causa e
enigmática sequência da história europeia, não se :Ht·1 11 1111 l11lto entre as obsessões dos inquisidores de todas as catego-
único nível social e cultural: o da elite ou o do mundo 111111 htN e certas ondas de execuções de feiticeiros, feiticeiras e
Importa, ao contrário, esclarecê-los llternadamentc u111 1 1111 111ros sequazes de Satã. Os juízes frequentemente criaram os
tro e restabelecer suas constantes relações recíprocas. 11l1111dos. Isso foi verdade para Conrad de Marburgo em 1231-2
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e para N. Rémy, q ue condenou ao fogo de 2 a 3 111 iI f'cll 11 111 11111 espíritos malignos. Outras ainda, nega ndo a evidência,
entre 1576 e 1606•3 e para os príncipes-bispos ele Fuld:1, ' l 11 1l11nram-se em confessar crimes que não haviam cometido.
Wurtzburgo e Bamberg, que foram, no final cio século 1 , 1111 é preciso interpretar tais confissões? A resposta vari,1
no começo do XVII, infatigáveis inimigos ela corja dc111011h11 1,hívida em cada caso. Um terá mergulhado cm um estado
Nos Alpes da Lombardia, se um a busca sistem,ítica do~ NI 1111 tltipressão aguda - na época, falava-se de "melancolia".
zes cio diabo produziu-se no final do século X'VI e no t•11110 1111 terá procurado publicidade de mau gosto. Um o utro
do XVII, foi porque Milão teve então dois arcebispos 11t1111, 1li1, que alimentava secretamente uma sombria hostilidade
larmente zelosos: Carlos e Frederico BorromeuY Do 1111 1 11,1 vizinhos, terá buscado libertar-se ao exprimi-la.<8 Mas
modo ainda, durante a epidemia de feitiçaria de 1645 c111 11 , 11~ con fissões espontâneas só eram aceit as pelos juízes se
dois caçadores de feiticeiras, J. Stearne e sobretudo M , 11, 1•111 liberadas e traduzidas na linguagem que lhes era fami-
kins, desempenharam papel d e primeiro plano, ainda qul.' t h r, ,1 da demonologia - uma linguagem que a pregação
sem a impressão de corresponder aos votos de certos h:ihit,1111, 11111nl com certeza tornou progressivamente familiar à opi-
Contrariamente às tradições inglesas, esses dois inqui~lih11 o, l)e maneira comp robatória, J.-C. Baroja fornece a esse
empregaram a tor tura - método infalível para ohtl.' I 11 , p111to o testemunho d e u m inquisidor esclarecido, Alonso
fissões. S11lnzar y Frias, que, nos anos 1610, tentou desmistificar a
De maneira mais geral, como negar que a tortura 1111 , 11\'llria do país basco. Em suas Memórins, Salazar assin ala a
ameaça multiplicaram o número dos p retensos culp:1d11- 11111•tâ ncia capital d a sugestão coletiva devida aos ser mões.
testemunho do jesuíta F. Spee, em sua célebre Cnutio f/'1111/1 11 l )lagüe, perto de Pamplona, foi - diz ele - após as pre-
(1631), é formal a esse respeito: "A tortura enche nossa w, 1 1 t \l"ll'S de um religioso que as pessoas caíram na mais cega
Alemanha de feiticeiras e ali faz surgir urna maldade in11111llt 1l1tlidade. Em out ra parte, foram as precisões contidas no
e n ão apen as na Aleman ha, mas em toda nação que :l llNt lto de graça de 1611 que d esencadearam entre os jovens
nem todos nós confessamos ser feiticeiros, é que niio 111111 nfl ssões sobre os nquelnrres (assembleias noturnas) e sobre
torturados"Y ,110s para o sabá:• Assim, somos novamente remetidos ao
Nossa época - ai de nós! - está mais bem ,1r111:1d11 1111 lth·crso dos teólogos e dos juízes.
outras para operar a crítica das con fissões . Com~:1 101 1111 Uns e outros exprimiram seu medo da subversão com a
pode-se fazer confessar tudo. É verdade que, na 111g l111111 111h1 de um estereótipo havia muito tempo constituído. Já os
dos séculos ,XV I-XVII, ela foi menos utilizada que no 111111, l111ciros cristãos, quando formavam pequenas minorias cujas
nente. Mas.a fome e a privação de sono são também 1011 111 , 11\'ns e comportamentos pareciam negar os valores da civili-
capazes de romper qualquer resistência. Ao q ue se :1cn·111111 ~1111 g reco-romana, for am acusados de conspiração. Seus ini-
tava a defasagem cultural entre juiz e incriminado. ln ti 111icl111h f1111s representaram suas reuniões eucarísticas como or g ias
compreendendo por vezes mal as perguntas que lhe 1•1 111 11•s1uosas e m que se matavam e se comiam crianças e nas
feitas, este tendia a aquiescer às interrogações que lhc e 1,111 llillN se adorava um asno. 50 Depois, tendo o cristianismo che-
d irigidas. No entanto, na Inglaterra por exemplo, p1·~~11 • 1111 no poder, acusações do mesmo tipo foram sucessivam ente
foram por si mesmas encontrar ps juízes para acu,111 11~f'cridas aos montanistas da Frígia (no século IV), aos pau-
Outras confessaram espontaneamente um comércio C!>p ,11111 1,1~ da Armênia (no século VIII), aos bogomilos da Trácia (no

568 569
século xr). No Ocidente, essas difamações, combinadas a 111111 se casasse com ele e que lhe daria os meios de viver emi boa
demonização (sendo os heréticos perseguidos automaticanw11t, situação?
denunciados como adoradores de Satã), atuaram desde 10 1 "RESPOSTA: Sim.
contra piedosos cônegos de Orléans, depois, alternada111('11h "ART. 17: Que ela se casou com o diabo e que ao mesmo
contra as vítimas de Con rad de Marburgo, contra os c;Íl :1111 tempo deitou-se com ele?
contra os valdenses e contra os frnticelli. Quanto mais um g-111p, "RESPOSTA: Não sabe mais se o diabo deitou-se com
dissidente se pretendia austero, mais se acumulavam sohn• 1 li ela dessa vez mas tem memória de ter tratado com ele de
as acusações excessivas (adoração coletiva do diabo no deem 11, outras vezes, e que então ele chegava quando deixava de
de liturgias noturnas, infanticídios, canibalismo, sexualiil111l, persignar-se.
desenfreada). V imos também que os judeus, detestados e H'tlll "ART. 18: Que nome tinha o diabo e como se fazia ch:1-
dos, foram objeto de semelhantes acusações.51 Do mesmo 11111111 mar?
ainda, no século XV I, os conventículos dos huguenotes na h ,111 "RESPOSTA: Belzebu.
ça deram lugar muitas vezes, da parte de seus adversários rt1l11 "ART. 19: Em que locais e lugares foi ela dançar com os
Iicos, às piores interpretações. E m suma, para as autorid:uh•-11, diabos? Nomear os lugares, saber se foi nos Hatrelles, na
herético não podia ser senão um dissidente da mais negra 1•~p1 Goutelle, no Pré du Foux, Soffa e outros locais.
cie. Ora, viram-se feiticeiros e feiticeiras cada vez mais ('111111 " RESPOSTA: Esteve nesses quatro lugares.
heréticos. Foram aplicadas a eles então as acusações estc.:1·1•1ti 1 "ART. 20: Que ela terá de denominar as pessoas que
padas fornecidas por uma tradição milenar. reconheceu nas ditas danças dos Hatrelles e Goutelle, e
Pode-se apreender, graças a duas documentações difc.:11•1111 ~e notou que Jeannette H uart, mulher de Jean Robeau, a
1m1s convergentes, como pessoas do povo chegavam a c.:111111 !(l'ande M:inson Huartsua irmã, Catherine Robert, mulher
sar, ao longo dos interrogatórios, com ou sem tortura, 111d11 1 1htssonJadin eJenneJadin, sua cunhada, ali estavam?
que desejavam seus juízes ou confessores: transporte ao ~,,li, "RESPOSTA: Reconheceu nessas danças na Goutelle
assembleias diabólicas, orgias sexuais etc. Jcannette Huart, mulher de Jean Robeau; Manson Huart
Estamos em fevereiro de 1657 em Sugny, Luxemh111 1111 sua irmã; Catherine Robert, mulher Husson Jadin e Jennc
Certa Pierrete Petit, supostamente feiticeira, é interrog:uh1 1 Jndin, sua cunhada que ali dançavam, e mais duas pessoas
questionada em primeiro lugar sobre malefícios: ela "fez ~l'l'III de Pussemange, de quem não soube os nomes. Foi durante a
vaca de Henry.,Tellier? Soprou sua respiração na boca da 111111111 , 1'iltima estação. Ela não sabe mesmo se as duas últimas eram
Bailly que morreria por causa disso? Quis matar sua vi1l11h, de Pussemange, mas elas se viravam para aquele lado[...].
Isabelle Nicrgny dando-lhe alho-poró e torta? Ela ncg:1. l l111 "ART. 24: Que ela tenha de declarar os outros locais e
dias mais tarde, o interrogatório recomeça com novos esl<,l \lt lugares onde costumam ir dançar à noite e aqueles e aquelas
que reconheceu por terem a isso assistido, em quaisquer lo-
"l...] ART. 15: Que, tendo a dita prisioneira sido c.:~p111 11 1 mis e lugares que sejam?
da pelo falecido Nicolas Pierret seu marido, fugiu p:11 11 1" "RESPOSTA: Não se lembra mais de outra coisa [...].
feno, no paiol? "ART. 33: Ela terá de declarar quais outras pessoas, sc-
"RESPOSTA: Sim. t Jnm homens, mulheres ou crianças, envenenou?
"ART. 16: Onde o diabo foi encontrá-la e lhe di," 1111 "RESPOSTA: Não se lembra mais [...]".

570 571
A propósito de tal documento, impõe-se o comentário 1111 onfessar-se sinceramente; então, é preciso que o confessor os
tinente da sra. Dupont-Bouchat: se a pergunta do juiz é prcd ~,, jucle com eficácia".54 O erro seria fiar-se nas confissões anódi-
a acusada responde por "sim" ou retoma quase textualmcnll' 11 Jlns. Pois "é de experiência que esse gênero de penitentes [os
próprios termos da pergunta. Em compensação, se lhe pcdl1111 llh iceiros] não confessam por si mesmos nenhum dos pec:ados
que acrescente um esclarecimento, ela declara não se leml,1 1ll normes que cometem se o confessor não os ajuda".55
mais de nada. O missionário poderá deduzir de vários indícios a suposta
r:ulpa da pessoa de quem ouve a confissão: se ela habita llllhl
O ajuste preciso das respostas às perguntas, a adesão q u11~1 rtigião onde se fala de feitiçaria e de malefícios; se sabe mal seu
automática da indiciada às acusações lançadas contra clri pt r:ntccismo; se não possui rosário; se usa amuletos supersticio-
los juízes e, por outro lado, sua ausência de memória q111111 os, Contudo, "não sendo essas marcas completamente seguras
do se trata de dar uma resposta mais pessoal, perrn iw111 1,..1, pode-se interrogar todo mundo".56 Por certo, Maunoir rc-
apreender muito concretamente uma das fases capita iNti 1 rrnnenda a discrição, mas ao mesmo tempo recomenda não
elaboração do mito demonológico e sabático. Por ccno 11 lll'sitar em chocar ou desagradar o penitente; pois se só se inter-
aldeões ouviram folar do diabo pelo padre, na igreja. i\ 11'1 rogasse com base em graves suspeitas, "for-se-iam ainda mais
ticeira declara espontaneamente que o diabo vem visiul l 1 t onfissões más do que se fazem". Na prática, o confessor está
quando deixa de persignar-se. Seu demônio tem um 11111111 ,onvencido de que a feitiçaria está por toda parte, de que todo
erudito: Belzebu. Mas, de resto, o essencial de suas rcsptt~ 111111itente é suspeito e de que cada confissão dii a oportunidade
tas lhe é sugerido pelos juízes. 1h• um novo combate entre a Igreja e Satã. Como sair vitorioso
ilt•tnl certame, para maior benefício da vítima do diabo? Tal é
11 problema do missionário que tratará seu parceiro como um
Eis agora outro tipo de documento que esclarece o antcdrn
lnoriminado a quem é preciso arrancar a confissão. O missio-
é o "diretório do confessor" que o padre Maunoir, mission1\1ln
11,irio é o comissário de Deus chamado a instruir centenas de
na Bretanha de 1640 a 1683, redigiu por volta de 1650 e ao q11td
ilossiês de feitiçaria.
deu o título significativo de A monttmha.n Pois acredito u qu,1 11
Para esclarecê- los, existem boas receitas e, em primeiro
"montanha" bretã estava povoada de feiticeiros, fonm1,11cl o u 11111
lul{n~, de modo algum cansar-se de interrogar. Pois tal penit en-
organização ou "cabala", e constituía um lugar privilegiado 11111 11
11• que terá começado a confessar "se interromperá, protestando
os sabás. E le a identificou como uma imensa "sinagoga", N1l
1111u não quer dizer certas coisas. É então que é preciso que o
Bretanha, os processos de feitiçaria foram pouco numero~,,• 1011fessor se reanime em zelo". Ou, ainda, o suposto culpado,
Quando Ma~noir empreendeu sua cruzada, as fogue iras 1111 1111c de início parecia calar-se, dirá "alguma coisa de comum"
França estavam em vias de extinguir-se. Desse modo, o pap11 1111 de "diferente daquilo que se pergunta". Então "é preciso
dos missionários era o de converter, não _o de punir. Daí o 1m •1n r1111ovar interiormente a conjuração" e aprofundar incansavel-
do que o infatigável jesuíta lhes aconselhou para prov()(;a r 11 1111•nte as questões.51
confissões e romper o "encantamento do silêncio" pelo qu:il S11111 Mas como interrogar? Maunoir o explica nas partes n e lll
tenta impedir de falar àqueles que concluíram um pacto ('11111 th• A montanha, indicando ao mesmo tempo o objetivo a ser
ele. "Esse pacto é tão diabólico", escreve MÃmoir em seu ]0111 • l1•11nçado. Pois muitos dos acusados do tribunal da penitên cia,
na/ latin, "que os penitentes não podem tomar a decisfo d, 1111 baixa Bretanha, participaram, segundo o missionário, do

572
"mistério de iniquidade". Concluíram um pacto com Sat1l, 11111 Sntã evidentemente - mais malicioso que os outros? Não o
raram um demônio ungulado, participaram de sabás m:11·11111 hecíeis?" Se a resposta é afirmativa, se seguirá esta outra
por orgias e excessos sexuais. Tais são as confissões :1 Nl'I•, rl(unta: "De que lado era isso?" O confessor pensa, é claro,
obtidas, muitas vezes graças a uma abordagem oblíqua, 1'111 ulguma charneca afastada propícia aos delitos e às assern-
preciso interrogar "progressivamente", "tratar de entru1 , 11 hlli diabólicas. Além disso, que penitente não seria levado a
obstante os obstáculos do demônio, na consciência do Pl'lllt• 11 ponder sim à seguinte interrogação: "lêndes algumas vezes
te" e é bom que este "não se dê conta [de início] do que s1• tfll 11, pensamentos e más representações? [...] Há alguma coisa
perguntar-lhe". Daí a imprecisão voluntária das pergu111 1IH 11 1 vos diz para fazer assim mesmo?". Evocando as "noitadas"
quais abundam palavras veladas tais como "alguém", "nl~11111 1111c camponês bretão delas não participara ou não sonhara
coisa", "um certo" etc. Não se revelaria portanto senão c111 Ili Cl~tnr? - o confessor está igualmente certo de uma resposta
de interrogatório que se tratava do diabo e do sabá . .Mas "1111111 llivn: "Era um banquete onde se comia pão branco, açúcar,
zir docemente" significa também fornecer ao acusado :1p111•• n1•~ [...) Havia muita gente, todos comiam bem, beberam
cias de desculpas: "Parece-vos que estivestes algum:1 \, 111 quanto quiseram e depois dançaram?".
noite em uma grande assembleia? Esse vilão - entend:1-•111 '• 11 1)e aquiescência em aquiescência, o incriminado do confes-
- ali estava como que sentado em glória? [...] Quanto 11 1, 111\ifo envereda à sua revelia pelo sombrio caminho ao fim do
estáveis talvez como que aturdido, fora de vós 111es11111Nt 11 11de súbito descobrirá Satã e o sabá. A retirada lhe é bar-
sabíeis bem o que fazíeis; fazíeis como os outros". A co11 II 11. Pois a avalanche das perguntas lhe tira a possibilidade de
será então facilitada ao confundir vigília e sonho. Se se 111 H ,li r,unr-se. Além disso, as questões formuladas de modo afir-
ta que os penitentes não dizem tudo, "poder-se-,í :111 ,lf 1 tlvo comportam já a resposta. Abalado, condicionado, cer-
suavemente - ainda o método insinuante - abrindo li, 111 ilc todos os lados, ele se encontra diante de alguém que
caminho ao dizer-lhes que os outros o faziam, que em c111 111• 11• s,1ber mais do que ele sobre ele próprio. T rês conselhos
rência e em espírito que aquilo se dava, que estavam a1111 ilhl \'111•gentes de Maunoir esclarecem essa t,itica maduramente
e como que adormecidos [...]". ~ontudo, o pensamc111!1 ftl 111 icln: "Se [o penitente] responde de" maneira brusca que dá
fundo do confessor é este: "[...] E provável que isso Sl'III 11 1 111111 suspeita ao confessor, é preciso tratar de atacá-lo de um
embora eles nem sempre estejam certos disso em ni:-~iio 1h r11 Indo". "Não [lhe] deixeis muito tempo para refletir'' e
embriaguez". E também no "sonho" há "operação do dc111f1111 1 lhe: "Sei mais do que pensais".
e "pecado do .~omem". 1'111 11 o confessor nenhuma dúvida é possível: esse compa-
1

Por outr,p lado, no espírito de Maunoir, assim como 1111 ,1 1111 suspeito que arrastou sua vítima para fora do bom cami-
autores de O martelo das feiticeims, existe um elo estreito 1111 1, 1•~se mestre de cerimônias que presidia banquetes e dan -
faltas sexuais e abandono a Satã. É pela "porta da i111p1111 1111 ,·oração da charneca era Satã. E portanto devia ter pés
que se entra mais facilmente na seita infernal. A p:11·111 ,1 uhulos. Esse é o sinal infalível pelo qual o reconhecemos.
perguntas sobre as "noitadas" bretãs - banquetes l' d1111 ,,~ perguntas insistentes e ardilosas sobre os pés daquele
noturnas - , sobre as "más companhias" e sobre os pernd11 1 ~ , videntemente Lúcifer: "Se eles dizem que não viram os
carne permitem dirigir insensivelmente o interrogat<irio 11111 ~ preciso perguntar-lhes se gostariam de tê-los semelhan-
sabá. "Fostes algumas vezes em vossa juventfde brilll'III t, ~1• respondem que não, é preciso rebater assim: 'Pois bem,
crianças? Elas faziam coisas desonestas? Ali se enco1H rt11 11 1 11, 01110 eram, j,i que os vossos não são- iguais?' [...]".

574 575
Outro interrogatório do mesmo tipo: "Como seus pés er:1111 nlidade complexa.5'' Ao contrário, o neoplatonismo oriundo
feitos? Vistes suas meias e seus sapatos?". Se ele diz que 11 111,, oFlorença, porque destacava a magia "natural" e o conceito de
prossegui: "Então vistes seus pés, como eram eles? Como os clr 111ureza", indicou o caminho da verdadeira ciência.60
um homem ou como de um animal? Dizei-me a verdade! Gm ILsses argumentos e essa visão historiogrMica glob.11 pou-
taríeis de ter pés como aqueles?" 1 uonvenceram os historiadores. De um lado, o próprio I-I. R.
Se o penitente admite enfim esse detalhe - essencial p11111 )cvor-Roper reconhecia que aristotélicos, assim como N i fo,
o homem de Deus, pois o camponês que não conhece as ob, ,1 omponazzi e mais geralmente os "paduanos", se recusarar~1 a
de demonologia sem dúvida não apreende sua importâncin r na feitiçaria uma intervenção demoníaca.61 Do outro, arn-
então tudo fica claro. O confessor teve razão de prosseguir Sl'IH ~ que neoplatônicos tais como Agrippa, Cardan, Paracelso e
descanso seu interrogatório. Ao acusado, doravante esclarccid11 nn Helmont permanecessem céticos em relação à demonolo-
sobre si mesmo, não resta mais do que confessar sua falt 11 • ln oficial, como negar os aspectos irracionais do neoplatonis-
abjurar a seita diabólica para voltar ao espaço tranquilizado!' 1111 10, que foi a corrente cultural dominante da Renascença? Ele
Igreja. O que há de surpreendente se, munidos de tal métod11 rlvilegiou magia natural, astrologia e alquimia, pov?ou o
de investigação, Maunoir e seus companheiros descobrir:1111 nivcrso de "demônios", expressão que não se pretendrn for-
por toda parte na Bretanha feiticeiros e feiticeiras? llNnmente pejorativa. Mas Santo Agostinho ensinara que
lodos os demônios são maus. A partir daí, a difusão do neo-
1l111onismo nos meios eclesiásticos não pôde senão reforçar a
4. UM PERIGO IMINENTE
111wicção de que Satã está por toda parte e que seu poder é
Coloca-se então o seguinte problema - muito intercss:1111 • norme. 61
e fundamental do ponto de vista historiográfico: por que, 1111 Questão mais ampla: o humanismo não desenvolveu a cren-
patamar da cultura dirigente, essa obsessão pela feitiçaria q111 11 dn elite nos malefícios e nas liturgias das feiticeiras? Um
as autoridades do período anterior não tinham conhecido? P111 111lllhor conhecimento dos escritores da Antiguidade e a im-
que - retomo aqui os termos de H. R. Trevor-Roper - m 11wnsa fizeram com que as o~ras de Horácio, Ovídio, Petrô1~0,
séculos da Renascença e das Reformas foram "menos cicn1 (f 1 pnleio se tornassem de leitura corrente. Ora, elas contem
cos que a era das Trevas e da alta Idade Média"?ss ~ huimeras descrições de feiticeiras, de feitiços, e ritos mágicos e
H . R. Trevor-Roper pôs em causa a formação aristotélh 11 vocações do mundo às avessas das bacanais. Essas obras a~ti-
dos homens de•Igreja e de justiça. No século XVI, diz ele, o d1• ~11s, que se tornaram disponíveis para os letrados e foram lidas
ro e os magistrados eram racionalistas. Acreditavam em 11111 muitas vezes através da chave cristã da época, devem ter
universo racional, aristotélico, e da exata similitude das conll~ 111mcntado a obsessão e a credibilidade do mundo demoníaco
sões das feiticeiras eles deduziam a verdade objetiva de .~1111• 10 nível da cultura dirigente.63
afirmações. Os dominicanos, que foram os grandes resp011Ni1 Tratando-se da promoção intelectual do setor cultivado na
veis pela loucura persecutória, eram apaixonados por Aris1611• ol'icidade da Renascença, outra consideração talvez mereça
les por causa de seu mestre de pensamento, Santo Tom:b 1h
lllln,ção, ao menos a título de hipótese: o acúmulo das leituras
Aquino. Construíram um sistema demonológico m,111iqul'ÍNlil dos conhecimentos não alargou o fosso entre cultura erudita
que tinha sua lógica interna, mas que passa\'1 ao lado de 1111111
1111ltura popular? O retorno ao latim clássico, o acesso recles-
576 577
público ao afastar da coletividade um perigo urgente.67 Os
coberto ou ampliado à mitologia, à -iconografia, à filosnllu I"
lics consideraram que tinham uma "missão divina".'"" N a luta
co-romanas não criaram um isolamento crescente dos 11.'11 ,111
em meio a um mundo para o qual a linguagem erudita l'I 11111 11n11n contra a feitiçaria, os homens de I greja forneceram a
rologia, e o poder leigo a arma da repressão. Mas, em um
cessí~el? A partir daí, antes dos triunfos intelectuais <lo 1w1lt,,1
segumte, antes da multiplicação dos colégios que di fu 11d lt 11 mpo de simbiose estreita entre poder c ivil e relig ioso, o
seu saber, a cultura escrita não se sentiu frágil, ao to111111 Ntndo jogou nos dois quadros e empregou uma ling uagem ele
medida do universo rural e oral que a circundava?'··• E111 l 1 Jl'cja. De maneira reveladora, Filipe 11, na grande ordenação
afirmativo - no que acredito - essa tomada de consd~111 1 uhlicada em Bruxelas em 1592, declarou guerra contra o s
teria sido um componente da mentalidade obsidional 11111 , ~r11n,des pecados" desse "miserável tempo", a saber: "Malefícios,
presente ensaio procura trazer à luz. De qualquer ma m;i111 , hiçarias, imposturas, ilusões, prestígios e impiedades". Jnvo-
distância ampliada entre as duas culturas parece ter refor,·111h\ , 1111do ao mesmo tempo os "cânones eclesiásticos" e as "leis
repulsa da elite pelos incompreensíveis comportame111rn, 1h lvis", encarregou das perseguições tanto a justiça leiga como a
uma massa camponesa que se lhe tornava cada vez mais l"II 111 dos bispos ("ordenando portanto os ditos bispos a seus oficiais
nha. Essa alteridade engendrou agressividade e, a esse n:sp1•l111 o promotores que façam todos os deveres a eles possíveis").60
vamos ao encontro das análises de Th. Szasz.•; Existe 111111 l•,111 suma, a I greja e o Estado enfrentaram um inimigo - Satã
necessidade humana de validar a si mesmo como bom e 1101111111 "que se serve dos homens como dos cavalos de carga, e após
e ?~ in~alidar outrem como mau e anormal. Os processos 1h tê•los feito suar de fadiga neste mundo, não tem nada pan
fe1t1çar1a foram uma autodefesa da ética dominante contra 1111111 rl'frescá-los no outro senão um tanque de fogo e de enxofre que
prática coletiva que a julgava em contrário e que serviu de lioth 111lo se extinguirá jamais". 7º
expiatório. Eis-nos então, por uma nova abordagem, diante do medo
E portanto vão pergunt ar se foram antes os juízes leigo, 1111 ~c11tido pela cultura dirigente. Os responsáveis por essa tiveram
a~t~s ?s homens de Igreja os grandes responsáveis pela c1,·:1 ,, ~ 11 duradoura convicção de que a feitiçaria se tornava invasora,
fe1t1ce1ras. Na verdade, foram uns e outros, como defensores d1 de que os malefícios se multiplicavam, de que a seita dos scqua-
um mesmo poder, como detentores de um mesmo saber, crn1111 1,cs do diabo ganhava proporções gigantescas. O poder - civil
usuários de um a mesma linguagem. Não eram eles oriu11do~ l' religioso - encontrava-se sitiado. A esse respeito, os teste-
dos mesmos meios sociais e familiares? Não tinham recebido 11 munhos são legião, e não podemos citá-los todos. Mas é preciso
mesma instrução~ Não eram os dois pilares da cristanda(k:? I• lumbrar alguns deles para melhor reconstit uir a mentalidade
significativo qu~ o jesuíta Dei Rio, teórico eclesiástico ela d,· obsidional daqueles que tinham a missão de defender a socieda-
monologia, tenha sido em primeiro lugar um jurista civil, prn de. Sob diferentes formas, repetiu-se mil vezes, de meados do
curador-geral no Conselho de Brabante.6" J uízes e teólogw,, século XVI a meados do século xva, a afirmação de que feiticei-
que citaram abundantemente uns aos outros, tiveram o sc111 i
ros e feiticeiras são legião. Por ocasião do processo dos "valden-
mento de continuar sem trégua o mesmo combate. M. Hopki11~.
ses" de Arras, os inquisidores declaram que a cristandade está
o "visitador-geral das feiticeiras" de Essex, não parece ter sido
povoada de feiticeiros (e alguns deles são até bispos e cardeais)
motivado por razões especialmente religiosas. Várias de sua•1
e que um terço dos cristãos nominais é de feiticeiros camufla-
vítimas_pertenciam ao clero, e ele teve COflO adversários arcle11
dos.;, A bula Smnmis disidereutes de 1484 e O martelo drtsfeiticci-
tes puntanos. Mas estava convencido de ter prestado um servi
5 79
578
ras, afastando-se dessas generalizações sumárias, precis:1111 1111 Tratando-se da França, um testemunho mais tardio cor-
compensação que o perigo está começando a ganhar amplh 111h hora esse diagnóstico estereotipado. Em seu JournnL latin,
"Recentemente", escreve o papa, "chegou aos nossos 011vl1h, 11igido a partir de 1671, .Maunoir escreveu : "Em trezentos
não sem nos causar grande pesar, que [...) muitas pessoas dl• 1111 1 1dres que quiseram seriamente usar desse método [o "diretó-
e do outro sexo [na Alemanha], esquecidas de sua própria :mi\ ,, 11 dos confessores"], não há um que não reconheça a multi-
ção, e desviando-se da fé católica, entregaram-se aos dl 1111, 1
lkação daqueles que se tornam culpados desse crime horrível
nios íncubos e súcubos [...]." 72 Quanto aos autores de 1111trtl'lt1 ti, feitiçaria] ".;s
feiticeiras, afirmam que a malícia dos homens aumenta e q111 1 A mesma constatação - a feitiçaria ganha terreno - não
Inimigo faz agora "crescer no campo do Senhor uma pcrvl'1 ~111, lxou de aparecer nos textos oficiais eclesiásticos e civis
herética surpreendente".73 1rém com referência à heresia, fonte de todas as perversida~
Essas confissões de medo multiplicaram-se novamcn11 111, 1
D~. Em 1581, o concílio provincial da Normandia constata
momento da grande loucura persecutória entre a mctad1• ,li, 111110 quase todas as heresias caíram na feitiçaria, e sob o
século xvr e a metade do século xvu, sendo certo, além dlN~1, mnínio de Satã; assim, temos ocasião de nos condoer do gue
para os demonólogos, que os participantes dos sabás são sc11 1p1 , mos: neste reino e em vários outros lugares, a magia com
muito numerosos. Para Jean Bodin, se os feiticeiros pulul:11111 • rçn pulular e multiplicar".7''
por punição de Deus contra os homens que nunca blasfc111:11,1111 Do mesmo modo, a ordenação de Fi lipe II para os Países
tanto: "E do mesmo modo que Deus envia as pestes, gucn·11, 1 11ixos, datada de 20 de julho de 1592, relaciona as "desgraças e
fomes por intermédio dos espíritos malignos, assim faz ele <'11111 uminações que este miser.1vel tempo nos traz a cada dia" -
os feiticeiros, e principalmente quando o nome de D eus é hlu 1111i a feitiçaria - com "tantas heresias e falsas doutrinas e
femado, como é agora por toda parte, e com tal impunid:uh 1 1ostasias pululantes por toda parte"!º
licença que as crianças disso fazem ofício"." "Multiplicação", "pululância" dos feiticeiros: tal foi também
Alguns anos mais tarde, N. Rémy refere-se precisamc111 t 1
l111pressão conjunta de eclesiásticos e de magistrados ingleses.
J. Bodin para afirmar que a França, sob Carlos IX, contou "11wl
1'11 o bispo Jewel, que escreve em 1559, durante o reinado
tos milhares de pessoas infectadas" pela lepra demo11ín1 11
t~ri?r - o de .Maria Tudor - , "o número dos mágicos e
Todos aqueles, acrescenta ele, que assistiram a sabás s_on fcs~11111
h1ce1ros tornou-se enorme por toda parte [...]. Essa espécie de
"com uma só voz" que a afluência a eles é "muito grande". U 11111
ntc (...] no espaço dos últimos anos aumentou espantosa-
das acusadas citadas por N. Rémy declara, por exemplo, qul' 11\1
cmte".81 Em 1602, o Lord ChiefJustice Anderson declara: "O
primeira noite em que para ali se dirigiu não contou meno~ d1
ÍN está cheio de feiticeiros. Eles abundam em todas as regiões".
quinhentos participantes.' 5 H. Boguet, grande leitor do lvla/1111• 1

e de J. Bodin, é por sua vez categórico: "Os feiticeiros and11111 1111 uma rápida ação defensiva, "dentro em pouco eles terão
por toda parte aos milhares, multiplicando-se na terra, as~l111 vnstado o país inteiro". Mais tarde, em 1650, o bispo Hall
como as lagartas em nossos jardins. O que é uma vergonha p11111 tilnrece: anteriormente um feiticeiro era uma raridade. "Agora
os magistrados, aos quais cabe o castigo dos crimes e delito~". Noobrem-se centenas deles em um único condado. Se a notí-
E os juízes de Dôle confirmam nos anos 1628-30: "O m:il 11111 não está errada, em uma aldeia do norte de catorze casas
crescendo a cada dia e essa desgraçada corja vai pululando p,11 l'0ntrou-se o mesmo número de membros dessa espécie con-'
todos os lados".n - nnda." No tempo das inquisições de M. Hopkins, um con-

580 5S I
temporâneo assegura que na Inglaterra de sua época se p1 111111 ( :onvém também utilizar "carneiros": "Espiões combina-
ram mais feiticeiros e feiticeiras do que em qualquc1· HIii• - e bem engenhosos que se dizem prisioneiros por caso
período da história desde a criação. molhante ao do feiticeiro acusado, e por esse meio tirar sua
Diante de um perigo tão urgente, a justiça precis:1 set' pi 1,1 nlissão".
ta e severa. Escutemos de preferência J. Bodin. Quando S\' 11 11 Mas sobre quais provas assentar uma acusação de feitiçaria,
de feitiçaria, escreve ele, "é preciso aplicar os cautérios e lt 11 il1.1pcndentemente da confissão voluntária do indiciado? Há
em brasa e cortar [na sociedade] as partes putrefotas".MI 11 11 1 primeiro lugar "a verdade do fato notório": se a feiticeira
primeiro lugar, dada a gravidade do mal, "além dos juízc~ 111111 , l'OITI ela sapos, hóstias, imagens de cera; se se encontra nela
nários, é necessário estabelecer comissários para esse fi 111 1 pt 1 111111 sua casa o pacto demoníaco; "se ela fala com o diabo, e
menos um ou dois em cada governo". Para a busca dos l°l'II h 1 1 dl11ho, ainda que esteja invisível, lhe responde"; se ela "fascina
ros, utilizar-se-á a delação, "costume louvável" da E scót'i11 1 il 11l11sca os olhos, ou encanta com palavras". Mas, na falta des-
Milão, onde caixas de donativos nas igrejas recebem pap\'I~ 111 • l'Vidências, que crédito atribuir aos testemunhos? J. Bodin
que cada um pode indicar o nome de um feiticeiro e "o c:1~0 I" 1111110 aqui uma pesada sentença: "Não é preciso procurar
ele cometido". É preciso também prometer a impunid:1dc tlll , fltl1t le número de testemunhos cm coisas tão detestáveis, e que
menos um alívio de pena ao réu que acusar urn cúmplice. "I l,11,um à noite, ou em cavernas e lugares secretos". Então, três
por esse m eio niio se tiver êxito é preciso tomar as filh11H11, 11111tunhos "irrepreensíveis" bastam "para assentar julgamen-
feiticeiras." Pois frequentemente as mães as instruíram e "h 1, 1 l,.. I até a morte exclusivamente". E, para os casos que m ere-
ram às assembleias". A elas também será prometida a impu1 1hlt 111 11 pena capital, basta para submeter um acusado à tortura,
de. Se pessoas presas e suspeitas de ser feiticeiros ou fcit i1'1•l1 • 1111111 testemunha, homem de bem e irrepreensível, sem qual-
- con1essam
nao r nada, e, preciso
• ccr1aze- as mudar de 10up:1
A ) . •111 11,, 11111 suspeita, cujo depoimento seja acompanhado de razão ou
colocá-las nuas e " mandar raspar-lhes todo o pelo". Pois 1111111, ~untido". Embora o testemunho das mulheres seja menos
usam "drogas de taciturnidade" escondidas no corpo. Priv1I li, 1 lt1lvcl que o dos homens, em matéria de feitiçaria é preciso

delas as t0rnará sem força. Nem sempre é necessário suli1 111111, 11tnr "as pessoas infames de fato e de direito em testemunho
os acusados à tortura, mas é bom impressioná-los com o~ 111 • 1, desde que haja várias concorrendo com indícios: de outro
parativos - assim se fez com Joana d'Arc: 111110 não se deve esperar que algum dia essa impiedade tão
1
1111•~vel seja punida". Mas se devem aceitar os testemunhos
É preciso, antes de submeter à tortura, ter o aspecto 1k pll 11~ 1·{1mplices dos feiticeiros e feiticeiras? Por certo, para os
parar insttumentos em bom número, e cordas em q111111 1110s crimes, eles não constituem prova. Em compensação, "os
tidade e servidores para obrigá-los a confessar, e 111:1111 1l111plices feiticeiros acusando e atestando contra seus cúmpli-
-los algum tempo nesse pavor e nesse enfraqueci1rn.:11tn, 1 - ~1,0 prova suficiente para ser procedida a condenação".
também conveniente, antes de fazer entrar o acusado 111 1111111, que confiança, nessa matéria, atribuir ao rumor públi-
quarto da tortura, fazer alguém gritar um grito apavm111111 1, ' 1(,.?nando se trata de feiticeiros", responde J. Bodin, "o
como se estivesse sendo obrigado a confessar e que se dl11· 11110 comum é quase infalível."
ao acusado que é a tortura que se aplica, abalá-lo por ,,_ • No caso dos acusados que confessam, que valor atribuir
meio e arrancar a verdade. ~11118 confissões quando estas contêm "coisas estranhas"? Al-

582 - 583
guns juízes pensam então que são "fábulas"; "os ouu·o~ 1, 111 tores clássicos, assinou um estudo latino sobre o direito cos-
que tais pessoas desesperadas não procurem se não nw 1•11 1 llltliro da Borgonha e foi também historiador nas horas vagas.
Bodin dá sem dificuldade a solução: se não se rctiVl'N~t 111 111 rc de Lancre, grande erudito, foi nm poe ta de talento.
confissões de ações contra a natureza, não se devcri:1 p111,11 11hccia o italiano e, diz-se, apreciava muito a dança e a vida
sodomitas "que confessam o pecado contra a natureza", ( 111111 1 ~ociedade. Dei Rio foi saudado por seu amigo Juste Lipse
a natureza não significa impossível. Igualmente, vccn1 ~, 1, 1110 " um milagre <la época"; praticava nove línguas e prepa-
quentemente "ações das inteligências" e das "obr:1s dt• 1h 1, 11. nos dezenove anos, uma edição de Sêneca onde não c itava
que vão contra o curso ordinário das coisas. "Niio Sl' th \• 1 1111s de 1100 autoridades. Poderíamos prolongar esse quadro
medir portanto as ações dos espíritos e demônios pelos ,,11 11 homenagens..., surpreendente para nós, exceto se recolocar-
de natureza": seria "argumento sofista e capcioso." D:d 11 1 1111 " ~ essa e lite no clima de medo que foi o seu.
clusão lógica: "Digo então que a confissão dos fe iti<:(•i,11 11
serem transportados [ao sabá] é possível e verdadei r:1, ,,, Ili 11
ain~a, que os feiticeiros, com a ajuda e invocação dos cNpl1 li,
malignos, matam os homens e os animais".
Assim raciocina Jean Bodin no quarto livro de sua 1,,
1
nomrmie quando trata da "inquisição dos feiticeiros". U111 11 11111
mação global resume bem seu pensamento e seu medo: "( )J 11
preciso que o julgamento desse crime tão detestável Sl'jll 11 ,
tado extraordinariamente, e diferentemente dos outros <'1'11 111
E quem pretendesse conservar a ordem de direito e prrn I dt
mentos ordinários, perverteria todo direito humano e divl11 11
Para perigo urgente, procedimento de exceção.

Tais foram, nos séculos da Renascença e das duas R cf\11·11111


religiosas, as obsessões de pessoas que pertenciam i1~ l'lil 1 1
detinham o poder. Pois é preciso dizer novamente, corn 11, li
Trevor-Roper e R.. .Mandrou, 83 que essas personalidades 1nr1111
das de pânico n~o eram qualquer urna. Isso não é vcrdack- 11p1
nas para J. Bodm, autor da célebre Response à Jvf. de Mrt!c.,·1111 11
um dos criadores do direito moderno e da ciência his1(u 11 11
Jaime I tivera corno preceptor o humanista George Buch:111 1111 1
se gabava de conhecer literatura e teologia. N. Rémy part il'ip1 111
da redação do manual dos costumes da Lorena public:1clo l'llf
1596, entregou-se à historiografia e viu-se encarregado por 'tl'II
duque de missões diplomMicas. H . Boguet, familiari zado t 'lllll
584 ... 585
CONCLUSÃO
~ u vigiar os conversos. Assim, as pessoas não se inquietam
HERESIA E ORDEM MORAL 1l'SSivamente com feiticeiras. Em compensação, em muitos
l~cs da Europa ocidental e central em que não hit essas pre o-
1p11ções, perseguem-se ora os heréticos - aqui protestantes e
li t'ntólicos - , ora as feiticeiras. E parece - sem que isso no
lnnto seja uma regra - que, quando se combatem uns,
1. O UNIVERSO DA HERESIA
1111ccem-se um pouco os outros.
Agora chegou o momento de sublinhar a coerê nd 11 d1t Existem inúmeras contraprovas dessas afirmações. Na geo-
medos da eli~e reconstituindo a solidariedade dos clcnll'III• r,,findo medo, tal como aparece num mapa da Europa renas-
que uma análise metódica nos conduziu forçosamen te ;t ~q,11111 111 ista, dois países escapam mais dos temores que, em outra~
uns dos outros. Desde o século XIV - com pestes, pc,11 11111 dl'ICS, torturam os homens do poder: a Itália e a Polônia. E
revoltas, avanço turco, o Grande Cisma somando ;1 Ludo 1 1•d11de que - como mostramos mais acima 1 - ao menos par-
seus efeitos traumatizantes - , uma cultura ele "cristandnd, 0 elo elite italiana ouviu soarem as trombetas do Juízo Fi nal.
sente ameaçada. Essa angústia atinge seu apogeu no 1110 11 11111 jl<Jnínsula foi, também ela, percorrida por pregadores hostis
em que a secessãoy~·otestan~e _provoca uma ruptura :i p,11111 11~ judeus: daí a criação de guetos, até mesmo certas expul-
temente sem ren:ecl10. Os clmgentes da Igreja e do F,,1,i,I 1'11•~. Mas, no total, esse país talvez mais pagão que seus vizi-
enc?ntra_n:-se mais do que nunca diante da urgente ncccsNliln,1, hos (essa era a opinião de Erasmo), ou mais bem controlado
ele 1de_n~1f1car o inim_igo. Evidentemente, é Satã que coi1thi 11'111 [greja, parece ter sido menos atormentado do que outros
com funa seu derradeiro grande combate antes do firn cio 1111111 11 los perigos de então, recuperando-se mais cedo. Em todo
do. Nesse supr_emo ataque, ele utiliza todos os meios e 1od11~ 1 1.110, a Itália foi o país menos antissemita cio Ocidente, aquele
c~~nuflagens. E e~e que faz ~s. turcos avançarem; é ele q 111, 111 11111• menos queimou heréticos e feiticeiras, aquele que em pri-
pua os c_ultos pagaos da Amenca; é ele que habita o cor:,~·11111 1, , 11111iro lugar promulgou um texto oficial moderando as perse-
JUd:us; e e~e ~ue perverte os heréticos; é ele que, graç;1s 1),1 11 11 •ulções contra os pretensos sequazes ele Satã - a instruçã9
taçoes femmmas e a uma sexualidade há muito tempo cornilth 1Ct11tifical Pro fornumdis processibus in causis strigmn (1657).1 E
mela culpada, procura desviar de seus deveres os defenso lfl'- ,11 1ll•lll a prova de que um elo estreito unia esses medos entre si,
or?e'.n; é ele ~~e,yor meio de feiticeiros e sobretudo pol' i,11, 1 1111 melhor, de que os medos eram apenas as diversas manifesta-
med10 de ~em~ei.ras, perturba a vida cotidiana enfci1 i~·nwli \ílt'~ de uma mesma obsessão. O caso da Polônia do "século de
homens, amma1~ e colheitas. Não há por que surpreende, ,0 11111·o'' é, sob muitos aspectos, semelhante. Nesse país tolerante,
esses _ataques se produzem ao mesmo tempo. Soou a ho, ,t • I, 11111• ignora as guerras religiosas e não condena os heréticos, os
o~ens1v~ demoníaca gener~lizada, sendo evidente que O i11 i 11 1111 '" 11clitas gozam de estatuto privilegiado e quase não se perse-
n_ao esta ~pe~a~ nas fronte1rns, mas na praça, e que é pn.:ci,111 " 1 ~110111 as feiticeiras. Mas tudo mudará após 1648. Com as guer-
ameia mais vigilante dentro do que fora . 1,,~e as epidemias, o antijudaísmo e a repressão da feitiçaria se
. Na prática, contudo, foi preciso estabelecer prioricl:idl''• ljll 1lt•~cnvolverão.
variaram segundo os tempos e os lugares. Na Espanha d, 1 'li, 11 ti então o medo que explica a ação persecutória em todas as
lo XVI e do começo do XVII, urge expulsar os judeus e m 111, 111 1fü1Jções, conduzidas pelo poder político-religioso, na mnior
llill'tc dos países da Europa no começo da Idade Moderna. Foi
586
587
preciso em seguida chegar aos totalitarismos de direita t' 1h llHlllte para ir a Roma. Pois - frase reveladora de uma grande
esquerda do século XX para reencontrar - em esca l:1 lu 111 Inquietude - "A Igreja tem muito a perder com a ausência dos
maior! - obsessões comparáveis no escalão dos corpos dlt 1 Inquisidores de suas regiões e nada a ganhar com sua presença
gentes e inquisições de mesmo tipo no nível dos perseguido~ 1111 Roma. Quando o inquisidor se afasta da região que lhe foi
Outrora, esses perseguidos eram chamados de "heré1il•11 t onfiada, as heresias e os erros que combatem ali renascem".'
Para autoridades políticas e religiosas vigorosamente cc111 11ill Esse conselho é retomado pelos autores de O martelo das
zadoras, a diversidade publicamente manifesta - afast:al11 111, riticeiras. Que os inquisidores, escrevem eles, desenco rajem os
relação à norma - pareceu a conduta condenável por cxn•I 11 11polos ao papa, que eles próprios raramente viajem a Ro ma -
eia, a fonte de todas as desordens. Sem dúvida, a hercsi11 1 ,h 11 se assim mesmo precisarem lá ir, "que se arranjem para voltar
certa maneira, triunfou ao menos parcialmente no século \11 u mais rápido possível" - ; senão os heréticos "reerguerão a
com a Reforma Protestante. J\llas é verdade, ao mesmo tc111p1, l11hcça, crescerão em desprezo e em maldade" e "semearão m:ais
que esse século conheceu a extensão máxima na Eu rop11 1h 1111clnciosamente heresias"."
outrora tanto do medo da heresia quanto das medidas tcrn111d 1 Existe uma lógica interna da suspeita. Em uma situação de
contra os culpados de desvio - resultado de uma evolu<,::111 q111 ,~melo de sítio - no caso, a ofensiva demoníaca que duplica sua
se definira e acelerara desde a revelação no final do século ,\ li 1h ~lolência antes dos prazos apocalípticos - , o poder político-
perigo cátaro. À medida que desgraças e inquietações sc 11111111 lllligioso, que se sente frágil, é levado a uma superdramatiza-
plicavam no Ocidente, a obsessão do herético aumentava. ~ílo e multiplica à vontade o número de seus inimigos de dentro
Em consequência, não é de surpreender que os mn11t11d11 ili ele fora. De maneira significativa, o Fortnlicimn fidei intitula-
inquisidores se multiplicaram do século XlV ao XVI c quc UN 1 -1• "A fortaleza da fé: contra os heréticos, os judeus, os maome-
pecialistas da polícia religiosa procederam a uma cxpln1·1t\il1 11110s e os demônios". No espaço católico, a secessão protestante
meticulosa do mundo da heresia. O livro de Nicolau Eymt·1•l1 h, 11110 f:irá senão levar a seu paroxismo o medo da subversão da
exemplar a esse respeito. Aí se encontra, interrompida na d11111111 r~. já muito vivo anteriormente, e a tendência a integrar ao
1376, a lista de todos os heréticos nomeados no direito c:1111 11h, universo da heresia todas as categorias de suspeitos. Constata-
e no direito civil, ou seja, 96 categorias de desviados. 1\IKIIII "', com efeito, que judeus, muçulmanos e idólatras domicilia-
destes são bem conhecidos - gnósticos, arianos, pcl:1µ1111111 d11N em territórios dependentes de um príncipe cristão foram
cátaros. Outros, ao contrário, parecem-nos tirados de u111:1 1••,11 1 111111(1'essivamente assimilados a heréticos e, portanto, eram puní-
nha nomenclatura de zoologia - borboritas, hidrap:1r:1s111111 ~••I~ como tais. O Fortnlicium fidei diz do Talmud, entre outras
tascodrogitas, batracitos, entacristos, apotacitos, sacófórn,, 1111 111l1ms, que contém "múltiplas vaidades, abominações e her e-
Ao que se acrescenta uma enumeração de "heréticos fo n111~11 lht~". C onvertidos pela força das coisas, os israelitas dos países
condenados pelos núncios do papa, na cúria roman:1 011 1111 Ih ricos tornam-se suspeitos de heresia a partir do momento
outras partes, especialmente beguinos e fmtricelli: O q ut• 111 , 111 que parecem voltar à sua antiga crença. Um exemplo entre
lista impressionante deixa adivinhar é a inquietação do rcd111111 1 111ilhares: em 1644, na Bahia, um "cristão-novo" é condenado
do meio ao qual ele pertence. A cristandade entrou em u11 1u l,1 I" h, Inquisição com os seguintes considerandos: "Sendo batiza-
de crise aguda, de modo que não pode mais dispensar inq11 i•dd11 11111 de é obrigado a fazer e a crer em tudo o que faz e ensina a
res - peças mestras de um sistema. Dessa maneira, c~tt•- tllll ll Madre I greja de Roma. Ora, ele faz o contrário, vivendo
• p1111te de nossa santa fé católica".7

-
afastarão o menos possível do campo de sua atividade, csp1•1 h1I

588 589
Na Espanha, a outra minoria inquietante, a dos 11111çuli111 trnis. Assinalamo-lo mais acima:" o vice-rei Toledo, chegando
nos, também foi conduzida à força ao cristianismo por 1111•11111, to Peru em 1570, faz os dignit,irios eclesi.ísticos de Cuzco deci-
decisões governamentais. Mas o batismo não teve o efeito 1••111 direm que os feiticeiros indígenas batizados, e depois tornado
rado: os corações dos mouros permaneceram empcdcl'II I• 11 apóstatas, seriam considerados heréticos e punidos com a mor-
Desde então, tornaram-se os piores heréticos. Exprime, 1•1111 te. A política de "extirpação" da idolatria conduzida na América
outros, o licenciado em teologia Pedro Aznar Cardona c111 11111, pelas autoridades espanholas no final do século xvr e no come-
obra de 1612, justificando sua expulsão: ço do XVll não é, a partir daí, senão uma variante da praticada
nu Europa em relação aos heréticos tradicionais. O aparelho
Eles eram o veneno e a sarna e as ervas daninhas no 1•11111111 r1.1pressivo das visitações de "extirpação" reproduz o ela In-
da Espanha, os zorrilhos devoradores, as serpentes, os t••o 111 t\Uisição, que, além-Atlântico, não tem autoridade sobre os
piões, os sapos, as aranhas, as víboras venenosas c ujo 111111 Indígenas, e uma prisão especial de Lima recebe os batizados
dida cruel feria e matava muita gente. E les eram os 1-111vlí11 uc se revelam pagãos impenitentes. Enfim, do mesmo modo
salteadores e as aves de rapina que vivem de causar :1 111111 t, que alguns na Espanha temernm um conluio entre muçulmanos
Eram os lobos entre as ovelhas, os zangões na col1111•l11 1 1 1 protestantes, na América temeu-se uma aliança entre anglo-
corvos entre as pombas, os cães na Igreja, os cigano, 111111 hulandeses e idólatras indígenas. Daí a necessidade de con-
os israelitas e, finalmente, os heréticos entre os catcíli1•11 ~~rter estes últimos. Heresia e idolatria não eram dois peões
lllcrcambiáveis no jogo de Satã? Nos comentários que F.
Assim, para os dirigentes da Espanha do "século ck WII,, )t111:1 acrescenta em 1578 ao Manual dos inquisidores de Nicolau
falsos convertidos e protestantes devem ser colocados no 1111 l )'lllerich, é significativo ver caracterizados confusamente
mo plano: inimigos igualmente temíveis, já que recus:1111 11111 omo heréticos aqueles que se fazem circuncidar ou passam
formar-se à fé e aos ritos oficiais. No decorrer do auto d1• 11 il ,nrn o Islã, "aqueles que sacrificam aos ídolos [...], aqueles que
1560 em Múrcia, os 48 penitenciados distribuem-se :1ss1111
r1•11uentam os heréticos, os judeus e os sarracenos" etc.'2
por judaísmo, doze por maometanismo, cinco por lutcr11 11 l~111,
Nessa lista figuram igualmente "os que adoram ou vene-
mais sete por poligamia e dois por blasfêmias.'' Fr:1111'iNt 11 ,1
Quevedo, em seu Sueno del Juicio Final (1608), coloc:1 !\·'11111,,
r1111 os diabos".u Perigosos por excelência, os feiticeiros e as
no inferno em companhia de Judas e do "maldito l.111 11111
ft1h lcciras deviam ser também logicamente categorizados como
)u11•6ticos: foram-no desde 1326 bela bula Super illitts specula,
Alguns católico~ espanhóis particularmente vigilantes 11•111111
11111• declara a Inquisição competente a respeito deles." Meio
mesmo um co!1luio entre protestantismo e religião i\lil111h ,
Efetivamente, alguns cristãos-novos de origem muç11li11111111 ~111110 mais tarde, Nicolau Eymerich explicitou como e por que
convertem à Reforma por ódio à Inquisição: prova d:1 solhht11 •- mágicos caem na heresia, mesmo quando não invocam Satã
dade entre todos os advers,frios da ortodoxia. tw11, os demônios:
O comportamento da Igreja e dos Estados ibéricos 1•1111, 1
ção aos idólatras da América recém-integrados ao esp:1\'0 t II I • l lá [também] heresia - e consequentemente necessidade
foi semelhante ao adotado face aos judeus e aos lllll\' lll t1 hllll ele intervenção do inquisidor - , em todos esses sortilégios
Eram batizados apressadamente. Depois, perseguiam-Nt' r 11111 t1ue se utilizam comumente para reencontrar coisas desapa-
recidas e que comportam a utilização de candeias bentas ou

590 -
heréticos aqueles que pareciam conservar a fé de sc11~ 11111
591
água benta, ou a recitação de versículos da Escritura, 011 d1, U m poder, ao mesmo tempo religioso e c ivil, cada vez ma is
Cre~o, ou do pa'. -1~osso etc. Isso decorre do fato de (flll', 1 nexionista e centnilizador, que, de man eira crescente, teme os
s<; ~tarasse de ad1v111hação pura e simples, n ão seria ,wi•c•• csvios; uma atmosfera de fim do mundo, conjugnda ali:ís à
sano recorrer ao sagrado.' 5
crteza de que D eus se vinga por meio de punições coletivas
ns traições de seu povo - tais são os elementos que explicam,
Assim, todo sagrado niio ofi cia l é considerado demu 11 11111 , 10 essencial, a obsessão da heresia q ue ator mentou a e lite oci-
e tudo o que ~ demoníaco é herético, não sendo O cont ril, lt, lcntal no começo da Idade Moderna. T odo adversário se ror-
meno_s verdadeiro: toda heresia e todo herético são demoní:trn
nva um herético e todo herético um agente do Anticristo o u
Os_ s~cul~s XIV-XVI_ ~ive_ram so b essas temíveis equaçt>cs, \
próprio Anticristo. Veja-se o caso de Savonarola: em sua bul a
ass1m1~aça~ entre fe1t1çana e heresia tornara-se, como lcrnlu 11
mos, t~o evidente no espírito dos inq uisidores que no Langucd, 11
de excomunhão de 13 de maio de 1497, Alexandre VI decla-
rou-o "suspeito de heresia, por causa de sua insubmissão". 11 E
na Sm~a, em Artois, acusados de feitiçaria foram t]ualifirndti
depois da mo rte do profeta de F lorença, Marcílio F icino,
de '.'albigenses", de "begui1~~s"'. de "valdenses" e de ''hercw~•
enfurecendo-se contra ele, não temeu escrever: "[...] Não se
Q_u'.mt~ a O 111nnelo dns fe1t1ce11'/1s, reforçou a identifica~·:·10 d 1
fe~ t1çana com? l~er~sia insistindo em três pontos: a) é hcr<-, li 11 trnta de um simples mo rtal, trata-se de um demônio, dos mais
lll'(lilosos e nem mesmo de um demôn io único, mas de um
nao :re~ 1~a ex1stencia do~ ~eiti:eiros;"' b) nestes últimos lcn, 111 ,
d? _histona humana, a fc1t1çarrn constinii uma "perversiio lu h11ndo diabólico [...]. Esse Anticristo possuía uma astúcia
ret1ca surpree1_1dente"; ela se desencadeia com uma violênt j11 hwompa rável para simular a virtude e dissimular o vício com
17
~ova; c) depms do pecado de Ltícifer, o pecado das feilÍt'l'llol uma constância per feita [...)".n
, ultrapassa todos os outros", sendo a heresia por excelência ,~111 Assim, todo " membro apodrecido", para retomar uma outra
e, "a. pos t ~sia · - " d a 1é:
· " e " tra1çao e razão pela qual as fciticeir:1 s' , 11 ,•~pressão empregada por Alexandre VI con t ra Savonarola, via-
11 1
mais p erigosas e culpadas que os judeus e os pagãos.'s \C acusado de desvio doutrinal, isto é, de heresia. Essa passa-

_Doravan~e, ao menos no continente, t ribunais eclesi:ís1i111 ~1J111, ou melhor, essa escalada na acusação permit ia todas as
e leigos pumr_ã~ a feitiçaria antes de tudo por causa dl' ,4111 ,ondenações. Que Wyclif, Huss e L utero tenham sido declara-
aspecto ~e tra1çao em relação a D eus. D e maneira revel:id111 11 1l11s heréticos, compreende-se, no rigor dos termos, uma vez
J ean Bo?m, _e?1 ~ua Demonomnnie, detalh,rndo os q uinze êri 1111 1111c se revelava uma distância entre suas posições doutrinais e
dos qu_a1s '.e1t1ce1ros e feiticeiras se tornam culpados, en,11111 ,1,1 11~ ela Ig reja oficial. Mais revelador, em compensação, é o fato
em
"
pn me1ro lugar as nove "impiedades" que eles eOllll'lt'III 1lt• que o Concílio de Constância tenha condenado Pedro de
contra _Deus,;. s ~? ~onr~" e, apenas em segunda posição, :i, .,1,1 l,111rn (Bento xm). Como era preciso encontrar uma just ificati-
cate~onas de 111Juri_as feitas, aos homens".''' Ora, 0 maior Jll'I 'H" \,1 teórica para essa condenação, o concílio arguiu que ele e ra
possivel para ~ sociedade e deixar em liberdade aquele~ 11111 ,l,scordante da fé", já que "destruía a unidade da santa Igreja
com~t~m o cnme de "lesa-majestade divina". Pois é sol 11 1, 11 1,11ólica".1i D a mesma m aneira, em 1512 o v Concílio de Latrão
colettvtd?de que D eus se vinga dos atentados à sua honr:1. 1)111 1111nlificou os ex-cardeais (o!im cardiunles) com sede em Pisa de
a necessidade de punir os c ulpados. "Os J·uízes" decl· 1 , •~máticos e heré t icos" e, além disso, de "filhos da danação". 1•
B d.111 "d . . ' .11,1
.º , evem vmgar com todo rigor [o c rime de fc it iç:1r111 1 11
fun de fazer cessar a ira de D eus."1º
592
- 591
. . de toda mentalidade obsidional: o traid-or
2. O PAROXISMO DE UM MEDO llltto const1tut1vo , . • , I d
e dentro é pior que o ini m ig? d~ fora. E preciso ma- ~. _e se~
A revolta protestante provocou naturalmente na 1111, 1, ' d .. eliminá-lo priontanamente e nenhu_m c,1st1go e
católica um aumento de aversão pela heresia, considcrncb o 11111 1rnn enJo, . - mais t't·de
. le Assim se exp11carao ,, , em
supremo. Um livro é revelador a esse respeito. Trata " 11 "~tante d uro para e · d 1792 Robe rt
111ro contexto, os massacres de setembro : .' . .
Cnrnlogns hncreticornm, publicado cm 1522 pelo domi1111·11111 . f" . "Judeus e muçulman os sao os 1n11111gos
l' li armm a 1rma. _ . hcré-
Bernard de Luxembourg.15 Essa surpreendente enciclop1ill, lidarados do cristianismo; eles nao procuram , c?'.no ~ .
dedicada ao arcebispo de Colônia, compara em primeiro 1111111 ·11s introduzir seus erros sob um disfarce evangeltco. els ma 1_s
os heréticos a animais impuros e enganadores, cspcci:111111•111, ll , separam ·1 ver -
lmples fiéis podem disce rnir os pontos que os , . ' 1
aos lobos,26 depois a árvores de outono, tornadas estéreis prn 1p1 l111lc cristã. Em compensação, só homens de doutn n:l poc e m
cortadas das raízes da caridade.27 A cidade dos heréticos, di, 1 I
U •ernir a heresia''.3" •
ainda, é uma cidade "inútil", e as pedras com que foi con~11 11hl, ~e Um cântico tcheco por volta de 1600 expnme-se n o mesmo
cai rão no abismo.18 É preciso fugir do herético que niio ohnh
ceu a duas repr imendas sucessivas, pois ele é "subvl'I ~h ,,
(subverS11s). 19 ão se deve comunicar nem negociar co111 111 "Abri portanto os olhos, cristãos de to~as as regiões, e_:o-
nem lhe dar asilo. 30 É com razão que a Igreja o perscg111• 1 bretudo, vós tchecos, morávios e habitantes_ das reg1oe:
pune, e é preciso ar rancar "esse vício pestífero" a fim dl· 11111 vizinhas Eis que um maldoso hóspede surgm em ~ossa
rorizar os outros.11 D eus não permite que os heréticos '' " ,1111 •. sua crueldade é bem conhecida; ele faz pall'ar a
paragen S , ,
em razão da gravidade de seu crime. Aqueles que se co11w~11 cólera sobre as almas.
prender devem ser mortos tanto e mais que os "incendi;í1 i11~ 1 "A h eresia multiplicou-se. Ela perecera no en tanto com
os "falsários". 31 Após esse preâmbulo, nosso inquisidor cla,~llh , os antigos h eresiarcas, e jamais se vira semelhante fato no
metodicamente os adversários da fé p or o rdem alfabét 11•11 1
passado [...1. . - e . rras e
Nicolau Eymerich, como vimos, enumerava 96 catcg<H'III~ ti, "Ela infesta a multidão dos cnstaos; '.ºmenta gue
adversários. Com Bernard de Luxcmbourg, contempor:1111•11 ,1 combates e com esse fim combina armadilhas e redes_ f...].,
Lutero, chega-se a uma soma espantosa d e 432 hercsi:1n·,1~ 1111 "D efender-vos contra os turcos, e~1purr a1~ esses mere-
categorias de heréticos passados ou presentes. Entre ele'>. 111' 11 e a do pa1's eis o que é muito louvavel [...].
ciu Ios para 1or, , , d
ram em boa posição, ao lado de Judas, "primeiro dos hcrl·t 11 11 "Disso é preciso dar graças aos podero~o,s deste mun o.
osfrnticc/li, os flagelantes, os hussitas e naturalmente os 1111111 Mas como fazem pouco caso da santa IgreJa_- .' .
nos, depois tamb~m os "mágicos", os judeus, os marr:inm 1 1 "Eles aturam nesse país os p iores assassmos, execrave1s
muçulmanosY Mas isso não é tudo, pois essas 432 c:ltl')\11111 .
facc1osos da le'i• Quem poderia enumerá-los?_ [...) .
são, por sua vez, seguidas de 26 heresias não etiquctndas (,11/il111 " Quando os pagãos matam o corp~, nao arrumam cm
de hneresibus i1111omi11ntis).H O livro termina - a urg-t·111 111 1 nada a alma. Os h eréticos matam os dois. - h ·a
impõe - com vinte páginas (um oitavo da o bra) cons:1g1111h1 • " Que se ponha fim a seus progressos. Que nao ªJ·
Lutero e a seus discípulos, e menos de duas páginas t r:11 11111 li, n,a,·s
' que uma cristandade. , · f ' l»l .,
defesa contra o turco (e ainda assim para combater :i C\\t' 11 "Que se honre a Deus em uma urnca e.
peito o derrotismo de Lutero).H Reencontra-se aqui c"t' 1 ll

594
- 595
No Ocidente, o medo da heresia e dos heréticos :111111, 1
11 rão (1215) tomara a seguinte decisão, válida apenas, é verda-
então seu paroxismo no século XVI e no começo do \\ li h.1, para as igrejas orientais, mas ponto de partida possível de
Contagem reveladora: nos autos do Concílio de Trento, 11 h11 11111 liberalização mais ampla:
mula "que seja anátema", excomunhão lançada contra quem q11
que rejeite uma ou outra das afirmações doutrinais el:iht11 ,11I Já que, em inúmeras regiões, no interior de uma mesma c i-
pelos padres da assembleia, volta 126 vezes (contra apenas d1, 1 dade e de uma mesma diocese estão misturados povos de
to por ocasião do Vaticano J e zero quando do Vaticano 11), línguas diferentes que têm a mesma fé, mas hábitos e ritos
A instituição da censura preventiva um pouco c111 111,I diversos, recomendamos especialmente que os pontífices
parte18 e a compilação dos índices de livros proibidos i11~1t dessas dioceses e cidades escolham homens capazes que,
vem-se no mesmo contexto de inquietação diante da c~<•iil111I para essas pessoas, celebrarão os o~ício~ divinos e ~dminis-
da heresia e de sua crescente difusão pela imprensa.J:í 1:111 l I I trarão os sacramentos segundo a d1vers1dade dos ntos e das
e 1550, a universidade de Louvain publicara catálogos dt· Ili 1 línguas, instruindo-as pela palavra e pelo exemplo:º
proibidos. Depois Roma mandou imprimir sucessiv.111w111 1 ,
de Paulo IV (1559) e de Pio IV (1564), sendo criada c111 1\ 1 1nversamente, o Concílio de T r ento considerou desde então
congregação do índex. A Espanha, sempre ciosa de s1111 l111I 111olcráveis as diversidades litúrgicas que sempre haviam exis-
pendência, faz questão de ter seus próprios índices, s1·11~h 1 hl11 a nteriormente e que encontravam sua justificação no cos-
mente diferentes dos de Roma. Essas listas negras válid1111 1111 1111\C. A utilização do livro impresso facilitou nesse domínio a
todo o país apareceram a partir de 1559 e foram refor~·:11lii. 1, 111 11 contra os usos locais e a ação da Santa Sé para definir a
1583. A inflação, de um índice ao outro, do número d:1•1 11111 hurgia por via autoritária. Nesse contexto é que é preciso com-
rejeitadas é para nós reveladora de um medo obscssi1H111I 1 1111mder a principal inovação de Trento em m atéria sacrame1:-
heresia que se ia agravando. t1I, n saber, a obrigação, sob pena de invalidade, de não contrair
1
11111•imônio senão em presença de um padre.4
A lista de 1583 [escreve J.-M. de Bujanda] co11té111 ljll, No plano das mentalidades, esses quadros rígidos e as clas-
cinco vezes m ais títulos [do q ue a de 1559]. As ohr:1~~111111 ll ki1ções doutrinais acompanhadas de ameaças de anátemas
condenadas aumentam de trezentas para 1800 [...I; 1P, 11111 111•csentavam sem dúvida uma tranquili~ação: A. Dai~et evoca
alemãs e fla1;nengas sobem de onze para 220; os voh1111 11~111111ente o "fantasma" materno que agia no 111consc1ente dos
em francês,que eram em número de dois pass:1111 p111 ,1 l h•~insticos como resposta ao seu medo.41 As definições teoló-
os livros italianos, que não tinham seção na list:1 d1• \ 1il1I h ,IN e as regulamentações religiosas multiplicadas _no_ começo
(1559), são em número de 71; seis títulos portug111•111~ ti hlnde .Nioderna foram como muralhas que delimitaram e
acrescentados aos doze já existentes; e, en fim , :ui 111\1 11111.1gcram um espaço ameaçado. No interior, graças à obe~iên-
170 livros castelhanos, contam-se 207.19 11, 1 Lll"ll a paz tranquilizante de uma igreja maternal, ch~rn ele
111~1wicórdia e piedade, que fornecia seguramente os meios de
A nova rigidez doutrinal foi acompanhada na lg-rt·j111 1111,h l\'ilç~o. No exterior, ao contrário - e agora se sabia por onde
pela rejeição, igualmente nova, da diversidade. A r1:~p1•lt11 ,1 -~1wn a fronteira - reinavam a desordem satânica, as trevas,

-
ritos e línguas da missa e dos sacramentos o I V Crn11 rl1t1
'
11111onfessável, e estendia-se o imenso país da perdição. Assim,
597
os homens de I . .
. . grep tiveram constan J II ruptura com a comunhão hierárquica. Além disso, ela
assimilar, em partictil· . , temente a tc11cl1'1111
11eret1ca", . ,H as custas da f, · · •
1111 circulação as noções subversivas de "livre exa me" e ele
e "perversão d s e1t1ceiras, "c/1•1li it\
. os costumes" F .. d . 1tl6cio universal" que podiam fazer de cacl,1 c ristiio o juiz
o pior era possível para - d º . ora o rec11110 1l) 1
. ' , nao rzer certo E . . 1111 fé. A lógica dessas tomadas de posição deveria conduzir
protegida por barricad d . mtroduz11· ,111 t 11
11ias, a novidade . ' as, oravante fe h d· . 111 desvalor ização da heresia e a um abrandamento d:1 a titu-
e a d. .d d c a a por fon t'II 111,
- ivers1 a e teoló · , . 111 Estado diante das diversidades doutrinais. Efetiv:imc ncc,
senao perigoso. J á que tod d - - . g1ca ou ettca niio )Hoh'
cod i.f.icad a, a verdade e. a a outnna fora d e f'rnu . fa I' 11 111 111cloxos do protestantismo - Franck, Schwcnckfcld,
·
c1 os ensmamentos proclan d ª segurança
D ,
residi d , •
am na oc, l 11t I li ' ll(d, Castellion, para só citar alguns nomes - levam até aí
. · ' 1ª os. a1 ess·1 s •
d o o ficrnl a Lutero p ·- ' uprema ad11101• 1' lll'imeiras intuições luteranas. Quanto a Lutero, que no
"D or ocasiao d·i d · -
epõe ali tua consciência . - M' i_eta e1e ' "-'or111N ( 1 11'1,lO de sua carreira encontra-se numa desconfort:ível posi-
• , , irmao 1 artmh , . 1 il1.lfensiva, mesmo mantendo intacta a noção de heresia,
pengo e a submissão à aut 'd d o, a un1c:1 eul~11
Por outro J d on .ª e estabelecida":" f1111dc de início a tolerância em relação aos heréticos.
ª , era essencrnl pa
0
homens do poder levar o h , . ra os Ju1zes e para lt11h,
· ,
"Se queres extirpar a heresia", escrevia ele em 1523, "deves
.a con fºissao - Justificava
. s ereticos. a con f,essar seu cr11. 111 1 1111· eomo fazer para arrancá-la antes de tudo do coração e
d f,'" o processo intentad " 11111 levar os homens a desviar-se dela por um movimento
a e e, ao mesmo tempo . d . o aos m:deli,111 ,
. , 1econ uzia os . 1 d 1l11ndo da vontade. Pela força não terás êxito, mas tu a r efor-
esp_a ço fechado que havi·1111 d . d , ' cu pa os :io Nt•II,
f,ossem . , eixa o por a b 11ls 1...). Pois se, pela força, se queimassem todos os judeus e
condenados e . d rrom ame1110, 1111,
queima os _ _ • 'd'
preço da eternidade
-

' · importante en
episo J.O secund1f1111 hcréticos, por esse meio não se convenceria nem se conver-
ao porto que não é at· 'd ' que sua a1m:1 l'l 'I UI 1111 1lu um só deles."44
mgi o pehs te1 d Mas, após as violências de Th . .Muntzer e a guerra dos
portanto o arrependi· d • . npesta es. A co11 f 1~~111,
d . mento, evolvi 111poneses e enquanto príncipes e cidades aderem cm grande
esvrndos, consolidando a I . am _paz e segura li• 11 "
muro protetor i\lI ' , gre1a e fe c han d o a brecha 11''11 1 1l111cro à Reforma, eis que Lutero muda de tom, em virtude de
. . as, se os apelos ao d' , t
ouvidos pelos culpados - arrepen imcmo n:111 t I li 11111 outra lógica contrária à primeira: o protestantismo é
- , se pregaçao f - IOl'llO à Escritura, expulsão das "novidades" - tanto as
nao conseguiam recup , con issao ou cxor1·l~111
. 1 erar aqueles que e , ~ _.,pc rstições" romanas quanto o "sacramentarismo" de
cam m ios desviados e t- f, ram atn11dos 11111 ,1 '
. - , n ao o ogo se t -. 1,w(nglio. Inversamente, "a maldade do mundo" se manifesta
gumz, a "última oportuz1'd d ,, d 1· ?rnava o ultn1111111 1, /
. . .d . J a e a gre1a O - •11 mesmo tempo pela "idolatria e pela heresia".4; O Estado não
mquisi ores conduzia l . . negotmw fit/,•I ,h
"·a1tenados"
· , og1camente
voluntár. , •a essa e 1i.m 111 . :1~·:10
· d1 11111cisa tolerar essas aberrações satânicas. O Reformador consi-
- ios, graças ·1 qu l 1h1rn então necessária a intervenção da autoridade civil para
encontrava ao mesmo ten1p ~f- da o espaço rclig111~11
o pun 1ca o. 1111,lll' cessar as "abominações" tais como a missa. Sob ameaça, o
1,tpftulo da colegiada de Wittemberg deve interrompe r, no

Nas considerações precedente . Nntnl de 1524, a celebração da missa. Dois anos mais tarde,
domínio católico antes d . s, situamo-nos no inte, 1111 1ft l ,11tcro escreve ao novo eleitor da Saxônia,João: "Em um Hug.1 r,
f, , . . e epo1s da Refor p 111to deve haver senão uma única espécie de pregação". E m 1527,
ez tnuntar em parte d·i E . ma rotesta111 1•, j, ~1 ,
' uropa a discordância ,1 "~. 1;:, 111l• pede ao eleitor que organize "visitas eclesiásticas" cm Sl:ll
598
~ 11 ~~1111

-
território. D oravante, nos Estados luteranos, o Estado <'t 1111, Scrvet, Calvino publica uma assustadora Declnmçr7o pnr"
lará a organ ização da Igreja, suprimirá os desvios rcli1•ltt , 1111w a verdadeim fé,
em que se lê:
zelará pela pregação do Evangelho. O s "espiritualistas 1111, 1h
alemães", decepcionados por Lutero, encontram-se c1111111 Nossos m isericordiosos, que encontram tão grande prazer
condições de censurá-lo, assim como aos outros Reforn1111l111 cm deixar as heresias impunes[...] desejariam, de medo que
da época, por ter substituído o papado romano por "11111 p1t1', 1 11 Igreja de D eus seja difamada por demasiado ~-igor, que
novo", por "um mapa de papel" (a Bíblia).46 Para Schwc1h 11 11 se desse voga a todos os erros [...]. Ora, D eus nao quer de
Lutero "nos fez sair do Egito e nos conduziu no deserto 1111 , modo algum que se poupem mesmo as ~idades, nen; ~s po-
do mar Ver melho, mas nos deixou lá, errando :10 :11•11-11 vos até demolir as muralhas a extermmar a memona dos
esforçando-se em nos persuadir de que já estávamos 1111 l 1, hnbitantes, e frustar (sic] tudo em sinal da maior detestação,
Prometida".41 U m pouco mais tarde, vVeigel crit ica o "p11111 1 de medo que a infecção se estenda mais longe.;,
Wittemberg" por ter organizado uma nova escrnvid:111 1 1
perseguir os inspirados:H Para T. de Beze, que, ainda em 1554, polemiza contra
A execução em G enebra do antitrinitário Michcl /111 ~tcllion a propósito de Servet, a heresia é "o maio~ e rna!s
(1553) e as polêmicas que opõem então alguns espírito, 11111• lt,,1j11nte" dos crimes, e é uma crueldade extrema deixar agi-
tas como Castellion aos defensores da ortodoxia rcl'o11111 1 Ili os "lobos" que querem "devorar todo o rebanho de Jesus
(Calvino, T h. de Beze etc.) dão a medida do medo q111 t , rlKto". São "monstros disfarçados de homens". D esde então se
experime ntam diante da heresia. 1pc1c a ação do braço secular:
Castellion escrevera, em 1551, em seu prefácio d:1 11 ,11h11
latina da Bíblia: "Oh! em que tempo estamos nós? [...I S1•1111, :\ tirania é um mal menor do que ter uma licença tal que cada
sanguinários e assassinos pelo zelo que temos em Cristo q111 uma faça à sua fantasia, e mais vale ter um tirano, até bem
fim de que o sangue dos outros não fosse derramado, dl'1 1,1111 1,ruel, do que absolutamente não ter príncipe nenhum, ou ter
o seu. Por zelo de C risto, arrancaremos o joio, Cristo q111•1 11 Ili um sob o qual seja permitido a cada um fazer tudo o que_quer
de que o trigo n ão fosse arrancado, ordenou que o jrno li 1... j. Aqueles que não que rem absolutamente qu~ o magistra-
deixado até a colheita".49 do se imiscua nos assuntos da religião, e principalmente na
No Tratado dos heréticos, Castellion relativiz:1 :1 ,,;,\'1 \11 punição dos heréticos, desprezam a Palavra de D eus expr~ssa
11
heresia: "Vemos que quase não há nenhuma dentre 1rnl11 1...J e maquinam uma ruína e destruição extrema da IgreJa.
seitas (que hoje -são incontáveis) que não tenha as ou1 rn~ 11111
heréticas: de modo que, se nesta cidade ou região és t:011~1th, Assim, nos séculos xv1 e xvn, o poder reformado reage
do verdadeiro fiel, na próxima serás considerado heré1 i1 d ' ,1111: do desvio doutrinal exatamente como o poder católico.
Em suma, "consideramos heréticos todos aqueli.:., q111 11 111 outro veem nele o perigo supremo que é ~reciso destru!r
l'
estão de acordo conosco em nossa opinião". A essas ckrl11111~ ln !,(ládio. R. Bellarmin ensina a esse respe1~0, como tena
laxistas que atomizam e subjetivizam a heresia, cor rl'~p11111I , ,lido fozê- lo Calvino: "Essa liberdade de crer e mortal para a
as afirmações peremptórias de Calvino e de Th. de 111-11 , 'I 11 llli ela destrói sua unidade feita da unidade da fé. Os prín-
mantêm, ao contrário, seu estatuto objetivo e conL:1111 111111 1 \ niio devem portanto de maneira nenhuma, se que rem ser

Estado para fazê-lo respeitado. Alguns meses após :1 l·\l 1111 t• 110 seu dever, conceder essa liberdade".53
600 - 601
As diferenças teológicas de um lado e do outro dn 111111 pela doutrinação de sentido único das massas popu lares.
confessional dissimularam por muito tempo a similitwlt .!1 Pode-se situar a cesura cronológ ica entre essas duas épocas
comportamentos. E por trás dessa similitude, camul lil\•11 , l durante a segunda metade do século XVI, e m significativa
medo único: o medo experimentado por um poder poltt lt 1 , coincidência com o agravamento das diferenças sociais sob
gioso que temia de maneira crescente todas as diw1 ~ltl 11 o impulso da alta dos preços.;"
Inútil, a partir daí, insistir longamente nas persegui~·ot•~ 1111, f
pelos católicos (e pelos anabatistas) na maior parte dn~ 1111 Integro aqui essa explicação - sem contudo adot.í-hl intei-
protestantes: foram simétricas àquelas que atingira 111 o~ 11 1, ,11 mcnte - porque ela sublinha, como eu mesmo faço, a nova e
dos nas r egiões que permaneceram fiéis a Roma. U111 11 ~ltt l•~ccnte vontade de acumulação que tomou as elites. Trnto u-
15~4 - aiAnd~ de Th. de Bêze - ilustra essa teoria e l'v,11 I" 11 • então de uma "normalização", uma vez que se procurou, pela
da i_n~olerancia que foram tão comuns na época: o prí11d p1 1I r\'11, fazer entrar no quadro religioso e moral de uma cristan-
red1g1r e manter bons editos contra aqueles que só por 11ft 1., l dL• austera populações muito frequentemente refradrias a
ção desejarão resistir ao estabelecimento da verdack:i n1 11111 1 111 ordem rigorosa.

co_mo vemos em nosso tempo ter sido praticado n:t 111111 li•, Reveladora dessa "normalização" vigilante é a luta contra
Dmamarca, Suécia, Escócia, uma boa parte da Alc1111111h11 hlnsfêmias. Esse é um assunto em processo de estudos; gue
Suíça, contra o papado, por anabatistas e outros heré1irn~• 1111i tratarei apenas de passagem para marcar sua importância
111 um contexto histórico preciso. Múltiplos documentos -
1111s de remição, editos, processos diante dos tribunais leigos
3. UMA CIVILIZAÇÃO DA BLASFÊMIA , l'lcsiásticos, manuais de confessores, obras de casuístas etc.
provam q ue os europeus do começo da Idade Moderna pra-
Essa luta sem trégua contra inimigos clarnmc111c 1111 111 ,1 111•1nvam e blasfemavam enormemente. Além disso, os con-
cados não pode ser separada da que foi conduzida :10 1111 11 111porâneos - lembremo-nos de um texto de J. Bo<lin citado
tempo contra todo um conjunto de comportamento~ 1 OII 1 1 1111•riormente58 - tiveram a impressão de que esse pecado se
rados repreensíveis, suspeitos ou inquietantes. As :1111111 ltl 111 1111nva cada vez mais frequente. Em um tempo em que a ins-
civis e religiosas decidiram disciplinar uma sociedade 1e•11lh, 1,ilidade psíquica era g rande, os indivíduos passavam constan-
q~~ lhes pareceu viver à margem das normas prod:1111;1tl11 1111.mte em sua vida social de um extremo ao outro e da violên-
vJVJdo lhes parecia demasiadamente diferente do p1 1•,,1 111 11 ,10 arrependimento.s9 D aí sua prontidão, nos momentos de
E ntre os dois, e~xistia um fosso que importava prec11rlw1 l'llcll'n, em renegar D eus, a V irgem e os santos. J\llas se pode
C. Ginzbú'rg, seguindo M. Bakhtin, considera que ,11111 1 •111lié111 perguntar, contrariamente à opinião expressa conjun-
Rabelais e Brueghel a circulação entre cultura e rudi1;1 l'1 11h11, 111111nte, com dois séculos de distância, por M ontesquieu,
d~s massas operou-se nos dois sentidos. Daí em di:lllll', p111 I h111inga e S. Bon net,60 se pragas e blasfêmias não exprimiam
zm-se um corte que pôs fim a fecundas trocas subtc rrn1 11 11 11111 cristianização superfic ia l, uma simpatia pela heresia, até
11 ~1110 uma adesão secreta ao ateísmo. Tal era, em todo caso, o
O período seguinte [escreve ele] foi ao contrário 111111 1 1 I 111 lmcnto dos autores da grande ordenação inglesa de 1648
seja por uma distinção continuamente mais rígida l'llt t 1 , ,,1 1111 rn as blasfêmias. Em seu espírito, tratava-se de atingir e de

-
tum das classes dominantes e cultura artesanal e r111 11 1, unir pessoas que negavam a imortalidade da alm,1, duvidavam

602 (í(JJ
das Escrituras, reJe1tavam Cristo e o Espírito San1 0, 1 ,1 ,•cssos por blasfêmias só durante o século XVI, com seiscen-
recusavam a existência de Deus.''' Foram todos esses p1•111 i•ondenações. Nlas, evidentemente, muitos blasfemado1:es
conjugados que as autoridades da Europa da época pe rn 1l11, 11 11 n am citados na justiça, na falta de testemunhos denuncia-
por trás das palavras injuriosas para a religião, suscet ívl'ii, 11h, l r~.61
disso de constituir um grave indício de feitiçaria: elas si!(11llh Sobre a gravidade que a blasfêmia revestia aos olhos das
vam um desvio contra o qual a Igreja e o Estado devi:1111 111111 pl'ias autoridades civis, o caso veneziano é revelad01:. Em 29
proteger a sociedade, ainda que não fosse senão em r1111111 1 ill(OStO de 1500, cartas recebida_s em Vene~a anunciam q u~
possível vingança da ira de Deus. 1urcos ocuparam Nlodon. Imediatamente e adotada um~ le i
Assim, uma lei de janeiro de 1416 promulgada em J>ni 1111 1 1,wnndo as penas contra os blasfemadores e os sodonuta~.
por João l assegura que: "Desde algum tempo certas pi•~,.,, 11 11gosto de 1537, Corfu é sitiada; em setembro, Malvasia
por seus pecados, caíram ou caem no gravíssimo pcc111 hI oi 1,I um má situação. Em 20 de dezembro, o Conselho dos Dez
heresia, dizendo, crendo e afirmando coisas que viio 1111111 hi uma magistratura especial, G/i esecutori contro la_ bestem-
Nosso S_e nhor Deus e a santa madre Igreja sem temer oi, 111 11, l,1, Os culpados desse crime passarão doravante citante de
des castigos eternos e temporais previstos pelo direito 1·111111w 1~ tribunais: o da Igreja (Inquisição) e o do E stado. E m
e por nossas leis". O nze anos mais tarde, o rei volta à nc('l•~,111 vorciro de 1695, um terremoto abala Veneza. E m 10 de
de de uma estrita punição dos blasfemadores, pois eles 1111 111 11 11 ço, publica-se um novo edito ~01:tra ?s blasfemador:s.
sobre o mundo "fomes", "pestes" e "tremores de terra"."' _i,n, para os dirigentes, a blasfêmia e mais que uma reaçao
Na França, são Luís não deixou de punir os blas fc11 1111l1111 ,•,'Ilera. Desafio a Deus, ela atrai sua justa vingança sobre a
Sua legislação foi constantemente retomada mais t:inlt•, 11, 11,,tividade. Em Veneza, assim como em Módena, os proces-
p_arti_c ular s~b Luís XIV (1666), mas com uma insistênci:1 11111111 • contra os blasfemadores parecem ter sido sobretudo
f1cat1va no final do século XV e no decorrer do XVI c111 11 t , 11111urosos entre meados do século >..'V T e meados do XVII, ou
assinados sucessivamente por Carlos vn (1460), C:11-lo,1 \ 111 j.1, no momento da mais viva ação ~a R~forma Católica~ E m
(1490), Luís XU (1510) e Francisco I (1524, 1535 e 1544). ( :1111 , rnluna, que conservou a esse respeito nca docu~1~n_:açao, a
deradas como atentatórias à majestade divina, as palavn1•, ltl,1 11uh1 se situa por volta de 1570. Antes, a Inqms1çao local
fematórias foram punidas - na França e em outras p111·11 111,•o se ocupa de blasfêmias. Depois, e por um século, estas
com multas cada vez mais pesadas à medida que se rc rnív111 111 111 11bcçam as peças de acusação. _
as reincidências e com penas corporais (podendo chcg-:11· 1, 1111 Os delitos assim como as leis e os aparelhos de repressao
gua cortada) quando o culpado perseverava em seus co1111 111111 1111111crados a~irna, foram-nos fornecidos sobretudo pelos paí-
mentas sacrílegos.M • i:ntólicos. Mas a blasfêmia grassou igualmente em país
Casuístas e confessores dos séculos XVI-XVII consid1•1·111 ,111 r111cstante, onde foi perseguida com o mesmo vigor. Calvino
com unanimidade que os dois grandes pecados mais rn•qw 11 1111>11 fazer passar em Genebra uma legislação contra os bl~s-
temente cometidos por seus contemporâneos ernm a 111 \111 ht 11111do res e os "libertinos". Mas precisou compor com as res1s-
a blasfêmia (sendo o roubo certamente muito difundido, 1111 1111l11s locais."' Na Alemanha, os pastores e teólogos lutem nos
menos grave). Esse era bem o caso na Espanha de C:1 ri, 1~ \ 11 ~óculo XVI tiveram o sentimento - paralelo ao sentido na
de Filipe II. O catálogo - incompleto - do trih11 11nl il r,111çn por J. Bodin - de que jamais se blasfemara tanto como
Inquisição de Toledo, informa-nos B. Benassar, reconhl'i ,, t, t 1

604 - 605
J. Andrae escrevia em 1568: Assim, em grande parte da Europa do século XVI, observa-
s inquietos tiveram a impressão de ser confrontados com uma
Um vício execrável d h .d .
implantou- ' ~sc~n ec1 o antigamente a l'N~I ' ' lllzação da blasfêmia e de que feiticeiros e blasfemadores h~vi-
' se entre nos· e a 61 li' · •
Senhor é ultrajado d· .. ' . as er~ua p~1a qual o 11111111 ~c multiplicado ao mesmo tempo: indícios conjuntos de uma
Nllla ofensiva satânica e perigos solidários que importava com-
dionda blasfêmia rei;~t:~e1ra '.na1s od10s~ ~--l- i,: I'~ t 1
velhos J·ovens ate' . todas as cond1çocs: 111111111, lLlr sem trégua. Daí a insistência dos homens de Igreja qmrnto à
' ' crianças [mesma refl - ·essidade de uma dura "polícia da religião". A exp ressão é de
em]. Bodin] que mal podem f I d exa?, co1110 \ 111,
que jamais se . .. a ar, to os a tem nos hilih lvino, que escreveu no final de A i11stituiçíio da religião cristã:
vn.i no tempo de nossos pais.r.r,
O policiamento não diz respeito apenas a que os homens
<:onstatação idêntica, trinta anos mai d,
G . S1gwart, professor em Tübingeni . s tar e, da 1111 1'11 ,h 1 comam, bebam e sejam apoiados em sua v ida (...], mas (tam-
bém] a que a idolatria, as blasfêmias contra o nome de D eus
e sua verdade, e outros escândalos da religião não tomem
Outrora não se ouvia blasfem· - . . 6
M·1s [ ] h . r , . ar senao a mais vil sold111h , publicamente a dianteira e sejam semeados entre o povo". "
' ··· OJe Lesse v1c10] tornou . -
na apenas em tal ou tal cor or- -:e tao comum que 111111 1
de ou país mas q . . ~- açao, tal ca~a, tal :1ldl·i11, t hl Assim se explica especialmente que a Igreja e o Estado
só os hom~ns ue uase m~a Ili.?
mundo mtciro. J:í 0 1111 nham por toda parte e indefinidamente repetido (mas, aparen-
apenas os vell{os ~~:gueJa~n, sao as mulheres; niio Mltt 11111 ,1111cnte, com muito pouco sucesso) a proibição dos jogos de azar.
atroa e., c .· 1 ' ~ os Jovens; o senhor e o scl'vltlt11 lllll dúvida foi em parte por causa das perdas de dinheiro que
P " 1iac a; as crianças pe .
suas orações praguejam tão be1quenas que amda n:111 ~1!11l ,, dtílcs podiam resultar para pessoas sem fortuna e em parte tam-
mais velhos nessa arte execráve;\.~.J~:1por vezes supt•111111' ttllll em razão das rixas que provocavam . Mas, sobretudo, eles
d11v11m ocasião a blasfêmias - nisso residia seu maior perigo.
1 111
culu~ :;~:::i,n~::::;~:~~t~~: scrição eclesiá~tic:1, /\ . Alu
da Alemanha: ç ' com uma punição ~CXl'11111I 11 4. UM PROJETO DE SOCIEDADE
Jamais a "polícia cristã" se fez tão pesada na E uropa quanto
~ novo p~cado de hoje que, desde o c , uma vez estabilizadas as duas Reformas - Protestante e Cató-
amda nes;ta hora na- , :-- I b. omeço <lo. 111 li Ili h' •
, 'o e t.10 1a 1tual no. t , lica - , sendo claro, no entanto, que o grande processo de
tãos como o é entre , b sou ros patM"I t II
nos, em merece q D _ "nc,rmalização" evocado aqui já se pusera progressivamente c m
nos c·1stigue de . ue eus nus v1•1lt1 1
' uma maneira terrível· d, · l 111nrcha no decor rer de urna longa pré-reforma. Consideremos
Deus transformará um dia a AI 'sim uv1t a lll:11'111111 t
11Kora a luta contra as festas "pagãs". E las constituíram outro
fervente onde sera-o la d ' eman a em uma l':ild1 li•
' ' •, nça os todos - · · Mrande capítulo da ação tenaz e multiforme para cristianizar :1
que a autoridade não terá re rimid; os un_µios, e ,~~º p111
vida cotidiana por via autorit,fria e operar de maneira radic:1 1
insulto feito a Deus pela bl pcA . nem vmgado o 1('111\1 I
as1em1a.''" 11 necessária separação - necessária aos olhos da elite no poder
- entre sagrado e profano. Essa ação, assim como a nçfo con
606
- r,/)7
tra a blasfêmia, foi inseparável do combate conduzido ao 111,·, e algumas vezes os espancamentos e os 11,-.,,~1111111111 1
mo tempo contra a feitiçaria e todos os inimigos declarados n11 espetáculos são comumente acompanhados d1 1 111111111 d 1
encobertos do nome cristão. Satã introduzira-se nos divert i populaça que ali se diverte e do grande ndd11 il11- 11111111
rnentos, pervertera-os, paganizara-os, servindo-se deles :1k111 mentos de guerra, do som dos tambores e d:" 1111111111 11 li
disso para confundir as hierarquias e perturbar a ordem sociul que perturba grandemente os divinos ofício~ l' <t~ 1111111111
Uma denúncia se impunha. As festas dos Loucos e do Inocc11t1 E m seguida as pessoas se põ:m a bebe_r e :' dev1wi,hln11 1111 11
desapareceram progressivamente no século XVI, não subsis11n as bebedeiras, as palavras suJaS, as folias 1mp11d1•1111 li 1 1h
do mais além senão como vestígios arcaicos. Pois aqueles cp11 sonesrns, as seduções e os incentivos às obras d:i 1°111111 111111
nelas preenchiam funções de paródia " profanavam os s:1c111 uma infinidade de sem elhantes desordens que d t·~rn, 111111 11
mentas e as dig nidades eclesiásticas [e] zombavam das coi,11 nome e a religião de Jesus Cristo.
sacramentais" - assim se exprimia já cm 1444 a Faculdfülc d, [Então é dada ordem ao clero de exortar " pod1•111~,,
Teologia de Paris!º A Festa das Tochas, no primeiro domi111111 mente" as populações] representando-lhes o gnrndc pc1·111h 1
da quaresma, foi proibida um pouco em toda parte. Pois, ded11 com os erros e os danos que fazem a seus corpos e ,11111,
rav,1 uma adição de 1683 às Co11stit11itio11s du diocese d'/111111·, 1, almas pela o bservância desse costm"'.1e pernicioso que ai nd,n
essas "superstições [...] não são senão um resto vergonhoso d11 se prende às superstições do pagan1sm~; que ele lhes c11s1
paganismo". 11 O cnle11di111nggio foi igualmente proibido 1111 ne a passar esse dia em exercícios de piedade, a. faz_cr prc
Lombardia de são Carlos Borromeu em nome da "decênci:1'' 1 ces e procissões, a cantar hinos e salmos [...], ao mves,de se
porque ali se confundiam o sagrado e o profano. ocuparem com essas bobagens de que fazem um e.:'petnculo,
em plantar essas árvores nas ruas com uma efusao de fol s:1
Fomos informados [escreveu o austero arcebispo] de 11111 alegria e de clamores profanos.n
mau costume que se observa em toda a província de 1\1 i lili 1
no prime iro dia do mês de maio, em que se ce lebra a fe~t.1 1h Documento exemplar e de g rande alcance na épocn: aí s_e
são Tiago e são Filipe, apóstolos, de cortar árvores rec,·111 encontram com efeito, alternadamente condenados, os vesu -
-floridas e levá-las como em espetáculo pelas cidades e 1wlm gios do "paganismo", a contaminação do _sagr~do por u•~'. P'.:º~
campos a fim de plantá-las nas ruas e diante das casas m11111 fono invasor, os ruídos, os clamores e as hbert111agens pi op11:1s
uma fo rma de brincadeira e de triunfo pueril. ~ dos divertimentos báquicos das multidões não controladas, e se
Achamos que a coisa era de consequência e ele 1:d 1111 •xnlta a festa cristã recolhida, o rde nada, meditativa e acomp:1-
c " - " " .. 1
turcza que se devia olhá-la como uma fonte envcncn:111,1 1 nhnda de oração que terá rompido com as cor rupço,~s , va 1l ~~
um vivciro 'C!e vários males. Pois há pessoas ali que, p:11.111 1 eles", "bobagens" e "folias" em que se comp~a~ a popubça •
esse dive rtimento ridículo, negligenciam assistir :10 ~:11 1I Ampliemos a afirmação: entre o domingo _rehgm_so tal como.º
fício da missa em dia de festa e no mais das vezes t·1111 ,1111 ~onhou são C arlos Borromeu e o dos puntanos mgleses h:1v1:1
:frvores nos estabelecimentos de outrem, princip:1l11w11t, muito mais semelhanças que diferenças. .
nas terras ou nos bosques da Igreja, o que não fozc111 ~, Compreende-se melhor, a partir daí, que as fogueiras ele
não com furto e mesmo com violência e por injurios.1, 1 tit ~ffo J oão tenham sido objeto da hostilidade ou ao me nos . da
de fato. Daí ocorrer grande número de pecados crn1111 ., ~uspeita comum das autoridades c~tólicas e p~~t~scantc~--Cal_-
querelas, as disputas, as censuras, os ódios, as ini111 i111d1 vino as suprimiu em Genebra, considerando-as nao apen,ts 11111.1

608
- (i(/'J
supers~içiio, _r~as uma. pura feitiçaria" introduzida pelo dhtl" A despaganização e a clerica lização das festas cristãs signi-
Em pais catohco, os bispos que não ousaram proibir :is 10 11111 1 nl'llram ainda - e entre out ras coisas - purificação dos cantos
ras de siio João esforçaram-se - como Bossuet em M t•i11 1 dr Natal, interdição de dançar nas igrejas e nos cemitérios e de
em fazê-las estreitametne controladas pelos eclesi.isticu- ,1 Introduzir animais nos santuários, supressão dos festins de
lugar,H pois assim seriam despaganizadas. tonfrarias, especialmente por ocasião dos reinados (eleição do
A suspeita das Igrejas se dirigiu igualmente para as :111-1 11 11 rl1i ou da rainha de uma confraria)'~etc. Os documentos a esse
ras. _No est~do atual da pesquisa, consta que, na Fr:111\ il 11 rc~peito são inúmeros. Alguns falarão por todos os outros.
Antigo Re?1me (aí se acrescentando Avignon), ao mc1111- t "Os padres advertirão cuidadosamente", ordena são Fran-
e~tatutos smodais redigidos entre 1321 e 1743 em 28 dirn 1 , L•isco de Sales em 1617, "que não se cantem nas igrejas certos
d1fer~ntes condena~am as algazarras. As interdições 1111 11 , 1111tais repletos de palavras indignas, profanas e contrárias à
r:pet1das com particular insistência na segunda mct:tdi il piedade e reverência devida aos locais e coisas sagradas, como
secul~ x:71 e no xvn_ (23 em 42).75 A Igreja, autorizando a~ ~•'li 1111 111mbém que não se acrescentem aos salmos que se cantam na
das nupctas, entendia que estas não fossem contestadas prn 111 11 ,olcnidade da natividade de Nosso Senhor certas palavras rid í-
opin!ão hostil a ~ertos segundos casamentos marcados por K' ,111 l ulas e cheias de blasfêmia.";9
de diferença de idade entre os esposos. Com efeito, po1• 1,•1111 , Sobre o mesmo assunto (e também a propósito dos batis-
das algazarras, alguns preferiam viver em concubinaw a ~, 1 1 mos), eis as queixas, seguidas de proibições, do arcebispo de Avi-
sar. Mas, cada ve~ m_ais, outros motivos de interdiçiio su 11,11, 11111 1111011 en 1669: "[...] Nas festas de Natal e nos batismos, co-
Entendeu-se suprnnir essa ocasião de "alarido, tumulw l', 11hh metem-se vários escândalos e irreverências na dita igreja [de
escandalosos". "Insolências", "indecências", desordc11~ li·~, 11 , Pujant], a saber, que nas festas de Natal se vai cantar impiedo-
tornaram-se como tais repreensíveis aos olhos das auw1·11 1uih ~11mente canções de Natal que dão motivo ao mundo de escan-
religiosas, católicas ou protestantes.'" Desde então, esse t·nq11 1 dnlizar-se [...); nos batismos, toca-se tambor até a porta da
dramento da festa valeu tanto para o primeiro casamento 1 11111, 1greja".8º
p_ara os demais. Como prova, estes trechos de estatutos si111ul 11 O controle das confrarias tornou-se por toda parte vigi-
citados por A. Burguiere: lnnte. "Os ditos padres", exigem as constituições sinodais de
Rouen em 1618, "garantirão que os estatutos daquelas [as con-
Os curas não tolerarão oboés, violinos ou outros i111,Ít 11 trarias] que tenham sido aprovadas sejam observados sem
mentos semelhantes na igreja, por ocasião dos cas:11 111 , 11111 permitir que ali se cometa qualquer abuso, nem tolerando que
(Beauvais, 1699}. ,ili se façam danças ou banquetes às custas das confrarias, nem
. Queremos-que [o casamento) seja despojado c111 1111 , que os confrades realizem seu conselho e tratem de seus assun-
diocese dessa pompa e desse aparato profano que o~ p11 ,11 tos na igreja."81 Os estatutos sinodais de Avranches em 1600
11
costum_avam nele empregar: e, com esse fim, prcuh1 1111 , decretam:
conduzir ?s futur~s esposos à igreja ao som de violino•,,~, 11
~ara o noivado, seJa para o casamento, e mesmo de to1 111 11 Proibimos expressamente aos irmãos das confrarias e a to-
smos ~os noiv~d?s, como também tudo o que se di:111111 11, das as outras pessoas de realizar seu conselho ou tratar de
boas-vmdas, g1randolas e outros aparatos que lc:1111,111 11 1 11 seus assuntos dentro da igreja. Queremos que todo o servi-
espírito do paganismo [Laon, 1696].71 ço que eles forem fazer pelas igrejas não seja feito ou COl1(lu-
6/0
- li /1
zido por outro padre que não o cura da paróquia, ou 0111 ro Igreja tridentina tentou opor as "Quar enta H o ras"), no entan-
comissionado por ele ou de seu consentimento. Proibi1110~ to, a partir do século xvr poder eclesiástico e po der civil apo ia-
os banquetes e bebedeiras que ali se fizeram no passado I', ram-se mutuamente para melhor vigiar a cond uta relig iosa e
em suma, tudo o que ali se faz que não convém em 11:ul11 moral das populações. Na França, por exemplo, orde nações
à caridade de Deus e do próximo, e excomungamos todo~ severas e repetidas, seguindo as de Orléans (1560) e de Blois
aqueles que por uma obstinação pretendam continuar l'III (1579), fazem do rei mais do que nunca o proteror da Ig reja. A
tais abusos. Tudo o que restar das coletas e contribui~·<i1•1, realeza se empenha inteiramente em "estende r a mão" ?t reli-
dos irmãos após o serviço divino feito, que seja emprcg:u lo gião. L egisla sobre a interdição das atividades ser vis e mecâ.ni-
em oração para os mortos, nos reparos e ornamentos d11 c:is aos domingos e festas obrigatór ias, fazendo transferir para
igreja e outras obras de piedade.81 o dia seguinte as feiras e os mercados. Zela pelo fechame nto
cios cabar és durante os ofícios; para que nesse momento não se
Um arcebispo de Avignon, na segunda metade do sénil11 jogue boliche ou pela; para que ajuntame ntos indiscretos n ão
xvu, inspecionando sua d iocese, ali constata um uso desol:idrn se sigam à missa na praça da igreja ou no cemitério. Combate
na segunda-feira de Pentecostes, confrarias, sob o pretexto dt as danças públicas, os jogos de azar, os banquetes de confra-
levar pão à igreja, nela penetravam "em grupo e em bando ('11111 rias, as festas dos padroe iros demasiadamente ruidosas, as
tambores, bandeiras, estandartes e outros instrumentos", !'ht• devoções suspeitas. Vigia as "recreações perigosas" e censura
gando a licença "até essa irreverência de fazer e ntrar os :i s 110" 1 o teatro. Apoia os bispos que procuram diminuir os dias feria-
outros animais na dita igreja".8J A interdição seguiu-se a 1111 dos - ocasiões de escândalos e de bebedeiras. Impõe uma
constatação. Um questionário estabelecido em 1687 por ,1 . N ordem às procissões. E, finalmente, a partir de Luís XIV, sub-
Colbert, coadjutor do arcebispo de Rouen, resume e si111holl111 mete à autorização as peregrinações ao estrangeiro, pretextos
essa vontade clerical de doravante enquadrar severamc1111• 11 de vagabundagem, de desordens, da fuga para fora do reino da
ritos festivos: mão de obra e do dinheiro. Por certo, entre o prescrito e o
vivido uma margem subsistiu e resistências populares não dei-
Não se passa nada na noite de Natal, na véspera dos 111rn 111 xaram de contrariar as intenções do poder. No entanto, essa
nem em outros tempos que seja indiscreto? [art. l(MI, ~1111 perfeita concordância entre as duas legislações - civil e ecle-
se entra [nas igrejas] com cães de caça, pássaros e 111 11 111 ~iástica - e a conjunção de uma centralização agressiva co m o
de fogo? [art. 105]. Não se fazem jogos no cemité rio? 11111 dinamismo conquistador das Reformas re ligiosas criaram em
106]. Ali não seº'fazem danças? [art. 112]. torno das populações uma r ede cerrada de proibições, muito
N ão se fazem festins de confrari.1s nos dias dos 11:11 l1111 1 111nis rigorosa do que no passado.
ros? [art. 114]. Na celebração dos casamentos, não M' p11~ • Dois textos sign ificativos, retidos entre mil, mais uma vez
nada de contrário ao respeito devido a esse s:1cr:1 11w11111 110s ajudarão a fazer reviver a nova atmosfera de "ordem moral"
[art. 134]. As segundas núpcias não são desonradas pn, 111 11ue se abateu sobre a Europa nos séculos XVI e x v r1. E is em
muitos, gritos e arruaças r idículas? [art. 135]." 111•imeiro lugar em que termos o calvinista L. Daneau fa la cl:i
ch1nça. Através de sua diatribe, adivinha-se o sentimento de
Embora a legislação civil tenha continuado a tol1·1·111 t 111 lodo o corpo pastoral refor mado e a ideia global que fo z da
vários países as fogueiras de são J oão e o carnaval (:111 q1111I ruligião:

612 - 6 /3
Ela [a dança] incita à volúpia, o que é incompatível 111111 chamados de porteiros - ostinrii - da igreja em razão do
religião, pois todos os ramos da vocação cristã niio 1111 1 ofício que lhes impomos. _ _
Iam senão de abstinência, de mortificação e as da11~·1111 1 ,,, Com efeito nos dias de festa eles observamo e anornrao
tam todos esses laços e dão liberdade à carne para e~ 11111 1 os nomes dos ~adres e paroquianos ausentes dos ofícios,
de tais temores e cuidados e para abrir-lhe uma plc1111 11 investigarão por que e se eles não estão a passar o tempo
de prazeres para ali expandir-se em todas as suas :1s11~ 1 1 110 cabaré, nos jogos ou em outras ocupações secu!arcs. No
Entre tantas faltas que se encontram juntas na d11 11\ 1 interior da igreja, zelarão para que cada um _e~tep no seu
cúmulo do mal é que os homens ali estão misturado~ 1t'1 1111, lugar e para que - atitude dep~av~da e am?1c1osa - pes-
lheres com inconvenientes tão grandes e tão certo~ 11 ~, soas do povo não ocupem as primeira~ cadetr:s ao lado do
munhos de devassidão e cobiças que não se pode ter ch11 lol altar diante dos padres, atrás dos quais convem que todos
de que a dança seja a própria invenção de Satã [...J."' se sentem, na posição própria à sua qualidade e condição. A
esse respeito, os ostiarii terão autoridade para fazer cAess'.1 r, na
O segundo documento é extraído dos estatutos sinrnh11 ,1 igreja, as habituais disputas e de~acordos de p~ecedenc1a.
diocese de Evreux promulgados em 1576. Tratando, 11111 Além disso, observarão a atitude dos assistentes, como
outras, da disciplina na ig reja, eles exigem que cessem as d,•~111 se comportam, do menor ao maior, se têm a cabe_ç~ desco-
dens que ali são habituais, que os fiéis não ocupem no l'tt111, berta, se ajoelham no momento oportuno, se participam do
lugares reservados ao clero e sobretudo que três pessoa, 1 lj , ofício com os ouvidos e com a alma, se se empenham na
lantes controlem permanentemente o comportamento dm 11 1 oração. Com reverência e modéstia, os os~i~rii farão obser-
tentes no decorrer dos ofícios: vações aos contraventores e os reconduz~~ªº ~o seu ~eve~.
E não permitirão sem boa razão que os fieis saiam da 1gre1a
Devendo a igreja ser a casa de Deus e da oração e prn 111111 antes do fim da liturgia. . .
um lugar sagrado, não podemos deixar de ficar tor.11 111 1 Para uma melhor eficácia de tal encargo, dec1d1mos que
o bispo quem fala] pela irreverência do povo que ali 11111 por revezamento um dos três se ma1~terá no ~oro'. um outro
se comporta diferentemente de qualquer lugar cm q111 fora do coro e o terceiro na extremidade da 1gre1a a fim de
trate de negócios. Sabendo que exortações e advcl'l1111, 1, que possam ver e inspecionar todos os assistentes [...].""
têm pouco poder em relação ao povo se não há nlg 11~•1111 111
pessoa para repreender e continuamente combater ~1111 1111 À leitura desses estatutos sinodais, como não evocar, do
pu<lência, de'Cidimos o que se segue: o cura ou se u 1•11t1l1 h nutro lado da fronteira confessional, as célebres Ordeunções ec/e-
com o acordo dos guardas da igreja, padres da p:1111q11I 1 ,Msticns redigidas por Calvino em 1541 para o u~o ~e Ge,~1 e_b~a?
nobres, juízes se os há, escolherá três pessoas, u11rn 11111 ( )s doze decanos do consistório aí recebem a m1ssao de v1g1_ar
os padres, a segunda na confraria da Caridade - sr 1,1•111 11 vida de cada um, de admoestar amavelmente aqueles que (v1s-
uma - ou na população, a terceira igualmente entre ,,., Ili 1 ~lltn] falhar e levar vida desordenada e, onde fosse o cas~, fa~er
Eles serão de boa reputação e homens de idade de 111,111111 rlllato à companhia (...] encarregada de fazer as cor reçoes fra-
a que os outros respeitem seus cabelos brancos e d1•11 1 1 lllrnais". Os decanos serão assistidos por dizeuiers encarreg_ados
aceitar a escolha que deles se terá feito em nome dn N111111 precisamente de vigiar seus concid_adã?s no~ diferentes bairr~:~
obediência a Deus, ao bispo e ao seu próprio cur:1. ~, 1 1 iln cidade, "decidido (...] que os d1ze111ers vao de casa cm cas.,

6 14 - 61 5
ordenar que venham ao sermão"."7 Alguns anos antes, o l11w1 11 ficas, a alta dos preços, a pauperização salarial, o desempr,e go
no Urbano Rhegius, feroz adversário dos anabatistas, escrcvt•1,1 crescente, a monopolização das terras, a passage m dos homens
a Filipe de Hesse: "Cabe aos pregadores incitar as pcsso1111 11 de guerra acumulam nas cidades ou lançam nas estradas con-
prédica por meio de boas palavras e das exortações; mas cnht ,1 tingentes continuamente mais densos de "vagabundos agressi-
autoridade civil empregar a força [se necessário], para cond111lt vos, desprovidos de terra e de salário", em desocupação sazonal
as pessoas à prédica ou desviá-las do erro [...]".88 ou permanente. Eles são, desde então, acusados de todos os pe-
Nunca antes o compelle intrare fora aplicado na Europa rn 1 cados capitais. Considerados ociosos, eis-los acusados de trans-
dental e central com tanto vigor e sobretudo com tanto 111é1rnl,1 portar consigo a peste e a heresia. Por certo, tem-se o cuidado
como na época das duas Reformas religiosas. V igilância, csq1111 de distinguir "bons" e "maus" pobres. Mas a mentalidade cole-
drinhamento, enquadramento: termos que exprimem cm 1101,~,t t iva associa doravante mendigos, rixas e cabarés - testemu-
linguagem moderna os meios empregados para tornar as pop11 nham as obras de Bellange, Callot e dos canwaggescos. Ela se
lações de então mais cristãs, mais morais, mais dóceis. Assii 11 , • inquieta com a linguagem misteriosa - a gíria - usada pelos
preciso relacionar ao conjunto das medidas evocadas ante d, 11 frequentadores dos "pátios dos milagres" e se pergunta a que
mente aquelas que tenderam ao confinamento dos loucos e d11• estranho governo eles obedecem. Toma como certo - e é aliás
pobres. Tendo a pesquisa recente esclarecido amplamente~•~~, provável - que os vagabundos levam uma vida de pagãos, não
dois aspectos de uma transformação social e mental, não volt 1111• fazem batizar seus filhos, raramente se aproximam dos sacra-
mos a isso nesta síntese final senão para acentuar a cst 1·1•11 ,1 mentos, preferem o concubinato ao casamento. Esses "liberti-
solidariedade dos comportamentos elitistas diante de tod:w 1111 nos", que se situam fora de qualquer regra, não conhecem razão
situações aberrantes e perigosas. nem religião.º' Daí a necessidade de conduzi-los a elas.92 "Dora-
Dissemos, com Foucault, que a loucura se tornara, sc111111 vante", escreve M. Foucault, "a miséria não é mais considerada
para Erasmo, ao menos para muitos espíritos cultivados ck N1111 (como na época de são Francisco de Assis) em uma dialética da
tempo uma verdadeira obsessão. Ligada à tentação, ao pcc·11cl111 humilhação e da glória, mas em uma certa relação da desordem
aos pesadelos, à morte, ela então tomou forma de perigo puhl l com a ordem que a encerra na culpabilidade [...]. Ela é uma
co. Assim, convinha dominá-la colocando-a fora de ci rc11llt11 falta contra o bom andamento do Estado." 9i E , acrescentaria
atrás das altas muralhas de estabelecimentos correcionais. N11 cu, contra a disciplina cristã. A luta contra a mendicância é
século XVTT, em Paris ou em Bicêtre, os loucos serão colo<'~ilt1• portanto um dos capítulos de uma história global: a do enqua-
entre os "bons pobres" (na Salpêtriere, no bairro da Madcld111 l dramento político-religioso de uma sociedade considerada, nas
ou entre os "maus 'pobres" (na Correção ou nas Rem issc'i1•~) • nltas esferas, anárquica e renitente.
Afirmando-se con10 necessidade de ordem, a modernidade 1·11111 Economistas, magistrados e homens piedosos falaram a
peia dessacralizou a loucura. Na Idade Média, o louco e o p, 1lt11 mesma linguagem a respeito dos pobres e conjugaram seus
eram como peregrinos de Deus.90 Durante o período sq.pd1111 , esforços para enfrentar o perigo que representavam. Em pri-
apareceram como seres decaídos, suspeitos e inquietantes, q111 meiro lugar - elementar necessidade de esclarecimento esta-
perturbavam a paz pública. Convém então, como fez M . 1•'(111 tístico - tentou-se em numerosas cidades do Ocidente, no
cault, não separar o caso dos pobres do dos loucos. século XVI, recensear e registrar os mendigos.'" Esse preliminar
Outrora imagem de Cristo, a partir do século XIV o pol111 permitiria em seguida, graças a uma taxa urbana e à ação de
se torna um ser que provoca medo. Os crescimentos dc11Hlf-tl ,1 "agências dos pobres" e de "esmolas gerais", alimentar os inv,ili-

616 - 6/ 7
dos, dar t rabalho aos saudáveis, colocar as cria nças c111 11111, 11 1 escrever e a exercer um ofício. Os mendigos de passagem por
dizagem, expulsar os "malandros" e proibir a mendidnt·111, 1 !foma podem beneficiar-se de três refeiç~e~ no asilo; então de:
primeiro tipo de organização administrativa da caridade 1•1111111 \'cm tomar novamente a estrada. As penunas que se seguem a
era sua expressão mais acabada na grande lei inglesa d1• 1,,11 morte de Sexto v (1590) tornam, no entanto, as autoridades
que permaneceu em vigor até 1834 e cuja aplicação es1:w11 11111 Incapazes de manter essa instituição. . .
fiada aos ove1:çeers of the poor. Uma taxa estabelecid:i 1111 1111 1 Mas nesse final do século XVI Amsterdii tem uma Spmh111s
paroquial devia fornecer os fundos de ajuda aos pobres; :1 11•111 ("casa onde se fia"), que alberga mendigos, prostitutas e esposas
de pagá-la acarretava a apreensão e a venda dos bens t' 111! 1 1111e os maridos internam por nuí conduta.91 Por outr~ lado; um
prisão dos recalcitrantes. A mendicância era proibida. (h p11l11, H,,splmis impõe a seus pensionistas raspar pau~bras1l: da I seu
idosos ou inválidos eram socorridos, os filhos dos cx-111l·1ull11•, nome. A fórmula faz escola. Em 1621, Bruxelas e dotada de um
colocados como aprendizes até os 24 anos para os rap:tí'A"' 1 1, litchtlmys onde os pobres fabricam tecidos. r a França, ~
21 para as moças. Os pobres válidos deviam, em pr incípio, 11·1 1 11rimeiro asi lo geral destinado ª? encerramento dos pobres e
ber trabalho e os overseers formar com essa finalidade c~111q111 l'riado em Lyon em 1614. Depois cartas patentes de 1622 e ~
de cânhamo, lã, fio, ferro etc. Essa legislação se acrescc111111,1 1 C:6digo Michaud em 1629 prescrevem - com pouco sucesso: e
dos Acts anteriores, que obrigavam os pobres sem do111 icrll11 1 Vl.lrdade - confinar os mendigos das cidades: o que o asilo
retornar ao lugar de seu nascimento sob ameaça de s:111i_01 l(Cral criado em 1656 se esforça em realizar pa_ra Paris.''g Seis
rigorosas - golilha, pelourinho, chicote, marca com fcn 11 1111 1
1110s mais tarde, um edito ordena o estabelecunento de um
bnisa, desorelhamento, pena de morte em caso de reincich' rn 11 nsilo geral em "todas as cidades e grandes burgos" do reino. A
- e proibiam alojar os sem eira nem beira.95 urnior difusão desses estabelecimentos se sit uará na F rança nos
Um aperfeiçoamento desse sistema consistiu em scp:1 1111 11 1
mos 1680. Na Inglaterra, casas de correção, municipais ou de
mendigos do resto da sociedade, portanto em confimí- los: 1111111 t•cmdado - os bridewels- existiam desde o final do século XVI.
solução descoberta simultaneamente no final do século \\ 1 Mas cem anos depois aparecem as workhouses, casas de trabalho
pelos papas da Reforma Católica e pelos mag istrado~ il11 municipais que têm sua instituição generalizada por um Ac~ d~
P rovíncias Unidas protestantes. Em Roma,% Pio v tcri:1 t11 lt 1 Jorge 1 em 1722. A internação dos pobres nas workb~uses ~ao e
em 1569, a ideia de concentrar os pobres em quatro bai1:rn,, !111 obrigatória, mas aquele que se recusa a nelas entrar fica pnvado
cidade e de mandar distribuir-lhes alimento. Seu s 11t ·1·~~111 ,los auxílios paroquiais distribuídos pelos overscers, permane-
Gregório xm decide em 1581 reunir todos os mendigos dot•1111 l'cndo a mendicância proibida. D o mesmo modo, "casas de
ou estropiados de sua capital em um antigo convento. 1\ ln~ 11 rorreção" (Zuchthà·usem) para os "sem trabalho" são aber tas em
local é inadequatlo, e a confraria encarregada de sua ges1 :ío c•~I 1 l lamburgo em 1620, em Basileia em 1667, em Breslau em 1668,
malpreparada para sua tarefa. Endividada, ela capitul:i. l-'1111111 cm Frankfurt e em Spandau em 1684, em Kõnigsberg em 1691.
Sexto v, com o estilo me tódico que lhe é próprio, manda rnll~ Elas se multiplicarão no norte da Europa no decorrer do
truir um asilo capaz de receber 2 mil pessoas. Os pobres s:10 11 11 s6culo xvm.'''1
reunidos em 1587, tornando-se toda mendicância proibida 1111 Não foi por acaso que a fórmula do confinamen~o dos
ruas. O s inválidos são mantidos no asilo, completamente 111•,u pobres nasceu durante o período mais ati_v~Ad~s duas R~f?r mas
dos e vestidos de cinza; uma alimentação conveniente lhe", 1 religiosas. Sem dúvida, os aspectos h1g1en1cos, polt_t1cos e
assegurada. As meninas aprendem a costurar; os meninos :1 li•11 econômicos <l~ssa luta contra a vagabundagem sãu evidentes:

618
- lí I ')
trata-se de sanear as cidades nelas diminuindo os vctorc~ ,h 11ue se enchia lentamente de água. E le só escapava do a foga-
contágio, de reduzir o bando dos amotinadores potenci:1i,, ,h mento bombeando sem descanso. Esperava-se assim dar-lhe o
remediar o desemprego, de utilizar na produção e nas "0111 11 gosto pelo traba lho.106
públicas" uma mão de obra disponível. Porém, mais :1ind111 Às rudes tarefas educadoras ou sa lvadoras, importava
trata-se de uma obra de alcance moral e religioso. Est:1rnl11 , ucrescentar o ensinamento religioso. Os pobres deviam ser
pobreza agora destituída de sua nobreza de outrora e tendo 11 1·onduzidos ou reconduzidos para o interior do espaço c1·istiio
pessimismo se tornado obrigatório em relação aos pohn:!,, )li por meio de intensiva catequese e de existê ncia mom1cal. Com
não é uma questão de ver nos mendigos e nviados de Dl'II deito, é a urna vida conventual ritmada por uma exata pr:ític:i
"como se", escreve Vives no De s11bventio11e pn11per11111 ( 151',), que são obrigados os mendigos internados, sendo a fin.1lidade a
"Cristo reconhecesse como seus pobres tão afastados de s1• 11 "de dar ordem ao [seu] alimento espiritual", como diziam os
costumes e da santidade de vida que ele nos ensinou".'"" J\11 reitores da Caridade de Lyon.'º7 Nos asilos gerais, capelães são
contrá rio, assegura um arcebispo de Tours em 1670, eles sao " 1 ~•ncarregados de ensinar o catecismo aos adolescentes e aos
escória e o rebaralho da República, não tanto por suas misc1111 nclultos. Os regulamentos definem as missas, confissões e
corporais, das quais se deve ter compaixão, quanto pelas csp111 110111unhões que serão obrigatór ias e a alternância do trabaJho e
tuais que provocam horror".'°' A ociosidade dos preguiçrn,o~ 1 da oração. Em país protestante, objetivos e mé todos são os
os pecados que se seguem cha mam a cólera de Deus: t•h mesmos. o Z11chthn11s de Hamburgo, um diretor zela para que
arrisca-se a punir os Estados que os toleram. O edito de lfM 11 "todos aqueles que estão na casa cumpram seus deveres e este-
criando o asi lo geral de Paris, declara a esse respeito: "A lilw1 jnm instruídos a respeito deles". Na wo1·kho11se de Plymouth, um
tinagem dos mendigos chegou até o excesso por um inkll 1c"boo/111nster "piedoso, sóbrio e discreto" preside as orações da
abandono a todos os tipos de crimes, atra indo a maldiç:io tl1 monhã e da noite. Nos dias de festa e aos sábados à tarde ele se
D eus sobre os Estados, quando eles ficam impunes"."i: dirige aos internos e os instrui sobre os "elementos fundamen -
Um século antes, Calvino ensinara que não querer 11 ,1 rnis da religião protestante".'°8
balhar é tentar o Eterno e "testar além da medida o podei ti, É provável que em país católico os objetivos religiosos das
Deus".io3 Para os ociosos voluntários a casa de detenção cons11 ,·asas ele internação fossem mais vigorosamente afirmados do
tui portanto um justo e necessário "castigo"; e para to~los 11~ 11uc cm terra protestante. M . Foucault, que sugere essa nuança,
ex-mendigos que ali estão reclusos ela é um meio de rcdc111,.111 1•irn como base um sermão revelador de são V icente de Paula ao
Assim, não pode dispensar "postes, golilhas, prisões e c:il:ili1111 qual nosso propósito também deve dar lugar: "O fim principal
ços", como prevê ''O artigo X II do edito que institui o asilo g'\'t 111 pelo qual se permitiu que se tenham recolhido aqui pessoas
de Paris.•0-1 Além•disso, precisa o regulamento desse asilo: " m lora da confusão deste grande mundo e feito entrar nesta
os faremos trabalhar [os pensionistas) o tempo mais longo p11~ ~olidão [o asilo geral] na qualidade de pensionistas, não era
sível e nas obras mais rudes que suas forças e os locais 011d1 ~unão para contê-los da escravidão do pecado, de ser eterna-
estiverem pude rem permitir".'º5 mente condenados e dar-lhes o meio de gozar de u m perfeito
Sendo a ociosidade mãe de todos os vícios, as terapêut 11 ,,. l'0ntentamento nesta vida e na outra [...]".109
que a combatem não poderiam ser exageradas e são ao m<.:~11111 De fato, na França, os meios devotos e especialmente :1
tempo educação e penitência. No Rnsphuis de Amstcrd:1, 11 ( )ompanhia do Santo Sacramento à qual são Vicente estava
pobre que se recusasse a t rabalhar era encerrado em um prn ,111 lt(,,raclo contribuíram, mais talvez do que as autoridades civis,

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- r,2 1
para a criação e multiplicação das casas de confinamc111 0, Mudara-se de inquietação. Por outro lado, é possível - mas a
Vários membros influentes da companhia trabalharam p;1r:1 11 documentação permite verificá-lo? - que as revoltas rurais dos
formação da casa de Paris. Além disso, as seções locais dcssn séculos XVI-XVII tenham servido de derivativo, aqui ou ali, para
sociedade piedosa estiveram na origem da criação de um asilo uma agressividade camponesa que de outro modo se dirigiria
geral em Orléans, em Marselha, em Angoulême. No fina I dlJ contra os autores de malefícios. De qualquer maneira, impossí-
século, apoiaram a ação de três jesuítas (entre os quais o pad,·c• vel não sublinhar a coincidência cronológica, na escala europeia,
Guévarre, autor de uma brochura intitulada Ln mendicité 11holir) entre o tempo das revoltas e o da obsessão da feitiçaria. Os dois
que percorreram a França criando asilos gerais segundo 11111 fenômenos remetem conjuntamente à mesma falta de segurança
método chamado "à capuchinho''. Organizava-se uma miss:1o, ontológica sentida por uma sociedade inquieta. A partir daí, em
ali insistia-se sobre a necessidade de encerrar os pobres, arTl' um plano geral, e não se levando em conta inevitáveis casos
cadavam-se donativos durante três dias. O produto dessa colc111 particulares mais ou menos aberrantes, pode-se pensar que a
permitia a arrancada da instituição, cuja manutenção era c111 repressão da feitiçaria cedeu quando o medo diminuiu nos dife-
segu ida assegurada por legados e doações. 11º rentes níveis da escala social. E esse abrandamento, visto de
perto, produziu-se antes das grandes mudanças da legislação,
antes dos grandes melhoramentos médicos, antes do triunfo da
A criação dos asilos gerais (onde pobres e loucos se enco11 ciência. Certamente simplificando, mas com a preocupação de
travam frequentemente misturados), dos Zuchthiiusern e cl111, não considerar apenas o povo rural ou apenas a elite urbana,
workhouses é para nós reveladora de um vasto desígnio de enq1111 poder-se-ia dizer que a perseguição adormeceu quando o cam-
<lramento de uma sociedade que, por seus feiticeiros, herético.~, ponês teve menos medo <los enfeitiçadores e os homens do
vagabundos e loucos, mas também por suas festas "pagãs" 1, poder menos medo de Satã, tendo os dois temores abrandado
blasfêmias repetidas evadia-se constantemente das normas pn:.~ mais ou menos ao mesmo tempo.
cricas. Um processo geral de cristianização, de moralização e dt• Na camada camponesa, o desabamento da alta dos preços
unificação, desmedidamente ampliado a partir das duas Rdi11· após a explosão do século XVI e a estagnação demográfica do
mas, tendeu a disciplinar doravante populações que tinh:1111 século XVII trouxeram sem dúvida um relativo alívio material.
vi~ido até então em uma espécie de liberdade "selvagem". l':sst• Mas agiram ao mesmo tempo os efeitos tranquilizadores de um
almhamento geral, que explicamos por um grande medo c11I mais estrito enquadramento pela Igreja e pelo Estado. A "ordem
tural, permite-nos agora compreender melhor tanto as c:1us:1>, moral", por mais constrangedora que fosse, diminuiu provavel-
como o fim da caça aos feiticeiros e às feiticeiras para a qua 1 1, mente as tensões no interior das aldeias e reprimiu as tentações
preciso voltar por• um instante, no quadro de uma explica~·:w de desvio. O h abitante dos campos (e, com mais forte razão, o
global.
das cidades) deve ter-se sentido mais bem protegido que antes,
Loca Imente, a interrupção da perseguição pôde ser provo mais a cargo da autoridade civil e sobretudo do poder eclesiás-
cada por uma grave desorganização da existência cocidi;111111 tico. Minha hipótese é portanto que um mais estrito controle
como em Luxemburgo e no bispado de Basileia submetidos 1)•1 da vida cotidiana por um Estado mais bem armado e por uma
extorsões da soldadesca durante a Guerra dos Trinta Anos. i\ religião mais exigente diminuíram em certa medida o temor
justiça ali se viu paralisada, e os habitantes puseram-se a tc11w1 dos malefícios. A partir de 1650 mais ou menos, a aculturação
os homens de armas e os vagabundos mais do que a feitiç:1ri11 , intensiva conduzida pelas duas Reformas, cada uma no terreno
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62)
respectivo, já obtivera sensíveis efeitos. O culto se modificar:1l' antijudaísmo se extenuaram ao mesmo tempo, na segunda
se espiritualizara, a oração se intensificara, os pastores era 111 metade do século xvu: houvera erro parcial de diagnóstico e o
mais respeitados e mais respeitáveis. Satã recuara; seu poder 1• medo fora maior do que a ameaça. A ofensiva generalizada do
o de seus pretensos adeptos se esfacelara. O homem de De u~, Inimigo, prelúdio do fim dos tempos, não se produzira e ma is
em país católico como em terra protestante, era mais do q111• ninguém podia dizer quando teria lugar. U ma cristandade, que
outrora o conselheiro da população. Feiticeiros e adivin hw1 se acreditara sitiada, desmobilizava-se.
foram margirn1lizados.
Ao mesmo tempo, a cultura dirigente se descontrafa. Co111
.Montaigne e .Malebranche, ela empreendia a crítica da im:11'\i
nação. .Médicos descreviam melancolia, possessões e obsessõ1•••
demoníacas como doenças mentais.111 Desde Ga Iileu e D esc,1rt cN,
progredia a ideia de que o mundo obedece a leis racionais. 11 1 lt
Mandrou e K. Thomas certamente tiveram razão em dest:1r111
essa gradual transformação da ferramenta mental nos mcirn,
esclarecidos. Mas a isso se acrescentaram outros elementos q1111
contribuíram para fazer recuar a uma só vez o medo do d i:1b11
e o de uma cultura selvagem e perigosa. O tão temido fim cl11
mundo continuava não chegando. O perigo turco decrescia. A11
fim de guerras esgotantes e pela força das coisas, as pessoas ·w
habituavam aos heréticos e, ainda que se continuasse ,l comh11
tê-los no interior das fronteiras, atavam-se com os do extcri1li
relações diplomáticas e por vezes faziam-se alianças com cl1·•1,
.Mais geralmente, cansou-se de procurar os inimigos de 1Jc111,•
molas demasiadamente tensas acabam por desgastar-se. Apn~
1650, as duas Reformas perderam o fôlego. Desse modo, pod i11111
elas doravante permitir-se uma velocidade de cruzeiro. S:1l;i11
-se nas altas esferas que as autoridades civis e religiosas t i11h11111
melhor controle da situação do que outrora. O catecismo 1':1i111
recuar o "paganismo". Enfim, uma cultura que na époc:i d11
humanismo se sentira frágil e ambígua, ganhava agora cst rut 11
ra e base graças aos colégios que lhe asseguravam a fil tr:1g1•111
ideológica e a difusão. Ela já não precisava temer o ass:ilto d,
forças incontroladas. Satã não era negado, mas era progrcs~iv11
mente dominado.
Nada de surpreendente, em consequência, se temor do ,1 111
zo Final e dos turcos, processos de feitiçaria, guerras rei ig-io~n~,

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625
NOTAS 18. Cervantes, Dom Quirhotte, trad. L. Vianlot, Paris, s. d., 1, cap. XV III,
p. 126.
19. Tirso de Molina, L'ab11se111· de Séville do,, J1u111, trad. P. Gucnoun,
Pnris, 1968, ato 111, p. 159.
20. L'ord,·e de chevnlerie (1510), publicado cm P. Allut, 8t11dt· historique et
bibliogrnpbie s111· S. Chn111pic1; Lyon, 1899, pp. 75-6.
21. T. More, L'utopie, ed. V. Stouvenel, Paris, 1945, p. 75.
INTRODUÇÃO 22. "L'expiation", Les d1íiti111euts.
23. Rabclais, Quart liv,·c, Paris, 1952, c:1p. XIX, p. 617 (La P léiade).
I. Montaigne,Jo111·11n/ de voyage, ed. i'vL Rat., Paris, pp. 47-8. 24. Shakespeare, Hemy JV, G,1rnier, 1961, li, parte I (ata v, cena I), pp. 244-5.
2. Reed. de 1957, p. 61. 25. Cf. a esse respeito, A. Jouanna, "La notion d'honncur au XVI' siede",
3. L. Febvrc, "Pour l'histoire d'un sentiment: le besoin de séc111 ht Rcvue d'histoire 111odernc et co11te111pomi11e, out.-dez. .1968, pp. 598-623.
em Aml(/les, ESC, 1956, p. 244. Cf. também R . Mandrou, "Pour un e hl, 26. Commynes, i\1/émoires, ed. Calmette, 1, pp. 32-3.
toire de la sensibilité", em idem, 1959, pp. 581-8. O pequeno li vro th• 1 27. Montaigne, Essnis, 1, cap. XVIII, p. 107.
Palou, La pem· dtms l'histoi,·e, Paris, 1958, refere-se essencialmente :io 111•1(11 28. Idem, I , cap. XVIII, p. 107.
do posterior a 1789. 29. J. Burckhardt, Ln civilization de la Rennissrmce m ltalie, ed. H. Schmitt
4. G. Delpierre, Ln peur et l'êN·e, Toulouse, 1974, p. 7. l' R. K lein, Paris, 1966, I, pp. 54-5.

5. Froissart, Chrouiques, ed. S. Luce, Paris, 1869, I, p. 2. 30. Commynes, 1Wé111oires, VI, p. 316.
6. A. de La Sale, Jeh,111 de Sni11tré, ed. J. Misrah e Ch. t\. l<n11d~1111, 31.Idern, pp. 288-91, 322.
Genebra, 1965, pp. 29-30. Para tudo o que se segue, cf. meu artigo "l,c dl- ·32. Idem, p. 316.
cours sur le courage et sur la peur à l'époque de Renaissance", Rn•i,111 d, 33. Cf. especialmente P. Murray-Kendall, Louis Xi, 1975, pp. 430-5.
/-/istó,-io, São Paulo, n. 100, 1974, pp. 147-60. 34. Montaigne, Em1is, II, cnp. XI, p. 54.
7. Livro IV, canto LI!. 35. E. Dclannoy, "La pcur au combat", Probli:111es, abr.-maio 1961, p. 72.
8. As informações referentes à edição no século XVI em L. Fcbvrc e 11 36. Idem, ibidem. Cf. também J. Dollard, Fe11r iu brrttle, Yale, 1943.
Martin, l'oppm·irio11 du livre, Paris, 1958, pp. 429-32. 37. Cf. JVI. Bellet, Lr1 pem· ou ln foi, Paris, 1967.
9. Cf. Collection des dn'Ol1iq11es 11ntio11nles fronçoises, ed. J.-A. B11d11•11111 38. Citado e m F. Gambiez, "La peur et la panique dans l'histoire", -e m
Paris, 1826 e ss., II, pp. 17-8. Mi 111oires et co111111wlÍcntio11s de la cn111111i.,sio11 Jim1çaise d'histoire militniu, 1, jun.
11)70, p. 98.
10. Idem, XLII, p. XXXV.
39. Entrevista do guia Fernand Parreau, de Servoz.
11. Ed. G . Doutrcpont e O. Dodogne, Bruxelas, 1935- 1937, I, p. 2Jl7,
40. G. Delpierre, La peur et l'êt,·e, p. 27.
12. Ln t1·es joyeuse, plnisnnte et recrMtive hystoi,·e du bn11 chcvalier ·''"" /•1111111
41. Idem, p. 8.
et srms repi-oche, composée pm· le Loynl Servitem; ed. M . Petitot, Paris, 1H! IJ, l
42. M. Oraison, "Peur et religion", em Problemes, abr.-maio 1961, p. 36.
série, XVI, 2, pp. 133-4.
(l(. também, do mesmo autor, Dépnsser ln pem; Paris, 1972.
13. Commynes1 Mémoircs, ed. Calmette, 3 vol., Paris, 1924-1925, 1, 1111
43.J.-P. Sartre, Le sursis, Paris, 1945, p. 56.
23-6. Cf. J. Dufournet, Ln destrnctiou des mythcs drms les 111é111oirts de Co1111111•111,
44. C. Odier, L'r111goisse et ln pcusée 111ngiq11e, Ncuchâtel-Paris, 1947, p. 236.
Genebra, 1966, p. 614.
45. P. Diel, "L'origine et les formes de la peur", em Problemcs, abr.-maio
14. La tri:s joye,~<e... histoire d11 bo11 chevolier..., 1, p. 307. 11/61, p. 106.
15. Montaigne, "De 13 peur", Essnis, ed. A. Thibaudet, Paris, 1965, 1, 1•Ili 46. G. Delpierre, L'être et la pem; p. 17.
xvn, p. 106. 47. R. Caillois, "Les masques de la peur chez les insectes", em Prnblemes,
16. Idem, 11, cap. xxv11 ("Couardise, mere de la cruauté"), p. 357. t1hr.-maio 1961, p. 25.
17. La Bruyere, "Des graneis", Les cnmcteres, ed. R. Garapon, P:1 ri , , 11//1 1 48. G. Delpierre, L'être et ln pe111; p. 75.
pp. 266-7.
49. G. de Maupassant, Oeuvres completes: coutes de la bécn.,se, 1908, p. 75.

626
627
50. D escarres, Les p11ssio11s de l'íi111e, ctl. P. Mesnard, s.cl., 1, arr. 17-1 1• 1 ,, 73. Ve,·bc/L' " Doulc ur mornle", em Diaiom111ire de ln do11/e111:
pp. 115- 6. 74. E não só :1 linguagem corrente. Em um estudo médico, lê-se:"!...] f\
51. G. Simcnon, Oeuvrt's completes, ,, Le romn11 de /'homme, l9ói , p. 11 •nl(Ítstia e a ansiedade são ambas m:111ifcstações emociona is que traduzem um
52. G. Soustc llc, "La 'mal adie de ln fraycur' chcz les ind iens du M c.r n111 1m1imc nto de medo". l'rmxiété, p. 8.
Gnume midimle de frn11ce, 5 jul. 1972, pp. f252-4. 75. G. Dclpierre, l.n pe111· et l'êtn, p. 15.
53. J.- B. Thiers, Tmi11! des s11perstitio11s qui reg1mle111 lt,s snt'l'r1111·111,, , ~, 76. Cf. especialmente R. Zazzo e outros aurores, L'A1111rbe111c11t. Neuc hiitcl,
gnon , 1777, 1, pp. 333, 337. 11174.
5f. M. Oraison , "Pcur et rclib-ion", cm Prol,lêmes. abr.-maio 1961, p 77. G. Bouchoul, Tmité de polémologie, Paris, 1970, pp. 428-31.
55. G. Delpicrre, Ln peur et /'[,r,·e, p. 130. 78. K. Lo rcnz, L'ngressiou - Une bistoir,• 11nt111·el!e du 111111, Paris, 1969 ;
56. j\1.-A. Si:chehayc, Jo11n111/ d'1111e srhhoph1·l:11e, P,1ris, 1969, c,p11 l•I /111,lis st/1' /e co111pone111rnt n11i11111I e/ lmmni11, Paris, 1970; L'envers d11111iroi1·
mente p. 19. U11t bistoirc 11nt11rcllc de ln co1111iss111ue, Paris, 1976. J\tlcs mas teses em:
57. Idem, p. 21. l lhl-Eibesfeld, L'bomme p1·ogm111mé, Paris, 19i6. A respeito desse debate,
58. E. Zola, Ln dibâdr, Paris, 1892, pp. 64-5. C l. também :1 revista incern:icional Agressologie, publicada por H. Labori t
59. P. Salmon, ''Quc lques divinirés ele ln peur dans l'amiquit~ i;rt:111 111 ,\, Adler, Co1111nissn11cc de l'bomme, Paris, 1955; F. Anto nin i, L'bomme
maine", Pro/,lémes, :1br.-m:1io 1961, pp. 8-10, com rcferêncins. 111 /nu~·...
60. R. Cnillois , " Lcs masques d e la pe ur chez les insectes", idem. p 1' 79. Cf. especialmente \i\l. Reich , Ln psyrbologic de mosse du fnsris,m•, Paris,
61. L. Kochni1.ky, "i\fasqucs africains véhiculcs ele terrcur", idem, l'I' Ili IIJ72,
62. A. Sauvy, "Lcs pe urs de l'hommc dans !e dom:1i nc écono111iq111 1 80. Cf. especialme nte J. Dollard e N. E. Miller, Person(llity 11111/ psyd.10-
social", idem, p. 17. ,.,,,,py, lava York, 1950.
63. G. Dcverc ux, "La psyclrnnalyse ec l'histoire. Une :1pplic:nio11 .1 l'lil 8 1. t\. Storr, L'im1i11ct dt• destrnc1io11, Paris , 1973, p. 20. E. Fromm, Ln
ro ire de Sparte", A1111nlrs, ESC, 1965, pp. 18-44. 11/n11 de détrnirc, Paris, 1976.
64. M. Dommanget, l,11Jncq11crie, Paris, 1971 , pp. H -5. 82. G. Dclpierre, l.n prur et l'rtre. pp. 31-f5.
65. !vi. Eliade, l!istoire des cro_)'IIIIW et dcs idées rdigieus,•s, Paris, 1976 , 1, 11 1111 113. E. Malc, L'm·rre!igie11.\·de l11fi11 t/11 Moycn Age e11 Fm11n·, Paris, 1931, pp.
66. Cf. ainda G. Dclpier rc, Ln pem· rt l'être, pp. 47-54. li 1 ~ ~s., e Lim religim.,· np1·cs lt• ronrilc de '.freme. Paris, 1932, pp. 147 e ss.
6i. Cf. G . Lc flon, Ln Rivolm ion Fmm;r,ise et la psyrbologie des/ úul<',, l',111 84. G. D elpie rre, Ln peur fl l'êt1·e, pp. 55-ó.
1925; Psyrhologie dcsfoules, Paris, rccd. de 1947. Cf. t:1111bém G. Hcuycr, /'11,I !IS. Ronsard, primeiro livro dos Poemcs, Oeuvrcs rompletes, ed. G . Cohen ,
ses rollutivu 1·1 suicides rolfu tifs, Paris, 1973. IIJIO, II, p. 3H (La Plê iade): "Homem niio vi que tanto odiasse no mundo/ Os
68. f. Gamhicz, "La pc ur et la paniquc ...", p . 102. .im 11uanto eu de um ódio profundo./ Odeio seus o lhos, su:i fronte e seu
69. Ver mais adia nte, cap. v. lh,11 .I Vendo-os, fujo para outra parte./ T remendo de nervos, de veias e de
70. F. Amoni ni, l'ho111111e fi1riett.\': l'ngrrssivité rollertive, Paris, 19i0, pf,. 1 11 , ,nhros...". Cf. H. 1ai's, Les 1111i1111111.,· d1111s /11 poésie frn11c11ise dr I" Re11(lissn11cr,
7 1. R. Ma neirou , M11gi.,1mt,· et .,o,'CierSL'II Fmm:e ri// XVII' sih'lr, Pa ri,, 11111 ti,i,1~. 1961, pp. 594-5.
especialmente a co nçlus:io. H6. Especialmente Vic éco110111iq11e ct soânle de Ro111e dmts 111 srco111/e moitii
72. Além das ,obras citadas, utilizei especialmente: J. Bouto nn1t·1, / \ I '[' siede, 2 vol., Paris, 1957-1959 (resumido em Romc nu XVI' siedr, Paris,
11·i/1111io11 à la psychologie ct r) ln 11Jé1npbysiq11e de l'r111goisJ1', Paris, l'J.I ~, 11111 IIJI,), e em L'nl1111 de Ro111e, Paris, 1962.
fundamental; C. Odier, L'll11goisse et /11 pmsée 11111giq11e, N e uchâte l- l',11 i,, 111t H7. C itado por G. Deve rcux, "La psychanalyse :tppliquée à l'histoire",
P. Diel, La peur ct l'nngoisse, pbé110111imc re11tml de ln vit• et de so11 ,·:·11/1111 wHi!lrt, ESC, 1965, p. 188.
P aris, 195ó;J Lncroix, l.1·s se11timc11ts ct la vie mornle, Paris, 1968; Dil'/111111111/1 HII. A. Bcs,111çon , 1-listoire et expérimre d11 moi, Paris, 1971, p. 66.
de /11 do11le111; ele F. Lhcrm ite etc. publicado pelos Labo rató rios 111111 K9. Pritr et vivre e11 fils de Die11, ecl. Salcs ianas, pp. 30f -7. Agradeço ao
Paris, 1974; a plaqueta intitulada l'm1xif1é: de q11elq11es 111ét11111or11h1111·, ,/1 1 ,1,,, l~milc Bourdon, que me possibil itou ler novamente esse texto cuja lem-
pem; publicada p elos Laboratórios Diamanr, l• trim. 1975; C. Spli11, •11~11111c perseguia desde a infância.
"L'anxié té ct son trn itemcnt", Provenre 111idiml,•, mar. 1975, pp. 11 1 1)0. lgrej:i de santo Antão, ;\-ladri.

Soulai rnc, "Stress et émotion", Sden(l'S et 11vc11h; número especial: "( :,,. lt
cr comportemenr", 1976, p. 27.

- 629
23. Léonnrd de Vinci pt11· /11i-111ê111e, textos escolhidos, traduzidos e apre-
CAPÍTULO 1
lentados por A. Chastel, Paris, 1952, pp. 195- 6.
24. F. Russel, Diirer ct so11 tcmps, 1972, p. 159, (Timc-Life).
1. P. Sebillot, L égeud<'s, croyanccs et rnpentitious de lt1 11m; 2 vul., 11,u 1
25. Bibliothêque Nacional, Paris, rés. Z 855 e rés. D 4722. Cf. M . Leclerc,
1886, pp. 39-73. "l,11crainte de lt1 fi11 d11 111011de peudnnt la Re11aissn11ce", monografia de licencia-
2. Idem, pp. 58-9.
tura datilografada, Paris, Univcrsité de Paris 1, 1973 pp. 48-66.
3. Essa indicação e outrns do mesmo gênero sobre "a ag rc~~lvl1 l~1I
26. M . Foucault, Histoire de la foliei, l'iige classiqne, Paris, ed. 1972, p. 23,
marinha" em J. Toussaerr, Lc .rc11ti111e11t rcligieux en Flaudre i, lt1 J,11 ,/11 /\/o1
v mais geralmente sobre esse assunto, pp. 22- 4.
Age, Paris, 1963, p. 365. Essa referência foi lembrada por M. Molh1 11111 11111
27. Shakespeare, Oeuvres complêtes, li, p. 1481.
exposição por e le consagrada aos perigos do mar, em seu semi111l11111 111
28. P. Sébillot, Légwdcs... , 1, p. 153.
1977. Utilizei muito essa conferência apaixonante e por ela :1gr:ulc\'1J Ili•
29. J.-C. Baroja, Les sorciêres ct /cm· 111011de, Paris, 1972, p. 147.
mente a seu autor. Nluito útil também, sobre o tema estudado 11q11I 1
30. P. Sébillot, Légendes..., 1, pp. 173-5.
Bernard, Navires et gen.r de 111er i, Bordea11.\· (vers 1400- 1550), 3 vol., 1110 1
31. Shakespeare, Lt1 tcmpêtc, p . 1481.
1968, II, pp. 715-64. 32. N.- G. Ploitis, "Le feu Saint-Elmc en Greee modcrne" lVIé/11si11e li
4. Cf. C. Villain-Gandossi, "La mer et la navigation ma ri time ~ 11 1111 1 ,, 117. ' ' '
quclques textes de la littérnture frnnçaise du XIII' au XIV sicclc", /111
33.. Cf. C. Jolicocur, Le vaissem1 fi111tô111e - Légmde étiologique, Qucbcc,
d'bisroi,·c éco110111iq11e et sociale, 1969, n. 2, pp. 150-92.
l111lvcrs1dade Lavai, 1970, especialmente pp. 136-9.
5. G. Baehelard, L'eau ct lcs rêves, 1947, pp. 230-1.
34. ~- Thomas, Religion a11d tbe dediue of111agic, Londres, 1971, p. 92.
6. R. Huygens, Lett,·es de Jacques de Vitt)', Leiden, 1960, pp. 80- 1.
7. Joinville, Histoirc de Saint Louis (bistorims et cbro11iq11e11rs du 1\ lo 1w1
35. Btbl1otcca do Corpus Christi College, Cambridge, ms. 148, f• 33v•; e
11111clrcs, British Museum, ms. 3120, f• 31.
Paris, 1952, pp. 347-8 (Li Pléiade).
36. Shakespeare, La tempête, p. 1481.
8. Le st1i11t voyage de Jbcrust1lc111 d11 seig11c111· d'Auglin-e, cd. F. lln111111til1 ,
37. M .-T. Fouillade e N. Tutiaux, La pcm: .. dans les voyt1gcs de découvcrtes...
Paris, 1878, pp. 79-80. ,,,. U tilizei igualmente esse trabalho para o q ue segue. '
9. C,111011 Pietro Ct1sola's pilgri111agc to Jerusalcm (1494), ed. M . N11 11 1 l1
38. J.- C. Baroja, Les sorcieres..., p. 186.
Manchester, 1907, p. 323.
J9. P. Martyr d'Anghiera, De orbe novo, ed. Gaffarel, Paris, 1902, 2• déca-
IO. Cf. H. Prcscott, Le voyt1ge de Jérusa/em t111 X/1' siecle, Paris, l'J5'1, p 11"
11. L . de Camões, Os /11síadt1s, São Paulo, Livraria Francisco /\l vc••• t 1 •• jl, 142.
<10.J. de Léry, Histoire t/'1111 voyage fait eu la ten-e du Brésil, Paris, 1927, p. 138.
V, 16, p. 258.
•li. Cf. sobre essa questão R. Caillois, "Du Kraken à la picuvrc", Co111-rie1·
12. A. Jal, Arcbéologic 11nvale, 2 vol., Paris, 1840, t. 2, p. 552.
, 111rssagcries 111ariti111es, n. 133, mar.- abr. 1973, pp. 11-7.
13. L . de Camões, Os lusíadas, IV, 86, p. 232.
42. Dcnys-Montfort, UJ-listoí,·e 1111turdlc, génémle et particu/ii:,-e dcs 7lfol-
14. Obra assinada "J. P. T.", Rouen, 1600. Cf. M.-T. Fou illnd11 1
"//lrt, 6 vol., Paris, 1802. Os polvos são descritos no t. 11 pp. J33-412, e t .
Tutiaux, "La peur et lt1 hme co11tre la pem· dn11s les voyages dcdéco11vfft1•,r<,1111 \ 1
ct XVI' siêcles", monografia de licenciatura datilografada, Paris, U11iv1•1• 1l1 11 li, 11p. 5-ll7.
,13. C . Jolicocur, Le vt1isset1/I fimtômc ... , P· 29.
Paris I, 1972, pp. l IQ-1.
•14. J. Guyard, "Le V0J'flge d'Itt1/íe du pei-e Cresp", tese de terceiro ciclo
15. L. de Camões, Os lusíadt1s, v,, 80, p. 318.
.illtigrafoda, Paris, Université de Paris IV, 1971, p. 32.
16. "De la pe~r, ou du défaut de courage", Les camctêres.
17. Shakespeare, Oe11vres comph1tes, li, 1965, pp. L476-7 (L:1 Pléi:1111')
•IS. A. Graf, lV!iti, leggende e supentizioui dei Medio Evo, 2 vol., florenç a-
M1111111, 1893, li , pp. 363-75.
18. Idem, p. 1477.
•Ili. G. E . de Zurara, Cbrouique de Guiuée, trad. L. Bourdon, Dacar, 1960,
19. G. Jhchclard, L'emt et lcs dves, p. l 03.
1 (111, 70. '
20. Agradeço muito vivamente ao padre VVitters, que indicou css111 ,1111
·17. L . de Camões, Os lusíadas, v, pp. 274-76. Alusões a Bartolomeu Dias,
e a traduziu.
21. P.-G. d'Ayab, "Les imagiers du péril en mcr", Com-i-ier d,·.,· 1111•11,/ijt / IIP 1lt•~cobriu o cabo em 1488, e à tempestade sofrida pela frota de Cabral
11 1fOO, na volta do Brasil, perco do cabo da Boa Esperanç;1. B. Dias nela
mm·itimcs, n. 125, nov.-dez. 1971, pp. 17-24.
22. P. Sébillot, Légcndcs..., li, pp. 317-8. ""'"·
630 - 631
48. J. Le Goff, "L'Occident médiéva.1 e l'océan Indien - Un hol'l/11111 Paris, Université de Paris 1, pp. 14-5. M esma referência para as citações
onirique", em lvléditerrnnée et océt111 J11die11 - Vi' colloquc i11ten1flfio11nl d 'hi,f/11/1, ~cguimes.
111m·iti111e, Paris, 19i0, pp. 243-63. 77. I-1. Institoris e J. Sprcngcr, Le m11,·ten11 des so,'âi!res, trad. A. D,rnet,
49. A. Duccllier, Le drn111c de Byzrmce, Paris, 1967, p. 169. Paris, 1973, pp. 399-400.
50. Essa opinião ainda na segunda metade do século XVI em Boaist 111111 78. Idem, pp. 4 19-20.
Histoires prodigimscs, Paris, 1961, p. 52. 79. J. Bodin, Ln démo110111n11ie des .<orcie,·s, Paris, 1580, liv. Ili, cap. n.
51. R. P illo rget, ''Les mouvemcnts insurrectionnels en Provcncc c11111 80. Comunicação de M. Shamay em meu sem in:írio.
1596 ct 17 15", exempla r datilografado, Paris, Université de Paris IV, l'J7 I, 8 1. J. C. Baroja, Les sorciercs... , p. 173.
p. 712. 82. F. Bavoux, Hrmtises et dinbleries dnus ln terre nbbntiflle de L11xe11il,
52. C itado cm Y.- M . Bercé, J-listoi,·e des ,-roqurmts - Ewde des so11/i,vl'll1r11I• Mônaco, 1956, pp. 59-61.
pop11/(lircs rm Vll' siêdes dn11s /e sud-otwst de ln Frnnce, 2 vol., Paris-Gc11cli111, 83. Para a Suíça, por exemplo, ver os casos citados por Cohn, Eurnpe's i1111e1·
1974, 11, p. 636. Nf. Foisil, Lfl Révoltc des uu-pieds et les i·évoltcs 1101-,11111u/,•, ,/1 ,lc111011s, Sussex Univ. Prcss, 1975, pp. 240-1, segundo E. Hoffmann-Krayer,
1639, Paris, 1970, p. 150. " Luzerner Akten zurn Hexen- und Zauberwesen", Schweizcriscbes A rcbiv fur
53. Citado em Y.-i\11. Bercé, Histoirc dcs croqunuts, 1, p. 4 16. Volklamde, vol. li, Zurique, 1899, pp. 22- 40, 8 1-1 22, 189-224, 291 -325.
54. R. Mousnicr, F11re11.-s pnysmmes, p. 145. 84. A. Macfarlane, T-Vitcbcmft i11 Tudor mui Stuflrt Engltmd, Londres;
55. Citado em Y.-M. Bercé, Histoire des croq11n11t.<..., p. 65. Cf. tamlié111 t\ l 1970, p. 168.
Foisil, L11 révolte des 1111-pieds, p. 189. 85. R. Scot, Tbe discovery ofwitcbcrnft, 1584, p. 374 da ed. de 1964 citada
56. Y.-M. Bercé, Histoire des croqunms, r, p. 205. por A. Macfarlanc, Witcbcmft..., p. 168.
57. Idem, H, pp. 524-6. 86. Utilizo aqui um estudo de J. L. Pearl, "\Vitchcraft in New Frnnce:
58. M. Foisi1, Ln l"évolte des 1111-pieds, p. 189. lhe social aspcct", 1975, que o autor me apresentou em manuscrito, especial-
59. Idem, p . 190. lllcnte pp. 11-2.
60. Citado em Y.-NL Bercé, Croq11n11ts et 1111-pieds, Paris, 1974, p. Mo. 87. Capítulo VIII do Uc-Tseu (cerca de 300 a.C), t rad. L. W ieger, Lcs peres
61. Tdem, especialmente pp. 41 - 2, 66, 131-8, 152-3, 169-75. Sobre 17~•), 1 I ,/11 systeme f(lofrte, p. 199. Informação gentilmente fornecida por meu colega
G. Lefebvre, Ln Gmndc Pwr, pp. 45- 6. Jltcques Gernet, a quem agradeço.
62. Idem, p. 4 1. 88. J. C. Baroja, Les sorciêres..., pp. 145-6.
63. G. Lefebvre, Ln Grande Pcm; pp. 111-3. 89. E . Delcambre, Le concept de s01-cellerie dn11s /e ducbé de Lorrnine 1111 XVP
64. Y.-ivL Bercé, Croqunuts et 1111-pieds, p. 176. ,1 nu XVII' siêde, 3 vol., Nancy, 1948-1951, IV, pp. 215-6.
65. Lutero acusa os "três muros da romanidadc" no Apelo à 110/11...-::,,1 , , 11/1I 90. H. Institoris ..., l.e 111f/rtea11..., pp. 404-5.
r/11 iu1çiio nlwuí (agosto de 1520). 9 1. Et. D elcambre, Le concept..., li, p . 73.
66. G. Nigrinus,Apocnlypsis, Frankfurt, 1593, p. 63 1, citado cmJ.J:111:-.•11, 92. H. Institoris eJ. Sprenger, Le 11uwtet111..., pp. 355-6.
Ln civili.wtio11 en Al/e111rrg11e..., VI, p. 13. 93. E . Le Roy-Ladurie, "L'aiguillette", Eui-ope, 1974, pp. 134-46.
67. C . Paillard, 1Wb11oi,.es bistoriques sur l'flrro11dissc111e11t de V11/mril'll11t•,, 1 94. Textos citados por J. Estcbe, "Protestmlfs r/11 Midi, 1559-1598", tese
vol., Valcncicnnes, SociCll:é d'Ag1·iculture, 1878-1879, t. V-VI. Aqui, t. V, p. lll/1 ,lcscritiva, 2 vol. datilografados, Toulouse, 1977, 11, pp. 549- 50. Cf. também E.
68. A. Flechter, T{1do,· ,·ebcllio11s, Londres, 1970, pp. 34-5. Lc Roy-Ladurie, Les paysnns du Ln11guedoc, 2 vol., P aris, 1966, 1, p. 409,
69. Idem, p. 36. 95. P. de Lancre, L'i11c1"édulité et 111escré1111cc d11 so,·tilcgc pl11i11e111c11t co11v11i11-
70. Idem, p. 128. , 11r... , 1622, p. 314.
71. Idem, p . 49. 96.]. Bodin, L11 dé11101101111111ie..., 1580, p. 57.
72. H . I-fauscr, Ln prépo11dérnuce cspflgnole, 2. ed., 1940, p. 217. 97. H . Bouguet, Discours exécrnble des sorcien..., 1603, p. 78. Cf. R. Mandrou,
73. Le Roux de Lincy, Le livre des proverbesfrrmçtlis, P aris, 1842, 11, p. lH•J \111gistrnts et son:iers eu Fmnce n11 XVII' siêcle, Paris, 1968, p. 149.
74. Idem, ibidem, e p. 358. 98. C. Bcrthclot du C hesnay, Les 111i.<sio11s de sni11t Jean Eudes, Paris, 1968,
75. Idem, p. 334. 11. 114.
76. M.-C. Erugaillcrc e M . Germain, "Ewde de 111entnlités à p11r1ir ,/11 99.J.-B. T hiers, Tmité des mperstitions q11i regnrdent tous les sncrc111e11ts; ed.
proverbes frn11çnis (Xlll' - XVI' sii:de)", monografia de licenciatura datilogrnl ud111 rnnsultada: 1777, 11, pp. 509-1 5.

632 - 633
100.J. Bodin, Ln dé1110110111anie..., pp. 58-9. 123. C. Lebcr, Coflections des 111cifle11res dissertatio11s, 11otires et tmitis p111·ti-
101.).-B. Thicrs, 'fraité dcs s11perstitio11s qui 1·cgardent tous les s11rr,•1111111 , ,,,. nlntift ii l'bistoire ,fe Fm11ce, Paris, 1838, VII, pp. 500-4.
p. 519. Esses textos e os seguintes citados a partir de F. Lebrun, "1.c 1,,1111 124. Sobre as fogueiras de são João, cf. especialmente A. V,111 Gcnnep,
supe,-sririous de J.-B. Thic;:rs - Conrriburio n à l'ethnographie de la F, ,1111 11111tldefolk/orefra11çaisco11tempomi11, 12 vol., Paris, 1943-1958. Aqui, 1, IV, 2,
XVII' sii:cle", A1111ales de 8.-et11g11e er des Pays de l'Ouest, 1976, n. 3, p. ~~•I 111'1,tnlmcnte pp. 1818-9.
102. Icle m, iv, p. 521. 125.]. Dclumeau, "Les réformareurs et la superstition", Artes du cofloquc
103. Idem, ibidem. 11111,y, pp. 474-6.
104. Idem, p. 522. 126. B. Sannig, Collectio sive appamtus 11bsolitio1111111, br11edictio1111111, co11j11-
105. Idem, ibidem. ll•11111111, c.t•o,-cis,11on1111, Veneza, 1779.
106. Idem, p. 504. 127. Cf. E. Rolland, Forme pop11!11ire de France, Paris, 1967, I , pp. 105-6.
107. Idem, p. 518. 128. Cf. C. Marcel- Robillard, Le fo/Hore de !11 Be1111ce, VIII, Paris, 1972,
108. P. C respet, Dw:i· livres sur !11 haine de Satan, 1590, p. 17. IO
109. E. Le Roy-Ladurie, "L'aiguillette", pp. 137-8. 129. Mansi XXI, p. 121: Sy11od11s compostclla1111, anu:írio 1114. Agradeço ao
110. J.-L. Flandrin, "Mariage rardif et vie sexuelle", A1111alcs J•:.w, IY h,• Chiovaro por ter-me indicado esse texto.
p. 1368. 1.10. M.-S. Dupont-Bouchat, "La répression de la sorce llerie dans le du-
111. iV.lonrnigne, Ess11ir, 1, cap. XXI. Os argumentos de Moru.11 11 111 1le l.uxembourg aux XVI' er XVII' sieclcs", tese (filosofia e letras) datilogrn-
retomados por um narrador da Sérécs de G. Bouchet, ed. Rovbc1, r ,11 /1 l,1, Louvain, 1977, l, pp. i2-3. O essencia l dessa tese deve ser publicado na
(1873 ...), I, pp. 87-90. . H4 coletiva Propbetes rt sorcirrs drs P11ys-Bas.
11 2. Ver mais adiante. 1J1. Cf. a esse respeito D. Bernard, l.c.r loup.r d1111s !e b11s Berry 1111 XIX•siêde
113. Essa citação e a precedente nos sermões da segunda metadi: ,111 /1111· disparitio11 a11 t!éb111 d11 XX• - Histoirc er mulitio11 populairc, Paris, 1977,
lo XVIII , mas como testemunhos de um "discurso" que fora mais violi•11111 1 l1111tudo cap. VII e V II 1.
séculos XVI e XVII. Cf. N. Perin, "Rerherches mr lts formes de /11 dévono11 t•••t• 132. P. de L'Esto ile,Jo11rna /, ed. L.-R. Lefcvre, Paris, 1948, 1, p. 527.
1·c dans !11 régio11 m·dc11110ise ii la }111 du XVI!' siede", tese de terceiro rido ilillll 133. t\1émoires d11 cba11oi11e J. i\1/oreau sur les !{//erres de /11 Ligur m Breragnr,
g ra fada, Nancy, 197-l, p. 33. 1l1llc,1das por H. \,\/aquet, Quimper, 1960, pp. 277-9.
11~- J.-B. Thiers, Traité dcs s11pc1·stitio11s... les s11crc111eus, 1, pp. 1.ll ti 134. P. Wolff, Dom111e111s de l'hisroire d11 L,111g11edor, Toulouse, 1969, p. 184.
1b. J. Dclumeau, "Les réformateurs et la superstition", Actrs ,!1111,/1 1JS. Cf. R. Mnndrou, M11gis1mts ct sorciers..., especialmente pp. 149 e 162.
Colig11y, Paris, 1974, pp. 451-87, com as referências dos textos 111 ili, 11h1 r,1 uma inte rpretação psicanalítica da mitologia do lobisomem, cf. E.Jones,
seguir, especialmente por B. Vogler, Vie ,·eligimu eu pays ,·hémm t!11111 / ,1 ,., ..mrbemm; Paris, 1973, e N. Bclmont, "Comment 011 p eut fairc peur aux
111oirié t/11 XVI• siede (1556- 1619), 3 vol., Lille, 1974, 11, pp. 815-39. 1lrn1s", Topique, n. 13, 1974, pp. 106-7.
116. E. von Kraemer, " Lcs maladies désignées pa r le nom 1!'11,11 - 11111 136. M.-S. Duponr-Bouchat, La répnrsio11..., J, p. 73.
em Co11'.11m1ftnio111•s lm1111mm·11111 littemtm11, H c lsinque, 1950, pp. 1 1111 1 IJ7, Cf. E. Rolland, F111111e pop11lnire, 1, p. 124.
Laplanune, La 111édeci11e populaire des ca111pag11ts fm11rnises 1111jo1ml'/,111, 1'• 1 138. Para esses dois documentos, sucessivamente: a) Ci111J siedcs d'i11111gerie
1978, p. 58. ., _,,,,,isr (catálogo de exposição), Musée des Arts et Traditio ns P opulaires de
117. Hisroriafr1111ron1111, rv, em Migne, Patr. L:it., L'l:X1, P aris, 187'J,, ,,1 1 •"•• 1973, pp. 90- 1. Texto e g ravura datam de 1820-1830 e foram impressos
118. J. C harcier, Clnw1iq11c de Charles VII, ed. Vallet de Vi rivillr , 1, l'm 111 l',1ris; b) A. D. Perpig nan, G . 14 (maço): c.1rta da c1í ria diocesana assinada
1858, pp. 5-6. 111 vigário capitular Léopart e dirigida aos curns da diocese. T exto em cata-
119. G11rgr111t1111, li, Paris, Lefranc..., 19L2-1913, pp. 365-6. 1 l1Ml11zido pelo abade E. Cortade, que teve a gentileza de me fornecer esse
120. Col. Peregri11atio..., Lrad. J. Pincau, Ln pmsée ,·eligimsr ,/'/ 1,; 1111111cnto.
Paris, 1923, p. 228. 139. Comu n icação em meu seminário. Uma importante contribuição
121. H. Esrienne, Apologie pour llénulote, 1566; ed. P. Ris1clh111w1 , 1 '1' nutor :1 história da astrologia é Le sig11e zodiawl du .rcorpiou, Paris-Haia,
Paris, 1879, 11 , pp. 324-6. 1/fr,.
122. H. Gaidoz, "L'étymologie populaire er le folklore" ,IM,111,1, 1<10. J. Ca lvin, "Advertissemcnt...", Ocuvns fnmfaiscs, ed. P. Jacob, pp.
col. si;. ' , , s.
634
- 635
141. Citado por J. Janssen, L'Al/e111ng11e et ln Réfor111e, Paris, 1902, VI , pp CAPÍTULO2
409-10.
142. Cf F. Ponthieux, "Prédictions et almanachs du XVI' sii:de", 11111110 1. Cf. mais ac.ima, p. 87.
grafia de licenciatura datilografada, Paris, Université de Paris 1, 1973. 2. Ronsard, Hy11111e des d11i111011s, especialmente v, p. 160-369.
143. Idem, pp. 75-6: previsões de 1568 . E Un touvellt persécuté tll1 tm1p., i/1 3. L. Febvre, Le proble111e de l'incroynuce n11 XVI' sii:cle, ed. de 1968, pp.
Luther - 1V fà11oire.< de Chnrité Pirkei111er, trad. H.-P. Heuzey, Paris, 1905. 4 10-8. A respeito dos fantasmas, cf. :1 obra fundamental de E. Lc Roy-Ladurie,
144. M . Lutero, Oeuvre.<, Genebra, Labor et Fides, 1957 e seg., 1'1111 Montaillou, P aris, 1975, pp. 576-61 1.
p. 103. 4. N. Taillcpicd, Trnicté de l'appnrition dcs esprits, à smvoir dcs íiwes ;·épa-
145. Todos esses títulos de brochuras em J.-P. Seguin, L'i11for111atio11111 rées, fimtosmes, prodiges et accidens 111erveillcux, Rouen, 1600. Ed. consu ltada:
Fm11ce nvm1t /e pfriodique: 517 cnnnrds i111pri111és entre 1529 ct 1631, Paris, l')(i,f, Paris 16 16, p. 139. Li o belíssimo livro de P. Aries, L'boJ11111e devn11t ln 111or1,
pp. 95- 100. Paris, 1977, no momento em que remetia a presente obra ao ed itor. Conto
146. Idem, ibidem. inspirar-me nele no tomo que se seguirá a este. De qua lquer modo, P. Arics
147. Cirndo emJ.Janssen, La civilisntion enAllemngne, Paris, 1902, VI, I'· IHil deu pouco espaço à crença nos fantasmas cm seu estudo, aliás muito rico e
148. Idem, pp. 388-9. ilpaixonan te.
149. Idem, p. 391. 5. Comunicação de H. Platelle no cong resso das Sociétés Savan.tes,
150. E. Labrousse, L'e,m'ée de snl1lnie tll1 lio11 - L'édipse de .<olcil d11 l Z 1111/ll Besançon, mar. 1974.
1654, Haia, 1974, p. 5. 6. Cf. J. Lecler, Histoire de ln tolérnnce n11 siede de la Réfar111e, 2 vol., Paris,
151. Citado e m idem, p. 25. 1955, ,, p. 225.
152. C itado em idem, p. 26. 7. Y. Casaux, 1v/m·ie de Bourgogne, Paris, 1967, pp. 318-9. Agradeço ao
153. Citado cm idem, p. 38. E ncontra-se a anedota cm Pensécs sur 111 ('li padre \,\T. vVittcrs por ter chamado minha atenção para essa anedota.
mete de Bayle, § 5 I. 8. Esses dois relatos me foram apontados por R. JVIuchembled, a quem
154. Cf. L. Thorndike, A history of magic nud experi111wtnl scimte, 8 vol., ,,gradeço: B. M. de Lili e; ms. n• 795, f'" 588v•-589r• (n' 452 do Cnralogue des
Nova York, Londres, 1923-1958, 111 (século XIV); rv (século XV); V e VI (,fr11lo 111111111scrits da B. M. de L ille, Paris, 1897, pp. 307- 10).
XVI). 9. Ronsard, Oeuv1·esco111pletes, ed. G. Cohen, 1950, J, p. 451 (La Pléiade).
155. Cf. J. Delumeau, La civilisntiou de ln Rennissnuce, Paris, 1973, pp. 1°11 10. Du Be lby, Oeuvrespoétiques, ed. H. C hamard , 1923, V, p. 132.
-402, 481-90, 57 1. 11. N . Taillepied, Tmicté de l 'r1ppa6tio11 des espl"Íts..., pp. 125-6.
156. J. Burckhardt, La civili.<r1tion de ln Rennissn11ce m ltnlie, cd. Sch1n ll 1 12. P. Lc Loyer, Disco111·s des spectres, 011 visiom ct appnritiom d'esp,·it.<,
-Klein, 1958, vol. 111, pp. 142-91. M11m11e n11ges, démom et í/111es se 111011strrms vi,ibleme11t nux hom111es, 2. ed. Paris,
157. Essas informações em K. Thomas, Religion m,d d!'dim· ~( 11111,ijll , 1608 (t. I, liv. VI, cap. xv). A primeira edição, sob título d iferente, é de 1586.
Londres, 1971, p. 355. 13. E. Morin, L'homme ct ln 1110n, Paris, ed.de 1970, especialmente pp.
158. M. Leroux de Lincy, Le livre des proverbes..., 1, p. 107 (Calcwh·i1·1 di 1 1.12-56.
1-ous laboureurs, 1618). 14. P. Le Loyer, Discom·s des spect,·es..., p. 3.
159. Idem, .ibidem (Almmrach perpéwel). 15. N . Taillepied, Trnicté de l'nppni-ition des esp,'its..., pp. 19, 34, 41, 49.
160. K. Thomas,''Rdigion ..., p. 297. 16. P. Lc Loyer, Discours des spect,·e.<..., p. 27.
161. Idem, pp. 297 e 616. 17. Idem, p. 31.
162. Idem, pp. 297 e 620. 18. L. Lavater, Trnis livres des nppm·itious des esp,·its, fa11tos111es, pi-odiges er
163. Idem, p. 296. ~tdtlms 111erveille11x qui p,-éri:dmt souvcnts fois la 1110,·t de q11elq11e perso111r11ge
164. Idem, p. 296. tM10111111é, 011 1111 grnnd cb1111ge111em es cboses de ce 111011de, s.l., 1571.
165. Idem, p. 616. 19. G . Duby, L'nn mil, Paris, 1967, p. 76.
166. J.-B. Thiers, 1i-riité des s11perstitio11s... les Sflcre111ens... , 1, pp. 15 1 11'1 20. N. Taillepicd, 1J·aicté de l'nppm·ition des espri1s..., p. 109.
21. Idem, pp. 227, 240-1.
22. A. d'Aubigné, Oeuvrrs compli:tes, IV Misi:res, Paris, Réaume, 1873-
1892, p. 56.

636 .... 637


23. Bibl. mazarina, ms. 1337, Í"' 90v•-91r' . Agradeço cspGd11 l111t 111 47. L.-V. Thomas, A111bropologie..., p. 301. C f. ta mbém p. 512 dessa mcs-
Hervé Martin, profcssor-assistence na universidade da Alta Brct:11111,1, 1111• mn obra.
forneceu a cópia que fez desse documento. 48. F. L cbrun, Les ho11m1es e/ lll mort..., pp. 460- 1. P. Aries, l 'bo111111e de-
U. D om Augustin Calmer, Trniré srir lcs appllririo11s dcs 1·spr111 , I 11 l'tlllt ln 1110n, pp. 289 e seg.
vr1111ph·es 011 les 1·evmm,rs de Ho11grie, de Momvie, etc., 2 vol.Aedi\·:lo11111,111! 49. Comun icação da sra. Dccornod em meu seminário.
aqui é a de 1751, 1, p. 342. 50. L.-V. Thomas, A11tbropologie..., p. 301.
25. Idem , 1, pp. 388-90. 51. A. Lottin, Vie et 11m11nlité d'1111 lillois sous Louis XIV, Lille, 1968, p. 282.
26. Idem, 1, p. 438. 52. J.-B. T hiers, Tmité des mperstitio11s, 1, p. 239. F. Lcbrun, "Le craité...",
27. Cf. por exemplo G. Bolleme, "Dialogue du solirnire ct de l'n1111 11~1 I'· 455.
née", Lll bibliotbeque bleue, Paris, 197 1, pp. 256-64 (século xv111). 53. Idem, 1, p. 185. F. Lcbrun, "Le traité ...", p. 456.
28. A. Calmct, Tmités11rlrrnppllritio11s..., li, pp. 31-151. Qu:111m ;1 1111111 , 54. G. vVclter, Les croyll11rcs primitives ct leurs survivmues, Paris, 1960,
,,,,. 62-3.
cf. "L'homme", Revue jrllll(llise d'r111tb1'0pologie..., n. 2, jul.-sct. 197 3, p, 11\
55. Télégn1111111c de Brest, ele 31 de agosto de 1958. Agradeço ao sr. Molla t,
29. G. e M. Voyellc, Vision de la 111ort et de l'/111-dehi eu l'rormo, 1° 1
1111c me forneceu esse texto.
1970, p. 27. 56. A. Le Braz, Ln lége11de de ln mort, 11 , p. 1639.
30. Q11e11tilio11 Jéms, trad. Sécard, p. 134. 57. C. Jolicoeur, Le vnissenu fa11tôme ..., pp. 20- 1.
31. C:imbry, Voy11gc d1111s lc Fi11istêre, Brest, Fréminville, 183(,, p Ili 1 58. J. Toussaert, Le se111i111e111 religieux e11 Flmulre ;, 111 fi11 du Moyw Age,
32. Idem, p. 173. 11,ris, 1963, pp. 364-5.
33. Edição <lc 1945, Paris, p. XLIII. 59. A. Mickiewicz, Omvres poétiq11esco111plêtes, 2 vol., Paris, 1845, r, p. 70.
34. Idem, p. XLII. 60. P.-Y. Sebillot, le folHore de la Bret/lg11c, 4 vol., Paris, 1968, 11 , pp.
35. Além da obra de A. Le Braz, cf. A. Van Cennep, M111111<'l..., 1, li , l'itl l 1'1- 42.
1946,pp.800-l. 61. Comunicações do sr. Ludwik Sromma (cm dois colóqu ios realizados
36. Y. Brekilicn, L" vie q11otidie1111e du pnysn11s eu Brerag111· 1111 \ I \ 1 Ili Sandomierz e Varsóvia, em abril dt: 1976), que me autorizou a reproduz ir
Paris, 1966, especialmente pp. 214-5. 11c quadro. Agradeço-lhe muito sinceramente.
37. L.-V. T homas, A11tbropologie de la 111ort, Paris, 1976, p. IH!,, 111111 62. C f. a esse respeito o t. li da obra de dom Calmcr, Tmité mr les 11pp(l-
pp. 23-45, 152, 301, 353, 511-8. 11/om...
38.j.-G. Frazer, Ln crni11te drs 111ons, Paris, 1934, p. 9. 63. A. van Gcnnep, Mn1111el..., 1, li, p. 791.
39. Confissões diante da Inquisição da Bahia de u Don:1 C:m1111h~ • 64. Trato mais adiante, no final do cap. IX, do problema da p ossível liga-
Faria), cristã-nova e de Beatis Antunes cristã- nova no tempo de ll' •",11'' li ' tu entre antissemitismo e medo ele fantasmas.
janeiro de 1592: P,·imcim visitaçiio do Santo Officio às prm,·s ,/11 111,111/ 65. Todas essas lembranças inspiradas no Vomb1tlni1·r de tbéologie biblique,
Dcn1111cinções dn B"bi", JS91-/593, São Paulo, ]925. Sobre os jrnlc11, 1111 Ih ,1 X. Léon-Dufour, Paris, 1971, e. 680-90 e 848-51.
66. Agradeço imensamente ao padre T. Rcy-Mcrmcr por ter-me chama-
Cf. A. Novinski, C,'istiios novos 11n l]nbin, São P aulo, 1972.
~•,, ntenç:io para esse ro mance.
40.J.-B. Thiers, Ji"Oité des s11perstitio11s, 1, p. 236; 1v, p. 347. F. l ,1•h11111
67. G. Simenon, Oeuvrns compl"/:tcs, 1, Le 1·0111/111 de /'bo111111e, pp. 27-9. O
traité ...", p. 455. ohl· r,_Bourdeau indicou-me esse texto. Expresso-lhe minha g ratidão.
4.1. A. van Gennep, i\tfn1111rl..., 1, li, p. 674. 68. J. Bouronier, Co11trib11tio11 ..., pp. 134-46.
42. D. Fabre e J. Lacroix, L" vic quotidiem,e des p11ys1111s ,/11 l .1111/1,/111/ 69. Idem, p. 139.
XIX- siech·, Paris, 1973, pp. H 4-5. 70. A. de Musset, Poésies co111plew, 1954, p. 154 (La Pléiade).
43.J.- B. Thiers, Tmicté des superstitiom, 1, p. 236; F. Lcbrnn, '' I ,,• 11 1111• 71. G. de J\llaupassant, "La pcur", Co11te.rde l" bémsse, cd. L. Conard, Pa ris,
p. 456. 'IIIH, p. 75.
44. N. Bclmont, Mythes et croymues de l'n11cie1me Frnnrr, Paris, l'J71, I' r. l 72. "La pcur", publicado em Le Gr11dois, 23 our. 1882.
45. Idem, p. 63. 7J. M. Lcroux de Lincy, Lr livre des proverbes, 1, p. 113 (Co111édie des pro-
46. A. vai\ Gcnnep, 1\l/111111el..., 1, 11, p. 791. 1brr, ato 1).

639
74. Idem, 11, p. 32 (Gruther, Recuei/). Relatório apresentado pelo Comitê de Estudos sobre a Violência, a Delinquência
75. Ide m, I , p. 113 (A/11u11111ch pcrpétuc/). e a C riminalidade.
76. Ide m, id. (Comédie des proverbes, ato I). 108. M. T.Jones-Davies, U11 pei11tre..., I, p. 326.
77. Idem, I , p. 132 (Bouvelles, P.-overbes). 109. Idem, I , p. 392.
78. Ide m, id. (Ad11gc., fm11çois). 110. Idem, p. 247.
79. Idem, id. (1/dnges fmnçois). li 1. Idem, I, p. 258.
80. Idem, id. (Adnges fi,mrois). 112. J.-C . Nemcitz, Sijou,· dc P01·is, c.-a.-d. Imtructio11s fidelcs, publicad o
81. L. de C amões, OJ"!usíndas, IV, 1, p. 176. cm A. Franklin, ln vie p,-ivie d'nutufois, 27 vol., Paris, 1887-1902: t. XXI, pp.
82. Shakespeare, l e so11ge d'1111e 1111it d'été, p. 1197 (La Pléiadc). 57-8.
83. Idem, p. ll 6I. 113. Essas informações em idem, t. IV, p. 5. Cf. B. Geremex, Les 11111rgi111111x
84. Idem, p. 1203. p111·isie11s 11ux XIV ct XV sieclcs, Paris, 1976, pp. 27 e scg. (com bibliografia).
85. Ide m, p. 11 84. ll4. R. Vaultier, Lefolklore... , pp. 111-2.
86. Ed. Bibl. elzcviriana, Paris, 1855. 115. Citado em idem, p. 113. Cf. Campion, "Statuts synodaux de Sainr-
87. Idem, p. 156. Brieuc", Revue de Brctngne, 1910, pp. 23-5.
88. Idem, id. 116. Idem, p. 123.
89. Idem, p. 35. 117. ldern, pp. 169-70.
118. Idem, p. 170.
90. Idem, p. 36.
119. M. T. Jones-Davies, U11 pei111,-e..., 1, p. 215.
91. Idem, p. 37.
120. Idem, ibidem.
92. Ide m, p. 153.
93. Idem, p. 154.
94. Idem, id.
CAPÍTULO 3
95. Shakespeare, l e so11ge..., pp. 1163-·t
96. M. T.Jones-Davics, Un pei11t1·e de ln vie lo11do11iem1c: Tbomm l)rU11 1. A obra fundamenta! sobre essa questão é agora a de J .-M. Biraben, Les
vol., Paris, 1958, I, p. 294. /10111111es tt ln peste en Frn11re u d1111s les pnys eu,-opims et 111éditerrn111fem, 2 vol.,
97. L.-V. Thomas, A11thropologie..., pp. H-5. l'nris-Haia, 1975-1976. Quanto às atitudes coletivas em tempo de epidemia,
98. Citado e tradu,.ido em C. Schweitzcr, U11 pocte 11/lem1111d du XI ' / 1/1,I utilizei muito a tese de medicina de mmc. M.-C. De-Lafosse, "Psychologie
- Etude s11r Ili vie et les oe11vres de H. Snrhs, Paris, 1886, p. 65. eles foules devam les épidémies de peste du Moyen Age à nos jours e n Europe",
99. Ver mais acima, p. 51. Renncs, I, 1976 (exemplar datilog rafado).
100. Dante, L'e11fe1; trnd. A. Masseron, Paris, 1947, pp. 16, 36, 50,.(o'I 2. Sobre a ação dessas três doenças no século XVlll no oeste da França, cf. F.
101. G. Budé, De tm11sit11 helle11is111i nd rhristin11im111111, t rad. J\1. 1 t li~I l,ebrun, Les hommes et lnmon m A11jo11, Paris, 1971, pp. 367-87, eJ.-P. Goubert,
Shcrhro ok, 1973, pp.•8, 74, 85, 194, 198. Mnlndes ct médeci11s e11 8,-etngue, 1770-1790, Par is-Rennes, 1974, pp. 316-78.
102. E. Tabou~ot D es Accords, Ler big11rr11res et to11clus du Se~~11r111 li, 3. Cf. ].-N. Biraben , Lu ho111111es..., I , pp. 25-48 e 375-7; "La peste dans
Auords, nvec les npophteg;tJJes du sieur Gnu/011/ et les esrmig11es dijo1111ois1·s. l 1111 I l'Europe occidenra!c et 1c bassin méditerranéen", Le co11ro11rs médimf, 1963, pp.
1603, s.p. (parte IV). 619-25 e 781-90; J.-N. Biraben e J. Le Coff, "La peste dans le haut Moycn
103. R. Vaultier, l e folklore pmdn11t ln Guerre de Cem A11s d'"prés /rs /, Ili, Agc",Am1nles. ESC, nov.-dez. 1969, pp. 1484-5 10.
de ré111issio11..., Paris, 1965, pp. 112-4. 4. E. Carpentier, "Autou r de la Peste Noire: famines et épidémies au XVI'
104. Montaigne, Journnl de V0J(lge, pp. 109-10 (o dia d:1 "quint.t li li •lêclc", Am,nles, ESC, nov.-dez. 1962, p. 1082. Cf. do mesmo autor: U11e vil/e
gorda": festim do "Castcll ian"). 1/ev(l11t ln peste: Orvieto et la Peste Noi,·e de 1348, Paris, 1962.
105. M . T . Jones-Davies, U11 peintre..., 1, p. 306. 5. S. Guilbert, "A Châlons-sur-Marne au XJI' siêcle: um conseil munici-
106. R. Pike, "Crime and punishment in sixtcenth-century Spain", /11 11al face aux épidémies", A,mnles, ESC, nov.-dez. 1968, p. 1286.
jom.,,n/ ofeuropem, cro110111ir bisro,-y, n. 3, 1976, p. 694. 6. J.-N . Birabcn, " La peste...", Le rrmcours 1!lédicnf, 1963, p. 781.
107. Répo11scs à /11 vio/ence, 2 vol., Paris, 1977, 11, p. 179 (Press Po1·k1 li 7. H. Dubled, "Co nséquences éeonomiques cr sociales eles morralités du

.... 641
XIV siecle, essentiellcment e n Alsace", Rev11e d'bistoire éco110111iq111• fl 1111 /,i/, 30. J.-N. Bimben, "La peste", Lc t·o1,co1n-s 111édiml, 1963, p. 785.
XXXVIlf, 1959, p. 279. 31. Boccace, Le Dic11111Ero11, p. 9.
8. J .-N. Biraben, Les bo111111cs..., 1, p. 121. 32. D . Defoc, Jounwl de l'n1111ée tle lfl peste..., p. 160.
9. Cf. especialmente B. Benassar, Recber.bts mr lcs grandes .:p11/11111rt 11 33. C. Carriere..., Mnrseillc, vil/e morte..., p. 165.
/e 110,-d de l'Espflg11c à lfl fin du XVI' sii?clc, Paris, 1969; P. Chaunu, / ,11 t11•//lull 34. Storia... di Busto..., p. 29.
de l'E11rope clf1ssiq11e, Paris, 1966, pp. 214-23. , 35. P. Gilles, Histoin ccdésinstiq11c des Egliscs... 1111trefois nppelécs... vnudoim,
10. Completar o livro de B. Benassar com J.-P. Desaivc, "Lc, !'phlt 1111 Genebra, 1644, pp. 508-9.
dans le nord de l'Espagne à la fin du XVI' si~cle", AmJ(l/es ESC, nov. d 1•1 l'lr• • 36. F. de Santa-Maria, Histfri11 das s11gmd11s coug,.egnçães dos cônegos seC11-
pp. 1514-7. l11rtS de S.Jo,-ge e111 fllgn de Venc,n e de S. João ev1111gelist11 em Port11gnl, Lisboa,
l i. Benaerts e Samaran, Cboix de textes histo,-iques, /11 Frnur,· ,1,. 1 'IN 1697, p. 271. Agradeço ao sr. Eugenio dos Santos pelas fotocópias dessa
1610, Pnris, 1926, pp. 34-45. obra.
12. Boccace, Le Déc11111éro11, trad.]. Bourciez, Paris, 1952, p. 15. 37. Essa chamada e o que se segue a partir de H. Mollaret cJ.-B. Rossolct
13. K.-J. Beloch, Bevo/kerrmgsgeschicbte ltnliem, 3 vol., Berlim l t•lp lj •~a. pes_~c, sourcc méconnue d'inspiration arristique", J1J(l1·boeck 196/
1937-1961, 11, pp. 133-6, 160. 1
lfo11mskl1jk M11sc11111 voor schone Kimstm, Anntérpia, pp. 61-7.
14. G. Fourquin, Histoire ico110111iq11e de l'Ocâdc111111idiivnl, l':11 ,~, lt/f, 1 38. Cf. Légmde dorée, 4 de agosto.
p. 324. 39. E . Carpentier, Une vil/e dev11111 ln peste..., p. 125 e peça justificativa n. 111.
15. E. Carpenticr, "Autour de la Peste Noire", A,11111/cs, ESC, 11,w 11 40. Agora na Niedersachsische Landesgalerie de H:rnover. Sobretudo: H.
1962, p. 1065. 1'.lolbret eJ. Brossollet, "La peste, source...", pp. 61-7.
16. Idem, ibidem. O caso de G ivry é reestudado e discutido 11111 .1 N . 4 1. Nuremberg, Gcrman ischcs Nacional Museum. Cf. também M.
Birabcn, Les ho111mes..., I, pp. 157-62. Mc1ss, Pni111i11g i11 Florenu nnd Sie11fl 11fter the lllnrk Denth Pri nceton 195 l
17. C f. M. Postan eJ. Titow, "Heriots and prices in vVinchcst cr 11111111H , ,,. 77. , ' '
Englisb historiml review, 1959. 42. Reprodução em J. Delumeau, La rivilisntio11 de /11 Re1111issa11ce Paris
18. Y. Renouard, "Conséqucnces ct intérêt démographiquc de la 1'1•~11 11'73, ilustração 29, pp. 68-9. Baycrisches Scaatsgemaldcsamm l~ng d~
Noire de 1348", Pop11/11tio11, 111, 1948, p. 4"63. Munique.
19.J.-N. Birabcn, "Ln peste...", em Le co11co11rs 111édiml, 1963, p. 781. 43. Bcnaerts ..., Choi:,; de te:,;tes..., 13-18-1610, pp. 34-5.
20. J.-N. Birnben, Les bo111111es..., 1, p. 116. Cf. também D. Dcfoc, } 11111 11,1/ 44. Citado em M. Devcze. L'Esp11g11e de Philippe I V, 1621-1665, Paris,
de l'mmée de /11 peste, trad. J. Aynard, Paris, 1943, p. 6; F. P. \,\lilson, Thr pl,1111" 1?71, li, p. 318.
i11 Sbnkupenrc's Lo11do11, Oxford, 1963, p. 212. 45. D. Defoe,Jounlfll... de /11 pcsti•, p. 135.
21. Carricre, M. Courdurie, F. Rebuffat, Marseille, vil/e 11101'/r. Ln J>r•lr ,1, 46. C. Carricre, ..., Mnrsrille, vil/e 111orte..., p. 163.
1720, Marselha, 1968, p. 302. 47. Idem, p. 166.
22. G. Galasso, Napoli spagnola dopo Mns1111iello, ápoles, 1972, p. -16. 48. J.-N. Biraben, "La peste", Le co11co11rs médica/, 1963, p. 620.
23. K.-]. Beloch, Bevolkcrtmgsgescbicbte..., Ili, pp. 359-60. J .-N. ílir11l11•11, 49. C. Carricrc, ..., Mnrsdllc, vil/e morte..., pp. 15-7.
Les ho111111es..., t, p. 186·"· 50. Cf. H. Mollaret cJ. Brossollet, "La peste, sourcc...", pp. 15-7.
24. J.-N. Biraben; Les bo111111es..., I, pp. 198-218. 51. B. 13enassnr, RedJf,-cbes..., p. 53.
25. Cf. A. Domingucz.-Ortiz, Ln soâcdnd espaiio/11 e11 el siglo XVJJ, M.1ol1 1, 52. D. Defoc, Joumfll... de ln peste, p. 83.
1963, p. 8l. P. C haunu, Lfl civilisntion de /'E111·ope dflssique, Paris, 1966, p. 21'1 53. C. Carricre, ..., Mnrseille, vil/e morre..., pp. 303-6.
26. J.-N. Biraben, Les ho111111cs..., 1, pp. 13-6. C. Carriere ..., Mrmci/1,·, 1'1111 54. Boecace, Lc Dém111iro11, p. 15.
morte..., pp. 171-8. 55. A. Man~?ni, Lesfi1111cis_, trad. R. Guise, Paris, 1968, 2 vol., 11, p. 64.
27. Citado cm C. Carriere..., p. 163. 56. C . Camere, ... , Mnrmlle, vil/e 111orte..., p. 304.
28. Storin de/111 peste avvem1ta mi borgo di B11s10-Al'sÍ':;io, 1630, Copcnh:1µ 111 , 57. J. Delnrneau, l~ mtholiris111e mtre Lmher et Voltaire, Paris, 1971, p. 241.
J . W. S.Johnsson, 1924, p. 15. 58. M. Meiss, P11i11ti11g i11 Florencc..., p. 77. Excelente estudo local do culto
29. Cf. por exemplo B. Benassar, Recherrhes..., p. 51. Discussiio aproil,11 ,Ir são Sebastião dos srs. Anthony e Schmitt, Le wltc de sllÍ11t Sébnstie11 cu
dada sobre a questiio em J.-N. Biraben, Les hommes..., 1, pp. 147-54. llr11cc, Estrasburgo, 1977.

í.4? 643
59. B. Guedes, Brevt rtlaçtio da f1111dação do ,oligio dos 111rui1101 111/ 1/f 1 92. C. Carrierc, ..., 1Vlarseil/e, vil/e morte... , p. 124.
Nossa Senhora da Graça, Porto, 1951, p. 235. T exto gentilmente for111•1 ltht i" , 93. Idem, p. l09.
E. dos Santos. 94. D. Defoe, Jo,mllll...de ln peste, p. 68.
60. Citado em M. Devcze, L'Espague de Philippe IV, 1621- 166S, 11 , p 11- 95. C. Carricre, ..., Mnrscil/e, vil!c morte..., p. 82.
61. D. D efoc,Jo1mw/... de 111 peste, p. 72. 96. A. Paré, Oeuvres, ed. P. Tartas, Paris, 1969 (segundo a ed. de 1585),
62. C. Carriere, ..., Mnrsei!le, vil!e 1110,·te..., pp. 86-7. 111, p. VIIICXLV. Sobre esse rema, J.-N. Biraben, Lts hommu... , 11, pp. 37- 8.
63. Texto do frei Benedctto Cinquanta citado por R. Quazz:i, /,11 /'" /' ,; 97. Le Maistre, Co11stil préservntif tt mmtif der fievns pestileutcs, Pont-à-
dtrnnzn spag1111õ!a, Milão, 1950, p. 59. •Mousson, 1631, p. 62.
64. E. Carpcnticr, Une vil/e dev1111t la peste..., p. 100. 98. M. Bompart, No11vea11 cbasse-peste, Paris, 1630, p. 6.
65. S. Gui lbcrt, "A Châ lons-sur-Marne...", A1111alu, ESC, nov.- d,•1 JIJfllt 99. L.-A. Muratori, D,/ governo de/la peste, e dei/e 111n11itre di gunrdarmir,
p. 1285. Módena, 1714, p. 329. Cf. também pp. 328-36 e 408-15. Agradeço a B. Bcnassar
66. B. Benassar, Ruher,hes..., pp. 52-3. por ter chamado minha atenção para esse texto.
67. A. Manzoni, lrsfimuis, 11, p. 56; C. Carriere, ... , M11rsdllr, 1111/r 1111,1 100. Citado por L. Chevalier, Le tbolém..., p. 45.
te..., p. 61. 101. Cf. H. Mollaret e). Brossolet, "La peste, source...", pp. 40-1.
68. A. Ma nzoni, Les finucés, 11, p. 58. 102. A. Paré, Oeuvres, Ili, p. VIIICXLJV-XLV.
69. Texto eirado por L. Chevalier em l e cholfra, la prm,ierr ip11lr111lr ,IH 103. M. Bompart, Nouveau (hnsse-pestt, p. 39.
X IX• si'i:de, La Rochc-sur-Yon, 1958, p. 5 (Bibliotheque de la Ré, 0 111!11111 1h
0
104. T ucídides, Guerre d11 Pélopom,ise, trad.J. Voilquin, Paris, 1966, 1 O, 11,
1848, t. XX). rap. LII, p. 143.
70. Idem, p. 93. 105. Boceace, Le Ditn111éro11, p. 10.
71. J.-N. Biraben, "La peste...", em Le co11co11rs 111édi((/I, 1963, p. 7H(, 106. D. Defoe,Jo11r11al...de ln peste, pp. 30-1.
72. Boccace, Lc Déc11111éro11, p. 18. 107. C. Carriere, ..., 1vfarsei!le, vil!, 111ortt..., p. 110.
73. D . Defoe,Journtd... de la ptstt, pp. 24-5. 108. D. Dcfoe,Joumal... de ln pestt, pp. 60-1.
74. C. Carriere, ..., i\llanei!le, vil/e morte..., p. 66. 109.J.-N. Biraben, "La peste...", cm Lc Co,uo11n111édical, 1963, p. 789.
75. L. Chevalier, Le cbolém..., p. 15. l lO. Tucídides, Guerre d11 Pilopo1111cse, 11, cap. Lili, pp. 143-4.
76. B. Benassar, Retherdm..., pp. 52 e 58. 111. Boccace, Le Déca111éro11, p. 10.
77. M. D evcze, L'Espague de Philippe IV, 1621-166>, li, p. 318. 11 2. Th. Gumble, Ln Vie du ginéral Monk, trad. francesa, Rouen , 1672,
78. D. D efoe, Jo11n111/...de li, peste, p. 66. )l, 265.
79. Idem, p. 122. 113. C f. W. L. Langcr, "Thc next assignmcnt", A111e1·ica11 Historicnl Review,
80. D ocumentos inédjcos na posse do sr. Jean Torrilhon, que gc11til1111n )MI, 1958, p. 298.
te os forneceu a mim. 114. C. Carriêrc, ..., Marseil!e, vil/e morte..., pp. 102-3.
81. H. Mollaret e J. Brossolet, "La peste, source...", p. 30. 115. D. Defoe,Jo11mnl... de ln peste, pp. 139-40.
82. D. D cfoe, Journnl...de la peste, p. 99. 116. Idem, p. 141.
83. F. de Santa-Maria, Historia..., pp. 270-2. 117. Idem, pp. 55, 71 e 98.
84. A. M:mzoni, Lu fia11<is, li, p. 105. 118. Idem, p. 72.
85. D. Defoe,Jo11mnl...de la peste, p. 134. 119. Montaigne, Les essais, Thibaudet, Ili, cap. XII, pp. 290-1.
86. Sucessivamente C. Carriere, ..., Mnrseille, vil/, 111orte..., p. 10-1; d1·pul 120. M. Devcze, L'Erpagne de Philippe IV, 1621-166>, 11, p. 318.
L. Chevalier, Lccbolém..., p. 131. 121. D. Defoe, Jo1m1al...de la peste, p. 58.
87. A. Manzoni, Les finucés, li, p. 77: texto de Ripamonti, De p n t r 1111,11 122. A. Mam.oni, Les fi1111ds, 11, p. 77.
fccit mmo 1630, Milão, 1940, p. 81. 123. D. Defoe,Jo11n111/...dt la peste, p. 38.
88. C. Carriêre, ..., Marseille, vi/te mone..., pp. 78-9. 124. Idem, p. 86.
89. D. Defoe,Jounllll...de la peste, p. 70. 125. Idem, pp. 95, 131-44.
90. Idem, p. 59. 126. S. Pcpys, Jo1w11al, ed. H. W. Wheatley, v, p. 65 (3 de setembro de
91. Idem, p. 145. lli6S).

645
127. D . Defoe, Journn/...dc ln peste, p. 57. 159. A. Manzoni, Les fin11cés, li, pp. 76-7.
128. Cf. E . Male, L'Art religieu:x de ln fin du lV!oym Agi-, P11 rlN, 1•111 160. Tadino citado por A. l11lanzoni, Lcs firmais, 11, pp. 63-4.
375 e seg., 423 e scg.; J. Huizinga, Le dédi11 du M0Je11 Age, pp. 141 -~,, i\l 1 161. D. Defoe, Jour,111/... de ln peste, p. 149.
Pninting in Florence..., cap. IT; A. Tenenti, Ln vie et ln mort à tmvr, ; /\111 ,1 162. C. Carriere, ..., Mnmifle, vil/e morte..., p. 103.
siede, Paris, 1952, e as indicações bibliográficas que figuram c111 W, 1 1 •• 163. Idem, pp. 88-98.
"Thc new assignment", p. 297. 164. Idem, p. 100.
129. H. Mollaret eJ. Brossolet, "La peste, source...", pp. 70 -11, 165. J. W. Johnsson, Storia dei/a peste, p. 13.
130. Idem, p. 74. 166. Citado em M. Mollat, Genese médiévnle..., p. 42. Cf. também J.-N.
131. F. Viatte, "Stefano Della Bella: le cinque morti", em 1 /1 ff l///111 lllrnben, Les Hommes..., II, pp. 9 - 14.
1972, pp. 198-210. 167. P. M.arcellin, Tmité de peste, Lyon, 1639, p. 6 .
132. Sobre tudo isso, H. Mollaret e]. Brossolet, "La pesrc, sn1111, 168. M. Bompart, No11venu cbnsse-peste, p. 3.
13-26. 169. C . Carrie re, ..., Mnrseilfe, vil/e mo,·te... , p. 161.
133. Citado em J. Rousset, Anthologie de ln poésie bnrnquc Ji-t111(11i1r, 1'~11 170. Benaerts..., Choi:..- de textes..., pp. 34- 5.
vai., 1968, 11, p. 148. 171. Iloccace, Le Décn111b-011, p. 8.
134. Cf. U. Ruggcri, "Disegni dei Grechetto", em Critim d}mr, 11111 11 172. D. Defoe, Journnl...dc 111 peste, pp. 33-5.
33-42. 173. Cf. E. ,Nickersheimer, "Les accusations d'empoisonnement portées
135. B. Benassar, L'Ho111111e espngnof, Paris, 1975, p. 187. 11~11dant la prcmii:rc moitié du XIV' siecle concre les lépreux et les juifs; leurs
r
136. Frcour..., "Réactions des populations...", Revue de psycholu.~lr i/1 , tclntions avec les épidémies de peste", IV Congresso Internacional de História
pies, 1960, p. 72. d" Medicina (Bruxelas, 1923), Antuérpia, 1927, pp. 6-7.
137. Benaerts, ..., Choix de te:acs..., pp. 33-5. 174. Idem, p. 1.
138. Citado em J. Janssen, L'Allemngne et ln Réfon11e, VII, p. 106 . 175. Idem, pp. 4-5.
139. B. Benassar, Reche,-ces..., p. 56. 176. A. Lopez de Menezes, "Una consecuencia de la Peste Negra en
140. A. Manzoni, Les fin11cés, 11, p. 75. ( :ntnlutia: cl pogrom de 1348", Sef11md, Madri-Barcelona, 1959, ano XIX, fase.
141. G. Galasso, Napofi spng11110/,1..., p. 45. 1, pp. 92- 131. Cf. também A. Ubieto-Ariera, "La Peste Negra en la Península
142. C. Carriere, ..., Mm-.reiffe, vil/e 1110,1c..., pp. 87-8. Ibérica", Cundemos de Historia, Madri, 1975, pp. 47-67.
143. Idem, p. 100. 177. Benaerts e Samaran, Cboix de textes..., pp. 33-5.
144. Siim111tfiche Werkc (ed. Erlangen-Franckfurt), XXII, pp. 327- 1(,, 178. A. Lopez de Menezes, "Una consecuencia...", p. 93.
145. F. P. Wilson, The pf11g11e..., p. 159. 179. B. Benassar, Rechcrches..., p . 49.
146. J. \,V. Johnsson, S1ori11 delf11 peste..., pp. 66-7. 180. R. Baehrcl, "Epidémie et terreur", Annnfes bisto1·iq11es de ln Révof111io11
147. Citado em M. Mollat, Gcuese médiévnle..., p. 40.
l•'mnrnise, xx111, 1951, p. 139.
148. Boccace, Lc Décnmb-011, p. 11.
181. J. \,V. Johnsson, Storin deffn peste..., p. 19.
149.J. Janssen, L'Alfcm11g11e et ln Réfo,we, VII, p. 412. 182. D. Defoe,Jo11r11nl...de ln peste, p . 21.
150. J. W. Johnssoí'l, Sto,·it, def/11 peste..., p. 27.
183. Anedota retomada em A. Manzoni, Lcs fi,mcés, li, p . 70.
151. D. Defoe, Jm1rn11/...dc la peste, p. 95.
184. Cf. A. Manzon i, Les fin11cés, 11, p. 171.
152. C. Carriere, ..., Mrmcilfe, vilfe morte..., p. 79.
185. Todas essas informações em E. \,V. Manter, "Vlitchcraft in Gcneva",
153. Boecace, Le Décnmb-011, p. 10.
]l//w11nl ofModern Histo,y, vol. XLIII, n. 1, mar. 1971, pp. 183-4.
154. Cf. especialmente A. i\fanzoni, Les finucés, 11, pp. 73-6; C. C:on 11111,
Marscille, vil/e 1110,·tc..., pp. 77, 93-4. 186. R. Baehrcl, Epidémie et teneur..., pp. 114-5.
187. Siimmtlichc Wcrke, Erlangen, XXII, pp. 327-36.
155. D. Dcfoe,Joun111/... de ln peste, pp. 30-1, 73-4.
188. D. Defoe,]011,-,,al... de la peste, pp. 126-7.
156. Todas essas informações reunidas por J.-N. Biraben, Lcs 1-/0111111,·•
1, p. 175. 189. Idem, p. 41.
157. Benaerts..., Cboix de te.rtes..., pp. 34-5. 190. Sucessivamente Lutero, Siimmtliche Werkc, XXII, A. Paré, Textes cboi-
158. B. Benassar, Recherches..., p. 56. tlr, p. l55; D. Defoe,Jo11rnnl...de /11 peste, p. 63.

646 647
191. L. Chevalier, Le Cboléra..., p. 19. 5. G. Lefebvre, Ln Grande Pwr de 1789, Paris, 1932, p. 61. O livro de G .
192. Mesmas referências da nota 190. l,efebvre deve ser completado com os estudos de H. Dinet, "La Grande Peur
193. H . Renaud, "Les maladies pestilentielles dans l'orthodoxic 1~1~1111 on Hure-poix", Paris et lle-de-Fmnce, Paris, 1970, xv111-x1x, pp. 99-204; "Les
que", B11//eti11 de l'i11stitm d'bygiene dtt Maroc, TIi, 1934, p. 6. pours du Beauvaisis e du Valois, juillet 1789", idem, 1972-1973, _xx111-xx1~, P~·
194. A. Paré, Oeuvns, 111, p. Vll!CCXXXIX. 199-392. O autor insiste na diversidade dos medos e cm sua desigual d1stribm-
195. T . Vicary, The english 1nans treasun, 1613, p. 223. çlo geográfica. A concomitância dos pânicos autoriza a manter, contudo, a
196. D. D efoe, Joun,a/...dc la peste, p. 167. expressão Grande Medo.
197. Idem, p. 62. 6. G. Le Bon, Ln Révo/11tio11 Frn11çnise et ln psychologie des foules, Paris, 1925;
198. C . Carriere, ..., Marseille, vil/e morte..., p. 76. / 1sycbologic des foules, Paris, 1947.
199. L. Chevalier, Le Cboléra..., p. 136. 7. M . Garden, Lyo11 et les lyo1mais au XVIII' siêcle, Paris, pp. 582-92.
200. Esse texto e as informações precedentes em F. P. Wilson, Thr /lfij , 8. Utilizo aqui uma análise apresentada em meu seminário pela s.ra.
i11 Shakespcare's London, pp. 138-39. l,nurence Fontainc.
201. Essa identificação e as informações que se seguem cm H. Moll1111 t 9. A obra de E. J. Hobsbawn, Les primitifs de la révolte dnus l'Europc mode,·-
J. Brossolct, "La peste, source...", pp. 97-9. llt (cd. francesa de 1963), também permite esse olhar retroativo.
202. Cf. as distinções de B. Benassar, Recberches..., p. 55. Cf. 1111111!,11, 10. E. Morin, Ln rzmrem· d'Orléans, Paris, 1969, p. 108.
sobre as procissões, J.-N. Biraben, Les bommes..., 11, pp. 65-9. .11. R.-H. Turner, "Colleetive behavior", Hand/Jook ofmodem sociology, ed.
203. A. Ma nzoni, Les fiancés, I, p. 69. lt E. L. Faris, Chicago, 1964, p. 398.
204. J. W. Johnsson, Storia della peste..., p. 23. 12. O11est-France, 7 mar. 1975.
205. C . Carriere, ..., Marseille, vil/e morte..., p. 123. 13. E . Morin, La rmne111: .., condensado das pp. 11-116.
206.J. Blanco-White, Cartas de Espaiia, Madri, 1972, pp. 164-5. i\ll i 111h 1 14. Para não adensar a bibliografia, remeto apenas a M. I. Pereira de
a B. Benassar por ter chamado minha atenção para esse documento. (Jueiroz, Réfonne ct révolution dons les sociétés trnditio1111e/les: bistoi,·e et etlmol()gie
207, ).-N. Biraben, Les bommes..., 11, pp. 56-7. Jrt mouvements 1Jtcssim1iq11es, Paris, 1968.
208. Idem, pp. 71-2. 15. Idem, pp. 81-7. Cf. também E.J. Hobsbawn. Les primitifs de la révolte,
209. J. W . Johnsson, Storia dei/a peste..., p. 23.
1•11• 73-91.
210. C itado em H. Mollaret ej. Brossolet, "La peste, source ...", I'· 711 16. Idem, p. 139.
211. C f. Vito sti Rocbi, rmctore F,·. Diedo, em Acta sanctomm, agosto, 111, l'I 17. Idem, pp. 72-5. Cf. também H. Cantril, Tbe psycbology ofsocial mo1Je-
399-407; Acta brevo1·i11, auctore a11011pno, idem, pp. 407-70. Referências 1-11111111 mmts, Nova York, 1948, pp. 139-40.
mente fornecidas pelo padre W. Witters. 18. Cf. sobretudo P. Lawrence, Le mlte du cn,·go, Paris, 1974; P. ,vorsley,
212. D. Defoe, Joumal...de la peste, p. 167. 1/llt som1em ln trompette, Paris, 1977.
213. C. Carrii:re, ..., Marseille, vil/e mone..., p. 118. 19. Cf. sobretudo J. Macek, Jean Hus et les traditions hussites, Paris, 1973;
214. Benaerts..., Cboix des textes..., pp. 34-5. lt l•ricdcnthal, Hérétique et ,·ebelle, Paris, 1977; M. Mollat e Ph. vVolff, Ongles
blettS, Jacques et Cio111pi - Les 1-évolutions populnires au.x Xlv' et Xv' siêclcs, Paris,
11170, PP· 251-70.
CAPÍTU L04
20. Cf. a monografia de F. Graus, "1'1.etskà cbudinn v dobe predbusitoke",
l'rnga, 1949.
l. Y.-M . Bercé, Histoi1·e des Croquants..., t. 2, pp. 674-81. 21. Por exemplo, na Alemanha às vésperas da guerra dos camponeses. C f.
2. D. Mornet, Les o,·igilles i11tellectuelles de ln Révol11tio11 Fra11ç11ú1·, I 111 • t•Sse respeito J. Janssen, La civilisntio11 en Allemngne depuis ln fin du Moyen Age
Paris, 1934, pp. 443-6,
Jlltl/llWU commencement de la G11erre de Treme Ans, 9 vol., Paris, 1887- 1914, 11,
3. G. Rude, Tbe crow i11 bistory, 1730-1848, Nova York-Londres, 11111 1, I' 1111· 439-46.
35. Cf. também Violence a11d civil diso,·der in itnlinn cities, 1200- 1500, l'd 1 22.J. Macek,Jnn HIIS..•, p. 127.
Mart ines, Berkeley, 1972.
23, Idem, p. 139.
4. N. Z . Davis, Society nnd culture in early modem France, Stanfonl , IIJ 24. N. Cohn, Les fimntiques de l'Apocalypse, Paris, 1962, pp. 243-60.
pp. 152-87 com bibliografia, pp. 315-16. 25. P. Dollingcr, Histoire de l'Alsnce, Toulouse, 1970, pp. 212-13.

648
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26. F. Engels, La gr1en-e des paysa11s w Alle111agne, trad. E. Bol 11111 Ili 50. Y.-M. Bercé, Histoire des croq111111ts..., pp. 549-50.
1974, p. 55. 51. Idem, p. 562.
27. Citado em N. Cohn, Les fanatiques..., pp. 247-8. 52. Idem, p. 549.
28. Citado em idem, p. 268. Ver nesse livro a bibliografia, p11, 1l/1 53. J. Delumeau, Vie éco11omique et sociale de Rome dans la secondc moitii riu
também J. Lecler, Histoi1·e de la tolénmce 011 siede de la Réfo1wc, 2 v11I 1 1(11/r siecle, 2 vol., Paris, 1957-1959, t. 2, pp. 542-3. Cf. também F. Braudcl, La
1955, I, pp. 213-5. Mltlire,·nmée et /e 111011de 111éditei-n111ée11 à l'époque de Philippe II, 2 vol., 2. ecl.,
29. Expressão de M. Le Lannou em Le dé'lllé11age111e11t du terrlt11//, I' l1~~is, 1966, II, pp. 75-96.
1967. 54. G. Roupnel, La vil/e et ln campagm a11 XVII' siecle - Etude s111· les popu-
30. J. Froissart, Cbm11iq11es, Société Histoire de Francc, 1117•1, \ 1 (11 {,t/Ío11s d11 pt1ys dijom,ais, 2. ed., Paris, 1955, p. 12.
pp. 60 e 71. 55.J. Delumeau, Vie éco110111iq11e..., II, p. 564.
31. Cf. rl'L J\fo!lat e Ph. Wolff, 011gles bleues, Jacques ct C/0111/1/ 56. J.-P. Gutton, L11 société et les pauvns eu Europe (XVJ•-XVII/' siede),
116-8. l1Mis, 1974, pp. 27-30.
32. Cf. especialmente L. Mirot, Les i11sun·ectiom 1n-bai11es 1111 1M1111 57. F. Brauclel, L111Wéditerm11ée..., II, p. 81.
regm de Charles VI, Paris, 1906. 58. R. Mousnier, F11re111"S pnysmmes - Les paysans d1111s les .-évoltes du XVII•
33.J. Froissart, Cb1·011iq11es, X (1381), p. 95. 1/lde (Fra11ce, Russie, Cbi11e), Paris, 1967, p. 165;].-P. Gutton, La Sociité.._., p. 31:
34. Cf. G. Lefebvrc, La Gnmde Peur de 1789. H. Dinct, o s tlol~ h1111 59. R. Cobb, L11 protest11tio11 pop11/ai,-e m Fm11ce, 1789-1820, Paris, 197,,
artigos citados na nota 5. ,•. 315. .•
35. Comparação estabelecida por Y.-M. Bercé, Histoi,·c d,.s cro,,1111111,, li 1 60. J. Lcbeau, SnhJ11tor 1111111di: /'exemple de Joseph dans /e tbeatre nllemaud
694; Croq11a11ts et nu-pieds, Paris, 1974, p. 168. ,/11 XVI' siecle, 2 vol., Neuwkoop, 1977, r, pp. 367, 477. ,
36. N. \,Vachtel, La vision des vainms - Lcs indiens du Pérou d~l',IHI , 61. R. Mandrou, l,,troduction lr la Fnmce modenze, Paris, 1961, PP· 28-35, 64.
conquête espagnolc, Paris, 1971, pp. 272-3. Cf. também]. Neumann, /<,11111/11 , 62. P. Goubcrt, Louis XIV et vi11gt millions de français, Paris, 1966, p. 167.
i11dieus Tamhu111m·s (1626-1724), trad., introd. e com. L. Gonzalcs, P11rl~, l'll 63. A.- M. Puiz, "Alimentation populaire et sous-alimentation au XVII'
especialmente p. 61. 1l~clc. Le cas de Gencve et desa région", em Po11r 1111e bistoire de l'ali111e11tatio11,
37. Palavras do deputado Cravioto citadas cm J. A. Meyer, Apor1dyp,, rnurd. J.-J. I-Icmardinquer, Paris, 1970, p. 143.
,·évo/11tio11 au Mexique - La guc,-,·e des c-riste-ros 1926-1929, Paris, 197<1, p, ll 64. Idem, pp. 129 e 140.
38. N . Wachtel, La visiou..., pp. 275-6. 65. Cf. i\'1essance, "Les années ou le bié a été le plus cher ont été en même
39. J. Neumann, Révoltes..., p. 61. 1mnps celles ou la mortalité a été la plus grande et lcs maladies plus comnm-
40. J.- A. Meyer, Apocalypse..., p. 77. IW~", Recbercbes sur la populatian, 1756. Citado por R. Mandrou, La Fmnce aux
41.J. Froissart, Cbro11iq11es..., V (1357), pp. 94-5. ~'VII' et XVlll• siécles, 3. ed. 1974, p. 99.
42. C . Portai, "Lcs insurrections des Tuchins", cmAmwles d11 1\ li;//, l lttl 66. Arquivo nacional, p. 1341, f w 280 e ss. Citado cm Et1ules...s111· la pau-
pp. 438-9. 1•1né..., coord. M. .Mollat, II, p. 604.
43. F. Chabod, "L'epoca di Cario v", cm Sto,·ia di Mila110, IX, p. l'IJ \ 67. Parte mais grosseira do farelo.
populações fugiam especialmente para a vizinha Veneza. 68. Et11des...m1· /11 p1mv1·eté... , ed. M. Mollat, II, p. 605.
44. Don J. Vaisette, Histoi.-e générale d11 Lrmg11edoc, 1889, XII, rnL I JIIII 69. J. Delumeau, Vie éco110111ique..., II, p. 622.
-1282. 70. A.-M. Puiz "Alimcntation...", p. 131.
45. H. J. von Grimmelshausen, Les 11ve11t11res de Simplicius Si111plfri11/11111 71. F. Lebrun, Les Ho111111es et ln 111orr..., p. 338.
trad. M. Colleville, Paris, 1963, I, p. 59. 72. Idem, p. 339.
46. Carta de mme. de Sévigné de 5 de janeiro de 1576 em P. Clé1111·u1 , /, 73. Idem, p. 345.
police sous Louis XIV, Paris, 1886, p. 314. Cf. Y.- M. Bercé, Histoin· tlr, , r,, 74. H . Platelle, Journal d'un rnré de ca111pag11e au XVIl' siecle, Paris, 1965,
qual/Is..., I, p. 63. 111'· 90-4, citado em P. Goubert, L'Ancien Régime, 2 vol., Paris, 1969-1973, I,
47. Y.-M. Bercé, Histoire des croq11a11ts..., I, p. 63. 1111, 49-50. .
48. Idem, ibidem. 75. A. Malet e]. Issac, XVII' et XVIII' siecle, Paris, 1923, p. 113, citando A.
49. M. Mollat (coord.), Histoire de l'Ile-de-Fm11ce, Toulouse, 1971, p. Jllll l•~nillet, La 111isi:re m1 temps de 111 Fronde et saint Vi11ce11t de Paul, Paris, 1868.

651
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76. Idem, ibidem. 105. B. Porc hnev, Les so11/evc111ents populaires en Prr111ce de 1623 à /648,
77. G . G. Roupnel, Ln vil/e..., p. 32. Paris, 1963, p. 427.
78. Cf. R. Mandrou, l11trod11ctio11 ..., p. 34. Ela e ra freque nte n:1 F,11111p• 106. P. Goubert, L:-lncim Régi111c, II, p. 126.
ccntrnl dumntc a Idade Média: F. Curschmann, H1111germote im J\littrl,,11, 107. Citado cm Y.-M. Bercé, Hisroire descroqunnts..., 1, p. 322.
Leipzig, 1900.
79. H. de Villalobos, S0111111c de théologic 111ornlc et cm1011iquc, tracl. l111111
sa 1635, cap. x. Justificações para a a ntropofagia também cm Azpw111 li• CAPÍTULO 5
Abrégé d11111n1111d. .., trad. francesa 1602, p. 271, e em E. Sa, Les nphonmm ,/,
co11fessc11rs, trad. francesa 1601, verbete "Manger". 1. A. Flcchtcr, Tudor rebclliom, p. 38.
80. P. Goubcrr, llenuvnis et lc Bcnuvnisis de 1600 à 1730, Paris, IW.U, 1111 2. Idem, p. 33.
76-7. 3. Idem, p. 49.
8 1. Cf. F. Braudcl, Civilisntio11111ntérielle..., Paris, 1967, 1, pp. 89-91. 4. C. Heuycr, Psychoses collectives et suicides collectifs, Paris, 1973, p. 40. Cf.
82. A.-M. Puiz, "Alimc ntation ...", pp. 130-1. 12mbém F. Gambiez, "La peur et la paniquc dans l'histoire", Nlémoircs et cow-
83. F. Lcbrun, les Ho111111es ct la mon. .., p. 340. 1111111icntio11s de ln co111111issio11 frnnçaise d'histoire 111ilitllire, 1, jun. 1970, p. 115.
84. G. Goubcrt, llenuvnis..., p. 609. 5. M . Gardcn Lyo11 et les lyo,mnis..., pp. 585-6.
6. E.-] .-F. Barbier,Jormwl d'1111 bourgcois de Pnrisso11s le regnc de Louis XI V,
85. Y.-M. Bercé, Histoire dcs croqwmts..., li, p. 538, e para o que se 11•11111
textos escolhidos por P. Bernard, Paris, 1963, pp. 218-9.
pp. 538-48.
7. Idem, p. 223.
86. R. Mandrou, b1t1·od11ctio11..., pp. 34-5.
8. J. Kaplow, Lcs 110111s dcs roi.r - Les pnuvres de Paris à la veillc de ln
87. Cf. E. Faurc, Ln disgríicc de 1iirgot, Paris, 1961, pp. 195-293.
Rlvol11tion, Paris, 1974, p. 55.
88. G. Lefcbvrc, Ln Gn111de Pcm: .., p. 105; cf. também pp. 146-8. (h •·~Ili
9. Allctz, Dictiomwire de police 111odemc po11r toute ln Frnnre, Paris, 1823, 4
dos de H. Dinet (cf. nota 5) confirmam o grande número de rebeliões f, 11111111
vol. Aqui, 1, p. 22.
r:lrias na região parisiense cm julho de 1789. 10. Todas essas informações cm Y.-M. Bercé, Hisroire dcs croqunl/ls..., li,
89. R. Cobb, Tcn-eur ct wbsistn11ccs, 1793-1795, Paris, 1965, pp. 257 1/1
IIJ>. 622-4.
90. C . S. L. D:wies, Révoltcs pop11/nires..., pp. 31-2. 11. Idem , ibidem.
9 1. Y.-M. Bercé, Histoire des cmq11n11ts..., li , p. 690. 12. Y.-M. Bcrcé, Hi.,toire dcs croqumm..., 1, p. 300.
92. M. Mollat e P. Wolff, Ongles bicus..., p. 190. 13. Idem, p. 317.
93. C. S. L. Davies, Révoltcs populnh-es... , pp. 53-4. A. Flcchtcr, '/l,,li,, 14. Idem, p. 324.
rebellio11s, pp. 17-20. 15. M. Foisil, Ln Révoltc..., pp. 156-78.
94. C. S. L. D avies, /Uvoltes pop11lflii•es..., p. 54. 16. R. Mousnier, Funurs pnysf//111es, pp. 138-40.
95. Idem, p. 53. 17. Y.-M . Bercé, Histoirc des croq11a11ts..., 1, p. 228.
96. L. Mirot, Lcs i11sm-rectio11s urbnines... , pp. 3-4, 87-94. 18. L ejournal d'1m bourgeois de Pm·is sous le reg11e de François l" (/ 515-1536),
97. Y.-M. Bercé, Oroquants et 1m-pirds, pp. 19-43. cd. V.-L. Bourrilly, Pa ris, 1920, p. 162.
98. M. Foisil, Lll ,Uvoltc des1111-pieds ct lesrévoltes 11ormm1des de /639, 1',111, 19. Idem, ibidem.
1970, pp. 156-8. 20. Idem, p. 164.
99. Idem, pp. 158-60. 21. Idem, p. 148.
100. Y.-M. Bercé, Histoit-e des croq11n11ts..., 1, p. 403. 22. R. H. Turner, Nn11dbook..., p. 397.
10 1. Idem, p. 476. 23. Idem, p. 393.
102. R. Mousnicr, F11,-c11rs pllysmmes..., pp. 123-56. Y.-M. Bc rcé, / lt,11111, 24. A. Storr, L'lnstinct..., pp. 100-8.
des e1-or111n11ts..., pp. 53-82. 25. A. Metraux, Religio11s et 111ngies i11diem1es d:-l111ériq11e du S11d, Paris,
103. Art. 5 do Código Camponês. 1967, cap. 3.
104. Em relação à Provença, Cf. a tese de R. Pillorget, "Les mouvc1111111 26. Relato de T:wannes citado cm J. Escêbe, Tocsin ..., p. 137. Em relação
insurrcctionnels de Provcnce entre 1596 et 1715", Paris, 1976. ~u massacre ele São Bartolomeu, que é preciso recolocar cm seu verdadeiro

6S2 6H
contexto, cf. a obra essencial de P. Joutard, J. Escebe, E. Lecuir, / ,11 \,,, Nyons, 1972, 1, p. 146. Cf. também P.Journrd, L11 Sni11t-B11rtbflemy..., p. 33; D.
-Bnrtbélemy 011 les réso11n11ces d'1111111nssnrre, Neuchâtel, 1976, sobrei ,ulu PI' Richcr, "Aspects socioculrurels des conflits religieux à Paris dans la scconde
30, 33, 41, 45, 51 (nesta última página consta a aproximação com os 1111m,111 111oitié du XVI' sieclc", Amwles ESC, 1977, pp. 770-1.
praticados pelos tupinambás). 53. N. Z. Davis, Society..., pp. 165-6.
27. Memórias de Claude Haton publicadas em 1857, citadas emJ. 1 -111 54. Histoire de Toulouse, ed. P. \IVolff, Toulouse, 1974, p. 276.
Tocsi11 ... , p. 82. 55.). Estehe, Totsill ..., PP· 98-9.
28. 1Vlé111oh·cs de l'estat de ln Fnmce sous Cbn,-les IX, s.l., s.d. (ohn1 p111t, 56. J\tlé111oi1·es de l'estnt de /11 Fmnce..., p. 247.
cante), p. 205. 57. N. Z. Davis, Society..., p. 167.
29. G. Lefebvre, Ln Grande Peur, p. 87. 58. Idem, pp. 152-3 e 167.
30. F. F uret e D. Richet, La Révof11tio11 Frn11çnise, Paris, 1973, p. 1H 59. Idem, p. 165
31. Embora as rebeliões tenham sido mais numerosas do que i1111111l111111 60. C itado em P. Bcuzarr,Ln l'épressio111) Vnfencie1111es... , p. 25. Co,.,·espoudrmce
G. Lefebvre, sobretudo no Hurepoix. dr Mnrg11e1·itr de Pnrme nvec Philippe II, 1, p. 176.
32. Essa informação e as que seguem em P. Caron, Les 111ass11cro dr ,,, 61. O dossiê abaixo, apresentado por D eyon e A. Lottin em meu semi-
te111brc, Paris, 1935, p. 366. n~rio, deverá fornecer material para um livro (a ser publicado pela Hachette).
33. Idem, pp. 367-8. Cf. também E. de Moreau, Histoire de l'Egfise e11 Belgique, Bruxelas, V, 1952,
34. Idem, p. 102. pp. 122-8.
35. Documentos citados em idem, pp. 450-451. 62. M. Foisil, Ln révofte..., pp. 203-6.
36. Y.-M. Bercé, Histoirc dcs c,-oq11n11ts..., li, p. 543. 63. Y.-M. Bercé, Histoi,·e des croq11n111s..., I , p. 369.
37. Idem, I, p. 432. 64. Idem, 1, pp. 422-3.
38. Idem, I, p. 324, e J\II. Foisil, Ln révolte, p. 271. 65. Idem, ll, p. 666.
39. E. Le Roy-Ladurie, Les pnysn11s..., 1, p. 497. 66. R. Mousnicr, F11re111-s pnys11111m, p. 146.
40. Y.-M. Bercé, Histoire dcs croqunms..., 11, p. 585. 67. Y.-M. Bercé, Histoire des croqurmts..., ll, p. 666.
41. Idem, 11, p. 621. 68. M. Gendror, Snim L.-M. Grigt1io11 de Mo11tfort - Oe11vres compli!tes,
42. Y.-M. Bercé, Histoire des croq11n111s..., p. 73. Paris, 1966: cântico CVIII, p. 1461.
43. Cf. especialmente N. Z. Davis, Society nnd cul111re..., pp. 27-8, 1111, 1111 69. Idem, p. 1460.
e ss., 175-83; E. P. Thompson, «Tbe moral economy of chc English crrn, ,1111 70. Idem, cântico c1, p. 1419.
thc e ightecnth century", Pnst n11d presem, fev. 1971, pp. 115-7; O. 11111!1111, 71. F. C hevalier, L'A111érique lntine, de l'i11dépt11dn11u à 110s jours, Paris,
"Womcn in Rcvolution, 1789-1796", idem, nov. 1971, p. 39 e ss. 1977, p . 473.
44. N. Z. Davis, Society..., p. 88. 72. Sobre "o emaranhamento dos aspectos festivos e dos aspectos revol-
45. R. Cobb, Ln proustntio11 popu/nÍ1'e..., p. 158. tosos", na Fran ça, em 1790, por exemplo, cf. M. Ozouf, La fite révof11tio1111nire,
46. L. Pliouchtch, Dn11s /e rnmnvnl de f'bistoire, Paris, 1977, p. l 5f. 1789-1799, Paris, 1976, p. 50.
47. Cf. N. Z. Davis, Society..., pp. 154, e 315-6 para as remissões hihll11 73. Relato nas J\tlé111oi1·es de Felix Platte,: Cf. J. Lecler, 1-/istoire de ln tofé-
gráficas a G. Rudé, E. J. Hobsbawm, E. P. Thompso n, C. Tilly, E. l .c 1(111 r,111ce d11 siede de ln Réfonm, 2 vol., Paris, 1955, 1, pp. 225-6.
-Ladurie; lista ess~ a que é preciso acrescentar Y.-M. Bercé. Guill.1111111 74. Citados cm J. Janssen, L'Afle111ng11e et ln Réforme, VI, pp. 9- 10.
Paradin, Mé111oires de l'histoii·e de Lyon, Lyon, 1573, p. 238. 75. Idem, p. 10.
48. E. Le Roy-Ladurie, Lcs pn)'Snlls..., ,, pp. 394-9. 76. P. Beuzat, Ln ,-épressio11 11 Vnle11áem1es..., p. 20.
49. Cf. as considerações sempre úteis a esse respeito de G. Le llon, /', 1 77. G. Le Marchand, "Crises économiques ec atmosphêrc sociale en
cbologie des fo11les, 1947, pp. 78-92. milieu urbain sous Louis XIV", Rev11e d'bistoire 111oderne ct co1Jtempornim, 1967,
50. Sobre o papel dos açougueiros: M. i\follat e Ph. \,Volff, Onglt-.r /,/, 111. p. 251.
p. 231. 78. Textos citados em F. Pontieux, "Prédictions... ", dissertação de mes-
51. Seja como for, problem:ítica nova que se reúne à minha cm N . / trado, Paris, Université de Paris 1, 1973, p. 98, e conservados na Bibliothcque
Davis Society ..., pp. 152-6, 164-7, 170-80. Nntional, Paris, respectivamente res. PS 149,288,215 e 217.
52. G. Lambert, l-listoire des g11e1ns de religio11 CI/ P,-ovwce, 1530- / IIJ,~, 79. Cf. F. de Vaux de Foleticr, Miffe r111s d'histoin des tzign11es, Paris, 1')70.

654 655
80. Cf. B. Geremek, "Lcs Hommes sans maitre - La ma rgín:111111 , 111 l•I 4. Idem, pp. 192-4.
à l'époque préindustrielle", Diogene, abr.-jun. 1977, sobretudo p. 32. 5. Poisie /atine chrétiem,e d11 Moyen Age (111'-XV' siccle), sei., trad. e com. H.
81. Cf. P. A. Slack, "Vagrants et vagr:mcy in England, 19m IM t Spitzmuller, Tournai, 1971, pp. 15, 23,391,447, 563.
Eco110111ic History Re-view, 2• série, XXVII, 1974, p. 366. B. Gercmck, " l ,11" 11111" 6. F. Rapp, Riformes et rifonnntion à Strnsbo11rg - EgliJt tt sociéti da111 /e
mes sans mattre ...", p. 45. Jiocese de Strnsbourg, Paris, 1974, p. 160.
82. A respeito disso tudo, o livro capital de B. Geremck, Lfs 111111 )ll/1111 7. J. Huizinga, Le Dédin du Moyw Age, 1967, p. 34.
parisieus aux X l lfi et xi-- siecles, Paris, 1976, pp. 29-38, 202-22. Cf. ta111l1fo1 \l 8. E. Male, ü,rt rtfigimx de la fin d11 Moym Age en Frnnce, 1925, p. 440.
Mollat, Les pauvres an Moym Age, Paris, 1978, principalmente pp. 23~ 1111 9. E. Delaruclle, ..., L'Eglise a11 te111ps d'll Gra11d Schimte, Tournai, 1964, 11,
83. N. Versoris, Livres de raiso11 de m • N. Versoris (J 519-1530), ccl. ( :, l'K 11,827.
nicz, Paris, 1885, p. 36, citado emJ.-P. Gutton , La sociéti et lu pauvru: l'rlrn1fl 10. Dons l'attente de Dim, Paris, 1973, p. 56. Tomei emprestado desse
de ln ginirnliti de Lyo11, 1534-1789, Paris, 1971, p. 229. Sobre a escnh11l11 1h livro o título do presente capítulo.
medo dos pobres, cf. também, Et11des sm· l'histoire de la pnuvreti (1\1/oy,i, 1 11. P refácio a H. Tnstitoris eJ. Sprenger, l.e Martrn11..., p. 59.
- XVI• site/e), ed. M. Mollat, 2 vol., Paris, 1974, II, pp. 542-6. 12. Abaixo faço um resumo da nota 26 sobre o livro XX de La cité de Dieu
84. C. S. L. Davies, "Révoltes populaires en Angleterre", Am111/rs, /1 ',t cm Oe-11v1·es de s11i11t A11gu.sti1, (Bardy, trad. francesa Combes), Desclée de
1969, pp. 46-8. Brouwer, 1960, t. XXXVII, pp. 768-70.
85. Citado em Y.-M. Bercé, Histoire des croq11n11ts, 1, p. 251. 13. Cf. capítulo 5.
86. Cf. a esse respeito o excelente artigo de B. Geremek, "Crinilll\tlll,
14. Br. W. Bali, A great upectnrio11, Leydc, 1975, principalmente pp. 2-3,
vagabondage, paupérisme: la marginalité à l'aubc des Temps modcrnc,", Hrr 111
160-77.
d'histoire 111oderne et co11te111porni11e, XXI, jul.-set. 1974, pp. 337-75.
15. Cf. o artigo de J. Séguy, "Lcs 11011-conformismcs religieux", Histoirc
87. A. Paré, Oeuvres, ed. P. de Tartas, p. MLIII. Citado em R. Ch,11 1h t
,lesreligions, li, pp. 1229-303 (La Pléiade).
"Les élites ct les gueux - Quelques représentations (XVJ'-XVII' siccle)", Nt1'I"
16. Cf. acima, capítulo 4.
d'histoil'e 111oden1e et co111emportti11e, p. 379.
17. Útil invocação desses textos em]. Fournée, Le j11ge111ent dernier d'apres
88. B. Geremek, "Criminalité, vagabondagc ...", p. 357.
lt vitrail de Coutanm, Paris, 1964, pp. 29-58.
89. G. Hermant, Discours chrestie11 pot1l' le bureml des pa11v1·es de !Jr11111'11/1
18. R. Aubenas e R. Ricard, L'Eglise et la Renaissa11ce, Paris-Tournai, 1951,
1654, p. 5.
90. Essas informações em B. Gcremek, "Criminalité, vagabo111l:11(t' " f), 364.
pp. 354-6 (com bibliografia), e em E. M. Léonard, The em·ly bistory of r1111,//1/, 19. J. Fournée, Lej11ge111mt dernier. .., pp. 166-7.
poor refie[, Cambridge, 1900, recd. Londres, 1965, pp. 80 e ss. 20. Sobre tudo o que diz respeito ao milenarismo português e ao padre
9 1. J.-P. Gutton, Ln sociiti tt lts pa11v,·,s..., génirnlité de Lyo11 ..., pp. 200 1 Vieira, cf. R. Cantei, Propbétisme et 111essia11isme dons l'oeuvre d'A. Vieira,
Cf também em M. Mollat, Etudes sm· J'histoirc de la ptmvreté, II, p. 531)-•I/ (~ 11oris, 1960. As duas principais obras de Vieira são Hist6ria do futuro e Clnvis
criminalidade de grupos). /irophetnrm11.
92. Idem, pp. 201-9. 21. O corpo do rei Sebastião foi encontrado em Rabat em 1957.
93. Citado por J. Kaplow, Les 110111s de rois..., pp. 229-30. 22. Cantei, Prophitis111e..., p. 101.
94. G. Lefcbvre, La Grande Peur, passim, e H. Dinet, "Les pc111 , ,111 23. Idem, p. 146.
Beauvaisis et du Valois", sobretudo pp. 257-74. 24. Sobre a impordncia atribuída às profecias de Daniel na Alemanha do
,c!culo XVI, cf.J. Lcbeau, Salvator1111mdi, 1, pp. 525-34.
25. Br. W. Bali, A great expectntion, pp. 29-30, 38-9 e 97.
CAPÍTULO 6 26. D. \.Veinstein, Snvo11nrofe et Florence; p,·ophitie et pntriotisme à ln
H111nissn11ce, Paris, 1973.
1. Ed. Pognon, L'a11 mil/e, Paris, 1947, pp. XIV. 27. Idem, p. 86.
2. G . D uby, L'nn 11Jil, Paris, 1967, p. 9. Cf. também P. Riché, "Lc 111yd11 28. Idem, p. 89.
dcs terreurs de l'an mi l", em Lts ten·euri de /'011 2000, Paris, 1976, pp. 21-'I. 29. Idem, p. 101.
3. L. Grodccki, ..., Lc siede de l'a,1 111if, Paris, 1973, p. 214. 30. Citado em idem, pp. 148-50, Prediche sopro Aggeo, dez. 1494.

657
31. M. Niahn-Lot, Cbristophc Colo111b, Paris, 1960, p. 150. A rcs1wlt1111, 54. R. Garcia-Villoslada, Rníces bistó,-icns dei lutern11is1110, Madri, 1969,
aspectos escatológicos do descobrimento e das missões na Amé riL•u, 1 I 1, ,,. 236.
Richard, Ln "Conqttête spirituelle" du Mexique, Paris, 1933. M. ll11111llh11, 55. D. Korn, Das Themn..., p. 57.
"Nouveau Monde et fin du monde", Ed11cntio11 nncio11nle, dez,. 1952, 11 1 56. E.-L. Eisenstein, "L':ivênement de l'imprimerie et la Réforrne",
"Evangélisme et millénarisme au Nouveau Monde", em Cormmts n·fl/Jlr11, 1bmnles, ESC, nov.- dez. 1971, p. 1355, corrigido por R. Garcia-Villoslada,
hrmumisme à ln fin du Xv' et nu début du XV!' siede, Paris, 1959; P. L. llht•I~,, H.11/ces..., p. 286.
The mi/Jeni11111 kingdom of the frrmciscnns in the New World, Berkeley, 1111n1 1 57. E. Male, L'nrt religieux de ln fin d11 iWoyw Age..., p. 444.
Lafaye, Quetznlcóntl et Gundnlupe - Eschntologie et histoire du Mexiqm, 1,llh 58. Idem, p. 448.
1972, I, pp. 135-90; "Le messie dans le monde ibérique", em Méln11gesdr /111 ~• 59. Idem, p. 156.
de Velazquez, Vll, 1971, p. 164- 83. 60. H. Vloelfflin, Die K1111st Albrecbt Diirers, Munique, 1905, p. 45.
32. Cf. M. Bataillon e A. Saint- Lu, Las cnsns et la défmse des iudie11J, 1'1111 61. J. Lebeau, Snlvmo,· 1mmdi..., r, p. 475. A respeito das expectativas
1971, especialmente pp. 41 e 262. ,1pocalípticas da época da Renascença, ver também a importante obra de
33. M. Lutero, Propos de tnble, ed. G. Brunot, Paris, 1844, pp. 276 11, C.-G. Dubois, Ln co11ceptio11 de l'histoin de Fnmce nu XVI• sieclc (1 '>60-1610),
34. Idem, pp. 274-5. Pnris, 1977, pp. 387-583.
35. H . Bullinger, Cem sen11011s sur l'Apocnlypse de Jésus-C/n-ist, cd. .J1 ,111 62. G. Francastcl, "Une peinture antihérétique à Venise?", Annnles, ESC,
Crespin, Genebra, 1558 (prefácio). jrn.-fev. 1965, p. 16.
36. Citado em D. Korn, Das Themn de jii11gste11 Tages in dei· d1·1111./1rH 63. Idem, ibidem.
Litcmtm· de., 17. Jahrhtmderts, Tübingen, 1957, p. 16. 64. P. Braunstein, "Arristes allemands et flamands à la fin du Moyen
37. Idem, pp. 26-7. Age", Amwlcs, ESC, jan.-fev. 1970, p. 228.
38. Citado em Br. W. Bali, A gi-eat expeantion, pp. 28-9. R. Baxtcr, / /,, 65. P. de Vooght, L'hérésie de Jean Hus, Louvain, 1960, p. 24-29.
sni111s...,·est, pp. 837 e 791. 66. I dem, p. 347.
39. Citado em idem; R. Sibbes, The b,·ide's lo11gi11g for her brid,·.~r1101111, 67. Idem, p. 346.
secoud coming, 1638, p. 34. 68. Idem, p. 78-9.
40. Respectivamente I Jn II, 18, e IV, 3, e Paulo, Epístola aos Tcss:!111111 69. E. Delaruelle..., L'Eglise nu te111ps d11 Grn11d Scbisnre..., ll, p. 642.
censes, 11, 3-4. 70. Opertr 011nrin, Veneza, 1745, Ili, p. 138.
41. Cf. A. Chastcl, "L'Apocalypse en 1500", Bibliotbeque d'h11111r111i.1111r 11 71. Essas informações e as que se seguem em Fages, Histoire de snint
Rennimmcc, t. XIV (Mélangcs A. Renaudet), 1952, pp. 124-40. Vi11ceut Ferrier, 2 vol., Louvain-Paris, 1901, 1, pp. 320-35.
42. J. Chocheyras, Le théíitre religieux e-n Savoie a11 XV!' siede, G c11du ,1, 72. Idem, pp. 311-2.
1971, p. 24. 73. Idem, p. 324.
43. G. Duby, L'n11 mil, p. 10. 74. L. Poliakov, Histoi,-e de /'a11tisé111itis-me, 2 vol., Paris, 1961, II, p. 166.
44. E. Delaruelle..., L'Eglise nu temps du Gnmd Schis11Je..., 11, p. 640. 75. Idem, p. 173.
45. J. Preuss, Die Von-tellrmgen vom Amichrist im spiite,·e11 N/ittt/11/111 , 76. Na Inglaterra do século XVII constata-se uma concomitância (e sem
Leipzig, 1906, p. 28. ·, dúvida uma interação) entre expectativas apocalípticas cristãs e messianismo
46. J. Janssen, L't1 civilisntio11 en A llcmag11e..., VI, pp. 230-1. judaico: B. W. Ball, A r;rent expectation, pp. 178-9.
47. D. Korn, Das Tbemn..., p. 64. 77. Cf. D. \oVeinstein, Snvo11arole et Flonnce, pp. 343-5. Esse quadro
48. L'attesn dcll'età 1mova 11ella spiritt/f/lità dei/a fine dei Nledioevo, 'li11II, encontra-se no Fogg Museum of Art, na Universidade de Harvard.
1962, comunicação de E. Delaruelle, p. 53. Republicação em E. Delaruc llc, /,,1 78. Idem, pp. 361-4.
piété populnii-c nu Moyen Age, Turim, 1975. 79. Citado em idem, p. 356.
49. J. Janssen, Ln civilisatio11 m A llemagne..., VI, pp. 231-2. 80. D. Cantimori, Et·etici itnlinui dei Ci11q11ece11to, Florença, 1967, p. 11.
50. L. Febvre e H.-J. Martin, L'apparitio11 du livre, Paris, 1958, p. 181. 81. R. Garcia-Villoslada, Rníces..., p. 235.
51. E. Male, L'nrt religieux de la fin du Moyen Age..., pp. 442-3. 82. Luters We,·ke, \oVeimer, VI, p. 454.
52. L. Febvre e H.-J. Martin, L'apparition d11 liv,·e, pp. 442-3. 83. Idem, XI, 2, p. 380. Cf. J. Lebeau, Salvntonmmdi..., 1, pp. 527-8.
53. H. Zahrnt, Dans l'attente de Dieu, pp. 56-7. 84. Idem; Dwtscbe Bibe/, V!!, p. 416.

658 659
85. M. Lutero, Propos de table, pp. 275-6. 108. A. d'Aubigné, Les N·ngiqucs, VI, por volta de 1075-79.
86. Idem, p. 276. Cf. mais genericamente sobre essa 1111c,i.1u, \\ 109. Idem, por volta de 1129-30.
Peuckert, Die G1'0sse We11de; das npoknlyptische Snemlrm, 111111 Lmlm; 11'111111111 110. Idem, por volta de 11 31-32.
go, 1949. 111. E. Deschamps, Omvrcs compli:tcs, VII, p. 114-5, balada MCCXI,.
87. J. Janssen, L'Allemagnt et la Riforme, VI, p. 394. 112. M. Lutero, &hort11tio11 à la prii!,-e co1m·c /e Ti1rc, Gcnebr:1, Labor er
88. Idem, p. 395. fides, 1957-8, v11, p. 276.
89. Cf. J. Lebeau, Salvntor 1111111di, 1, pp. 528-9, e 11 , pp. 846-7. 113. Contribuição de W. Frijhoff a P1·opbetes et so1·cien "":,; P11yx- ll11s (:1 ser
90. Trois livres dts quatre e111pires so11verni11s..., Genebra, 1557, p. 11'I 1 1 publicado).
tado em C.-G. Oubois, La co11ceptio11..., p. 439. 114. E. Panofsky, Ess11is d'iconologie, Paris, 1967, pp. 115-30.
91. C.-G. Dubois, Lfl conceptio11 ..., p. 425. 115. Gerson, De disti11ctio11c vemn1111 visiomm, n fi,lsis; Opera, 1, p. 411. C f.
92. Epitres et Evflngiles pour les ci11q11mlte et de11J: se111ni11es de /'r,11 (1 ~J l i J. Huizinga, Le dicli11 ..., p. 202.
"Sepcié':me dimanche apré':s la Penteaste". C f. J. Boisset, "Lcs Epiu 1, • 1 116. P. Viret, Lc monde à l'm,pire..., p. 207.
Evangiles pour lcs cinquante et dcux semaines de l'an par Lefcvrc E111plt , 117. Citado em E. Oel:1rucllc, L'Eglise "" temps d11 Grflnd Schisme, li, pp.
em P/111011 et Arislote;, lfl Rennissm1ce, Paris, 1976, p. 85. 894-5.
93. J. Calvin, Str111011s s11r les dtu.r: epistrts de sai11ct Paul à Ti11101bfr, ri 1111 118. Trnicti llc ln coK"oissm,ce llc Dieu, Paris, 1625, pp. 59-60. Cf, bem
l'epislrt;, Tile, Genebra, 1563, pp. 502-3. como para o texto seguinte, F. Laplanche, Religio11, c11/t11re ct société da1Zs /e
94. "De o rbis perditione", Ch1·isrin11is111i restiwtio, reimpressão c111 N11111111 lliscours npologétique de lfl tbéologie 1·éfon11ée til France fltl XVI I' siicle (1576-1670),
berg cm 1791 da edição de Viena de 1553, li, cap. 1, pp. 388-410. monografia de terceiro ciclo, Paris, Université de Paris IV, 1975, pp. 22 e 223.
95. Obra publicada cm Genebra em 1550. Aqui, pp. 203-7. Virei cum ltl,• 119. G. Pagard, Thiologic 1111N1relle..., ed. Niorr, 1606, p. 458.
o cristão :1 abandonar toda preocupação terrestre. "Monde à l'empirc" ~i1111III 120. P. Viret, Le 111011de;, l'e111pire..., pp. 203-4.
ca "monde qui empire". Cf. C.-G. Dubois, Lfl conceptio11 ..., pp. 443-65. 121. Idem, p. 207.
96. Deux un11ons de /11 fi11 du siede et du j11ge111mt ;, ve11ir llr N. S . .7 1 , 122. Idem, p. 347.
Genebra, Crespin, 1557, p. 38. 123. T. Malvenda, De Amich,-isto. Utiliza-si! aqui a edição completada de
97. A. Chastel, "L'Apocalypsc de 1500...", PP· 131-6. Lyon, 1647, 1, p. 106.
98. M. Bamillon, Ernsme et l'Espng11e..., principalmente pp. 68-9. 124. Tdem, pp. 100-1.
99. R. Roussat, Livre de /'estnt et 11111tatio11 llts temps pro11va11t p11,- flt1tho1tt, 125. Alfonso X, o Sábio (1221-1284), que coordenara a redação das Tábuas
de l'Ecriture et pnr miso11s nstrolog,tles ln f,11 d11 mo11de estre p1'0chai11e, l.yrn1 , Alfonsinas.
1550, JJ· 86. 126. C. Colombo, Ocuvres, apres. e t rad. A. Cionanescu, Paris, 1961, p.
100. G. Puclli-Macsrrelli, "Un gnmd prilnt c11 R1tssie fl11 XV siedc: Grn11mli/, 300. Fica cm aberto a questão de saber se Cristóvão Colombo pensava que
nrchevêq11e de Novgoroll", dissertação de mestrado, Vincen nes, 1970, p. 66. ~ passados os 7 mil anos seria o momento do Juízo Final ou do 111illt11i11111.
101. A. Paré, Ornvres, n, p. VII'. Em seu Cfltecismo crisri,1110 (1 ~~li), 127. Cf. acima.
Carranza fica desolado :10 constatar que a sífilis, enviada por Deus para c,1, 11 128. P. Viret, Lc monde;, l'impire..., p. 207.
gar os devassos, já não p'tovoca medo ou asco. 129. R. Roussat, Liv,·e de l'ut11t et 11111tation..., p. 86.
102. D. Du MonqCorps 1111ivcrsel lliplo111ntiq11e d11 ill'Oit lles gens... , A1m11·1 130. P. 23-4.
dã, 1728, V, parte 1, pp. 35-41. 131. P. 10.
103. F. Jsambert, Ruueil des a11âe,mes /ois fr1111çnises, Paris, 1829, XIV, p. 11\ 132. Cf. cap.2.
104. J. Bodin, Db110110111f111ie des sorciers, Paris, 1580, p. 12r•. 133. Idem, E. Labrousse, l'emrée de S11t11me..., p. 7, n. 21.
105. H. Institoris e J. Sprenger, Le 111f1rtcn11 dcs sorcii:res, p. 260. 134. C. Hill, A11tichrist i11 seve11teentb-ce11tmy E11gla11d, Londres, 1'971,
106. E. Forsyth, Lfl t'l'llgidie frn11rnise llc Joddlc à Comei/te (J 553-1660), l ,, p. 25.
the111e de ln vmgea11ce, Paris, 1962, p. 250. Cf. também J. Trencl, l.'rlé1111111 135. fdem, p. 26.
biblique d1111s l'oe11v,·e poéliq11e d'Agripp" ll'A11big11i, Paris, 1904, principalmt·1111 136. B. W. Bali, A great e:rpectntio11, principalmente pp. 115-25.
PP· 33-6. 137. Idem, p. 2.
107. Ed. de 1961, Paris, p. 23. 138. D. Korn, Das The11111..., p. 57. Sobre os temores escatológicos na

660 661
Alemanha durante a segunda metade do século XVI e no início do século \ 1'11 , 14. J. Balrrusaitis, Le Nloyen Age jàmnstiqm·, Paris, 1955, principalmente
cf. J. Jansen, L11 civilisntio11 eu Ale111ng11e..., VI, pp. 394-402. pp. 153, 164, 169, 187.
139. Cf. C I.-G. Dubois, Ln w1ceptia11 ..., pp. 510-6. 15. Idem, pp. 229-32.
140. C. Hill, Amicb,·ist..., p. 17, n. 5. 16. Museu de arte antiga.
141. Idem, p. 16. 17. H. Institoris e I. Sprenger, Le 11111rte1111 ..., p. 387.
142. Dublessis-Mornay, lc 111ystere..., Saumur, 1611, p. 606. 18. Idem, pp. 385-6.
143. H. Smith, Scr111011s, 1631, p. 416: eirado em C. Hill, Anticbrist..., p. \J 19. Obra redigida na primeira mernde do século xv. Cf. J. Lcfclwrc, /.,·s
144. C . Hill, Amichrisr..., p. 17, n. 5. fois ct ln folie - E///de mr !ts genres d11 co111iq11c ct ln rdatia11 littérnire eu ,-ll/m111g11r
145. Citado em B. \,V. Bali, A grMI expectntio11, p. 17. pc11dnnt 111 Re111u1i.m111ce, Paris, 1968, pp. 94 e 185.
146. Sobre isso tudo, idem, pp. 36 e 89-90. 20. Cf. idem, principalmente p. 112.
147. Citado em idem, p. 90. W. Alcxander, Don111s-d11y, p. 25, cn, Nr, 21. ldem, pp. 181-8.
rentions with the Musrs, 1637. 22. H. Institoris ej. Sprenger, Lc 1n111·ten11..., p. 127.
148. Citndo em idem, p. 96. T. Adams, A co111111cntnry... 11po11 the dil'llll 23. Cf. J. Lefebvre, Les fois ..., p. 90.
secoud Epistle... written by riu blessed 11postlt St. Pcte,; 1633, p. 1138. 24. ldem, pp. 179-83.
149. Idem, pp. 100- 1 e 106. 25. Essas oito cirnções na ed Labor et Fidcs das Owvres de L111,•1·0, suces-
150. J. Jansscn, Ln â vilisntiou eu Allemngm..., VI, pp. 395-6. sivamente: 11, p. 152; 111, pp. 105 e 194; 11, pp. 270 e 137; IV, pp. 177, 198-9.
151. F. de Raemond, L'Amicbrist, Lyon, 1597, p. 132. Citado cm C. C. 26. Cf. A. Agnolctto, "Storia e non storia in Filippo Mclantone", N11avn
Dubois, Ln ca11reptia11..., p. 528. Revista Storim, 1964, XLVIII, n. 5-6, pp. 491-528; "Appunti su ll'cscatologi• in
152. A primeir:1 edição do De Amichrista de Malvenda saiu em 1(,() 1 Filippo Mclantone", Balleti110 dr/ia Sacittà di Swdi Vnldtsi, 1966, LXXXVII, n•
L'llpacnlypse nvec une e.i-plicntia11 de Bossuct data de 1689. 120, pp. 7-17.
27. Citado em J. Jansen, Ln civilisntia11 e11 Allc111ng11e..., VI, p. 448.
28. Idem, p. 440.
CAPÍTULO 7 29. Todas essas informações sobre o satanismo no teatro alemão da épo-
ca em idem, sucessivamente pp. 275,289, 29 1, 297 e 309.
1.]. Levron, Le dinblt dn11s /'nrt, Paris, 1935, pp. 14-8. 30. S. Brant, Nns Nnrmmhiff, reed., Hildeshcim, 1961, sucessivamente pp.
2. Cf. J. Le G off, Ln civilisn1io11 de l'Occidc11t 111édiévnl, iconografia~ d.,~ 1-9; 27; 26-30; 48; 62-9; 103; 72-88. Cf. também J. Lefcbvre, Lcs fois..., p. 98.
pp. 232-3. 31. Citado cm J. Janssen, L11 ávilisntio11 en Al!e11111g11e..., V III, p. 56.
3. Y. Lcfcvre, L'E/11cidrll'ilm1 et /es lucidnires, Paris, 1954. 32. H. Institoris e J. Sprenger, Lt 111nrten11, pp. 17-9 (introdução).
4. Idem, pp. 160-71. 33. Tdcm, VI II, p. 558, e S11tn11, 1948, p. 653 (Etudes Carmélirnines, 27).
5. E. Male, L'tm religieux i, ln fin du Moyen Age, p. 468. 34. C. E. Midelfort, Witch hrmtiug i11 So111hwestem Gerwnny, /562-1684,
6. Idem, pp. 467-8,A esse respeito, é preciso corrigir E. Male; cf. Su1111111 Stanford, 1972, pp. 69-70.
théologique, suplement9 à parte III, quest. XCVII, art. li. 35. Citado cm J. Janssen, Ln civilisnriou eu Allm111g11e..., VIII, p. 558.
7. Idem, pp. 462-7. 36. E. !Vlâle, L'11n religie11x i, ln fin du Mo)'CII Age..., pp.471-5. A. Tenenti,
8. Idem, p. 468. Ln vie et ln 1110n i, tmvers l'oeuvre d11 Xli' sierle, Paris, 1952, pp. 43-8.
9. Sobre a inflexão da arte depois da peste negra, cf. M. Mciss, Pni111111M 37. R. Maneirou, Mngistmts et sorciers c11 Frnnce 1111 XV/i' sii:de, Pnris, 1968,
i11 Florencc mui Sie111111 nfm· tbe Blnck Dtntb, Princcton, 1951. pp. 25-59. Cf. também R. Yvc -Plessis, Essni d'1111r bibliagmphic fnm(nise métho-
10. E. Male, L'nn religicux..., pp. 468-9. diq11e et misom1ée de !11 so,·cellerit et de ln possessio11 démo11in111e, Paris, 1900; a ohra
11. Idem, pp. 469-71. coletiva Sntn11, pp. 352-85 (Etudes Carmélitaines).
12. Kunsthistorisches Museum de Viena e Stedelijk1\i!useum voor Sd111 38. Cf. supm e J. Dclumeau, "Les réformateurs ct la superstition", cm
nc Kunsten de Bruges. Calig11y et sous temps, Paris, 1974, pp. 447-8.
13. Museu de arte antiga de Lisboa. Reprodução na l!.11cydup111·,l1,1 39. E. W. Montcr, "Pattcrns of witchcraft in the Jura", Jo11n11rl of Sl){'i11I
Uuivtrsnlis, V, pp. 424-5. ffis101-y, vol. v, n. 1, 1971, pp. 20-2.

(,(d
40. C f. part icularmente C . Scignollc, Lcs Evangilcs du diable, Paris, 196•1. 77. J. Maldonado, Trairti des a11ges..., p. 216A.
41. P. J. I-Iclias, Le cbcval d'orgucil, Paris, 1975, pp. 83-6. 78. M . Lutero, Oe11vns, V II, p. 121.
42.J. Calvin, "D e la pénitencc", lustiNttion cbritirmu, ed.J. Pannicr, 1961 , 79. Cf. acima, pp. 39-40.
11, cap. 5, p. 248. 80. E. Lc Roy-Ladurie, Histoin t/11 di111at dep11is l'a11 mil, Paris, 1967, pp.
43. Dei Rio, Les co,m·ovcrses et recbercbes 111t1giq11cs..., trad. francesa Ami 1 ~ 155-6.
Ou Chcsne, Paris, 1611, pp. 228,277 e 552. 81. H. Tnstito ris e J . Sprenger, le 111artea11 ..., p. 233.
44. Crmmrmt, i11 Epist. ad. Epb., cap. 2. Cf. "D émon", D.T.C., IV, col. 402- 1 82. Idem, id.
45. Santo Tomás de Aquino, So111me tbéologiq11e, 1, q. LXIII- LXIV. Suarei., 83. Idem, p. 232.
"Démon", De angelis, D.T.C., IV, liv. V il e vm, col. 396, 399-400. 84. Idem, p. 235.
46. 1. C alvino, lnstit11tion... , li, p. 90. 85. Cf., cm relação ao século XV, J. Huizinga, Le didi11 ..., pp. 255-6.
47. Maldonado, Traicté dcs angcs et dé111011s, t rad. francesa La Boric, Pari,, Martin Lefranc, auto r do Cbampio11 des dmnes (1440), Gcrson, N icoh s de
1605, p. 170A. C usa, atribuem ao demônio as "imaginações" das feit iceiras ou as lesões cere-
48. P. de Bérulle, Tmiti des énerg1tme11es, Paris, 1599, cap. 2. brais que as tornam crédulas.
49. Por exemplo, J. Maldonado, Tmicté tles anges..., pp. 170A-B. 86. M. L utero, xv, Co111111entairc de /'épitre a11x galares, pp. 200-2.
50. M . L utero, Oeuvrcs, IV Um missivc to11cba111 lc d11r livrei co11N·c les /"'l' 87. J. Calvino, lustit11tio11...,1, p. 68.
StlllS(l525), p. 197. 88. M. Dei Rio, Lesro11troverses... , pp. IH-140.
51 . ldcm, x v Co111111c11tairc de l'cpítre a1i.,.· galates, pp. 200-2. 89. C f. as n:fcrências fornecidas no "D émon", D.T.C., e. 384-403.
52. 1. Maldonado, Tmicté des a11ges..., p. 170B. 90. I. Janssen, La civilfratio11 ..., V I, pp. 437-8.
53. tvJ. Lutero, Oe11vres, IV De l'a11to1·ité temporcl/e..., pp. 38-9. 91. Idem, pp. 451-2.
54. J . Calvino, lnstillltion ... , pp. 190-1. 92. "O €mo n", D.T.C, IV , ,c. 391 e 394.
55. M . D ei Rio, Lcseontroverses..., p. 228. 93. "Démon", D.T.C, IV, c. 399-40.
56.J. M aldonado, Traicté dcs a11ges..., p. 192A. 94. Bibl. Mazarine, ms 1337, f• 90 r•-v•. Agradeço novamente a H.
57. M. Dei Rio, Les contrnvcrses..., pp. 145-7. C f. rnmbém cm Malleus, 1rad Martin por ter-me informado sobre esse documento.
A. D anet, pp. 145-6. 95. Jn Xlll, 18; VII, 7; XV, 18-9.
58. Idem, ibidem. 96. Idem, Ili, 18; Vil, 7; XV, 18-9; XVII, 9.
59. Idem, p. l66. 97. 11 C or. IV, 4.
60. Idem, p . 167. 98. Jn 1, 9-10; X I, 27.
6 1. Idem, p. 168.
62. Idem, pp. 168-70.
63. Idem, pp. 172-3.
CAPÍTU LO S
64. H. Tnstitoris e J. Sprengcr, Le 111artea11..., p. 172.
65. M . Dei Rio, (.csco11troverses... , p. 186.
66. Idem, pp. JS)3 -6. Lc 111a,·tca11 ..., pp. 245-6. 1.J. ele Acosta, Historia 11at11mly 1110ml delas hrdias, 1590, V, I, p. 140. Para
67. Idem, p1>- 211 e 234. Lt1,,artea11..., pp. 245-6. tudo o que segue, utilizo m uito P. Duviols, La lutte romre lcs n ligions autochto-
llts daus Ir Pirou colonial, Lima-Paris, 1972. Aqui, pp. 23 e 29.
68. J. Bodin, Dé1110110111a11ie... , p. 102B.
69. M . D el Rio, Les co11trove.-ses..., p. 229. 2. J. de Acosta, De p,·omranda bulorum srrlute..., [588, v, IX , p. 558. P.
70. Idem, p. 235. Duviols, Lfl l11tte..., p. 23.
71. ldem, p. 235. 3. Cf. P. Duviols, La lutte..., p. 44; V. D. Ca rro, La teologia y los teólogos y
72. Idem, p. 236. jurista.< csp111io/es ante la co11q11ista de A mérica, 2. ed., Salamanca, 1951, p. 405.
73. Idem, p. 237. 4. B. de Las Casas, Apologéticn historia de las í11dias, Madri, 1909, cap.
74. [clem, pp. 553-4. LXXIV e s. P. Duviols, La lutte... , p. 45.
75. Idem, p. 241. 5. Mo ntnigne, "Les cannibales", Essais, I; " Des coches", 111.
76. Idem, p. 241. 6. Sua grande o bra é a Histoi,·e géub-nle des choses de la N ouvelle Espag11,·.

665
33. G. Atkinson, Les 11011vea11;,; horizo11s de la Rennissauce fim1çrli;-1•, l'a rls,
7. R. Ricard, Ln "co11q11êtc spirituelle" d11 Mexique, Paris, 1933, pp. 75-9.
1935, p. 10. Les voyt1ges en Tein Snime estão excluídas dessa estntístic:1.
8. P. Duviols, Ln lutte..., p. 47.
34. Montaigne, Journnl de voyage m ltnlic, Paris, Dedeyan, 1946, p. 228.
9. Idem, p. 46. 35. Pio II, Opern 011min, Basileia, 1571, p. 678.
LO. P. Sarmiento de Gamboa, Historin de los /nms, 1572; ed. A. Rosenblat ,
36. F. Braudel, La lvléditcrnméc..., li, p. l l.
Buenos Aires, 1947, pp. 127-8. 37. iVI. P. Gil more, The world oflm1llnnis1JJ, Nova York, 1952, p. 2 1.
11. P. Duviols, La lutte, p. 47.
38. F. Braudel, L11 1Wéditerra11ée..., li, p. 15.
12. Citado em M. Bataillon, "Las Casas, A1·istote et l'esclavage", c 111
39. Idem, li, p. 29.
Pintou et A1·istote à /11 Reuaimmcc, Paris, 1976, p. 408.
40. Idem, li, p. 32.
13. Citado em idem, p. 4 17. 41. Idem, l, p. 66; li, p. 33. Sobre os "renegados", documentos interessan-
14. Idem, pp. 48-9;]. de Acosta, De p,·owm11da ..., v, IX, p. 564.
tes em G. Atkinson, Les 11011vennx horizons, pp. 243-5.
15. Idem, PP· 59-62. 42. Idem, li, p. 133.
16. .F. Lopez de Gomara, Histoi,·c general/e des Indes occidentnlcs..., trad.
43. C itado em Idem, ibidem.
francesa 1584, p. 178B.
44. Idem, ibidem.
17. P. Duviols, La lutte..., pp. 37-9.
45. A. Monjo, La poésie itt1liem1e, Paris, 1964, p. 217.
18. Essa é a convicção de]. de Acosta; P. Duviols, Ln luttc..., pp. 67-72; R.
46. Texto citado por L. von Pastor, Histoire des papes, III, pp. 73-4.
Ricard, Ln "co111111ête"..., pp. 46 e 335.
47. R. Aubenas e R. Ricard, L'Eglise et ln Renaissm1ce, Paris, 1951 (t. xv de
19. P. Duviols, La l111te...: p. 278. Huam, no Peru, designava tudo o que
Histoire de l'Eglise, Flichc ct Martin), p. 42.
era considerado sagrado, mas principalmente os lugares sagrados - cemitérios
48. A. Mas, Les w,·cs dnns ln littémwre espaguole d11 siecle d'o1; 2 vol., Paris,
e santu,írios. 1967, 1, p. 18.
20. Idem, p. 39.
49. V.-L. Tapie, Monm·c/Jies et peuples du Dmmbe, Paris, 1969, pp. 75-6.
21. Idem, p. 40.
50. M. P. Gil more, The wo,-td ofbu111n11ism, p. 21.
22. Jclem, p. 40. Cf. também R. Ricard, La "conquêtc"..., pp. 130-1.
51. A. Chastel, Rnwissrmce 1lléridio11nle. l t11lie (1460-1500), Paris, 1965, p. 14.
23. Em relação a tudo o que segue, cf. S. Gruzinski, "Délires et vision~
52. Essas mforn_rnções me foram transmitidas por I. H unyad i, a quem
chez les indiens du Mexique", Nlélm1ges de l'école frnnçaise de Rome (M. i\ .;
agradeço. Cf. Szerem1-Gyõrgy, De penlitione regni H1111g11rit1e; Goeliner, T11rcia.
Temps moderncs), t. LXXXVI, 1974, 2, pp. 446-80.
53. J. Janssen, La civilisntiou en Alfe711ng11e..., m, p. 11.
24. F. Lopez de Gomara, Histoi,·e generalc..., pp. 188A-B.
54. Mémoires de l'Eurnpe, Paris, R. Laffont, 1971, li, pp. 328 e 338.
25. A. Calancha, Hisroh·e d11 Pfrou... et gm11d progresde f'Eglise ..., Toulouse,
55. Sobre isso tudo, cf. F. Braudcl, Ln Méditerm11ée..., li, pp. 118-31.
1653, pp. 329-30. Cf. P. Duviols, La l11tte..., p. 129.
56. Informações fornecidas por B. Vinccnt no seminário de história
26. Essas informações e as que seguem em R. Ricard, La "co11qné1<•"....
marítima de M. Mollat.
pp. 51-2. 57. F. Brande!, La Méditenm1ée..., li, p. 121. H. Lapeyre, Géogmphie de
27. Esse texto e os que se seguem em P. Cicza, Ln cronica dei Pení, Col.
l'Espagne 1no,·i.,quc, Paris, 1960, p. 30.
austral, Buenos Aires, 1945, pp. 146, 179, 224. Cf. P. Duviols, Lt1 futtc ... , p. 91,,
58. F. Braudel, La 1Wéditn-rn11ée..., 11, pp. 359-70.
28. Idem, pp. 10718.
• 59. Mensagens de M. d~ Fourquevaux..., 1565-72, Paris, 1896- 1964, 1, PP·
29. Idem, pp. tn-3. 3)3-4 (8 de maio de 1568), citadas em B. Vincent, "L'expulsion eles mo risques
29bis. Pereira, Nuno-Marques, Compêndio 11m-rt1tivo do pe1·eg.-i110 d11
de Grenade", Nlélnnges de ln Cnsa de Velazquez, VI, 1970, p. 214.
Américn..., L isboa, 1760, p. 123. Citado num livro fundamental sobre o ass,111
60. B. Vinccnt, "L'cxpulsion des morisqucs...", 1Vlélm1ges de ln Casa de
to: cd. Hoornaert, Histó,·in da Igreja 110 Brasil, Petrópolis, 1977, pp. 395-(,.
Velazquez, VI, 1970, pp. 225 e 239.
'li-ata-se do t. li de uma vasta História gemi da Igreja 1111 A111b-icn Lati11t1, preste,
61. H. Lapeyre, Géogmphie..., p. 204.
a ser publicada. 62. P. Giovio, L'Histoire des e711pere111-s de T111·q11ie, Paris, 1538. G.
30. Idem, p. 192.
Atkinson, Les 11011ven11:r..., p. 218.
31. H . Institoris e J. Sprengcr, Lc nwrteau..., p. 127.
63. S. Münster, Ln Cos11Jogmphie, Paris, 1552, pp. 1206-7. G. Atkinson, Les
32. P. Arriaga, La extirpatió11 de ln idolnt1·in eu el Pení, 1621, pp. 2-3. I'.
no11ven11:r..., p. 179.
Duviols, La !rttte... , pp. 176-81.
667
666
64. P. Belon (Du Mnns), Les observntions de ... si11g11/nrités, Paris, 1553. G. CAPÍTULO 9
Atkinson, Les 11011venux..., p. 215.
65. Cf. M. Bataillon, Le dr. L11gtmn, nuteur du "Voyngc e11 T11rq11ie", Paris, 1. 4 vol., Nova York, Londres, 1906 e ss. Aqui 1, p. 36.·Essc livro~ fu n-
1958; A. Mas, Les 111w..., 1, pp. 103-33. damental niio somente pelo estudo da Inquisição espanhola, como da
66. J. Bodin, La Rép11bliq11e, Paris 1576, pp. 458 e 543; Montaigne, "Du Inquisição em geral. Cf. também H. Kamen, l-Iistoire de l'Juq11isitio11 espffguole,
pédantisme", "Des destriers"/ "De la physionomie", Ess11is, 1/ m; Charron, L11 Paris, 1966.
sngesse, Bordeaux, 1601, vol. li, p. 841. G. Atkinson, Les 11011ven11x..., pp. 2. R. Mucllcr, "Les prêteurs juifs à Venise", A111wles, ESC, nov.-dcz. 1975,
367-8. p. 1291.
67. Nlontaigne, "Du pédantisme", Essnis, 1. 3. A. Sicroff, Les comrovcrses dcs st11tuts de "pureté de snng" cu Esp11g11c ,/11
68. Charron, La s11gessc, li, p. 831. Xv' tm XVII' siecle, Paris, 1960, pp. 32-3.
69. ]. Rogier, R. Aubert, lvL D. Knowles, Nouvcllc histoi1·e de l'Eglise,, 4. Prngue ghetto in tbe Re1111iss1mcc pe6od (publ. do Museu Judaico de
Paris, 1968, lll, p. 316. Praga, 1965), principalmente pp. 39 e 46.
70. Idem, p. 315. 5. ].-P. Sartre, Réflexions s111· ln question )uive, 1961, p. 83.
71. Idem, p. 316. 6. H. C. Lea, HistoiJ ..., I, pp. 50-68. Cf. também L. Poliakov, Histoire de
72. Idem, p. 319. Cf. por outro lado J. Bérenger, Fi11n11ces et absol11tis11ll.' l'm1tisémitisme, 4 vol., Paris, 1961 e ss. Aqui 1, p. 53. Nas páginas que seguem
n111ricbien d1111s la scco11de 111oitié du XVI/' siedc, 2 vol., Lille-Paris, 1975, 1, pp. utilizo muito essa obra bem fundamentada, 1 Du Christ nu;,: juifs de cour; li De
97-100. Mahomct nux mnrm11es.
73. Cf. M. Cytozska, "Ernsme et les Turcs", Eos, LXII, 1974, pp. 311-21. 7. Idem, 1, p. 81.
74. R. Aubenas e R. Ricard, L'Eglise et ln Rennimmce, p. 41. 8. Idem, r, p. 99.
75. Idem, p. 63. 9. Cf. por exemplo ed. B. Blumenkranz, Juifs et j11d11is111e de L11ngucdoc,
76. J. Janssen, Ln civilisntion ..., p. 11. Toulouse, 1977, t. XII dos "Cahicrs de Fanjeaux".
77. Devo11s-11011s poner ln guerrc 1111.-.: T,,,.cs?, trad. J.-C. Margolin, cm 10. ldcm, li, pp. 114-9 e 127-37.
Ems'IJJe - Gue1're ct pnix, Paris, 1973, pp. 339- 40. li. Cf. A. D. Ortiz, La dnse social de los convenos cu Cnsti!la en ln edad
78. M . Lutero, Propos de tnble, p. 66. 11Jodcrnn, Madri, 1959.
79. J.-C. Margolin, Emsme - Guerre et p11ix..., pp. 340 e 350. 12. C itado em L. Poliakov, Histoire de l'nmisé111itis-mc, 1, p. 269.
80. M. Lutero, Oeuvrcs, VII, p. 276. 13. Idem, p. 270.
8 1. Herminjard, Corrcspondnnce des réjàr11111te11rs..., 9 vol., Paris-Gcncbr:1. 14. R. Neher-Rernheim, Histoirejuive de ln Re11nissn11ce l, 11osjo11rs, 2 vol.,
1866, IX, pp. 26-7. G. Atkinson, Les 11ouven11x..., p. 307. Paris, 1963, 1, p. 95.
82. Cf. F. Laplanchc, "Religion, cultm·e et société dnns le di.rcom·s npologétiq11<' 15. F. Braudel, Ln Méditerrn11ée... , II, pp. 150-1.
de 111 tbéologic 1·éfor111ée eu Frnnce m1 XVll• siede (1576-1670) ", monogr~fia do 16. L. Poliakov, Histoire de l'amisé111itis1JJc, r, p. 58.
terceiro ciclo, 2 vols., Paris-Sorbonne, 1975, 1, p. 35. 17. Citado cm Idem, pp. 64-5.
83. ].-C. Margolin, Ernsme - Guerrc ct paix, p. 357. 18. J. Lc Goff, La civilisntion du Moyeu Age, p. 390.
84. },,L Lutero, oc'hvi-es, VII, p. 280. 19. L . Poliakov, Histoire de l}mtisémitis111e, 1, p. 122.
85. Idem, princip,ilmente pp. 286 e 293. 20. Idem, p. 331.
86. Idem, p. 290. 21. J. Isaac, L'cnseigt1eme11t du mépris, Paris, 1962.
87. Artigo pouco convincente de H. Mcchoulan, "Le pacifisme de Luther 22. A respeita da exploração dos arquivos da Inquisição espanhola, cf.
ou 1c poids d'une bullc", cm JVIélangcs de ln Cnsn de Velazquez, IX, 1973, pp. Il. Bennassar, "L' Inquisition espagnole, l'onhodoxie et l'ordre mo ral",
723-9. A posição de Lutero só pode ser compreendida se for restituída a u111a B111/etin de ln Société d'histoii·e 111oderue, IS• série, n. 19, ano 76; n. 2 de 1977,
escatologia e a uma demonologia. Além disso, Lutero aplicou à quesrâo fôr pp. 11-9.
mulas contraditórias. 23. Para todo esse desenvolvimento, sigo H. Pflaum, "Les sce ncs de juifs
dans b littérature dramatique d u Moyen Age", Revue des étudesjuive.l", LXX XIX,
1930, pp. 111-34.
24. Idem, p. 115.

668
25. L. Reau, fronogmpbie de l'art cb,·étien, t. li, Paris, 1957: L11 Bible - 5 l. L. Poliakov, Histoin de t',mtisfmitismc..., 1, p. 277.
No11ve1111 Testmmnt, pp. 612-13. 52. Idem, pp. 162-3.
26. Agradeço a J.-C. Menou o fato de ter-me chamado a atenção sobre 53. A. Sicroff, L1'S comi-ove,-ses..., p. 31.
esse ret:íbulo, que não consta da lista de L. Reau. 54. B. Blumenkranz, Histoire desjuifs..., p. 23.
27. Citado e traduzido em J. Toussaert, Le se11time11t religicux eu Flmuh·c 11 55. C. Roth, Tbe histol)'..., PP· 409-10.
l11 fin du Moycn Age, p. 199. 56. Cf. os textos evocados em J. Isaac, L'enseignemeut d11 méprfr, pp.
28. Ronsard, Ornvres crn11pletes, n, p. 674; peças póstumas (La Plêiade). 24-39.
29. Cf. R. Manselli, L11 rcligion popu!tiire 1111 Moyen Age, Paris-Montreal, 1975. 57. Cf. art. "Host, desecration or', E11cydop11edit1 Judnicn vol. v 111 col.
30. L. Poliakov, Histoire de l'a11tisémitis111e, 11, p. 148. 1040- 4. ' '
31. A. Lopez de Meneses, "La Peste Negra en Catalufia... ", Scfi1md, 1959, 58. L. Poliakov, Histoi,·e de l'rmtisémiti.rme..., 1, pp. 115-6.
p. IIO. . ~9. ~f. P.-F. Leíevre, "Le thcme du miracle des hostics poig nardées p:u
32. Idem, p. l01. les JU!Ís a Bruxelles en 1370", cm Moyen Age, 1973, pp. 373-98. Sobre o 1c111:1
33. Textos e fatos c itados em L. Poliakov, Histoire de l'm1tisémitis111e, 11 , elas prof~nações ele hóstias, falsamente atribuídas aos judeus na Idade Média,
pp. 156-8. cf. o amgo de P. Browe em Romiscbe Qunnnlschrift, 1927, pp. 167-98.
34. C. Roth, Tbe bisto1J of tbejews of ltnly, Filadélfia, 1946, pp. 247-8. 60. Mime/e de l'hostie: Ucello, Paris, Labergcrie, 1966.
35. F. Vendrcll, "La actividad proselitista de San Vicente Ferrer durante 61.Jean Molinet, Chroniqrm, ed.J. Buchon, Paris, 1828, li, pp. 590-3.
cl reinado de Fernando Ide Aragon", Scfamd, 1953, p. 94. Sobre são Vicente 62. L. Poliakov, Histoire de l'a11tisé111itis111c, li, p. 286.
Fé rrcr e a bibliografia que lhe diz respeito, cf. E. Delaruelle..., L'Eglise a11 _63. [clem, p . 145. "Bouiller" (no original francês] provavelmente tem o
tc-mps du Gnmd Scbisme, li, pp. 639-42 e 1071- 3. sent1clo de uma ação feita freneticamente.
36. F. Vcndrell, "La actividacl ...", p. 90. _ , 64. Esses painéis foram remontados na sacristia da igreja; cf. fo ventnire
37. Idem, p. 95. ge11en1l des 11101111111e11ts et des ,·icbesses nrtistiq11cs de ln Fmnce: Fi11istcre, C,n-bnix,
38. A. J. Saraiva, luquisiçíio e cristãos-11ovos, Lisboa, 1969, pp. 49-50. Plo11g11cr, 2 vol., Paris, 1969, li, p. 6.
39. Cf. K. R. Scow, "The Church anel the jews", cm Bibliogmpbiml csmy.,· 65. P. Browe, "Die Hostienschanclungen der Juclen irn Mittelalter" em
iu medieval jewisb swdics- Tbc study ofjudnfrm, vol. li, 1975, p. 135. Romische Q11nrt11lscl11·ift, 1926, pp. 169-71. '
40. A respeito dessa obra, cf. principalmente M. Esposito, "Notes sur lc 66. G. Trachtenbcrg, Tbe devi/ mui the jews, N ew Haven, 1943, p. 125.
Fortnliâum fidei d'Alphonse de Spina", Rev11e d'histoire ecdésinstiquc, 1948, pp. 67. Cf. art. "Blood libel", E11cydopnedi11J11d11ica, t. IV, col. 1121-31.
514-36. H. C. Lea, A bisto1J···, 1, pp. 149-51. 68. Réflexio11s s11r ln q11estion juive, p. 82.
41. A esse respeito é em relação a tudo o que segue, cf. C. Roth, Tb1.• 69. Para o que segue, cf. L. Poliakov, Histoire de l'rmtisémitisme, 1, pp. 76-80.
bistoi)' oftbe j ews of ltnly, Filadélfia, 1946, pp. 153-77. 70. B. Blumenkranz, Histoi,·e desjuifs..., p. 17.
42. C. Roth, Tbe history oftbe jews of ltnly, p. 190. 71. C. Roth, The bistory... of1111/y, p. 247.
43. Sobre a atitude de Erasmo em relação aos judeus, cf. G. Kisch, 72. Publicado por K. von Amira, em Neudrncke de11tscber Lite1·,1tui-&e1-kc
Ems11111s 1111d die Judentum, Basileia, 1969, pp. 10a47. des 16. 1111d 17. Jbdts, Halle, 1883, t. XLI.
44. Citado em L.''Poliakov, Histoire de t'nntisimitisme, 1, p. 231. 73. C. Roth, Tbe bistory... oflt11ly, pp. 172-3.
45. M . Lutero, Werke, ecl. \.Vcimer, 'v ol. XI, 1900, pp. 307-37. 74. L. Poliakov, Histoi,·e de l'a11tÍJ'émitis111e, 11, pp. 196-7.
46. Idem, vol. Lili, 1919, pp. 412-553 e pp. 573-649. Textos citados em L. 75. E ste último quando ainda era o cardeal Ganganelli.
Poliakov, Histoh·e de l'nntisémitisme, I, p. 238. Sem Hmnephoms é o "nome às 76. Citado em L. Poliakov, Histoh·e de l'1111tisémitisme, 1, p. 67.
claras" de Deus (o tetragrama consonântico IHWH munido de suas vogais), 77. Tclem, li, pp. 157-8.
que os fiéis estão proibidos de pronunciar. 78. C. Roth, Tbe histoty... ofltnly, p. 248.
47. Esse texto e os que se seguem em Les propos de tnble, Brunet, pp. 70-4. 79. Citado em L. Poliakov, Histoire de l'muisémitisme, 11, p. 202.
48. Shem Hnmepboms, ver nota 46. 80. Coucilionmt oernrneuiconm1 decreta, ed. G. A lberigo Bolonha 1973
49. Cont:re les juifs et leun mensonges, cap. "Quod longe satius sit porcu111 p. 483. ' ' '
quam talem habere messiam qualem judaci optant". 81. L. von Pastor, Sto,·in dei pnpi, IX, pp. 221- 2. E. Rodocanachi, L e Saim-
50. Pmgue gbctto ..., p. 47. -Sii!ge et lcsjuifs, P aris, 1891, principalmente pp. 230 e seg., 274 e ss.

670 671
82. Cf. A. Pacios-Lopez, Ln disp11ta de Tortosn, Madri-Barcclona, 2 vnl,, 106. A. Baião, Episódios dra1J1ríticas da lnquisiçíio po,·t11g11es11, 3 vol., Lisboa,
1957. O primeiro volume é uma análise da Disputfl, o segundo uma cdiç:ln dn 1972-3, 111, pp. 152-6.
relatório latino redigido por notários. 107. L. von Pastor, Sto1·in dei papi, VI, pp. 489-90. C. Roth, The bistory...
83. C. Roth, Tbe bisto1y... ofltnly, pp. 287-98. ofltnly, pp. 300- 1.
84. Co11cilionm1 ... decreta, pp. 265-7. 108. Para o que segue, cf. P. Chaunu, L'Espflgne de Charles Q11i11t, 2 vol.,
85. O. Dobiache-Rojdestvensky, Lt1 vie paroissiale eu Frnnce 011 XII!' .rih lr Paris, 1973; aqui li, pp. 479-505.
d'ap,-es les nctes épiscopnux, Paris, 1911, p. 69. L. Genicot, Lc X[Il' siede em·oplm, 109. Ver acima, p. 279.
Paris, 1968, pp. 269 e 385. 110. A. Sicroff, Les co11wov<'1·ses..., pp. 32-5.
86. Histoire desjuifs eu Fnmce, ed. B. Blumenkrnnz, Toulouse, 1972, p. .l 1 11 l. Tratado incorporado a El fuero 1·eal de Espmin, Snlm11a11m, 1569. CI'.
87. V. Robert, Les signes d'i11fr111úe tlll Moyen Age, Paris, 1889. A. Sicroff, Les co11trovenes..., pp. 36-9.
88. Citados por L. Poliakov, Hirtoire de l'amisémiti.rme, 1, p. 170. I 12. Idem, pp. 71-4.
89. Co11ciliorum ... dec,·etn, pp. 483-4. 113. Idem, pp. 74-5. H. C. Lea, A hist01y..., r, p. 150. Alonso de Espina ata-
90. Fages, Histoire de saint Vincellt Ferrier, 1, pp. 296-7. cava violentamente os conversos; assim, é pouco provável que ele próprio o fosse,
91. C. Roth, The bisto1)'...ofltt1/y, p. 162. malgrado as numerosas obras recentes que afirmam sua ascendência judaica.
92. C . Roth, The histo1y...of Itnly, p. 186. F. l3raudcl, ln Méditern111éc... , li, 114. Idem, pp. 102-35.
pp. 141-2. A. Milano, Sto1·in degli ebrei in Italia, Turim, 1963, p. 281. 115. Idem, pp. 156-67.
93. Cf. M. Boiteux, "Les juifs dans lc carnaval de la Rome modcr1111 ll6. Idem, pp. 167-70.
(XV' -XVIII' sieclc)", Mél1mges de l'école française de Rome (M. A., Te111ps111odernr,,), 117. Idem, pp.177-8.
t. LXVIII, 1976, 2, pp. 746-7, 750-1 e 762. Cf. também Rodocanachi, l e S11i111 118. Tudo o que segue de acordo com Idem, pp. 63-139 e 270-84.
-Siege et les juifs - Le ghetto de Rome. 119. H . C. Lea, A hi.rtory... , 11, p. 287.
94. Cf. L. Aurigemma, Le sig11e zodiacal du scoipion, Paris-La Hayc, 197(1, 120. Ver, a esse respeito, Frei Benito de Pelialosa e Mondragón, Libro de
pp. 63-4, pi. 24. las cinco excelwcins dei espaiiol, Pamplona, 1629; A. Sicroff, pp. 291-7.
95. A respeito da ofensiva romana contra o Talmudc, cf. K. R. S1nw1•, 121. F. Braudcl, La Méditermuée..., 11, p. 154.
"The burning of t he Talmud in 1553, in the light of Sixteenth Century cathu 122. Idem, p. 153.
lic attitudes toward the T.1lmud", em Bibliothl!que tl'lm1J1011is111e et Remtiss,111,r, 123. Idem, p. 142.
vol. XXXIV, l972, pp. 435-59. 124. J.-P. Sartre, Réflexions sur la q11estio11 juive, p. 17.
96. B111/nrium... S"11111111ormn 1wu. pontificium, Taur. editio, 1860..., VI, pp, 125. R. Loewenstein, Psychnnnlyse de l'nntisé111itim1e, Paris, 1952, pp. 5-6.
498 e ss. 126. S. Friedlander, Histoire et psychn11nlyse, Paris, 1975, p. 165.
97. L. von Pastor, Storin dei papi, VI, pp. 487-90.
98. Idem, Vlll, pp. 228-33.
99. Alguns papas mais dementes que Pio vem relação aos judeus, p:1 r11 CAPÍTULO 10
cularmente Xisto v, permitirão que eles se reinstalem cm certas cid:ul~~.
sobretudo em Bolonha, 1. Citado em W. Lederer, Gynophobia ou ln pem· des fe111111es, Paris, 1970, p.
100. C. Roth, Tl4e history... ofltaly, pp. 309-28. 94. Nas páginas que seguem utilizo muito esse livro de um psiquiatra ameri-
101. E. de Lauricre, Rectteils d'édit.r et d'o1·do1111a11ces 1"0)'tltt.,:, 1723... , VII , p, cano, sem adotar todos os seus pontos de vista. Também faço uso da obra
675, fundamental de Simone de Beauvoir, Le deuxie111e sexe, 2 vol., Paris, 1949.
102. L . Poliakov, Histoire de l'm1tisé11titisn1e, 1, p. 135. 2. W. Lederer, p. 207 (citação de Zilboorg).
103. C. Roth, Tbe his10,-y...of ltnly, pp. 306-28. 3. S. Freud, "Ueber die weibliche Sexualitiit", em Ges. We,·ke, IX, p. 180.
104. Citado em L. Poliakov, Histoii-e de l'a11tisé111itis111e, li, p. 198. C f. I•, 4. S. de Beauvoir, Le de11xie111e sexe, Paris, 1949, 2 vol.: 1, p. 147.
Baer, Die J11drn im cbristlichen Spaniw, 2 vol., Berlim, 1926-29, 11, pp. 404-11, 5. K. Horney, La psychologie de la fom111e, Paris, 1969, principalmente pp.
105. Essas informações e as precedentes em L . Poliakov, Hi.rtoin• ,!,, 106-20 e 135-50.
l'amisémitisme, II, pp. 186-98. Cf. por outro lado H. Beinart, Records of tltr 6. W. Lederer, Gynopbobin ..., p. 12.
spanish l11q11isition i11 Ciudnd Real, I (1483-1485),Jerusalém, 1974, 7. Idem, p. 251.

672 673
Frnu vou p1·iesterlicbc11 A1111 - Gottewollte Tmditiou oder Disl:1'Í111i11icr1111g,
8. W. Ledcrer, Gy11opbobi11..., P· 41.
Viena, 1973, p. 80 e ss.
9. S. de Beauvoir, Le dc11xii:111c sexe, 1, P· 241.
36. Citado por Y. Lefevre em Histoin mo11dinle de la fi·111111c, Paris, 1966,
10. Vl. Lederer, Gy11opbobi11 ..., PP· 63-4.
p. 83.
ll,
11. Idem, PP· 121-37. P9 37. Citado cm Idem, p. 82.
J2. A aproximação é proposta por N. z. Davis, Society 1111d cu/ture... , p. - .
13. H. Tnstitoris e_]. Sprenger, Le 111111·tetm... , PP· 230-7. . , ·s-
38. Citado em Idem, p. 83.
14. Idem, PP· 233-7: "Les sorcieres peuvenc-elles empeche1 \ acte de p111. 39. Cf. particularmente E. Lc Roy-Ladurie, 1\rloutt1il/011, vi!/11gc ou ittm,
Paris, 1975.
sance génicale?". Cf. acima PP· 64-9. . " 40. R. Nelli, L'b-otique des troubndours, Paris, 1963, particularmente pp.
15. D. Paul me, L11 111/:re dévor1111te, Pans, 1916, ,P° 2_25. .
16. M .-0. Metrnl, Le 1u 11ri11ge -Lcs bésit11tions de l Omd,mt, Paris, 1977, P· 125. 292-4 e 304-12. !vL-0. Metral, Le 111nri11ge..., pp. 113-45. M. Albisrur e D.
Armogathe, l·listoi,·c du fé111i11is111e fnmç11is d11 Moyen Age à nosjours, Paris, 1977,
17. Lc deuxii:111e se:rc, 1, p. 153. . , . 1
18. Essas precisões sublinhadas no importante amgo d~ H .-M. J~eg~.111< ' pp. 38-41. As conclusões dessa obra em relação ao período da Idade J\l{éd ia e
"L'ordination des femmes au ministcre presbycérnl", Bu/lctln d11 secretmwt dr da Renascença corroboram as de minha própria investigação. Cf. também,
/ couférence épiscopillC frn11çnisc, n. 7, abr. 1976, PP· 6-7. . . . . , 7, sobre a Idade Média, A. L ehmann, Le rôlc de ln fe111111e dnus l'bistoirc de la jêunnc
11
19. ].-M. Aubert, Ln fC11nne -A11tifé111i11isme e1: cbrist.111111sme, Paris, 1) . • 1111 Moym Age, Paris, 1951; R. Verdon, "Ln femvre drms /11 société n11x X, et XI'

p. 48. N~s rneiocínios que seguem, esse livro é mmto uuhzado. siecles", tese, Paris, Université de Pa ris x, 1974.
41. Petrarca, Des remedes de l'1111e et de l'///1tre fortuue, citado em idem,
20. ldem, p. 20.
pp. 213-4.
21. Idem, pp. 99-100.
22. H .-M. Legrnnd, "L'ordination...", P· 7. . . . 42. A. Besançon, "Vers une histoire psychanalytique", Amwles, ESC,
3_Citado em idem, p. 191: De cult11fc111i11nr1m1, em Corp11scbnst111110111111, l969, p. 600.
2 43. Citado e traduzido por P. Monnier, Le Qunttrocento, 2 vol., Paris,
série latina, obras de Tertuliano, 1, p. 343. ". ·"
24. Cf. De virgiuibus, 1, 1, cap. LVl (P1111·. /nt., X VI, 204); art. Fem1m. , 1924, l i , p. 198.
44. Cf. particularmente V/. E . Peuckert, Die grosse Wmde, Hamburgo,
D T.C v 1922, col. 1336-8.
· · 25. Lettre XXII i, F.stocbi11111, reproduzida em Ln j~11m1c - Les grnuds 1,·xt1·, 1948, p. 90 e ss.
· / /'Eglise sei e •1pres F Quéré-Jaulmes, Pans, 1968, P· 19. 45. A. Gasté, Micbel Ménot: m quelle /n11g11e 11-t-il prêtbé?..., Caen, 1879, pp.
tI cs pe1·es H , · • · · • . . l'O 'd . J6 Mct{lll111 24-5. Cf. também E. Gilson, "M. Ménot et la technique du sermon médiéval",
26. M.-0. Metral, Le 111aringe. Les besitnt1011s'1e CCI em,_ P· • ·. . ..
11
de Olimpo, teólogo e bispo grego do século lll, Le b1111q11et, Pans, 1963, d1sc1 em Les idées et les lcttres, Paris, 1932, pp. 93-154.
46. Citado em A. Samouillan, Olivier Mnillrml, S// prédimtiou et so11 tm1ps,
so de J\llarcclle.
Paris, 1891, p. 317.
27. Idem, p. 46. ,.S11 /1111
28. Sobre o antifeminismo de Santo Agostinho, K. E. Borr~scn,•. 47. A. Godin, "Un émule d'Olivier Mailla rd et de Michcl Ménot: frere
1111111 Jchan Glapion", D.E.S. datil., Lille, 1960.
diuntioll et équiv11/mce, - N11t111·c et ró/e de ln fc111me d'npres Aug11stt11 et l b,
48. J. Bodin, La dé11101101111111ie des sorciers, Paris, 1580, p. 176B.
d'Aq11i11, Paris-Oslo; 1968, PP· 25-114.
29. J.-M. Aubert, Ln fem1/le ..., p. 88-9, de onde retirei as cirnçüc, 11111• 49. Citado por A. Piogier, Uu ornteur de l'école jim1ç11ise, snint Jean Eudes,
Paris, 1940, p. 276. Cf. Jean Eudes, Owvres compli:tes, li vol., Vannes, 1905-
seguem. _ · 1909. Aqui V, pp. 283-7.
30. Graciano, Friedberg, l , 1254 e 12,6.
· 92 1 2· 93 art 4 ad 1· C01111111•11111111 50. L. Grignion de Montfort, Owv1·es complete.,, ed. M . Gcndrot, Paris,
31. S011m1e tbéolog1que, l, q. , art. 1, a< · , q. ' · '. · ' , . ,
. 21 2 1 ~d 2 A esse respeito cf. Ln Jem111e, Soc1c1é J1•u11 1966, cântico XXX!ll, p. 1162.
des seutences, 1.1, d 1st. , , , 0
. • • ,
51. Panegírico pronunciado pelo padre Corhin, citado em M . Reinharcl,
Bodin, l962, Xll , parte li, PP· 75-9. J
/.,, légende de Hcm·i IV, Paris, 1935, p. 77.
32. Somme tbéologique, 1, q. 99, art. 2; n, q. 149, art. 4; q. 165, art. •·
52. Agradeço a A. Danet a gentileza de ter-me chamado a atenção para esse
33. Contrn ge11tiles, li!, 123. 1
34. Sommc rbéologique, 111, q. 31, art. 3. J.-M. Auber~, Ln fe111111e..., 1;• W livro e esse tema. Consultei a edição de Lyon, 1517; em 1344 Alvaro Pelayn
1 tumbém escreveu um Col/i,·i11111 fidá adversus bnereses, que não foi impresso.
35. J.-M. Aubert, Ln fe111111e..., PP· 120 e 203. ! Rammg, Der //usscb "·" , , 1

67S
53. M. Dei Rio, Les co11trove1·scs..., p. 526. 81. Idem, 1, p. 124.
54. H. Spitzmuller, Poésie !atine du Moyw Age (]Il'-XV siécle), Paris, 1971, 82. Idem, 111, p. IX' XXVII.
pp. 617-21. Cf. nessa obra o artigo "Misogynic", pp. 1800-2. 83. Idem, Ili, p. IX' XXXV.
55. Introdução de A. Danet ao Martea11 des so,-âiwcs, particularmente p. 64. 84. Idem, III, p. IX' XI.
56. H. Institoris eJ. Sprengcr, Le 111arte1111 des sorciêres, p. 198. 85. Idem, ibidem.
57. Idem, p. 201. 86. L. Joubert, P1·e111iere et seco11de pm·tie des er,·eurs populaires et propos
58. Idem, introd., p. 89. vulgaires to11ch1mt la 111edeci11e ct /e 1·cgi111e de stmte, refutez et expli,J11ez; e d. con-
sultada aqui Lyon, 1601, I, pp. 162-3.
59. Idem, p. 202.
87. Idem, pp. 163-5.
60. Idem, p. 200. Para o que se segue, p. 200- L0.
88. Dez em francês, uma em latim e uma em italiano.
61. Idem, p. 207.
89. A. Tiraqueau, Tmctatlls va1"ii, Lyon, 1587: "De poenis legum tempenmdis
62. Idem, ibidem.
aut re111itte11dis", p. 273.
63. Idem, p. 208.
90. Para tudo o que segue, A. Tiraqueau..., Ex co111111c11tarifms i11 Picto1111111
64. Expressão de A. Danet, idem, p. 58.
co11meN1di11es: sectio de legibus com111bialib11s et jm·e mai-itrili, Lyon, 1586, princi-
65. Cf. supra p. 239. palmente 1, 12, 13, 15 e 16 e g l. 2, 4, 5 e 8.
66. M. Dei Rio, Les comroverscs..., p. 526. 91. Dictiomwire de droit amo11iq11e, fase. XII, col. 1255-75.
67. Benedicti, La .,0111mc des pecbez et n'111ede d'iceux, l. ed. 1584; ed. toll 92. B. Chasseneuz, Co111111e11tarii i11 conmetudines ducatus Burgundiac
sultada aqui Paris, 1595, p. 347. fa1·cque torius Gal/i(le, Lyon , 1624; rubrica "Foemina". Cf. A. Laingui, La 1·espo11-
68. Idem, p. 348. sabilité pé1111/e da11s /'m,cien droit (XVl'-XVll/' siede), Paris, 1970, pp. 251-3.
69. Título italiano: Avvati111enti per li co11fesso1·i. 93. C. Le Bret, De /11 so11vemi11eté du rny, de son domaine et desa co111·01111e,
70. Agradeço ao padre Daniel Olivier ter-me chamado a atenção par,1 cs~n Paris, 1632, 1, 4 . Cf. Lafe111me, SociétéJean Bodin, n, p. 450.
informação: Concili11111 tride11tinw11 (Giin·es Gesellsd1aft}, V!ll, p. 622. O embai- 94. A. de Richelieu, Testamem politique, ed. L. André, Paris, 1947, pp. 300-1 .
xador do concílio do duque da Baviera declara num discurso diante dos padre, 95. N. Remy, De111011olat1"iae lib,·i u-es, Lyon, 1595, sobretudo pp. 125-7.
(1562): "111 prnxima visitatione per Vnva,.iam fm·ta, tam J!·equeu~ COl1C1ibi11a111,_ 96. P. de Lancrc, L'i11cred11/ité et mescreance du sortilege plainement convrlin-
npertus fuit, ut vix inter cent:11111 ter vel quawor mvent, smt, q111_ aut 111r111ifi's11 cue..., Paris, 1622, p. 627.
concubinm·ii 11011 fi1e1·i11t, aut da11desti11a matrimonia 110n cont:mxermt, aut 11.,·on·.r 97. Réf11tatio11 des opinions de Jean Wie1; p. 225. Na edição de 1580, ela
palam 11011 d11xeri11t". Desse modo, o embaixador solicit~ o casamento do, segue à Dé1110110111anie des sorciers.
padres para limitar a hemorragia clerical para o protestantismo. 98. J. Boutíllier, So111111e n1rale, 1603, liv. II, título li, p. 663.
71. Ed. consultada aqui Paris, 1665, p. 19. 99. Idem, p. 374.
72. Idem, ibidem. 100. La fe111111c, Société Jean Boclin, XII, parte li, p. 261.
73. Idem, p. 95. 101. Idem, p. 346.
74. Idem, p. 96. 102. J. Bodin, Démo110111anie des so.-ciers, p. l 77B.
75. Idem, pp. 2N-43. 103. La fe111111e, p. 287.
76. V.-L. Saulnier, Lc dessein de Rabelais, Paris, 1957. 104. Idem, p. 245.
77. Texto citado cm M.. A. Scrceck, "A forthcr study of Rabclais's posi- 105. Idem, id., e P. de Beaumanoir, Couutmms de Beauvaisis, ed. A.
tion in the Querelle eles Fcmmes", Fmnçois Rabelais (t. Vil de Tmvar,x d'h11111r1 Salman, Paris, 2 vol., 1899- 1900, Il, § 1631.
11ismc et Re11"issa11ce, p. 146). _ 106. A. Tiraqueau, "De pomis legum tempcmndis m1tre111ittmdis", Tracn1111s
78. J. Wier, Histoi,·cs, disputes et disrours des illusions et impostures de: dl(1/,~1·s. vm·ii, Lyon, 1587, p. 273.
des 111agiciens infames, sorciêres et e111poiso1111e11rs... , l• t rad. francesa b69. bl. 107. P. Farinacci, Pmxis et tbcorica cri111i11alis, 3 vol., 1606-10, q. 90 (causa
utilizada aqui Paris, 1885, I , pp. 300-3. 10), n. 14-5.
79. A. Paré, Oeuvres, ed. P. de Tartas, Paris, 1969, 3 vol.; conforme :1 108. Cf. A. Laingui, La responsabilité..., pp. 252-3.
edição de 1585, 1, p. 25. 109. P. de Lancre, De /'incrédulité..., respectivamente pp. 627 e 41. Sobre
80. Idem, idem Jean Bodin, cf. mais acima p. 331.

676 677
137. Trata-se de Daniel Riviere. Por "provérbios do século XVI" entendo
llO. Ver, a esse respeito, a primeira parte do livro de M. Albistur e 1), provérbios pertencentes a uma coletânea impressa no século XVI. Nfoit:1s sen-
Armogathe, Histoire d11.fé111i11isme..., com a bibliografia no final dos capítulos,
tenças, evidentemente, remontavam a um passado longínquo.
Ili. Cf. nesse ponto Lnfamme, SociétéJcan Bodin, XII, parte II, pp. 2·H
138. Esperando a conclusão do trabalho de D. Riviêre, romo emprestado
-52; J.-L. Flandrin, Fnmilles, p,1re11té, 111niso11, sexunlité dnns l'a11cieu11e soriftl ,
esse ditado e os que seguem ao Livre des proverbes fmnçais, de Le Roux de
Paris, 1976, p. 124.
Lincy, Paris, 2 vol., 1859. Aqui 1, p. 221 (G. Meurier, 'fréso1· des scmeum).
ll2. Bens conferidos pelo marido a sua mulher para serem desfrurndn,
139. Idem, p. 222 (Gruther, Remei/).
por esta caso sobrevivesse a ele.
140. Idem, p. 224 (E11C)'clopédie des provcrbc;).
113. F. Olivier-Martin, Histoire du droitfmuçnis des origines II ln Révo/111i1111,
141. Idem, p. 229 (Enc)'dopédie des proverbes).
Paris, 1948, p. 653.
142. Idem, p. 231 (Gruther, Remei!).
114. Idem, p. 655.
143. Idem, p. 278 (G. Meurier, Trésor des semences).
115. L'école desfemmes, ato 111, cena III.
144. Idem, ibidem (G. Meurier, Trésor des se11te11ces).
116. J. Burckhardt, Ln civilisntion..., 11, p. 343.
ll7. T. Smyth, De rep11blim n11glor111n, 1583, p. 18. Cirndo em l-fistoir,• 145. Idem, p. 220 (Mery, Histoi,·c des proverbes).
146. Idem, ibidem (Ln chnussée).
111011dinlc de /11 femme, 11, p. 417.
, 118. Citado cm idem, ibidem, e C. Sr. Byrne, Elhnbcthlln Iife in towu n111/ 147. Idem., p. 161 (G. Meurier, Tréso,. des semences).
148. Idem, p. 229. Esses dois provérbios em Adngesfm11çois.
co1111t1y, Londres, 1961, p. 2 l 5.
l 19. Retomo a expressão de M. Albistur e D. Armogathe, Hi.<toin· i/11 149. Idem, ibidem p. 230 (G. Meurier, Trésor des sentences).
fé1ni11is111e ..., p. 27: "mulheres-álibis, ou seja, mulheres que autorizam os obser- 150. Idem, ibidem (P,-overbes co1111111111s, século XV).
vadores superficiais a falar de igualdade geral entre os sexostt. 151. Idem, ibidem (Bruscambille, Vo)'nge d'Espng11e, século XVII).
120. G. de Lorris e J. de Meun, Le ro111n11 de ln rosc, ed. F. Lecoy, Pari,, 152. Idem, p. 231 (Proverbes conmums).
1968-73, 3 vol. Aqui II, pp. 50-2, versos 9886-98. 153. Idem, p. 228 (Atinges fra11çois).
121. N . Grevy-Pons, Célibnt et N11t11n: une coll/nroerse médiévnle, Paris, 197'i, 154. Idem, p. 222 (G. Meurier, Tréso1· des sentcnces).
p. 43 (C. N. R. S.). C. V. Langlois, Ln vie en Fmuce Ili/ Mo)'en Age, Paris, 1926 1, 155. Idem, p. 220 (Bovelles, Provn·bes).
11, pp. 241-90. l 56. Idem, ibidem (G. Meurier, 1i·ésor des sentences).
122. E. Deschamps, Oeuvi-es..., VJI, balada MC:CXCIII, p. 43. 157. Idem, p. 221 (ElnJ•dopédie des p,·overbes).
123. Idem, v, balada OCCCCLX\1111, p. 235. 158. Idem, p. 219 ('fréso,· des sentences).
124. Idem, balada MXIX, p. 287. 159. Idem, p. 224 (id.).
125. Idem, balada DCCCCLXXXII, p. 226. 160. Idem, p. 229 (Bovelles, Proverbes).
126. Idem, VII, p. 108. 161. Idem, p. 225 (Gruther, Remei/).
127. Idem, p. 109. 162. Idem, p. 225 (Mo)'en de p11rve11il; cap. intitulado "Exposition", sé-
128. Idem, todo o vol. IX. culo XVI).
129. Idem, p. 53 e seg. 163. Idem, p. 221 (Trésor des sentcnces).
130. Idem, p. 174 c''seg. 164. Idem, p. 222 (id.).
131. Idem, p. 176 e seg. 165. Idem, p. 228 (Auc. Prov., século XIII).
132. Idem, pp. 96-8. 166. Idem, p. 231 (Adngcs frmrçois).
133. Idem, por volta de 2857-59. 167. Idem, ll, p. 263 (id.).
134. Citado em L11 femme d,ms /11 littémture fmnçnise et /es 1md11ctio11s ,.,, 168. Idem, p. 490 (Herbers, Ro111011 de Dolop11tbos, século X!!).
fmnçnis du XVI' siêde, sei e aprcs. L. Guillerm-Curutchet, J.-P. Guillerm, 1.. 169. Idem, J, p. 225 (Prov. gnllic, século xv).
Hordoir-Louppe, M.-F. Piejus, Lille, 1977, pp. 89-99. 170. Idem, p. 227 (Adnges fm11çois).
135. C. Becrman, Eine uiitzlicb Oste1predig über di frummen Weibe1; fiir !/li,·
171. Idem, p. 221 (E11c)'clopédie des provcrbes).
Sii11des-Persu11e11, 1593, pp. 3-4. Citado emJ.Jansscn, La croilisntion..., VI, pp. 355-(,.
172. Idem, p. 222 (Trésor des scntences).
136. K. Beinhaus, Predig nufd11s Fest dei· 1msdmldigen Kinder, 1617, eirado
173. Idem, p. 223 (Suite nux 11101s dorés de Cnton).
cm idem, p. 355.
67'}
678
174. Idem, p. 228 (Adages frnnçois). foundatio11s, Stanford (Cal.), 1972. N. Coh~, Europe's '.'111~r_demo11s, Sussex
175. Idem, p. 231. Univ. Press, 1975. Também li em manuscnto as contnbu,çoes de Dupont-
176. Idem, p. 225 (Suite aux 111ots do1-és de Cato11). -Bouehat e R. lv.luchembled a um livro a ser publicado, Prophetes et sorcirrs
177. Idem, p. 224 (Prov. gallic, século xv). dans fes Pays-Bas. Outros trabalhos serão mencionados no percurso.
178. Idem, p. 223 (Suite aux mots dol'és de Caton). Esclarecimentos muito úteis sobre a problemática dessa questão de P.
179. Idem, p. 222 (Trésor des sentences). Chaunu, "Sur la findes sorciers au XVII' siecle", Am1ales, ESC, jul-ago. 1969,
180. Idem, p. 221 (Adages frnnçois). pp. 985-11; de F. Salimbeni, "La stregoneria nel tardo Rinascirnento", 1V,11ova
181. Idem, p. 18 (id.). Rivista Storica, ano LX, fase. til-IV, pp. 269-334. I mportantes artigos, arnda,
182. Para tudo o que se segue, inspiro-me em sua dissertação de mestra- de F. Raphael, "Conditionnements socio-politiques et socio-psychologiqucs
du satanisrne", Rev11e des scieuces religie11ses, l 976, pp. 112-56; de A. Soman,
do (Panthéon-Sorbonne 1975): "La conception de la femmc dans !'estampe
"Des proees de sorcellerie au Parlement de Paris (1565-1640)",Anna/es, ESC,
françaisc du xv1• siecle", 2 vol. dat. S. Matthews-Griego prepara, sobre esse
mesmo terna, uma monografia de terceiro ciclo. jul.-ago. 1977, pp. 790-814. _ . , .
2. Cf. particularmente, sobre essa observaçao l11stonca, as duas obras de
183. Museu Mayer Van der Bergh, Anvcrs.
J. C. Baroja, Lcs so,·cieres..., pp. 60-95, e N. Cohn, Europe's..., PP· 16-59.
184. Cf. sobre isso tudo (inclusive referências), J. Bailbé, "Le thcme de la
3. J.-C. Baroja, Les sorcicm..., p. 76. . .
vieille femme dans la poésie satiriquc du XVI' e t du début du xv11• sieclc",
4. N . Cohn, Europe's..., p. 211. Texto em libri de sy11oda/1b11s catms et
Bibliothêque d'b1m1n11isme et Re11aissa11ce, 1964, pp. 98-1 19.
ecclesiasticis, ed. F. Wasserschleben, Leipzig, 1840, p. 354.
185. Sigogne, Oeuvres completes, Fleurct et Perceau, p. 216 (Sntyre ro111r,• 5. Conciliorum oemme11icor11m decreta, Albcrigo, PP· 233-4.
1111e drm1e).
6 . Sobre os cátaros, cf. particularmente J. Duvernoy, Le catbnrisme: la
186. Essa indicação e as que seguem, novamente na dissertação de mes- nligio11 dcs catbares, Toulouse, 1976.
trado de S. Matthews-Griego.
7. J.-C. Baroja, Les sorcieres..., pp. 93-4; N. Cohn, Em·ope's..., PP· 24-31.
187. Ronsard, Oeuvres completes, ed. G. Cohen, t, p. 451 (La Pléiade). Texto da bula de 1233 em W . G. Soldan e H. Heppe, Gescbicbte de,-Hc.r:mpmzesse,
188. Du Bellay, Oeuvres poétiques, cd. H . Charnard, V, p. 132. 2 vol., Stuttgart, 1880, 1, pp. 161-3.
8. H. R. Trevor-Roper, De ffl Réfo1wc..., p. 147. Texto em J. Hansen,
Qucllen..., p. 17.
CAPÍTULO 11 9. Santo Tomás de Aquino, Quodlibet, XI, 10; Crmmient. in Job, 1.
10. Todos esses fatos evocados com referências, em N . Cohn, Europe's...,
1. A literatura sobre a feitiçaria aumenta rapidamente. Na base, encon- p. 74-98;].-C. Baroja, Lessorciem..., pp. 100-1.
tram-se J. Hansen, Zubcrwnlm, lnq11isitio11 1111d Hexenprozess i111 Jv/ittelflltcr 11. Texto em J. Hansen, Quellen..., PP· 5-6.
1md die E11steb1mg der Grossen Hexenve1folgrmg, Munique-Leipzig, 1900; 12. E. C. Lea, Histoire de l'l11q11iritio11 nu Moyen Age, 111, PP· 560-80; J.
Quellen tmd U11tel'sucb11ngen z1w Gescbicbte des Hexenwalms rmd der Hansen, Quellen..., p. 315.
Hexenwefolgimg im lVlittelaltcr, Bonn, 1901, reed. 1964. H . Ch Lea, Histoirc 13. Cf. Nicolau Eymerieh e Francisco Pena, Le 111a1111el des i11q11isite11rs,
de l'Inqui..-ition nu Moyen'•Age, 3 vol., Paris, 1900-2; Materiais rownrd n bisto,:y inrrod., t rad. e notas L. Sala-Molins, Paris, 1973, pp. 66-71.
of witcbcrnft, 3 vol., Nova York-Londres, 1957. Por outro lado, utilizei prin- 14. E. \,V; Monter, Witcbcraft..., p. 19; R. Kieckhafer, Europenu witch-
cipalmente R. Mandrou, Nlrigistrnts et sorciers, Paris, 1968. E. W. Montcr, -trials: tbei,· fo1mdatio11s i11 populm· aml learned culture, 1300-1500, Londres:
"\Vitcheraft in Geneva 1537- 1662", Journnl of Moder11 Histo,y, vol. XLIII , n. Berkeley, 1976, pp. 106-7.
1, mar. 1971, pp. 179-240; "Patterns of witchcraft in the Jura", Jo11r11al of 15. E. W, Monter, Witcbcrnft..., pp. 20-1.
Social History, vol. V, n. 1, 1971, pp. 1-25; Witcbcraft i11 Fr,mce a11d Switzerlnnd, 16. J. Hansen, Quel/en..., pp. 438-72.
Ithaca-Londres, 1976. A. Maefarlane, uritchcrnft i11 Tudo,· and Stuart 17. E. ,N'. Monter, Witcbcrnft..., p. 18.
E11gla11d, Londres, 1970. K . Thomas, Religion anti tbe decline of 111ngic, 18. Primeira edição impressa: 1475.
Londres, 1971. j.-C. Baroja, Les sorcieres ct leur mo11de, Paris, 1972. H. R. 19. E. W ., Monter, W itcbcrnji... , p. 4.
T revor-Ropcr, De fn Réfonne au:r Lumieres, Paris, 1972. E. Midelfort, T•Viuh 20. P. Villette, "La sorcellcrie à Douai", cm Méltmgcs de sciences religieuses,
lmnting in Sotttbwesrern Germany, 1562-1684 - Tbe social n11tl intcllectua/ 1961, p. 129.

680 681
21. Contribuição de M.-S. Dupont-Bouchat à obra coletiva Prophétes fl 46. C. Ha nsen, Sorce/lerie à Sn/em, Paris, 1971.
soroers...
47. Idem, p. 366.
22. W. Monter, "V,Titchcmft in Geneva, 1537-1662", Journn/ of Modem 48. H. C . Midelfort, Witcb h11nti11g..., pp. 89 e 96-8. N. Cohn, Europe's...,
Histo,J', vol. XLIII, n. 1, mar. 1971, p. 187. p. 254.
23. Reagrupamento realizado por esse autor cm iVitchcmft i11 Fmnce 11ml 49. H. R . Trcvor-Ropcr, De Ili Reforme..., p. 193.
Switzednnd. 50. Idem, p. 200.
24. Erik Midelfort, Witch lmntiug..., p. 32; "Witchcrnft and religion in SI. H. C. Midelfort, Witch lmut.i11g..., p. 137. N. Cohn, Eurnpe's..., p. 254.
sixteenth century germany", Archiv fiir Reform11tio11sgescbicbte, 1971, p. 267. 52. J.-C. Baroja, Les sorcieres..., pp. 183-4.
25. A. Macfarlane, Witclm,ift..., p. 61. 53. A. Macfarlane, Witchcrnft... , p. 135.
26. G . F. Black, "A calendar of cases of witchcraft in Scotland 1510-1727", 54. Tudo o que segue segundo o artigo de E. Brouette em Satnn, 1948,
B-11//. New York Pub/it- Lib., 1937-8, Xll-XLII. pp. 364-8 (Etudes Carmélitaines); M. A. Prat, The ntti111de oftb~ C11tho/ic_Ch11rch
27. E. \,V. Monter, "\,Vitchcraft in Geneva", p. 186. towm·ds tbe witchcmft nnd the n//ied pmctices ofs01"Celle1y nnd 111ng1c, V,'aslungton,
28. E. \1/. Monter, Witcbcmft in Fmnce..., 1976, p. 105. 1915, pp. 94-5.
29. P. Schweizer, "Der Hexenprozess und seine Anwendung in Zürich", 55. L.-E. Halki n, Ln Réfor111e eu Belgique sous Chm·/es Quim, Bruxelas,
Ziirclm· T11scbmb11ch, n. f. 25 (1902), pp. 1-63. J. Schacher, Díls He.,ww,·scu im 1957, pp. 39-40.
K1111to11 L11zen1, r111cb de11 Prozessen von L11zer11 1111,l Sursee (1400-1675), Lucern:1, 56. Essa ilação foi tomada de empréstimo a R. J\fochembled, Prophetes et
1947,pp.x1-x111.A.Kochcr,"RegcstcnzudenSolothurnischcnHexenprozcsscn". sorciers...
Jnhrbuch fiil· So/otlmrniscbe Gescbichte, 16 (1943), pp. 121-40. 57. E. Poullct, Histoi,·e du droit pé11nl dous le d11d1é de Bmb,mt..., cm memó-
30. E. \V. Momer, "Patterns of witchcraft ...", p. 5. rias coroadas pela Académie royale de Belgique, t. XXXV, Bruxelas, 1870, PP· 48
31. E. W. Monter, "Witchcraft in Geneva", p. 187. e 418. J. H . Langbein, Prnsecuting crime iu the Re11nissa11ce, E11glm1d, Germany,
32. R. Manei rou, Magistmts..., p. 135, de acordo com o testemunho de Fmnce, Cambridge (Mass.), 1974, p. 170.
N icolas Rémy. 58. Texto em F. von Holtzendorff, Hrmdbuch der deutschm Strnfrechts, 4
33. Contribuição de M.-S. Dupont-Bichat a Prophetes et sorcie,·s... vol., Berlim, 1971-7, 1, p. 67 e ss.
34. E. Broucttc, "La sorccllerie dans lc comté de Namur au début de 59. H. R. Trcvor-Roper, De /11 Réfonne..., p. 185.
l'époquc moderne, 1509-1646", A1111nles de ln sociéré nrchélogique de Nnmm; 48, 60. [dem, ibidem.
1953-4, pp. 390-410. Satan, 1948, pp. 384-85 (Emdes Carmélitaines). 61. Broucttc, Satan ..., pp. 384-5.
35. Contribuição de R . Muchembled a Prophetes et sorciers... 62. Mesma s ituação na França, onde o parlamento de Paris, dando pros-
36. J. L. Pitts, Witchcmft mui deui/ /ore i11 tbe Cbrmuel Is/mui, GuerneSl!)', seguimento ao procedimento de apelação, tentou corrigir os excessos dos tri-
1886, pp. 28-32; G . R . Alleine, "Vlitch triais inJersey", Sociitéjeninise, 13, 1939. bunais locais: A. Soman, "Lcs proces de sorcellcric...", pp. 809-1 2.
37. R. Mandrou, Mngistrnts..., p. 135. ~
63. Prophétes et sorciers...
38. S. Cirac-Estopanan, Los procesos de becbicerin e:11 ln Inq11isitio11 ,/,· 64. Reproduzo esse texto de acordo com a cópia que fora enviada ao
Cnsti//n ln Nueun, Madri, 1942: nenhuma execução cm 307 processos por feiti - Conselho de Luxemburgo (A. E. L., Registrnture du Co11scil provincinl, 1591-9,
çaria. Agradeço imcnsa'lnente à sra. Benassy a gentileza de consultar esse f•565 • a 58v•) e tal como ele aparece na contribuição de Dupont-Bouchat,
livro, na Espanha, pani mim. Prnphétes et sorcien. .. Atualizei a pontuação.
39. J. M ichelet, Ln sorciere, ed. R. Mandrou, Paris, 1964, p. 24. 65. Idem.
40. H. R. Trevor-Rover, "The persecution of witches", Ho1·izo11, nov. 66. H. R . Trevor-Roper, De ln Réfon11e..., pp. 182-5. Actsoftbe Pndiament
1959, p. 59. of Scotln11d, li, p. 539. .
41. A. Macfarlane, Witchcmji..., pp. 28-9. 67. K. Thomas, Religiou..., pp. 442-3; A. Macfarlane, W 1tcbcmft..., pp. 14-7,
42. J.-C. Baroja, Les so,·cifres..., pp. 182-225. 68. Idem, p. 15.
43. H. R. Trcvor-Ropcr, De ln Réfor111e..., p. 181. 69. H. R, Trevor-Roper, De la Réforme..., p. l86.
44. Idem, pp. 207-8. 70. Idem., ibidem.
45. R. Mandrou, !Vlngistmts..., pp. 197-260. M. de Certeau, Ln possessio11 d,· 71. E. W. Monter, Pntterns..., pp. 9-11.
Lo11d1111, Paris, 1970. 72. Idem, ibidem.

682
73. E. W. Monter, "vVitchcraft in Geneva...", p. 185. ta anos; A. Soman, p. 799. Mas, na época, uma mulher de cinquenta anos era
74. Propbetes et sorciers... considerada velha.
75. Idem, p. 37. 101. E. ,v. Monter, Witchcraft i11 France and Switzcrlmul, p. 121 (est:itfsri-
76. A. Soman, "Les proc~s de sorcellerie ...", p. 796. ca simplificada).
77. Cf. L. Osbat, "Sulle fonti per la storia dei Sant'Ufficio a Napoll 102. A. Macfarlane, Witcbm,ft..., pp. 159 e 65.
alia fine de! Scicento", Ricercbc di storin socinle e religiosa, jan.-jun. 1972, PP· 103. P,·opbi:tes et so,-cien ..
104. Cf. as notas, passi11t.
419-29.
78. J.-C. Baroja, Les sorciê,·es..., particularmente p. 205. 105. Nesse quadro não foram incluídos os números relativos aos apelos
79. H. R. Trevor-Roper, De ln Réfon11c..., p. 149. ao parlamento de Paris entre 1565 e 1640, porque nem todos os condenados
80. A. Soman, "Les proces de sorcellerie...", p. 798. apelavam. Mas A. Soman, corrigindo R. Mandrou, mostrou que esses apelos
frequentemente eram seguidos de uma atenuação da pena. "Se considerar-
81. J. Burckhardt, Ln civifisntio11..., Ili, p. 172.
mos", escreve ele, "todos os 75 anos, houve 115 execuções, ou seja, 24% das
82. E . Vl. Monter, "'Vitchcraft in Geneva...", pp. 202-3.
463 penas de morte em primeira instância, e apenas 10,5% do total dos. 1094"
83. H. R. Trevor-Roper, "The persccution of witches", Horizo11, nov.
apelos a sentenças pronunciadas por feitiçaria ou magia: "Les proces de sor-
1959, p. 59. cellerie...", p. 794.
84. E. v\l. Montcr, "Witchcraft in Gcneva, 1537-1662",Joun,n/ ofModc1·11
106. E. W. Monter, "Witchcraft in Geneva...", p. 186.
Histo1J, mar. 1971, pp. 185-6. 107. E. W. Monter, "Patterns...", p. 8.
85. E. Midelfort, Witcb lnmting..., p. 33. O total " 2953, é diferente do
108. Idem, ibidem.
fornecido no quadro da página 350 (3229), porque então o autor acrescentara, 109. A. Macfarlane, Witchcmft..., p. 135.
às execuções conhecidas através dos processos, outras execuções assinaladas 110. E. W. Monter, "Witchcraft in Geneva ...", p. 185.
por fontes diversas. 111. E. W. Monter, "Patterns...", p. 7.
86. A. Reuss, L'Alsnce nu XVII' siecle, 2 vol., Paris, 1898, li, p. 105 112. Idem, ibidem.
87. E. vV. Monter, "Witchcraft inJura...", p. 13. 113. A. Macfarlanc, Witcbcraft..., pp. 29 e 97 e mapa p. 32.
88. E. ,v. Monter, Witcbcrnft i,1 Frnnce nud Switzerlnud, pp. 105-6.
89. Os castigos costumeiros ordenados pela Inquisição de Nova Castela
eram a admoestação pública ou privada, jejuns e orações, chicotadas (no m:íxi- CAPÍTULO 12
1110 100) e o exílio; S. Cirac-Estopanan, Los processos... , pnssim.
90. H. R. Trevor-Roper, De la Réforme..., pp. 189-203. l. Nesse mesmo sentido, pronuncia-se R. Muchemblcd cm Pi-ophétes er
91. J. Michelet, La sorcicre, principalmente a introdução e os capítulos sorciers ..., introdução.
XI-XII. 2. K. E. Jarcke, "Ein Hexenprozcss", Am,alm der deutscben 1111d nusliindi-
92. A. i.\'lacfarlane, Witcbcrnft..., p. 155 (e todo o capítulo x). scben Crimi11al-RechtsPflege, Berlim, vol. 1, 1828, especialmente p. 450; F. J.
93. E. v,r. Monter, "Patterns ofwitchcraft...", p. 15. Mone, "Ueber das Hexenwesen", A11zeige11 für Km,de der de11tsche11 Vo,·zeit, ano
94. Prnphi:tes et sorâen·. vm, Karlsruhe, 1839, sobretudo pp. 271-5 e 444-53. Para tudo o que segue, N.
95. Idem. Cohn, Eu,.ope's..., pp. 103-25.
96. A. Soman, "Les proces de sorcellerie...", p. 789. 3. J. Michelet, La sorciére..., pp. 19-20.
97. Pl"Ophetes et sorciers... 4. Idem pp. 129-35 (cap. XI).
98. E. vV. Nfonter, Witchcrnft iu Frn11ce a11d Switzerland, pp. 119-20. 5. P. Chaunu, "Sur la fin eles sorciers ...", A1111ales, ESC, jul.-ago. 1969,
P,·ophi:tes et so,úen .. Os apelantes que se dirigem ao parlamento de Paris emrc p. 907.
1565 e 1640 são, mais de metade, homens. Sem dúvida as mulheres geralmen- 6. E. Lerroy-Ladurie, Les paysa11s d11 Ln11g11edoc, I, p. 407.
te têm menos condições de apelar que os homens; A. Soman, "Les proces de 7.J. Favret-Saada, "Sorcicrcs et Lumieres", Critique, abr. 1971, p. 358. O
sorcellerie...", p. 798. manuscrito de minha obra já fora entregue ao editor quando veio a público o
99. E. W. Monter, Witcbcrnft in Frm1ce a11d Switzer/a11d, p. 123. livro deJ. Favret-Saada, Les mots, la 11101·1, les so,·ts- Ln sorcellerie dn11s le Bocage,
100. Idade média dos apelantes ao parlamento de Paris: cerca de cinquen- Paris, 1977.

684 685
8. Edição aumentada cm doze volumes, 1907-15. N . Cohn, Europc'.,·... ,
;?· Cf., particularme.ntc a esse respeito, N. Cohn, E11rop,·'.r..., PP· 42.51) e
99- L), e K. r homas, Relig1011 ..., pp. 512-9.
p. 108. ,27· Seguin.do os passo~ de K. T homas, remeto aqui a Witchrrnji 11ml \Ili'
9. N umerosas rcimprcssõcs desde então. wy III East Afnca, _ed._J. M1ddlet0n e E. IV{. Winter, 1963, pp. 62-3 e 17 1 z.
10. i'vl. Murray, Tbe god ofwitdm (recd. de 1956), p. 54. . . 28.' Em rela.çao as crenças em malefícios reveladas pelos proccs~o~ d~
11. Particularmente em 1969 e 1973. feitiçaria, cf. particularmente K. Thomas, Rcligions..., pp. 441-9; A. M :icfn rlill\\',
12. M. Summcrs, Tbe /;istory..., Lo ndres, 1973, p. 14. W,tcbcmft
. . ...., pp. . 153-84; N . Cohn, Europc's..., pp. -?39 - 46; 1,..' . 1( ICC
' kl ~ H; j'or,

13. Turim, 1966. Et'.' opea'.1 w1tcb tr111/s...,_pp. 47-92_;e anteriormente E. Dclcambrc, L~totUt'J!I ,Ir
14. Encontram-se também os nomes de Abundia e Bcnsozia. soire/lene dans /e duche de Lon-nme nu XVI' et 1111 XVll' s,ec " fe, N ancy, .1 vo1.,
15. C. Ginzburg, l Be1umdn11ti, pp. 48-66; N. Cohn, Europe's..., p. 210-9; 1948 -51. , sob rccu d o vol. li, e R. i\fandrou ' lVlngistml'
A · , ..., p· 96 · Cf. rn111 1,~111 ,
J. Baroja, Les sorcieres..., pp. 79-86. R. Muchcmbled chamou-me a atenç~o 11agro11, n._3-4, 1973, pp. 63-79 e n. 7-8, pp. 82-105.
para o fato de que em 1454 as autoridades religiosas de Amiens lembravam a 29. K. rhomas, Religiou ..., p. 448.
interdição clássica: "Nulia mulier se nocturnis horis equitare cum Dia1rn dc:1 30. Bibliotheque Natio~a l, Paris, reserva D.36 955. Co11fessionnaf publ ic:1-
paganorum, vel cum Hcrodiade seu Bizazia, et in innumera mulierum mul- do em Na ntes em 1612, aqm PP· 21-5: "Examen de conscience sur le premicr
t icudinc profiteatur". Cf. T. Gousset, Actes... de ln province de Reims, 4 vol., com.mandement". D evo essa tradução a Louis Fleuriot, professor na U ni-
1842-4. Aqui t. 11, p. 700. versidade da Alta Bretanha, a quem agradeço imensamente.
16. G . Bonomo, Caccin nlle stregbe - Ln credmz.n 11elle sN'egbe tini seco/o 31. Citado por E. Delcambre, Lc co11ccpt de sol'Cellei·ie..., m, p. 213.
Xlll nf XIX cou particolare riferimento nfl'ltnlin, 2. cd., Palermo, 1971. E. de 32. K. T homas, Religio11 ..., pp. 263-4.
M:1rti no, lvforte e pinnto rit11ale 11el 111011do amico, Milão, 1958; Sud e 111ngi11,
bl' 33.f Cf. ) a esse respeito A. Macfarlane ' Witchcm''t ~ ..., pp• 212- ,-2 (com J11- ·
Mi lão, 1959; La terra dei ,·imorso, Milão, 1961; Il 111011do 111ngiro - P1·0/cgo111mi 10gra ia; L. V. Thomas e R. Luneau, Les snges dépossédés Paris 1977 sob1•e-
n 111111 storia dei 11111gismo, Turim, 1967. L . Lombardi-Satriani, A11tropofogia tudo pp. 124-9. ' • ,
cu/tum/e e annlisi de/ia cultm·n·subnlternn, Messina, 1968; "II resoro nascosto", 34. L. V. T h?mas e R. Luneau , Les snges..., pp. 126-7.
Sa11ti, strcgbe e dinvoli - li pati·imo11io dei/e tradizio11i popolari udln società 111ai- 35. De Martm o, li 111011do magico, p. 135.
dio11rt!e e in Sm·degna, Florença, 1971 (introdução). G. de Rosa, Vescovi, popolo e 36. Lc ,mm.de d'.' sorcicr (obra coletiva), Paris, 1966, p. 16.
magia 11el S11d. Ricercbe di storin socio-rcligiosn dai seco/o XVII nl XIX saolo, 37. C f. mais acima pp. 49-52.
Nápoles, 1971. C. Gim.burg, "Stregoneria e pictà popolare - Note aproposito 38. K. Thomas, Religion... , p. 561.
di un processo modenesc del 1519", A1111afi dei/a Scuofa uon11ale supc,·ioi·e di 39. Idem, pp. 560-4; A. Macfarlane Witchcmft..., PP· 172-3, 200-6·,
Pisa, ll, XXX, 1961, pp. 269-87. Cf. ainda G . E. Battisti, La civi!tà delle stregbe, Propbetes et sorciers... '
Milão, 1964. 40. J.-C. Baroja, Les sorciáes..., p. 229.
17. Storia d'lt11/i11, l l cnmtteri 01·igi11ali, Turim , 1972; contribuição de 41. Citado por R. Mandrou, M,,gistmts..., p. 134.
C. Ginzburg, pp. 656-8. J. Delumeau, Lc cbristiauis111e vr1-1-il 1110111·ir.,;'Paris, 42. P,·ophetes et soi'fiers...
pp. 193-4. 43. R. Mandrou, Mngistrnts..., p. 135.
18. Benedirti, p. H , b1t!/01·i11111, t. 1; Opera 011mia, xv, Prato, 1845, pp. 233-4, 44. H . R. Trevor-Roper, De /a Réfomtc..., PP· J9J-Z0J.
e t. 11, xv1, 1846, pp. 319-22. Agradeço ao padre vVillibrord vVitters o fato de 45. G. Bonomo, C11cci11 alle strcgbe..., pp. 291-300.
ter-me chamado a atenção para esses textos. 46. A: Macfarlane, Witcbcmft..., sobretudo PP· 138-42.
19. J.-C. Baroja, Les sorcieres..., p. 262. 4!. ~1tado por H. R. Trevor-Roper, De la Réforwc..., p. 202. F. Spee Advis
20. A. de Saint-André (conhecido como padre Vcrj11s), Vie de Micbel Le aux cn111111alrstes..., trad. francesa de 1660, p. 320. '
NoMctz, 1666, liv. V, cap. m. 48. K. Thomas, Religio11 ..., pp. 518-9.
21. K. Thomas, Religion..., pp. 383-5. 49. J.-C. B_aroja, Les sorcii:res..., pp. 215-6. A.Relaction de Salazar foi publi-
22. Prophi:tes et so,úers... cada no A11111101re de Eusko Folklore, Xlll, 1933, pp. 115-30.
23. Cf. mais acima supm p. 242. 50. No_rnci~6nio que se segue, utilizo muito N. Cohn, Europe's... , pp.
24. S. Freud, Mofse ct /e 111011otbéisme, trad. francesa, Paris, 1948, p. 140. 14-59, e me identifico totalmente com seu ponto de vista.
25. Cilento, "Luoghi di culto e religiosità popolarc in Lucania", Ricercbe 51. Ver mais acima supm pp. 287-91.
di stori11 sociale e religiosa, n. 7-8, 1975, pp. 247-65.
687
76. H. Boguet, Discours e:xécrn/Jle..., 1627, p. 3B; R. Mandrou, Mngis- mm...,
52. Contribuição de Duponc-Bouchat a Propbetes et sorciers...
p. 134.
53. Utilizo, nas páginas que seguem, a dissertação de mestrado de Petit- 77. Bavoux, Hnntiscs et dinbleries dn11s ln teffc abbmialc de L11xe11il..., p. 129.
-Jeans, "La sorcellerie en Bretagne aux XVll' et xvm• siecles", Rennes, 1969. 78. Extrato do Jo1w11nl latin citado na tese de mestrado de Pct it-Jca 11s, / ,11
Um exemplar de La 111ontag11e transcrito por um reitor bretão em 1752 enco1'.•
sorcellerie en Bretagne..., p. 140.
tra-se nos arquivos de Ille-et-Vilaine (5Fb). O método do padre Maunoir 79. Claude de Sainctes, Concile provi11cinl des dioci:ses de No1wn111/ic 11·1111 1)
recebeu a aprovação da Sorbonne. Rouen [en 1581] ...pm· Mgr l'J//1ist1·issi111e et Reveiwdissime Cnrdin{I/ de /]011rb1m ...,
54. O Jou.mnl l11ti11 de Maunoir, escrito a partir de 1671, até hoje não foi
Rouen, 1606, p. 12.
publicado. Encontram-se alguns trechos dele em X .-A. Séj~urné, !listoire du 80. Propbetes et sorciers...
vé11érnble servitem· de Dieu Julim Mnmwir de la Compngme de Jesus, Pans- 81. Essa citação e as seguintes em K. Thomas, Religion..., p. 455.
-Poitiers, 1885, cf. particularmente PP· 273-91. . . 82. Para tudo o que segue, cf.J. Bodin, La démo110111n11ie..., p. 165A- 1921J.
55. J. Maunoir, Histoire de Catherine Da11iélo11, reed. Perrot, Samt-Bncuc 83. H. R. Trevor-Roper, De /11 Réforme..., pp. 196-7; R. Maneirou, Mr1gis-
1913, p. 185. trnts..., pp. 138-40.
56. J. Maunoir, L/1111011tag11e, parte IV,§ 1.
57. Esses conselhos na primeira das cinco partes que compõem La mo11tag11e.
58. H. R. Trevor-Roper, De ln Réfor111e ..., p. 141. CONCLUSÃO
59. ldem, p. 139.
60. Idem, PP· 175-6. 1. Ver mais acima, pp. 220-3.
61. Idem, ibidem. 2. A seu respeito, cf. R. Mandrou, Magistrats..., pp. 427-8.
62. Observações pertinentes a esse respeito de F. Salimbeni, "La strego-
3. N. Eymerich-fco Pena, Lc 111m111el dcs foquisiteurs, introd., trad. e notas
neria nel tardo Rinascimcnto", pp. 294-5. Sobre neoplatonismo e magia 11'1 L. Sala-Motins, Paris-La Haye, 1973, pp. 56-9.
Renascença, Cf. particularmente L. Thorndike, A bistory of111agic and expe1·i- 4. Idem, pp. 59-60.
um1tnl scimce, 8 vol., Nova York, 1923-58; D. P. vValker, Spirit11al mui dc111011ic
5. Idem, p. 152.
agic from Ficino to Cnmpnnella, Londres, 1958. E. Ga rin, L'Età nuova - 6. H. Institoris e J. Sprenger, Le 111nrten11... , p. 669.
111
Ricercbe di storia de/ia wlturn tini XII ai XVI seco/o, Nápoles, 1969, PP· 385-500. 7. A. Novinski, Cristãos novos na Bahia, São Paulo, 1972, pp. 152-7.
W. Shumaker, Tbe occult scie11ces i11 cbe Rw{lissm1ce, Amsterdã, 1972. 8. P. Aznar-Cardona, Exp11lsion justificada de losmoriscos espmioles, Hucsca,
63. Aqui mais uma vez reflexões judiciosas de F. Salimbeni, "La strcgone- 1612, li, Í "' 62-3: cit:tdo cm L. Cardaillac, Morisques et cbrétieus - Un r,ffro11tc-
ria ...", p. 308. Cf. também E . Battisti, L'A11tiriunsci111cnto, Milão, 1962, p. 153. 111eut polémiquc, /492-1640, Paris, 1977, p. 97.
64. Retomo aqui e nas páginas que se seguem certos temas de minha "Aula
9. L. Cardaillac, Morisques..., p. 104.
inaugural" ao College de France, publicada novamente em Lc cbristin11is111e va-t-
10. Idem, p. 125.
-il 111011rir?, Paris, 1977, sobretudo p. 195. " 11. Cf. mais acima pp. 265-6.
65. Cf. T. Szasz, Fa/Jriquer ln folie, Paris, 1976, particularmente o capínilo 7.
12. N. Eymcrich-Fco Pena, Le 111m111el..., p. 135.
66. Dictiomwi,·e 4,e spiritunlité..., 111, 1, col. 131-2. \3. Idem, ibidem.
67. A. Macfarlane, Witcbcrnft..., p. 140. 14. Cf. mais acima p. 352.
68. R. Mandro~, Mngistrnts..., pp. 134 e 146. 15. N. Eymerich-Fco Pena, Le 111n1111el..., p. 68.
69. Citado cm Prophetes et sorciers... 16. H. lnstitoris eJ. Sprenger, Le 111nl'ten11... , pp. 133-47.
70. Texto citado por R. Mandrou, Mngistrnts..., p. 146, e extraído do
17. Idem, p. 127.
Discours ndmirnble t/'1111111ngicie11 de la vil/e de Moulius..., Paris, 1623 (Bibliothequc
18. Idem, pp. 264-7.
Sainte-Genevii:ve). 19. J. Bodin, Lll dé1110110111nnic..., p. 198 r • e v•.
71. Cf. N. Cohn, Enropc's..., p. 231. 20. Idem, p. 198 r •.
72. Texto traduzido por A. Danet em Le 111m·wm des sorcieres, p. 117. 21. R. Klein, Le proci!s de Snvo11n1·olc, Paris, 1957, pp. 27-9 e 55.
73. Idem, p. 127. 22. Idem, pp. 349-50.
74. J. Bodin, Ln démo11omn11ie..., p. 122A. 23. Co11cilion111t oemme11icorum dec1·ct11, ed. G. Alberigo, p. 437.
75. N. Remy, Demonolntriae libri t1·es, 1595, PP· 125-7.
liS9
53. R. Bellarmin, Opera 011mia, III De lnicis, 20, p. 35. Citado em J. de La
Servierc, La tbéologic de Bellar111i11, p. 259.
24. Idem, p. 597. 54. J. Leclerc, Histoire de ln tolérance, 1, p. 333; Du droit des 11111gisrrats sm·
25. Consultei a edição de 1524 publicada em Paris.
/eurs s11jets, s.l., 1574, p. 42.
26. Idem, f• v ,·•. 55. Em relação a esse tema historiográfico, remeto à minha "Aula inau-
27. Idem, f• Vlll r •. gural" do College de France, republicada em le christia11is111e vrH-il 111011rir?,
28. Idem, f• Vlll v•.
sobretudo p. 192.
29. Idem, f• IX v•. 56. C. Ginzburg, TI fomlflggio e i venni, Turim, 1976, p. 146.
30. Idem, f• X r•. 57. A sra. Piozza-Donati está trabalhando em uma tese sobre as bla.sfê-
31. Idem, f• X v•. mias e os ins ultos italianos. É dela que tomo emprestado, nus parágrafos
32. Idem, f• X V r •. que seguem, os elementos referentes à lt,ília. Exprimo-lhe minha sincera
33. Idem, ff• XVII r• a LXXVI r •.
34. Idem, ffu LXXVI roa LXXVII v•. grntidão.
58. Cf. supm, mais acima pp. 388-9.
35. Idem ff, LXXVII v a LXXXVIII v•.
36. R. B~llarmin, Opem 011111ia, 1869, IU De lllicis, p. 38. Citado em J. de 59. H . Baquero-Moreno, Tensões sociais em Po,·t1tgal 110 Idade Média, Porto,
La Scrviere, L11 tbéologie de Belltwmi11, Paris, 1909, p. 262. 1976, p. 82.
37. Rosenplut, K1111cio11rd, Olomouc, pp. 598-600. Trad. fran~esa de 60. Montesquieu, Oe11vresco111pletes, 1956, p. 1552 (La Pléiade).J. Huizinga,
Nfarie-Elsabeth Ducreux, que teve a gentileza de chamar-me a atençao para Le déc/i11 du Moym Age, Paris, 1967, p. 168. S. Bonnet, A !me et à dia, Paris,
1973, p. 43.
esse texto. ·· 1 " 61. K. Thomas, Religion..., p. 170. Cf. Acts11111! 01·di111111ces ofthc lmerregm1111,
38. J.-M. de Bujanda, "La censure littéraire :,n Esp~gne ~li ~VI' ~1ec e ,
C,madimi Jounwl of History, abr. 1972, pp. 1-15;_ Los ltbro~ italianos en el 1642-1650, ed. C. H. Firth e R. S. Rait, 1911, I , p. 1133-6.
indice espafiol de 1559", em Bibliotbeque d'b11111amsme et Renmssm1ce, 1972, PP· 62. H. Baquero-Moreno, Tensões sociais..., pp. 84-5.
63. Art. "Blaspheme", Dictio111111ire de théologie C11tboliq11e, t. u, Paris, 1937,
89-104. col. 902-9. O édito de julho de 1666 cm Isambert, Reweil des auciennes /ois
39. J.-M. de Bujanda, "La censure...", p. 12. .
40. "De cliversiis ritibus in eaclcm fide", Co11cilion1111 oemmerncomm deCl'eta, frrmç11ises, t. XVIII, pp. 86-7. R. Maneirou, Mr1gistmts..., sobretudo pp. 496-9.
64. B. Bennassar, L'bo111111e espagnol, Paris, 1975, p. 77.
ed. Alberigo, p. 239. . ,, 65. E. Doumergue, Calvin. Aqui t. V il, pp. 121-2.
41. P.-M. Gy "La réforme liturgique de Trente et celle de Vatican 11 , Ln
66. Citado emJ.Jansen, La civilis11tio11 ..., VIII, p. 453.j. Andrea, Cb1"istli-
Maisou- Dieu, n. 128, 1936, PP· 61-75. che Eri1menmg 11acb dem Laufder irdischw Pla11ete11 gestcllt i11 P,wligteu, Tühin-
42. Introdução de A. Daner au Ninrteau des so1-cicres, PP· 65-7.
43. H. Strohl, L11t/1e1; sa vie et sa pensée, Strasburgo, 1953, P· 154. gen, 1568.
44. M . L utero, Ocuvres, IV De l'autorité temporelle, p. 39. _ . _ 67. Citado emJ.Janssen, La civilis11tio11 ..., Vlll, p. 454.J. G. Sigwart, Eilff
45. M. Lutero, Oeuvres, VI Co111111e11111i1·e sur /e psa11111e CXVII, 1'30, P'· 2_~'· Predigtcn vo1l de,· von,ebmsten 1111d z11 jede1· Zeit i11 de,· Welt ge111ei11stC11 Lastem,
46. Para todo esse raciocínio, cf. J. Lecler, I·Tistoin de la tolém11ce ou s,ec/e Tübingen, 1603.
68. Citado por J. Janssc n, La civilis11tio11..., VIII, p. 455. A. Nlusculos, Wiser
de la Réfonne, 2 vo!., Paris, 1955. Aqui 1, p. 180.
dm Flrubteufel, 1562.
47. Citado em idem, p. 189. 69. J. Calvino, /nstitution de la religiou cbrétiem,e, Labor et Fides, liv. IV,
48. Idem, I, p. 195. . , , , .
49. ldem, I, p. 323. Longos trechos desse prefácio no Trmte des beret1q11cs, cap. 20, p. 450.
70. J.-B. Thiers, Traité des jeux et divertissemeuts, 1686, p. 440. La mort des
Rouen, 1554. . pays de cocngne, ed.J. Dclumeau, Paris, 1976, p. 15.
50. Idem, I, p. 325-6. Trnité des hérétiques, ed. A. Oltvet, Genebra, 1913,
71. A. Van Gennep, Ma1111el de folklon .., t. I, IV, 2, p. 1818.
pp. 24-5. . . . 72. Texto reproduzido cm J. Deslyons, Traités si11g11/iers et 11011vea11x co11tre
51. Idem, 1, p. 319. Déc/amtion pom· 111a111te1111· la vrme foy ..., PP· 47-8. A
polêmica contra Servct reaparece na lnstitution cbdtie1me, Labor et F1des, 1, /e pagmzisme du Roy-Boit, Paris, .1670, p. 258-63.
73. J. Calvino, "Sermon sur l'harmonie des trois évangélistcs", Opem
PP· 102 -9· . . · · · d h' .: 011min, 1562, XLVI, p. 32; ver também "Sermon sur le Deutéronome", idem,
52. Idem, p. 332: Trnité de /'rmtonte du mag1strat e_11 ln pun1t1on es _ e, e-
I,
tiques, Genebra, 1560, pp. 311-2. Primeira edição em lanm, Genebra, 15,4.
69/
1562, XXVII, p. 505. Cf. J. Delumeau, "Les réformatcurs ct la superstition", 101. Citado em M. Foucaulr, Histoi,·e de la folie..., p. 72.
Coligny et so11 temps, Paris, 1974, pp. 448-9. 102. Citado cm idem, p. 186.
74. Cf. sobre isso tudo, A. Van Gennep. 1Wmmel de folklo.-e. .., t. r, rv, 103. Citado em idem, p. 83.
1818-9, Y.-M. Bercé, Fêtc ct i·évolte, pp. 149-50 e p. 203; R. Muchembled, 104. C itado em idem, p. 60.
Culwi·e populaire et culture des élitcs da11s ln Fra11cc modcrne, Paris, 1978. 105. C itado em].-P. Gutton, La société et les pn11v1-es. .., p. 135.
75. Comunicações de A. Burguiere e F. Lcbrun ao Colloquc sur le chari- 106. Idem, id.
vari, Paris, abr. 1977. 107. Idem, p. 133.
76. Cf. a esse respeito as interdições dos sínodos reformados, por exem- 108. M . Foucault, Histoi,·e de la folie ..., p. 88.
plo, o de 1617: La 111ort des pays de cocag11e, ed. J Delurneau, p. 119. 109. Idem, 88-9. Collet, Vie de s11i11t Vincent de Paul, 3 vol., Paris, 1818.
77. Comunicação de A. Burguiêre ao Coloque sur le chariva ri. 110. J.-P. Gutton, La société ct lcs p111wres..., pp. 126 e 129-30.
78. Y.-M. Bercé, Fête et révoltc, pp. 145-6. 111. R. Mandrou, M11gistmts... , sobretudo pp. 158-79.
79. Onlo1m,111ces sy11odales du diod:se d'Am1ecy, t. XXI II, vol. ll, pp. 397-8. 112. K. Thomas, Religion..., sobretudo pp. 641-63.
Agradeço ao padre \Vitters ter-me chamado a atenção para esse texto (expos-
to em meu semin.írio).
80. A. D. du Vauclusc: I.G.306 f• 404. Informação comunicada pela sra.
Olry.
8 1. Dum lks~in, Co11cili11 rotonwgc11sis provi11ci11e, Rouen, 1717, II, p. 301
(indicação do padre \Vitters).
82. Idem, p. 119 (indicação do padre Witters).
83. A. D. Vauclusc: I.G.305 f• 341. lnformaçào comunicada pela sra. Olry.
84. Citado cm Y.-M. Bercé, Fête et révolte, p. 148. M. Juin-Lambert,
A111,ales de Norn1a11die, 1953, pp. 247-74.
85. L. Daneau, Trnité des dn11scs..., 1579, pp. 16-33.
86. Dom Bessin, Concilia 1·otomngensis provi11ci11e, 11, p. 393 (indicação do
padre Vlitters).
87. Calvi no, Opera 011mi11, 10a, citado por F. \Vendei, Calvin, sources et
évo/11tio11 de s11 pensée religieuse, Paris, 1950, p. 51.
88. Memória de 1536 citada em J. Lecler, HistoÍl'c de ln tolénmce..., I , p. 253.
89. M. Foucault, .Histoire de 111 folie ..., p. 73, n. 1.
90. Idem, p. 74.
91. E . Le Roy-Ladurie, Les p11ys,ms du L,mguedoc, 1, p. 322.
92. A respeito disso tudo, cf. J.-P. Gutton, La société et les pauvres..., pp.
122-57. .,
93. M. Foucault, Histoire de la folie ..., p. 70.
94. J.-P. Gutton, La société et les p111iv,·cs..., pp. 104-8.
95. Idem, pp. 113-5. A. H. Dodd, Life in Eliznbetb E11gl1111d, 3. ed., Londres,
1964, pp. 130-3.
96. J. Dclumcau, Rome au XVI' siecle, Paris, 1975, pp. 98-9.
97. Essas informações e as que seguem, reunidas por J.-P. Gutton, La
société et les p1111vres..., pp. 126-30.
98. M. Foucault, Histoire de 111 folie ..., pp. 60-1 e 77.
99. Idem, pp. 64-5 e 79-80.
100. Citado em J.-P. Gutton, La société et les p1111v,·es..., p. 104.

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