Professional Documents
Culture Documents
Resumo: Falar de Cristãos de São Tomé implica abordar ao menos três aspectos importantes:
(i) uma comunidade religiosa cristã que remonta aos primeiros anos do cristianismo; (ii) uma
teologia crística originalmente diofisista e comumente associada ao Nestorianismo (com Jesus
compreendido como possuidor de duas naturezas) e; (iii) a sobrevivência de uma religiosidade
possuidora de características únicas e que remonta ao primeiro século. Concentrados na região
da Costa do Malabar, mais especificamente no estado de Kerala, a sudoeste da Índia, muitos
dos Cristãos de São Tomé ainda hoje professam uma doutrina considerada herética pela Igreja
Católica, embora algumas de suas igrejas estejam, por sua vez, de certa forma unidas
teologicamente a Roma e aliadas ao catolicismo apostólico romano. O objetivo primeiro deste
trabalho é ilustrar, ao menos superficialmente, a fundamentação teológica vivenciada pelos
Cristãos de São Tomé, na Índia. Aliada a isso está a intenção de divulgar essa vertente do
cristianismo pouco conhecida no Ocidente, em termos de suas principais peculiaridades. O
direcionamento metodológico se pautou pela pesquisa bibliográfica em materiais tanto
acadêmicos como não acadêmicos, sendo que alguns dados para o embasamento deste
estudo foram buscados em produções científicas, emissões oficiais, etc. O principal resultado
deste trabalho vem a emergir do intuito de demonstrar o modo como os cristãos indianos de
tradição tomesina vivenciam suas crenças, um panorama peculiar que inevitavelmente coloca a
visão predominante do cristianismo no mundo em contraste com a tradição dos Cristãos de São
Tomé, a qual remete aos primórdios do movimento cristão, tendo sido estabelecida a partir de
uma ligação única, pessoal, resultante da missão daquele que foi um dos doze apóstolos
diretos de Jesus.
Aproximadamente trinta por cento dos cristãos indianos vivem em Kerala (Querala
ou “Keralam”), mas diante da numerosa população isso representa apenas um quinto
dos habitantes desse Estado, conhecido tanto pelos coqueirais em sua costa quanto
pela produção de uma das especiarias mais cobiçadas pelos portugueses ao aportarem
em suas praias: a pimenta.
Tomé, um dos doze apóstolos de Jesus, é popularmente conhecido pelo lema “ver
para crer”. Mas como todo rótulo esconde boa parte do conteúdo, muitos cristãos,
especialmente no Ocidente, não conhecem a total dimensão da influência de Tomé na
formação do cristianismo. Principalmente o cristianismo indiano, fortemente influenciado
por nestorianos que, no princípio, se refugiaram no reduto da “escola” tomesina, em
Edessa, por causa da acusação de heresia, e que para a Índia se deslocaram após o
recrudescimento do conflito do Império Romano com o Império Persa. Como resultado,
inúmeras igrejas cristãs se formaram no sudoeste da Índia, na Costa do Malabar, as
quais inevitavelmente entraram em choque com o catolicismo latino de Vasco da Gama
e tiveram que interagir, a partir do séc. XVIII, com o protestantismo proveniente do
domínio britânico.
Na realidade poucos sabem que Tomé esteve no centro de uma questão primordial
para a crença cristã nos primeiros séculos, pois teria proferido a frase “Meu Senhor e
meu Deus!” presumivelmente após tocar as chagas do Cristo. Essa passagem foi usada
como argumento nas discussões sobre se Jesus possuiria uma natureza humana, se
ele seria unicamente um Deus encarnado ou seria homem e Deus ao mesmo tempo.
Conforme Bentley Layton menciona, eis algumas visões acadêmicas acerca de São
Tomé:
A missão de São Tomé pode ser sintetizada em uma frase, de autoria do Prof.
Madathilparampil Mammen Ninan: “Em comparação com Paulo e Pedro, a missão de
Tomé abrangeu uma região maior e uma variedade de culturas estrangeiras e pouco
conhecidas”1 (NINAN, 2014), bem ao contrário de Paulo, por exemplo, que dominava o
idioma grego (pois Tarso era uma cidade helenizada) e não deve ter encontrado
1
Compared to Paul and Peter, Thomas' mission covered a larger region and a variety of alien
and unfamiliar cultures.
A comparação com São Paulo é útil não apenas pelos aspectos acima, mas
também pelo fato de que o ex-perseguidor de cristãos nascido em Tarso deixou
orientações claras tanto no campo teológico quanto no âmbito prático para que as
comunidades a ele relacionadas seguissem, desde o início visando o exercício correto
de ser cristão. Quanto a São Tomé, seus poucos registros escritos (talvez mais
estritamente apenas os 114 ensinamentos de seu Evangelho, chamado “Apócrifo”) se
mesclaram a interpretações não ortodoxas e foram associados a práticas heréticas de
diversos matizes. E talvez isso tenha acontecido porque Tomé não estava mais no
Oriente Médio, mas na Índia, onde as cartas eram bem mais difíceis de serem escritas
e enviadas aos seus destinos.
Em sentido mais profundo, o fato de a Índia aceitar São Tomé como mensageiro de
uma “boa nova” oriunda do Mediterrâneo em grande parte se deve a fatores culturais,
sem dúvida, de abertura para interpretações acerca do religioso, mas também porque
mensagem, profeta e conteúdo, para os indianos, são uma só coisa. E lá estava Tomé,
personificando o contato com o divino e servindo de guia para um entendimento do que
Jesus representava para o mundo. Acostumados com a tradição dos Vedas, os textos
védicos nunca foram para eles, os indianos, meras letras colocadas em um pedaço de
papel: texto e sentido fluem através do mestre em uma única e presente realidade,
indissociáveis. Em outras palavras, se Tomé jamais tivesse ido à Índia, a mera
mensagem cristã atribuída a esse intermediário apostólico não seria suficiente para um
indiano absorver aquela nova visão de mundo proveniente da Palestina.
Como reza a tradição, Tomé chegou ao subcontinente indiano logo nas primeiras
décadas da Era Cristã, por volta do ano 52 d.C. Algumas fontes dizem que ele fez duas
(LIVRO IV – XXII)
4. O mesmo escritor nos explica o início das heresias de seu tempo
nestes termos:
"E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela
mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos
o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa chamavam
virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições.
5. "Mas foi Tebutis, por não ter sido nomeado bispo, que começou a corrompê-
la, partindo das sete seitas que havia no povo, das quais também ele formava
parte. Delas saíram Simão – daí os simonianos –, Cleobio – donde saíram os
cleobinos –, Dositeo – donde os dositanos –, Gorteo – de onde os goratenos –
e os masboteus. Destes procederam os menandristas, os marcianistas, os
carpocratianos, os valentinianos, os basilidianos e os saturnilianos. Cada um
destes introduziu sua própria opinião por caminhos próprios e diferentes.
(EUSÉBIO DE CESARÉIA, 2005, p. 140)
2
The majority of Kerala's Christians and their descendants recognize themselves as 'Thomas Christians' or
Nazaranis, that is, Nazarene Christians. Strangely, the most common epithet attached to their community is that of
'Syrian' Christians, although all of them are Indian.
3
Two groups of immigrants to India had a significant influence on the Christian community here. The first came in
the fourth century from 'Persia', probably in modern Iraq, under the leadership of on Thomas of Cana, whom
Christians in Kerala call even today 'Cnai Thomman'.
4
Wherever the historical process, the fact it that even today there are two endogamous groups among the Thomas
Christians of Kerala, the Thekkumbhagar (those of the South) and the Vadakkumbhagar (those of the North).
Factors of purity and nobility are associated with this division. The 'southists' call themselves descendants of
Thomas of Cana and those who came with him and claim to have kept their racial purity by not intermingling with
local Christians. The 'northists' on the other hand claim descent from the Christians evangelized by the apostle
Thomas. Thus within the same religious fold there are two social units.
A second immigrant group of considerable importance came directly from the Syrian Church in the ninth or tenth
century, and settled in Kollam (...). Two bishops, Sapor and Prot, whom some sources identify as natives of Armenia,
were part of the group.
Referenciais
CRISTIANI, M. Breve História das Heresias. Tradução de José Aleixo Dellagnelo. São
Paulo: Editora Flamboyant, 1962.
NINAN, M. M. Acts of The Apostle Thomas: The Story of Thomas Churches. Global
Publishers. (1a ed.: 2011). San Jose, CA (USA): 2014. 362 p.