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2017

Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade


e Medievo

Nº2/2017
ISSN: 1983-2087
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

Sumário

Astrologia e Astrólogos no Principado Romano: definições, terminologias e


possibilidades de interpretação sobre suas práticas e conhecimentos nas fronteiras
culturais da cidade de Alexandria – Vinícius de Oliveira da Motta ----------------------- 2

A Construção do Papel Feminino no Cristianismo Primitivo na Comunidade de Corinto


(I d.C.) - Amanda Cristina Martins do Nascimento ------------------------------------------ 21

On the iconicity of Greek Mycenaean MA-KA – Maria Mertzani -------------------------- 40

A circulação do conhecimento na Alexandria do século V: uma análise das


correspondências de Sinésio para Hipátia - Camila Michele Wackerhage e Dominique
Santos ---------------------------------------------------------------------------------------------- 62

Religiosidades em A canção dos nibelungos e Saga dos volsungos: cristianismo e


paganismo no mundo germânico - Isabelle Maria Soares ---------------------------------- 94

Barbaridade versus Humanitas no Principado Romano: a política e a construção da


imagem do imperador Heliogábalo (século III EC) - Semíramis Corsi Silva ----------- 114

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

Astrologia e Astrólogos no Principado Romano: definições, terminologias e


possibilidades de interpretação sobre suas práticas e conhecimentos nas fronteiras
culturais da cidade de Alexandria

Vinícius de Oliveira da Motta1

Resumo: Dada a importância e relevância da astrologia e dos astrólogos no contexto


político e cultural do Principado Romano, neste artigo buscamos observar algumas das
maneiras pelas quais a astrologia helenística assimila alguns conceitos das filosofias e
religiosidades em circulação na época. Para tal estudo focaremos na astrologia
desenvolvida sobretudo a partir de Alexandria durante os séculos I e II EC, observando
também como ela estava conectada a outras práticas e saberes como a matemática, a
astronomia, a medicina, etc. bem como mostraremos as formas e os termos usados para
designar os estudiosos e praticantes da astrologia nesse momento, que também colaboram
para compreender melhor como se desenvolveu e se reconheceu esse conhecimento na
cultura mediterrânica do século II EC, período de auge da astrologia helenística no
Império Romano e momento histórico de intensificação dos contatos nas fronteiras
culturais entre greco-romanos e sociedades orientais.

Palavras-chave: Astrologia, Astrólogos, Principado Romano, Alexandria.

Abstract: Given the importance and relevance of astrology and astrologers in the political
and cultural context of the Roman Principate, in this article we seek to observe some of
the ways in which Hellenistic astrology assimilates some concepts of the philosophies
and religiosities in circulation at the time. For this study we will focus on the astrology
developed especially from Alexandria during the 1st and 2nd centuries CE, also observing
how it was connected to other practices and knowledge such as mathematics, astronomy,
medicine, etc. as well as the forms and terms used to designate scholars and practitioners
of astrology at that time, who also collaborate to better understand how this knowledge
was developed and recognized in the Mediterranean culture of the 2nd century CE, the
peak period of Hellenistic astrology in the Roman Empire and historical moment of
intensification of the contacts in the cultural boundaries between Greco-Romans and
Eastern societies.

Keywords: Astrology, Astrologers, Roman Principate, Alexandria.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM com orientação da Profª Drª Semíramis
Corsi Silva, bolsista CAPES-DS, membro do Grupo de Trabalho História Antiga da Associação Nacional
de História - Seção Rio Grande do Sul - ANPUH/RS e do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo
Mediterrânicos da UFSM-GEMAM/UFSM. viniciusmotta@outlook.com.

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Introdução

Nas variadas culturas das sociedades da Antiguidade, o estudo e a prática da


astrologia; que têm sua origem muito provavelmente entre os povos mesopotâmicos e
egípcios, sobretudo a partir do século VIII AEC; compõem um dos mais relevantes
métodos de adivinhação, desenvolvendo-se principalmente nos primeiros séculos do
Principado Romano no que costumamos chamar de “astrologia helenística”. Nesse
contexto destacamos as contribuições de astrólogos alexandrinos, como Cláudio
Ptolomeu ou Vettius Valens, ou ainda outros de origem egípcia, sírios, etc., que teriam
disfrutado de maior representatividade que os astrólogos de origem romana (MONTERO,
1998: 189). Apesar de, por muito tempo, os romanos considerarem a astrologia um saber
“estrangeiro”, o que teria levado alguns a elaborar uma série de críticas à prática e aos
praticantes, na verdade percebemos durante o Império um crescente interesse dos
romanos nas diversas possibilidades da adivinhação, o que teria levado ao pleno
estabelecimento de tradições como a astrologia (FRANKFURTER, 2006: 554). O
conhecimento astrológico, enquanto modalidade da cultura na Antiguidade
mediterrânica, assim como outros métodos divinatórios, já representava desde o período
republicano uma forma de “apropriação de poder” entre as elites romanas (MONTERO,
1998: 188), chegando, durante o Império Romano a ser reconhecido pelas elites como
conhecimento verdadeiro, uma “sabedoria da verdade”. Tornando-se por excelência uma
fonte de legitimação do poder político, a astrologia seria abertamente utilizada pelos
imperadores e pelas cortes romanas, sendo que muitos astrólogos adquiririam influência
por praticamente todo o Império. A astrologia chegou a ser considerada um “poder detrás
do trono de Roma” pelo historiador Frederick Cramer (1954: 81), por exemplo.
Nesse contexto, a tomada romana do Egito representou um movimento geopolítico
e militar que teve também importantes efeitos na interpenetração e contatos culturais das
sociedades mediterrânicas. Podemos imaginar que o controle da região e da antiga capital
ptolomaica, Alexandria, não significasse em si uma novidade, já que as relações entre
Roma e o Egito Ptolomaico já teriam alguns séculos naquele momento. Ainda assim, tal
controle político não nos permite subestimar os efeitos ocorridos com a tomada do Egito,
sobretudo sobre a própria cultura romana. Seria dentro desse processo que o

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desenvolvimento da astrologia helenística teve seu auge no século II EC, marcado


principalmente por astrólogos de Alexandria. Esta cidade, por sua vez, desde princípios
do período ptolomaico já representava um ponto de encontro, uma fronteira cultural no
Mediterrâneo, tendo sua fundação estabelecido fluxos políticos, comerciais e culturais
entre as sociedades do Mediterrâneo, Mesopotâmia, interior da Pérsia e oeste da Índia
(GUARINELLO, 2016: 120).
Além disso, assim como a fundação de Alexandria teria representado uma maior
abertura cultural dos gregos em relação aos egípcios, isso também ocorreria em relação
aos romanos a partir da tomada do poder político no Egito no século I AEC. Neste
momento ocorreu uma intensificação dos contatos entre greco-romanos e as culturas
orientais em um “movimento constante de ir e vir” a partir de Alexandria que favoreceria
“a intensidade das mudanças e as intensas trocas culturais, além da rápida circulação não
só de artigos, mas principalmente de informações, saberes, técnicas, ideias e rumores”,
espalhados pelo Império principalmente a partir da capital da então província do Egito
(CLÍMACO, 2013: 39-40). A partir disso, consideramos que o saber astrológico figura
entre esses saberes, técnicas e ideias que, cada vez mais, passariam a ser assimilados por
romanos com o fortalecimento que ocorre destes fluxos e conexões culturais. Um dos
efeitos deste afluxo e trocas de saberes seria que desde o século I AEC podemos
argumentar sobre uma conversão da nobreza romana para uma fé bastante profunda na
astrologia e nos astrólogos (CRAMER, 1954: 144).
Para pensar nosso objeto de estudo deste artigo, tomamos as reflexões do
antropólogo Fredrick Barth (1995: 66), que toma o “conhecimento” (ao que
acrescentaríamos também os métodos e as práticas) como uma importante modalidade
para a análise das culturas por ele constituído. Segundo Barth, é justamente nas fronteiras
culturais e/ou geográficas que os fluxos e as relações culturais das sociedades
caracterizam processos de identificação ou diferenciação dentre e entre elas. Devemos
considerar ainda que durante o Império Romano vemos o status da astrologia como
“conhecimento” ser reforçado de várias maneiras (BARTON, 2002: 56). Neste viés,
compreendemos o desenvolvimento da astrologia helenística a partir de Alexandria como
exemplo deste importante processo cultural de integração mediterrânica, e para analisá-
lo nesse momento, propomos algumas questões iniciais que buscaremos abordar neste
texto: Como poderiam ser conhecidos e designados os praticantes da astrologia e seus
conhecimentos e práticas na época analisada? Que tipos de serviços poderiam ser
demandados e oferecidos pelos astrólogos durante o Principado Romano?

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Veremos também como a astrologia helenística assimilou alguns conceitos


filosóficos e religiosos comuns entre as culturas do Mediterrâneo nesse período,
particularmente as figuras do daimon e da Fortuna, conceitos que foram utilizados na
teoria e nas técnicas de astrólogos alexandrinos como Vettius Valens, no século II EC,
mas que envolviam verdadeiros cultos religiosos, com uma importante influência na
filosofia, baseados em um intenso sincretismo entre divindades e conhecimentos greco-
romanos e egípcios que ocorria principalmente a partir de Alexandria onde esses cultos,
com uma possível origem macedônica, foram profundamente ressignificado. Cumpre
destacar que tais cultos, por sua vez, assimilavam elementos culturais egípcios e
mesopotâmicos, bem como conhecimentos filosóficos que influenciaram as concepções
greco-romanas de destino e providência (heimarmene), crenças muito importantes que
foram assimiladas na teoria e prática astrológica dos primeiros séculos pelos
alexandrinos.
Como fonte para este estudo, analisaremos alguns textos de autores romanos e
gregos, além de abordar melhor dois astrólogos do século II EC: Cláudio Ptolomeu (em
seu tratado astrológico Tetrabiblos e em uma epigrama atribuída a ele na Antologia
Palatina) e Vettius Valens (em sua obra conhecida como Antologia). Ptolomeu teria
nascido em Pelúsio, cidade do Baixo Egito, por volta do ano 100, além de ser um
reconhecido astrônomo, matemático e sistematizador do conhecimento astrológico na
Antiguidade. Já Vettius Valens, nasceu na cidade de Antioquia, na Síria, no ano de 120.
Valens foi um importante astrólogo praticante, deixando registros de mais de uma centena
de mapas astrais de pessoas reais de diversos lugares do Império que foram atendidas por
ele ou por seus estudantes. Apesar de suas origens, fora da cidade de Alexandria, os dois
astrólogos rumaram para a então capital do Egito, onde se estabeleceram e atuaram, ainda
que, como veremos, representem diferentes noções de como poderiam ser os astrólogos
antigos.

Caldeus, astrólogos, astrônomos, matemáticos ou médicos?

Sabemos que nesse período não existia uma distinção clara entre astrólogos e
astrônomos. Além disso, a astrologia era frequentemente associada, por um viés étnico-
cultural, ao povo caldeu, ao passo que desde o período da República Romana era comum
entre romanos e gregos referir-se aos astrólogos simplesmente como “Caldeus”.
Inicialmente, podemos pensar que o termo fosse utilizado de maneira pejorativa.

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Entretanto, parece que, apesar dos próprios astrólogos referirem-se aos Caldeus mais
como fontes de seus saberes do que como uma forma de identificação comum, também
podemos ver em outros textos o termo ser utilizado para se referir a qualquer astrólogo,
mas não contendo necessariamente uma conotação negativa, como vemos a seguir.
No livro IX da obra De Architectura, escrita aproximadamente entre 27 e 16 AEC
pelo arquiteto romano Vitrúvio, vemos o autor falar bastante sobre o uso de geometria e
aritmética nos conhecimentos astrológicos, mas ele alerta que não falaria propriamente
sobre “astrologia” (termo em latim), já que, segundo ele, o “cálculo dos Caldeus”
(Chaldaeorum ratiocinationibus), ou seja, o conhecimento sobre os efeitos astrológicos
na vida humana, deveria ser deixado para as discussões desses, já que seriam esses os
especialistas neste assunto. Logo em seguida Vitrúvio também diz: “A sutil
engenhosidade e inteligência daqueles que vêm da terra dos Caldeus (natione
Chaldaeorum) são evidentes pelas descobertas que nos deixaram por escrito”. Vitrúvio
afirma que um dos principais exemplos disto era o sacerdote babilônico Berosus, que
segundo ele, teria estabelecido uma escola de astrologia na ilha grega de Cos trazendo
consigo esses conhecimentos mesopotâmicos (VITRÚVIO, De Architectura, 9.6.2). Ao
mesmo tempo que o arquiteto romano demonstra crer na astrologia, ele reconhece
virtudes nesses saberes estrangeiros e faz referência ao conhecimento matemático
transmitido pelos astrólogos das sociedades orientais.
Entretanto, vemos algo diferente quando o senador e orador romano Cícero tenta,
na obra De Divinatione, refutar vários métodos de adivinhação que eram comuns entre
romanos do final da República. Cícero diz que não se deve acreditar nas previsões dos
Chaldaeis, a quem também se refere como astrologos, designando já a prática como
astrologia (CÍCERO, De Divinatione, 42.87-88). Rodrigo Carvalho Silva (2009: 20)
acredita que as críticas de Cícero à astrologia ocorriam sobretudo por ela ser considerada
uma prática estrangeira, que ainda durante o período republicano, chegava a Roma
principalmente com escravos de origem oriental.
Posteriormente, durante o Principado Romano, o médico e filósofo Sexto Empírico,
que viveu entre os séculos II e III, quando argumenta “contra os astrólogos” (ΠΡΟΣ
ΑΣΤΡΟΛΟΓΟΥΣ), refere suas críticas aos saberes da “astrologia e matemática”
(ἀστρολογίας ἢ μαθηματικῆς) que eram ensinados no período (SEXTO EMPÍRICO,
Contra os professores, 5.1). O filósofo apresenta uma postura cética em relação a certos
métodos de ensino de sua época, exatamente quando a astrologia obteve seu auge.
Sabemos, por exemplo, que no “governo de Severo Alexandre (222-235) são criadas

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cadeiras para o ensino da astrologia e da aruspicina em Roma subvencionadas pelo


Estado” (SILVA, 2002: 10). O que demonstra que existiam algumas divergências, mas
elas podem ter permanecido por muito tempo exceções, já que, em geral, consideramos
que, durante o Principado Romano, o conhecimento astrológico foi aceito e financiado,
tanto pelo poder e pela elite, quanto pelos eruditos e por outras pessoas do Império.
O termo astrologia, usado por Vitrúvio, Cícero e Sexto Empírico, entretanto, parece
ter sido mais usual justamente entre os que não eram astrólogos, já que os estudiosos e
praticantes da astrologia helenística raramente o utilizavam. Cláudio Ptolomeu, logo no
início de seu tratado argumenta sobre as possibilidades do “conhecimento astrológico”
(άστρονομίας γνωσις), fazendo uso do termo astronomia (CLAUDIO PTOLOMEU,
Tetrabiblos, 1.1-2). Já Vettius Valens inicia seu texto com uma introdução sobre a
“natureza dos astros” (αστέρων φύσεως) (VETTIUS VALENS, Antologia, 1.1),
referindo-se à “astronomia” (άστρονομίας) (VETTIUS VALENS, Antologia, 4.12) da
mesma forma que Ptolomeu, o que parece ser mais comum nos textos de astrólogos
antigos.
Sabemos que havia ainda a designação “matemáticos” (μαθημάτικός), que
frequentemente se referia muito mais aos astrólogos do que aos matemáticos, como
conhecemos hoje. É claro que, considerando suas limitações tecnológicas, era
imprescindível que os astrólogos antigos possuíssem conhecimentos astronômicos e
matemáticos que os permitissem calcular adequadamente os horóscopos. Ptolomeu usa o
termo “matemática” (μαθημάτική) justamente para se referir a parte exata, isto é, a parte
que podia ser aferida e calculada nos métodos da astrologia (CLAUDIO PTOLOMEU,
Tetrabiblos, 1.2-3). Ou seja, além de uma certa indefinição dos limites entre a astrologia
e a astronomia, esses saberes ainda eram razoavelmente indistintos dos estudos da própria
matemática na Antiguidade.
No livro clássico Astrologia e Religião entre os Gregos e Romanos, originalmente
publicado em 1912, Franz Cumont (2009: 11) afirma que os babilônicos desconheceriam
a trigonometria grega, por exemplo, e por isso o desenvolvimento do conhecimento
astrológico-astronômico entre os helênicos ter sido em alguma medida superior ao das
sociedades babilônicas, pela falta de desenvolvimento da matemática na Mesopotâmia.
No dia 26 de agosto de 2017 foi publicada no site do jornal espanhol El País uma
reportagem a respeito de uma evidência arqueológica recentemente estudada pelos

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matemáticos australianos Daniel Mansfield e Norman Wildberger2. Trata-se de uma tábua


de argila com escritos em cuneiforme, identificada como Plimpton 322 (imagem abaixo3),
datada de cerca de 1800 AEC e proveniente da antiga cidade suméria de Larsa, atual
Iraque. Segundo o estudo dos matemáticos australianos, o teorema matemático contido
na peça arqueológica apresenta uma evidência de que os mesopotâmicos conheciam os
princípios da trigonometria há cerca de um milênio antes dos gregos, embora os
matemáticos não tenham chegado a nenhuma conclusão sobre o uso que as sociedades
mesopotâmicas faziam dessa trigonometria no período.

Descobertas como a da tábua de argila acima são resultado de estudos e pesquisas


arqueológicas mais recentes que apontam para um pleno processo de desenvolvimento do
conhecimento astrológico-astronômico e também matemático naquelas sociedades. Se,
por um lado, a distância temporal entre Cumont e essas descobertas o absolve do
equívoco, por outro, o exemplo demonstra como as novas pesquisas, acompanhadas de
novas abordagens, têm colaborado para percebermos a maior complexidade das trocas
ocorridas nos fluxos e conexões culturais durante a Antiguidade que, por sua vez,

2
Ambos da Universidade de Nova Gales do Sul (Austrália).
3
Identificada como Plimpton 322 e datada de 1800 AEC, a peça original foi encontrada em Larsa,
localizada a cerda de 25 km da antiga cidade de Uruk. Encontra-se atualmente no acervo da Biblioteca de
Livros e Manuscritos Raros da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA). Disponível em: <
http://www.math.ubc.ca/~cass/courses/m446-03/pl322/pl322.html >.

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influenciaram fortemente o desenvolvimento de uma série de conhecimentos e outros


elementos das culturas das chamadas sociedades antigas.
Podemos também destacar uma possibilidade profissional entre os astrólogos do
Principado Romano que teria origem no Egito. Cláudio Ptolomeu (Tetrabiblos, 1.3) diz
que foram os egípcios os primeiros a usar astrologia aliada à medicina (άστρονομίας
προγνωστικω την ίατρικήν). O método envolvia o estudo das correspondências entre
fenômenos astrais e o corpo humano ou objetos materiais, conhecida também como
astrologia médica ou medicina astrológica (ίατρομαθημάτικα). Essa prática se
desenvolveu junto à astrologia helenística dos primeiros séculos, incorporando
importantes elementos das filosofias e religiosidades egípcias.
O astrólogo Vettius Valens, por exemplo, descreve consultas astrológicas para
investigar questões de saúde, como uma série de atendimentos que ele faz a uma criança
de origem romana entre o 8º mês de vida até o 33º mês, quando ela falece. Neste relato,
ele busca abordar as causas astrológicas de convulsões, feridas e eczemas sofridos pela
criança (VETTIUS VALENS, Antologia, 7.6).
Podemos imaginar que a astrologia fosse utilizada de maneiras bastante diversas.
Além disso, o atendimento de astrólogos era demandado por motivos muito variados,
perpassando, ainda, uma série de outros saberes e práticas entre os antigos. As
designações utilizadas para se referir aos astrólogos e à astrologia mostram uma
indefinição que vai além da astrologia e astronomia naquele momento, já que vemos que
esses saberes e práticas apresentam ligações também com a matemática e até mesmo com
a medicina.
Do que foi mostrado, percebemos que foram diversas as possibilidades de atuação
dos astrólogos e de aplicação da astrologia no período do Principado, além do que nossas
arbitrárias divisões de campos de conhecimentos atualmente encontram um quadro
bastante desafiador para compreender as fronteiras culturais entre os antigos. Pode ser
difícil, senão impossível, estimar o real peso semântico dos termos que foram usados.
Mas é possível estimar o quanto o saber astrológico influenciou e foi influenciado por
diversas esferas da cultura, assimilando conhecimentos que hoje isolamos nas chamas
“ciências exatas”, mas também, como mostraremos a seguir, importantes conceitos
filosóficos e religiosos presentes nas sociedades que compuseram o Império Romano.

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Astrologia e sincretismos religiosos e filosóficos na Alexandria do século II

Algumas vezes vemos nos textos dos astrólogos antigos o conhecimento astrológico
colocado como um método de se alcançar uma experiência mística, a chamada unio
mystica, fundamental para alcançar o conhecimento, estabelecido e um contato entre os
astrólogos e as divindades. É atribuída a Ptolomeu uma epigrama na qual ele argumenta
sobre a experiência proporcionada pela contemplação dos astros, dizendo se sentir junto
a Zeus e provando da ambrosia dos deuses (Antologia Palatina, 9.577). Nesse mesmo
sentido, Vettius Valens fala do orgulho por possuir um conhecimento que lhe é revelado
pela sabedoria divina (VETTIUS VALENS, Antologia, 6.10-11), além de afirmar que a
astrologia tornaria as pessoas resilientes, verdadeiros “soldados do destino” (στρατιωται
της είμαρμένης) através de seu conhecimento prognóstico (VETTIUS VALENS,
Antologia, 5.5-6).
A figura de heimarmene (είμαρμένη) às vezes aparece como “destino”, mas também
pode ser compreendida como “providência”, que também pode ser vista como uma
sabedoria transcendental que os humanos podem acessar através de insights e outras
experiências místicas, como pelo estudo da astrologia, bem como vemos no caso dos
astrólogos. A heimarmene também tem relação com as figuras mitológicas das Moiras
(semelhantes às Parcas romanas), à cuja lei até as divindades estariam submetidas4. A
providência organizaria as condições para a vida humana, seguindo uma espécie de ordem
cósmica, que dependendo do contexto cultural pode ser representada como mais ou menos
determinista e fatalista. Há evidências interessantes em um recente trabalho da
historiadora e astróloga Dorian Greenbaum (2016), sobre o papel do conceito do daimon
na astrologia helenística, de que os sincretismos filosóficos e religiosos que aconteciam
nesse contexto e que podemos observar em parte pela astrologia, colaboraram também
para que o conceito de “destino” se tornasse menos rígido, abrindo-se uma série de
possibilidades de concessões, o que teria representado uma mudança profunda nas ideias
a partir de então.
O conceito de daimon é um dos mais complexos e interessantes na filosofia e
religiosidade das sociedades mediterrânicas. Sendo que estes seriam forças que hoje
costumamos dividir, por exemplo, entre angélicas e demoníacas; inclusive os estudiosos
percebem que o termo “demônio” deriva exatamente da palavra daimon. Segundo

4
Sobre isso, o livro Astrologia do Destino (1995), da psicóloga e astróloga americana Liz Greene, apresenta
uma interessante abordagem da simbologia em torno desta questão.

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filósofos e mesmo os astrólogos antigos, essas forças também seriam responsáveis por
criar uma conexão com a “providência” através de uma série de experiências místicas,
religiosas e filosóficas, que ocorriam por meio da astrologia e outros métodos, onde eles
obteriam então a prognosis, algo como um insight, intuição ou revelação, um
conhecimento que “nos chega” ou “nos ocorre”. Esse processo de acesso a um
conhecimento superior, que é mediado pela força do daimon, seria parte do que se
conhecia entre os filósofos e religiosos como pronoia. O astrólogo Vettius Valens, por
exemplo, considera seu conhecimento astrológico “sagrado” e “entregue aos humanos
pela divindade (ὑπὸ θεοῦ παραδεδομένη τοῖς ἀνθρώποις), para que eles possuam uma
porção de imortalidade através da prognosis (προγνώσεως)” (VETTIUS VALENS,
Antologia, 5.6.16). Sobre isso Vettius Valens seria muito mais direto: ele acreditaria que
a presciência que desenvolvia com a astrologia o levaria a obter todo o conhecimento
sobre a vida que seria possível aos humanos. Se trataria de um processo de pronoia
mediado pelo daimon (GREENBAUM, 2016: 40). Os saberes da astrologia e seus
prognósticos seriam vistos por Valens como uma espécie de “revelação daimônica”.
As noções de “prognóstico”, “destino” e “providência”, de onde o conhecimento
poderia ser obtido por meio de métodos divinatórios e do contato com o daimon, parecem
ser bastante aceitas. Ainda que sua compreensão não fosse absolutamente unívoca, já que
ao mesmo tempo em que Valens coloca a si mesmo como soldado e seu trabalho a serviço
da heimarmene, Cláudio Ptolomeu mantém uma postura diferente, sua obra não usa
propriamente conceitos filosóficos e religiosos, mas diz que os prognósticos
(προγνώσεως) astrológicos se fundamentam em um princípio que para ele e seus
contemporâneos seria bastante claro: de que uma “substância sútil aeriforme” que está
em tudo e dá origem a tudo, dos elementos mais básicos na natureza até os animais que
habitam a terra, essa substância estaria eternamente sujeita a mudanças e as estrelas
errantes seriam as responsáveis por influenciar as condições destas mudanças na terra,
segundo Ptolomeu (Tetrabiblos, 1.1-2). Ao estudar esse ordenamento da natureza o
astrólogo-astrônomo seria capaz de obter, portanto, prognósticos úteis sobre o passado, o
presente ou o futuro. Percebemos que a ideia de Ptolomeu parece mais ocultar que romper
com os conceitos filosóficos e religiosos que são representados na heimarmene, ligada ao
destino e a providência. Além de que as “estrelas”, o termo comum usado para se referir
aos planetas, poderiam ser vistas como manifestações daimônicas das divindades e da
ordem do destino (GREENBAUM, 2016: 10).

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Os prognósticos astrológicos também ofereceriam informações sobre os


“momentos propícios”, ou seja, os momentos mais oportunos para se realizar algo,
chamados de kairoi (ou kairos, no singular). Esses momentos poderiam ser encontrados
pelos astrólogos nos mapas astrais ou por outros métodos divinatórios. Entretanto, Valens
é contundente na questão, dizendo que se os kairoi não fossem observados “Em verdade,
é inútil sacrificar a deus e consagrar oferendas; aquele que pede não será ouvido e a
divindade não se deixará ser adorada” (VETTIUS VALENS, Antologia, 5.2). Para Dorian
Greenbaum, o astrólogo defende a ideia de que tudo que fazemos deve se alinhar com o
movimento cósmico das estrelas; além de que a responsabilidade de incutir essa ordem
cósmica em nossa mente, no formato de ideias, seria o daimon seguindo a lei de
heimarmene. A historiadora supracitada lembra que em suas teorias “Valens privilegia a
importância de ambos o daimon e a astrologia em relação a viver a vida em harmonia
com o universo” (GREENBAUM, 2016: 42-43).
O daimon, entre as religiosidades, filosofias e a astrologia helenística, também seria
representado quase sempre junto com outra força divina: Fortuna, que também aparece
em diferentes sociedades mediterrânicas, ainda que variando em poderes oraculares e
representações. Os significados dessa divindade teriam, a partir do século II AEC, se
aproximado cada vez mais da divindade grega Tique, como demonstra o historiador
espanhol Santiago Montero (1998: 30-32). Ela também estava diretamente relacionada a
concepções filosóficas e religiosas sobre o destino humano, sendo responsável por
atribuir-lhe a “sorte”, isto é, as chances de êxito ou fracasso. De acordo com Greenbaum
(2016: 47), para compreendermos como essas crenças alcançaram o Império Romano é
importante analisar a cultura da cidade de Alexandria, “onde os cultos de Fortuna e
Daimon foram bem desenvolvidos no segundo século EC. Além dos cultos às divindades
Boa Fortuna (Agathe Tyche) e Bom Daimon (Agathos Daimon), havia também o conceito
de uma tuchē e daimōn pessoais”.
Na astrologia helenística, o termo τόποι, que significa lugares, era usado para se
referir às 12 divisões do mapa astral, ou seja, às casas astrológicas, cada uma
correlacionada a uma determinada área da vida. Duas dessas divisões são chamadas de
‘Bom Daimon’ e ‘Mau Daimon’, e os lugares opostos a elas são chamados de ‘Boa
Fortuna’ e ‘Má Fortuna’, o que não seria acidental, já que Daimon e Fortuna, com
frequência se encontram cultural, religiosa e filosoficamente intricados (GREENBAUM,

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2016: 6). Nos mapas astrológicos (imagem a seguir5), haveria uma relação entre os
significados da casa 5, de Boa Fortuna e do planeta Vênus (estrela de Afrodite),
considerado um ‘pequeno benéfico’ por sua influência. Já o Bom Daimon seria associado
a casa 11 e a Júpiter (Zeus), o ‘grande benéfico’, sendo que o Agathos Daimon chega a
ser representado na iconografia helênica como um homem de barba, similarmente a
muitas representações do deus Zeus, segundo Greenbaum (2016: 51).

Nas teorias e técnicas astrológicas, os pares “sol e lua”, bem como a tríade “mente,
alma e corpo” seriam reunidos em sistemas simbólicos. “Mente e alma, Sol e Lua, matéria
e espírito, todos são integrados em uma astrologia” que se mostra muitíssimo próxima
dos sistemas religiosos e filosóficos em voga nos primeiros séculos do Principado
Romano (GREENBAUM, 2016: 27-28). Entre os greco-romanos, as noções de daimon
ou ainda genio são reconhecidamente importantes. Até mesmo cidades chegaram a
possuir um daimon que, conforme as crenças da época, as guiava e protegia, sendo que o
conceito adquiriu grande abrangência cultural, representando também o caráter,
características e tendências da índole humana. O daimon também teria grande

5
A linha do horizonte representa o ponto Ascendente e o início da primeira casa nos mapas astrológicos,
sendo 12 no total. O eixo formado pelas casas 5 e 11, operacionalizam no método astrológico as crenças e
cultos a Boa Fortuna e Bom Daimon (Acervo pessoal).

13
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importância entre as filosofias da época. Haveria relação entre a inteligência, o caráter e


o destino das pessoas, representados nas crenças em torno de Daimon e Fortuna. Pelo
que compreendemos, enquanto as forças do daimon determinam intenções e possibilitam
ações, a Fortuna determina as chances de êxito ou fracasso delas, ambos de acordo com
as condições impostas pela heimarmene, a providência.
Além de encontrarmos em Alexandria santuários ao Bom Daimon e a Boa Fortuna,
moedas alexandrinas (imagem a seguir6) dos períodos entre os governos dos imperadores
Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161) mostram um altar que os estudiosos
acreditam ser um altar ao Agathos Daimon supostamente construído por Alexandre ao
fundar a cidade, mas seria durante o período romano que essa crença ampliaria suas
dimensões, tendo assimilado elementos greco-romanos e egípcios. Greenbaum afirma
que “Os tentáculos desta relação, e os cultos resultantes, insinuaram-se para dentro do
mundo Egipto-Greco-Romano”. Juramentos teriam sido feitos em nome do Daimon dos
Ptolomeus e a Boa Fortuna seria associada às rainhas ptolomaicas junto à divindade
egípcia Ísis, que também era bastante famosa na cidade de Antioquia (GREENBAUM,
2016: 80-82).

6
Imagem no lado inverso de uma moeda romana aproximadamente de 76 EC, onde aparece o Agathos
Daimon usando a coroa dupla do Egito, com um caduceu a esquerda e trigo maduro a direita. A imagem é
da coleção da historiadora Dorian Greenbaum (2016) e aparece na abertura de sua obra.

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Em uma estela encontrada provavelmente em Alexandria, datada entre cerca de 332


AEC e 395 EC (imagem a seguir7), vemos uma outra representação com motivos
semelhantes aos da moeda com o altar ao Agathos Daimon, onde, em uma representação
do Bom Daimon e Boa Fortuna, aparecem Ísis, à esquerda, e Serápis, à direita, também
com corpos de serpentes, entrelaçados e interligados em seu centro pela representação do
deus egípcio da vida após a morte: Osíris. Enquanto Ísis carrega uma espada, símbolo de
conhecimento semelhantemente ao caduceu, o deus alexandrino Serápis carrega um galho
de trigo maduro.

Essa simbologia talvez se relacione com a própria representação de Alexandria e


do Egito, fazendo referência tanto aos aspectos eruditos quanto a abundância da produção
agrícola egípcia, pontos que seria comum de vermos destacados nas referências ao Egito
e a sua capital na tradição greco-romana (CLÍMACO, 2013). Além disso, há uma ligação
clara com elementos da cultura egípcia onde, em outra estela (imagem à esquerda a

7
Acervo do Museu Holandês de Antiguidades. Disponível em: <
http://www.rmo.nl/collectie/zoeken?object=F+1960%2f9.1 >. Acesso em 8 dez 2017.

15
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seguir8), provavelmente do período faraônico, o mesmo motivo aparecia, com Ísis e


Osíris já sendo retratados como serpentes, uma simbologia que não era incomum para os
egípcios, mas sua influência pode ter alcançados outros lugares do Império Romano, já
que encontraríamos, em torno dos séculos I e II EC, na cidade romana de Pompéia, por
exemplo, semelhante representação (imagem à direita a seguir9), provavelmente pintada
nas paredes de um santuário da deusa Ísis, onde vemos as serpentes que são conhecidas
como Agathodaemon, e são divindades guardiãs que simbolizariam fertilidade.

Portanto, a partir do que mostramos, notamos que durante os primeiros séculos do


Principado Romano, as interações culturais que se intensificam entre romanos e o mundo
helenístico resultam também em uma intensa diversificação cultural e religiosa. Tanto
estes cultos quanto a astrologia helenística seriam exemplos do “fenômeno de absorção
dos cultos orientais no Império Romano”, nas palavras de Hariadne Soares (2011: 40).
Alguns estudiosos acreditam que o conceito grego de daimon teria sido trazido ao Egito
pelos helênicos da Macedônia, mas o simbolismo que envolve culturalmente a questão
teria raízes egípcias, ligadas particularmente aos deuses egípcios Shai e Osíris, que seriam
relacionados também com a divindade alexandrina Serápis, em um sincretismo que
resulta no conceito religioso e filosófico do Bom Daimon nos primeiros séculos de nossa
era, sendo assimilado pela astrologia helenística. Ainda segundo Greenbaum (2016: 85-
86), seria a partir de Alexandria que as representações dessas divindades na cultura
egípcia teriam sido transferidas para uma versão traduzida e metamorfoseada do Agathos

8
Acervo do Museu Egípcio do Cairo.
9
Fonte da imagem desconhecida. Os mesmos motivos seriam encontrados no Museu Arqueológico de
Nápoles, perto de Pompéia. Disponível em < https://seetheworld.travelforkids.com/snakes-of-pompeii/ >.
Acesso em 8 dez 2017.

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Daimon e Agathe Tyche no período Romano dos séculos I e II EC, período em que a
astrologia helenística deixava também sua marca no mundo mediterrânico.
Junto ao Bom Daimon estaria quase sempre a Boa Fortuna que, neste contexto, teria
adquirido significados da deusa egípcia Ísis, retratada então como ‘dama do destino’,
ligada também à Tique e personificada como Boa Fortuna, significando riqueza e vida.
Na astrologia helenística Agathe Tyche representa filhos, fertilidade, ganhos e boa
fortuna. Veríamos também identificações com as deusas egípcias dos ricos e abastados,
Shepset, e da nutrição, Renenet, chegando a estarem conectadas simbolicamente ao
próprio tempo e ao ciclo solar. Como “regente do destino”, Ísis aplicaria as leis,
ordenando e decretando os destinos dos humanos, e essa concepção egípcia teria
influenciado os textos gregos (GREENBAUM, 2016: 88-90).
Embora uma outra divindade chamada Fortuna já fosse cultuada em Roma, segundo
estudiosos, desde o estabelecimento da dinastia etrusca no século VI AEC, esta sofreu
uma série de influências culturais que transformaram seus significados (MONTERO,
1998: 28). A Fortuna dos primeiros séculos do Principado, representada na cultura
alexandrina e na astrologia helenística, pode ser compreendida como uma facilitadora ou
castradora das chances, sendo representada em um intricado sincretismo que mistura
elementos culturais mesopotâmicos, egípcios, helênicos, romanos, etc. e que influenciou
uma série de crenças a partir da Alexandria romana.
A extensão desse culto é certamente reconhecida quando os astrólogos o assimilam
e operacionalizam em sua astrologia, sendo que a influência dessas crenças talvez seja
importante para compreendermos a aceitação e assimilação da própria astrologia naquele
contexto histórico a partir da capital do Egito e a influência da cultura egípcia sobre os
greco-romanos. Segundo Joana Campos Clímaco (2013: 28), descobertas arqueológicas
recentes ressaltam Alexandria como um lugar de natureza multicultural, enfatizando a
existência de um estilo próprio alexandrino, que poderia ir muito além de uma simples
união de elementos egípcios e gregos, ainda que isso não nos permita subestimar jamais
o elemento egípcio. Em sua tese de doutorado, o historiador Júlio Galha (2009), por
exemplo, defende que já durante o período ptolomaico teria havido uma adoção de
práticas mágico-religiosas egípcias pelas dinastias helênicas, o que viabilizou um projeto
político-religioso e a legitimação do controle político do Egito.

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Considerações finais

Diante de nossos estudos, vemos que a astrologia helenística passou,


principalmente a partir da tomada do poder político no Egito pelos romanos, a ser
gradualmente aceita dentro do Império. O controle sobre o Egito e sobre Alexandria
representou uma abertura do Império para uma série de influências culturais novas e
dinâmicas, entre as quais estavam o saber astrológico que era desenvolvido
principalmente na cidade estudada. Sendo que nesse momento Alexandria já era há
séculos um ponto de conexão entre diversas regiões do Mediterrâneo, da África e da Ásia.
Esses contatos culturais confluíram também para crenças e para o desenvolvimento de
cultos religiosos e filosóficos como o do daimon e de Fortuna a partir da cidade. Portanto,
é compreensível que a astrologia helenística seja também resultado dessas influências
mesopotâmicas e egípcias que foram adaptadas para as necessidades religiosas,
filosóficas e simbólicas greco-romanas. É neste sentido que percebemos algum
reconhecimento disso já na persistência da designação étnico-cultural “Caldeus”, que
ainda era utilizada para se referir aos astrólogos na época que estudamos.
Outro aspecto importante a destacar é que, enquanto importante modalidade da
cultura, a astrologia helenística é um conhecimento que se desenvolve paralelamente a
outras disciplinas como a astronomia, da qual não pode ser diferenciada, além da
matemática, chegando a ser aliada à medicina durante a Antiguidade, como vimos.
Através de seus sistemas simbólico-matemáticos, os astrólogos antigos buscavam
descobrir o jogo entre o consulente e seu destino, influenciado também pelo Bom Daimon
e pela Boa Fortuna. Calculando mapas astrais os astrólogos seriam capazes de oferecer
informações sobre os “melhores momentos” para algo se realizar. Seriam especializados,
assim, em identificar as nuances e momentos no “relógio cósmico”, selecionando os
melhores, os kairoi, para se empreender qualquer coisa. Como buscamos mostrar, o
astrólogo Vettius Valens, por exemplo, se baseia no daimon, em cálculos e observações
astronômicas e em um complexo sistema que visa oferecer alguma previsibilidade sobre
o destino. Embora o astrólogo Cláudio Ptolomeu não reconheça o poder do daimon, sua
concepção da própria natureza da realidade, que também justifica para ele a astrologia,
demonstra sua aceitação da ideia de destino como ordenamento cósmico, onde as estrelas
errantes governariam as “mudanças” no tempo.
Percebemos, finalmente, que estudos e descobertas arqueológicas recentes apontam
para um quadro no qual não podemos mais subestimar a influência cultural das sociedades

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orientais, entre egípcios, babilônicos, sírios e outros povos no Império Romano. O


simples termo astrologia, em si, nos remeteria a uma série de sistemas simbólicos,
variantes de organizações matemático-simbólicas da observação do céu entre chineses,
indianos, árabes, maias e mais uma infinidade de outras culturas. Assim, a “astrologia
helenística” que tem seu auge no século II EC em Alexandria, perpetuada por obras como
as de Cláudio Ptolomeu e Vettius Valens, constituiria “nossa” variante desse fenômeno
multicultural, se tornando a referência sobre a qual se mantiveram esses conhecimentos
até os dias atuais. Também percebemos que esse processo ocorre interligando crenças,
cultos religiosos e filosofias, sendo resultado de intensos sincretismos que influenciaram
boa parte do Império Romano a partir da capital da província do Egito.

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

A Construção do Papel Feminino no Cristianismo Primitivo na


Comunidade de Corinto (I d.C.)

Amanda Cristina Martins do Nascimento

Resumo: O presente texto tem como objetivo analisar a presença e o papel da mulher nas
primeiras comunidade cristãs do século I d.C., para tal empreendimento optamos por
analisar a I Carta aos Coríntios do apóstolo Paulo. Apesar de encontrarmos nesse período
um mundo social que atribui uma posição submissa à mulher, observamos conflitos de
papéis que se desenvolveram por meio da grande heterogeneidade de culturas e povos
nesse mundo greco-romano. O movimento de Jesus proporcionou uma abertura para
participação feminina no mundo antigo, mais do que estereótipos e normas, os papéis
femininos passam por relações de poder, embates cotidianos, tanto no espaço da
comunidade cristã como fora dela. Ao realizar uma analise profunda nos textos cristãos
antigos vislumbramos relações mais complexas e dinâmicas.
Palavras-Chave: Cristianismo primitivo. Corinto. Papéis Femininos

Abstract: This text aims to analyze the presence and the role of women in the early
Christian community of the century I A.D., to reach this objective we chose to analyze
the First Letter to the Corinthians written by the Apostle Paul. Although we find in this
period a social world which gives the woman a submissive position, we observe role
conflicts that have developed through the great heterogeneity of cultures and peoples in
the greco-roman world. The Jesus’ movement provided an opening for female
participation in the ancient world, more than stereotypes and rules, female roles go
through power relations, daily struggles, both within the Christian community and
beyond. By conducting a deep analysis on ancient Christian texts we have a glimpse of
more complex relationships and dynamics.
Key words: Early Christianity. Corinth. Women's roles

Segundo uma pesquisa realizada pelo “Worldwide Independent Network of Market


Research” no ano de 2015 seis em cada dez pessoas se dizem religiosas, isto é, afirmam
que creem em algo relacionado ao Sagrado (WIN/Gallup, 2015). A pesquisa foi realizada
através de entrevistas pessoais, por telefone e/ou internet com 64 mil pessoas em 65

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países, notamos, assim, como a religião ainda é um elemento importante na vida de


indivíduos e grupos sociais de diferentes localidades e culturas.
Já no Brasil, no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) apenas 8% dos brasileiros se declaram sem religião (NÚMERO..., 2012), sendo
que a maioria se declara católica: 123,2 milhões, seguidos por 42,3 milhões de
evangélicos. Podemos observar que em nosso país a grande maioria da sociedade se
declara cristã (86,8% segundo o IBGE). Além disso, observamos no momento político
atual nacional uma agitação causada por mudanças constitucionais influenciadas por
bancadas formadas principalmente religiosos cristãos. Em novembro de 2017 encontrava-
se em discussão a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/15, que tem por objetivo
estender a licença maternidade em caso de nascimento prematuro (BRASIL, 2015)10,
porém, ao passar pela Comissão Especial da Câmara, o texto foi modificado. O relator,
deputado Jorge Tadeu Mudalen acrescentou uma mudança que enfatiza a “dignidade da
pessoa humana, desde a concepção”11. Para outros deputados essa questão abre
precedência para a criminalização do aborto até em casos de estupros, quando a mulher
corre algum perigo ou em casos de fetos com anencefalia.
Dessa maneira, essa mudança desencadeou uma série de protestos pelo país de
mulheres contrárias à PEC, principalmente sob a reinvindicação de a mulher ter o direito
de decidir ser mãe.12 E inclusive de movimentos de mulheres cristãs como EIG
(Evangélicas pela Igualdade de Gênero) e o grupo “Católicas pelo direito de decidir”.
Mais do que apenas uma separação entre Estado e a religião para o mundo privado
e pessoal do fiel, observamos como se faz necessária a discussão acerca do discurso e das
práticas religiosas. A tensão entre a fé e o saber se reflete em políticas públicas e uma
reflexão científica acerca do fenômeno religioso cristão por meio de pesquisas por
diferentes estudiosos pertencentes às Ciências Humanas é fundamental para se
compreender de maneira crítica o campo religioso.
Ainda assim, com todas essas problemáticas acerca dos estudos de religiões e
religiosidades na contemporaneidade, como uma pesquisa acerca do cristianismo

10
Para mais informações as discussões e a tramitação podem ser acompanhadas em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2075449..
11
Redação ao inciso III do artigo 1˚ da Constituição Federal. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=54A20260D836F4E1706150
9229493620.proposicoesWebExterno1?codteor=1586817&filename=Parecer-PEC18115-16-08-2017.
12
Vários Atos foram articulados através das redes sociais por todo o Brasil, como aponta a reportagem
“Atos em SP e RJ protestam contra 'PEC do aborto' e cobram Maia e bancada religiosa”, disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/13/protesto-contra-pec-181.htm.

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primitivo, do século I d.C., pode trazer contribuições aos recentes debates? Observamos
que dentro das igrejas cristãs do tempo presente a história das comunidades cristãs
primitivas é um elemento de grande importância para seus fiéis. Estudada tanto por
teólogos, padres, pastores, presbíteros e até por leigos. Porém, pouco se fala acerca dos
conflitos internos que ocorreram dentro desses primeiros grupos, o foco muitas vezes é
direcionado às perseguições religiosas sofridas13. A cultura histórica dentro do meio
cristão trabalha com a visão de que os apóstolos eram grandes líderes e representantes
vivos do próprio cristianismo:

Não obstante, Jesus fez desses doze homens líderes vigorosos e porta-vozes
capaz de transmitir com clareza a fé cristã. O sucesso que eles alcançaram dá
testemunho do poder transformador do Senhorio de Jesus. (AQUINO, 2013).

Porém, os conflitos internos estão presentes ao longo dos primeiros escritos


cristãos; conflitos entre os próprios apóstolos14 e, mais especificamente, entre os próprios
membros da igreja. Ideias que eram contraditórias ao cristianismo vigente hoje são
chamadas de heresias, contudo, dentro da historiografia não podemos trabalhar com tal
conceito, pois não havia o estabelecimento de uma instituição cristã ou de um único
modelo cristão.
Nesse sentido, pensamentos e práticas religiosas dentro do cristianismo primitivo
são alvo de discussão por seus fiéis, já que não há uma ortodoxia e/ou ortopraxia
constituída. Como uma nova religião o cristianismo ofereceu um novo espaço de
possibilidades, e, a partir disso, podemos refletir sobre a presença e o papel social da
mulher nas primeiras comunidades cristãs do século I d.C.
Segundo Maria José Rosado Nunes (2005: 363): “As religiões têm, explícita ou
implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e histórica, uma
específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e
femininos”. Portanto, os papéis exercidos pelas mulheres devem ser pensados por
meio da sua relação com o outro, aqueles que as cercam.
Compreendemos que o papel social da mulher na Antiguidade não apresenta um
padrão. Apesar de encontrarmos nesse período um mundo social que atribui uma posição

13
A título de exemplo temos a obra História do Cristianismo da editora Casa Publicadora das Assembleias
de Deus que inicia já nas perseguições de Nero (KNIGHT, 1983) in: História do Cristianismo / A. E.
Knight [e] W. Anglin. – 2ª ed. - Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1983.
14
Na carta de Paulo aos Gálatas Gl 2.11-16.

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submissa à mulher, observamos conflitos de papéis que se desenvolveram em meio à


grande heterogeneidade de culturas e povos do mundo greco-romano. Diferenças étnicas,
sociais, culturais, entre outras, devem ser levadas em consideração nessa complexidade
que constitui o lugar social (FEITOSA, 2008: 125). Destarte, tanto a masculinidade como
a feminilidade são construções socioculturais que se desenvolveram com o passar dos
anos e séculos (BURKE, 2002: 75-79).
Assim, para delimitarmos melhor nossa reflexão optamos por problematizar uma
comunidade cristã específica, situada na cidade de Corinto, acerca da qual há um dos
textos mais antigos do cristianismo: a I Carta de Paulo aos Coríntios. A I Carta aos
Coríntios é um documento que foi escrito entre os anos de 52 e 55 d. C., esse texto é
considerado uma carta autêntica do apóstolo Paulo, com algumas inserções posteriores.
As cartas dirigidas às comunidades cristãs, em geral, serviam para ordenar a igreja,
responder as dúvidas dos fiéis, indicar modos de como o cristão deveria agir dentro e fora
da comunidade. Portanto, analisar a questão de gênero deve considerar todas essas
problemáticas que emergiram na igreja coríntia. O papel feminino é construído no
cotidiano, dentro da experiência vivida, individual e grupal.

Paulo e Corinto

Segundo o texto de Atos dos Apóstolos (At 18, 2), Paulo partiu de Atenas para
Corinto. Lá conheceu um casal judeu: Áquila e Priscila, expulsos de Roma por um decreto
do Imperador Claudio emitido em meados da década de 40 d.C.15. Segundo Koester
(2005: 119) a missão de Paulo se deu entre o outono de 50 até a primavera de 52 d.C.
Corinto era uma cidade de grande importância para o Império, trajeto escolhido pelos
comerciantes do Mediterrâneo oriental e ocidental (KOESTER, 2005: 331).
Embora Corinto se localizasse na região da Grécia, a princípio ela era um centro
urbano de características romanas. Isso se deu, pois no ano de 146 a.C. ela foi conquistada
pelo general romano Mummius (BOOKIDIS, 2005: 141), uma derrota que acarretou no
extermínio completo de sua população masculina adulta, escravização do restante da
população e na destruição da cidade. A sua reconstrução e ocupação foram retomadas
somente um século depois, quando no ano de 44 a.C. fundou-se então a Colonia Laus
Julia Conrinthiensis, tornando-se a capital da Província da Acaia.

15
Ver CROSSAN e REED (2007: 331).

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Edificada em um ponto estratégico, Corinto ficava no istmo do Peloponeso. A


cidade possuía dois portos, Cencreia e Lechaeum. Principal porto da Grécia, e grande
centro industrial, onde se produzia cerâmica, tapetes e minérios (KOESTER, 2005: 124).
De fato, a cultura romana era a soberana, mas não a única. Em um Império vasto, que
abarcava grande parte da Europa, África do Norte e a Palestina a diversidade de povos
contribuía para interações culturais.
Segundo Crossan e Reed (2007: 230), o sacerdócio nos cultos romanos era
exercitado pelos homens, com exceção das virgens vestais. Os autores afirmam que essas
sacerdotisas eram encarregadas da manutenção do fogo na fornalha do Fórum Romano e
de guardar objetos sagrados, entre eles o fascinum; amuleto em formato fálico que
protegia a cidade de Roma. Entretanto, outras formas de culto nas quais mulheres
exerciam o sacerdócio eram encontradas no Império, como o culto ao deus Dionísio
(mencionado pelos autores acima citados).
Além dos cultos públicos havia os rituais particulares, que asseguravam a pax
deorum (a paz dos deuses, a “boa” relação entre deuses e homens) também entre os deuses
domésticos (CORNELL; MATTHEWS, 1996: 94). Os rituais praticados no ambiente
doméstico eram realizados pelo pater famílias, ou seja, o homem que era o chefe da casa.
Este não era apenas o pai e marido, pois o conceito de οικια ou domus (casa,
respectivamente em grego e latim) apresentava um significado mais amplo; uma rede de
dependências que abarcava trabalhadores, assalariados, escravos e, às vezes, alguns
colaboradores (MEEKS, 1992: 53).
Para indivíduos pertencentes a uma classe média alta era esperado da conduta
feminina a modéstia, castidade e devoção aos deuses e à família, além de que deveriam
ser protegidas pelos homens. A vida doméstica era o seu campo de atuação, em submissão
às decisões do pater famílias. Embora, por meio da cultura material, encontremos alguns
casos de mulheres da aristocracia romana como patronas, pessoas que doavam dinheiro
para construções de edifícios ou até mesmo de sinagogas. A inscrição “Eu, Capitolina,
digna e adoradora de Deus [...], fiz toda a plataforma e o revestimento da escadaria em
pagamento de uma promessa, minha, de meus filhos e netos. Bênçãos” (CROSSAN;
REED, 2007: 44) datada do século III d.C. foi achada em uma sinagoga de Trales (hoje
Aydin), próxima ao mar Egeu. Como falamos no início deste paragrafo, “era esperado”
um comportamento submisso, porém nem sempre a teoria é realmente uma prática.
Segundo Meeks (1992: 46), mulheres que se destacavam no papel de patronas de
associações e/ou construções, em sua maioria, não pertenciam à aristocracia, mas eram

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comerciantes ou atuantes no artesanato. Como podemos observar, elas se utilizavam


desses atributos para se destacarem, seja nas associações ou nas reuniões religiosas.
Koester (2005: 66) afirma “Era na esfera das atividades religiosas e cultuais que tinham
mais oportunidades”.

Questionamentos e respostas a uma igreja.

A I Carta aos Coríntios foi escrita entre os anos de 53 e 54 d.C., quando Paulo
estava em Éfeso. Segundo Rm 16, 23, Gaio será o anfitrião da Igreja Coríntia: “Saúda-
vos Gaio, que hospeda a mim e toda a Igreja.”. A epístola que hoje denominamos de “I
Carta aos Coríntios” corresponde, na verdade, a uma carta posterior que Paulo endereça
a essa comunidade. O próprio apóstolo nos oferece essa informação em I Co 5, 9: “Eu
vos escrevi em minha carta [...]”. Como essa carta mencionada, vários escritos cristãos
foram perdidos ao longo dos anos. Por meio de vários anos de pesquisa por parte de
historiadores, teólogos, entre outros estudiosos, podemos notar que algumas cartas são na
verdade trechos de outros escritos16, outros são escritos posteriores de discípulos de
Paulo17, e ainda, em meio aos escritos originais do apóstolo encontramos interpolações
posteriores, o que ocorre em I Coríntios.
Essa epístola também se trata de uma resposta a vários questionamentos realizados
pelos cristãos de Corinto: “Passemos aos pontos os quais me escrevestes [...]” (I Co 7, 1).
Portanto, notamos como o cristianismo ainda era um campo religioso novo; questões
relacionadas às suas percepções através de sua convivência com o meio e a nova “ótica”
apresentada por Paulo e o seu cristianismo. Os questionamentos apresentados pelos fiéis
coríntios também demonstram outro ponto importante nesse movimento cristão inicial:
as divergências entre Paulo e os membros apontam como o apóstolo não era uma
autoridade incontestável. A formação dos grupos cristãos, a vida em comunidade, sua
autorregulação, e principalmente, a unidade, eram os pontos elencados por Paulo em seus
escritos.

Personagens femininas em Corinto

16
A II Carta aos Coríntios é entendida atualmente como uma reunião de várias cartas.
17
Efésios, Colossenses, II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito, Hebreus.

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A carta é um dos escritos mais extensos de Paulo. Nela, diversos problemas são
trabalhados pelo apóstolo: divisões dentro da própria comunidade, incesto, julgamentos
em tribunais civis, carnes sacrificadas aos ídolos, as reuniões cristãs, diversidade de dons,
entre outros. Alguns desses pontos são levantados pela própria comunidade. Entre elas
podemos citar as “[...] pessoas da casa de Cloé [...]” (I Co 1, 11) (grifo nosso). Não há
muitos dados sobre essa personagem, que é mencionada apenas nessa passagem, mas
podemos inferir a partir desse trecho algumas ideias.
Paulo menciona Cloé como sendo a dona da casa. Assim, para uma mulher ser a
liderança da casa ela deveria apresentar um status econômico médio a alto. Além disso,
o significado de casa na antiguidade não era apenas uma habitação. A domus abarca o
sentido de todos que dependem dela: a família, escravos, libertos, cliente e patrão, toda
uma rede ampla de relações sociais (MEEKS, 1992: 53). Porém, acerca do papel de Cloé
na comunidade de Corinto não temos informações, podemos apenas deduzir que era um
membro influente, tanto pelo seu status, como pela rede de comunicação que mantinha
com Paulo. Temos, a título de exemplo, outra personagem feminina comerciante que se
encontrou com Paulo e ofereceu seus serviços a este:

Uma delas, chamada Lídia, negociante de púrpura da cidade de Tiatira, e


adoradora de Deus, escutava-nos. O Senhor lhe abrira o coração, para que ela
atendesse ao que Paulo dizia. Tendo sido batizada, ela e os de sua casa, fez-
nos este pedido: “Se me considerais fiel ao Senhor, vinde hospedar-vos em
minha casa”. E forçou-nos a aceitar. (At 16, 14-15)

Após trabalhar com as divisões entre partidos dentro da comunidade ao longo dos
quatro capítulos iniciais da epístola (acerca das preferências dos membros por pregadores,
entre eles Apolo, Pedro e o próprio Paulo), encontramos um apóstolo indignado com outra
situação: “Só se ouve falar de imoralidade entre vós, e imoralidade tal que não se encontra
nem mesmo entre os gentios: um dentre vós vive com a mulher de seu pai!” (I Co 5, 1).
Segundo a Bíblia de Jerusalém (2002: 1998) tal prática era proibida pelo direito romano,
todavia podemos inferir que possivelmente a madrasta nesse caso seria viúva ou
divorciada, assim, segundo a Lei Juliana sobre o Matrimônio mulheres nessa situação,
que tivessem entre vinte e cinquenta anos, eram incentivadas a casar (CROSSAN; REED,
2007: 97-98). Portanto, por mais que Paulo tente enfatizar tal iniquidade como um grande
ultraje para a comunidade, tal fato não seria tão escandaloso no mundo social romano.

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Ao discorrer sobre o caso, o apóstolo não menciona ou acusa a mulher, mas apenas
o indivíduo pertencente à comunidade: “[...] entreguemos tal homem a Satanás para a
perda da sua carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor.” (I Co 5, 5).
Podemos supor que a mulher não seja cristã, já que ele indica que os fiéis não se associem
a membros da própria comunidade que pratiquem tais atos (I Co 5, 9-11). E ainda, o
apóstolo afirma que os fiéis da comunidade (incluindo ele mesmo) devem julgar os
próprios cristãos (I Co 5, 12). Assim, somente o membro da igreja seria julgado dentro
dos parâmetros cristãos.

Sexualidade e cristianismo: a caracterização feita por Paulo

Aqui exploraremos o capítulo sete da epístola, no qual Paulo aborda a questão da


virgindade, casamento, divórcio e viuvez, a pedido dos próprios coríntios (I Co 7, 1).
Destarte, o apóstolo trata de situações de homens e mulheres da comunidade, podemos
observar melhor as relações de gênero. Desse modo, para analisarmos a identidade
feminina necessitamos observar como no texto se coloca seu papel em relação ao “outro”,
ou seja, o homem. Como afirma a socióloga Joan Scott (s.d.: 7) sobre um dos aspectos do
conceito de gênero:

[...] “Gênero”, como substituto de “mulheres”, é igualmente utilizado para


sugerir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente
informação sobre os homens, que um implica no estudo do outro.

Em princípio, o apóstolo desejava que todos seguissem o celibato como ele


(versículo sete), entretanto se caso este não fosse o dom do fiel que cada um tenha a sua
esposa e cada esposa tenha seu marido. Detalhando mais o casamento podemos observar
que os deveres e direitos são iguais entre o homem e a mulher, a reciprocidade em forma
de igualdade. Como afirmam os estudiosos Crossan e Reed (2007: 111), tais direitos e
deveres são apontados nas diferentes situações familiares, inclusive nas relações sexuais.
Já discorremos anteriormente acerca do status da mulher romana, tanto sobre as
regras comportamentais como algumas das vivências. Nas tradições judaicas
encontramos normas comportamentais semelhantes:

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Por volta dos doze anos, ou mesmo mais cedo, as raparigas passavam do poder
paterno para o poder marital. E se podiam receber do marido o libelo do
divórcio (get) por “algo de vergonhoso”, impudicícia ou simplesmente por
temperamento desagradável [...] as suas possibilidades de exigir o divórcio
eram excepcionais. O contrato de casamento (ketouba) fixava [...] o dote que
cabia ao marido, mas cujo equivalente devia ser restituído à mulher em caso
de divórcio [...] Outra inferioridade jurídica era a não-aceitação do seu
testemunho, “por causa da ligeireza e da temeridade do seu sexo”, dirá Flávio
Josefo. (ALEXANDRE, 1990: 520)

Essa submissão também era encontrada nas relações sexuais. Peter Brown (2009:
253) explora bem tal ideia ao analisar a situação dos notáveis:

O medo da efeminação e da dependência emocional, fundamentado na


necessidade de manter a imagem pública de um homem realmente integrado
à classe superior, e não em escrúpulos relativos à sexualidade em si, determina
o código moral segundo o qual a maioria dos notáveis conduz a sua vida
sexual.

As mulheres pertencentes à classe média ainda apresentavam uma maior


mobilidade; como decorremos anteriormente acerca de Cloé e Lídia. Essas “empresárias”
poderiam trabalhar com o marido ou companheiros (como o faz Priscila), elas poderiam
participar de associações voluntárias (de comerciantes, artesãos, entre outras) que
também significaria um status social (MEEKS, 1992: 44-45).
O apóstolo Paulo inicia seu discurso sobre o casamento com uma premissa de
pertencimento mútuo:

O marido cumpra o dever conjugal com a esposa; e a mulher faça o mesmo


em relação ao marido. A mulher não dispõe do seu corpo; mas é o marido
quem dispõe. Do mesmo modo, o marido não dispõe do seu corpo; mas é a
mulher quem dispõe. (I Cor 7, 3-4).

Esse tom de reciprocidade continua nos versículos seguintes, a respeito do divórcio,


o qual é repudiado: “Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor, a

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mulher não se separe do marido [...] e o marido não repudie sua esposa!” (I Co 7, 10-11).
Ao pensarmos essa fala no contexto em que estava o apóstolo, a sociedade romana do
século I d.C., ela nos parece até um ato subversivo.
Considerando-se outras culturas que conviveram e influenciaram o cristianismo
desde a sua origem, como o judaísmo, o divórcio era, em geral, aceito pelos homens,
como já vimos acima, através da fala de Monique Alexandre. Com motivos que podiam
variar desde o adultério até uma refeição que não agradasse ao paladar do marido (SILVA,
2006: 42). Raramente uma mulher tinha a possibilidade de requerer o divórcio. Ele
poderia ser concedido pelo marido ou por meio da convocação de um tribunal. Se esse
tribunal concordasse com a esposa ele pediria para que o marido cedesse à separação.
Observamos, então, que Paulo não parece se importar com a condição feminina no
mundo social ao qual ele pertencia, seus direitos e deveres dentro da comunidade cristã
correspondem aos mesmos dos homens.

Celibatários

Ao tratar dos indivíduos que não são casados; sejam eles por questão de divórcio,
viuvez ou por uma escolha pelo celibato, Paulo recomenda que permaneçam nesse estado:
“Contudo, digo aos celibatários e às viúvas que é bom ficarem como eu.” (I Co 7, 8). Nos
séculos posteriores a prática do ascetismo no cristianismo seria longamente discutida, e
até servirá como um demarcador de status religioso, principalmente nos séculos IV e V
d.C.: “O ascetismo vinha a ser a marca do cristianismo autêntico numa sociedade em que
ser cristão não mais precisava fazer qualquer diferença na vida de uma pessoa.”
(MARKUS, 1997: 46).
Já nos séculos I e II d.C. esse comportamento serviu como predicativo cristão que
distinguia a moral cristã da moral geral. Os próprios fiéis de Corinto indagam sobre isso:
“Passemos aos pontos sobre os quais me escrevestes. ‘É bom ao homem não tocar em
mulher’” (I Co 7, 1). Segundo Peter Brown (2009: 234), havia um certo puritanismo na
regulação da moral sexual do homem romano, principalmente por parte dos notáveis. O
ato sexual poderia causar-lhe o “resfriamento” do temperamento, isto é, “[...] a perda de
seus recursos se revelaria então com a impiedosa clareza, através de uma perda de
entusiasmo na cena pública”; (BROWN, 2009: 234). Portanto, através da abstinência
sexual os notáveis poderiam manter em exercício seu principal papel na sociedade antiga,
o de homem público.

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Podemos perceber algo de semelhante na fala do apóstolo Paulo ao justificar sua


preferência pelo celibato:

Eu quisera que estivésseis isentos de preocupações. Quem não tem esposa,


cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao Senhor. Quem tem
esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar à esposa, e fica
dividido. Da mesma forma, a mulher não casada e a virgem cuidam das coisas
do Senhor, a fim de serem santas de corpo e de espírito. Mas a mulher casada
cuida das coisas do mundo; procura como agradar ao marido. (I Co 7, 32-34)

Posteriormente, Paulo expressou que “Ademais, viva cada um segundo a condição


que o Senhor lhe assinalou em partilha e na qual ele se encontrava quando Deus o
chamou.” (I Co 7, 17), ou seja, seja o indivíduo circunciso ou incircunciso (I Co 7, 18-
19); escravo ou liberto (I Co 7, 21-23), e acrescentamos: casados ou celibatários.
Portanto, por mais que o celibato tivesse a primazia para o apóstolo Paulo, já que
um cristão poderia dedicar-se totalmente à vida do Evangelho como ele, o casamento é
um carisma divino que se equipara ao celibato. No capítulo 14 da epístola Paulo disserta
sobre a diversidade de dons do Espírito, salientando que o principal seria o da profecia,
em comparação com o dom de línguas. Contudo, ele apenas reflete sobre os dons
expressos durante a assembleia, o matrimônio e o celibato analisados aqui se encontram
apenas no capítulo 7, que podemos concluir com a fala do apóstolo: “Quisera que todos
os homens fossem como sou; mas cada um recebe de Deus seu dom particular; um, deste
modo; o outro, daquele modo.” (I Co 7,7).

Mulheres na Assembleia: participação e misoginia

No princípio, as reuniões cristãs pareciam ser bastante diversas; Paulo nos fala da
realização da Ceia do Senhor (em I Co 11, 17-34), e das possibilidades de algumas
práticas:

Quando estais reunidos, cada um de vós pode cantar um cântico, proferir um


ensinamento ou uma revelação, falar em línguas, falem dois ou, no máximo,
três, um após o outro. E que alguém as interprete. Se não há intérprete, cale-
se o irmão na assembleia, fale a si mesmo e a Deus. Quanto aos profetas, dois
ou três tomem a palavra e os outros julguem. Se alguém que esteja sentado,

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recebe uma revelação, cale-se primeiro. Vós todos podeis profetizar, mas cada
um a seu turno, para que todos sejam instruídos e encorajados. (I Co 14, 26-
31).

Tanto a assembleia reunida como a comunidade cristã é denominada ekklesia no


grego. No contexto do mundo antigo esse termo não significava apenas uma reunião, mas
consistia em uma reunião de cidadãos livres do sexo masculino de uma cidade que se
uniam para tomar decisões políticas (MEEKS, 1992: 167).
Acerca da participação feminina, temos a seguinte passagem:

Como acontece em todas as Igrejas dos santos, estejam caladas as mulheres


nas assembleias, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar
submissas, como diz a Lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto,
interroguem os maridos em casa; não é conveniente que a mulher fale nas
assembleias. Porventura, a palavra de Deus tem seu ponto de partida em vós?
Ou fostes vós os únicos que recebestes? Se alguém julga ser profeta ou
inspirado pelo Espírito, reconheça, nas coisas que vos escrevi, um preceito do
Senhor. (I Co 14, 33-37).

Parece-nos aqui que o apóstolo após sustentar a equidade no matrimônio, no


divórcio, e na escolha pelo celibato, converte-se a uma visão patriarcal, remetendo-se até
à lei judaica. E ainda, nesse trecho há uma insistência em se afirmar que seus escritos
devem ser seguidos, pois são princípios regrados pelo próprio Deus, que se difere das
outras discussões, nas quais Paulo oferece a sua própria opinião em alguns momentos e,
em outros, os ensinamentos divinos.
Segundo historiadores, teólogos, entre outros estudiosos, esse trecho seria na
verdade, uma interpolação, isto é, uma inserção posterior de outro indivíduo,
provavelmente um discípulo de Paulo18. Uma das primeiras evidências é a posição dessa
passagem: nos manuscritos mais antigos esses parágrafos se encontram ao final da carta.
Outro apontamento que nos indica se tratar de uma interpolação é que esse trecho entra
em contradição com trecho anterior:

18
Crossan e Reed (2007: 117) afirmam que tal passagem é uma interpolação que advém de uma tradição
posterior. Os autores apontam ainda que em alguns manuscritos mais antigos essa passagem se encontra ao
final do capítulo 14 (como afirmamos acima), o que também aponta a Bíblia de Jerusalém (2006: 2012) em
uma nota de rodapé acerca desses versículos.

32
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Mas toda mulher que ore ou profetize com a cabeça descoberta, desonra a sua
cabeça; é o mesmo que ter a cabeça raspada. Se a mulher não se cobre, mande
cortar os cabelos! Mas, é vergonhoso para a mulher ter os cabelos cortados ou
raspados, cubra a cabeça! (I Co 11, 5-6) (Grifo nosso).

Podemos ver claramente que a mulher exerce a mesma atividade que o homem, ela
ora e profetiza nas assembleias. A atuação feminina nas reuniões cristãs continuou ao
longo dos séculos. Segundo Monique Alexandre (1990: 534), Marcião 19 criou uma igreja
na qual as mulheres exerciam funções sacerdotais, desde a pregação até o batismo.
A utilização do véu para as mulheres ditadas pelo apóstolo Paulo retrata uma
questão cultural do período. Trata-se de um código de vestuário pertencente à sociedade
antiga, de diferenciação entre as vestimentas masculinas e femininas. Segundo Keila
Matos (2004: 109-110), em sua dissertação de mestrado “Protagonismo e resistência de
mulheres no discurso de Paulo em I Coríntios 11 e 14”, o fato de uma mulher andar de
cabelos soltos em Corinto teria apenas três significados: o luto, o adultério, ou a
participação no culto de Ísis, Afrodite e/ou Dionísio.
A ênfase de Paulo sobre o uso do véu (“desonra”) indica que as coríntias não
estavam se atendo a essa prática; e assim, que elas deviam valer-se do véu, principalmente
“por causa dos anjos” (I Co 11, 10). Ainda, segundo Matos (2004, p. 112) as cristãs
coríntias acreditavam que a liberdade no Senhor (I Co 7, 22) suplantava qualquer outro
tipo de sujeição social e/ou cultural. Além disso, segundo a mesma autora,

Conforme Foulkes (1993, p. 89), é provável que as mulheres profetas


achassem que ao celebrarem os cultos cristãos em suas casas, por não ser um
lugar público, pudessem desempenhar seu papel na liturgia com a cabeça
descoberta. (MATOS, 2004: 112)

Ou seja, a casa era um espaço mais favorável, que oferecia uma maior liberdade às
mulheres nesse momento.
Também, segundo a Bíblia de Jerusalém (2002: 2006) esses anjos que o apóstolo
menciona são, na verdade, mensageiros de outras comunidades, o que cria uma concórdia

19
Marcião foi teólogo do século II d.C., influenciado pelos escritos paulinos, foi um dos primeiros cristãos
a realizar uma seleção dos textos cristãos para criar um cânon.

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com uma das ideias fundamentais pregadas pelo apóstolo na epístola; “assim como eu
mesmo me esforço por agradar a todos em todas as coisas, não procurando os meus
interesses pessoais, mas os de maior número, a fim de que sejam salvos.” (I Co 10, 33)
(grifo nosso).
Destarte, notamos como o papel feminino era importante na comunidade de
Corinto. Assim como o homem, a mulher exerce diferentes atividades na Igreja cristã
primitiva. Segundo Crossan e Reed (2007: 113) essas funções são exercidas de acordo
com a “igualdade diferenciada”, isto é, na diferença de dons e cargos, porém sem uma
hierarquia paternalista. Entretanto, notamos que Paulo não seria tão “feminista” a chegar
a esse ponto20:

Quero, porém, que saibais: a origem de todo homem é Cristo, a cabeça da


mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus. [...] Quanto ao homem, não
deve cobrir a cabeça, porque ele é a imagem e a glória de Deus; mas a mulher
é a glória do homem. Pois o homem não foi tirado da mulher, mas a mulher
do homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o
homem. (I Co 11, 3; 7-9)

Concordamos com os autores com a seguinte apreciação que estes apresentam:


Paulo apresenta uma “estranha dicotomia” 21 (idem: 111) acerca dos papéis de gênero, e
isso pode ser notado nesse mesmo capítulo da epístola, alguns versículos depois:

Entretanto, diante do Senhor, a mulher não existe sem o homem e o homem


não existe sem a mulher. Pois, se a mulher foi tirada do homem, o homem
nasce pela mulher, e tudo vem de Deus. (I Co 11, 11-12)

A dicotomia que o apóstolo apresenta é uma divisão das questões culturais das
questões “celestiais”. Paulo condenava tudo que aparentasse um escândalo, seja para os
não cristãos como para os próprios membros da comunidade (I Co 10, 32), todavia “diante
do Senhor”, há uma igualdade encontrada na “caridade”: “Agora vemos em espelho e de

20
Crossan e Reed (2007: 110) ainda afirmam: “O princípio básico de Paulo a respeito da igualdade aplica-
se não apenas à escravidão, mas também ao patriarcado. A desigualdade cristã de gênero não pode mais
existir nem tampouco a diferença cristã de classes. As mulheres e os homens são, portanto, iguais na família,
na assembléia e no apostolado cristão.”.
21
Apesar de os autores se referirem ao contraste entre as passagens da Carta aos Gálatas 3, 28 e I Co 11, 3-
16.

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maneira confusa, mas depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado,
mas, depois, conhecerei como sou conhecido.” (I Co 13, 12).
Pela proeminência dada ao apóstolo à questão do véu e dos cabelos, podemos inferir
que as mulheres coríntias estavam realizando práticas contrárias ao que Paulo descreve.
Matos (2004: 115) ainda afirma que as mulheres poderiam ter chegado ao ponto de se
trajar como homens, como a personagem Tecla, na obra “Atos de Paulo e Tecla”.
Se isso realmente ocorria, podemos observar que as mulheres da igreja coríntia
aproveitaram essa nova realidade religiosa, que ainda não apresentava uma configuração
bem estabelecida tanto no mundo romano, como na própria cidade de Corinto. Como as
reuniões paleocristãs eram realizadas no ambiente domiciliar, um espaço no qual as
mulheres teriam uma maior liberdade e poder social, este também seria mais um dos
fatores que propiciou tais práticas.

Considerações Finais

A comunidade cristã de Corinto se revelou (e ainda se revela) um estudo de caso


distinto de outras igrejas primitivas. Não houve “ataques” de outros religiosos como em
outras comunidades (como a que se situava em Éfeso), assim, surgiram contendas no
interior da própria igreja. Como um campo religioso novo, não há uma ortodoxia definida,
questionamentos surgem a todo momento por parte dos fiéis para que possam
compreender o que seria o cristianismo.
Portanto, não havendo uma organização eclesial estabelecida, os membros da
comunidade não tinham suas funções instituídas. Assim, homens e mulheres têm uma
maior liberdade para criar e recriar as práticas cristãs. Essa liberdade foi até certo ponto
limitada pelas ponderações de Paulo, contudo, por mais que este tenha sido o criador da
comunidade coríntia e tenha uma autoridade que advém de sua posição de apóstolo (I Co
9, 2), ainda notamos no corpus paulinum, por meio das questões apresentadas pelos fiéis,
como isso era alvo de discussões.
Em I Coríntios observamos como as mulheres têm diferentes papéis, e que Paulo
associou essas funções (não somente das mulheres, mas dos cristãos de modo geral) com
o dom ou carisma de cada fiel. De virgens, viúvas a esposas; cada uma delas tem
caracteres e serviços específicos na igreja. O que elas têm em comum é a liberdade de

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expressão nas assembleias, fato significativo para as mulheres na Antiguidade. Enquanto


nos cultos romanos havia grupos somente constituídos de mulheres para práticas
religiosas específicas, aqui observamos como homens e mulheres participam
intensamente, dividindo o mesmo espaço.
Então, notamos que, além de se expressar, as cristãs estavam criando novas práticas
cultuais, como a exclusão do véu (que foi criticada por Paulo). Porém, nem todos os
cristãos concordavam com essa liberdade, como mostra a inserção de I Coríntios 14, 33-
37.
Concordamos com Crossan e Reed no seguinte apontamento: “[Paulo] Apenas
proclamava o que o cristianismo nunca teve a capacidade de seguir; que nele todos são
iguais [...]” (2007: 10-11). Contudo, entendemos que Paulo pregava que isso somente
seria concretizado no Reino de Deus. O apóstolo não chegou a pregar uma mensagem
“ultra-radical”, como apontam Crossan e Reed sobre ele (2007: 120). De fato, como
vimos, quando Paulo se refere a questões como o matrimônio e o celibato ele faz alusão
tanto aos homens como as mulheres.
O apóstolo Paulo fez a seguinte proposição em Gálatas 3, 28: “Não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos sois um só em
Cristo Jesus.” Porém, em I Co 7, 17 ele diz: “Ademais, viva cada um segundo a condição
que o Senhor lhe assinalou [...]”. Ao profundarmos nossa análise sobre Paulo, entendemos
que sua pregação era ponderada, isto é, por mais que seu cristianismo fosse “radical”, ele
ainda estava inserido na cultura do mundo social ao qual pertencia. Afinal, o mesmo Paulo
achava vergonhoso uma mulher profetizar ou orar na assembleia de cabelos raspados ou
sem o véu (I Co 11, 4-6).
Aliado a Paulo, ainda temos mais um escritor em nossas fontes que se dedica às
mulheres; em I Co 14, 34-38. Esse personagem desconhecido pregou que as mulheres
deveriam se expressar nas assembleias através do silêncio. Essa interpolação nos revela
que já havia indivíduos que mantinham a opinião de que o papel feminino seria somente
o de submissão ao homem. Esse pensamento pode advir de indivíduos convertidos do
judaísmo; já que também fazem referência à Lei (I Co 14, 34).
A participação das mulheres dentro das igrejas cristãs na atualidade também
apresenta uma grande diversidade de opiniões. Notamos como uma provável mudança de
leis, defendida por bancadas políticas formadas por homens religiosos cristãos, suscitou
a manifestação de movimentos feministas, inclusive de caráter cristão.

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Novas pesquisas acerca do papel feminino nas primeiras comunidades cristãs


devem ser realizadas, pois, existem possibilidades múltiplas e interpretações diversas que
ainda devem enriquecer o debate acerca das relações de gênero no cristianismo antigo.
Pesquisar os primeiros documentos cristãos e analisar as vozes femininas nesse meio nos
permite tentar compreender como essas mulheres se viam através de suas práticas dentro
da comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

On the iconicity of Greek Mycenaean MA-KA


Maria Mertzani22

Abstract
This paper analyses the relationship between the phonemes and the meanings of
seven ancient Greek words which are formed from the Mycenaean (Linear B) syllables
MA and KA. In this analysis, it considers the graphemic iconicity of the two syllables,
within the Minoan and Mycenaean cultural context that was significantly linked with the
worship of Mother Goddess throughout the lunar and solar cycles. The aim is to show
that the differences between their meanings can be described as isomorphic to the
differences between their phonemes, which, in turn, are depicted and/or justified in their
graphemic iconicity. The paper concludes to the non-arbitrary relationship between the
phonemes, graphemes and meanings of words, suggesting MA-KA as a historical marker.

Key-words: language symbolism, Linear AB scripts, Mother Goddess

Introduction
Independently of the existing debate over the meaning of MA-KA syllable
combination in Mycenaean tablets (cf. DEL FREO, 2014), the study discusses the
iconicity of its graphemes in relation to the meanings of those ancient Greek (AG) words
whose etymology lies on this specific combination. Thus, MA-KA is examined in AG
words that start with the equivalent nasal and velar syllables: μακα-, μαγα-, and μαχα-. In
this examination, the study focuses on diagrammatic iconicity (WAUGH, 1994: 56;
GIACALONE RAMAT, 1995: 122), which is relational in nature, and whose forms (e.g.
the encircled cross) are considered as diagrams or icons that “represent the relations of
the parts of one thing by analogous relations in their own parts” (WAUGH, 1994: 56),
thus resembling and/or imitating objects in respect to these relations. Moreover, following
Murray (1989), the examination and understanding of the nature of symbolic systems,
such as the two particular Linear B symbols, requires a focus on the processes of
performance and enactment, hence on their use during their Mycenaean era, and even

22
MPhil and PhD in the University of Bristol - U.K. Email: maria.d.mertzani@gmail.com

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

earlier, as Linear A symbols in Minoan times. The forms (phonemic and graphemic) of
MA-KA are examined in a systematic interdependence of elements, in their specific
meaningful context, non-arbitrary and isomorphic. An interpretative framework of
symbolism is also adopted (BOYER, 1993; ENGLER, 1995) for understanding such
cultural manifestation in its different configurations.

Iconic representations of MA-KA


Following Changizi and Shimojo (2005), the analysis of their forms shows that MA
and KA (inclusive of their Minoan variations in Linear A) consist of both round and linear
forms. Firstly, MA (Figure 1) appears to represent the head of a feline animal that
scholarship so far suggests to be a cat (cf. BRICE, 1969: 125), a suggestion that agrees
with the frequent depiction of the cat as a Minoan hieroglyph, and later, in the
iconography of the Mother Goddess Isis (Figure 2). With regards to this latter relationship
between the cat and the worship of Mother Goddess, Plutarch in De Iside et Osiride 63,23
while explaining the parts and symbolism of the sistrum (see Figure 5), informs about the
Isis’s relation to the moon, which is represented by the cat at the top of the sistrum. The
animal’s relation to the moon is explained due to its nocturnal activity, fecundity, as well
as due to the growing of its eye pupils at full moon.
“Τοῦ δὲ σείστρου περιφεροῦς ἄνωθεν ὄντος ἡ ἁψὶς περιέχει τὰ σειόμενα
τέτταρα. Καὶ γὰρ ἡ γεννωμένη καὶ φθειρομένη μοῖρα τοῦ κόσμου περιέχεται
μὲν ὑπὸ τῆς σεληνιακῆς σφαίρας, κινεῖται δ´ ἐν αὐτῇ πάντα καὶ μεταβάλλεται
διὰ τῶν τεττάρων στοιχείων, πυρὸς καὶ γῆς καὶ ὕδατος καὶ ἀέρος. Τῇ δ´ ἁψῖδι
τοῦ σείστρου κατὰ κορυφὴν ἐντορεύουσιν αἴλουρον ἀνθρώπου πρόσωπον
ἔχοντα, κάτω δ´ ὑπὸ τὰ σειόμενα πῆ μὲν Ἴσιδος πῆ δὲ Νέφθυος πρόσωπον,
αἰνιττόμενοι τοῖς μὲν προσώποις γένεσιν καὶ τελευτήν (αὗται γάρ εἰσι τῶν
στοιχείων μεταβολαὶ καὶ κινήσεις), τῷ δ´ αἰλούρῳ τὴν σελήνην διὰ τὸ

23
The arch, which is the circular upper part of the sistrum, contains the four elements that are shaken.
Because the part of the world that is born and dies is contained in the moon’s sphere, and everything moves
according to it and changes through the four elements: fire, earth, water, and air. At the top of the arch of
the sistrum they construct a cat with a human face, and below, under the elements that are shaken, the face
of Isis on one side, and on the other the face of Nephthys, symbolizing with these faces birth and death
(because these are the changes and movements of the elements), and by the cat, the moon because of the
varied colour, nocturnal activity, and fecundity of the animal. For the cat is said to give birth first one, then
two and three and four and five, and in this way they add by one each time until she reaches seven, so that
she gives birth to all twenty-eight, as the moon's illuminations are. Perhaps this is mythical. But the pupils
in her eyes (of the cat) appear to grow large and round at full moon, and to become thin and shine at the
wanings of the star. And the anthropomorphism of the cat is indicated in the intelligence and reason of
moon’s changes (Author’s translation).

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ποικίλον καὶ νυκτουργὸν καὶ γόνιμον τοῦ θηρίου. Λέγεται γὰρ ἓν τίκτειν, εἶτα
δύο καὶ τρία καὶ τέσσαρα καὶ πέντε, καὶ καθ´ ἓν οὕτως ἄχρι τῶν ἑπτὰ
προστίθησιν, ὥστ´ ὀκτὼ καὶ εἴκοσι τὰ πάντα τίκτειν, ὅσα καὶ τῆς σελήνης
φῶτ´ ἔστιν. Τοῦτο μὲν οὖν ἴσως μυθωδέστερον· αἱ δ´ ἐν τοῖς ὄμμασιν αὐτοῦ
κόραι πληροῦσθαι μὲν καὶ πλατύνεσθαι δοκοῦσιν ἐν πανσελήνῳ, λεπτύνεσθαι
δὲ καὶ μαραυγεῖν ἐν ταῖς μειώσεσι τοῦ ἄστρου. Τῷ δ´ ἀνθρωπομόρφῳ τοῦ
αἰλούρου τὸ νοερὸν καὶ λογικὸν ἐμφαίνεται τῶν περὶ τὴν σελήνην
μεταβολῶν” (PLUTARCH, De Iside et Osiride, 63).

Figure 1 MA and its variations in Linear A and B scripts

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Figure 2. Linear AB MA in relation to Isis iconography and Cretan hieroglyphs

The relationship of the Mother Goddess with feline animals (a cat, a lion, a leopard,
etc.) is very well attested in archaeology since early neolithic. Usually, she is depicted
among two felines, and in Minoan times she stands on a mountain top flanked by lions,
or holds snakes, having on her headress a quadruped feline (ALEXIOU, 1973: 72;
MARINATOS, 1993: 55, 158), a representation detail that strongly reminds Plutarch’s
account. Elsewhere, her mountaintop shrine has the form of a quadripartite MA (Figure
3) (MARINATOS, 1993: 173), which also reminds the quadripartite form of KA. In fact,
as the analysis demonstrates, the base form of MA is one KA variation (Figure 4). As a
cat then, she is connected to the symbolism of the moon and night, and by extension to
the underworld and death, as well as to fertility24 (analogical to the fecundity of the
animal) following the moon’s lunations. It is reminded that in ancient central and south
America civilizations such representation is found in the entrances of caves, which were
depicted by the open mouth of a jaguar (cf. BENSON, 1972).

24
The mark of her fertility powers was mythologically her son Horus or Harpocrates. Additionally, Plutarch
mentions (De Iside et Osiride, 56) that Plato interpreted her name as the womb, the place from which Horus
sprang (HORNBLOWER, 1941: 94).

43
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Figure 3. Mother Goddess depictions in Minoan era

This Plutarch’s association of the cat with the sistrum and the Mother Goddess Isis
also reminds the symbol combination in Figure 5, which Evans suggested to represent the
sistrum (cf. BRICE, 1969: 125). Myres (1946) and Kober (1948) connected it with the
Linear B QA, which in archaic Greek alphabets is the letter koppa (modern Qq), used for
the writing of the name of Mother Goddess Cybele (Ϙυβαλας) (WOODARD, 2014: 17).
Thus, both KA and QA strongly relate to the symbolism of the Mother Goddess, who was
also the cow, representing this time the sun (MERTZANI, 2017: 76, 87). This relationship
is also supported by a well known Minoan and Mycenaean iconography depicting the
head of a bull/cow with a cross on the animal’s forehead. Thus, the cat and the bull/cow
were the sacred animals of the Mother Goddess, symbolising the cycles of the moon and
the sun accordingly. The fact that the cat is depicted on the top of the sistrum is another
symbolism of the moon’s supremacy over the solar year in ancient calendars.

44
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Figure 4. The base of MA on a KA variation

Figure 5. Association of MA with QA, Koppa and the sistrum

Following again Plutarch’s account in Romulus 9.4 and 11.1-2,25 the syllable KA
symbolises the earth as a reflection of the sky. He describes the foundation of Rome

25
Romulus, after burying Remus in the Remonia together with his foster-fathers, he was building the city,
after he summoned Tyrrhenian men who were leading such sacred ordinances and writings, and to teach as
in a rite. Α circular trench was dug around what is now the Comitium, and primal offerings of all things, of
which they used by custom as good, by nature as necessary, they deposited there. Αnd finally, every man
bringing a small portion of the soil of his land of origin, they were casting in it and mixing. And they call

45
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through a cyclical ritual, which divided the city in four quarters (κουαδράταν, urbs
quadrata). This round planning of the city with its centre (ὀμφαλός, the omphalus)
reflected the celestial heaven. In Romulus 11.1-2 it is the μοῦνδον. In fact, its centre
represented the polar star (ἄρκτον ὀμφᾰλόεσσαν), the axis of the earth, and by extension,
to the heavens, the Milky Way, with the planets and certain stars rotating around it every
night.
“Ὁ δὲ Ῥωμύλος ἐν τῇ Ῥεμωρίᾳ θάψας τὸν Ῥέμον ὁμοῦ καὶ τοὺς τροφεῖς,
ᾤκιζε τὴν πόλιν, ἐκ Τυρρηνίας μεταπεμψάμενος ἄνδρας ἱεροῖς τισι θεσμοῖς
καὶ γράμμασιν ὑφηγουμένους ἕκαστα καὶ διδάσκοντας ὥσπερ ἐν τελετῇ.
βόθρος γὰρ ὠρύγη περὶ τὸ νῦν Κομίτιον κυκλοτερής, ἀπαρχαί τε πάντων,
ὅσοις νόμῳ μὲν ὡς καλοῖς ἐχρῶντο, φύσει δ' ὡς ἀναγκαίοις, ἀπετέθησαν
ἐνταῦθα. καὶ τέλος ἐξ ἧς ἀφῖκτο γῆς ἕκαστος ὀλίγην κομίζων μοῖραν ἔβαλλον
εἰς ταὐτὸ καὶ συνεμείγνυον. καλοῦσι δὲ τὸν βόθρον τοῦτον ᾧ καὶ τὸν ὄλυμπον
ὀνόματι μοῦνδον. εἶθ' ὥσπερ κύκλον κέντρῳ περιέγραψαν τὴν πόλιν. ὁ δ'
οἰκιστὴς ἐμβαλὼν ἀρότρῳ χαλκῆν ὕνιν, ὑποζεύξας δὲ βοῦν ἄρρενα καὶ
θήλειαν, αὐτὸς μὲν ἐπάγει περιελαύνων αὔλακα βαθεῖαν τοῖς τέρμασι, τῶν δ'
ἑπομένων ἔργον ἐστίν, ἃς ἀνίστησι βώλους τὸ ἄροτρον, καταστρέφειν εἴσω
καὶ μηδεμίαν ἔξω περιορᾶν ἐκτρεπομένην.” (PLUTARCH, Parallel lives:
Romulus, 11. 1-2).
In line with these associations, this paper supports that MA-KA refers to these
cycles of the moon and the sun, in relation to the earth and the cycles of other planets
and constellations, and in the order they appear, as discussed below.

MA-KA and calendar cycles


Following the movement of the sun and moon (daily, monthly, annually, etc.), time
overall was perceived round, depicted in the round forms of MA and KA. As a matter of
fact, their form i.e., as a half cycle (vertical/horizontal) and/or quadripartite (cf.
POWERS, 1986: 131, 142), represent, for example, the the sun’s highest position on the
sky in the summer solstice, and the first/third quarter of the moon. When the sun settles
onto the ecliptic, it spends half the year above the earth giving light and warmth, and the

this trench, as they do the seat of the gods (the heaven) by the name of ‘mundus.’ Then, taking this as a
centre, they marked out the city in a circle round it. And the founder, having shod a plough with a brazen
ploughshare, and having yoked to it a bull and a cow, he led on by driving a deep furrow round the boundary
lines, while those who followed after him the work is to turn the clods inwards, which the plough threw up,
and to look over no clod to lie turned outwards (Author’s translation).

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other half below the earth, giving a period of cold and dark. Dividing the year's weather
in quarters, the months refer to wind and rainy weather (spring); to harvest and heat; to
wind and rainy weather again (autumn); and to cold (winter) (COHEN, 1993: 7; cf.
MACGILLIVRAY, 2004). Likewise, the month is divided in four quarters, having four
weeks of seven days equating to a 28-day cycle (see Plutarch above).
In this parallel lunar and solar motion, MA-KA as the Mother Goddess, symbolised
the agricultural and fertility cycle (of some 260 days) around the time of the equinoxes
(from March to September), during which the earth is fertilised by rain and consequent
river inundation (COHEN, 1993; MAGINI, 2015; ŠPRAJC, 1993). This period also
symbolised the cycle of human gestation (GREEN, 2014a: 26). In this cycle, the onset
and end of the rainy season coincides with the Venus’s extremes, who forms an extension
to the moon’s and sun’s symbolism as an evening and morning star (ŠPRAJC, 1993: 42).
Therefore, MA-KA also refers to Venus and its cycles in relation to earth. In each 8-year
cycle, 26 which represents a quarter of the mean sun (RICHER, 1994: 1, 105), one
northerly/southerly Venus extreme is greater than others (around the beginning of
May/November), delimiting the rainy season more exactly than other extremes (ŠPRAJC,
1993: 42).

26
The 8-year cycle is known as octaeteris, equating to 99 lunations (MAGINI, 2015: 16).

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Figure 6. Cyclical representation of the equinoxes, solstices and planets’ sets and rises

In a cyclical representation (Figure 6), these fixed phenomena correspond to the


schematic symbolism of MA-KA. Thus, on a two dimensional cycle, the solstices create
a cross and/or a double axe (another symbol of the Mother Goddess), whose conjunction
midpoint, the centre of the cycle, represents the equinoxes, the sun’s equal position in the
sky. On a spherical representation, the sun’s zenith defines the earth’s, and by extension,
the celestial meridian (the centre of Milky Way) (MAGLI, 2016: 9). Apart from the axe
representation in the middle of the Minoan and Mycenaean horns of consecration, this
schematisation is also supported by Hathor’s 27 iconography in Egypt, as the sun rising
among the horns (cf. MERTZANI, 2017). In this case, the trees at the left and right top
of the horns represent the celestial axis.
MA-KA also symbolises greater time cycles like the earth’s axial precession. In
such time scales, MA-KA’s association with the cat and taurus is more evident, since, for
example, archaeoastronomy demonstrates that the annual cycle begun at the summer
solstice, when the sun and the full moon was in Leo, and Sirius28 and Orion were perfectly

27
According to Hesychius, Ἁθύρ meant the month (μήν), the bull/cow (βοῦς) and metaphorically, the
mother. All these meanings agree with the Mother Goddess symbolism.
28
In particular, the heliacal rising of Sirius used to occur five days after the summer solstice (WELLS,
1985: 279).

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aligned (MAGLI, 2016: 70-71). In fact, this alignment occurred when Sirius was
heliacally born (WILLIS & CURRY, 2004: 22), with whom Isis was also recognised
(HOLBERG, 2007: 4; WELLS, 1985: 258-259). This alignment remained fixed for
centuries, announcing in certain calendars the beginning of the year at the summer solstice
(RICHER, 1994: 119).
For example, during the Attic octaetiris, in Olympia - a site dedicated to the Earth
goddess Γαῖα (PERROTTET, 2004) - the Olympic games29 started with the full moon of
the summer solstice, during which the heliacal rising of Sirius was also taking place in
Leo (HANNAH, 2012: 80; RICHER, 1994: 111, 119), marking the beginning of the year
as well. From around 340030 to 2000 BCE, a period that clearly defines the Minoan era,
the spring equinox was in the sign of Taurus (MAGLI, 2016: 42; RICHER, 1994: 80,
129), a detail that also justifies the association of MA-KA with the sacred animals of the
Mother Goddess. In particular, during this age, the equinoxes were housed in the signs of
Taurus and Scorpio, and the solstices in Leo and Aquarius. In this axis, Aquarius was
represented by a vessel, which, in turn, was the womb symbol of Mother Goddess, and/or
by the panther (p. xxxvii) that also agrees with MA feline representation. More
importantly, the Lesser and Greater Eleusinian Mysteries of Demeter used to take place
in this equinoctial axis.

29
The Olympic games alternated between a period marked by the rising of Sirius and Arcturus in the months
Parthenios and Apollonios that corresponded to the Egyptian months Mesori (25 July – 23 August) and
Thoth (29 August – 27 September) (HANNAH, 2012: 80). Considering the Sothic cycles of Sirius (cf.
HOLBERG, 2007: 3, 11), the heliacal rising of the star in late July (ca. July 19 and 20 in the Julian calendar;
August 4 in Gregorian calendar), corresponds to scholar consensus that the games begun with the second
full moon after the summer solstice (CHRISTESEN, 2007: 18).
30
This chronology coincides with Maya’s world creation on 8 September 3114 BCE (Julian calendar) or
13 August 3114 BCE (Gregorian calendar), at full moon, when the Orion’s belt was the celestial meridian,
and the sun reached its zenith (MENDEZ & KARASIK, 2014: 100).

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Figure 7. KA analysis and its relation to velars in archaic Greek alphabets

MA-KA in the Greek alphabets


The form analysis of MA-KA helps to recognise a continuum of graphemic
symbolism that the archaic Greek alphabets adopted for the representation of <M> (mi;
Greek, μυ), and the velars <K> (kappa; Greek, κάππα), <Γ> (gamma; Greek, γάμμα), and
<X> (chi; Greek, χει). To present, such graphemic examination does not exist, since the
alphabetic letters-symbols are never compared to the Linear B symbols, and/or even to
the symbols of Cypriot syllabary that, as a Greek script, was used until the 4th century
and in a parallel fashion with the alphabet. Based on Jeffery (1990), the analysis of MA
and KA justifies the early forms of the specific letters (Figures 7-8). For instance, the
semi-circular representations of gamma and mi correspond to the circle of MA and KA.
They are products of it. For mi, additional indications emerge from the Cypriot syllabary,
especially from MO, whose round form conforms to MA. Additionally, the arrow-like
forms of the velars map to the well-known representation of the cross as a weapon, and
the crosses correspond to the cross of KA. This association with KA is reinforced by the
double representations of the letter ksi, whose kappa appears as a cross and an arrow, an
allograph of the cross. Moreover, the square (and quadripartite) form of <K> is linked to

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KA, since current linguistics (cf. BOLTZ, 1994) and psycholinguistics (cf. DINGUO,
2003; GIBSON, 1929) confirm the square as an alternate form to the circle.

Figure 8. MA analysis and its relation to mi in archaic Greek alphabets

MA-KA in ancient Greek words


Appendix A presents the AG words which are built on the MA-KA root. Its direct
and strong correspondence to the Mother Goddess is the phrase μᾶ γᾶ for μῆτερ γῆ (mother
earth), as a worship exclamation by women to Demeter. In particular, μᾶ was the shorter
form in Greek Aeolic and Doric for μάτηρ (also, μήτηρ; Lat. mater), which meant the
mother, the dam, the womb, the grandmother, and a form of address to old women.
Additionally, the word ἡ Μήτηρ was the title of Demeter, Isis, and Aphrodite. It also
meant one's native land, the earth, the Olympia (see above), the night, and the mother of
day. All these meanings agree with the aforementioned interpretations of MA-KA.
Mᾶ was also the shorter form for the word ἡ μαῖα, which meant the mother, the
good mother/true mother, the midwife, and the grandmother. It also referred to the earth,
especially in the phrase ἰὼ γαῖα μαῖα, together with γαῖα (the earth). Μαῖα (Μαίη and
Μαιάς) was also the mother of Hermes, who gave him birth at the dawn (as the mother of
the day) in the cave of the river Alpheus, whose delta corresponded to the spring equinox

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of Taurus, and the summer solstice in Leo (RICHER, 1994: 99). Metaphorically and/or
metonymically, the cave is the womb, and the river Alpheus the beginnings of the lunar
and solar calendars by referring to the spring equinox and the summer solstice
correspondingly. In fact, these associations of Alpheus (especially of the equinox in
Taurus) strongly remind the letter alpha that traditionally is considered to represent the
head of a bull/cow as KA does.

Figure 9. The phonemic equation of velars with alpha and their symbolic associations

Interestingly, this latter relationship is met in the semantic and phonological


equation μαῖα = γαῖα = αἶα, in which the word αἶα, starting with the letter alpha, also
meant μαῖα and γαῖα (cf. αἰ and αἴκᾱ, an enclosed place), hence incorporating all their
aforementioned meanings and symbolisms. Moreover, in relation to earth/land meanings,
it meant the Colchis, and/or a city in Thessalia (cf. Αἰαίη, the island of Circe); and in
relation to the water, the spring of the river Axios in Macedonia. Thus, the alpha equates
with MA and KA, a relationship that archaeology meets in Neolithic tomb entrances
decorated by the symbol of alpha (GIMBUTAS, 1989) (Figure 9). As water, analogical

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to the shorter forms μᾶ γᾶ, αἶα is also the word ἄα, which meant water as well as the
dawn, morning, day, life, East, and the goddess of the dawn (cf. ἡ ἄας).
KA clearly corresponds to the words ἡ γᾶ (also ἡ γῆ) and γαῖα, which meant earth,
land, ground, inclusive of water (the sea) and living organisms, and the planet earth as a
whole. This earth symbolism of KA is also supported by the words κᾰ, κάς (downwards)
and κῆ (there, in that place, in another world, then) that also refer to meanings of place
and the underworld. In the remaining μάγα words there is no meaning relating to Mother
Earth, although the concept appeared in the word μάγαρον (and μέγαρον) that denoted
the sacred pits to Demeter and Persephone, and the Mycenaean palace. The concept of
earth/land does exist in the word ἡ μά̆χη < μάχα- (cf. μάχαιρα, the knife) as the battle
field, thus agreeing with the symbolism of KA, and with the symbolism of the letter chi
as a cross/arrow and weapon (knife, sword, dagger, shear). The fact that MA-KA
generated the word ἡ μᾰγάς which related to cithara, also suggests an old symbolic
connection of the instrument with the earth as the reflection of the celestial heaven. The
most illustrative example is the city of Thebes, which had the form of a lyre (better,
cithara?) and its seven doors symbolised the seven strings of the instrument and the seven
planets (RICHER, 1994: xxxviii). It is noted that the lyre was another symbol of the
autumn equinox (p. xxxvi).
This latter symbolism is met in μάκα words that meant the goat 31 as ἡ μᾰκών and
μηκάς (*μακάω > μᾰκών; cf. μηκάομαι), and/or its bleat, hence connecting MA-KA with
the autumn equinox in capricorn, which was also represented by the goat 32 (the sea-goat)
(Ibid.). In μάκα words, there is another indication of the association of MA-KA with the
worship of the Mother Goddess. This is the word μάκαρ (blessed), which was used as an
appellation to the gods, and from which the adjective μάκαιρα was derived as an
appellation to Persephone, the daughter of Demeter. In many ancient civilisations, the
king was regarded the sun-god, who in AG was the Μάγης and/or Μέγας (< Μάγας, great;
cf. Μάκκος, king). According to Hesychius, the word μέγα was also μαΐ (great) that
strongly corresponds to MA. There was also the meaning of witch as ἡ μάγα.
Overall, MA-KA words did not carry any meaning of a feline and/or bull/cow.
However, the feline was denoted in words having the syllable combinations ma-ra and

31
In AG, the goat was met in the words ἡ αἴγα (the goat), and in the adjective of a goat μᾱλός meaning
white. Both words involve MA and KA, although they are combined with different syllables. Cf. also the
analogy αἴγα - αἴκᾱ. See Figure 3.
32
In Luwian hieroglyphs, the syllable MA is depicted by the head of a goat.

53
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ka-ta. Concerning ma-ra, MA related to the cat and the moon in the word ἡ Μαῖρα that
denoted: the star Sirius, the subsequent heat season in August (after its heliacal rising),
and the moon. Moreover, this syllable generated the verb μᾰραυγέω, which referred to the
the cat’s eyes and its pupil’s contraction when exposed to light (see above Plutarch). In
fact, as a compound word, its second part carries KA (as γᾶ > der. γέω-), thus carrying
both the meaning of earth and light as discussed above. Moreover, considering the
alternation between the laterals /l/ and /r/, ma-ra also produced the word μάλα, which
meant the hilly altar 33 of the earth as a bull/cow, which, in turn, reminds the Minoan horns
of consecration and the mountainous altars of the Mother Goddess. In relation to KA, the
cat meaning is met in the words ἡ κάττα and ἡ γαλῆ34 (from ka-ra; cf. MERTZANI, 2017).
Interestingly, the cat and/or the eye of a cat was also the word ὁ, ἡ αἰέλουρος - αἴλουρος,
whose first compound links to αἶα (and hence to the aforementioned equation αἶα - γαῖα
- μαῖα), and the second compound to the word ὁ λῶρος (Lat. lorum) that was the
omphalus.

Some phonological considerations


It was the aim of the study to analyse the relationship between the sounds and
the meanings of MA-KA words, so as to show that any differences between their
meanings are isomorphic to any differences between their phonemes. In doing so, MA-
KA is described phonologically following Nobile’s (2011: 109) phonosemantic
diagrammer for the representation of phonemes within the oral cavity, according to which
the consonants /m/ and /k/ are closed, articulated at the back of the cavity, and the vowel
/a/ in the middle. Current sound symbolism research associates the specific phonemes
with certain characteristics of their referents and meanings (size, shape, color, taste etc.).
For example, /ma/ in the pseudoword maluma, is found to connect with roundness
and soft looking forms, whereas /k/ in the pseudowords takete or kiki, with angularity
and/or linearity (D’ONOFRIO, 2014; KÖHLER, 1947; NIELSEN & RENDALL, 2011;
NOBILE, 2015; PARISE & PAVANI, 2011). However, Spector and Maurer (2013)

33
Its synonym is βούνισμα, which is met in the phrase ἰὼ γᾶ βοῦνι that demonstrates this exact relation.
Note the phrase ἰὼ γαῖα μαῖα. Thus, there is an isomorphic analogy: ἰὼ γᾶ βοῦνι = ἰὼ γαῖα μαῖα, where
βοῦνι/μάλα = μαῖα.
34
The γαλῆ is also connected with the adjective καλή, for both deriving from ka-ra. In fact, this adjective
is met in the Hamburg Amphora of the Eucharides painter, where Io as a bull is called Καλή, the beautiful
maiden (GRIFFITHS, 1986: 476). Hence, ka-ra connects to both sacred animals. About the connection of
Io (cf. ἰὼ, the moon) with KA and MA, also see the above footnote for the equation ἰὼ γαῖα μαῖα.

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demonstrated that /k/ shows to appear for both angular and rounded shapes, a result that
Magnus (2001) also supported for English. For example, the majority of /k/ words denote
closeness, collection, containers, closure, as well as corners and crinkles. As a plosive
consonant, it is perceived to predominate in words connoting large size, especially when
is combined with back vowels (KLINK, 2000), and happy feelings with high activation
(AURACHER ET AL., 2011: 3). Newman (1933) demonstrated that it associated with
brightness too. In relation to /m/, Magnus (2001) demonstrated its frequent use in
meanings of i.e., measure, move, mixing, madness, and less frequently, in meanings of
earth and man. Newman (1933) showed its connection with largeness and darkness,
Nobile (2015) with density, and Auracher et al. (2011: 3) with sad feelings, unpleasant
mood and low activation.
The vowel /a/ is found to connote greater size, power, darkness, hardness, thickness,
heaviness, slowness, warmth, sweetness and aggressiveness (KLINK, 2000). In Parise
and Pavani (2011), /a/ was linked to dodecagons (which approximate the cycle), and to
luminance and/or white colour. It’s central position
“corresponds to the central position of the notion of a {structured spatiality}
as the power to contain or be contained … Not only because the concept of
centre (centre of a figure, of a town, of a problem...) implies the idea of a space
contained in another space. But also because the opening of the mouth
connects the internal cavities allowing us to contain (lungs, stomach, intestine,
bladder...) with the external cavities allowing us to be contained (holes,
homes, houses, habitations, hotels, halls, hangars...). The mouth is the
anatomical junction between inner space and outer space, the combination of
which give rise to our physiological experience of spatiality as structured”
(NOBILE, 2011: 114-15).
These results correspond to the meanings of MA-KA words. As a matter of fact,
their meanings are isomorphic to the sound differences between the plosive /k/ and the
fricatives /γ/ and /χ/. For instance, the consonant /γ/, having a mid-back articulation, in
conjunction with the centrality of /a/, denotes the earth (γᾶ > ἡ μᾰγάς), as the central place
of all life (man, animal, plants, etc.), and as a planet, it is mapped to its natural round
shape. In the phrase μᾶ γᾶ, it denotes largeness and greatness, as in the title Μάγης that
denotes a cosmic ruler. In contrast, the words with /k/ (κᾰ, κάς, downwards; κῆ, there, in
that place) denote more definite concepts of earth/land, contrary to the catholicity of /γ/
words. Moreover, words with the fricative /χ/, as they mean battle and/or weaponry (and

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metonymically death/loss), express meanings of high activation, thus differing


substantially from MA-KA words with /k/ and /γ/. It appears that their isomorphic
difference depends on the phonemic magnitude scale of the velars; from plosive /k/, to
/γ/, and to /χ/ fricative.
The consonant /m/ with /a/ associates with motherhood and thus with concepts of
nourishment and breast feeding. This meaning maps to its round grapheme, and agrees
with research showing the birth of the human figure with the circle (cf. Arnheim, 1974:
176). In fact, Liu (1997) and Liu and Kennedy (1993; 1994; 1997) argued that the circle
can evoke sensory concepts that are not primarily visual (e.g. the concept life), and that
is linked with words meaning (among others) mother, goodness, light, spring, warmth,
and cat, meanings that this study discusses under the MA-KA symbolism. Round
representations under these concepts are reported by Munn (1960; 1962; 1966) and Green
(2014b) on the graphic systems of Australian aboriginal people, where basic round shapes
portray roundish and non-elongate objects/phenomena (water, a camp, a tree base, a
person, etc.), whereas straight lines represent items of a straight and elongate form
(spears, straight paths, etc.).

Discussion
The Mother Goddess as μαῖα - γαῖα - αἶα is the mouth/gate where people give birth,
are born and die. Such symbolism exists until today in indigenous villages, whose
physical structure is analogical to the encircled cross, meaning “the gate, the door, the
mouth or the place of outlet (the vagina)” (HEALEY, 1977: 290), and the hole of their
emergence. There are also examples of city plans that looked like a puma (MAGLI, 2009:
205), and/or roundhouses plans to reflect cosmos. In these latter, for instance, a circular
inner room represents the sea, and its outer, divided radially into compartments for
families to live, represents the land. Moreover, the roof symbolises the celestial dome,
supported by the pillars of the stars and a horizontal crossbeam for the Milky Way
(RUGGLES, 2005: 439 - 440).
In other words, MA-KA as a round phonemic equation (μαῖα = γαῖα = αἶα) is also
a round graphemic equation, as its earliest graphemes depict and its imagistic cultural
manifestations. This result is enhanced more by examining etymologically MA-KA in
other languages, non Indo-European, mainly indigenous ones. The short syllables of these
languages carry much iconicity and connect to notions discussed under the Mother

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Goddess symbolism. For example, Bengtson and Ruhlen (1994) listed mak- words
expressing meanings of man and offsprings (pp. 307-308), and ma words denoting place
and/or earth meanings (e.g. to dwell, inside/in); state of being (e.g. to be) (p. 310); the
head and mental activity (e.g. to know, to think, to understand) (p. 312); and question
words like what, why (cf. makan) and where (pp. 313-315). Motherhood meanings (e.g.
to breast, breast, to milk) were found in the reconstructed *maliq’a (pp. 308-309),
reminding the AG Μαῖρα, μᾰραυγέω, and μάλα.
In Lakota, the Mother Earth is Maka Ina and/or Makakan (POWERS, 1986: 30). In
this second word, kan means anything that has existed for a long time (p. 30), and the
wood (can) (p. 64), and the morpheme ka denotes the hand and/or the acting hand as in
drumming and rattling35 (p. 56). All these concepts strongly connote the worship of
Mother Goddess and her Minoan and Mycenaean iconography as there is the analogy of
the tree with the wood (and hence, the pole of earth), of the hand (ka) with her raised hand
worship act, and/or of the rattling with the sistrum.
Elsewhere, she is the Milky Way (cf. in Quechua, Mayu36) (WILLIS & ROY, 2004:
28), as the river in the night sky that reflects the terrestrial ones, the life-giving water that
continuously circulates between the earth and the sky and falls on Earth as rain (MAGLI,
2009: 221). It is the primordial water that has created the earth, which, as a coiling snake,
creates the limits of the world, symbolising the eternal cycle of the sun and moon, the
eternity (ἡ, ὁ αἰών > αἶα) (EL-KHASHAB, 1984: 218-219). It runs through the earth’s
four cardinal points (representing the cross), dividing her into quarters that mirror the
quadripartition of the heavens, which, in turn, are created by the seasonal movements of
the galaxy. In Africa (e.g. in Tabwa people), the Milky Way is Mwila, reflected in a
mountainous ridge (p. 29) and in the medial linea negra during pregnancy (p. 43) that
again strongly reminds the AG μάλα and Μαῖρα, and hence the omphalus.
Considering the connection of the moon with fertility, and the linguistic alternation
of the laterals, Mwila corresponds to Μαῖρα (the moon) from which ἡ μοῖρα was derived,
meaning the thirtieth day of the moon, the full moon and new moon. The word ἡ μοῖρα

35
The word drum is cancega, a compound by can (the wood), and cega (the earthern pot) that also connect
with the Mother Goddess. The word rattle is wagmuha, from wagmu (the gourd) and ha (the skin, hide). In
particular, the word gourd consists of the noun marker wa, and gmu < *gamu. In indigenous communities,
the gourd was always used as a storage vessel to hold seeds and water, a usage that reminds the vessel-
womb of the Mother Earth. This connection is clearer in its planting season from September to October, as
a common practice throughout the Pacific, during which gourds were cultivated on the full moon for rapid
vigorous growth. This period coincides with the rain season and the Greater Eleusinian Mysteries of
Demeter. The full moon was always the Mother Goddess, the cow (cf. Io).
36
The Incas also called the Milky Way Mayu (MAGLI, 2009: 221).

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also meant death and/or the goddess of death, and thus linked to the symbolism of the
Mother Goddess as the night and death. By extension then, the earth is also death, not
only the mother, as in death one returns to the earth (MAGLI, 2009: 299). Due to this
connection, MA AG words also denoted death/loss such as μάω-μῶ-μῦ (to seek one's
destruction; rage, be furious). Moreover, as the goddess of the dead, she was worshipped
in Thebes (cf. μαγάς) that was also considered the city of the dead (SPARAVIGNA,
2008).
Interestingly, in relation to Μαῖρα and the verb μᾰραυγέω, the meaning of the cat
is met in the Guaná (or Chané) language of Brasil, where the words maracaiá meant the
cat and ungè-maracaiá the cat’s eye, with their corresponding Tupi-Guarani words:
mbaracaiá, maracayá or maracajá (TAUNAY, s.d.: 73). The second compound of the
words (-caiá) strongly corresponds to the AG γαῖα of the verb μᾰραυγέω. Moreover, in
Hopi the moon is called mu’uyawu and the muya is suffixed to the name of each lunar
month (WALTON, 2012: 338).
In the Pacific, MA-KA is met in words denoting the rising of Pleiades, who were
always regarded to belong to the constellation Taurus37 (HARTNER, 1965: 8). Thus, in
Hawaiian, the year and the new year makahiki (or makali’i-hiki, and makali’i) also means
the rising of the Pleiades (MAGLI, 2009: 177-178), signifying the beginning of the
agricultural and fertility cycle, towards which the sun moves into the centre of “the great
circle of stars” (Rigel, Sirius, Procyon, Pollux, Castor, Menkalinan, Capella, and the
Pleiades). The belief is that out of this cycle emerges the buffalo that symbolised all life.
Its head were the Hyades, its backbone the Orion’s belt, its ribs the Betelgeuse/Bellatrix
and Rigel, and its tail Sirius (p. 220). The makahiki and its corresponding words in Tonga
(mataliki), Tahiti (matari’i), and Maori (matariki) (p. 337), strongly associate with the
AG word ἡ μάτηρ (mother) to which MA refers, as well as with ματίς that meant μέγας
(great).
In Oceania and Southeast Asia languages the sun and the moon are translated
literally as the eye of the day/night or the face of the day/night (Urban, 2009: 329). For
example, in Indonesian, it is the mata-hari from mata (eye) and hari (day), which both
correspond to AG μάτηρ, ματίς < ΜΑ, and to γαλῆ, καλή < ΚΑ-ΡΑ. This connection of
the sun and the moon as the eye is met in the worship of Mother Goddess (as Hathor and
Isis), who was perceived as the eye and was identified with the cat as the eye of the

37
The Pleiades marked the left horn of Taurus, which becomes visible first in the course of the solar year
(HARTNER, 1965: 8).

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lunaries (EL-KHASHAB, 1984: 221). As a matter of fact, archaeology has unearthed


numerous examples of blue pottery having the cat with the eye on the animal’s side
(ELWORTHY, 1895: 127). Moreover, considering the meanings of MA (i) as the Milky
Way that gives birth to the planets (including the earth); and (ii) as the moon that precedes
the sun controlling fertility, the cat’s eye is the centre of this life-cycle on a micro (the
day, month, year, etc.) and macro (the centuries, ages, etc.) time scale.
In the above associations, Taurus (the constellation) does not show the whole bull
over the ecliptic, but only its forepart, the horned head (through Hyades), and its brightest
star (Aldebaran) as the bull's eye. In antiquity, this particular star combination was
depicted with bull heads having a star and/or a cross, like KA, on their foreheads
(HARTNER, 1965: 4) and/or the rosette flower. In Egyptian hieroglyphs, KA was
depicted by the cow/bull, and or the raised hands, which in certain instances were
replacing the animal’s horns on king’s heads.
Such close etymology of MA-KA words across languages, and their corresponding
symbolic and semantic associations, perhaps allow the speculation of a common
worship/celebration of a celestial alignment between the sun (its solstice), the moon (full
moon) and the galactic centre38 (JENKINS, 2002: 12, 17). This alignment is suggested to
be marked by this order of MA-KA syllables, especially in the phrase μᾶ γᾶ. On a micro
time frame, as aforementioned, this alignment used to be celebrated in the Olympic
games, especially in August when the Lion (the big cat) culminated and the Pleiades rose
acronychally39 (HARTNER & ETTINGHAUSEN, 1964: 163). On a macro level, such an
alignment meant the great cycle of the procession of equinoxes, which was conceived as
the union40 of the male principle (the solstice sun) with the female principle (the galaxy’s
centre) (JENKINS, 2002: 18).

38
In Maya mythology the centre was regarded as the womb of the cosmic Mother (her birth canal) as well
as the mouth of a snake or frog (JENKINS, 2002: 17-18). The head of a snake alternates with the head of a
bird in Neolithic Mother Goddess idols (cf. GIMBUTAS, 1982; 1989). The Mother Goddess, the Milky
Way and the bird are met between 15,000 - 12,000 BCE, when the Cygnus (the swan) constellation, the
Northern Cross, marked the north pole. Back then, the pole star was delta Cygni as Ursa Minor is now
(MAGLI, 2009: 11).
39
At around 2,300 BCE., the Pleiades were the starting point of the house of Taurus at 0o, to which the
spring equinox corresponded (SPARAVIGNA, 2008; RICHER, 1994: 80). Between the autumn equinox
and the winter solstice, the Pleiades rose in the eastern sky after sunset, and hence, they were associated
with mourning and funerals. In this acronychal rising, the Pleiades arriving at the zenith precisely at
midnight (JENKINS, 2002: 21). From 2,300 BCE, the full moon passing the cluster at the autumnal equinox
was also celebrated (SPARAVIGNA, 2008).
40
In the summer solstice of ca. 2,300 BCE., a sacred marriage took place (RICHER, 1994: 104).

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Conclusion
The paper examined the symbolism of MA-KA, following current research
paradigms in phonemic and graphemic symbolism of languages. Firstly, the graphemic
analysis showed the connection of Linear AB MA-KA syllables with their equivalent
archaic alphabet letters, to which traditional scholarship has never linked until today.
Secondly, it discussed MA-KA phonemes based on sound symbolism research and the
meanings of their derivative AG words. These analyses highlighted its strong association
with the worship of Mother Goddess and her round symbolism in reference to the cycles
of the sun and the moon around earth, which was depicted in all aspects of culture (art,
rituals, architecture, etc.). As a matter of fact, the MA-KA symbols are viewed within a
cultural continuum (from Minoan to archaic Greek periods), contrary to the traditionally
isolated study of scripts, especially because Greek developed and used symbols that need
to be compared and examined in more detail. For example, the Cypriot syllabary that was
used in parallel to the alphabet for centuries, is never compared with the Linear AB scripts
and the alphabets in the historic continuum.
MA-KA was the focus of an overall cultural/ritualistic behaviour, in which the two
symbols were used in symbolic activities (e.g. Rome’s foundation ritual), and in symbolic
objects (the bull rhytons with the cross, idols with raised hands, pottery decorations, etc.),
due to which they retained their specific properties in the words they produced. In fact,
such properties also explain their modern forms of M, such as the head of the cat (in
particular, its ears), and the Milky Way as the cosmic river, the snake. Likewise, modern
C, K, X, and Q are shown to originate from KA.
This MA-KA symbolism is supported by a wide spectrum of disciplines such as
archaeology, sound symbolism research, archaeoastronomy, comparative linguistics and
etymology. Therefore, their meanings coming from non Indo-European, indigenous
languages suggest its use as a historical marker (cf. URBAN, 2009), expressing common
concepts that ancient iconography and sound symbolism research indicate to map to real-
world round referents (the sun, the moon, the galaxy’s centre, the vulva, the head, etc.).
The phonological equation between the /a/ and the consonants /m/ and /k/ (through
μαῖα - γαῖα - αἶα) calls for further researching such phenomena across non-cognate
language families. This relationship is even more interesting considering the angularity
of alpha and the association of /k/ with angularity. This latter is latent and inclusive in the
form of KA, demonstrating its symbolic bipolarity. Specifically, its two dimensional form

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represents the three-dimensional pyramid (e.g. the cone) and/or the cube (WEBER, 2002:
20). Hence, looking at a pyramid from far above, its conical top is a small cycle/dot, the
centre of the cross,41 and from under it, the circle its base.
The analysis also corroborates with previous research that the structure of words is
not arbitrary, although the passing of time fades the in-between-symbol relations. Some
remains still do exist, such as in myths, rituals, and symbolic iconography, analogical to
the graphemic forms, which under careful examination can highlight the symbolism of
historic orthography. Such analogies between i.e., myth, rituals and symbols also means
that the latter are the deities they represent (as the Mother Goddess), their myths and
rituals. This is the case for MA-KA.

Appendix: MA-KA words and their meanings

WORD MEANING
ὁ μάκαρ : blessed, happy; prop. epith. of the gods, as opp. mortal men
cf. μάκαιρα, of Persephone

μᾰκών < *μακάω; : bleat, of sheep; of a hunted fawn or hare; scream, shriek of a wounded horse,
cf. μηκάομαι stag, or boar; of a man (onomatopoeic word)

ἡ μᾰκών, μηκάς : the goat


Μάγης < * Μάγᾱς : Hesychius, μέγα = μαΐ. Ἰνδοί
cf. μέγας: great, long, big, far; the spiral Pythagorean cycle; the Great Year
circle

ἡ μάγα : the witch


ἡ μᾰγάς : bridge of the cithara
ἡ μά̆χη < μάχα- battle, combat, field of battle
cf. ἡ μάχαιρα: I. large knife or dirk, sacrificial knife; short sword, dagger;
shears or scissors. II. name of a precious stone. III. part of the liver.

41
The cross dividing the cycle in four quarters, represents the sides of the pyramid. In this case, the base is
square as well.

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

A circulação do conhecimento na Alexandria do século V: uma análise das


correspondências de Sinésio para Hipátia42

Camila Michele Wackerhage43


Dominique Santos44

Resumo: A partir da análise de algumas das epístolas que Sinésio, de Cirene, escreveu
para Hipátia, de Alexandria, este artigo aborda a produção e circulação do conhecimento
nesta cidade egípcia no século V. No total, foram sete cartas destinadas à Hipátia, destas,
apenas duas foram incluídas no escopo da análise. Por meio desta correspondência,
podemos compreender como era a relação entre as duas personagens, suas ligações
políticas e culturais, quais autores citavam, a constituição de diversas identidades
culturais na cidade de Alexandria, os aspectos religiosos que estavam ali presentes, e
como este contexto influenciou para que a cidade tivesse uma grande inclinação aos
estudos filosóficos gregos.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia, Alexandria, Hipátia, Sinésio.

Abstract: By analyzing some of the epistles of Synesius of Cyrene to Hypatia, of


Alexandria, this article addresses production and circulation of knowledge in this
Egyptian City in the fifth century. There were a total of seven letters written to Hypatia,
although, only two of them were included in the scope of analysis. By reading this
correspondence, we can comprehend how the relationship between the two characters
was, their political and cultural bonds, which authors they used to quote, the constitution
of various cultural identities in the city of Alexandria, the religious aspects that were
present there, and how this context had influenced the city so that it developed a great
inclination to Greek philosophical studies.
Keywords: Late Antiquity, Alexandria, Hypatia, Synesium

42
Artigo desenvolvido a partir da versão final de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao
Curso de História da Universidade Regional de Blumenau – FURB.
43
Graduada em História pela Universidade de Blumenau – FURB, Professora da Rede Municipal de Ensino
de São Bento do Sul e pesquisadora pelo Laboratório Blumenauense de Estudos Antigos e Medievais.
44
Professor titular de História Antiga e Medieval da Universidade de Blumenau- FURB e Coordenador do
Laboratório Blumenauense de Estudos Antigos e Medievais (www.furb.br/labeam) na mesma Instituição.

68
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

O termo “Antiguidade Tardia” surgiu a partir da necessidade de apontar e/ou


explicar as singularidades dos séculos que se suscederam à desagregação do Império
Romano do Ocidente, diferenciando o período tanto da Antiguidade quanto do Medievo,
reconhecendo suas características próprias. De maneira geral, podemos considerar que o
período se estende aproximadamente entre os anos 250 e 750 da Era Comum, de acordo
com terminologia adotada pelo Oxford Centre for Late Antiquity, localizando-se, então,
entre os anos finais do Império Romano Ocidental e ascensão do Reino Franco-
carolíngio. As personagens às quais nos referimos neste artigo, Sinésio de Cirene, e
Hipátia, de Alexandria, viveram no século V e estavam inseridas nesse processo de
transformações e continuidades entre a cultura clássica e a formação do Medievo.

Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, uma periodização é elaborada a


partir dos acontecimentos políticos, que se caracterizam por uma acentuada mobilidade e
produzem rupturas institucionais. Há que se mencionar também o cuidado ao tratar destes
períodos, pois a demarcação de uma ruptura histórica pode ser entendida como se a
civilização anterior sempre estivesse em declínio para que houvesse o surgimento de uma
nova era: da Antiguidade Tardia para Idade Média, da Idade Média para o Renascimento
etc. Com isto, durante muito tempo, a Idade Média fora considerada um retrocesso
cultural45. Ora, a constatação de um “fim no Mundo Antigo” foi de vital importância para
os historiadores do século XIX, pois suas explicações, em grande medida, estavam
baseadas em um "recuo" do Ocidente em termo globais, talvez porque estavam
relacionadas com questões do presente destes pesquisadores46.
Embora se trate de um período único e com características específicas, a
Antiguidade Tardia costuma ser apresentada como uma transição da Antiguidade à Idade
Média. O pesquisador inglês Peter Brown a considera um consolidador cultural, religioso,
político e econômico e defende que estes aspectos vão conformando no Medievo da
Europa Ocidental um reduto do período clássico que revela, em suas estruturas culturais,
aspectos helênicos, republicanos e imperiais de Roma.
Neste artigo, estudamos a correspondência entre duas personagens que viveram
neste período: Sinésio, de Cirene, que foi um filósofo neoplatônico e bispo de Ptolemaica,
na Cirenaica; e Hipátia, de Alexandria, a primeira mulher documentada como

45
AMARAL, Ronaldo. A Idade Média e suas controversas mensurações: tempo histórico, tempo
historiográfico, tempo arquétipo.. Fênix (UFU. Online) , v. 9, p. 01-12, 2012.
46
SARTIN, Gustavo: O surgimento do conceito de “Antiguidade Tardia” e a encruzilhada
historiografia atual. Revista Brethair Nº9,p 15-40, 2009.

69
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

matemática, que lecionou filosofia neoplatônica na Escola de Alexandria e também teve


estudos na área da Astronomia.
A adequada compreensão da correspondência trocada por eles em Alexandria
requer que não sejam recortadas do meio histórico em que estas cartas foram concebidas,
visto que são frutos da produção que o contexto no qual as personagens em questão
vivenciaram estavam inseridas. Dessa maneira, podemos identificar em seu conteúdo,
descrito de forma visível ou subliminar, inúmeras questões, como, por exemplo, a
formação do conhecimento e a produção de redes de sociabilidade através delas; as
nuances culturais que envolveram a cidade de Alexandria, dentre outras coisas. Ou seja,
as cartas tinham um papel social na Antiguidade Tardia.
Sinésio, por exemplo, não as escrevia apenas para Hipátia. Sua extensa gama de
contatos sociais resultou em uma diversidade de escritos, sendo neles abordados assuntos
do quotidiano da personagem e também sua relação com a família, afinidades de amor e
ódio em relação à cidade de Alexandria, relatos de experimentos e assuntos pertinentes
ao conhecimento filosófico etc. Pelo fato de Sinésio constantemente trocar
correspondências com outros filósofos, podemos notar, por intermédio de seus escritos,
que debates ocorriam também por esta via naquele período. As cartas podem nos auxiliar,
então, a compreender como circulavam as principais polêmicas das mais variadas áreas
do conhecimento, como a Filosofia, Matemática e Astronomia.
Em decorrência dos problemas de tradução a serem enfrentados, da riqueza de
temáticas que perpassam a escrita do autor tardo-antigo e, ainda, pelas características e
delimitação de páginas de um artigo desta natureza optamos por abordar apenas dois, de
um total de sete, fragmentos que possuímos das epístolas que Sinésio enviou para Hipátia.
Apesar desta limitação, recorrendo a este material será possível compreender um pouco
de que forma estas cartas contribuíram para a produção e circulação do conhecimento no
período. Para isso, dividimos o texto em três tópicos, contendo, respectivamente: as
pluralidades culturais perceptíveis no processo de formação da cidade de Alexandria;
algumas considerações sobre as personagens estudadas; e, por fim, a análise das
correspondências trocadas entre os dois filósofos tardo-antigos.

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

1. Pluralidades culturais: formação da cidade de Alexandria

Alexandria é uma cidade usualmente lembrada pela figura de Alexandre, o


Grande, e, principalmente, por ter sido sede de uma das mais famosas bibliotecas do
mundo: a Biblioteca de Alexandria. A associação com o imperador macedônico não
ocorre apenas por se tratar de uma região conquistada por ele, mas, sobretudo, devido às
transformações culturais e políticas que se sucederam após este episódio. Por causa destes
aspectos, Alexandria se tornou uma importante cidade na Antiguidade.
Na Historiografia tradicional, por vezes, costuma-se relacionar Alexandria à
cultura helênica ou, então, a uma “extensão” do helenismo no Egito. Autores como:
Arnaldo Momigliano, Arnold J. Toynbee, Martin Goodman e Alan K. Bowman são
defensores conhecidos desta associação. Pensar Alexandria nestes termos não é de todo
equivocado, afinal, a cidade teve seus reflexos helênicos, todavia, a cidade também tem
sua parcela de história romana e, ainda, não podemos reduzir todo um sistema de
dinâmicas interculturais e um ambiente cosmopolita a estas duas esferas apenas. Da
mesma forma, também não podemos criar uma visão romantizada da cidade, de que ela
represente o “ápice” da cultura greco-romana no Mediterrâneo. Embora fosse uma das
principais cidades da Antiguidade, não era a mais importante.
Alexandre, o Grande, fundou várias cidades numa grande região do mundo que
chamamos de Oriente, dando-lhes seu nome. Não havia, portanto, apenas uma
Alexandria, mas vários lugares com este nome, tais como: Alexandrópoles, na Grécia;
Alexandria Hereion, no Oriente Médio; Alexandria Escate, na Ásia Central etc. A
Alexandria que nos interessa fica próxima ao delta do Rio Nilo, no Egito, foi fundada no
ano de 331 a.C., e tornou-se uma das principais edificações atribuídas a Alexandre no
Mediterrâneo. Ela foi coligada por Otávio Augusto, vindo a ser a capital da província
romana do Egito. Continha uma das maiores populações e extensões de terra e era
considerada a segunda maior capital do Mundo Antigo. Durante o antigo reinado egípcio,
a cidade já obtinha o título de capital e era uma das principais fornecedoras de trigo para
Roma47.
A configuração geográfica proporcionou, assim, que a cidade abrigasse um grande
fluxo no centro portuário, produzindo grãos no delta e no vale do Rio Nilo. Essa região
era composta por duas faixas estreitas de terras banhadas pelo rio Nilo, e estendia-se até

47
CLÍMACO, J.C. A Alexandria antiga refletida pelo olhar romano. Romanitas- Revista de Estudos
Grecolativnos, V. 1, p. 148-169, 2013.

71
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

a altura da primeira catarata, próxima da região da Núbia 48. A importância de sua


produção agrícola contribuiu para o contato comercial com as demais regiões do chamado
“Oriente Próximo”, a exemplo disto, temos as embarcações de casco profundo, que, já na
metade do terceiro milênio, navegavam por entre as faixas litorâneas do Egito. Tal
localização estratégica também contribuiu para a grande troca cultural entre os povos do
mediterrâneo e os egípcios, principalmente a cidade de Alexandria, já que era uma das
maiores cidades portuárias do Egito49.
Com o crescimento de Alexandria, alguns segmentos sociais começavam também
a se destacar e a elite de origem grega, naquele momento, dispunha de privilégios.
Segundo Joana Clímaco, com o aceite do poder romano na cidade, seus novos líderes
também trouxeram consigo algumas novidades das quais os alexandrinos não estavam
habituados. Uma das principais mudanças ocorreu nos setores administrativo e
burocrático da cidade. Dentre as resoluções efetivadas pela nova administração, por
exemplo, foram destinadas novas categorias e definições de status para os cidadãos
alexandrinos. Uma alteração muito importante foi a cobrança de impostos e a cidadania.
Eram isentos do pagamento aqueles que provassem sua cidadania, mas, para obtê-la, era
necessário provar sua ascendência helênica materna e paterna. As diferenças étnicas
foram acentuando-se de tal forma que criaram barreiras na convivência diária deste grupo
e a taxação de impostos contribuiu para que elas ficassem em evidência; os egípcios foram
sujeitos às maiores cobranças de impostos, mas, ao mesmo tempo em que pagavam mais,
eram o segmento com menos privilégios. Os conflitos sociais passaram, então, a ser
atrelados à questão da identidade cultural. Alexandria conformava, portanto, um cenário
complexo. Desde a chegada daquele que é considerado seu fundador, então, muitas
transformações tiveram lugar e a cidade jamais deixou de se modificar, gerando novas
perspectivas e interesses, tanto políticos quanto identitários.
Cleómenes organizou e estabeleceu um formato de cidade com aberturas de ruas
e muros, uma das principais características arquitetônicas alexandrinas, contudo, ele não
pôde mensurar a dimensão e popularidade que a cidade alcançaria posteriormente, como
afirma Peter Green.50 Assim sendo, as grandes construções da cidade, como a Biblioteca

48
FIGUEIREDO, D. A atuação político-religiosa do imperador Teodósio II na controvérsia entre
Cirilo de Alexandria e Nestório de Constantinopla (428-450 d.C.) [Dissertação]. São Paulo (SP):
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; 2012.
49
HARRIS, W. V. O Mediterrâneo e a História Antiga. Tradução: ZANON, C.A,2011
50
PETER, Green. Alexander’s Alexadnria. In: Mark Greenberg, Kenneth Hamma, Benedicte Gilman e
Nancy Moore (eds). Alexandria and Alexandrinism: Papers Delivered at a Symposium Organized by
Museum April 22-25, 1993. Malibu, California: The J. Paul Getty Museum, 1996. P. 10.

72
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

de Alexandria e o Museu, geraram um impacto para o Egito e o Mediterrâneo,


aumentando o fluxo de diferentes povos na região. Com isso, podemos afirmar que a
cidade foi caracterizada pela diversidade cultural com a chegada de outros povos, cada
um trazendo para a região sua cultura, religião, idioma e valores morais 51.
Boa parte da historiografia que estuda Alexandria confere uma grande
representatividade ao conceito de “helenização”, contudo, sabemos que a cidade não era
composta apenas pela cultura helênica, conforme salientado, assim, também é importante
uma reflexão sobre o conceito de romanização, já que a cidade passou por administração
romana52.
Em seu processo histórico, a palavra aparece no final do século XIX, embasada
no positivismo e nas concepções eurocêntricas. Os romanos representariam uma
“civilização avançada”. Os que estavam à parte disto eram considerados “bárbaros”. Já
com a chegada do século XX e a Antropologia Cultural, principalmente nos Estados
Unidos, este significado foi repensado, pois esta forma de ver a cultura romana como
“superior” às demais criava dicotomias culturais não mais aceitáveis 53.
Atualmente, a “romanização” de outra maneira: trata-se de uma definição de
relacionamento entre os padrões culturais romanos e a diversidade provincial. Ou seja,
“embora haja alguns elementos da cultura romana, é o helenismo, a cultura grega e
helenística, portanto mesclada com a nativa faraônica, que serão os grandes
representantes da esfera da cultura em Alexandria.”54.
Todavia, isto sugere que não há uma “aculturação” do outro (ou seja, não são
encontrados dentro do Egito Romano somente aspectos helênicos, “puros”), e sim uma
inserção de elementos culturais adjacentes aos povos que ali habitavam. Por exemplo, o
processo helenístico já estava presente antes mesmo da chegada de Alexandre. É o caso
que Lobianco, a partir de iconografias mumismáticas, aponta. Segundo ele, elementos
culturais são ressignificados. O deus faraônico Amon, por exemplo, era representado por
chifres de carneiros, além de apresentar indumentária faraônica. Na mesma intensidade
em que estes elementos egípcios aparecem, ícones helênicos e romanos estão presentes,

51
CLÍMACO, op. cit., p. 18
52
Ibidem, pg 20.
53
Ibidem, pg 4.
54
LOBIANCO, L. E. . Alexandria no Egito: a luz do helenismo no antigo Oriente Próximo. In: Clinio
Amaral; José D' Assunção Barros; Marcelo Berriel; Marcos Caldas; Miriam Coser; Luis Eduardo Lobianco;
Renata Rozental Sancovsky; Rosana Marins dos Santos Silva. (Org.). Representações, Poder e Práticas
Discursivas. 1ed.Rio de Janeiro: , 2010, v. 1, p. 1-.

73
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

uma manifestação cultural que pode ser encontrada principalmente no Vale do Delta do
Nilo 55. Conforme aponta Marjorie Venit:

Esta questão também pode ser pensada no que diz respeito à cidadania alexandrina,
de como a influência helênica e romana eram importantes para este momento, o que
refletiu na formação de identidade social da cidade. Marjorie Venit conclui que as
influências dessas culturas na estruturação da cidade foram tão significativas que,
até meados do século III, os cidadãos de Alexandria eram os únicos habitantes do
Egito que poderiam reivindicar a cidadania romana. Ela ainda ressalta que há
questões em aberto referente à cidadania, principalmente no que diz respeito aos
judeus que ali viviam. Há indícios, por escrito, de que os povos judaicos que viviam
em Alexandria poderiam ter acesso à educação do Ginásio, mas se eles poderiam ou
não ter sua cidadania romana ainda é uma questão indefinida 56.

Devido a esta grande diversidade multicultural presente em Alexandria, este fluxo


de cultura é refletido também na religião dos alexandrinos. A mesma Marjorie Venit
adverte que seria impossível dizer com números precisos a quantidade de templos que
existiam na cidade, mas, aproximadamente, ela contava com 2.478 e era bastante
receptível no que diz respeito à religião: havia templos e santuários gregos, lugares de
adorações de judeus e cristãos, e o templo maior para os egípcios, o de Isis 57.
Estas identidades, ainda em formação e envolvidas em diversos embates, tiveram bastante
influência em vários âmbitos na cidade de Alexandria, desde a representação de cidadania
até aspectos religiosos, já que uma cidade cosmopolita como tal carregava sobre si uma
imensa base cultural e uma formação intelectual acentuada. Isso nos faz pensar que estas
estruturações permearam durante séculos e tiveram bastante reflexo na formação das duas
personagens estudadas aqui, Sinésio e Hipátia, que tiveram contatos, sobretudo com a
cultura helênica e romana e viveram neste meio social, um mosaico de múltiplas culturas.

2. Sinésio e Hipátia: um breve retrato das personagens

2.1 Hipátia, de Alexandria

55
Ibidem, pg 7.
56
VENIT, S. Marjorie. ALEXANDRIA In: RIGGS, Christina. The Oxford handbook of Roman Egypt.
Oxford: Oxford University, 2012. Pg 105-121.
57
Ibidem, pg 111.

74
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A crescente demanda por estudos de gênero no Brasil vem possibilitando que


novas pesquisas sejam feitas e, dentro destas, novos recortes, abordagens e temáticas
sejam propostos. No entanto, é preciso ter cuidado ao considerar estas questões
específicas oriundas das teorias de gênero, que são contemporâneas, quando o objetivo é
analisar problemáticas da Antiguidade.
Boa parte das narrativas sobre Hipátia é envolta em exageros e glorificação da
personagem; uma representação romantizada. Hipátia é constantemente mencionada e
pesquisada em várias áreas do conhecimento: História, Literatura, mas, principalmente,
Filosofia e Matemática, muitas vezes acompanhada de anacronismos. Ela também ganhou
destaque em uma produção cinematográfica, “Ágora” (2009), dirigida por Alejandro
Amenábar.
Além disso, diversas autoras feministas também escreveram livros levantando
hipóteses sobre a sexualidade de Hipátia, uma tentativa muito mais de resolver questões
contemporâneas do que de compreender a personagem em seu contexto histórico, a partir
de documentos do período e recorrendo à metodologia própria da Ciência da História58.
Ou seja, Hipátia de Alexandria, sem dúvida, é uma personagem histórica que
permeia o imaginário social, assim como Joana D’arc, Cleopatra e outras mulheres, que,
embora sejam de épocas históricas diferenciadas, recebem notoriedade no pensamento
coletivo no passado e na contemporaneidade. Como é possível perceber, diversos grupos
tentam se apropriar, recriar, adaptar, reutilizar, ressignificar a imagem de Hipátia para
audiências distintas e para atender as mais diversas paixões, por isso, é necessário abordá-
la a partir de um controle metodológico e um rigor historiográfico, tentando evitar estas
inadequações.
Todos os vestígios ou escritos de Hipátia foram destruídos. Assim, o que se sabe
dela pode ser localizado em três fragmentos documentais que foram escritos alguns
séculos após sua morte, sendo eles: uma passagem da "História Eclesiástica", de Sócrates
Escolástico, datada do século V; um trecho das "Crônicas", escritas por João de Nikiu,
no século VII; e um trecho da enciclopédia bizantina do século X nomeada como “Suda”.

58
CARD, Claudia. Adventures in Lesbian Philosophy: A Hypatia Book. Bloomington: Indiana
University Press, 1994. 288 p. ALLEN, Louise. The Bisexual Imaginary: Representation, Identity and
Desire. London: Bi Academic Intervention, 1997. 217 p.
ALLEN, Jeffner et al (Org.). Lesbian Philosophies and Cultures. New York: State University Of New
York Press, 1990. 411 p.

75
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

Ao que tudo indica, Sócrates, conhecido como Escolástico, foi um historiador


grego cristão que viveu no século V. Escreveu sua História Eclesiástica, então, pouco
depois da morte Hipátia. No volume 67, nas colunas 767-770 da obra, encontram-se as
referências diretas à filósofa de Alexandria, dentre as quais, a morte da filósofa é uma
parte convidativa da narrativa. Diferente das obras posteriores, como o Suda, por
exemplo, Sócrates Escolástico apresenta uma Hipátia virgem. Apesar de não ser
contemporâneo da pensadora alexandrina, trata-se de um documento de especial
relevância, pois, mesmo sendo Sócrates um cristão, ele incluiu dentro de seu relato uma
crítica ao assassinato de Hipátia, segundo ele, operacionalizado pela Igreja. Em sua
crítica, o autor deste documento acusa o bispo de Alexandria, Cirilo, conhecido
posteriormente como São Cirilo de Alexandria, de uma possível cumplicidade na morte
de Hipátia ao cooperar com outras personagens da Igreja, fato que teria gerado bastante
controvérsia para época.
O segundo documento mais utilizado para narrar a vida de Hipátia é a obra de
João de Nikiu, um bispo egípcio que viveu no século VII. Ele escreveu uma crônica dos
acontecimentos relacionados à filósofa, provavelmente em grego, embora, possivelmente,
com inserções em copta, língua falada no Egito daquele período. A obra foi submetida à
tradução para o árabe e depois para o etíope59.
A terceira, e última, obra sobre Hipátia é o Suda, enciclopédia bizantina do século
X. Suda é uma variante da palavra grega para "fortaleza", podendo expressar também um
"reduto de conhecimento"60. Mesmo o Suda sendo anterior à invenção da impressa, ele é
um manuscrito do qual temos várias impressões. Segundo Michael Deakin, maior
autoridade sobre este assunto, a edição de Ada Adler, chamada Suídeos Léxico, dividida
em cinco volumes, é a mais completa, considerada a standard para os estudos
relacionados à temática61. O Lexicon Suda, ou simplesmente Suda, está organizado em
ordem alfabética e inclui um trecho sobre Hipátia.
Por fim, um outro aspecto interessante sobre a personagem é seu pai Teão de
Alexandria, chefe do Museu desta cidade, pertencente à tradição matemática da Academia
de Atenas representada por Eudoxo de Cnido. Por meio desta ligação do pai, Hipátia veio

59
Utilizado uma tradução em língua inglesa produzida em 1993, a partir de uma reedição de 1916RH
Charles, The Chronicle of John (c.690A.D.) bispo copta de Nikiu (Amsterdam: APA-Philo, sd [1981?];
reedição de um original de 1916).
60
DEAKIN, Michael A.b.. The Primary Sources for the Life and Work of Hypatia of Alexandria. 1998.
Disponível em: <http://www.physics.utah.edu/~jui/3375/Class Materials Files/y2007m08d22/hypatia-
primary-sources.html>. Acesso em: 28 out. 2014
61
Ibidem.

76
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a fazer parte da escola intelectual do pensador Plotino, seu mestre, na qual foi professora
de Sinésio 62. Não podemos negar, então, que Hipátia, sendo a primeira mulher com
registros documentais a ser matemática, astrônoma e filósofa, ganha grande destaque por
ter adentrado espaços que culturalmente eram frequentados por homens.

2.2 Sinésio, de Cirene

Sinésio, de Cirene (373 d.C. - 414 d.C.), assim como Hipátia, também foi um filósofo
neoplatônico e sofista, além de bispo de Ptolemaica na Cirenaica. Era membro de uma
família bem conhecida e rica de Cirene, que alegou descendência dos fundadores da
cidade, os membros da casa real espartana. A riqueza de sua família permitiu que ele e
seu irmão Euoptius fossem viajar para a Grécia. Ele estudou em Alexandria, após 393,
onde conheceu Hipátia, e esta lhe apresentou o neoplatonismo 63.

Sinésio nasceu em uma família de longa tradição e rica na cidade de Cirene, que
ficava na província de Pentápolis. Seus escritos sugerem um envolvimento ativo e longo
acerca dos assuntos locais, tanto de Cirenaica quanto de Alexandria. Ele interrompeu seus
estudos filosóficos por três anos para ir até a embaixada de Constantinopla em busca de
assegurar uma redução de impostos para a cidade de Pentápolis. Ao que tudo indica, neste
momento, Sinésio estaria fixado na embaixada e durante este período escreveu duas
obras: o De Regno e um ensaio sobre a realeza endereçado ao imperador, uma alegoria
política na forma do mito egípcio de Typhos e Osíris. Alguns acreditam que Sinésio era
um pagão e somente após o momento em que se tornou representante na embaixada foi
que se converteu ao cristianismo. Esta interpretação se apoia no fato de que boa parte da
aristocracia local de Cirene era pagã e que um dos méritos de Sinésio estava em conciliar
o neoplatonismo com o cristianismo 64.

Fora oferecido no ano de 410 para Sinésio o cargo de bispo na cidade de Ptolemaica.
No entanto, somente após pensar por seis meses a respeito, o aceitou. Sinésio deveria
encarregar-se de cuidar das partes administrativas da cidade, apesar de ter como interesse
maior passar seus dias estudando Filosofia. Porém, as obrigações com o novo cargo de

62
DZIELSKA, op. cit., p 123.
63
DZIELSKA, op. cit., p 143.
64
Cameron, Alan, and Jacqueline Long. Barbarians and Politics at the Court of
Arcadius. Berkeley:University of California Press, c1993 1993.

77
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bispo o impediam. Uma de suas funções era combater a corrupção de governadores, a


heresia e a barbárie. E, com isto, perdeu muitos amigos e, assim como aponta uma de suas
cartas, que veremos mais adiante, morreu, por volta do ano de 412, depressivo e
solitário 65. Há muitas dúvidas quanto à conversão de Sinésio para o cristianismo, mas
acredita-se que uma das principais causas poderia ser seus estudos filosóficos.

As leituras e estudos de Sinésio sobre o neoplatonismo foram algumas das


principais evidências de sua discordância com o cristianismo fundamental, mas, ao
mesmo tempo em que sua paixão por filosofia foi uma barreira para o cristianismo, em
alguns aspectos, foi a partir desta que encontrou-se com a fé cristã. Ao escrever uma carta
para seu irmão, ele diz estar triste por ter que assumir o cargo de bispo, mas em seus
sonhos Deus teria lhe dito para que o aceitasse, e assim ele fez sua vontade. Fica claro
aqui que, mesmo não sendo batizado, Sinésio tinha uma forma alternativa e pessoal de
viver seu cristianismo, o que não o torna menos cristão aos olhos dos demais; caso assim
fosse não seria convidado para assumir o cargo de bispo 66.
Ser um bispo acarretava privilégios e obrigações: o bispado de Alexandria, junto
ao de Constantinopla e Antioquia, teve grande destaque no período da formação do
cristianismo. Eram alguns dos privilégios concedidos aos bispos o poder de escolha de
seus próprios líderes e a obtenção de recursos destinados às autoridades civis e militares 67.
Apesar de serem autoridades escolhidas localmente, mas sem intervenção do
poder local, rejeitavam a intervenção do poder central sobre seus assuntos e, por vezes,
contrariavam ordens de Imperadores, podendo ser mais respeitados que os próprios. Isto
se devia, em grande parte, à forma como cativavam a população local, por estarem
adjuntos às comunidades religiosas não cristãs, e, por esse motivo, também lhes era
acarretada a função de guardiões da ordem e segurança. Com isso, por atuarem como tais
nas mais diversas comunidades religiosas, assumiam por vezes uma postura laica 68. Isto
pode evidenciar a flexibilidade que o cristianismo teve com Sinésio, pois mesmo não
sendo batizado, assumiu uma posição de grande prestígio para época, sem aparentes
problemas com o seu passado pagão.

65
Ibidem, pg. 20.
66
Ibidem, pg. 23.
67
LOSEKANN, Cydne Rosa Lopes. As controvérsias entre cristianismo e paganismo a partir das
crônicas da destruição do Serapeum de Alexandria (391d.C) nas obras de Rufino de Auileia, Sócrates
de Constantinopla, Teodoro de Ciro e Sozomeno. 2012. 34 f. Monografia (Especialização) - Curso de
História, Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Cap.
2.
68
Ibidem, pg, 18.

78
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Ao pensarmos numa história do cristianismo, frequentemente a atrelamos à


história do Império Romano, desde sua formação, não apenas pela alegação do
nascimento de Cristo ser próximo a este período histórico, mas, sobretudo, por conta dos
escritos que fundamentaram o pensamento cristão, sua composição hierárquica, o arrojo
de suas comunidades cristãs que cresceram sob o olhar de imperadores e a composição
filosófica (gnóstica) que se fazia presente também neste momento. O avanço do
cristianismo se deu durante a Antiguidade Tardia, no governo de Constantino, e a religião
cristã criou diálogos com a filosofia antiga: ela colocava-se como uma forma de salvação,
sendo pautada pela revelação, e a filosofia entrava como forma de elucidação e apreensão
racional da realidade.
Um dos fenômenos importantes do período foi o que a historiografia se acostumou
a chamar de Patrística69, um movimento exercido por filósofos cristãos para legitimar a
religião e afastá-la das práticas “proibidas”. Para a formatação desta filosofia cristã foram
necessárias algumas mudanças. Primeiramente, a revelação que se trata da premissa do
exercício racional, pois, a linguagem desta filosofia era composta pelas Escrituras que
foram retiradas da filosofia antiga sendo base para a inteligibilidade e racionalidade do
cristianismo 70. A elite romana ainda era pagã e, com isto, os escritos cristãos passaram a
imagem de ser a única “verdade filosófica” da época, sugerindo, assim, que seus
integrantes, além de filósofos, tinham grande conhecimento da fé, usando isso para atrair
a elite romana à conversão por uma percepção de autoridade legítima.
Durante a Antiguidade Tardia, devido ao grande número, padres e bispos
ganharam notoriedade junto à população por conta dos sermões que apresentavam.
Ganhavam também destaque devido a grande prática da retórica e cativação pela
habilidade oratória, pois a eloquência significava que tal membro possuía um papel de
liderança no clero, então o exercício de uma boa eloquência significava um status dentro
da hierarquia da Igreja. Tais bispos e padres passaram a ter maior espaço para pregação
em público após a conversão de Constantino, e o processo de cristianização se deu

69
Patrística:Termo que designa, de forma genérica, a filosofia cristã nos primeiros séculos logo após o seu
surgimento, ou seja, a filosofia dos Padres da Igreja, da qual se originará, mais tarde, a escolástica. A
patrística surge quando o cristianismo se difunde e consolida como religião de importância social e política,
e a Igreja se firma como instituição, formando-se então a base filosófica da doutrina cristã, especialmente
na medida em que esta se opõe ao paganismo e às heresias que ameaçavam sua própria unidade interna.
Predominam assim os textos apologéticos, em defesa do cristianismo. A patrística representa a síntese da
filosofia grega à escola de Alexandria, que revela um pensamento influenciado pelo espiritualismo
neoplatônico e pela doutrina ética do estoicismo. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Hilton: Dicionário
Básico de Filosofia 4.ed. – Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar.
70
PINHEIRO, R. A. B. - Cristianismos e Ecclesia na passagem da Antiguidade para a Idade Média.
História e Cultura, v. 2, p. 268-284, 2013.

79
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principalmente por meio da oratória, uma ferramenta essencial para o avanço de tal
doutrina dentro do mundo tardo antigo71.
Apesar do avanço do cristianismo no período, existem muitos indícios de que
Sinésio, mesmo pertencendo a um cargo do clero, não seguia de maneira fundamental os
dogmas de sua religião, o que é corroborado por sua aproximação a Hipátia. Isto é, apesar
de viverem em um contexto histórico conturbado, no qual existia uma grande influência
do cristianismo em todos os âmbitos, desde socioculturais a políticos, alguns filósofos
não concordavam em totalidade com o dogma proposto e, por vezes, não o aceitavam,
relativizando-o. Este pode ser um indicativo importante para nos auxiliar na análise das
correspondências de Sinésio com Hipátia.
Tanto Hipátia de Alexandria quanto Sinésio de Cirene tiveram uma profunda
ligação com os saberes, com a filosofia e as religiões do período em que viveram (século
V). Assim, apesar da limitação documental, principalmente no que diz respeito à Hipátia,
não podemos deixar de estudar e repensar a participação destas personagens nas
principais querelas de seu tempo, algo que é importante não somente para a História
Antiga, mas também para elaboração de uma história da Igreja no período e a confecção
de uma literatura cristã de cunho filosófico, uma história da filosofia, da matemática, da
astronomia e da própria ideia de transformação científica.

3. Análise Documental: a Produção e Circulação do conhecimento na Alexandria do


século V

O gênero epistolar possui características e códigos específicos que o distinguem


das cartas. Para que algum documento seja denominado como “carta”, por exemplo, deve
ser endereçado a um destinatário. Assim, o destinatário ocupa na carta o primeiro plano,
diferente dos demais escritos.

71
MAXWELL, Jaclyn L. - Christianization and Communication in Late Antiguity .New
York/Cambridge Universtiy Press, 2006.

80
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Em relação às cartas da Antiguidade, muitos pesquisadores do tema, como Janet Gurkin


Altman, Jennifer Ebbeler e a brasileira Ana Teresa Marques Gonçalves afirmam tratar-se
dealgo pessoal e dirigido a uma pessoa, referente a um problema ou situação específica.
Não haveria necessidade de ser feita uma leitura mais extensa da correspondência, a não
ser por aqueles a quem a carta estava endereçada. Já as epístolas, ao contrário, eram
dispositivos literários com uma audiência maior de leitores em mente. Dessa forma, elas
eram escritas sob o pretexto de ser uma carta pessoal, mas com a finalidade expressa de
ser publicada72. Por conta de discussões como esta, é preciso mencionar alguns dos
debates que cercam o gênero epistolar na Antiguidade.
Um dos pontos centrais é a relação entre as noções de público e privado. Assim,
recorremos tanto aos estudos clássicos sobre o tema, como os de Gustav Adolf
Deissmann, que foi quem estabeleceu a distinção entre “cartas genuínas” e “epístolas” 73,
por exemplo, ouaqueles de autores mais contemporâneos, como Claudio Moreschini e
Erico Norelli. Enquanto em Deissmann a divisão entre “cartas” e “epístolas” parece muito
rígida e estática, não considerando, por exemplo, os diálogos com outros documentos
antigos, na obra de Moreschini e Norelli ela já é mais maleável, o que possibilita uma
maior flexibilidade e transição entre a esfera pública e privada, algo que percebemos nos
escritos de Sinésio para Hipátia.

3.1 Tipologia das fontes

As fontes para a realização deste artigo estão todas traduzidas do grego para o
inglês no livius.org. Trata-se de um site sobre História Antiga, escrito e mantido, desde
1996, pelo historiador holandês Jona Lendering, que fez a tradução do grego para o inglês
das cartas a partir de The Letters of Synesius of Cyrene, a versão standard elaborada por
Augustine Fitzgerald 74.
O URL que nos dirige para o Livius atual tem sido usado desde 2000, o site não
tem fins lucrativos, com algumas ressalvas, e permite a utilização de fotos, textos, desde

72
SOARES, C. S. - O Gênero Epistolar na Antiguidade: a importância das Cartas de Cipriano para
a História do Cristianismo Norte Africano (século III d.C.). História e Cultura, v. 2, p. 199-215, 2014.
73
Ibidem, pág. 205.
74
Augustine Fitzgerald. New York: Oxford University Press, American Branch, 1926. Seu trabalho foi
muito importante, através da tradução das cartas de Sinésio, Fitzgerald colocou o mundo de língua inglesa
em seu débito. Seu trabalho é tido como uma das principais referências no que diz respeito às cartas de
Sinésio. Os interessados em mais detalhes sobre a produção intelectual de Fitzgeraldo sobre Sinésio pode
recorrer a obra de Charles Miley. Cf.: MILEY, Charles N.. The Letters of Synesius of Cyrene by Augustine
Fitzgerald. The Classical Journal. Canadá, p. 228-230. dez. 1996.

81
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que contenha as devidas referências e não objetive o lucro. O site apresenta vários
documentos, desde a Mesopotâmia, Grécia, até o Egito e também uma quantidade
razoável de iconografias e mapas. A aba na qual encontram-se disponíveis as cartas de
Sinésio é intitulada de Synesius' Correspondences e foi anexada no ano de 2007, sua
última revisão ocorreu em outubro do mesmo ano. Estas cartas estão numeradas em
ordem cronológica, seguindo uma ordem de datação, contudo, não seguimos esta na
análise das cartas, pois escolhemos trabalhar por temáticas.
A página destinada a Sinésio reúne no total 159 escritos. Dentre as personagens
para as quais ele escrevia, além de Hipátia, encontram-se Herculiano, Cirilo, Diógenes,
João I, Pedro, entre outros, apontando, assim, que havia um extenso debate sobre filosofia
naquele momento e que ele conversava com vários filósofos a respeito destas temáticas
relacionadas com produção e a circulação do conhecimento na Alexandria do século V.
Sinésio escreveu ao todo sete cartas para Hipátia, assim, a escolha desta documentação
para o estudo realizado nesta pesquisa é devido ao fato de serem fontes contemporâneas
ao período da vida da filósofa e matemática de Alexandria. Com exceção destas cartas
não há nenhum outro registro contemporâneo sobre Hipátia, nem mesmo de seus outros
alunos, como temos insistido. Sendo assim, as sete cartas endereçadas a ela são os únicos
documentos do século V sobre a personagem.
No que diz respeito à História Antiga e Medieval, o uso de cartas e epístolas
não é uma "novidade", até no meio bibliográfico deste período a presença destes
mecanismos é fundamental, um auxilio documental sobre determinada personagem.
Sendo estas correspondências parte de um determinado contexto histórico, elas estão
inseridas em seus círculos, culturais, sociais e mesmo emocionais. Ao estudar a temática
e ter contato com essa intimidade das correspondências trocadas entre esta ou aquela
personagem, o historiador não deve construir uma visão romântica ou uma história dual
e assinalada de estereótipos, por isso estes cuidados metodológicos75.
A epistolografia na Antiguidade Tardia era uma arte exercida por uma pequena
parcela de letrados, nestes escritos encontram-se elementos da retórica para incluir e
transmitir mensagens e informações. Sendo assim, as cartas tornaram-se objetos

75
ROSENMERY, Patrícia A. et al. EPISTOLARY FORMS: LETTERS IN NARRATIVE, LETTERS AS
NARRATIVE: Epistolary Writing in Extended Narratives: Letters in Euripides, Herodotus, Xenophon. In:
HODKINSON, Owen; ROSENMEYER, Patrícia A.; BRACKE, Evelien. Epistolary Narratives in Ancient
Greek Literature. Boston: Brill, 2013. Cap. 3. p. 39-54

82
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primordiais para circulação de notícias 76. Não se dispunha de meios de comunicação que
chegassem e atingissem a grande população, com isto, as cartas tornaram-se a primeira
manifestação de comunicação, embora fossem restritas a pequenos segmentos sociais
letrados, como as elites romanas e gregas, que contavam com escravos que cuidavam das
cartas, tal a importância que a produção das mesmas tinha nas sociedades antigas 77.
Acerca disto, Ana Teresa M. Gonçalves e Fabrício D. G. Di Mesquita, em seus estudos
sobre epístolas e cartas afirmam que:

O estudo da atividade epistolar engloba, no mundo antigo, os domínios


do que, no mundo moderno, convencionou-se denominar de esferas
pública e privada, pois cartas que inicialmente foram escritas para
amigos, discípulos, parentes em geral, acabaram recebendo um
tratamento posterior à sua escrita e sendo publicizadas, por meio de
cópias que eram remetidas a vários destinatários e/ou guardadas nas
bibliotecas, para acesso de toda população letrada. Tais documentos
revestem-se de um caráter histórico inegável, desde a própria
Antiguidade, pois vários historiadores antigos citam em suas obras
informações que teriam advindo de cartas consultadas por eles, que
estavam guardadas em locais de acesso público, ou se referem a
missivas importantes que teriam trocado com outros membros da elite
e, algumas vezes, com o próprio Imperador 78.

Desta forma, notamos que há uma imensa problemática, já que o que


caracterizamos como público e privado parece ser uma interpretação da
contemporaneidade, portanto, temos que ter consciência desta distinção ao analisarmos
os escritos de Sinésio para Hipátia. Estes escritos estão, em primeiro momento, em caráter
privado, mas não podemos saber se estas cartas estiveram ou não dispostas em alguma
Biblioteca para consulta, por exemplo, se houveram pessoas que nos séculos posteriores
as leram ou não, já que Sinésio não escrevia somente para Hipátia. Como já
mencionamos, ele possuía uma extensa lista de amigos filósofos e estes escritos, de certa
forma, continham conteúdos dos mais variados temas, abordando desde assuntos
pertinentes à cidade até a filosofia . Com isto, a regência de “cartas” e “epístolas” não
contemplam de toda forma as correspondências trocadas entre as personagens, motivo
pelo qual não negamos a existência dessas classificações, mas optamos por um termo

76
GONÇALVES, A. T. M. ; MESQUITA, F. D. G. di . Atividade Epistolar no Mundo Antigo: Relendo
as Cartas Consolatórias de Sêneca. História Revista (UFG. Impresso), v. 15, p. 31-54, 2010.
77
Ibidem, pág. 31.
78
Ibidem, pág. 33.

83
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mais flexível, considerando as dificuldades e poucas informações acerca dos


documentos.
Totalizando, então, sete cartas para Hipátia de Alexandria, seguem a numeração
e titulação aplicadas pelo Livius às cartas e utilizadas na pesquisa:

394:33: Em Louvor de Alexandre. (carta datada do ano de 394)


401:124: A Cidade em Tempo de Guerra. (carta datada do ano de 401)
402:15: Um Densímetro. (carta datada do ano de 402)
404:154: Em seus próprios escritos. (carta datada do ano de 404)
413:81: Morte de Filho de Sinésio; Uma Recomendação. (carta datada do ano de 413)
413:10: Perdendo Contato Com o Mundo Exterior. (carta datada do ano de 413)
413:16 A Despedida. (carta datada do ano de 413)

São vários os temas abordados por Sinésio em todas as cartas que escreve. As
correspondências enviadas por ele são complexas e, de um modo geral, falam bastante
para Hipátia de seu amor pela cidade, há muitas citações sobre literatura greco-romana,
faz referências à cultura helenística, cita um Alexandre, que possivelmente seria o
Imperador Alexandre, o Grande, comenta sobre as tormentas de uma possível guerra, e
em uma das cartas ele referencia o densímetro, um instrumento utilizado para medição de
líquidos.
Alguns destes temas, todavia, são muito importantes para este artigo, pois
envolvem a produção e a circulação do conhecimento na Alexandria do século V. Sinésio,
escreve, por exemplo, duas cartas sobre sua relação com a cidade de Alexandria e
relembra-a saudosamente. Outro tema importante são as inúmeras citações a outros
autores e obras, como a Ilíada e a Odisséia. A recorrência aos escritos de língua grega é
frequente, deixando claro, assim, a influência cultural helenística na obra de Sinésio. A
partir de agora, passamos a analisar estes dois fragmentos dascorrespondências entre
Sinésio e Hipátia, tentando perceber as intrínsecas relações entre ambos, do que estavam
falando, o que era debatido, quais influências de seu meio social e, principalmente, que
tipo de conhecimento circulava em Alexandria.

3.2 “De Sinésio para Hipátia”: análise Documental das cartas 401 e 402

84
Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

Por questões de delimitações, já apontadas, analisamos as cartas “A Cidade em


Tempo de Guerra” (401) e “Um Densímetro” (402). A razão pela escolha destes dois
fragmentos específicos se deve ao fato de que o primeiro contém um relato sobre questões
problemáticas dentro da Cidade de Alexandria e o segundo faz referência direta aos
experimentos ligados com a área de matemática, oferecendo, portanto, alguns indícios
dos debates que interessavam a estas personagens, os conflitos iminentes dentro de sua
região e o contexto que as cercavam.
Na carta número 124, intitulada Uma Cidade em Tempo de Guerra, datada do ano
de 401, podemos ler o seguinte:

[...] minha querida Hipátia. Estou cercado pelos sofrimentos da minha


cidade, e desgostoso com ela, para que eu veja diariamente as forças
inimigas, e os homens mortos como vítimas de um altar. Estou
respirando um ar contaminado pela decomposição de cadáveres. Eu
estou esperando para me submeter a um mesmo lugar que se abateu
sobre muitos outros, pois como pode um manter qualquer esperança,
quando o céu é obscurecido pela sombra de aves de rapina? No entanto,
mesmo nestas condições eu amo o país. Por que então eu sofro? Porque
eu sou um líbio, porque eu nasci aqui, e é aqui que eu vejo os túmulos
de honra dos meus ancestrais. Por minha conta, eu sozinho serei capaz
de me mudar para um lugar com vista para minha cidade79.

A cidade, como apontado no inicio, é sempre aclamada por sua grande diversidade
étnica e cultural. Na segunda linha do fragmento, Sinésio faz um lamento por estar
“desgostoso com ela”. Podemos, então, compreender essa lamúria com o fato de haver
conflitos identitários dentro da cidade, como, por exemplo, os egípcios estarem
socialmente abaixo dos descendentes de greco-romanos, um indicativo de que a cidade
estava passando por algum conflito possivelmente ligado à questão étnica-cultural. Em
todo caso, Sinésio tinha uma ligação muito profunda com a cidade, apontamento este fator
nas demais epístolas. Ao ganhar seu cargo de bispo, ele ficou encarregado de também
chefiar as fronteiras, ou seja, tornar a cidade segura e, para ele, um dos principais
“perigos” eram os “bárbaros”. Tal preocupação refletia-se, também, num confronto
pessoal, afinal, ele seria apontando como pagão e cristão, ao mesmo tempo que,
assumindo a chefia de bispo, Sinésio usufruiria de regalias. Parecia, portanto, haver um
dilema interno do autor com relação a sua postura ética dentro da Igreja Católica, já que
esta não aceitava muitas leituras filosóficas, inclusive o neoplatonismo, então apontado

79
SINÉSIO, Correspondências. Carta número 124:401: Uma Cidade em tempo de Guerra.

85
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como pagão. Em suma, a grande questão de Sinésio residia em apontar o outro como
bárbaro, enquanto ele mesmo poderia ser considerado um.
Podemos deduzir de todas essas tensões que, no ano de 401, a cidade estaria
passando por uma crise ou, até mesmo, uma possível invasão de outros povos. Na terceira
linha, Sinésio menciona os “homens mortos”, evidenciando talvez o avanço de uma
guerra. Outra possível interpretação seria o começo da perseguição da Igreja, pois, na
mesma linha terceira, ele utiliza a expressão “altar”, algo que remete a uma simbologia
religiosa. Na sequência, ele referencia a possibilidade de ter o mesmo destino que os
outros cadáveres, denotando que a perseguição poderia ser motivada pela questão tanto
de uma posição social dentro da cidade quanto religiosa, já que Sinésio, como bispo,
detinha privilégios dentro da Igreja, mas estudava os pagãos e bárbaros.
Outro fator importante era que, apesar de ter um cargo no clero, Sinésio não era
batizado, e suas divergências com a religião cristã talvez eram devidas a sua posição
filosófica. No século V, muitos bispos que não “agradavam” o clero passaram a ser
perseguidos, um exemplo disto é a medida de Cirilo de Alexandria, que fechou todos os
templos de Alexandria e passou a perseguir sacerdotes envolvidos em crimes de
corrupção80, os mesmos delitos que Sinésio estaria encarregado de punir. Podemos
sintetizar, então, seu conflito pessoal, nos seguintes termos: Sinésio deveria punir alguém
que estava corrompido pela leitura de determinados autores, embora ele mesmo não
seguisse todas as regras. Não há mais informações se uma medida como a tomada por
Cirilo também chegou à cidade de Cirene, assim, podemos apenas fazer uma analogia
com a menção de Sinésio às aves de rapina sobrevoando o céu da cidade, o que pode
significar alguma pessoa de alto “cargo” que estaria visitando a cidade ou observando de
longe e tentando atacar.
Nas últimas linhas desta carta, Sinésio relata para Hipátia o seu amor pelo “país”.
A questão do amor à cidade pode estar relacionada com a identidade que a personagem
tem com sua localidade, como ele se vê e quer ser visto pelos demais. Sua paixão pela
cidade é importante para ele, já que nela encontram-se os seus ancestrais enterrados.
Assim, Alexandria torna-se um “solo sagrado” para Sinésio. Essas menções, tanto acerca
do amor quanto do fato de “estar desgostoso” com a cidade, podem ter relação com seu

80
J.M. Blázquez,. Tolerancia e intolerancia religiosa en las cartas de Jerónimo, Ant. Crist. (Murcia),
XXIII, 2006, 467-473; Id., “La violencia religiosa originada por las decisiones del Concilio de
Calcedonia (451) en los monjes de Oriente”; G. Bravo, R. González Salinero (eds.), Formas y usos de la
violencia en elMundo Romano, Madrid, Signifer, 2007, 291-303.

86
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cargo de bispo e suas próprias contradições, sem contar as fronteiras, que estavam sendo
brevemente invadidas por povos estrangeiros, estes que Sinésio via como inimigos. Isto
sugere que a personagem tinha uma relação particular com o lugar e que, mesmo apesar
de todos seus problemas, estava apegado a ele, com um sentimento de identidade e
pertencimento, possivelmente por conta de suas origens e de sua família.
Na segunda carta, por sua vez, podemos ver Sinésio discorrendo sobre o
densímetro, instrumento utilizado na mediação da gravidade da água.

Estou de tal fortuna mal que eu preciso de um hidroscópio. Veja que


um está no elenco de bronze para mim e juntos. O instrumento em causa
é um tubo cilíndrico, que tem a forma de uma flauta, e possui
aproximadamente o mesmo tamanho. Tem entalhes em uma linha
perpendicular, por meio da qual somos capazes de testar o peso das
águas. Um cone forma uma tampa numa das extremidades, intimamente
adaptado ao tubo. O cone e o tubo têm uma única base. Este é o
chamado berílio. Sempre que você colocar o tubo em um líquido, ele
permanece ereto. Em seguida, pode contar os entalhes à sua vontade, e
desta forma determinar a gravidade específica da água81.

Neste escrito, datado do ano de 402, Sinésio relata um instrumento utilizado


para a medição da água, o hidroscópio, e exemplifica de que forma utilizá-lo. Sua função
era a de medir a gravidade da água. Possivelmente, Hipátia estaria trabalhando em alguma
experiência ou algum estudo matemático. O berílio, mencionado na descrição do objeto,
é uma composição química descoberta no ano de 1786 pelo francês Louis Nicolas
Vauquelin e trata-se de um elemento alcalino-terroso, de aspecto cinzento. Isso pode
sugerir que, no século V, tal composição já era utilizada. Apesar disso, precisamos tomar
cuidado, pois a tradução das cartas não é literal, e pode ser que o tradutor desta versão
lançou mão do nome de tal composição para que possamos compreender melhor a
descrição do objeto. Dessa maneira, a composição do berílio já era aplicada no século V,
na confecção de instrumentos para experimentos, como a exemplo da medição da
gravidade da água contudo, não levando este nome. A discussão entre os interlocutores é
um indicativo da importância de Hipátia na matemática e de como as personagens
mantinham uma ligação forte entre si e com o conhecimento matemático e literário.
Evidências, portanto, de que havia uma produção nestas áreas e tanto sua comunicação
quanto sua circulação se davam a partir de epístolas.

81
SINÉSIO, Correspondências. Carta número 402:15: Um Densímetro.

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Não podemos deixar de mencionar a importância de Teão de Alexandria, que


teve grande notoriedade na Matemática, assim como sua filha, Hipátia. Ele era o
responsável por editar e fazer comentários nos estudos de Euclides. Suas opiniões estão
presentes também em “Elementos” e “Almagesto”, de Ptolomeu, entre outras obras82.
Podemos apontar, também, a inclinação de Hipátia aos estudos de astronomia, afinal, ela
cresceu tendo como grandes referências nomes como estes, além de seu próprio pai.
Assim, ela manteve um vínculo não somente com a filosofia, mas sua influência familiar
fez com que também tivesse uma grande participação em escritos matemáticos.
Na epístola em questão, a partir da menção de Sinésio sobre o uso do
instrumento, podemos perceber que o foco da discussão nas aulas ministradas por Hipátia
não recaía somente sobre a filosofia, mas também havia reflexões sobre astronomia,
matemática, experimentações com objetos, como este que Sinésio menciona,
possivelmente, discussões sobre estas invenções, além de estudos sobre outras ciências.
Assim, podemos perceber a importância destas correspondências para a troca de
conhecimento na Alexandria do século V. As cartas de Sinésio são documentos que
podem ser utilizados para compreensão de inúmeras temáticas acerca do conhecimento
tanto para a área da matemática quanto para a filosofia.

Considerações Finais

Neste artigo, apesar de analisarmos apenas duas cartas e das limitações


enfrentadas com relação à documentação (acesso e tradução livre das fontes), foi possível
perceber a relevância cultural que a cidade de Alexandria teve para o século V, embora
tenhamos tido sempre o cuidado para não falar sobre ela com romantismos, o que é
contraproducente ao conhecimento histórico. Ao analisarmos os fragmentos das cartas de
Sinésio para Hipátia, notamos como estas duas personagens foram ativas na vida
intelectual da cidade e pudemos também perceber alguns importantes aspectos no que diz
respeito à produção e circulação do conhecimento no período.
Por isto, concentramo-nos em compreender a dinâmica e a construção da cidade
de Alexandria, sua influência da helenização e romanização na região do Oriente Próximo
que moldou a forma como os principais intelectuais do século V estudavam, pois o que

82
GAMAS, C. A. D.A Matemática em Alexandria: Convergência e Irradiação. Archai, n. 11, jul-dez
2013, p. 47-54.

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era lido em vários lugares, em sua boa parte, constituía-se de obras de autores gregos e
romanos. Alexandria, desde sua fundação por Alexandre, o Grande, passou por enormes
modificações, não somente estruturais, mas culturais, que interferiram de forma
significativa na formação identitária dos habitantes desta cidade portuária egípcia, cuja
população de Alexandria era composta não apenas por egípcios, mas descendentes de
gregos, romanos e judeus; uma cidade cosmopolita e multicultural.
Foi este o contexto que tanto Sinésio quanto Hipátia vivenciaram, recebendo e
também se apropriando das mais variadas culturas. Desta forma, apresentamos uma breve
reflexão acerca da representação das personagens. Ambas tiveram inclinações filosóficas
para o estudo da literatura grega, sobretudo Homero, e dos filósofos neoplatônicos.
Hipátia era professora da Escola de Alexandria e seguidora desta corrente filosófica.
Sinésio, sendo seu aluno, também se tornou bastante próximo destas interpretações.
Foi possível perceber, por meio das correspondências trocadas entre os dois, não
somente assuntos pessoais, mas o intercâmbio de conhecimentos de cunho filosófico e
matemático, de experiências científicas, além de, claro, os conflitos sociais, os embates
entre cristãos e pagãos, o começo da perseguição da Igreja Católica e a posição ética que
Sinésio deveria manter. Com isto, nota-se a grande representatividade das personagens
para aquele momento: Hipátia, filha de um importante matemático e diretor do Museu de
Alexandria, teve a oportunidade, por meio destas influências, de lecionar na Escola de
Alexandria; Sinésio, ao ser nomeado ao cargo de bispo, exercia uma influência indireta
na cidade de Cirene, pois, ao aceitar o bispado, estava também aceitando uma condição
de vida, mas isso não impediu de lamentar e evidenciar que não gostava de passar seus
dias no escritório resolvendo os mais diversos assuntos envolvendo a população da cidade
de Cirene – ele preferia passar os dias envolvido nos estudos.
A representação de Hipátia, sobretudo, manteve-se viva na contemporaneidade,
quando foi contemplada não somente com poemas, sonetos, mas também com uma
produção cinematográfica.
A posição social de Sinésio contribuiu para que ele mantivesse uma rede de
sociabilidade extensa. Sinésio escrevia várias cartas, e não somente para Hipátia, como
também, para outros alunos da Escola de Alexandria, a exemplo de Herculiano. Podemos,
então, considerá-lo participante de um seleto círculo de debates filosóficos, cujos escritos
legaram uma importante referência para o estudo não só da História do Egito Tardo
Antigo, principalmente da cidade de Alexandria, mas também para a história da Filosofia
e da Matemática.

89
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As cartas eram a principal fonte de informação da época, e nelas havia não apenas
escritos sobre a vida cotidiana, mas um instrumento para circulação do conhecimento no
Século V. Os círculos de amizades das personagens estavam diretamente ligados à difusão
da filosofia e do conhecimento e, até suas inimizades foram elementos de importante
compreensão, pois refletiam suas posições e críticas a outras vertentes filosóficas.
Enfim, além destas questões mais voltadas para a produção do conhecimento,
indicamos a possibilidade e a relevância de uma análise posterior que contemple ainda as
ligações pessoais entre Sinésio e Hipátia, ou pelo menos o que Sinésio sentia em relação
à filósofa, pois isto pode nos auxiliar a compreender como era não somente o diálogo
entre ambos (dado importante per se, uma vez que Sinésio foi aluno de Hipátia), como
também, que tipo de relação de ensino e aprendizagem poderia haver entre estas duas
personagens da Alexandria do século V, o que, certamente, pode contribuir para
ampliação do nosso conhecimento sobre a Antiguidade Tardia de uma forma geral.

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93
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Religiosidades em A canção dos nibelungos e Saga dos volsungos: cristianismo e


paganismo no mundo germânico
Isabelle Maria Soares83

Resumo: Utilizando traduções brasileiras dos textos Das Nibelungelied e Völsunga saga,
o presente artigo pretende refletir sobre religião e religiosidade no contexto medieval da
Alemanha e Islândia numa perspectiva comparativista. Primeiramente, serão feitas
algumas considerações sobre o processo de tradução para, em seguida, refletir sobre o
caráter comparativista entre os dois textos analisados, com base em algumas teorias de
Literatura Comparada. Por fim, ao compreender a função do cristianismo no contexto
histórico e geográfico de cada texto em estudo, a análise focará nas possíveis
comparações entre as obras no que concerne a religião e as religiosidades trazendo
suposições próprias e de historiadores, além de questionamentos, acerca da história das
crenças dos povos envolvidos.
Palavras-chave: religiosidades, cristianismo, paganismo, Literatura Medieval

Religiosity in Song of the Nibelungs and The Saga of the Volsungs: cristianity and
paganism in Germanic World
Abstract: Using brazilian translations from Das Nibelungelied and Völsunga saga, this
article aims to reflect about religion and religiosity in Germany and Iceland’s medieval
context through comparative perspective. First of all, it will be done some considerations
about the translation process, for then, to reflect about the comparativist feature between
the two analyzed texts, based on some Comparative Literature theories. Ultimately, by
understanding the christianity role in historic and geographic contexts of each text in
studying, the analysis will focus on the possible parallels betwen the literary works about
religion and religiosities introducing own assumptions and from hisorians, beyond
questionings, about the history of involved peoples beliefs.
Key Words: religiosities, cristianity, paganism, Medieval Literature

Introdução

A Canção dos Nibelungos (em língua alemã: Das Nibelungelied) é um poema épico
alemão datado do século XII, enquanto a Saga dos Volsungos (em língua islandesa:
Völsunga saga) é um texto em prosa escrito posteriormente na Islândia no século XIII.
Ambos os textos possuem autoria desconhecida e narram, de modo geral, uma mesma
lenda. Suas diversas relações tem sido alvo de estudo de pesquisadores de vários lugares
do mundo.
Para este estudo, as fontes utilizadas são traduções brasileiras para língua
portuguesa de tais textos: as traduções de A. R. Schmidt-Patier de A Canção dos

83
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)

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Nibelungos e de Théo de Borba Moosburger da Saga dos Volsungos. Pretende-se com


este artigo fazer uma análise comparativa das duas traduções, focando principalmente
pontos de caráter religioso que levam aos leitores de língua portuguesa novos significados
sobre o medievo e o mundo germânico 84. Desse modo, será feita uma breve reflexão sobre
o processo de tradução.
Em seguida, para embasar a análise comparativa serão articulados alguns conceitos
do âmbito de Literatura Comparada e Teoria Literária. Por fim, apresentar-se-á a
contextualização histórica ao que se refere a incersão do cristianismo na Islândia e na
Europa Ocidental que auxiliará na compreensão dos apontamentos e reflexões a serem
feitos sobre as religiosidades85 presentes em ambos os textos medievais em estudo.

Algumas considerações sobre a questão da tradução

Os historiadores identificam três tipos ou versões de manuscritos de A Canção dos


Nibelungos, classificados em A, B e C. O texto de Schmidt-Patier foi traduzido
diretamente do manuscrito B, que segundo o tradutor, é considerado o mais pagão,
possuindo 2379 estrofes, de quatro versos alexandrinos com rima emparelhada (AABB).
Por ter feito a tradução literal do texto em versos, o tradutor não se preocupou com a
estrutura estilística do poema. Na verdade, o texto traduzido de Schmidt-Patier, mesmo
dividido em estrofes, parece estar sendo contado em prosa 86.
A tradução de Théo de Borba foi feita a partir do texto original islandês da edição
de Örnólfur Thorsson, com o auxílio de algumas traduções de língua inglesa. O tradutor
especifica que buscou ser fiel ao texto original “na medida do possível”, mas justifica que
essa fidelidade “não foi buscada necessariamente em correspondências sintáticas, mas
sim no tom da narrativa” (MOOSBURGER, 2009: 32). Dessa forma, compreende-se que
há um aspecto problemático no ato de traduzir: Walter Benjamin entende a tradução
enquanto um tipo de leitura que “destroi” o texto original para construir, reorganizar e
reestruturar um texto novo em um novo contexto (LAGES, 1999).
O interessante, que assim como Schmidt-Partier faz um capítulo introdutório
justificando vários pontos de sua tradução, também o faz Théo de Borba, que além de

84
Tanto a Islândia e o restante da Escandinávia, quanto a região onde hoje se encontra a Alemanha, que
são os territórios contextuais desta análise, fazem parte do aqui chamado mundo germânico.
85
Entende-se aqui por religiosidade, aquilo que possui qualidade ou teor religioso.
86
Uma problemática bastante acentuada na edição de A Canção dos Nibelungos utilizada para este artigo
refere-se a vários erros, aparentemente de digitação e não de ortografia, que atrapalham um pouco na leitura.

95
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uma introdução, complementa com notas de rodapé durante o texto, o que auxilia muito
o leitor de língua portuguesa que possui uma proposta investigativa. Aliás, investigar a
tradução de uma obra, tornou-se objeto da Literatura Comparada pois
[…] os elementos que acompanham a tradução sao significativos, seja
o próprio processo da tradução quando o tradutor esclarece por que o
livro foi traduzido e mesmo como o foi, seja a crítica que a analisa e
tem, por vezes, papel decisivo na orientação da recepção daquele texto,
situando os leitores e preparando-os para a sua leitura. (CARVALHAL,
2006: 71)

Nesse sentido, a Literatura Comparada promove estudos sobre a recepção literária


de um texto levando em consideração não somente “o contexto literário a que
originalmente pertence, mas também […] o novo contexto no qual ela se integra”
(CARVALHAL, 2006: 73). Contudo, assinala-se que o objetivo aqui não é de comparar
as traduções em língua portuguesa com as originais, mas como já mencionado, comparar
as duas traduções brasileiras entre si para identificar aspectos de âmbito temático sobre a
religiosidade do mundo alemão e do mundo islandês, que chegam aos leitores de língua
portuguesa graças a esse processo de reescrita, ou de leitura, chamado “tradução”.
Ademais, a visão e concepções que os tradutores colocaram sobre os textos em que
trabalharam serão sempre levadas em consideração, quando necessário, no decorrer deste
artigo.

A questão comparativista: textos em diálogo

Em primeiro lugar, determina-se que é fato que a diferença mais característica entre
A Canção dos Nibelungos e a Saga dos Volsungos se refere ao gênero literário. A
primeira, escrita em poema, costuma ser considerada pertencente ao gênero épico por
tratar de fatos heroicos condizentes com a pátria alemã, contudo, possui características
fortes do romance cortês: exaltação exagerada da nobreza, descrição detalhada das vestes
das damas e cavalheiros, das riquezas, e da generosidade extrema dos nobres e reis para
com outros cortesões e com menos frequência, para com os pobres.
Já a segunda, seria um gênero característico da cultura escandinava: a saga. De
forma geral, esse tipo de narrativa escrita em prosa, que surgiu no século XIII na Islândia,
costuma narrar de forma bastante simples a história de uma pessoa ou de um grupo: o
narrador das sagas é apenas um observador, que conta os fatos muito objetivamente, sem
fazer comentários ou determinar juízo de valor aos personagens (CAMPOS, 2016). Outra

96
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característica muito forte das sagas, é que estas costumam trazer personagens que
realmente existiram e foram sinificativos na história da escandinávia.
Em resumo, A Canção dos Nibelungos narra como Siegfried, dos Países-Baixos, e
Kriemhild, da Borgonha, casaram-se e viveram apaixonadamente até o dia em que ele foi
assassinado traiçoeiramente por Gunther, irmão de Kriemhild, e seu vassalo Hagen Von
Tronje. Gunther, casou-se com Brünhild, da Islândia. Brünhild exigia que aquele que
quisesse casar com ela deveria passar por provas de força e coragem contra ela, e vencê-
la. Gunther consegue isso e ter sua mão em casamento, contudo quem mediou os eventos
que levaram a isso, foi Siegfried, que tornando-se invisível com sua carapuça mágica,
ajudou Gunther a vencer as competições de forças contra Brünhild. A segunda parte da
história, conta como Kriemhild planejou e concluiu sua vingança para com Hagen, o que
levou imensa desgraça para os burgúndios e também para os hunos, povo do reino de
Etzel, o segundo marido de Kriemhild.
A Saga dos Volsungos, tem como foco um enredo muito semelhante. Contudo, a
saga conta desde a origem dos Volsungos, descendentes de Sigurd. Os primeiros capítulos
são dedicados a contar toda a trajetória antescedente do heroi. Nesta narrativa, o que
dialoga propriamente com A Canção dos Nibelungos é a partir da história de Sigurd, que
apaixona-se por Brynhild, mas tomando uma bebida enfeitiçada pela mãe de Gunnar e
Gudrun, acaba esquecendo-se de Brynhild e casa-se com Gudrun. Gunnar é quem casa-
se com Brynhild com o auxílio do próprio Sigurd. Mais tarde, Brynhild descobre através
de Gudrun, que quem cumpriu a prova determinada por Brynhild, de atravessar um arco
de fogo para chegar ao seu castelo, foi Sigurd e não Gunnar. Por causa disso, Brynhild
adoece e pede para que Gunnar mate Sigurd, o que acabou sucedendo. Depois que Sigurd
foi morto, Brynhild não deseja mais viver e tira a própria vida.
Pelo breve resumo dos dois textos já é possível confirmar que A Canção dos
Nibelungos e a Saga dos Volsungos estão em intenso diálogo. É sabido que a lenda
enfoque das duas narrativas foi transmitida oralmente no mundo germânico, e isso pode
explicar a semelhança direta dos dois textos. Segundo Luciana de Campos, o que
influenciou propriamente a produção dos dois textos, foi o poema do Ciclo de Sigurd
presente na Edda Poética87, poema do contexto escandinavo medieval, destacando o fato

87
A Edda Poética é um gênero literário pertencente propriamente da Literatura Medieval Escandinava.
Segundo Luciana de Campos: “A poesia éddica é uma poesia mais simples e pouco rebuscada […]. De
autoria anônima e atemporal essa poesia está centrada nos temas mitológicos e heroicos procurando cantar
tanto os feitos dos deuses como as venturas e desventuras dos heróis” (2016, p. 79).

97
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deste ter sido “reescrito em antigo alto alemão por volta do século XII” recebendo o título
de A Canção dos Nibelungos e “a influência da literatura cortês francesa” (2016: 79). A
tradição na Literatura Comparada buscou por muito tempo focar seus estudos somente
sobre as fontes e influências. Desse modo, pode-se dizer que os dois textos germânicos
ou possuem uma mesma fonte, como afirma Luciana de Campos, ou um influenciou
outro.
Entretando, novas propostas teóricas foram surgindo ou aprimorando-se sobre as
antigas no campo da Literatura e Estudos Comparados. Uma dessas renovações teóricas
bastante consistente deve-se a Julia Kristeva, que revendo as propostas sobre o
dialogismo de Mikhail Bakhtin, afirma que “todo texto se constrói como um mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de textos” (apud PERRONE-MOISÉS,
1990: 94) instituindo assim a teoria da intertextualidade. Além dos textos germânicos em
questão validarem a teoria da intertextualidade, cita-se outro exemplo de intertexto, as
narrativas de O Hobbit e da trilogia O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien que dialogam
de modo intenso com os dois textos. O leitor tolkiano certifica isso ao ler a história de
Sigurd, que ao matar o dragão Fafnir e se apoderar de seu tesouro, que inclui um Anel, é
pra sempre amaldiçoado. Portanto, compreende-se que o fazer literário é um constante
processo intertextual, pois reforça-se que
Estudando relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e
obras, a literatura comparada não só admite, mas comprova que a
literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas,
empréstimos e trocas. A literatura nasce da literatura; cada obra nova é
uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras
anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar
com a literatura anterior e com a contemporânea” (PERRONE-
MOISÉS, 1990: 94)

Destaca-se ainda que para Iuri Tynianov a obra literária consiste em “relações
diferencias firmadas com os textos literários que a antecedem, ou são simultâneos, e
mesmo com sistemas não-literários” (apud CARVALHAL, 2006: 48), o que pode
explicar os vários diálogos não somente entre os dois textos literários em estudo, mas
também, destes com outros elementos. Um exemplo está em A Canção dos Nibelungos,
quando Kriemhild confia o ponto fraco de seu marido Siegfried ao vassalo dos burgúndios
Hagen Von Tronje, que o tenciona matar traiçoeiramente.
899. Ela [Kriemhild] disse: “[…] Naquela montanha, depois de haver
morto o dragão, o respeitável guerreiro banhou-se no sangue do
monstro. Desde então arma nenhuma consegue feri-lo em combate.

98
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[…]

902. Quando o sangue ainda bem quente brotou das feridas do dragão e
o respeitável cavaleiro nele se banhou, caiu-lhe entre as omoplatas uma
folha de tília de bom tamanho. Este lugar onde pode ser ferido é a causa
de toda minha preocupação. (ANÔNIMO, 2013: 193)

Aqui o diálogo se faz entre literatura e mitologia. O leitor, ou mero conhecedor, da


mitologia grega é capaz de identificar o intertexo presente aqui, que remete ao mito do
calcanhar de Aquiles. Não especifica-se neste momento a localização do “calcanhar” de
Siegfried, apenas destaca-se que mesmo ele sendo um heroi invencível, que não pode ser
ferido, ele possui um ponto fraco assim como o heroi grego Aquiles. Enganada pela
aparente boa intenção de Hagen, Kriemhild apenas avisa a ele que com fio de seda bordará
uma cruz quase impercptível onde se encontra o ponto fraco de Siegfried. Mais adiante,
quando o narrador conta como Siegfried foi morto, relata-se que o “calcanhar de Aquiles”
é algum ponto nas costas de Siegfried: “Enquanto o Senhor Siegfried estava inclinado
sobre a fonte bebendo, [Hagen] cravou-lhe a lança nas costas exatamente no local
assinalado por uma cruz.” (ANÔNIMO, 2013: 208)

Um outro exemplo está na Saga dos Volsungos. Na terra dos Volsungos, no dia do
casamento de Signy com Siggeir, chega um homem desconhecido por todos, mas que dá
a entender ao leitor que tem certo conhecimento sobre as crenças nórdicas que este seria
o deus Odin pois é “alto e idoso e tem um olho só” (ANÔNIMO, 2009: 42), uma
referência fisiológica deste deus nórdico. Ele brande uma espada no tronco da árvore
Barnstokk que fica no centro do palácio e anuncia que quem conseguir retirar aquela
espada do tronco irá recebê-la como presente e perceberá que não existe no mundo espada
melhor que aquela. Muitos homens nobres tentaram tirar a espada, mas quem conseguiu
foi Sigmund, filho do rei Volsung, que “retirou a espada do tronco, e era como se estivesse
solta para ele.” (ANÔNIMO, 2009: 42). Vê-se que neste caso, o intertexto se faz com a
lenda arthuriana referente a espada Excalibur, uma conversa entre literatura, mitologia e
folclore. Assim como a lenda presente em A Canção dos Nibelungos e a Saga dos
Volsungos passou da oralidade para a escrita, transformando-se em literatura, a lendária
história do rei Arthur tornou-se um tópico nas produções literárias europeia do mundo
medievo.

Nota-se também, a importância do papel do leitor e da leitura. Wolfgang Iser, um


dos precurssores da estética da recepção, defende que o texto só passa a existir através da

99
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leitura, ou seja, há uma ponte que liga o texto ao leitor. Ele ainda complementa sobre
existência de vazios, que só o leitor é capaz de preencher (apud LIMA, 1979). Portanto,
os exemplos acima demonstram a necessidade de o leitor ter consigo uma carga de
leituras, não somente de textos escritos mas também leituras de mundo, que o auxiliem
no preenchimento de vazios e no entendimento do processo intertextual. Ainda, destaca-
se o fato de Tolkien, por exemplo, ser também, um leitor, levando a entender portanto
que o escritor é “um leitor que escreve” (CARNEIRO, 2010: 47).

Por fim, entende-se que, mais do que identificar semelhanças, “comparar é


contrastar” (CARVALHAL, 2006: 78). Ou seja, a literatura se faz não somente por
analogias, mas principalemente, por diferenças: aliás, são as distinções que podem levar
um texto à originalidade. Portanto, propõe-se a partir daqui, identificar contrastes entre
os dois textos, que possibilitem compreender de modo breve como sucedeu a construção
da identidade das nações alemã e islandesa. Determina-se então contrastar os dois textos
a partir do aspecto religioso. Retomando o pensamento de que a literatura conversa não
somente com a própria literatura mas também com outros sistemas, é possível afirmar
que os textos germânicos em análise dialogam intensamente com a religião: A Canção
dos Nibelungos com o cristianismo, enquanto a Saga dos Volsungos com o paganismo
nórdico.

A cristianização na Europa Ocidental e na Islândia

Assinalando que os dois textos provém de nacionalidades e épocas um pouco


diferentes, é importante entender um pouco do contexto em que foram escritos. Destaca-
se, sobretudo, o papel do cristianismo na formação destes contextos.
A Europa Ocidental, que inclui a região onde hoje é a Alemanha, passou a seguir
fervorosamente o cristianismo a partir do século IX. Jacques Le Goff explica que a
cristianização sobre os Saxões88, promovida pelo imperador dos romanos Carlos Magno,
ocorreu em uma mistura de conversão e massacre, resultando em um processo de
conversão demorado.

88
Grupo pertencente as tribos germânicas. Viviam ao norte da Alemanha durante a Idade Média, muitos
migraram para o território bitânico misturando-se aos povos anglos e formando os chamados anglo-saxões.
Antes de serem cristianizados, os Saxões partilhavam uma cultura e religiosidade semelhantes a dos
Escandinavos, povos que viviam no extremo norte da Europa (onde hoje localiza-se Suécia, Noruega e
Dinamarca) e que colonizaram a Islândia.

100
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Auxiliado por missionários – todo e qualquer ferimento contra algum


deles e toda a ofensa à religião cristã eram punidos com a morte
segundo uma capitular editada com o fim de ajudar a conquista –, e
conduzindo ano após ano os guerreiros para o interior do território,
batizando uns, pilhando outros, queimando, massacrando e efetuando
deportações em massa, Carlos [Magno] acabou por subjugar os Saxões.
(LE GOFF, 2005: 44 apud PEREIRA, 2006: 14)

Já a Islândia, que foi colonizada entre 874 a 930 d.C. pelos escandinavos
noruegueses, foi cristianizada bem tardialmente, entre o final do século X e o começo do
século XI. Diferentemente da Europa Ocidental, que como se vê a exemplo dos Saxões,
teve uma conversão violenta, que de certa forma extinguiu as antigas práticas pagãs, na
Islândia, o processo de cristianização ocorreu mais pacificamente, sendo que por muito
tempo o cristianismo e o paganismo nórdico conviveram mutuamente. Além disso,
destaca-se que com a chegada do cristianismo na Islândia, a prática da escrita tornou-se
bastante recorrente, surgindo assim, sua literatura, na qual os islandeses procuravam
resgatar suas memórias sobre as antigas práticas religiosas pagãs. Por possuir esse caráter
de registro mnemônico, importa mencionar que as sagas são uma das principais fontes de
estudiosos que pesquisam sobre a religião escandinava: ou seja, muito do que se sabe
sobre o paganismo nórdico nos dias atuais, deve-se muito a produção literária da
escandinava medieval89.
Mesmo que a Saga dos Volsungos apresente um contexto totalmente pagão em sua
narrativa, esta, como afirma o próprio tradutor Moosburger, foi escrita por um (ou mais
de um) cristão. Antes do processo de cristianização, os escandinavos mantinham seu
folclore e suas memórias através da oralidade, sendo sua escrita, as runas, utilizada muito
raramente e quase que totalmente sem fins literários. Por isso, chama atenção que, apesar
de já cristianizados no momento em que a Saga dos Volsungos tornou-se literatura, este
texto apresentar veemente as memórias pagãs.
O tradutor Schmidt-Patier afirma que não existe algum vestígio de espírito cristão
em A Canção dos Nibelungos, justificando com as características da maioria dos
personagens aproximarem-se das de pagãos germânicos de uma época remota:
“sentimentos ferozes e indomáveis, o rigoroso código de honra e a falta de escrúpulos”
(2013: 22). No entanto, ele admite que o épico alemão “é o canto fúnebre de um mundo
pagão que, aos poucos se cristianiza” e complementa que “Siegfried é a única personagem

89
A Literatura Medieval Escandinava é feita pelas Sagas, mas também pela Poesia Escáldica e pelas Eddas:
a Edda em Prosa (ou Edda Menor) e a Edda Poética (ou Edda Maior).

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cujas qualidades morais e atitudes perante a vida o identificam com o cristianismo


nascente” (SCHMIDT-PATIER, 2013: 22).
Entretanto, apesar de que se identifique traços de paganismo em A Canção dos
Nibelungos, a religião cristã ainda se sobressai nesse texto, não somente através da
clemência por Deus, mas também pela simbologia cristã bastante presente. Luciana de
Campos que afirma que o texto alemão é uma reescrita do contexto escandinavo, como
mencionado anteriormente, destaca que uma das grandes diferenças entre A Canção dos
Nibelungos e a Saga dos Volsungos é justamente os elementos cristãos que foram
inseridos pelo épico alemão, para que a lenda se enquadrasse ao “padrão cristão que todas
as cortes da Europa [Ocidental] seguiam” (2016: 80).

Religiosidade e literatura: Desvendando o medievo germânico

A partir daqui, será articulada a análise comparativa entre os textos, focando


exclusivamente nas religiosidades, as quais têm uma presença significativa e mediadora
nos textos, e, portanto, merecem ser entendidas. Não será seguido a lineariedade das
narrativas, nem mesmo os eventos semelhantes entre elas, mas sim, conforme as ideias
acerca do cristianismo e do paganismo nórdico vão sendo expostas e discutidas aqui. Para
começar a argumentação, cita-se um excerto que refere brevemente a religiosidade
enquanto instrumento de saber e poder nas sociedades antescedentes da modernidade:

Nas épocas pré-modernas, explicava-se o que não se conhecia — tanto


na natureza quanto na sociedade — apelando a forças externas: Deus
ou o destino. Seres sobrenaturais eram invocados para pôr ordem na
natureza, os deuses se mostravam competentes não só em questões
religiosas, mas também nas desordens mais quotidianas da educação e
da moral, esclareciam mistérios da arte, os sofrimentos e os exercícios
arbitrários do poder. (CANCLINI, 2008: 22-23)

Deus e o destino: a explicação e a determinação de tudo para os diferentes


medievos. Este é o ponto inicial desta discussão. O primeiro capítulo/aventura de A
Canção dos Nibelungos narra Kriemhield. As estrofes 13 e 14, descrevem o sonho
premonitório de Kriemhild, que referencia um falcão e uma dupla de águias. Nas estrofes
14 e 16, fala-se no nome de Deus a maneira cristã. Essas estrofes demonstram como o
destino é um fato bastante presente neste texto.

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13. Vivendo cercada de tais honras, Kriemhild sonhara, certa noite, que
um falcão selvagem, belo e vigoroso, que havia criado, fora
estraçalhado por uma dupla de águias. Como a cena se desenrolara
diante de seus próprios olhos, nenhuma desgraça ocorrida neste mundo
poderia ter-lhe causado pesar maior.

14. Quando contou o sonho à mãe Ute, esta lhe deu a única explicação
possível: “o falcão que domesticavas é um nobre homem, o qual – se
Deus o não proteger – perderás logo”.

[…]

16. […] “Se neste mundo tiveres de experimentar a felicidade, esta lhe
virá através do amor por um homem. Se Deus te conceder por marido
um bom cavaleiro, tu serás uma bela esposa.” (ANÔNIMO, 2013: 27)

A questão do sonho, bem como a referência as aves ou outros animais, é muito


característica da religiosidade escandinava, tanto que se fazem frequentemente presentes
na narrativa Saga dos Volsungos. Na concepção pré-cristã entre os escandinavos é comum
os animais aparecerem em sonhos com o fim de profetizar eventos futuros. (MIRANDA,
2016). Pode-se dizer que nos trechos do texto alemão citados acima, há traços da crença
pagã ao fazer alusão ao sonho com aves e a representação que este faz ao destino da
personagem Kriemhild. Para exemplificar a presença deste tópico na narrativa islandesa,
cita-se uma passagem bastante significativa onde Gudrun, que seria a equivalente de
Kriemhild do texto alemão, conta seu sonho para Brynhild, equivalente a Brünhild, que
o decifra.

“Eu sonhei” disse Gudrun, “que caminhava para longe do aposento das
damas junto com muitas mulheres e que avistamos um imponente
cervo. Ele se distinguia muito dos demais veados. Sua pelagem era de
ouro. Todas nós quisemos apanhá-lo, mas só eu consegui. O veado me
pareceu ser melhor que todas as coisas. Depois tu o flechaste e o
derrubaste diante dos meus joelhos. Eu senti tão grande tristeza que mal
pude suportar. Depois tu me deste um filhote de lobo. Este me
respingou com o sangue dos meus irmãos.”
Brynhild responde: “Decifrarei conforme virá a ser: Sigurd irá até ti,
aquele que eu escolhi para mim como marido. Grimhild lhe dá hidromel
adulterado, que nos leva todos a uma guerra. Tu te casarás com o rei
Atli. Perderás os teus irmãos e em seguida matarás Atli”. (ANÔNIMO,
2009: 97)

Percebe-se que essa passagem dialoga com a retirada de A Canção dos Nibelungos
pelo fato das personagens equivalentes Kriemhild e Gudrun relatarem seus sonhos

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premonitórios que envolvem a simbologia animal significando o futuro matrimônio das


personagens com o(s) heroi(s) Siegfried/Sigurd. No excerto do épico alemão, quem
decifra o sonho é a mãe de Kriemhild, Ute, enquanto no texto islandês, é Brynhild. Chama
atenção que em ambos os textos se prevê a futura tragédia, não se omite dos leitores o
desfecho das narrativas. Contudo, no primeiro, Ute assinala que um evento trágico pode
vir a ocorrer se não houver a proteção de Deus, enquanto na Saga dos Volsungos, Brynhild
relata que a tragédia é em parte causada pela feitiçaria de Grimhild.
Ute e Grimhild são personagens equivalentes, pois ambas são mães das personagens
Kriemhild e Gudrun, respectivamente. A primeira, cumpre o papel de “mãe boa”,
influenciado pela perspectiva da igreja cristã através da figura icônica de Maria, mãe de
Jesus, e durante a narrativa, não interfere nos acontecimentos e nem nas decisões de sua
prole, pois “ela é a única que não comete erros e está sempre preocupada com o bem estar
dos filhos acima de tudo” (PEREIRA, 2006: 132). Já a segunda, que demonstra desde o
início ser uma feiticeira, possui um papel crucial para o desenvolvimento dos principais
eventos, um deles, o casamento entre Gudrun e Sigurd, ou seja, Grimhild é a
personificação da autoridade materna, característica essencial das personagens mães da
Saga dos Volsungos que “costumam ter pleno poder sobre os seus próprios filhos”
(PEREIRA, 2006: 148). Nesse sentido, é possível notar como as religiosidades agem
sobre e juntamente com as construções culturais.
Uma forte característica em A Canção dos Nibelungos refere-se ao narrador que,
constantemente, anuncia de maneira antecipada o que acontecerá adiante na história. Para
citar alguns exemplos: a estrofe 7. onde ao contar sobre os burgúndios ele diz que “mais
tarde, todos eles perderiam a vida em circunstâncias trágicas, por causa da inimizade de
duas nobres damas” (ANÔNIMO, 2013: 26), a estrofe 44. onde narra que Siegfried soube
da existência da jovem Kriemhild e diz que “mais tarde, essa jovem seria a causa de todas
as suas venturas e penas” (p. 35) e a estrofe 876 onde diz que “por causa de uma
desavença entre duas mulheres, muitos heróis iriam perder a vida” (p. 187). Além de
destacar o papel da mulher enquanto causa dos eventos trágicos, vê-se que o fato de o
narrador não preocupar-se em fazer suspense e desvendar o desfecho apenas no final da
história, ajuda a determinar e acentuar o quanto o destino é inexorável nesta narrativa.
Um outro exemplo de destino predeterminado encontra-se num episódio que envolve
seres mitológicos, como explana o tradutor:

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Verdadeiramente exemplar é o vaticínio das ondinas do Danúbio que


nas estrofes 1533 e 1548 revelam a Hagen que todos os nibelungos em
demanda às terras de Etzel perderiam a vida, exceto o capelão.
Querendo tirar isso a limpo, Hagen procura afogar o sacerdote. Mas
este, mesmo não sabendo nadar, alcança miraculosamente a margem
oposta do Danúbio. Hagen vislumbra a ação do destino como um poder
contra o qual é inútil lutar. (SCHMIDT-PATIER, 2013: 21)

Schmidt-Patier complementa que “a existência de uma Razão Suprema que


predetermina a sorte dos homens os exime, de certo modo, da responsabilidade de seus
erros e malfeitos” (2013: 21). Esta “Razão Suprema” de que fala pode referir-se a
personagens/objetos mitológicas ou fantásticas, como é o caso das ondinas 90, bem como,
as personagens mulheres, como sugere o narrador, mas principalmente ao Ser Superior
instituído pelo cristianismo. Interessante ainda é a escolha de um sacerdote utilizado
como objeto de provação do destino revelado a Hagen, o que aproxima a ideia de uma
provação divina. Ou seja, mesmo que existam objetos e personagens sobrenaturais (ou
não necessariamente) para mediar os eventos de caráter “miraculoso” ou trágicos, o
destino ainda é colocado nas mãos de Deus.
Portanto, no épico alemão, o destino, de certa forma, está atrelado ao Deus
cristão91, ou melhor, as personagens acreditam que é “Ele” quem determina o futuro,
como demonstram constantemente suas falas e a utilização frequente das conjunções
subordinativas “se” ou “que” antes do pronome Deus, como mostra os exemplos: “se
Deus o não proteger […]”, “Se Deus te conceder […]” (ANÔNIMO, 2013: 27), “[…] que
Deus vos conceda justa recompensa, […] (p. 81), “Até o meu regresso, espero que Deus
vele por vossa segurança […]” (p.114). Sabe-se que durante a história do cristianismo,
até nos dias atuais, não há uma crença fervorosa no destino, em seu significado em si,
mas sim, em Deus, Santíssima Trindade (Deus Pai, Filho e Espírito Santo), como aquele
que tem o poder de agir sobre a vida de cada um que crê.
Na religião nórdica pré-cristã, crê-se que o destino é inquebrantável, e que este é
determinado pelas três nornas, divindades que possuem uma função semelhante à das
parcas da mitologia grega. As nornas aparecem frequentemente na Saga dos Volsungos
reafirmando a crença nórdica, cita-se o exemplo de quando nasce um dos filhos de
Sigmund e Borghild, Helgi, “vieram as nornas e estipularam-lhe o futuro, dizendo que

90
As Ondinas são personagens mitológicas elementais da água, uma espécie de sereias.
91
A narrativa A Canção dos Nibelungos fala muito em Deus, e dá a entender que este é de fato o Deus
cultuado pelo cristianismo pela relação que este possui com toda a simbologia cristã fortemente presente
no texto e referências a práticas ritualísticas cristã.

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ele seria de todos os reis o mais célebre.” (ANÔNIMO, 2009: 54) Nesta narrativa é muito
frequente também a participação de aves e outros animais, não somente enquanto figuras
icônicas, mas principalmente, como intercessores no processo de desenvolvimento dos
eventos da história. No trecho abaixo, Sigmund, filho do rei Volsung e pai do heroi
Sigurd, estava a pensar em uma forma de curar seu filho Sinflioti, após o ter ferido quando
os dois transformaram-se em lobos ao revestirem peles do animal, quando as aves vêm
em seu auxílio.

Um dia Sigmund vê duas doninhas, e uma morde a garganta da outra, e


aquela corre então até a floresta e apanha uma folha e a deposita sobre
o ferimento, e a doninha se ergue sã. Sigmund caminha para fora e vê
que um corvo voa com uma folha e a traz para ele. (ANÔNIMO, 2009:
51)

Para as crenças nórdicas, o corvo está diretamente associado com o deus Odin: seus
corvos Huggin e Munnin (que significam respectivamente “pensamento” e “memória”)
são seus mensageiros. Portanto, neste trecho pode-se interpretar que o corvo que auxilia
Sigmund, é um enviado de Odin. Além disso, os deuses do panteão nórdico são
personagens que muito interferem e influenciam nos acontecimentos da história,
principalmente o deus Odin. O próprio Sigmund foi morto por um guerreiro que tinha
“um olho só e empunhava uma lança”, referência tópica a Odin. Diferentemente, em A
Canção dos Nibelungos as práticas e costumes cristãos são constantemente afirmados,
contudo de forma mais simbólica: na narrativa alemã, não há nenhuma intercessão direta
do Deus cristão, “Ele” não interfere nos acontecimentos pessoalmente, como faz Odin e
os deuses nórdicos na Saga dos Volsungos, ele existe na narrativa apenas através das
súplicas e/ou no imaginário das personagens. Seu nome é constantemente invocado.
Outro exemplo presente na narrativa islandesa sobre a importância do destino na
religiosidade nórdica, é quando Sigurd procura por Gripir, irmão de sua mãe, “por ser
este previdente e conhecer a sorte das pessoas” . Sigurd pede veemente para que este lhe
conte sobre seu destino, e depois de ter relutado bastante, “Gripir acaba por contar […]
todo o seu destino – do modo como veio se confirmar mais tarde.” (2009: 72-73) Outro
momento bastante significativo para é quando Sigurd, depois de ter matado o
dragão/serpente Fafnir, assa o coração do monstro a pedido de Regin, e ao experimentar
se estava no ponto o assado, acaba provando do sangue do dragão/serpente e passa “a
compreender o canto dos pássaros.” (2009: 81) Os pássaros conversam entre em si em
tom de conselho para que Sigurd possa ouvir:

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“Aí está Sigurd, assando o coração de Fafnir. Ele próprio deveria comê-
lo. Assim poderia tornar-se mais sábio que qualquer outro homem.”
Um outro diz: “Lá está deitado Regin, e quer trair este que lhe tem
confiança.” […]
Então um quarto falou: “[…]Deveria então cavalgar até o alto da
montanha Hindarfiall, onde queda-se Brynhild dormindo, pois lá
poderá adquirir grande sabedoria[…]” (ANÔNIMO, 2009: 81)

Sigurd segue todos os conselhos dado pelos pássaros de forma indireta a ele.
Quando parte para o alto da montanha Hindarfall, ele encontra Brynhild que estava
dormindo “vestida como homem, guerreiro”. Sigurd cortou a cota de malha apertada que
ela vestia, e por isso, Brynhild despertou. Ela conta que foi amaldiçoada pelo deus Odin,
porque ela matou Hialmgunnar em uma batalha, homem o qual a divindade havia
prometido a vitória. Por causa disso, Odin perfurou Brynhild com uma rosa, dizendo que
nunca mais ela obteria a vitória e que deveria se casar. Contudo, ela replicou, dizendo que
só se casaria com o mais bravo dos guerreiros, aquele que não teria medo de nada.
(ANÔNIMO, 2009: 82-83). Este evento é um exemplo da participação e interferência das
divindades nórdicas nos eventos da história e também, confirma a ideia de que o destino
é determinado apenas pelas Nornas, e não pelas outras divindades nórdicas, pelo fato de
que o deus Odin não conseguiu cumprir uma promessa. Após esse acontecimento,
Brynhild pronuncia vários conselhos a Sigurd, que no texto estão destacados em versos,
como mostra o trecho a seguir:
[…]
Eis as runas da cura
e as runas da ajuda
e todas as runas da cerveja
e esplêndidas runas da força,
para todos que as possam,
imáculas, sem aviltá-las,
ter para a sua boa ventura.
Faz delas uso, se aprendeste,
até que feneçam os deuses. (ANÔNIMO, 2009: 87)

Destaca-se o último verso “até que feneçam os deuses”, que em nota de rodapé o
tradutor assinala que refere-se ao Ragnarok, o fim dos tempos para as crenças nórdicas
pagãs, onde aconteceria uma grande batalha que causaria morte de diversos deuses,
incluindo os mais populares, Odin, Thor e Loki, seguido de catástrofes naturais e o mundo
ficando submerso por água. Em contraste, também há referência ao fim do mundo em A
Canção dos Nibelungos, chamado de “Dia do Juízo Final”, que segundo os parâmetros
cristãos, seria o último julgamento feito pelo Deus cristão sobre todos os homens. Tal

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referência é feita por Hagen von Tronje que discute com Kriemhild acerca do Tesouro
dos Nibelungos:

1742. “De fato, minha Senhora Kriemhild, há muito que o Tesouro dos
Nibelungos não está mais sob os meus cuidados. Meus soberanos me
deram ordens para que o afundasse no Reno e lá deverá ficar até o Dia
do Juízo Final!” (ANÔNIMO, 2013: 353)

O simbolismo religioso, como se nota, é bastante presente em ambas as narrativas.


Uma característica que chama a atenção em A Canção dos Nibelungos está relacionada
aos números, pois o narrador demonstra preocupar-se em descrever a exatidão das
quantidades presentes na história. Nesse sentido, o número 12 (doze) se faz presente de
modo significativo. Sabe-se que o número doze é um número biblíco relacionado com os
doze apóstolos de Jesus. Desse modo, pode-se sugerir um diálogo com o episódio onde
Siegfried está se preparando para partir a terra dos burgúndios e fala decididamente para
sua mãe: “[…] Apenas doze guerreiros deverão acompanhar-me na viagem. […]”
(ANÔNIMO, 2013: 38). Como o tradutor Schmidt-Patier acredita, Siegfried é o único
personagem cuja as características morais o aproximam do cristianismo. Assim como
Jesus, morreu vítima de uma traição. Será possível comparar Siegfried a Jesus Cristo?
Fica a sugestão. Em contrapartida, nota-se a presença do número 13 (treze), considerado
o número do azar em muitas culturas, inclusive, na cristã.
337. Tão logo o robusto Siegfried punha a carapuça mágica passou a ter
uma força colossal: a força de doze homens somava-se à sua própria.
[…]
338. Além disso, a carapuça mágica havia sido feita de tal modo que
quem com ela se cobrisse poderia fazer o que quisesse sem ser visto.
Foi desse modo que conquistou Brünhild, mas pagaria muito caro por
isso. (ANÔNIMO, 2013: 89)

Ao somar a força de doze homens a de Siegfried, a carapuça mágica resulta na força


total de treze homens. O narrador acentua que graças ao uso dessa “ferramenta”, Siegfried
pagaria muito caro por isso mais tarde, que como se sabe, com sua própria morte. Para o
cristianismo, a Santa Ceia, que antescede a morte de Jesus, reuniu treze homens, os doze
apóstolos somando-se com Jesus Cristo, o heroi. Na presença destes, estava Judas
Icariotes, o traidor. Nessa perspectiva, por cometer o maior dos pecados, Judas pode ser
caracterizado como o décimo terceiro componente da mesa. Do mesmo modo, diz-se que
para as crenças nórdicas há uma história semelhante. Conta-se que houve um banquete
onde reuniram-se doze deuses. Loki, o deus trapaceiro, apareceu mesmo sem ser
convidado e arma uma briga causando a morte do deus Baldr, o mais querido dos deuses,
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por ser disseminador de bondade e paz. É notável uma certa semelhança entre essas duas
narrativas. Lembrando que muito do que se sabe sobre as antigas crenças nórdicas se deve
pela Literatura Medieval Escandinava, e que esta surgiu na forma escrita com a chegada
do cristianismo, há muito o que questionar e refletir.
De modo geral, mesmo que o cristianismo é predominante em A Canção dos
Nibelungos, admite-se que há, realmente, traços de memória pagã nesta narrativa. Além
de referências mitológicas, há a presença de objetos e fatos mágicos e/ou fantásticos,
como a carapuça mágica que Siegfried tomou de um gnome e mais tarde usa para enganar
Brünhild, sua espada invencível Balmung, o dragão guardião do tesouro dos Nibelungos
e o fato de seu sangue ter tornado Siegfried imune a ferimentos. Do mesmo modo, na
Saga dos Volsungos, lembrando que foi escrita por cristãos, é possível encontrar rastros
do cristianismo. Identifica-se um deles quando nasce o heroi que “foi respingado com
água e chamado de Sigurd” (2009: 66), lembrando um dos sete sacramentos cristãos, o
batismo.
Hélio Pires sugere uma problemática quanto aos costumes e crenças religiosas
apresentados no material escrito da Islândia medieval. Ele defende que mesmo que tais
materiais registrem os costumes pagãos, há uma probabilidade de estes serem até certo
ponto modificados, levando a uma falsa crença de uniformidade da religiosidade nórdica
pagã, pois: “não é uma recolha inocente de crenças antigas, mas antes uma sistematização
de material pagão feita a partir de uma perspectiva cristã” (2016: 116). Da mesma forma,
o tradutor Moosburger afirma que:
Muitas das narrativas mitológicas de que dispomos estão fortemente
influenciadas por uma concepção de mundo cristã, porque todos os
textos escritos pelos escandinavos na Idade Média são uma
consequência direta da cristianização: a Igreja trouxe consigo para os
nórdicos a tradição latina, e, em decorrência dela, criou-se uma tradição
escrita em língua vernácula. (MOOSBURGER, 2009: 17)

Portanto, reafirma-se que é preciso ler e refletir sobre os textos levando em


consideração principalmente seus contextos. Ademais, levanta-se aqui outra questão:
religião nórdica ou mitologia? Falou-se até aqui em religião nórdica, religiosidade
nórdica, crenças nórdicas, e/ou paganismo nórdico. Contudo, é chegada a hora de falar
também em mito, pois hoje em dia, se fala muito mais em mitologia nórdica. Mircea
Eliade afirma que “o mito deve ser compreendido como uma narrativa de algo real, uma
história sagrada, contada e recebida por um público que acreditava que os fatos descritos
ocorreram realmente” (apud PALAMIN, 2016: 164). Portanto, assinala-se que o que é

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considerado mito hoje já foi sagrado em dado momento da história. Sugeriu-se tratar aqui
as crenças nórdicas no sentido religioso principalmente pelo teor comparativo com a
religião cristã que foi proposto neste trabalho, mas também, por acreditar-se que tais
crenças perseveram vivas na memória, não apenas enquanto narrativas mitológicas. O
cristianismo, como se pode perceber pela leitura dos dois textos em análise, contribuiu
fervorosamente na transformação dessas religiosidades em mitos.
Até aqui, identificou-se alguns dos muitos aspectos de caráter religioso presente em
cada um dos textos estudados. Para finalizar, apresenta-se o momento do funeral de
Sigfried/Sigurd. Na Saga dos Volsungos, após Sigurd ter sido assassinado, Brynhild se
mata, e agonizando, pede para ser velada junto dele, conforme os costumes pagãos, como
é descrito por ela:
Agora Gunnar, faço-te um último pedido: manda acenderem uma
grande pira numa planície, para mim, Sigurd e mais aqueles que com
eles foram mortos. Manda erguerem tendas vermelhas de sangue de
gente e cremarem-me lá, do lado desse rei huno, e, do outro lado dele,
meus homens, dois à cabeça e dois aos pés, e dois falcões. Assim estará
repartido com justeza. Depositai lá entre nós dois a espada desnuda
como outrora, quando nós nos deitamos na mesma cama e proferimos
votos nupciais. E as portas não se fecharão sobre seus calcanhares se eu
acompanhá-lo, e nosso funeral não será miserável se acompanharem-
no cinco escravas e oito servos, que me foram dados por meu pai, e lá
se cremarem aqueles que foram mortos com Sigurd. […] (ANÔNIMO,
2009: 117)

Já em A Canção dos Nibelungos, Siegfried é sepultado conforme os parâmetros


cristãos. Contudo, no texto alemão a equivalente de Brynhild, a Brünhild, não morre,
como também, não vivenciou uma paixão com Siegfried. Quem vela por Siegfried, é sua
amada Kriemhild (que seria equivalente a Gudrun do texto islandês). Os excertos abaixos
mostram como foi o sepultamento do heroi, certificando que se sucedeu com os rituais
cristãos:

1039. […] A nobre dama determinou então que o corpo de seu querido
esposo, o Senhor Siegfried, fosse transportado para a catedral. […]

1052. Quando correu a notícia de que se estaria entoando hinos na


catedral e que o morto já teria sido posto no ataúde, estabeleceu-se um
terrível tumulto, pois todos desejavam dar uma oferenda para a salvação
de sua alma.[…]

1054. Nenhuma criança com algum lampejo de razão era considerada


pequena demais para não dar sua oferenda. Antes de baixá-lo à

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sepultura cantou-se naquele dia mais de cem missas. […] (ANÔNIMO,


2013: 219-222)

As duas passagens falam por si só. Ambas descrevem os procedimentos do ritual


funerário para cada crença, o que demonstra como esses textos medievais, essencialmente
o islandês, cumprem um papel “arqueológico”, ou seja, são úteis aos pesquisadores que
tem por objetivo explorar e reconstruir a história desses povos. Além disso, aqui confirma
o que Luciana de Campos diz sobre o texto alemão ser uma reconstrução do texto islandês
com base no cristianismo já fortalecido na Europa Ocidental, pois observa-se a explícita
transformação de um trecho pro outro.

Considerações Finais

O artigo propôs refletir sobre as religiosidades no contexto medieval alemão e


islandês. Compreendeu-se que a função que a religião e as religiosidades exercem é
diferente em cada texto analisado. Na Saga dos Volsungos, a religião pagã exerce um
papel de registro de memórias. Já A Canção dos Nibelungos, por ser considerada uma
adaptação, promove os costumes cristãos bem consolidados na Europa Ocidental do
século XII.
Além de apontar alguns aspectos religiosos, mostrou-se como a literatura se
constroi através da intertextualidade com o breve estudo sobre as traduções dos textos A
Canção dos Nibelungos e a Saga dos Volsungos, e como o leitor e suas leituras são
importantes nesse processo. Antes disso, fez-se um breve levantamento sobre questões
concernentes ao processo de tradução, compreendendo que traduzir é uma forma de
leitura e que um texto traduzido é um novo texto.
Por fim, conclui-se que os diálogos e diferenças identificados em ambos os textos
levam a uma possível compreensão de como a nacionalidade de cada um se construiu
diferentemente em um contexto religioso centralizado pelo cristianismo. Apesar de ser
possível contrastar as diferentes religiões, o cristianismo e o chamado paganismo nórdico,
percebeu-se que compreender o processo de conversão cristã nas sociedades onde os
textos foram escritos é importante para o leitor que pretende desvendar não somente a
literatura, mas os costumes e as construções culturais dos contextos medievais.

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Referências

Fontes

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Bibliografia
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Trad. Théo de Borba Moosburger. São Paulo: Hedra, 2009.

SCHMIDT-PATIER, A. R. “Prefácio”. In: ANÔNIMO. A Canção dos Nibelungos. Trad.


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Nibelungos e A Saga dos Völsung. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Literatura comparada, intertexto e antropofagia". In:


Flores na escrivaninha: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1990. pp. 91-99

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Revista Alétheia – Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Nº2/2017 – ISSN:1983-2087

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Barbaridade versus Humanitas no Principado Romano: a política e a construção da


imagem do imperador Heliogábalo (século III EC)92

Semíramis Corsi Silva93

Resumo: Heliogábalo foi um jovem imperador da dinastia dos Severos e governou o


Império Romano entre 218 e 222 EC, tinha origens siríacas, era filho de pai e mãe sírios,
nasceu e foi criado na Província da Síria até se tornar imperador romano. As
representações das práticas políticas e religiosas deste imperador aparecem com forte
carga negativa nos textos de seus contemporâneos, enfatizando o que era considerado
como barbaridade pelos escritores de meados do século III EC. Diante desta observação,
este artigo objetiva analisar aspectos da imagem de Heliogábalo ligados à sua identidade
cultural refletida em suas práticas políticas como imperador. Utilizarei, para isso, textos
de Dião Cássio (História Romana), Filóstrato (Vida de Apolônio de Tiana e Vidas dos
sofistas) e Herodiano (História do Império Romano). Buscarei mostrar como tais
escritores defenderam a existência de uma ordem imperial romana formada pelo
reconhecimento de um espaço discursivo comum entre os grupos das elites do contexto
do Principado, baseada, por sua vez, em elementos da construção de uma identidade
cultural greco-romana (Humanitas) que Heliogábalo, definitivamente, ultrapassou.
Palavras-chave: Heliogábalo, Barbaridade, Humanitas.

Barbarity versus Humanitas in the Roman Principate: the politics and the
construction of the image of the emperor Heliogabalus (3rd century CE)

Abstract: Heliogabalus was a young emperor of the Severan dynasty and ruled the
Roman Empire between 218 and 222 CE, he had Syriac origins, he was son of father and
mother Syriac, he was born and he was raised in the Province of Syria until becoming
Roman emperor. The representations of the political and religious practices of this
emperor appear with a heavy negative charge in the texts of his contemporaries,
emphasizing what was considered as barbarity by the writers of the middle of the third
century CE. This paper aims to analyze aspects of the image of Heliogabalus linked to
his cultural identity, reflected in his practices as emperor. I will use texts of Cassius Dio
(Roman History), Philostratus (Life of Apollonius of Tiana and Lives of the Sophists) and
Herodian (History of the Roman Empire). I shall try to show how such writers defend the
existence of a Roman imperial order formed by the recognition of a discursive space
common among the elites' groups in the context of the Roman Principate, based on
elements of the construction of a Greco-Roman cultural identity (Humanitas) which
Heliogabalus, definitely, surpassed.
Keywords: Heliogabalus, Barbarity, Humanitas.
92
Este artigo faz parte da pesquisa pessoal da autora dentro do projeto de pesquisa guarda-chuva
Barbaridade: identidades e alteridades em representações do outro por escritores romanos. Tal projeto
encontra-se em desenvolvimento desde 2015 na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM pela autora
e pelos estudantes membros do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM –
GEMAM/UFSM. O projeto em questão conta com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio Grande do Sul – FAPERGS, através do Edital 01/2017- Auxílio Recém-doutor – ARD.
93
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Santa Maria – UFSM. Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista –
UNESP/Franca. Pesquisadora do G.LEIR/UNESP-Franca, do NEAM/UNESP, do ATRIVM/UFRJ, do
NECH/PUC-GO e do LEIR/USP. Pesquisadora e Coordenadora do GEMAM/UFSM e do Grupo de
Trabalho História Antiga da ANPUH/RS – GTHA-RS (gestão 2016-2018). E-mail:
semiramiscorsi@yahoo.com.br

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Introdução
Heliogábalo foi um jovem imperador romano de origens siríacas, filho de pai e mãe
sírios (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXIX, 30, 2), nascido e criado na Síria até se
tornar imperador romano.94 Foi membro da dinastia dos Severos, que governou o Império
Romano entre 193 e 235 da era comum. Seu governo durou de 218 a 222 e, embora em
um curto período de tempo no comando do Império Romano, sua imagem foi retratada e
lembrada em diversos documentos textuais do próprio período de forma extremamente
negativa. 95 Descendente da família severiana por parte da esposa do primeiro imperador
da dinastia, a princesa síria e imperatriz romana Júlia Domna, esposa de Septímio Severo,
Heliogábalo teve seu poder transmitido de forma matrilinear. Era filho da também
princesa síria Júlia Soemia, filha de Júlia Mesa, a irmã da imperatriz Júlia Domna.
De maneira geral, os autores greco-romanos dos textos sobre Heliogábalo que
chegaram até nossos dias desenvolveram suas críticas apoiados em elementos de seu
governo e práticas político-religiosas ligadas à sua identidade cultural considerada
bárbara e elementos e imagens ligados às representações de gênero e usos dos prazeres
sobre o imperador. Sobre estes últimos elementos, os textos irão frisar uma imagem de
Heliogábalo considerado feminino e seu comportamento sexual e amoroso mais
semelhante ao que era considerado próprio de mulheres naquele contexto: a submissão, o
descontrole e o excesso. Os textos ainda aludem a uma suposta tentativa de cirurgia
destinada à elaboração de uma vagina em seu corpo.96

94
Segundo Dião Cássio (História Romana, LXXIX, 30, 2), seu pai era de Apamea, na Síria, da mesma raça
da mãe.
95
A ideia de estudar Heliogábalo surgiu a partir da minha tese de doutorado, apresentada na Universidade
Estadual Paulista – UNESP/Franca, em 2014, quando defendi que elementos de identidade cultural eram
essenciais para a manutenção da ordem imperial romana no contexto dos Severos por meio do estudo das
obras de Flávio Filóstrato. Na mesma ocasião tive contato também com os textos de Dião Cássio e
Herodiano sobre o período severiano (193-235 EC). Ainda durante meu doutoramento, percebi a
negligência que Heliogábalo tem recebido da historiografia. Não há muitos estudos sobre Heliogábalo
internacionalmente, pelo menos se comparado a vários outros imperadores do Principado, e, pelo que me
consta, ainda não havia pesquisas sobre ele no Brasil.
96
Conta Dião Cássio (História Romana, LXXX, 17, 1) que Heliogábalo buscou médicos por todo o Império
que pudessem fazer nele uma vagina. Tal ato tem sido interpretado por estudiosos como sendo parte das
cerimônias de iniciação ao culto ao deus solar Elagabal de Emesa, do qual o imperador era sacerdote. Sobre
isso ver: ICKS, 2015; TEIXEIRA 2008. Corroborando tais historiadores, acrescento à interpretação sobre
a ideia trazida por Dião Cássio, a observação de que a mesma mostra como as práticas religiosas de
Heliogábalo eram totalmente estranhas e bárbaras para homens como o escritor. Portanto, para mim, as
representações de gênero depreciativas de Heliogábalo estão ligadas também à sua identidade cultural e à
visão negativa de suas práticas político-administrativas por aristocratas como Dião. Minha visão de
questões de gênero, dessa forma, não está isenta de uma interpretação das encenações e representações do
mesmo no âmbito da política e das relações de poder e governabilidade, como bem indica a historiadora
Joan Scott (1995), ao propor o uso do gênero como categoria de análise histórica.

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Neste texto, especificamente, analisarei aspectos de sua imagem ligada à questão


da barbaridade. Neste caso, não focarei aqui na análise sobre seus usos dos prazeres e
aspectos de gênero tão marcantes na documentação textual sobre este imperador.
Portanto, viso analisar aspectos de sua identidade cultural refletidos em suas práticas
político-administrativas, que podem ter incomodado tanto os escritores contemporâneos
do imperador, a saber: Dião Cássio, Filóstrato e Herodiano. Feita tal análise, irei propor
aspectos importantes para a compreensão destas críticas.
Cumpre destacar que como identidade cultural, estou compreendendo a
representação de si ou de um grupo enquanto pertencente a um conjunto de pessoas com
valores e características culturais compartilhadas. Considero que a construção das
identidades sempre perpassa a visão do eu/nós em oposição ao outro ou aos outros grupos
(CARDOSO, 2003; SAID, 2007). Assim sendo, as construções das identidades culturais
sempre devem ser percebidas em seus aspectos relacionais.
É importante destacar também que, para a interpretação que será feita neste artigo,
estou corroborando uma historiografia que percebe a existência de uma cultura das elites
no Império Romano, formada especialmente por elementos culturais gregos e romanos
em interação. Seguindo esta historiografia, defendo que durante o Império foi construída
uma identificação greco-romana entre os grupos privilegiados, identificação essa que foi
um fator de coesão e ordem no mundo imperial romano, embora as culturas dentro do
Império fossem muito mais plurais que isso e em cada região tão cultura de elite se
hibridizasse de diferentes formas e ritmos. Dentre os historiadores que trabalham com tal
percepção cito Greg Woolf (1998), Janet Huskinson (2000) e Andrew Wallace-Hadrill
(2008), por exemplo.
Neste sentido, Janet Huskinson (2000) analisa a existência de uma cultura das elites
no Império Romano, formada por elementos gregos e romanos em interação. Dessa
forma, para a estudiosa, se construiu uma identificação greco-romana entre grupos
privilegiados que foi um fator de coesão no Império Romano, embora as culturas dentro
do Império fossem muito mais que isso. Sua proposta é perceber como se operacionaliza
uma unidade no Império Romano sem destruir as diversidades. Sendo assim, a estudiosa
se utiliza dos termos grego e romano para definir as identidades em questão, mas
reconhece uma cultura greco-romana das elites. No entanto, para a autora, a diversidade
de outras identidades e a forte presença de tradições culturais por todo Império cria
variações locais. Embora a proposta da autora seja interessante em muitos aspectos,
percebo que Huskinson (2000), nos dois textos de sua autoria que compõem o livro que

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ela própria organiza, trabalha com a ideia de que apenas Roma emana cultura,
incorporando tradições gregas.
Assim como Huskinson (2000), Andrew Wallace-Hadrill (2008) acredita em uma
espécie de identificação das elites, algo não natural ou étnico, mas construído em uma
relação dinâmica da cultura romana com a cultura grega, especialmente, e também com
as demais culturas imperiais. Wallace-Hadrill (2008), ao analisar as transformações da
cultura romana na Península Itálica, defende que há a convivência de diferentes culturas
dentro do Império Romano em uma pluralidade, certas vezes com identidades
conflituosas, certas vezes com identidades paralelas. Ademais, o autor questiona os
próprios sentidos do que era ser romano, o que para ele é visto como uma identificação
que muda com o tempo.
Embora não refletindo sobre a questão identitária, mas sobre os grupos sociais, o
famoso epigrafista húngaro Gèza Alföldy (1989: 146), traz uma visão que corrobora os
autores citados ao refletir sobre os grupos das elites urbanas do Império, escrevendo que
eles “eram os representantes por excelência dos ideais e costumes romanos, preservando
assim a unidade do Império Romano” e sua ordem.
Como ordem imperial romana, por sua vez, pela leitura de Ramsay MacMullen
(1966) sobre quem eram os inimigos da ordem romana, reconheço que a ordem é a
estabilidade político-administrativa do Império. Diante disso, acredito que havia vários
elementos que deveriam ser buscados a fim de garantir tal estabilidade, um deles era o
reconhecimento e a aceitação de “significados compartilhados” pelos grupos das elites
imperiais no âmbito das relações político-culturais em meio à diversidade cultural
(HUNSKINSON, 2000: 07). Nesse sentido, mecanismos e estratégias variadas foram
criados, recriados, incorporados e negociados para o controle das inquietações de diversas
naturezas, para a criação de discursos em comum entre grupos das elites e,
consequentemente, para a manutenção da ordem. Destaco o papel de escritores como
Filóstrato, escritor grego e um dos autores que serão analisados neste artigo em relação a
Heliogábalo. Filóstrato nos apresenta sua ideia sobre o que é ordem (κόσμος – kósmos)
nas palavras de Apolônio de Tiana, biografado por Filóstrato, ao imperador Domiciano
(VA, VIII, 7, 7):
Nós devemos compreender a ordem que é dependente da criação divina
sobre tudo que há no céu, na terra e no mar, em tudo o que os humanos
tomam parte, exceto infortúnio. No entanto, também existe a ordem
dependente do homem de bem, que não excede os limites de sua

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sabedoria e que também vós, imperador, reconheceis que requer um


homem feito à imagem e semelhança divina.
E qual a forma dessa ordem? As almas indisciplinadas se voltam
enlouquecidas contra toda forma de organização. As leis são
inoperantes, não há tipo algum de moderação, os deuses se veem
desonrados, amam a mentira e a indolência, cresce a preguiça, má
conselheira de qualquer ação [...]. Assim, necessita-se de um homem
que coloque ordem nas almas, um homem que se apresente como um
deus por sua sabedoria.

A ordem, para Filóstrato, é a harmonia viabilizada por meio de leis e de um bom e


moderado administrador, no caso o imperador romano. Esse administrador deve ser
auxiliado por um homem sábio, que por sua sabedoria e formação cultural – ou seja, sua
paideia – se eleva a si próprio e ao imperador, transformado este também em sábio e em
algo próximo ao divino. Concluindo, para que a ordem romana seja estabelecida em seus
múltiplos aspectos, é necessária, ao lado do imperador de Roma, a participação de sábios
como Apolônio, projeção de Filóstrato e de seus sofistas, em diferentes funções. Portanto,
o que dá unidade e ordenamento é, em Filóstrato, o imperador romano e a cultura grega.
Diante destas reflexões, é importante salientar, como mostrou Paul Veyne (2009:
8), que o imperador romano era legitimado na prática, especialmente, por um acordo
consensual entre exército e Senado. Era importante, então, que os imperadores buscassem
a todo o momento afirmar sua legitimidade, criando estratégias chamadas pelo historiador
citado de ideologia do consenso.
É sabido que Heliogábalo chegou ao poder em 218 após um possível complô
conhecido pelas fontes como tendo sido organizado por sua avó, Júlia Mesa, com a ajuda
do exército. Este complô envolveu o assassinato do usurpador do governo da dinastia dos
Severos, o então imperador Macrino (217-218), e a retomada do poder da dinastia
severiana. Desde as primeiras medidas tomadas com a ascensão de Heliogábalo, já temos
os autores dos textos trabalhados neste artigo insatisfeitos com o jovem princeps, que
acende ao cargo com apenas catorze anos e começa uma série de medidas político-
administrativas que não os agradam. Portanto, ao que parece, ainda que o exército tenha
conseguido fazer o imperador e o Senado tenha aceitado, estabelecendo assim um acordo
do qual os imperadores eram fruto, este consensus universorum permanece aberto para
alguns grupos das elites.
Logo que Heliogábalo é aclamado imperador, ele passa a se chamar Marco Aurélio
Antonino, em referência a Caracala, imperador severiano seu antecessor e cuja
paternidade é alegada para Heliogábalo (HERODIANO, História do Império Romano, V,

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3, 10; DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXIX, 32; 2-3), possivelmente, como forma
de legitimação de seu governo.
Assim sendo, houve estratégias da corte severiana no sentido de legitimar e dar
governabilidade para Heliogábalo. Porém, acredito que as práticas políticas de
Heliogábalo, muito envolvidas com sua religiosidade e seus costumes siríacos, não
agradavam alguns homens das elites como Dião Cássio, Filóstrato e Herodiano, não sendo
estabelecido da forma necessária o espaço para o consenso durante seu governo, o que
pretendo mostrar neste texto.
A fim de atingir os objetivos aqui propostos, analisando a documentação dentro da
proposta definida acima, que visa relacionar aspectos das construções discursivas sobre
Heliogábalo em relação às suas práticas de governo, ligadas, por sua vez, à sua identidade
cultural bárbara e à ordem imperial romana, apresentarei a seguir algumas informações
importantes em torno do imperador Heliogábalo, bem como sobre os escritores que lhe
foram contemporâneos. Estes escritores, por escreverem sobre o imperador de forma
extremamente negativa, serão aqui chamados de seus detratores.

Heliogábalo e seus detratores


O nome de nascimento de Heliogábalo é Vário Avito Basiano, mas ele passou a
chamar-se Marco Aurélio Antonino, como já mencionado, quando foi aclamado
imperador. O nome latinizado Heliogabalus, na tradução Heliogábalo, vem de uma
tradição tardia, como vemos na Vita Heliogabali, da História Augusta, e faz referência a
Elagabal, o deus solar de sua cidade natal Emesa na Síria, deus ao qual ele foi um fiel
sacerdote e elevou o culto para além dos limites do que era aceito pela elite da cidade de
Roma, como interpreto, o que o marcou a ponto de ele ficar conhecido desta forma a partir
do século IV EC.
Sobre os escritores dos textos analisados neste artigo, sabemos que Dião Cássio
nasceu em Niceia (Bitínia), foi um historiador e homem público da ordem senatorial que
residiu em Roma. Foi governador de províncias, tendo uma importante carreira política.
Em relação à dinastia dos Severos, sabemos que Dião Cássio fez parte da corte
imperial severiana e recebeu diversos prestígios políticos sob o governo de Heliogábalo
(218-222) e Severo Alexandre (222-235), os dois últimos imperadores da dinastia,
chegando a dividir o consulado com este último em 229, sendo o segundo consulado do
historiador. Dião foi também um dos amici (conselheiros) de Alexandre Severo
(CROOK, 1975: 91), mostrando claramente suas boas relações e o fato de ser

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extremamente favorável a este imperador no final de sua obra (História Romana, LXXX,
5).
A obra de Dião, História Romana, é organizada em oitenta livros que cobrem da
fundação de Roma até meados do governo de Severo Alexandre, quando Dião encerra a
obra, mostrando estar doente e retornando para sua terra natal na Bitínia. História Romana
é fortemente marcada pelos valores senatoriais de Dião Cássio. A obra foi escrita e dada
a ler, possivelmente, entre a morte de Heliogábalo em 222 e a do historiador em 230
(ARRIZABALAGA Y PRADO, 2014: 26).
Já o sofista e biógrafo Flávio Filóstrato nasceu por volta de 160 e 170 na Ilha de
Lemnos, parte do território ateniense, e ficou conhecido pela tradição como um destacado
sofista do período do Principado. Sua família esteva entre as mais nobres de Atenas por
volta dos séculos II e III, ocupando, segundo a epigrafia, posições importantes em
Lemnos, em Atenas e também na cidade de Eritrai, na Jônia. 97
Conforme conta o próprio Filóstrato, ele fez parte de um grupo de escritores
próximos da imperatriz Júlia Domna, esposa de Septímio Severo, mãe dos futuros
imperadores Caracala e Geta e importante personagem na política romana nos governos
de seu marido e de seu filho Caracala. É Júlia Domna quem Filóstrato diz ter-lhe pedido
que escrevesse a obra sobre a vida de Apolônio de Tiana (VA, I, 3), por quem a família
severiana parece ter rendido especial admiração (VA, VIII, 31; DIÃO CÁSSIO, História
Romana, LXXVIII, 18, 4; História Augusta, Vida de Severo Alexandre, 29, 2).
Não há como precisar quando Filóstrato passou a viver em Roma, fazendo parte da
corte severiana, mas, provavelmente, ele foi para a capital imperial a fim de ocupar
alguma função próxima à corte. É certo que os sofistas tinham grande popularidade em
Roma no período dos Antoninos e dos Severos, o que também pode ter motivado a ida de
Filóstrato para a capital do Império.
Embora sem informação precisa da documentação sobre um possível cargo
ocupado por Filóstrato junto à corte severiana, acredito nessa possibilidade tendo em vista
que o sofista deixou sua região, onde possivelmente já ocupava cargos em troca de algo
que, a seu ver, poderia ser melhor para sua carreira. Glen Bowersock (1969: 106-108)
também registra que era muito comum sofistas de língua grega, frequentadores das cortes
imperiais romanas, se tornarem epistulis graecis, função que este estudioso acredita ter

97
As informações epigráficas sobre Filóstrato foram tiradas das análises de Bernadette Puech, estudiosa
que catalogou e analisou textos epigráficos da documentação material referentes a sofistas gregos da época
imperial romana no livro Orateurs et Sophistes Grecs dans les inscriptions d’Époque Imperiale (2002).

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sido uma das pretensões de Filóstrato junto aos Severos, possivelmente durante o período
de Septímio Severo e/ou Caracala, quando Júlia Domna, de quem Filóstrato parece ter
sido muito próximo, estava viva.98
Estudiosos como Münscher, Bowersock (apud PUECH, 2002: 378) e Jaap-Jan
Flinterman (1995: 26) acreditam que Filóstrato se estabeleceu em Atenas após a morte de
Júlia Domna em 217, quando Macrino e depois Heliogábalo passam a governar. Tal
hipótese pode ser considerada a partir da existência de uma estátua referindo-se a
Filóstrato como sofista na cidade de Atenas. 99 Se realmente Filóstrato se afastou ou foi
afastado da corte imperial após a morte de Júlia Domna, temos aqui um motivo pessoal
para suas considerações negativas sobre Heliogábalo, o sucessor severiano. Não sabemos
ao certo a data de morte de Filóstrato.
Já os aspectos biográficos do historiador Herodiano são bem menos conhecidos pela
historiografia contemporânea, que parte da interpretação de sua própria obra para levantar
alguns dados sobre o autor que viveu entre 180 e 250, aproximadamente. Um dos trechos
debatidos em torno da biografia do escritor diz:
Mas eu escrevi uma história sobre os feitos posteriores à morte de
Marco que vi e escutei durante toda a minha vida. E em alguns deles
participei diretamente nos meus postos de serviço imperial e público
(HERODIANO, História do Império Romano, I, 2, 5, grifo meu).

Diante da citação acima, temos que Herodiano ocupou cargos político-


administrativos no Império, mas, possivelmente, cargos menores que Dião Cássio. Santo
Mazzarino (1974, Apud GONÇALVES, 1996: 54) posiciona Herodiano como um liberto,
o considerando um escritor de corte da época dos Severos, assim como acredito que
devem ser considerados Dião e Filóstrato. Sobre a hipótese de Herodiano ter sido um
liberto, podemos pensar na mesma uma vez que o autor se preocupa menos com as
grandes questões de governo do que Dião Cássio, um senador, se atentando, por sua vez,
mais do que Dião, em complexos aspectos de personalidades dos governantes.
Herodiano pode, ainda, ter sido um procurador equestre, o que talvez seja
demonstrado pelo conhecimento que ele aparenta ter fruto de possíveis viagens, bem
como por seu conhecimento de assuntos fiscais.

98
Sobre a proximidade de Filóstrato com a imperatriz Júlia Domna, sugiro a leitura do primeiro capítulo
de minha tese de doutoramento, intitulada O Império Romano do sofista grego Filóstrato nas viagens da
Vida de Apolônio de Tiana (século III d.C.). A tese encontra-se disponível em:
http://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/tese-semiramis-corsi-silva-final-apos-defesa.pdf.
Acesso em: 21/10/2017.
99
Sobre esta estátua ver: PUECH, 2002.

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A origem do nascimento de Herodiano também é incerta, havendo autores que o


remetem como nascido na Síria (MAZZARINO, 1974 Apud GONÇALVES, 1996: 54) e
outros a alguma cidade da Ásia Menor, na região da Anatólia (CASSOLA, 1967,
ROQUES, 1990, Apud GONÇALVES, 1996: 54; TORRES ESBARRANCH, 1985).
Certamente, a posição subalterna de Herodiano em funções político-
administrativas, em relação a Dião Cássio e a Filóstrato, marcou seus escritos, o que
destaco. No entanto, não devemos pensar a obra de Herodiano como refletindo valores
das camadas populares, uma vez que como próximo à corte imperial, sua visão vai ao
encontro de valores dos grupos das elites, especialmente dos senadores romanos. Para
Leonardo Arrizabalaga y Prado (2014: 31), a diferença nas histórias de Dião Cássio e
Herodiano está na profundidade dos detalhes de algumas informações e também no foco
e no tom dos escritores, sendo que Dião traz mais informações que Herodiano sobre
política e governo.
Em relação às descrições sobre Heliogábalo, para o historiador citado acima, Dião
Cássio se foca mais em detalhes, o que ele interpreta por Dião ser mais próximo no tempo
e no status social em relação ao imperador trabalhado neste artigo. Além disso,
Arrizabalaga y Prado (2014: 33) nos atenta para percebermos que Herodiano acertou
dizendo que Heliogábalo assumiu o poder aos catorze anos, mas errou dizendo que ele
morreu aos seis anos de seu governo, já que o correto foi aos quatro anos de seu governo.
Tal erro, talvez, advenha do fato de Herodiano ter escrito um pouco depois do governo
de Heliogábalo, embora tenha sido seu contemporâneo, e mais distante da cidade de Roma
e de informações mais precisas sobre o governo dos imperadores.
Herodiano escreveu a obra História do Império Romano entre os anos de 180 e 238,
sendo que a mesma está organizada em oito livros cobrindo os governos de Marco Aurélio
até o começo de Gordiano III. A escrita e publicação da obra de Herodiano,
possivelmente, está marcada entre a ascensão de Gordiano III, o último imperador
mencionado, e a morte de Herodiano entre 238 e 250.
Os três autores escreveram em grego, como era mais comum entre os escritores que
advinham das regiões orientais do Império Romano. Todos os três refletem valores dos
grupos das elites em relação à identidade greco-romana e a ordem imperial, como
mostrarei a seguir em relação aos juízos sobre Heliogábalo.

Barbaridade versus Humanitas e o governo de Heliogábalo

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A criação do conceito de bárbaro (βάρβαρος – barbaros) surgiu entre os gregos


antigos. Já nas obras atribuídas ao poeta Homero, Ilíada e Odisseia, possivelmente do
século VIII AEC, temos a percepção do que era ser bárbaro, embora a identidade grega
em si estivesse pouco definida em tal contexto (HARTOG, 2004). Ser bárbaro nestas
primeiras obras escritas em grego era aquele que não falava a língua dos helenos, como
eram identificados os gregos.
De um critério linguístico, o termo passou a ser usado entre os gregos antigos para
definir aqueles que não compartilhavam dos códigos de comportamento, dos valores e
dos modelos ideais da cultura grega, com certa conotação negativa, embora muitas vezes
os “saberes bárbaros” fossem valorizados nos testemunhos textuais, como vemos no
escritor grego do período clássico Heródoto (Histórias), em certas passagens da obra de
Filóstrato (Vida de Apolônio de Tiana) e, como bem mostrou o historiador Arnaldo
Momigliano (1991).
Do modelo de bárbaro de Homero e Heródoto, as representações desse outro
chamado de bárbaro foram sendo estendidas para todos que fossem diferentes da cultura
grega e romana, como podemos ler nas obras de escritores do período imperial, como em
Tácito (Germânia), por exemplo. Bárbaros (gentes barbarorum) passam a ser, em geral,
aqueles que não compartilham da παιδεία – paideia grega e/ou da humanitas latina.
No pensamento romano das elites imperiais, a ideia de humanitas significava uma
ética e uma cultura literária. Era a educação letrada recebida pelos membros das elites,
que se caracterizava como a virtude de humanidade e o estado de civilização (VEYNE,
1992: 283). Esta humanitas se opunha, por sua vez, a ferocitas, estado considerado de
barbárie.
Paideia/Humanitas era a forma de diferenciação na sociedade imperial romana,
dividida entre educados (honestiores) e ignorantes (humiliores) (ANDERSON, 1989:
105), ou no grego: instruídos (πεπαιδευμένοι – pepaideumenoi) e não instruídos (ἰδιῶται
– idiotai ou ἀπαίδευτοι – apaideutoi, aquele que não recebeu a paideia).
Podemos ver em Filóstrato que pepaideumenoi é aquele que recebeu a paideia
grega (VA, III, 43). Esse fator também era o que aqueles homens instruídos sentiam
diferenciá-los dos bárbaros (βάρβαροι – barbaroi). A diferenciação fica clara na
passagem em que Filóstrato descreve Damis, o discípulo de Apolônio de Tiana: “A
linguagem do assírio era medíocre, pois não tinha elegância de estilo, educado como foi
entre os bárbaros [...]” (VA, I, 19). Assim também um homem grego podia tomar fama de
bárbaro se fosse considerado ignorante (VA, I, 16). Portanto, como vemos, a

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paideia/humanitas era algo que podia ser recebido através da educação e não,
necessariamente, do local de nascimento de uma pessoa.
Sobre Heliogábalo como bárbaro, de acordo com a documentação textual, uma das
primeiras coisas que Heliogábalo faz ao se tornar imperador é construir um templo em
Roma para adoração do deus solar Elagabal (HERODIANO, História do Império
Romano, V, 5, 8), divindade de sua cidade, Emesa, do qual seus ancestrais sírios, ele e o
futuro imperador Severo Alexandre tinham uma tradição enquanto sacerdotes. Nesse
templo uma pedra negra servia de estátua do deus. A adoração ao deus é tida como coisa
de bárbaros pelos escritores do período, que nos dizem:
Os dois garotos [referindo-se aos futuros imperadores Heliogábalo e
Severo Alexandre] eram sacerdotes do Sol, a quem veneram os
habitantes daquela região com o nome fenício de Elagabal. Este povo
construiu um grandioso templo, sem economizar no ouro e na prata,
com muitas pedras. Não apenas lhe rendem culto os habitantes do lugar,
mas todos os sátrapas vizinhos e os reis bárbaros, que cada ano enviam
oferendas caras ao deus com o desejo de serem diferenciados. Não se
vê nenhuma estátua, que represente o deus, feita pela mão do homem,
como as dos gregos e as dos romanos. Há, no entanto, uma pedra
enorme, de base redonda e com uma ponta em cima, cônica e negra.
Garantem, com orgulho, que caiu do céu, e mostram pequenas
saliências e incisões em sua superfície, acreditam que é a imagem do
Sol, na qual a mão do homem não interviu. É assim que a veem
(HERODIANO, História do Império Romano, V, 3, 4-5, grifos meus).

Conforme estudos arqueológicos, vemos a possível localização do templo de


Elagabal no Palatino, o centro político-administrativo da cidade de Roma, embora não
haja consenso entre os pesquisadores sobre este local (ARRIZABALAGA Y PRADO,
2014: 147). No entanto, os estudos arqueológicos localizam um templo para divindades
de origens siríacas construído antes deste na região do Transtevere, também em Roma.
Os artefatos encontrados neste local mostram o culto de Elagabal em Roma antes do
governo de Heliogábalo, tendo sido construído no governo de Septímio Severo ou de
Caracala (ARRIZABALAGA Y PRADO, 2014: 147), antecessores de Heliogábalo.
Temos também moedas que mostram a divulgação da devoção à Elagabal pelo
antecessor de Heliogábalo, Caracala. Portanto, se a cultura material nos apresenta que já
havia o culto à divindade solar de Emesa em Roma antes de Heliogábalo, minha pergunta
é: por que Heliogábalo foi tão criticado neste sentido e seus antecessores não?
A História Augusta (Vida de Heliogábalo, III, 5) chega a comentar que Heliogábalo
queria implantar um monoteísmo em Roma, o que os escritores seus contemporâneos não

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comentam e que em uma análise apurada destes textos e da cultura material podemos ver
o contrário. Há moedas cunhadas na época de Heliogábalo com referências aos deuses
Marte, Cibele, Juno, Júpiter e Vênus, por exemplo (ARRIZABALAGA Y PRADO, 2014:
75). Mas, como mostra Erika Manders (2012: 147), estudiosa da numismática dos
imperadores romanos, as moedas testemunham a força da religiosidade de Heliogábalo e
do que ela chama de reformas administrativas que ele tenta implantar, havendo uma
preponderância das representações de Elagabal. Não foi a implantação de um monoteísmo
propriamente, mas Júpiter ficou para segundo plano, segundo Manders.
Além disso, percebo que Herodiano (História do Império Romano, V, 6, 3-5)
comenta que Heliogábalo tentou casar Elagabal com Palas e depois com a deusa Urânia,
deusa associada com a Atargatis síria. Leio esta passagem como uma espécie de encontro
cultural que o imperador buscou desenvolver em seu governo, uma tentativa político-
administrativa de conciliar elementos de sua cultura com elementos da cultura greco-
romana, que contraria a ideia do monoteísmo da História Augusta. Portanto, Heliogábalo
parece ter tentado desenvolver aspectos de encontro cultural entre sua cultura e as
tradições romanas em suas práticas políticas.
Mas, segundo os escritores contemporâneos de Heliogábalo, o imperador colocou
Elagabal acima do próprio deus Júpiter Capitolino (HERODIANO, História do Império
Romano, V, 10; DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11), o que também aparece
nas moedas de acordo com a análise de Manders.
As moedas apresentam ainda a festa em honra a Elagabal em Roma, um momento
de grande horror aos olhos de Herodiano que nos descreve a cena com espanto:
Construiu [referindo-se a Heliogábalo] fora de Roma um enorme e
magnífico templo, onde levava o deus todo ano no meio do verão.
Instituiu todo tipo de festas e construiu circos para as corridas de
cavalos e teatros [...]. Para conduzir o deus da cidade para fora, o
colocava em uma biga coberta de ouro e pedras preciosas. A biga era
constituída por seis grandes cavalos brancos sem manchas, com arreios
de ouro e ricos ornamentos. Ninguém segurava nas rédeas, e ninguém
estava na carruagem; o veículo era conduzido como se o próprio deus
fosse o cocheiro da biga. Antonino corria de costas à frente da
carruagem, olhando para o deus e segurando nas rédeas dos cavalos. Ele
fazia toda a viagem nesta maneira contrária, olhando para a face do seu
deus (HERODIANO, História do Império Romano, V, 6, 6-8, grifo
meu).

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Há moedas que atestam a existência de uma procissão que levava a pedra de


Elagabal para os subúrbios de Roma. 100 Além disso, temos também estudos arqueológicos
sobre a possibilidade de que dois sítios em Roma sejam uma villa suburbana, onde
supostamente Heliogábalo realizava corridas de cavalos e um templo para Elagabal,
também suburbano (ARRIZABALAGA Y PRADO, 2014: 147), sendo estes, para mim,
possivelmente, o templo e o circo comentados por Herodiano.
De maneira geral, vejo que a forma como Heliogábalo cultuava Elagabal era uma
marca da barbaridade no coração do Império, não era um monoteísmo, mas, apesar de sua
tentativa de confluência cultural, marcava uma fronteira nos limites da ordem imperial
romana que seus antecessores não haviam ultrapassado, ainda que tivessem levado o culto
de Elagabal para Roma. Assim, vemos a construção de uma ideia de superstitio
proveniente do Oriente e marcada como coisa de bárbaros.
Além disso, Heliogábalo se vestia e se comportava como bárbaro segundo as
representações da documentação escrita, o imperador se negava a usar a toga
característica da elite romana. Da mesma maneira, o imperador é mostrado dançando e se
maquiando aos moldes bárbaros.
Além disso, ele era frequentemente visto, até mesmo em público,
usando vestimentas bárbaras [τὴν ἐσθῆτα τὴν βαρβαρικήν] que os
sacerdotes sírios usavam, e isso foi a razão de receber o apelido de “O
assírio” (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11, 2, grifo meu).

Sua roupa estava entre as vestimentas dos sacerdotes fenícios e a


luxuosa indumentária dos medos. Detestava os vestidos romanos e
gregos porque, dizia, estavam feitos de lã, uma matéria prima pobre.
Apenas gostava dos tecidos de seda. Aparecia em público ao som de
flautas e tambores, sem dúvida em honra ao seu deus.
Ao vê-lo desta maneira, Mesa, se enfadava muito e, suplicante, tentava
convencê-lo de que, ao se aproximar de Roma, com sua entrada no
Senado, trocasse aquelas roupas por uma vestimenta romana. Temia
que aquela roupa estranha e bárbara em todos os detalhes causasse
desgosto nos que o vissem por não estarem acostumados. Temia que
pensassem que aquilo não se tratava de coisas de homem, mas de
mulher. Mas Antonino menosprezou o conselho da anciã e ninguém o
convenceu (HERODIANO, História do Império Romano, V, 5, 4-6,
grifos meus).

E coisas tidas como horríveis, porque bárbaras, são contadas como tendo sido
cometidas pelo jovem Heliogábalo com sua mãe e avó juntas:

100
Como a moeda catalogada em RIC IV, II, 196A, por exemplo.

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Não descreverei os cantos bárbaros [τάς τε βαρβαρικὰς ᾦδὰς] que


Sardanapalo junto com sua mãe e avó, cantaram a Elagabal, ou os
sacrifícios secretos que ele ofereceu ao deus, matando garotos e usando
encantamentos, na verdade, alimentando um leão, um macaco e uma
serpente no templo dos deuses, jogando no meio deles órgãos genitais
humanos, e praticando também outros ritos profanos, enquanto usava
invariavelmente inúmeros amuletos. Importante elencar que ele foi ao
absurdo extremo a ponto de cortejar uma mulher para Elagabal, como
se o deus tivesse qualquer necessidade de casar e ter filhos (DIÃO
CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11; 12, grifo meu).

Filóstrato, na Vida de Apolônio de Tiana, em uma passagem interpretada por mim


como metafórica, durante a narração sobre a estadia de Apolônio na Índia, apresenta a
chegada na terra dos sábios brâmanes de um rei indiano de nome não mencionado. O rei
chega junto com um alvoroço de pessoas, vestido cheio de pedras e fausto, como os persas
segundo o texto, este rei é considerado desprovido de inteligência, falando coisas sem
sentido, detestando os gregos e não falando a língua grega a ponto de precisar se
comunicar com Apolônio usando um intérprete (VA, III, 31). A apresentação deste rei de
nome não mencionado, para mim, é uma metáfora de Heliogábalo feita por Filóstrato,
com suas roupas estranhas aos olhos dos gregos e romanos de elite, sempre acompanhado
de muitos rumores sobre sua vida.
Da mesma maneira, Filóstrato apresenta na Vida de Apolônio de Tiana um rei
indiano tido como ideal, Fraotes, conhecedor da língua grega e tendo ao seu lado os sábios
indianos como professores e conselheiros. Já o rei indiano criticado, desprezava os sábios
brâmanes conhecedores da cultura grega. Mais uma metáfora em relação a Heliogábalo e
Severo Alexandre é feita em minha interpretação aqui.
Segundo Dião Cássio (História Romana, XXX, 3, 3), Heliogábalo desvirtuou os
cargos políticos mais tradicionais e colocou homens sem experiências políticas e que
nunca haviam estado em Roma em altos postos do governo, além de alguns de seus
aliados serem afeitos em artes desprezíveis para um ocupante de cargos político-militares,
como o caso de Públio Valério Comazon, o prefeito do pretório de Heliogábalo que
gostava de atuar no teatro.101 Heliogábalo, conta Dião (História Romana, LXXX, 15, 4),
chegou a ponto de querer nomear um liberto, no caso seu amante, como o próprio César.
E, conforme Herodiano (História do Império Romano, V, 7, 6), Heliogábalo expulsou os

101
Como mostra Alföldy (1989: 150-151), a profissão de ator era uma das profissões ocupadas pelos
membros das camadas inferiores urbanas no contexto do Principado, indigna de um prefeito do pretório,
cargo de membros da ordem equestre.

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mestres gregos e romanos de seu primo Severo Alexandre do palácio, chegando a matar
alguns deles.
Verdade ou não, as ideias acima me fazem refletir sobre como os escritores da época
defenderam que Heliogábalo ultrapassou os limites em relação às tradições de nomeações
de cargos vinculadas ao jogo político entre imperador e elites, especialmente a elite
senatorial romana. Heliogábalo também não respeitou, na visão dos autores, às práticas
que valorizavam o cultivo dos costumes greco-romanos, espaço discursivo necessário
para a ordem imperial, embasados na cultura e na identidade, como defendo.
Relacionando as passagens de Filóstrato sobre os reis indianos com as ideias de
Dião Cássio e Herodiano apresentadas, podemos ver como o biógrafo de Apolônio de
Tiana parece ter tentado mostrar, metaforicamente, como Heliogábalo errava não tendo
ao seu lado homens sábios de cultura helênica como ele próprio e os sofistas, grupo do
qual Filóstrato fazia parte, assim como errava o rei indiano criticado que menosprezava
os sábios brâmanes. Nesta metáfora, portanto, Filóstrato parece concordar com as
informações de Dião e Herodiano e com a visão negativa sobre Heliogábalo por seus
comportamentos que fugiam totalmente dos costumes greco-romanos das elites
imperiais. 102
Como vemos, portanto, o rei modelo ideal para Filóstrato, o indiano Fraotes, é
aquele que se identifica com a cultura grega. Esse mesmo rei, assim como Heliogábalo e
Severo Alexandre, também cultuava uma divindade solar. No entanto, em uma passagem
bem interessante do Livro III da Vida de Apolônio de Tiana o outro rei indiano de nome
não identificado que não conhece nada dos gregos, por sua vez, não apenas cultua uma
divindade solar, mas se identifica como o próprio astro:
Apolônio, servindo de Iarcas como intérprete, disse:
- E o que você ganhou, rei, recusando a filosofia?
- O que eu ganhei? Toda a virtude e a identificação de mim mesmo com
o sol.
Apolônio, então, para freiar seu orgulho e o calar disse:
- Se filosofasse não pensaria assim (FILÓSTRATO, VA, III, 28).

Em minha leitura, na passagem acima, possivelmente, Filóstrato quis identificar o


rei indiano de nome não mencionado com o imperador Heliogábalo, que era tido por
homens como Dião, Herodiano e Filóstrato como tirano, extravagante, exótico, bárbaro,

102
Em uma passagem de outra obra da autoria de Filóstrato, a Vidas dos Sofistas (VS, II, 624), o autor
refere-se ao imperador Heliogábalo como tirano.

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não conhecedor da cultura greco-romana uma vez que exaltava exageradamente a sua
cultura da Síria e se identificava como o próprio sol. Além disso, o rei que se identifica
com o sol, faz isso porque não conhece filosofia, segundo Filóstrato.
Dessa forma, leio a passagem escrita por Filóstrato sobre a relação dos dois reis
indianos com a divindade solar como outra metáfora em relação aos imperadores
Heliogábalo e Severo Alexandre. Aquele rei, Fraotes, que cultua a divindade é aceito e
está dentro dos moldes do que as elites greco-romanas imperiais concordavam (o que fez
Severo Alexandre), já o que se vê como o próprio deus, muito mais aos moldes do que os
gregos e romanos consideravam como coisa dos tiranos e despóticos monarcas orientais,
é considerado por Filóstrato um desconhecedor da filosofia, um ignorante (Heliogábalo),
alguém desprovido dos conhecimentos da paideia, da humanitas.
Acredito que o culto solar de Heliogábalo em si nunca foi um problema para
escritores como Filóstrato, o problema estava na identificação do imperador com o “astro
rei”, principio e unidade centralizadora, metáfora do despotismo e da tirania, ideias que
fogem da ordem esperada por membros das elites como os autores aqui tratados, os
detratores de Heliogábalo.
A necessidade de manutenção da ordem por meio de um imperador habituado aos
costumes greco-romanos, ou seja, a necessidade de manutenção de um espaço discursivo
da cultura greco-romana que deveria ser respeitado pelos imperadores, está claro na
passagem abaixo, de Herodiano. Na passagem, vemos Júlia Mamea tentando mudar os
planos educacionais para o sucessor de Heliogábalo, Severo Alexandre, o diferenciando
do primo:
Mas Mamea, lhe retirou daquelas atividades vergonhosas e impróprias
de um imperador; buscou em segredo mestres de todas as disciplinas e
o exercício de práticas de moderação ao mesmo tempo em que o
habituava nas palestras e nos exercícios viris, lhe dando uma educação
grega e romana (HERODIANO, História do Império Romano, V, 7, 5,
grifos meus).

Como vemos, então, Heliogábalo é considerado um bárbaro e é muito diferente da


imagem que será trazida em Dião Cássio e Herodiano sobre seu primo Alexandre, que
mesmo vindo também da Síria, recebe uma educação greco-romana e se adequa aos
modelos esperados para um bom governante neste sentido. Alexandre tem ao seu redor
sábios como professores e conselheiros entre os melhores senadores, na visão de Dião, e
não sírios tidos como desconhecedores dos costumes greco-romanos como teve
Heliogábalo:

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Quando o Falso Antonino foi posto para fora do caminho, Alexandre,


filho de Mamea, e seu primo, herdou o poder supremo. Ele
imediatamente proclamou sua mãe Augusta, e ela assumiu a direção dos
negócios e reuniu os sábios ao redor de seu filho, a fim de que seus
hábitos pudessem ser corretamente formados por eles, ela também
escolheu os melhores homens do senado como conselheiros,
informando-os sobre tudo o que tinha que ser feito (DIÃO CÁSSIO,
História Romana, LXXX, Fragmento, grifo meu).

E Alexandre também tem consigo os valores da humanitas, o estado de


humanidade: “Alexandre era essencialmente afável e pacífico, inclinado sempre à
humanidade, como demonstrou no decorrer dos anos” (HERODIANO, História do
Império Romano, VI, 6). Já o bárbaro Heliogábalo não segue, conforme seus detratores,
os valores da humanitas, componente central que a aristocracia da época republicana
romana se utilizava para se mostrar merecedora do Império, espécie de mito inventado
pelos gregos e difundido no pensamento romano (WOOLF, 1994: 141), configurado
como uma reescrita dos códigos dos costumes tradicionais (mos maiorum).
Assim, como podemos ver, a defesa dos valores da humanitas continua sendo
importante para a aristocracia imperial ainda no século III da era comum, mesmo com a
ascensão de elites provinciais a cargos imperiais, como a dinastia severiana exemplifica
tão bem.
Além disso, é preciso destacar que uma visão negativa geral dos sírios/assírios
parece ter sido comum durante o Império Romano.103 Veyne (2009: 128) nos conta que
temos, por exemplo, uma gravação em um rochedo em Palmira de um militar romano ou
bizantino aquartelado com os seguintes dizeres: “Os sírios são uma raça suja (kakon
genos)”. O poeta satírico Juvenal também destilou sua visão negativa contra os sírios
como poluidores do rio Tibre (Sátiras, III, 60). É inegável que essa visão negativa de
Heliogábalo como sírio/assírio recaiu sobre o imperador, uma vez que assírio chega a ser
a forma como ele era chamado (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11, 2).
Dessa forma, os feitos político-administrativos do governo de Heliogábalo tidos
como contrários a aspectos da ordem proposta por esta elite tradicional governante,
misturados às suas práticas religiosas e costumes culturais de sua região de origem, são
todos tomados e problematizados como fruto de sua identidade cultural síria/assíria

103
Percebo que os escritores romanos parecem ligar culturalmente sírios aos assírios, chamando sírios
muitas vezes de assírios, já que a Síria fora parte do território do Império Assírio, território depois
conquistado por povos iranianos e parte pelo Império Romano. Filóstrato faz esta ligação em diversas
passagens de sua obra, chamando sírios de assírios.

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bárbara, já marcada negativamente na mentalidade romana, além da recusa do imperador


em aceitar os valores da paideia/humanitas.

Heliogábalo e o topos literário do mau imperador (pessimus princeps)


Além dos elementos da identidade cultural de Heliogábalo destacados, diante do
que foi apresentado, podemos perceber que grande parte das ideias que são trazidas pelos
autores trabalhados neste artigo sobre esse imperador já estavam presentes na tradição de
imagens dos primeiros imperadores do Principado considerados ruins pelos escritores de
linhagem senatorial. 104 No caso, os imperadores Calígula (37-41), Nero (54-68) e
Domiciano (81-96), especialmente. Entre estas características estão orgulho, ódio,
perseguição à aristocracia, crueldade, se sentirem divindades ainda vivos e depravação
sexual, como mostrou Alois Winterling (2012).
Portanto, temos um topos retórico da imagem dos maus imperadores nos textos. O
imperador deveria ser a encarnação ideal das antigas virtudes romanas, sendo as
principais delas: virtus, clementia, iustitia, pietas (ALFÖLDY, 1989: 116). O que
Heliogábalo, definitivamente não cumpria, conforme a visão dos escritores dos textos
trabalhados.105 O que há de diferente em Heliogábalo, para mim, é o grau de barbaridade
de suas práticas, a maneira como os escritores ligam suas práticas à sua identidade
cultural.
Conforme Winterling (2012: 7) é preciso perceber adequadamente as tensões a
partir das quais surgem denúncias como as que ele se refere como um topos literário em
torno dos maus imperadores. No caso de Heliogábalo, penso que tais tensões têm como
fundamento suas práticas políticas, religiosas e administrativas estranhamente
consideradas como bárbaras pelos escritores, fugindo do modelo comum de ordem
baseado em certo reconhecimento identitário entre os grupos das elites, ainda que estes
grupos fossem muito diversos dentro de uma mesma província ou cidade do Império.

104
Alois Winterling (2012: 6) nos destaca muito bem que: “Praticamente todos os relatos sobre os
imperadores conhecidos por nós provêm de autores que eram membros da ordem senatorial ou equestre. O
mesmo vale, sem dúvida, para aqueles autores, que desconhecemos, das invectivas, que escreveram com
“ódio recente”. Eles eram, portanto, os membros da sociedade aristocrática que – por exemplo, nas
recepções na corte – estava em contato direto e regular com os imperadores e que foram imediatamente
afetados pelo comportamento imperial em suas oportunidades sociais – através de patronato ou acusação”.
105
Em Dião Cássio temos apenas um elogio a Heliogábalo quanto às virtudes do bom imperador, que é
quando o historiador mostra uma atitude de clemência do princeps diante dos que falavam mal de Caracala
(História Romana, LXXX, 3, 2). No entanto, em outras passagens da obra as atitudes de clemência
desapareçam totalmente das práticas de Heliogábalo.

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É preciso enfatizar que Heliogábalo desvirtua cargos tradicionais de Roma, como


apresentamos, colocando em postos, como no de prefeito do pretório, e dentro do Senado,
membros das elites sírias, pessoas facilmente consideradas bárbaras como ele dentro do
jogo de poder do governo romano. Este elemento do governo de Heliogábalo, para mim,
quebra com o que Winterling (2012) apresenta como uma espécie de pacto que fora selado
entre a aristocracia senatorial com o imperador Augusto (27 AEC-14 EC) para a
construção e manutenção do governo do princeps.106 Conforme tal “pacto”, o imperador
deveria comportar-se como um senador comum, viver de forma moderada em termos
materiais, honrar o Senado e os senadores, garantindo a distribuição de poder entre as
camadas superiores, ainda que por meio de cargos assumidos temporariamente sob a
indicação direta do próprio imperador (WINTERLING, 2012: 11-10). Em minha leitura,
esse parece ser um ponto que incomoda muito Dião Cássio ao falar de Heliogábalo. Dião
se incomoda principalmente com quem passa a ocupar o importante cargo de cônsul, o
que não devemos estranhar já que Dião fora cônsul mais de uma vez.
Luxo, ostentação e grandeza aparecem em comentários de Dião Cássio sobre
Heliogábalo, como, por exemplo, nessa passagem: “Uma estátua de ouro do Falso
Antonino [referindo-se a Heliogábalo] foi erguida, e se difere pela sua grandeza e excesso
de adornos” (História Romana, LXXX, 12, 2, 2). E atitudes de Heliogábalo que passavam
por cima do Senado também são mencionadas pelo historiador, como o uso de títulos não
recebidos mediante votação no Senado e o ato de Heliogábalo assumir o cargo de cônsul
sem ter sido eleito (História Romana, LXXX, 8, 1).
Ainda conforme Winterling (2012: 12): “Os ‘bons’ imperadores de Roma tentaram
fazer com que suas posições excepcionais como imperadores fossem evidentes o menos
possível para assim ganhar aceitação aristocrática.” Tal posição certamente não foi
assumida por Heliogábalo que, conforme a própria cultura material mostra, conduzia uma
procissão para seu deus, manda construir para ele um templo no Palatino, o coração da
cidade de Roma, exalta sua divindade de forma bárbara em moedas e é visto como se
sentindo a própria divindade, etc.
As críticas a Heliogábalo aqui tratadas, portanto, estão centradas em uma quebra de
elementos fundamentais da ordem identitária e da política de governabilidade selada entre

106
Sobre a ideia de um consenso entre a aristocracia imperial e o imperador Augusto criando um elemento
central das bases de sustentação político-administrativa da ordem romana, Dião Cássio deixa isso claro ao
comentar que para tornar-se imperador Heliogábalo enviou uma carta para o Senado em Roma onde:
“Afirmou que ele sempre, e em todas as coisas, emularia Augusto e comparou a juventude dele a sua própria
e a de Marco Antonino” (História Romana, LXXX, 1, 3, grifo meu).

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imperador e aristocracia senatorial nos tempos do imperador Augusto, política esta que
via como maus imperadores àqueles que “não tentaram esconder suas posições
excepcionais como imperadores sob uma fachada de República reconstituída”
(WINTERLING, 2012: 20).

Considerações finais
Para concluir este texto, conclusão essa que, entretanto, ainda me renderá reflexões
nos trabalhos vindouros, frutos deste projeto maior em estudar Heliogábalo, é preciso
destacar que, como vimos no começo deste artigo, Dião Cássio era um senador com
grande inserção nos postos mais altos da administração do Império, como o de cônsul e
de governador de província. Herodiano era um funcionário atuante dentro das esferas da
burocracia imperial. E Filóstrato foi, possivelmente, ab epistulis da corte severiana
anterior a Heliogábalo. Portanto, os três escritores estavam dentro das redes de disputas
por cargos, poder e status, estavam envoltos e dependiam de benesses do imperador.
Sendo assim, estes escritores não deixariam um imperador que toma medidas políticas e
administrativas que os contrariam, como Heliogábalo, passar sem críticas.
As críticas a Heliogábalo se revertem em elogios a Severo Alexandre, o oposto do
primo que o adotara como filho e sucessor, modelo de bom governante (optimus princeps)
nos autores estudados. Assim como há o modelo de mau imperador, há, portanto, seu
contra modelo, o que deveria ser seguido.
Por fim, podemos ver que os imperadores citados acima como tendo sido
considerados maus pela tradição textual foram assassinados brutalmente e também
receberam a danação da memória (damnatio memoriae) após sua morte (WINTERLING,
2012: 5), assim como aconteceu com Heliogábalo, morto violentamente em 222, tendo
seus retratos públicos apagados da memória e seus atos invalidados pelo seu sucessor.

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