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JOSÉ JORGE DE CARVALHO

O confinamento
racial do
mundo acadêmico
brasileiro
JOSÉ JORGE DE
CARVALHO é professor
do Departamento
de Antropologia da
Universidade de Brasília.

A implementação recente de um
sistema de cotas para estudantes
negros no ensino superior é um fenômeno que
rompe radicalmente com a lógica de funciona-
mento do mundo acadêmico brasileiro desde a
sua origem no início do século passado. Por um
lado, as cotas estão provocando um reposicio-
namento concreto das relações raciais no nosso
meio acadêmico, começando pelo universo dis-
cente da graduação, porém com potencial para
estender-se à pós-graduação, ao corpo docente
e aos pesquisadores. Por outro lado, a polêmi-
ca gerada em torno das cotas coloca questões
teóricas e epistemológicas sobre a legitimidade
e o estatuto de verdade das interpretações das
relações raciais no Brasil formuladas no interior
desse universo acadêmico profundamente desi-
gual do ponto de vista racial. Proponho, então,
esboçar uma reflexão sobre as relações raciais
no Brasil pós-cotas que tome em consideração
a condição racial dos teóricos e as experiências
de interação racial que suscitaram (ou não) as
teorias que produziram.
Começo então por afirmar que as teorias e
as interpretações das relações raciais no Brasil
sempre foram elas mesmas racializadas, como
conseqüência da distância e do isolamento mútuo
que tem caracterizado as relações entre os inte-
lectuais e acadêmicos brancos e os intelectuais
e acadêmicos negros. Conforme mostrarei mais
adiante, a pretensão de universalidade presente
nas formulações dos cientistas sociais brancos
é questionada quando tomamos em conta a si-
tuação de segregação racial extrema do nosso
meio acadêmico. Muitos discursos, antes lidos
como inclusivos ao falar de todos os brasileiros
na primeira pessoa do plural (uma frase típica
de cientistas sociais brancos tem sido: “entre
nós” as relações raciais são diferentes de como
são nos Estados Unidos ou na África do Sul), não
possuem mais o mesmo grau de legitimidade
neste momento de revisão epistemológica radi-
cal suscitado pelas propostas de cotas porque
silenciaram essa mesma condição de exclusão
e de segregação racial que marcou a nossa vida
universitária até hoje.
Na qualidade de membro dessa academia
branca que nunca aceitou falar da sua brancura,
também passei uma década inteira como docente
falando do racismo brasileiro sem referir-me mais
diretamente ao racismo acadêmico. Contudo,
meu olhar sobre as relações raciais no Brasil
mudou dramaticamente nos últimos sete anos
USP/CCS/DVIDSON/ARGUS Documentação. Foto: Oswaldo José dos Santos

Charge da
exposição
“Ser Negro
Hoje”, Museu
Paulista,
out./88

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como conseqüência de um incidente racial em um regime de completo apartheid.
ocorrido justamente com um estudante de Após o censo racial docente na UnB,
doutorado de Antropologia da UnB que passei então a solicitar a ajuda dos meus
eu orientava. A crise (pessoal, política e colegas negros para conhecer a porcentagem
intelectual) gerada por esse caso levou-me de docentes negros em outras universidades
inclusive a formular uma proposta de cotas públicas. Mesmo admitindo uma margem
para negros e índios para a UnB, em parceria de erro nas amostragens por eles reunidas
com Rita Segato1. No momento em que o (e na verdade colocamos um percentual de
estudante foi reprovado em circunstâncias 20% acima do número encontrado), depa-
inaceitáveis, pude dar-me conta de que se ramo-nos com situações chocantes, como
tratava do primeiro doutorando negro da as da USP, Unicamp, UFRJ e UFRGS, ins-
história do nosso programa de pós-gradua- tituições em que a proporção de professores
ção. Ao deparar-me com essa desconcer- negros não passa de 0,2%; a da UFSCAR, de
tante singularidade, o passo seguinte foi 0,5% e a da UFMG, de 0,7%. Dito de outro
averiguar e constatar que essa ausência de modo, em nenhuma universidade conside-
estudantes negros é comum a todos os pro- rada como referência nacional na pesquisa
gramas de pós-graduação de Antropologia esse número parece não passar de 1%2. Na
do país e a todos os demais programas de verdade, a porcentagem da UnB pode ser
pós-graduação da UnB. A grande revelação avaliada como “muito alta” comparada
subseqüente, porém, surgiu quando fiz para com as outras universidades de ponta que
mim mesmo a pergunta que me diz respeito mencionei. Infelizmente, não existe ainda
mais diretamente: quantos colegas negros um censo racial nacional da docência nas
tenho e quantos negros fazem parte do universidades públicas e a sua própria ine-
quadro de docentes da UnB? xistência já é um forte indício da resistência
Após constatar que convivia há mais da classe acadêmica de enfrentar-se com sua
de uma década com 60 colegas brancos condição racial privilegiada. Contudo, não
no Instituto de Ciências Sociais da UnB é difícil fazê-lo, por uma razão muito sim-
decidi realizar, em 1999, um censo racial ples: os poucos docentes negros conhecem
informal, com a ajuda de colegas e estu- muito bem quem são todos os seus (poucos)
dantes negros. Chegamos a uma conclusão colegas negros; e justamente porque têm
que ainda me estarrece: a UnB, que havia plena consciência de que fazem parte de uma
sido inaugurada em 1961 com pouco mais minoria racial, vários deles já realizaram o
de duzentos professores e que, ao longo censo racial informal da classe docente das
de quatro décadas, havia ampliado esse instituições onde trabalham.
número para 1.500, conta com apenas 15 Acredito que essa condição de exclusão
professores negros. Ou seja, após 45 anos racial extrema na docência superior deve
de expansão constante do seu quadro do- ser tomada em conta na hora de refletirmos
cente, a universidade, que foi concebida sobre os modelos de interpretação das re-
como modelo de inovação e de integração lações raciais no Brasil. Paradoxalmente,
do país consigo mesmo e com o continente foi justamente desse ambiente segregado
latino-americano, ainda não absorveu mais que saíram todas as teorias que negam a
que 1% de acadêmicos negros. Esse número existência de segregação racial no Brasil.
tão baixo nos permite deduzir que mais da E se estamos falando de relações raciais, é
metade dos 50 colegiados departamentais perfeitamente aceitável que demandemos
1 Esse episódio já foi discutido
da UnB é inteiramente branca, assim como dos intérpretes não apenas a sua leitura da por vários autores. Ver Alves
(2001), Torres (2001), Santos
inteiramente brancos são alguns institutos desigualdade racial existente na sociedade (2003), Pereira (2004), Carva-
que contam cada um com mais de 100 pro- brasileira “lá fora”, mas também que se lho (2002 e 2005a) e Segato
(2005). Sobre a proposta de
fessores. Dito em termos mais dramáticos, posicionem acerca dessa realidade de se- cotas da UnB, ver: Carvalho
existem áreas da instituição que funcionam gregação de que eles mesmos participam. & Segato (2002).

na prática, sem que tenha havido até agora Está claro que não sairemos “naturalmente” 2 Trabalho aqui com a tabela que
preparei no meu livro (Carvalho,
nenhum questionamento político ou legal, desse escândalo de segregação racial. Já 2005b).

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ampliamos os números de estudantes e um único docente negro; quando muito,
de docentes dezenas de vezes nas últimas conviverá com alguns servidores negros,
décadas, e os números relativos à presença com os quais estabelece relações de pouca
negra em nada melhoraram. ou nenhuma identificação.
Podemos falar aqui, para não esvaziar Um exemplo desse confinamento certa-
a palavra “racismo”, de uma situação de mente ocorreu e ainda ocorre com profes-
confinamento racial vivida por nós, docentes sores que trabalham em faculdades como
das universidades públicas brasileiras. Se o Centro de Ciências da Saúde (CCS), da
não somos diretamente responsáveis por UFRJ, que conta com cerca de 800 profes-
essa exclusão, nem nos sentimos coniventes sores, dos quais apenas três são negros; e
com a sua reprodução, então admitamos, a proporção de estudantes de Medicina do
pelo menos, para iniciar uma reflexão crí- CCS não é muito diferente da dos docen-
tica, que temos sido forçados a desenvolver tes. Isso significa que foi possível criar no
nossas atividades dentro de um regime de Brasil, por mais de meio século, instituições
confinamento racial que herdamos das ge- de ensino autocontidas e segregadas, e que
rações passadas de acadêmicos. simultaneamente não estivessem desobede-
Gostaria de ilustrar essa situação de cendo a nenhuma lei nacional que proibisse
confinamento racial vivida por todos nós, a segregação racial. Ou seja, a segregação
acadêmicos brasileiros. Se juntarmos todos racial no meio universitário jamais foi im-
os professores de algumas das principais posta no Brasil legalmente, mas sua prática
universidades de pesquisa do país (por concreta tem sido a realidade do nosso
exemplo, USP, UFRJ, Unicamp, UnB, mundo acadêmico, através de mecanismos
UFRGS, UFSCAR e UFMG), teremos um que esse próprio mundo acadêmico tem feito
contingente de aproximadamente 18.400 muito pouco por analisar e nem tem mostra-
acadêmicos, a maioria dos quais com dou- do interesse, até recentemente, em desativá-
torado3. Esse universo está racialmente los. Fica ainda por compreender qual tem
dividido entre 18.330 brancos e 70 negros; sido a participação do mundo acadêmico
ou seja, entre 99,6% de docentes brancos e na formulação e na implementação prática
0,4% de docentes negros (não temos ainda desses mecanismos institucionalizados de
um único docente indígena). Se escolhermos segregação. Dito em outros termos, esse tipo
aleatoriamente um professor desse grupo, de segregação é apenas reproduzido ou é
o perfil básico que encontraremos será o também produzido no nosso meio acadêmi-
seguinte: esse professor (ou professora) foi co? A julgar pelo seu caráter generalizado
um(a) estudante branco(a) que teve poucos e crônico, provavelmente seja uma soma
colegas negros no secundário, pouquíssimos das duas coisas.
na graduação e praticamente nenhum no A experiência inversa de confinamento
mestrado e no doutorado; como aluno(a), dos poucos professores negros deve ser
sempre estudou com professores brancos. igualmente ressaltada, pois ela os afeta de
Desde que ingressou na carreira docente faz um modo muito mais grave que aos docentes
parte de um colegiado inteiramente branco, brancos. Por exemplo, uma colega negra da
dá aulas para uma maioria esmagadora de UnB trabalha há décadas em um instituto
estudantes brancos na graduação e de 100% com mais de 100 professores no qual ela é a
de pós-graduandos brancos. Além disso, única negra. A questão racial deveria entrar
os assistentes e colegas do seu grupo de nos seus temas de trabalho, porém sofre
3 Esse número representa a pesquisa são todos brancos. Como conse- a inibição constante da convivência com
soma de todos os docentes
dessas universidades, segundo qüência desse confinamento, em algumas os colegas, que se mostram incomodados
o levantamento que fiz entre
1999 e 2003, a partir dos
faculdades mais fechadas e elitizadas, é quando a questão racial aparece explicita-
dados oficiais fornecidos pelas perfeitamente possível que um docente e mente em alguma discussão sobre os temas
reitorias e dos dados encontra-
dos nos sites dessas instituições. pesquisador desenvolva por décadas o seu de pesquisa de interesse do instituto. O que
Obviamente, deve ser tomado trabalho acadêmico sem conviver jamais nunca discutimos em nossos trabalhos é até
como um valor aproximado (ver
Carvalho, 2005b). com um único estudante negro ou com que ponto estamos dispostos a interpretar

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esses “incômodos” dos acadêmicos brancos como mais “amplas” e menos “radicais”.
frente às necessidades de afirmação racial Esse ambiente confinado apresenta sin-
dos seus colegas negros como manifestações tomas que vão desses mecanismos altamente
específicas de violência racial. E também sofisticados de inibição do discurso sobre o
nunca questionamos por que essas manifes- conflito racial até manifestações mais de-
tações de incômodo gozam de impunidade sinibidas dos estereótipos sobre a exclusão
no nosso meio. negra do espaço acadêmico. Um professor
Um doutorando da Sociologia contou- negro contou-me recentemente um episó-
me o difícil dilema por ele vivido durante a dio constrangedor: deu a primeira aula do
sua entrevista para ingresso no doutorado. semestre de uma disciplina da carreira de
No fim da entrevista um dos examina- Medicina de uma universidade particular
dores, ciente de que o candidato queria carioca para uma turma de 68 alunos com
estudar relações raciais, perguntou-lhe se apenas dois negros. Quando entrou na sala
ele era militante do Movimento Negro. dois dias depois, ao começar a segunda aula,
Ele percebeu claramente que se desse uma alguns dos alunos brancos se surpreenderam
resposta afirmativa seria inevitavelmente e lhe disseram abertamente: “O que você
reprovado. Mentiu, então, afirmando que faz aqui?”. “Vim dar aula, obviamente”,
havia sido militante no passado, mas que respondeu. “Ah, mas nós pensamos que
agora havia decidido dedicar-se “de fato” à aquela aula era um trote!”
carreira acadêmica. A resposta agradou ao Um professor negro em um curso de
examinador, que finalmente concordou em Medicina só pode ser um trote? Como
aprová-lo. Termina agora seu doutorado e conseguimos construir no Brasil um espaço
obviamente evitará ser examinado por esse acadêmico tão poderoso, numeroso e tão
professor, conhecido em seu departamento excludente? E quais são os mecanismos que
por pregar agressivamente contra as cotas acionamos para mantê-lo tão segregado ao
para negros em sala de aula. A lição que longo de quase um século, apesar de tê-lo
aprendeu (e que agora pratica) é que o ampliado constantemente década após déca-
mundo acadêmico brasileiro é um campo da? Em suma, por que os negros não foram
minado para pesquisadores negros e não se incluídos apesar da expansão vertiginosa
pode ser ingênuo, franco ou aberto acerca experimentada pelas instituições superio-
da questão racial nesse nosso meio. res de ensino e pesquisa nas últimas cinco
Casos desse tipo se multiplicam nos décadas? E mais grave ainda, por que nós,
depoimentos dos pós-graduandos de Hu- cientistas sociais brancos, nunca falamos
manidades e Ciências Sociais, com quem desse ambiente de confinamento racial em
converso constantemente: sentimento que vivemos?
crônico de inadequação, tendência ao dis- Há poucos meses um diretor do CNPq
farce para proteger suas convicções mais me contava de sua recente viagem a Mo-
profundas, asfixia diante do ambiente in- çambique, realizada com a finalidade de
teiramente branco, dificuldade em colocar ajudar o governo moçambicano a montar
com franqueza suas posições teóricas sobre um Ministério de Ciência e Tecnologia nos
as relações raciais no Brasil. E muitas vezes moldes do nosso ministério e do CNPq. Di-
se vêem forçados a ajustar seus temas de zia ter ficado estarrecido quando descobriu
pesquisa para não contrariar as posições que havia apenas quatro doutores negros
ideológicas dos seus orientadores sobre esse em todo o país. Indaguei-lhe por que esse
tema. O que me comentam, de 9 entre 10 número era tão baixo e me respondeu que os
pós-graduandos das áreas próximas, é que portugueses não permitiam que os africanos
os professores tendem a censurar os estu- cursassem as universidades. Esse diretor
dos sobre racismo e discriminação racial, tocou aqui, ainda que inadvertidamente,
influenciando os seus orientandos para que um tema caríssimo a muitos dos nossos
“abrandem” a discussão ou mesmo que a teóricos da diferença racial brasileira frente
desloquem para outras correlações definidas a países como Estados Unidos e África do

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Sul: supostamente, o colonialismo por- academia de representantes de um contin-
tuguês havia sido mais assimilacionista gente de 45% da população nacional coloca
que o britânico, o belga ou o francês. Per- questionamentos graves para o Brasil, país
guntei-lhe então se ele tinha uma idéia de que abriga a segunda população negra mais
quantos pesquisadores negros existem na numerosa do mundo. Em termos de recusa
carreira de produtividade em pesquisa do à assimilação, de confinamento e de segre-
CNPq. Admitiu que nunca havia pensado gação racial, nosso mundo acadêmico mais
no assunto, mas que o número deve ser se aproxima à antiga Rodésia e à África do
baixíssimo também – não mais que quatro, Sul dos anos 50. Afinal, como já o disseram
possivelmente, por cada uma das grandes analistas notáveis como Max Gluckman, o
áreas do CNPq. E acabava de fazer uma mundo acadêmico tende a ser autocontido
viagem de apoio à assimilação de negros no também em termos de relações sociais, de
mundo acadêmico moçambicano, enquanto modo que o confinamento racial que vivemos
“entre nós” ainda não conseguimos sequer extravasa o horário de trabalho na universi-
iniciar uma discussão sobre a necessidade dade e se estende às demais esferas da vida4.
imperiosa de abrir a carreira de docência e Quantos dos 18.400 docentes e pesquisado-
pesquisa para negros e índios! res brancos das universidades mencionadas
O primeiro passo para qualificar essa interagem com alguma intensidade com
discussão é produzir um censo étnico-racial negros e negras, em relações minimamente
geral de todas as nossas instituições supe- igualitárias, fora da academia, já que convi-
riores de ensino e pesquisa para produzir vem apenas com brancos em seus locais de
em seguida um diagnóstico e uma análise trabalho? Praticamente nenhum deles, pois
minuciosa da história de cada instituição em a classe social a que pertencem os acadêmi-
busca de indícios da existência de mecanis- cos já vive também segregada racialmente
mos que podem ter sido (e provavelmente em suas residências e em seus locais de
foram) acionados até hoje para barrar os sociabilidade básica, tais como comércio,
negros na entrada da docência e da pes- shoppings, restaurantes, livrarias, cinemas,
quisa. Enquanto não enfrentarmos nossa clubes, todos eles ambientes segregados. A
ignorância não poderemos ir além da mera rede de sociabilidade geral que nos envolve
identificação dos sintomas do confinamento distancia-nos radicalmente da comunidade
racial acadêmico brasileiro. Atualmente negra. Não funciona no nosso meio sequer o
contamos com uma única reitora negra modelo freyriano de uma suposta facilidade
entre os mais de 1.000 reitores do conjun- de entrosamento entre brancos e negros na
to de universidades públicas e privadas: a África portuguesa (e que estaria presente
reitora da Universidade Estadual da Bahia, também no Brasil, segundo ele) em contraste
que é também a primeira reitora negra da com o modelo de segregação zimbabuano
história do estado. Ou seja, em que pese a e sul-africano.
população de 80% de negros em Salvador, Meditemos na famosa passagem de Ro-
a UFBA nunca teve um reitor negro. Na ger Bastide em que fala da experiência de
verdade, não sabemos sequer muito bem o democracia racial em um bonde noturno do
número de professores negros da UFBA. subúrbio do Recife cheio de trabalhadores
4 Referimo-nos aqui ao que Será muito mais que o 1% que constatamos cansados, onde um negro dormia apoiando
Max Gluckman chamava de
relações multiplex, típicas de nas outras universidades acima menciona- sua cabeça no ombro de um empregado de
organizações sociais tribais, das? É fato sabido que a UFMG já teve um escritório5. O curioso aqui é que Bastide
mas que sobrevivem em am-
bientes altamente confinados reitor negro. Quanto às outras universidades não conseguiu estabelecer uma conexão
no interior das sociedades
modernas, como o ambiente
mencionadas, mais de 70 anos de UFRGS, entre o que viu naquele bonde carregando
acadêmico, por exemplo, em UFPR, USP, UFRJ e de 45 anos de UnB gente humilde e o seu mundo cotidiano na
que “suas relações em um con-
junto de papéis influenciam seu não foram ainda suficientes para que um USP, inteiramente segregado e excludente
desempenho de outros papéis” docente negro chegasse ao posto máximo racialmente. Se ainda é segregado hoje,
(Gluckman, 1962, p. 43).
dessas instituições de ensino superior. como não seria há 50 anos, quando Bastide
5 Citado em Guimarães
(2002). Uma assimilação tão baixa por parte da decidiu empregar a expressão “democra-

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cia racial” para falar do que vira entre as conflito nem com as autoridades estatais
classes populares do Recife quando visitou permissivas da continuidade da segregação
Gilberto Freyre. Um relance do que era a nem com as comunidades negras e indígenas
realidade racial da USP na época desse tex- excluídas do nosso meio.
to de Bastide pode ser capturado por uma Apesar das especificidades do modo
olhada atenta às fotos do livro História da como é representada, a realidade racial da
Universidade de São Paulo, de Ernesto de academia não difere muito da realidade
Souza Campos, publicado em 1954. racial vigente em outras áreas da sociedade,
Em uma centena de pessoas registradas mormente no que tange às estratégias uti-
em mais de 30 fotografias sobre as mais di- lizadas para a sua reprodução “informal”,
versas áreas de ensino e pesquisa conduzidas que seria uma das características principais
na universidade, não encontramos nem um do estilo de racismo brasileiro. No caso da
único rosto que pudéssemos identificar como academia, os mecanismos mais comumente
de uma pessoa negra, ou mesmo mulata, nem ativados que acabam por dar continuidade
sequer entre os funcionários. Bastide celebra- à prática da segregação racial são: a pos-
va a “democracia racial” que encontrara nos tergação da discussão, o silêncio sobre
bondes de subúrbio do Recife sem conectá-la os conflitos raciais, a censura discursiva
com o apartheid acadêmico em que vivia quando o tema irrompe e o disfarce para
no interior da Universidade de São Paulo. evitar posicionamentos claros. Procura-se,
Também os textos e as imagens do livro de assim, esvaziar ou desarmar os mecanismos
história da Universidade Federal do Paraná, a de tensão racial do sistema. Para que isso
mais antiga de todas as nossas universidades seja possível, é necessário construir uma
públicas, descrevem um mundo inteiramente alta coesão entre os poderosos e lançar mão
branco. Mais do que um comentário ao que constantemente de mecanismos repressivos
era o nosso mundo acadêmico antes, cha- de baixa intensidade e facilmente dispo-
mo a atenção, através desses livros, sobre níveis para uma ação intermitente. Desse
como ele se encontra hoje: fotos dessas duas modo, evita-se definir o estado de conflito
universidades no ano 2000 revelariam duas étnico e racial como aberto e a situação é
universidades que mudaram muito pouco na apresentada sempre como transitória, em
sua composição racial em 70 ou mesmo em processo de resolução. Assim, o Estatuto
90 anos, apesar de terem mudado em tudo o do Índio pode circular por 20 anos pelo
mais, em termos de crescimento do número Congresso Nacional sem jamais ser votado;
de alunos, professores, cursos, laboratórios, enquanto isso, o genocídio, a fome, a inva-
instalações. são das terras indígenas continuam fazendo
Essa repetição, sem alarde nem conflito parte da nossa “normalidade” institucional.
aberto, da brancura extrema das nossas Igualmente, o Estatuto da Igualdade Racial
universidades aponta para um fenômeno pode também passar uma década pelos
que ouso chamar de impunidade de segre- mesmos corredores do Congresso, ser
gação: não existe força estatal no Brasil retalhado e domesticado de vários modos
que obrigue as instituições superiores de para que não sirva de instrumento efetivo de
ensino e pesquisa a implementarem ações reparação contra nossos séculos de racismo
de inclusão étnica e racial entre seus alunos, e mesmo assim ainda não ser votado apesar
professores e pesquisadores; e também das promessas.
não existe nenhuma lei estatal que permita Dando o exemplo de uma situação con-
punir uma instituição pública por insistir creta do nosso meio acadêmico, também a
na prática da segregação racial. É preciso Reitoria da USP instituiu em 1996 um Grupo
ponderar sobre a conexão entre esse mundo de Trabalho Institucional para fazer um es-
segregado e os modelos de interpretação das tudo detalhado da situação étnico-racial da
relações raciais no Brasil produzidos por universidade e, a partir daí, formular uma 6 Sobre o Grupo de Trabalho
nós, acadêmicos brancos que participamos proposta de inclusão racial através de ações Institucional e seus objetivos,
ver a descrição minuciosa em:
desse mundo, até agora sem gerar nenhum afirmativas6. Segundo me comentaram várias Munanga, 1996.

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vezes dois membros desse grupo, nenhuma de um clima geral racista que desautorizava
proposta foi encaminhada à Reitoria até a presença negra na educação.
agora, apesar de a Comissão continuar exis- Sintetizando, podemos afirmar com
tindo no papel. Não deixa de impressionar segurança que quando se constituíram as
inclusive que já foram realizados dois censos primeiras turmas de universitários no Brasil,
étnico-raciais, coordenados por eminentes nos anos 30, a comunidade negra acabava
cientistas sociais da instituição, que confir- de ser praticamente expulsa dos cargos de
mam a baixa presença de negros em todos docentes das escolas públicas. O pouco
os cursos (de fato, a USP consegue ser ainda capital escolar que os negros haviam acu-
mais excludente que a UFPR, universidade mulado após a Abolição da escravidão foi
que tem a fama de “branca”). Enquanto então severamente desfeito, de modo que
isso, dez anos já se passaram e a principal ficaram com chances mínimas de competir
universidade brasileira deixou crescer ainda pelo seletíssimo número de vagas abertas nas
mais o seu passivo de exclusão racial, sem universidades do Paraná, Rio Grande do Sul,
nenhuma conseqüência negativa para sua São Paulo e Rio de Janeiro. É um fato his-
imagem ou prestígio. tórico, portanto, que a universidade pública
Uma conexão histórica que gostaria de no Brasil foi instalada explicitamente sob o
ressaltar sobre esse passivo de inclusão signo da brancura. Enquanto esse pressuposto
racial refere-se ao projeto explicitamente não for criticado e revisado, continuaremos
racista que ocorreu no Brasil nas primeiras partícipes desse ato racista inicial.
décadas do século XX, quando houve uma Essa semicausalidade, ou afinidade
política estatal de destituir as professoras e eletiva entre uma eugenia na escola básica
os professores negros dos cargos de diretores e uma acomodação a um ambiente segre-
das escolas primárias e técnicas. Conforme gado no ensino superior, coloca ainda uma
o estudo pioneiro de Maria Lúcia Müller, a questão de sociologia do conhecimento
partir de 1903 começou a diminuir, paulatina que não posso resolver com os dados de
e inexoravelmente, a presença de docentes que disponho atualmente, mas que gostaria
negros no ensino primário e fundamental7. de pelo menos indicar. Se bem é certo que
Sua conclusão é de que já no início da dé- o processo de branqueamento consciente
cada de 30 as netas de ex-escravas haviam analisado por Müller e Dávila começou
sido expulsas da profissão de normalistas. A já na primeira década do século (anterior,
escola pública projetada para formar o espí- portanto, à implantação das universidades),
rito da nação se havia tornado praticamente ele foi formulado por políticos que tiveram
branca através de políticas adotadas pelo acesso ao ensino superior brasileiro na
Instituto de Educação do Distrito Federal virada do século XIX para o século XX.
na era Vargas. Em outros termos, a cultura geral racista
O estudo de Müller foi complementa- que expulsou as normalistas e os professo-
do recentemente por Jerry Dávila. Duas res negros das escolas públicas do Brasil
fotos em seu livro mostram o estarrecedor perpassava também o imaginário daqueles
trabalho de “limpeza” racial ocorrido nas que trinta anos depois institucionalizaram
escolas públicas do Rio de Janeiro; na pri- o nosso ensino superior.
meira delas, em 1911, pelo menos a metade O nosso racismo acadêmico específico,
das normalistas eram negras; na segunda, vivo até hoje, não foi apenas conseqüência,
de 1946, todas são brancas. Dávila analisa então, de um racismo gerado na estabiliza-
minuciosamente a política de eugenia do ção da escola básica, mas uma produção
governo brasileiro nos anos 30, que inter- combinada de um mecanismo geral de
veio no processo de integração dos negros exclusão racial planejado e executado com
no sistema escolar de modo a branqueá-lo eficácia e apenas declarado no tempo em
como um caminho à modernidade. Ou relação à eugenia explícita do Instituto de
seja, quando as universidades cresceram Educação do Rio de Janeiro na década de
7 Ver Müller, 2003, p. 100. naquela mesma época, já o fizeram dentro 20. Acredito que uma reflexão profunda

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sobre esse momento inicial é absolutamente
necessária para entendermos por que somos
nós os últimos acadêmicos – provavelmente
do mundo inteiro – que ainda resistem a
qualquer medida política que force uma
integração racial de uma vez por todas
nas nossas universidades e instituições de
pesquisa. Não há dúvida de que somos um
anacronismo no mundo e nem sequer somos
capazes ainda de entender exatamente por
que demoramos tanto a discutir abertamente
esse tema.
Uma vez estabelecida essa conexão,
fica ainda uma área nebulosa de semicau-
salidade entre a exclusão racial via política
estatal e uma indiferença, conivência ou
mesmo anuência dos acadêmicos face a
essa exclusão que continuou mesmo após
a morte de Vargas. Tudo se passa como
se o mundo acadêmico brasileiro tivesse
sido consolidado em cima de uma prática
escolar abertamente racista, instalada no
Brasil nas primeiras décadas do século e se
acomodado a esse racismo sem jamais ter
levantado a voz contra ele. Nem sequer a
intensidade e o escopo teórico e etnográfico
dos inúmeros cientistas sociais de renome
que desenvolveram suas pesquisas sobre
relações raciais nas universidades de São
Paulo, Bahia e Rio de Janeiro desde o início
da década de 50 conseguiram produzir um
mínimo de reflexividade ou auto-exame:
nosso meio continuou imune à presença
negra, cativo do confinamento inicial e
aparentemente sem manifestar incômodo
pela sua brancura quase absoluta.
Uma vez esboçada essa realidade de
segregação racial fundante, crônica e pac-
tuada do mundo acadêmico brasileiro, a
questão central que me interessa explorar é
o significado dos discursos sobre as relações
raciais produzidos nesse universo confinado
– nossos cientistas sociais certamente ex-
pressaram sua rejeição em face do racismo
que estudaram na nossa “sociedade”, mas
não rejeitaram ou questionaram o ambien-
te racista no qual viveram, pesquisaram e
legitimaram como espaço de excelência e
mérito. Ou seja, exatamente como suce-
deu nos Estados Unidos, foi possível no
Brasil desenvolver instituições acadêmicas

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capazes de atender aos altos padrões de
excelência científica da modernidade sem
perder seu viés de racismo e segregação. A
diferença está em que as universidades nor-
te-americanas foram forçadas a se integrar
racialmente por decisão do Estado, a partir
da década de 60; enquanto isso, as univer-
sidades brasileiras continuam segregadas
até hoje e a maioria delas ainda resiste à
inclusão sustentando-se na ideologia do
mérito, mesmo contando com pesquisado-
res perfeitamente capazes de fazer a crítica
das bases econômicas, sociais, políticas e
raciais dessa ideologia.
Atualizo aqui o argumento que de-
senvolvi no meu ensaio “Mestiçagem e
Segregação”, escrito no ano do centenário
da Abolição, em que eu perguntava se o
racismo da segregação explícita não seria
derrotado mais rápido que o nosso, da se-
gregação prática e não discursiva (Carvalho,
1988). Com efeito, logo no início dos anos
90 o mundialmente abominável regime do
apartheid colapsou e um processo amplo de
integração racial e reconciliação nacional foi
posto em marcha. É impressionante que o
processo da África do Sul não tenha provo-
cado nenhum movimento de autocrítica nos
nossos cientistas sociais brancos defensores
da diferença racial brasileira. Afinal, o país
da mestiçagem continua segregado até hoje
enquanto o país do apartheid já avançou nas
suas políticas de igualdade racial, inclusive
no meio acadêmico.
É claro que esse paradoxo entre moder-
nidade e racismo não está resolvido também
nos países ditos “centrais”, como o coloca
muito bem, por exemplo, Zygmunt Bauman
em sua obra sobre o Holocausto (Bauman,
1998). Um exemplo impressionante dessa
resistência do racismo acadêmico a não
desaparecer é a história da corporação IBM,
contada com dramatismo e minúcia por
Edwin Black no livro IBM e o Holocausto
(Black, 2001). Durante os anos cruciais
do genocídio nazista contra os judeus e
outros povos, os campos de concentração
eram administrados pelos cartões IBM,
precursores do moderno computador. Para
tanto, era necessário que funcionários da
IBM viajassem todos os meses dos Estados

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Unidos para Auschwitz e outros campos foi desenvolvida na Austrália contra os
com a finalidade de instalar os cartões aborígines e seus descendentes através dos
previamente adaptados às demandas de planos oficiais de confinamento e segrega-
adaptação e extermínio. O mais estarrece- ção racial magistralmente narrados no filme
dor, porém, dessa cultura acadêmica racista Geração Roubada (Rabbit-Proof Fence), de
é que a IBM continuou operando após o 2002, dirigido por Phillip Noyce, o qual foi
fim do III Reich sem jamais ter recebido baseado na vida real de três jovens mestiças
qualquer repúdio ou censura… até hoje, aborígines que, nos anos 30, fugiram de um
na verdade. Ou seja, grandes pesquisadores campo de concentração para não-brancos
das grandes universidades norte-america- no deserto australiano.
nas desenvolveram e ainda desenvolvem Dois pontos me interessa ressaltar aqui:
conhecimentos “científicos” para a IBM por um lado, lembrar aos nossos colegas,
inteiramente indiferentes ao massacre que cientistas sociais brancos contrários às co-
a companhia ajudou a viabilizar e a acelerar tas, que o Brasil também fez parte do grande
quando ensinou os nazistas a utilizarem os processo de racialização inferiorizante dos
seus cartões. Esse caso norte-americano negros ou não-brancos durante pelo menos
é evidentemente muito mais condenável meio século. O resultado dessa política
que o nosso racismo acadêmico, mas a arianizante iniciada na década seguinte
lógica de funcionamento, de uma ciência após a Abolição da escravatura e que durou
confinada, monorracial ou monoétnica até os anos 40 foi a expulsão, da escola e
que não se questiona sobre a sua partici- da carreira de educador, de milhares de
pação ou conivência com a segregação ou negros. Uma desvantagem escolar con-
o extermínio, é basicamente a mesma. As creta, portanto, foi promovida pela nossa
tradições acadêmicas britânica e francesa elite branca racista na primeira metade do
viveram (e ainda vivem) esse mesmo duplo século XX. Em segundo lugar, a ideologia
vínculo entre uma visão liberal do saber e da democracia racial, que celebrou a nossa
uma prática de colaboração ou permissivi- mestiçagem, não teve como plataforma po-
dade com o racismo colonialista na África, lítica restaurar ou promover uma igualdade
na Ásia, no Oriente Médio, no Caribe, na racial no sistema escolar – nem sequer no
Oceania, etc. primário, o que dirá então no superior. E
Considero importantíssima a retomada os ideólogos da democracia racial, em vez
de Maria Lúcia Müller e Jerry Dávila desse de solidarizar-se com os negros que denun-
período de branqueamento sistemático e ciavam o racismo da época, foram hostis à
consciente porque ela nos permite rever uma Frente Negra Brasileira.
ideologia muito difundida por muitos de Foi nesse clima que as universidades se
nossos intelectuais de que fomos diferentes constituíram como espaços institucionais
dos países anglo-saxões. Na verdade, não brancos. Elas expandiram seus contingen-
fomos tão diferentes na primeira metade do tes de alunos e professores inúmeras vezes
século XX; e se somos diferentes e isolados ao longo do século XX, mas não tomaram
agora é por uma razão nada recomendável: nenhuma iniciativa para corrigir a exclusão
porque nos negamos a enfrentar a nossa racial que as caracteriza desde sua fundação.
herança racista. A Sociedade Brasileira Ou seja, havia uma política abertamente
de Eugenia operava, na mesma época, de racista na hora de iniciar a distribuição
um modo muito similar a como se operou dos benefícios do ensino superior; todavia,
nos Estados Unidos com as campanhas de não houve nenhum protesto ou ação anti-
eugenia que conduziram à esterilização de racista posterior por parte dos acadêmicos
quase um milhão de pessoas, tal como foi brancos contra os privilégios que receberam
narrado recentemente, com farta documen- em virtude desse racismo estrutural. Pelo
tação, pelo mesmo Edwin Black, no seu contrário, houve grande hostilidade e re-
livro A Guerra contra os Fracos (Black, jeição à presença de vários quadros negros
2003). Essa mesma patologia branqueadora importantes nos postos docentes. Conforme

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expliquei em outro trabalho, nem Guerreiro anti-racista e qualquer denúncia contra o
Ramos nem Édison Carneiro conseguiram racismo era entendida como infiltração
entrar na Universidade Federal do Rio de comunista. Em uma palestra proferida no
Janeiro; Clóvis Moura também ficou fora segundo semestre de 1995 na Universida-
das universidades públicas do estado de São de Federal Fluminense em Niterói, Carlos
Paulo; Pompílio da Hora, erudito professor Hasenbalg ofereceu a seguinte resposta a
do Colégio Pedro II, foi recusado duas vezes uma pergunta sobre os estudos das relações
de entrar na carreira diplomática descara- raciais na nossa academia:
damente por sua condição racial; e Abdias
do Nascimento somente foi professor nos “Há vinte anos eram muito poucas as pes-
Estados Unidos e na Nigéria como conse- soas trabalhando esse tema. Eu tive medo
qüência do seu exílio durante os anos da de publicar o meu livro em 1979. Dez anos
ditadura; ao regressar ao Brasil, nunca foi antes, Florestan Fernandes tinha sido expul-
acolhido por nenhuma universidade pública, so da USP, aposentado compulsoriamente.
enquanto a maioria dos acadêmicos brancos Durante todo esse período não se falou
exilados conseguiu retomar seus postos nada no país sobre relações raciais. Depois
anteriores ou foram relocados em outros8. que Florestan publicou A Integração do
O resultado dessa segregação racial que já Negro na Sociedade de Classes, em 1965,
atravessou quatro gerações de universitá- e em 72 publicou O Negro no Mundo dos
rios é uma prática, quase nunca submetida Brancos, a produção na ótica sociológica
à crítica, dos acadêmicos brancos falarem era ínfima, as condições políticas não eram
sempre entre brancos pretendendo falar por propícias. A Antropologia, sim, continuou
todos e para todos. estudando o candomblé, a umbanda, que
A falta de reação por parte dos acadêmi- não eram coisas tão ‘perigosas’” (Hasen-
cos brancos contra o clima segregado das balg, 1998, p. 36).
nossas universidades deve ser entendida no
contexto da internacionalização das nossas É verdade que foi intensa a perseguição
carreiras. A partir dos anos 70, uma boa contra os líderes do Movimento Negro Uni-
parte dos professores passou períodos nos ficado no final da década de 70. Contudo,
Estados Unidos e na Europa e acompanhou muitos cientistas sociais brancos enfrenta-
os grandes processos de dessegregação ram o regime autoritário nos anos 80 até a
norte-americana, da luta contra o apartheid anistia e o processo de redemocratização
na África do Sul e da descolonização dos com a Nova República. Em suma, houve
países africanos discutida na Europa. Con- luta dos brancos contra o autoritarismo,
tudo, nossa classe acadêmica regressava mas não contra o racismo: segregados do
sempre ao mesmo mundo racialmente mundo acadêmico, os negros não parecem
segregado que habitamos sem esboçar a ter contado com muitos aliados brancos
menor reação. Antropólogos com quem no interior da academia. Penso que essas
conversei contaram sobre seus interessantes distâncias devem ser tomadas em conta para
encontros, nos anos 70 e 80, com negros entender por que avançamos tão pouco na
e índios em Harvard, Colúmbia, Chicago, inclusão racial nas últimas décadas em que
8 Guerreiro Ramos narrou suas que ensinavam e estudavam nesses centros a segregação racial foi tão questionada nos
amarguras com a academia
no Brasil em uma entrevista de saber através dos programas de ações países supostamente “piores” que o nosso
concedida a Lucia Lippi Oliveira
(1995); a expectativa e o fra-
afirmativas. Interrogados sobre por que não (Estados Unidos e África do Sul).
casso de Edison Carneiro são propuseram ações semelhantes no Brasil, Esse confinamento é especialmente
contados em vários números do
jornal Quilombo (2003); Pompí- me disseram duas coisas: ou que era “muito problemático para as ciências sociais, que
lio da Hora contou os episódios complicado”, ou que não era aconselhável pretendem explicar o país para todos. A situa-
de discriminação racial aberta
que sofreu na entrevista que con- fazê-lo porque o Brasil “é diferente”. ção mais comum, até agora, nos cursos de
cedeu a Haroldo Costa (1982);
e Abdias do Nascimento narrou Isso de que era “muito complicado” Sociologia, Antropologia, Ciência Política,
as perseguições que sofreu do queria na verdade dizer que a ditadura História é que professores e alunos brancos
governo brasileiro em suas
obras (Nascimento, 2002). militar não suportava nenhum discurso discutam os modelos de relações raciais

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formulados por autores brancos, partindo
do princípio de que esses modelos e inter-
pretações falem da “sociedade brasileira”.
Que esses discursos representem apenas
a “visão branca” da sociedade brasileira
até agora não tem sido colocado por quase
nenhum de nós. Estamos no limiar de uma
crise de representação nas ciências sociais e
o esforço que temos feito na Universidade de
Brasília desde 1988, a partir da crise racial
acima mencionada e da luta pela imple-
mentação das cotas para negros e índios, é
justamente no sentido de discutir essa crise
como conseqüência do confinamento racial
em que vivemos.
Posso ilustrar essa crise de representação
com o censo racial informal que realizamos
na Associação Brasileira de Antropologia ção de sentido ao discurso do outro seja a
(ABA) de 2000 em Gramado. De 1.500 posição racial. O contexto que analisamos
participantes, contamos a presença de está racializado pela própria constituição
apenas 15 negros (o mesmo 1% do número excludente da instituição acadêmica; e
de professores negros). Isso significa que onde há exclusão, a extraposição assume
seja o que se tenha discutido sobre relações um contorno crítico que extravasa a idéia
raciais naquela reunião (e foi muito pouco) de uma dialogia academicamente neutra.
foi discutido entre brancos. Os antropólogos Podemos quase ler a dimensão racial na
brancos, porém, ali presentes, não aceitam frase de Bakhtin, que fala do sujeito cor-
que tenham feito uma discussão “branca” porificado: “Nem sequer o seu aspecto
da sociedade brasileira, mas simplesmente exterior o homem pode ver e compreender
uma discussão antropológica – os acadêmi- autenticamente, na sua totalidade, e nenhum
cos negros evidentemente não acreditam espelho nem as fotografias podem ajudá-lo.
na pretensa neutralidade axiológica dessa Sua verdadeira aparência só a podem ver
discussão e interpretam a ausência de negros e compreender as outras pessoas, graças
na ABA como um sintoma dessa ausência à sua localização extraposta no espaço e
de neutralidade. graças ao fato de serem outros” (Bakhtin,
Parafraseando o conceito de exotopia, 1982, p. 352).
ou extraposição de Mikhail Bakhtin, sugiro O ideário das cotas, que apenas começam
que o teste de verdade desse discurso branco na graduação, aponta para questionamen-
somente possa surgir se introduzirmos uma tos teóricos e metodológicos muito mais
exotopia racial: o grupo racial enfrentado densos e amplos do que possam parecer à
deve necessariamente reagir às formula- primeira vista. A ideologia da mestiçagem,
ções do grupo racial hegemônico. Bakhtin por exemplo, tão difundida nas ciências
inventou o termo “exotopia” para enfatizar sociais brasileiras, é uma teoria cara aos
a posição de vantagem do intérprete, dentro acadêmicos brancos; já os acadêmicos ne-
de uma perspectiva dialógica; nos casos em gros não se identificam com ela e a maioria
que aplicou o termo, defendeu a lucidez da deles vê o discurso da mestiçagem como
extraposição na perspectiva do observador, parte de uma ideologia racista que visa a
ou do outro frente ao que enuncia o discurso. desautorizar e a desarmar a afirmação de
Podemos agora inspirar-nos na sua teoria uma negritude. E sem negritude não há
e sugerir que, para casos como o nosso, de demanda por reparação dos danos causados
discursos ineludivelmente racializados, um aos atuais descendentes negros após séculos
dos topoi (lugares) ou posições de atribui- de escravidão.

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O mesmo argumento vale para a idéia a marca racial branca, o que não é nada de
de democracia racial. Vários acadêmicos novo para nossos colegas negros, que sem-
brancos admitem que a democracia racial pre conviveram com sua marca racial negra.
não existe, mas ainda assim defendem a Os cientistas sociais brasileiros brancos
importância de salvar o mito. Até onde sei, nunca se viram como parte de um campo
não há um só acadêmico negro atualmente de confronto racial, embora muitos tenham
que queira salvar o mito da democracia ra- se visto, com orgulho inclusive, como parte
cial. A conseqüência dessa situação é óbvia: de um campo de confronto de classe. Até
democracia racial passa a ser, atualmente, recentemente, eles jamais se construíram
um discurso racializado, criado e mantido como passíveis de serem confrontados por
pela elite branca brasileira – não é um mito um intelectual negro. O único campo em
nacional, portanto, e sim um mito do grupo que se admitia o confronto de posições era
racial dominante, questionado profunda- justamente um campo que foi definido como
mente pelo grupo racial subalterno. desracializado ou neutro do ponto de vista da
Essa crise de representação indica que identidade racial, que é o campo da teoria.
enfrentaremos a partir de agora configura- A primeira crise epistemológica provocada
ções que apontam para uma incomensura- pelas cotas é questionar a neutralidade racial
bilidade discursiva. Por exemplo, os acadê- do campo teórico. Esse questionamento é
micos brancos não aceitam racializar o seu obviamente conhecido da geração presen-
campo discursivo, mesmo quando transitam te de cientistas sociais brasileiros através
sozinhos por esse espaço segregado. Essa dos escritos de Stuart Hall, Homi Bhabha,
negação da racialização é inaceitável para Edward Said – e já havia sido colocado
os negros que argumentam que a segrega- há meio século por Guerreiro Ramos, que
ção vivida pelos brancos é o resultado mais foi silenciado e esquecido no nosso meio
visível de uma sociedade profundamente acadêmico, havendo exercido a exotopia
racializada. Os negros se vêem como negros racial no seu ensaio “Patologia Social do
e vêem os brancos como brancos; os brancos ‘Branco’ Brasileiro”, que ainda hoje deve
não se dizem brancos (muito menos se vêem ser celebrado como um dos primeiros exer-
falando como brancos) e evitam classificar cícios de ciência social conscientemente
os não-brancos de negros – a não ser que racializada no Brasil (Ramos, 1995).
os não-brancos sejam índios. Finalmente, acredito que a crise de re-
A partir de agora, ninguém poderá pre- presentação que vivemos oferece também
tender falar por “nós”, brasileiros, sobre a uma oportunidade para renovação teórica e
situação racial do país sem se colocar como formulação de propostas de inclusão étnica
parte de um campo marcado racialmente. e racial. Mas isso só será possível se admi-
Antes de pensar, portanto, na polarização de tirmos que a academia contribuiu, no Brasil,
valores e de políticas frente à desigualdade para a produção e a reprodução do nosso
racial, quero enfatizar que o que caracteriza a quadro de desigualdade étnica e racial, o
crise de representação provocada pelas cotas qual não melhorou apesar dos investimentos
é a inevitabilidade dos posicionamentos. A maciços do Estado no ensino superior ao
primeira crise que estamos vivendo, então, longo de toda a segunda metade do século
como intérpretes das relações raciais no passado. Dito de outro modo, a nossa classe
Brasil, é a crise da desneutralização racial de cientistas sociais que discutimos relações
do campo acadêmico. Esse campo, antes raciais está totalmente imersa no problema
decretado como desracializado, deverá ser da desigualdade racial; na verdade, nossas
visto como racializado por um bom tempo universidades e nossa classe docente têm
– quem sabe, enquanto durar o processo sido parte do problema racial brasileiro. E
de dessegregação das nossas universidades acredito sinceramente que somente a partir
(processo que se inicia agora, por enquanto, do momento em que nos enxergarmos como
somente através da política de cotas). parte do problema poderemos passar a fazer
Teremos que aprender a conviver com parte da sua solução.

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