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ISSN 1517-4506
Instituto Sedes Sapientiae
Departamento Formação em Psicanálise
Comissão de Publicação
Talita Minervino Pereira (coordenadora)
Cristiana Soldano (suplente)
Comissão Editorial
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Cristiana Soldano, José Carlos Garcia, Lineu Matos Silveira, Lucianne
Sant’Anna de Menezes, Margarida Azevedo Dupas, Tatiana Russo França, Valesca Bragotto Bertanha
O Departamento Formação em Psicanálise tem por finalidade desenvolver
Conselho Editorial
Cassandra Pereira França (Universidade Federal de Minas Gerais), Claudia Paula Leicand (Instituto Sedes Sapientiae), Durval Mazzei
atividades de caráter formativo, científico, cultural e de pesquisa em psica-
Nogueira Filho (Instituto Sedes Sapientiae, GREA/IPQ – Instituto de Psiquiatria da USP), Ede de Oliveira (Instituto Sedes Sapien- nálise, de acordo com a Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae. Ele
tiae, EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos), Eliane Michelini Marraccini (Instituto Sedes Sapientiae), Emir Tomazelli
tem como fundamento prover a formação continuada de seus membros, cons-
(Instituto Sedes Sapientiae), Flávio Carvalho Ferraz (Instituto Sedes Sapientiae), Francisca Isabel Teixeira (Instituto Sedes Sapien-
tiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), José Carlos Garcia (Instituto Sedes Sapientiae), José F. Miguel H. Bairrão tituindo-se como um espaço de pertinência para alunos, ex-alunos e profes-
(Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto), Lineu Matos Silveira (Instituto Sedes Sapientiae), Maria Beatriz Romano de Godoy (Ins- sores, propiciando interlocução com o Instituto Sedes e com a comunidade
tituto Sedes Sapientiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Maria Lúcia Castilho Romera (Universidade Federal de
Uberlândia), Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (Instituto Sedes Sapientiae), Marly T. M. Goulart (Instituto Sedes Sapientiae), Maria psicanalítica em geral.
Cerruti (Instituto Sedes Sapientiae), Nora de Miguelez (Instituto Sedes Sapientiae), Sonia Maria Parente (Instituto Sedes Sapien- Oferece dois cursos regulares, abertos a psicólogos, médicos e profis-
tiae, UNIB – Universidade Ibirapuera), Suzana Alves Viana (Instituto Sedes Sapientiae)
sionais com formação universitária: Formação em Psicanálise e Fundamentos da
Grupo de Divulgação: Margaret Simas Ramos Marques Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP) Psicanálise e sua Prática Clínica.
(coordenadora), Mirian Arantes Gallo Grupo de Entrevistas: Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia
Mônica J. S. Saliby (coordenadora), Gabriela Malzyner Grupo
Além desses cursos, o Departamento promove cursos breves, pesqui-
de PUBLICAÇÃO DE LIVROS: Lucianne Sant’Anna de Menezes Boletim formação em psicanálise / Instituto Sedes Sapientiae, sas, grupos de estudo, eventos científico-culturais, além de publicar a revista
Departamento Formação em Psicanálise. – Vol. 1, no. 1 (maio/jun. 1992)
(coordenadora) Grupo de Resenhas : Mônica Salgado
– . São Paulo: O Departamento, 1992- Boletim Formação em Psicanálise e o jornal Acto Falho. Participa também da
(coordenadora) Grupo de Revisão de Tradução: Tatiana
Russo França (coordenadora), Nora de Miguelez Oficina de Ano XIX, v.19, (jan./dez. 2011)
Clínica Psicológica Social do Instituto Sedes Sapientiae.
Textos: Lineu Matos Silveira (assessor) Jornal Acto-Falho: Anual Sua organização é realizada através do trabalho de comissões, eleitas
Luciana Khair (coordenadora), Fernanda Zacharewicz, Talita Periodicidade bianual de 1992 a 1994; anual a partir desta data.
Rodrigues Marques Revisão Português : Stella Regina ISSN 1517-4506 a cada dois anos entre seus membros. As comissões que compõem o Conse-
Azevedo Alves dos Anjos Diagramação: Wellington Carlos lho Deliberativo do Departamento são: Coordenação, Curso, Clínica, Eventos,
Leardini Projeto CAPA: Silvia Massaro Projeto Gráfico: 1. Psicanálise – Periódicos. 1. Instituto Sedes Sapientiae.
Esper Leon Jornalista Responsável: Marcos Daniel Cézari
Departamento Formação em Psicanálise. Divulgação, Publicação, Projetos e Pesquisa, e Alunos. Essas comissões têm
CDU 159.964.2 (05)
– MTPS 11.193 funções específicas e o objetivo de refletir, discutir entre seus pares e imple-
Indexação: Index Psi Periódicos (www.bvs-psi.org.br) mentar projetos que possam garantir que as propostas do Departamento se-
Instituto Sedes Sapientiae jam colocadas em execução.
Rua Ministro Godoy, 1484
05015-900, São Paulo, SP
(11) 3866-2730
www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br
Curso Formação em Psicanálise[1] 2. Seminários clínicos;
3. Supervisão individual (no 4º ano);
Corpo Docente 4. Monografia de conclusão de curso: com orientação individual, a ser realizada
Armando Colognese Júnior, Cecília Noemi Morelli de Camargo, Durval Mazzei após a finalização dos seminários teóricos e clínicos;
Nogueira Filho, Ede Oliveira Silva, Eliane Michelini Marraccini, Emir Tomazelli, 5. Estágio opcional na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, sujeito à
Esio dos Reis Filho, Homero Vetorazzo Filho, José Carlos Garcia, Ligia Valdés seleção e contando com supervisão específica;
Gomez, Maria Beatriz Romano de Godoy, Maria Cristina Perdomo, Maria Helena 6. Formação continuada: atividades extracurriculares e no Departamento;
Saleme, Maria Luiza Scrosoppi Persicano, Maria Teresa Scandell Rocco, Nora 7. Acompanhamento clínico: opcional para os alunos do 1o ano, no qual se tra-
Susmanscky de Miguelez, Oscar Miguelez, Suzana Alves Viana, Vera Luíza balha em pequenos grupos a articulação da escuta clínica com os artigos
Horta Warchavchik. sobre o método psicanalítico;
8. Realização de análise pessoal: obrigatória durante o curso.
Objetivos
Curso de especialização, que tem como objetivo a formação de psicanalis- Duração
tas. Busca transmitir a Psicanálise em sua especificidade, com base nos O curso regular tem duração de quatro anos.
três elementos essenciais da formação: análise pessoal, supervisão e es-
tudo crítico da teoria psicanalítica a partir dos aportes das escolas fran- Carga horária do curso
cesa e inglesa. Visa desenvolver a escuta transferencial, considerando o 731 horas.
sujeito em sua singularidade. Trabalha a clínica psicanalítica, desde a des-
crição clássica feita por Freud até as formas de sofrimento observadas na Horário/concentração
contemporaneidade. Quartas-feiras, com média de seis horas/aula semanais e mais uma hora e
meia de atividades.
Destinado a
Psicólogos, médicos e profissionais com formação universitária, com expe- Seleção
riência pessoal em análise individual e com percurso na teoria psicanalítica. Duas entrevistas individuais. Apresentação de curriculum vitae (contendo foto)
em duas cópias e um breve texto, no qual justifique sua a busca por esta for-
Conteúdo programático mação (um para cada entrevistador).
1. Seminários teóricos: Formações do inconsciente, O inconsciente, Pulsões,
Narcisismo, As identificações, Neurose obsessiva e histeria, O Complexo de Fundamentos da Psicanálise e sua prática clínica
Édipo em Freud, Angústia, Superego e Édipo Kleinianos, Teoria das Posi-
ções e Inveja em M. Klein, Perversão e Psicose em Freud e em M. Klein; Corpo docente
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Berenice Neri Blanes, Celina Giacomelli, Ma-
1. Este curso foi credenciado no Conselho Federal de Psicologia em 31 de janeiro de 2003, para espe-
ria Salete Abrão Nunes da Silva, Maria Tereza Viscarri Montserrat, Patrícia
cialização em Psicologia Clínica, em conformidade com a Resolução CFP 007/01. Leirner Argelazi.
Objetivos Carga horária do curso
O curso propõe trabalhar os conceitos que fundamentam a Psicanálise e 68 horas.
que servem de alicerce à sua prática. Pretende, com isso, fornecer informa-
ção que preencha lacunas a quem já algo conheça e fundamentos a quem Observação
desconhece, estimulando o interesse na continuidade do estudo, permi- O segundo ano é opcional e será oferecido para aqueles que cursaram o pri-
tindo que uma eventual formação sistemática no futuro se faça sobre uma meiro ano, que tenham interesse na continuidade de seus estudos. Médicos e
base mais sólida. psicólogos, que optem por dar continuidade ao curso, poderão se candidatar à
seleção de estágio na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.
Destinado a
Àqueles que se interessam pela Psicanálise e que pretendam uma iniciação Mais informações:
ao seu estudo: médicos, psicólogos e profissionais com formação universitá- Secretaria do Instituto Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godói, 1484
ria em geral.
05015-900 - Perdizes, São Paulo/SP
(11) 3866 2730
Conteúdo programático www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br
1. Especificidade da Psicanálise: Psiquismo e corpo, Terapias medicamentosas,
Psicoterapias e Psicanálise;
2. A Divisão do Sujeito: Dois conceitos fundamentais: Inconsciente e Pulsão,
Aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente, o ponto de
vista tópico, O Recalque: Desejo, conflito e defesa. Pontos de vista dinâmico
e econômico, Discussão clínica;
3. Formações do Inconsciente: Atos falhos, sonhos e sintomas, Discussão clínica;
4. Ponto de vista estrutural: Complexo de Édipo / Identificações, Segunda Teo-
ria Tópica;
5. Neurose, Psicose e Perversão: Neurose, Psicose, Perversão, Uma introdução à
psicopatologia psicanalítica, Discussão de casos: um estudo comparativo,
6. Questões da Clínica: A situação analítica, Transferência e contratransferên-
cia, Resistência, A interpretação;
7. O Analista: Diferenças entre formação e informação.
8. O tripé da formação analítica: Análise do analista, supervisão e estudo da
teoria.
Duração
um ano.
EDITORIAL
O Boletim Formação em Psicanálise abre este número com uma tríade de arti-
gos que utiliza o recurso da arte para fazer avançar questões fundamentais do
campo psicanalítico, aspecto que nos remete a ideia da psicanálise como uma
atividade criativa, seja para o analisante seja para o analista, tendo em vista
que é possível construir ficções pela experiência da fala e da escuta. O próprio
Freud, em vários momentos, fez uso deste instrumento em reflexões e teori-
zações suscitadas pela clínica, como em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen
(1906), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) ou em Dostoie-
vski e o parricídio (1928), dentre tantos outros ensaios conhecidos.
A partir da contextualização histórica dos quatro discursos de J. Lacan,
o primeiro artigo, de Durval M. Nogueira Fº, procura refletir sobre os efeitos
que a realidade virtual pode produzir no homem contemporâneo, recorrendo
ao cinema e à literatura, em especial no rico contraponto entre os filmes Ma-
trix, de Andy Wachowsky, e Substitutos, de Jonathan Mostow, mostra diferentes
sociedades do futuro e as influências terríficas do avanço tecnológico e cien-
tífico, assim como a submissão a determinados discursos, promovendo uma
bela discussão sobre o eu, a realidade e a linguagem, deixando-nos a mensa-
gem de que a transcendência seria a única maneira de garantir a insubmissão
a discursos condicionantes do ser humano.
O segundo artigo traz a inovadora experiência de um grupo de semi-
nário clínico, do Departamento Formação em Psicanálise (Ana Raquel B. M.
Ribeiro, Fernanda Zacharewicz e Luciana B. Khair, sob coordenação de Ligia
V. Gómez), em que o intuito foi discutir a escuta como o elemento essencial na
experiência da transferência e contratransferência, com foco na construção da
escuta do analista em formação, a partir da prática de relacionar de um caso
clínico com produções da literatura (A hora da estrela, de Clarice Lispector), da
escultura (O impossível, de Maria Martins) e da música (Luz, de Arnaldo Antu-
nes), possibilitando a construção de três escutas que se completam como Quel-
ques Cercles, de Kandinsky, obra que inspirou o nome deste grupo: Nosso círculo.
Em um encantador diálogo entre as obras homônimas A terceira mar- Julia Paladino sob revisão de Marly T. M. Goulart, é de um artigo de Richard
gem do rio, o próximo artigo, de Ana Raquel B.M. Ribeiro, procura mostrar a J. Rosenthal (parte de uma obra organizada por Grotstein em comemoração
presença dos mecanismos de deslocamento, condensação e figurabilidade no aos 80 anos de Bion), uma leitura pormenorizada, a partir de conceitos bio-
poema (canção) de Caetano Veloso, a partir do que é narrado no conto de Gui- nianos, dos aspectos do funcionamento psíquico de Raskolnikov, personagem
marães Rosa, supondo que a personagem que narra o conto em primeira pes- central do romance Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, o que nos movi-
soa é aquela que ‘sonha’ a canção, fazendo da terceira margem no rio o que menta como Quelques Cercles, de Kandinsky, ao início deste editorial, na rela-
encerra o indizível, presente em ambas as obras. ção da psicanálise com a arte, e na possibilidade do leitor vir a ser afetado por
O quarto artigo, de Leonardo B. Tkacz, também aborda o tema do indi- esta experiência criativa.
zível, entre o corpo e a imagem, propondo esta discussão a partir dos conceitos
de corpo e de imagem para a psicanálise, tendo como eixo teórico o conceito Lucianne Sant’Anna de Menezes
de estádio do espelho de J. Lacan e de seus desdobramentos na constituição Comissão Editorial
do corpo do bebê, destacando a importância fundamental do olhar e da voz
do Outro (mãe), como meio de promoção das bordas garantidoras da imagem
do corpo.
Encerra a seção de Artigos um trabalho na interface psicanálise e psi-
cologia, fruto de pesquisa acadêmica de Daniel Schor, que trata do desenvolvi-
mento infantil e procura estabelecer um mutualismo entre a constituição da
noção de si-mesmo e do mundo externo, demonstrando que é possível encon-
trar na obra de J. Piaget elementos fundamentais para se ampliar a compre-
ensão sobre fenômenos descritos por D. Winnicott e, em consequência disso,
sobre as formas com que experiências muito precoces podem ser determinan-
tes na constituição da subjetividade.
Na Entrevista, temos um bate-papo interessante de Gabriela Malzyner
com Bernard Penot, psiquiatra e psicanalista membro da Sociedade Psicanalí-
tica de Paris, em que relata sua experiência no hospital-dia CEREP (Centre de
Réadaptation Thérapeutique), onde criou, com sua equipe multidisciplinar, um
instrumento institucional de pesquisa com psicóticos e pessoas com pertur-
bações graves da subjetivação, que se baseia em levar o paciente a subjetivar
sua transferência, aspecto que une com a questão da cura psicanalítica e da
sublimação.
Finaliza esta edição uma Resenha e uma Tradução de obras referentes
a Wilfred Bion. A poética resenha, de Emir Tomazelli, apresenta um livro con-
siderado um tributo de James S. Grotstein a Bion e sua obra. Já a tradução, de
Sumário
ARTIGOS
Estamos todos tranquilos!?
Are we all calm!?
Durval Mazzei Nogueira Filho 15
Corpo e Imagem
Body and Image
Leonardo Beni Tkacz 57
Artigo
Are we all calm!?
Abstract: The author points out the influence that the virtual reality can produce
on mankind in the contemporary world. O Nosso Círculo: Fragmentos
de uma Escuta Psicanalítica
Keywords: Psychoanalysis, Virtuality, Contemporary Clinic.
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro[1]
Fernanda Zacharewicz[2]
Referências Ligia Valdes Gomez [3]
BACON, F. (1620) Novum Organum. São Paulo: Abril, 1979, 276p. Luciana Bocayuva Khair [4]
CHOI, C. Q. 12 eventos que mudarão o mundo. In: Scientific American – Brasil,
São Paulo, n. 98, 2010, p. 22-33.
FREUD, S. (1895) Proyecto de una psicología para neurologos. Obras Completas. Resumo: O artigo apresenta o resultado de um ano de trabalho em um semi-
Biblioteca Nueva: Madrid, 1973. nário clínico de formação de psicanalistas, do curso Formação em Psicanálise
GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, 324p. do Instituto Sedes Sapientiae. Nessa experiência, produções artísticas foram
LACAN, J. (1969/1970) O seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Ja- instrumento para a construção da escuta do analista em formação. Três escu-
neiro: Zahar, 1992, 212p. tas de um caso clínico discutido pelo grupo evocaram diferentes ilustrações
LINARES, J. E. Ética y mundo tecnológico. México: Universidad Nacional Autô- artísticas da literatura, da escultura e da música, respectivamente. Tais ima-
noma de México & Fondo de Cultura Econômica, 2008, 520p. gens, emergentes do singular e também do grupo, compuseram o processo de
LUNA, F. e LÓPEZ, E. R. Introducción. In: LUNA, F. e LÓPEZ, E. R. (orgs.). Los escuta e a elaboração de uma narrativa que transcende o caso original, confi- 1. Membro acadêmico do
desafíos éticos de la genética humana. México: Universidad Nacional gurando uma experiência sensorial e associativa fundamental na formação Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
Autônoma de México & Fondo de Cultura Econômica, 2005, p. 9-27. de uma escuta psicanalítica sensível.
MATURANA, H. (1997) A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2. Membro acadêmico do
2001, 350p. Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
ROSSI, P. Los filósofos y las máquinas. 1400-1700. Barcelona: Editorial Labor, Palavras-chave: Escuta Psicanalítica, Arte, Literatura, Escultura, Música.
1966, 178p. 3. Psicanalista, Professora
e Supervisora do
SCHRÖDINGER, E. (1944) What is life? With ‘mind and matter’ and ‘autobiogra-
Departamento Formação
phical sketches’. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 184p. em Psicanálise do ISS
Escutar, escutar e escutar... transforma.
4. Membro acadêmico do
Durval Mazzei Nogueira Filho Departamento Formação
Rua Almirante Pereira Guimarães, 298 Não desças os degraus do sonho em Psicanálise do ISS
Pacaembu
(11) 3862-5716
dr.durval@uol.com.br
boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011 25
26 boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
artigo–anaraquelbuenomoraesribeiro[1]fernandazacharewicz[2]ligiavaldesgomez[3]lucianabocayuvakhair[4]
boletim formação em psicanálise
artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– o nosso círculo: fragmentos de uma escuta psicanalítica 27
Para não despertar os monstros. Ocorre em toda parte desde um espaço público representado pelo Estado, pas-
Não subas aos sótãos – onde sando pelas relações familiares e privadas, chegando mesmo até aos impulsos
Os deuses, por trás das suas máscaras, organizadores do sujeito. (BARTHES, 1997)
Ocultam o próprio enigma. Diz Barthes (1997, p.13):
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida! ... por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação.
E é um sonho louco este nosso mundo... Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com de-
Mário Quintana masiada frequência, é sujeitar: toda a língua é uma reição generalizada.
Encontramos reflexões e críticas abundantes de como a nossa escuta Esse conceito é ampliado em outro livro do autor ao afirmar a existência
é moldada por elementos da cultura, que vão organizando os nossos pensa- na língua de pelo menos cinco elementos (o hábito, a repetição, o estereótipo, o
mentos e nossas subjetividades, nas mais diversas áreas de conhecimento, chavão e a cláusula obrigatória), que contribuem para a alienação do sujeito, e
inclusive na Psicanálise. revelam como esta é trabalhada pelo poder no contexto social. (BARTHES, 1987)
Seguindo esse caminho, o presente trabalho é fruto da experiência que Não pretendemos aprofundar cada um desses conceitos, somente ire-
foi proposta a um grupo de seminário clínico, sob a minha coordenação, no mos assinalar que, de diferentes maneiras, todos apontam para a perpetuação
curso Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. do sempre igual, da verdade absoluta e do sentido único em nossas expressões
O objetivo ímpar do seminário foi o de possibilitar a cada membro do linguageiras.
grupo uma reflexão sobre a escuta, tendo em vista a sua formação como ana- Hoje em dia, vemos o quanto algumas ideias podem se organizar em
lista. Adotamos a prática de relacionar o caso clínico com produções de arte, de torno de objetos supostamente paradisíacos, como o da magia de um Saber
literatura e de música; com o intuito de discutir a escuta do analista, como o Absoluto, da sensação de um Poder Supremo e de uma Felicidade Infinita. São
elemento essencial na experiência da transferência e contratransferência, tão ideias-objetos, veiculadas como mercadorias que vão sendo consumidas pelo
caras à prática psicanalítica. Cada aluno apresentou o caso clínico duas vezes sujeito às custas de sua própria alienação. São condições criadas com a função
para a supervisão e reflexão em grupo e, num terceiro encontro, cada um trouxe de apagar contradições, eliminar tensões e evitar confrontos e diversidades.
um novo elemento das artes e da cultura articulando-o ao caso já comentado. A ilusão de completude ofertada ao sujeito é, então, revestida de permanên-
Passaremos a descrever as principais ideias que fundamentaram te- cia e sentida como realidade eterna. Vivemos o encantamento do significado
oricamente o trabalho, seguido das três escutas que articulam o caso clínico em excesso, dando a ilusão de que tudo pode ser explicado, esgotado e esface-
com produções artísticas. lado, e com isso perdemos o prazer, o lúdico, o não sabido, na construção dos
Pensamos a escuta como o marco inicial de um processo em que ideias, nossos saberes.
palavras, frases, gestos, são tecidos pela língua falada e escrita. Destacamos a Quando Barthes trata a língua humana como um lugar fechado, que
ideia de que a língua ou linguagem constitui e organiza o sujeito. E na prá- subjuga e aliena, traz também a ideia de que a liberdade, a singularidade, só
tica clínica, transforma o analista em seu trabalho e o analisando em suas pode existir fora dos significados cristalizados, fossilizados.
descobertas. Pensamos que a Psicanálise se aproxima cada vez mais desse contexto,
Roland Barthes considera a língua como expressão máxima do poder. tendo em vista a reflexão do sujeito que é constituído por esses discursos, ao
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artigo–anaraquelbuenomoraesribeiro[1]fernandazacharewicz[2]ligiavaldesgomez[3]lucianabocayuvakhair[4]
boletim formação em psicanálise
artigo
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– o nosso círculo: fragmentos de uma escuta psicanalítica 29
tratar do inconsciente –do sujeito cindido, heterogêneo e singular. A teoria la- no visível, no conteúdo manifesto, em que as palavras cristalizam-se num só
caniana amplia e aprofunda essas contribuições, com a afirmação de que no sentido ou numa única explicação. A linguagem nesse contexto fica com a
sujeito, há sempre algo que vaza, aquilo que permanece enigma, que é – o não função de comunicar, de informar, e mesmo assim não livre de ruídos, equí-
sabido, o inominável, o mais pulsional, o gozo. vocos e desencontros.
Atualmente assistimos no árduo trabalho de análise, aos momentos b) outra vertente é aquela em que o significante ao relacionar-se a ou-
de angústia, de estranhamento dos pacientes, ao não conseguirem expressar tros significantes constrói uma rede, composta pelos fios e espaços entre eles,
verbalmente esses estados. Marcadamente denunciam em si a situação da que ampliam infinitamente as possibilidades de significação. Uma teia, uma
nossa cultura contemporânea. Vivem momentos de gozo, silenciosos, exces- “hifologia” como vemos em Barthes.
sivos, traumáticos que transbordam e fazem com que tudo permaneça sem- Podemos dizer que a articulação de significantes vai formando uma
pre igual e desconhecido. rica tessitura, por entre metáforas e metonímias para Lacan (1985), para Freud
O não sabido e a singularidade também podem ser estímulos para o condensações e deslocamentos, que anuncia o inconsciente – esta é a textura
trabalho, quando nós analistas, escutamos. A sutileza do ato analítico deve li- da escuta psicanalítica.
gar-se à singularidade do sujeito e não à universalidade dos fatos. Assim a sin- Mas como numa terceira margem do rio, parodiando Guimarães Rosa
gularidade considerada como unidade de trabalho e, o não sabido, como fonte (1987), uma terceira vertente se delineia, e assinala um outro elemento da rede
permanente de interrogação do sujeito em relação a si e ao mundo, gerando – os vazados, os espaços que ficam delimitados pelos fios. Os vazados passam
estímulo para a reflexão, foram as condições que nos interessaram para pen- a constituir lugares invisíveis, que marcam um trânsito para fora da palavra.
sarmos a escuta em psicanálise. Dito de outra forma: se por um lado o que escutamos vai formando a rede com-
Um dos caminhos de pensar essa questão foi a partir do conceito de posta de linhas da rede, em que a palavra disparada pela pulsão vai se movi-
texto ou escritura em Barthes (1974, p.81): mentando como um caleidoscópio de linguagem, por outro lado, é nos espaços
entre os fios e nós da rede, no vazado, que está o fora da palavra, o além da pa-
Texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado lavra – lugar de caos e de silêncio.
por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais Cabe ao analista escutar e captar esses momentos, até que possam ir
ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, adquirindo forma pela linguagem. São momentos que merecem vir à tona, sem
a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaça- qualquer precipitação do analista, sem que este tente encaixar o analisando
mento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz, nas pré-concepções científicas, que modulam os sujeitos, nomeando-os com
como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas designações que por vezes o desconsideram em sua singularidade.
da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do Percebe-se, então, como a escuta precisa ter a função de descolar a pa-
texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha). lavra de suas significações prévias, estereotipadas e alienadas para tentar (re)
colocá-las em movimento, para que possa aparecer o que ainda não tem visi-
Essa noção em Barthes foi norteadora para pensarmos que na escuta bilidade. Preparar o campo analítico para o questionamento, para o pensar é
há, pelo menos, duas vertentes que podem ser tratadas: trabalho longo. É trabalho do analista em sua escuta, aprender a escovar as
a) a dos significantes que remetem ao significado único, mantendo-nos palavras como diria o poeta Manoel de Barros (2003).
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artigo–anaraquelbuenomoraesribeiro[1]fernandazacharewicz[2]ligiavaldesgomez[3]lucianabocayuvakhair[4]
boletim formação em psicanálise
artigo
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Transgressão? eternamente presa aos ditos e não ditos do outro. Temos aqui o exemplo de
O ato de brincar para Winnicott (1975) evidencia a riqueza de expressão das como a repetição do sempre igual contribui à intensificação da alienação e do
crianças, com o emergir das experiências e dos processos delas, no longo pro- estranhamento na busca de quem somos, e nos congela, cristaliza, para a possi-
cesso de constituição e desenvolvimento. Pelo brincar as crianças expõem e bilidade de mudanças e transformações acontecerem. A necessidade de uma es-
vão simbolizando o que lhes ocorre internamente. Não há nelas um objetivo cuta que vá além da repetição na busca do novo foi outra de nossas atribuições.
consciente de comunicar ou informar alguma coisa, mas sim de expressar as
suas vivências natural e espontaneamente. Paradoxo e permanência?
Um exemplo disto é o acervo de músicas infantis presentes no imagi- O poema “rose is a rose is a rose is a rose...”, de Gertrude Stein, tão amplamente
nário da criança e em nossa cultura. Diversas vezes já ouvimos e cantamos a difundido e conhecido, é um marco da modernidade e da linguagem. Sem aden-
música infantil “quem cochicha o rabo espicha... quem escuta o rabo encurta...”. trar nos ensaios feitos sobre este poema, destacamos a ideia do paradoxo que
Podemos escutar essa canção popular como tendo a função de man- está contido nele. A “rose” é afirmação, é negação pela repetição, é algo além
ter a escuta nos limites tidos como apropriados, segundo ditames culturais, de “rose”, mas permanece sendo “a rose”, também.
pois vamos crescendo moldando-nos no “como deve ser”, “quais os padrões A escuta pode ser paradoxal se pensarmos que como na teia, na rede, a
a espelhar”, etc.; mas, também, podemos ouvi-la através do efeito que nos palavra pode remeter a vários sentidos, e o que une linhas, o que constrói for-
causa – o prazer pelo proibido. Destacamos aqui não o sentido normativo, e mas vazadas, dá a tessitura da rede. Mesmo quando priorizamos um sentido
sim o efeito atraente e transgressor que o proibido pode disparar. Podemos di- este é um elemento momentâneo, de um todo de criação contínua – a rede.
zer com relativa certeza que todos nós já cochichamos e escutamos para além Podemos usar a metáfora de sermos cavernas, cujas experiências ficam
do dito “permitido”, não? E, a partir daí, pudemos (re)encontrarmo-nos com tatuadas em nossa carne e constroem as nossas psiques, como inscrições, es-
situações, pensamentos, afetos, que não imaginávamos... um misto de horror, crituras, hieróglifos que nos marcam, constituem e organizam e podem contar
de gozo, quiçá de prazer, algo novo inaugurando um espaço do pouco dantes nossas histórias infinitamente. Para que possamos fazer descobertas, é neces-
navegado, como premissa de explosão e quem sabe libertação. sário que as palavras, gestos e silêncios sejam ouvidos nas três condições de
Pois bem, a escuta que vai além do instituído, aquela que amplia limi- escuta apresentadas: descoladas do usual, do antigo; para fora dos ecos repe-
tes, que se constitui como uma escuta que tece rupturas, foi a primeira das titivos do sempre igual; e, em sua condição paradoxal, são possibilidades de
propostas de reflexão no seminário. Pensamos o caráter transgressor da es- abertura para o novo. É preciso que possamos permanecer atentos a um ecoar
cuta como uma das possibilidades de instaurar o pensar, o fazer como criação interno, às vezes um sussurrar, às vezes um trovejar, nos seus movimentos
e novidade, num ofício que se aproxima mais ao fazer artístico pela criação descontínuos e permanentes, lugar de criação.
que permite, do que à prática científica clássica. Permanecer para escutar não é tarefa fácil! Por entre subidas e des-
cidas, encontros e desencontros, que possamos permanecer como nos con-
Repetição ou o de-novo, novo? vida Quintana, no mistério da vida, lugar onde, também, habitam enigmas e
Na mitologia, conhecemos a ninfa Eco, aquela que falava incansavelmente monstros conhecidos, e quiçá, alguns, possam ser decifrados e (re)integrados
– uma tagarela como ficou conhecida por nós. A deusa Hera mulher do deus na relação terapêutica.
maior Zeus, ao sentir-se enganada pela fala incessante de Eco a enfeitiçou, con- Na clínica, os ecos ditos e ouvidos, resquícios das sessões são transfor-
denando-a a só repetir as últimas palavras do que escutava. Eco ficou, então, mados pela escuta do analista, porque entrelaçados à escuta interna da sua
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subjetividade e de seu arquivo de vida. A escuta do analista se enriquece, se e tons, que apesar da singularidade de cada peça, juntas se complementam e
pode flutuar também no cotidiano, usando a arte em suas variadas expres- formam um conjunto.
sões. São instrumentos importantes para o analista na sua prática psicana- Artista do século XX, um dos porta-vozes da Arte Moderna, o pintor nos
lítica, porque aprofundam a compreensão da sua relação com o analisando. provoca e convoca a uma desmontagem da realidade construída e instiga a
Neste trabalho optamos por refletir, a partir de um único caso clínico, uma nova leitura, autoral. Essa obra suscita a efervescência que vivemos: plu-
as várias possibilidades de escuta das analistas em formação, e as diversas ar- ralidade de perspectivas, de interpretações, uma “polifonia visual”, inspirada
ticulações e entrelaçamentos que houve entre elas, permitindo a construção pela escuta e enriquecida pelas obras de arte em suas mais variadas formas.
de um fazer coletivo. No álbum da exposição do artista, realizada em Paris, editado pelo Mu-
Não deixamos de tentar compreender o analisando, nas devidas super- seum Centre Pompidou (Centre Pompidou, 2009, p.45), explica-se que “o círculo
visões clínicas, mas ao ampliarmos as possibilidades de escuta, fomos refinando é a forma mais modesta, porém a que se afirma mais incondicionalmente; é
e transformando, porque permitiu irmos para além da escuta do caso; permi- precisa, mas infinitamente variável; simultaneamente estável e instável; si-
tiu a criação de diferentes personagens gerados pela escuta singular de cada multaneamente intenso e suave; única tensão, mas que carrega incontáveis
uma das analistas. Trouxe a possibilidade de cada uma poder ir construindo tensões em si mesma”.
seu estilo próprio, mais pessoal, seu jeito mais natural de ser analista e estar Os círculos que contêm (ou deixam de fora) cores, contrastes, gritos,
nos seus atendimentos. sussurros, contornos nítidos ou manchados, precisos ou difusos, esparrama-
Foi possível, a partir do caso clínico analisado, perceber a analisanda se dos. Assim foi a escuta de cada um de nós, singular. Assim foi a escuta de nosso
tornar Béa ao ser escutada em conversa com a Macabéa personagem do conto grupo, una; um conjunto com círculos que se complementam, formam um
de Clarice (LISPECTOR, 1998). Numa outra escuta, Béa fundiu-se aos tentáculos todo; diferentes entre si, se sobrepõem, se intersectam, se incluem e excluem,
do Impossível, a escultura de Maria Martins (Da MATA, 2008) e sua agressivi- tingem, mudam a cor um do outro, realçam ou simplesmente escurecem. Um
dade pode emergir como instrumento de reflexão. Numa terceira possibilidade caldo de estilos e subjetividades de onde pode emergir, a partir de cada escuta
temos Béa fragmentada na luz, conforme música de Arnaldo Antunes (ANTU- singular, uma coletiva.
NES, 1993) com seu conteúdo de poesia concreta, em que Béa encontra a sua A seguir, apresentaremos o caso clínico “Béa” e três escutas analíticas
sombra para ensaiar ser. que foram construídas, inseridas nessa polifonia visual que citamos, tomando
Partes tão diferentes e que ao final compõem um todo sensível e pas- como suporte ilustrações artísticas da literatura, da escultura e da música,
sível de aprendizado. Na analisanda num devir longo, trabalho de ourivesaria respectivamente.
da dupla analisando/ analista. Neste trabalho ampliando limites e formando
o analista. Psicanálise e Literatura - Um pouco (um conto) de Béa
Béa. Assim será chamada por influência de Clarice. Não que a paciente Béa seja
Quelques Cercles toda Macabéa – a moça de A hora da Estrela de Lispector – ela o é em sua busca
Formado o grupo, passamos a chamá-lo de “Nosso Círculo”, inspiradas por por contornos para existir. Béa parece ainda não saber se existe ou, ao menos,
Kandinsky, já que a tela Quelques Cercles (KANDINSKY, 1926) ilustra o que foi parece ainda não ter encontrado as palavras para nomear-se.
nosso trabalho. Nessa tela, sobre o fundo azul escuro, ficam lado a lado, sobre- Béa não é só pessoa, só paciente ou caso clínico. Béa é, antes, um per-
postos ou justapostos, variados círculos de diferentes cores, formatos, texturas sonagem criado numa escuta coletiva e atravessada de poesia, imagens, sons e
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palavras. Aqui Béa é um conto criado por muitas mãos e que como todo conto vômito e diarréia, desmaios, sensação de sufocamento. Os médicos (neurolo-
tem a marca da vivência de quem o escreve. gista, gastro, cardiologista, clínico) não encontram nenhuma explicação para
Na primeira vez em que veio ao consultório, Béa sentou-se encolhida esses quadros. Os psiquiatras dizem que ela sofre de estresse e depressão. A fa-
na pontinha da cadeira, apertando a bolsa sobre os joelhos encostados, já quase mília de Béa a ridiculariza por tudo, especialmente pelas doenças, vistas como
indo embora. Medicada para evitar a dor de existir, tinha dificuldade de dizer “frescura”. As febres têm que ser cada vez mais altas para que Béa seja socorrida.
o que se passava com ela mesma, atada que estava à única certeza de que nada O corpo, destituído de desejo, adoece como forma de existir. Béa e Macabéa
do que dissesse poderia prestar. buscam nas aspirinas o alívio para “não se doer”. Nas palavras de Macabéa: “Eu
Aos poucos, as palavras apareceram, uma a uma, eclodindo sem que me doo o tempo todo. Onde? Dentro, não sei explicar.” (LISPECTOR, 1998, 66p.)
ela pudesse senti-las propriamente como suas. Ouvir Béa falar de si é como Doer e doar... “eu me doo... dentro”. Macabéa diz da dor que é também
ler, no conto de Clarice, o personagem-narrador descrever Macabéa – não se de Béa: o quanto dói dar sua vida, aquilo que há dentro, abrir mão, resignada-
tem certeza onde primeira e terceira pessoas se encontram e se distinguem. mente da própria existência e subjetividade. Como se Béa, ao assumir o lugar
Lá, no conto, o narrador fala das dores da nordestina, sendo ele próprio nordes- da avó, tivesse deixado de viver como si mesma e tivesse assumido uma es-
tino e cria em Macabéa uma (in)existência que ele não sabe se é sua também. pécie de sucedâneo de existência. Vetorazzo Filho (2010) conta dessa sensação
Assim acontece com Béa. Relata fatos que seriam quase como seus, mas não de “imitação do vivo”, experimentada por algumas pessoas, algo que, na rea-
ousa se aproximar deles, talvez pelo medo de sentir a violência que tais fatos lidade, os aproxima mais da ruína de sua subjetividade e que Fedida aponta
embutem. Nesse sentido, Béa, assim como Macabéa, “falava, sim, mas era ex- como a situação em que “a vida é empurrada para longe demais pela sua imi-
tremamente muda”. (LISPECTOR, 1998, p.37) tação vivente”.
Béa diz não ter amigos por não conseguir conversar. Nunca sabe do que Mas Béa não reclama, sequer tem clareza do lugar que ocupa na famí-
as pessoas estão conversando ou quando sabe alguma coisa é incapaz de ter lia ou da reprodução da história da mãe – também gorda, doente, traída e hu-
uma opinião a respeito. Essa era a mais forte reclamação do então namorado milhada pelo marido. Béa apenas sente medo de se afastar de casa, teme pela
e principal motivo dele para humilhá-la e para sucessivos rompimentos, vivi- saúde da mãe e não consegue impor minimamente alguma dignidade. Não
dos em sua maioria por Béa como aniquilamento de si mesma. vive, apenas reproduz, imita. A imitação do vivente é o cotidiano de Béa e está
Ridicularizada em sua existência pelo namorado e pela família, Béa/ descrita na rotina de Macabéa:
Macabéa, como diz Lispector (1998, p.36) “não perguntava por que era sem-
pre castigada, mas... nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte impor- “quando acordava, não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com
tante de sua vida”. satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se
O não dizer/ não saber/ não sentir de Béa, assim como de Macabéa, en- de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel
contram lugar no corpo, onde o adoecer é a tentativa de um grito de existência. de ser. (...) Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao cor-
Béa é quem sustenta, precariamente, a família desde a morte de sua rer do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de
avó, a grande provedora. Sem se dar conta de que passou a ocupar o lugar da tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma
avó, Béa se “protegeu” sob uma espessa capa de gordura, o que parece não ter prévia experiência de – de êxtase, digamos. (...) Não sabia que meditava, pois
sido suficiente porque também desde então passou a ficar constantemente não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma
“doente”: crises de febre, fortes dores e formigamento nas pernas, crises de longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
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mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Sou qualquer coisa de intermédio.
Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.” (LISPEC- Pilar da ponte de tédio,
TOR, 1998, 43p.) Que vai de mim, para o outro.
Macabéa e Béa quase perderam seus empregos pelos persistentes “erros Béa, “pilar da ponte” que sustenta a ligação amalgamada com sua fa-
de ortografia”, incapazes que eram de copiar as palavras. Ambas só não foram mília. Uma “ponte de tédio” porque pouca vida há na reprodução da histó-
demitidas, por pena. A impossibilidade de reproduzir palavras, por lhes pare- ria instalada na família desde a avó onipotentemente provedora. Enquanto
cerem vazias de sentido, denuncia um oco na linguagem. Um profundo oco o grupo de parasitas sobreviventes continua esperando a morte chegar, Béa
representacional que antecede qualquer questão cognitiva, mas sugere uma vive o conflito de ter se tornado a provedora do sistema que, ao contrário da
falha na constituição do Eu. Tal falha, no caso de Béa, manteve-se latente até avó que apenas repassava os recursos de uma pensão, tem que trabalhar para
a morte da avó, quando ela relata não apenas o início dos sintomas somáticos, prover. Não por acaso, Béa dizia “não entendo como não me demitem, eu não
bem como de crescente dificuldade com as palavras (esquecimento, troca de faço absolutamente nada no trabalho” (sic). Nem poderia. Na ocupação do lu-
letras e construção de frases sem sentido). Béa conta também como passou a gar da avó fica reeditado o roteiro fantasmático da constituição do Ideal do Eu:
ter dificuldade de organizar coisas e discriminar categorias, sendo capaz de ficar “Trabalhar pra quê? Pra ganhar essa merreca? Eu posso te dar mais dinheiro
parada, por horas, em frente a um arquivo sem conseguir decidir como opera- do que você é capaz de ganhar” (sic), dizia a avó a todos. Assim, trabalho tem
cionalizar sua organização. A desorganização interna de Béa ficou exteriorizada um significado nessa família de algo penoso e degradante. Trabalhar agride
no sofrimento corporal e nas dificuldades com a língua e com a vida cotidiana. Béa porque é ela sozinha que se desgasta para aqueles que nada fazem e, prin-
Pensar a desorganização de Béa a partir do movimento pulsional que cipalmente, trabalhar a distingue da família e a coloca no lugar de sujeito de
a ocupação do lugar da avó provedora pode ter desencadeado implica consi- suas escolhas – lugar tanto desejado quanto temido.
derar como foram reavivados os processos identificatórios na trama psíquica. A ponte que une e separa Béa de sua família representa aqui tam-
A ocupação do lugar da avó provedora não se dá apenas no campo concreto, bém seu conflito fundamental: existir ou desistir? “Pilar da ponte” ou “pular
mas principalmente na fantasmática psíquica. Béa conta que estranhamente da ponte” de tédio? Béa, ao contrário de Mário de Sá e de Macabéa, vive, mas
“não sentiu tanto assim a morte da avó” (sic), como se esse luto não tivesse sido adoece. Em seu adoecimento há um grito por socorro e uma busca pela vida.
efetivamente realizado. Ao contrário, parece que a dificuldade de Béa em acei-
tar a perda, pode ter provocado um movimento regressivo, de buscar interna- Psicanálise e Escultura – Será Impossível?
mente o objeto perdido externamente, tornando-se ele mesmo. Melancólica, Quando Béa foi apresentada, nos impressionou – como bem nos disse sua ana-
Béa considera-se merecedora das humilhações que recebe do mundo e acredita lista – seu esforço para não ser. Misturada com sua mãe e absorta na repetição
que não é alguém que valha a pena. Como descrito por Freud (1917), em Luto e de sua história familiar, como na obra de Maria Martins, intitulada O impos-
Melancolia, a autorrecriminação do melancólico seria na verdade uma queixa sível. Esta escultura, em mármore branco, estava no Malba, em Buenos Aires
contra o objeto perdido. Béa, identificada regressivamente com o objeto perdido, e pode ser vista em Da Mata (2008).
fica indiscriminada do outro, como conta a poesia de Sá-Carneiro (1914/1995): Na escultura branca de Maria Martins, dois grandes corpos amorfos
quase se juntam pelos ávidos tentáculos-boca, que captam toda a nossa aten-
Eu não sou eu, nem sou o outro ção. Não existem rostos, só enormes bocas, que nem isso são. E é, sobretudo,
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o branco que nos capta, já que pela ausência de cores mal se pode distinguir, (e que outro!). Pode saborear sua vingança frugal.
nessa mordida voraz, os diferentes corpos, em uma tentativa de possuir e do- Béa desfruta de novas experiências, sutis, mas sem dúvida, novas; com
minar aquele corpo ao lado que “lhe pertence”. O que ouvimos de Béa foi sua o término do namoro vive a profunda tristeza do rompimento (e da separação)
destrutividade: silenciosa, devastadora, contagiosa, presente pela ausência... na análise, não fica paralisada ou dilacerada pela depressão e pode até cuidar
Um grande não fazer, não produzir, não reagir, não falar, não associar. da sua feminilidade (vai ao salão).
Ao ouvir sobre Béa, nos paralisamos, não sentimos raiva, não pudemos Ela traz um sonho: vê uma coruja, grande, com olhos bem abertos. Ela
reagir. Ouvimos lamentos melancólicos, que Béa fala em análise e chora em associa a ave a uma má notícia, que pode ser a morte da mãe. Acordada, fica
seu corpo (pelas suas febres, diarréias, etc.). muito preocupada com a saúde de sua mãe, teme intensamente pela sua morte.
Foi estranho selecionar a obra de uma artista tão ativa e revolucio- A realização de desejo, a morte da mãe, expõe “a céu aberto” sua agres-
nária para falar de Béa – é como se nem isso ela pudesse. Nascida em família sividade que agora pode aparecer. Morte, separação, autonomia ou apenas di-
abastada, Maria falava línguas, casou-se duas vezes – na segunda vez com um ferenciação. Ela com “olhão” de coruja já pode começar a ver, mas preferia não
diplomata, Carlos Martins Pereira e Souza (1884-1964). Viveu na Europa, estu- enxergar. O desejo de poder se separar da mãe é também horror, morte, medo
dou escultura em Paris, morou no Japão, participou ativamente do movimento da separação, medo de seu desamparo uma vez que esteja só. Um desejo de se-
surrealista, modernista e esteve lado a lado de grandes nomes como: Marcel paração que é tão intenso, temido e culpado, que teme que sua raiva mate. Se-
Duchamp, Mies Van der Rohe, Rufino Tamayo, Chagall, Mondrian, Max Ernst paração, morrer e matar; sobredeterminações.
entre outros. Mas, foi ela quem nos traduziu Béa. Encontrar-se com esse “novo” aspecto seu não é fácil: na semana se-
Vemos Béa nesses corpos brancos misturados, indiscriminados, que guinte a paciente falta e quando volta relata que foi a um psiquiatra. Ele re-
tentam (tentativa impossível) em seus tentáculos se fundir. Mãe e filha em ceitou medicamentos, mas ela não tomou. Será que ela busca (fora da análise)
uma identificação canibal, voraz. Separação, diferenciação ou distinção é ame- fugir de sua coruja, que enxerga seus desejos? Talvez seja possível à Béa, em
aça de um corpo dilacerado; ego fragmentado. sua análise, trilhar um caminho para diferenciar-se de sua mãe e constituir
Em dois momentos ao longo do seminário clínico pensamos em Béa. sua própria identidade.
A seguir nosso reencontro. O medo de separação, agora, está na relação transferencial (podendo
Começam a aparecer os tentáculos. Há uma nova possibilidade de li- fazer escolhas de amor objetais e não apenas identificações canibalísticas): a
dar com sua agressividade, que antes não podia aflorar. Antevendo e temendo possibilidade de separação com a mãe chega pelos encontros com a analista.
o fim de seu longo namoro, ela, sabendo que seu namorado a trocou por outra, Será que o remédio faz passar “medo de separação” com a analista? A própria
Béa cria um personagem virtual para se relacionar com a rival. Aqui a nova Béa paciente começa a digerir essa questão.
(sua personagem), é Zezé, uma Béa masculina, ativa; com quem experimenta
sua potência e pode ativamente fazer algo por si própria; pode também sedu- Psicanálise e Música - Béa enquanto
zir e atacar… Exercita com sua personagem sua sexualidade e agressividade, processo – possibilidade de ser
o pulsional que precisava encobrir. Desconta sua raiva, elabora a sua dor, se Para escrever sobre Béa não basta escutá-la em um momento único, é ne-
vinga do seu – agora – ex-namorado. cessário ser capturado pelo processo da paciente ao longo do ano de 2009. A
A Béa-Burra trocada por outra, agora travestida de Zezé, deixa de ser primeira apresentação de Béa foi marcada pelo seu acorrentamento na dinâ-
caça e passa à caçadora: ataca, faz seu namorado sentir-se trocado por outro mica familiar, os seus empregos com funções simultaneamente simplórias e
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impossíveis de serem cumpridas. O segundo relato trazia em seu âmago uma Só sombra
nova Béa, que exercia papéis também fora do âmbito familiar, que criava per- É nada
sonagens e, embora ainda não por si mesma, era capaz de seduzir como Zezé. A
nova Béa que era resultante do trabalho analítico; continuidade da velha Béa, No primeiro esboço Béa poderia ser sombra enquanto existência par-
porém começando a se integrar. cial, sombra de final de tarde em dia nublado. Mas pode-se agora tomar a pers-
Como ilustrar o processo? Partiu-se da poesia concreta. A poesia con- pectiva da sombra como diferenciação, do nada que antes, mesmo com tanta
creta é composta por partes sem ligação. Após a leitura do primeiro momento luz, tamanha exposição de seu ser, não havia nada. A sombra é, portanto, agora
de Béa, era justamente isso que ela parecia, faltavam conexões entre as partes, para Béa possibilidade de ser, mas ainda não em sua plenitude. A sombra de
mais ainda: as partes mesmas estavam cindidas. Béa está agora mais próxima do meio-dia, da sombra que ofusca o ser.
Para compreender a poesia concreta necessita-se de um esforço do lei- Béa ao longo do tempo, dos seis meses que cronologicamente impõe-
tor, ou melhor dizendo, um esforço do leitor para ler a obra. Será que aqui es- -se entre os dois momentos da apresentação de seu caso, afasta-se da poesia
tava referindo o esforço do analista? Sim. Ouvir a sessão, estar atenta às febres concreta. Por si mesma torna-se prosa. E prosa independente do leitor, torna-
e continuar o trabalho analítico mesmo a partir da vontade estagnadora da -se prosa por própria autoria. Obra escrita a partir da necessidade de ser. Onde
paciente eram sem dúvida parte essencial do trabalho desse analista. encontra-se agora o analista?
A obra escolhida foi Luz, letra e música de Arnaldo Antunes. A voz grave Béa aos poucos inicia a escrita da própria história. Escreve sim sua
e a falta de cadência, ou a presença de lacunas abissais entre cada nota, trans- prosa! Mas às vezes falta-lhe imprimi-la. Imprimir é tirar do arquivo pessoal,
creviam a angústia da paciente. Desde essa percepção realizou-se o trabalho é fazer concretamente existente o que antes era possibilidade. É isso que o ana-
sobre a poesia de Antunes (1993, p.81): lista de Béa faz nesse momento. Ajuda-a a imprimir, fornece o papel. Acessório
à obra já escrita, mas fundamental para o real da existência.
Luz Já não é mais assim. Em um segundo momento pensar em Béa en-
Na luz quanto música passa a ser pensar em Andante, ainda lento, mas já no limiar
Não é nada dos andamentos considerados rápidos. Béa com maior possibilidade de movi-
mento. Ao escutar Béa em andante, ritmo de passeio (76-108 batimentos por
Béa era luz, mas estava impossibilitada de ser. Béa, enquanto luz na minuto), escuta-se seus primeiros passos pela rua, o espaço público que a faz
luz, não era nada, nem nada era. O que ela poderia ser fusionada na geleia sujeito fora da casa, início da separação da família que a aprisiona. Béa ainda
disforme em que consistia seu núcleo familiar nesse momento? Perdia-se, não é capaz de andar em Allegretto graciozo (moderadamente rápida e gracio-
nadava no nada. Cabia a ela o desafio do processo de separação da fusão, ca- samente). Passeia para poder conhecer o mundo do qual foi privada, passeia
bia a ela, cortar, morrer para então tornar-se sujeito. Tomando como ponto de com sua analista por vitrines de símbolos criados pela cultura buscando pre-
análise o relato da segunda sessão, quase seis meses depois da primeira, Béa encher as lacunas deixadas pela formação de um suposto sujeito pouco ou
era luz, mas já não mais na luz. Béa afasta-se da luz que cega, pode dar início nada libidinizado por suas figuras parentais. Para que Béa páre de ter febre,
ao ser, ainda que sombra. O que leva esse ensaio à segunda parte da poesia de de somatizar as inundações libidinais que, no momento, carecem de signifi-
Antunes (1993, p.81): cantes, há que acompanhá-la em seu passeio. O passeio que marca o ritmo do
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trabalho psíquico empreendido na dupla analista-analisante dará os elemen- for psychoanalysts’ training, from the course “Formação em Psicanálise” in “Ins-
tos necessários para que Béa forme uma mais complexa cadeia associativa, tituto Sedes Sapientiae”. In this experience, artistic productions were instruments
podendo assim dar palavra para o que agora ela escreve no corpo. Aos poucos, in the construction of the psychoanalyst listening. Three distinct listenings of a
Beá afasta-se de Macabéa. Exige-se ainda olhar para a poesia em si. clinical case discussed by the group evoked different artistic illustrations from
Para complementar esse ensaio faz-se crucial somar a descrição da literature, sculpture and music, respectively. The resulting images, which emer-
imagem da germinação da semente de feijão no algodão. Experiência essa que ged from individuals and also from the group, made up the process of listening
toda a criança faz. Há que se escolher os grãos, os copinhos, pôr o algodão, mo- and developed a narrative that transcends the original case, setting up a sen-
lhá-lo na medida adequada e deixá-lo à luz. Não aguar demais, porque morre. sory and associative experience that is crucial to the constitution of a sensitive
Não expor à luz demais, porque morre. E esse exagero de luz aproxima-se da psychoanalytic listening.
luz da poesia concreta tomada aqui como objeto. Luz na luz não é nada. Im-
possibilidade. Morte.
Béa já começa a não se inundar de luz, sai do meio-dia. Já não se deixa Keywords: Psychoanalytic Listening, Art, Literature, Sculpture, Music.
invadir pelo seu meio. Béa pode ser meio sombra e começa a germinar. É es-
tranho, porque não dá pra ver. Dá a impressão que de repente sai o broto. Mas Referências
o processo iniciou-se muito antes, o que é visto é somente o resultado disso. É ANTUNES, A.. Luz. In: Nome. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, 126p.
esse o processo que se deu na análise de Béa, e pode-se dizer, com a paciência BARROS, M.. Memórias inventadas A infância. São Paulo: Planeta, 2003, 40p.
do analista. O processo de análise é longo, para o paciente e para o analista. BARTHES, R.. El placer del texto. Espanha: Siglo Veintiuno de Espana editores,
O que resta fazer agora? Continuará Béa a crescer e desenvolver-se? 1974, 86p.
Como todas as crianças sabem, o pé de feijão não se sustenta no algodão! Há __________ . O rumor da Língua. Lisboa/ Portugal: Edições 70, 1987, 486p.
que plantá-lo em terra boa para que dê frutos. Como transplantar essa vida? __________ . Aula. São Paulo: Cultrix, 1997, 96p.
Será que isso é possível? CENTRE POMPIDOU. Kandinsky. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2009,
A busca pelo retorno ao medicamento pode ser escutada como essa an- 60p.
gústia do transplante. Mais uma vez o analista porá folhas na impressora para DA MATA, L. C.. Maria Martins. Sobre o toque e o impossível. In: XI Congresso
que Béa continue a escrever-se como sujeito prosa, sujeito conto. Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências.
2008, São Paulo. Anais Online. Recuperado em 13 de setembro de
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Abstract: The article presents the results of a full year’s work in a clinical seminar LACAN, J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de
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Artigo
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A terceira margem do rio, permitiu evidenciar os mecanismos deslocamento,
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro condensação e figurabilidade entre as palavras de Caetano Veloso e de João
Rua Teodoro Sampaio, 1020 cj 1101 Guimarães Rosa. Nesse sentido, a idéia de uma terceira margem no rio que en-
Pinheiros
cerra o indizível, presente em ambas as obras, permite pensar a palavra como
(11) 8388 9965
anaraquel.bribeiro@gmail.com representação de coisa, a palavra em sua materialidade que flexibiliza a relação
entre significante e significado (água da palavra). Mas é metaforicamente na
relação com o pai que se encerram as raízes de toda cadeia associativa. São os
Fernanda Zacharewicz desejos inconscientes, submersos no rio, que regem os operadores e que criam
Rua do Radium, 166 os meandros da rede de associações ora convergentes e ora contraditórias de-
(11) 8266.2831
nunciando a presença escondida, disfarçada da (i)lógica do desejo inconsciente.
fzacharewicz@yahoo.com
Abstract: The dialogue between poetry (dream) and prose (vigil), in the homopho-
nous works A Terceira margem do rio, shows the mechanisms of displacement,
condensation and figurability between the words of Caetano Veloso and João
Guimarães Rosa. The idea of a third shore of the river that contains the unspe-
akable, found in both works, allows one to think the thing-wordthe word in its
materiality that turns looser the relation between referent and meaning (water of
56 boletim formação em psicanálise
artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– ana raquel bueno moraes ribeiro
Artigo
Corpo e Imagem
Leonardo Beni Tkacz
Estava cá com meus botões e me dei conta de que havia proposto um título
para o texto, do qual escrevo dois substantivos ligados por um conectivo. Não
há artigos. Assim ficou: Corpo e Imagem. O dito e o escrito me levaram às se-
guintes associações: a ausência dos artigos poderia deixar um espaço vazio.
Algo como: ( ) Corpo e ( ) Imagem. Outra ideia surgiu de chofre: entre corpo e
imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. Decido escrever sobre as
duas ideias surgidas do imponderável. Antes disso, penso que se faz necessá-
rio percorrer alguns passos. Psicanalista, membro da
Freud pretende, quando inventa a psicanálise, no fim do século XIX e associação psicanalítica
de Porto Alegre (APPOA),
início do XX, criar um novo método para responder aos mistérios da íntima
mestre em psicologia pelo
relação entre corpo e mente; ou, como diziam os antigos filósofos: a relação Instituto de Psicologia da
entre corpo e alma. Por quase 40 anos, Freud escutou os pacientes e formulou USP, professor do curso de
Formação em Psicanálise
um campo teórico. O que nos interessa, neste momento, é fazer um recorte a do Centro de Estudos
fim de discutir o que é corpo e o que é imagem para a psicanálise. Para isso, Psicanalíticos (C.E.P)
O investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação Abstract: This paper proposes the following discussion: between body and image
imaginária. É fundamental por ter um limite. Nem todo investimento libidi- there will always be something ineffable, unspeakable. To address this, the text
nal passa pela imagem especular. Há um resto. Esse resto, espero ter conse- conceptualizes body and image to psychoanalysis. There after, the shaft runs
guido fazê-los ter uma ideia de por que ele é o pivô de toda a essa dialética... through the theoretical concept of the mirror stage of Jacques Lacan, and the
em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma subjective effects arising from the drive circuit: the look and the voice.
de falta. Em toda a medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de
imagem real, imagem do corpo funcionando na materialidade do sujeito
como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o falo aparece a menos, Keywords: Body, Image, Psychoanalysis.
como uma lacuna.
62 boletim formação em psicanálise
artigo – leonardo beni tkacz
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
Artigo
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diano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p. cott e Jean Piaget assumem a existência de uma indiferenciação primordial
entre as noções de si-mesmo e do mundo externo, a qual seria característica
Leonardo Beni Tkacz dos primeiros meses de vida. A partir do reconhecimento do mutualismo com
Rua Pamplona, 1119, cj. 62 que se opera a constituição de ambas as noções, o presente artigo propõe o di-
Jardins
álogo entre ambas as teorias e busca apontar um dos possíveis planos de arti-
(11) 3253-3473
lb.tkacz@terra.com.br culação entre as mesmas.
Ora, curiosamente, Winnicott (1945/2000, p. 223) ressalta que: [...] o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha
indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de simplesmente fi-
A localização do eu no próprio corpo é muitas vezes tida como óbvia, mas uma car excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar
paciente psicótica em análise deu-se conta de que, na infância, ela achava a esperar.
que sua irmã gêmea no assento ao lado do carrinho era ela mesma. E até se
surpreendia quando alguém pegava a sua irmã no colo e ela ficava parada Para ambos os autores, em suma, a consolidação do universo consiste
onde estava. Sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não tinha se desenvol- em uma eliminação gradativa do egocentrismo inconsciente inicial e na ela-
vido. (grifos nossos) boração de um mundo no seio do qual se situa, finalmente, o próprio indiví-
duo. Dessa forma, pode-se assumir que, segundo ambas as teorias, a criança se
Do ponto de vista de Piaget, da mesma maneira que as qualidades per- constitui como uma subjetividade e se reconhece como tal na exata medida em que
cebidas de fora não são ainda concebidas como objetos permanentes externos concebe a existência de um mundo objetivo, ou vice-versa, sem que se possa atri-
situados no espaço, impressões de esforço, expectativa e satisfação não podem buir qualquer precedência de um desses polos em relação ao outro. Safra su-
ser ainda atribuídas a um indivíduo substancial, interno, situado na consci- gere uma ideia semelhante a essa ao afirmar que “no ato de conhecimento, o
ência. Temos, portanto, que tanto na perspectiva de Winnicott quanto na de sentido do mundo e o sentido de si-mesmo estão necessariamente em ques-
Piaget, o bebê de poucos meses ainda estaria longe de atribuir suas intenções tão. A possibilidade de abordar, de recortar o mundo, está intimamente ligada
e poderes a um eu concebido como diferente do não-eu e oposto ao universo à minha constituição enquanto ser recortado” (informação verbal)[2].
exterior: ambos ainda formariam um único e mesmo conjunto. O mutualismo que acabamos de apontar entre a constituição da noção
Na visão de Winnicott (1962/1983, p. 56): de si-mesmo e do mundo externo nos leva, então, a admitir a possibilidade de
um diálogo entre teorias com propósitos bastante distintos, provenientes de
O bebê pode chegar de vez em quando ao princípio de realidade, mas nunca
em toda parte de uma só vez; isto é, o bebê mantém áreas de objetos subjeti- 2. Nota do curso Perspectivas Epistemológicas em Psicologia Clínica e Psicanálise, ministrado no
vos juntamente com outras em que há algum relacionamento com objetos Instituto de Psicologia da USP no segundo semestre de 2006.
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artigo – daniel schor
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011 boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
artigo – revisitando winnicott em companhia de piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica 71
diferentes tradições do pensamento psicológico. Mais do que isso: pensamos experiência. Não havia ego suficiente. (NEWMAN, 1995, p. 61, tradução nossa[3])
que, nesse caso, uma teoria passa, necessariamente, a colocar problemas para
a outra, fato que, em tese, as impediria de simplesmente coexistirem pelo ar- Em 1963, Winnicott (1963/1994, p. 70) reuniu em um artigo o que vinha
gumento de que se referem a “coisas diferentes”. encontrando em seu trabalho diário, ao longo dos anos, com pessoas que so-
Se assumimos a existência de uma ligação constitutiva entre os cami- friam do que ele chamou de “medo do colapso”. Embora o título do artigo possa
nhos de objetivação e de subjetivação traçados pelo ser humano desde o nasci- dar a impressão de se referir a algo muito específico, o autor justifica o uso do
mento, pode-se questionar até que ponto poderá haver entrecruzamentos entre termo “colapso” justamente por seu caráter vago, podendo significar uma va-
esses caminhos, tais como concebidos pelos autores que abordamos. Nosso riedade de coisas, e ressalta que “um estudo desta área limitada conduz a um
intuito na parte seguinte deste artigo será, pois, justamente, o de apontar um reenunciado de diversos outros problemas que nos intrigam quando fracassa-
dos planos em que se poderia promover entre tais sistemas teóricos uma par- mos em nos sair tão bem clinicamente quanto queríamos fazê-lo”.
ceria no enfrentamento de questões relativas à elucidação do universo infantil. O intuito do artigo, diz Winnicott (1963/1994, p. 74), é chamar a atenção
Cremos que esta proposta se justifica pela possibilidade de que sua re- para a “possibilidade de que o colapso já tenha acontecido, próximo do início
alização contribua para ampliar a margem de diálogo entre diferentes teorias da vida do indivíduo”. Tratar-se-ia de um fato que o paciente carrega consigo,
do desenvolvimento, o que parece se tornar cada dia mais necessário, tanto do escondido no inconsciente, mas, neste contexto especial, o inconsciente quer
ponto de vista clínico quanto educacional, ou mesmo, puramente teórico. Por dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo de-
uma série de razões que envolvem fatores históricos, institucionais e episte- mais para reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal.
mológicos, os achados de teóricos fundamentais da psicanálise e da psicologia, Entretanto, questiona o autor, por que o paciente continua a preocupar-se com
de modo geral, foram levados a se organizar dentro de áreas do saber conside- isto que pertence ao passado? Porque a experiência, responde, não pode cair
radas radicalmente distintas, fazendo com que muitas das intersecções e cor- no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e
relações possíveis entre suas ideias jamais fossem consideradas. A ampliação atual experiência temporal e do controle onipotente agora. Ou seja, o paciente
desses diálogos se faz ainda mais necessária na medida em que a prática nos tem de continuar procurando este detalhe passado que ainda não foi experien-
diversos contextos do trabalho com crianças vem aproximando cada vez mais ciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro.
conhecimentos produzidos por diferentes tradições do pensamento psicoló- Segundo Figueiredo (1998), Medo do Colapso é um dos trabalhos funda-
gico. A ideia do presente trabalho parte também, portanto, da necessidade imi- mentais que nos obrigam a repensar a noção, ainda muito arraigada em boa
nente de que esse compartilhamento de espaços venha a produzir uma troca parte do pensamento psicanalítico, de experiência como presentidade, segundo
efetiva de saberes, ao invés de admitir mera coexistência ou meras disputas a qual o que se experimenta é aquilo que se dá em presença. De acordo com
teórico-institucionais. esta noção, o passado seria aquilo que aconteceu, no sentido do que foi presente
outrora, e o futuro é o que acontecerá, no sentido do que virá a ser presente.
A temporalidade na experiência do colapso iminente Tendo como pressuposto esta concepção, muitos psicanalistas assumem que
E conclui: Devemos assumir que a grande maioria dos bebês nunca experienciou a quan-
tidade x + y + z de privação. Isso significa que a maioria das crianças não car-
[...] a criança da presente fase ainda não é capaz de reconstituir a história dos rega consigo pela vida o conhecimento da experiência de enlouquecimento.
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artigo – daniel schor
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artigo – revisitando winnicott em companhia de piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica 77
Loucura aqui significa simplesmente uma quebra no que quer que possa exis- que poderia aparecer na mente do indivíduo pertencente a estágios mais de-
tir durante a continuidade pessoal de existência. Depois de se “recuperar” de senvolvidos se pudesse ocorrer uma rememoração de uma época em que só
x + y + z de privação um bebê tem de começar de novo permanentemente houvesse o que, de fora, chamaríamos de presente?
privado das raízes que poderiam prover continuidade com iniciação pessoal.
Isso implica a existência de um sistema de memória e de uma organização de me- Segundo Winnicott, a experiência não aconteceu porque o ego do bebê
mórias. (grifos nossos) não foi capaz de reuni-la “dentro de sua própria e atual experiência temporal
e do controle onipotente”. Bem, talvez essa incapacidade refira-se, justamente,
Ora, ao que nos parece, as declarações dos dois autores são bastante ao fato de que determinados acontecimentos do mundo externo (uma ausên-
compatíveis. As conclusões piagetianas sobre a forma de organização do uni- cia muito prolongada da mãe, experiências de dor, fome, frio, etc.) incidiram
verso infantil nos fornecem parâmetros a partir dos quais as afirmações de sobre o bebê numa época e em que, por exemplo, a história do meio ambiente
Winnicott tornam-se, de nosso ponto de vista, muito mais inteligíveis. Se, para permanecia, para ele, incoerente e fragmentada, de forma que ele não podia
um bebê de menos de 11 ou 12 meses, a história do meio ambiente permanece ainda reunir os eventos numa série de acontecimentos recordados. Se uma ex-
incoerente e fragmentada; se os fragmentos dessa história continuam agarra- periência intensa de angústia e desprazer ocorre num momento da vida em
dos à ação presente, concebida esta como realidade única; se ele ainda não é que as condições cognitivas são de tal ordem, poderíamos dizer que ela é trau-
capaz de reconstituir a história dos fenômenos exteriores nem de avaliar a ex- mática justamente na medida em que extrapola essas condições.
tensão dos intervalos; se só está em condições de perceber a sucessão elemen- Assim sendo, cremos que “conceber uma ‘experiência passada’ irrecu-
tar das suas ações já organizadas; se, enfim, a sucessão dos eventos em geral perável pela memória – porque de fato não aconteceu” implica, em grande me-
não pode ainda se inserir, para ele, como sucessão consumada numa série de dida, em compreender as condições cognitivas a partir das quais ela foi vivenciada.
acontecimentos recordados, abre-se uma cortina para compreendermos por Prosseguindo nessa linha de raciocínio, diríamos, muito a grosso modo (pois
que é que um bebê exposto a x + y + z de privação “tem de começar de novo esta é uma afirmação que certamente demandaria um detalhamento muito
permanentemente privado das raízes que poderiam prover continuidade”, e maior), que fazer com que ela acabe de acontecer ou possa ser vivida pela pri-
por que é que a angústia vivenciada por ele pode ser verdadeiramente impen- meira vez implica em re-significá-la a partir das condições atuais de organi-
sável, angústia essa que, segundo Winnicott, dará origem às organizações de- zação do universo. Isto, no entanto, constitui um novo e imenso problema, o
fensivas que chamaremos de psicóticas. qual deverá ser abordado em uma nova ocasião.
Tendo em mente as considerações de Piaget, podemos agora retornar
à questão de Figueiredo, colocada no início deste item, sobre “Como conceber
uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de fato não Revisiting Winnicott in Piaget’s company:
aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela pri- notes on the notion of ego immaturity.
meira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer?”, e comple-
mentá-la com uma outra, trazida por Telles (1997, p. 170):
Abstract: In their theories about human development, Donald W. Winnicott
Que tipo de memória poderia haver sobre algo que tivesse sido armazenado, and Jean Piaget assume the existence of a primordial indifferentiation between
por exemplo, fora de um continuum espaço-temporal (ainda não formado)? O the notions of self and external world, which would be characteristic of the first
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artigo – daniel schor
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011 boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
artigo – revisitando winnicott em companhia de piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica 79
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80 boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
Entrevista
artigo – daniel schor
Bernard Penot
Gabriela Malzyner
Introdução
Bernard Penot é membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris. Foi mé-
dico diretor do Hospital dia para adolescentes, CEREP- MONTSOURIS, Paris,
França de 1988 a 2004. Autor de diversos livros publicados no Brasil e na França
como: “A paixão do sujeito Freudiano”, “Figures du Deni”.
O CEREP (Centro de Readaptação Psicoterapêutico) Montsouris é um
hospital dia para adolescentes que tem como principal referencia teórica a psi-
canálise e o trabalho multidisciplinar. Voltado para o publico de 12 a 20 anos
com problemas psiquiátricos, mas sem comprometimentos intelectuais. O
Hospital busca ser um espaço de convivência terapêutico e de aprendizagem;
visando a integração social e também um projeto terapêutico individual a
cada sujeito.
Em 2009 tive a oportunidade de trabalho por 10 meses no CEREP Mont-
souris e foi a partir desta experiência que surgiu a curiosidade de entrevistar
Bernard Penot. Há reuniões semanais no CEREP com toda a equipe que atua
junto aos adolescentes, onde são discutidos casos e levantadas questões. Busca-
-se um espaço de compreensão e reflexão. Em diversos momentos, ao questio-
nar a atuação ou até mesmo a forma como compreendiam o caso, a resposta
Psicóloga; psicanalista;
que me era dada começava com: Penot afirma que a transferência se dá através
membro do Departamento
de todos os membros que atuam na equipe, a compreensão de um caso é sem- Formação em Psicanálise do
pre vista pela junção das visões dos membros da equipe multidisciplinar. Essa Instituto Sedes Sapientiae;
supervisora da clínica da
entrevista surge então como possibilidade de dialogar com aquele que fundou Universidade São Marcos;
as bases do trabalho que é realizado até hoje neste hospital dia. membro efetivo da CEPPAN.
Resenha
Um facho de intensa escuridão – o
legado de Wilfred Bion à psicanálise[1]
Autor do livro: James S. Grotstein[2]
Emir Tomazelli
Tradução
‘observador neutro’ poderia realizar para descobrir o futuro daquele evento.
Bion resumiu-se ao observável, ao real da sessão, por isto se interessa
pouco por interpretações de movimento rígido, vai preferir as projetivas, por-
que estas sim facilitam o estudo dos sistemas mentais, que estão em atividade e A transgressão de Raskolnikov e
navegam em direção ao desconhecido, em cada momento da sessão. A “Grade”
é valiosa neste momento; é a partir dela que ele “vê” o cliente.
a confusão entre destrutividade
Já que mencionei a grade, gostaria de falar uma última palavra sobre e criatividade
o livro de Grotstein.
Grotstein esclarece a “Grade”. E isto nos alegra. E isto nos faz ver que é Richard J. Rosenthal
com ela que Bion pensa. É ela que permite a um observador, que suporta a ten-
são da não resposta, a aguardar o momento até que uma aglutinação se forme e Tradução: Julia Paladino
faça algum sentido, e então nesse momento se possa fazer a intervenção analí-
tica. É sobre esta aglutinação que Bion procura informar ao cliente. É isto que lhe Revisão: Marly T. M. Goulart
autoriza a falar sobre o que cada um está fazendo quando se encontra com ele.
Para o estudioso a “Grade” deve ser tomada como a chave do psíquico, Agradecimento à Maria Lucia Mello, que contribuiu para que a tradução e revisão
é ela que permite que haja a mente. A “Grade” é a mãe. A “Grade” permite que deste texto fosse possível.
possamos compreender onde começa e até onde vai o psíquico, é ela que nos
dá acesso a realidade, e é ela que define que Realidade Absoluta e Verdade Úl- Introdução
tima são questões que escapam aos estudiosos, e por isto estão fora do perí- A obra Do I Dare Disturbe the Universe? A memorial to Wilfred R. Bion foi editada
metro e do alcance da “Grade”. por Grotstein como uma celebração aos oitenta anos do importante psicana-
Bem... e assim vai... lista inglês[1]. O livro foi dividido em três partes: contribuições clínicas, con-
E assim, nós, por aqui ficamos... tribuições teóricas e contribuições sobre grupos. O presente artigo, inserido
Ficamos, e mais uma vez afirmamos a importância de Grotstein, e de nas contribuições clínicas, é um estudo feito por Rosental que se utilizou de
sua leitura ser uma leitura sumamente importante. Se puderem leiam, é um conceitos bionianos para uma leitura rica e pormenorizada dos aspectos de
belíssimo livro. Aproveitem! funcionamento mental de Raskolnikov, personagem central da obra literária
É isso aí. universal Crime e Castigo de F. Dostoievvski. A decisão de traduzi-lo foi tomada
por um grupo de membros do Departamento Formação em Psicanálise que
Emir Tomazelli se empenha em estudar e difundir as ideias de Bion.
Rua João Alexandre Rochadel, 62 Psicóloga clínica, membro
Brooklin Paulista do Departamento Formação
emirtomazelli@globo.com 1. Bion e sua esposa cooperaram na preparação da obra, embora Bion tenha falecido antes da sua em Psicanálise do Instituto
publicação. Sedes Sapientiae
8. Dostoievski reconhece a importância das tentativas de transgredir os limites do tempo. Nos Ca- II
dernos ele escreveu: “O que é o tempo? O tempo não existe. O tempo são números é número???; o A partir da cena inicial até o assassinato: Eu foquei a progressão de eventos
tempo é a relação da existência com a não-existência.” (p. 195)
9. A identificação de Raskolnikov com suas vítimas, que fica evidente ao longo do romance, é tam-
psicológicos que culminaram na tentativa de Raskolnikov aniquilar a agiota e
bém uma das maneiras que ele encontra para evitar o reconhecimento de sua culpa. o que ela representa. O que Raskolnikov apresenta para si mesmo como o ato
130 boletim formação em psicanálise
tradução
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– tradução: julia paladino tradução
boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade 131
criativo de um super-homem, operando racionalmente na base de “pura arit- “novo passo” magicamente simples que irá resolver todas as suas dificulda-
mética,” eu tentei descrever como termos básicos não racionais que parecem des. Isso serve para a dupla função de desvalorizar a criatividade, enquanto se
estar lhe guiando. Sua “transgressão,” como eu apontei, não é simplesmente coloca como o criador.
o assassinato de outro ser humano, um passo além dos limites da lei e da or- Essa terceira estratégia de defesa, então, envolve não somente uma
dem; é mais uma transgressão psicológica, relacionada com três manobras confusão randômica entre criatividade e destrutividade, mas o reverso das
defensivas. Como na cena de abertura onde Raskolnikov tenta evitar o reco- duas: Eventualmente uma defesa maníaca na qual a culpa para com a mãe é
nhecimento de sua dívida e culpa relacionada a uma outra mãe substituta, negada através da visão de si mesmo como contendo a boa mãe; enquanto a
sua locatária, ele tenta fugir progressivamente dessa experiência. Em certo mãe real, ou sua substituta, a agiota, é má e merece ser destruída. Assim a si-
nível, ele transgride a fronteira entre o si-mesmo e o outro pelo uso massivo tuação que Dostoievski retratou no apartamento da agiota também ocorreu
do mecanismo de projeção primitiva. Ele lida com sentimentos desconfortá- internamente: Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.
veis projetando-os. Então se sente perseguido quando percebe restos desses A agiota contém uma projeção dupla: ela não é somente a mãe em
sentimentos no mundo exterior. quem Raskolnikov projetou sua hostilidade, para que ela se torne uma cari-
Quando as dívidas de Raskolnikov começam a sufocá-lo – particular- catura da mãe má; mas por um mecanismo similar, ela também representa o
mente com a chegada da sua mãe e sua irmã –, ele é levado a uma ação ex- bebê mau, o piolho parasita. Como resultado do seu crime, Raskolnikov mata
terna de natureza cada vez mais onipotente. O ato onipotente significa negar Lizaveta, a mãe generosa e doadora. Na tentativa de destruir seu perseguidor
o desamparo, dependência, ou culpa, torna-se o segundo nível de sua tenta- ele também mata a fonte de vida e esperança dentro dele, o objeto bom inter-
tiva de encontrar uma solução. Através desse “novo passo”, Raskolnikov não nalizado. O restante desse texto está centrado nas consequências de tal ato.
tenta reparar o dano ou encontrar uma solução interna, mas sim ultrapassar Quando a segunda parte começa, Raskolnikov encara uma situação
sua culpa em direção a um mundo imoral. Ao invés de prezar a capacidade de que reproduz a fantasia infantil universal de ter vorazmente ou sadicamente
culpa e compaixão como uma qualidade humana madura e necessária, esta é atacado ou destruído o objeto amado. Hanna Segal (1952) descreve essa fanta-
vivida como uma fraqueza feminina e infantil, a ser abolida ou desapropriada. sia, na qual o objeto amado “é destruído, despedaçado e fragmentado”; e não
A relação mãe-criança torna-se o protótipo da destruição mútua: uma somente o objeto externo é atacado, mas também o interno; então o mundo
dupla peçonhenta, uma visão que, no romance, atinge a relação entre homens interno sente-se destruído e desolado. “Pedaços desse objeto destruído podem
e mulheres. Raskolnikov não somente odeia a si mesmo por se importar, mas se tornar persecutórios e há também um temor da perseguição interna na
idealiza aqueles que ele pensa estarem livres de tais preocupações; aqueles forma de um lamento pelo objeto perdido e culpa por tê-lo atacado.”
que estão acima de tais sentimentos e por isso no controle: os super-homens Na falta de acreditar suficientemente na capacidade de restauração,
onipotentes. o objeto perdido é sentido como uma perda irreversível, a situação sem es-
Na sua necessidade de negar o desamparo e a dependência, qualquer peranças. Em tais condições o ego se torna um sistema de defesas maníacas,
comparação entre o que foi dado a ele e o pouco que foi capaz de dar de volta com intuito de defender-se do desespero total: a negação da realidade psíquica,
torna-se uma dolorosa humilhação. Estes sentimentos se focalizam particu- controle onipotente, e a regressão para o mais primitivo uso do spliting e da
larmente no próprio ato de dar à luz. Não somente ele nunca poderá retribuir identificação projetiva. Forma-se um círculo vicioso no qual a regressão leva
sua mãe, mas também nunca poderá imitar seu feito. Em um momento ele a medos persecutórios maiores, que levam a um maior uso de mecanismos
idealiza a criatividade, em outro a reduz de um processo lento e longo a um onipotentes. Isso poderia facilmente servir à descrição de Raskolnikov depois
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– tradução: julia paladino tradução
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do assassinato. Quando Dostoievski viu o romance emergir nessa direção, ini- se sente momentaneamente aliviado.
cialmente planejou que Raskolnikov pensasse ou realmente cometesse outros Pensando que ao conseguir se livrar dessas lembranças externas, ele
crimes (1931, p. 56). se livraria da causa de sua ansiedade, ele sente “uma alegria intensa e quase
Na discussão sobre o resto do romance vou tentar ilustrar como Raskol- insustentável”. “Está tudo acabado! Não há pistas! E ele ri.” (p. 97) Seus bons
nikov continua usando as defesas já citadas, com objetivo de evitar confrontar- sentimentos cessam quando se aproxima do boulevard onde ele havia encon-
-se com sua culpa. Vou retratá-lo não como buscando para encontrar o castigo, trado a garota bêbada, o almofadinha e o policial. A memória aparece com uma
mas sim usando o mundo exterior – através de uma provocação onipotente, de forma característica. Ele os culpa por existir e por lembrá-lo de seus sentimen-
atos de reparação maníaca, de atos de “confissão”, que não contém contrição tos desconfortáveis em relação a eles.
nem reparação, mas são tentativas de expressar seus sentimentos de desam- Quando, no momento seguinte, ele tem o primeiro insight dos assas-
paro e desespero aos outros – continuar evitando reconhecer qualquer tipo de sinatos – que ele não os fez por razões financeiras – sua repulsa pelo que fez e
culpa ou responsabilidade em relação à sua mãe. Em outras palavras, eu acre- como se sente em relação a si mesmo, é tão intolerável que ele sente que pre-
dito que ele continua usando as mesmas manobras defensivas que o levaram cisa fazer algo para se livrar do sentimento, precisa encontrar outra pessoa
a cometer os assassinatos e, conforme vou tentar mostrar, com consequências para contê-lo nisso. “E estava buscando alguma distração, mas ele não sabia
que não são diferentes. o que fazer... o que tentar. Uma nova sensação arrebatadora estava lhe domi-
nando cada vez mais, esse era um impulso imensurável, quase físico por tudo
III o que o rodeava, um sentimento de ódio obstinado e maligno.” “Se qualquer
“Fragmentos e retalhos de pensamentos estavam simplesmente aglomerando- um se dirigisse a ele, sentia que poderia brigar ou bater nessa pessoa...” (p. 98)
-se em seu cérebro...” (p.78). No momento seguinte, a preocupação de Raskolni- Ele procura Razumihin para se distrair, mas se sente chocado pela sua
kov se volta para os fragmentos exteriores, as coisas nas quais esses pensamentos ira e tenta partir o mais rápido possível. Não há forma de aceitar ajuda de al-
se transformaram: sua roupa em trapos manchados pelo sangue das vítimas, guém. Antes de conseguir sair, no entanto, acontece um momento engraçado!
as bijuterias roubadas da velha. Ele tenta esconder esses objetos, querendo que Razumihin lhe oferece um texto para traduzir do alemão, um artigo que “dis-
ninguém, exceto ele, os veja. Ele ataca seu aparato perceptivo, de tal forma que cute a questão de se a mulher é um ser humano e, é claro, prova triunfalmente
“suas percepções estavam falhando, estavam desmoronando” (p. 81). Ele se torna que ela é” (p. 100). Raskolnikov não aceita o artigo e não há discussão sobre
obsessivo ao querer se livrar das coisas inanimadas (objetos) nas quais peda- isso, no entanto, a ideia foi introduzida e podia ser quase um subtítulo do ro-
ços do self e do objeto foram projetados (Bion 1956, 1957, 1958a, 1962a, 1962b). mance. Raskolnikov matou uma mulher e tenta se convencer de que ela não
Esses fragmentos persecutórios são versões mais recentes das “ninha- era um ser humano. Ele pensa que ela era uma coisa sem valor, um verme,
rias” que apareceram ao longo da Primeira Parte e irão continuar aparecendo um obstáculo, um princípio ou uma abstração. Sonia, como veremos adiante,
ao longo do livro. Nós agora os reconhecemos como o produto de ataque vio- também será desvalorizada ou entendida como uma idealização abstrata. As
lento ao aparato mental e ao mundo interno. Raskolnikov agarra com força mulheres são excelentes continentes para despejar aspectos inaceitáveis das
os fragmentos e as bijuterias, sem saber como se livrar delas. “Por um bom nossas personalidades.[10]
tempo, durante horas, ele foi perseguido pelo impulso de sair para algum lu-
gar, arremessar as coisas para que elas fiquem fora de alcance, de uma vez por 10. Nos Cadernos Dostoievsky escreveu: “N.B. Uma mulher é sempre apenas aquilo que nós mesmos
todas! De uma vez!” (p. 82) Ele sai, esconde os objetos debaixo de uma pedra e queremos fazer dela.” (p. 218)
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Ser mulher significa sofrer, ser mal tratada, depreciada, fraca, passiva um pensamento: ‘Que tudo isso precisa terminar hoje, de uma vez por todas,
– tudo aquilo que Raskolnikov está tentando evitar e acha desprezível em si imediatamente.’ Porque ele não iria continuar vivendo assim.” Como, de que
mesmo. Da próxima ida de Raskolnikov à casa de Razumihin, ele dirá, “estou forma ele daria um fim? Ele não fazia ideia, ele não queria nem pensar nisso.
tão triste, tão triste... como uma mulher” (p. 169), esse é um dos poucos mo- Ele afastou seus pensamentos; os pensamentos o torturavam. Tudo o que ele
mentos do romance que ele percebe sentimentos depressivos, no entanto, o sabia que sentia é que tudo deveria mudar “de uma forma ou de outra, ele re-
romance inteiro é sobre seus esforços para evitá-los. petia com desespero, determinação e uma imutável confiança em si mesmo”
A próxima série de incidentes confronta Raskolnikov com a perda de (p. 136). Logo será óbvio que, tendo “afastado os pensamentos,” ele agora está
seu bom objeto. Uma senhora e sua filha se apiedam dele e lhe dão dinheiro. louco. Seus sentimentos de poder disfarçam seu desamparo; sua necessidade de
Uma oferta de ajuda, vinda de uma mãe, o faz lembrar-se de seu crime. Ele olha fazer algo, se livrar do doloroso, “aquilo” estabelece um ciclo vicioso tornando-
para as águas azuis e brilhantes do Neva, e a sua mirada descansa no domo ar- -o cada vez mais desamparado.
redondado da catedral, uma vista particular que sempre o encheu de prazer, a Raskolnikov gasta dinheiro com um músico de rua, com prostitutas.
fonte de emoções maravilhosas e “misteriosas”, agora aparece fria, negra e sem Seu discurso é tão peculiar que um transeunte assustado atravessa a rua para
vida. Ele havia matado algo dentro de si, a boa imago maternal representado evitá-lo. Acompanhado do policial Zametov, Paskolnikov o provoca. Primeiro
pela cúpula em forma de seio. Ele olha para a moeda que a mulher lhe dera e Raskolnikov caçoa dele por causa de sua ganância e por ele estar usando seu
a joga na água. “Parecia-lhe que havia cortado a si mesmo de tudo e todos na- trabalho para ter lucro à custa dos outros. “Você deve ter uma vida muito boa,
quele momento.” (p. 102) Sr. Zametov; entrada franca para os lugares mais agradáveis. Quem está pa-
De volta a sua casa, ele entra em um estado de confusão e experimenta gando o seu champagne atualmente?... As propinas que recebe?! Você tem lu-
o desamparo e o terror que sentiu no apartamento da agiota. No seu delírio, cro com qualquer coisa!” (p. 141) Por debaixo das provocações hostís podemos
ele está tentando lembrar-se de alguém e de algo. Ele vê alguém ao lado de sua sentir certa inveja.
cama. “Alguém que ele parecia conhecer muito bem, no entanto, não conse- Raskolnikov conta que esteve lendo sobre o assassinato, lembra-se de
gue lembrar quem ele (sic) era, isso o assustou, até o fez chorar.” (p. 104) Ele seu desmaio no posto policial e apresenta isso de maneira que pareça o mais
não tinha nenhuma lembrança dos assassinatos, mas “a cada minuto ele sen- suspeito possível “agora você entende?”, ele pergunta e ri na cara do confuso
tia que havia esquecido algo que teria que ser lembrado. Ele se preocupou e se Zametov. Essa provocação onipotente é um flerte deliberado com o perigo, com
atormentou tentando lembrar, se lamentando. Entra numa onda de fúria, ou o objetivo de testar seu poder e provar que está tudo sob controle.
afunda em um terror horrendo e intolerável” (p.105). Da mesma forma que Raskolnikov sentiu vontade de gritar para os dois
Com um pouco de sono, bons cuidados e a ajuda dos outros, o delí- homens que estavam tentando entrar no apartamento da agiota, bater neles
rio de Raskolnikov vai se limpando; mas depois de estar deitado na sua cama e xingá-los, ele agora experimenta um impulso similar. “Novamente um de-
ouvindo-os discutir os assassinatos, depois de conhecer o noivo de sua irmã, sejo intenso de extravasar.” Esse gesto revela, por detrás da falsa aparência de
Luzhin, e depois de saber que sua mãe e irmã chegarão a qualquer minuto, um homem poderoso, uma criança. Quando Zametov menciona outro crime,
sente novamente vontade de agir. Seu estado mental é característico: “Calmo, Raskolnikov humilha os outros criminosos como sendo crianças tolas. Ele diz
seguro de si, forte.” “Esse foi o primeiro momento de uma calma estranha e que teria cometido o crime calmamente, deliberadamente, confiante de si, sem
repentina.” “Um tipo de energia selvagem brilha de repente em seus olhos fer- um traço de ansiedade. Claramente, o que é mais importante é estar no con-
vorosos.” “Ele não sabia e não pensava para onde estava indo e tinha apenas trole total. No que Raskolnikov nos traz, e em particular no contraste entre a
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maneira diferente que ele se comportou durante os assassinatos e a forma na expressar raiva contra aqueles que são tidos como os responsáveis. Como conse-
qual continua pressionado, e não sob controle de seus sentimentos, nós come- quência de seu ato na casa dos Marmeladov, ele de repente sente-se “orgulhoso,
çamos a entender a importância ligada ao controle onipotente. confiante de si, esses sentimentos cresceram cada vez mais fortes dentro dele,
Continuamos seguindo Raskolnikov depois de seu encontro com Zame- estava se tornando um homem diferente a cada momento” (p. 166).
tov, ele ainda está determinado a “dar um fim em tudo isso” (p. 150). Depois de Uma reparação normal seria baseada no reconhecimento da realidade
rejeitar o suicídio, ele está a caminho do posto policial para confessar, quando psíquica, a experimentação da dor que essa realidade causa, e a tomada de ati-
algo o faz mudar de ideia. Ele se aproxima de Marmeladov que está morrendo, tudes que aliviam essa dor na fantasia e na realidade. O objetivo da reparação
pois havia sido atropelado por uma carruagem. Raskolnikov reage “tão seria- maníaca repara o objeto de tal forma que a culpa e a perda nunca existam. A
mente como se fosse seu pai” (p.155). Marmeladov representa o pai ineficiente reparação maníaca, como Hanna Segal (1964, p. 82-83) explica, tem três ca-
e tolo. Mas nessa reversão do sonho, o cavalo matou o pai. Novamente como no racterísticas: 1) Nunca é feita em relação a objetos primários ou internos, mas
sonho e nos assassinatos da velha agiota, a cabeça é partida. E da mesma forma sempre em relação a objetos mais remotos; 2) O objeto relacionado à repara-
que o garotinho agiu no sonho, Raskolnikov cuidadosamente abraça a cabeça ção nunca deverá ser experimentado como danificado pelo próprio individuo;
da vítima. Eles vão em direção da casa de Katerina Ivanovna onde Raskolni- e 3) O objeto deve ser sentido como inferior, dependente, e mais profunda-
kov toma conta, tranquiliza a Sra. Marmeladov, dá dinheiro e suporte. Na crise, mente, desprezível. Não há amor verdadeiro nem estima pelos objetos repa-
assume a responsabilidade da família que Marmeladov não foi capaz de ter e rados; em vez disso, eles estão sendo controlados de forma onipotente. Para
que ele não foi capaz de ter com sua própria mãe e irmã. Ele sai sentindo-se mim, parece que a família Marmeladov, embora não tenha o mesmo signifi-
rejuvenescido, e é esse, para alguns críticos, o principio de um renascimento. cado que a própria família de Raskolnikov ou da agiota e Lizaveta, se encaixa
Minha impressão é que essa atitude serve primeiramente a uma repa- nessas características.
ração maníaca. Por um momento, Raskolnikov consegue esquecer seu desam- Raskolnikov vangloria-se por coisas que mais parecem um triunfo
paro, fraqueza e sua incapacidade de ajudar sua família. Na verdade, depois de maníaco do que rejuvenescimento moral. Ele não aparenta estar conectado
conseguir uma nova família, se esquece completamente da sua própria. Os as- com a realidade, já que nenhuma afirmação é verdadeira. Sua enfermidade
sassinatos também estão momentaneamente apagados, talvez cancelados pela não acabou. Ele certamente não acreditou que ela acabaria quando saiu. Essa
“aritmética”. Há um sentimento temporário de poder e controle. “Nós usaremos é uma ilusão da onisciência. Ele usa a retrospecção para se convencer de que
toda nossa força! Ele coloca de forma provocante, como se desafiasse algum tem mais controle de si do que realmente tem.[11]
tipo de poder das trevas... ‘Eu acredito que minha enfermidade está curada, eu Seu sentimento de força é a maior das ilusões. Um pouco mais tarde,
sabia que ela se acabaria quando saí... Força, força, é o que nós queremos, sem quando ele encara sua família na realidade, ver sua mãe e irmã o levara a um
ela não se pode fazer nada, e força precisa ser ganha com a própria força – é colapso e a um desmaio.
isso que eles não sabem’.” (p. 166) Parece que ele está desafiando seus inimigos Se Raskolnikov tivesse, realmente, ajudado os Marmeladov por
e experimenta um sentimento de triunfo sobre eles. Ele soa como um louco.
O objeto do seu desafio, o inimigo invisível, são seus perseguidores. 11. Há muitos exemplos desse tipo de autodecepção, o mais significante seria o seu ultimo feito: “Eu
Quando ele não reconhece conscientemente seus sentimentos de culpa, ele sou provavelmente mais asqueroso que o piolho que matei, e eu senti de antemão que deveria ter
dito isso para mim mesmo depois de matá-la.” (p. 239) Alguns críticos erram em ter isso como
sente que alguém é responsável por eles. Seus esforços foram direcionados evidência de que ele sabia que iria falhar antes dos assassinatos, e os cometeu com o objetivo de
para se livrar desses sentimentos desconfortáveis, “dar um fim nisso,” e para falhar. Seu estado mental é uma pista para a decepção.
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sentimentos reais de compaixão, essa ação o teria feito se sentir mais forte, é porque estava sempre doente. Se ela fosse chata ou corcunda eu acredito en-
no entanto, ele se sentiu mais poderoso. Se ele tivesse se sentido mais forte, tão que teria gostado ainda mais dela.” (p. 201)
poderia reconhecer sua fragilidade. Se a ajuda dada aos Marmeladov fosse mo- A namorada de Raskolnikov era considerada inferior, estragada tanto
vida pela compaixão, ele teria também entrado em contato com sentimentos física quanto mentalmente, e isso parece ser precisamente o que ele gostava
depressivos – preocupações com a futura tristeza, sentimentos relacionados à nela. Se ela fosse mais deformada ele gostaria ainda mais dela. O seu problema
morte de Marmeladov, em relação a sua própria família, as suas próprias víti- não era nada que ele tivesse causado e por isso não era algo que ele precisasse
mas, culpa. Com certeza não seria triunfo. Como ocorre em outros lugares do sentir culpa. Ele poderia se ver como seu benfeitor, resgatando-a e restituindo-
romance, o tom de triunfo é uma indicação de o que está sendo comemorado é -a; enquanto ao mesmo tempo, ela poderia funcionar para ele como uma re-
uma vitória sobre a realidade e geralmente uma vitória à custa de outra pessoa. presentação de vários de seus aspectos feios e inaceitáveis.
Até agora, eu tenho ressaltado os aspectos maníacos de sua relação A relação, que teria terminado em casamento se a garota não tivesse
com Marmeladov, pois penso que essas características são muito significa- morrido, precedeu o objetivo de Raskolnikov de matar a velha agiota. No en-
tivas e que não foi levada em conta por outros escritores. Certamente, pode tanto, as duas estão claramente relacionadas. Quando discutia seus planos de
haver aspectos maníacos e saudáveis no comportamento e os analistas estão casar com a filha inválida da proprietária, a mãe de Raskolnikov disse que o
acostumados com pacientes que confundem esses dois aspectos, como por choque de ouvir isso quase a matou. “ ‘Você acha’, ela disse, ‘que minhas lágri-
exemplo, quando eles progridem realmente, ou terminam algo depois de tra- mas, minhas súplicas, minha doença, minha morte talvez pelo sofrimento,
balhar duro, atribuem isso a sua onipotência, e então se tornam maníacos. As nossa pobreza, teriam o impedido de fazer isso? Ele passaria por cima de todos
ações de Raskolnikov para com Marmeladov contêm tanto aspectos maníacos esses obstáculos, calmamente’.”[12]
quanto saudáveis, e agora, no topo de sua mania, seus sentimentos mudam. A Isso liga o “romance” com a garota inválida aos assassinatos da velha
defesa maníaca raramente é completa, geralmente um pouco de depressão se agiota e de Lizaveta. As duas ações, uma supostamente amorosa e a outra des-
expressa. Quando Raskolnikov chega a sua casa, ele já não está mais se van- trutiva, são para evitar a culpa; no entanto, as duas ações levam à coisa mais
gloriando de seu triunfo. Ele está subjugado, reflexivo, depressivo. Ele quer importante que elas pretendiam evitar: a morte da mãe de Raskolnikov.
contar para Razumihin sua experiência na casa dos Marmeladov, o impacto A garota inválida está também ligada à Sonia, que alguns críticos co-
disso nele, e de repente admite se sentir fraco. “Estou tão triste.” Ele diz “tão locam como sua reencarnação. A discussão sobre a noiva é quase que imedia-
triste... como uma mulher”. tamente seguida da tímida aparição de Sonia na porta. Sonia é descrita como
Há outra relação que me parece representar reparação maníaca: A es- sendo uma criança, pressionada pela timidez, humilhada na companhia de
colha do objeto amado por Raskolnikov antes dos assassinatos. Nós primeiro sua família, e desperta sentimentos de pena e compaixão em Raskolnikov, fa-
ficamos sabendo da noiva de Raskolnikov através de seu amigo, Razumihin. zendo com que ele se sinta rejuvenescido novamente. Ele e os leitores são re-
“A garota não era bonita mesmo, na verdade posso dizer positivamente que ela lembrados da cena previamente descrita na casa dos Marmeladov.
era feia... e tão inválida... e estranha... é inexplicável... ela também não tinha
dinheiro.” (p. 189) Raskolnikov confirma a descrição e dá uma pista sobre a 12. Aqui eu difiro de forma substancial da tradução de Garnet, que diz: “Não, ele teria calmamente
razão de sua atração. “Ela era uma garota tão doentia... inválida. Ela se orgu- desconsiderado todos os obstáculos.” O verbo usado é perestupit, passar por cima, transgredir. O
substantivo deveria ser perestupanie, que significa transgressão, uma variante de prestuplenie. Ver
lhava de ajudar aos pobres e sempre sonhava em cuidar de crianças... Ela era Molchuski (1947, p. 305). Jessie Coulson (1953) traduz a frase: “Não, ele pisaria friamente sobre cada
uma coisinha feia. Eu realmente não sei o que me levou a ela – acho então que obstáculo.”
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No episódio seguinte, Raskolnikov e Razumihin visitam o inspetor da faz um massacre em Paris, esquece um exército no Egito, gasta meio milhão de
polícia, Porfiry Petrovich, e a conversa gira em torno do artigo que Raskolnikov homens na expedição a Moscou” (p. 236), e não tem problemas com isso, até
escreveu sobre o crime. No artigo, ele introduz a sua teoria do super-homem: existem altares feitos para ele. Por que ele teria que pagar; por que ele deveria
a humanidade se divide em poucos e extraordinários seres e a maioria que é se sentir culpado por um pequeno crime? Continuando sua comparação de si
composta de pessoas ordinárias, as quais os extraordinários têm o direito e até mesmo com Napoleão, é forçado a reconhecer sua limitação, ele não consegue
a obrigação de, mesmo transcendendo a lei, oferecer algum tipo de bem maior. transpor a culpa e se sente humilhado por isso.
O homem comum é limitado pelo seu sentimento de culpa que Raskolnikov Ele continua negando a culpa desvalorizando suas vítimas e negando
descreve sarcasticamente como “eles castigam a si próprios, pois são muito qualquer significação para o crime,[13]e reconhecendo a culpa, uma limitação
conscientes; alguns castigam os outros e têm certos casos em que usam as pró- que o faz imediatamente atacar-se e atacar sua vítima. “A velha mulher era
prias mãos para isso... Eles impõem atos públicos de autopenitência com um insignificante! Ele pensa de forma inconsciente e exacerbada... a velha mu-
belo e edificante efeito” (p.228). Seu tom é de desprezo, como se a consciência lher era somente uma doença... eu estava com pressa de ultrapassar... eu não
fosse uma limitação, uma fraqueza, uma humilhação. Podemos lembrar que matei um ser humano, mas um princípio! Eu matei o princípio, mas eu não
quando Raskolnikov toma consciência de seus sentimentos de culpa, ele ime- ultrapassei, eu fiquei deste lado... Eu fui só capaz de matar.” (p. 238-239) Aqui
diatamente experimenta um ódio por si mesmo e uma ira contra qualquer um ele está claramente nos dizendo que o ato de matar não era a barreira - não
que seja identificado como responsável por fazer com que perceba seus senti- era a lei dos homens, mas o sentimento de culpa por ferir outro ser humano.
mentos, geralmente sua vítima. Ele então lembra que não foi somente a velha mulher que matou, mas
Ninguém pode se sentir culpado por maltratar pessoas comuns, logo, também Lizaveta. “Pobre Lizaveta! Por que ela teve que entrar... é um pensa-
de acordo com essa teoria, elas existem para serem usadas. Elas “amam ser mento estranho, por que eu penso nela tão raramente, como se não a tivesse
controladas. Para mim seu dever é ser controladas, isto porque é a sua voca- matado? Lizaveta! Sonia, pobres coisas gentis com olhos gentis... Mulheres
ção, e não há nada de humilhante nisso para elas” (p. 227). Esse é exatamente queridas! Por que elas não choram? Por que elas não murmuram? Elas desis-
o argumento que Svidrigailov apresentará como veremos a seguir, apesar dele tem de tudo... seus olhos são macios e gentis... Sonia! Sonia! Doce Sonia.” (p.
dar um passo adiante comparando e identificando as pessoas comuns com 240) Lizaveta, Sonia, que são gentis e boas, mas que inspiram culpa. Por que
as mulheres. elas nem mesmo reclamam? Elas se deixam esgotar, serem usadas, “elas de-
Agora, quem são as pessoas extraordinárias? Elas são “pessoas com sistem de tudo”.
ideias novas, pessoas com a fantástica capacidade de dizer algo novo” (p. 229). Essa passagem nos faz lembrar da confissão de Marmeladov, quando
“Homens que possuem o dom ou o talento de pronunciar uma nova palavra.” (p. depois de sua pseudoculpa, ele descreve a dor de olhar nos olhos de sua esposa
227) E como essas pessoas fazem seu trabalho? Elas destróem; suas ações são e reconhecer o que fez com ela. Aqui Raskolnikov, assim como Marmeladov,
destrutivas! Já que estamos falando da inveja da criatividade, naturalmente está cara a cara com sua culpa. A resposta de Marmeladov foi se sentir des-
aqueles que são destruídos são nada mais, nada menos, que os representantes confortável e beber mais ainda, ficar mais tempo longe, machucar mais a sua
inconscientes daqueles que se consideram os mais criativos - a mulher com
seu fruto, a mulher grávida.
13. Como Segal aponta: “Um objeto de desprezo não é um objeto merecedor de culpa, e o desprezo, que
Ao chegar a casa, Raskolnikov continua essa discussão consigo mesmo. é experimentado relacionado a tal objeto, se torna a justificativa para mais ataques a este.” (1965,
“O verdadeiro mestre a quem tudo é permitido joga uma tempestade sobre Toulon, p. 71)
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mulher, com o objetivo de evitar essa culpa. vezes Raskolnikov se pergunta se ainda está dormindo. Essa divisão, a reversão
O estudante, cuja conversa Raskolnikov ouviu por alto, e Mikolka, no da realidade para o mundo dos sonhos, é usada para nos apresentar Svidrigai-
sonho, expressam a mesma ideia. É como se cada um dissesse: parti meu co- lov e este a Raskolnikov. Esse personagem demoníaco pretende representar a
ração ao ver o que fiz a ela, então eu a matei. forma mais bem sucedida da onipotência de Raskolnikov, i.e., destrutiva. Não
Raskolnikov tem dificuldade de entender que essas mulheres aceitam por acaso, ele aparece no momento que Raskolnikov se sente mais fraco e de-
as coisas sem questionar, sem reclamar. As mulheres, pela sua passividade e samparado. Medidas extraordinárias, na forma de um super-homem onipo-
aceitação, fazem com que ele se sinta desconfortável, porque elas não podem tente, são usadas para negar a realidade psíquica.
ser vistas, então, como perseguidoras externas com quem poderia ficar irritado. A primeira ação de Svidrigailov no romance é de ultrapassar a soleira da
Tal irritação seria uma indignação genuína, na verdade, experimentada como porta para dentro do quarto, e Dostoievski usa o mesmo verbo, perestupit, um
libertadora. No lugar disso, os sentimentos ruins atacam-no internamente; ele momento antes havia usado esse verbo para descrever a falha de Raskolnikov.
não pode nem fugir deles nem aniquilá-los dentro de si. O símbolo da soleira da porta converge novamente para os três significados
Esses sentimentos são vividos como ataques a ele, e quando perde a descritos anteriormente. Svidrigailov despertou a curiosidade de Raskolnikov
consciência, seus pesadelos representam sua vitimização por esses persegui- dizendo que os seres humanos, especificamente as mulheres, amam ser insul-
dores internos e os seus sentimentos de não ter para onde escapar. Raskolni- tadas. As mulheres gostam de ser espancadas; na verdade, “podemos dizer que
kov se vê numa batalha de vida ou morte que provoca a necessidade de uma é a única diversão delas” (p. 245). Que Svidrigailov acredita nisso e ao mesmo
ação mais efetiva. No sonho, ele está batendo na cabeça da velha com um ma- tempo não acredita, isso é evidenciado pela sua paixão por jovens garotas ino-
chado e a cada machadada a velha treme e gargalha parecendo zombar da sua centes. Sua perversão é violentá-las, por maldade e inveja. O prazer da perver-
impotente tentativa de silenciá-la, de aniquilá-la. Como no sonho de bater no são é que ele sabe que elas não gostam de sofrer. A atração pelas inocentes é
cavalo, a fragilidade está sendo ridicularizada. Neste caso, no entanto, é a sua para negar isso, ou seja, fazê-las sofrer.
suposta vítima que está rindo da sua fraqueza e que é vista como um tormento. Svidrigailov pretende representar um dos aspectos da personalidade de
Ele percebe que a porta do quarto está aberta e ouve risadas e sussurros. Ele Raskolnikov, a idealização da destrutividade, levada ao extremo. Sua perversão
começa a bater nela com toda a força, e as risadas simplesmente ficam mais é baseada em uma reversão do bem e do mal. Criatividade e destrutividade,
altas. Ele tenta fugir, mas percebe que todas as portas estão abertas. O corre- com uma escolha deliberada da última. Svidrigailov fascina Raskolnikov, não
dor está cheio de gente, pessoas por toda parte – no térreo, nas escadas – todos por causa de uma latente atração homossexual, nem por que ele materializa
em silêncio, olhando-o com expectativa. Ele congela num ponto, incapaz de os desejos incestuosos deste para com sua irmã, como muitas interpretações
se mexer; essa paralisia só termina quando grita e acorda. sugerem, mas porque personaliza o super-homem onipotente, que tem con-
Dostoievski apresenta esse sonho de tal forma que nós primeiramente trole sobre seus sentimentos, ultrapassa suas limitações e, mais importante,
acreditamos que ele é real. No sonho, a porta aberta representa uma ruptura na é livre de culpa. Svidrigailov diz a Raskolnikov precisamente o que ele mais
capacidade de distinguir a realidade interna da externa. Quando Raskolnikov queria ouvir: Que ele não precisa se sentir culpado por ferir sua mãe e irmã.
acorda pensa ainda estar dormindo, e demora um tempo para perceber que Ele descreve Dounia como uma mártir. “Ela está sedenta por ser torturada por
está acordado. A primeira coisa que vê quando abre os olhos é que a porta de alguém, e se não conseguir, irá se jogar da janela.” (p. 409) As mulheres querem
seu quarto está aberta; Svidrigailov está de pé na entrada, observando-o. Uma sofrer; elas amam isso; então em vez de sentir culpa, podemos pensar nisso
mosca está zumbindo dentro do quarto, outro elemento trazido do sonho. Duas como o dever de se aproveitar delas.
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Um momento depois, no entanto, nós temos uma imagem de Svidrigai- seus bons atos, leva os críticos a apontar sua indiferença com a moralidade,
lov relacionada à Dounia bem diferente. Ele está dizendo que a ama. “Deixe-me que ele não distingue entre bem e mal e é perfeitamente capaz dos dois. Nós
beijar a bainha de seu vestido, deixe-me, deixe-me... a sua seda seria demais lembramos Raskolnikov, pensando em fontes e flores embelezando a cidade,
para mim. Diga-me ‘faça isso’ e eu farei. Eu farei tudo. Eu farei o impossível. O enquanto estava a caminho para cometer o assassinato. A ação de Svidrigailov,
que você acredita, eu também acreditarei. Eu farei qualquer coisa - qualquer no entanto, beneficia os outros, e como é o primeiro a reconhecê-lo, serviria
coisa mesmo!” (p. 425) Ele está se declarando para ela, mas seu tom é muito para manter as crianças das duas famílias fora do alcance de alguém como ele.
penoso. Ele a idealiza enquanto nega a si mesmo. Ele está se rebaixando, im- Ele pensa em Dounia. “Quem sabe? – Talvez de algum modo ela tivesse
plorando para ser seu escravo, completamente fora de controle. Novamente feito de mim um novo homem...” (p. 435) Ela teria sido a sua salvação. A rela-
somos relembrados que, no mundo desse romance, amar significa ser domi- ção com uma mulher é vista como uma forma de conectar-se com a vida. A
nado tanto pela sua própria paixão quanto pelo outro. impossibilidade disso só aumenta a sua inveja, então seus pensamentos foca-
Mas então uma mudança recai sobre ele, e “ele retorna a si mesmo”. lizam no ódio do nascimento, das crianças e da criatividade. “Como eu detesto
Ele está novamente no controle, isento de emoções espontâneas - e agora Dou- o som das árvores... Eu nunca gostei de água.” (p. 435) Ele cochila e no seu sono
nia está assustada e desamparada. Mesmo quando ela aponta uma arma car- continua sendo perturbado por múltiplas pequenas coisas e variadas imagens
regada para ele – na verdade, particularmente nessa hora – está sob controle. de fecundidade que o perseguem. Um rato corre por seu corpo. Ele pensa em
Svidrigailov está afirmando sua bravura, apagando sua humilhação previa. flores, muitas flores em abundância. Ele ouve o som da chuva caindo e, numa
Ele controla suas emoções, sobretudo quando vê a morte cara a cara. Sua do- perversão maravilhosa do símbolo do nascimento, pensa em como o rio irá
minação e controle aparecem completamente. Quando ela larga a arma, ele transbordar e os ratos do celeiro serão arrastados para fora pelas águas. Ele
sente como se tivesse sido salvo de seu isolamento sombrio, mas no momento imagina que se mata debaixo de um grande arbusto, encharcado pela chuva,
seguinte os olhos dela dizem outra coisa. “Então você não me ama?”, ele per- com milhões de pingos caindo em sua cabeça. Há moscas em sua carne. A re-
guntou suavemente. Dounia abanou a cabeça. “E... você não poderá? Nunca?” volta da paixão representada por ninharias.
Ele sussurrou com desespero. “Nunca!” (p. 428). Seu destino está selado após o Ele sonha com uma garota de catorze anos vestida de branco, deitada
reconhecimento da realidade psíquica e da realidade exterior, todas as tenta- em um caixão forrado com seda branca e circundada por uma profusão de flo-
tivas para se aproveitar da sua sexualidade, dominá-la ou usá-la, são descar- res. Lembra-se da garota que tirou sua própria vida depois que ele a seduziu.
tadas. O confronto ilustrou dramaticamente a diferença entre controlar outra Nesta hora sentimos o mesmo que ele: o fim da sua inocência e esperança,
pessoa como um objeto a parte e ter uma relação real baseada no reconhe- a aniquilação da sua capacidade de sentir. Então ele tem um segundo sonho,
cimento da separação e da independência. É tal reconhecimento que torna este com uma criança negligenciada, uma menina de cinco anos que se trans-
Svidrigailov mais heróico, realmente mais saudável, do que Raskolnikov, no forma em uma desavergonhada meretriz, o rosto dela sendo a face que ri da
entanto, curiosamente, é nesse ponto que aquele personagem está “conde- depravação dele.
nado” e este está “salvo”. O par de sonhos se assemelha de diversas formas aos dois primeiros
O próximo capítulo contém a preparação e os detalhes do suicídio de sonhos de Raskolnikov. Nós relembramos que Svidrigailov apareceu pela pri-
Svidrigailov. Ele primeiro visita Sonia com o objetivo de assegurar seu futuro, meira vez quando Raskolnikov estava acordando de seu segundo sonho, como
como também de sua pequena irmã e irmão. Ele então visita sua noiva de dezes- se fosse a resposta ao reconhecimento por parte de Raskolnikov do seu pró-
seis anos para explicar-lhe sua falta e também para provê-la. Sua generosidade, prio desamparo. Agora Svidrigailov reconhece o seu próprio desamparo. Nessa
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última ação antes do suicídio, ele não consegue pegar nem uma mosca. sentimento de culpa relacionado à forma como a trata. Juntamente com Svi-
O suicídio se dá do lado de fora de uma grande casa. Seus grandes por- drigailov e Raskolnikov, variações do mesmo tema são encontradas em Mar-
tões estão fechados como uma confirmação de que o corpo da mãe é inválido meladov, Luzhin e Razumihin.
e que a separação do bom objeto é permanente.[14] Luzhin é claramente o personagem mais negativo e antipático do ro-
Na entrada da casa há um pequeno homem, um judeu usando um mance, e Razumihin é o mais saudável. Luzhin nos diz “Dounia era simples-
casaco de soldado e um capacete de Aquiles. A imagem deste homem fraco e mente essencial para ele; estar sem ela seria impensável”, ele se regozija com
ineficiente, disfarçado de soldado, é a imagem da onipotência, um menininho seu plano de reverter a disputa no relacionamento deles, de forma que seja
que pretende ser poderoso. Ao ser descrito como Aquiles, ele se identifica com ele quem estará no pedestal, venerado e admirado por ela, colocado como seu
o herói invencível, o super-homem todo-poderoso que não pode ser tocado salvador. A posição desamparada dela o excita, já que isso o impele a trocar de
pelos outros, não pode ser derrotado, exceto pelo seu próprio erro fatal. Svi- papel com ela, a virar a mesa em cima dessa mulher que tinha tanto mais do
drigailov venceu as barreiras. Seu erro? Tomando conhecimento da futilidade que ele. “Aqui está uma garota de caráter, virtude e educação superiores aos
do controle onipotente, ele reconhece seu vazio e seu isolamento. Percebe que seus (ele sentia isso), e essa criatura estaria eternamente grata pela heróica
suas forças destrutivas destruíram o objeto que ele amava e do qual ele depen- condescendência dele, se atiraria na poeira do chão antes dele, e ele teria ab-
dia, não só como um objeto externo, mas interno também. Sua agressão des- soluto poder sobre ela.” (p. 267) Em todas as relações entre homem e mulher
truiu a própria capacidade de dar e receber amor. A fragmentação resultante ou se domina ou se é escravo.
e a reorganização paranóica do seu mundo não o impedem de reconhecer o O papel de escravo pertence à Razumihin, que se apaixonou por Dou-
que fez. É por essa razão, penso eu, que Svidrigailov nos toca. Ele é simpático e nia à primeira vista, e no seu primeiro encontro murmura: “Estou falando
bem diferente da encarnação do mal que foi o intento inicial de Dostoievski. bobagens, eu não mereço você... eu não mereço você absolutamente!” (p. 175)
Uma ideia central, que percorre todo o romance e se incorpora respec- “... Você é uma fonte de bondade, pureza e sentido... e perfeição... eu gostaria
tivamente aos destinos de Svidrigailov e Raskolnikov, é que não importa se de beijar suas mãos agora, aqui de joelhos...” (p. 176), e nesse momento ele cai
no fim há salvação ou morte, isso depende do relacionamento com uma mu- de joelhos na calçada e tenta beijar as mãos dela, enquanto Dounia e sua mãe
lher. A mulher é vista como absolutamente essencial para a sobrevivência; o protestam e se perguntam sobre sua sanidade. Tentativas são feitas para atri-
homem é dependente dela já que ela dá a ele algo que ele não consegue dar buir seu comportamento e sua fala ao fato dele estar bêbado. Razumihin ide-
a si mesmo. A vulnerabilidade envolvida no reconhecimento é vencida atra- alizou Dounia desde a primeira vez que pôs seus olhos nela, ele a tem em um
vés da negação da independência da mulher ou separação de si mesmo; ela pedestal onde está marcado “bondade, pureza, sentido e perfeição”, e ele se
é desvalorizada, tratada como um objeto separado, controlada. Não há grati- põe de joelhos para adorá-la e servi-la. Naturalmente, ele sente que não me-
dão pelo que foi recebido. E há uma absoluta necessidade de evitar qualquer rece tal perfeição. Há diversas razões para idealização, incluindo a proteção do
objeto idealizado para que ele não sofra dano, ou seja ferido, o que iria mexer
14. O local é cuidadosamente escolhido por Svidrigailov, depois de considerar algumas outras pos- em sentimentos como perda, tristeza e culpa. Uma mulher em um pedestal é
sibilidades. Num dado momento, ele percebe a importância de tal escolha: “Eu me tornei mais
particular, como um animal que escolhe um lugar especial... para tal ocasião.” (p. 435) As últimas mantida a uma distância segura. Nós vemos que não importa o quão ridículo e
palavras que ele então ouve são do pequeno judeu repetindo: “Você não pode fazer isso aqui, este fora de controle o comportamento de Razumihin tenha sido, ele se sente mais
não é o lugar.” (p. 440) Há uma ironia particular. Svidrigailov tem um censo de locação, contrastando
com a intromissão de Raskolnikov; é este último censo de seu local psicológico que determina o
seguro com sua idealização. Será que Dounia deveria “estar vestida de rainha,
suicídio. ele percebeu que não teria medo dela, mas talvez pelo fato de estar pobremente
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vestida, e assim ele perceber toda a miséria do entorno, seu coração estava era seu.” (p. 283) No fim, ele acaba revelando seu doloroso segredo a ela. Que
cheio de horror e ele começou a ter medo de qualquer palavra que pronun- conseguiu se aliviar à custa dela e ao reverter seus papéis, se sente momenta-
ciasse, qualquer gesto que fizesse” (p. 188). neamente triunfante, mas também confuso em relação à separação de suas
Diferente de Raskolnikov, entretanto, Razumihin não culpa a mulher identidades. “Nós somos o mesmo” (p. 288), ele lhe diz.
por provocar tais sentimentos nele, nem pretende controlá-los. Não há ne- Em um dado momento, Raskolnikov se relaciona com o sofrimento de
nhuma tentativa de manipular Dounia e nem de reverter a relação deles; em Sonia com desprezo e ódio, enquanto no outro o idealiza. A responsabilidade
resumo não há associação com o controle onipotente e nem com os mecanis- também não é diretamente ligada à Sonia. No meio de seu cruel abuso, de re-
mos projetivos de Raskolnikov. Razumihin aceita a responsabilidade, não só pente se agacha no chão e beija os pés dela. “Não é pessoal”, diz ele; “eu não
por si mesmo, mas para ajudar Dounia, seu irmão e mãe. Ele é o único dos me curvei a você, eu me curvei a todo sofrimento da humanidade” (p. 279). De-
cinco homens capaz de fazer reparação. pois explica que ela está perto de ouvir o que tinha a dizer antes de encontrá-
Nos três encontros que Raskolnikov tem com Sonia, ele faz uso exten- -la, antes dos assassinatos, quando seu pai falou pela primeira vez sobre ela.
sivo da projeção, e há uma recapitulação de muito que já descrevi. No começo Depois de confundi-la e assustá-la, ele sai no mesmo espírito de triunfo
ele está frio, tenta quebrar todas as defesas dela e mostrar o pior da realidade maníaco com o qual saiu da casa dos Marmeladov. “Quebre o que deve ser que-
de sua situação, a futilidade de todos seus esforços. Ele a atormenta com aquilo brado, de uma vez por todas... Liberdade e poder e. sobretudo, Poder! Sobre todo
que o atormentava: Seu fracasso em sustentar sua família. “Você precisa en- tremor da criação, sobre todo formigueiro!... Esse é o objetivo, lembre disso! Essa
carar as coisas de frente” (p. 286), ele diz para ela, isso é precisamente aquilo é minha mensagem de despedida.” (p. 287) Percebemos que, particularmente
que não consegue fazer. nesse estado de espírito, sua metáfora final é destrutiva. Raskolnikov nunca
Ele não se relaciona com ela como um indivíduo, mas como um tipo fala em reparação, a necessidade de arrumar as coisas, colocá-las em ordem.
de privada psíquica onde ele pode evacuar. Essa é frequentemente a função Na segunda vez que Raskolnikov visita Sonia, ele vai lhe dizer quem
da prostituta. Ele tenta fazê-la sentir-se desamparada, inútil, culpada e humi- matou Lizaveta. As respostas que Raskolnikov dá à Sonia alternam, dependendo
lhada por se revelar. Manipulando esses sentimentos nela, ele pode manter-se das respostas dela, aumentam ou diminuem a ansiedade e culpa. Quando ela
distante e em controle, mas então percebe que todas suas cruéis desaprova- lhe mostra que não se fere com seus ataques, e que consegue aceitá-lo, seu des-
ções, sua previsão de um futuro terrível, suas sugestões para que se mate – to- conforto se torna mais tolerável e ele pode enxergar melhor suas dificuldades.
das essas coisas que ela havia pensado antes, talvez repetidas vezes: Ela nem Mas primeiro ele percebe que ela está esperando algo dele, que sente ser inade-
percebe a crueldade dele, Sonia aparece incorrupta por suas experiências; ela quado entregar, se sente desconfortável, e a culpa. “De repente, uma estranha
permanece pura entre toda sujeira. Ele fica intrigado pela sua habilidade em e surpreendente sensação de ódio por Sonia passou por seu coração.” (p. 351)
resistir a todos os ataques. Ele levanta a cabeça e olha diretamente nos olhos dela, e para sua surpresa não
Raskolnikov descobre a solução dela: “Deus! Ela é uma maníaca reli- vê nem uma vítima, nem uma perseguidora. “Havia amor em seus olhos, seu
giosa.” Ele a força a ler a história de Lázaro, do novo testamento. Sua motivação ódio se desfez como um fantasma.” Como uma boa mãe, ela é capaz de conter
é perversa, destrutiva. Ela costuma ler para Lizaveta e agora está revelando seu seus sentimentos de ódio e transformá-los através do amor.
“tesouro secreto” para ele. “Via em parte por que Sonia não conseguia ler para Ele reconhece seu erro; sentiu-se desamparado e imediatamente teve
ele, e quanto mais via isso, mais insistia de forma grosseira e irritada para que a urgência de se livrar desse sentimento, projetou-o de forma violenta, atra-
ela lesse. Ele entendia bem o quão doloroso era para ela trair e revelar algo que vés do ódio. “Não era o sentimento real, ele trocou um sentimento por outro.
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Isso significa que o minuto chegou.” Esse “minuto” significa que está na hora sem nenhum arrependimento. A resposta dela, que é apontar que ele também
de confessar; mas com um intento ambíguo, pois se refere ao que foi para ele sofre, de novo faz com que se sinta mais tolerável. “Nós somos tão diferentes”,
uma experiência similar. “Sua sensação naquele momento era terrivelmente ele percebe finalmente. “Nós não somos parecidos.” (p. 356)
parecida com o momento em que ele estava na frente da velha com o machado Ainda tentando encontrar uma explicação, ele conta a ela sobre sua te-
na mão e sentiu que ‘não poderia perder nem mais um minuto’.” oria do Napoleão. Sonia repele a falha dele de não enxergar o que fez. “Eu ape-
Significativamente, ele foi contar a ela sobre Lizaveta. Lizaveta e Sonia nas matei um piolho, Sonia, uma criatura danosa, inútil e asquerosa.” (p. 358)
são similares, e pedir perdão à Sonia de certa forma cancela os assassinatos. É Ela não o aceita, e salienta que ele é responsável por matar outro ser humano.
importante, também, que Raskolnikov não fale realmente para Sonia, mas co- Isso ele não quer ouvir – e responde à dolorosa realidade da intervenção dela
munique como o fez com uma série de sentimentos importantes e estados de como se esta fosse um ataque. Sua resposta é atacar a si mesmo, do mesmo
espírito - nós chamaríamos de projeções - através dos olhos, olhando no rosto jeito que percebemos primeiramente com Marmeladov. Tudo que Raskolnikov
do outro e experimentando o que está sendo comunicado. “Pode adivinhar?” diz aqui está correto; mas é, em certo sentido, irrelevante. Primeiramente, ele
ele pergunta. “De uma boa olhada.” Então, “ele olha para ela e de repente pa- evita falar qualquer coisa sobre o ponto crucial que ela apontou: Que ele tirou
rece ver no rosto dela o rosto de Lizaveta.” Ela o olha como fez Lizaveta, como uma vida humana. Segundo, seu ataque verbal contra si mesmo é uma carica-
uma criança assustada. “Seu terror o infectou. O mesmo medo se mostrou em tura da consciência e não o coloca em contato com qualquer responsabilidade
seu rosto.” (p. 353) Quando ela percebe o que ele fez, não diz nada. Novamente pelo que fez, ou leva a uma atitude positiva, qualquer desejo de mudança. Eu
ela intencionalmente o olha nos olhos. Ele não aguenta seu olhar e implora sou pior do que isso, ele disse a ela “eu sou fútil, invejoso, malicioso, baixo, vin-
que pare de torturá-lo. gativo e... bem... talvez com uma tendência para a insanidade”. Ele poderia ter
Esse não foi o jeito que ele imaginou que aconteceria. Mas, então, ela se ficado na Universidade, poderia trabalhar como Razumihin, “me tornei mal-
atira de joelhos na frente dele. “Não há ninguém, ninguém nesse mundo mais -humorado e não fiz nada (Sim, mal-humor, essa é a palavra certa para isso!).
infeliz do que você!” O coração dele amolece e lágrimas enchem seus olhos. Fiquei sentado no meu quarto como uma aranha” (p. 359).
“Então você não vai me deixar, Sonia?” (p. 354) Até agora, ela aceitou tudo, não Como isso não é uma aceitação da culpa ou da responsabilidade, não
o fez se sentir culpado, até mesmo o fez sentir que precisava dele. Da mesma nos surpreendemos quando abruptamente se transforma em um ataque con-
forma que ele sempre tentou se livrar de qualquer fraqueza, de qualquer sen- tra os outros. Ele acredita que os outros são idiotas, que eles nunca vão mu-
timento desconfortável, chegou à conclusão de que ela, sua família, qualquer dar, e que “não vale a pena gastar esforços para isso... e eu sei Sonia que aquele
um, assim que soubessem, não iriam querer nada com ele. Ela o aceitou. que é forte tanto na mente quanto no espírito terá poder sobre eles. Qualquer
Mas agora ela diz que ele está se entregando. Ele recua e se torna hostil. um que seja muito audaz estará na frente deles. Aquele que despreza a maioria
Além disso, ela espera uma explicação. Ela tenta tornar os assassinatos com- das coisas será um legislador entre eles e aquele que for mais audacioso de to-
preensíveis, percebe que ele mesmo não entende, e que não tem uma explica- dos estará mais certo!” (p. 359. Itálico do autor). Qual é a expressão mais clara
ção para lhe dar. Quando ela faz um comentário, que novamente demonstra que poderíamos receber do “super” ego que afirma sua superioridade encon-
sua aceitação, sua ansiedade diminui, e ele é capaz de refletir e momentanea- trando erros em tudo?!
mente ter um insight. “Eu vim até você para uma coisa – não para me deixar... Quando Sonia o interrompe e acalma seu desvario, ele se tranquiliza e,
Porque eu não aguento meu fardo e vim despejá-lo em outro; você também penso eu, momentaneamente retorna ao profundo estímulo criminoso. Ele in-
sofre, e eu devo me sentir melhor!” Ele esteve buscando alivio sem reparação, siste que não era relacionado à culpa por sua mãe e sua irmã, mas “por matar
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seguindo meus próprios motivos, para mim mesmo... não foi para ajudar a mi- projeções, e culpá-las por suas dificuldades. Identificação com esses aspectos
nha mãe que eu cometi os assassinatos – isso não faz sentido... cometi o crime projetados do si- mesmo resultam em sentimentos de sufocação e claustrofo-
para mim mesmo, só para mim”. Se não estivéssemos pensando que ele está bia. É significante que Svidrigailov e Porfiry Petrovich, as únicas duas pessoas
protestando demais, sua próxima negação é ainda mais sugestiva. “Ou eu me que entendem alguma coisa de sua estrutura psicológica, repetidamente lhe
transformei em um bem-feitor para os outros, ou passei minha vida inteira dizem que o que ele precisa é de ar fresco.
como uma aranha pegando os homens na minha teia e sugando a vida dos Sua necessidade de adversários, outras pessoas com as quais ele possa
homens (sic), eu não teria aguentado até esse momento.” (p. 360) De novo, o ficar com raiva, é plenamente afirmado: “Não, melhor a luta novamente! Me-
símbolo da sua voracidade oral e culpa a aranha e o piolho, que vivem dos ou- lhor Porfiry de novo... ou Svidrigailov... melhor ter algum novo desafio... al-
tros e sugam até secarem.[15] gum ataque.” (p. 380) Pensar em sua mãe e irmã, e agora em Sonia, o reduz ao
Ele decide, no fim desse encontro, que esteve com muita pressa para pânico; desta forma, ele precisa de alguém como Porfiry ou Svidrigailov para
se condenar, que deveria ter lutado por isso. Ele também sente algo diferente insultar. Eles são perseguidores externos, e o seu contra-ataque é diretamente
por Sonia. Antes ele sentiu que poderia usá-la para se livrar de seu sofrimento, exterior. Ele se sente certo, vingado, e forte.
agora sente que adicionou mais um fardo e que agora tem que se preocupar em Quando, depois de uma conversa com Razumihin, ele acredita que Por-
se sentir culpado por ela. “Ele sentiu mais uma vez que talvez pudesse odiar So- firy suspeita dele e que armou um plano para pegá-lo. Ele sente “renovada de
nia, agora que a fez ainda mais miserável. Por que ele foi até ela implorar pelas novo à luta, uma forma de escapar apareceu”. Perceba as palavras que ele usa
suas lágrimas? Por que ele precisava envenenar sua vida?” (p. 365) para descrever a mudança entre tormento interior e luta exteriorizada. “Sim,
A confissão de Raskolnikov para Sonia não só o fez lembrar de seus sen- uma forma de escapar apareceu! Foi duro e fiquei paralisado, o fardo foi muito
timentos na hora dos assassinatos, mas repetiu a mesma dinâmica que o levou agonizante... desde o momento da cena com Nikolay na casa de Porfiry ele es-
a cometê-lo. Tendo ido ao encontro de Sonia em uma necessidade desesperada, teve sufocado, cercado sem esperanças de escapar.” (p. 384. Itálico do autor) Porfiry
ele agora percebe que a sua relação está arruinada. Seus sentimentos mistu- diz a ele: “Se você fugisse você voltaria por si mesmo. Você não fica sem nós.” (p.
ram culpa e ira; ele não sabe a quem culpar. Ele se sente fraco e inadequado 397) É por causa disso, e particularmente porque ele não pode arriscar perder
na frente de uma mulher que percebeu estar esperando mais do que poderia ou ferir Sonia, que confessa.
dar. De forma característica, ele responde a isso com raiva. Quase, simultane- Logo antes de ir confessar, ele é visitado por sua irmã. Quando Dounia
amente, suspeita que fosse ele quem estava demandando, que estava pedindo fala sobre pagar pelo seu crime encarando seu sofrimento, Raskolnikov explode.
demais para ela. Já que o uso de mecanismos projetivos resulta em confusão “Ele grita furioso: Crime? Qual crime? Se eu matei um inseto vil e nocivo, uma
entre si mesmo e os outros, ele não sabe qual desses dois foi longe demais. velha agiota, sem utilidade para ninguém... que não serve para nada, matá-la
Os esforços de Raskolnikov em escapar de qualquer compreensão da sua foi um pagamento para quarenta pecados. Ela estava sugando a vida de pes-
posição requerem outras pessoas que ele pode usar como continentes das suas soas pobres... só agora eu vejo claramente a imbecilidade da minha covardia,
agora que eu decidi encarar essa desgraça supérflua. - E só porque eu sou des-
15. A aranha que está no pensamento de Raskolnikov sobre si-mesmo é também usada para repre- prezível.” (p. 466) De acordo com Raskolnikov ele é desgraçado porque é fraco
sentar Svidrigailov, é talvez o símbolo mais conhecido de destrutividade oral e medo de ser amado. e covarde. O crime é estúpido e mal feito porque falhou. “Eu estou mais longe
A aranha está associada à ameaça da teia materna baseada na projeção dos impulsos agressivos
orais da criança. Ver Abraham (1922), Esterba (1950) e Little (1966). No parágrafo Raskolnikov evita
do que nunca de pensar que o que eu fiz foi um crime”, ele argumenta (p. 447).
saber que as mulheres, representantes das mães, são os alvos de suas agressões. Depois que Dounia vai embora, ele pensa consigo mesmo, “mas por
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que eles se preocupam comigo se eu não mereço? Oh, se ao menos eu estivesse prisão, e não lhe foi dada nenhuma explicação sobre seu desaparecimento. É-
sozinho e ninguém me amasse e eu nunca tivesse amado ninguém! Nada disso -nos dito que Raskolnikov se preocupa muito com ela, mas mesmo assim ele
teria acontecido” (p.448). Até agora, podemos apreciar a verdade do ponto de prevê que sua depressão progressiva logo acabará, fatalmente; nem ele nem os
vista de Raskolnikov, e saber qual fardo de culpa está classificado como amor. outros pensam em lhe contar nem mesmo a verdade parcial. O conhecimento
Nós também percebemos que ele ainda está culpando os outros. A agiota por do que aconteceu é-lhe negado, e o que ela não sabe a mata.
ser tão gananciosa, sua família por amá-lo; e ele ainda fala da necessidade de Da mesma forma que Raskolnikov lidou com aspectos inaceitáveis de
quebrar coisas ao invés de repará-las. sua personalidade através da tentativa de se livrar deles ou aniquilá-los, ele
Quando Raskolnikov vai ao posto policial, sua covardia se apodera dele acredita que sua família iria tratá-lo da mesma forma, e iria querer se livrar
e vai embora sem confessar. A fuga é momentânea, no entanto, para o que o dele se for culpado, ou fraco, ou mesmo se estiver errado. Ao antecipar a rejei-
espera lá fora é mais do que ele poderia suportar. “Lá, não muito longe da en- ção de sua mãe, ele a deixa primeiro. Ela acaba sentindo que seu filho a aban-
trada, estava Sonia, pálida e horrorizada. Ela olha ferozmente para ele. Ele fi- donou, fica louco e sucumbe por causa disso. Há quase um sentido de revanche
cou parado na sua frente. Havia um olhar em sua face de agonia pujante, de neste ponto, uma virada de mesa. Aquilo parece tão desnecessário adicionado
desespero.” (p. 457) Esse momento é o clímax do romance, pois justapõe o olhar à crueldade. Poderia seu destino ter sido pior se ela soubesse a verdade? Isso
amedrontado de Marmeladov para sua esposa, e as reclamações de Svidrigai- geralmente passa sem ser notado, mesmo por aqueles leitores que reconhe-
lov sobre o olhar mortífero de Dounia. O movimento espacial da cena de aber- cem a morte da agiota como um símbolo ou um assassinato deslocado da mãe.
tura também é reprisado, a mulher esperando na soleira da porta, obstruindo Há mais uma razão para essa morte aparentemente sem sentido. A ne-
seu caminho. Raskolnikov não aguenta encarar Sonia e, por meio disso, expe- cessidade de Raskolnikov de destruir a fonte original de amor e gratificação
rimenta o que está fazendo com ela; ele perde a coragem. “Seus lábios cons- para eliminar a fonte de inveja. Essa ideia se apoia na forma com que as coisas
truíram um sorriso feio e vazio. Ele fica parado por um instante, arreganha os são trazidas. A mãe de Raskolnikov espera que ele volte em nove meses e ela
dentes e volta para o posto policial.” (p. 457) começa a preparar a sua chegada, arruma seu quarto, etc.. Ela morre de desa-
pontamento; seu desejo é negado. O nascimento, ou renascimento, não acon-
IV tece, pelo menos não para ela. O nascimento, ou renascimento subsequente
O epílogo, como mostra Wasiolek (1959), é uma “fonte de perpétuo embaraço contrasta com a esterilidade dela, suas esperanças e expectativas frustradas.
para os apologistas de Dostoeviski”. Pode ser artisticamente fraco, porém é A ressurreição de Raskolnikov reproduz os assassinatos em vários as-
psicologicamente consistente com os capítulos anteriores do romance. Pode- pectos. Os dois eventos são imediatos, precedidos de fantasias de uma reunião
mos apreciar a sabedoria de não acabar com a confissão, já que a obrigação de oceânica, desta forma a fusão com uma mãe interna, idealizada, torna a mãe
confessar nas circunstâncias descritas dão para Raskolnikov a oportunidade externa desnecessária. É como se Raskolnikov estivesse dizendo que não pre-
de sentir-se novamente irritado. Além disso, agora que ele parou de correr fi- cisa mais dela; ele pode ficar melhor sozinho. Esse seria o último roubo. Pri-
sicamente, os aspectos narcisistas de sua personalidade se tornam mais dis- meiro uma hostil substituta da mãe foi morta, e agora a própria mãe.
cerníveis (Rosenfeld, 1964). Na segunda metade do Epílogo, Raskolnikov já não está mais lutando
A mãe de Raskolnikov ficou seriamente enferma. Seus pensamentos contra sentimentos de culpa; tão pouco demonstra uma capacidade de se
estão completamente voltados para seu filho, e ela enlouquece nos seus esfor- preocupar com os outros. Como ele próprio declara, “minha consciência está
ços de se certificar que ele irá voltar. Ela não sabe sobre seu julgamento ou sua descansando” (p. 467). Raskolnikov está isolado de todos os outros homens.
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Ele pode ficar confortável em seu isolamento precisamente porque todas suas mínimas estilhaçadas que resultaram de uma projeção primitiva forçada
necessidades são satisfeitas por Sonia, que controla e trata como uma parte e atacaram tanto Raskolnikov quanto Svidrigailov nos seu momento mais
de si-mesmo. Afora do crime de Raskolnikov e seu estado de prisioneiro, ela se desesperado. Holquist (1974), na sua discussão sobre o sonho, aponta que as
considera abaixo dele em todos os aspectos. Ela está sempre disponível, não partículas infecciosas, traduzidas na maioria das edições inglesas como mi-
espera nada dele, está satisfeita em ser sua escrava. Os outros prisioneiros cróbios, são mais especificamente os vermes trichinae, para os Russos trixiny.
referem-se a ela como a “boa mãezinha”, uma pista adicional ao que Raskol- Esse é não só um parasita conhecido, mas também é associado a porcos ou
nikov conseguiu com sua dominação e controle sobre ela. Ela está disposta a suínos, o que restabelece o tema da voracidade oral e espoliação, os fatores
aguentar tudo (“Lizaveta, Sonia... Elas aguentam tudo”), e esta não pede ab- emocionais de – K. Não nos surpreendemos quando ouvimos como esse co-
solutamente nada em troca. Se ele olhar para ela, ou notar sua existência, ela nhecimento é usado, “que todos os homens e todas as coisas estavam envol-
é grata. Enquanto isso, ele a trata com desprezo e não percebe nenhum reco- vidas na destruição”.
nhecimento da necessidade por ela de fato, ela é experimentada como quem O resto do mito de Dostoevski descreve a relação entre o individuo
precisa dele. Uma relação narcísica perfeita, onde tanto a dependência quanto que possui esse conhecimento e seu grupo. Bion escreveu sobre três histórias
a necessidade são ou negadas ou projetadas nela. como esta, os mitos do Éden, Édipo e Babel, cada um destes lida com a busca
O sonho com micróbios é difícil de interpretar como uma evidência do homem pelo conhecimento e sua punição subsequente por um deus irado
de redenção moral. Shaw (1973) aponta que Razumihin havia anteriormente (Bion, 1963). Eu gostaria de comparar o mito de Dostoevski com aquele que,
perguntado para Raskolnikov: “Pegou a peste ou o quê?” Uma expressão folcló- eu penso se assemelha mais:
rica que pode ser mais ou menos traduzida por “Está louco?”. Diferentemente “Todos estavam excitados e não se entendiam... As trocas mais comuns
dos sonhos anteriores de Raskolnikov o sonho dos micróbios não é um sonho, foram abandonadas, por que cada um propunha suas próprias ideias, suas pró-
é uma fábula ou um mito.[16] prias melhoras, eles não conseguiam concordar... Homens se encontram em
Ele recapitula os argumentos apresentados no seu artigo e na discus- grupos, concordavam em algumas coisas, juravam manterem-se juntos, mas
são com Porfiry Petrovich, e é talvez a mais explícita afirmação do que eu me de repente começam algo completamente diferente do que haviam proposto.
referi na introdução quando discuti o conceito – K de Bion. Os micróbios de Eles se acusam, brigam e se matam.”
Raskolnikov “eram dotados de inteligência e vontade. Homens atacados por “... Imediatamente os construtores se envolveram em incompreensão.
eles ficam rapidamente loucos e furiosos. Mas nunca os homens considera- Se o mestre-de-obras dissesse para o pedreiro ’me dê argamassa‘!” O pedreiro
ram-se tão inteligentes e tão completamente donos da verdade como esses so- iria lhe dar no lugar um martelo, com o qual o mestre-de-obras iria matá-lo
fredores, nunca consideraram suas decisões, suas conclusões científicas, sua enfurecido. “Muitos eram os assassinatos cometidos na Torre; e também no
convicção moral tão infalível... Cada pensamento que ele tinha sozinho con- chão, por causa dessa confusão; até que finalmente o trabalho diminuiu seu
tinha a verdade” (p. 469). ritmo e parou.”
Esses micróbios são a ultima versão da perseguição. Partículas Enquanto cada um dos três mitos tradicionais lida com um tipo especí-
fico de conhecimento, eu sugiro que o mito de Babel, citado por último (Graves,
16. Se nós considerarmos que a capacidade de sonhar preserva a personalidade da psicose (Bion, 1962 1963, p.126), fala sobre criatividade artística. Sob a supervisão do arquiteto Mi-
b, p. 16), então a pergunta de Razumihim seria respondida afirmativamente, e Raskolnikov está
provavelmente longe da verdade nesta fábula sobre a obtenção do autoconhecimento. Oportuna-
rod, os homens tentam construir uma torre que alcance aonde ninguém jamais
mente, ele tem essa experiência dentro do hospital.
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chegou, cruzando o linear do próprio paraíso para o domínio dos deuses.[17] Sonia, parada na entrada, esperando por ele “apunhalou seu coração”. O ro-
A punição deles para essa transgressão é a fragmentação da linguagem. mance começou e acabou com tal configuração espacial e mental; no episódio
Se considerarmos que, a punição se adapta ao crime, qual a maior punição para de abertura em relação à proprietária, e no fechamento do romance quando So-
um poeta ou artista do que ser desprovido da oportunidade de se comunicar nia o espera na saída do posto policial. Em cada caso, a mulher é um objeto que
através da linguagem, ser reduzido a balbucios? está na fronteira, e lembrar de como ele a tratou é mais do que pode aguentar.
Onde esses três mitos tradicionais começam com a premissa de que Na primeira instância, ele foi levado ao assassinato, na segunda à confissão.
buscar o conhecimento é um pecado, Dostoevski nos apresenta as consequ- Agora novamente Raskolnikov sente que precisa fazer algo!
ências da busca do conhecimento a serviço da inveja e da voracidade. Não é O que segue é sua ressurreição e repentina consciência do amor. Ele é
desejável que a noção de intrusividade seja tão persistente, e o saber sempre conduzido pelo seu segundo devaneio místico. O imaginário é bem parecido
é sentido como alcançado a custa de outra pessoa. O sonho dos micróbios é com aquele que precedeu ao assassinato. A caravana no deserto, com seus ca-
uma reafirmação da teoria de Raskolnikov sobre a criatividade, que também melos descansando, é agora uma tribo de nômades, como Abraão e seu reba-
é uma teoria do super-homem. Não é surpreendente, que esse sonho de des- nho. Há raios de Sol, cânticos, e de novo um sentimento de atemporalidade.
truição do mundo tenha uma fenda, os poucos escolhidos que são salvos da Os nômades, esses andarilhos, que devem fidelidade a ninguém mais além
praga, homens excepcionais, “destinados a achar uma nova raça e uma nova deles próprios, dão a Raskolnikov um sentimento de liberdade. É esse senti-
vida, a renovar e purificar a terra”. Estes super-homens são invisíveis; em uma mento de liberdade que Raskolnikov esteve buscando ao longo do romance;
colocação que eu penso prenuncia o fim do Epílogo nos é dito que “ninguém libertar-se da responsabilidade para com os outros, libertar-se da dependên-
viu esses homens, ninguém ouviu suas palavras e suas vozes”. cia, libertar-se da culpa.
Depois do sonho, Sonia não está lá, e pela primeira vez desde sua con- A fantasia é seguida por um inesperado sentimento de alegria, o senti-
fissão Raskolnikov está preocupado com ela. Ele percebe que ela está doente, mento de desistir como parte da experiência mística. De forma característica,
com gripe. Será que ela foi infectada pelos micróbios do seu sonho? É forçado a também o amor de Raskolnikov por Sonia não é dito, é comunicado visual-
reconhecer sua necessidade por ela, particularmente quando teme que aquele mente através do olhar de um para o outro. É uma experiência de tudo ou nada
mal chegou até ela como um resultado da forma com que foi tratada por ele. imediata e total. Leva Raskolnikov para longe da redenção moral, pois ele não
Isso é ainda mais explicitado pelo jeito que ele fica sabendo da doença dela. lida com seu crime, os assassinatos, e nem com sua maneira prévia de tratar
A carta dela para ele faz um paralelo com a carta prévia de sua mãe; nos dois os outros; ele esquece tudo isso. Quando começa a pensar sobre seu prévio tor-
casos, uma mulher sofreu por conta dele, e não lhe contou nada sobre isso até mento com Sonia, ele imediatamente se detém. “Mas essas lembranças mal o
que fosse tarde. perturbam agora; ele sabia que com amor infinito iria agora apagar todos os so-
Quando Raskolnikov olha para fora da janela do hospital, a visão de frimentos dela.” (p. 471) Seus feitos futuros irão cancelar suas desfeitas passadas.
No fim, ele tinha razão, era tudo aritmética! “Tudo, até mesmo seu crime, sua
17. No seu artigo “A Orestéia” 1963, Klein discutiu Hubris, a qual ela sentiu primariamente pecaminosa sentença e prisão, pareciam para ele agora no primeiro ímpeto de sentimento
devido à voracidade e espoliação da mãe. “A voracidade se liga ao conceito da moira, que repre-
senta a porção repartida para cada homem pelos deuses. Quando a moira é exacerbada, os deuses como um fato estranho e externo com qual ele não tinha relação.” (p. 471-472)
punem. O medo de tal punição volta ao fato de que a voracidade e inveja são experimentados con- Essa falta de relação ecoa a cena do romance quando Raskolnikov ex-
tra a mãe, que é sentida como sendo injuriada por essas emoções e que por projeção se torna na
mente da criança uma figura voraz e ressentida. Ela é, portanto, temida como uma fonte de puni-
perimentou sentimentos similares (ou falta deles) em relação à proprietária e
ção, o protótipo de Deus.” sua dívida com ela. Repetindo o nascimento imaginário, nós também somos
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Normas
trazidos de volta à cena de abertura, talvez tendo percorrido um círculo com-
pleto. Sonia e Raskolnikov passam mais sete anos na Sibéria; mas sobre a re-
generação do caráter de Raskolnikov, Dostoievski nos diz que seria uma outra
história. NORMAS PARA PUBLICAÇÃO[1]
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O Boletim Formação em Psicanálise, revista do Departamento Formação em Psi-
canálise do Instituto Sedes Sapientiae, tem por proposta editorial a divulgação
Julia Paladino de trabalhos relacionados à psicanálise e campos afins, numa tendência con-
jupaladino@gmail.com temporânea de integração e complementaridade. Nesse sentido, valorizamos
a diversidade na busca de articulações com outras áreas de conhecimentos,
tendo como finalidade maior a busca da compreensão do sofrimento humano
e a constante (re)construção metapsicológica.
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