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Boletim Formação em Psicanálise

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

ISSN 1517-4506
Instituto Sedes Sapientiae
Departamento Formação em Psicanálise

Comissão de Coordenação Geral, gestão 2011/2012


António Sérgio Gonçalves (coodenador), Gisela Giglio Armando (primeira secretária), Maria Tereza Scandell Rocco (segunda
secretária), Maria Terezinha Cassi Pereira Yukimitsu (primeira tesoureira), Mônica Salgado (segunda tesoureira)

Comissão de Publicação
Talita Minervino Pereira (coordenadora)
Cristiana Soldano (suplente)

Revista Boletim Formação em Psicanálise


DEPARTAMENTO FORMAÇÃO
Editor EM PSICANÁLISE
José Carlos Garcia

Comissão Editorial
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Cristiana Soldano, José Carlos Garcia, Lineu Matos Silveira, Lucianne
Sant’Anna de Menezes, Margarida Azevedo Dupas, Tatiana Russo França, Valesca Bragotto Bertanha
O Departamento Formação em Psicanálise tem por finalidade desenvolver
Conselho Editorial
Cassandra Pereira França (Universidade Federal de Minas Gerais), Claudia Paula Leicand (Instituto Sedes Sapientiae), Durval Mazzei
atividades de caráter formativo, científico, cultural e de pesquisa em psica-
Nogueira Filho (Instituto Sedes Sapientiae, GREA/IPQ – Instituto de Psiquiatria da USP), Ede de Oliveira (Instituto Sedes Sapien- nálise, de acordo com a Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae. Ele
tiae, EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos), Eliane Michelini Marraccini (Instituto Sedes Sapientiae), Emir Tomazelli
tem como fundamento prover a formação continuada de seus membros, cons-
(Instituto Sedes Sapientiae), Flávio Carvalho Ferraz (Instituto Sedes Sapientiae), Francisca Isabel Teixeira (Instituto Sedes Sapien-
tiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), José Carlos Garcia (Instituto Sedes Sapientiae), José F. Miguel H. Bairrão tituindo-se como um espaço de pertinência para alunos, ex-alunos e profes-
(Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto), Lineu Matos Silveira (Instituto Sedes Sapientiae), Maria Beatriz Romano de Godoy (Ins- sores, propiciando interlocução com o Instituto Sedes e com a comunidade
tituto Sedes Sapientiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Maria Lúcia Castilho Romera (Universidade Federal de
Uberlândia), Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (Instituto Sedes Sapientiae), Marly T. M. Goulart (Instituto Sedes Sapientiae), Maria psicanalítica em geral.
Cerruti (Instituto Sedes Sapientiae), Nora de Miguelez (Instituto Sedes Sapientiae), Sonia Maria Parente (Instituto Sedes Sapien- Oferece dois cursos regulares, abertos a psicólogos, médicos e profis-
tiae, UNIB – Universidade Ibirapuera), Suzana Alves Viana (Instituto Sedes Sapientiae)
sionais com formação universitária: Formação em Psicanálise e Fundamentos da
Grupo de Divulgação: Margaret Simas Ramos Marques Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP) Psicanálise e sua Prática Clínica.
(coordenadora), Mirian Arantes Gallo  Grupo de Entrevistas: Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia
Mônica J. S. Saliby (coordenadora), Gabriela Malzyner  Grupo
Além desses cursos, o Departamento promove cursos breves, pesqui-
de PUBLICAÇÃO DE LIVROS: Lucianne Sant’Anna de Menezes Boletim formação em psicanálise / Instituto Sedes Sapientiae, sas, grupos de estudo, eventos científico-culturais, além de publicar a revista
Departamento Formação em Psicanálise. – Vol. 1, no. 1 (maio/jun. 1992)
(coordenadora)   Grupo de Resenhas : Mônica Salgado
– . São Paulo: O Departamento, 1992- Boletim Formação em Psicanálise e o jornal Acto Falho. Participa também da
(coordenadora)  Grupo de Revisão de Tradução: Tatiana
Russo França (coordenadora), Nora de Miguelez  Oficina de Ano XIX, v.19, (jan./dez. 2011)
Clínica Psicológica Social do Instituto Sedes Sapientiae.
Textos: Lineu Matos Silveira (assessor)  Jornal Acto-Falho: Anual Sua organização é realizada através do trabalho de comissões, eleitas
Luciana Khair (coordenadora), Fernanda Zacharewicz, Talita Periodicidade bianual de 1992 a 1994; anual a partir desta data.
Rodrigues Marques   Revisão Português : Stella Regina ISSN 1517-4506 a cada dois anos entre seus membros. As comissões que compõem o Conse-
Azevedo Alves dos Anjos  Diagramação: Wellington Carlos lho Deliberativo do Departamento são: Coordenação, Curso, Clínica, Eventos,
Leardini  Projeto CAPA: Silvia Massaro  Projeto Gráfico: 1. Psicanálise – Periódicos. 1. Instituto Sedes Sapientiae.
Esper Leon  Jornalista Responsável: Marcos Daniel Cézari
Departamento Formação em Psicanálise. Divulgação, Publicação, Projetos e Pesquisa, e Alunos. Essas comissões têm
CDU 159.964.2 (05)
– MTPS 11.193  funções específicas e o objetivo de refletir, discutir entre seus pares e imple-
Indexação: Index Psi Periódicos (www.bvs-psi.org.br) mentar projetos que possam garantir que as propostas do Departamento se-
Instituto Sedes Sapientiae jam colocadas em execução.
Rua Ministro Godoy, 1484
05015-900, São Paulo, SP
(11) 3866-2730
www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br
Curso Formação em Psicanálise[1] 2. Seminários clínicos;
3. Supervisão individual (no 4º ano);
Corpo Docente 4. Monografia de conclusão de curso: com orientação individual, a ser realizada
Armando Colognese Júnior, Cecília Noemi Morelli de Camargo, Durval Mazzei após a finalização dos seminários teóricos e clínicos;
Nogueira Filho, Ede Oliveira Silva, Eliane Michelini Marraccini, Emir Tomazelli, 5. Estágio opcional na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, sujeito à
Esio dos Reis Filho, Homero Vetorazzo Filho, José Carlos Garcia, Ligia Valdés seleção e contando com supervisão específica;
Gomez, Maria Beatriz Romano de Godoy, Maria Cristina Perdomo, Maria Helena 6. Formação continuada: atividades extracurriculares e no Departamento;
Saleme, Maria Luiza Scrosoppi Persicano, Maria Teresa Scandell Rocco, Nora 7. Acompanhamento clínico: opcional para os alunos do 1o ano, no qual se tra-
Susmanscky de Miguelez, Oscar Miguelez, Suzana Alves Viana, Vera Luíza balha em pequenos grupos a articulação da escuta clínica com os artigos
Horta Warchavchik. sobre o método psicanalítico;
8. Realização de análise pessoal: obrigatória durante o curso.
Objetivos
Curso de especialização, que tem como objetivo a formação de psicanalis- Duração
tas. Busca transmitir a Psicanálise em sua especificidade, com base nos O curso regular tem duração de quatro anos.
três elementos essenciais da formação: análise pessoal, supervisão e es-
tudo crítico da teoria psicanalítica a partir dos aportes das escolas fran- Carga horária do curso
cesa e inglesa. Visa desenvolver a escuta transferencial, considerando o 731 horas.
sujeito em sua singularidade. Trabalha a clínica psicanalítica, desde a des-
crição clássica feita por Freud até as formas de sofrimento observadas na Horário/concentração
contemporaneidade. Quartas-feiras, com média de seis horas/aula semanais e mais uma hora e
meia de atividades.
Destinado a
Psicólogos, médicos e profissionais com formação universitária, com expe- Seleção
riência pessoal em análise individual e com percurso na teoria psicanalítica. Duas entrevistas individuais. Apresentação de curriculum vitae (contendo foto)
em duas cópias e um breve texto, no qual justifique sua a busca por esta for-
Conteúdo programático mação (um para cada entrevistador).
1. Seminários teóricos: Formações do inconsciente, O inconsciente, Pulsões,
Narcisismo, As identificações, Neurose obsessiva e histeria, O Complexo de Fundamentos da Psicanálise e sua prática clínica
Édipo em Freud, Angústia, Superego e Édipo Kleinianos, Teoria das Posi-
ções e Inveja em M. Klein, Perversão e Psicose em Freud e em M. Klein; Corpo docente
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Berenice Neri Blanes, Celina Giacomelli, Ma-
1. Este curso foi credenciado no Conselho Federal de Psicologia em 31 de janeiro de 2003, para espe-
ria Salete Abrão Nunes da Silva, Maria Tereza Viscarri Montserrat, Patrícia
cialização em Psicologia Clínica, em conformidade com a Resolução CFP 007/01. Leirner Argelazi.
Objetivos Carga horária do curso
O curso propõe trabalhar os conceitos que fundamentam a Psicanálise e 68 horas.
que servem de alicerce à sua prática. Pretende, com isso, fornecer informa-
ção que preencha lacunas a quem já algo conheça e fundamentos a quem Observação
desconhece, estimulando o interesse na continuidade do estudo, permi- O segundo ano é opcional e será oferecido para aqueles que cursaram o pri-
tindo que uma eventual formação sistemática no futuro se faça sobre uma meiro ano, que tenham interesse na continuidade de seus estudos. Médicos e
base mais sólida. psicólogos, que optem por dar continuidade ao curso, poderão se candidatar à
seleção de estágio na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.
Destinado a
Àqueles que se interessam pela Psicanálise e que pretendam uma iniciação Mais informações:
ao seu estudo: médicos, psicólogos e profissionais com formação universitá- Secretaria do Instituto Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godói, 1484
ria em geral.
05015-900 - Perdizes, São Paulo/SP
(11) 3866 2730
Conteúdo programático www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br
1. Especificidade da Psicanálise: Psiquismo e corpo, Terapias medicamentosas,
Psicoterapias e Psicanálise;
2. A Divisão do Sujeito: Dois conceitos fundamentais: Inconsciente e Pulsão,
Aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente, o ponto de
vista tópico, O Recalque: Desejo, conflito e defesa. Pontos de vista dinâmico
e econômico, Discussão clínica;
3. Formações do Inconsciente: Atos falhos, sonhos e sintomas, Discussão clínica;
4. Ponto de vista estrutural: Complexo de Édipo / Identificações, Segunda Teo-
ria Tópica;
5. Neurose, Psicose e Perversão: Neurose, Psicose, Perversão, Uma introdução à
psicopatologia psicanalítica, Discussão de casos: um estudo comparativo,
6. Questões da Clínica: A situação analítica, Transferência e contratransferên-
cia, Resistência, A interpretação;
7. O Analista: Diferenças entre formação e informação.
8. O tripé da formação analítica: Análise do analista, supervisão e estudo da
teoria.

Duração
um ano.
EDITORIAL

O Boletim Formação em Psicanálise abre este número com uma tríade de arti-
gos que utiliza o recurso da arte para fazer avançar questões fundamentais do
campo psicanalítico, aspecto que nos remete a ideia da psicanálise como uma
atividade criativa, seja para o analisante seja para o analista, tendo em vista
que é possível construir ficções pela experiência da fala e da escuta. O próprio
Freud, em vários momentos, fez uso deste instrumento em reflexões e teori-
zações suscitadas pela clínica, como em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen
(1906), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) ou em Dostoie-
vski e o parricídio (1928), dentre tantos outros ensaios conhecidos.
A partir da contextualização histórica dos quatro discursos de J. Lacan,
o primeiro artigo, de Durval M. Nogueira Fº, procura refletir sobre os efeitos
que a realidade virtual pode produzir no homem contemporâneo, recorrendo
ao cinema e à literatura, em especial no rico contraponto entre os filmes Ma-
trix, de Andy Wachowsky, e Substitutos, de Jonathan Mostow, mostra diferentes
sociedades do futuro e as influências terríficas do avanço tecnológico e cien-
tífico, assim como a submissão a determinados discursos, promovendo uma
bela discussão sobre o eu, a realidade e a linguagem, deixando-nos a mensa-
gem de que a transcendência seria a única maneira de garantir a insubmissão
a discursos condicionantes do ser humano.
O segundo artigo traz a inovadora experiência de um grupo de semi-
nário clínico, do Departamento Formação em Psicanálise (Ana Raquel B. M.
Ribeiro, Fernanda Zacharewicz e Luciana B. Khair, sob coordenação de Ligia
V. Gómez), em que o intuito foi discutir a escuta como o elemento essencial na
experiência da transferência e contratransferência, com foco na construção da
escuta do analista em formação, a partir da prática de relacionar de um caso
clínico com produções da literatura (A hora da estrela, de Clarice Lispector), da
escultura (O impossível, de Maria Martins) e da música (Luz, de Arnaldo Antu-
nes), possibilitando a construção de três escutas que se completam como Quel-
ques Cercles, de Kandinsky, obra que inspirou o nome deste grupo: Nosso círculo.
Em um encantador diálogo entre as obras homônimas A terceira mar- Julia Paladino sob revisão de Marly T. M. Goulart, é de um artigo de Richard
gem do rio, o próximo artigo, de Ana Raquel B.M. Ribeiro, procura mostrar a J. Rosenthal (parte de uma obra organizada por Grotstein em comemoração
presença dos mecanismos de deslocamento, condensação e figurabilidade no aos 80 anos de Bion), uma leitura pormenorizada, a partir de conceitos bio-
poema (canção) de Caetano Veloso, a partir do que é narrado no conto de Gui- nianos, dos aspectos do funcionamento psíquico de Raskolnikov, personagem
marães Rosa, supondo que a personagem que narra o conto em primeira pes- central do romance Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, o que nos movi-
soa é aquela que ‘sonha’ a canção, fazendo da terceira margem no rio o que menta como Quelques Cercles, de Kandinsky, ao início deste editorial, na rela-
encerra o indizível, presente em ambas as obras. ção da psicanálise com a arte, e na possibilidade do leitor vir a ser afetado por
O quarto artigo, de Leonardo B. Tkacz, também aborda o tema do indi- esta experiência criativa.
zível, entre o corpo e a imagem, propondo esta discussão a partir dos conceitos
de corpo e de imagem para a psicanálise, tendo como eixo teórico o conceito Lucianne Sant’Anna de Menezes
de estádio do espelho de J. Lacan e de seus desdobramentos na constituição Comissão Editorial
do corpo do bebê, destacando a importância fundamental do olhar e da voz
do Outro (mãe), como meio de promoção das bordas garantidoras da imagem
do corpo.
Encerra a seção de Artigos um trabalho na interface psicanálise e psi-
cologia, fruto de pesquisa acadêmica de Daniel Schor, que trata do desenvolvi-
mento infantil e procura estabelecer um mutualismo entre a constituição da
noção de si-mesmo e do mundo externo, demonstrando que é possível encon-
trar na obra de J. Piaget elementos fundamentais para se ampliar a compre-
ensão sobre fenômenos descritos por D. Winnicott e, em consequência disso,
sobre as formas com que experiências muito precoces podem ser determinan-
tes na constituição da subjetividade.
Na Entrevista, temos um bate-papo interessante de Gabriela Malzyner
com Bernard Penot, psiquiatra e psicanalista membro da Sociedade Psicanalí-
tica de Paris, em que relata sua experiência no hospital-dia CEREP (Centre de
Réadaptation Thérapeutique), onde criou, com sua equipe multidisciplinar, um
instrumento institucional de pesquisa com psicóticos e pessoas com pertur-
bações graves da subjetivação, que se baseia em levar o paciente a subjetivar
sua transferência, aspecto que une com a questão da cura psicanalítica e da
sublimação.
Finaliza esta edição uma Resenha e uma Tradução de obras referentes
a Wilfred Bion. A poética resenha, de Emir Tomazelli, apresenta um livro con-
siderado um tributo de James S. Grotstein a Bion e sua obra. Já a tradução, de
Sumário

ARTIGOS
Estamos todos tranquilos!?
Are we all calm!?
Durval Mazzei Nogueira Filho  15

O Nosso Círculo: Fragmentos de uma Escuta Psicanalítica


Our circle: fragments of a psychoanalytic listening
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro 
Fernanda Zacharewicz 
Ligia Valdes Gomez 
Luciana Bocayuva Khair  25

A terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa


(vigília)
The third shore of the river: a dialogue between poetry (dream) and prose (vigil)
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro  45

Corpo e Imagem
Body and Image
Leonardo Beni Tkacz  57

Revisitando Winnicott em companhia de Piaget: apontamentos


sobre a noção de imaturidade egóica
Revisiting Winnicott in Piaget’s company: notes on the notion of ego immaturity.
Daniel Schor  63
Artigo
ENTREVISTA
Entrevista com Bernard Penot
Gabriela Malzyner  81
Estamos todos tranquilos!?
RESENHA
Um facho de intensa escuridão – o legado de Wilfred Bion à Durval Mazzei Nogueira Filho
psicanálise
A beam of intense darkness - the legacy of Wilfred Bion to Psychoanalysis Resumo: O autor escreve a respeito da influência que a realidade virtual pode
James S. Grotstein - Autor  vir a produzir no homem do mundo contemporâneo.
Emir Tomazelli  103

TRADUÇÃO Palavras-chave: Psicanálise, Virtualidade, Clínica Contemporânea.


A transgressão de Raskolnikov e a confusão entre destrutividade e
criatividade
Raskolnikov’s Transgression and the Confusion Between Destructiveness and
Creativity Queremos?
Richard J. Rosenthal - Autor  Uma maneira profícua de ler o desenvolvimento de Lacan (1992) sobre os
Julia Paladino - Tradutora  quatro discursos é marcá-los com uma dimensão histórica. Não é difícil atri-
Marly T. M. Goulart - Revisora 111 buir ao discurso do mestre antecedência a quaisquer outros discursos. Basta
que concedamos à sua descrição à vontade de domínio e reconheçamos que
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO  163 na fala religiosa usual, das grandes religiões monoteístas às versões míticas
sobre a origem das comunidades indígenas, não está ausente uma entidade
que criou o mundo e criou os homens para agirem de acordo a seus desígnios.
Uma entidade que garante que não há fenômeno fora da lei e que o saber so-
bre tudo está garantido pelo próprio ato criador. Não há o que descobrir, há Psicanalista, Mestre em
que agir corretamente. Psiquiatria, Membro do
Departamento Formação
Se aplicarmos esta leitura à história da cultura ocidental não é incor-
em Psicanálise, Membro da
reto concluir que a ordem regida por Deus prevaleceu absolutamente até que Seção São Paulo da Escola
os homens arriscaram desafiá-la. O desafio não foi nenhuma declaração a pro- Brasileira de Psicanálise,
Mestre em Psiquiatria
pósito da morte de Deus, o desafio foi questionar que nada há a descobrir, que pelo Hospital do Servidor
nada há a inventar, que nada há a aprimorar. Questionar, portanto, a perfeição Público Estadual – HSPE.

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da obra divina. Francis Bacon (1979) e o ‘Novum Organum’, de 1620, não obs- aperiódico (p.85)” influenciou Watson, Wilkins e Crick a definir a dupla-hélice
tante o respeito às formulações e ao poder religioso, propõe um método espe- do ADN e o resto da história é o que vivemos na contemporaneidade. Todo e
cífico à ciência e a destina a cumprir um papel útil à humanidade. Descartes, qualquer detalhe em torno da vida orgânica é objeto do escrutínio científico,
contemporâneo de Bacon, é outro que se insurge diante da tradição escolástica sem excluir o conjunto de processos que levam à cessação do funcionamento
que não questionava a razão da existência dos objetos do mundo e do próprio desta máquina.
homem. Acena com a dúvida metódica para fundar um sujeito para o pensa- Assim não é à toa que a edição nacional de julho de 2010 da Scientific
mento: Penso, logo existo. American lista “os 12 eventos que mudarão tudo e não da maneira que você
Sem preocupação em receber crítica de filósofos e historiadores, Des- pensa” (chamada de capa) e inclui 3 relacionados à manipulação do corpo ou
cartes, Bacon e a multidão anônima de artistas mecânicos, para usar a expres- ações correlatas. A saber, vida sintética e máquinas conscientes (proposições
são de Rossi (1966, p.11), abrem o caminho para novas considerações “sobre o herdeiras diretas da equiparação do biológico ao físico) e a clonagem humana.
trabalho, sobre a função do saber técnico e o significado que têm os processos Como outras 5 seriam desastres radicais (Big One, guerra nuclear, colisão de
artificiais de alteração e transformação da natureza”. Está pavimentado o tra- asteróide, pandemia mortal e derretimento polar), vê-se que a intervenção na
jeto para a era das Luzes e para que não seja mais um surpreendente desafio matéria viva, a possibilidade de reproduzi-la fora da natureza, a possibilidade
à ordem divina o homem deixar de lado a tutelagem e libertar-se para usar a de imiscuí-la de produtos sintéticos, a possibilidade de replicá-la sem a inter-
razão sem a direção de outrem. venção sexual são pontos plenamente legítimos da atual ambição da ciência.
É neste momento da história que situamos a emergência do discurso Não há como saber as consequências desta marcha. Há como afirmar
universitário. Quando o homem recalca o significante-mestre (S1) e promove que inócua não será. Linares (2008, p.11) diz que “a expansão do poder tecnoló-
ao lugar do agente o saber (S2). Está instaurada a ciência, com toda ambigüi- gico tem afetado a autoconsciência da humanidade enquanto à compreensão de
dade, virtude, benefício e malefício de sua ação sobre o mundo e o ser. De uma sua própria natureza e do posto que ocupa no universo”. Diante desta constata-
vez por todas, o saber desbancou a obediência. ção, se assim é possível escrever, os pensadores dividem-se entre apocalípticos e
Em um primeiro momento, o mundo natural, onde vivem os homens, integrados. Os últimos apostam todas as fichas que a humanidade, de posse dos
foi o objeto privilegiado da ciência de sua cria mais dileta: a tecnologia. Não produtos da agora chamada tecnociência, elevar-se-ia sobre a natureza e teria
demorou muito para que a volúpia do saber dirigisse o poder para o ser que em mãos instrumentos poderosos para safar-se de qualquer tragédia. Desde a
desenvolveu a ciência. Dos passos nesta direção o mais decisivo foi a queda tragédia da morte individual, marca da humanidade desde a linguagem, até a
do vitalismo. Foi o momento em que não se atribuiu mais à matéria viva, à tragédia decorrente de algum desastre ecológico. Misturam-se neste belo caldo
substância extensa, propriedades distintas da matéria física. O corpo e a pedra de leituras utópicas a possibilidade de deslindar os mecanismos genéticos do
compartilhavam muito mais identidade que a vã razão vitalista poderia supor. envelhecimento e da morte e, quiçá, criar por meio da engenharia genética
Foi na metade do século XX que esta perspectiva estabeleceu bases que células imortais a definir a matéria como ilusão e desenvolver complicadís-
mudaram o rumo do pensamento biológico. A lápide do vitalismo foi proferida simos algoritmos para afirmar que absolutamente tudo em torno resume-se
por Schrödinger (1996) em sua conferência no Trinity College de Dublin, em a bits e informação, acenando com a decifração deste código e, portanto, com
fevereiro de 1943. Desenvolve um inteligente argumento para sustentar que a possibilidade de controle deste processo e reduzir a matéria, vida biológica
o trabalho de um organismo exige leis físicas exatas e compara-o a um reló- incluída, à realidade fundamental cibernética. Longe do peso da vida carnal.
gio. Sua hipótese de que o material hereditário é constituído por um “cristal Luna e López (2005) classificam pensadores deste jaez de ‘otimistas científicos’
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e ‘otimistas éticos’. Crêem que não somente a humanidade vai alcançar este algo com a realidade está errada. A realidade que a cultura em torno aponta é
patamar como apostam que esta perspectiva segue a máxima iluminista de um engano, apresentado como verdade indiscutível pelo poder da insistência
uma ética regida pela razão e pelo igualitarismo. Os apocalípticos recortariam e pela insistência do poder. Nos dois tipos de relato, o que ‘salva’ a humani-
este campo de outra maneira. Se bem que ‘otimistas científicos’, pois apostam dade é, talvez, a única especificidade humana: a disponibilidade à transcen-
no sucesso da tecnociência, seriam ‘pessimistas éticos’. Dado que atribuem o dência. Isto é, a possibilidade de reconhecer o Outro. Seja o Outro como Lei.
sucesso da ciência à falência de qualquer ética sustentada na responsabilidade. Seja o Outro como Real. Transcender é ir além da aparência, além da empiria
O raciocínio é que a humanidade dedicou-se à liberdade, abandonou o princi- metodológica ou imanente. E esta possibilidade existe se e somente se há uma
pal discurso – do Mestre – que pedia a obediência, para entregar-se ao domínio perspectiva ética em cena.
pelo discurso universitário e abdicar de construir o próprio destino para além O personagem de Keanu Reeves, em “Matrix”, é esperado por um pe-
de um hedonismo imóvel. queno grupo como o Salvador. Este pequeno grupo transcendeu. Deu-se conta
No primeiro time estão Ray Kurzweil, Andy Clark, Marvin Minsky, que a realidade oferecida pelo grupo dominante continha furos e convencia
Donna Haraway e Michio Kaku. No outro time Hans Jonas, Jürgen Habermas, apenas pela cumplicidade dos que deixam a luta pelo próprio futuro. O argu-
Zygmunt Bauman, Jacques Ellul e Jean Baudrillard. Como se vê, daria um par- mento se estrutura como uma metáfora futurística do renascimento de Cristo.
tidaço de futebol de salão. Cabe salientar que a versão cristã da transcendência – o reconhecimento do
Resta saber se é o que queremos... Outro como Deus – se é genuína, não é a única. O Outro como Lei ou o Outro
Resta saber se é o que desejamos... como Real aproxima-se das versões psicanalítica e existencialista da trans-
cendência. O personagem de Bruce Willis, em “Substitutos”, é um policial que
Ficção científica? resgata o espírito dos detetives noir de Dashiel Hammet. É a reserva moral em
Os filmes “Matrix”, de Andy Wachowsky e “Substitutos”, de Jonathan Mostow, um mundo onde impera o caminho mais fácil. Homens e mulheres ao redor,
são apocalipses futurísticos. incluindo a esposa do herói, aceitaram entregar a vida a artefatos tecnológi-
O cinema e a literatura dividem-se em seus exercícios premonitórios. cos cibernéticos feitos de material imitador da pele que não envelhecem, são
Há filmes, como “Mad Max”, de George Miller, e romances, como “Um cântico lindos e sedutores. Tais corpos cibernéticos é que trabalham, dançam, namo-
para São Leibowitz” de Walter Miller, que descrevem um futuro onde o avanço ram, drogam-se, trepam enquanto os corpos reais estão nos quartos plugados
tecnológico desaparece – em geral, por suas contradições internas – e a hu- a computadores fruindo, em tempo real, as peripécias dos substitutos.
manidade é, de uma hora para outra, jogada em uma situação sociocultural O filme “Matrix”, então, pertence à categoria das previsões apocalípti-
primitiva. Noutros filmes, “Matrix”, por exemplo, e romances, como “O admi- cas onde o traço característico da humanidade – a transcendência – torna-se
rável mundo novo”, de Aldous Huxley, o avanço tecnológico desenvolve-se de impedida em função do totalitarismo tecnológico. Na história, os sujeitos são
tal forma que não se pode mais pensar na Humanidade como singularidade. mantidos sob controle, imersos em uma onipotente realidade virtual policiada
A morte do Homem torna-se uma verdade primária. por mandatários de uma instância de comando sobre a qual o espectador nada
Nas histórias do primeiro tipo, o dilema da humanidade é a reorgani- sabe. Neste sentido, “Matrix” exibe um paradoxo que define bem a ambigui-
zação de um mínimo de Lei que não seja, simplesmente, a supremacia do mais dade, percebida ou não, da humanidade perante a Ciência e a Tecnologia. As-
forte e proporcione uma distribuição justa do espólio da falência da sociedade. sim, enquanto nos divertimos e nos fascinamos com os efeitos especiais, efeitos
Nos filmes do segundo tipo, um homem ou pequeno grupo dá-se conta de que produzidos pela virtualidade de poderosos computadores, assistimos ao horror
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que a realidade virtual pode constituir. Se visto desta forma, o filme propõe consciente que nos garante a realidade como fenômeno presenciado. Entre a
uma reflexão entre o prazer e a facilidade imediata que a Tecnologia oferta e percepção bruta e a consciência, Freud interpõe o setor “psi” constituído fun-
o preço a pagar pela artificialização e alienação que a Tecnologia e a Ciência damentalmente por representações que não copiam os objetos do mundo. E,
produzem. O filme revela uma face desta alienação: a realidade virtual, apesar além disso, estas representações vinculam-se à história do sujeito. Isto é, re-
de oferecida por alguém – um homem – que a define, é a ‘realidade real’ que os presentam-se as experiências que o corpo vive. Mas, caracteristicamente, as
cidadãos vivem. A atividade subjetiva dos sujeitos naquela cultura é inteira- representações, se pretendem orientar e organizar a relação do sujeito à rea-
mente dominada por esta ‘verdade’ sobre o Real oferecido por uma instância lidade o fazem de acordo com uma lógica própria que não repete a lógica dos
de domínio. Neste sentido, o filme ‘Substitutos’ pode servir como um perfeito objetos e acontecimentos que representam. Como este setor “psi” se interpõe
antecedente de Matrix. O ambiente não é em nada diferente das cidades con- entre a percepção bruta e a sensação consciente, garante da realidade, é lícito
temporâneas. Não há elemento futurístico. O espectador descobre que está no concluir que a garantia de realidade recebe uma contribuição importante da
terreno da ficção científica quando é revelado que aqueles belos e felizes huma- organização das representações e, portanto, das experiências históricas e pes-
nos são artefatos. O ponto é que não há obrigação em viver por meio dos tais soais do sujeito. Isto é, sendo verdadeira a proposição freudiana, o que chama-
artefatos. Os sujeitos escolheram substituir o peso da carne, a dor da carne, o mos de realidade inclui a participação daquele sujeito que a descreve e que a
horror pelo envelhecimento, o luto pela perda do poder sedutor por um arte- vive. Outro ponto que Freud salienta neste texto é que justamente por cadeia
fato tecnocientífico. A servidão voluntária, horror dos iluministas, encontra de representações e realidade obedecerem a lógicas distintas, é fundamental
perfeita guarida no mais íntimo sonho de um sujeito. que cada sujeito faça um trabalho que o desvencilhe do poder fascinante das
representações e alce ao que denomina ‘principio de realidade’. Isto é, como
É possível? o aparelho psíquico funciona sustentado na materialidade das representa-
Há essa possibilidade? Há possibilidade daquilo que se julga ‘realidade’ ser da ções ele não exige o mundo real, senão como aplacador da carga originária no
ordem da construção artificial? E há a possibilidade de homens e mulheres sin- corpo. Repete-se: se não há nenhuma justificativa em renovar o animismo
gulares optarem por viver este engano voluntariamente? As histórias de “Ma- primitivo, constata-se, desde Freud, que há um hiato difícil de ser transposto
trix” e “Substitutos” têm, portanto, a chance de não se restringirem a uma das entre a realidade e o sujeito que a vive. Isto quer dizer que este pacto objetivo
milhares das histórias da imaginação desprovida de praticidade? A humanidade que nos preside não é um dado que se oferece espontaneamente à percepção
pode, de fato, enganar-se e entregar-se a este ponto? Ao ponto de que o que é que, por sua vez, também seria espontânea. Não são, na verdade, a realidade e
vivido com todas as qualidades de uma vivência genuína ser um engodo? Se a a percepção como dois canais abertos que não recebem influência nenhuma
resposta a estas perguntas não recupera em nada o animismo primitivo, nos do ator do ato perceptivo.
faz tremer ou nos regozijar pela possibilidade de receber “sim” como resposta. Na década de 60 do século XX, Maturana (2001/1997), um biólogo em
Dois pesquisadores separados por aproximadamente 100 anos, Freud nada influenciado pelo pensamento freudiano, conduziu experimentos sobre
e Maturana, orientam-nos. a percepção visual que levaram à observação que diferentes combinações de
Em 1895, Freud escreveu o Projeto para uma Psicologia Científica. Neste comprimento de onda [luminosa] podem gerar a mesma experiência cromá-
texto, de uma maneira bastante original, o fundador da Psicanálise constrói um tica, assim como as mesmas combinações de comprimento de onda podem ge-
esboço de aparelho psíquico. A principal característica deste aparelho original rar distintas combinações cromáticas. Estes experimentos – aqui não descritos
é a separação que Freud faz entre o fenômeno bruto da percepção e a sensação – levaram o pesquisador a concluir que a visão é um fenômeno que depende
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– durval mazzei nogueira filho
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artigo – estamos todos tranquilos!? 23
da estrutura do sujeito que vive a experiência. Outra vez, não há espontanei- Como a linguagem é um pacto social sem autor, por mais que a po-
dade perceptiva. O último passo das conclusões de Maturana levou-o a mudar tencialidade linguística possa aproveitar-se de detalhes da estrutura cerebral,
a pergunta tradicional sobre a percepção, isto é, deixou de correlacionar a ati- e participa na constituição da realidade, não é impossível concluir que outras
vidade da retina com a cor definida em termos de espectro luminoso objetivo, formas de influenciar a atividade de um sujeito que possui um cérebro possam
para correlacioná-la com o nome da cor. Quer dizer: há uma experiência de constituir uma realidade com todos os traços de legitimidade. É exatamente
linguagem além do ato perceptivo. Se, sem nenhuma extrapolação indevida, é este o ponto que as distopias futurísticas que inspiram este texto salientam.
considerado que o termo representação, em Freud, inclui decisivamente a lin- Em “Matrix”, a humanidade vive com todo o frescor de uma existência plena
guagem é notável que autores de interesses e preocupações tão diversas con- enquanto está confinada em casulos, imóvel e alimentada por uma complexa
cluam da mesma forma que o nexo entre realidade e percepção não pode, e não rede de tubos e cateteres. Em “Substitutos”, voluntariamente a humanidade
deve, descrever-se como um fenômeno imediato sem a intervenção de nada renuncia aos tropeços usuais para viver com plenitude apenas as boas sensa-
mais que a boa fisiologia dos órgãos do sentido e a clareza óbvia da realidade. ções. Sem nenhum tipo de risco. Pelo descrito, não é, em hipótese nenhuma,
Desta forma, mesmo que Maturana e Freud não se influenciem reci- negativa a resposta às perguntas acima expressas. A realidade é, sim, uma
procamente, são dois autores que, a despeito de partirem de pressupostos dis- construção que pode vir a ser artificializada pelo progresso tecnológico e se,
tintos, propõem que o sujeito que percebe participa na construção da realidade porventura, esta seja mais aprazível que a construção que obrigatoriamente
onde vive, apesar da evidência empírica que atesta que há o ‘Eu’ e a ‘Realidade’. todos arquitetamos muitos de bom grado aderirão.
Aliás, é a Psicanálise que mostrou que esta diferenciação – entre o ‘Eu’ e a ‘Re-
alidade’ – na verdade, é constituída na rede de laços que se estabelece entre o Por fim...
infante que se desenvolve e os outros que o recebem, para o Bem ou para o Mal. A referência a Freud e Maturana é para sustentar que o horror virtual que do-
A conclusão final é que o cérebro, órgão que sustenta a atividade psí- mina as sociedades futurísticas de “Matrix” e “Substitutos” é possível. A rela-
quica, não tem autonomia para captar a realidade, não tem como decifrar a ção do homem à realidade é mais frágil do que a certeza subjetiva supõe. Em
realidade, se não estiver vinculado à linguagem. O antropólogo Geertz (1989, última análise, significa que a renúncia à crítica, a obediência cega a discur-
p.57) diz: “o homem precisa tanto de... fontes simbólicas de iluminação para sos de qualquer natureza tem o poder, sim, de conformar a realidade que ha-
encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não-simbólica constitu- bitamos. A linguagem e a cultura são tão condicionantes da realidade quanto
cionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa”. Se assim é: a convicção de que o mundo real nos antecede. Significa que transcender e sa-
car que há algo além de qualquer experiência possível, se traz mais trabalho ao
(...) não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos sujeito, é a única maneira de garantir a insubmissão a qualquer discurso que
significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingoverná- vise dizer como é o Homem ou como são as Coisas. Venha o discurso de onde
vel, um amplo caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua ex- vier: da Religião, da Ciência, da Rede Mundial ou da Televisão.
periência não teria qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais Não há outra maneira de tranquilizarmos.
padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma con-
dição essencial para ela (GEERTZ, 1989, p.58).
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Artigo
Are we all calm!?

Abstract: The author points out the influence that the virtual reality can produce
on mankind in the contemporary world. O Nosso Círculo: Fragmentos
de uma Escuta Psicanalítica
Keywords: Psychoanalysis, Virtuality, Contemporary Clinic.
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro[1]
Fernanda Zacharewicz[2]
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São Paulo, n. 98, 2010, p. 22-33.
FREUD, S. (1895) Proyecto de una psicología para neurologos. Obras Completas. Resumo: O artigo apresenta o resultado de um ano de trabalho em um semi-
Biblioteca Nueva: Madrid, 1973. nário clínico de formação de psicanalistas, do curso Formação em Psicanálise
GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, 324p. do Instituto Sedes Sapientiae. Nessa experiência, produções artísticas foram
LACAN, J. (1969/1970) O seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Ja- instrumento para a construção da escuta do analista em formação. Três escu-
neiro: Zahar, 1992, 212p. tas de um caso clínico discutido pelo grupo evocaram diferentes ilustrações
LINARES, J. E. Ética y mundo tecnológico. México: Universidad Nacional Autô- artísticas da literatura, da escultura e da música, respectivamente. Tais ima-
noma de México & Fondo de Cultura Econômica, 2008, 520p. gens, emergentes do singular e também do grupo, compuseram o processo de
LUNA, F. e LÓPEZ, E. R. Introducción. In: LUNA, F. e LÓPEZ, E. R. (orgs.). Los escuta e a elaboração de uma narrativa que transcende o caso original, confi- 1. Membro acadêmico do
desafíos éticos de la genética humana. México: Universidad Nacional gurando uma experiência sensorial e associativa fundamental na formação Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
Autônoma de México & Fondo de Cultura Econômica, 2005, p. 9-27. de uma escuta psicanalítica sensível.
MATURANA, H. (1997) A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2. Membro acadêmico do
2001, 350p. Departamento Formação
em Psicanálise do ISS
ROSSI, P. Los filósofos y las máquinas. 1400-1700. Barcelona: Editorial Labor, Palavras-chave: Escuta Psicanalítica, Arte, Literatura, Escultura, Música.
1966, 178p. 3. Psicanalista, Professora
e Supervisora do
SCHRÖDINGER, E. (1944) What is life? With ‘mind and matter’ and ‘autobiogra-
Departamento Formação
phical sketches’. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 184p. em Psicanálise do ISS
Escutar, escutar e escutar... transforma.
4. Membro acadêmico do
Durval Mazzei Nogueira Filho Departamento Formação
Rua Almirante Pereira Guimarães, 298 Não desças os degraus do sonho em Psicanálise do ISS
Pacaembu
(11) 3862-5716
dr.durval@uol.com.br
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Para não despertar os monstros. Ocorre em toda parte desde um espaço público representado pelo Estado, pas-
Não subas aos sótãos – onde sando pelas relações familiares e privadas, chegando mesmo até aos impulsos
Os deuses, por trás das suas máscaras, organizadores do sujeito. (BARTHES, 1997)
Ocultam o próprio enigma. Diz Barthes (1997, p.13):
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida! ... por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação.
E é um sonho louco este nosso mundo... Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com de-
Mário Quintana masiada frequência, é sujeitar: toda a língua é uma reição generalizada.

Encontramos reflexões e críticas abundantes de como a nossa escuta Esse conceito é ampliado em outro livro do autor ao afirmar a existência
é moldada por elementos da cultura, que vão organizando os nossos pensa- na língua de pelo menos cinco elementos (o hábito, a repetição, o estereótipo, o
mentos e nossas subjetividades, nas mais diversas áreas de conhecimento, chavão e a cláusula obrigatória), que contribuem para a alienação do sujeito, e
inclusive na Psicanálise. revelam como esta é trabalhada pelo poder no contexto social. (BARTHES, 1987)
Seguindo esse caminho, o presente trabalho é fruto da experiência que Não pretendemos aprofundar cada um desses conceitos, somente ire-
foi proposta a um grupo de seminário clínico, sob a minha coordenação, no mos assinalar que, de diferentes maneiras, todos apontam para a perpetuação
curso Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. do sempre igual, da verdade absoluta e do sentido único em nossas expressões
O objetivo ímpar do seminário foi o de possibilitar a cada membro do linguageiras.
grupo uma reflexão sobre a escuta, tendo em vista a sua formação como ana- Hoje em dia, vemos o quanto algumas ideias podem se organizar em
lista. Adotamos a prática de relacionar o caso clínico com produções de arte, de torno de objetos supostamente paradisíacos, como o da magia de um Saber
literatura e de música; com o intuito de discutir a escuta do analista, como o Absoluto, da sensação de um Poder Supremo e de uma Felicidade Infinita. São
elemento essencial na experiência da transferência e contratransferência, tão ideias-objetos, veiculadas como mercadorias que vão sendo consumidas pelo
caras à prática psicanalítica. Cada aluno apresentou o caso clínico duas vezes sujeito às custas de sua própria alienação. São condições criadas com a função
para a supervisão e reflexão em grupo e, num terceiro encontro, cada um trouxe de apagar contradições, eliminar tensões e evitar confrontos e diversidades.
um novo elemento das artes e da cultura articulando-o ao caso já comentado. A ilusão de completude ofertada ao sujeito é, então, revestida de permanên-
Passaremos a descrever as principais ideias que fundamentaram te- cia e sentida como realidade eterna. Vivemos o encantamento do significado
oricamente o trabalho, seguido das três escutas que articulam o caso clínico em excesso, dando a ilusão de que tudo pode ser explicado, esgotado e esface-
com produções artísticas. lado, e com isso perdemos o prazer, o lúdico, o não sabido, na construção dos
Pensamos a escuta como o marco inicial de um processo em que ideias, nossos saberes.
palavras, frases, gestos, são tecidos pela língua falada e escrita. Destacamos a Quando Barthes trata a língua humana como um lugar fechado, que
ideia de que a língua ou linguagem constitui e organiza o sujeito. E na prá- subjuga e aliena, traz também a ideia de que a liberdade, a singularidade, só
tica clínica, transforma o analista em seu trabalho e o analisando em suas pode existir fora dos significados cristalizados, fossilizados.
descobertas. Pensamos que a Psicanálise se aproxima cada vez mais desse contexto,
Roland Barthes considera a língua como expressão máxima do poder. tendo em vista a reflexão do sujeito que é constituído por esses discursos, ao
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tratar do inconsciente –do sujeito cindido, heterogêneo e singular. A teoria la- no visível, no conteúdo manifesto, em que as palavras cristalizam-se num só
caniana amplia e aprofunda essas contribuições, com a afirmação de que no sentido ou numa única explicação. A linguagem nesse contexto fica com a
sujeito, há sempre algo que vaza, aquilo que permanece enigma, que é – o não função de comunicar, de informar, e mesmo assim não livre de ruídos, equí-
sabido, o inominável, o mais pulsional, o gozo. vocos e desencontros.
Atualmente assistimos no árduo trabalho de análise, aos momentos b) outra vertente é aquela em que o significante ao relacionar-se a ou-
de angústia, de estranhamento dos pacientes, ao não conseguirem expressar tros significantes constrói uma rede, composta pelos fios e espaços entre eles,
verbalmente esses estados. Marcadamente denunciam em si a situação da que ampliam infinitamente as possibilidades de significação. Uma teia, uma
nossa cultura contemporânea. Vivem momentos de gozo, silenciosos, exces- “hifologia” como vemos em Barthes.
sivos, traumáticos que transbordam e fazem com que tudo permaneça sem- Podemos dizer que a articulação de significantes vai formando uma
pre igual e desconhecido. rica tessitura, por entre metáforas e metonímias para Lacan (1985), para Freud
O não sabido e a singularidade também podem ser estímulos para o condensações e deslocamentos, que anuncia o inconsciente – esta é a textura
trabalho, quando nós analistas, escutamos. A sutileza do ato analítico deve li- da escuta psicanalítica.
gar-se à singularidade do sujeito e não à universalidade dos fatos. Assim a sin- Mas como numa terceira margem do rio, parodiando Guimarães Rosa
gularidade considerada como unidade de trabalho e, o não sabido, como fonte (1987), uma terceira vertente se delineia, e assinala um outro elemento da rede
permanente de interrogação do sujeito em relação a si e ao mundo, gerando – os vazados, os espaços que ficam delimitados pelos fios. Os vazados passam
estímulo para a reflexão, foram as condições que nos interessaram para pen- a constituir lugares invisíveis, que marcam um trânsito para fora da palavra.
sarmos a escuta em psicanálise. Dito de outra forma: se por um lado o que escutamos vai formando a rede com-
Um dos caminhos de pensar essa questão foi a partir do conceito de posta de linhas da rede, em que a palavra disparada pela pulsão vai se movi-
texto ou escritura em Barthes (1974, p.81): mentando como um caleidoscópio de linguagem, por outro lado, é nos espaços
entre os fios e nós da rede, no vazado, que está o fora da palavra, o além da pa-
Texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado lavra – lugar de caos e de silêncio.
por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais Cabe ao analista escutar e captar esses momentos, até que possam ir
ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, adquirindo forma pela linguagem. São momentos que merecem vir à tona, sem
a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaça- qualquer precipitação do analista, sem que este tente encaixar o analisando
mento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz, nas pré-concepções científicas, que modulam os sujeitos, nomeando-os com
como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas designações que por vezes o desconsideram em sua singularidade.
da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do Percebe-se, então, como a escuta precisa ter a função de descolar a pa-
texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha). lavra de suas significações prévias, estereotipadas e alienadas para tentar (re)
colocá-las em movimento, para que possa aparecer o que ainda não tem visi-
Essa noção em Barthes foi norteadora para pensarmos que na escuta bilidade. Preparar o campo analítico para o questionamento, para o pensar é
há, pelo menos, duas vertentes que podem ser tratadas: trabalho longo. É trabalho do analista em sua escuta, aprender a escovar as
a) a dos significantes que remetem ao significado único, mantendo-nos palavras como diria o poeta Manoel de Barros (2003).
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Transgressão? eternamente presa aos ditos e não ditos do outro. Temos aqui o exemplo de
O ato de brincar para Winnicott (1975) evidencia a riqueza de expressão das como a repetição do sempre igual contribui à intensificação da alienação e do
crianças, com o emergir das experiências e dos processos delas, no longo pro- estranhamento na busca de quem somos, e nos congela, cristaliza, para a possi-
cesso de constituição e desenvolvimento. Pelo brincar as crianças expõem e bilidade de mudanças e transformações acontecerem. A necessidade de uma es-
vão simbolizando o que lhes ocorre internamente. Não há nelas um objetivo cuta que vá além da repetição na busca do novo foi outra de nossas atribuições.
consciente de comunicar ou informar alguma coisa, mas sim de expressar as
suas vivências natural e espontaneamente. Paradoxo e permanência?
Um exemplo disto é o acervo de músicas infantis presentes no imagi- O poema “rose is a rose is a rose is a rose...”, de Gertrude Stein, tão amplamente
nário da criança e em nossa cultura. Diversas vezes já ouvimos e cantamos a difundido e conhecido, é um marco da modernidade e da linguagem. Sem aden-
música infantil “quem cochicha o rabo espicha... quem escuta o rabo encurta...”. trar nos ensaios feitos sobre este poema, destacamos a ideia do paradoxo que
Podemos escutar essa canção popular como tendo a função de man- está contido nele. A “rose” é afirmação, é negação pela repetição, é algo além
ter a escuta nos limites tidos como apropriados, segundo ditames culturais, de “rose”, mas permanece sendo “a rose”, também.
pois vamos crescendo moldando-nos no “como deve ser”, “quais os padrões A escuta pode ser paradoxal se pensarmos que como na teia, na rede, a
a espelhar”, etc.; mas, também, podemos ouvi-la através do efeito que nos palavra pode remeter a vários sentidos, e o que une linhas, o que constrói for-
causa – o prazer pelo proibido. Destacamos aqui não o sentido normativo, e mas vazadas, dá a tessitura da rede. Mesmo quando priorizamos um sentido
sim o efeito atraente e transgressor que o proibido pode disparar. Podemos di- este é um elemento momentâneo, de um todo de criação contínua – a rede.
zer com relativa certeza que todos nós já cochichamos e escutamos para além Podemos usar a metáfora de sermos cavernas, cujas experiências ficam
do dito “permitido”, não? E, a partir daí, pudemos (re)encontrarmo-nos com tatuadas em nossa carne e constroem as nossas psiques, como inscrições, es-
situações, pensamentos, afetos, que não imaginávamos... um misto de horror, crituras, hieróglifos que nos marcam, constituem e organizam e podem contar
de gozo, quiçá de prazer, algo novo inaugurando um espaço do pouco dantes nossas histórias infinitamente. Para que possamos fazer descobertas, é neces-
navegado, como premissa de explosão e quem sabe libertação. sário que as palavras, gestos e silêncios sejam ouvidos nas três condições de
Pois bem, a escuta que vai além do instituído, aquela que amplia limi- escuta apresentadas: descoladas do usual, do antigo; para fora dos ecos repe-
tes, que se constitui como uma escuta que tece rupturas, foi a primeira das titivos do sempre igual; e, em sua condição paradoxal, são possibilidades de
propostas de reflexão no seminário. Pensamos o caráter transgressor da es- abertura para o novo. É preciso que possamos permanecer atentos a um ecoar
cuta como uma das possibilidades de instaurar o pensar, o fazer como criação interno, às vezes um sussurrar, às vezes um trovejar, nos seus movimentos
e novidade, num ofício que se aproxima mais ao fazer artístico pela criação descontínuos e permanentes, lugar de criação.
que permite, do que à prática científica clássica. Permanecer para escutar não é tarefa fácil! Por entre subidas e des-
cidas, encontros e desencontros, que possamos permanecer como nos con-
Repetição ou o de-novo, novo? vida Quintana, no mistério da vida, lugar onde, também, habitam enigmas e
Na mitologia, conhecemos a ninfa Eco, aquela que falava incansavelmente monstros conhecidos, e quiçá, alguns, possam ser decifrados e (re)integrados
– uma tagarela como ficou conhecida por nós. A deusa Hera mulher do deus na relação terapêutica.
maior Zeus, ao sentir-se enganada pela fala incessante de Eco a enfeitiçou, con- Na clínica, os ecos ditos e ouvidos, resquícios das sessões são transfor-
denando-a a só repetir as últimas palavras do que escutava. Eco ficou, então, mados pela escuta do analista, porque entrelaçados à escuta interna da sua
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subjetividade e de seu arquivo de vida. A escuta do analista se enriquece, se e tons, que apesar da singularidade de cada peça, juntas se complementam e
pode flutuar também no cotidiano, usando a arte em suas variadas expres- formam um conjunto.
sões. São instrumentos importantes para o analista na sua prática psicana- Artista do século XX, um dos porta-vozes da Arte Moderna, o pintor nos
lítica, porque aprofundam a compreensão da sua relação com o analisando. provoca e convoca a uma desmontagem da realidade construída e instiga a
Neste trabalho optamos por refletir, a partir de um único caso clínico, uma nova leitura, autoral. Essa obra suscita a efervescência que vivemos: plu-
as várias possibilidades de escuta das analistas em formação, e as diversas ar- ralidade de perspectivas, de interpretações, uma “polifonia visual”, inspirada
ticulações e entrelaçamentos que houve entre elas, permitindo a construção pela escuta e enriquecida pelas obras de arte em suas mais variadas formas.
de um fazer coletivo. No álbum da exposição do artista, realizada em Paris, editado pelo Mu-
Não deixamos de tentar compreender o analisando, nas devidas super- seum Centre Pompidou (Centre Pompidou, 2009, p.45), explica-se que “o círculo
visões clínicas, mas ao ampliarmos as possibilidades de escuta, fomos refinando é a forma mais modesta, porém a que se afirma mais incondicionalmente; é
e transformando, porque permitiu irmos para além da escuta do caso; permi- precisa, mas infinitamente variável; simultaneamente estável e instável; si-
tiu a criação de diferentes personagens gerados pela escuta singular de cada multaneamente intenso e suave; única tensão, mas que carrega incontáveis
uma das analistas. Trouxe a possibilidade de cada uma poder ir construindo tensões em si mesma”.
seu estilo próprio, mais pessoal, seu jeito mais natural de ser analista e estar Os círculos que contêm (ou deixam de fora) cores, contrastes, gritos,
nos seus atendimentos. sussurros, contornos nítidos ou manchados, precisos ou difusos, esparrama-
Foi possível, a partir do caso clínico analisado, perceber a analisanda se dos. Assim foi a escuta de cada um de nós, singular. Assim foi a escuta de nosso
tornar Béa ao ser escutada em conversa com a Macabéa personagem do conto grupo, una; um conjunto com círculos que se complementam, formam um
de Clarice (LISPECTOR, 1998). Numa outra escuta, Béa fundiu-se aos tentáculos todo; diferentes entre si, se sobrepõem, se intersectam, se incluem e excluem,
do Impossível, a escultura de Maria Martins (Da MATA, 2008) e sua agressivi- tingem, mudam a cor um do outro, realçam ou simplesmente escurecem. Um
dade pode emergir como instrumento de reflexão. Numa terceira possibilidade caldo de estilos e subjetividades de onde pode emergir, a partir de cada escuta
temos Béa fragmentada na luz, conforme música de Arnaldo Antunes (ANTU- singular, uma coletiva.
NES, 1993) com seu conteúdo de poesia concreta, em que Béa encontra a sua A seguir, apresentaremos o caso clínico “Béa” e três escutas analíticas
sombra para ensaiar ser. que foram construídas, inseridas nessa polifonia visual que citamos, tomando
Partes tão diferentes e que ao final compõem um todo sensível e pas- como suporte ilustrações artísticas da literatura, da escultura e da música,
sível de aprendizado. Na analisanda num devir longo, trabalho de ourivesaria respectivamente.
da dupla analisando/ analista. Neste trabalho ampliando limites e formando
o analista. Psicanálise e Literatura - Um pouco (um conto) de Béa
Béa. Assim será chamada por influência de Clarice. Não que a paciente Béa seja
Quelques Cercles toda Macabéa – a moça de A hora da Estrela de Lispector – ela o é em sua busca
Formado o grupo, passamos a chamá-lo de “Nosso Círculo”, inspiradas por por contornos para existir. Béa parece ainda não saber se existe ou, ao menos,
Kandinsky, já que a tela Quelques Cercles (KANDINSKY, 1926) ilustra o que foi parece ainda não ter encontrado as palavras para nomear-se.
nosso trabalho. Nessa tela, sobre o fundo azul escuro, ficam lado a lado, sobre- Béa não é só pessoa, só paciente ou caso clínico. Béa é, antes, um per-
postos ou justapostos, variados círculos de diferentes cores, formatos, texturas sonagem criado numa escuta coletiva e atravessada de poesia, imagens, sons e
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palavras. Aqui Béa é um conto criado por muitas mãos e que como todo conto vômito e diarréia, desmaios, sensação de sufocamento. Os médicos (neurolo-
tem a marca da vivência de quem o escreve. gista, gastro, cardiologista, clínico) não encontram nenhuma explicação para
Na primeira vez em que veio ao consultório, Béa sentou-se encolhida esses quadros. Os psiquiatras dizem que ela sofre de estresse e depressão. A fa-
na pontinha da cadeira, apertando a bolsa sobre os joelhos encostados, já quase mília de Béa a ridiculariza por tudo, especialmente pelas doenças, vistas como
indo embora. Medicada para evitar a dor de existir, tinha dificuldade de dizer “frescura”. As febres têm que ser cada vez mais altas para que Béa seja socorrida.
o que se passava com ela mesma, atada que estava à única certeza de que nada O corpo, destituído de desejo, adoece como forma de existir. Béa e Macabéa
do que dissesse poderia prestar. buscam nas aspirinas o alívio para “não se doer”. Nas palavras de Macabéa: “Eu
Aos poucos, as palavras apareceram, uma a uma, eclodindo sem que me doo o tempo todo. Onde? Dentro, não sei explicar.” (LISPECTOR, 1998, 66p.)
ela pudesse senti-las propriamente como suas. Ouvir Béa falar de si é como Doer e doar... “eu me doo... dentro”. Macabéa diz da dor que é também
ler, no conto de Clarice, o personagem-narrador descrever Macabéa – não se de Béa: o quanto dói dar sua vida, aquilo que há dentro, abrir mão, resignada-
tem certeza onde primeira e terceira pessoas se encontram e se distinguem. mente da própria existência e subjetividade. Como se Béa, ao assumir o lugar
Lá, no conto, o narrador fala das dores da nordestina, sendo ele próprio nordes- da avó, tivesse deixado de viver como si mesma e tivesse assumido uma es-
tino e cria em Macabéa uma (in)existência que ele não sabe se é sua também. pécie de sucedâneo de existência. Vetorazzo Filho (2010) conta dessa sensação
Assim acontece com Béa. Relata fatos que seriam quase como seus, mas não de “imitação do vivo”, experimentada por algumas pessoas, algo que, na rea-
ousa se aproximar deles, talvez pelo medo de sentir a violência que tais fatos lidade, os aproxima mais da ruína de sua subjetividade e que Fedida aponta
embutem. Nesse sentido, Béa, assim como Macabéa, “falava, sim, mas era ex- como a situação em que “a vida é empurrada para longe demais pela sua imi-
tremamente muda”. (LISPECTOR, 1998, p.37) tação vivente”.
Béa diz não ter amigos por não conseguir conversar. Nunca sabe do que Mas Béa não reclama, sequer tem clareza do lugar que ocupa na famí-
as pessoas estão conversando ou quando sabe alguma coisa é incapaz de ter lia ou da reprodução da história da mãe – também gorda, doente, traída e hu-
uma opinião a respeito. Essa era a mais forte reclamação do então namorado milhada pelo marido. Béa apenas sente medo de se afastar de casa, teme pela
e principal motivo dele para humilhá-la e para sucessivos rompimentos, vivi- saúde da mãe e não consegue impor minimamente alguma dignidade. Não
dos em sua maioria por Béa como aniquilamento de si mesma. vive, apenas reproduz, imita. A imitação do vivente é o cotidiano de Béa e está
Ridicularizada em sua existência pelo namorado e pela família, Béa/ descrita na rotina de Macabéa:
Macabéa, como diz Lispector (1998, p.36) “não perguntava por que era sem-
pre castigada, mas... nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte impor- “quando acordava, não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com
tante de sua vida”. satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se
O não dizer/ não saber/ não sentir de Béa, assim como de Macabéa, en- de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel
contram lugar no corpo, onde o adoecer é a tentativa de um grito de existência. de ser. (...) Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao cor-
Béa é quem sustenta, precariamente, a família desde a morte de sua rer do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de
avó, a grande provedora. Sem se dar conta de que passou a ocupar o lugar da tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma
avó, Béa se “protegeu” sob uma espessa capa de gordura, o que parece não ter prévia experiência de – de êxtase, digamos. (...) Não sabia que meditava, pois
sido suficiente porque também desde então passou a ficar constantemente não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma
“doente”: crises de febre, fortes dores e formigamento nas pernas, crises de longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
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mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Sou qualquer coisa de intermédio.
Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.” (LISPEC- Pilar da ponte de tédio,
TOR, 1998, 43p.) Que vai de mim, para o outro.

Macabéa e Béa quase perderam seus empregos pelos persistentes “erros Béa, “pilar da ponte” que sustenta a ligação amalgamada com sua fa-
de ortografia”, incapazes que eram de copiar as palavras. Ambas só não foram mília. Uma “ponte de tédio” porque pouca vida há na reprodução da histó-
demitidas, por pena. A impossibilidade de reproduzir palavras, por lhes pare- ria instalada na família desde a avó onipotentemente provedora. Enquanto
cerem vazias de sentido, denuncia um oco na linguagem. Um profundo oco o grupo de parasitas sobreviventes continua esperando a morte chegar, Béa
representacional que antecede qualquer questão cognitiva, mas sugere uma vive o conflito de ter se tornado a provedora do sistema que, ao contrário da
falha na constituição do Eu. Tal falha, no caso de Béa, manteve-se latente até avó que apenas repassava os recursos de uma pensão, tem que trabalhar para
a morte da avó, quando ela relata não apenas o início dos sintomas somáticos, prover. Não por acaso, Béa dizia “não entendo como não me demitem, eu não
bem como de crescente dificuldade com as palavras (esquecimento, troca de faço absolutamente nada no trabalho” (sic). Nem poderia. Na ocupação do lu-
letras e construção de frases sem sentido). Béa conta também como passou a gar da avó fica reeditado o roteiro fantasmático da constituição do Ideal do Eu:
ter dificuldade de organizar coisas e discriminar categorias, sendo capaz de ficar “Trabalhar pra quê? Pra ganhar essa merreca? Eu posso te dar mais dinheiro
parada, por horas, em frente a um arquivo sem conseguir decidir como opera- do que você é capaz de ganhar” (sic), dizia a avó a todos. Assim, trabalho tem
cionalizar sua organização. A desorganização interna de Béa ficou exteriorizada um significado nessa família de algo penoso e degradante. Trabalhar agride
no sofrimento corporal e nas dificuldades com a língua e com a vida cotidiana. Béa porque é ela sozinha que se desgasta para aqueles que nada fazem e, prin-
Pensar a desorganização de Béa a partir do movimento pulsional que cipalmente, trabalhar a distingue da família e a coloca no lugar de sujeito de
a ocupação do lugar da avó provedora pode ter desencadeado implica consi- suas escolhas – lugar tanto desejado quanto temido.
derar como foram reavivados os processos identificatórios na trama psíquica. A ponte que une e separa Béa de sua família representa aqui tam-
A ocupação do lugar da avó provedora não se dá apenas no campo concreto, bém seu conflito fundamental: existir ou desistir? “Pilar da ponte” ou “pular
mas principalmente na fantasmática psíquica. Béa conta que estranhamente da ponte” de tédio? Béa, ao contrário de Mário de Sá e de Macabéa, vive, mas
“não sentiu tanto assim a morte da avó” (sic), como se esse luto não tivesse sido adoece. Em seu adoecimento há um grito por socorro e uma busca pela vida.
efetivamente realizado. Ao contrário, parece que a dificuldade de Béa em acei-
tar a perda, pode ter provocado um movimento regressivo, de buscar interna- Psicanálise e Escultura – Será Impossível?
mente o objeto perdido externamente, tornando-se ele mesmo. Melancólica, Quando Béa foi apresentada, nos impressionou – como bem nos disse sua ana-
Béa considera-se merecedora das humilhações que recebe do mundo e acredita lista – seu esforço para não ser. Misturada com sua mãe e absorta na repetição
que não é alguém que valha a pena. Como descrito por Freud (1917), em Luto e de sua história familiar, como na obra de Maria Martins, intitulada O impos-
Melancolia, a autorrecriminação do melancólico seria na verdade uma queixa sível. Esta escultura, em mármore branco, estava no Malba, em Buenos Aires
contra o objeto perdido. Béa, identificada regressivamente com o objeto perdido, e pode ser vista em Da Mata (2008).
fica indiscriminada do outro, como conta a poesia de Sá-Carneiro (1914/1995): Na escultura branca de Maria Martins, dois grandes corpos amorfos
quase se juntam pelos ávidos tentáculos-boca, que captam toda a nossa aten-
Eu não sou eu, nem sou o outro ção. Não existem rostos, só enormes bocas, que nem isso são. E é, sobretudo,
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o branco que nos capta, já que pela ausência de cores mal se pode distinguir, (e que outro!). Pode saborear sua vingança frugal.
nessa mordida voraz, os diferentes corpos, em uma tentativa de possuir e do- Béa desfruta de novas experiências, sutis, mas sem dúvida, novas; com
minar aquele corpo ao lado que “lhe pertence”. O que ouvimos de Béa foi sua o término do namoro vive a profunda tristeza do rompimento (e da separação)
destrutividade: silenciosa, devastadora, contagiosa, presente pela ausência... na análise, não fica paralisada ou dilacerada pela depressão e pode até cuidar
Um grande não fazer, não produzir, não reagir, não falar, não associar. da sua feminilidade (vai ao salão).
Ao ouvir sobre Béa, nos paralisamos, não sentimos raiva, não pudemos Ela traz um sonho: vê uma coruja, grande, com olhos bem abertos. Ela
reagir. Ouvimos lamentos melancólicos, que Béa fala em análise e chora em associa a ave a uma má notícia, que pode ser a morte da mãe. Acordada, fica
seu corpo (pelas suas febres, diarréias, etc.). muito preocupada com a saúde de sua mãe, teme intensamente pela sua morte.
Foi estranho selecionar a obra de uma artista tão ativa e revolucio- A realização de desejo, a morte da mãe, expõe “a céu aberto” sua agres-
nária para falar de Béa – é como se nem isso ela pudesse. Nascida em família sividade que agora pode aparecer. Morte, separação, autonomia ou apenas di-
abastada, Maria falava línguas, casou-se duas vezes – na segunda vez com um ferenciação. Ela com “olhão” de coruja já pode começar a ver, mas preferia não
diplomata, Carlos Martins Pereira e Souza (1884-1964). Viveu na Europa, estu- enxergar. O desejo de poder se separar da mãe é também horror, morte, medo
dou escultura em Paris, morou no Japão, participou ativamente do movimento da separação, medo de seu desamparo uma vez que esteja só. Um desejo de se-
surrealista, modernista e esteve lado a lado de grandes nomes como: Marcel paração que é tão intenso, temido e culpado, que teme que sua raiva mate. Se-
Duchamp, Mies Van der Rohe, Rufino Tamayo, Chagall, Mondrian, Max Ernst paração, morrer e matar; sobredeterminações.
entre outros. Mas, foi ela quem nos traduziu Béa. Encontrar-se com esse “novo” aspecto seu não é fácil: na semana se-
Vemos Béa nesses corpos brancos misturados, indiscriminados, que guinte a paciente falta e quando volta relata que foi a um psiquiatra. Ele re-
tentam (tentativa impossível) em seus tentáculos se fundir. Mãe e filha em ceitou medicamentos, mas ela não tomou. Será que ela busca (fora da análise)
uma identificação canibal, voraz. Separação, diferenciação ou distinção é ame- fugir de sua coruja, que enxerga seus desejos? Talvez seja possível à Béa, em
aça de um corpo dilacerado; ego fragmentado. sua análise, trilhar um caminho para diferenciar-se de sua mãe e constituir
Em dois momentos ao longo do seminário clínico pensamos em Béa. sua própria identidade.
A seguir nosso reencontro. O medo de separação, agora, está na relação transferencial (podendo
Começam a aparecer os tentáculos. Há uma nova possibilidade de li- fazer escolhas de amor objetais e não apenas identificações canibalísticas): a
dar com sua agressividade, que antes não podia aflorar. Antevendo e temendo possibilidade de separação com a mãe chega pelos encontros com a analista.
o fim de seu longo namoro, ela, sabendo que seu namorado a trocou por outra, Será que o remédio faz passar “medo de separação” com a analista? A própria
Béa cria um personagem virtual para se relacionar com a rival. Aqui a nova Béa paciente começa a digerir essa questão.
(sua personagem), é Zezé, uma Béa masculina, ativa; com quem experimenta
sua potência e pode ativamente fazer algo por si própria; pode também sedu- Psicanálise e Música - Béa enquanto
zir e atacar… Exercita com sua personagem sua sexualidade e agressividade, processo – possibilidade de ser
o pulsional que precisava encobrir. Desconta sua raiva, elabora a sua dor, se Para escrever sobre Béa não basta escutá-la em um momento único, é ne-
vinga do seu – agora – ex-namorado. cessário ser capturado pelo processo da paciente ao longo do ano de 2009. A
A Béa-Burra trocada por outra, agora travestida de Zezé, deixa de ser primeira apresentação de Béa foi marcada pelo seu acorrentamento na dinâ-
caça e passa à caçadora: ataca, faz seu namorado sentir-se trocado por outro mica familiar, os seus empregos com funções simultaneamente simplórias e
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impossíveis de serem cumpridas. O segundo relato trazia em seu âmago uma Só sombra
nova Béa, que exercia papéis também fora do âmbito familiar, que criava per- É nada
sonagens e, embora ainda não por si mesma, era capaz de seduzir como Zezé. A
nova Béa que era resultante do trabalho analítico; continuidade da velha Béa, No primeiro esboço Béa poderia ser sombra enquanto existência par-
porém começando a se integrar. cial, sombra de final de tarde em dia nublado. Mas pode-se agora tomar a pers-
Como ilustrar o processo? Partiu-se da poesia concreta. A poesia con- pectiva da sombra como diferenciação, do nada que antes, mesmo com tanta
creta é composta por partes sem ligação. Após a leitura do primeiro momento luz, tamanha exposição de seu ser, não havia nada. A sombra é, portanto, agora
de Béa, era justamente isso que ela parecia, faltavam conexões entre as partes, para Béa possibilidade de ser, mas ainda não em sua plenitude. A sombra de
mais ainda: as partes mesmas estavam cindidas. Béa está agora mais próxima do meio-dia, da sombra que ofusca o ser.
Para compreender a poesia concreta necessita-se de um esforço do lei- Béa ao longo do tempo, dos seis meses que cronologicamente impõe-
tor, ou melhor dizendo, um esforço do leitor para ler a obra. Será que aqui es- -se entre os dois momentos da apresentação de seu caso, afasta-se da poesia
tava referindo o esforço do analista? Sim. Ouvir a sessão, estar atenta às febres concreta. Por si mesma torna-se prosa. E prosa independente do leitor, torna-
e continuar o trabalho analítico mesmo a partir da vontade estagnadora da -se prosa por própria autoria. Obra escrita a partir da necessidade de ser. Onde
paciente eram sem dúvida parte essencial do trabalho desse analista. encontra-se agora o analista?
A obra escolhida foi Luz, letra e música de Arnaldo Antunes. A voz grave Béa aos poucos inicia a escrita da própria história. Escreve sim sua
e a falta de cadência, ou a presença de lacunas abissais entre cada nota, trans- prosa! Mas às vezes falta-lhe imprimi-la. Imprimir é tirar do arquivo pessoal,
creviam a angústia da paciente. Desde essa percepção realizou-se o trabalho é fazer concretamente existente o que antes era possibilidade. É isso que o ana-
sobre a poesia de Antunes (1993, p.81): lista de Béa faz nesse momento. Ajuda-a a imprimir, fornece o papel. Acessório
à obra já escrita, mas fundamental para o real da existência.
Luz Já não é mais assim. Em um segundo momento pensar em Béa en-
Na luz quanto música passa a ser pensar em Andante, ainda lento, mas já no limiar
Não é nada dos andamentos considerados rápidos. Béa com maior possibilidade de movi-
mento. Ao escutar Béa em andante, ritmo de passeio (76-108 batimentos por
Béa era luz, mas estava impossibilitada de ser. Béa, enquanto luz na minuto), escuta-se seus primeiros passos pela rua, o espaço público que a faz
luz, não era nada, nem nada era. O que ela poderia ser fusionada na geleia sujeito fora da casa, início da separação da família que a aprisiona. Béa ainda
disforme em que consistia seu núcleo familiar nesse momento? Perdia-se, não é capaz de andar em Allegretto graciozo (moderadamente rápida e gracio-
nadava no nada. Cabia a ela o desafio do processo de separação da fusão, ca- samente). Passeia para poder conhecer o mundo do qual foi privada, passeia
bia a ela, cortar, morrer para então tornar-se sujeito. Tomando como ponto de com sua analista por vitrines de símbolos criados pela cultura buscando pre-
análise o relato da segunda sessão, quase seis meses depois da primeira, Béa encher as lacunas deixadas pela formação de um suposto sujeito pouco ou
era luz, mas já não mais na luz. Béa afasta-se da luz que cega, pode dar início nada libidinizado por suas figuras parentais. Para que Béa páre de ter febre,
ao ser, ainda que sombra. O que leva esse ensaio à segunda parte da poesia de de somatizar as inundações libidinais que, no momento, carecem de signifi-
Antunes (1993, p.81): cantes, há que acompanhá-la em seu passeio. O passeio que marca o ritmo do
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trabalho psíquico empreendido na dupla analista-analisante dará os elemen- for psychoanalysts’ training, from the course “Formação em Psicanálise” in “Ins-
tos necessários para que Béa forme uma mais complexa cadeia associativa, tituto Sedes Sapientiae”. In this experience, artistic productions were instruments
podendo assim dar palavra para o que agora ela escreve no corpo. Aos poucos, in the construction of the psychoanalyst listening. Three distinct listenings of a
Beá afasta-se de Macabéa. Exige-se ainda olhar para a poesia em si. clinical case discussed by the group evoked different artistic illustrations from
Para complementar esse ensaio faz-se crucial somar a descrição da literature, sculpture and music, respectively. The resulting images, which emer-
imagem da germinação da semente de feijão no algodão. Experiência essa que ged from individuals and also from the group, made up the process of listening
toda a criança faz. Há que se escolher os grãos, os copinhos, pôr o algodão, mo- and developed a narrative that transcends the original case, setting up a sen-
lhá-lo na medida adequada e deixá-lo à luz. Não aguar demais, porque morre. sory and associative experience that is crucial to the constitution of a sensitive
Não expor à luz demais, porque morre. E esse exagero de luz aproxima-se da psychoanalytic listening.
luz da poesia concreta tomada aqui como objeto. Luz na luz não é nada. Im-
possibilidade. Morte.
Béa já começa a não se inundar de luz, sai do meio-dia. Já não se deixa Keywords: Psychoanalytic Listening, Art, Literature, Sculpture, Music.
invadir pelo seu meio. Béa pode ser meio sombra e começa a germinar. É es-
tranho, porque não dá pra ver. Dá a impressão que de repente sai o broto. Mas Referências
o processo iniciou-se muito antes, o que é visto é somente o resultado disso. É ANTUNES, A.. Luz. In: Nome. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, 126p.
esse o processo que se deu na análise de Béa, e pode-se dizer, com a paciência BARROS, M.. Memórias inventadas A infância. São Paulo: Planeta, 2003, 40p.
do analista. O processo de análise é longo, para o paciente e para o analista. BARTHES, R.. El placer del texto. Espanha: Siglo Veintiuno de Espana editores,
O que resta fazer agora? Continuará Béa a crescer e desenvolver-se? 1974, 86p.
Como todas as crianças sabem, o pé de feijão não se sustenta no algodão! Há __________ . O rumor da Língua. Lisboa/ Portugal: Edições 70, 1987, 486p.
que plantá-lo em terra boa para que dê frutos. Como transplantar essa vida? __________ . Aula. São Paulo: Cultrix, 1997, 96p.
Será que isso é possível? CENTRE POMPIDOU. Kandinsky. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2009,
A busca pelo retorno ao medicamento pode ser escutada como essa an- 60p.
gústia do transplante. Mais uma vez o analista porá folhas na impressora para DA MATA, L. C.. Maria Martins. Sobre o toque e o impossível. In: XI Congresso
que Béa continue a escrever-se como sujeito prosa, sujeito conto. Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências.
2008, São Paulo. Anais Online. Recuperado em 13 de setembro de
Ainda, algumas palavras 2011: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/sim-
As três escutas, apesar de autônomas, simultaneamente se completam: nos le- posios/pdf/034/LARISSA_MATA.pdf
vam a um trânsito harmonioso entre singular e coletivo e ainda, a Kandinsky. FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-
mund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
(1917). Luto e Melancolia, v.14, p. 245-270.
Our circle: fragments of a psychoanalytic listening KANDINSKY, W.. Quelques cercle (1926). Original: óleo sobre tela; 140 x 140 cm.
Paris: Centre Pompidou.
Abstract: The article presents the results of a full year’s work in a clinical seminar LACAN, J.. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964). Rio de
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artigo–anaraquelbuenomoraesribeiro[1]fernandazacharewicz[2]ligiavaldesgomez[3]lucianabocayuvakhair[4]

Artigo
Janeiro: Jorge Zahar, 1985, 280p.
LISPECTOR, C.. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 87p.
ROSA, J. G.. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1987, 236p. A terceira margem do rio: um diálogo
SÁ-CARNEIRO, M. (1914). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
1101p.
entre poesia (sonho) e prosa (vigília)[1]
VETORAZZO FILHO, H.. A tirania do ideal na ruína do Eu. In: MARRACCINI,
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro
E.M. (Org.). O Eu em ruína – perda e falência psíquica. São Paulo: Pri-
mavera Editorial, 2010, p.61-89.
WINNICOTT, D.W.. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 203p. Resumo: O diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas obras homônimas
A terceira margem do rio, permitiu evidenciar os mecanismos deslocamento,
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro condensação e figurabilidade entre as palavras de Caetano Veloso e de João
Rua Teodoro Sampaio, 1020 cj 1101 Guimarães Rosa. Nesse sentido, a idéia de uma terceira margem no rio que en-
Pinheiros
cerra o indizível, presente em ambas as obras, permite pensar a palavra como
(11) 8388 9965
anaraquel.bribeiro@gmail.com representação de coisa, a palavra em sua materialidade que flexibiliza a relação
entre significante e significado (água da palavra). Mas é metaforicamente na
relação com o pai que se encerram as raízes de toda cadeia associativa. São os
Fernanda Zacharewicz desejos inconscientes, submersos no rio, que regem os operadores e que criam
Rua do Radium, 166 os meandros da rede de associações ora convergentes e ora contraditórias de-
(11) 8266.2831
nunciando a presença escondida, disfarçada da (i)lógica do desejo inconsciente.
fzacharewicz@yahoo.com

Ligia Valdes Gomez Palavras-chave: Psicanálise; Poesia; Prosa; Sonho.


Rua Tupi, 267, cj14
(11) 3663 5973
lizgomez@uol.com.br

Luciana Bocayuva Khair


Rua Teodoro Sampaio, 1020, cj 1101 Membro acadêmico do
Pinheiros Departamento Formação
(11) 9142 6117 1. Versão revista e ampliada do trabalho apresentado na XX Jornada do Departamento Formação em em Psicanálise do Instituto
luciana.khair@uol.com.br Psicanálise em 2009. Sedes Sapientiae.

boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011 45


46 boletim formação em psicanálise
artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– ana raquel bueno moraes ribeiro
boletim formação em psicanálise
artigo
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– a terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) 47
Um convite... Entre as escuras duas
Caro leitor, permita-me fazer um convite: Uma pausa para um deva- Margens da palavra
neio, um mergulho nas águas (des)conhecidas da Terceira Margem do Rio... Clareira, luz madura
Se essa não for uma hora conveniente, volte mais tarde, mas, por favor, não Rosa da palavra
prossiga sem antes se dar o tempo de experimentar as águas de Caetano e Puro silêncio, nosso pai
Milton. E, se agora for um bom momento, acomode-se naquele recanto mais Meio a meio o rio ri
aconchegante e ouça (mesmo) essa música. Use o tempo que lhe parecer ne- Por entre as árvores da vida
cessário. Aproveite para dar tantos mergulhos quanto for o caso até deixar-se O rio riu, ri
molhar pelas intrigantes palavras desse obscuro rio. Depois, e apenas depois, Por sob a risca da canoa
de um belo mergulho na música, sugiro um mergulho no conto homônimo O rio vil, vi
de Guimarães Rosa. Só então estaremos prontos para começar a brincadeira... O que ninguém jamais olvida
Espero por você aqui. (...) Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
A terceira margem do rio - Caetano Veloso e Milton Nascimento
Asa da palavra
Oco de pau que diz: Asa parada agora
Eu sou madeira, beira Casa da palavra
Boa, dá vau, tristriz Onde o silêncio mora
Risca certeira Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Meio a meio o rio ri Hora da palavra
Silencioso, sério Quando não se diz nada
Nosso pai não diz, diz: Fora da palavra
Risca terceira Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Água da palavra Rio, pau enorme, nosso pai
Água calada, pura
Água da palavra Mas, afinal por que esse convite? Por que deixar-se levar pelos mean-
Água de rosa dura dros de um poema/canção num devaneio? Por que entregar-se a essa escuta? Na
Proa da palavra formação de um analista, busca-se incessantemente desenvolver uma escuta
Duro silêncio, nosso pai capaz de romper a concretude do discurso. Faz-se analista aquele que consegue
se aproximar de seu paciente naquilo que ele não sabe que diz ao falar, quando
Margem da palavra a palavra transcende o significado mais explícito e se apresenta numa rede de
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artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– ana raquel bueno moraes ribeiro
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possibilidades de significação. Nesse sentido, o fazer psicanalítico aproxima-se ou em qualquer outra formação do inconsciente, consiste no que ficou conhe-
do fazer poético, artístico, que se permite brincar com as palavras. No entanto, cido como a realização do desejo.
contraditoriamente, quais são os espaços criativos em que psicanalistas em Nesse sentido, tanto o sonho como a poesia operam sensorialmente. A
formação (ou não) se permitem estar? Onde está o lugar da brincadeira com elaboração onírica se aproxima, portanto, do processo de elaboração artística -
as palavras que permite o exercício da escuta? Em meio ao universo teórico ambas enraizadas nas descargas pulsionais regidas pelo desejo. Para Meneses
austero que emoldura, formata e enquadra, a brincadeira com a palavra parece (2002, p.16) “poesia e sonho mergulham numa lógica da ambiguidade, abri-
por vezes acuada, já que tão pouco “séria”... gando a contradição, acionando insuspeitas forças psíquicas. Quando sonha,
Na linguagem popular, “poeta” e “sonhador” são, às vezes, tratados todo homem é poeta: utiliza os recursos da figurabilidade, a imagem sensível;
como sinônimos. Trata-se de uma analogia que considera que ambos utilizam estabelece analogias que não se impõem à primeira vista”. Meneses (2002, p.20)
a palavra como “coisa”. Regidos pelo significante, o sonho ignora e o poema aponta ainda o que diz Ricoeur acerca de todo latente que exige ser manifes-
flexibiliza as relações entre significante e significado. Tanto na poesia, quanto tado: “onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue
no sonho, a palavra se materializa na sua corporiedade: soma e sema. A pala- para interpretar” - o que nos traz de volta à proposta desse trabalho.
vra é signo e corpo - é isso que nos ensinam os trocadilhos - e é por isso que os A Terceira Margem do Rio é um poema particularmente interessante
poemas escondem um universo quase infinito de significados que permitem, para nosso convite ao devaneio/ exercício de escuta/ interpretação. Isso porque
além de um deleite particular, um exercício de ampliação de escuta. não se trata apenas de um poema maravilhosamente concebido, mas que pre-
É conhecida a importância capital do significante em toda e qualquer serva suas raízes na prosa. Caetano criou a canção (poema) a partir do conto
formação do Inconsciente: chistes, sonhos ou sintomas. Regido pelo processo homônimo de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, criando um diálogo en-
primário, ambíguo e caótico, o Inconsciente pressiona o Eu para manifestar-se, tre poesia e prosa análogo à relação estabelecida entre o sonho e a vida de vigí-
seja no pequeno espaço de um chiste que escapa, num poema demoradamente lia. A prosa de Rosa parece ordenar, preencher as lacunas deixadas pelo poema
gestado e sentido, ou nos sonhos. Todos os casos encerram a manifestação do de Caetano. Mas poderíamos pensar o inverso. A canção criada por Caetano é
desejo inconsciente. Muito antes de Freud, segundo Meneses (2002, p.21), o a condensação poética do conto de Guimarães Rosa, como se o conto pudesse
filósofo grego Aristóteles já articulava a imaginação ao desejo: “...a fantasia, ser pensado como um evento da vida de vigília que carrega de energia algum
quando se move, não se move sem o desejo.” Freud (1900/1996) concorda com elemento inconsciente e se transforma num resto diurno, matéria-prima no-
o filósofo ao propor que: “...durante o sonho o Inconsciente não pode oferecer bre para a construção poética do sonho, no caso, a canção, tão mais livre na
nada mais que a força pulsionante para um cumprimento de desejo.” palavra como “representação de coisa” (Laplanche e Pontalis, 2004). Isso per-
O desejo, compreendido como mola propulsora de todo movimento mite que a canção sirva não apenas de base para a livre associação daquele
psíquico, reproduz a cada momento da vida de vigília ou no sono os registros que a escuta – o que já seria válido – mas para escutar o poema à luz do conto,
arcaicos de vivências de satisfação geradas a partir de tensões de necessidades de forma análoga à escuta de um sonho à luz das associações do analisando.
atendidas. O desejo é, portanto, a moção pulsional no aparelho psíquico que Em outras palavras, suponho aqui nesse exercício metafórico, que a
arranca a carga da tensão de necessidade na busca da vivência de satisfação. personagem que narra em primeira pessoa o conto é aquele que “sonha” a
O investimento energético do traço da vivência de satisfação fica tão intenso canção, de onde surge a analogia entre o sonho e a vida de vigília, bem como
que resulta numa identidade perceptiva alucinatória. Tal identidade de per- evidências dos efeitos da força do desejo inconsciente. Em oposição a esse su-
cepção passa a constituir o objeto do desejo, que ao ser reproduzido em sonho, posto “trabalho do sonho”, o presente “trabalho de análise”, tenta resgatar no
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conto, evidências de como a palavra foi transformada. O presente trabalho es- de pau” é “madeira boa” para a canoa, e é a “beira boa” que abre passagem, “dá
tabelece, portanto, um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas duas vau”, para a canoa fazer na água uma risca suave (tristriz) e precisa (certeira).
obras, procurando evidenciar a presença dos mecanismos de deslocamento, Particularmente o neologismo “tristriz” dá um tom de sonho à canção.
condensação e figurabilidade no poema (canção de Caetano Veloso), a partir Há algo oculto nesse curioso termo que remete à figurabilidade e à condensa-
do que é narrado no conto de Guimarães Rosa. A seguir, compartilho a expe- ção características do trabalho do sonho. No primeiro caso, há em “tristriz” a
riência desse meu mergulho... sonoridade da canoa resvalando na água. A própria musicalidade do signifi-
cante permite o deslocamento do efeito sonoro de repetição de “tristriz” nos
Compartilhando meu mergulho na “Terceira Margem do Rio” demais pares: “meio a meio”, “rio ri” e “silencioso sério”, como se o som da pala-
Ouço a música A terceira margem do rio, de Caetano Veloso, e sou tomada por vra fosse, nesses casos, o elo entre significantes distintos, todos eles apontando
ela. Não consigo explicar o que se passa. Simplesmente me invade a cadên- para as margens do rio que escondem a “terceira margem” silenciosamente
cia ritmada desse rio-silêncio, denso sentimento do pai que se faz presente presente. Dessa forma, reproduz a imagem, narrada no conto, do pai fortale-
na ausência, na palavra que cala. Penso em como me fisga a canção e como cido na sua ausência, por anos a fio visível (sentado na canoa no rio), porém
não consigo parar de ouvi-la... Dezenas de vezes até que a repetição permita inatingível para o filho.
acomodar cada som e palavra em mim. Sinto como se quase pudesse tocar o Em relação à condensação, enquanto “tris” condensa “três” e “ris” (de
mergulho da música e da poesia no inconsciente. Mergulho rápido, invasivo, risca) evocando, portanto, a “risca terceira”, “triz” sugere o limiar de “por um
sem permissão prévia. Não há nada a fazer, a não ser sentir que algo foi pin- triz”. Essa condensação expressa o sentimento, presente no conto, do pai que
çado das entranhas e emergiu das profundezas. Tal qual Caetano canta sobre abandona a família para viver/ morrer na canoa - a vida por um triz, expressa
o rio, água da palavra. no risco na água. É também a água que denuncia a ausência/presença do pai. A
Da narrativa a canção reproduz o efeito enigmático da palavra que si- água é o lugar de uma fala que cala, e o poema marca isso na oposição (“nosso
lencia. De fato, sem o conto, a canção parece codificada como um sonho. Tam- pai não diz, diz”) que se anuncia entre as margens do rio (“risca terceira”). Ou
bém fica preservado no poema o estilo característico da prosa rosiana, seus seja, o pai se cala, mas a risca terceira da canoa, sinal do seu abandono, é quem
neologismos, aliterações, rimas, lirismo e melodia quase musical. O ritmo denuncia (“nosso pai não diz, diz risca terceira”).
oscilante entre aceleração e distensão do poema se assemelha ao processo de Há um mistério na imagem imóvel do pai na canoa. Por trás do silên-
construção do sonho, em seus movimentos sucessivos de regressão e progres- cio e da seriedade do pai esconde-se um riso vil. Por deslocamento, a imagem
são no aparelho psíquico. do pai “sério” vista pelo filho, aparece na canção/ sonho como um rio que ri
A aceleração e distensão também aparecem no poema como recurso um riso localizado no seu meio (“meio a meio o rio ri”/ “Por sob a risca da ca-
para deslocamento e condensação de elementos do texto de Guimarães. Em noa/ o rio vil vi”), ou seja, o riso está naquele que fica no meio do rio, em “sé-
seu texto, Rosa (1988, p.32) conta que o pai encomenda uma canoa feita de uma -rio”, no pai. A condensação que aproxima o riso da seriedade do pai sugere o
madeira boa, rija, que dure “na água por uns vinte ou trinta anos”. Nos versos efeito sádico exercido por ele sobre a família que sofre as consequências do
iniciais do poema (“oco de pau que diz / eu sou madeira beira/ boa, dá vau, tris- abandono vigiado.
triz/ risca certeira”), Caetano estabelece uma aceleração que emparelha “ma- Em outro trecho, há a expressão da figurabilidade do sonho - a criação
deira beira”, ocultando não apenas “madeira boa”, como “beira boa” - as duas de uma identidade perceptiva, tão vívida no psiquismo que pode ser sentida:
duplas que anunciam o sentido de canoa ao “oco de pau”. Isso porque o “oco “ouvi ouvi” a inaudível “voz das águas”. Ainda pela figurabilidade, “ouvi ouvi”
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sugere uma percepção visual e auditiva simultânea: “ouvi ou vi”. A figurabi- palavra que escapa) em imobilidade (“asa da palavra/asa parada”), seguida da
lidade é o mecanismo que permite que a regressão se dê temporalmente (do incandescência e luminosidade (“brasa da palavra/a hora clara”), própria da
presente para o passado, que ao mesmo tempo reconfigura o passado). Ao re- revelação. A “casa da palavra” é “onde o silêncio mora”. A revelação se dá, por-
presentar os pensamentos em imagens, o poema/sonho substitui a cena in- tanto, no não dito, naquilo que subjaz ao ato do pai de não dizer.
fantil que demanda uma expressão, por uma cena recente, vívida e vivida no “Tora da palavra” remete ao pai, numa referência fálica à função de in-
presente do sonho. A cena infantil que não pode ser esquecida e tampouco re- terdição que aparece às avessas ao “torar” a palavra, destruí-la no silêncio. É a
vivida, pode, no entanto, reaparecer em sonho. É assim que “o que ninguém “proa da palavra”, que toma a frente, que anuncia, penetra e corta a água, mas
jamais olvida” permite pensar no registro inconsciente que nunca se perde, e o faz para o silêncio, numa denúncia da ausência da interdição. É a ausência
que justamente pela figurabilidade pode ser revivido no psiquismo alucinato- do pai, é a palavra que voa e escapa.
riamente (“o rio vil, vi”). No conto, Rosa (1988, p.32) explicita como a imagem A “tora” fálica “da palavra” (“rio pau enorme nosso pai”) parece colo-
do pai na canoa não poderia jamais ser esquecida: “Não, de nosso pai não se car no sonho/canção a realização do desejo do filho, por associação ao conto/
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era resto diurno. Isso porque, no conto há o elemento, menos explícito na can-
só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros ção, do desejo do filho (e da mulher do pai) pelo retorno do pai. Desejo de que
sobressaltos.” esse pai ausente pudesse estar falicamente potente e cumprindo sua função
Mas é possível pensar, sob a ótica do pai, que outros registros inesque- de interdição, tão necessária ao filho e à esposa. Contraditória e simultanea-
cíveis emergem das águas. Lançar-se ao rio aparece como um deslocamento da mente, a canção/sonho também permite pensar num desejo inconsciente do
temática da loucura presente no conto. A terceira margem é o invisível, inau- filho de que o pai permanecesse longe, na canoa, para que ele próprio pudesse
dível e desconhecido. O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o se tornar potente e fálico no lugar do pai. Numa relação especular, a “risca ter-
desconhecido dentro de si mesmo, a palavra que falta. Palavra essa que a água ceira” é também a “risca certeira”, como se a risca que inscreve a saída do pai
não diz (“água da palavra / água calada pura / água da palavra / água de rosa na canoa fosse um tiro certeiro que abre caminho para o terceiro, para o filho.
dura”), que está presente como ausência (“duro silêncio”), mas que ao mesmo No conto aparece o conflito e a culpa do filho, possivelmente associados
tempo detém a possibilidade de revelação (“puro silêncio”/ “entre as escuras a tal desejo. Rosa (1988, p.32) fala como a vida da personagem torna-se reclusa e
duas / margens da palavra / clareira luz madura”). Nesse sentido, observa-se a sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência
sobredeterminação e, mais uma vez, a condensação. do pai: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa?
No poema (sonho) e no conto (resto diurno) a água-palavra é o lugar da Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.”
ausência do pai, mas também da revelação no sentido de nomeação: “rosa da É também no conto que resgatamos o conflito edípico do desejo de to-
palavra”, onde a letra da canção explicita, mais uma vez, a relação fluida entre mar o lugar do pai e do horror quando tal possibilidade se apresenta concre-
significante e significado. A “rosa da palavra” é tanto a flor, símbolo do poten- tamente. Nas palavras de Rosa (1988, p.32):
cial da fertilidade, local da fecundação para a geração do fruto, quanto o nome
de Rosa, autor da palavra. Assim, rosa condensa a rosa e o Rosa, bem como a E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o se-
relação poesia e prosa, aqui pensada no diálogo sonho/resto diurno e processo nhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O
primário/processo secundário. senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo
A revelação da água/palavra se dá na transformação da mobilidade (a o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no
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compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, the word). But it is metaphorically in the relation with the father that the roots
proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, of the associative chain are found. Unconscious desires, inside the river, conduct
ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de the operations and create the texture of the web of associations, sometimes con-
tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, verging sometimes conflicting, denouncing the hidden, disguised presence of the
corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele (il)logic of the unconscious desire.
me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um per-
dão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Keywords: Psychoanalysis; Poetry; Prose; Dream.
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,
então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem Referências
também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: FREUD, S. (1900). Interpretação dos Sonhos (I). In: Edição Standard Brasileira
e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio. das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, v.4, 776p.
A possibilidade de ocupar o lugar do pai, que gera horror ao filho, ter- LAPLANCHE, J; PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise – Laplanche e Ponta-
mina por fazer o filho tomar o lugar do pai, mergulhado dentro do rio, de onde lis. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 552p.
todo desejo parte e para onde tudo retoma. MENESES, A. B. As portas do sonho. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, 176p.
Deixo o rio, o mergulho brincadeira de palavras e acordo do poema/ ROSA, J. G. A terceira margem no rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
sonho com a incerteza de quem o sonhou. Se não há um sonho no poema de Nova Fronteira, 1988, p. 77 - 82.
Caetano, tampouco há um inconsciente sonhador no conto de Rosa, quiçá um VELOSO, C. A terceira margem no rio. Disponível em: http://letras.terra.com.br/
sonho sonhado a quatro, Caetano, Rosa, a personagem e eu... (...) Mas... Afinal, caetano-veloso/201521/ acesso em 03/03/2010.
por que não? Por que mesmo não?
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro
Rua Teodoro Sampaio, 1020, cj 1101
Pinheiros
The third shore of the river: a dialogue between (11) 8388 9965
poetry (dream) and prose (vigil) anaraquel.bribeiro@gmail.com

Abstract: The dialogue between poetry (dream) and prose (vigil), in the homopho-
nous works A Terceira margem do rio, shows the mechanisms of displacement,
condensation and figurability between the words of Caetano Veloso and João
Guimarães Rosa. The idea of a third shore of the river that contains the unspe-
akable, found in both works, allows one to think the thing-wordthe word in its
materiality that turns looser the relation between referent and meaning (water of
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artigo
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
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Artigo
Corpo e Imagem
Leonardo Beni Tkacz

Resumo: O artigo propõe a seguinte discussão: entre corpo e imagem haverá,


sempre, algo inefável, algo indizível. Para discuti-lo, o texto conceitua o que é
corpo e o que é imagem para psicanálise. A partir daí, o eixo teórico percorre
o conceito do estádio do espelho de Jacques Lacan, e os efeitos subjetivos de-
correntes do circuito pulsional: olhar e voz.

Palavras-chave: Corpo, Imagem, Psicanálise.

Estava cá com meus botões e me dei conta de que havia proposto um título
para o texto, do qual escrevo dois substantivos ligados por um conectivo. Não
há artigos. Assim ficou: Corpo e Imagem. O dito e o escrito me levaram às se-
guintes associações: a ausência dos artigos poderia deixar um espaço vazio.
Algo como: ( ) Corpo e ( ) Imagem. Outra ideia surgiu de chofre: entre corpo e
imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. Decido escrever sobre as
duas ideias surgidas do imponderável. Antes disso, penso que se faz necessá-
rio percorrer alguns passos. Psicanalista, membro da
Freud pretende, quando inventa a psicanálise, no fim do século XIX e associação psicanalítica
de Porto Alegre (APPOA),
início do XX, criar um novo método para responder aos mistérios da íntima
mestre em psicologia pelo
relação entre corpo e mente; ou, como diziam os antigos filósofos: a relação Instituto de Psicologia da
entre corpo e alma. Por quase 40 anos, Freud escutou os pacientes e formulou USP, professor do curso de
Formação em Psicanálise
um campo teórico. O que nos interessa, neste momento, é fazer um recorte a do Centro de Estudos
fim de discutir o que é corpo e o que é imagem para a psicanálise. Para isso, Psicanalíticos (C.E.P)

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artigo – leonardo beni tkacz
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trago as contribuições de Jacques Lacan para essa discussão. invisível talvez pudesse ser descrita da seguinte forma: quando o bebê, no colo
Corpo, para a psicanálise, não é apenas o corpo com as funções bioló- da mãe, escuta a voz que emana dela, ele faz o movimento de giro, por onde
gicas; senão, também, um corpo que se constitui a partir da experiência do o olhar se dirige à melodia entoada. No giro, há o encontro dos olhares. E, se
olhar e a da voz do Outro (ASSOUN, 1999). Explico: Lacan (1949/1998a) influen- uma mãe pudesse lhe dizer algo, nesse instante, por exemplo: “Que bebê mais
ciado pelas pesquisas sobre os efeitos das observações com bebês entre seis e lindo!” A entonação e modulação da voz, e do olhar materno poderiam deixar
18 meses, diante do espelho, elabora uma teoria à qual dá o nome de estádio uma marca psíquica que se inscreveria, como reconhecimento, na textura da
do espelho. Em poucas palavras: o bebê tem, como experiência, a antecipação subjetividade.
completa da própria imagem. Por que antecipação? Porque, nesse período de Um outro exemplo, quando uma mãe pode dizer ao bebê: “Você tem
vida, há incapacidade neurológica para a presciência. E mais: antecipar a ima- olhos que se parecem com os da tia Maria.” Esses olhos não apenas enxergam,
gem permite transpor a condição de um “corpo fragmentado” para um “corpo mas trazem uma inscrição psíquica no corpo. Traço de identificação, como ou-
unificado”. O espelho lhe dá a ilusão da imagem completa. Algo como um “re- tros tantos, todavia um traço primordial que permite a uma criança se cons-
junte” das partes do corpo. tituir em uma cadeia simbólica, cujo efeito a faz pertencer a uma linhagem
Lacan, então, se interessa pelos efeitos subjetivos decorrentes de uma familiar. Reconhecendo a mãe, desse modo, o filho se insere numa história.
experiência especular. Para que esses efeitos possam advir, ele situa o lugar Corpo tocado pela palavra que vem do Outro. Corpo que vai se consti-
materno como um lugar central, como condição necessária para tal experi- tuindo numa história, engendrando alguma imagem. Assim, corpo e lingua-
ência. Por quê? gem são indissociáveis.
Desde o momento da gestação, amamentação e todos os cuidados pri- Quais os desdobramentos do estádio do espelho? Aqui há um acréscimo
mários que o rebento recebe fazem do lugar materno o referente para a existên- fundamental na trajetória de um bebê. Por ora, respondo a questão da seguinte
cia do infans. Um referente que amalgama o corpo biológico e o corpo pulsional. maneira: o olhar e a voz do Outro fazem bordas no corpo. O que isso quer di-
Quando me refiro ao corpo pulsional, isso quer dizer: algumas zonas do corpo zer? Voltemos ao exemplo da amamentação. Vimos que a experiência de satis-
da criança que vão se constituindo como zonas erógenas, que circunscrevem fação engendra uma marca psíquica. Acrescento: só é possível a experiência
algum prazer. Por exemplo: por meio da boca, o bebê suga o seio materno, de de satisfação, quando a zona erógena é contornada por uma “borda” (LACAN,
modo que ele obtém, de um lado, a satisfação da necessidade biológica (a fome 1962-1963/2005). Resulta daí que, a boca, por exemplo, passa a se constituir não
pelo leite) e, por outro, o registro psíquico da experiência de satisfação (o pra- apenas como lugar por onde entram os alimentos; mais ainda, uma zona eró-
zer). Trata-se de um momento quase poético em que o encontro dos corpos gena contornada por uma borda – efeito da experiência com o Outro. Para que
formaria algo como um “corpo para dois”. serve uma borda? Sem dúvida, para circunscrever o prazer; pois, do contrário,
Voltemos ao estádio do espelho. O que Lacan propõe? A imagem que é ocorreria certo transbordamento pulsional. E a consequência seria colocar um
refletida no espelho dá ilusão da completude. Isso porque a mãe é colocada, de corpo em sacrifício. Lembremo-nos dos vários sintomas que alguns sujeitos fi-
forma simbólica, no lugar do espelho. A partir daí, o corpo do bebê é falado, é cam submetidos: dependência química, bulimia, etc.. Esses sintomas aludem
olhado e é tocado. Por conseguinte, alguma imagem pode ser refletida, para o à ideia de que o sujeito acreditaria em um “a mais” de prazer. O transborda-
filho. A imagem do corpo que é inscrita pela voz e olhar materno. A inscrição mento pulsional pavimenta o caminho, por onde transita a pulsão de morte.
é a marca do reconhecimento. Na constituição do corpo de um bebê se faz necessário que a mãe, por
Se pudéssemos registrar uma cena que simbolizasse essa inscrição meio do olhar e da voz, promova as bordas. Aqui há algo central na questão
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artigo – leonardo beni tkacz
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artigo – corpo e imagem 61
do corpo e imagem. Quando me refiro ao olhar e à voz do Outro (a mãe) que Logo, o que o sujeito olha, na imagem, é aquilo que recobre, reveste o
fazendo as bordas no corpo e que, portanto, têm contornos que possibilitam inefável, o indizível. Algo como: o revestimento de uma “mancha” (LACAN,
algum prazer, destaco o algum prazer. Por quê? Porque o prazer implica em 1964/1985). Essa mancha estará nos “espelhos” para lembrar sobre a impossi-
parcialidades e impõe diques ao prazer absoluto. De acordo com Lacan (1969- bilidade de completude entre corpo e imagem.
1970/1998, p.46): A indústria cultural e a sociedade de consumo ajudam a revestir a
“mancha”: as roupas, os acessórios, nos vestem para encobrir aquilo que não
Esse saber mostra aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do traço se dá para mostrar e que produz um suave engano naquilo que se mostra. Essa
unário, para começar, ele vem a ser o meio do gozo - do gozo precisamente é a ideia que está implícita na impossibilidade de uma imagem completa de si.
na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às ten- Há sempre um resto impossível de ser visto. O que se vê, então? Um invólucro
sões usuais da vida. que recobre o assim chamado objeto (resto, mancha, algo inefável).
Certa vez, numa sessão, uma analisanda diagnosticada pelos médi-
Os desdobramentos do estádio do espelho remetem, assim, à conquista cos com obesidade mórbida, indagou-me: “Quando você me olha, o que vê?”
do algum prazer na experiência subjetiva. O prazer, quando circunscrito pelas O enunciado demandava um olhar; que pudesse retornar na forma de uma
bordas do corpo, permite ao sujeito olhar-se diante do “espelho” e ver o que é imagem. Qual imagem possível a ser refletida? O endereçamento da demanda
possível ser visto. Retomo o pensamento que me ocorrera no início do texto: colocava-me numa posição, na qual a resposta retornaria como uma “ima-
entre corpo e imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. gem-verdade”. Pareceu-me que a única “imagem-verdade” que poderia dizer,
Do lugar do Outro, alguma imagem é refletida. Tal que o que se reflete naquele momento, e com todas as implicações envolvidas na resposta: “Uma
deixa o sujeito sem a última resposta esperada: quem ele é e o que o Outro de- mulher.”
manda (LACAN, 1998 b). Portanto, a imagem do corpo nunca será simétrica
ao ideal de completude. Haverá sempre uma falta constitutiva. Lacan (1962-
1963/2005, p.49) ensina: Body and Image

O investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação Abstract: This paper proposes the following discussion: between body and image
imaginária. É fundamental por ter um limite. Nem todo investimento libidi- there will always be something ineffable, unspeakable. To address this, the text
nal passa pela imagem especular. Há um resto. Esse resto, espero ter conse- conceptualizes body and image to psychoanalysis. There after, the shaft runs
guido fazê-los ter uma ideia de por que ele é o pivô de toda a essa dialética... through the theoretical concept of the mirror stage of Jacques Lacan, and the
em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma subjective effects arising from the drive circuit: the look and the voice.
de falta. Em toda a medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de
imagem real, imagem do corpo funcionando na materialidade do sujeito
como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o falo aparece a menos, Keywords: Body, Image, Psychoanalysis.
como uma lacuna.
62 boletim formação em psicanálise
artigo – leonardo beni tkacz
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011

Artigo
Referências
ASSOUN, L.P.. O olhar e a voz: Lições sobre o olhar e a voz. Rio de Janeiro: Com-
panhia de Freud, 1999, 208 p.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, Revisitando Winnicott em companhia
2005, 366 p.
------- (1964). O Seminário livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psica-
de Piaget: apontamentos sobre a
nálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, 269 p. noção de imaturidade egóica[1]
------- (1966-1967). O Seminário livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998, 208 p. Daniel Schor
------- (1998a). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Es-
critos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p.
-------- (1998b). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freu- Resumo: Em suas teorias sobre o desenvolvimento humano, Donald W. Winni-
diano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p. cott e Jean Piaget assumem a existência de uma indiferenciação primordial
entre as noções de si-mesmo e do mundo externo, a qual seria característica
Leonardo Beni Tkacz dos primeiros meses de vida. A partir do reconhecimento do mutualismo com
Rua Pamplona, 1119, cj. 62 que se opera a constituição de ambas as noções, o presente artigo propõe o di-
Jardins
álogo entre ambas as teorias e busca apontar um dos possíveis planos de arti-
(11) 3253-3473
lb.tkacz@terra.com.br culação entre as mesmas.

Palavras-chave: Desenvolvimento; Piaget; Winnicott; Cognição; Integração.

Em meio ao conjunto dos principais teóricos da psicanálise pós-freudiana,


Donald W. Winnicott foi, certamente, o autor que levou ao extremo o alcance
da noção de desenvolvimento em sua leitura dos fenômenos clínicos. Em sin-
tonia com a tradição freudiana, e com a kleiniana, o psicanalista mantinha o
ponto inicial de suas investigações nas mais incipientes formas de relaciona- Mestre em Psicologia pelo
mento entre a criança e o mundo. No entanto, Winnicott dava um passo além Instituto de Psicologia
da USP; Coordenador
Técnico do CAPSi do
1. O presente trabalho é fruto de pesquisa de mestrado realizada com o financiamento do CNPq. município de Osasco

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da tradição que o precedia na busca pela origem das psicopatologias ao afirmar winnicottiana esteve voltada para o entendimento do que poderia garantir
que sequer a diferenciação entre o bebê e o mundo poderia ser tomada como ao ser humano, seja pelos cuidados maternos, seja pela clínica, a possibilidade
um fato óbvio. Tratava-se de uma abordagem cujo foco estava colocado sobre de vir a existir como tal. Entretanto, afirma o autor que, para que venha a exis-
o estágio anterior àquele em que “o bebê já é capaz de mostrar, através de seu tir, um ser humano precisa de
brincar, que ele compreende que tem um interior, e que as coisas vêm do ex-
terior” (WINNICOTT, 1945/2000, p. 221). [...] auxílio no sentido de alcançar um status unitário, ou um estado de inte-
Quando se consideram as contribuições de Winnicott à psicanálise, gração espaço-temporal onde exista um eu (self), que contém tudo, ao invés
deve-se inevitavelmente levar em conta seu ponto de vista a respeito do que de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e aban-
foi por ele denominado como desenvolvimento emocional primitivo. Tal de- donados. (WINNICOTT, 1971/1975, p. 98)
nominação estaria, segundo o autor, referida ao momento anterior à possibi-
lidade de se assumir a existência de relações objetais propriamente ditas, a Eis aí a descrição de um processo intimamente relacionado, como ve-
partir das quais já seria possível admitir uma verdadeira relação do bebê com remos, àquele que, em 1937, havia sido denominado por Jean Piaget como A
a realidade externa. Nesse estágio primitivo, diz ele, construção do real na criança. Tendo como foco inicial a compreensão das bases
psicológicas do desenvolvimento da racionalidade humana, A construção do
[...] o objeto comporta-se de acordo com leis mágicas, ou seja, existe quando real inaugurava um ponto de vista que jamais seria abandonado ao longo da
desejado, aproxima-se quando nos aproximamos e fere quando o ferimos. Por obra de Piaget, o qual viria a transformar o campo dos estudos até então pro-
fim, desaparece quando não mais o desejamos. (WINNICOTT 1945/2000, p. 228) duzidos sobre a inteligência humana.
Na referida obra, Piaget (1937/2002, p. 19) se propunha a investigar o que
Comportando-se “de acordo com leis mágicas”, o lugar do objeto esta- entendia como sendo uma “elaboração contínua do universo exterior”, eluci-
ria se confundindo com o do próprio sujeito, pois “neste caso o objeto ou am- dando o caminho pelo qual a criança obteria uma compreensão dos objetos
biente é tão parte do eu quanto são os instintos que o conjuram”, ou seja, “o e leis que habitam o meio. Nessa linha, o autor descrevia o que denominava
indivíduo vive num ambiente que é ele mesmo [...]” (WINNICOTT, 1945/2000, como uma passagem do caos ao cosmo. Ao nascimento, dizia ele, a criança se
p. 231). Tal ideia implica que a criança não possuiria ainda uma perspectiva depara com um universo habitado por objetos evanescentes (que desaparecem
própria, distinta, um lugar de onde avaliar as coisas. quando fora de seu campo perceptivo), com tempo e espaço subjetivamente
Cremos que seja nesse sentido que Winnicott afirma que o ego, defi- sentidos e uma causalidade onipotente porque reduzida ao poder das ações.
nido por ele como a parte da personalidade que tende a se integrar em uma Pelo fim do período chamado de sensório-motor, ao contrário, ela já se poderia
unidade, advém somente “depois que a criança começou a usar o intelecto para conceber dentro de um cosmo, com objetos, tempo, espaço e causalidade ob-
examinar o que os demais veem, sentem ou ouvem e o que pensam quando se jetivados e interligados. Desse modo, ela já se poderia situar como um objeto
encontram com esse corpo infantil” (WINNICOTT, 1962/1983, p. 55). Ora, “exa- entre outros objetos, agente e paciente dos eventos em redor.
minar o que os demais veem” implica, mesmo que inicialmente de maneira A rigor, pode-se dizer que o que Piaget começava a produzir em A cons-
muito rudimentar, saber-se como um “eu” que apenas assume um ponto de trução do real na criança era uma teoria de alcance ainda imprevisível, e a partir
vista entre outros. da qual, falar em inteligência, passava a implicar um questionamento acerca da
Seguramente, é possível afirmar que boa parte da teorização própria maneira como a criança seria capaz de se situar em um meio ambiente.
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Dito de outro modo, a “inteligência piagetiana” era uma cujo desenvolvimento Entende-se, portanto, que a criança da referida fase ignora que seu corpo
estaria diretamente ligado à forma como a criança, ao longo da vida, poderia se encontre no mesmo espaço que um determinado elemento móvel. Os mo-
conceber a natureza das relações estabelecidas entre ela e o mundo, bem como vimentos de um objeto se confundem, em sua consciência, com suas próprias
sua própria posição em relação a ele. Diz o autor: impressões cinestésicas e proprioceptivas que acompanham seus movimen-
tos oculares, de cabeça ou de tronco.
Em realidade, por um mecanismo em aparência paradoxal, cujo análogo a res- Segundo Piaget (1937/2002, p. 117), para que a criança reconheça a mu-
peito do egocentrismo do pensamento da criança mais velha descreveremos, dança de posição de determinado objeto, precisa “conceber o universo exterior
no momento em que o indivíduo está mais centrado em si-mesmo é que ele menos como sólido, isto é, composto por objetos substanciais e permanentes, sem o
se conhece; e, na medida em que ele se descobre, é que se situa em um universo e o que o ato de encontrar um quadro deslocado se confundirá, na consciência do
constitui por essa mesma razão. Em outras palavras, egocentrismo significa, ao indivíduo, com o ato de recriá-lo”. O universo é, aqui, algo que se desfaz e se
mesmo tempo, ausência de consciência de si e ausência de objetividade, en- reconstitui sem cessar e, por isso, acompanhar um objeto que se move é con-
quanto a tomada de posse do objeto como tal caminha lado a lado com a to- fundido com produzi-lo ou fazê-lo durar.
mada de consciência de si. (PIAGET, 1937/2002 p. 21; grifos nossos) Tratamos, assim, de um momento da vida em que a consciência de
si estaria restrita à sensação de poder recuperar, graças a certos atos globais,
Bem, mas o que poderia implicar a ideia de que o indivíduo somente se quadros perceptivos exteriores que, no entanto, não possuem uma relação es-
descobre na medida em que constrói para si próprio a noção de um universo tável entre si, nem com o indivíduo. Dessa forma, diz Piaget (1937/2002, p. 221),
externo? Precisamente, que, no início de sua existência, o indivíduo não existe “não há, originalmente, mundo exterior nem mundo interior, mas um universo de
por sua própria consciência, e menos ainda se situa no espaço. ‘apresentações’, cujos quadros estão carregados de qualidades afetivas, cinestésicas
A partir dos estudos cujas conclusões vieram compor A construção do e sensório-motoras, tanto quanto de qualidades físicas” (grifos nossos). Esse uni-
real na criança, Piaget passaria a defender arduamente a tese de que, no início verso primitivo constitui, por conseguinte, tanto o “eu” da criança quanto o
da vida, as coisas apenas se ordenariam espacialmente para o sujeito em sua objetivo de suas ações.
ação imediata e só se fariam permanentes em função dessa ação. Nessa me- Tudo isso nos leva a assumir que certas qualidades de experiências
dida, a criança não seria capaz de dissociar suas ações das próprias coisas. O estão diretamente atreladas aos limites de organização do real conferidos por
processo de assimilação do mundo externo estaria, assim, englobando em um uma determinada estrutura cognitiva. Ao revelar os contornos de uma determi-
ato único os dados da percepção exterior e as impressões internas de natureza nada estrutura de pensamento ou de apreensão do real, Piaget é, como vimos,
afetiva, cinestésica, etc.. incapaz de escapar à inferência de estados subjetivos aos quais tais estruturas
Dessa maneira, a existência efetiva do objeto permaneceria subordi- estão necessariamente associadas.
nada à percepção, o que significa que o universo continuaria sendo, para o su- Contudo, se a tese defendida por Piaget em A construção do real na criança
jeito desse estágio, um conjunto de quadros que saem do nada no momento está correta, deve-se assumir, necessariamente, que os estudos sobre a cons-
da ação para a ele retornarem com a extinção desta. Assim, quando a criança tituição do indivíduo também terão muito a dizer sobre a evolução de suas
encontra, por exemplo, o bico do seio, o que ela reconhece não é o bico do seio, capacidades na assimilação do mundo externo. Eis aí, enfim, o motivo pelo
mas “uma certa relação entre o objeto e ela própria, um quadro global no qual qual acreditamos que a teoria psicanalítica de Winnicott sobre os processos
intervém todas as sensações ligadas ao ato em curso” (PIAGET, 1937/2002, p. 101). de integração e de personalização do desenvolvimento inicial reconhece que
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estes são aspectos inextricavelmente ligados à apreensão que o bebê realiza percebidos objetivamente, ou de objetos ‘não-eu’.
do mundo em seu redor.
Segundo Piaget (1937/2002 p. 118), Piaget, por sua vez, entende que até o quinto estágio da inteligência
sensório-motora, a atividade da criança é por esta concebida como um centro
[...] para uma inteligência que não distingue um mundo exterior formado de produção dos movimentos do universo. Essa atividade será, aos poucos, li-
por objetos substancias de um mundo interior ligado ao próprio corpo, as mitada em seu poder por ações independentes do eu (que começará a se dis-
impressões de todo tipo que emanam desse corpo podem ser ligadas aos mo- tinguir do mundo entre outras coisas por efeito dessa limitação) e submetida a
vimentos percebidos, quaisquer que sejam eles: a partir desse momento, o in- pressões que emanam do universo externo. Se até então a criança tão somente
divíduo não conseguirá saber quando são as coisas que se deslocam e quando comandava a natureza, aos poucos passará a obedecê-la. Nos termos de Win-
é apenas ele [...] nicott (1963/1983, p. 83), trata-se do momento em que

Ora, curiosamente, Winnicott (1945/2000, p. 223) ressalta que: [...] o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha
indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de simplesmente fi-
A localização do eu no próprio corpo é muitas vezes tida como óbvia, mas uma car excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar
paciente psicótica em análise deu-se conta de que, na infância, ela achava a esperar.
que sua irmã gêmea no assento ao lado do carrinho era ela mesma. E até se
surpreendia quando alguém pegava a sua irmã no colo e ela ficava parada Para ambos os autores, em suma, a consolidação do universo consiste
onde estava. Sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não tinha se desenvol- em uma eliminação gradativa do egocentrismo inconsciente inicial e na ela-
vido. (grifos nossos) boração de um mundo no seio do qual se situa, finalmente, o próprio indiví-
duo. Dessa forma, pode-se assumir que, segundo ambas as teorias, a criança se
Do ponto de vista de Piaget, da mesma maneira que as qualidades per- constitui como uma subjetividade e se reconhece como tal na exata medida em que
cebidas de fora não são ainda concebidas como objetos permanentes externos concebe a existência de um mundo objetivo, ou vice-versa, sem que se possa atri-
situados no espaço, impressões de esforço, expectativa e satisfação não podem buir qualquer precedência de um desses polos em relação ao outro. Safra su-
ser ainda atribuídas a um indivíduo substancial, interno, situado na consci- gere uma ideia semelhante a essa ao afirmar que “no ato de conhecimento, o
ência. Temos, portanto, que tanto na perspectiva de Winnicott quanto na de sentido do mundo e o sentido de si-mesmo estão necessariamente em ques-
Piaget, o bebê de poucos meses ainda estaria longe de atribuir suas intenções tão. A possibilidade de abordar, de recortar o mundo, está intimamente ligada
e poderes a um eu concebido como diferente do não-eu e oposto ao universo à minha constituição enquanto ser recortado” (informação verbal)[2].
exterior: ambos ainda formariam um único e mesmo conjunto. O mutualismo que acabamos de apontar entre a constituição da noção
Na visão de Winnicott (1962/1983, p. 56): de si-mesmo e do mundo externo nos leva, então, a admitir a possibilidade de
um diálogo entre teorias com propósitos bastante distintos, provenientes de
O bebê pode chegar de vez em quando ao princípio de realidade, mas nunca
em toda parte de uma só vez; isto é, o bebê mantém áreas de objetos subjeti- 2. Nota do curso Perspectivas Epistemológicas em Psicologia Clínica e Psicanálise, ministrado no
vos juntamente com outras em que há algum relacionamento com objetos Instituto de Psicologia da USP no segundo semestre de 2006.
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diferentes tradições do pensamento psicológico. Mais do que isso: pensamos experiência. Não havia ego suficiente. (NEWMAN, 1995, p. 61, tradução nossa[3])
que, nesse caso, uma teoria passa, necessariamente, a colocar problemas para
a outra, fato que, em tese, as impediria de simplesmente coexistirem pelo ar- Em 1963, Winnicott (1963/1994, p. 70) reuniu em um artigo o que vinha
gumento de que se referem a “coisas diferentes”. encontrando em seu trabalho diário, ao longo dos anos, com pessoas que so-
Se assumimos a existência de uma ligação constitutiva entre os cami- friam do que ele chamou de “medo do colapso”. Embora o título do artigo possa
nhos de objetivação e de subjetivação traçados pelo ser humano desde o nasci- dar a impressão de se referir a algo muito específico, o autor justifica o uso do
mento, pode-se questionar até que ponto poderá haver entrecruzamentos entre termo “colapso” justamente por seu caráter vago, podendo significar uma va-
esses caminhos, tais como concebidos pelos autores que abordamos. Nosso riedade de coisas, e ressalta que “um estudo desta área limitada conduz a um
intuito na parte seguinte deste artigo será, pois, justamente, o de apontar um reenunciado de diversos outros problemas que nos intrigam quando fracassa-
dos planos em que se poderia promover entre tais sistemas teóricos uma par- mos em nos sair tão bem clinicamente quanto queríamos fazê-lo”.
ceria no enfrentamento de questões relativas à elucidação do universo infantil. O intuito do artigo, diz Winnicott (1963/1994, p. 74), é chamar a atenção
Cremos que esta proposta se justifica pela possibilidade de que sua re- para a “possibilidade de que o colapso já tenha acontecido, próximo do início
alização contribua para ampliar a margem de diálogo entre diferentes teorias da vida do indivíduo”. Tratar-se-ia de um fato que o paciente carrega consigo,
do desenvolvimento, o que parece se tornar cada dia mais necessário, tanto do escondido no inconsciente, mas, neste contexto especial, o inconsciente quer
ponto de vista clínico quanto educacional, ou mesmo, puramente teórico. Por dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. O ego é imaturo de-
uma série de razões que envolvem fatores históricos, institucionais e episte- mais para reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal.
mológicos, os achados de teóricos fundamentais da psicanálise e da psicologia, Entretanto, questiona o autor, por que o paciente continua a preocupar-se com
de modo geral, foram levados a se organizar dentro de áreas do saber conside- isto que pertence ao passado? Porque a experiência, responde, não pode cair
radas radicalmente distintas, fazendo com que muitas das intersecções e cor- no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e
relações possíveis entre suas ideias jamais fossem consideradas. A ampliação atual experiência temporal e do controle onipotente agora. Ou seja, o paciente
desses diálogos se faz ainda mais necessária na medida em que a prática nos tem de continuar procurando este detalhe passado que ainda não foi experien-
diversos contextos do trabalho com crianças vem aproximando cada vez mais ciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro.
conhecimentos produzidos por diferentes tradições do pensamento psicoló- Segundo Figueiredo (1998), Medo do Colapso é um dos trabalhos funda-
gico. A ideia do presente trabalho parte também, portanto, da necessidade imi- mentais que nos obrigam a repensar a noção, ainda muito arraigada em boa
nente de que esse compartilhamento de espaços venha a produzir uma troca parte do pensamento psicanalítico, de experiência como presentidade, segundo
efetiva de saberes, ao invés de admitir mera coexistência ou meras disputas a qual o que se experimenta é aquilo que se dá em presença. De acordo com
teórico-institucionais. esta noção, o passado seria aquilo que aconteceu, no sentido do que foi presente
outrora, e o futuro é o que acontecerá, no sentido do que virá a ser presente.
A temporalidade na experiência do colapso iminente Tendo como pressuposto esta concepção, muitos psicanalistas assumem que

[...] ‘medo patológico do colapso é o medo de um colapso que já foi experien-


3. […] clinical fear of breakdown is a fear of a breakdown that has already been experienced’. But there is a
ciado’. Mas há aí um paradoxo, pois o bebê era muito pequeno – ‘não havia paradox because the baby was too small – ‘there was not enough baby’ – fully to call it an experience, a full
bebê suficiente’ – ao menos para chamar isto de experiência, uma completa experience. There was not enough ego.
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a tarefa da análise seria a de “reorganizar fatos dentro de um todo dotado de Segundo Winnicott, embora o colapso temido pelo paciente já tenha
significado”[4] (RICOEUR, 1977, p. 861; tradução nossa), o qual constituiria uma sido por ele experienciado no passado, ele não o foi verdadeiramente, pois, na
história contínua e singular, tecendo assim tramas que se estenderiam sem se época, “não havia bebê suficiente”, ou seja, o ego desse paciente era, e de certa
romper e garantindo ao presente uma continuidade, durabilidade e extensão. maneira continuou sendo, incapaz de abranger algo da experiência. Frente a
Ou seja, para muitos, a análise consistiria no tecimento de estruturas narra- isso, cabe questionar: quais seriam, então, as condições necessárias para que o
tivas, através das quais se poderia dar ao passado e ao futuro uma certa reali- ego fosse capaz de abranger a experiência? O que (ou a falta de que), na cons-
dade, na medida em que elas reuniriam, em seu próprio presente, a memória tituição e nas características gerais desse ego, faz dele “imaturo demais para
presente do passado e as expectativas presentes do futuro, “costurando-as ao reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal”? Aliás,
presente presente de uma visão imediata”. (FIGUEIREDO, 1998, p. 9) o que significa exatamente reunir a experiência “dentro de sua própria e atual
No entanto, diz Figueiredo, (1998, p. 11) experiência temporal e do controle onipotente”?
Supomos que, se uma experiência é traumática, ou seja, se tem o status
[...] a presentidade deixa de ser o fundamento da experiência quando o fora de um “‘acontecimento inconcluso’, após o qual não pode sobrevir uma recom-
do tempo – o extemporâneo – em todas as suas figuras, é reconhecido como posição do sentido e da história”, isto se deve tanto a vicissitudes do ambiente
parte constituinte e indissociável de tudo o que se dá como ‘atualidade vivida’. (gri- quanto às condições do ego que a vivencia. Por exemplo: passar fome ou frio
fos nossos) por mais de uma hora pode ser insuportável ou mesmo enlouquecedor para
um bebê de meses de idade, mas, espera-se, não para uma pessoa de vinte anos.
Esse “extemporâneo” diz respeito aos efeitos devastadores do trauma Se é assim, há que se questionar que diferenças pode haver na constituição
que abre feridas incuráveis quando destrói até mesmo os recursos autorrege- egóica de um e de outro que fazem com que a mesma experiência possa ser
nerativos do psiquismo. Seguindo, neste ponto, o pensamento de Winnicott, para um enlouquecedora e para o outro um fato corriqueiro.
Figueiredo (1988) fala de traumas como não-fatos, não-acontecidos, “aconte- Aqui é fundamental frisar que estamos tratando de uma condição, e
cimentos inconclusos” após os quais não pode sobrevir uma recomposição do não de uma garantia. Certamente, devemos levar em conta a possibilidade de
sentido e da história. Ora, mas para pensar esta experiência que, paradoxal- que, por uma infinidade de razões, um adulto também não seja capaz de lidar
mente, se passa com o indivíduo antes da possibilidade de algo ser experimen- de maneira relativamente tranquila com tais situações. Entretanto, diferente-
tado – dele ser o bastante para experimentar algo, a noção corrente de experiência mente do adulto, o bebê com certeza não possui os recursos necessários para
como presentidade não basta. A questão seria: organizar sozinho essas experiências, e estará plenamente vulnerável em meio
a elas a menos que outra pessoa esteja presente e possa lhe fornecer de fora as
Como conceber uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de condições para tanto. Ao contrário do bebê, o adulto provavelmente é alguém
fato não aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela capaz de saber que a dor começa e termina; que a fome não é um estado infi-
primeira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer? (FIGUEIREDO, nito de angústia generalizada; que a figura cuidadora saiu, mas não deixou de
1998, p. 11; grifos nossos) existir. Para o adulto, é possível compreender que essa figura vai voltar por-
que ele sabe que, se não a vê no momento presente, é porque ela se encontra
agora num outro lugar. Ou seja, diferentemente do bebê, ele é capaz de conceber
4. [...] ‘reorganize facts into a meaningful whole which constitutes a single and continuous history […]’ um “outro lugar” fora de seu campo perceptivo.
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Em nosso entendimento, as razões disso não são, absolutamente, ób- fenômenos exteriores nem de situar a sua própria duração na das coisas, de avaliar
vias. Frente a isso, nossa aposta é a de que é possível encontrar na obra de Jean a extensão dos intervalos; só está em condições de perceber a sucessão elementar das
Piaget elementos fundamentais para que ampliemos nossa compreensão so- suas ações já organizadas. (PIAGET, 1937/1975, p. 313, grifos nossos)
bre os fenômenos descritos por Winnicott em seu referido trabalho e, conse-
quentemente, sobre as formas com que experiências muito precoces podem Bem, apenas isto já nos traz uma série de elementos cuja consideração
ser determinantes da constituição subjetiva. parece crucial na tentativa de responder às questões colocadas por nós ante-
No último capítulo de A construção do real na criança, intitulado “O riormente. Se concordarmos com Piaget quanto ao fato de que tempo e espaço
campo temporal”, encontramos a seguinte afirmação de Piaget (1937/1975, p. já estão dados, de certa forma, em toda percepção elementar, o que significa
299): “O tempo confunde-se, pois, no seu ponto de partida, com as impres- dizer que toda percepção dura, assim como toda percepção é extensa, já temos
sões de duração psicológica inerente às atitudes de expectativa, de esforço e um enorme ganho no entendimento de por que o ego de um bebê de meses
de satisfação, em resumo, à atividade do próprio sujeito.” Segundo o autor, essa de idade, com uma temporalidade e uma espacialidade organizadas conforme
duração será, ao longo do desenvolvimento, relacionada cada vez mais estrita- a descrição de Piaget, poderá ser, dependendo da situação a que for exposto,
mente com os eventos do mundo exterior. Entretanto, no seu ponto inicial, o imaturo demais para abarcar a experiência.
tempo ainda não é uma categoria de estruturação objetiva do universo como Agora, tendo em mente tais considerações, propomos atentar para as
tal: a sucessão dos atos do sujeito ainda não se insere como sucessão consu- seguintes declarações de Winnicott (1971/1975, p. 135):
mada numa série de acontecimentos recordados, o que permitiria constituir
a história do meio ambiente. Ao invés disso, essa história permanece incoerente Talvez valha a pena tentar formular isto de uma forma que dê ao fator tem-
e fragmentada, e seus fragmentos continuam agarrados à ação presente, concebida poral seu devido peso. O sentimento da existência da mãe dura x minutos.
esta como realidade única. Mais adiante, o autor afirma, referindo-se ao bebê de Se a mãe fica ausente por mais de x minutos, então sua imagem some, e com
menos de 11/12 meses: isso a capacidade do bebê de usar o símbolo de união também some. O bebê
está angustiado, mas essa angústia é logo reparada porque a mãe retorna em
[...] sua memória – portanto, a sua percepção do tempo – continua, segundo x + y minutos. Em x + y minutos o bebê não ficou alterado. Mas em x + y + z
nos parece, inteiramente sujeita aos seus gestos práticos, como quando procu- minutos o bebê ficou traumatizado. Em x + y + z minutos o retorno da mãe
ramos o nosso relógio no bolso, depois de o termos deposto ainda há instantes não repara o estado alterado do bebê. Trauma implica que o bebê experien-
sobre a mesa. Com efeito, se a nossa memória só funcionasse como neste úl- ciou uma quebra na continuidade de vida, de forma que defesas primitivas fi-
timo exemplo, não possuiríamos espaço organizado nem objetos: o universo caram agora organizadas para defender contra uma repetição da “ansiedade
seria para nós o mesmo que é para a criança da presente fase: um mundo de impensável” ou contra um retorno do estado confusional agudo que pertence à
reações polarizadas e não de eventos ordenados no espaço e no tempo. (PIAGET, desintegração da estrutura egóica nascente.
1937/1975, p. 311; grifos nossos)

E conclui: Devemos assumir que a grande maioria dos bebês nunca experienciou a quan-
tidade x + y + z de privação. Isso significa que a maioria das crianças não car-
[...] a criança da presente fase ainda não é capaz de reconstituir a história dos rega consigo pela vida o conhecimento da experiência de enlouquecimento.
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Loucura aqui significa simplesmente uma quebra no que quer que possa exis- que poderia aparecer na mente do indivíduo pertencente a estágios mais de-
tir durante a continuidade pessoal de existência. Depois de se “recuperar” de senvolvidos se pudesse ocorrer uma rememoração de uma época em que só
x + y + z de privação um bebê tem de começar de novo permanentemente houvesse o que, de fora, chamaríamos de presente?
privado das raízes que poderiam prover continuidade com iniciação pessoal.
Isso implica a existência de um sistema de memória e de uma organização de me- Segundo Winnicott, a experiência não aconteceu porque o ego do bebê
mórias. (grifos nossos) não foi capaz de reuni-la “dentro de sua própria e atual experiência temporal
e do controle onipotente”. Bem, talvez essa incapacidade refira-se, justamente,
Ora, ao que nos parece, as declarações dos dois autores são bastante ao fato de que determinados acontecimentos do mundo externo (uma ausên-
compatíveis. As conclusões piagetianas sobre a forma de organização do uni- cia muito prolongada da mãe, experiências de dor, fome, frio, etc.) incidiram
verso infantil nos fornecem parâmetros a partir dos quais as afirmações de sobre o bebê numa época e em que, por exemplo, a história do meio ambiente
Winnicott tornam-se, de nosso ponto de vista, muito mais inteligíveis. Se, para permanecia, para ele, incoerente e fragmentada, de forma que ele não podia
um bebê de menos de 11 ou 12 meses, a história do meio ambiente permanece ainda reunir os eventos numa série de acontecimentos recordados. Se uma ex-
incoerente e fragmentada; se os fragmentos dessa história continuam agarra- periência intensa de angústia e desprazer ocorre num momento da vida em
dos à ação presente, concebida esta como realidade única; se ele ainda não é que as condições cognitivas são de tal ordem, poderíamos dizer que ela é trau-
capaz de reconstituir a história dos fenômenos exteriores nem de avaliar a ex- mática justamente na medida em que extrapola essas condições.
tensão dos intervalos; se só está em condições de perceber a sucessão elemen- Assim sendo, cremos que “conceber uma ‘experiência passada’ irrecu-
tar das suas ações já organizadas; se, enfim, a sucessão dos eventos em geral perável pela memória – porque de fato não aconteceu” implica, em grande me-
não pode ainda se inserir, para ele, como sucessão consumada numa série de dida, em compreender as condições cognitivas a partir das quais ela foi vivenciada.
acontecimentos recordados, abre-se uma cortina para compreendermos por Prosseguindo nessa linha de raciocínio, diríamos, muito a grosso modo (pois
que é que um bebê exposto a x + y + z de privação “tem de começar de novo esta é uma afirmação que certamente demandaria um detalhamento muito
permanentemente privado das raízes que poderiam prover continuidade”, e maior), que fazer com que ela acabe de acontecer ou possa ser vivida pela pri-
por que é que a angústia vivenciada por ele pode ser verdadeiramente impen- meira vez implica em re-significá-la a partir das condições atuais de organi-
sável, angústia essa que, segundo Winnicott, dará origem às organizações de- zação do universo. Isto, no entanto, constitui um novo e imenso problema, o
fensivas que chamaremos de psicóticas. qual deverá ser abordado em uma nova ocasião.
Tendo em mente as considerações de Piaget, podemos agora retornar
à questão de Figueiredo, colocada no início deste item, sobre “Como conceber
uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de fato não Revisiting Winnicott in Piaget’s company:
aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela pri- notes on the notion of ego immaturity.
meira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer?”, e comple-
mentá-la com uma outra, trazida por Telles (1997, p. 170):
Abstract: In their theories about human development, Donald W. Winnicott
Que tipo de memória poderia haver sobre algo que tivesse sido armazenado, and Jean Piaget assume the existence of a primordial indifferentiation between
por exemplo, fora de um continuum espaço-temporal (ainda não formado)? O the notions of self and external world, which would be characteristic of the first
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artigo – daniel schor
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artigo – revisitando winnicott em companhia de piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica 79
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80 boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011

Entrevista
artigo – daniel schor

Bernard Penot
Gabriela Malzyner

Introdução
Bernard Penot é membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris. Foi mé-
dico diretor do Hospital dia para adolescentes, CEREP- MONTSOURIS, Paris,
França de 1988 a 2004. Autor de diversos livros publicados no Brasil e na França
como: “A paixão do sujeito Freudiano”, “Figures du Deni”.
O CEREP (Centro de Readaptação Psicoterapêutico) Montsouris é um
hospital dia para adolescentes que tem como principal referencia teórica a psi-
canálise e o trabalho multidisciplinar. Voltado para o publico de 12 a 20 anos
com problemas psiquiátricos, mas sem comprometimentos intelectuais. O
Hospital busca ser um espaço de convivência terapêutico e de aprendizagem;
visando a integração social e também um projeto terapêutico individual a
cada sujeito.
Em 2009 tive a oportunidade de trabalho por 10 meses no CEREP Mont-
souris e foi a partir desta experiência que surgiu a curiosidade de entrevistar
Bernard Penot. Há reuniões semanais no CEREP com toda a equipe que atua
junto aos adolescentes, onde são discutidos casos e levantadas questões. Busca-
-se um espaço de compreensão e reflexão. Em diversos momentos, ao questio-
nar a atuação ou até mesmo a forma como compreendiam o caso, a resposta
Psicóloga; psicanalista;
que me era dada começava com: Penot afirma que a transferência se dá através
membro do Departamento
de todos os membros que atuam na equipe, a compreensão de um caso é sem- Formação em Psicanálise do
pre vista pela junção das visões dos membros da equipe multidisciplinar. Essa Instituto Sedes Sapientiae;
supervisora da clínica da
entrevista surge então como possibilidade de dialogar com aquele que fundou Universidade São Marcos;
as bases do trabalho que é realizado até hoje neste hospital dia. membro efetivo da CEPPAN.

boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011 81


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entrevista – gabriela malzyner
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entrevista – bernard penot 83
A entrevista foi concedida no consultório particular de Bernard Penot, Os pacientes do nosso CEREP eram, principalmente, adolescentes psi-
à Gabriela Malzyner, em 29 de janeiro de 2010. cóticos. A princípio, antigas psicoses infantis que haviam tido uma boa evolu-
ção, mas para quem a adolescência constituiu uma prova importante, de modo
Entrevista que eles tinham necessidade de serem re-hospitalizados na adolescência; e,
Gabriela Malzyner: Na entrevista que o senhor deu em 1999 para a revista ainda, outras psicoses manifestadas na adolescência sem terem sido detectadas
Percurso, o senhor falou da importância da pesquisa na psicanálise, a partir do durante a infância. Nós criamos, então, esse dispositivo de pesquisa marcado
seu trabalho no Hospital dia- CEREP Montsouris. O senhor poderia nos falar por uma dominante da ótica psicanalítica. Ou seja, ainda que a equipe fosse
um pouco do que considera ser pesquisa em psicanálise? completamente multiprofissional, já que comportava psiquiatras, psicólogos,
Bernard Penot: Bem, há várias maneiras, evidentemente, de se fazer pesquisa educadores e, também, artistas, professores. Entretanto, você mesma pode no-
em psicanálise. Um psicanalista que trabalha sozinho, classicamente, com o tar, já que chegou a uma síntese, ainda que cada um conserve sua identidade
divã e a poltrona, pode, é claro, ter espírito de pesquisador. Esse foi o caso do profissional e seu próprio modo de abordagem ainda assim, fizemos um tra-
próprio Freud, que nunca fez outra coisa senão o que se chama “cures type”, e, balho psicanalítico em conjunto, porque nos esforçamos em determinar junto
no entanto, ele foi, certamente, um grande pesquisador. Ele desenvolveu todo o que em psicanálise chama-se: transferência. É isso. Bem, isso é uma palavra
seu dispositivo teórico a partir de sua prática do divã, sempre com essa ideia mestra, evidentemente. E o paradoxo de uma pesquisa desse tipo é que ela tem
de base que é a experiência que deve ditar a teoria (nunca a ideologia). Ele era um caráter incontestavelmente psicanalítico, ocupando-se em apanhar uma
então muito experimentalista e pudemos efetivamente vê-lo modificar sua forma particular de transferência: a transferência que um psicótico pode fa-
teoria à medida da experiência que adquiria da cura. Assim, quando ele foi de zer para várias pessoas.
encontro à reação terapêutica negativa, por exemplo, depois de 1920, desenvol- É claramente um processo psicanalítico já que está centrada no fenô-
veu uma teoria que pudesse dar conta disso. É exatamente isso que podemos meno absolutamente básico e específico da teoria psicanalítica que se chama
chamar de pesquisa, mesmo se, claro, isso não tenha a mesma objetividade transferência. Lacan tinha uma fórmula que acho bem justa. Ele dizia que o que
que uma pesquisa no campo da física, por exemplo, ou da química: já que em especifica o ato do psicanalista é, primeiro e antes de tudo, “suportar a trans-
psicanálise trabalhamos com material subjetivo e com um instrumento sub- ferência”. Então, é uma fórmula incompleta porque se o fato de se ocupar da
jetivo, a psique do analista! transferência, de suportar a transferência, é, efetivamente, o que caracteriza
Então fica a pergunta: Pode-se fazer pesquisa científica no campo do a psicanálise em relação a outras formas de psicoterapia (comportamentais,
subjetivo? Ou seja, tendo a subjetividade como objeto e um instrumento de cognitivas, de suporte do eu...), acredito que essa fórmula é incompleta. E aqui,
observação subjetivo. Veja, eu também faço isso, claro; sou psicanalista com evidentemente, nos deparamos com um defeito maior de Lacan, aquilo sobre o
um divã, no meu consultório. Mas o que falei para Percurso, e sobre o que você que ele é, em minha opinião, criticável: é que não se trata apenas de suportar a
vem me perguntar hoje, diz respeito à pesquisa psicanalítica em grupo – uma transferência, nem tampouco de utilizá-la, é preciso também conseguir inter-
pesquisa conduzida em um quadro institucional. Criamos, efetivamente, no pretá-la, elucidá-la, torná-la perceptível para o interessado, ou seja, o paciente.
CEREP Montsouris, um instrumento coletivo, um instrumento institucional, a
saber, este hospital dia que nos permitia conduzir uma pesquisa sobre registros GM: Pelo paciente?
diferentes daqueles que tratamos em uma cura psicanalítica clássica. Fizemos BP: Pelo paciente! Quer dizer que em uma cura psicanalítica, você não ape-
uma pesquisa que se poderia dizer nos limites da psicanálise. nas suportar a transferência do seu paciente, você tenta também, suavemente,
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pouco a pouco, com suas intervenções, suas explicações, suas interpretações, são, a priori, frequentemente desagradáveis, perturbadores, mais ou menos di-
que o paciente capte, ele mesmo, alguma coisa, que consiga realizar mental- fíceis de suportar; e há também as transferências que são destruidoras, muito
mente o que acontece, de maneira que ele mesmo se aproprie disso. Utilizo carregadas de agressividade, por exemplo. Então, nossa experiência particu-
aqui um termo que gosto bastante – ainda que seja considerado estranha- lar, no CEREP, começou desde os anos 1970. Nós percebemos que, desde que
mente como não ortodoxo na Associação Psicanalítica Internacional – e que um adolescente recentemente admitido começava a investir no hospital dia,
é o termo de subjetivação. Parece-me que o objetivo central do psicanalista é o e a aceitar que o hospital dia a equipe, investisse nele, é bem o primeiro sinal
de chegar a que seu paciente consiga subjetivar sua transferência. Ou seja, que desse investimento era que íamos nos encontrar, nós, as pessoas da equipe en-
parede se contentar com o agir, indefinidamente, assim em sua vida e tam- carregadas mais diretamente desse adolescente, em relações muito estranhas,
bém na relação psicanalítica, de se contentar de ali operar uma transferência. muito surpreendentes. Digo “nós”, pois o fenômeno pode implicar cada um,
Mas que consiga subjetivá-la no sentido de se apropriar dela, de se apropriar não importa sua profissão – seja professor, terapeuta, artista, ou o que quer que
dela mentalmente, de fazer dela seu negócio e, rapidamente, ser capaz de en- seja... Digamos que a transferência não escolhe a função!
contrar um meio para agir sobre isso. Mas isso supõe também se deixar fazer Então, nos colocando a falar uns com os outros sobre tal adolescente,
suficientemente pela transferência. É toda a riqueza ambígua do termo de sub- percebemos que não falamos mais a mesma linguagem. Face a face com um
jetivação, com sua dupla polaridade: ele comporta a ideia de apropriação, de colega com quem estamos acostumados a trabalhar e com quem nos enten-
acessar certo controle, mas ele implica também a ideia de se reconhecer sub- demos bem, em geral, percebemos, subitamente, que não nos entendemos
jugado/sujeito por alguma coisa que lhe rege – de se deixar, em suma, domi- mais; ficamos com a impressão que esse outro é idiota ou incompetente; sus-
nar por seu inconsciente! Há essas duas ideias no termo subjetivação. Assim, peitamos até que ele seja perverso... Já que diz coisas que não correspondem
quando alguém está em cura psicanalítica, pode-se dizer que vai aprender a absolutamente ao que nós mesmos podemos perceber. Então, esse fenômeno,
se deixar levar por seu próprio discurso; e é a regra fundamental da psicaná- a princípio, nos surpreende e atormenta. É exatamente ele que elucida a vida
lise, deixar vir às coisas como ela veem, sem procurar muito julgar com seu difícil das equipes psiquiátricas: elas não param de se ver nesses fenômenos,
eu consciente: o que não vai se dizer, o que é preciso dizer, o que não é preciso nessa alguma coisa que se transfere para a equipe da dificuldade do paciente.
dizer... Trata-se de deixar falar e, pouco a pouco, de se deixar levar, de aceitar a Isso produz um mundo retalhado, um mundo clivado – à imagem do psiquismo
apropriação de seu discurso sobre si; e por aí, progressivamente, se subjetiva do paciente. É como uma fórmula desenvolvida, no exterior, da desorganiza-
o inconsciente, se é que posso dizer isso! ção nele – feita de fragmentos, não apenas contraditórios, como é o caso no
Enfim, tudo isso para lhe dizer que a prática do trabalho psicanalítico neurótico, mas antes incompatíveis fragmentos que não podem se articular
em grupo se faz na mesma ótica; quer dizer que em um hospital dia CEREP nos junto. Pensamos na etimologia da palavra esquizo: isso quer dizer splitting, o
ocupamos desse fenômeno de transferência que se produz sob nossos olhos e que veicula um esquizofrênico. O adolescente esquizo no interior produz uma
nossos ouvidos. Vamos perceber que há alguma coisa que o jovem paciente, o transferência esquizo, clivada; ele pode transferir apenas fragmentos incom-
adolescente, vai transferir para a equipe da problemática inicial dele, sua pro- patíveis de relação objetal e isso ainda para diferentes pessoas. É por isso que
blemática anterior. Então, é isso que vamos nos esforçar para reconhecer em temos esse efeito primeiro de que as pessoas não possam mais se entender e
grupo na equipe, através de nosso trabalho de síntese conjunta cada semana. iniciem uma relação de rejeição mútua, sobre o mundo “mas o que você está
Vamos perceber esse fenômeno que toma formas inesperadas e não forçosa- falando? Você não está bem?”. Isso vai se produzir não apenas entre psicotera-
mente fáceis de suportar (para retomar esse termo de Lacan). Os efeitos disso peutas-psicanalistas, mas também entre dois professores do qual um vai achar
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o aluno genial e o outro, um burro... maneira de significar as coisas que constitui uma espécie de pré-digestão, que
constitui alguma coisa de já proposto ao jovem sujeito para que ele fabrique
GM: E como o senhor pode devolver isso ao paciente e também dosar isso? sua vida subjetiva a partir daí. Lacan, então, tinha uma bela expressão: você
BP: Da seguinte maneira: nosso primeiro trabalho não é o de devolver isso ao sabe o que é o prêt-à-porter, quando você compra roupas que já estão prontas,
paciente. Primeiro, temos que acolher isso e fazê-lo trabalhar no dispositivo as chamamos de prêt-à-porter. São roupas que não fizeram apenas para você,
de acolhida e observação que fabricamos, ou seja, entre terapeutas. Aqui, digo mas que já estão ali e que você experimenta, bom. Ele qualificava o discurso
terapeutas no sentido amplo; é preciso incluir aqui os educadores, professo- familiar de pronto a fantasiar para o novo sujeito! Não é ruim como expres-
res, artistas, etc.. Digamos, então, entre cuidadores... É ENTRE esses cuidado- são. Já que se vê bem que se esse “discurso” portador inicial comporta falhas,
res que um trabalho deve, no começo, se fazer, trabalho que secundariamente, grandes defeitos de articulação, incompatibilidades, inconsequências, nega-
se foi suficientemente efetuado entre os cuidadores, vai beneficiar ao próprio ções, não é (não é à toa que fiz meu primeiro livro sobre a negação), isso que
paciente. Pode parecer um pouco estranho que sem que isso lhe tenha sido vai marcar a estrutura do novo sujeito.
explicado (como se faz em uma cura psicanalítica), nós cheguemos a consta- Então a negação é quando alguma coisa se recusa a ser articulada de
tar, após o trabalho de síntese, efeitos sobre o paciente, sobre sua sintomato- maneira consequente, que certos dados da vida continuam refratários a tomar
logia. Não se sabe muito bem por onde passou (através de sinais primários de um lugar significativo no discurso. É, em suma, uma recusa de significação, o
cuidadores, sem dúvida), mas já é um resultado. Então, não se trata de come- que é diferente da repulsa onde é a representação como tal que desaparece; a ne-
çar por devolver ao adolescente o que acontece de estranho entre cuidadores. gação não faz desaparecer a coisa, mas a priva de significação. Quando há essas
Por quê? Bem, lhe responderei que é porque não há ainda assinante para o nú- coisas em uma família, forçosamente o sujeito novo que nasce nesse contexto
mero, se você entende – ainda não há sujeito podendo receber interpretação. vai ser marcado por isso, vai receber disso a marca – le printing – ser marcado
Se você interpretar prematuramente o paciente psicotizado, você inter- com isso em sua vida psíquica. Isso começa nas primeiras trocas mãe-filho.
preta alguma coisa que ainda não é subjetivável por ele. O que faz justamente Desse modo, se você constata sinais de autismo inicial em uma criança bem
disso um psicótico é que há um defeito de produção de sujeito nele, em cer- jovem, ou manifestações somáticas, como um eczema grave ou ainda, uma
tos setores de sua vida psíquica. É preciso que, primeiro, isso seja trabalhado anorexia precoce, uma recusa do seio, coisas desse tipo, você vai logo perceber
no que acontece (transferencialmente) de ambiente primário, de matriz sub- (sobretudo com a ajuda de uma gravação de vídeo porque ao vivo perdemos,
jetivante. Isso remete, certamente, aos progressos que a psicanálise pôde fa- com frequência, sinais muito discretos, furtivos, coisas bem pequenas feitas
zer depois de Freud no sentido de desprender as condições pré-individuais para passar despercebidas) sinais que são enviados ao bebê na interação com o
da subjetivação. Eu diria que é preciso que isso seja pré-digerido pelo sujeito adulto. E se você colocar o dedo em cima e retomá-lo gentilmente com os pais,
nascente... Lacan tinha, aqui também, um termo que me agrada bastante: ele o sintoma pode desaparecer notavelmente depressa – a anorexia, por exemplo.
dizia que o jovem sujeito humano, o “sujeito novo” como diz Freud em As pul- Percebemos, geralmente, que a mãe de um bebê anoréxico envia sinais muito
sões e seus destinos, o sujeito novo está banhado em uma espécie de matriz de discretos do fato que ela não o ama... Que ela não gosta que ele mame em seu
discurso familiar (primeiro familiar, mas não somente familiar). Enfim, par- seio... Quando você tem uma mãe um pouco fóbica, por exemplo, isso pode ter
tindo apenas da família, ela constitui como uma espécie de matriz portadora consequências enormes; uma fobia banal, discreta, da parte de uma mãe, é bem
– com seu modo de falar, mas não somente com palavras: de interagir com frequente, certamente, mas isso pode ter consequências desproporcionais sobre
gestos também, seguramente. O recém-nascido é banhado, no início, em uma o bebê; e isso ainda mais porque a mãe envia esses sinais muito discretos sem
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mesmo perceber e sem que o meio em que vive perceba isso. O importante é o que o senhor pensa do futuro da psicanálise?
que eles são captados “sem deixar passar nada” pelo bebê e que vai imediata- DP: Ressinto de minha parte apenas um pessimismo funcional. Ou seja, quanto
mente adotar uma posição, por exemplo, de rejeição, de recusa, ou de autismo. mais avanço na psicanálise, mais me sinto certo da enorme importância do
Então, o que se encontra em jovens, adolescentes que não estão bem e, ponto de vista psicanalítico, na medida em que ele veio historicamente res-
que têm perturbações graves de subjetivação, como acabo de dizer – a psicose ponder a um número de questões cruciais que não se podia mais deixar de se
certamente, mas não apenas a psicose, perturbações comportamentais gra- fazer sobre o ser humano. Mas o problema é que trabalhar psicanaliticamente
ves também, patologias de comportamentos sem delírio propriamente ditas – constitui um investimento enorme: é um investimento enorme para um pa-
então, alguém que tem perturbações graves da subjetivação, percebe-se acaba ciente vir durante anos, várias vezes por semana, pagando bem caro... Mas é
por servir como receptáculo reprodutor, precisamente, para um sistema de também um investimento enorme da parte do psicanalista o de dedicar tanto
sinalização fragmentado, defeituoso e que envia sinais incompatíveis se neu- tempo a uma só pessoa e de se implicar tanto pessoalmente. Então, quando
tralizando mutuamente. Mas é preciso antes fazer a experiência disso entre se trabalha em uma instituição em grupo, é parecido: o investimento é con-
cuidadores; e não é fácil porque isso supõe que se organize um dispositivo em siderável no plano econômico. Durante essas duas últimas décadas, o poder
que todos os participantes aceitem considerar suas experiências subjetivas público perseguiu literalmente nossas instituições por terem um pequeno efe-
como indicativos do que se trata de trabalhar juntos, a propósito do paciente. tivo de pacientes e grande efetivo de cuidadores. Exigiam resultados rápidos e
O problema é que as experiências subjetivas são frequentemente difíceis de re- comprovados – verificáveis de modo tangível. Ora, os resultados são com fre-
conhecer porque elas se revestem de uma tonalidade ruim, repreensível. Meu quência um pouco lentos, com um processo tão complexo, você entende? En-
amigo psicólogo e colaborador, Guy Scharmann, escreveu um artigo muito tão, somos obrigados, sem parar, a dar conta do que fazemos ao poder público
pertinente sobre isso[1]: ele tinha percebido, em relação a um jovem adoles- para justificar o dinheiro colocado no hospital dia e isso nos toma grande parte
cente, que tinha vontade de afogá-lo quando o levava à piscina, que ele tinha do nosso tempo terapêutico!
vontade que ele ficasse no fundo! Não é fácil relatar isso em síntese porque se É bem mais fácil aplicar terapias mais simples – cognitivas ou de con-
tem a impressão de estar em falta profissional. Ora, é justamente muito va- dicionamento, por exemplo. Efeitos sintomáticos são ali bem rápidos no plano
lioso restituir isso para colocar em comum – que haja este dado de um desejo visível. Enquanto que em psicanálise, visa-se efetuar um trabalho de fundo que
de morte sobre este jovem, além de outros investimentos positivos. É colo- seja durável. Acontece, hoje, você sabe, de receber no meu consultório parti-
cando esses dados que se chega a montar outra vez um pouco de alguma coisa cular, pacientes na faixa dos 40 anos ou até mais, que são antigos pacientes
que se pode jogar na origem para cinzelar esse sujeito, no seio das interações do meu hospital dia e que vêm ainda me ver de vez em quando. Posso ver, um
familiares. Trata-se de fazer desses dados uma retomada – termo felizmente pouco tarde, o caminho que eles fizeram, a partir de seu estado de adolescentes
proposto por esse mesmo colégio. psicóticos. São agora adultos que têm uma vida pessoal, sem deficiência maior
(sem delirar, por exemplo). Vê-se quanto foi importante para eles o que fizemos
GM: Nessa mesma entrevista precedente, o senhor mencionou uma preocu- juntos; e, aliás, aos 45 anos me falam ainda do CEREP, porque foi, para eles,
pação, pintando um panorama pessimista da psicanálise confrontada com uma experiência matricial. É uma etapa intermediária decisiva na existência
outras terapias existentes. O senhor continua com essas mesmas opiniões? E deles, e eles ainda têm como melhores amigos os jovens que conheceram no
hospital dia. Dizemos então que: Fizemos bem de termos feito do modo que
1. SCHARMANN, G.. «Narcisse contre narcisse». In: La Psychiatrie de l’Enfant, XXXI, 2, 1988, p.557. fizemos, mas em termos de rentabilidade, em termo de utilização do dinheiro
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entrevista – gabriela malzyner
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público, é muito difícil de sustentar em relação às terapias mais simples, que inanimado, um objeto transicional. Acho que as sublimações ulteriores se
têm resultados mais rápidos no plano sintomático. É nisso que sou um pouco inspiram todas nessa proto-atividade, e que a aptidão para sublimar depende
pessimista e que me questiono: Será que ainda vamos ter a possibilidade de da experiência precoce: há bebês que foram colocados na via da sublimação
trabalhar como fazíamos no CEREP Montsouris – de sermos adultos bem qua- muito depressa através de interações com sua mãe, que lhe apresentou obje-
lificados pagos para cuidarmos de tão poucos adolescentes, e tanto tempo...? tos, que lhes ensinou a tirar satisfações importantes de certos objetos. Aqui
É nisso que sou pessimista, porque é um investimento considerável, que evi- temos alguma coisa que tem chance de durar a vida toda – desembocando na
dentemente é essencial se nos colocarmos no ponto de vista do ser humano, escritura, na música, etc.. As experiências precoces vão se prolongar na busca
de um ponto de vista humanista. Mas não é o ponto de vista que prevalece de satisfações sublimatórias ulteriores.
entre aqueles que nos governam hoje, entre nossos gestores de visão míope... Eu, pessoalmente, mergulhei nisso quando fiz minha tese em medicina,
Eles dizem que é muito dinheiro colocado em tão poucas pessoas, que, depois já faz quase meio século... Meu tema era o futuro das depressões da infância. Fi-
de tudo, não serão nunca cidadãos de primeira ordem, hiper produtivos... Em quei sensibilizado, de fato, ao ver – através da sequência ao longo curso que nós
suma, por que pagar tão caro para curar alguns patos mancos, você entende? podíamos fazer em uma estrutura como o Centro Alfred Binet (Paris, XIII) – o
Podemos ser pessimistas desse ponto de vista. que se tornavam os estados depressivos da primeira infância. É eles podem se
transformar em todo tipo de coisa na adolescência ou na idade adulta – quase
GM: É possível pensar em sublimação nos casos de psicose? toda a nosografia! Pode, por exemplo, se tornar uma psicose dissociativa, mas
BP: Desse ponto de vista, temos muitos exemplos históricos, não? Nós temos quase nunca uma depressão melancólica (isso destaca o simplismo da visão
grandes poetas como Antonin Artaud; é um poeta francês que era claramente míope das classificações com pretensão nosográfica como o DSM IV!). Mas
psicótico e muito criativo. Você tem também pintores bem conhecidos, como fui particularmente tocado por uma coisa: descobri o estudo de um inglês, o
Vincent Van Gogh, por exemplo... Bom, são personalidades à beira da psicose, Dr. Felix Brown, (1971), que tinha feito um estudo muito importante para sa-
que mostram que a sublimação não é nem um pouco antinômica à psicose. ber se a morte precoce de um genitor, ou dos dois genitores, tinha um efeito
Aqui, também, é o mérito de Freud dizer que a sublimação é uma solução pul- sobre o desenvolvimento ulterior – isso poderia favorecer, por exemplo, a de-
sional; ele a descreve como um destino possível da pulsão (1915). Quer dizer que pressão melancólica na idade adulta? Ou até, isso favorecia a psicopatia, a de-
no lugar de se concretizar em uma satisfação erótica direta no plano do corpo, linquência, etc.. Ele realizou, então, um estudo muito longo, em muitos casos,
a pulsão vai escolher um objeto não corporal para se satisfazer. É importante nas prisões, nos hospitais psiquiátricos, etc.. Ele se interessava, em particu-
ver bem que essa “solução” sublimatória se instala bem cedo na maior parte lar, pelos casos de psicose, maníaco-depressivas para verificar se ali se cons-
das crianças. Já vemos crianças bem pequenas investirem em objetos como a tatava a perda precoce dos pais. Mas não, isso não dava absolutamente nada
pintura, a massa de modelar ou a música... De minha parte, insisti no fato de no plano estatístico. Quer dizer que os melancólicos adultos não tinham per-
que a atividade sublimatória começa no que Winnicott destacou como expe- dido mais pais que a população média. Parecido para os psicopatas... Ele ter-
riência transicional – com o transitional object dividido entre mãe e bebê. Eles minou, entretanto, por encontrar alguma coisa de muito significativo: é que
brincam juntos com um brinquedo, uma coisa qualquer, que seja um pano, mais da metade dos grandes escritores da Inglaterra do fim do século XIX e
um objeto que faz gling, gling ou qualquer coisa. Ora, já é uma proto-sublima- do início do século XX tinham perdido sua mãe e, com frequência, a mãe e o
ção, no sentido de que não é mais o corpo do bebê ou o corpo da mãe que está pai, muito cedo! Então, isso é muito interessante porque esclarece sua questão
diretamente em questão para a satisfação, mas que essa passa por um objeto sobre a sublimação. Pode-se deduzir daí que a atividade de escrever constitui
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uma maneira de tratar a perda precoce da mãe, por exemplo. Eu propus con- Freud qualifica de “mudança de finalidade”, quer dizer que no lugar de, como
siderar que uma sublimação desse tipo prolongava a atividade transicional do toda pulsão normal, buscar satisfação pela descarga do prazer – a sublimação
lactente. Penso na história de um escritor conhecido que, sabendo da morte é uma satisfação em tensão, um prazer sem descarga. Assim, o escritor escreve,
de sua mãe, trancou-se para escrever ao invés de chorar com seus próximos... e ele escreve, escreve – como o pintor pinta e pinta... – e fazendo isso ele não
Acredito que até o reprovaram por não ter ido ao enterro! O tempo todo, ao in- tem orgasmo, ele persegue uma satisfação em tensão. Logo, é um prazer que
vés de chorar como todo mundo, sua reação foi a de se trancar para escrever, vem contradizer o sacrossanto princípio de prazer que prevalecia ainda para
escrever, escrever, durante todos os dias que seguiram o dia da morte de sua Freud nessa época, até 1920. Ele ainda estava convencido, em 1915, que toda
mãe. Então, minha interpretação disso é a de que esse homem, de fato, se tran- a vida psíquica era submetida ao princípio do prazer; ele ainda não tinha co-
cou com sua mãe em seu escritório para escrever. Ou seja, o valor transicional meçado a teorizar o que vai chamar em 1920, Além do princípio de prazer, com
da escritura foi a forma que ele encontrou para se defender de seu luto. Então, a consideração determinante da compulsão de repetição como outro princípio
tudo isso para lhe dizer que os psicóticos não são mais entravados que outros determinante. Vemos, então, que ele não podia teorizar completamente a su-
por sublimar; que podemos ter grandes capacidades sublimatórias e sermos blimação já que esta não poderia ser explicada em função do único princípio
esquizofrênicos. Muitos psicóticos sublimam muito – o problema deles seria de prazer-descarga. Ela realiza uma satisfação em tensão, sem descarga sexual,
mais o de poder fazer só isso! De serem incapazes de uma vida amorosa. e é preciso então estar no Além do princípio de prazer para poder dar conta da
solução sublimatória e Freud só começou a conceber esse Além em 1920 – tra-
GM: No seu artigo, “Latence, sublimation, adolescence”, o senhor fala das “so- zendo o que vamos chamar de a segunda metapsicologia de Freud, com o de-
luções pulsionais”; então, como fazer a diferença entre solução pulsional e terminismo de repetição e o Além do princípio do prazer, como organizadores
sublimação? da vida psíquica, em contradição com o princípio do prazer-descarga. Quando
BP: Ah, não, eu disse que a sublimação é uma solução pulsional. Freud ex- lhe falei há pouco da transferência psicótica, insisti sobre o fato de que isso, o
plica muito claramente. Ele o diz particularmente em As pulsões e seus desti- mais das vezes, não tinha nada de agradável – não é nem um pouco uma coisa
nos (Freud, 1915) e também em Narcisismo, uma introdução (Freud, 1914). Você da qual se possa dar conta em função do princípio do prazer. É desagradável
sabe que Freud construiu, nesses anos, o que chamamos sua metapsicologia. para todo mundo: para o próprio adolescente, com a impressão que sua vida é
Então, isso comporta vários artigos importantes. Há A negação, O Inconsciente, um pesadelo, e é desagradável para as pessoas que recebem essa transferência
e depois ele aborda as pulsões e o destino das pulsões. Um dos artigos funda- e são obrigadas a se arranjarem com ela. Freud tinha começado a perceber isso
dores de sua metapsicologia deveria ser a sublimação e vir bem depois, como bem mais cedo a propósito do paradoxo do pesadelo, precisamente – o que nos
outro “destino” pulsional precisamente. Mas ele não o fez. E, acredito que isso faz produzir pesadelos? Então, para dar conta do pesadelo e da transferência
tenha uma razão bem clara, é que a sublimação é uma satisfação pulsional psicótica, é evidente que é preciso estar além do princípio do prazer; mas para
sem descarga sexual. Ora, em As pulsões e seus destinos, Freud define o que ele dar conta da sublimação, também.
chama a finalidade da pulsão: a pulsão tem como finalidade se satisfazer, sua A sublimação é uma satisfação além do princípio do prazer, mas é uma
finalidade é a satisfação. Ela não tem como finalidade seu objeto, ela tem como “solução pulsional” de qualquer modo, ou seja, a força pulsional é derivada
finalidade obter a satisfação-descarga – não importa o objeto que lhe permita de um além do princípio do prazer. Como o escritor do qual eu lhe falava que
conseguir isso. Mas a sublimação se caracteriza pelo fato de ser uma satisfação foi se trancar sem dormir, sem beber e sem comer, durante cinco dias depois
sem descarga, sem descarga sexual, sem satisfação sexual direta. Está aí o que da morte de sua mãe. Ao fazê-lo, ele está bem no princípio do prazer, ele está
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mobilizado pelo imperativo de sustentar sua relação transicional com sua que a satisfação dada pela relação amorosa tem uma virtude vitalizante, que
mãe. É um imperativo vital, que poderia, no limite, se tornar perigoso para a sublimação não pode trazer. A realização sublimatória não tem esse caráter
sua própria vida, para sua auto conservação, levando-o até ao esgotamento. vitalizante – no sentido de fazer bem, de deixar feliz, de dar felicidade, de re-
É um pouco parecido com o caso dos grandes místicos, por exemplo; era pre- carregar as baterias, como se diz. Uma sublimação bem sucedida dá uma sa-
ciso que um irmão os forçasse a comer ou a dormir de vez em quando, porque, tisfação maior, um sentimento de realização entre muitas pessoas, mas com
senão, eles eram tão tomados pelo seu prazer estático que podiam morrer as- a falta de outra coisa, e não pode não impedir seus definhamentos. Para mim,
sim – de fome, de cansaço, de frio... Não nos encontramos aqui no primado do minha atividade psicanalítica, por exemplo, é vital, evidentemente, é muito
princípio do prazer, mas em outra coisa que leva a uma manutenção forçosa preciosa, mas eu me dou o direito de esquecer, de ter uma vida amorosa im-
de uma relação incondicional ao objeto primeiro da relação transicional. Eu portante. Estou convencido de que se um psicanalista só fizesse psicanálise e
não sei se estou sendo claro... não tivesse vida amorosa pessoal, seria alguém perigoso – primeiro perigoso
para sua própria saúde, mas não apenas isso.
GM: Sim, sim, é muito claro. Não..., é apenas uma coisa que eu nunca havia
pensado, é apenas isso. GM: O senhor acredita que é possível tratar distúrbios graves de subjetivação
BP: É mesmo? fora do hospital dia?
BP: Bem, aqui, vou responder à sua pergunta deformando-a um pouquinho, se
GM: Que a sublimação pode ser perigosa. você me permite. Quero dizer que a questão não é a do hospital dia enquanto
BP: Sim, a sublimação pode ser perigosa; e acrescentarei alguma coisa que é tal. A pergunta fundamental é que é difícil tratar um distúrbio grave da sub-
muito importante, e que percebemos muito com os psicóticos. É que a subli- jetivação de outro modo a não ser se colocando em grupo. Então, que isso ocorra
mação não pode substituir a vida sexual, a vida amorosa. Se você olhar o caso em um hospital dia ou outra coisa, pouco importa. O importante é que os dis-
de uma Virginia Wolf, por exemplo, vemos claramente que ela dá provas de túrbios graves da subjetivação necessitam de um trabalho em grupo. Por quê?
uma formidável capacidade sublimatória, que é uma escritora muito criativa; Tenho um amigo, por exemplo, que se chama Claude Balier e que tem
e isso não a impede de se suicidar... Isso faz pensar que a sublimação não per- trabalhado muito a relação terapêutica nas prisões. Para ele, não é o hospi-
mite, não assegura a felicidade. É uma satisfação muito importante, mas se tal dia é a prisão. Ele trabalhou muito tempo com criminosos perigosos, com
dispomos apenas dela, podemos morrer por causa dela – não somente como pessoas que tinham cometido graves delitos, grandes erros – sexuais entre
eu dizia há pouco, por negligência das necessidades vitais, mas por outro defi- outros... Uma coisa é evidente para ele, é que essas pessoas só podiam realizar
nhamento que pode levar ao suicídio. Assim mesmo, muitos escritores se sui- um trabalho psicoterapêutico na prisão! Era necessário para eles o quadro car-
cidam. É aqui que reconectamos o ponto da psicose. Pois se os psicóticos dão ceral para sustentar o trâmite. Além do mais, ele coloca como princípio para
frequentemente prova de capacidades sublimatórias importantes (eu tive mui- sua equipe que um terapeuta nunca deve trabalhar totalmente sozinho com
tas em meu hospital dia), pode ser até mais que na média da população, eles esses pacientes. Pela razão que lhe dizia há pouco: a transferência entre eles
têm, ao contrário, uma grande dificuldade em realizar uma vida amorosa. É só pode tomar uma forma temível. Quer dizer que os que eles têm a transferir
por isso que, com frequência, os psicóticos se suicidam, como os grandes escri- são coisas terríveis e mal articuladas, de tal modo que uma única pessoa não
tores, como os grandes artistas... e isso sustenta de um lado, acredito o defeito vai poder assegurar recepção da transferência apenas para ela. O paciente vai
desesperador na maior parte deles da possibilidade de realização amorosa. É transferir uma parte de sua experiência tóxica para uma pessoa, e outra parte
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para outra, logo, vai ser necessário trabalhar em grupo. vida psíquica de alguém. É desse modo que se tem um paciente que, de re-
Em tais casos, um psicanalista sozinho – não apenas na prisão, mas pente, se suicida, e não se entende por que, alguma coisa assim. Digamos que
com um psicótico perigosamente clivado, esquizo – um psicanalista sozinho trabalhar completamente sozinho, como psicanalista, tratando de distúrbios
com um esquizofrênico, se arrisca muito a ser tomado por uma transferên- graves da subjetivação, é perigoso porque é um dispositivo inconsequente em
cia parcial, parcial e, assim, parcializada, não é? Ele não tem nenhum meio de relação ao que se sabe hoje da gênese primeira de tais entraves à subjetivação.
perceber isso no começo. Quer dizer que ele vai ter, por exemplo, uma trans- É então perigoso trabalhar sozinho com um distúrbio grave da subje-
ferência positiva, ou então, ao contrário uma transferência negativa, uma ex- tivação, porque sabemos, e para mim isso resulta de trinta e cinco anos de ex-
periência de rejeição, etc.. Mas, o importante é que o que ele pode perceber periência, que esses pacientes permaneceram aquém de uma vida relacional
ali subjetivamente é apenas um pedaço da transferência. O que é caracterís- integrada – tenho vontade de dizer, aquém do limiar antropológico da posição
tico, por consequência, quando se trabalha em grupo com distúrbios graves depressiva, tão genialmente concebida por Melanie Klein na segunda metade
da subjetivação é que, em um primeiro momento, cada um imagina que sua do primeiro ano do desenvolvimento.
experiência subjetiva no contato com o caso (conforme ele começa expô-lo
em síntese) é completamente objetiva e justificada profissionalmente. Se ele GM: Logo, se o senhor tem um paciente com distúrbio grave de subjetivação,
percebe o paciente como genial, ou como um sacana ou um cretino, ou sei lá colabora com colegas psiquiatras?
o quê, ele acredita que esse olhar é objetivo, profissional. E é apenas perceber BP: Sim, fazemos isso com frequência quando temos um paciente difícil, ne-
que outro colega, a priori, tão capaz quanto ele, pensa completamente diferente cessitando uma ajuda medicamentosa conjunta. Mas isso pode acontecer
– que não tem nada de genial, que não é bem um sacana, nem um cretino – também com pacientes psicossomáticos graves; podemos colocar como con-
é o fato de ir de encontro a esse desmentido (com surpresa e incompreensão dição-estrutura da cura psicanalítica que ele veja também, regularmente, um
no início), é ter de vislumbrar que seu ponto de vista não é talvez tão profis- gastroenterologista, se for uma úlcera de estômago, ou um endocrinologista
sional assim, que ele pode estar subjetivamente enganado, um ponto de vista se for um hipertireoidismo, ou outra coisa... É muito importante, então, pres-
parcial, você entende? crever outro, colocar outro cuidador. O mais difícil é ter um mínimo de arti-
É por isso que um psicanalista que fica indefinidamente sozinho com culação com este outro cuidador – como somos regularmente forçados a isso
um paciente difícil, com um paciente psicótico, pode durante muito tempo, pela vida em instituição terapêutica. Em todo caso, percebemos, desde então,
ignorar que seu ponto de vista é completamente parcial - um mínimo con- que as coisas se tornam menos constrangedoras, mais respiráveis. São verda-
tato, de troca de ponto de vista, com outro terapeuta, só seria um médico, um des também algumas patologias suplementares, ou de comportamento – po-
prescripteur, por exemplo, ou outro profissional qualquer... Ele percebe então demos nos articular com um assistente social, um advogado... Temos vários
quanto os pontos de vista podem divergir sobre o paciente que ele está tra- casos difíceis, um trabalho psicanalítico é possível com a condição de não se
tando. Eu lhe dizia a pouco que a primeira reação é habitualmente de tomar o conceber tudo sozinho – de ser capaz de destotalitarizar o tratamento do caso.
outro por incompetente, ou pior...
Em todo caso, o analista isolado arrisca-se a ficar indefinidamente com GM: O que o senhor entende como « cura » em psicanálise?
sua parte clivada da transferência, e de não conseguir suspeitar do resto... Ele BP: Como cura? Existe o que chamamos cura tipo, aqui, é o divã/poltrona;
poderá talvez, às vezes, oferecer, entretanto, ajuda ao caso; mas pode também então é um dispositivo que foi concebido por Freud para trabalhar com seus
haver consequências deploráveis em tal desconhecimento de uma parte da pacientes neuróticos. Mas de modo bem empírico, evidentemente. Freud nos
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entrevista – gabriela malzyner
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diz, aliás, por que ele recorreu a esse processo do divã. Ele diz, a princípio, cer- ondulatória e corpuscular que, onde cada elemento necessita de um disposi-
tamente, que a pessoa deitada vai se encontrar frente as suas próprias repre- tivo diferente para ser observado). Então, é pouco dizer que a subjetivação é
sentações mentais, bem mais do que em frente às mímicas de seu analista. um objeto complexo!
Constatamos isso cada vez que passamos alguém da poltrona para o divã: é, Mas o ponto importante, que nos diz respeito aqui, e volto à sua per-
com frequência, uma passagem um pouco sofrida para o paciente que de um gunta, é que o que observamos depende do dispositivo de observação que uti-
momento para outro se encontra privado da segurança do rosto do analista lizamos. Bem, para dizê-lo sumariamente, se utilizarmos um microscópio não
– mas ele ouve bem seu analista reagir assim mesmo em suas costas... Mas o veremos a mesma coisa que se utilizarmos um telescópio, evidentemente. É
que Freud acrescenta imediatamente, e que, em minha opinião, é decisivo, é claro. Mais um objeto é complexo, mais o dispositivo de observação se veri-
que ele não podia suportar passar oito ou dez horas por dia sendo observado! fica decisivo daquilo que observamos. É uma noção evidente hoje para aque-
Isso também é cansativo. Realmente, eu que tenho uma prática aqui em con- les que buscam observar o trajeto de partículas. Mas é verdade também para
sultório particular, tenho assim mesmo uma maioria de sessões deitadas no a psicanálise, salvo que aqui, nós nos chocamos com o que Lacan chama “a
divã. Mas é verdade que ter dois ou três pacientes em uma situação frente a imbecilidade realista” (em seu seminário de 1955 sobre A carta roubada, reto-
frente, em seguida, me cansa mais. Quando o paciente seguinte se deita, posso mado no cabeçalho de seus Escritos). Posso falar da imbecilidade objetivante
relaxar um pouco, deixar à deriva minha escuta; posso até coçar o nariz ou dos médicos que conceberam os DSM – com a ilusão míope de pretender iso-
sei lá, fechar os olhos, etc.. Posso ter outro tipo de atenção e é isso, me parece, lar dados “simples” e “objetivos” para apreender o psiquismo humano. E isso
a principal razão do dispositivo divã /poltrona. Mas aqui, me parece que você desconhecendo completamente, que o dispositivo de observação é constituído
me perguntava sobre a cura em geral em psicanálise. E eu direi que é antes de pelo próprio médico, sendo ele decisivo no que elegerá na observação clinica.
tudo uma cura conduzida por um psicanalista! Para voltar ao divã, direi que é um dispositivo engenhoso para destacar
Então, a cura sendo uma coisa designada, precisamente... Queria lhe a neurose da transferência, e é por isso que Freud fez bem em colocá-lo em uso.
falar de maneira um pouco geral do que pode fazer um psicanalista hoje. Co- Mas, se você trabalha como lhe dizia há pouco, como psicanalista no hospital
meçarei pelo fato que Freud gostava muito de se referir à psique de seu tempo. dia, se você trabalha psicanaliticamente em grupo, você vai fabricar um dis-
Ele tem prazer em comparar, em várias passagens de sua obra, o pesquisador positivo que é favorável à observação de registros psicóticos de transferência,
psicanalista ao pesquisador físico. É, para ele, o meio de insistir sobre duas coi- o que não é nem um pouco parecido. Com outros dispositivos, psicanalistas
sas fundamentais. Primeiro, que a psicanálise, apesar de seu objetivo subjetivo, vão poder observar outras coisas: fazendo psicodrama, por exemplo; ou se tra-
tem vocação de se situar entre as ciências experimentais, as ciências da natu- balhamos em terapias de grupo, podemos ter uma apreensão do imaginário
reza. É, talvez, o ponto mais profundo de divergência com Jung: Freud é um grupal que escapa se tomamos as pessoas individualmente; e o dispositivo de
naturalista e repudia qualquer ideia metafísica; ele não tem nenhuma incli- terapia familiar leva a enxergar ainda outro ângulo de visão; e a observação
nação para as ideias platônicas, fora de todo contexto neuronal ou endócrino. das relações precoces mãe-bebê.
A física, hoje, mais ainda do que no tempo de Freud, se acostumou à Então, quando você me pergunta sobre a cura, direi que há múltiplos
noção de objetos naturais complexos. Ela entende por isso objetos físicos dos tipos de cura psicanalítica segundo o dispositivo que utilizamos. E isso me pa-
quais uma única teoria não é suficiente para dar conta e cujas propriedades rece uma evolução feliz para melhor responder à diversidade das demandas
não podem ser colocadas em evidência por um único dispositivo experimental terapêuticas de hoje. Falamos cada vez mais em minha sociedade (a Socie-
(a luz foi historicamente o primeiro objeto complexo com sua dupla natureza dade Psicanalítica de Paris) de trabalho psicanalítico COM a criança, ou COM
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entrevista – gabriela malzyner
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a família, ou COM os doentes psicossomáticos... Quer um psicanalista traba- Gabriela Malzyner
lhe sozinho ou em grupo, quer ele trabalhe em instituição ou em consultório Rua Veiga Filho, 350
Higienópolis
particular, quer ele trabalhe com vários pacientes, ou em grupo, que ele utilize
(11) 3822 4046
o jogo psicodramático ou somente a palavra, todos são dispositivos diferentes, gamalzyner@gmail.com
e são curas. Isso pode ser trabalho psicanalítico. Você entende? De fato, uma
aproximação psicoterapêutica pode ser qualificada de psicanalítica desde que
capture a transferência. Eu lhe dizia ao começar que Lacan, em seu primeiro
seminário L’acte psychanalytique (1968), estima que o que define o ato do psica-
nalista é antes de tudo “suportar a transferência”. Mas fica, em seguida, a per-
gunta de como fazê-lo trabalhar, a transferência, como colocá-lo no processo,
deixá-lo subjetivável pelo paciente; e aqui eu divirjo de Lacan. Mas para ter
tempo de desenvolver isso, seria preciso outra entrevista!...
Então, eu lhe dizia, no início, que a noção de subjetivação é, em minha
opinião, um conceito chave para definir um trabalho como psicanalítico. Po-
deríamos dizer, com efeito, que o objeto da psicanálise é a subjetivação, acre-
dito que poderíamos dizer isso hoje. E como se trata de um objeto complexo,
ele necessita de vários ângulos de aproximação, e também uma teorização
complexa. Vemos isso bem pelo autismo, por exemplo: somos obrigados a ter
recursos em várias teorias simultâneas para falar do autismo; um psicanalista
não deve ter medo de afrontar o fator genético ou outras coisas além da pró-
pria psicanálise. Não podemos reduzir o autismo a uma só teoria explicativa
– nem reduzi-lo à genética, nem reduzi-lo a uma casualidade relacional, há vá-
rias coisas que intervêm para levar um distúrbio tão massivo da subjetivação.
Acredito que a subjetivação é, sem dúvida, o objeto mais complexo que
existe na natureza, a ponto que ele incita a acreditar que não é um objeto na-
tural? As religiões, em particular, não pararam de opor a vida da alma humana
ao mundo natural. Freud emprega, no entanto, esse termo de Seelenleben que
foi, a princípio, traduzido impropriamente por vida psíquica. Ele nunca pensou
que o sujeito humano era de ordem metafísica, que ele escapava aos determi-
nismos do mundo psíquico. E é, ao contrário, a contribuição decisiva de Freud
sobre o determinismo psíquico – causa maior de escândalo, mais que o sexual.
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entrevista – gabriela malzyner
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Resenha
Um facho de intensa escuridão – o
legado de Wilfred Bion à psicanálise[1]
Autor do livro: James S. Grotstein[2]

Emir Tomazelli

A Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre em associação com a Artmed publi-


caram, em 2010, um livro de importância estrutural no que tange, hoje em dia,
a uma parte da psicanálise. Livro tremendo; obra tremenda. Texto complexa-
mente esclarecedor e complexamente portador da notícia de que precisamos
estudar mais, muito mais.
É livro para ser lido por qualquer psicanalista, mas é obrigatório para
os que respeitam e apreciam a escola inglesa. É particularmente dirigido para
aqueles psicanalistas que foram capazes de ler, com admiração e encanto, o
pensamento que se desenvolveu a partir de Melanie Klein e que foi incremen-
tado pela genialidade e coragem, sem precedentes, de Wilfred B. Bion.
O livro é obrigatório, não só porque é um livro de uma generosidade
teórica, como poucas vezes eu vi num texto de esclarecimento sobre a obra
de um autor, mas também porque é um tributo de Grotstein, aos psicanalis-
tas que gostam de pensar, mais até que de aprender. É um livro sobre o amor
que um discípulo tem por seu mestre, e do amor que um cliente pode desen-
volver por seu psicanalista - que depois virou amigo querido. É um legado de
Psicanalista, doutor em
Psicologia, professor do
1. Tradução de Maria Cristina Monteiro / Publicação da Artmed, 2010, Porto Alegre/Rio Grande do Sul Departamento Formação
2. Grotstein - Analista didata e supervisor no New Center for Psychoanalysys e no Psychoanalytic em Psicanálise do Instituto
Center of California. Sedes Sapientiae

boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19 – № 1 – jan/dez 2011 103


104 boletim formação em psicanálise
resenha – emir tomazelli
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011 boletim formação em psicanálise
resenha
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise 105
Grotstein a Bion[3], transformado em um legado de Bion a nós, que está subli- ‘óbvio não observado’[4], e, ao observá-lo tenta a construção da intuição de onde
nhado por Grotstein. É uma oferta de iluminação delicada e intimista, onde esse presente traumático vai dar. Por esta via faz uma investigação do trauma
uma obra respeitosamente lança uma luz, que lhe é própria, na outra. (Grots- em seu futuro.
tein, talvez, se trate de um autor que pode se atrever a pôr sobre Bion um “fa- Usa como recurso a projeção, uma projeção com função investigativa
cho de escuridão”!) e intuitiva. É com esta que prevê o evento traumático, sendo trazido do futuro
“Um facho de intensa escuridão” – o nome próprio do livro - já ‘esclarece’, para o presente, invertendo, assim, a teoria temporal do traumático, e a obser-
de um modo sucinto a problemática em que seu autor vai nos colocar, para en- vação clínica da sessão. Seu procedimento de investigação sempre está vincu-
tão nos fazer o convite de mergulhar cientificamente, esteticamente, e misti- lado à inversão de perspectivas, e está apoiado na máquina que lança o evento,
camente no pensamento ‘metapsicanalítico’ de Wilfred Bion. desconhecido no presente, no futuro do sujeito. Esta máquina se chama: ‘iden-
Grotstein vai oferecer-nos uma chave para olhar um objeto que se tificação projetiva’. É dela que ele se aproveita para estudar cada convite trans-
chama Bion, vai nos ajudar a lê-lo, e a estar com ele. Vai nos ajudar a senti-lo ferencial, em cada encontro pessoal com cada cliente seu. É pelo uso interno
mais possível e mais palpável. Mais cognoscível! e técnico, dessa velha parceira – a “identificação projetiva” – com que ele irá
Como com todos seus comentadores, Bion vai fazer Grotstein passar confeccionar a bússola que usará para orientá-lo na sessão com cada cliente.
por apertos para os quais nem sempre oferece boas soluções, principalmente A esta bússola, ele dará o nome de Grade.
quando quer fazer novas teorias a partir do que Bion pensa, ou quando quer É desse modo que Bion transforma a sessão num mapa, e este mapa
evoluir de Bion e se põe a discutir com Kant. pode - logo que captado no agora do encontro - antecipar um desastre, uma
Mas de uma forma ou de outra, todos aqueles que escreveram sobre mudança catastrófica ou uma germinação fecunda e criativa. Isto é: é a partir
Bion, devem ter tido em mente que Bion é um autor sempre em esquiva de ser do presente da sessão, que se oferece como o fenômeno de um “noumenon” -
lido; sempre evitando ser compreendido, a cada frase; sempre desconfortável que é o próprio encontro humano - que Bion interpreta. Ou seja, é o presente
para quem o lê, e sempre em confronto com quem o lê, a cada frase. da sessão, que ele sustenta como homem, o que indica o que está “pedindo”
Porém, e ainda além deste confronto que acabo de mencionar, emerge aquele que “pede” ajuda. Enquanto ele escuta as previsões do futuro, ele faz
outro confronto nos trabalhos de Bion: o confronto com a psicanálise. Ele rara- conjecturas simples que tentam pensar onde algo vai dar, ou onde um sujeito,
mente deixa brecha ou dá descanso ao leitor psicanalista interessado; mesmo num estado de emoção como aquele que vive no momento do encontro com
que escreva para comunicar-lhe questões cruciais sobre a psicanálise; mesmo ele, vai acabar parando.
que sua escrita seja para organizar o universo sobre o qual se debruça, e mesmo Bion ensina desta forma, como, a cada instante, este “noumenon” que
que o faça o mais metodicamente possível. aguarda e anseia por nova fenomenização, anseia muito por vir à luz e tomar
E, por falar em método, sempre gosto de dizer que é sob a regência desse uma forma. É assim que ele vai trabalhar com a mente do outro, uma vez que
fio de lucidez metódica, e de observação microscopista da realidade clínica, que procura, enquanto o escuta fazê-lo sonhar o sonho necessário, isto é, enquanto
ele trabalha. É esta microscopia - atrás da que Bion se protege ou se esconde
para ‘olhar melhor’. É ela que, ao mesmo tempo, lhe permite a observação do 4. Esta é a outra definição que Bion dá para o termo freudiano: ‘ inconsciente’. Ou seja, o que está in-
consciente pode singelamente ser apenas da ordem do óbvio não observado, e não do esquecido,
nem do reprimido. O óbvio, tanto quanto a “carta roubada”, estão escondidos porque estão à luz e
disponíveis ao olhar, mas não conscientes nem disponíveis para a observação, menos ainda para
3. Leia-se José Carlos Calich, que escreve a apresentação à edição brasileira. a abstração, ou para o conhecimento.
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resenha – emir tomazelli
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resenha
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– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise 107
escuta o cliente ele dá abrigo a pensamentos que precisam de dois pensadores ele deixou foi esse de ampliar horizontes, mas nunca foi esclarecer, menos
para serem pensados. Ou seja, para Bion a psicanálise é o processo de sonhar ainda, explicar. Como nos diria Blanchot: “a resposta é a doença da pergunta.”
a dois. E este sonhar é o sonhar de um sonho que só pode ser sonhado a dois, E Bion cria nisto.
porque uma parte de nossa mente - sempre desconhecida - nos aguarda no fu- Lendo Grotstein, se pode perceber que a função de Bion no interior da
turo dentro do outro. Ou seja, Bion fala do trabalho como a oferta de um lugar, instituição psicanalítica - o establishment, como ele a chamava - não foi obser-
e de uma crença que é possível depender de outros humanos que permitam var que seria necessário um retorno a Freud, menos ainda um retorno a Klein,
que passemos por dentro deles, e com isto encontraremos o significado que não tinha a intenção de retornar a ninguém. Pegou de cada um o que lhe in-
ainda não tínhamos em nós, nos momentos que vivemos antes de passar por teressava para pensar e usar, e foi em frente. E isto aconteceu de tal forma que
dentro de alguém que nos sofreu de verdade. É nisto que ele se apóia - e se apri- ele acabou por se pôr à frente de seu tempo. Neste sentido não é inadequado
mora - para pensar o que ele experimenta no encontro com seus analisandos. pensar que, na psicanálise, Bion poderia ter o mesmo valor que tiveram Ja-
É sob esse mesmo comando técnico, o de investigar a dispersão emo- mes Joyce ou Samuel Beckett na literatura inglesa, quanto Guimarães Rosa,
cional que passa dentro de alguém em seu próprio estado emocional pessoal - na literatura brasileira; e todos eles na literatura mundial.
sem usar o discurso, nem o dispositivo psicanalítico como via de descarga da Bion não quis, ou melhor, a ele não coube fazer uma escola, onde só
tensão criada pelo ato de conhecer - que Grotstein vai procurar trabalhar. Vai estariam os ‘puros’, menos ainda escrever para dirigir-se ao mundo psicana-
espelhar-se no mestre e auto-impor-se o “não saber” para, sempre em dúvida, lítico com vistas a conquistar a Europa, a África, a Ásia, a Oceania, como era o
manter-se aberto para o significado que brota do inesperado, quando ouvimos olhar de Napoleão Bonaparte, sobre o mundo e sobre o outro. Não se encontra
o mundo com ouvidos de psicanálise. em Bion, o papel de Imperador, mas o de soldado condecorado na primeira
Esta era uma disciplina que Bion se auto-impunha. E a mantinha ativa guerra (por prestação de serviços ao povo da Inglaterra, e por ato de bravura
até poder encontrar algo, ou algum sentido, que unificasse a dispersão. Daí en- em campo de batalha) e como médico, na segunda. Isto se encontra. Bion o
tão, era só ajustar as distâncias e - pronto! - dar o “pulo do gato”. soldado, Bion o lutador inabalável.
É com esta concentração interna com que Grotstein vai trabalhar a Para quem não sabe - sempre em luta, sempre dando combate -, Bion
maior parte do tempo. Xeretando em tudo, pegando cada pedacinho, cada esteve nas duas grandes guerras, fazendo jus a sua origem huguenote e aos an-
lembrança, cada leitura, cada pesquisa, cada linha escrita e esmiuçando, como cestrais familiares, que lutaram na Índia e na África. O instinto napoleônico:
quem digerisse material mais duro, nos devolvendo letras e sentenças mais apossamento e conquista - aniquilamento do velho e implantação da nova
palatáveis, e mais possíveis de serem compreendidas, para nós. cultura e linguagem - não será o gesto bioniano por excelência. Bion nunca
Buscar articulações e conexões associativas é o que Grotstein vai, pa- se dirigiu aos psicanalistas para prescrever-lhes o caminho, nem para alertar-
ciente e inteligentemente, procurar fazer, e com isto vai re-descrever seu au- -lhes o desvio do mestre, indicando com o dedo todos os que eram impuros, e
tor de escolha e seu ex-analista. Sob esta ótica vai (re) lê-lo, (re) pensá-lo, (re) onde estavam as letras “verdadeiras”, nem como se escreveriam as “verdadei-
explorá-lo, (re) desnudá-lo (algumas vezes), perder-se nele mais e mais vezes... ras” palavras do psicanalisar.
porém, no entanto, todavia, contudo: nunca vai explicá-lo. Quer dizer, vez por Bion, essencialmente foi um homem despojado e direto. Foi ele mesmo.
outra vai explicá-lo, mas sem simplificá-lo. Um homem fechado, contido, auto-determinado e profundo, completamente
Grotstein respeita Bion, além de admirá-lo - mesmo porque não há incapaz de esconder seus defeitos ou suas falhas, esbarrando em uma fran-
outro jeito quando alguém se interessa por Bion -, e ressalta que o legado que queza, que poderíamos chamar, por vezes, de psicótica.
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– um facho de intensa escuridão – o legado de wilfred bion à psicanálise 109
Certamente, não foi um galã e menos ainda um conquistador. Muito que enxerga, mas não é olho, percebe, mas não é órgão.
angustiado para relacionar-se com as mulheres, na verdade, foi salvo pelas Ou seja, para quem vai estudar Bion, melhor será se esse que o estuda
duas que o quiseram, lhe deram filhos e o admiraram. Fora disto, se restrin- puder mover-se bem na escuridão, sem se aborrecer com a aridez do caminho,
giu a ser um militar, formado em literatura, médico, psicanalista e pensador. nem com a demora na intelecção.
Mas seja qual for o lugar pessoal de Bion na história da psicanálise, o Os olhos noturnos de Bion nos remetem aos predadores que caçam
estudo de Grotstein, procura ir onde Bion esteve. E por isto devemos reconhe- no escuro, entre eles, e excepcionalmente metafórico, a coruja é um desses es-
cer que Grotstein fez um trabalho de fôlego. Releu cada livro lido por Bion, se pécimes. O outro é o morcego. Um deles vê no escuro, a coruja; o outro, mais
aprofundou nos campos do saber e da literatura por onde Bion passeou longa- complexo, “ouve” a visão, ou melhor, capta o escuro por um tipo de audição
mente, após as áridas sessões de psicanálise que oferecia a seus clientes; anali- que “ouve” o ricochetear da onda do sonar no objeto onde ela toca, e assim o
sou-se com ele, avançou esse relacionamento para uma amizade, se embrenhou conhece. É o olho infra-sonoro.
em mundos íntimos e em mundos onde o cógito mais e mais se aprofunda no Para nós, mais comuns, Grotstein será luz para nossos olhos cansados
ignorado. Mergulhou na epistemologia, geometria, matemática, medicina, fi- de ler sem entender o que Bion escreve. Grotstein será o nosso Virgílio, é ele
losofia da ciência, artes, estética, mística, o místico, e por fim psicanálise. Leu quem nos guiará na escuridão que é ler Bion. É ele que nos auxiliará nesse es-
tudo ou quase tudo que Bion leu. Tentou compreender as coisas pelo direito e forço de ver no escuro. É assim que ele vai tentar “esclarecê-lo” ao longo do li-
pelas avessas. Trabalhou e trabalhou. vro. Mesmo assim Bion não se fará visível. Mas, de qualquer forma, visível ou
Tanto Bion como Grotstein, falando sobre Bion, reafirmam que, uma não, a simples leitura de Grotstein já melhora consideravelmente as condição
parte importante do processo de conhecer é ser capaz de desconhecer. Isto é, de um possível entendimento da obra bioniana.
conhecer é ser capaz que reconhecer que é impossível e desnecessário que al- No entanto, mesmo com Grotstein, o que aprendemos ao final da lei-
guém saiba de tudo, e que é necessário ignorar para poder aprender. Donde tura é que quanto mais entramos na obra bioniana, maior a dificuldade de ver,
se conclui que ensinar é desnecessário. Porque, ou não aprendemos nada que mais complexa e infinita fica a mente descrita pela veia literária de seu autor.
experimentamos ou, se experimentamos alguma coisa, ninguém precisa nos O purismo determinista de Freud perde todo espaço na teoria de Bion,
ensinar, porque, ao experimentar, já aprendemos. apesar de ser um componente essencial dela. Bion é um fenomenólogo, Bion
Talvez por estas questões levantadas acima, é que possamos pensar que é um místico. Freud um cientista positivista, um determinista[5]. Este estudou
escurecer o olhar é uma das condições necessárias da observação. A não visão as causas da doença mental. O outro, Bion, foi por outro caminho, estudou a
é condição da observação, mesmo porque o óbvio não observado é tão incons- construção do conhecimento, e os programas de fracasso da auto-observação
ciente quanto algo que foi banido da consciência pela força da repressão. Nem que são superados por programas de auto-ódio e auto-amor, bloqueando e tra-
sempre ver, aquilo que está presente, é possível, mas, talvez, seja possível ver vando a máquina de autoconhecimento.
o que não se oferece à visão na visão. É por isto que inconsciente, como já in- Com estes novos instrumentos clínico-teóricos Bion desenvolveu uma
sistimos tantas vezes, pode ser apenas o óbvio não observado, e Bion era fasci- técnica de observação que se restringia propositalmente ao que estava ali a sua
nado por esse jogo binocular, de desfocar a figura para ver o que está no fundo, frente. Nunca saiu deste ponto. Estudou o agora, nunca o passado. Estudou o
retorcendo a perspectiva do próprio olhar. momento e, no momento, quais as possíveis inferências hipotéticas que um
Não ver para ver melhor. Ouvir o ricochetear da imagem no espaço,
que se deriva do rebatimento das ondas infra-sonoras emitidas por um órgão 5. Neville Symington, Joan Symington, O Pensamento Clínico do Wilfred Bion.
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Tradução
‘observador neutro’ poderia realizar para descobrir o futuro daquele evento.
Bion resumiu-se ao observável, ao real da sessão, por isto se interessa
pouco por interpretações de movimento rígido, vai preferir as projetivas, por-
que estas sim facilitam o estudo dos sistemas mentais, que estão em atividade e A transgressão de Raskolnikov e
navegam em direção ao desconhecido, em cada momento da sessão. A “Grade”
é valiosa neste momento; é a partir dela que ele “vê” o cliente.
a confusão entre destrutividade
Já que mencionei a grade, gostaria de falar uma última palavra sobre e criatividade
o livro de Grotstein.
Grotstein esclarece a “Grade”. E isto nos alegra. E isto nos faz ver que é Richard J. Rosenthal
com ela que Bion pensa. É ela que permite a um observador, que suporta a ten-
são da não resposta, a aguardar o momento até que uma aglutinação se forme e Tradução: Julia Paladino
faça algum sentido, e então nesse momento se possa fazer a intervenção analí-
tica. É sobre esta aglutinação que Bion procura informar ao cliente. É isto que lhe Revisão: Marly T. M. Goulart
autoriza a falar sobre o que cada um está fazendo quando se encontra com ele.
Para o estudioso a “Grade” deve ser tomada como a chave do psíquico, Agradecimento à Maria Lucia Mello, que contribuiu para que a tradução e revisão
é ela que permite que haja a mente. A “Grade” é a mãe. A “Grade” permite que deste texto fosse possível.
possamos compreender onde começa e até onde vai o psíquico, é ela que nos
dá acesso a realidade, e é ela que define que Realidade Absoluta e Verdade Úl- Introdução
tima são questões que escapam aos estudiosos, e por isto estão fora do perí- A obra Do I Dare Disturbe the Universe? A memorial to Wilfred R. Bion foi editada
metro e do alcance da “Grade”. por Grotstein como uma celebração aos oitenta anos do importante psicana-
Bem... e assim vai... lista inglês[1]. O livro foi dividido em três partes: contribuições clínicas, con-
E assim, nós, por aqui ficamos... tribuições teóricas e contribuições sobre grupos. O presente artigo, inserido
Ficamos, e mais uma vez afirmamos a importância de Grotstein, e de nas contribuições clínicas, é um estudo feito por Rosental que se utilizou de
sua leitura ser uma leitura sumamente importante. Se puderem leiam, é um conceitos bionianos para uma leitura rica e pormenorizada dos aspectos de
belíssimo livro. Aproveitem! funcionamento mental de Raskolnikov, personagem central da obra literária
É isso aí. universal Crime e Castigo de F. Dostoievvski. A decisão de traduzi-lo foi tomada
por um grupo de membros do Departamento Formação em Psicanálise que
Emir Tomazelli se empenha em estudar e difundir as ideias de Bion.
Rua João Alexandre Rochadel, 62 Psicóloga clínica, membro
Brooklin Paulista do Departamento Formação
emirtomazelli@globo.com 1. Bion e sua esposa cooperaram na preparação da obra, embora Bion tenha falecido antes da sua em Psicanálise do Instituto
publicação. Sedes Sapientiae

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tradução
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– tradução: julia paladino tradução
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade 113
Tradução Alguns outros críticos também enfatizaram essa progressão dual: a
Crime e Castigo é tida como uma das grandes novelas psicológicas da literatura busca pelo autoconhecimento e o movimento na direção da responsabilidade
mundial. Muito frequentemente, Raskolnikov é visto como um homem diri- moral. Raskolnikov é usualmente retratado na crítica literária como um inte-
gido por seu sentimento de culpa, pelo medo de ser preso, de confessar e de ser lectual, um tipo de “homem pensante”. Richard Peace (1971) o resume como
punido. Eu não sinto, no entanto, que esse aspecto seja realçado no texto, pelo “acima de tudo, um homem cujas ações são baseadas na razão fria e calculista”.
menos não da forma que é usualmente entendido. Nem concordo com a inter- George Lukács (1943) descreve como Raskolnikov comete o assassinato com o
pretação edípica da novela que tem sido defendida por uma série de escrito- intuito de “se conhecer”, o crime é entendido como um teste de sua capacidade
res com mentalidade psicanalítica. O primeiro desses é o próprio Freud (1928), moral. Edward Wasiolek (1959) também interpreta o romance como uma pro-
embora a única novela de Dostoievski a que ele se referiu especialmente foi a gressão moral, levando a uma redenção espiritual. “Nós vemos que Raskolnikov
última, os Irmãos Karamazov. Joseph Frank (1975) escreveu um artigo muito vai do orgulho à humildade, do ódio ao amor, da razão à fé e da separação de
reconhecido que revê os erros factuais encontrados em Dostoievski e o parri- seus companheiros a comunicação com eles.” Ele vê a estrutura do romance
cídio. A acepção de Frank (1976, p. 25 a 28) é que um número de lendas sobre construída em volta de duas cenas principais: o assassinato e a confissão. “A
Dostoievski foi originado ou tem sido perpetuado pelo ensaio de Freud. Ofe- confissão se torna o ponto central do teste de renascimento de Raskolnikov.”
recendo minha reinterpretação desse grande romance eu espero não somente Isto chegou perto, aparentemente, da intenção inicial de Dostoievski.
orientar a mim mesmo a elementos formais dentro da estrutura narrativa, Nos Cadernos para Crime e Castigo (1931) onde ele descreve Raskolnikov: “N.B.
mas sugerir como as confusões encontradas na leitura de Crime e Castigo re- O seu desenvolvimento moral começa no próprio crime, a possibilidade de que
fletem um de seus temas principais. tais questões surgissem não teria existido previamente. No último capítulo,
O romance parece ter provocado reações mais intensas, comentários na prisão, ele diz que sem o crime ele não teria alcançado tais questionamen-
mais críticos, na verdade diferenças básicas de interpretação, do que qualquer tos e nem experimentado tais desejos, sentimentos, necessidades, esforços e
outra obra de Dostoievski. O epílogo do romance continua sendo uma das áreas desenvolvimento.”
mais controversas da crítica a Dostoievski, especialmente a questão da rege- Nada disso, no entanto, como logo ficara aparente, surge no romance.
neração moral de Raskolnikov, de fato, uma boa parte dessas diferenças parece A cada novo passo, vemos Raskolnikov se iludindo com o fim de evitar res-
ser fruto da posição moral dos críticos com relação ao romance. ponsabilidades. Ele está tentando não pensar, não sentir e nem se confrontar
Philip Rahv (1960) sugeriu que vejamos Crime e Castigo como uma his- com a realidade. O romance é experimentado nos termos desse ritmo de fuga
tória de detetives, um tipo especial de história, na qual a identidade do assassino e confrontação forçada. Quando ele vai para a Sibéria, ele não está mudado, não
é conhecida desde o começo e o problema para o leitor é desvendar o que mo- sente arrependimento, continua sendo tão arrogante e irritado como quando
tivou Raskolnikov. Rahv vê todo o romance convergindo para a solução desse ele cometeu o assassinato. Parece que ele não aprendeu nada sobre si mesmo
mistério, e ele leva sua ideia mais adiante sugerindo que o criminoso é em si ou sobre suas motivações para o crime. O porquê ele confessou é um mistério
um detetive tentando penetrar no mistério da sua própria motivação. “Nunca tão grande quanto à descoberta do motivo do próprio crime.
está completamente seguro do que exatamente o induziu a cometer o assassi- Tentarei responder a essas questões, e nesse processo espero que sur-
nato, ele deve espionar a si mesmo continuamente num esforço desesperado jam outras, através da aproximação ao romance pela perspectiva psicana-
para penetrar na sua própria psicologia e alcançar o autoconhecimento que lítica, tão ricamente realçada pela contribuição de Melanie Klein e Wilfred
precisa se for assumir a responsabilidade pelo seu ato absurdo e horrendo.” Bion. Isso irá nos permitir entender a raiva e destrutividade que Raskolnikov
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sente em relação à mãe nutridora, e o ódio de seu próprio ódio que precisa de vista do ângulo do vinculo menos K (-K) [Bion, 1962b, p. 95-99]. O conhecimento
suas racionalizações, sua necessidade de ver mãe e irmã – na verdade, todas pode ser usado equivocadamente no sentido de evitar a experiência dolorosa,
as mulheres com as quais ele está em dívida – como roubando-o e, portanto, a possessão de conhecimento poderá ser usada para afirmar a superioridade
merecendo sua hostilidade. de alguém. O vinculo –K eleva a moralidade sobre uma busca científica pela
Splitting, operação defensiva essencial que é a base para todas as outras, verdade, mas o que está realmente sendo afirmado é “superioridade da moral
dá o nome de Raskolnikov (raskol = separar). Splitting excessivo é usado junto sem nenhuma moral”. Um objeto superior, que Bion chama um “super” ego,
com idealização e desvalorização, negação, onipotência e projeção primitiva afirma sua superioridade encontrando faltas em tudo. Logo as relações são des-
(identificação projetiva) com o objetivo de evitar sentimentos de inveja e vo- providas de vitalidade e significado, tornando-se mutuamente prejudiciais e
racidade, abandono e dependência e, sobretudo, culpa, relacionada à sua mãe. destrutivas. O vínculo pode ser chamado de parasitário, um termo que talvez
O assassinato psíquico, tentativa de aniquilar os sentimentos e aspec- melhor do que qualquer outro sintetiza a visão das relações humanas apresen-
tos dolorosos inaceitáveis do self, é a base para o assassinato da velha agiota tadas no romance de Dostoievski.
e sua irmã. Raskolnikov acredita que a frustração e a dor podem ser evitadas A principal característica deste “super” ego é seu ódio por qualquer coisa
através de ataques destrutivos ao aparato mental capaz de percebê-los. Os pen- que ele não conhece, e seu ódio por qualquer coisa nova, inclusive qualquer
samentos são tratados como coisas indesejáveis, aptas apenas para a expul- novo desenvolvimento dentro de sua própria personalidade, que ele vê como
são. Tal identificação projetiva patológica resulta em violenta fragmentação e um rival a ser destruído. O infanticídio é um tema que percorre este e a maio-
na desintegração da personalidade, as partículas evacuadas são experimen- ria dos outros trabalhos de Dostoievski. O ódio é direcionado também contra
tadas como tendo vida própria, ameaçando-o a partir do exterior (Bion, 1957, o próprio ato do nascimento, visto às vezes como uma ejeção hostil que leva à
1958a, 1962a, 1962b). desintegração ou fragmentação, e outras vezes é culpado pelo sentimento de
Crime e Castigo é mais do que uma descrição das mudanças no estado inferioridade e desamparo e pela consciência persecutória de perceber quão
mental deste indivíduo. Sem usar a narração em primeira pessoa, Dostoievski pouco se sabe. Crime e Castigo é precisamente sobre esse tipo de destrutivi-
consegue colocar o leitor parcialmente dentro da consciência de Raskolnikov. dade, é também um romance sobre criatividade incluindo, em algum nível, o
A relação entre mecanismos de projeção primitivos e a estrutura de narração ato de escrever um romance.
é abordada em um estudo anterior (Rosenthal, 1971). Os críticos podem dis-
cordar do significado de Svidrigailov ou Sonia, porém eles geralmente reco- I
nhecem que estes dois personagens pretendem representar dois aspectos da “Seria interessante saber de que é que os homens têm mais medo. Dar um
personalidade de Raskolnikov. Existe uma sensação de que Crime e Castigo se novo passo, pronunciar uma nova palavra[2] é o que eles mais temem... mas
assemelha a um sonho, um pesadelo, na verdade, no qual todos os persona- eu estou falando demais.” (p. 2)
gens são o sonhador e toda a ação, os cenários inclusive, são dramatizações de Raskolnikov, no episódio inicial do romance, expressa o respeito que os
vários estados mentais de uma única consciência. Entrando naquele mundo homens têm pela criatividade. O imaginário espacial relacionado com pensar
e se tornando o sonhador, o leitor compartilha sua experiência, excitações e
desconforto e, provavelmente, confusão também. 2. Dostoievski frequentemente usou a mesma expressão: “proferir uma nova palavra” se referindo à
sua própria criatividade. Por exemplo, numa carta para seu amigo, o poeta A.N.Maikov, maio 15-
Antes de começar uma análise textual do romance, gostaria de dar mais 27, 1869, ele fala do poeta como “criador e fazedor” e escreve: “somente agora você terá o poder de
uma olhada para a aquisição de conhecimento associada à moralidade, mas proferir a nova palavra, sua nova palavra” (Dostoievski, 1923, p. 71-77).
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algo novo, ir para onde homem algum foi antes, prove um significado da pala- O movimento espacial do episódio inicial é coerente com o imaginá-
vra “transgressão” no título do romance. A palavra russa prestuplenie, infeliz- rio do nascimento notado por alguns críticos ao longo de Crime e Castigo. Esse
mente traduzida para “crime”, mais precisamente significa um passo ao outro movimento de atravessar a soleira da porta separando a segurança do que é
lado, ou mais literalmente: um passo sobre uma barreira. conhecido, dos desafios do que não é, seria representativo, e representado pelo
A cena inicial utiliza o imaginário espacial associado com prestuplenie próprio ato do nascimento! Raskolnikov começa em seu pequeno e sufocante
em pelo menos três níveis diferentes. Enquanto elabora seus pensamentos al- quarto onde ele permaneceu na cama, não se importando com nada, e um
tivos sobre o instinto epistemofílico dos homens, Raskolnikov está para dar um tanto sem vida. Ele tenta sair e para isso tem que passar por obstáculos. Uma
passo através de um tipo diferente de barreira. Ele está saindo discretamente vez do lado de fora, a vida borbulha à sua volta; há movimentos bruscos e há
de seu quarto no sótão, tentando evitar sua locatária a quem deve dinheiro e sensações fortes. Sua mãe, no entanto, representada pela proprietária que lhe
tem vergonha do confronto. Ele precisa passar pela porta aberta e atravessar a dá abrigo e alimento, não é vista como a doadora de vida, mas como o obstá-
soleira, com o objetivo de chegar à suposta segurança da rua. No entanto, en- culo para o nascimento. Isso é um alerta, quaisquer outros crimes envolvidos,
quanto ele tenta amedrontadamente passar por ela sem ser visto, ele não está o roubo será um deles. A mãe foi transformada num obstáculo: as suas virtu-
pensando em como pagar suas dívidas. “A ansiedade da sua posição tinha ces- des nutritivas e criadoras foram retiradas dela.[3] Com certeza, as reflexões de
sado de pesar sobre ele. Ele tinha desistido de se importar com aspectos práticos, Raskolnikov sobre criatividade, em suas primeiras palavras para nós, são prece-
ele tinha perdido todo desejo de fazê-lo.” Sua locatária representa um tormento. didas e seguidas de associações com roubo e com o assassinato da velha agiota.
“Ser surpreendido na escada, ser forçado a ouvir seus julgamentos triviais e irre- A ideia do assassinato faz com que Raskolnikov se sinta desconfortá-
levantes, exigindo demandas de pagamento, ameaças e reclamações, e ter que vel; então ao invés de considerar isso, avaliando e talvez rejeitando a ideia, ele
quebrar a cabeça para encontrar desculpas, prevaricar, mentir - não, em vez a evita. Ele reduz isso a uma ninharia. “Não é nada sério. É simplesmente uma
disso ele desceria as escadas como um gato e escaparia sem ser visto.” (p. 1-2) fantasia para me divertir; uma brincadeira! Sim, talvez seja uma brincadeira.”
A dívida de Raskolnikov, sua obrigação para com essa mulher, é vivida (p. 1) Nós veremos muitas vezes que Raskolnikov lida com pessoas desvalori-
por ele como uma perseguição. Para o leitor, ela é uma presença desconhecida zando-as e com pensamentos e sentimentos desconfortáveis se livrando deles,
do outro lado de uma porta aberta; mais tarde, nós veremos que ela é fácil de li- frequentemente através de uma projeção forçada resultando em fragmentação
dar, até mesmo generosa, e a suposição de que ela estaria cobrando e ameaçando de partículas chamadas “ninharias”.[4]
faz parte da cena que ele constrói em sua cabeça. Sua responsabilidade para com
3. Esse objeto de fronteira, danoso e persecutório, é um exemplo especial do tipo de objeto obstrutivo
ela é sentida como um enorme obstáculo bloqueando seu caminho. Ele tenta
descrito por Bion (1958b). Ele aparecerá nos momentos mais cruciais do romance. Clinicamente, eu
lidar com isso evitando ou reduzindo a insignificância. Ele tem uma tomada tenho encontrado fantasias desses objetos mais frequentemente associadas com comportamento
de consciência momentânea de que está com medo de tais “ninharias” repre- perverso e da doença psicossomática. Depois de ter escrito isso, eu descobri que James Grotstein
(1977) refere-se a um objeto de fronteira, que junto com os outros objetos internos, pode ser transfor-
sentadas pelo confronto com a proprietária. Nós estamos agora em posição de mado no que ele chama de objeto de impedimento.
afirmar o segundo significado do símbolo da entrada (soleira da porta). Na no- 4. Palph Martlaw (1957) reviu um grupo de imagens fortemente relacionadas, os insetos e besouros
que aparecem ao longo dos escritos de Dostoievski, que representam da mesma forma tentativas
ção de Raskolnikov de responsabilidade, ou obrigação, outra pessoa é concebida de desumanizar ou reduzir a insignificância vários atributos inaceitáveis. Eu estou chamando aten-
como uma barreira. Muitos de seus atos, incluindo os assassinatos, são tentati- ção para a dinâmica envolvida em tal processo, a fragmentação e projeção e os resultantes senti-
mentos de vazio, de se sentir incapaz de se defender, ou ser facilmente pressionado. “Ninharias”
vas onipotentes de passar por cima de sua culpa. Se essa barreira não existisse, é talvez a melhor tradução para pustjaiaki, que leva a insignificância, “nada com nada.” A palavra
ou se ele conseguisse saltar sobre ela, então ele acredita que poderia ser livre. russa deriva de pustoy, que significa “vazio”. Essa associação está infelizmente perdida na tradução.
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A importância do espaço na estrutura narrativa de Dostoievski foi está ao seu redor e sem se importar com isso” (p. 2). A multidão ao seu redor
notada por Bakhtin, que apontou como ele concentra todas as ações de seus contrasta com o vazio de dentro da “sua mente”. A sensação predominante é
romances em dois pontos: 1) nas entradas (portas, escadas, corredores) onde o olfato e ele reage com nojo aos odores a sua volta. Seu coração está cheio de
crises e momentos-chave acontecem; ou 2) em regiões, lugares abertos onde amargura e desconsideração acumulada e ele evita encontrar qualquer conhe-
catástrofes e escândalos acontecem (Bakhtin, 1929). O que não foi apontado cido. De repente um homem bêbado em “uma carroça puxada por um cavalo
ainda é o jeito que Dostoievski usa lugares físicos para representar espaços pesado e seco” grita bem alto: “Hei você, chapeleiro alemão!” e aponta para ele.
mentais, mas para fazer isso precisaríamos de algum entendimento de iden- Raskolnikov reage com terror e confusão. Ele está tentando ser imperceptível e
tificação projetiva (Klein, 1946, Rosenfeld, 1969). seu chapéu é muito notável: um detalhe trivial que pode arruinar todo o plano.
O uso da projeção por Raskolnikov é dramatizado para nós através de “Ninharias, ninharias são o que importa! Porque, são tais ninharias que sempre
seus esforços por sair do prédio para a segurança que ele imagina encontrar arruínam tudo.” (p.3) Ele evitou a sua proprietária alemã, reduziu-a a uma ni-
na rua. O mecanismo recebe representação concreta como o movimento en- nharia, para depois ser ridicularizado por seu chapéu alemão, outra ninharia.
tre dentro e fora, ou através da barreira entre o si-mesmo (self) e o fora-de-si- A cena seguinte contrasta com esta, Raskolnikov visita a velha agiota,
-mesmo (non-self). Essa colocação dos aspectos do si-mesmo onde eles não um “ensaio” de seu projeto. Ela abre a porta com um estrondo e num primeiro
pertencem, a intrusão resultante nos outros, é uma transgressão, tanto mais relance ele vê apenas seus olhos, examinando-o. Ele trouxe algo para penho-
significativa quando há alguma alusão de que ocorre à custa de outra pessoa. rar, o relógio de seu pai, o qual ela dispensa como uma ninharia, não vale nada.
Esse é o terceiro e o mais básico significado da transgressão simbolizado pela Ele a estuda e o seu entorno; eles completam a rápida transação e ele sai. Mas
fuga de Raskolnikov através da soleira da porta de sua locatária[5]. um confronto surgiu. Ele olhou no rosto dela e para sua intenção, e por causa
A porta aberta, que irá reaparecer em um dos momentos mais significa- disso, ele percebe o quão detestável e imunda é a sua ideia. Ele sente o horror,
tivos do romance, representa a falha de Raskolnikov em separar dentro e fora, a realidade disso. Nesse momento a realidade psíquica é restaurada e ele recu-
realidade interna de realidade externa. A utilização excessiva de mecanismos pera seu estado mais saudável. Ele reconhece as suas necessidades, sente sede,
de projeção resulta em confusão entre si-mesmo e os outros e entre fantasia lembra que não comeu, experimenta um desejo de estar com outras pessoas, e
e realidade. A identificação projetiva, em sua ênfase na obliteração da separa- se sente amigável com aqueles à sua volta. O Capitulo Um começou com um
ção psicológica envolvida na projeção, traz mais luz à imagem do parasita que evitamento seguido pela sua consequência e terminou com uma confrontação
igualmente invade as fronteiras do corpo, e não pode tolerar ou sobreviver à seguida pela sua consequência. Vendo as pessoas e as coisas como elas são, co-
separação do hospedeiro. nhecendo suas necessidades e seus sentimentos, Raskolnikov se torna humano.
O sentimento de depleção psicológica de Raskolnikov é acompanhado Nesse estado de espírito, ele entra numa taverna, onde encontra Mar-
por uma ansiedade persecutória aumentada, um estado mental que é dramati- meladov. A confissão do ex-atendente bêbado é uma repetição do primeiro
zado neste episódio e repetido ao longo do romance. Uma vez na rua, Raskolni- tema: dividas com uma mulher, esforços para evitá-la, consequências perse-
kov entra em “uma completa escuridão mental; ele andou sem observar o que cutórias. Marmeladov começa com uma idealização de sua mulher. Para essa
visão permanecer, necessita de uma defesa frequente. “Eu sou um porco, mas
5. Ver Roheim (1922) e Federn (1929), para entender algumas descrições psicanalíticas anteriores ela é uma dama!” Ele proclama. Nós vemos como ela o compara ao seu pri-
do simbolismo da soleira da porta complementar ao que foi usada aqui. Freud (1900) refere-se à
descrição de Silberer sobre o simbolismo da soleira em sonhos que concretamente representam a
meiro marido e reprova-o pelo que ele não é. Mesmo tendo trabalhado duro e
transição do sono para a vigília. se esforçado ao máximo, ele não consegue agradá-la. Um objeto idealizado não
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é um objeto amado; é um objeto de demanda! Marmeladov não tem esperança Marmeladov não aguenta olhá-la no rosto e ver o sofrimento que tem
de aproveitar a vida distante das expectativas de sua esposa, no lugar disso se lhe causado; é melhor punir-se externamente do que a experiência da respon-
sente perseguido pela mesma. A sua resposta é roubar dinheiro dela para se sabilidade. É para evitar esse reconhecimento da culpa que ele ataca tanto a ela
embebedar. As suas altas proclamações de culpa vêm com muita facilidade e quanto a si mesmo. Uma das coisas que ele parece evitar é a consciência que
não levam as atitudes construtivas. Tais maneiras inconvenientes são falsi- sua mulher está morrendo e isso o torna completamente desamparado. Ele
dades. Ele aparenta ter evitado qualquer sentimento de responsabilidade pelo é incapaz de tolerar o sentimento de culpa por tê-la machucado, no entanto,
seu comportamento e talvez pela sua culpa também. seus esforços para fugir da culpa o levam para ações futuras que irão machucá-
Marmeladov tem uma necessidade de idealizar sua mulher, no entanto, -la ainda mais e eventualmente levarão à destruição tanto dela quanto dele.
isso não o impede de apresentar, mesmo que indiretamente, suas acusações No próximo capítulo, Raskolnikov lê a carta de sua mãe e, em uma co-
contra ela. Embora alguns críticos “culpem” tanto Marmeladov quanto sua mu- municação que traça um paralelo com a confissão de Marmeladov, surge mais
lher pela catástrofe doméstica, outros tentaram descartar as dificuldades para uma variação do tema dívidas. A mãe de Raskolnikov aponta o fracasso dele
somente concluir que eles se merecem. Tanto marido como mulher impõem em ajudá-la e a sua irmã e revê toda a dificuldade e humilhação que tiveram
um ao outro uma camisa-de-força feita de expectativas; os dois idealizam e que passar. Esses sacrifícios foram feitos por causa dele, e agora sua irmã Dou-
culpam. O que nós testemunhamos é uma mútua identificação projetiva onde nia está planejando casar com Luzhin, um ato de escravidão desesperançada
as duas partes se atacam pelos seus próprios defeitos, um casal que se destrói que se assemelha à prostituição de Sonia. A carta não deixa dúvidas quanto ao
mutuamente: o que Bion representaria através do signo - (♀ ♂). sacrifício que tem sido feito por amor a Raskolnikov e por causa de sua “ina-
Há, no entanto, outro nível do sofrimento de Marmeladov. Em um dado bilidade de prover qualquer coisa mais substancial”.
momento, em meio as suas reclamações, ele se torna real; e se você presta Podemos agora rever a sequência narrativa desde a proprietária pas-
atenção no seu discurso, os sentimentos afloram. Ele tem evitado ir para casa, sando pela agiota, pela esposa de Marmeladov, até a mãe de Raskolnikov. Cada
prolongando a sua bebedeira para não confrontar-se com sua mulher. Não o uma dessas mulheres é alguém a quem um homem tem dívidas; cada uma
importa se ela arrancasse seus cabelos; seria até melhor, ele nos diz, se ela o fi- delas é vivenciada como uma perseguidora, pois é por culpa de cada uma delas
zesse. “Não é disso que eu tenho medo... é dos seus olhos que eu tenho medo... que o homem persegue a si mesmo. Um movimento progressivo aconteceu:
sim, seus olhos... a vermelhidão de suas bochechas também me assusta... e sua a proprietária era desconhecida por nós; a agiota é confrontada brevemente;
respiração também... Você percebeu como as pessoas nesse estado respiram... a esposa de Marmeladov é vivamente descrita mesmo que em terceira pes-
quando elas estão excitadas?”[6] soa; a mãe de Raskolnikov representa a si mesma através da carta. O efeito no
leitor, como também em Raskolnikov, é da mulher chegando cada vez mais
6. Snodgrass (1960) comentou sobre este parágrafo: “Este é o retrato literal da primeira esposa de perto. A experiência de aproximação é ainda mais forte pela progressiva in-
Dostoievski, que morreu de tuberculose em 1864 após um longo período de doença envolvendo
omissões pelas quais ele se sentiria culpado.” Esta pode ser também uma referência à mãe do au- tromissão feminina.
tor, que morreu de maneira semelhante. Parece que o suposto assassinato do pai de Dostoievski Snodgrass apresenta um excelente delimitador do método com o qual
ocorrera enquanto a sua esposa estava grávida dele, ou mesmo durante o parto, ou logo a seguir.
Foi a partir desse episódio que sua tuberculose agravou-se. Ela pode criar Mikhail, nascido um a mãe provoca a culpa: “ela aprendeu a doce arte materna de introduzir cada
ano antes, mas não ele ou nenhum outro dos filhos subsequentes. Ver Dave Magarshack (1961, p. item de acusação como se fosse um cuidado para com seu filho ou uma recla-
19) e Frank (1976, p. 23). Sabemos que indivíduos nascidos em tais circunstâncias frequentemente
acreditam que seu crescimento e desenvolvimento, e até a sua própria existência, é à custa de al-
mação sobre si mesma. Dessa forma ela é capaz de insultar o quanto quiser sem
guma outra pessoa e que eles são pessoas enormemente destrutivas. perder nunca o tom convincente de um santo altruísmo e uma preocupação
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para com os outros” (1950, p. 215). Ela sempre lembra Raskolnikov que todos Mas primeiro ele revê as alternativas. Por um momento, considera ir
seus pensamentos e ações são motivados por amor, a mensagem apresentada ver Razumihin, um amigo dos tempos de estudante. O que segue é uma com-
é de que o amor escraviza.[7] paração entre a onipotência e a forma legítima de fazer as coisas. Razumihin,
Raskolnikov se sente ameaçado pela dívida com sua mãe e percebendo cujo nome significa “razão, bom senso”, demonstra o tipo de força real que falta
que ela irá viajar para São Petersburgo e que precisará encarar as suas obriga- em Raskolnikov. Mesmo estando com as mesmas dificuldades financeiras, ele
ções, sente-se sufocado e precisa fugir para a rua. tem feito pequenos trabalhos: traduções e aulas. Consegue aceitar as coisas
Wasiolek (1974), ao discutir o artigo de Snodgrass, discorda dessa visão como elas são, faz o melhor delas e, por conta disso, supera as adversidades, é
de Raskolnikov como “vítima”, em vez disso aponta o papel do protagonista bem-humorado e todos gostam dele. Raskolnikov, por outro lado, não quer os
de armar tal situação. Os dois pontos de vista dos críticos são bem fundados. frutos do trabalho duro, mas sim “ficar rico rapidamente”. Como ele confessa
Com relação à Marmeladov, não é uma questão de quem culpar, mas da natu- para a servente, se ele não pudesse ficar rico de uma vez, ele logo passaria fome.
reza de destruição mútua da relação. A carta da mãe une uma realidade parti- Além do mais ele é arrogante e reservado, ninguém gosta dele. “Para alguns
cular externa e interna (psíquica) até que elas coincidam. Aumentando, assim, de seus colegas, ele parecia vê-los de cima como se fossem crianças, como se
o sufoco de Raskolnikov, as duas realidades têm se aproximado na sequência tivesse um desenvolvimento superior, conhecimento e convicções, como se os
narrativa, começando pela grande disparidade na descrição da proprietária no credos e interesses dos colegas estivessem abaixo dele.” (p. 46) Pensa que Ra-
episódio inicial. Depois de ler a carta de sua mãe, Raskolnikov se sente interna zumihin o ajuda? Raskolnikov percebe então que teria que se endividar com
e externamente perseguido. Ele esta encurralado, expressa isso quando relem- ele, essa é a ultima coisa que ele pode tolerar. Ele desiste de vê-lo, até que não
bra a pergunta de Marmeladov: “Você compreende, senhor, você compreende precise dele – depois do assassinato.
o que significa não ter para onde fugir?” (p. 40) Raskolnikov vê uma garota de dezesseis anos, bêbada e desarrumada.
Como Raskolnikov responde ao seu apuro? Sua culpa e desamparo se Aparentemente foi seduzida e agora um almofadinha, que se chama Svidrigai-
transformam em ódio pela sua mãe e irmã, ele sente que elas o estão perse- lov, está prestes a se aproveitar dela, esse é o homem que quis tirar vantagem
guindo e controlando através de seu amor “sacrificado”. Acima de tudo, ele sente da sua irmã. Raskolnikov vai ao socorro dela, chama um policial, oferece di-
a necessidade de agir. “Está claro que ele não deveria sofrer passivamente, se nheiro. De repente, para abruptamente e é picado pela dúvida: “Será que devo
preocupando com questões não resolvidas, mas que ele precisa fazer algo, de ajudar? Será que tenho o direito de ajudar? Deixe que eles se devorem vivos.” (p.
uma vez, e rápido.” (p.40) Essa é uma ideia crucial em todos os escritos de Dos- 45) É crucial que ele não diga deixe que ele a tenha, ou deixe que ele a devore,
toievski: a solução onipotente. Fazer algo, qualquer coisa, traz a sensação de mas sim deixe eles se devorarem. Desta forma reconhece a perseguição pela
poder em vez de desamparo. A ação pode ser totalmente ineficiente e ser mera- vítima, talvez orientado pela sua própria projeção da voracidade oral. Ele lem-
mente um gesto para mostrar que se pode fazer algo. Geralmente, é destrutiva bra a sua fúria, não somente contra si mesmo, mas contra sua mãe e sua irmã.
e provoca o efeito inverso. É neste momento que o pensamento de Raskolnikov Seus esforços para ajudar a garota de dezesseis anos não consistiram
retorna ao seu objetivo assassino. somente em chamar um policial e espantar o almofadinha, ou demonstrar
simpatia, mas lhe dar dinheiro. Ele então pode se perguntar se seria o seu pró-
prio dinheiro e conclui que seus esforços para ajudá-la são à custa da mãe e
7. Snodgrass também nos lembra que os personagens do romance frequentemente emprestam di-
nheiro ou ajudam outros para se sentirem mais poderosos à custa dessas pessoas. Quem recebe a
da irmã. Ajudar outra pessoa é novamente visto como detrimento para uma
ajuda ou o empréstimo não se sente agradecido, antes disso sente que foi usado ou roubado. das partes – um roubo! Já que ele não tem direito de fazer boas ações, a única
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saída é fazer más ações. Até agora, identificamos Mikolka com Raskolnikov e a velha égua com
Os vários elementos do caráter de Raskolnikov são agora resumidos um aspecto inaceitável de Raskolnikov com a velha agiota. Além de represen-
em seu famoso sonho. No sonho, Raskolnikov tem sete anos e está andando tar algumas qualidades do superego, Mikolka personifica um pouco da ganân-
com seu pai, indo para o cemitério onde sua avó e seu irmão menor estão en- cia e do egoísmo de Raskolnikov. Ele insiste em lotar a carroça, ele levará todo
terrados. Quando eles passam por uma taverna, um tipo de festividade está mundo, ele diz, e irá obrigar o velho animal a galopar. Ele continua insistindo
acontecendo, moradores da vila, alegremente vestidos, cantam e bebem. Há que ela é sua propriedade e que pode tratá-la como quiser. “Minha propriedade!
uma carroça puxada não por um cavalo forte, mas por uma velha égua magra Minha!” ele repete. Em um dado momento, no entanto, Mikolka admite que o
de algum camponês. O dono da carroça, Mikolka, diz para todos seus amigos sofrimento da égua esteja “partindo seu coração,” e é justamente por isso que
bêbados entrarem na carroça e açoita a égua para fazê-la andar. Os campone- ele quer matá-la. No entanto, ele logo se desfaz da sua responsabilidade, des-
ses riem dos débeis esforços do pobre animal e instigam Mikolka a açoitá-la merecendo a égua: “Ela não vale as rações que come.” Mais tarde, durante o
mais. Mikolka entra numa onda de fúria, ele e os outros batem na égua até açoite, os esforços do animal fazem até os observadores mais simpáticos sorri-
a sua morte. O garotinho, aterrorizado, corre para detê-los e coloca seu braço rem. “Pensar nesta bestinha pobre coitada tentando chutar.” (p.51) Essas des-
ao redor do pescoço da égua morta, beijando seus olhos e lábios. Raskolnikov crições sugerem um bebê, voraz e com demandas, incapaz de tomar conta de
acorda com horror da ideia de matar a velha agiota, mas com a imagem vívida si ou dos outros e, por isso, inútil. Há mais evidências disso. Depois que a égua
de acertar sua cabeça com um machado, partindo seu crânio, o sangue. Seu é morta, o garotinho a segura e beija seus lábios, da mesma forma que beijou
corpo sente como se tivesse sido ele o animal açoitado. o túmulo de seu irmão menor na primeira metade do sonho.
Se a égua representa a velha agiota, também representa Raskolnikov. Muitos críticos ignoraram essa primeira parte do sonho: ela está enco-
Sua mãe e irmã farão parte da viagem em uma carroça de camponês e ele, berta pelo horror e excitação da imagem dramática da égua sendo açoitada até
sendo a cabeça da família desde que seu pai morreu, é incapaz de puxar sua a morte. Além disso, a segunda metade do sonho aproxima os assassinos. Eu
carga. No primeiro capítulo, um homem passando numa carroça, ridicularizou- acredito que a questão espacial do sonho ajuda a entender o seu significado: A
-o pelo seu chapéu. Marmeladov também foi ridicularizado de forma similar taverna está localizada no caminho para o cemitério e representa uma defesa
na Taverna por seus débeis esforços para com sua família. A égua parece ainda maníaca (uma estrutura psíquica ou um tipo de barreira) contra ansiedades
mais ridícula quando comparada com seus predecessores. Similarmente, Mar- depressivas mais profundas. Há um sentimento de ter perdido alguém que é
meladov não consegue competir com o primeiro marido de sua mulher; nem valorizado, duas pessoas, as quais ele relembra periodicamente. Mas diz para
Raskolnikov consegue se equiparar aos sentimentos de como ele deveria agir. si mesmo, no sonho, que ele nunca viu sua avó e que não tem nenhuma lem-
Claramente essa égua não consegue puxar a carroça por si só, ela precisa de brança de seu irmão, enfatizando isso, nunca tendo os visto, ele não poderia
ajuda. Podemos observar, no entanto, como Raskolnikov vê sua própria ina- ser responsável pelo que ocorreu a eles. Nós já percebemos como Raskolnikov,
dequação. A égua, que representa sua fraqueza, é feita para ser ridicularizada, e também Marmeladov, não aguentam ver suas vítimas e quão aterrorizantes
açoitada, aniquilada pelos outros aspectos de sua personalidade, representa- e culposos são os olhos do sofrimento. A égua é açoitada principalmente en-
dos por Mikolka e seus bêbados camponeses. Fraqueza e passividade são igua- tre os olhos, para que ela ficasse cega e não pudesse encarar seus agressores.
ladas à inutilidade e desprezadas. Raskolnikov irá lidar com esses aspectos do Raskolnikov pretende se livrar de aspectos inaceitáveis de sua perso-
si-mesmo projetados na velha agiota e em uma extensão variável, a todos os nalidade os projetando na agiota e matando-a a seguir. Isso é feito para se de-
personagens femininos do romance. fender da culpa e do temor de que seus impulsos vorazes e destrutivos tenham
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destruído ou destruam a “imago” maternal que ele ama e da qual ele depende. Lizaveta, diz, “ela é uma criatura tão doce e gentil, pronta para suportar qual-
Depois do sonho, há um flashback onde dois personagens secundários falam quer coisa”. Quando o oficial ressalta que ele parece estar atraído por ela, ele
através dos pensamentos de Raskolnikov. O estudante desconhecido, esse ou- responde: “Não. Vou te dizer uma coisa. Eu poderia matar esse diabo de mulher
tro estudante, descreve a velha agiota como uma pessoa sem valor, um objeto e me divertir com seu dinheiro.” (p. 58) Eu acredito que o que está sendo ex-
desprezível. Já que sua vida não tem valor, matá-la e roubá-la seria um ato hu- presso são os sentimentos hostis contra a bela mãe doadora de vida, o desejo de
manitário, do qual muitos outros se beneficiariam. “Uma morte e cem vidas em vorazmente atacá-la e roubá-la, dilapidar seu interior e esvaziar seus tesouros.
troca, é pura aritmética!” (p. 59) Novamente temos a ideia de que para alguém Um pouco antes da sua jornada assassina, Raskolnikov deita no seu
se beneficiar, outra pessoa precisa ser sacrificada, neste caso, a velha agiota. sofá e tem uma série de estranhos devaneios. Em um deles, aparece um oásis
Além disso, esse outro estudante enfatiza que é a agiota que ganancio- egípcio, a caravana está descansando; as palmeiras formam um círculo com-
samente se aproveita dos outros. Ela é uma sanguessuga, um piolho parasita pleto. Todos estão fazendo sua refeição, mas ele está bebendo água fria de um
que usa as vidas dos outros (de novo uma projeção do bebê necessitado e vo- riacho: uma maravilhosa água azul e fria. A areia brilha como ouro. Muitos
raz). Ela é maliciosa, outro dia mordeu o dedo de sua irmã só por maldade. Essa críticos interpretaram esse devaneio como um começo de uma benigna re-
meio-irmã, Lizaveta, é descrita aqui e ao longo do romance como um bebê ou generação moral, mas eu penso que eles o fizeram por causa de uma falta de
estando sempre grávida. “Ela era mantida completamente isolada como uma entendimento das vicissitudes da onipotência. Certamente o sonho é ilusório,
criança.” (p. 57) Ela é “como um bebezinho” (p. 55), e no momento que Raskol- fala sobre água e o saciar da sede. Como George Gibian (1967) aponta, a água re-
nikov a mata, “sua boca treme penosamente, como a boca de um bebê” (p. 71). presenta criatividade, uma vida melhor, forças positivas na mitologia de Dos-
Há uma ambiguidade peculiar no romance, que está em quantas pes- toievski. É irônico pensar que Raskolnikov teria pensamentos criativos numa
soas Raskolnikov matou. Há uma sugestão que se repete de que Lizaveta estava época em que está prestes a cometer um ato tão destrutivo. Mas isso é típico
grávida, então são três as vítimas. No entanto, Raskolnikov, geralmente se re- de seu estado mental particular. No caminho para a casa da agiota, ele estará
fere apenas a sua primeira vítima, a velha mulher, como se tivesse cometido pensando em construir fontes e aumentar o jardim. Mais adiante no romance,
apenas um assassinato. Nos Cadernos, Dostoievski dá ainda mais atenção ao quando Svidrigailov comete suicídio, ele irá se destruir cercado de imagens de
fato de Lizaveta estar grávida. Em um dado momento ele escreve: “Eles fize- água, flores, nascimento e criatividade. Parece que Dostoievski compreende,
ram uma cesariana nela, ela estava grávida de seis meses. Um menino, nascido mesmo que intuitivamente, como a mania e a perversão podem confundir
morto!” (p. 96) Em um caderno posterior, ele escreve, “e ela foi morta grávida”. bem e mal e mascarar a destrutividade à guisa de seu oposto.
Isso é seguido por uma nota que está rasurada: “A velha mulher bateu nela A fantasia de oásis de Raskolnikov é tipicamente uma fantasia maní-
quando ela estava grávida. Eu vi isso com meus próprios olhos. Grávida, grá- aca de onipotência, uma reunião oceânica com a boa mãe, com gratificação
vida no sexto mês.” (p. 165) Em outros escritos, no entanto, Lizaveta já havia oral e sono como resultado. Na fantasia, ele não está sentado comendo com os
dado à luz e a criança era agora de Raskolnikov e amada por ele. outros, mas tem sua própria fonte de nutrientes idealizada. A base para isso
No sonho, há uma imagem adicional que eu acredito ainda não ter sido está na pista de que as coisas não são do jeito que aparentam ser; que a areia
comentada: ao lado da carroça, uma grande mulher gorda com um vestido ver- é considerada ouro. A fantasia é um jeito de negar a dependência de uma mãe
melho está quebrando nozes. Essa figura caricatural é uma futura evidência exterior. Ele pode cuidar de suas próprias necessidades; seu círculo está com-
da hostilidade contra a mãe grávida. Na conversa entre o estudante e o oficial, pleto. Já que ele contém a fonte de todos os suprimentos, a mãe exterior, ou
há uma transição peculiar que dá suporte a essa ideia. O estudante, falando de sua substituta, a velha agiota, não tem valor, ou é mesmo uma mãe ruim e,
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como tal, pode ser destruída. Tais fantasias também negam a mortalidade e a realidade interna e realidade externa.
passagem do tempo [8] Tendo projetado aspectos do si-mesmo na velha agiota e depois a ma-
Sua preocupação com a fantasia o mantém na cama enquanto deveria tado, Raskolnikov introjeta e sente-se identificado com a introjeção morta e
estar executando seus planos. Ele está quase totalmente despreparado para o presa dentro dele. A próxima parte da narrativa é como um pesadelo. Raskol-
que está prestes a fazer, e fica chocado quando o relógio bate às sete e meia e nikov está preso dentro do apartamento, alguém desconhecido sobe as escadas.
percebe que já é tarde. Sua reação é negar a realidade externa decidindo que o “De repente se transforma numa pedra, é como um sonho no qual alguém está
relógio andou rápido demais. Nós relembramos que na visita anterior à giota, sendo perseguido, quase pego e será morto e é procurado até o encontrarem e
ele deu a ela o relógio de seu pai. Porque a fantasia o mantém na cama quando não pode mexer os braços.” O visitante desconhecido para em frente à porta.
deveria já ter saído, ele ainda está na casa da velha mulher quando Lizaveta “Eles agora estavam parados um em frente ao outro, da mesma forma que ele
volta. O aspecto autodestrutivo da fantasia resulta em um segundo assassinato, esteve com a velha mulher, quando a porta os separava e ele estava ouvindo”
a morte da boa Lizaveta, e no risco de quase ser pego. (p.73) Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.
Raskolnikov passa pelo assassinato de uma forma quase sonâmbula. Agora, parado do lado de fora da porta, com dois cavalheiros desconhe-
Projetar tanto dele na velha mulher e em Lizaveta o deixou desgastado e inca- cidos batendo na porta para conseguir entrar, Raskolnikov se sente comple-
pacitado. Ao longo do romance ele desmaia, está fisicamente fraco, febril, deli- tamente desamparado. “Enquanto eles estavam batendo e falando ao mesmo
rante, incapaz de pensar. É também óbvio que ele se identifica com suas vítimas tempo, pensou várias vezes na ideia de acabar com tudo de uma vez e atirar
e se sente contaminado, prestes a ser paralisado, separado da vida, morto.[9] neles através da porta. Por vezes ele era tentado a xingá-los, rir deles, enquanto
Depois de ter cometido o segundo assassinato e roubado o que podia, eles não podiam abrir a porta!” (p. 78) Essa seria a solução onipotente, auto-
Raskolnikov está prestes a sair, quando ele experimenta um choque de ter- destrutiva ao extremo, mas dirigido para a ilusão momentânea de poder de-
ror: a porta do apartamento foi deixada destrancada e aberta. O momento fensivo contra o reconhecimento de seu desamparo. Deste ponto em diante do
mais aterrorizante da cena do assassinato está contido nessa imagem da romance, Raskolnikov irá sentir esse poder destrutivo apenas nos momentos
porta aberta. Durante o assassinato, muitos leitores se identificam não com em que está desamparado e longe de tudo.
a vítima, mas com Raskolnikov. Neste momento de maior vulnerabilidade, O leitor tem que concordar que não é através de nenhuma habilidade
ele pode ser espionado ou considerado um intruso (mais tarde, em outro mo- pessoal que Raskolnikov consegue escapar da casa da agiota, mas através de
mento muito privado, quando ele está confessando o assassinato para Sonia, algo completamente fora de seu controle, uma continuação do mesmo acidente
Svidrigailov estará ouvindo escondido detrás da porta). A porta aberta, como do destino que o ajudou a cometer o crime. Quando ele volta para seu quarto,
eu disse anteriormente, está fortemente relacionada ao mecanismo de iden- deita em sua cama e cai não tanto num sono, mas numa espécie de “amnésia”
tificação projetiva e simbolicamente representa a ruptura da separação en- (p.78). Esse é o fim da parte I do romance e é um bom momento para parar,
tre si-mesmo (self) e a representação do objeto, assim como a confusão entre resumir o que aconteceu e prever o que está por vir.

8. Dostoievski reconhece a importância das tentativas de transgredir os limites do tempo. Nos Ca- II
dernos ele escreveu: “O que é o tempo? O tempo não existe. O tempo são números é número???; o A partir da cena inicial até o assassinato: Eu foquei a progressão de eventos
tempo é a relação da existência com a não-existência.” (p. 195)
9. A identificação de Raskolnikov com suas vítimas, que fica evidente ao longo do romance, é tam-
psicológicos que culminaram na tentativa de Raskolnikov aniquilar a agiota e
bém uma das maneiras que ele encontra para evitar o reconhecimento de sua culpa. o que ela representa. O que Raskolnikov apresenta para si mesmo como o ato
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criativo de um super-homem, operando racionalmente na base de “pura arit- “novo passo” magicamente simples que irá resolver todas as suas dificulda-
mética,” eu tentei descrever como termos básicos não racionais que parecem des. Isso serve para a dupla função de desvalorizar a criatividade, enquanto se
estar lhe guiando. Sua “transgressão,” como eu apontei, não é simplesmente coloca como o criador.
o assassinato de outro ser humano, um passo além dos limites da lei e da or- Essa terceira estratégia de defesa, então, envolve não somente uma
dem; é mais uma transgressão psicológica, relacionada com três manobras confusão randômica entre criatividade e destrutividade, mas o reverso das
defensivas. Como na cena de abertura onde Raskolnikov tenta evitar o reco- duas: Eventualmente uma defesa maníaca na qual a culpa para com a mãe é
nhecimento de sua dívida e culpa relacionada a uma outra mãe substituta, negada através da visão de si mesmo como contendo a boa mãe; enquanto a
sua locatária, ele tenta fugir progressivamente dessa experiência. Em certo mãe real, ou sua substituta, a agiota, é má e merece ser destruída. Assim a si-
nível, ele transgride a fronteira entre o si-mesmo e o outro pelo uso massivo tuação que Dostoievski retratou no apartamento da agiota também ocorreu
do mecanismo de projeção primitiva. Ele lida com sentimentos desconfortá- internamente: Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.
veis projetando-os. Então se sente perseguido quando percebe restos desses A agiota contém uma projeção dupla: ela não é somente a mãe em
sentimentos no mundo exterior. quem Raskolnikov projetou sua hostilidade, para que ela se torne uma cari-
Quando as dívidas de Raskolnikov começam a sufocá-lo – particular- catura da mãe má; mas por um mecanismo similar, ela também representa o
mente com a chegada da sua mãe e sua irmã –, ele é levado a uma ação ex- bebê mau, o piolho parasita. Como resultado do seu crime, Raskolnikov mata
terna de natureza cada vez mais onipotente. O ato onipotente significa negar Lizaveta, a mãe generosa e doadora. Na tentativa de destruir seu perseguidor
o desamparo, dependência, ou culpa, torna-se o segundo nível de sua tenta- ele também mata a fonte de vida e esperança dentro dele, o objeto bom inter-
tiva de encontrar uma solução. Através desse “novo passo”, Raskolnikov não nalizado. O restante desse texto está centrado nas consequências de tal ato.
tenta reparar o dano ou encontrar uma solução interna, mas sim ultrapassar Quando a segunda parte começa, Raskolnikov encara uma situação
sua culpa em direção a um mundo imoral. Ao invés de prezar a capacidade de que reproduz a fantasia infantil universal de ter vorazmente ou sadicamente
culpa e compaixão como uma qualidade humana madura e necessária, esta é atacado ou destruído o objeto amado. Hanna Segal (1952) descreve essa fanta-
vivida como uma fraqueza feminina e infantil, a ser abolida ou desapropriada. sia, na qual o objeto amado “é destruído, despedaçado e fragmentado”; e não
A relação mãe-criança torna-se o protótipo da destruição mútua: uma somente o objeto externo é atacado, mas também o interno; então o mundo
dupla peçonhenta, uma visão que, no romance, atinge a relação entre homens interno sente-se destruído e desolado. “Pedaços desse objeto destruído podem
e mulheres. Raskolnikov não somente odeia a si mesmo por se importar, mas se tornar persecutórios e há também um temor da perseguição interna na
idealiza aqueles que ele pensa estarem livres de tais preocupações; aqueles forma de um lamento pelo objeto perdido e culpa por tê-lo atacado.”
que estão acima de tais sentimentos e por isso no controle: os super-homens Na falta de acreditar suficientemente na capacidade de restauração,
onipotentes. o objeto perdido é sentido como uma perda irreversível, a situação sem es-
Na sua necessidade de negar o desamparo e a dependência, qualquer peranças. Em tais condições o ego se torna um sistema de defesas maníacas,
comparação entre o que foi dado a ele e o pouco que foi capaz de dar de volta com intuito de defender-se do desespero total: a negação da realidade psíquica,
torna-se uma dolorosa humilhação. Estes sentimentos se focalizam particu- controle onipotente, e a regressão para o mais primitivo uso do spliting e da
larmente no próprio ato de dar à luz. Não somente ele nunca poderá retribuir identificação projetiva. Forma-se um círculo vicioso no qual a regressão leva
sua mãe, mas também nunca poderá imitar seu feito. Em um momento ele a medos persecutórios maiores, que levam a um maior uso de mecanismos
idealiza a criatividade, em outro a reduz de um processo lento e longo a um onipotentes. Isso poderia facilmente servir à descrição de Raskolnikov depois
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do assassinato. Quando Dostoievski viu o romance emergir nessa direção, ini- se sente momentaneamente aliviado.
cialmente planejou que Raskolnikov pensasse ou realmente cometesse outros Pensando que ao conseguir se livrar dessas lembranças externas, ele
crimes (1931, p. 56). se livraria da causa de sua ansiedade, ele sente “uma alegria intensa e quase
Na discussão sobre o resto do romance vou tentar ilustrar como Raskol- insustentável”. “Está tudo acabado! Não há pistas! E ele ri.” (p. 97) Seus bons
nikov continua usando as defesas já citadas, com objetivo de evitar confrontar- sentimentos cessam quando se aproxima do boulevard onde ele havia encon-
-se com sua culpa. Vou retratá-lo não como buscando para encontrar o castigo, trado a garota bêbada, o almofadinha e o policial. A memória aparece com uma
mas sim usando o mundo exterior – através de uma provocação onipotente, de forma característica. Ele os culpa por existir e por lembrá-lo de seus sentimen-
atos de reparação maníaca, de atos de “confissão”, que não contém contrição tos desconfortáveis em relação a eles.
nem reparação, mas são tentativas de expressar seus sentimentos de desam- Quando, no momento seguinte, ele tem o primeiro insight dos assas-
paro e desespero aos outros – continuar evitando reconhecer qualquer tipo de sinatos – que ele não os fez por razões financeiras – sua repulsa pelo que fez e
culpa ou responsabilidade em relação à sua mãe. Em outras palavras, eu acre- como se sente em relação a si mesmo, é tão intolerável que ele sente que pre-
dito que ele continua usando as mesmas manobras defensivas que o levaram cisa fazer algo para se livrar do sentimento, precisa encontrar outra pessoa
a cometer os assassinatos e, conforme vou tentar mostrar, com consequências para contê-lo nisso. “E estava buscando alguma distração, mas ele não sabia
que não são diferentes. o que fazer... o que tentar. Uma nova sensação arrebatadora estava lhe domi-
nando cada vez mais, esse era um impulso imensurável, quase físico por tudo
III o que o rodeava, um sentimento de ódio obstinado e maligno.” “Se qualquer
“Fragmentos e retalhos de pensamentos estavam simplesmente aglomerando- um se dirigisse a ele, sentia que poderia brigar ou bater nessa pessoa...” (p. 98)
-se em seu cérebro...” (p.78). No momento seguinte, a preocupação de Raskolni- Ele procura Razumihin para se distrair, mas se sente chocado pela sua
kov se volta para os fragmentos exteriores, as coisas nas quais esses pensamentos ira e tenta partir o mais rápido possível. Não há forma de aceitar ajuda de al-
se transformaram: sua roupa em trapos manchados pelo sangue das vítimas, guém. Antes de conseguir sair, no entanto, acontece um momento engraçado!
as bijuterias roubadas da velha. Ele tenta esconder esses objetos, querendo que Razumihin lhe oferece um texto para traduzir do alemão, um artigo que “dis-
ninguém, exceto ele, os veja. Ele ataca seu aparato perceptivo, de tal forma que cute a questão de se a mulher é um ser humano e, é claro, prova triunfalmente
“suas percepções estavam falhando, estavam desmoronando” (p. 81). Ele se torna que ela é” (p. 100). Raskolnikov não aceita o artigo e não há discussão sobre
obsessivo ao querer se livrar das coisas inanimadas (objetos) nas quais peda- isso, no entanto, a ideia foi introduzida e podia ser quase um subtítulo do ro-
ços do self e do objeto foram projetados (Bion 1956, 1957, 1958a, 1962a, 1962b). mance. Raskolnikov matou uma mulher e tenta se convencer de que ela não
Esses fragmentos persecutórios são versões mais recentes das “ninha- era um ser humano. Ele pensa que ela era uma coisa sem valor, um verme,
rias” que apareceram ao longo da Primeira Parte e irão continuar aparecendo um obstáculo, um princípio ou uma abstração. Sonia, como veremos adiante,
ao longo do livro. Nós agora os reconhecemos como o produto de ataque vio- também será desvalorizada ou entendida como uma idealização abstrata. As
lento ao aparato mental e ao mundo interno. Raskolnikov agarra com força mulheres são excelentes continentes para despejar aspectos inaceitáveis das
os fragmentos e as bijuterias, sem saber como se livrar delas. “Por um bom nossas personalidades.[10]
tempo, durante horas, ele foi perseguido pelo impulso de sair para algum lu-
gar, arremessar as coisas para que elas fiquem fora de alcance, de uma vez por 10. Nos Cadernos Dostoievsky escreveu: “N.B. Uma mulher é sempre apenas aquilo que nós mesmos
todas! De uma vez!” (p. 82) Ele sai, esconde os objetos debaixo de uma pedra e queremos fazer dela.” (p. 218)
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Ser mulher significa sofrer, ser mal tratada, depreciada, fraca, passiva um pensamento: ‘Que tudo isso precisa terminar hoje, de uma vez por todas,
– tudo aquilo que Raskolnikov está tentando evitar e acha desprezível em si imediatamente.’ Porque ele não iria continuar vivendo assim.” Como, de que
mesmo. Da próxima ida de Raskolnikov à casa de Razumihin, ele dirá, “estou forma ele daria um fim? Ele não fazia ideia, ele não queria nem pensar nisso.
tão triste, tão triste... como uma mulher” (p. 169), esse é um dos poucos mo- Ele afastou seus pensamentos; os pensamentos o torturavam. Tudo o que ele
mentos do romance que ele percebe sentimentos depressivos, no entanto, o sabia que sentia é que tudo deveria mudar “de uma forma ou de outra, ele re-
romance inteiro é sobre seus esforços para evitá-los. petia com desespero, determinação e uma imutável confiança em si mesmo”
A próxima série de incidentes confronta Raskolnikov com a perda de (p. 136). Logo será óbvio que, tendo “afastado os pensamentos,” ele agora está
seu bom objeto. Uma senhora e sua filha se apiedam dele e lhe dão dinheiro. louco. Seus sentimentos de poder disfarçam seu desamparo; sua necessidade de
Uma oferta de ajuda, vinda de uma mãe, o faz lembrar-se de seu crime. Ele olha fazer algo, se livrar do doloroso, “aquilo” estabelece um ciclo vicioso tornando-
para as águas azuis e brilhantes do Neva, e a sua mirada descansa no domo ar- -o cada vez mais desamparado.
redondado da catedral, uma vista particular que sempre o encheu de prazer, a Raskolnikov gasta dinheiro com um músico de rua, com prostitutas.
fonte de emoções maravilhosas e “misteriosas”, agora aparece fria, negra e sem Seu discurso é tão peculiar que um transeunte assustado atravessa a rua para
vida. Ele havia matado algo dentro de si, a boa imago maternal representado evitá-lo. Acompanhado do policial Zametov, Paskolnikov o provoca. Primeiro
pela cúpula em forma de seio. Ele olha para a moeda que a mulher lhe dera e Raskolnikov caçoa dele por causa de sua ganância e por ele estar usando seu
a joga na água. “Parecia-lhe que havia cortado a si mesmo de tudo e todos na- trabalho para ter lucro à custa dos outros. “Você deve ter uma vida muito boa,
quele momento.” (p. 102) Sr. Zametov; entrada franca para os lugares mais agradáveis. Quem está pa-
De volta a sua casa, ele entra em um estado de confusão e experimenta gando o seu champagne atualmente?... As propinas que recebe?! Você tem lu-
o desamparo e o terror que sentiu no apartamento da agiota. No seu delírio, cro com qualquer coisa!” (p. 141) Por debaixo das provocações hostís podemos
ele está tentando lembrar-se de alguém e de algo. Ele vê alguém ao lado de sua sentir certa inveja.
cama. “Alguém que ele parecia conhecer muito bem, no entanto, não conse- Raskolnikov conta que esteve lendo sobre o assassinato, lembra-se de
gue lembrar quem ele (sic) era, isso o assustou, até o fez chorar.” (p. 104) Ele seu desmaio no posto policial e apresenta isso de maneira que pareça o mais
não tinha nenhuma lembrança dos assassinatos, mas “a cada minuto ele sen- suspeito possível “agora você entende?”, ele pergunta e ri na cara do confuso
tia que havia esquecido algo que teria que ser lembrado. Ele se preocupou e se Zametov. Essa provocação onipotente é um flerte deliberado com o perigo, com
atormentou tentando lembrar, se lamentando. Entra numa onda de fúria, ou o objetivo de testar seu poder e provar que está tudo sob controle.
afunda em um terror horrendo e intolerável” (p.105). Da mesma forma que Raskolnikov sentiu vontade de gritar para os dois
Com um pouco de sono, bons cuidados e a ajuda dos outros, o delí- homens que estavam tentando entrar no apartamento da agiota, bater neles
rio de Raskolnikov vai se limpando; mas depois de estar deitado na sua cama e xingá-los, ele agora experimenta um impulso similar. “Novamente um de-
ouvindo-os discutir os assassinatos, depois de conhecer o noivo de sua irmã, sejo intenso de extravasar.” Esse gesto revela, por detrás da falsa aparência de
Luzhin, e depois de saber que sua mãe e irmã chegarão a qualquer minuto, um homem poderoso, uma criança. Quando Zametov menciona outro crime,
sente novamente vontade de agir. Seu estado mental é característico: “Calmo, Raskolnikov humilha os outros criminosos como sendo crianças tolas. Ele diz
seguro de si, forte.” “Esse foi o primeiro momento de uma calma estranha e que teria cometido o crime calmamente, deliberadamente, confiante de si, sem
repentina.” “Um tipo de energia selvagem brilha de repente em seus olhos fer- um traço de ansiedade. Claramente, o que é mais importante é estar no con-
vorosos.” “Ele não sabia e não pensava para onde estava indo e tinha apenas trole total. No que Raskolnikov nos traz, e em particular no contraste entre a
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maneira diferente que ele se comportou durante os assassinatos e a forma na expressar raiva contra aqueles que são tidos como os responsáveis. Como conse-
qual continua pressionado, e não sob controle de seus sentimentos, nós come- quência de seu ato na casa dos Marmeladov, ele de repente sente-se “orgulhoso,
çamos a entender a importância ligada ao controle onipotente. confiante de si, esses sentimentos cresceram cada vez mais fortes dentro dele,
Continuamos seguindo Raskolnikov depois de seu encontro com Zame- estava se tornando um homem diferente a cada momento” (p. 166).
tov, ele ainda está determinado a “dar um fim em tudo isso” (p. 150). Depois de Uma reparação normal seria baseada no reconhecimento da realidade
rejeitar o suicídio, ele está a caminho do posto policial para confessar, quando psíquica, a experimentação da dor que essa realidade causa, e a tomada de ati-
algo o faz mudar de ideia. Ele se aproxima de Marmeladov que está morrendo, tudes que aliviam essa dor na fantasia e na realidade. O objetivo da reparação
pois havia sido atropelado por uma carruagem. Raskolnikov reage “tão seria- maníaca repara o objeto de tal forma que a culpa e a perda nunca existam. A
mente como se fosse seu pai” (p.155). Marmeladov representa o pai ineficiente reparação maníaca, como Hanna Segal (1964, p. 82-83) explica, tem três ca-
e tolo. Mas nessa reversão do sonho, o cavalo matou o pai. Novamente como no racterísticas: 1) Nunca é feita em relação a objetos primários ou internos, mas
sonho e nos assassinatos da velha agiota, a cabeça é partida. E da mesma forma sempre em relação a objetos mais remotos; 2) O objeto relacionado à repara-
que o garotinho agiu no sonho, Raskolnikov cuidadosamente abraça a cabeça ção nunca deverá ser experimentado como danificado pelo próprio individuo;
da vítima. Eles vão em direção da casa de Katerina Ivanovna onde Raskolni- e 3) O objeto deve ser sentido como inferior, dependente, e mais profunda-
kov toma conta, tranquiliza a Sra. Marmeladov, dá dinheiro e suporte. Na crise, mente, desprezível. Não há amor verdadeiro nem estima pelos objetos repa-
assume a responsabilidade da família que Marmeladov não foi capaz de ter e rados; em vez disso, eles estão sendo controlados de forma onipotente. Para
que ele não foi capaz de ter com sua própria mãe e irmã. Ele sai sentindo-se mim, parece que a família Marmeladov, embora não tenha o mesmo signifi-
rejuvenescido, e é esse, para alguns críticos, o principio de um renascimento. cado que a própria família de Raskolnikov ou da agiota e Lizaveta, se encaixa
Minha impressão é que essa atitude serve primeiramente a uma repa- nessas características.
ração maníaca. Por um momento, Raskolnikov consegue esquecer seu desam- Raskolnikov vangloria-se por coisas que mais parecem um triunfo
paro, fraqueza e sua incapacidade de ajudar sua família. Na verdade, depois de maníaco do que rejuvenescimento moral. Ele não aparenta estar conectado
conseguir uma nova família, se esquece completamente da sua própria. Os as- com a realidade, já que nenhuma afirmação é verdadeira. Sua enfermidade
sassinatos também estão momentaneamente apagados, talvez cancelados pela não acabou. Ele certamente não acreditou que ela acabaria quando saiu. Essa
“aritmética”. Há um sentimento temporário de poder e controle. “Nós usaremos é uma ilusão da onisciência. Ele usa a retrospecção para se convencer de que
toda nossa força! Ele coloca de forma provocante, como se desafiasse algum tem mais controle de si do que realmente tem.[11]
tipo de poder das trevas... ‘Eu acredito que minha enfermidade está curada, eu Seu sentimento de força é a maior das ilusões. Um pouco mais tarde,
sabia que ela se acabaria quando saí... Força, força, é o que nós queremos, sem quando ele encara sua família na realidade, ver sua mãe e irmã o levara a um
ela não se pode fazer nada, e força precisa ser ganha com a própria força – é colapso e a um desmaio.
isso que eles não sabem’.” (p. 166) Parece que ele está desafiando seus inimigos Se Raskolnikov tivesse, realmente, ajudado os Marmeladov por
e experimenta um sentimento de triunfo sobre eles. Ele soa como um louco.
O objeto do seu desafio, o inimigo invisível, são seus perseguidores. 11. Há muitos exemplos desse tipo de autodecepção, o mais significante seria o seu ultimo feito: “Eu
Quando ele não reconhece conscientemente seus sentimentos de culpa, ele sou provavelmente mais asqueroso que o piolho que matei, e eu senti de antemão que deveria ter
dito isso para mim mesmo depois de matá-la.” (p. 239) Alguns críticos erram em ter isso como
sente que alguém é responsável por eles. Seus esforços foram direcionados evidência de que ele sabia que iria falhar antes dos assassinatos, e os cometeu com o objetivo de
para se livrar desses sentimentos desconfortáveis, “dar um fim nisso,” e para falhar. Seu estado mental é uma pista para a decepção.
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sentimentos reais de compaixão, essa ação o teria feito se sentir mais forte, é porque estava sempre doente. Se ela fosse chata ou corcunda eu acredito en-
no entanto, ele se sentiu mais poderoso. Se ele tivesse se sentido mais forte, tão que teria gostado ainda mais dela.” (p. 201)
poderia reconhecer sua fragilidade. Se a ajuda dada aos Marmeladov fosse mo- A namorada de Raskolnikov era considerada inferior, estragada tanto
vida pela compaixão, ele teria também entrado em contato com sentimentos física quanto mentalmente, e isso parece ser precisamente o que ele gostava
depressivos – preocupações com a futura tristeza, sentimentos relacionados à nela. Se ela fosse mais deformada ele gostaria ainda mais dela. O seu problema
morte de Marmeladov, em relação a sua própria família, as suas próprias víti- não era nada que ele tivesse causado e por isso não era algo que ele precisasse
mas, culpa. Com certeza não seria triunfo. Como ocorre em outros lugares do sentir culpa. Ele poderia se ver como seu benfeitor, resgatando-a e restituindo-
romance, o tom de triunfo é uma indicação de o que está sendo comemorado é -a; enquanto ao mesmo tempo, ela poderia funcionar para ele como uma re-
uma vitória sobre a realidade e geralmente uma vitória à custa de outra pessoa. presentação de vários de seus aspectos feios e inaceitáveis.
Até agora, eu tenho ressaltado os aspectos maníacos de sua relação A relação, que teria terminado em casamento se a garota não tivesse
com Marmeladov, pois penso que essas características são muito significa- morrido, precedeu o objetivo de Raskolnikov de matar a velha agiota. No en-
tivas e que não foi levada em conta por outros escritores. Certamente, pode tanto, as duas estão claramente relacionadas. Quando discutia seus planos de
haver aspectos maníacos e saudáveis no comportamento e os analistas estão casar com a filha inválida da proprietária, a mãe de Raskolnikov disse que o
acostumados com pacientes que confundem esses dois aspectos, como por choque de ouvir isso quase a matou. “ ‘Você acha’, ela disse, ‘que minhas lágri-
exemplo, quando eles progridem realmente, ou terminam algo depois de tra- mas, minhas súplicas, minha doença, minha morte talvez pelo sofrimento,
balhar duro, atribuem isso a sua onipotência, e então se tornam maníacos. As nossa pobreza, teriam o impedido de fazer isso? Ele passaria por cima de todos
ações de Raskolnikov para com Marmeladov contêm tanto aspectos maníacos esses obstáculos, calmamente’.”[12]
quanto saudáveis, e agora, no topo de sua mania, seus sentimentos mudam. A Isso liga o “romance” com a garota inválida aos assassinatos da velha
defesa maníaca raramente é completa, geralmente um pouco de depressão se agiota e de Lizaveta. As duas ações, uma supostamente amorosa e a outra des-
expressa. Quando Raskolnikov chega a sua casa, ele já não está mais se van- trutiva, são para evitar a culpa; no entanto, as duas ações levam à coisa mais
gloriando de seu triunfo. Ele está subjugado, reflexivo, depressivo. Ele quer importante que elas pretendiam evitar: a morte da mãe de Raskolnikov.
contar para Razumihin sua experiência na casa dos Marmeladov, o impacto A garota inválida está também ligada à Sonia, que alguns críticos co-
disso nele, e de repente admite se sentir fraco. “Estou tão triste.” Ele diz “tão locam como sua reencarnação. A discussão sobre a noiva é quase que imedia-
triste... como uma mulher”. tamente seguida da tímida aparição de Sonia na porta. Sonia é descrita como
Há outra relação que me parece representar reparação maníaca: A es- sendo uma criança, pressionada pela timidez, humilhada na companhia de
colha do objeto amado por Raskolnikov antes dos assassinatos. Nós primeiro sua família, e desperta sentimentos de pena e compaixão em Raskolnikov, fa-
ficamos sabendo da noiva de Raskolnikov através de seu amigo, Razumihin. zendo com que ele se sinta rejuvenescido novamente. Ele e os leitores são re-
“A garota não era bonita mesmo, na verdade posso dizer positivamente que ela lembrados da cena previamente descrita na casa dos Marmeladov.
era feia... e tão inválida... e estranha... é inexplicável... ela também não tinha
dinheiro.” (p. 189) Raskolnikov confirma a descrição e dá uma pista sobre a 12. Aqui eu difiro de forma substancial da tradução de Garnet, que diz: “Não, ele teria calmamente
razão de sua atração. “Ela era uma garota tão doentia... inválida. Ela se orgu- desconsiderado todos os obstáculos.” O verbo usado é perestupit, passar por cima, transgredir. O
substantivo deveria ser perestupanie, que significa transgressão, uma variante de prestuplenie. Ver
lhava de ajudar aos pobres e sempre sonhava em cuidar de crianças... Ela era Molchuski (1947, p. 305). Jessie Coulson (1953) traduz a frase: “Não, ele pisaria friamente sobre cada
uma coisinha feia. Eu realmente não sei o que me levou a ela – acho então que obstáculo.”
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No episódio seguinte, Raskolnikov e Razumihin visitam o inspetor da faz um massacre em Paris, esquece um exército no Egito, gasta meio milhão de
polícia, Porfiry Petrovich, e a conversa gira em torno do artigo que Raskolnikov homens na expedição a Moscou” (p. 236), e não tem problemas com isso, até
escreveu sobre o crime. No artigo, ele introduz a sua teoria do super-homem: existem altares feitos para ele. Por que ele teria que pagar; por que ele deveria
a humanidade se divide em poucos e extraordinários seres e a maioria que é se sentir culpado por um pequeno crime? Continuando sua comparação de si
composta de pessoas ordinárias, as quais os extraordinários têm o direito e até mesmo com Napoleão, é forçado a reconhecer sua limitação, ele não consegue
a obrigação de, mesmo transcendendo a lei, oferecer algum tipo de bem maior. transpor a culpa e se sente humilhado por isso.
O homem comum é limitado pelo seu sentimento de culpa que Raskolnikov Ele continua negando a culpa desvalorizando suas vítimas e negando
descreve sarcasticamente como “eles castigam a si próprios, pois são muito qualquer significação para o crime,[13]e reconhecendo a culpa, uma limitação
conscientes; alguns castigam os outros e têm certos casos em que usam as pró- que o faz imediatamente atacar-se e atacar sua vítima. “A velha mulher era
prias mãos para isso... Eles impõem atos públicos de autopenitência com um insignificante! Ele pensa de forma inconsciente e exacerbada... a velha mu-
belo e edificante efeito” (p.228). Seu tom é de desprezo, como se a consciência lher era somente uma doença... eu estava com pressa de ultrapassar... eu não
fosse uma limitação, uma fraqueza, uma humilhação. Podemos lembrar que matei um ser humano, mas um princípio! Eu matei o princípio, mas eu não
quando Raskolnikov toma consciência de seus sentimentos de culpa, ele ime- ultrapassei, eu fiquei deste lado... Eu fui só capaz de matar.” (p. 238-239) Aqui
diatamente experimenta um ódio por si mesmo e uma ira contra qualquer um ele está claramente nos dizendo que o ato de matar não era a barreira - não
que seja identificado como responsável por fazer com que perceba seus senti- era a lei dos homens, mas o sentimento de culpa por ferir outro ser humano.
mentos, geralmente sua vítima. Ele então lembra que não foi somente a velha mulher que matou, mas
Ninguém pode se sentir culpado por maltratar pessoas comuns, logo, também Lizaveta. “Pobre Lizaveta! Por que ela teve que entrar... é um pensa-
de acordo com essa teoria, elas existem para serem usadas. Elas “amam ser mento estranho, por que eu penso nela tão raramente, como se não a tivesse
controladas. Para mim seu dever é ser controladas, isto porque é a sua voca- matado? Lizaveta! Sonia, pobres coisas gentis com olhos gentis... Mulheres
ção, e não há nada de humilhante nisso para elas” (p. 227). Esse é exatamente queridas! Por que elas não choram? Por que elas não murmuram? Elas desis-
o argumento que Svidrigailov apresentará como veremos a seguir, apesar dele tem de tudo... seus olhos são macios e gentis... Sonia! Sonia! Doce Sonia.” (p.
dar um passo adiante comparando e identificando as pessoas comuns com 240) Lizaveta, Sonia, que são gentis e boas, mas que inspiram culpa. Por que
as mulheres. elas nem mesmo reclamam? Elas se deixam esgotar, serem usadas, “elas de-
Agora, quem são as pessoas extraordinárias? Elas são “pessoas com sistem de tudo”.
ideias novas, pessoas com a fantástica capacidade de dizer algo novo” (p. 229). Essa passagem nos faz lembrar da confissão de Marmeladov, quando
“Homens que possuem o dom ou o talento de pronunciar uma nova palavra.” (p. depois de sua pseudoculpa, ele descreve a dor de olhar nos olhos de sua esposa
227) E como essas pessoas fazem seu trabalho? Elas destróem; suas ações são e reconhecer o que fez com ela. Aqui Raskolnikov, assim como Marmeladov,
destrutivas! Já que estamos falando da inveja da criatividade, naturalmente está cara a cara com sua culpa. A resposta de Marmeladov foi se sentir des-
aqueles que são destruídos são nada mais, nada menos, que os representantes confortável e beber mais ainda, ficar mais tempo longe, machucar mais a sua
inconscientes daqueles que se consideram os mais criativos - a mulher com
seu fruto, a mulher grávida.
13. Como Segal aponta: “Um objeto de desprezo não é um objeto merecedor de culpa, e o desprezo, que
Ao chegar a casa, Raskolnikov continua essa discussão consigo mesmo. é experimentado relacionado a tal objeto, se torna a justificativa para mais ataques a este.” (1965,
“O verdadeiro mestre a quem tudo é permitido joga uma tempestade sobre Toulon, p. 71)
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– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011
– tradução: julia paladino tradução
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– a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade 143
mulher, com o objetivo de evitar essa culpa. vezes Raskolnikov se pergunta se ainda está dormindo. Essa divisão, a reversão
O estudante, cuja conversa Raskolnikov ouviu por alto, e Mikolka, no da realidade para o mundo dos sonhos, é usada para nos apresentar Svidrigai-
sonho, expressam a mesma ideia. É como se cada um dissesse: parti meu co- lov e este a Raskolnikov. Esse personagem demoníaco pretende representar a
ração ao ver o que fiz a ela, então eu a matei. forma mais bem sucedida da onipotência de Raskolnikov, i.e., destrutiva. Não
Raskolnikov tem dificuldade de entender que essas mulheres aceitam por acaso, ele aparece no momento que Raskolnikov se sente mais fraco e de-
as coisas sem questionar, sem reclamar. As mulheres, pela sua passividade e samparado. Medidas extraordinárias, na forma de um super-homem onipo-
aceitação, fazem com que ele se sinta desconfortável, porque elas não podem tente, são usadas para negar a realidade psíquica.
ser vistas, então, como perseguidoras externas com quem poderia ficar irritado. A primeira ação de Svidrigailov no romance é de ultrapassar a soleira da
Tal irritação seria uma indignação genuína, na verdade, experimentada como porta para dentro do quarto, e Dostoievski usa o mesmo verbo, perestupit, um
libertadora. No lugar disso, os sentimentos ruins atacam-no internamente; ele momento antes havia usado esse verbo para descrever a falha de Raskolnikov.
não pode nem fugir deles nem aniquilá-los dentro de si. O símbolo da soleira da porta converge novamente para os três significados
Esses sentimentos são vividos como ataques a ele, e quando perde a descritos anteriormente. Svidrigailov despertou a curiosidade de Raskolnikov
consciência, seus pesadelos representam sua vitimização por esses persegui- dizendo que os seres humanos, especificamente as mulheres, amam ser insul-
dores internos e os seus sentimentos de não ter para onde escapar. Raskolni- tadas. As mulheres gostam de ser espancadas; na verdade, “podemos dizer que
kov se vê numa batalha de vida ou morte que provoca a necessidade de uma é a única diversão delas” (p. 245). Que Svidrigailov acredita nisso e ao mesmo
ação mais efetiva. No sonho, ele está batendo na cabeça da velha com um ma- tempo não acredita, isso é evidenciado pela sua paixão por jovens garotas ino-
chado e a cada machadada a velha treme e gargalha parecendo zombar da sua centes. Sua perversão é violentá-las, por maldade e inveja. O prazer da perver-
impotente tentativa de silenciá-la, de aniquilá-la. Como no sonho de bater no são é que ele sabe que elas não gostam de sofrer. A atração pelas inocentes é
cavalo, a fragilidade está sendo ridicularizada. Neste caso, no entanto, é a sua para negar isso, ou seja, fazê-las sofrer.
suposta vítima que está rindo da sua fraqueza e que é vista como um tormento. Svidrigailov pretende representar um dos aspectos da personalidade de
Ele percebe que a porta do quarto está aberta e ouve risadas e sussurros. Ele Raskolnikov, a idealização da destrutividade, levada ao extremo. Sua perversão
começa a bater nela com toda a força, e as risadas simplesmente ficam mais é baseada em uma reversão do bem e do mal. Criatividade e destrutividade,
altas. Ele tenta fugir, mas percebe que todas as portas estão abertas. O corre- com uma escolha deliberada da última. Svidrigailov fascina Raskolnikov, não
dor está cheio de gente, pessoas por toda parte – no térreo, nas escadas – todos por causa de uma latente atração homossexual, nem por que ele materializa
em silêncio, olhando-o com expectativa. Ele congela num ponto, incapaz de os desejos incestuosos deste para com sua irmã, como muitas interpretações
se mexer; essa paralisia só termina quando grita e acorda. sugerem, mas porque personaliza o super-homem onipotente, que tem con-
Dostoievski apresenta esse sonho de tal forma que nós primeiramente trole sobre seus sentimentos, ultrapassa suas limitações e, mais importante,
acreditamos que ele é real. No sonho, a porta aberta representa uma ruptura na é livre de culpa. Svidrigailov diz a Raskolnikov precisamente o que ele mais
capacidade de distinguir a realidade interna da externa. Quando Raskolnikov queria ouvir: Que ele não precisa se sentir culpado por ferir sua mãe e irmã.
acorda pensa ainda estar dormindo, e demora um tempo para perceber que Ele descreve Dounia como uma mártir. “Ela está sedenta por ser torturada por
está acordado. A primeira coisa que vê quando abre os olhos é que a porta de alguém, e se não conseguir, irá se jogar da janela.” (p. 409) As mulheres querem
seu quarto está aberta; Svidrigailov está de pé na entrada, observando-o. Uma sofrer; elas amam isso; então em vez de sentir culpa, podemos pensar nisso
mosca está zumbindo dentro do quarto, outro elemento trazido do sonho. Duas como o dever de se aproveitar delas.
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Um momento depois, no entanto, nós temos uma imagem de Svidrigai- seus bons atos, leva os críticos a apontar sua indiferença com a moralidade,
lov relacionada à Dounia bem diferente. Ele está dizendo que a ama. “Deixe-me que ele não distingue entre bem e mal e é perfeitamente capaz dos dois. Nós
beijar a bainha de seu vestido, deixe-me, deixe-me... a sua seda seria demais lembramos Raskolnikov, pensando em fontes e flores embelezando a cidade,
para mim. Diga-me ‘faça isso’ e eu farei. Eu farei tudo. Eu farei o impossível. O enquanto estava a caminho para cometer o assassinato. A ação de Svidrigailov,
que você acredita, eu também acreditarei. Eu farei qualquer coisa - qualquer no entanto, beneficia os outros, e como é o primeiro a reconhecê-lo, serviria
coisa mesmo!” (p. 425) Ele está se declarando para ela, mas seu tom é muito para manter as crianças das duas famílias fora do alcance de alguém como ele.
penoso. Ele a idealiza enquanto nega a si mesmo. Ele está se rebaixando, im- Ele pensa em Dounia. “Quem sabe? – Talvez de algum modo ela tivesse
plorando para ser seu escravo, completamente fora de controle. Novamente feito de mim um novo homem...” (p. 435) Ela teria sido a sua salvação. A rela-
somos relembrados que, no mundo desse romance, amar significa ser domi- ção com uma mulher é vista como uma forma de conectar-se com a vida. A
nado tanto pela sua própria paixão quanto pelo outro. impossibilidade disso só aumenta a sua inveja, então seus pensamentos foca-
Mas então uma mudança recai sobre ele, e “ele retorna a si mesmo”. lizam no ódio do nascimento, das crianças e da criatividade. “Como eu detesto
Ele está novamente no controle, isento de emoções espontâneas - e agora Dou- o som das árvores... Eu nunca gostei de água.” (p. 435) Ele cochila e no seu sono
nia está assustada e desamparada. Mesmo quando ela aponta uma arma car- continua sendo perturbado por múltiplas pequenas coisas e variadas imagens
regada para ele – na verdade, particularmente nessa hora – está sob controle. de fecundidade que o perseguem. Um rato corre por seu corpo. Ele pensa em
Svidrigailov está afirmando sua bravura, apagando sua humilhação previa. flores, muitas flores em abundância. Ele ouve o som da chuva caindo e, numa
Ele controla suas emoções, sobretudo quando vê a morte cara a cara. Sua do- perversão maravilhosa do símbolo do nascimento, pensa em como o rio irá
minação e controle aparecem completamente. Quando ela larga a arma, ele transbordar e os ratos do celeiro serão arrastados para fora pelas águas. Ele
sente como se tivesse sido salvo de seu isolamento sombrio, mas no momento imagina que se mata debaixo de um grande arbusto, encharcado pela chuva,
seguinte os olhos dela dizem outra coisa. “Então você não me ama?”, ele per- com milhões de pingos caindo em sua cabeça. Há moscas em sua carne. A re-
guntou suavemente. Dounia abanou a cabeça. “E... você não poderá? Nunca?” volta da paixão representada por ninharias.
Ele sussurrou com desespero. “Nunca!” (p. 428). Seu destino está selado após o Ele sonha com uma garota de catorze anos vestida de branco, deitada
reconhecimento da realidade psíquica e da realidade exterior, todas as tenta- em um caixão forrado com seda branca e circundada por uma profusão de flo-
tivas para se aproveitar da sua sexualidade, dominá-la ou usá-la, são descar- res. Lembra-se da garota que tirou sua própria vida depois que ele a seduziu.
tadas. O confronto ilustrou dramaticamente a diferença entre controlar outra Nesta hora sentimos o mesmo que ele: o fim da sua inocência e esperança,
pessoa como um objeto a parte e ter uma relação real baseada no reconhe- a aniquilação da sua capacidade de sentir. Então ele tem um segundo sonho,
cimento da separação e da independência. É tal reconhecimento que torna este com uma criança negligenciada, uma menina de cinco anos que se trans-
Svidrigailov mais heróico, realmente mais saudável, do que Raskolnikov, no forma em uma desavergonhada meretriz, o rosto dela sendo a face que ri da
entanto, curiosamente, é nesse ponto que aquele personagem está “conde- depravação dele.
nado” e este está “salvo”. O par de sonhos se assemelha de diversas formas aos dois primeiros
O próximo capítulo contém a preparação e os detalhes do suicídio de sonhos de Raskolnikov. Nós relembramos que Svidrigailov apareceu pela pri-
Svidrigailov. Ele primeiro visita Sonia com o objetivo de assegurar seu futuro, meira vez quando Raskolnikov estava acordando de seu segundo sonho, como
como também de sua pequena irmã e irmão. Ele então visita sua noiva de dezes- se fosse a resposta ao reconhecimento por parte de Raskolnikov do seu pró-
seis anos para explicar-lhe sua falta e também para provê-la. Sua generosidade, prio desamparo. Agora Svidrigailov reconhece o seu próprio desamparo. Nessa
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última ação antes do suicídio, ele não consegue pegar nem uma mosca. sentimento de culpa relacionado à forma como a trata. Juntamente com Svi-
O suicídio se dá do lado de fora de uma grande casa. Seus grandes por- drigailov e Raskolnikov, variações do mesmo tema são encontradas em Mar-
tões estão fechados como uma confirmação de que o corpo da mãe é inválido meladov, Luzhin e Razumihin.
e que a separação do bom objeto é permanente.[14] Luzhin é claramente o personagem mais negativo e antipático do ro-
Na entrada da casa há um pequeno homem, um judeu usando um mance, e Razumihin é o mais saudável. Luzhin nos diz “Dounia era simples-
casaco de soldado e um capacete de Aquiles. A imagem deste homem fraco e mente essencial para ele; estar sem ela seria impensável”, ele se regozija com
ineficiente, disfarçado de soldado, é a imagem da onipotência, um menininho seu plano de reverter a disputa no relacionamento deles, de forma que seja
que pretende ser poderoso. Ao ser descrito como Aquiles, ele se identifica com ele quem estará no pedestal, venerado e admirado por ela, colocado como seu
o herói invencível, o super-homem todo-poderoso que não pode ser tocado salvador. A posição desamparada dela o excita, já que isso o impele a trocar de
pelos outros, não pode ser derrotado, exceto pelo seu próprio erro fatal. Svi- papel com ela, a virar a mesa em cima dessa mulher que tinha tanto mais do
drigailov venceu as barreiras. Seu erro? Tomando conhecimento da futilidade que ele. “Aqui está uma garota de caráter, virtude e educação superiores aos
do controle onipotente, ele reconhece seu vazio e seu isolamento. Percebe que seus (ele sentia isso), e essa criatura estaria eternamente grata pela heróica
suas forças destrutivas destruíram o objeto que ele amava e do qual ele depen- condescendência dele, se atiraria na poeira do chão antes dele, e ele teria ab-
dia, não só como um objeto externo, mas interno também. Sua agressão des- soluto poder sobre ela.” (p. 267) Em todas as relações entre homem e mulher
truiu a própria capacidade de dar e receber amor. A fragmentação resultante ou se domina ou se é escravo.
e a reorganização paranóica do seu mundo não o impedem de reconhecer o O papel de escravo pertence à Razumihin, que se apaixonou por Dou-
que fez. É por essa razão, penso eu, que Svidrigailov nos toca. Ele é simpático e nia à primeira vista, e no seu primeiro encontro murmura: “Estou falando
bem diferente da encarnação do mal que foi o intento inicial de Dostoievski. bobagens, eu não mereço você... eu não mereço você absolutamente!” (p. 175)
Uma ideia central, que percorre todo o romance e se incorpora respec- “... Você é uma fonte de bondade, pureza e sentido... e perfeição... eu gostaria
tivamente aos destinos de Svidrigailov e Raskolnikov, é que não importa se de beijar suas mãos agora, aqui de joelhos...” (p. 176), e nesse momento ele cai
no fim há salvação ou morte, isso depende do relacionamento com uma mu- de joelhos na calçada e tenta beijar as mãos dela, enquanto Dounia e sua mãe
lher. A mulher é vista como absolutamente essencial para a sobrevivência; o protestam e se perguntam sobre sua sanidade. Tentativas são feitas para atri-
homem é dependente dela já que ela dá a ele algo que ele não consegue dar buir seu comportamento e sua fala ao fato dele estar bêbado. Razumihin ide-
a si mesmo. A vulnerabilidade envolvida no reconhecimento é vencida atra- alizou Dounia desde a primeira vez que pôs seus olhos nela, ele a tem em um
vés da negação da independência da mulher ou separação de si mesmo; ela pedestal onde está marcado “bondade, pureza, sentido e perfeição”, e ele se
é desvalorizada, tratada como um objeto separado, controlada. Não há grati- põe de joelhos para adorá-la e servi-la. Naturalmente, ele sente que não me-
dão pelo que foi recebido. E há uma absoluta necessidade de evitar qualquer rece tal perfeição. Há diversas razões para idealização, incluindo a proteção do
objeto idealizado para que ele não sofra dano, ou seja ferido, o que iria mexer
14. O local é cuidadosamente escolhido por Svidrigailov, depois de considerar algumas outras pos- em sentimentos como perda, tristeza e culpa. Uma mulher em um pedestal é
sibilidades. Num dado momento, ele percebe a importância de tal escolha: “Eu me tornei mais
particular, como um animal que escolhe um lugar especial... para tal ocasião.” (p. 435) As últimas mantida a uma distância segura. Nós vemos que não importa o quão ridículo e
palavras que ele então ouve são do pequeno judeu repetindo: “Você não pode fazer isso aqui, este fora de controle o comportamento de Razumihin tenha sido, ele se sente mais
não é o lugar.” (p. 440) Há uma ironia particular. Svidrigailov tem um censo de locação, contrastando
com a intromissão de Raskolnikov; é este último censo de seu local psicológico que determina o
seguro com sua idealização. Será que Dounia deveria “estar vestida de rainha,
suicídio. ele percebeu que não teria medo dela, mas talvez pelo fato de estar pobremente
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vestida, e assim ele perceber toda a miséria do entorno, seu coração estava era seu.” (p. 283) No fim, ele acaba revelando seu doloroso segredo a ela. Que
cheio de horror e ele começou a ter medo de qualquer palavra que pronun- conseguiu se aliviar à custa dela e ao reverter seus papéis, se sente momenta-
ciasse, qualquer gesto que fizesse” (p. 188). neamente triunfante, mas também confuso em relação à separação de suas
Diferente de Raskolnikov, entretanto, Razumihin não culpa a mulher identidades. “Nós somos o mesmo” (p. 288), ele lhe diz.
por provocar tais sentimentos nele, nem pretende controlá-los. Não há ne- Em um dado momento, Raskolnikov se relaciona com o sofrimento de
nhuma tentativa de manipular Dounia e nem de reverter a relação deles; em Sonia com desprezo e ódio, enquanto no outro o idealiza. A responsabilidade
resumo não há associação com o controle onipotente e nem com os mecanis- também não é diretamente ligada à Sonia. No meio de seu cruel abuso, de re-
mos projetivos de Raskolnikov. Razumihin aceita a responsabilidade, não só pente se agacha no chão e beija os pés dela. “Não é pessoal”, diz ele; “eu não
por si mesmo, mas para ajudar Dounia, seu irmão e mãe. Ele é o único dos me curvei a você, eu me curvei a todo sofrimento da humanidade” (p. 279). De-
cinco homens capaz de fazer reparação. pois explica que ela está perto de ouvir o que tinha a dizer antes de encontrá-
Nos três encontros que Raskolnikov tem com Sonia, ele faz uso exten- -la, antes dos assassinatos, quando seu pai falou pela primeira vez sobre ela.
sivo da projeção, e há uma recapitulação de muito que já descrevi. No começo Depois de confundi-la e assustá-la, ele sai no mesmo espírito de triunfo
ele está frio, tenta quebrar todas as defesas dela e mostrar o pior da realidade maníaco com o qual saiu da casa dos Marmeladov. “Quebre o que deve ser que-
de sua situação, a futilidade de todos seus esforços. Ele a atormenta com aquilo brado, de uma vez por todas... Liberdade e poder e. sobretudo, Poder! Sobre todo
que o atormentava: Seu fracasso em sustentar sua família. “Você precisa en- tremor da criação, sobre todo formigueiro!... Esse é o objetivo, lembre disso! Essa
carar as coisas de frente” (p. 286), ele diz para ela, isso é precisamente aquilo é minha mensagem de despedida.” (p. 287) Percebemos que, particularmente
que não consegue fazer. nesse estado de espírito, sua metáfora final é destrutiva. Raskolnikov nunca
Ele não se relaciona com ela como um indivíduo, mas como um tipo fala em reparação, a necessidade de arrumar as coisas, colocá-las em ordem.
de privada psíquica onde ele pode evacuar. Essa é frequentemente a função Na segunda vez que Raskolnikov visita Sonia, ele vai lhe dizer quem
da prostituta. Ele tenta fazê-la sentir-se desamparada, inútil, culpada e humi- matou Lizaveta. As respostas que Raskolnikov dá à Sonia alternam, dependendo
lhada por se revelar. Manipulando esses sentimentos nela, ele pode manter-se das respostas dela, aumentam ou diminuem a ansiedade e culpa. Quando ela
distante e em controle, mas então percebe que todas suas cruéis desaprova- lhe mostra que não se fere com seus ataques, e que consegue aceitá-lo, seu des-
ções, sua previsão de um futuro terrível, suas sugestões para que se mate – to- conforto se torna mais tolerável e ele pode enxergar melhor suas dificuldades.
das essas coisas que ela havia pensado antes, talvez repetidas vezes: Ela nem Mas primeiro ele percebe que ela está esperando algo dele, que sente ser inade-
percebe a crueldade dele, Sonia aparece incorrupta por suas experiências; ela quado entregar, se sente desconfortável, e a culpa. “De repente, uma estranha
permanece pura entre toda sujeira. Ele fica intrigado pela sua habilidade em e surpreendente sensação de ódio por Sonia passou por seu coração.” (p. 351)
resistir a todos os ataques. Ele levanta a cabeça e olha diretamente nos olhos dela, e para sua surpresa não
Raskolnikov descobre a solução dela: “Deus! Ela é uma maníaca reli- vê nem uma vítima, nem uma perseguidora. “Havia amor em seus olhos, seu
giosa.” Ele a força a ler a história de Lázaro, do novo testamento. Sua motivação ódio se desfez como um fantasma.” Como uma boa mãe, ela é capaz de conter
é perversa, destrutiva. Ela costuma ler para Lizaveta e agora está revelando seu seus sentimentos de ódio e transformá-los através do amor.
“tesouro secreto” para ele. “Via em parte por que Sonia não conseguia ler para Ele reconhece seu erro; sentiu-se desamparado e imediatamente teve
ele, e quanto mais via isso, mais insistia de forma grosseira e irritada para que a urgência de se livrar desse sentimento, projetou-o de forma violenta, atra-
ela lesse. Ele entendia bem o quão doloroso era para ela trair e revelar algo que vés do ódio. “Não era o sentimento real, ele trocou um sentimento por outro.
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Isso significa que o minuto chegou.” Esse “minuto” significa que está na hora sem nenhum arrependimento. A resposta dela, que é apontar que ele também
de confessar; mas com um intento ambíguo, pois se refere ao que foi para ele sofre, de novo faz com que se sinta mais tolerável. “Nós somos tão diferentes”,
uma experiência similar. “Sua sensação naquele momento era terrivelmente ele percebe finalmente. “Nós não somos parecidos.” (p. 356)
parecida com o momento em que ele estava na frente da velha com o machado Ainda tentando encontrar uma explicação, ele conta a ela sobre sua te-
na mão e sentiu que ‘não poderia perder nem mais um minuto’.” oria do Napoleão. Sonia repele a falha dele de não enxergar o que fez. “Eu ape-
Significativamente, ele foi contar a ela sobre Lizaveta. Lizaveta e Sonia nas matei um piolho, Sonia, uma criatura danosa, inútil e asquerosa.” (p. 358)
são similares, e pedir perdão à Sonia de certa forma cancela os assassinatos. É Ela não o aceita, e salienta que ele é responsável por matar outro ser humano.
importante, também, que Raskolnikov não fale realmente para Sonia, mas co- Isso ele não quer ouvir – e responde à dolorosa realidade da intervenção dela
munique como o fez com uma série de sentimentos importantes e estados de como se esta fosse um ataque. Sua resposta é atacar a si mesmo, do mesmo
espírito - nós chamaríamos de projeções - através dos olhos, olhando no rosto jeito que percebemos primeiramente com Marmeladov. Tudo que Raskolnikov
do outro e experimentando o que está sendo comunicado. “Pode adivinhar?” diz aqui está correto; mas é, em certo sentido, irrelevante. Primeiramente, ele
ele pergunta. “De uma boa olhada.” Então, “ele olha para ela e de repente pa- evita falar qualquer coisa sobre o ponto crucial que ela apontou: Que ele tirou
rece ver no rosto dela o rosto de Lizaveta.” Ela o olha como fez Lizaveta, como uma vida humana. Segundo, seu ataque verbal contra si mesmo é uma carica-
uma criança assustada. “Seu terror o infectou. O mesmo medo se mostrou em tura da consciência e não o coloca em contato com qualquer responsabilidade
seu rosto.” (p. 353) Quando ela percebe o que ele fez, não diz nada. Novamente pelo que fez, ou leva a uma atitude positiva, qualquer desejo de mudança. Eu
ela intencionalmente o olha nos olhos. Ele não aguenta seu olhar e implora sou pior do que isso, ele disse a ela “eu sou fútil, invejoso, malicioso, baixo, vin-
que pare de torturá-lo. gativo e... bem... talvez com uma tendência para a insanidade”. Ele poderia ter
Esse não foi o jeito que ele imaginou que aconteceria. Mas, então, ela se ficado na Universidade, poderia trabalhar como Razumihin, “me tornei mal-
atira de joelhos na frente dele. “Não há ninguém, ninguém nesse mundo mais -humorado e não fiz nada (Sim, mal-humor, essa é a palavra certa para isso!).
infeliz do que você!” O coração dele amolece e lágrimas enchem seus olhos. Fiquei sentado no meu quarto como uma aranha” (p. 359).
“Então você não vai me deixar, Sonia?” (p. 354) Até agora, ela aceitou tudo, não Como isso não é uma aceitação da culpa ou da responsabilidade, não
o fez se sentir culpado, até mesmo o fez sentir que precisava dele. Da mesma nos surpreendemos quando abruptamente se transforma em um ataque con-
forma que ele sempre tentou se livrar de qualquer fraqueza, de qualquer sen- tra os outros. Ele acredita que os outros são idiotas, que eles nunca vão mu-
timento desconfortável, chegou à conclusão de que ela, sua família, qualquer dar, e que “não vale a pena gastar esforços para isso... e eu sei Sonia que aquele
um, assim que soubessem, não iriam querer nada com ele. Ela o aceitou. que é forte tanto na mente quanto no espírito terá poder sobre eles. Qualquer
Mas agora ela diz que ele está se entregando. Ele recua e se torna hostil. um que seja muito audaz estará na frente deles. Aquele que despreza a maioria
Além disso, ela espera uma explicação. Ela tenta tornar os assassinatos com- das coisas será um legislador entre eles e aquele que for mais audacioso de to-
preensíveis, percebe que ele mesmo não entende, e que não tem uma explica- dos estará mais certo!” (p. 359. Itálico do autor). Qual é a expressão mais clara
ção para lhe dar. Quando ela faz um comentário, que novamente demonstra que poderíamos receber do “super” ego que afirma sua superioridade encon-
sua aceitação, sua ansiedade diminui, e ele é capaz de refletir e momentanea- trando erros em tudo?!
mente ter um insight. “Eu vim até você para uma coisa – não para me deixar... Quando Sonia o interrompe e acalma seu desvario, ele se tranquiliza e,
Porque eu não aguento meu fardo e vim despejá-lo em outro; você também penso eu, momentaneamente retorna ao profundo estímulo criminoso. Ele in-
sofre, e eu devo me sentir melhor!” Ele esteve buscando alivio sem reparação, siste que não era relacionado à culpa por sua mãe e sua irmã, mas “por matar
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seguindo meus próprios motivos, para mim mesmo... não foi para ajudar a mi- projeções, e culpá-las por suas dificuldades. Identificação com esses aspectos
nha mãe que eu cometi os assassinatos – isso não faz sentido... cometi o crime projetados do si- mesmo resultam em sentimentos de sufocação e claustrofo-
para mim mesmo, só para mim”. Se não estivéssemos pensando que ele está bia. É significante que Svidrigailov e Porfiry Petrovich, as únicas duas pessoas
protestando demais, sua próxima negação é ainda mais sugestiva. “Ou eu me que entendem alguma coisa de sua estrutura psicológica, repetidamente lhe
transformei em um bem-feitor para os outros, ou passei minha vida inteira dizem que o que ele precisa é de ar fresco.
como uma aranha pegando os homens na minha teia e sugando a vida dos Sua necessidade de adversários, outras pessoas com as quais ele possa
homens (sic), eu não teria aguentado até esse momento.” (p. 360) De novo, o ficar com raiva, é plenamente afirmado: “Não, melhor a luta novamente! Me-
símbolo da sua voracidade oral e culpa a aranha e o piolho, que vivem dos ou- lhor Porfiry de novo... ou Svidrigailov... melhor ter algum novo desafio... al-
tros e sugam até secarem.[15] gum ataque.” (p. 380) Pensar em sua mãe e irmã, e agora em Sonia, o reduz ao
Ele decide, no fim desse encontro, que esteve com muita pressa para pânico; desta forma, ele precisa de alguém como Porfiry ou Svidrigailov para
se condenar, que deveria ter lutado por isso. Ele também sente algo diferente insultar. Eles são perseguidores externos, e o seu contra-ataque é diretamente
por Sonia. Antes ele sentiu que poderia usá-la para se livrar de seu sofrimento, exterior. Ele se sente certo, vingado, e forte.
agora sente que adicionou mais um fardo e que agora tem que se preocupar em Quando, depois de uma conversa com Razumihin, ele acredita que Por-
se sentir culpado por ela. “Ele sentiu mais uma vez que talvez pudesse odiar So- firy suspeita dele e que armou um plano para pegá-lo. Ele sente “renovada de
nia, agora que a fez ainda mais miserável. Por que ele foi até ela implorar pelas novo à luta, uma forma de escapar apareceu”. Perceba as palavras que ele usa
suas lágrimas? Por que ele precisava envenenar sua vida?” (p. 365) para descrever a mudança entre tormento interior e luta exteriorizada. “Sim,
A confissão de Raskolnikov para Sonia não só o fez lembrar de seus sen- uma forma de escapar apareceu! Foi duro e fiquei paralisado, o fardo foi muito
timentos na hora dos assassinatos, mas repetiu a mesma dinâmica que o levou agonizante... desde o momento da cena com Nikolay na casa de Porfiry ele es-
a cometê-lo. Tendo ido ao encontro de Sonia em uma necessidade desesperada, teve sufocado, cercado sem esperanças de escapar.” (p. 384. Itálico do autor) Porfiry
ele agora percebe que a sua relação está arruinada. Seus sentimentos mistu- diz a ele: “Se você fugisse você voltaria por si mesmo. Você não fica sem nós.” (p.
ram culpa e ira; ele não sabe a quem culpar. Ele se sente fraco e inadequado 397) É por causa disso, e particularmente porque ele não pode arriscar perder
na frente de uma mulher que percebeu estar esperando mais do que poderia ou ferir Sonia, que confessa.
dar. De forma característica, ele responde a isso com raiva. Quase, simultane- Logo antes de ir confessar, ele é visitado por sua irmã. Quando Dounia
amente, suspeita que fosse ele quem estava demandando, que estava pedindo fala sobre pagar pelo seu crime encarando seu sofrimento, Raskolnikov explode.
demais para ela. Já que o uso de mecanismos projetivos resulta em confusão “Ele grita furioso: Crime? Qual crime? Se eu matei um inseto vil e nocivo, uma
entre si mesmo e os outros, ele não sabe qual desses dois foi longe demais. velha agiota, sem utilidade para ninguém... que não serve para nada, matá-la
Os esforços de Raskolnikov em escapar de qualquer compreensão da sua foi um pagamento para quarenta pecados. Ela estava sugando a vida de pes-
posição requerem outras pessoas que ele pode usar como continentes das suas soas pobres... só agora eu vejo claramente a imbecilidade da minha covardia,
agora que eu decidi encarar essa desgraça supérflua. - E só porque eu sou des-
15. A aranha que está no pensamento de Raskolnikov sobre si-mesmo é também usada para repre- prezível.” (p. 466) De acordo com Raskolnikov ele é desgraçado porque é fraco
sentar Svidrigailov, é talvez o símbolo mais conhecido de destrutividade oral e medo de ser amado. e covarde. O crime é estúpido e mal feito porque falhou. “Eu estou mais longe
A aranha está associada à ameaça da teia materna baseada na projeção dos impulsos agressivos
orais da criança. Ver Abraham (1922), Esterba (1950) e Little (1966). No parágrafo Raskolnikov evita
do que nunca de pensar que o que eu fiz foi um crime”, ele argumenta (p. 447).
saber que as mulheres, representantes das mães, são os alvos de suas agressões. Depois que Dounia vai embora, ele pensa consigo mesmo, “mas por
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que eles se preocupam comigo se eu não mereço? Oh, se ao menos eu estivesse prisão, e não lhe foi dada nenhuma explicação sobre seu desaparecimento. É-
sozinho e ninguém me amasse e eu nunca tivesse amado ninguém! Nada disso -nos dito que Raskolnikov se preocupa muito com ela, mas mesmo assim ele
teria acontecido” (p.448). Até agora, podemos apreciar a verdade do ponto de prevê que sua depressão progressiva logo acabará, fatalmente; nem ele nem os
vista de Raskolnikov, e saber qual fardo de culpa está classificado como amor. outros pensam em lhe contar nem mesmo a verdade parcial. O conhecimento
Nós também percebemos que ele ainda está culpando os outros. A agiota por do que aconteceu é-lhe negado, e o que ela não sabe a mata.
ser tão gananciosa, sua família por amá-lo; e ele ainda fala da necessidade de Da mesma forma que Raskolnikov lidou com aspectos inaceitáveis de
quebrar coisas ao invés de repará-las. sua personalidade através da tentativa de se livrar deles ou aniquilá-los, ele
Quando Raskolnikov vai ao posto policial, sua covardia se apodera dele acredita que sua família iria tratá-lo da mesma forma, e iria querer se livrar
e vai embora sem confessar. A fuga é momentânea, no entanto, para o que o dele se for culpado, ou fraco, ou mesmo se estiver errado. Ao antecipar a rejei-
espera lá fora é mais do que ele poderia suportar. “Lá, não muito longe da en- ção de sua mãe, ele a deixa primeiro. Ela acaba sentindo que seu filho a aban-
trada, estava Sonia, pálida e horrorizada. Ela olha ferozmente para ele. Ele fi- donou, fica louco e sucumbe por causa disso. Há quase um sentido de revanche
cou parado na sua frente. Havia um olhar em sua face de agonia pujante, de neste ponto, uma virada de mesa. Aquilo parece tão desnecessário adicionado
desespero.” (p. 457) Esse momento é o clímax do romance, pois justapõe o olhar à crueldade. Poderia seu destino ter sido pior se ela soubesse a verdade? Isso
amedrontado de Marmeladov para sua esposa, e as reclamações de Svidrigai- geralmente passa sem ser notado, mesmo por aqueles leitores que reconhe-
lov sobre o olhar mortífero de Dounia. O movimento espacial da cena de aber- cem a morte da agiota como um símbolo ou um assassinato deslocado da mãe.
tura também é reprisado, a mulher esperando na soleira da porta, obstruindo Há mais uma razão para essa morte aparentemente sem sentido. A ne-
seu caminho. Raskolnikov não aguenta encarar Sonia e, por meio disso, expe- cessidade de Raskolnikov de destruir a fonte original de amor e gratificação
rimenta o que está fazendo com ela; ele perde a coragem. “Seus lábios cons- para eliminar a fonte de inveja. Essa ideia se apoia na forma com que as coisas
truíram um sorriso feio e vazio. Ele fica parado por um instante, arreganha os são trazidas. A mãe de Raskolnikov espera que ele volte em nove meses e ela
dentes e volta para o posto policial.” (p. 457) começa a preparar a sua chegada, arruma seu quarto, etc.. Ela morre de desa-
pontamento; seu desejo é negado. O nascimento, ou renascimento, não acon-
IV tece, pelo menos não para ela. O nascimento, ou renascimento subsequente
O epílogo, como mostra Wasiolek (1959), é uma “fonte de perpétuo embaraço contrasta com a esterilidade dela, suas esperanças e expectativas frustradas.
para os apologistas de Dostoeviski”. Pode ser artisticamente fraco, porém é A ressurreição de Raskolnikov reproduz os assassinatos em vários as-
psicologicamente consistente com os capítulos anteriores do romance. Pode- pectos. Os dois eventos são imediatos, precedidos de fantasias de uma reunião
mos apreciar a sabedoria de não acabar com a confissão, já que a obrigação de oceânica, desta forma a fusão com uma mãe interna, idealizada, torna a mãe
confessar nas circunstâncias descritas dão para Raskolnikov a oportunidade externa desnecessária. É como se Raskolnikov estivesse dizendo que não pre-
de sentir-se novamente irritado. Além disso, agora que ele parou de correr fi- cisa mais dela; ele pode ficar melhor sozinho. Esse seria o último roubo. Pri-
sicamente, os aspectos narcisistas de sua personalidade se tornam mais dis- meiro uma hostil substituta da mãe foi morta, e agora a própria mãe.
cerníveis (Rosenfeld, 1964). Na segunda metade do Epílogo, Raskolnikov já não está mais lutando
A mãe de Raskolnikov ficou seriamente enferma. Seus pensamentos contra sentimentos de culpa; tão pouco demonstra uma capacidade de se
estão completamente voltados para seu filho, e ela enlouquece nos seus esfor- preocupar com os outros. Como ele próprio declara, “minha consciência está
ços de se certificar que ele irá voltar. Ela não sabe sobre seu julgamento ou sua descansando” (p. 467). Raskolnikov está isolado de todos os outros homens.
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Ele pode ficar confortável em seu isolamento precisamente porque todas suas mínimas estilhaçadas que resultaram de uma projeção primitiva forçada
necessidades são satisfeitas por Sonia, que controla e trata como uma parte e atacaram tanto Raskolnikov quanto Svidrigailov nos seu momento mais
de si-mesmo. Afora do crime de Raskolnikov e seu estado de prisioneiro, ela se desesperado. Holquist (1974), na sua discussão sobre o sonho, aponta que as
considera abaixo dele em todos os aspectos. Ela está sempre disponível, não partículas infecciosas, traduzidas na maioria das edições inglesas como mi-
espera nada dele, está satisfeita em ser sua escrava. Os outros prisioneiros cróbios, são mais especificamente os vermes trichinae, para os Russos trixiny.
referem-se a ela como a “boa mãezinha”, uma pista adicional ao que Raskol- Esse é não só um parasita conhecido, mas também é associado a porcos ou
nikov conseguiu com sua dominação e controle sobre ela. Ela está disposta a suínos, o que restabelece o tema da voracidade oral e espoliação, os fatores
aguentar tudo (“Lizaveta, Sonia... Elas aguentam tudo”), e esta não pede ab- emocionais de – K. Não nos surpreendemos quando ouvimos como esse co-
solutamente nada em troca. Se ele olhar para ela, ou notar sua existência, ela nhecimento é usado, “que todos os homens e todas as coisas estavam envol-
é grata. Enquanto isso, ele a trata com desprezo e não percebe nenhum reco- vidas na destruição”.
nhecimento da necessidade por ela de fato, ela é experimentada como quem O resto do mito de Dostoevski descreve a relação entre o individuo
precisa dele. Uma relação narcísica perfeita, onde tanto a dependência quanto que possui esse conhecimento e seu grupo. Bion escreveu sobre três histórias
a necessidade são ou negadas ou projetadas nela. como esta, os mitos do Éden, Édipo e Babel, cada um destes lida com a busca
O sonho com micróbios é difícil de interpretar como uma evidência do homem pelo conhecimento e sua punição subsequente por um deus irado
de redenção moral. Shaw (1973) aponta que Razumihin havia anteriormente (Bion, 1963). Eu gostaria de comparar o mito de Dostoevski com aquele que,
perguntado para Raskolnikov: “Pegou a peste ou o quê?” Uma expressão folcló- eu penso se assemelha mais:
rica que pode ser mais ou menos traduzida por “Está louco?”. Diferentemente “Todos estavam excitados e não se entendiam... As trocas mais comuns
dos sonhos anteriores de Raskolnikov o sonho dos micróbios não é um sonho, foram abandonadas, por que cada um propunha suas próprias ideias, suas pró-
é uma fábula ou um mito.[16] prias melhoras, eles não conseguiam concordar... Homens se encontram em
Ele recapitula os argumentos apresentados no seu artigo e na discus- grupos, concordavam em algumas coisas, juravam manterem-se juntos, mas
são com Porfiry Petrovich, e é talvez a mais explícita afirmação do que eu me de repente começam algo completamente diferente do que haviam proposto.
referi na introdução quando discuti o conceito – K de Bion. Os micróbios de Eles se acusam, brigam e se matam.”
Raskolnikov “eram dotados de inteligência e vontade. Homens atacados por “... Imediatamente os construtores se envolveram em incompreensão.
eles ficam rapidamente loucos e furiosos. Mas nunca os homens considera- Se o mestre-de-obras dissesse para o pedreiro ’me dê argamassa‘!” O pedreiro
ram-se tão inteligentes e tão completamente donos da verdade como esses so- iria lhe dar no lugar um martelo, com o qual o mestre-de-obras iria matá-lo
fredores, nunca consideraram suas decisões, suas conclusões científicas, sua enfurecido. “Muitos eram os assassinatos cometidos na Torre; e também no
convicção moral tão infalível... Cada pensamento que ele tinha sozinho con- chão, por causa dessa confusão; até que finalmente o trabalho diminuiu seu
tinha a verdade” (p. 469). ritmo e parou.”
Esses micróbios são a ultima versão da perseguição. Partículas Enquanto cada um dos três mitos tradicionais lida com um tipo especí-
fico de conhecimento, eu sugiro que o mito de Babel, citado por último (Graves,
16. Se nós considerarmos que a capacidade de sonhar preserva a personalidade da psicose (Bion, 1962 1963, p.126), fala sobre criatividade artística. Sob a supervisão do arquiteto Mi-
b, p. 16), então a pergunta de Razumihim seria respondida afirmativamente, e Raskolnikov está
provavelmente longe da verdade nesta fábula sobre a obtenção do autoconhecimento. Oportuna-
rod, os homens tentam construir uma torre que alcance aonde ninguém jamais
mente, ele tem essa experiência dentro do hospital.
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chegou, cruzando o linear do próprio paraíso para o domínio dos deuses.[17] Sonia, parada na entrada, esperando por ele “apunhalou seu coração”. O ro-
A punição deles para essa transgressão é a fragmentação da linguagem. mance começou e acabou com tal configuração espacial e mental; no episódio
Se considerarmos que, a punição se adapta ao crime, qual a maior punição para de abertura em relação à proprietária, e no fechamento do romance quando So-
um poeta ou artista do que ser desprovido da oportunidade de se comunicar nia o espera na saída do posto policial. Em cada caso, a mulher é um objeto que
através da linguagem, ser reduzido a balbucios? está na fronteira, e lembrar de como ele a tratou é mais do que pode aguentar.
Onde esses três mitos tradicionais começam com a premissa de que Na primeira instância, ele foi levado ao assassinato, na segunda à confissão.
buscar o conhecimento é um pecado, Dostoevski nos apresenta as consequ- Agora novamente Raskolnikov sente que precisa fazer algo!
ências da busca do conhecimento a serviço da inveja e da voracidade. Não é O que segue é sua ressurreição e repentina consciência do amor. Ele é
desejável que a noção de intrusividade seja tão persistente, e o saber sempre conduzido pelo seu segundo devaneio místico. O imaginário é bem parecido
é sentido como alcançado a custa de outra pessoa. O sonho dos micróbios é com aquele que precedeu ao assassinato. A caravana no deserto, com seus ca-
uma reafirmação da teoria de Raskolnikov sobre a criatividade, que também melos descansando, é agora uma tribo de nômades, como Abraão e seu reba-
é uma teoria do super-homem. Não é surpreendente, que esse sonho de des- nho. Há raios de Sol, cânticos, e de novo um sentimento de atemporalidade.
truição do mundo tenha uma fenda, os poucos escolhidos que são salvos da Os nômades, esses andarilhos, que devem fidelidade a ninguém mais além
praga, homens excepcionais, “destinados a achar uma nova raça e uma nova deles próprios, dão a Raskolnikov um sentimento de liberdade. É esse senti-
vida, a renovar e purificar a terra”. Estes super-homens são invisíveis; em uma mento de liberdade que Raskolnikov esteve buscando ao longo do romance;
colocação que eu penso prenuncia o fim do Epílogo nos é dito que “ninguém libertar-se da responsabilidade para com os outros, libertar-se da dependên-
viu esses homens, ninguém ouviu suas palavras e suas vozes”. cia, libertar-se da culpa.
Depois do sonho, Sonia não está lá, e pela primeira vez desde sua con- A fantasia é seguida por um inesperado sentimento de alegria, o senti-
fissão Raskolnikov está preocupado com ela. Ele percebe que ela está doente, mento de desistir como parte da experiência mística. De forma característica,
com gripe. Será que ela foi infectada pelos micróbios do seu sonho? É forçado a também o amor de Raskolnikov por Sonia não é dito, é comunicado visual-
reconhecer sua necessidade por ela, particularmente quando teme que aquele mente através do olhar de um para o outro. É uma experiência de tudo ou nada
mal chegou até ela como um resultado da forma com que foi tratada por ele. imediata e total. Leva Raskolnikov para longe da redenção moral, pois ele não
Isso é ainda mais explicitado pelo jeito que ele fica sabendo da doença dela. lida com seu crime, os assassinatos, e nem com sua maneira prévia de tratar
A carta dela para ele faz um paralelo com a carta prévia de sua mãe; nos dois os outros; ele esquece tudo isso. Quando começa a pensar sobre seu prévio tor-
casos, uma mulher sofreu por conta dele, e não lhe contou nada sobre isso até mento com Sonia, ele imediatamente se detém. “Mas essas lembranças mal o
que fosse tarde. perturbam agora; ele sabia que com amor infinito iria agora apagar todos os so-
Quando Raskolnikov olha para fora da janela do hospital, a visão de frimentos dela.” (p. 471) Seus feitos futuros irão cancelar suas desfeitas passadas.
No fim, ele tinha razão, era tudo aritmética! “Tudo, até mesmo seu crime, sua
17. No seu artigo “A Orestéia” 1963, Klein discutiu Hubris, a qual ela sentiu primariamente pecaminosa sentença e prisão, pareciam para ele agora no primeiro ímpeto de sentimento
devido à voracidade e espoliação da mãe. “A voracidade se liga ao conceito da moira, que repre-
senta a porção repartida para cada homem pelos deuses. Quando a moira é exacerbada, os deuses como um fato estranho e externo com qual ele não tinha relação.” (p. 471-472)
punem. O medo de tal punição volta ao fato de que a voracidade e inveja são experimentados con- Essa falta de relação ecoa a cena do romance quando Raskolnikov ex-
tra a mãe, que é sentida como sendo injuriada por essas emoções e que por projeção se torna na
mente da criança uma figura voraz e ressentida. Ela é, portanto, temida como uma fonte de puni-
perimentou sentimentos similares (ou falta deles) em relação à proprietária e
ção, o protótipo de Deus.” sua dívida com ela. Repetindo o nascimento imaginário, nós também somos
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Normas
trazidos de volta à cena de abertura, talvez tendo percorrido um círculo com-
pleto. Sonia e Raskolnikov passam mais sete anos na Sibéria; mas sobre a re-
generação do caráter de Raskolnikov, Dostoievski nos diz que seria uma outra
história. NORMAS PARA PUBLICAÇÃO[1]
Marly T. M. Goulart
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Higienópolis
(11) 3129-5415
marlygoulart@osite.com.br 1. Linha Editorial
O Boletim Formação em Psicanálise, revista do Departamento Formação em Psi-
canálise do Instituto Sedes Sapientiae, tem por proposta editorial a divulgação
Julia Paladino de trabalhos relacionados à psicanálise e campos afins, numa tendência con-
jupaladino@gmail.com temporânea de integração e complementaridade. Nesse sentido, valorizamos
a diversidade na busca de articulações com outras áreas de conhecimentos,
tendo como finalidade maior a busca da compreensão do sofrimento humano
e a constante (re)construção metapsicológica.

2. Normas Gerais
Os originais devem ser enviados para a Comissão Editorial da Revista Boletim
Formação em Psicanálise (endereço logo abaixo). Se o material estiver de acordo
com as normas estabelecidas pela revista, ele será submetido à avaliação do
Conselho Editorial. O artigo será lido por dois membros do Conselho, que po-
derão rejeitar ou recomendar a publicação de forma direta ou com sugestões
para reformulações. Caso não haja consenso, haverá uma terceira avaliação.
Se dois conselheiros recusarem o material, este será rejeitado para publicação.
Os originais não serão devolvidos, mesmo quando não aprovados. Sendo o ar-
tigo aprovado, sua publicação dependerá do programa editorial estabelecido.

1. Baseadas no estilo de normalizar de acordo com as Normas da ABNT (Associação Brasileira de Nor-
mas Técnicas – NBR 10.520, 2002).

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Além de artigos, a revista publica leituras (comunicações, comentários), rese- Deverá constar o título do trabalho em português; resumo em português (no
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5. Citações
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▪▪ fonte Times New Roman; indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de refe-
▪▪ corpo 12; rência. Exemplo: Ferraz (2000, p. 20) considera “como tipicamente
▪▪ espaço duplo entre linhas; perversos certos atos ou rituais praticados com o consentimento
▪▪ mudança de parágrafo na primeira linha; formal do parceiro”.
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CD (macros, justificação, etc.); margem esquerda de 4 cm, sem aspas, espaço simples, corpo 11 e
▪▪ utilizar itálico para palavras estrangeiras ou para destaque de com indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de
palavras; referência. Exemplo:
▪▪ não usar sublinhado;
▪▪ o negrito deve ser restrito ao título do artigo e aos subtítulos das Freud (1905/1980, p.86) ensina:
seções.
Esse último exemplo chama atenção para o fato de que é essencialmente a
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unificação que jaz ao fundo dos chistes que podem ser descritos como “res- ▪▪ Se houver coincidência de datas de um texto ou obra do mesmo
postas prontas”. Pois a réplica consiste em que a defesa, ao se encontrar com autor, distinguir com letra minúscula, respeitando a ordem alfa-
a agressão, “vira a mesa sobre alguém” ou “paga a alguém com a mesma mo- bética do artigo. Exemplo: Freud (1915a, 1915b, 1915c) ou (FREUD,
eda” – ou seja, consiste em estabelecer uma inesperada unidade entre ataque 1915a, 1915b, 1915c).
e contra-ataque. ▪▪ Caso o autor seja uma entidade coletiva, deve ser citado o nome
da entidade por extenso. Exemplo: American Psychological Asso-
ciation (2000).
Citação indireta
O sobrenome do autor é apresentado dentro dos parênteses em letras maiúscu- Citação de citação
las seguidas, seguido do ano da publicação. Exemplo: Em O mal-estar na civili- Utilizar a expressão “citado por”. Exemplo: Para Rank (1923) citado por Costa
zação Freud faz um esforço para circunscrever o mal-estar na modernidade ao (1992)...
tecer seus comentários sobre as relações entre sujeito e cultura (BIRMAN, 1997).
Citação de depoimento ou entrevista
Citação de autor As falas são apresentadas no texto seguindo-se as orientações para “citações
▪▪ No caso de autores cuja obra é antiga e foi reeditada, citar o sobre- textuais” e devem vir em itálico. Exemplo: O relato a seguir ilustra bem esse as-
nome do autor com a data publicação original, seguida da data pecto: “O fim da gestação é uma morte”.
da edição consultada. Exemplo: Freud (1915/1980) ou (FREUD,
1915/1980). Citações de informações obtidas por meio de canais informais
▪▪ No corpo do texto deverá constar o sobrenome do autor acrescido (aulas, conferências, comunicação pessoal, endereço eletrônico
do ano da obra. Exemplo: Reik (1948). Acrescentar a expressão “informação verbal” entre parênteses após a citação
▪▪ Fora do corpo do texto (citação indireta) o sobrenome do autor deve direta ou indireta, mencionando os dados disponíveis em nota de rodapé. Exem-
vir em letras maiúsculas, seguido do ano da publicação entre pa- plo: Freud foi influenciado pelas idéias de Darwin. (Informação verbal).
rênteses. Exemplo: (REIK, 1948). Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.
▪▪ No caso de dois ou três autores os sobrenomes devem ser ligados
por “&” no corpo do texto e por “;” fora do corpo do texto. Exemplo: Citação de trabalhos em vias de publicação
Ades & Botelho (1993) ou (ADES; BOTELHO, 1993). Cita-se o sobrenome do(s) autor(es) seguido da expressão “em fase de elabo-
▪▪ Caso tenha mais de três autores, deverá aparecer somente o sobre- ração”. Exemplo: Besset (em fase de elaboração) ou (BESSET, em fase de elaboração)
nome do primeiro, seguido da expressão “et al.”. Laing et al. (1974) Obs.: É necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.
ou (LAING et al., 1997). Obs.: Na lista final de referências todos os
nomes dos autores deverão ser citados. Citação de eventos científicos (Seminários, Congressos,
▪▪ Em caso de autores com o mesmo sobrenome, indicar as iniciais Simpósios, etc) que não foram publicados
dos prenomes. Exemplo: Oliveira, L. C. (1983) e Oliveira V. M. (1984) Proceder da mesma maneira que para canais informais.
ou (OLIVEIRA, L. C., 1983; OLIVEIRA V. M., 1984).
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normas 167
Citação de Homepage ou Website Livro
Cita-se o endereço eletrônico de preferência após a informação e entre parên- Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s)
teses. Exemplo: (www.bvs-psi.org.br) prenome(s), título do livro em itálico, ponto, edição (a partir da segunda:
Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto. “2.ed”), cidade, dois pontos, editora, ano de publicação e número de páginas.
Se for uma reedição, colocar o ano em que foi escrito logo depois do nome do
6. Notas de rodapé autor. Exemplo:
Caso sejam indispensáveis, as notas devem vir na mesma página em que fo-
rem indicadas, usando o programa automático do Word. As referências dos CECARELLI, P. R. (Org.) Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 2000, 295 p.
autores citados no texto devem ser apresentadas no final do texto, NÃO em FIGUEIREDO, L.C.M. & COELHO JUNIOR, N. Ética e técnica em psicanálise. São
notas de rodapé. Paulo: Escuta, 2000, 237 p.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário livro 7, A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro:
7. Referências Zahar, 1988, 358 p.
Devem vir no final do texto, com o título ‘Referências’, relacionadas em or-
dem alfabética pelos sobrenomes dos autores em letras maiúsculas, seguido Capítulo de livro e ou coletâneas
das iniciais do prenome e cronologicamente por autor. Quando há várias obras Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
do mesmo autor, substitui-se o nome do autor pelo equivalente a seis espaços, título do capítulo, ponto, In:, título do livro em itálico, ponto, cidade, editora,
seguido de ponto. Exemplo: ano de publicação e página. Quando for coletânea logo após o “In:” colocar so-
brenome e iniciais do organizador e “(Org)” logo após. Exemplo:
Referências
BIRMAN, J. … 1992. (com apenas um autor) DUARTE, L.F.D. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental
______ . … 1997a. moderna. In: ÁRAN, M. (Org.) Soberanias. Rio de Janeiro: Contra
______ . … 1997b. Capa, 2003, p.179-93.
JERUSALINSKY, A.; TAVARES, E. E.; SOUZA, E. L. A. … (com dois ou três autores)
LAING, P. et al … (com três ou mais autores) Artigos de periódicos
ROUANET, S.P. … Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do artigo, ponto, título do periódico em itálico, vírgula, cidade, volume,
Quando houver indicação explícita de responsabilidade pelo conjunto número, página e ano de publicação. Exemplo:
da obra em coletâneas de vários autores, a entrada deve ser feita pelo nome do ROSA, M.D. O discurso e o laço social nos meninos de rua. Psicologia USP, São
responsável seguida pela abreviatura singular do mesmo (organizador, coor- Paulo, v.1, n.1, p.205-17, 1990.
denador, editor, etc.) entre parênteses. Exemplo:
BARTUCCI, G. (Org.) Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Ja- Dissertações e Teses
neiro: Imago, 2001, 408p. Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título da Dissertação ou Tese em itálico, ponto, ano, ponto, número de folhas,
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normas 169
identificação se é Tese de Doutorado ou Dissertação de Mestrado, o nome da Referências de Freud
Instituição onde foi defendida e cidade. Exemplo: Sobrenome do autor em caixa alta, seguido da inicial do prenome, título
da edição utilizada em itálico, cidade, editora e ano de publicação da edi-
LOFFREDO, A. M. Angústia e repressão: um estudo crítico do ensaio “Inibição, sin- ção consultada. Abaixo, ano em que o artigo foi escrito, título e volume.
toma e angústia”. 1975. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Exemplo:
– Faculdade de Psicologia, PUC, Rio de Janeiro.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Trabalhos publicados em eventos científicos (Congressos, Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
Seminários, Simpósios, etc.) publicados em anais ou como artigo (1895). Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia, v. 3.
Autor(es), título do trabalho, In:, título do evento, numeração do evento, ano (1896). Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, v. 3.
e local de realização, tipo de documento (Anais, Atas, resumo) editora, ano de (1897). Sinopses dos escritos científicos do Dr. Sigmund Freud, v. 3.
publicação e página. Exemplo: ________. Gesammelte Werke Chronologisch Geordnet. Frankfurt, S.Fischer
Verlag, 1987.
MARAZINA, I. A clínica em Instituições. In: CONPSIC – II Congresso de Psico- (1917). Die Verdrängung, v. 10.
logia,. 1991, São Paulo. Anais. São Paulo: Oboré, 1992, p.25-43. (1917). Das Unbewusste, v. 10.

Trabalhos que não foram publicados Documentos extraídos de fontes eletrônicas


Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da mesma Proceder da mesma maneira seja para livro, capítulo de livro e artigos de pe-
maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “Texto não publicado”. riódicos, entretanto, adicionar no final “recuperado em (data)”, seguido do en-
dereço eletrônico. Exemplo:
Trabalhos que estão em vias de publicação
Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da PAIVA, G.J. (2000) Dante Moreira Leite: Um pioneiro da psicologia social
mesma maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “no prelo”. no Brasil. Psicologia USP, n. 11, v. 2. recuperado em 5 de fevereiro
de 2006, da Scielo (Scientific Eletronic Library Online): http://
Resenhas www.scielo.br.
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do pre-
nome, título do livro, ponto, cidade, dois pontos, editora e ano de publi- 8. Imagens e ilustrações
cação. Resenha de sobrenome em letras maiúsculas, seguido das iniciais Tabelas, gráficos, fotografias, figuras e desenhos devem ser referidos no texto
do prenome do autor da resenha, título da resenha (se houver), ponto, em algarismos arábicos e vir anexos, em preto e branco, constando o respec-
nome do periódico em itálico, volume, número, páginas e data de publi- tivo título e número. Se alguma imagem enviada já tiver sido publicada, men-
cação da revista. cionar a fonte e a permissão para reprodução, quando necessário.
170 boletim formação em psicanálise
normas
– ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011

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