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A participação dos indígenas da banda meridional da

capitania de Mato Grosso na Guerra do Paraguai


The involvement of Indians of the meridional side of Captaincy of Mato Grosso
in the Paraguayan War
La participación de los indígenas de la Banda Meridional de la Capitanía del
Mato Grosso en la Guerra del Paraguay
Paulo Marcos Esselin*
Vera Lúcia Ferreira Vargas**

Resumo O sul de Mato Grosso –


Os índios antes da guerra
Desde o século XIX, tradicionalmente,
diversos trabalhos que abordam a Guer- Na costa brasileira, no final do século
ra do Paraguai priorizam os aspectos XVI, os colonos portugueses substituíram o
da história militar, econômica e política trabalho escravo do indígena pelo do negro
do conflito. O presente artigo pretende africano, que se implantou a partir de uma
analisar esse importante episódio da
estrutura econômica até então vinda de fora
história do Brasil a partir da participa-
e que já havia incorporado vários elementos
ção dos indígenas do sul de Mato Grosso
no conflito, por meio de documentos ofi- *
Mestre em História pela Pontifícia Universidade
ciais produzidos pelo Estado brasileiro, Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (1994).
relatos de viagens e memórias registra- Doutor em História pela PUCRS (2003). Pós-dou-
tor pela Universidade de São Paulo (2009). Profes-
das por cronistas e viajantes. sor associado II da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. E-mail: paulo.esselin@gmail.com
Palavras-chave: Fronteira. Índios. Mato **
Mestre em História pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul – UFMS (2003). Doutor em
Grosso do Sul. Guerra do Paraguai. História pela Universidade Federal Fluminense –
UFF (2011). Professora adjunta da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: veratere-
na@terra.com.br

Recebido em 25/03/2015 - Aprovado em 08/06/2015


http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.15n.2.5647

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da cultura europeia e africana, excluindo, até O indígena foi sendo ensinado a usar
onde foi possível, a contribuição dos povos técnicas mais sofisticadas, a manejar ins-
nativos. Em Mato Grosso, ao contrário, o in- trumentos mais adequados ao cultivo de
dígena desempenhou papel extremamente plantas oriundas da Europa, introduzidas
importante. O ano 1775 – ano da construção e adaptadas ao novo ambiente, e, assim, os
do forte Coimbra, que é um marco inicial da vínculos entre nativos e colonos foram se es-
ocupação do Baixo Paraguai até 1834, quan- treitando.
do efetivamente se iniciou a penetração das Desde o final do século XVIII, fazia par-
frentes colonizadoras de origem portuguesa te da estratégia das elites governamentais
na banda meridional – foi marcado pelo es- portuguesas e brasileiras a manutenção da
treitamento das relações entre os nativos, co- integridade territorial do Brasil; a preocupa-
lonos e militares, que iam se estabelecendo ção dos círculos governamentais era a de pro-
no território. mover rapidamente a ocupação do território,
Nas proximidades do forte Coimbra, no entanto, não havia população europeia su-
os comandantes estavam sempre preocupa- ficiente para realizar com sucesso essa tarefa.
dos em aldear os indígenas, atendendo às Contava a colônia com uma população em
instruções de seus superiores: torno de 3 milhões de habitantes; desses, 1
milhão eram escravos negros e 800 mil eram
Para dar meu parecer, conforme manda
S.M. e V.Ex. me ordena, sobre o aldea- indígenas (GOMES, 2007). Embora a prefe-
mento dos índios uaicurús e guanás, que rência dos dirigentes da província recaísse na
vivem como entre os portugueses, nos ter- colonização de origem alemã, por entender
renos adjacentes, e a norte d’este presídio ser a mais laboriosa e disciplinada, eles mes-
de Coimbra, e nos contíguos ao de Miran-
da, de tal fórma que fiquem sendo úteis a mos a descartaram devido ao clima quente e
mineração e agricultura, confesso, Illlm e insalubre impróprio para os povos daquela
Exm. Sr. Que mais de uma vez tenho es- região da Europa (MOUTINHO, 1869).
forçado para cumprir esse meu dever (AL- Nesse contexto, não podendo contar
MEIDA SERRA, 1866, p. 240).
com o africano devido aos limites impostos
Instalados a longa distância da costa pelo modo de produção escravo, o índio pas-
brasileira e dependendo de uma produção sou a ser objeto de extremo interesse e im-
regular para manutenção das tropas estacio- portância para alcançar tal objetivo. Havia
nadas nos fortes, os portugueses recorreram setores da elite brasileira e portuguesa que
aos nativos, que, desde o primeiro momen- acreditavam que mesmo os índios bravos,
to, foram aliciados ao uso de determinadas considerados uma raça de homens natural-
ferramentas mais produtivas, tais como ma- mente preguiçosa e, em grande parte, de-
chados e facões. Rapidamente, eles foram sagradecida e desumana, poderiam ser “ci-
assimilando sua utilidade, e em troca de sua vilizados” e prestar, a partir daí, relevantes
participação em frentes de trabalho, como serviços no processo de ocupação mercantil
a da extração da ipecacuanha, só lhes eram (ANDRADA e SILVA, 2000). Acreditava-se
entregues alimentos. ainda que os nativos pudessem ser aldeados

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e que com o trabalho deles criar-se-iam con- cantis, não havia alternativa que não fosse o
dições para o desenvolvimento da agricultu- aproveitamento dos povos autóctones.
ra e da pecuária mercantil, para o aumento Assim, em 1846, na província de Mato
da produção de gêneros alimentícios e para Grosso e em outras, para iniciar o aceleramen-
a criação de rebanhos por todo aquele vasto to do processo de conversão dos nativos em
território. Assim, seriam promovidas a ocu- homens “civilizados e produtivos”, foi criada
pação e a integração mercantis de todo o ter- a Diretoria Geral dos Índios pelo Decreto de
ritório do Brasil, bem como a estimulação do 24 de julho de 1845, chamado Regulamen-
matrimônio entre nativos, brancos e mulatos to das Missões, que colocou em prática uma
das classes subalternizadas para misturar vigorosa política de aldeamento. Surgiram,
as raças e ligar os interesses recíprocos dos assim, as aldeias regulares: estabelecimentos
índios com os da gente vista como superior oficiais nas províncias do Império. Cada nú-
(ANDRADA E SILVA, 2000). Ou seja, a eli- cleo era administrado por um diretor, religio-
te intentava introduzir elementos culturais so ou não, que estava subordinado ao diretor-
ocidentais “civilizados” aos nossos naturais, -geral da província. Na prática, não mudava
enquanto se apossava dos territórios que muito a política que prevalecia desde os tem-
eles ocupavam. pos coloniais. Esperava-se que os índios, uma
A situação econômica da província, vez aldeados, se tornassem dóceis e submis-
no início do século XVIII, era de extrema sos aos costumes “civilizadores” do não índio
decadência econômica; a crise da minera- e a uma cultura que não era a deles. Eram a
ção com o esgotamento dos veios auríferos catequese e a civilização propostas pelo Es-
e diamantíferos levava ao deslocamento e à tado brasileiro para romper com a situação
desmobilização de capitais e de mão de obra de “barbárie”, e também uma porta aberta à
escravizada para regiões mais prósperas do exploração da mão de obra indígena por au-
Brasil. Entre 1819 e 1828, o número de traba- toridades e fazendeiros. Assim, “civilizar” os
lhadores escravizados retrocedeu de 14.180 povos indígenas representava, por fim, a “sel-
para 12.715 trabalhadores, e no fim do ano vageria” de estabelecer uma “nova” socieda-
de 1872, eles eram apenas 6.667 indivíduos de, ou seja, “destruí-la enquanto formas infe-
(CORRÊA, 1976, p. 127). Não havia alterna- riores e, no seu lugar, implantar outra, tida
tivas aos dirigentes provinciais que não fos- como superior” (ZORZATO, 1998, p. 185). Foi
sem os povos nativos; os colonos estrangei- por esse viés que o Estado brasileiro conduziu
ros não se interessariam por uma região tão a população autóctone.
distante da costa, as vias de comunicação e Em discurso na abertura da Assem-
de transporte eram extremamente rústicas; bleia Legislativa provincial, em 1º de março
a tudo isso acrescentava-se ainda a crônica de 1837, portanto antes mesmo da criação
falta de capitais, que são a alavanca de qual- da Diretoria Geral dos Índios, o presidente
quer empreendimento significativo. Para da província de Mato Grosso, referindo-se à
instalação e ampliação de atividades mer- catequese, afirma:

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Certamente nenhuma província do Bra- os soldados dos fortes instalados na fronteira,
sil, Senhores, tem mais necessidade de um eles incorporaram novas práticas de cultivo
systema criador e esse respeito do que a de
Mato Grosso, quer se olhe pelo lado de seus e trabalho e instrumentos mais produtivos,
interesses especiais, quer pela face política, ao ponto de se tornarem os responsáveis pela
que apresenta como limitrophe, que tanto produção de hortifrutigranjeiros de alguns
importa à Nação. Extrema, que comprehen-
núcleos populacionais do sul do então Mato
de quinhentas legoas de larga fronteira
aberta a dous Governos extranhos, com Grosso, como Miranda e Corumbá.
mais de trinta optimos canaes, que desa- Joaquim Ferreira Moutinho, em visita
guão nos fossos que formão suas primeiras à província, anos depois da criação da Di-
linhas de defesa, quaes são os importantes
retoria Geral dos Índios, deixou registrado
rios Paraguay, Jaurú, Guaporé, Mamoré, e
Madeira, e pelos quaes, assim como pode os progressos da catequese que realizaram
entrar – se pelo interior dos territórios da- os padres capuchinhos. Os Terena e os Laia-
quelles Governos, póde – se também avan- na estavam aldeados sob a direção de frei
çar até o interior do Brasil por muitos di-
ferentes pontos, de nada se precisa tanto, Mariano de Bagnaia em uma bela planície,
como de população que lhe ministre força. perto de Vila de Miranda, e prestavam re-
E tanto mais vigorosa é esta necessidade, levantes serviços à sociedade já que cultiva-
quanto exacto terem os estados vizinhos
vam roças que abasteciam a vila de gêneros
população muito superior sobre a fronteira
e maior facilidade de trazer a ella os refor- alimentícios. Em passagem pelo engenho de
ços de que precisem (BUENO, 1840, p. 171). Piraputangas, propriedade do barão de Vila
Maria, Moutinho deixou registrado que a
Na mesma ocasião, o presidente da
esposa do barão oferecia aos índios diversas
província manifestava o seu reconheci-
oficinas, que os habilitavam em diversos ofí-
mento à contribuição laboral que algumas
cios. Tornavam-se oleiros, remeiros e pilo-
nações autóctones davam ao progresso de
tos, empregavam-se em diversas atividades,
Mato Grosso:
inclusive no comércio, como camaradas nas
Muitas differentes nações de Indigenas va- canoas que transportavam gêneros para di-
deião os incultos e extensíssimos sertões da versas localidades bem como nas fazendas
Provincia, em grandes porções ainda não
de cultura e criação (MOUTINHO, 1869), ou
trilhadas por nossa parte; de algumas te-
mos notícia, de outras de que seguramente seja, integravam o processo produtivo como
existem bem fundadas conjecturas: [...] Te- trabalhadores subordinados.
mos tirado não pequena vantagem para o O genovês Bartolomeu Bossi, que em
serviço de defesa do Baixo Paraguay, dos 1862 passou pela banda meridional da capi-
guatos, Laianos, Terenos, Quinquenaos, e
tania de Mato Grosso, deixou registrado que
guánas (BUENO, 1840, p. 170).
próximo da vila de Albuquerque, às mar-
Nas primeiras décadas do século XIX, gens do rio Paraguai, havia uma aldeia Gua-
os indígenas, sobretudo os Terena e os Guaná, ná, cujos índios prestavam relevantes servi-
tradicionais agricultores, eram livres e econo- ços à população local, tanto na agricultura
micamente autônomos. Em contato com os como em outras necessidades e na pequena
religiosos que promoviam a catequese e com indústria (BOSSI, 1863).

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Nem todos os grupos nativos subme- VA, 2001). Raramente, atravessavam o Rio
teram-se aos interesses dos colonizadores. Paraguai, a não ser em investidas esporádi-
Eles se relacionaram com o colonizador a cas, porque essa região era habitada pelos
partir de suas práticas culturais, que, em Guarani, Guaxarapó e outros grupos nativos
determinados grupos étnicos, consistiam no contra quem faziam a guerra.
enfrentamento e, em outros, nos contatos Os Guaicuru estabeleceram-se no Pan-
amigáveis, de acordo com os seus próprios tanal sul-mato-grossense no final do século
processos. Nesse sentido, alguns desperta- XVII; oriundos do chaco paraguaio, passa-
ram, pela resistência que ofereceram ao pro- ram a habitar a região compreendida entre
jeto de fixação de portugueses e espanhóis, os rios Taquari e Jejui, território que passou
as atenções das autoridades governamen- a ser conhecido como “terra mbaianica”, do-
tais. Era o caso dos Guaicuru, a quem Bueno mínio do Mbayá/Guaicurú na designação
em meados do século XIX assim se referiu: brasileira (ASSIS BASTOS, 1972).
No início do século XVIII, os Mbayá/
[...] no número das [dos povos indígenas]
domesticadas não incluo a soberba intrépi- Guaicurú passaram a atacar constantemente
da nação dos Cavalleiros Guaicurús, sem- os paulistas que, em suas monções, seguiam
pre errante, e emprehendedora (BUENO, pelas rotas dos rios de Mato Grosso em di-
1840, p. 170). reção às minas de ouro de Cuiabá. Em 1719,
Os Mbayá/Guaicurú eram comuni- eles aliaram-se aos Payaguá, canoeiros, e,
dades de caçadores, pescadores, coletores e desde então, passaram a atacar de barco,
horticultores muito incipientes. No período pelos rios, e a cavalo, por terra, os que pe-
colonial, como não poderia deixar de ser, netravam seus territórios. Eles passaram a
eram pedestres, adotando, a partir do sécu- utilizar as canoas payaguá para os ataques e
lo XVII, a domesticação e monta do cavalo na maioria das vezes eram confundidos com
introduzido pelos europeus, o que lhes per- os índios canoeiros (HERBERTS, 1998). Os
mitia deslocamentos pelo chaco paraguaio, Guaicurus impuseram duras derrotas aos
onde viviam. Durante todo o século XVI, paulistas em diversos ataques a comboios
e no começo do século XVII, eles viviam que se dirigiam a Cuiabá.
às margens ocidentais do rio Paraguai, ou De 1725, quando ocorreu o primeiro
seja, dentro do ambiente chaquenho (HER- grande confronto, até 1753, quando o últi-
BERTS, 1998). Como caçadores, pescadores mo choque foi registrado, teriam sido mor-
e coletores, eles necessitavam de grandes es- tos 4 mil intrusos, com uma perda de mais
paços territoriais para viver. de 3 milhões (RODRIGO DO PRADO, 1856,
Na era pré-colonial, antes dos primei- p. 44). Mortalidade muito elevada, para o
ros contatos, os Guaicuru estabeleciam di- número de habitantes da província de Mato
ferentes relações (dominação, vassalagem, Grosso na época. Esses ataques contínuos
raptos, casamentos interétnicos ou trocas) ensejaram medo, insegurança, falta de su-
com outras etnias de caçadores e coletores e primentos, fome e alta dos preços em Cuiabá
os tradicionais agricultores, os Guaná (SIL- (MOURA, 1984, p. 419). Devido às situações

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conflituosas estabelecidas entre nativos e fo- dominados, de negociantes de cavalos pró-
râneos nessa região, os ataques e as mortes prios e roubados a meros peões de fazenda
de ambos os lados eram constantes e nume- (RIBEIRO, 1977, p. 82).
rosos. Do ponto de vista dos Guaicuru, esta-
Embora os Guaicuru mantivessem o beleciam-se relações comerciais sem as cons-
seu ímpeto guerreiro, em meados do século tantes ameaças e perseguições realizadas
XIX, anos antes da Guerra da Tríplice Alian- pelo Estado brasileiro. Aos poucos, foi de-
ça, suas ações decaíam em relação às que senvolvido um intenso trabalho de cateque-
motivaram dificuldades extremas ao proces- se, e, com isso, surgiram, ao redor dos fortes
so de fixação tanto de portugueses como de e das vilas, alguns aldeamentos que quebra-
espanhóis em Mato Grosso. vam naturalmente a resistência dos nativos,
Na medida em que o processo de co- também interessados em obter as vantagens
lonização foi se firmando na região, do lado que o Estado proporcionava aos seus aliados.
espanhol, com a consolidação da cidade De outro modo, para os colonos espa-
de Concepción e do forte de Bourbon, e do nhóis, os conflitos com os Mbayá generali-
lado português, com os núcleos de Coimbra, zaram-se após o tratado de paz assinado
Corumbá, Albuquerque e Miranda, confi- com os luso-brasileiros e foram obrigados a
gurou-se uma guerra tripartida entre espa- enfrentar, então, constantes assaltos pratica-
nhóis, lusitanos e Guaicuru. As duas potên- dos nas estâncias e como represálias organi-
cias europeias lutavam entre si por domínio zadas pelas autoridades assucenhas (COR-
e ampliação de suas fronteiras, enquanto os RÊA, 1999).
Guaicuru combatiam as duas, defendendo Foi nesse quadro de disputas e de aco-
o seu território. A aliança de uma daquelas modação que, no final de dezembro de 1864,
nações aos nativos tenderia a desequilibrar as tropas paraguaias invadiram a província
as forças. Aos poucos foi se delineando uma de Mato Grosso.
maior aproximação entre os índios Guaicu-
ru e os portugueses, que culminou com o
O Mato Grosso invadido
Tratado de Paz e Amizade, em 1791. Desde
então, se desconhecem choques violentos Deflagrada a guerra de 1864-1870, en-
entre os luso-brasileiros e os índios cavalei- tre o Paraguai, de um lado, e o Império do
ros (COSTA, 2012). Brasil e as repúblicas da Argentina, sob o
A belicosidade guerreira dos Guaicuru comando do unitário Bartolomé Mitre, e do
foi substituída por trocas com as autorida- Uruguai, sob a ditadura de Venancio Flores,
des luso-brasileiras, o que sugeria também de outro, as tropas paraguaias invadiram
maior dependência dos produtos e das fer- o sul do Mato Grosso com duas poderosas
ramentas de origem europeia. Assim, do colunas, de 6 a 7 mil soldados, que, sob o
ponto de vista dos europeus, após anos de comando dos coronéis Vicente Barrios e Isi-
convivência pacífica, os Guaicuru passa- doro Resquim, ocuparam o território entre
ram de aliados senhoriais a simples nativos os rios Apa e Branco, justamente uma área

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de ricos ervais, disputada pelo Brasil (BAN- Em 1862, portanto antes do início das
DEIRA, 1998, p. 126). hostilidades entre Brasil e Paraguai, Mou-
As tropas paraguaias obtiveram ple- tinho, em visita ao aldeamento dos Kiniki-
no êxito na invasão de Mato Grosso com a nau, deixara registrado que havia ali abun-
primeira coluna, comandada pelo coronel dância de víveres cultivados, que os nativos
Vicente Barrios, cunhado de Francisco Sola- se mostravam muito satisfeitos, os jovens já
no López, e ocuparam nas margens do Rio se comunicavam perfeitamente em idioma
Paraguai o forte de Coimbra e as cidades de português e, com frequência, participavam
Albuquerque e Corumbá. A segunda colu- das missas oferecidas pelos clérigos (MOU-
na, comandada pelo coronel Isidoro Res- TINHO, 1869).
quim, dominou a região entre o Rio Apa, a Já nas proximidades do forte e da vila
Serra de Maracaju e o Taquari, as colônias de de Miranda, sob a direção de frei Marianno
Miranda e Dourados e as vilas de Nioaque de Bagnaia, estavam aldeados os Terena e
e Miranda, estendendo-se ainda até Coxim. os Laiana, que há muito prestavam serviços
As tropas imperiais encarregadas da à comunidade, não só aos fazendeiros que
defesa do território ofereceram pequena se instalaram na região, como também cul-
resistência, optando muito logo pela fuga, tivavam roças que abasteciam a vila e o for-
deixando forte, vila e território à mercê dos te com gêneros alimentícios (MOUTINHO,
invasores. No dia 3 de janeiro de 1865, a Vila 1869). Nessa mesma região, também foram
de Corumbá, onde se concentrava o maior aldeados pelo frei Ângelo de Caramanico os
contingente de militares, foi abandonada Guarani-Kayoa (CORRÊA, 1999).
pelo comandante das armas, coronel Carlos Antes que as tropas do exército para-
Augusto de Oliveira, e pelo tenente–coronel guaio chegassem ao forte de Miranda, ele foi
Carlos de Moraes Camisão, junto com o 2º abandonado pelos militares e o depósito de
Batalhão de Artilharia, do qual era coman- artigos bélicos ficou entregue ao saque dos
dante (CORRÊA, 1999, p. 146). nativos aldeados nas proximidades. Antes
Quando da invasão paraguaia, alguns de cair em poder dos paraguaios, como fa-
povos autóctones, principalmente os que se talmente aconteceria, os Terena, Laiana, Ki-
encontravam no sul de Mato Grosso, pas- nikinau, Kadiwéu e Baquio trataram de se
saram a ter uma função importantíssima prover de espingardas, clavinas e de quanta
para a proteção e a garantia dos territórios pólvora e bala quanto pudessem carregar.
do Brasil, ou melhor, para os territórios em Munição de que dispuseram em abundância
que se encontravam as suas aldeias. Os na- durante todo o tempo de ocupação do terri-
tivos não podiam desertar de suas regiões tório (TAUNAY, 1931, p. 33). O comandante
com a mesma facilidade que os europeus. A paraguaio Isidoro Resquim, mesmo chegan-
primeira aldeia a ser atingida foi a de Bom do ao forte muito depois dos nativos, decla-
Conselho, em Albuquerque, dos Kinikinau, rou ter arrecadado: “quatro peças, com seus
cujos habitantes se dispersaram pela mata carros de munição, 502 fuzis, 67 carabinas,
(VARGAS, 2003). 131 pistolas, 468 espadas, 1.092 lanças, 9.847

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projetis e artilharia de vários calibres” (FRA- rando, os primeiros, a leste do Paraguai e ao
GOSO, 1934, p. 241). Esse enorme armamen- sul de Miranda, e os últimos em Lalima, seis
to, assim como o abandonado em Coimbra, léguas ao sul de Miranda, 130 guatiedeos em
Corumbá e outros pontos, sugere os proje- Albuquerque. Havia também os Guaicuru
tos militares propostos para a província, em Cadiuéo, cerca de oitocentos, em ambas as
caso de guerra com o Paraguai. margens do Paraguai, abaixo de Coimbra,
Como aconteceu em Corumbá, com a divididos em diversas hordas. Moravam em
deserção dos militares, a população impe- tendas, viviam da caça e da pesca, não tendo
rial e as nativas da vila de Miranda ficaram lavouras. Mantinham muitos cavalos e gado
entregues à própria sorte. À época da inva- bovino.
são, havia mais de dez aldeamentos fixos e Os nativos reunidos na Serra de Mara-
regulares organizados em torno da vila, com caju prestaram relevantes serviços ao exérci-
aproximadamente 4 mil índios. Os Terena, to imperial, fornecendo homens, alimentos
em número superior a 3 mil, estavam estabe- e guias. Tão logo ocorreu a invasão de Mato
lecidos em Naxedaxe, no Ipeguê e na Aldeia Grosso, as tropas paraguaias invadiram os
Grande, os Kinikinau no Agaxé, os Guaná aldeamentos indígenas e destruíram os culti-
no Eponadigo e no Lauiad, os Laiana, a meia vos que concorriam para o abastecimento da
légua da vila de Miranda (TAUNAY, 1948, vila de Miranda e imediações, como também
p. 267). atearam fogo nos galpões que armazenavam
Os nativos eram objeto de intenso tra- os suprimentos. Com isso, desorganizou-se
balho de aldeamento e de catequese e pres- completamente a produção de víveres em
tavam serviços nos núcleos urbanos, mas toda a área invadida.
foram abandonados ante a ameaça das tro- A malograda coluna militar imperial
pas paraguaias à região, refugiando-se na que partiu do Rio de Janeiro e se organizou
Serra de Maracaju, lugar seguro no qual os em Uberaba, com o propósito de libertar o
paraguaios não se aventuravam (TAUNAY, sul de Mato Grosso, imortalizada no livro A
1931, p. 22-23). Havia também os cadiuéo retirada da Laguna, de Visconde de Taunay,
que vagavam pelas regiões do Amagalabida viveu enormes privações devido à completa
e Nabilékê, também chamado Rio Branco, e ausência de alimentos. Dependendo de re-
os Guaicuru que estavam em acampamen- cursos que permitissem seus movimentos,
tos (e não em aldeias) no Lalima e perto de ela foi gravemente prejudicada porque não
Nioaque (TAUNAY, 1948, p. 267). teve renovados os seus estoques com a ra-
Com base na pesquisa de Karl Von Den pidez exigida. O gado muito arisco, fugia
Steinen, nas atas da Diretoria dos Índios em de maneira que os soldados ficavam reduzi-
Cuiabá, Mato Grosso, Boggiani (1975, p. 40) dos a chupar o miolo da palmeira imbocayá
descreve que em 1848 havia uma população que os nativos denominavam mamuculi
de índios Guaicuru assim distribuída: 850 (TAUNAY, 1929, p. 17). Para que se enten-
cadiuéos no Paraguai, abaixo do forte Coim- da melhor as dificuldades pelas quais pas-
bra, quinhentos beaquéos e cotoguéos mo- saram os soldados e oficiais, no começo do

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ano de 1866, eles recebiam apenas a carne da Serra de Maracaju, puderam disponibi-
simples, com diminuta distribuição de sal lizar os alimentos necessários para manter
(TAUNAY, 1928b, p. 126; TAUNAY, 1929, milhares de pessoas (NANTES, 1993). Logo,
p. 64). Entretanto, essa foi a situação pela derrubaram área expressiva e passaram a
qual passou a maior parte do exército para- cultivar o solo, obtendo, em seguida, boas
guaio durante boa parte do conflito. colheitas. Segundo Taunay (1948), em março
Ao abandonar suas aldeias, fugindo de 1867, o fornecimento de víveres já havia
dos ataques dos exércitos invasores, os in- se regularizado. Eles completavam a dieta,
dígenas se juntaram à população não índia, aproveitando os estoques de gado bovino es-
embrenhando-se pela Serra de Maracaju e palhados pelas pastagens naturais em torno
estabelecendo-se “na belíssima chapada que da vila de Miranda. Transpunham a Serra e:
coroa aquela serra de grés vermelha” (TAU-
Por entre rondas passavam à noute quando
NAY, 1948, p. 268). Na fuga, reconhecem os desciam da serra para virem lançar reses
descendentes dos antigos moradores da vila na planície e ajouja-las com bois mansos,
de Miranda, os bugres, como eram chamados tangendo-as assim para o alto dos acampa-
mentos. E com estas expedições repetidas
pejorativamente os índios, desempenharam sempre com êxito, apesar da vigilância dos
importante papel. “Eles iam à frente, eram os inimigos, abasteciam-se de carne fresca,
donos dos matos, os ouvidos acostumados ou então seca ao sol, e ao ar (o que chama
carne de vento) os moradores dos Morros.
a distinguir as distâncias e a aproximação
Só se podiam então queixar da falta de sal,
do perigo” (NANTES, 1993, p. 17). Embora esta mesma, até certo ponto, minorada
em grande maioria, como muitos, receavam pela exploração, embora imperfeitíssima,
libertar-se com estrondo e crueldade da tu- dos barreiros ou terrenos salitrosos, tão
abundantes de matéria salina numerosos
tela ferrenha e abusiva em que sempre ha-
nesse sul de Mato Grosso (TAUNAY, 1948,
viam sido conservados; mostraram-se mais p. 270-271).
independentes, mas nem por isso pratica-
ram desmandos e crimes que teriam ficado Embora os autóctones desempenhas-
impunes (TAUNAY, 1948). Houve, porém, sem importante papel na região dos morros
parcialidades que se mantiveram à margem onde se concentraram os dispersos da vila
do confronto e outras que passaram a atacar de Miranda, em maioria númerica, eles aca-
ambos os lados, paraguaios e imperiais. Elas baram por arcar com praticamente todas as
não serão abordadas no presente artigo. atividades de organização da produção. Eles
A área escolhida pelos indígenas para continuaram, portanto, como antes, a prestar
erigir o povoado dos fugitivos era formada todo tipo de serviços à população não nativa
por uma densa floresta virgem, cujo solo era e às tropas imperiais. Não se tratou, portanto,
extremamente fértil. A princípio, tiveram os jamais de uma submissão plenamente volun-
fugitivos que se contentar com uma dieta tária, como propõem tantos autores atuais.
frugal de frutas nativas, palmitos, cocos da Mas uma continuação, em situação extraor-
mata, mel de abelhas, caça e pesca. Os nati- dinária, da antiga submissão em que eram
vos, com grande conhecimento dos recursos mantidos. Sobre tal realidade, Taunay é claro:

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Estamos na mais extraordinária das situa- Os nativos costumavam invadir os
ções; o comandante obriga os pobres índios acampamentos de paraguaios para roubar
Terenas e Quiniquinaus a trabalharem sem
trégua, apesar da necessidade em que es- cavalos, enfraquecendo-os assim (TAU-
tão de ir cultivar suas terras e sustentar as NAY, 1929). Nesse sentido, foram várias as
infelizes famílias. Sem razão alguma retém ações dos índios em defesa do território, ao
estes pobres coitados despachando escol-
lado do exército imperial.
tas para os prender. Desde que mostrem
pouca vontade de vir submeter-se ao seu Em outra ocasião, no porto de Maria
arbítrio (TAUNAY, [s.d.], p. 196). Domingas sobre o Aquidauana, os Laiana
estavam entregues à tarefa de cortar canas
Desde que iniciaram os combates, os
quando pressentiram a presença de uma
nativos participaram por conta própria ou
patrulha paraguaia. Seriam em torno de
comandados por algum oficial do exérci-
vinte soldados. De pronto, os indígenas em-
to imperial. Quando da invasão das tropas
brenharam na alta lavoura e aguardaram a
paraguaias, que tiveram como alvo o forte
aproximação dos invasores. Quando eles se
de Coimbra, dez índios Kadiwéu, sob o co-
aproximaram dos nativos, de súbito, irrom-
mando do capitão Lixagota, juntaram-se à
pia a fuzilaria indígena. Foram abatidos oito
guarnição de Coimbra e, por dois dias, ofe-
soldados paraguaios (ALMEIDA, 1951). A
receram pequena resistência aos intentos
pequena resistência que os exércitos para-
das tropas invasoras (RIO BRANCO, 1928
guaios encontraram no sul da província de
apud FRAGOSO, 1934). O tenente-coronel
Mato Grosso foi quase que exclusivamente
Porto Carreiro, comandante do forte, deci-
oferecida pelos indígenas.
diu, depois de dois dias de combates, aban-
Tão logo os contingentes da força ex-
donar a posição, alegando falta de munição,
pedicionária chegaram à Serra de Maracaju,
encontrada dentro das muralhas em grande
onde se concentrava o maior número de re-
quantidade pelos paraguaios. Os Kadiwéu
fugiados da vila de Miranda e das aldeias do
seguiram com as tropas para Corumbá, e de
entorno, os oficiais organizaram um alista-
lá se dispersaram em fuga.
mento para recrutar os nativos para o servi-
Foram os Terena e os Guaná que pas-
ço militar. Os índios foram convocados a se
saram a emboscar soldados paraguaios após
apresentarem às autoridades militares e se
terem destruído as suas roças de alimentos.
juntarem à força que iria enfrentar os exérci-
Quando a coluna expedicionária imperial
tos invasores. Foram reunidos
organizada para libertar o sul do Mato Gros-
so deixou Coxim em direção à Miranda, pas- [...] em um primeiro alistamento duzentos
e dezesseis terenas, trinta e nove kiniki-
sou diante de um importante vestígio da in-
naus e vinte laianas. Os Guaicuru, através
vasão paraguaia, do seu capitão Nadô, firmaram o compro-
misso de se juntarem com todos os seus
[...] uma paliçada de grossos paus de aroei-
ra com canhoneiras nos flancos, que servia guerreiros ao Exército imperial (TAUNAY,
de defesa contra os ataques dos nativos, 1929, p. 130).
lançados diversas vezes contra os para-
guaios (TAUNAY, 1866, p. 275).

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Quando as tropas imperiais invadiram randa à espera de um guia Kadiwéu para
uma pequena porção do território do Para- acompanhá-lo na tarefa de explorar as zonas
guai, até a fazenda da Laguna, destacou-se sul e sudoeste de Mato Grosso, pois os ín-
o empenho dos Terena e dos Guaicuru, que, dios dessa etnia eram exímios conhecedores
“depois de se comportarem como bravos da região. Sem eles era praticamente impos-
auxiliares, carregavam aos ombros os des- sível a qualquer autoridade se deslocar com
pojos dos cavalos tomados dos paraguaios” sucesso pela província (ALMEIDA, 1951).
(TAUNAY, 1928a, p. 60). Nos documentos Devido ao conhecimento do território,
oficiais sobre a retirada da Laguna, consta os nativos foram importantes informantes,
na ordem do dia, do major de comissão José permitindo com seus relatos que as autori-
Tomás Gonçalves, comandante do batalhão dades imperiais monitorassem os movimen-
nº 21 de Infantaria, o seguinte informe: tos dos paraguaios em todo o período de
invasão, mesmo que não se tivesse sido feito
Os índios Guaycuru e Terêna, desmentin-
do a opinião infundada que deles faz-se muito com essa informação para a recon-
geralmente, portaram-se com muita cora- quista dos territórios. Em 24 de julho, por
gem, tornando-se digno de consideração exemplo, alguns nativos vindos da fronteira
[...]. Avançando a peito descoberto desa- do baixo Paraguai passaram notícias sobre
lojaram o inimigo de um bosquezinho,
fazendo nele grande mortandade (TAU- o número de forças inimigas e a quantidade
NAY, 1928a, p. 192-193). de navios estacionados em Corumbá (COS-
TA, 2012).
A infeliz coluna imperial ainda teve Com o final da guerra, era necessário
que contar com a ajuda dos nativos como reorganizar o território brasileiro e proteger
tradutores e guias. Os engenheiros que par- suas fronteiras; novamente os povos indíge-
ticiparam do conflito elaboraram a carta do nas desempenhariam uma função importan-
território sul-mato-grossense, examinando te para a reconstrução dos territórios destru-
o curso dos rios, o relevo, os acidentes ge- ídos pelo conflito, especialmente no sul da
ográficos, os rios que tinham águas calmas província, onde se iniciava o povoamento
e navegáveis e ofereciam fácil travessia, en- por não índios (VARGAS, 2003). Nesse sen-
fim, reunindo informações importantes da tido, o documento da Diretoria Geral dos
província que era completamente desconhe- Índios, de 1871, evidencia a situação na qual
cida das autoridades nacionais e provinciais. se encontrava o então distrito de Miranda
Para se ter ideia da dependência que as au- bem como o interesse das autoridades bra-
toridades tinham dos povos nativos, em no- sileiras e dos regionais em relação às terras
vembro de 1863, o presidente da província e à mão de obra indígena para a reconstru-
de Mato Grosso, Augusto Leverger, foi en- ção do território. Mais uma vez, o nativo
carregado pelo governo imperial da coorde- era visto pragmaticamente como elemento
nação e do complemento da Carta de Mato fundamental na reorganização mercantil da
Grosso. No mês de agosto daquele mesmo região, como fornecedor de mão de obra, de
ano, ele ficou por alguns dias na vila de Mi- produtos e serviços:

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VExª conhece o estado de anniquilação era a proposta para resolver o problema de
completa a que forão reduzidos a villa e terras que atenderia aos interesses do gover-
todo districto de Miranda, que o Diretor
no, e não aos dos indígenas.
dos índios daquellas aldeas, Frei Mariano
de Bagnaia foi prisioneiro dos paraguayos Como foi possível constatar, embora
até quase o fim da guerra, e que hoje é vigá- tendo os nativos uma atuação destacada na
rio do Corumbá, onde reside, não poden- frente de guerra e na resistência, nem por
do por isso tomar promptas providências
isso deixaram de sofrer todo tipo de precon-
a favor daquelles índios, e nem informar
a Diretoria a cerca de ocorrencias que dão ceito e desrespeito. Quando o conflito ter-
naquellas aldeas. Agora, porem que existe minou e os fugitivos da Serra de Maracaju
no logar de Miranda um Corpo de tropas, retornaram aos seus lares, passaram a publi-
e que por alli vão affluindo da devastação, car os registros de suas experiências vividas
parece-me consciente que V.Exª. recom-
naquele período de sofrimento e sacrifícios,
mende ao comandante militar e as autori-
dades do logar toda proteção a favor dos e não deixaram de manifestar suas opiniões
índios, e que os mantinha em suas terras, a respeito das etnias indígenas com as quais
visto como serão precisos ainda annos conviveram por longos cinco anos. Obvia-
para que Miranda volte ao seo antigo esta- mente, foram obrigados a reconhecer que
do, e tenha as autoridades próprias de uma
villa. Se não houver grande repugnancia
eles foram fundamentais para garantir a so-
da parte dos índios convirá reunil-os em brevivência de todos os que se homiziaram
uma só aldea, no que haverá grande pro- das tropas invasoras, período, na opinião
veito para elles e para a sociedade, e isto deles, marcado por um incontido pânico e
pode V.Exª. recomendar ao commandante
perplexidade; episódios tristes, de muita
militar (BRASIL, 1873, p. 79).
aflição, amargos e de profunda insegurança.
De acordo com essas afirmações, o en- O medo era tanto que eles [os habitantes
tão diretor geral dos índios, Antônio Luiz da vila de Miranda] nem procuravam sa-
Brandão, apresentou os problemas que en- ber se a notícia era verdadeira.
frentavam, naquele momento, os índios, os Era preciso largar tudo e fugir para o mato!
Alguém se pendurou no sino da igreja já
territórios que ocupavam e a possível solu- que se pôs a tocar nervosamente. E gente
ção. Essa situação prolongou-se por anos, e a corria para todos os lados. Alguns já com
solução encontrada foi mais uma vez aldeá- trouxas de roupas passavam aflitos, sem
saber para onde ir (NANTES, 1993, p. 11).
-los de acordo com o modelo estabelecido
pelo regulamento das Missões de 1845; com Foram seguindo os passos seguros dos
essa ação, a política indigenista interrom- guias práticos que logo chegaram à primeira
pida pela mencionada guerra estava sendo furna do morro, onde se sentiram seguros.
retomada nesse novo contexto político e ter- Pelo caminho, os partos se sucediam, e eram
ritorial. Isso representava aldear os índios realizados pelas bugras, assim eram chama-
indistintamente em pequenas áreas, insufi- das as mulheres dos povos autóctones pelos
cientes para o seu desenvolvimento econô- não índios. Como a fuga se realizou às pres-
mico, físico e cultural, o que abria espaço sas, não conseguiram reunir alimento em
para novas fazendas e roças europeias. Essa quantidade que lhes permitisse passar mais

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que uma semana. No entanto, na serra, os não carregar como aquele bando de bugri-
nativos encontraram as condições possíveis nhos o sobrenome do seu progenitor (NAN-
de sobrevivência. TES, 1993, p. 52).
Muitos dos alimentos eram obtidos por
meio da pesca: o pintado, o pacu, o doura-
Considerações finais
do, o jaú, o bagre, as arraias, as traíras, todos
eram facilmente retirados dos rios. Da mata As tropas militares do império conta-
vinham as bocaiúvas, os pindós, os genipa- ram com a auspiciosa contribuição dos povos
pos, a guavira, o jatobá, o caju do campo, o nativos durante toda a Guerra do Paraguai.
algodãozinho, o pequi, o ariticum, o maracu- Embora eles tivessem participado ativamente
já, o tamarindo. Essas frutas típicas da mata da resistência ao lado dos vencedores, o sal-
os nativos também disponibilizavam a to- do da conquista foi extremamente negativo.
dos os fugitivos; com elas, ainda produziam Antes mesmo do final da guerra, algumas
mingaus e refeições variadas. Os fugitivos, epidemias potencialmente mortais, como a
assim, aprenderam com os bugres a comer cólera e a varíola, atingiram toda a popula-
o que encontravam, como carne de paca, ção, com destaque para os Guató e os Guaná,
veado, tatu, pato do mato, anhuma, assim que tiveram uma acentuada redução popu-
como o mel da região, que passou a ser mui- lacional e a quase extinção de seus grupos.
to apreciado (NANTES, 1993). Certamente, Com a preocupação exclusiva de proteger
não fossem os nativos, muitos fugitivos não as fronteiras, as autoridades centrais e pro-
teriam sobrevivido. Essa convivência força- vinciais procederam o estímulo da ocupação
da permitiu que os colonos aprendessem a não-índia do território e a criação de inúmeros
língua dos nativos e adotassem alguns de postos militares ao longo da linha divisória.
seus costumes para viver melhor. Muitos dos soldados do exército imperial que
Muitos nativos prestaram todo tipo participaram da guerra, quando desmobili-
de trabalho aos não índios e protegeram zados, estabeleceram-se na região, como tam-
os que se refugiaram na serra. Durante os bém, migrantes oriundos das mais diversas
anos de guerra, lutaram nas tropas impe- regiões do Brasil. Foi grande a pressão sobre
riais. Entretanto, os cadiuéo continuaram a as terras e a mão de obra nativa.
ser chamados de “bugres bravos”, identifi- Após o fim dos combates e a assinatura
cados de longe pelo “cheiro forte do bugre do tratado de paz, os nativos desceram a ser-
bravo” (NANTES, 1993, p. 22). As demais ra na expectativa de retomar as suas antigas
etnias não tiveram melhor aceitação, sendo aldeias, o que, entretanto, não foi possível,
também tratadas com extremo preconceito. uma vez que elas haviam sido invadidas por
Após enviuvar, um fazendeiro envolveu-se fazendeiros e pelos migrantes que foram se
com algumas bugras e com elas teve muitos estabelecendo em pleno território tradicio-
filhos. Revoltado, um dos filhos do primeiro nal dos autóctones. Sem os seus territórios, a
casamento deixou de assinar o nome pater- população indígena foi se dispersando pelas
no e passou a usar o de seu padrinho, para fazendas da região, na condição de vaquei-

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ros e agricultores. Logo se transformaram official documents produced by Brazi-
no principal elemento de trabalho nas fazen- lian State, travel reports, and recorded
das que iam se organizando no sul de Mato memories by chroniclers and travelers.
Grosso, em terras que haviam sido suas. Os
que haviam combatido os paraguaios eram Keywords: Frontier.  Indian.  Mato Gros-
agora derrotados pelos brasileiros. so do Sul. War of Paraguay.
O período do final da guerra represen-
tou para os povos indígenas, além da destrui- Referências
ção de suas aldeias, a ocupação de seus terri-
tórios por não índios e a legalização de sua ALMEIDA, Mário Monteiro. Episódios da for-
desterritorialização pelo governo brasileiro. mação geográfica do Brasil: fixação das raias com
o Uruguai e o Paraguai. Rio de Janeiro: Pon-
getti, 1951.
Resumen ALMEIDA SERRA, Ricardo Franco. Parecer
sôbre o aldêamento dos Uaicurús e Guanás,
Desde el siglo XIX, los diversos trabajos com a descripção dos seus usos, religião, esta-
que abordan la Guerra del Paraguay tra- bilidade e costumes. Revista Trimestral de Histó-
dicionalmente priorizan los aspectos de ria e Geografia – ou jornal do Instituto Histórico
la Historia militar, económica y política e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro: Typo-
del conflicto. El presente artículo preten- graphia de João Marcio da Silva, tomo VII, 2.
de analizar este importante episodio de ed., p. 240-276, 1866.
la Historia de Brasil a partir de la partici- ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Projetos
pación de los indígenas del Sur del Mato para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras;
Grosso en el referido conflicto, por medio Publifolha, 2000.
de documentos oficiales producidos por el ASSIS BASTOS, Uacury Ribeiro. Expansão ter-
Estado brasileño, relatos de viajes, memo- ritorial do Brasil colônia no Vale do Paraguai
rias registradas por cronistas y viajeros. (1767-1801). 1972. 194f. Tese (Doutorado em
História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ci-
Palabras clave: Frontera. Indígenas. Mato ências Humanas, Universidade de São Paulo,
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BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro
e a formação dos estados na Bacia do Rio da Prata:
Abstract Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização
a Guerra da Tríplice Aliança. 3. ed. Rio de Ja-
Since the XIX century, traditionally,
neiro: Revan, 1998.
many studies about the Paraguayan War
provided priority for aspects of military BOGGIANI, Guido. Os Caduveos. Belo Hori-
zonte: Itatiaia, 1975.
history, and the economic and political
conflicts. This work analyses that impor- BUENO, José Antônio Pimenta. Discurso pro-
tant episode of Brazilian History, from ferido pelo Presidente da Província do Mato
participation of the southern Indians Grosso, o Doutor José Antônio Pimenta Bueno,
na abertura da Assembléia Legislativa Provin-
of Mato Grosso in the conflict, through
cial em 1º de Março de 1837. Revista do Instituto

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