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Revista Desvio / Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio

de Janeiro. Vol. 2, n. 1 (2017). Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.
Semestral
ISSN: 2526-0405

1. Revista publicada por alunos da Escola de Belas Artes da


Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2. Arte, memória e patrimônio.
I. Revista Desvio. II. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. II. UFRJ.
CDD: 700

Revista da Graduação da Escola de Belas Artes


da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ano 2 | n. 2 | Junho 2017


REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ

EXPEDIENTE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

Reitor
Roberto Leher
Vice-reitora
Denise Fernandes Lopez Nascimento
Pró-Reitoria de Graduação – PR1
Eduardo Gonçalves Serra
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR2
Leila Rodrigues da Silva
Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR3
Roberto Antônio Gambine Moreira
Pró-Reitoria de Pessoal – PR4
Agnaldo Fernandes
Pró-Reitoria de Extensão – PR5
Maria Mello de Malta
Pró-Reitora de Gestão e Governança – PR6
Ivan Ferreira Carmo

ESCOLA DE BELAS ARTES

Diretor
Carlos Gonçalves Terra
Vice-diretora
Madalena Ribeiro Grimaldi

REVISTA DESVIO

Publicação Semestral de alunos e ex-alunos da Escola de Belas Artes – UFRJ


Ano 2 Nº 2 – Junho de 2017

Daniele Machado Gabriela Lúcio Thiago Fernandes João Paulo Ovidio Maíza C. França
Editora chefe, Editora executiva e Design gráfico, Entrevista Revisão
revisão e entrevista revisão diagramação e
entrevista

Ano 2 | n. 2 | junho 2017


REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ

SUMÁRIO

05. Editorial
07. Avisos
08. Caderno Especial | Incêndios
09. Entrevista com Angela Ancora da Luz
Daniele Machado, João Paulo Ovidio e Thiago Fernandes
21. Análise e acompanhamento conservativo do Núcleo Interdisciplinar de Estudo
da Imagem e do Objeto (NIO)
Gabriela Lúcio de Sousa, Patricia Riggo Cordeiro e Maria Cristina Volpi
28. ‘Espaço de experiência’, ‘horizonte de expectativa’ e o estado da arte visual no
ensino médio do RJ
Maíza C. França
31. A EBA PEGOU FOGO! A EBA RESISTE! A EBA RE-EXISTE!
Daniele Machado
42. Crítica | Balancete - Coletivo Filé de Peixe no Centro Municipal de Arte
Hélio Oiticica
Thiago Spindola Motta Fernandes
44. Crítica | Meu mundo teu: elos afetivos e simbólicos de se estar junto
Pedro Ambrosoli
53. Ensaio | Pixo e arte: linguagem, ação e novas inserções
Bárbara de Andrade
58. Artigo | “A gente produz obras que não são nossas”: aspectos da autenticidade na
arte contemporânea
Camila Medina
71. Artigo | Lygia Clark e o Não-Objeto: interatividade e forma artística
Amanda Bueno Villar Inocencio Costa
88. Artigo | Imagens da morte na arte contemporânea brasileira
Tadeu Ribeiro
96. Artigo | Reprodutibilidade e fantasmagoria: a reinvenção do simulacro em Morel
Adalgiso Pereira de Souza Jr
103. Artigo | Ética, estética e política: a fotografia de Nhem Ein e o lugar da memória
Vitor Brito
111. Artigo | A educação grega: o ideal que se perdeu da humanidade
Cintia Gameiro, Clarice Saisse e Débora Poncio
116. Artigo | ArRUAça: estudos iniciais sobre o corpo funkeiro carioca
Mayara de Assis
126. Artigo | José Medeiros, o poeta da luz
Gabrielle Nascimento

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Editorial

É com imensa alegria que realizamos o lança- Belas Artes e do Centro da cidade do Rio de Janeiro.
mento a segunda edição da revista Desvio! No A edição continua com duas críticas e um en-
percurso de aprender e compartilhar a constru- saio. Em Balancete - Coletivo Filé de Peixe no
ção de um periódico, essa edição recebeu muitas Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Thiago
inscrições e decidimos aceitar todas as que fos- Fernandes aborda a retrospectiva de dez anos de
sem possíveis, chegando a este resultado final, trajetória coletivo carioca. E em Meu mundo teu:
que conta também com a produção da equipe elos afetivos e simbólicos de se estar junto Pedro
editorial da revista. Ambrosoli analisa a mostra individual do ar-
tista Alexandre Sequeira. O ensaio de Barbara
Entre os objetivos da revista, está o de criticar Andrade, Pixo e arte: linguagem, ação e novas in-
e produzir a memória da Escola de Belas Artes/ serções, retoma o assunto pichação já abordado
UFRJ. Esta, na finalização da primeira edição, so- em edição anterior por Samuel Lima, a partir de
freu um incêndio, o qual não pudemos abordar outras perspectivas.
pois a edição já estava pronta. No número atual
dedicamos um caderno especial da equipe edito- Por fim, temos os artigos, que nesta edição são
rial da revista, com reflexões sobre este evento e muitos. Três que abordam recortes na arte con-
adjacências. A escola, que passa por dificuldades temporânea brasileira. “A gente produz obras
de funcionamento há anos, teve a situação pro- que não são nossas”: aspectos da autenticida-
fundamente agravada, de forma que problemas de na arte contemporânea, de Camila Medina,
esquecidos pudessem emergir. Incêndios conta Lygia Clark e o Não-Objeto: interatividade e for-
com uma entrevista com a ex-aluna, professora ma artística, de Amanda Inocencio, e Imagens
e diretora da escola Angela Ancora da Luz, onde da morte na arte contemporânea brasileira, de
pode-se acessar a episódios da escola e também Tadeu Ribeiro. Dois artigos com discussões em
de sua atuação, abordando-se possibilidades, torno da imagem: Reprodutibilidade e fantas-
limites e sonhos. Também há o artigo Análise magoria: a reinvenção do simulacro em Morel,
e acompanhamento conservativo do Núcleo In- de Adagilso Pereira, e Ética, estética e política: a
terdisciplinar de Estudo da Imagem e do Objeto fotografia de Nhem Ein e o lugar da memória, de
(NIO) de Gabriela Lúcio, Patricia Riggo e Maria Vitor Brito. E a sessão se encerra com A educação
Cristina Volpi, em uma reflexão sobre táticas de grega: o ideal que se perdeu da humanidade, de
conservação nos acervos da escola diante das Clarice Saisse, Debora Poncio e Cintia Gameiro,
possibilidades pós-incêndio. O segundo artigo ArRUAça: estudos iniciais sobre o corpo funkeiro
‘Espaço de experiência’, ‘Horizonte de expectativa’ carioca, de Mayara Assis, e José Medeiros, o poeta
e o estado da arte visual no ensino médio do RJ da luz, de Gabrielle Nascimento.
de Maíza C. de França conecta o ensino da licen-
ciatura de arte na universidade e a prática na sala Inauguramos nesta edição a sessão de anúncios
de aula. No ensaio A EBA PEGOU FOGO! A EBA com três convites. O primeiro é para integrar a
RESISTE! A EBA RE-EXISTE! Daniele Machado equipe editorial da revista. Os outros dois são
investiga encontros imagéticos e de dispositivos convites para inscrições de trabalhos para dois
nas trajetórias de edifícios e projetos da Escola de eventos organizados pela Desvio em parceria

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com o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. encerrar sem salientar a radicalização no projeto
O De/Sobre/Feitas por mulheres, encontro para de privatização do ensino público e gratuito do
construção de bibliografia de/sobre/feitas por país, que segue com cada vez mais força e rapi-
mulheres, organizado também pelo Coletivo de dez. A situação em que a Universidade do Estado
Mulheres Ana Maria Nacinovic, e o Primeiro En- do Rio de Janeiro (UERJ) se encontra se trata não
contro de Estudantes de Graduação do Estado do de uma negligência do governo do estado do Rio
Rio de Janeiro, espaço de compartilhamento de de Janeiro, mas de um objetivo desse projeto, que
pesquisas de estudantes de graduação de todo o vem atacando diversas universidades. A EBA, a
estado do Rio de Janeiro. UERJ e todas as universidades e servidores públi-
cos seguem resistindo!
A Desvio segue cumprindo seu objetivo de tornar
acessível a produção acadêmica de graduação, em Boa leitura!
especial da EBA, assim como refletir sobre ques-
Equipe Desvio
tões pertinentes a escola como no caso o incêndio Rio de Janeiro, 30 de junho de 2017
e suas problemáticas “satélites”. Não podemos

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Interessados em fazer parte da equipe da


Revista Desvio, favor encaminhar um e-mail LHE RES
A S P O R – MU
para desvio.editorial@gmail.com com uma EIT
BRE – F
breve carta de interesse e currículo DE – SO
ado)
(preferencialmente lattes), indicando no
d e 2 0 17 (sáb
o
assunto do email “Nome + Currículo para etembr
16 de s
equipe”.

Pré-requisito: estudantes de artes ou Cadê as mulheres nas bibliografias de


ciências humanas (preferencialmente da arte? Queremos artistas, teóricas, críticas,
Escola de Belas Artes/UFRJ) com produtoras, conservadoras, restauradoras,
disponibilidade para participar e aprender. professoras, educadoras e historiadoras da
O estudante pode estar na graduação ou na arte. Vamos construir uma bibliografia
pós-graduação. coletiva reunindo elas? O edital será divul-
gado em breve!
O resultado será divulgado através do site
da Desvio. Onde: Centro Municipal de Arte Hélio
Oiticica - R. Luís de Camões, 68 - Centro,
Rio de Janeiro - RJ.
DE
E S T U DANTES D E JANE
IRO
O D E R I O
I ENCO
NTR ES DO Quem pode participar: Qualquer pessoa
Ç Õ E S EM ART 2017
A bro de
GRADU n o v e m que tenha interesse.
1 de
e o u t u bro a 1 Mais informações através do site da Desvio.
14 d

Neste período será construído um ambiente de compartilhamento de pesquisas entre


estudantes de cursos de graduações em artes do estado do Rio de Janeiro. Poderão ser
inscritas propostas de 20 minutos ou de 24 dias, e as submissões estarão abertas do dia 3 de
julho ao dia 14 de agosto. Poderá ainda se inscrever, quem tiver interesse em colaborar com
o evento como parecerista. Em breve mais informações no site da revista.

Serviço:
Quando: 14 de outubro a 11 de novembro de 2017, horário a confirmar.
Onde: Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica - R. Luís de Camões, 68
Centro, Rio de Janeiro - RJ.
Quem pode participar: estudantes ou graduados em artes, artistas ou pessoas interessadas.
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CADERNO ESPECIAL

INCÊNDIOS

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CADERNO ESPECIAL | INCÊNDIOS

ENTREVISTA COM ANGELA ANCORA DA LUZ


Daniele Machado, João Paulo Ovidio e Thiago Fernandes

Entrevista realizada no dia 03 de fevereiro de 2017 com Angela Ancora da Luz, ex-aluna, professora
e diretora da Escola de Belas Artes, que vivenciou o momento da transferência da instituição para
o Fundão. Em seu depoimento revela detalhes de sua experiência com a Escola desde o seu período
como aluna até o seu mandato como diretora, destacando os momentos difíceis, as conquistas e as
mudanças pelas quais a instituição passou nas últimas décadas.

Desvio: Conte-nos um pouco sobre sua rela- museu em museu. E na época a minha filha mais
ção com a EBA1, quando começou a estudar na velha era pequena. Ela me acompanhava, gostava
Escola... de passear nos museus, nunca me deu trabalho,
bastava dar alguma coisa para ela se distrair. Ela
Angela Ancora da Luz: Eu comecei em 1970, no diz que se lembra, mas é impossível. Voltamos
período da ditadura militar. Em 1968 ocorreu o em 1967, justamente no apogeu em que se vivia o
AI-5, e eu fui para a Escola de Belas Artes dois momento político da ditadura. Havia pedido uma
anos depois. Primeiro fui para um curso prepa- licença no magistério público, e quando retornei
ratório, naquela época nós não possuíamos um ao Brasil já voltei com a ideia de fazer uma licen-
vestibular unificado, as seleções eram feitas de ciatura em artes. Então fui fazer a licenciatura,
acordo com as nossas escolhas de universidade. porém a minha formação era de normalista, por-
Havia um vestibular específico para a Escola de tanto não havia estudado algumas das matérias
Belas Artes. Esse vestibular era dividido em dois obrigatórias do vestibular, por exemplo, geome-
blocos. Um bloco para licenciatura em desenho e tria descritiva. Eu nem sabia o que era Geometria
artes plásticas, e outro para artes de modo geral. Descritiva (G.D).
Eram duas provas diferentes, uma prova para
cada bloco. Desvio: Essa matéria era obrigatória? Quais
eram as outras matérias?
Desvio: Como se deu essa decisão de estudar na
Escola? Por que optou pela licenciatura? Angela: Sim. Geometria descritiva era obriga-
tória para a prova de acesso. Na verdade, todas
Angela: Na época eu era professora do ensino as geometrias eram obrigatórias. O fantasma
fundamental, e sempre gostei muito de artes. da época. E havia também uma prova de portu-
Em 1966 fiz uma viagem para a França e lá pas- guês, prova de desenho, e três tipos de provas de
sei cerca de um ano e meio, não fui com a inten- modelo vivo, com pose de meia hora, de quin-
ção de fazer cursos, mas sim acompanhar o meu ze minutos e de cinco minutos. Também havia
marido. Passava literalmente todas as tardes nos uma prova de modelagem em que você precisava
museus, então acabei fazendo aqueles cursinhos, modelar de acordo com uma peça. Eles pegavam
fotografando as obras, estudando, pegando livros um daqueles florões, colocavam perto de você, te
na biblioteca, praticamente fui me formando de entregavam um monte de barro, um local pró-

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prio, prancha grossa, e ali você iria repetir aquele é o maior pintor brasileiro. Ele não podia fazer o
florão na modelagem. curso regular por falta de titulações, mas o curso
livre era permitido para qualquer um, esse curso
Desvio: Então o cursinho preparatório foi im- ocorria nos ateliês. Quem fazia essa seleção eram
portante para suprir essa carência, certo? Ter os professores dos ateliês, os grandes nomes...
noções sobre essas matérias que você desconhe-
cia até então... Esses cursos livres deixaram de existir com as
reformas entre as décadas de 1950/60, mas nós
Angela: Exato. Resolvi fazer esse cursinho que ainda temos professores vivos, por exemplo, o
funcionava na própria EBA. Na época a Esco- Joaquim Lemos3, que foi aluno de cursos livres.
la funcionava onde é o Museu Nacional de Be- O Estevão da Silva4 foi aluno de um desses cur-
las Artes. No subsolo, onde há os porões, havia sos livres. Vocês sabem quem foi esse artista?
uma sala grande onde os próprios professores Ele era um aluno negro, filho de escravos afri-
da Escola ministravam as aulas do cursinho pré- canos, aluno da Academia Imperial, na época do
vestibular. Eu estudei modelo vivo com a Aurea, Império ainda durante a escravidão. Já ouviram
professora de modelo vivo da Escola. Entende? a história de uma escola que durante o período
Todos os professores faziam um “extra” dan- da escravidão tem um aluno na sua Academia
do aulas no cursinho preparatório. Então, em Imperial que é filho de escravos? Então a Escola
outubro de 1970, fui para a Escola justamente sempre teve essa dinâmica de ver a arte como
para aprender um pouco de G.D. Eu falei para um denominador comum de diferenças, por isso
mim mesma: “Não posso zerar. Português, ok. eu digo que ela é diferente e ela não vai acabar.
Desenho, não sou boa... mas desenho, consigo
passar. Sou capaz de enfrentar modelagem, mas Desvio: E depois de ser aprovada? Você abando-
geometria descritiva...”. E eu queria muito ir para nou o magistério público?
a EBA, ser professora de artes. O cursinho foi
muito bom para mim. E eu tive uma colega de Angela: Pedi uma licença sem vencimento no
juventude, Maria Helena Wyllie, que me deu au- magistério, para vê se me ajustava, porque nessa
las particulares de G.D, e depois ela veio se tornar ocasião eu já tinha duas filhas. Eu era a mais ve-
professora de G.D da própria Escola. Para vocês lha do grupo, os meus colegas eram todos mais
verem como o mundo é pequititinho. Enfim, con- novos, e aí aconteceu uma coisa muito interes-
segui, e até fiz bonito, passei em quinto lugar2 de sante. Sempre tive um temperamento de grande
quarenta concorrentes. afinidade com a juventude, eles me cercaram de
muito carinho, e havia trocas muito importantes.
Desvio: Também havia outros cursos, certo? Os Eles iam lá para casa, e muitas das vezes almo-
cursos livres... çavam, alguns por motivos A, B, C ou D não po-
diam ir para casa almoçar. Estudávamos juntos,
Angela: A Escola sempre teve cursos livres e cur- e nessa ocasião já não havia mais a possibilidade
sos regulares. Nos cursos livres o aluno não pre- de qualquer ajuntamento estudantil, tudo era
cisava ter formação de ginásio. Você sabe qual é a considerado subversão, então nós saíamos dali e
formação de Portinari? O Portinari fez até o ter- íamos para outros lugares. Eu era tranquila.
ceiro ano primário, fez o curso livre da Escola, e

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Desvio: Quem era o diretor da Escola na sua eram mais pobres, precisavam trabalhar, e du-
época? rante a noite se reuniam para pintar, já rompen-
do de modo significativo com a visão acadêmica.
Angela: O diretor da Escola na época era o pro- Eles deixavam os quadros lá, e no dia seguinte
fessor Thales Memória, filho de Archimedes Me- a Academia entrava e se deparava com aqueles
mória5. O Archimedes ganhou o concurso, na trabalhos. Havia uma rusga entre as cabeças
década de 1930, para o Ministério da Cultura, Ca- pensantes da Escola, que eram acadêmicas e não
panema lhe pagou o prêmio, mas deu o projeto queriam a arte moderna, e havia também o que
para o Lúcio Costa. Capanema queria um prédio saia pelos porões da Escola. Costumo dizer que
moderno. A República Nova queria o novo e não a luz da modernidade veio para a Escola pelos
um prédio com estética da tradição, ou seja, de- porões, e não pelo dia. E isso fomentava uma dis-
sejavam vestir a cidade com o novo porque era a cussão, criava realmente uma possibilidade de
República Nova. produção e reflexão. E é nesse período que vem
o Lúcio Costa, homem moderno, responsável por
Desvio: Qual foi a participação da Escola nesse fazer uma grande reforma. O Salão chamado o
projeto? Salão Tenentista, Salão de 31, já foi feito em mol-
des completamente diferente. Não teve aquela
Angela: O grupo de Lúcio Costa foi responsá- seleção e rigor, mas ele não chegou a ver o final
vel por aquele maravilhoso Palácio, ali na Rua dessa exposição. Lúcio Costa saiu como diretor
Araujo de Porto Alegre, o Palácio da Cultura6. da Escola no meio dessa exposição, aliás, pediu
O projeto é do Lúcio Costa, os azulejos de Por- para sair porque o grupo dos Acadêmicos desco-
tinari, os jardins de Burle Marx, e todos eles fo- briu que ele não cumpria um dos requisitos do
ram alunos da Escola. Esse Palácio saiu todo das regimento, obrigatório aos diretores da época,
mãos da Escola, contando com a orientação do Le ou seja, saiu antes de sofrer o processo para ser
Corbusier. Alguns de vocês já subiram no terra- retirado. Foi um período de grande fomentação
ço? Lá há um jardim absolutamente abstrato, pa- e tão importante que em 1940 temos a divisão
rece uma aquarela, daquelas aquarelas que Burle no Salão.
Marx fazia. Inclusive já fiz um trabalho sobre as
aquarelas do Burle Marx. Pouca gente vê esse jar- Desvio: Como funcionava o Salão até então?
dim porque pouca gente sobe até lá. Tudo saía
da Escola, que era realmente um organismo vivo, Angela: Só havia um Salão, e era o Salão Nacio-
pulsante... nal de Belas Artes, não havia espaço para os mo-
dernos, os artistas chegavam a enviar trabalhos,
Desvio: O Lúcio Costa também foi diretor da Es- mas não eram aceitos. Em 1940, se cria no Sa-
cola de Belas Artes7. Conte-nos um pouco mais lão Nacional de Belas Artes uma divisão para os
sobre isso, sobre a atuação do Lúcio Costa. modernos, então pela primeira vez esses artistas
tiveram a oportunidade de expor em um Salão de
Angela: Desde 1930, nós tínhamos o núcleo Ber- Belas Artes. E mais, a partir daí, em 1948 surgem
nadeli, e eles trabalhavam nos porões da Escola. dois museus: MAM-RJ e MAM-SP. Esses museus
Tínhamos o Quirino Campofiorito, Edson Motta, surgem na mesma época, ou seja, se cria insti-
Pancetti, Milton da Costa, e tantos outros. Eles tucionalmente um espaço para a arte moderna,

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porque até aquele momento a arte moderna não se encontrava as pessoas mais exacerbadas, por-
possuía um espaço próprio. Em 1951, essa divi- tanto não havia interesse político em mantê-la no
são do Salão se transforma no Salão Nacional de centro da cidade.
Arte Moderna, e em São Paulo se cria a Bienal
Internacional de Arte. Vimos nitidamente à espi- No Museu Nacional de Belas Artes, nós tínhamos
nha dorsal dessa transformação. Gosto de levar na direção uma museóloga, Maria Elisa Carraz-
esse tipo de reflexão as pessoas, pensar e ver que zoni9. Inclusive, ela esteve comigo quando morei
nada está empacotado. A nossa Escola na década em Paris, e veio para o Brasil ser diretora do mu-
de 1960 ainda era profundamente dividida entre seu. Carrazzoni era ligada aos militares e sonha-
modernos e aqueles que queriam continuar em va em transformar tudo aquilo em um museu,
uma arte engessada, monolítica. retirar a Escola daquele lugar, e por outro lado
tínhamos na direção da Escola o Thales Memó-
Desvio: Você chegou a desenvolver uma produ- ria10, que desejava levar a Escola para a Ilha do
ção artística? Fundão. Ele era arquiteto, achava que se a Escola
estivesse no Fundão teria outra dignidade, e na
Angela: Na Escola havia as oficinas, fiz pintu- verdade foi o que perdemos. Então juntou a for-
ra e gravura – xilogravura e gravura em metal. ça política, a vontade do diretor da unidade e de
Aquelas duas pequenas xilogravuras na parede uma diretoria do museu, e essa junção acarretou
são minhas. Na ocasião eu era aluna de quem?! a transferência da Escola para a Ilha do Fundão.
Adir Botelho, mestre de xilogravura, e por isso Em 1975, depois das férias, quando retonarmos
coloquei a obra dele acima da minha. Cheguei a a Escola não estava aberta. Em abril fomos para
expor em Salões, participei dos Salões Nacionais a Ilha do Fundão em caminhões, as obras foram
de Belas Artes e até ganhei menção honrosa8, transportadas sem o mínimo cuidado, não foram
mas o que me seduzia era a reflexão sobre a arte, embaladas, não houve nenhum tipo de tomba-
poder ver a arte de outra forma e transmitir isso mento. Eu assisti a essa cena.
para outras pessoas, refletir em conjunto. Eu me
sentia capaz de fazer isso porque havia passado No meu último ano abriu seleção para monito-
por pintura, gravura, havia produzido. ria, e fui monitora de História da Arte, foi aí que
se deu início o meu vínculo com a História da
Desvio: A Escola de Belas Artes e o Museu man- Arte. Sempre gostei de História da Arte, mas nós
tinham uma boa relação? tínhamos muitas matérias. Fui convidada pela
Ecyla Castanheira Brandão para ser monitora
Angela: Não. Em 1975, nós saímos do Centro. dessa disciplina, e o Baiense11 me convidou para
E por que saímos?! Já estou respondendo ou- ser monitora de Geometria Descritiva. Veja no
tra pergunta, mas acho importante falar sobre que eu me transformei. Não quis ser monitora de
isso. Primeiro, havia um pensamento político de Geometria Descritiva porque minha área sempre
transferir os alunos para a Ilha do Fundão, por- foi à humanística.
que a Ilha só possuía uma entrada e uma saída,
impossibilitando a realização de movimentos es- Desvio: A mudança para a Ilha do Fundão foi di-
tudantis. A Cinelândia era o coração da cidade, fícil para os alunos e professores?
tudo que acontecia repercutia ali. A EBA era onde

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Angela: Quando nos mudamos para a Ilha do la também. A congregação apontou meu nome
Fundão muitos professores pediram aposentado- para História da Arte e Teoria da Percepção. A
ria, não queriam sair do centro da cidade, princi- minha paixão era a História da Arte. Eu tinha 10
palmente porque possuíam ateliês lá, e também anos de magistério público, resolvi pedir minha
havia a questão de transporte. Oswaldo Goeldi exoneração e comecei uma nova carreira na Es-
tomava lotação ali, na Rua Araujo de Porto Ale- cola. Trabalhei de 1975 aa 1977, de segunda à sex-
gre. Ana Letycia era taquígrafa, estava fazendo ta, sem ter a carteira assinada, sem um contrato
suas primeiras experiências na arte, se encontra- definido, sem direito a tempo de serviço, recebia
va com o Goeldi. No centro havia o Amarelinho, apenas um “salariozinho” minguado, equivalente
um point onde todo mundo se encontrava, ha- a um professor substituto nos dias atuais. Assi-
via um microcosmo de discussão de arte naque- naram a minha carteira em 1977, e então passei a
le lugar. A Escola passou por um declínio muito fazer parte do quadro oficial de professores. Re-
grande, essa mudança para a Ilha do Fundão foi solvi fazer mestrado, doutorado e várias especia-
traumática12. Nós não tínhamos mobiliários, não lizações. Nesse momento comecei oficialmente a
tínhamos oficinas e nem ateliês, porque aquele minha carreira de historiadora da arte.
prédio não foi construído para funcionar uma
Escola de Belas Artes. As salas eram pequenas, Desvio: Quando a situação da Escola começou a
foi uma adaptação difícil, para vocês terem ideia melhorar?
os primeiros ateliês de gravura foram feitos no
sétimo andar, onde hoje estão às salas de Geome- Angela: O Almir Paredes Cunha foi o grande di-
tria Descritiva e da pós-graduação, o PPGAV. O reto13 do primeiro momento da Escola na Ilha do
ateliê de pintura ficava nas salas 701, 703 e 705; o Fundão. O nosso mobiliário não entrava nas sa-
ateliê de gravura, um para xilogravura e o outro las, as mesas eram grandes e os pés torneados.
para litografia e água-forte ficavam, respectiva- A verba destinada para a nossa transferência foi
mente, nas salas 707 e 709. Quando se começou desviada para outro lugar, dentro da própria uni-
a gravar água-forte ali foi um problema, a garo- dade, então nós ficamos sem dinheiro para aco-
tada despejava o ácido na pia como se costumava modação. Por isso costumo dizer que a Escola é
fazer, conclusão, o ácido corroeu o encanamento. uma guerreira, mesmo estando lá embaixo con-
Seria impossível ficarmos no sétimo andar. seguiu se reerguer. O Almir foi um grande dire-
tor. Ele conseguiu o espaço do térreo para alocar
Desvio: Como você se tornou professora da Es- todas as oficinas de gravura. Começamos a ter
cola? um espaço maior, mas a Escola crescia. Na época
do Pamplona14 a pintura estava asfixiada, então
Angela: Muita gente se recusou a ir para a Ilha ele conseguiu aquele grande galpão, onde deveria
do Fundão, e isso resultou em uma quantidade ser um museu de arquitetura paralela, o espaço
enorme de vagas que precisavam ser supridas. que conhecemos hoje sob o nome de Pamplonão.
Na época, não se podia fazer concurso público A Escola desafogou mais um pouco, mas conti-
porque o governo havia proibido, a solução era nuávamos sem receber verbas e sem equipamen-
fazer seleção de algumas pessoas indicadas atra- tos básicos. A Escola continuava a fazer talentos,
vés da congregação. Recebi muitas indicações de mas nem sei como conseguia isso. Há um clima
professores para me tornar professora da Esco- na Escola que está no nosso DNA, que não vai se

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perder, independente de incêndio15 ou qualquer O acervo do Museu Dom João VI também conta
outra coisa. Mas voltando aos diretores da Es- com as provas de viagens enviadas pelos pensio-
cola... O Almir saiu da direção, outros diretores nistas, artistas que iam para o exterior, faziam
vieram, e não vou dizer que eles foram culpados, trabalhos e enviavam esse material para a Escola.
mas talvez não tivessem grandes motivações para Também há uma coleção da Escola, a qual o co-
exercer essa função. É mais complexo do que pa- lecionador, Jerônimo Ferreira das Neves, deixou
rece, tem vários fatores: o momento político, a determinado que a coleção17 devia estar onde a
locação, a verba, falta de pares para dialogar. E Escola estivesse, para onde a Escola fosse a cole-
às vezes, também, pode haver uma falta de for- ção deveria ir junto. É uma coleção de valor incal-
ça entre os próprios estudantes, são eles que nos culável. Então esse acervo todo pertence à Escola.
fazem acreditar que somos capazes, acreditar na A divisão do acervo da Escola e do MNBA ocorreu
nossa Escola. As coisas foram degringolando, as lá, em 1937, e quando viemos para a Ilha do Fun-
salas ficaram terríveis, as coisas chegaram a um dão, em 1975, trouxemos o acervo da Escola, de
caos tão grande que não sabíamos aonde íamos modo caótico, vocês não podem imaginar. Chorei
parar. muito, mas se bem que eu choro por qualquer
coisa. O nome da Ecyla Castanheira Brandão
Desvio: De quem foi a iniciativa de criar o não pode ser esquecido, ela foi uma das grandes
Museu Dom João VI? professoras de História da Arte que a Escola já
teve. Acomodamos o Museu, mas com o passar
Angela: Quando o Almir foi diretor da Escola, a do tempo, a falta de investimentos, e aquele teto
Ecyla Castanheira Brandão criou o Museu Dom terrível com goteiras, o Museu passou a funcio-
João VI16. O museu foi criado com todo o acervo nar com baldes d’água, a reserva técnica ficava
que nós tínhamos. Ninguém sabe o que realmen- toda coberta com plásticos pretos para não en-
te se perdeu porque o tombamento só foi feito trar água.
depois da nossa mudança. E digo nosso acervo
porque em 1937, quando se criou o MNBA, tam- Desvio: Você também foi diretora da EBA. Como
bém se criou um estatuto, um documento de le- foi sua gestão?
vantamento de acervo onde ficou deliberado o
seguinte: “Tudo o que estiver nas salas de aula Angela: A Escola passou por um declínio, e em
pertence à Escola”. Inclusive a galeria com as 2001 ocorreria uma nova eleição, um grupo de
molduras, porque nós estudávamos por aquelas colegas me procurou, eles vinham de todos os de-
molduras, tudo isso pertence à Escola, àquelas partamentos e diziam: “Ângela, você tem que ser
molduras não são do museu. A galeria das escul- diretora da Escola. Por favor, seja a diretora. As
turas pertence ao acervo do museu. Havia mui- inscrições terminam amanhã!”, e eu respondia
tas obras nas salas e nos ateliês, obras de Eliseu que não, possuía outros projetos, não queria ficar
Visconti, de Rodolfo Amoedo, do período em que me burocratizando, mas eles insistiam dizendo
eles foram alunos e professores, as obras ficavam que eu possuía experiência, por ter sido chefe de
guardadas nos ateliês para mostrar aos alunos, e departamento. O pessoal havia gostado bastante
as obras dos alunos também ficavam guardadas da minha chefia. Eles comentavam que precisava
ali. ser alguém com amor pela Escola, e esse alguém
era eu. Um grupo de alunos também me fez o

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mesmo pedido. Cheguei em casa e disse: “Meu colega, e ele me disse: “Angela, não temos água
Deus do céu. O quê que eu faço?”. Conversei com aqui”. Misericórdia! A primeira coisa que fiz foi
o meu marido e ele disse: “Olha... Você sabe que conseguir uma reforma no encanamento para
será uma dedicação exclusiva, acabou esses dois colocar água na oficina de cerâmica. Como é que
dias em casa, ir para museus. A sua vida mudará eles podiam sair cheios de pó sem ter um lugar
bastante, mas eu te dou meu total apoio”. No dia para lavar a mão? O mesmo serve para a escul-
seguinte aceitei me candidatar, foi tudo resolvido tura. No primeiro ateliê de escultura, as meninas
em cima da hora. faziam das moldagens, colocavam a escultura no
ombro, andavam até o final do corredor onde ha-
O diretor da época havia se candidatado nova- via um tanque, molhavam a escultura e traziam
mente para a reeleição. Fizemos uma mesa redon- de volta. Comecei a mexer na escola. Deus me
da, o percurso, e vieram às eleições. Esse diretor ajudou muito.
dava muitos benefícios aos funcionários, então
eu não podia contar com o apoio deles, porque Desvio: E o que mais você fez pela Escola?
sentiam medo de perder isto. Quando ocorreram
as eleições, eu tive 96% de votos dos alunos, essa Angela: Começamos a mexer na Escola, pre-
foi a maior alegria que eu tive, ver que os alunos cisávamos fazer projetos, e eu era boa nisso e
acreditavam em mim. E 75% de votos dos pro- conhecia pessoas que também eram, o que foi
fessores. Então eu pensei: “Se tenho todos os fundamental porque através dos projetos conse-
alunos do meu lado e um número expressivo de guiríamos as coisas para a Escola. Uma orientan-
professores, os funcionários me conhecerão aos da me deu a dica sobre o edital da Caixa Econômi-
poucos”. Tive um apoio fundamental para a mi- ca, pensamos imediatamente em inscrevermos
nha gestão, da qual sou sempre grata. o nosso Museu, e vou lhes contar o porquê. No
dia que assumi a direção da Escola fui visitar o
Quando fui para a direção da Escola comecei a ver Museu, quando cheguei à minha casa, fui para
melhor os problemas, porque na sala de aula você o terraço, encontrei meu marido na rede, puxei
não consegue ver tudo, por exemplo, o que acon- uma cadeira e chorei copiosamente. Eu conhe-
tece em todos os ateliês. Na minha gestão18, havia cia àquele acervo, e quando cheguei lá perguntei
duas portas, uma porta estava sempre aberta, o onde desligava a luz, e me responderam: “Não.
aluno que quisesse batia, se eu estivesse podendo Isso dá curto circuito. Para conseguir desligar a
atender, levantava e dizia “entra”. Às vezes fica- luz é preciso interromper a corrente. Você precisa
vam cinco, seis, oito alunos me esperando, e eles tirar uma lâmpada”. No museu desligávamos a
me traziam todos os problemas da Escola. Não há luz tirando uma lâmpada, acredita? Todas as sa-
nada melhor do que ouvir os problemas da Esco- las da Escola estavam quebradas, nenhuma por-
la diretamente da boca do aluno, porque são eles ta fechava, a sala 614 era um depósito, ou seja,
que estão lá, vivenciando os espaços, sabem das nós não tínhamos um auditório. Então ao ficar
reais necessidades. Os professores, às vezes, es- sabendo do edital falei com a Sônia Gomes Perei-
tavam tão depauperados que já não tinham mais ra, sugeri pegarmos o projeto que ela havia feito
forças para pedir nada, sabiam que não seriam anos atrás, mas não havia sido aprovado, demos
atendidos, não conseguiriam, mas o aluno não, o uma repaginada e assim que abriu oficialmente
aluno tem outra pegada. Fui conversar com um as inscrições já tínhamos o projeto pronto para

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ser submetido. Ela nos inscreveu e ganhamos o Angela: Chegou à data de uma nova eleição, me
dinheiro para a reforma. recandidatei e fui eleita novamente, todos que-
riam que eu continuasse os projetos. No meu
E aí o que aconteceu? Eu ia para a Pró-reitoria, primeiro mandato, a minha vice foi a Ângela
todos me conheciam porque eu trabalhava dia e Lopes Leite, e no segundo mandato foi o Carlos
noite. O Joel Teodósio, um homem do Partido Co- Terra19, meu colega de História da Arte, já traba-
munista, era pró-reitor do Patrimônio. Eu disse a lhava comigo, era diretor adjunto de graduação20
ele que precisava de dinheiro, ele respondeu que e compartilhou muita coisa comigo sobre gestão.
a universidade estava sem dinheiro algum, mas A Helenise Guimarães, o Carlos Terra, um gru-
eu insisti dizendo que precisávamos reformar os po grande de professores e alunos me ajudaram
ateliês de pintura, gravura e escultura, porque bastante a repaginar a Escola, deixar as coisas
essas são as bases da uma escola de artes, tudo melhores. Foi um período muito feliz para a EBA.
se compõe em cima disso. Ele me deu a ideia de Eu frequentava todas as reuniões, e em cada
pedir verba de partido para executar o projeto reunião fazia um discurso em nome da Escola.
de reformar os ateliês da Escola, mas havia um Pertenci ao conselho universitário, e quando o
porém, o nome do projeto deveria contemplar o Aluísio Teixeira deu a segunda maior verba para
partido. Aceitei, e como íamos fazer o ateliê de a EBA, uma pessoa chegou a questionar o porquê
pintura dei o nome de Portinari, porque ele foi de receber essa verba, perguntando para quê ser-
um homem do partido. Portinari vendeu as obras via a arte. Tive que ouvir isso, me inscrevi para
dele para dar dinheiro ao partido, então nada falar, fiz um discurso de tirar lágrimas dos olhos.
mais justo que o partido dar sua colaboração Comecei perguntando se ele conhecia o Museu
para um ateliê Portinari. E assim fomos conse- do Louvre e o MoMA, se já havia visitado a Roma
guindo dinheiro para reformar os ateliês. Fomos Antiga, o Coliseu, e ele me respondeu que sim,
comendo pela borda. então lhe questionei: “Por que foi a esses lugares
se a arte não serve para nada? Por que visitou
Depois houve outro grande projeto na universi- lugares que só tem arte se ela não tem valor?”,
dade onde conseguimos uma grande fatia, investi e logo em seguida comecei meu discurso sobre
esse dinheiro nas salas do 6º andar porque todas arte desde a pré-história. Entrou a professora de
estavam depauperadas, e depois fizemos mais história da arte. A arte nasceu com a ciência, no
outro projeto junto a universidade, essa verba foi momento em que o homem conseguiu colocar
utilizada para a construção do auditório da sala um dólmem de pé, ele conseguiu criar um siste-
614. Recebi a Escola com poucos computadores, ma construtivo e isso é ciência, e consegui fazer
e computadores matuzalênicos, mas nós conse- uma obra de transformação de matéria em for-
guimos deixar o laboratório com vários compu- ma pela sua sensibilidade e conhecimento, isso
tadores. A ampliação do ateliê e o laboratório de é arte. A arte e a ciência surgem juntas com o
computação gráfica foram feitos na minha ges- homem, por que então agora só se contempla a
tão. Faz um projeto aqui, monta ali, porque di- ciência e não se dá o valor da arte também? É a
nheiro não há. arte que identifica o homem, Ernst Cassirer dis-
se que a nossa humanidade é marcada pela arte.
Desvio: O que motivou a sua recandidatura? E Todas as histórias dos povos são vistas e conta-
como foi o seu segundo mandato? das pela arte. Continuei falando, nunca mais tive

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problemas nessa gestão. Na década de 1980, quando o diretor era o Le-


onardo Visconti Cavaller22, eu tive uma aluna
A EBA foi ganhando um novo status, e acredi- que conseguiu localizar esse documento dentro
to que essa foi a minha grande contribuição. E de um processo na engenharia, porque tinha ido
mais, os cursos de História da Arte e Conserva- para um relator. O tio dela foi chefe de departa-
ção e Restauração foram criados na minha ges- mento, fez uma arrumação no pó do passado, e
tão, impulsionei a criação desses cursos porque encontrou o testamento. E foi assim que o testa-
uma escola de arte não poderia estar completa mento chegou às minhas mãos. O Leonardo me
sem esses dois cursos. disse que não havia mais nada a se fazer, já ha-
víamos perdido as apólices, a casa foi queimada,
Desvio: E após o termino do seu mandato, como a família tomou posse dos quadros, no terreno
ficou a sua relação com a Escola? funcionava um estacionamento explorado por
um espanhol, então estava tudo perdido, mas
Angela: Eu saí em 2010, no início de 2011 en- analisaram para saber o que seria possível fazer.
traria em compulsória, não poderia ficar mais, Em 2002, quando me tornei diretora da Escola
aí deixei a Escola em boas mãos. O que eu acho chamei a comissão para abrir o cofre, e lá estava
melhor não foi o que consegui fazer, mas sinto o processo com todo passo a passo que eu ha-
que de algum modo consegui dar uma nova dig- via dito para o advogado. Resultado: telefonei na
nidade a Escola no meio da universidade. Não me época até para o Cesar Maia, passei um e-mail
afastei, nunca me afastei da Escola porque mes- e obtive resposta. Nós recuperamos o terreno, o
mo sem poder dar aula continuei lá, tenho meus terreno é da Escola. Cheguei a fazer um projeto,
orientandos do mestrado e doutorado. Continuo mas não tive tempo de edificar o que queria.
escrevendo, fazendo curadorias, e isso tudo con-
tribui para o nome da Escola porque vai para o Na época da direção fiz a reintegração de posse,
meu currículo Lattes. consegui retirar os espanhóis de lá e recuperar
o terreno. Lá é muito estreito, mas tínhamos o
Desvio: Por que após mais de 40 anos a EBA projeto de fazermos ali um centro cultural pe-
continua sem uma sede própria? queno, com galeria de arte no térreo, um restau-
rante/bar – porque artista gosta de conversar
Angela: A EBA é uma Escola que em todos os comendo alguma coisa. E na parte de cima um
momentos de sua trajetória foi movida por algu- teatro contemporâneo, sem poltronas fixas, po-
ma coisa que está além de sua estrutura, sempre dendo ser utilizada tanto para palestras quanto
teve artistas impulsionando a Escola por aquilo para apresentações teatrais. O projeto está pron-
que eles acreditavam. Então se olharmos para o to. A doação do terreno foi feita pelo Belmiro de
passado veremos Belmiro de Almeida, quem dei- Almeida, ele e outros tantos artistas tiveram uma
xou tudo para a Escola porque não teve herdei- ligação com a Escola, foram muito importantes
ros. Ele deixou a sua casa na Rua Mem de Sá21, para a nossa história, criaram um laço afetivo,
suas apólices do Banco do Brasil, os quadros, dei- essa construção maravilhosa. Na época em que
xou tudo para a Escola ao morrer, e mais, nós fui diretora consegui uns terrenos ótimos, con-
tínhamos perdido tudo isso por não termos o tes- segui uma verba por causa do REUNI para cons-
tamento em mãos. truir todos os ateliês e em cima as salas de aula.

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Desvio: Por que isso não aconteceu? 200 anos da Escola de Belas Artes23 porque não
havia um tostão furado. Inicialmente convidaram
Angela: Fizeram o projeto errado. Nós estáva- a professora Sônia Gomes Pereira, baita profis-
mos sempre lá acompanhando, mas quando eles sional, e como não havia dinheiro eles preten-
foram reformar o projeto o dinheiro havia sido diam conseguir patrocínio da Petrobrás, estava
desviado para outros lugares dentro da própria até afirmado, mas quando houve o escândalo da
universidade. Há rumores sobre esse desvio. Foi Petrobras a própria empresa retirou os patrocí-
nessa época em que deixei a direção, e o Carlos nios. A Sônia ficou aflita com a situação e disse ao
assumiu o cargo. O último ateliê teria que ter 5 Carlos que não poderia fazer a exposição sem di-
metros de altura com gruas, e isso estava na cláu- nheiro. Ele queria ao menos uma exposição por-
sula, tal exigência era para que pudéssemos fazer que se tratava dos 200 anos da Escola. Eles iam
esculturas de grande porte. Não é possível uma fazer a exposição no BNDS, o Carlos me chamou
escola de arte entrar na contemporaneidade com e perguntou se eu conseguiria fazer alguma coi-
um pé direito pequeno, não dá para fazer uma sa, fiquei de ver o que era possível. Projetos, né?
instalação, nada parecido com isso, precisávamos Não se faz nada sem projetos. Nós não tínhamos
de espaço onde fosse possível entrar um cami- mais possibilidades alguma porque estava tudo
nhão. Alguém se levantará e fará esse projeto um fechado, isso porque o projeto se faz sempre anos
dia, se não for ali será em outro lugar, não tenho antes, quando abrem as inscrições você envia e
a menor dúvida. aguarda.

A Escola abrigou pessoas de todos os níveis so- Falei com a dupla, Martha Werneck e Licius da
ciais e intelectuais, e a grande admiração vinha Silva, e perguntei se havia algum edital aberto,
pela arte. Você admirava o outro pela qualidade eles me responderam que não, somente um edi-
daquilo que ele produzia. E isso não vai acabar, tal da prefeitura, mas a data limite era dia 27, ou
porque isso está com o homem. O Ernst Cassirer seja, tínhamos apenas uma semana para montar
disse que a diferença do homem para todos os o projeto. Peguei todos os textos, eles formata-
outros animais é que o homem tem três siste- ram na ABNT, e ganhamos. Foi esse dinheiro que
mas, por um sistema ele recebe, por outro sis- tivemos para a exposição, e não foi muito. Então
tema ele se adapta, como todo o ser vivo tem o veio a questão do espaço, e agora? Não se tinha
sistema receptor e o sistema de adaptação, mas espaço em lugar nenhum, porque é no ano ante-
o terceiro sistema do homem é um semi-inter- rior que se acerta essas coisas. Nós conseguimos
mediário, ele possui tempo para refletir entre o o Paço Imperial e o MNBA, queria fazer nos dois,
que ele recebe e se adapta, e é exatamente nesse mas só conseguimos dinheiro da prefeitura, que
tempo que surge a arte. Por isso que a arte é a era minguado, eu me perguntava como fazer
marca do homem. esse dinheiro esticar.

Desvio: Recentemente você foi a curadora res- Trabalhamos com as obras do Museu Dom João
ponsável pela exposição de 200 anos da Escola. VI, para dar uma maior visibilidade ao nosso
Conte-nos mais sobre esse trabalho. acervo, e as próprias obras do MNBA, porque aí
não precisávamos pagar o seguro por já serem
Angela: Foi muito difícil fazer a exposição dos asseguradas. Queria fazer uma exposição que

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chegasse até a contemporaneidade, mostrar que experiências, essas são fundamentais para levar
Jarbas Lopes, Mauricio Dias e toda essa gente o estudante à descoberta de seus caminhos. Se o
que as pessoas dizem ser “Parque Lage” também aluno passa por todo um processo, vive a histo-
saíram da Escola de Belas Artes. Eles podem até ricidade dentro de si, depois consegui se libertar
ter passado pelo Parque Lage, mas saíram for- e descobrir quem é.
mados pela EBA. O Museu de Belas Artes havia
nos dados três salas, depois passaram para duas, Não vejo impedimento de uma escola se chamar
porque as três salas que eles nos tinham cedido Escola de Belas Artes. Lá fora não tem isso. Em
tinha um quadro enorme do Portinari e nós não Paris, por exemplo, tem a École de Beaux-Arts,
poderíamos tirar, então me recusei, porque não continua sendo a École de Beaux-Arts, e ela veio
á para fazer curadoria assim, abrir uma parede antes de nós. Às vezes ficou um pouco temerosa
inteira para um único artista e deixar os outros em mudar o nome, sabe por quê? O nome car-
minguados, é preciso dar uniformidade. Durante rega um DNA, se você começa a inventar novos
três meses fiz a seleção dos quadros, queria criar nomes acaba perdendo um pouco da identidade
uma unidade, e era isso que eu gostaria de mos- que foi construída. Não é pelo nome que ocorrerá
trar para vocês. às mudanças. As artes não são mais belas? Arte
é arte, a beleza é outra coisa, sou eu quem faz o
Desvio: O que você pensa sobre a Escola carregar belo, o meu posicionamento estético. Quando me
o nome “Escola de Belas Artes”? É um problema coloco diante de um objeto, sou sensível a esse
ou não manter esse nome, ainda ter cursos espe- objeto e ele aparece diante de mim, e se possuir
cíficos no lugar de uma graduação geral em Artes interesse estarei então diante de uma estética,
Visuais? Gostaríamos de ouvir sua opinião. de um belo, o objeto conseguiu despertar a mi-
nha atenção. Vejo um objeto, não tenho dinhei-
Angela: Não acho que podemos fechar esse con- ro para compra-lo, e nem local guarda-lo, mas a
ceito de uma forma pontual, isso é isso e ponto, sua presença me faz parar e contempla-lo, e isso
porque a pintura é pintura não pelo nome pintu- tudo será arte, porque a arte não passa pelo o
ra, ainda na contemporaneidade vemos pintura, que é belo ou não. O belo é a sensação que tenho,
as pessoas pintam. Então por que acabar com o um prazer desinteressado, me sensibiliza, isso é
curso de Pintura? Algumas pessoas dizem que a o belo. E isso é independente de você ser École
pintura de cavalete precisa ser eliminada, e eu de Beaux-Arts, Escola de Belas Artes, Institute of
discordo, porque você pode passar por essa mo- Modern Art ... Se deixar colocam até um nome
dalidade e depois sair dali e romper, indo para em inglês na Escola, mas isso não significaria
o muro, fazer pintura corporal, performance, o nada. O pior é perder a identidade por causa dis-
que você quiser fazer. Acredito que quanto maior so, e quando você perde sua identidade começa
for o número de experiências, de técnicas, de a se esquecer de quem você é. E é por isso que
domínios que você puder ter, maior será o nú- sou contra, porque nossa identidade não pode
mero de ferramentas que você terá para seguir ser perdida.
a sua imaginação, a sua pesquisa artística. Jorge
Duarte24 é para mim um dos grandes exemplos,
um baita pintor. Artistas precisam experimentar.
Uma Escola não pode excluir as possibilidades de

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NOTAS 13 Diretor da EBA de 1976 a 1980.


14 Diretor da EBA de 1986 a 1990.
1 Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816- 15 O incêncio ocorreu no dia 03 de outubro de
1822), Academia Imperial de Belas Artes (1822 - 2016, no prédio da Reitoria da UFRJ.
1889); Escola Nacional de Belas Artes (1890 - 1965); 16 O Museu foi criado em 1979, e ocupava o se-
Escola de Belas Artes (1966 - atualmente). gundo andar do prédio da Reitoria da UFRJ.
2 Educação.Belas-artes. Licenciatura em Desenho 17 Em 1947, a coleção foi doada à Escola Nacio-
e Plástica. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 16 nal de Belas Artes por D. Eugênia Barbosa de
jan 1971. Anexo, p.10. Carvalho Neves, viúva do colecionador.
3 Professor aposentado de Escultura da 18 Diretora da EBA de 2002 a 2010.
EBA-UFRJ. 19 Carlos Terra foi vice-diretor da EBA de 2006 a
4 Estevão da Silva iniciou seus estudos na AIBA 2010. Atualmente, Terra é diretor da EBA, iniciou
em 1864. o seu primeiro mandato em 2010, e foi reeleito em
5 Diretor da ENBA de 1931 a 1937. 2014.
6 A construção do edifício ocorreu entre 1936 e 20 Diretor Adjunto de Graaduação de 2002 a
1945, porém só foi entregue em 1947. 2006.
7 Diretor daa ENBA de 1930 a 1931. 21 Localizada no quarteirão próximo ao Circo
8 Menção Honrosa no LXXVIII Salão Nacional de Voador, RJ.
Belas Artes (1973). 22 Diretor da EBA de 1990 a 1994.
9 Diretora do MNBA de 1970 a 1976. 23 A exposição “Escola de Belas Artes: 1816-2016.
10 Diretor da EBA de 1971 a 1975. Duzentos anos construindo a arte brasileira”, com
11 Norbertino Bahiense Filho. curadoria de Angela Ancora Luz, foi inaugurada
12 LUZ, Angela Ancora. A mudança da escola no dia 11 de novembro de 2016, no Museu Nacio-
de Belas Artes para a Ilha do Fundão: rejeição, nal de Belas Artes, e teve seu encerramento no dia
adaptação, transformação e ressurreição. In: 12 de fevereiro de 2017.
CAVALCANTI, Ana; MALTA, Marize; PEREIRA, 24 Artista da Geração 80.
Sonia Gomes. (Org.). Histórias da Escola de Belas
Artes: revisão crítica de sua trajetória. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Editora NAU / Escola de Belas Artes -
UFRJ, 2016, v. 1, p. 116-120.

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CADERNO ESPECIAL | INCÊNDIOS

Análise e acompanhamento conservativo do


Núcleo Interdisciplinar de Estudo da Imagem e do
Objeto (NIO)
Gabriela Lúcio de Sousa
Patricia Riggo Cordeiro
Profª Dra. Maria Cristina Volpi

Após o incêndio, ocorrido no mês de outubro de 2016 no prédio da reitoria da UFRJ, o acesso ao
edifício ficou suspenso por semanas, fazendo com que os acervos localizados no sétimo andar
ficassem com sua manutenção prejudicada. Com base nos prejuízos causados por esse sinistro, esse
artigo tem como objetivo apresentar os resultados do início do projeto de análise e acompanhamento
conservativo do núcleo interdisciplinar de estudo da imagem e do objeto, que foi uma inciativa
criada e coordenada pela professora Dra. Maria Cristina Volpi com intuito de preservar o acervo em
têxtil, que é utilizado como base de pesquisa por diversos discentes.

INTRODUÇÃO causa do acidente. Entretanto o laudo aponta que


há possibilidade do incêndio ter sido causado por
O prédio da reitoria da UFRJ, localizado na Ave- um fenômeno termoelétrico, similar a um curto-
nida Pedro Calmon, 500 – Cidade Universitária, circuito. Isso fez com que os serviços e acessos ao
Ilha do Fundão, que abriga a Escola de Belas Ar- prédio ficassem suspensos até o final do mês de
tes (EBA) e a Faculdade de Arquitetura (FAU), novembro, inclusive os serviços dos: Museu Dom
passou por um sinistro no dia três de outubro de João VI, da Biblioteca de Obras Raras (EBAOR) e
2016. Um incêndio iniciado na sala 827, destina- do Núcleo Interdisciplinar de Estudo da Imagem
da a Pró-Reitoria de Gestão e Governança (PR- e do Objeto (NIO).
6), por volta das 21h30 se alastrou rapidamente
tomando grande parte do oitavo andar. O Corpo A IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO DE
de Bombeiros e a Defesa Civil foram acionados, CONSERVAÇÃO
o combate a esse sinistro se prolongou até às 3h
e acabou se estendendo por todo o dia quatro de Assim foi pensado um projeto de conservação
outubro, após essa ação, iniciou-se a perícia des-preventiva para os ambientes que possuem acer-
se grande desastre. vos e que se encontravam fechados no sétimo an-
dar, devido ao incêndio. Segundo arquiteta que
O laudo pericial liberado pelos bombeiros do Rio foi importante na implementação do controle
de Janeiro quase um mês depois do incêndio, no climático no Museu-Casa da Fundação Casa de
dia nove de novembro, indica que o sinistro teve Rui Barbosa, Dra. Cláudia Carvalho, o termo con-
início entre as salas 827 e 829 e como a destrui- servação preventiva refere-se à identificação das
ção provocada foi intensa não se pôde afirmar a causas ou agentes de deterioração que compro-

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metem, de certa forma, a preservação dos obje- VISITAS TÉCNICAS E ANÁLISES DO NIO
tos e que estes perdurem, para isso são pensadas
e geradas uma política de gerenciamento de risco Após quase dois meses fechada, foi autorizada
além de planos de salvaguarda do acervo, que en- uma visitação para a realização de uma visita
volvem a manutenção preventiva para evitar um técnica e análise conservativa. Durante a visita
dano mais grave1. foi observado que a sala estava suja, havia muita
sujidade no local (poeira, carcaça de insetos, ex-
Cada Museu é responsável pela preservação do crementos e etc. e bastante excremento de isóp-
seu acervo, incluindo a guarda, a segurança, a teros4 próximo a uma lousa móvel de madeira).
forma como será disponibilizado ao público para Em uma das gavetas das estantes de metal, onde
pesquisas e apreciações em exposições ou não. abriga uma coleção de sapatos de couro, foi en-
Com isso ações de conservação são julgadas de contrado por volta de cinco insetos ainda vivos,
extrema necessidade, ainda acrescentando o si- além disso, dentro de um dos sapatos havia uma
nistro ocorrido no prédio. carcaça de um inseto morto grudado no couro,
que foi retirado para não danificar o sapato tor-
Com isso a professora Dra. Maria Cristina Volpi, nando-o passível a ataques biológicos. Um dos
que leciona as disciplinas Figurino 1, Figurino 3 e pontos positivos observados era que a janela da
Projeto de Graduação em Figurino na EBA, jun- sala se encontrava aberta, auxiliando na ventila-
tamente com a aluna Gabriela Lúcio de Sousa, ção do ambiente.
fizeram uma visita técnica ao NIO, no dia vinte e
nove de novembro de 2016, para avaliar as con- Nesse primeiro contato a aluna Gabriela Lúcio
dições em que o lugar se encontrava pós-incên- e a professora Maria Cristina Volpi analisaram
dio e desenvolverem um projeto de conservação a situação e constataram que sem uma limpeza
e manutenção, com a tentativa de estabilizar a superficial do ambiente, que se encontrava em
situação no local a fim de preservar o acervo. grave estado calamitoso de poeira, não poderiam
pensar e viabilizar a organização do local para
A sala 709, localizada no sétimo andar do prédio um posterior trabalho de higienização mais pro-
da Reitoria pertencente ao NIO, que é um cen- fundo e averiguação das peças do acervo. Tendo
tro de referência para Têxtil/Vestuário, mate- isso em perspectiva, tomaram partido de fazer a
rioteca formada por objetos (peças de vestuário, limpeza superficial para prosseguir com o escopo
imagens e acessórios), e banco de imagens em da visita.
movimento2 se encontrava fechada por ordens
técnicas do corpo de bombeiro do RJ desde o in- O acervo está catalogado e siglado, um trabalho
cêndio. É um ambiente grande que nunca contou que estava sendo desenvolvido do incêndio por
com um sistema de climatização. O mobiliário uma equipe que incluía uma aluna de gradua-
existente, armários e mapotecas de madeira, foi ção e uma aluna do 1º ano do CAP/UFRJ, bolsis-
adaptado para a guarda do acervo. Recentemen- ta PIBIC-EM da professora Volpi, as gavetas são
te, foram adquiridos mais dois armários de metal forradas com polietileno alveolar branco (Polion-
adequados à conservação, com verba da FAPERJ3. da®) que contribui para que o acervo não entre
Ela além de ter sido ambientado em uma reserva em contato direto com a madeira. Para um acer-
técnica é também usada como sala de aula. vo em têxtil o indicado é manter os objetos em

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uma temperatura adequada, entre 18º e 22º C, Em relação aos acervos, segundo do comitê de
o acondicionamento dessas peças deve ser dado Indumentária – ICOM7, o armazenamento de
verticalmente, sem dobrar e provocar vincos, objetos em têxtil deve ser preferencialmente na
como foi encontrado no espaço do NIO5. forma horizontal em superfícies acolchoadas, sua
disposição na vertical também é permitida, pois
A situação causada pelo incêndio deixou a incer- é mais barato e ocupa menos espaço, porém po-
teza da abertura da sala para uma nova visitação dem vir a desenvolver vincos e distorções e aca-
técnica da equipe. Tendo isso em vista, foi deli- bar rasgando.
berada uma lista de tarefas para a organização,
objetivando o cuidado, a conservação e a estabili- É importante a utilização de cabides acolchoados,
dade do ambiente para uma visita futura. pois minimizam o atrito e a tensão que podem
ocorrer nas costuras das roupas. O ideal é deixar
PROCEDIMENTOS TÉCNICOS DE espaço, se puder, entre as peças para que os mes-
CONSERVAÇÃO mos possam “respirar”8.

Os procedimentos que podem minimizar e es- Outro ponto ideal para a conservação de um acer-
tabilizar os danos aos objetos do acervo são de vo em têxtil é evitar as grandes variações climáti-
suma importância para as questões conservati- cas no local onde estão armazenados. Segundo o
vas. Para iniciar qualquer tipo de intervenção é ICOM, tanto para os têxteis quanto para o couro,
necessário inicialmente observar o acervo, se os a temperatura a é de 18o C e a umidade entre 50
objetos estão corretamente armazenados e pre- e 55% são tidas como as recomendadas9. O local
servados. O ideal é manter uma organização do de guarda das peças do acervo deve estar sem-
espaço que facilite a circulação de ar, para que o pre limpo e organizado. É necessária uma averi-
ambiente não vire uma estufa e desenvolva um guação de tempos em tempos para que não haja
microclima apropriado para insetos e prolifera- contaminações ou infestações de nenhum tipo de
ção de fungos. praga, sempre buscando o auxílio do conserva-
dor-restaurador, para que se possa preservar ao
Para a higienização não se deve utilizar vassou- máximo a integridade das obras.
ras no local da exposição ou reserva técnica, o
ideal é a utilização de aspirador de pó para não PROCESSO DO TRABALHO E RESULTADOS
levantar poeira. Caso a situação exija, utilizar um OBTIDOS
pano úmido torcido para que a água, ou qual-
quer outro líquido, não respingue e cause algum Para uma segunda visita técnica a esse acervo
dano ao acervo6. Quando um acervo é mantido foi feita uma chamada aos discentes do curso de
em condições inadequadas de conservação (isso Conservação e Restauração para, quem pudes-
inclui higienização, armazenamento e local de se interessar, acompanhar a segunda etapa que
guarda) os riscos de deterioração e de exposição consistia em uma higienização mais profunda.
a riscos são grandes. A conservação deve ser uma Os alunos que participaram foram: Bárbara Lu-
das prioridades. nardi, Gabriela Lúcio, Lucas Valdez, Margarete
Machado e Mariana Giacomelli. O aluno Henri-
que Guimarães, do curso de Artes Cênicas/ In-

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dumentária, foi partícipe do projeto a partir da mente, passou para uma vez na semana. Mas o
terceira visita. esquema laboral teve que ser suspendido devido
a impasses burocráticos da instituição UFRJ
No dia seis de dezembro os alunos voluntários
supracitados juntamente com a professora Volpi O ideal, dentro do âmbito da conservação pre-
participaram de um processo de limpeza do NIO. ventiva, é que seja realizada inspeção periódica
A sala foi varrida, pois com o incêndio a energia para acompanhamento da situação do acervo.
elétrica dos andares afetados havia sido cortada Destacamos que comer, beber, bem como arma-
impossibilitando o uso de um aspirador de pó, zenar alimento e/ou líquido nessas áreas de abri-
e para uma melhor higienização foi passado no go do acervo são terminantemente proibidos,
chão, nas estantes e nos armários álcool na con- pois atraem insetos, animais roedores e micro
centração 60%. -organismos indesejados.

Um cronograma foi montado pelos discentes a Esse projeto está congelado, a previsão de retor-
fim de delegar e organizar melhor o horário de no dos voluntários as atividades de recuperação
trabalho de recuperação do NIO. O quadro de ho- do NIO está vinculada ao retorno das aulas do
rário operacional ficou assim: a jornada de tra- período letivo de 2017.1.
balho ocorreria duas vezes na semana, posterior-

Fotografia 1: Armários de madeira que abriga parte do acervo. Fonte: Gabriela Lúcio de Sousa

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Fotografia 2 e 3: Discentes que participaram do projeto limpando e organizando a sala.


Fonte: Gabriela Lúcio de Sousa

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Fotografia 4: Armários de metal. Fotografia: Gabriela Lúcio de Sousa

Gabriela Lúcio de Sousa é Graduanda em 4 Isóptera é uma ordem de insetos eussociais,


Conservação e Restauração/ UFRJ, bolsista de conhecidos por isópteros, que inclui as espécies
iniciação científica da Fundação Casa de Rui popularmente designadas por cupim, térmite ou
Barbosa. E-mail: gabriela.luciio@gmail.com térmita, salalé e muchém.
Patricia Riggo Cordeiro é graduanda em 5 TEIXEIRA,; GHIZONI, 2012. pág 55.
Conservação e Restauração/ UFRJ. E-mail: 6 TEIXEIRA,; GHIZONI, 2012. pág 17 – 20.
patricia.riggoc@gmail.com 7 International Council of Museums - ICOM.
Profª Dra. Maria Cristina Volpi é Docente da 8 DIETZ, 2014. pág. 119.
Escola de Belas Artes/ UFRJ. E-mail: 9 VIANA,; NEIRA, 2010. pág. 230.
mcvolpi@ufrj.br

REFERÊNCIAS
notas
Livros
1 CARVALHO, 2014/2015, pág 143. ALARCÃO, Catarina. Prevenir para preservar o
2 PPGAV – NIO/ NÚCLEO INTERDISCIPLINAR patrimônio museológico. Portugal, 2007.
DE ESTUDO DA IMAGEM E DO OBJETO.
3 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do GOUVEIA, Antônio Maria Claret. Análise de
riscos de incêndio em sítios históricos. Brasília,
Rio de Janeiro – FAPERJ/ (APQ4).
DF: IPHAN/Monumenta, 2006.

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Revistas ou periódicos CUNHA, Claudia dos Reis e. A atualidade


do pensamento de Cesare Brandi. Resenhas
CARVALHO, Claudia. Conservação preventiva de Online, São Paulo, ano 03, n. 032.03,
edifícios e sítios históricos: pesquisa e prática. Vitruvius, ago. 2004. Disponível em: <http://
Revista CPC, São Paulo, n. 18, p. 141-153, dez. www.vitruvius.com.br/revistas/read/
2014 a abril 2015. Disponível em: < http://www. resenhasonline/03.032/3181>. Acesso em: 21 de
revistas.usp.br/cpc/article/view/88655/92657>. fev. 2016.
Acesso em: 21 de fev. 2016.
DIETZ, Thomas Walter. Conservação Têxtil:
VIANA, Fausto; NEIRA, L. García. Princípios um estudo de caso da modateca do centro
gerais de conservação têxtil. Revista CPC, São universitário Senac. In: IV Seminário Moda
Paulo, no. 10, p. 206-233, maio/out. 2010. Documenta. I Congresso Internacional de
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ Memória, Design e Moda. 2014, São Paulo:
cpc/article/view/15667/17241>. Acesso em: 21 Centro Universitário Senac, 2014. p. 116-122.
de fev. 2016. Disponível em: <https://www.academia.
edu/20126458/CONSERVAÇÃO_TÊXTIL_UM_
TEIXEIRA, L. Canola; GHIZONI, V. Rohling. ESTUDO_DE_CASO_DA_MODATECA_DO_
Conservação Preventiva de Acervos. CENTRO_UNIVERSITÁRIO_SENAC>. Acesso em
Florianópolis: FCC Edições, 2012. Disponível em: 21 de fev. de 2016.
<http://www.fcc.sc.gov.br/patrimoniocultural/
arquivosSGC/DOWN_151904Conservacao_
Preventiva_1.pdf>. Acesso em: 21 de fev. 2016.

Sites

CARVALHO, Claudia. O projeto de conservação


preventiva do Museu Casa de Rui Barbosa.
Fundação Casa de Rui Barbosa. Sd. Disponível
em: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/
dados/DOC/artigos/aj/FCRB_ClaudiaCarvalho_
Projeto_de_conservacao_preventiva_do_museu_
Casa_de_Rui_Barbosa.pdf>. Acesso em: 21 de
fev. 2016.

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CADERNO ESPECIAL | INCÊNDIOS

‘ESPAÇO DE EXPERIÊNCIA’, ‘HORIZONTE DE EXPECTATIVA’


E O ESTADO DA ARTE VISUAL NO ENSINO MÉDIO DO RJ
Maíza C. França

Em 1979, o historiador Reinhart koselleck publi- de artes plásticas, na entrada do prédio: ‘Com-
ca o que ele chama de categorias históricas: ‘es- portem-se, não tenham pressa e olhem!’, logo
paço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’, em seguida, a mediadora da exposição se aproxi-
nas quais ele desenvolve suas principais conside- mou e pôs-se a falar; lembro-me das anedotas da
rações sobre as três evidências da temporalidade vida de Goya, principal artista da mostra, que ela
- passado, presente e futuro. Mas afinal, o que estava a nos apresentar; lembro-me da sua voz
são ‘espaço de experiência’ e ‘horizonte de ex- plácida, do tom melódico da sua fala, das inter-
pectativa’? O ‘Espaço de experiência’ diz sobre o mitências entre uma ideia e outra... Nós, alunos,
passado que se faz no presente, de vários modos: éramos só silêncio. Entramos no salão de exposi-
através das constâncias ou das vicissitudes, dos ção e lembro-me de achar, ingenuamente, o es-
vestígios, das memórias e recordações, das fon- paço faraônico, até hoje acho. Logo percebi que
tes históricas etc; esse espaço é onde os próprios elas, a mediadora e a minha professora, estavam
acontecimentos orbitam na vida prática. Quanto a nos preparar para o que vinha a seguir.
às coisas que apontam para o futuro, as expecta-
tivas, referem-se a uma gama de antecipações e Sempre me percebi com uma tendência para as
impressões que está ligada ao vindouro. Os nos- humanidades, as linguagens, e meus professores
sos desejos, curiosidades, esperanças, medos, an- de artes plásticas dos ensinos fundamental e mé-
seios, (in)certezas, (in)quietudes, (des)confian- dio foram fundamentais para aguçar o meu gosto
ças etc... Todas as nossas expectativas, tudo que e interesse. Nesse dia do passeio, a experimen-
indica o porvir, são o ‘horizonte de expectativa’.tação usufruída ficou no meu ‘espaço de experi-
ência’ e reconstruindo assim meu ‘horizonte de
Das reminiscências que fazem parte do meu ‘es- expectativa’, representando uma pequena parte
paço de experiência’ e que marcam presença no íntima do que sou hoje.
meu devir, tenho com carinho uma recordação
do ensino médio, quando minha turma e eu fo- Quero mostrar com esse trecho de abertura deste
mos a um passeio escolar no Museu Nacional de momento de escrita, um pequeno acontecimento
Belas Artes - RJ, ver à exposição: Espanha do sé- da minha vida - usando categorias da teoria his-
culo XVIII: O sonho da razão (2002). Era a pri- tórica cunhadas por Koselleck -, em que a escola,
meira vez que eu entrava naquele museu; lem- o ensino básico e os professores de artes, bem
bro-me de ter ficado parada por alguns minutos como os outros professores e outras disciplinas,
do lado oposto da calçada do MNBA, na lateral foram decisivos no meu espaço de experiência e
do Theatro Municipal, olhando para a fachada do no meu horizonte de expectativa.
Museu. Na minha memória de adolescente, não
me lembrava de ter visto um prédio tão bonito. Nesse sentido, desejo pontuar o lugar que a escola
Lembro-me das palavras da minha professora de ensino básico ocupa diante das gerações, com

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o papel de proporcionar aos jovens e adultos da documentadas nos Parâmetros Curriculares Na-
educação básica um processo de ensino-apren- cionais de Arte/PCN – Arte, onde o ensino das
dizagem valorativo, discutindo as condições po- artes visuais tem que abarcar algumas técnicas
lítica, social, econômica e cultural; tornando-se referentes à plasticidade de materiais: gravura,
uma via de mão dupla na contribuição de narra- pintura, escultura, desenho etc; também abran-
tivas e pluralidades de experiência e expectativa ger e ampliar a arte digital, as artes audiovisuais,
da juventude contemporânea. a performance, a instalação e muitas outras pro-
duções artísticas contemporâneas ligadas à visu-
Como parte desse processo de ensino-aprendi- alidade; além disso, ter fundamentos teóricos em
zagem que a educação de nível médio tem que história e crítica da arte; compreender preceitos
ser capaz de ofertar ao juvenil, está o componen- culturalmente construídos; saber, analisar, refle-
te curricular de Arte Visual. O ensino das artes tir sobre áreas do conhecimento filosófico, socio-
visuais no Estado do Rio de Janeiro tem tido, lógico, antropológico, semiótico, científico entre
muitas vezes, os seus objetivos desvirtuados, outros. Posto isso, os cursos de licenciatura em
comprometendo o modo como os alunos do en- artes visuais têm que fornecer ao futuro profes-
sino médio se relacionam com as manifestações sor de arte bons postulados teóricos e práticos
artísticas do seu cotidiano e provavelmente, por para garantir uma formação inicial de qualidade,
vezes, suprimindo uma determinada forma de objetivando primeiramente a formação de pro-
consciência histórica onde experiências e expec- fessores para atuarem nos cursos fundamental e
tativas estão lado a lado na construção e recons- médio.
trução do sujeito.
O ensino das artes no ensino básico tem que ser
Como professora de Artes Visuais da rede estadu- tratado com seriedade. As artes têm seu peso nas
al do RJ, atuando nos municípios de Nova Iguaçu construções das identidades, dos sujeitos, dos ci-
e Queimados, observei que boa parte dos profes- dadãos. Tendo isso em perspectiva, arrisco-me a
sores de arte não tem formação na área de sua dizer que a práxis e a fundamentação teórica na
competência. Depois dessa constatação, percebi docência em artes visuais, assim como em ou-
que isso não é algo endêmico desses municípios tras disciplinas curriculares, podem surtir efeito
e sim algo muito comum no magistério nacional. de significação ou ressignificação no presente do
As disciplinas de artes, sociologia e filosofia são aluno, reconstruindo um passado através de seu
as que mais têm professores com formação alheia ‘espaço de experiência’ e criando oportunidades
ao ensino que ministram. Esses professores são para a idealização de um futuro, dando início a
habilitados a dar aulas em disciplinas, senão de novas formas de pensar, sentir, agir por meio de
sua formação, por ‘áreas afins’, respaldados pela seu ‘horizonte de expectativa’. As experiências no
Lei de Diretrizes e Bases/ LDB nº 9.394/96. No tempo acabam caindo sobre o agir do presente e
caso do ensino de arte visual, professores sem na projeção de futuro.
base artística e estética trabalham sem progra-
mação de ações.

O professor de arte visual da educação básica


tem que ser capaz de lidar com prerrogativas

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Maíza C. França, nascida no Rio de Janeiro, REFERÊNCIAS


fez licenciatura em Artes Plásticas na Escola de
Belas Artes/ UFRJ. Realizou vários cursos livres e BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
cursos de extensão nas áreas de Filosofia, Estética, de 1996, estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Disponível em: <http://
Educação, Serigrafia, História, Teoria e Crítica da www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.
Arte no Parque Lage e Centro Cultural da Caixa, e htm>. Acesso em: 15 abr. 2017.
também na UFRJ, UNIRIO e UFF. É pós-graduanda
em Educação, na linha de pesquisa Impactos BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais
Arte, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.
da Violência na Escola/FIOCRUZ. Atualmente é
gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso
professora de Artes Visuais das redes municipal e em: 15 abril 2017.
estadual do Rio de Janeiro, atuando nas séries dos
cursos fundamental e médio. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência”
e “horizonte de expectativa”: duas categorias
históricas. In: Futuro Passado - Contribuição
maiza_@oi.com.br
à semântica dos tempos históricos. Brasil:
Contraponto, 2006.

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CADERNO ESPECIAL | INCÊNDIOS

A EBA PEGOU FOGO!


A EBA RESISTE!
A EBA RE-EXISTE!
Daniele Machado

Digerir o episódio do incêndio do dia três de outubro de dois mil e dezesseis1 levou o seu próprio
tempo. Com o tempo apertado para publicação da segunda edição da revista Desvio, a qual
decidimos dedicar a refletir sobre o ocorrido, relutei a ensaiar sobre algumas questões que aqui
venho expor. A primeira é: o paradoxo entre a Escola de Belas Artes2 (EBA) ter sofrido em chamas,
sem que o seu prédio sofresse o mesmo, pois ele não existe. E a segunda: O fogo aconteceu no ano
que foi iniciado com as comemorações dos duzentos anos da escola, marcados por terem começado
com a “missão artística francesa”. Os caminhos cursados pela escola ao longo dos dois séculos
acompanham de perto a saga que esse país tem percorrido e, em certa medida, se correspondem em
verossimilhança.

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Desde que comecei a trabalhar no Centro Mu- puxadinho, do puxadinho... Com direito
nicipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO), tive a a contêineres, biblioteca com goteiras, sa-
curiosidade pela Travessa Belas Artes localiza- las inabitáveis devido à falta de estrutura.
da na parte de trás do quarteirão ocupado pelo Hoje, após o incêndio, alguns poucos an-
CMAHO3. Sou historiadora da arte formada pela dares funcionam, entre laudos e episódios
EBA e era comum os professores falarem sobre a que não dão muita certeza sobre estes po-
primeira construção que abrigou a escola ter sido derem estar ocupados7... O sétimo ainda
localizada em torno daquela região, mas sem recebe algumas pessoas da equipe do Mu-
precisar onde, pois o prédio havia sido demolido. seu Dom João VI, cujo acervo ainda está lá
A Travessa Belas Artes era a lateral da Academia localizado. Apenas o oitavo andar foi atin-
Real de Belas Artes, onde hoje funciona um es- gido pelo fogo e, os outros, pela água do
tacionamento privado de carros cercado apenas rescaldo que foi o maior estrago.
por um muro. Pode-se dizer que este é o primei-
ro de cinco (ou seis) prédios (e/ou projetos de 4. Projeto a ser concretizado para pré-
prédios) que já passaram pela trajetória da EBA: dio da EBA, Ilha do Fundão, anexo a rei-
toria. As obras iniciadas em 2010 tinham
1. Av. Passos, Centro. Demolido em 1938, sua previsão de inauguração para 2011.
o terreno funciona hoje como estaciona- A Construtora Lytorânea Ltda. ganhou a
mento. Foi construído para este fim. licitação e era responsável por realizar os
projetos executivos. Meses após foram de-
2. Av. Rio Branco, Centro. Hoje Museu tectadas falhas no projeto de construção e
Nacional de Belas Artes. Construído em as obras estão paradas desde então, sem
1908 para abrigar a Escola Nacional de data para retomada das obras e muito me-
Belas Artes após a inauguração da Av. Rio nos para a inauguração8.
Branco4. Foi desalojada para o porão do
edifício quando o museu passou a fun- 5. Diversas salas espalhadas por pré-
cionar. O MNBA passou a ocupar todos os dios da Faculdade de Letras e do Centro
“cômodos” após a escola ter sido compul- de Tecnologia, Ilha do Fundão. Após o
soriamente despejada na ilha do Fundão incêndio a EBA tem funcionado em salas
em um de tantos projetos arbitrários di- dos prédios da Faculdade de Letras e do
tatoriais5 que pretendiam enfraquecer o Centro de Tecnologia.
Centro da cidade dos “pensadores”.
6. Projeto sugerido no Cais do Porto,
3. Edifício Jorge Machado Moreira6, Saúde. Um grupo de professores formou
Ilha do Fundão. Hoje incendiado, funcio- uma comissão, voluntariamente, para
nam apenas alguns andares. Atualmente identificar na cidade um prédio que pu-
conhecido como a reitoria da UFRJ, foi desse passar a abrigar a escola por com-
construído para sediar a Faculdade de Ar- pleto e dentro das opções averiguadas
quitetura e Urbanismo no início dos anos como disponíveis, optou-se por um dos
1950. Esta foi abrigar também a reitoria, e barracões localizados no cais do porto no
depois, também a EBA. O puxadinho, do bairro da Saúde9.

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Talvez um desenho especule melhor sobre suas


verticalidades. Segue:

Cabe ainda suas aparições no serviço do Google:

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Os 202 anos da EBA coincidem com a trajetó- de ocupação de um armazém do Cais do Porto.
ria desse território chamado Brasil, submetido Desaparecimento – Esquecimento – Promessa –
progressivamente desde então por uma História Incêndio. Elias Thomé Saliba inicia o texto Cul-
avassaladora ou uma modernidade inescapável. tura / As apostas na República (2012) com uma
Esta última Lilia Schwarcz identificou deflagrada citação de Olavo Bilac na Gazeta de Notícia de 9
no início da República de abril de 1903, que é um importante vestígio
para a elaboração da reflexão aqui realizada “O
O cenário que então se abriu era propício a nosso mal tem sido este: quisemos ter estátuas,
todo tipo de utopia e projeção. A Repúbli- academias, ciência e arte, antes de ter cidades,
ca surgiu alardeando promessas de igual- esgotos, higiene, conforto”.
dade e de cidadania – uma modernidade
que se impunha menos como opção e mais Para fazer as correspondências necessárias para
como etapa obrigatória e incontornável. que a proposta deste ensaio aconteça, irei eviden-
(SCHWARCZ, 2012, p. 19) ciar os dispositivos que sobressaiam sobre o país
nos momentos em que a escola sofria as prin-
E Jacques Ranciére percebe ainda dois séculos cipais alterações no curso da sua trajetória. A
depois, o que classifica como trama inescapá- escola foi inaugurada em 1816 como Escola Real
vel da história (RANCIÉRE, 2014, p. 129). Uma de Ciências, Artes e Ofícios e tem o prédio de-
modernidade forjada, experimentada de forma senhado por Gradjean de Montigny11 inaugurado
ambígua, seja como colônia da metrópole por- dez anos depois com Academia Imperial de Be-
tuguesa, seja através de uma cidade “adaptada” las Artes. A criação da escola tem sua motivação
para estar à altura de receber o seu rei e, poste- original em uma civilização da colônia, forman-
riormente, seus imperadores. Sugiro um recorte do os seus próprios artistas através do modelo
no olhar sobre os eventos que determinaram os francês de ensino e prática de arte, consolidado
rumos percorridos pela escola, que, como disse através de um modelo de escola de belas artes12.
acima, correspondem com certa verossimilhan- Uma colônia tropical foi invadida por um corte e
ça com os do país. Destes quais o incêndio foi o um grupo de artistas e intelectuais, todos fugiti-
último dos dispositivos10. Dos seis prédios/proje- vos13, tentando tornar a cidade um pouco mais
tos realizados/utilizados para a EBA, o primeiro palatável diante da barbárie desumana de escra-
foi construído para este fim e não existe mais. O vidão que sustentava a metrópole portuguesa,
segundo foi construído para este fim, mas foi to- bem retratado por Debret14, um dos primeiros
mado por outra instituição, e por fim de lá foi ex- professores da escola. Em vias de se tornar um
pulsa. O terceiro não foi construído para este fim, império independente, sem o empenho de armas
lhe foi emprestado temporariamente, acabou fi- em guerra. Mais do que se instituir, se edificou
cando por décadas e de lá foi expulsa, junto com prédios para instituir. Aqui, o dispositivo de edi-
todos, pelo fogo. O prédio ainda existe. O que ficação, em um sentido vertical.
não se pode dizer do quarto, que é apenas um
projeto, que seria construído para este fim, mas Em 1890, logo após o golpe militar que instaurou
não se sabe se realmente será e, se sim, quan- o sistema republicano no país, a escola se torna
do. Por fim a EBA segue sem rumo, abrigada em Escola Nacional de Belas Artes. As edificações
outros prédios. E existe ainda um último projeto imperiais são ressignificadas. Um ótimo exemplo

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é a Praça Tiradentes. Último nome que a praça Em 1937 a escola passa a funcionar no porão do
recebeu, dado pela república, em cujo centro há prédio da Av. Rio Branco. A escola tem um va-
um monumento em que D. Pedro I cavalga em lor secundário ao museu que demanda as salas
um cavalo segurando a primeira constituição do de maior destaque do prédio. Não há problema
país. O nome carrega o “mártir” que enfrentou a em se localizarem no porão. O Museu Nacional
administração da colonização portuguesa, e em de Belas Artes é criado dentro de uma nova leva
cada uma das quatro pontas da praça retangular de edificações institucionais no país, mas desta
foram colocadas musas em alegorias que repre- vez com ambições “continentais”. Constroem-se
sentam os valores republicanos: lealdade, justiça, políticas considerando todo o território nacional,
liberdade e União. Chamo este dispositivo de tro- de forma padronizar as relações trabalhistas, es-
ca pela apropriação, que será utilizado ao longo colares, de saúde, segurança. É nesse momento
da história em outros contextos, nem tão distan- em que as ameaçadas leis que regem o trabalho
tes. Saliba aborda as falsas promessas da Repú- são consolidadas, assim como a primeira versão
blica e da inevitável modernidade: do atual IPHAN16. Mas, é importante deixar aqui
ressaltado que se tratava de um outro momento
A instabilidade e a indefinição geradas de “exceção” por aqui, o Estado Novo ou a dita-
pelos primeiros anos governos militares dura de Getúlio Vargas. Portanto, a criação do
e a consolidação da República com os go- MNBA era parte do plano de constituição de po-
vernos civis mostraram que a realidade líticas nacionais, inclusive no âmbito da arte. To-
do Brasil estava muito distante das proje- dos os países de respeito possuíam seus museus.
ções da sua vanguarda intelectual: o regi- Com o Brasil não deveria ser diferente. Um local
me continuou republicano na forma, mas que abrigasse o acervo de cenas que integravam
oligárquico no conteúdo, e a sociedade se a história brasileira.
tornou liberal no vestuário, mas profun-
damente conservadora na realidade. (SA- Especialmente no cento da capital, é possível ve-
LIBA, 2012, p. 241). rificar as transformações mais radicais. O início
dessa terceira mudança está no deslocamento da
Bastando que se altere nomes, para determinar a escola da Av. Passos para a recém inaugurada Av.
conotação e o significado daquela “coisa” para a Rio Branco em 1904 como Av. Central. Seguida
sociedade. Não é tão surreal assim essa proposta, de severas realocações no Centro: diversos pré-
se considerarmos que a maioria das pessoas mal dios vieram abaixo (inclusive o primeiro prédio
percebem que há um homem em cima de um ca- da escola). Mas não somente prédios, vieram
valo no meio da praça. Se percebem, não sabem também morros e tudo que estava acima deles.
quem é. Muitos especulam que seja Tiradentes. A A primeira camada de inscrições no terreno do
praça Tiradentes talvez seja um excelente exem- Centro, realizada por oficiais e pessoas comuns,
plo pra perceber o rearranjo dos atores na nova sobretudo escravizadas, foi removida ao longo
cena no mesmo cenário. Ao diálogo entre os dis- das sucessivas remoções e deslocamentos. E jun-
positivos – edificação – e – troca por apropriação to com as casas também se foram as pessoas. O
– há o dispositivo – desaparecimento – por parte Centro mudou radicalmente em relação a visua-
da escola, que o prédio sofrerá ao ser demolido lidade, hábitos e vivências a partir de então. Es-
no início do século XX. queceu-se muito também. Difícil fazer esquecer o

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que é visto e habitado. Claro que o discurso era ao dispositivo – promessa.


o da modernização, mas em sua tangente havia
os “benefícios”. Quando não há o que ser lem- Desde então a EBA se tornou uma escola nômade,
brado, edifica-se para o futuro. E também para apenas com a promessa de local próprio, a qual
quem interessa, para quem ficou e não foi remo- não se realizou até hoje. Com o incêndio passa a
vido pela cidade nova que estava em construção, funcionar “pulverizada”, em salas dispersas pelos
sendo empurrado para as periferias. Este é o prédios de Letras, do Centro de Tecnologia e, por
dispositivo da borracha, do apagamento, que dá fim, da própria Reitoria. Cujos alguns andares
uma “nova chance” para a cidade ser construída, foram liberados, mesmo sem certeza total da se-
como novos objetivos e personagens. Superando gurança para que isso ocorresse.
o passado desagradável. Aqui os dispositivos –
esquecimento – por parte da escola, coincide com EBA – 1) Desaparecimento; 2) Esquecimento;
o – apagamento – sofrido pela escola. 3) Promessa; 4) Incêndio.
Centro – 1) Edificação; 2) Troca por apropriação;
Quando a escola é transferida do Centro para o 3) Apagamento; 4) Desarticulação.
prédio da FAU/Reitoria na Ilha do Fundão, no
novo momento de exceção em que o Brasil se en- Os dispositivos encontrados nas viradas das fases
contrava, a ditadura civil-militar de 1964. Desta da EBA e do Centro da cidade do Rio de Janei-
vez, o dispositivo que, de certa forma, acumu- ro giram em torno da inscrição na história e no
lava os já passados, não tratava apenas de uma tempo, através de uma manutenção da institu-
troca por apropriação, ou um apagamento, mas cionalização que se faz através de construções ou
também uma desarticulação de um “triângulo” destruições/desconstruções. É importante que se
de resistência contra os militares que funciona- compreenda essas construções ou as destruições,
va naquela região. Em torno da praça Cinelân- não como realizadas e compreendidas de forma
dia estavam, além do MNBA, o Museu de Arte óbvia, mas nas entrelinhas. Ora se constrói o
Moderna do Rio de Janeiro e o restaurante estu- sentido especificamente – constrói-se para fazer
dantil Calabouço. A região era alvo de diversos visível a instituição –, ora se constrói o sentido
protestos e manifestações contra o regime, e es- de forma ampla, que englobe aquele anterior,
tes espaços funcionavam ora como organização, fazendo com que seja esquecido, objetivamente
ora como fuga após a truculência. No dispositivo ou não. O esquecimento substitui o sentido es-
da remoção, a primeira ponta desfeita foi o res- pecífico anterior, quando é embalado por senti-
taurante estudantil. Realocado perto do Largo da do amplo. Por exemplo, o desmantelamento do
Carioca, foi protagonista do primeiro assassinato “triângulo” crítico que estava em torno da praça
assumido pela polícia na ditadura, o estudante da Cinelândia. O restaurante Calabouço teve de
Edson Luís de 17 anos. O restaurante deu lugar ser removido para dar lugar a um viaduto, fun-
ao viaduto do Calabouço, construído junto as vias damental para o funcionamento da via expressa
expressas do aterro do Flamengo, utilizada desde do aterro, que se inaugurava. A EBA foi para a
então para chegar de carro ao MAM-RJ. A escola Ilha do Fundão, pois lá estarão no futuro todos os
foi a segunda ponta da desarticulação, e o MAM cursos da Universidade do Brasil. E o MAM, in-
foi o último. O incêndio do dia 8 de julho de 1978. felizmente sofreu um incêndio, sobre o qual não
O dispositivo da – desarticulação – aqui se soma havia tempo para se refletir, estava-se ocupado

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em reconstruí-lo. Infelizmente, diante dessas que a época escolhe inconscientemente para


ocasiões amplas, o “triângulo” foi desarticulado, si, a fim de figurar a ameaça que ela pressente
mas não seria esse o objetivo, como poderia ter- sob as perspectivas reconfortantes de uma razão
se alegado, com absoluta compreensão geral. triunfante” (p. 43). Pode-se talvez dizer que a ci-
dade do Rio de Janeiro está em fogo com recor-
Mas o incêndio, o último dos dispositivos, é tam- rência nas últimas quatro décadas, sendo talvez
bém diferente de todos. Coincidência ou não, a imagem do fogo emergente e, em seguida da
em uma mesma linha de relações, as chamas água que soluciona e que consolida a destruição,
do MAM inauguram uma série de outras. O Mu- que a época escolheu para si.
seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi um
pilar fundamental no desenvolvimento da obra Uma blasfêmia talvez, mas que importa que aqui
de Hélio Oiticica, artista cujo o centro de arte em seja evocada, é que há certa beleza no fogo, algu-
que trabalho homenageia, e cujo acervo de lá foi ma fascinação oriunda da sua imagem calorosa,
retirado em agosto de 2009 para pegar fogo em violenta, que se impõe e alastra, devastando o
seguida, na nova sede no bairro do Jardim Botâ- que pode alcançar. Novamente um paralelo com
nico, em outubro. Nos anos seguintes dois acer- o incêndio do MAM, não é coincidência a narrati-
vos particulares também ficaram em chamas: o va de um prédio moderno em chamas construído
de Niomar Moniz Sodré, figura protagonista no sobre um aterro. Institucionalmente a EBA e o
perfil que o MAM assume, e o de Jean Boghici, co- MAM costuram-se e entremeiam-se como esco-
lecionador de arte que possuía seis dos trabalhos las, entre movimentos realizados por professo-
de Torres-García que estavam em cartaz na oca- res e alunos diversos, na cidade. A antiga capital
sião do “sinistro” do MAM. Essa sequência se en- protagonizou as circulações e articulações no que
cerra com o incêndio da EBA ano passado, onde, costuma-se chamar “modernidade brasileira” –
apesar do acervo de obras não ter sido atingido, o suspeito que por faltar de um nome mais pró-
acervo humano, que faz com que exista e resista, prio, mas que ainda não sei dizer qual seria mais
foi absolutamente afetado. interessante e nem o porquê.

É interessante pensar na emergência do fogo Esses incêndios merecem análise sob diversos
em tantos espaços institucionais e representati- olhares, desolhares, perspectivas e desperspecti-
vos dessa cidade. Cidade que foi capital do país vas. Não poderão ser desenvolvidas a fundo aqui,
por tanto tempo, cujas instituições mais repre- mas cabe salientar, que assim como o incêndio
sentativas estiveram por tanto tempo aqui loca- do MAM, o incêndio da EBA não foi acidental,
lizadas. Antes de pensar especialmente sobre o mas faz parte de um projeto. Não pretendo aqui
fogo, é necessário aqui pensar sobre, como diz dizer que o incêndio foi intencional, articulado
a poeta, digamos, pós-surrealista Annie Le Brun por A ou B, mas, enquanto projeto, o incêndio faz
em conferência realizada em 1989 em Bruxelas, parte de um projeto de precarização do ensino
intitulada O sentimento da catástrofe: entre o real público, entre tantos outros projetos. Não é fá-
e o imaginário, que identifica uma insistência do cil o cenário que vivenciamos. De um lado a EBA
século XIX europeu em fazer referência a catás- incendiada e, mais uma vez, desalojada. A UERJ
trofe “Mas pode-se também enxergar, na própria e tantas outras universidades com a falência de-
constância da referência à catástrofe, as imagens clarada. E de outro os empresários do ensino pri-

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vado assediando, se autocolocando como únicas/ da principal” do prédio, que dava pra Av. Passos,
últimas opções. olhe para o chão. As mesmas pedras continuam
por lá.
Essa conversa toda pode descambar para a se-
guinte conclusão: uma escola de belas artes hoje
é traço da permanência da estrutura colonial.
Porém a apropriação talvez seja também a chave Daniele Machado é historiadora da arte (UFRJ)
para um contradispositivo. A subversão da es- e mestranda em Estudos Contemporâneos das
trutura quando, por exemplo, a EBA é invadida Artes (UFF), onde desenvolve a dissertação “Ima-
pelos estudantes cotistas e pelos novos cursos de gens do incêndio do MAM-RJ: em torno do ca-
história da arte e de conservação e restauração, dáver de um projeto moderno”. É Editora-chefe
criados pelo Reuni17 em 2009 – políticas que fo- da Revista Desvio e Coordenadora de Pesquisa
ram encaradas por alguns como um peso, a partir e Públicos do Centro Municipal de Arte Hélio
da chegada de tanto alunos. Apesar disso tudo... Oiticica onde coordenada os projetos “Linhas de
entre tantas idas e vindas, construções e des- Tempos: 20 anos do Centro Municipal de Arte
construções, A EBA RESISTE! A EBA RE-EXIS- Hélio Oiticica” e “Arte em geral: Atelier Gaia”,
TE! Entre tantas insatisfações, desmobilizações e entre outros
disputas, a escola está aí. Entre tantas tradições,
se mantem como ponto de origem de muitos que machadodani08@gmail.com
contribuem com a produção artística contempo-
rânea do país – quando as relações entre arte e
NOTAS
academia foram reorganizadas, ela se manteve
como possibilidade, alternativa de acolhimento
1 O incêndio atingiu o oitavo andar do edifício
de pesquisas dispersas.
Jorge Moreira Machado localizado na Ilha do
Fundão. No edifício da Universidade Federal do
A EBA pegou fogo, mas não o seu prédio. Como
Rio de Janeiro funcionavam a reitoria e as pró-rei-
aquela visita inconveniente, foi jogada na cha-
torias, a Escola de Belas Artes e a Faculdade de
mada reitoria para passar alguns anos e lá tem
Arquitetura e Urbanismo.
estado por décadas. O prédio da EBA se mantém
2 UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
intacto, no papel de onde nunca saiu, apesar de
3 O prédio do CMAHO também tinha um certo
ter sido inaugurado. Hoje é possível ver um ban-
protagonismo, pois abrigava o Conservatório
ner que “imita” a fachada do prédio original, no
de Música – atual Escola de Música também da
que seria a sua lateral, que hoje é a Travessa Be-
UFRJ – e recebeu temporariamente o Conservató-
las Artes. Dele nada restou além do frontão que
rio Dramático Brasileiro
está no Jardim Botânico, conforme informam di-
4 A Centro da cidade do Rio de Janeiro passou por
versos textos sobre a escola. Quando estiver pelo
uma intensa reforma no início do século XX sob a
Centro, dê uma caminhada pela região, do google
gestão do prefeito Pereira Passos, na qual é criada
maps é mais visível. Do primeiro prédio também
a Av. Rio Branco. Com o pretexto da moderniza-
resistiram o espaço ocupado por este, é gritante,
ção, despovoou-se o Centro da cidade, ao qual era
no contraste com o entorno, o vazio que perma-
atribuído a disseminação de doenças infectocon-
nece por todo o quarteirão. E, por fim, na “entra-
tagiosas. Este prédio foi desenhado pelo arquiteto

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Adolfo Morales de Los Rios. arquitetos importantes para o país, foi responsá-
5 Em 1º de abril de 1964 o abriu sofreu um golpe vel pela construção da antiga Praça do Comércio,
civil-militar, cuja existência durou 25 anos. atual Casa França-Brasil, entre outros projetos,
6 O prédio recebeu o nome do arquiteto que pro- sendo quase todos destruídos.
jetou este e toda a cidade universitária da Ilha do 12 O que é uma eba? A EBA foi criada em Brasil de
Fundão. Foi planejado para receber a Escola de mão-de-obra escrava legalizada. Da mesma mis-
Arquitetura, e destaca-se pela arquitetura mo- são artística francesa vieram as famosas gravura
derna ao qual Jorge Machado Moreira estava vin- de Debret – primo de Jacques Luis David, pintor
culado vide sua participação no desenvolvimento oficial de Napoleão – que retratam cenas do co-
de outro edifício de protagonismo nesta, que é o tidiano escravocrata da cidade. Foi criada para
Palácio Capanema ou o antigo Ministério da Edu- dar um ar “civilizado” para a cidade se adequar a
cação e Cultura do país. O projeto de Machado vida de uma corte, que logo foi abandonada para
Moreira foi premiado na IV Bienal de São Paulo se tornar um império. Entre as diversas fases
(1957). que o país viveu, artistas se formaram na EBA
7 Há poucos dias a turma de História da Arte no e produziram dentro desses contextos, inclusive
Brasil II, com o prof. Marcus Tadeu, estava em construindo o acervo imagético das cenas oficiais
prova e a sala foi evacuada devido a fortes tre- da nação – que é compreendido, é claro, como
mores no chão que atingiram a sala localizada no uma das funções do perfil de uma escola de belas
Pamplonão. artes. Os pintores Vitor Meirelles (1832 – 1903)
8 No dia 24 de novembro de 2014 alunos do cur- e Pedro Américo (1843 – 1905) são exemplos. O
so de História da Arte e a professora Aline Couri, primeiro realizou Primeira missa no Brasil (1861)
realizaram um happening, que contou com a par- e Batalha dos Guararapes (1879). O segundo pro-
ticipação de outros professores, e trouxe para a duziu Libertação dos escravos (1889) – pintado
discussão da cidade a não retomada das obras, no Palácio Bandeirantes em São Paulo – Batalha
em que inauguraram o prédio fantasma e torna- do Avaí (1877), O grito do Ipiranga (1888) e Tira-
ram ele acessível através do recurso de realidade dentes esquartejado (1893).
aumentada. 13 Muitas versões possíveis.
9 O projeto desenvolvido pelos professores Aline 14 Jean Baptiste Debret também foi membro da
Couri, Ana Canti, Anael Alves, Angela Leite Lopes, Missão Artística Francesa e atuou como profes-
Carlos Azambuja, Graça Lima, Henrique da Costa sor da Academia e também como diretor poste-
Souza, Kenny Neoob, Marcus Dohmann, Marcus riormente. Em seu livro publicado em 1831 em
Lopes, Patrícia March, Robério Dias e Verônica seu retorno a Paris Viagem Pitoresca e História
Damasceno está disponível no link: ao Brasil apresentou cenas que construiu a partir
https://sway.com/vWhSDiBwitZW0aPm. de sua vivência no Brasil, “chocante” pelas cenas
10 O termo dispositivo aqui é tomado a partir de cotidianas entre senhores e escravos.
Giorgio Agamben em seu texto O que é um dispo- 15 Estátua equestre de D. Pedro I, encomendada
sitivo? (2014) por homenagem de seu filho D. Pedro II. Foi de-
11 O arquiteto membro da Missão Artística Fran- senhada por João Maximiano Mafra e executada
cesa caracterizado pelo estilo neoclássico, além por Louis Rochet.
de projetar o prédio da Academia Imperial de 16 Criado em 1937 como Serviço do Patrimônio
Belas Artes e dar aula na escola, tendo formado Histórico e Nacional (SPHAN), a partir de reivin-

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dicações e debates de intelectuais como o então do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
ministro da cultura Gustavo Capanema e o poeta Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Mário de Andrade. EBA/UFRJ, 2015.
17 O projeto de Reestruturação e Expansão das LUZ, Angela A. Uma breve história dos Salões
Universidades Federais (REUNI) foi criado em de Arte: da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro:
2003 no governo Lula, como o objetivo de au- Caligrama, 2005.
mentar o acesso e a permanência na educação
MACHADO, Daniele. Imagens do incêndio do
superior. Através deste foram criados, na EBA,
MAM: uma análise do cadáver de um projeto
os cursos de História da Arte e de Conservação moderno. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes/
e Restauro. UFRJ, 2017.

RANCIÉRE, Jacques. Em que tempo vivemos?


REFERÊNCIAS – Refletir sobre a divergência entre as tempora-
lidades global e de cada um é alternativa para
AGAMBEN, Giorgio. O amigo & O que é um pensar um mundo marcado pela ideia do fim. In:
dispositivo? Chapecó: Argos, 2014. Serrote, nº 16, 2014.

BRUN, Annie Le. O sentimento da catástrofe: SALIBA, ELIAS T. Cultura / As apostas na repú-
entre o real e o imaginário. São Paulo: Iluminu- blica. In: SCHWARCZ, Lilia M (Org.). A abertura
ras, 2016. para o mundo (1889 – 1930). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012.
COURI, Aline. EBA aumentada: happening-inau-
guração do edifício anexo destinado à ampliação SCHWARCZ, Lilia M. As marcas do período /
da Escola de Belas Artes/UFRbJ. In: MACHADO, População e sociedade / História é sempre risco.
Daniele; FERREIRA, Giovanni; HOUAYEK, Hugo; In: SCHWARCZ, Lilia M (Org.). A abertura para
PUCU, Izabela. A cidade em obras: imaginar, o mundo (1889 – 1930). Rio de Janeiro: Objetiva,
ocupar, redesenhar. 3º Encontro de Pesquisado- 2012.
res dos Programas de Pós-Graduação em Artes

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CRÍTICA

BALANCETE - COLETIVO FILÉ DE PEIXE NO CENTRO


MUNICIPAL DE ARTE HÉLIO OITICICA
Thiago Spindola Motta Fernandes
No texto A obra de arte na era de sua reproduti- de choque de ordem contra os camelôs na cidade,
bilidade técnica, Walter Benjamin analisa as alte- e se apropria dos vídeos sem a permissão dos ar-
rações que as novas formas de arte (fotografia e tistas, tratando-os como objetos de consumo, e
cinema) e de reprodução de imagem provocaram mais do que isso, de consumo popular. A lógica
na cultura e na percepção do papel da arte1. Mais do colecionismo é subvertida e o vídeo é tratado
de 80 anos após a sua primeira publicação, bus- mais como um produto industrial do que como
camos compreender e nos adaptar aos impactos um objeto artístico. O valor fixo também quebra
trazidos pelas novas tecnologias, principalmen- uma hierarquia existente no sistema quando ar-
te a internet, na distribuição e consumo de bens tistas consagrados passam a valer o mesmo que
culturais, como as artes visuais, o cinema, a mú- artistas mais jovens.
sica e a literatura.
Cruzamentos com as ideias de Walter Benjamin
A pirataria origina-se de uma tentativa de são reforçados a partir da obra A videoarte na era
transformar pessoas oriundas das classes mais de sua reprodutibilidade pirata, realizada espe-
pobres em consumidores, criando um mercado cialmente para esta exposição. Este trabalho é
marginal com produtos copiados ou falsificados constituído a partir de uma xerox do famoso en-
cujos preços são compatíveis com a sua renda. saio de Benjamin, onde algumas palavras são ra-
Excluído pelas normas do capitalismo, porém suradas e trocadas por outras, como “videoarte”,
seduzido pelo fetiche da mercadoria, o cidadão “mercado” e “pirataria”, a partir de uma técnica
mais pobre busca no mercado informal o acesso de colagem. A apropriação mais uma vez está
a produtos que não conseguiria adquirir em presente, assim como na maior parte da produ-
lojas oficiais. Incluem-se nesse nicho CDs, DVDs, ção do Filé de Peixe, e pode ser considerada uma
jogos, softwares, e no caso do coletivo Filé de marca registrada do coletivo. O texto passa por
Peixe, a videoarte. um processo de reprodução técnica para então
ser modificado e recontextualizado pelas mãos
O Filé de Peixe comemora 10 anos com a exposi- do coletivo, colocando em discussão a videoarte
ção Balancete2, no Centro Municipal de Arte Hé- e a pirataria sem muita dificuldade, já que o Pira-
lio Oiticica, que tem como cerne a performance tão dialoga com alguns conceitos benjaminianos,
Piratão. A performance consiste na produção e como o de aura e o de valor de exposição.
venda de DVDs de videoarte de artistas brasilei-
ros e estrangeiros pelo valor único de 5 reais por Segundo Benjamin, a aura da obra de arte é for-
uma unidade ou de 10 reais por três unidades, mada por dois elementos principais: a autenti-
nos moldes da prática dos camelôs do Rio de Ja- cidade e a unidade. A reprodução faz com que a
neiro. O Piratão é realizado desde 2009, momen- obra perca esses elementos e passe a ter existên-
to de grande discussão sobre direitos autorais e cia serial, não mais se restringindo a um único

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local, assim a arte se torna cada vez mais subme- cartazes encontram-se dois DVDs de ouro em
tida à exposição e acessível a um número maior comemoração aos artistas nacionais e estrangeiros
de pessoas. Este é também o ponto de chegada mais vendidos até hoje durante as performances,
do Filé de Peixe com o Piratão. A performance é são eles Matthew Barney, pela venda de 190
uma maneira de difundir a videoarte, tirando-a Piratões, e Paulo Brusky, pela venda de 185,
das mãos dos colecionadores particulares e das novamente atribuindo a lógica do entretenimento
instituições artísticas e levando-a para quem e do consumo de massa à videoarte.
nunca poderia compra-la, considerando o alto
preço desta produção no mercado de arte. Utili- Como lembra a curadora Izabela Pucu no texto da
zando os procedimentos do mercado informal, o exposição, o surgimento do Filé de Peixe faz par-
coletivo faz uma crítica ao mercado de arte e pro- te de um movimento que ganhou força no Brasil
move a democratização da videoarte. na década de 1990, quando artistas começaram
a se organizar em coletivos, posicionando-se de
O Piratão é tratado como um verdadeiro negócio. forma crítica ao sistema da arte e estabelecendo
A exposição Balancete, como o próprio nome já as próprias regras de produção e circulação de
indica, é um demonstrativo geral dos resultados trabalhos. O Filé de Peixe cria um circuito artís-
obtidos com o Piratão. São apresentados gráficos tico alternativo onde é ele quem define suas pró-
com o levantamento dos vídeos mais vendidos, prias estratégias de distribuição e ainda vai além
um mapa que indica os lugares do Brasil por ao se apropriar das obras de outros artistas e lhes
onde a performance já passou e um livro-caixa, impor esta lógica. O Piratão, assim como os came-
que mostra a contabilidade do Piratão de 2009 a lôs, cria uma alternativa perante ao sistema oficial
2016, aproximando o trabalho do coletivo ao de e adquire a função de consolidar um novo público
uma empresa. O processo e os desdobramentos consumidor e oferecer maior potencial de exibição
do projeto também são evidenciados a partir de a um objeto de pouca circulação, que originalmen-
vídeos que mostram a fabricação dos DVDs e re- te se restringiria a um público reduzido.
latos de pessoas que participaram da performan-
ce, entre elas curadores, artistas e pessoas de fora
do circuito artístico. Trata-se de uma exposição Thiago Spindola Motta Fernandes é mestrando
de caráter documental, em sua maior parte, mas em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRJ na linha de
o público também pode assistir a uma compi- pesquisa História e Crítica de Arte, é Designer
lação de todo o acervo do Piratão que é exibido Gráfico pela Universidade Estácio de Sá e gradu-
continuamente. ando em História da Arte pela EBA/UFRJ.

Uma parede é dedicada aos cartazes feitos thiagosmfernandes@gmail.com


pelo próprio coletivo, que supostamente se
destinariam à divulgação dos vídeos no cinema
NOTAs
e ostentam falsos selos de mostras e festivais
renomados. Ao equiparar a videoarte ao
1 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e polí-
cinema, o Filé de Peixe mais uma vez corrobora
tica. São Paulo: Brasiliense, 1984.
a perda da aura do objeto artístico ao inseri-lo
2 A exposição esteve em cartaz entre 26/11/2016
no contexto do consumo de massa. Ao lado dos
e 17/02/2017

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crítica

Meu mundo teu: elos afetivos e simbólicos de se


estar junto
Pedro Ambrosoli

Num momento em que muitas práticas governamentais e iniciativas privadas solapam vidas de
várias classes sociais, principalmente as que estão na base da estrutura brasileira, a presente crítica
é feita em torno da prática do artista Alexandre Sequeira em sua exposição Meu mundo teu que vai
contra esse movimento, construindo projetos artísticos colaborativos de processos de reconstituição
quando não construção de uma imagem de si a todos os envolvidos em seus processos, geralmente
pessoas ou comunidades fora dos grandes centros de capital.

A partir de muitas experimentações da segunda mas de sua cidade e de outras do Brasil, incluindo
metade do século XX, muito se fala e escreve so- um projeto feito especialmente para a presente
bre possíveis artes colaborativas num sentido de exposição usando um recorte no próprio acervo
integração do artista, obra e espectador, utilizan- do museu.
do o termo ‘estética relacional’ de Nicolas Bour-
riaud1. No Brasil, a discussão muitas vezes se fun- A mostra é um fruto de processos de convivên-
damenta em duas figuras e suas produções: Hélio cia e colaboração que geraram um conjunto de
Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920- 1988). imagens, memórias, sons, narrativas, objetos
Este debate permanece muito atual na exposição que se espalham como uma constelação de afetos
Meu Mundo Teu do artista Alexandre Sequeira por uma das galerias do MAR, sob a curadoria de
(1961-) que acontece no Museu de Arte Do Rio Clarissa Diniz e Janaina Melo. Começando pelo
(MAR) entre os dias 29 de novembro de 2016 até próprio nome da exposição que é originário da
16 de julho de 2017. Ela adiciona outras camadas convivência do artista com os jovens Tayana e
a discussão e reverbera outras já existentes como Jefferson. Meu mundo teu é uma expressão que o
as questões: como fazer curadoria de obras que jovem usava.
são feitas em colaboração? Como obras desta na-
tureza podem existir sem as dicotomias entre o O projeto homônimo começou com o intuito de
artista (Alexandre Sequeira) e as pessoas que es- ligar dois adolescentes de áreas periféricas dife-
tiveram com ele nas obras? rentes de Belém: Tayana Wanzeler (14, bairro do
Guamá) e Jefferson Oliveira (13, Ilha do Combu)
Com essa exposição, o MAR reafirma sua in- por meio de trocas de cartas e fotografias, mes-
tenção de oferecer espaço a artistas de outras mo sem se conhecerem pessoalmente incentiva-
regiões do Brasil, como nas exposições anterio- dos por Alexandre Sequeira. O primeiro encontro
res: Pernambuco Experimental, Berna Reale: O de Alexandre com Jefferson aconteceu no dia em
Vazio de nós, Museu do Homem do Nordeste e que Alexandre estava andando pela rua do ado-
Eu como Você (do Grupo EmpreZa), Pororoca: A lescente e este jogou uma pedra em sua cabeça
Amazônia no MAR. Alexandre Sequeira nasceu por ser, na época, uma pessoa estranha naquela
em Belém, as obras expostas são de regiões próxi- área. Ele conheceu Tayana numa oficina de dese-

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nhos que ministrou anterior a esse ocorrido. Cada semana o artista os encontrava separa-
damente em seus bairros e mostrava os resul-
Para este projeto, o artista escolheu utilizar equi- tados da semana anterior junto com a carta do
pamentos fotográficos artesanais, pois sabia que parceiro. O diálogo travado entre eles mostra as
eles possuíam um elemento mágico para aqueles inquietações sobre as vivências diferentes como
jovens, diferente de tudo que eles tinham contato também questões relativas as fotos que estavam
anteriormente, pois já vivem com acesso a recur- desenvolvendo juntos. Eles só foram se encontrar
sos digitais em que as imagens são automatica- pessoalmente na ocasião da abertura da exposi-
mente reveladas ao autor no ato fotográfico. Foi ção no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas em
um processo semelhante ao que a artista carioca novembro de 2007, um ano depois das primeiras
Paula Trope desenvolveu com jovens moradores conversas sobre o projeto. A exposição contava
de rua em sua série Os Meninos (1993-1994). com as fotos feitas por eles e os registros de Ale-
xandre desse processo.
O processo de parceria entre os dois também
aconteceu no dispositivo fotográfico que foi cria- Como já se pode notar, as obras de Alexandre ul-
do com dois furos, permitindo que Jefferson fi- trapassam o sentido visual e possuem um cunho
zesse seus registros por um dos furos e Tayana social como fica manifesto em outra obra tam-
pelo outro num mesmo filme como se pode ver
nas imagens abaixo.

Beco e Furo, fotografia, 2007, Tayana Wanzeler,


Alexandre Sequeira e Jefferson Oliveira.

A descoberta da imagem fotográfica. Registro de atividade foto-


gráfica nos bairros de Guamá e Combu por Alexandre Sequeira. Tayana e Jefferson, 2007, fotografia, Alexandre Sequeira.

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Sao João e sapatos, fotografia, 2007, Tayana Wanzeler, Alexandre Sequeira e Jefferson Oliveira.

bém: Sob o céu de Pedra Azul (2015), desenvol- perceber aqui ressonâncias do pensamento de
vida em Pedra Azul no Vale do Jequitinhonha em Ricardo Basbaum deste trecho:
Minas Gerais. Neste caso, Alexandre foi especi-
ficamente convidado pela ONG Área Criativa da Percebe-se logo que ser (ou não) um ar-
Rua Cinco do Planalto, bairro periférico da cida- tista não é algo de que se possam exigir
de, para desenvolver uma ação fotográfica con- limites rígidos ou absolutos, revelando-se
juntamente com jovens moradores do lugar. mais como um trânsito, um certo desloca-
mento através das coisas combinado com a
Numa decisão grupal, os participantes decidi- produção de um espaço particular de pro-
ram por projeções de fotografias em edificações, blemas (...), um determinado formular de
tanto do centro histórico quanto da periferia de questões em que objetos, situações, even-
Pedra Azul. No intuito de incentivar estes jovens tos e uma certa configuração do sensível
a criar um pertencimento na cidade, as projeções estão envolvidos: este indivíduo (ou coleti-
eram de imagens dos próprios participantes em vo, claro) insere-se (é inserido: trata-se de
tamanho real. Além desse projeto, artista já tem uma atribuição que necessariamente en-
como sua prática oferecer workshops e oficinas a volve alteridade) numa rede de dinâmicas
jovens nos locais que trabalha. É uma troca, não e num contorno de espacialidade em que se
é um exercício colonizador em que o artista se movimenta, deflagrando toda uma econo-
apropria das imagens das pessoas que vai conhe- mia própria deste conjunto de operações.
cendo para promoção pessoal. Assim postos, os limites que jogam com
a determinação e a identidade do artista
Ele fala “Costumo ouvir de várias pessoas que não mais se configuram em simples pro-
entram em contato em meus trabalhos que um blema de cruzamento de fronteiras (entrar
ponto que os une é a rede de relações de afeto que e sair), mas sim enquanto delineadores
se estabelece.”2 Por mais que se tenha os vestígios de uma figura de espacialidade que acaba
na exposição, essas relações escapam a qualquer conduzida a vivenciar estes atravessamen-
objetificação museológica ou institucional. É rico tos a partir de uma possível singularidade

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de inserção: escapar das determinações de A pedrinha é um convite a trocas, a despertar


um campo ou mesmo amplificar sua atua- o poder delas aliada a um processo criativo de
ção a partir de uma deliberada mistura de invenção. Uma montagem interessante sobre o
linhas de identidade, arcam também a seu assunto foi a da obra Entre a Lapinha da Serra e
modo o território do artista e suas reali- o Mata Capim (2009-2010) desenvolvido junto a
zações (...). É sempre interessante quando seu Juquinha e de seu neto de 13 anos, Rafael em
se percebe a arte a se aparelhar com um Lapinha da Serra (Mg).
tecido poético-institucional que incorpora
em sua prática dimensões não discursivas Nos quase dois anos de convivência, eles pro-
de linguagem; tais situações não são fre- duziram uma série vestígios que estão expostos
quentes, de modo que, quando ocorrem, parcialmente na exposição no MAR numa ex-
merecem atenção e um olhar cuidadoso.3 tremidade da sala reservada só a esta obra que
contém: fotografias, postais e anotações de Ale-
Há contaminações em todos os envolvidos nas xandre; a escultura Armadilha para discos voa-
obras desta exposição e as curadoras com o artis- dores feita por ele com Rafael; uma ampliação de
ta criaram um ambiente expositivo relacionado um desenho deste último, e um banco em que há
às estas sensações afetivas em que as obras fo- um fone em que se pode ouvir as conversas dos
ram produzidas sem cair no erro de encher o es- três gravadas e um álbum de músicas cantadas
paço com mobiliários alegóricos e desnecessários por seu Juquinha. Esta convivência gerou a dis-
que remeteriam diretamente aos lugares de cria- sertação de mestrado de Alexandre Sequeira no
ção. Foram escolhidas cadeiras de praia, cadeiras Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola
leves desmontáveis, bancos com fones reprodu- de Belas Artes da Universidade Federal de Minas
zindo áudios do artista e dos seus colaboradores Gerais6.
em seus processos criativos (dar a voz além de
dar imagem) e pequenos folhetos que continham Outros objetos presentes na exposição são pe-
rico material documental detalhado em torno quenos monóculos inseridos nas paredes do
das obras (os mesmos se encontram disponíveis MAR que promovem uma proximidade do espec-
no site, na página da exposição4). As curadoras tador com a imagem. Essa intervenção resgata a
escrevem no texto curatorial: relação afetiva do método de Alexandre e foi feita
pelo próprio artista. Dar liberdade ao artista de
Propomos um ambiente de imersão nos re- construir e intervir no espaço expositivo abala a
latos e memórias dos encontros aqui apre- clara distinção entre artista e curador, questão le-
sentados, oferecendo estações de leitura vantada mais profundamente no texto de Ricar-
em que o intangível da vivência do outro se do Basbaum citado acima, O artista como cura-
coloca como um – talvez silencioso – con- dor. Terry Smith chega a um ponto chave em sua
vite à presença, à escuta e ao diálogo, desta análise de práticas contemporâneas:
vez, performados na relação com o público,
como quem lança uma pedrinha no ombro Especialmente agora que instituições de
de quem adentra este espaço. 5
arte em todo seu espectro tomaram nota
cuidadosa das inovações dos curadores
durante os últimos cinquenta anos, e a len-

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Vista da exposição com peças de Entre a Lapinha da Serra e o Mata Capim. Foto de Thales Leite.
ta e envolvente convergência entre essas escreveu o texto da mostra e dispôs suas obras
duas práticas (artistas como curadores e no espaço na então Área Experimental do MAM,
curadores como artistas). No lugar de cair hoje remontada no mesmo local.
na categoria errada de colidir uma na ou-
tra, estamos nos aproximando uma situ- Esta intervenção de uma obra em toda a exposi-
ação em que curadores irão trabalhar em ção faz parte de Constelação de Tião, um projeto
estreita colaboração com artistas e vice e de Alexandre Sequeira em colaboração com Aline
versa, ao invés de persistirem com um ou Mendes, ativista e moradora do Morro da Provi-
outro em destaque, sempre desigual, rela- dência. Esta última que levou ao MAR e ao artista
ção que tem existido por séculos.7 conhecerem o acervo fotográfico de Tião, retra-
tista desta região entre as décadas de 1960 e 1980
Cabe lembrar que o termo curadoria é recente que foi amigo dos pais de Aline quem foi uma
na história da arte, muitas vezes os próprios ar- das retratadas pelas lentes de Tião. Como teste-
tistas faziam toda organização de suas mostras munha e agente da história portuária do Rio, a
como o caso épico da história da arte protagoni- obra de Tião aponta para a dimensão política dos
zado por Coubert que, tendo suas obras negadas afetos, das relações, da amizade e da saudade,
no Salão de Paris de 1855, montou um Pavilhão territórios da memória e de suas estratégias de
do Realismo na área externa da exposição onde resistência desta região que está em processo de
expunha e vendia suas obras. Um exemplo mais restruturação.
próximo de nós é a exposição Atensão, de 1976
remontada em 2016, de Carlos Zílio no Museu de Aline procurou Tião depois de lembrar dele numa
Arte Moderna do Rio (MAM-RJ) em que o artista Conversa de Galeria no MAR em que participou

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em 2015. Foi em busca dele na zona portuária, apenas de homenagear o fotógrafo e cele-
e depois encontrou-o no hospital, vítima de um brar o reencontro com Aline, que evitou o
acidente doméstico em que caiu da escada devido desaparecimento de seu arquivo. Também
pressão baixa. Ele faleceu na semana seguinte ao esperamos que ela ganhe dimensões pú-
encontro com Aline que junto a irmã dele fica- blicas e convide outros moradores a dar
ram responsáveis pelo acervo fotográfico. continuidade à constelação de imagens,
histórias e memórias afetivas e sociais da
Convidado a analisar as fotografias, Alexandre fi- comunidade da Providência.8
cou fascinado com o achado e tentou localizar os
retratados, ver se eles tinham as fotografias de- Na mostra, além dos monóculos espalhados jun-
les que Tião guardava. A instalação na exposição tos as demais obras, há uma parede dedicada ao
é fruto da parceria dele com Aline Mendes e as projeto especificamente em que há ampliações
pessoas encontradas que estabeleceram algumas das fotos de Tião, negativos e monóculos interli-
relações entre as fotos, deram também suas ima- gados por linhas curvas que formam uma cons-
gens afetivas de Tião e puderam ter finalmente telação.
imagens que haviam sido encomendadas ao fo-
tógrafo e que não foram entregues. A exposição tem essa configuração rizomática,
rizoma de individualidades, não há uma obra
Este projeto é vivo, ainda está em progresso no exemplar central na maneira em que o artista e
sentido de que ainda existem muitos nós desfei- as curadoras atuaram. É muito interessante que
tos, imagens e pessoas perdidas. E também por os projetos mais novos e os antigos se misturam
ser carregado pelos retratados ou descendentes de forma tão orgânica que parecem uma obra
deles que continuam a se mover nos fluxos do só num primeiro olhar, acontecem muitos en-
tempo. Segundo a curadora Janaina Melo: contros conceituais entre as obras. A obra mais
antiga é Nazaré do Mocajuba (2005) e se espa-
Já que o ponto de partida para a procura de lha pelo interior da sala da exposição. A primeira
Tião havia sido o museu, talvez o próprio visita a pequena vila do mesmo nome do projeto,
museu pudesse contribuir para que essas distante 500 km de Belém, foi em 1990, mas só
imagens estivessem novamente em movi- em 2004 que se começou o projeto artístico em
mento, operando relações não apenas com si quando uma mas moradoras pediu ao artista
o passado, mas também com o presente e para tirar uma foto 3X4 sua.
o futuro da comunidade. Poderíamos nos
lançar inicialmente a um processo de cata-
logação e organização das fotos de acordo
com princípios arquivísticos. Contudo, o
arquivo não havia chegado ao museu sem
suas histórias e, por isso, era importante
proceder a uma atenta investigação delas.

A constelação de Tião proposta por Ale-


xandre Sequeira é uma oportunidade não Vista de parte de Constelação de Tião (2016).

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Suzano, 2005, da série Nazaré Vista de obras da série Nazaré do Mocajuba na exposição Meu mundo teu.
do Mocajuba, fotografia digital,
Alexandre Sequeira.

Logo em seguida aparecerem muitos pedidos radores já que a maioria destes tecidos já tinham
para retratos individuais ou de festividades ao muitos anos de uso.
artista que decidiu se mudar por um ano para
a vila na condição de retratista com uma Bolsa Sobre esses tecidos, Alexandre imprimiu retratos
de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divul- dos seus donos em tamanho real e expôs primei-
gação Artística da Fundação Cultural do Estado ramente pelas casas dos moradores e na vila, al-
do Pará que permitia que o artista não precisasse gumas dessas obras estão na exposição. Essa sé-
cobrar dinheiro para os moradores, uma vez que rie circulou por muitas outras cidades como São
quase não havia circulação de dinheiro na vila por Paulo, Boa Vista, Montevidéu, Londres, Manaus,
seus moradores viverem do que plantam e pescam Porto Alegre, Rio de Janeiro, Nova York e também
na região. em Belém, na ocasião da última foram conquis-
tados 2 ônibus para levar quase todos moradores
Nesse meio tempo, houve um estreitamento de la- para ver a exposição. Esses tecidos são peças úni-
ços constituindo uma “geografia humana” como cas e nunca foram vendidos, na ocasião da pre-
o artista menciona9. Era um período em que a sente exposição, o artista num ato de generosida-
luz elétrica estava chegando a vila, um momento de doou eles para ficar aos cuidados do acervo do
chave para aquela população e Alexandre ajudou MAR. O que o artista vende são os registros desse
a transforma-lo em imagens, além de restaurar projeto (como a foto abaixo), o dinheiro destas
outras fotos antigas dos moradores, garantindo a vende e de todas as exposições com peças desta
permanência de outras memórias. obra é dividido entre ele e a vila. Ele dá o depoi-
mento sobre esse projeto:
Fazendo esses serviços, Alexandre frequentava as
casas dos moradores com frequência, e as cor- O estreitamento das relações a partir do
tinas usadas como portas, os lençóis e as redes jogo fotógrafo/fotografado revelou outras
logo lhe fascinaram por sua proximidade com camadas de significação contidas na in-
seus donos e ele lhes propôs uma troca: estes ob- timidade da casa de meus protagonistas.
jetos por iguais novos como era desejo dos mo- Sabia que não era um estrangeiro invadin-

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do um universo particular com uma má-


quina fotográfica. Gozei ao longo dos anos
do convívio numa intimidade de quem foi
acolhido pelo lugar. Conversa regada a café
plantado, moído e torrado no lugar. Pre-
senciei a relação do abrigado com seu abri-
go; identifiquei lentamente o valor afetivo
de cada objeto.10

Num contexto em que políticas governamentais


e da iniciativa privada sucateiam cada vez mais
as condições de vidas das pessoas com menos
acesso ao capital, ir ao encontro desses indivídu-
os, estabelecer laços de convívio e colaboração e
ajuda-las a melhorarem as imagens de si, dan-
do-lhes poder sobre elas, são atos muito notáveis
que não se restringem apenas a Alexandre Se-
queira, mas todos os envolvidos nesta exposição
Projeto de armadilha para discos voadores, 2010. Desenho de
e nestas obras. Aqui as hierarquias e dicotomias Rafael Oliveira
do mundo capitalista perdem a vez para dar lu-
gar a maneiras mais sensíveis de se estar junto e
de se criar junto.

Armadilha para discos voadores, fotografia, 2010, Alexandre Sequeira.

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Pedro Ambrosoli é graduando em História da 4 Página da exposição: http://www.


Arte pela UFRJ e artista interdisciplinar. Se in- museudeartedorio.org.br/pt-br/exposicoes/
teressa em pesquisar ciências sem nomes que se atuais?exp=4267
movem através no tempo como anunciava Aby 5 Citação do texto curatorial presente na página
Warburg (1866-1929) construídas coletivamente. da exposição, link na nota acima.
6 Tese Entre Lapinha da Serra e o Mata Capim:
pedroambrosoli@gmail.com fotografias e relações de trocas simbólicas.
Disponível em: http://www.bibliotecadigital.
ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS-
Notas
8CMMP3/disserta__o_alexandre_sequeira___
entre_lapinha_da_serra_e_o_.pdf?sequence=1
1 Presente no livro: BOURRIAUD, Nicolas. Estética 7 Tradução minha de: SMITH, Terry. Thinking
Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Contemporary Curating. New York: Independent
2 Texto de Alexandre Sequeira sobre a obra Curators International, p.137.
Meu mundo teu, disponível em http://www. 8 Trecho disponível em: http://www.
museudeartedorio.org.br/sites/default/files/ museudeartedorio.org.br/sites/default/files/
mar_livreto_as_meumundo.pdf mar_livreto_as_tiao.pdf
3 Trechos de: BASBAUM, Ricardo. O artista como 9 http://www.museudeartedorio.org.br/sites/
curador. In: Crítica de Arte no Brasil: temáticas default/files/mar_livreto_as_nazare.pdf
contemporâneas/ organizadora: Glória Ferreira 10 Op.cit.
– Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

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ENSAIO

PIXO E ARTE: LINGUAGEM, AÇÃO E NOVAS INSERÇÕES


Bárbara de Andrade

Tendo por base os trabalhos de Djan Ivson e Márcio Murari, o presente ensaio buscará trazer para
discussão os desafios da inserção do Pixo e suas linguagens dentro do circuito artístico, levando em
consideração as reflexões levantadas por Arthur Danto e Hans Belting acerca do fim da arte e da
História da Arte.

Após as reflexões levantadas por Arthur Danto e Evidente que a expansão do conceito Arte foi-se
Hans Belting em seus respectivos textos sobre o transformando paulatinamente durante sua pró-
fim da arte, temos que a arte contemporânea, de pria constituição narrativa, de modo que hoje o
um modo geral, trouxe diversas problemáticas e conceito fundamentalmente ocidental passa a ser
tensões para o universo da arte; mesmo que o pri- tensionado por produções não-ocidentais3 e, para
meiro tenha focado suas análises sobre o próprio além disso, abrem portas para noções muito mais
objeto de arte a partir da produção da contempo- amplas como a da própria visualidade. Mas de que
raneidade e o segundo tenha estudado com mais modo, este conceito ocidental chamado Arte cho-
profundidade e própria noção de História da Arte ca-se com sua própria produção no Ocidente, uma
frente a essas produções, ambas as análises per- vez que visualidades específicas produzidas em
mitiram perceber que no tempo contemporâneo, grupos marginalizados do circuito hegemônico
o valor artístico não mais pertence à caracterís- artístico – principalmente encarnado nas institui-
ticas intrínsecas ao objeto – como a harmonia, a ções do museu e da galeria de arte – podem trazer
beleza ou mesmo qualquer outra qualidade que se novas problemáticas para esta ideia tantas vezes
possa dar – e sim na própria ideia que está justa- pretensamente universal? Trazemos aqui a pro-
posta à materialidade.1 Deste modo, Danto aponta blemática do Pixo4: a pichação - ou “Pixo”, como
para a possibilidade de que na Arte Contemporâ- seus autores e atores preferem grafar a palavra -
nea, “no que se refere às aparências, tudo poderia são manifestações artísticas e sociais urbanas nas
ser uma obra de arte” e que neste sentido, para se quais a juventude, geralmente periférica, espalham
descobrir a existência de um valor de arte deve-se seus nomes pelos muros da cidade usando-se de
então, diante de um objeto – material ou não, visu- uma caligrafia e um sistema de normas internas
al ou não – “voltar-se da aparência do sentido para específico. No Rio de Janeiro, essa prática recebe
o pensamento.” (DANTO, 2006, p. 16).2 Além dis- o nome de “Xarpi” pelos seus praticantes. Deste
so, percebemos que não é a produção que está em modo, nos perguntamos como a visualidade – ou
crise ou em vias de acabar, mas detectamos o fim a ação performática, como veremos – do Pixo ou
da narrativa de uma História da Arte que já não Xarpi desafia as categorias dadas historicamente
dá conta de abarcar a infinidade de possibilidades ao objeto de arte, se consideradas como tal? Este
que os novos objetos suscitam, ou seja, “o fim de pequeno texto de cunho ensaístico tentará depa-
uma história da arte é o fim de uma narrativa: ou rar-se com essas questões tendo como referência o
porque a narrativa se transformou ou porque não trabalho de dois artistas contemporâneos que tra-
há mais nada a narrar no sentido entendido até balham o Pixo dentro do circuito artístico. São eles
então.” (BELTING, 2012, p. 46). Djan Ivson, o Cripta, e Márcio Murari, o Bogus.

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Djan Ivson, conhecido como Cripta Djan5 é pi- A atuação desses dois artistas são exemplo de
xador, artista e ativista. Seus trabalhos ficaram como o circuito artístico, ou artworld nas pala-
bastante conhecidos a partir de suas atuações vras de Danto, tem recebido e absorvido a lingua-
no Centro Universitário Belas Artes, em 2008, gem da pixação. Isso nos leva a pensar questões
quando ele e um grupo de pixadores foram con- do próprio circuito. A primeira delas se refere ao
vidados por um dos alunos a fazerem uma in- meio de circulação: podemos ver que essas ações
tervenção nas obras expostas como trabalho de se deram em eventos de arte e bienais; entretan-
conclusão de curso; na 28ª Bienal de São Paulo, to, se pensarmos o Pixo de modo mais amplo, sua
mais conhecida como Bienal do Vazio, na qual presença está muito além dos muros institucio-
Djan e seus colegas de ação deixaram suas mar- nais – na verdade, nos muros, se assim podemos
cas onde naquele ano estaria vazio por proble- dizer6 -, sua escrita-imagem acontece de forma
mas financeiros do evento; e na Bienal de Berlim, livre, autônoma e efêmera na rua, esse espaço
evento no qual também houve conflitos pela ação cujas regras se dão na própria dinâmica social.
realizada nas paredes de um patrimônio históri- Deste modo, levanta questões sobre o espaço
co. Também foram convidados a atuar na Fun- da cidade, as fronteiras entre público e privado,
dação Cartier, em 2009. Recentemente, o artista centro e periferia e a organização urbana que
pode mostrar sua trajetória dentro do mundo também é organização social. Em segundo lugar,
da pixação na sua exposição individual no Es- olhamos para essa escrita e percebemos que ela
paço Humanar, em São Paulo, denominada Em é também imagem, símbolo: apesar de não ser
nome do Pixo. Já Márcio Murari é pixador, artista compreendido pelo conjunto amplo da socieda-
e estudante de Teatro da Universidade Federal de, a marca de cada pixador é algo bastante va-
de Minas Gerais (UFMG), além de ter trabalhos lorizado entre os praticantes, de modo que cada
no cinema e no teatro. Recentemente, realizou a novo integrante do movimento busca inovar na
oficina Leitura e Escrita Urbana no XX Encon- sua assinatura, que muitas vezes tornam-se tão
tro Nacional de Estudantes de Artes (ENEARTE), abstratas que pairam entre o texto e o símbolo
em Brasília – DF, na qual explorava a linguagem pictórico. Assim, existe uma preocupação esté-
da pixação, sua estética e diálogos com a socie- tica na marca do pixo, uma preocupação com a
dade. No mesmo evento, também realizou uma visualidade e o modo pelo qual vai ser visto e lido
performance colaborativa chamada Identidade pelos seus pares. Segundo o estudioso da área de
sobre Identidade, na qual as pessoas que estavam Antropologia e pesquisas visuais urbanas Ale-
presentes puderam colocar suas próprias mar- xandre Barbosa Pereira, “a sua escrita particular
cas livremente naquele espaço, suas identidades, está profundamente associada ao traçado artísti-
vivências e visualidades próprias; o artista, por co” (PEREIRA, 2016, p. 84).
sua vez, intervém marcando o nome com o qual
é conhecido no meio da pixação, Bogus, e vestin- Ora, e se a marca do Pixo não comunica-se com
do uma roupa específica branca, também recebe o resto da sociedade, sendo muitas vezes repu-
marcas de tinta spray. Suas pesquisas giram ain- diado7, somos levados a pensar os motivos pelos
da em torno das questões do corpo pixador en- quais sua presença no meio urbano é tão discri-
quanto aquele que escreve, pixa e se movimenta. minada: se é pela incomunicabilidade, nos per-
guntamos sobre quantas obras de arte contem-
porânea também não o são diante de um público

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que espera ainda uma arte bela, mimética, figu- posteriori, circunscrever um fenômeno comple-
rativa e narrativa; se pela própria intervenção na xo dentro de um conceito com fronteiras mais ou
parede, os próprios pixadores – como é o caso menos estabelecidas, ainda que em plena ressig-
de Djan – tem plena consciência do incômodo nificação. Podemos tomar as palavras de Georges
que ela causa, mas salientam por outro lado seu Didi-Huberman como norte para a discussão das
caráter temporário e longe de inviabilizar o uso limitações da categoria de Arte:
do espaço que foi pixado. O Pixo é, por essên-
cia, contestador e delinquente, mas ao mesmo Em suma, o dito ‘conhecimento específico
tempo, carrega em si um ato poético, podendo da arte’ simplesmente acabou por impor
deste modo transitar entre a criminalidade e a a seu objeto sua própria forma especí-
arte, sendo concomitantemente objeto de arte e fica de discurso, com o risco de inventar
contra-artístico. E se, assim sendo, o Pixo é arte, fronteiras artificiais para o seu objeto –
onde está seu ato poético? Além da preocupação objeto despojado do seu próprio desdo-
com o dado visual, o valor da pixação, entre seus bramento ou transbordamento específico.
atores, acontece também na própria ação, na (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 11/12. Grifos
performance: é valoroso não só deixar a marca, do autor).
mas colocá-la o mais em evidência possível, su-
bir e escalar prédios de avenidas movimentadas, Sobre a colocação do Pixo no estatuto de Arte e
muitas vezes correndo altos riscos, tornando-se suas questões, Djan Ivson esclarece:
assim ato político também. É neste ponto que
Murari se apropria desta linguagem e a coloca Ninguém nunca imaginou que um dia a
em discussão, questionando a própria pixação e pixação teria o reconhecimento artístico
suas categorias constituintes. Segundo Barbosa e politico, nunca tivemos essa pretensão,
Pereira, o pixo “é a assinatura de uma perfor- mas agora que essa inversão de valores
mance. Uma performance de risco e ousadia.” está acontecendo, acho que se alguém tem
(PEREIRA, 2016, p. 85). que representar a pixação seja onde for,
tem que ser aqueles que sempre a repre-
Assim, percebemos a complexidade que o mo- sentaram no movimento de verdade, aque-
vimento da pixação implica, sua existência que les que sempre a fizeram de coração, que
circula e levanta diversas questões, não só no enfrentaram o preconceito da família, da
resultado estético-visual, mas no processo; na sociedade, a repressão da policia e mes-
cidade e dentro do mundo da arte; na própria mo assim nunca desistiram de fazer o que
intervenção que pulsa e paira entre o crime e realmente gostam e acreditam.” (IVSON
o reconhecimento artístico. O Pixo é pixo, é um apud OLIVEIRA. MARQUES, 2015, p. 134).
não-lugar com suas próprias regras e lógica e,
deste modo, seu deslocamento para o artworld Somos levados a considerar então que existem
inevitavelmente trará tensões, conflitos, pro- dois modos pelos quais a pixação caminha: de
blemáticas e questionamentos, para si e para o um lado, sua atuação nas ruas, que acontece de
circuito hegemônico da Arte Ocidental. Longe forma autônoma e marginal, desafiando o con-
de traçar polos e lugares preestabelecidos, ver e trole do poder público e social sobre a estética
pensar a Pixação como Arte é dar-lhe um valor a e a ocupação da cidade; do outro, sua inserção

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na instituição artística, levando muitos de seus Bárbara de Andrade é licenciada em História


pixadores a mostrarem suas identidades publica- pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo
mente e a colocarem suas produções visuais na (Unisal) e desenvolveu pesquisas no Programa
categoria de produções artísticas. E é aí que fica Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
o desafio de deparar a ação e a estética urbana (PIBID). Atualmente cursa História da Arte na
com as fronteiras institucionais, cujos conflitos Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
muitas vezes apontam para a própria impossi-
bilidade da Arte em abarcar formas expressivas
Notas
muito mais complexas. Do lado institucional, po-
rém, é importante trazer à tona essas mesmas
1 Ainda que, materialidade, forma e ideia sejam
expressões que acontecem independente do re-
categorias interdependentes. Podemos encontrar
conhecimento enquanto objeto artístico: trazer
uma discussão mais aprofundada sobre forma e
o Pixo para as discussões nesse sentido invocam
significado no texto Significado nas Artes Visu-
a lembrança de que muitas vezes, na constru-
ais, de Erwin Panofsky.
ção narrativa da História da Arte, artistas que
2 Demarcamos que nessa discussão sobre a apa-
tensionaram e romperam com as normas tra-
rência e a essência do objeto de arte, o autor toma
dicionais foram, posteriormente enquadrados
como referência a Brillo Box, famoso trabalho de
como legítimos representantes de uma certa
Andy Warhol.
tradição artística; com isso queremos dizer que
3 Uma discussão bastante rica sobre a produção
esquecemo-nos do caráter contestador e inova-
não-ocidental e a ocidental sobre arte encontra-se
dor da arte e de que sua absorção institucional
em A Rede de Vogel: Armadilhas como Obra de
– principalmente sua inserção na narrativa fi-
Arte e Obras de Arte como Armadilhas, de Alfred
nal - e sua valoração no olhar enquanto objeto
Gell.
de arte muitas vezes coloca-se posteriormen-
4 No presente texto usaremos a grafia com “X”,
te à sua elaboração, ainda que não descarta-
para a palavra e suas derivadas.
mos com isso uma preocupação com a visuali-
5 Djan Ivson é o nome de batismo, enquanto Crip-
dade na gênese do objeto pensada pelo artista.
ta vem de sua vivência nas ruas, sendo o nome do
grupo a que pertence.
Fica, deste modo, o desafio e a necessidade de olhar
6 Além de janelas, paredes, prédios ou qualquer
para essas novas inserções no mundo da arte, aten-
outro espaço urbano que chame a atenção dos
tando-nos para o cuidado com o não esvaziamen-
praticantes.
to dessas expressões quando postas em contextos
7 Na Lei de Crimes Ambientais Nº. 9.605 de 12 de
outros. No fenômeno do Pixo, percebemos que vi-
fevereiro de 1998, grafite e pixação e são tratados
sualidade e performance andam juntas, constituem
igualmente e configuram crime ambiental e con-
uma a outra, de modo que a apropriação de suas
tra o ordenamento urbano e o patrimônio cultu-
linguagens específicas não devem jamais perder de
ral. Entretanto, a Lei Nº 12.408 de 25 de maio de
vista sua verdade última, sua gênese e motivações
2011 descriminaliza o grafite desde que ele seja
primeiras e seus processos específicos que transfor-
realizado com permissão, tratando-o como ma-
mam-se no próprio cotidiano, de modo que conti-
nifestação artística. Além disso, essa lei passa a
nuem a desafiar e colocar em questão, em pensa-
regulamentar a venda de tintas em aerosol, proi-
mento e em querela as categorias que atravessam.
bindo-a para menores de 18 anos. Quanto à pixa-

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ção, algumas medidas do poder público tentam JANKOVSKI, Andy. A pixação não é arte. E
enquadrar pixadores em processos de formação não é para ser. Desacato, Florianópolis, [S. d.].
de quadrilha a fim de enrijecer a pena sobre eles, Disponível em: <http://desacato.info/a-pixacao-
nao-e-arte-e-nao-e-para-ser/>. Acesso em: 27
ou ainda, muitas vezes os próprios policiais agem jan. 2017.
punindo os pixadores por conta própria por meio
de agressões físicas e verbais. MÁRCIO Murari. Disponível em: <http://
  murarisubmundo.tumblr.com/>. Acesso em: 13
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CRIPTA Djan apresenta sua primeira exposição criminalização e capitalização no universo da
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Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
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2001.

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Artigo

“A gente produz obras que não são


nossas”: aspectos da autenticidade na arte
contemporânea
Camila Medina

A partir da observação sobre a história de disputas constituintes da autonomia da arte enquanto


campo, este artigo analisa o processo de visibilidade do coletivo carioca Filé de Peixe como artístico
e de percepção de suas ações coletivas como práticas artísticas ao longo de sua trajetória. Portanto,
como o coletivo ocupa a autoridade própria de um artista sobre a sua obra ao passo que também
procura descontruir esta imagem. Desse modo, é visado compreender as transformações em
negociação sobre convenções artísticas, em especial sobre autenticidade e autoria na obra de arte.

Coletivos artísticos articulam diferentes “modos Meu interesse por este coletivo em particular ad-
de fazer” (BOURDIEU, 1989) artísticos. Entretan- veio da pergunta sobre como obras de arte em
to, ao passo que se propõem a questionar deter- suporte digital – e que, assim, carregam ineren-
minadas convenções (BECKER, 1977, 1982), bus- temente a potencialidade da reprodutibilidade
cam o reconhecimento de sua prática enquanto técnica (BENJAMIN, 1994) - articulam autorida-
artística e gozam de determinado aparato legi- de artística. Do mesmo modo, como a manipu-
timador ao ocupar a posição de artistas dentro lação da colagem, da cópia criativa e da “recon-
do que chama Rancière (2009) de regime de li- textualização” (BUSKIRK, 2003) de obras de arte
berdade. Desse modo, a promoção de diferentes negocia um valor de qualidade estética com os
táticas de produção artística denota não apenas a espaços de legitimação da arte.
disputa por diferentes atribuições de valor a con-
venções estabelecidas dentro do campo das artes. De acordo com o que é declarado em seu sítio
Este agenciamento realizado por coletivos artísti- eletrônico, o coletivo Filé de Peixe realiza ações
cos demonstra, sobretudo, como estes grupos se coletivas sobre a economia política da arte, inves-
identificam à luta de discursos simbólicos sobre tigando os limites de determinadas noções como
os “modos de fazer” (BOURDIEU, 1989) consti- objeto e produto, colecionismo e consumismo.
tuinte da história da autonomia da arte. Portanto, é um coletivo que tem como objetivo
articular criticamente nos meios de produção e
A fim de uma análise de significado, realizei um circulação da arte. Contudo, no começo de sua
recorte sobre o coletivo artístico carioca Filé de trajetória, o discurso em torno de suas ações ti-
Peixe. Averiguo neste texto a relação do grupo nha a qualidade de evento e os participantes se
com os processos de delimitação, consolidação e compreendiam como agitadores e produtores
legitimação da autenticidade e da autoria de suas culturais. Ao se conhecerem no projeto Geringon-
ações. Portanto, como o coletivo ocupa a autorida- ça, promovido pelo SESC (Serviço Social de Co-
de própria de um artista sobre a sua obra ao passo mércio), unidade Tijuca, os fundadores do grupo
que também procura descontruir esta imagem. queriam se desvincular da programação da casa,

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realizando um evento que dialogasse e integrasse deter esta autoridade sobre o objeto tem tomado
as diferentes linguagens artísticas desenvolvidas extrema relevância no circuito de arte contempo-
no subúrbio da cidade. Sem os procedimentos rânea (BUSKIRK, 2003). Graças a isso, o primei-
burocráticos próprios da instituição, eles foram ro momento do artigo é demarcado pelo estudo
à rua com uma proposta de produção colabora- sobre a constituição dos valores de autenticidade
tiva, horizontal e espontânea. Atualmente, eles e de autoria no decorrer do que atualmente en-
possuem uma sede administrativa, inaugurada tendemos como o campo das artes. Em um se-
em 2012, no bairro de Catumbi, Rio de Janeiro. gundo momento eu analisarei as negociações que
O grupo agora conta com três participantes, dois o coletivo artístico Filé de Peixe realiza sobre esta
deles o casal Fernanda Antoun e Alexandre Topi- história, disputando outros sentidos sobre a posi-
ni (únicos remanescentes do grupo formado em ção do artista dentro do circuito de artes quando
2006) e Fabrício Cavalcanti (que está no grupo à realização de seus projetos no meio.
desde 2011).
Ser compreendido enquanto autor não determi-
Norteada pelos princípios da pesquisa qualitati- na apenas que, finalmente, este sujeito produtor
va, o coletivo artístico Filé de Peixe foi estudado de um determinado trabalho pode conclamar a
através de entrevistas e de observação partici- autoria; ou que pode reivindicar direitos autorais
pante. Dentro do possível, foi proposto o convívio sobre a obra. Ter o controle sobre os modos de
com o grupo, a fim de que eu pudesse compre- manipulação e utilização de determinado objeto
ender mais significativamente como se organi- não qualifica determinado sujeito como autor,
zam. Desse modo, fiz uma análise de discurso mas como proprietário. Diferentes profissões
comparativa, enfoque necessário para compre- e práticas culturais cambiam os direitos de uso
ender como o grupo passou a se entender como de determinado trabalho, e quem passa a ter a
artístico; da mesma forma, como seus membros responsabilidade sobre as repercussões daquela
passaram a se ver como artistas no cenário das obra não é necessariamente seu criador.
artes contemporâneas.
A atribuição de autoria demarca determinadas
É preciso observar, antes de tudo, o “lugar” de posturas e atitudes sobre os usos daquele objeto
fala que me posiciono através da bibliografia exis- produzido. Não apenas a determinação do autor,
tente sobre o tema. A partir das considerações mas como se desenvolve essa atribuição. Estou
de Nathalie Heinich (2005) a respeito do regime falando de um processo de transfiguração do ob-
de singularidade, em diálogo com a pesquisa de jeto, em que ele é cambiado para outras ordens
Rancière (2009) sobre o regime de artes vigente, do discurso e da organização social. Ser um artis-
averiguo que o valor da assinatura é exacerbado ta significa determinados poderes sobre a produ-
dentro da linguagem artística contemporânea. ção artística, assim como implica o atendimento
Do mesmo modo, uma vez que o objeto de arte a determinadas expectativas sociais.
vem a público, observo a proeminência da au-
toridade de quem tem o direito a controlar esta (...) o nome do autor funciona para carac-
autenticidade transportada com a assinatura, terizar um certo modo de ser do discurso:
seja através do colecionador ou do curador. Não para um discurso, o fato de haver um nome
obstante, o jogo sobre quem deve e quem pode do autor, o fato de que se possa dizer “isso

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foi escrito por tal pessoa”, ou “tal pessoa é mina, articula o universo dos discursos;
o autor disso”, indica que esse discurso não ela não se exerce uniformemente e da mes-
é uma palavra cotidiana, indiferente, uma ma maneira sobre todos os discursos, em
palavra que se afasta, que flutua e passa, todas as épocas e em todas as formas de
uma palavra imediatamente consumível, civilização; ela não é definida pela atribui-
mas que se trata de uma palavra que deve ção espontânea de um discurso ao seu pro-
ser recebida de uma certa maneira e que dutor, mas por uma série de operações es-
deve, em uma dada cultura, receber um pecíficas e complexas; ela não remete pura
certo status. (FOUCAULT, 2001, p. 273- e simplesmente a um indivíduo real, ela
274) pode dar lugar simultaneamente a vários
egos, a várias posições-sujeitos que classes
Assim, é demarcada uma cisão sobre as práticas diferentes de indivíduos podem vir a ocu-
entorno do objeto de arte. Quando antes ele po- par. (FOUCAULT, 2001, p. 279-280)
deria ser apropriado e desgastado como qualquer
outro item da vida cotidiana, ele transforma-se A posição do artista não tem um significado rí-
por ser resultado de um trabalho intelectual. Por gido, contudo. O imaginário constituído em tor-
requerer um conhecimento específico encontra- no desta função social está atrelado a diferentes
do exclusivamente naquele artista, a obra de arte valores que são negociados com o decorrer do
deve estar envolvida em outra experiência social, tempo. A fim de que seja possível a compreensão
que demanda um tempo específico de apreciação sobre a articulação de discursos vigente acerca
e um espaço considerado mais apropriado para desta figura, é preciso pontuar o desenvolvimen-
sua percepção. to de alguns valores, responsáveis pela consoli-
dação da autonomia do campo das artes. Assim,
Com isso, situo que a confirmação de uma auto- é preciso identificar alguns marcos simbólicos da
ria sobre a obra de arte não trata apenas de uma visibilidade do artista como autor, entre eles, a
passagem em que, finalmente, um objeto é atri- assinatura. A assinatura é o que considero como
buído ao seu dono. A compreensão da obra como a principal distinção realizada à constituição do
uma prática artística, fruto da realização de um que atualmente consideramos como ser artista.
agente que ocupa a posição social de artista tra- Os documentos que passam a identificar esta
ta da transfiguração de modos e códigos sobre a atribuição começam a aparecer na segunda me-
prática. Esta obra de arte precisa corresponder tade do século XV. Assim, o reconhecimento da
a determinadas expectativas e demandas de um autoria nos objetos de arte e da autoridade do
imaginário social coletivo constituído sobre a fi- produtor sobre seu trabalho.
gura do autor a fim de que seja enfim definida
como arte. Ser autor significa determinadas pre- Até então este ofício estava atrelado às “artes me-
missas, determinadas cisões e distinções sociais, cânicas” (HEINICH, 2008), cuja excelência se en-
hierarquizando “modos de ser” e “modos de fa- contrava na habilidade do artesão em reproduzir
zer” na sociedade. secularmente uma tradicional técnica de pintura
ou de escultura, assim como na sua capacidade
(...) a função autor está ligada ao sistema em manipular materiais caros e raros, como tin-
jurídico e institucional que contém, deter- turas em ouro ou em azul-ânil. Contudo, apesar

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de estar, em termos de direitos e deveres sociais, autenticidade e a autoria das obras de arte. Jac-
a par de ferreiros e padeiros, o imagier (ilustra- queline Lichtenstein (2013) constata que durante
dor designado a realizar as representações e ima- este período os estudiosos dos grandes mestres
gens sagradas) era tratado de modo “especial” da pintura e da escultura procuravam retratá-los
por seus clientes – entre os séculos XIII e XV, se-a partir de uma referência racional, científica e
ria como tratar com respeito e honrarias particu- matemática. Assim, os pesquisadores da época
lares (ibid.). Ser aquele que difunde representa- não raro omitiam o processo produtivo das obras
ções religiosas envolve este artesão em diferentes de arte ao comentarem sobre a qualidade destas.
considerações sociais. Identificado com as ima- Senão, seria requerido que fossem mencionados
gens sagradas e religiosas retratadas, o imagier o trabalho manual: o tratamento sobre a maté-
costumava ser elogiado por parecer que estava ria-prima, assim como os materiais utilizados
“iluminado” enquanto esculpia uma imagem ca- na confecção, o tempo disposto para realização
tólica, próximo espiritualmente do santo que re- do projeto e etc. Todas estas etapas da produção
produzia em suas pinturas. da obra eram consideradas partes remanescen-
tes das “artes mecânicas”, e pouco diziam sobre
A assinatura do artista irá aparecer, então, como o trabalho intelectual empreendido pelo artista.
analisa Svetlana Alpers (2010), como o sintoma
da dessacralização e da desfuncionalização da Por seus aspectos manuais, característicos
arte. A imagem representada pelo artesão vai se de uma atividade artesanal, o ofício de pin-
desvinculando de sua capacidade e habilidade de tor e o de escultor são vistos como perten-
promover uma experiência religiosa e litigiosa. centes às categorias dos ofícios considera-
Quando antes o imagier era atravessado por uma dos não intelectuais – àquilo que a Idade
luz divina para representar os valores e a sabe- Média e ainda o começo da época moderna
doria religiosa, agora ele apenas aplica o tema chamavam de “artes mecânicas”. Portanto,
religioso como meio de investigar códigos artísti- para fugir dessa assimilação, os discursos
cos. O sagrado transfigura-se em tema, e não tem sobre os méritos do artista, do século XV
mais a função ritual. A representação conquista ao XVIII, insistem nos aspectos puramen-
determinada autonomia, pois demanda que seja te especulativos desse trabalho, em vez de
apreciada e qualificada a partir de seus próprios detalhar a execução material da obra ou de
códigos e técnicas. A obra de arte, portanto, pre- descrever a vida no ateliê: se não transfor-
cisa um tratamento social diferente, em que deve mam o pintor em fidalgo, como o faz Piles
ser contemplada a partir de outros critérios e a em relação a Rubens, eles ressaltam a im-
transmitir outros valores que não os religiosos. portância da matemática na concepção da
obra, ou o papel da inspiração poética na
Este processo que demarca o ofício nos séculos invenção da história – como faz Restout.
XV e XVI também qualifica o trabalho do arte- (LICHTENSTEIN, 2013, p. 10)
são como intelectual, e procura retirá-lo do ni-
cho de “artes mecânicas” para as “artes liberais”. O ofício dos até então ilustradores imagiers
É realizada uma diferenciação em que a prática apropria-se de técnicas e de saberes de campos
artística se apropria de aspectos particulares do conhecimento que eram mais valorizados no
às “artes liberais”, na tentativa de estabelecer a momento, e vai deslocando o sujeito reprodutor

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de imagens para um autor que realiza um pro- não geraram um fortalecimento do poder
jeto intelectual através das obras de arte. Con- dos artistas em suas relações com os clien-
comitantemente, em seus trabalhos é possível a tes. O tipo de mecenato em que o mecenas-
identificação de estilos, de modos particulares e comprador incentivava o profissional a
próprios de expressão, desenvolvidos por cada identificar-se com ele e, em consequência,
artista em uma carreira profissional. a servi-lo socialmente desenvolveu-se de
maneira típica na Europa, paralelamente
Entretanto, a entrada do que é conhecido como o ao desenvolvimento de novas academias.
regime profissional do campo das artes (HEINI- Vasari, por exemplo, um dos fundadores
CH, 2005, 2008) não implica que o artista goza da academia de belas-artes de Florença,
de uma autonomia e de uma autoridade tal como concebeu o artista segundo o modelo do
é identificado atualmente. As expectativas e de- cortesão culto. A esposa e o ambiente do-
mandas que cercam esta posição social no ima- méstico, que haviam tido uma importância
ginário coletivo entendem que o artista deve ter tão decisiva na arte holandesa, não faziam
uma relação de cortesão culto com seu mecenas. parte desse esquema. (ALPERS, 2010, p.
Deve compreender sua posição hierarquicamente 269)
inferior àqueles que compõem a aristocracia – tal
como Norbert Elias (1995) identifica à realidade O que é de tão surpreendente no caso de Rem-
do jovem compositor Mozart no século XVIII – brandt – e que, mesmo alvo de repúdios em seu
mas também deve estar apto, em termos de mo- tempo, teve sua trajetória como referência inspi-
dos de comportamento e etiqueta, a frequentar radora ao artista moderno – é que ele nunca se
os círculos pessoais da sociedade de corte. interessou em se relacionar com a corte. A fim de
que não tivesse que moldar sua postura à etique-
A historiadora de arte Svetlana Alpers (2010) ta da sociedade de corte, ele se voltou à dinâmica
analisa o curioso caso de Rembrandt, que foi con- de ateliê com asseio, se dedicando mais fervoro-
sagrado somente à idade moderna como símbolo samente ao mercado de artes. Uma evidente de-
da individualidade na produção artística. Ela co- monstração desse isolamento está na recusa da
menta sobre como a profissionalização do ofício associação entre cliente e modelo. Quando era
não caminhou junto, necessariamente, com a comum que o mecenas estivesse retratado em
autonomia do campo. O imaginário em torno do alguma cena histórica ao encomendar a pintura,
artista (e a imagem que deveria corresponder à Rembrandt recorria aos seus próprios modelos,
sociedade) estava associado às relações que man- normalmente aprendizes, para protagonizarem.
tinha com a corte e a aristocracia. Seus modos e Além disso, boa parte do seu sucesso se deve ao
comportamentos sociais, assim como suas rela- casamento planejado para que, com uma heran-
ções pessoais em muito contava para os gostos ça, pudesse ter o capital financeiro necessário
de seu público. para iniciar seus negócios sem precisar residir (e
abdicar de certa privacidade) em cômodos reais.
Os ideais artísticos desses grupos [das as-
sociações profissionais de pintores do sé- A noção de autenticidade própria à época contri-
culo XVII] já foram muito estudados, mas buía à organização do mercado de artes corrente.
é preciso considerar que essas mudanças De acordo com a dinâmica de ateliê, o mestre ins-

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truía seus aprendizes a trabalharem a partir da da e de reconhecimento de sua obra. O Salão é o


técnica e estilos desenvolvidos por ele. Quando evento de máxima visibilidade e, caso a sua pin-
um grande mecenas investia em seu trabalho, era tura estivesse em exposição, certamente estava
o mestre o responsável pela concepção do pro- garantida a sua qualidade e o seu valor frente à
jeto, sendo comum que seus aprendizes partici- história da arte. A necessidade de exposição nes-
passem na produção fornecendo os suprimen- se circuito é evidenciada por preocupadas cartas
tos necessários, assim como que observassem e do pintor Renoir (MOURAUX & SAGOT-DUVAU-
aprendessem a reproduzir cada passo realizado ROUX, 1992) ao contar sobre muitos pintores que
pelo mestre na pintura. Neste período, o que tinham o talento e a capacidade de realizar obras
prevalecia quanto à formação de valor da obra de arte de acordo com os critérios acadêmicos,
de arte era o projeto concebido pelo mestre e o mas que se contentavam a vender por muito me-
modo como coordenava sua técnica de pintura e nos os seus quadros por não terem a confirma-
de escultura no ateliê entre seus aprendizes. Isto ção, o reconhecimento, a visibilidade dos Salões.
conferia ao seu trabalho autenticidade. A obra
realizada inteiramente pelo mestre e assinada A venda realizada no Salão ativava a segunda ca-
por ele eram de grande valor no mercado por ser deia de produção artística – estrutura esta que
raro e trato exclusivo para grandes investidores. se encontrava em uma posição hierárquica infe-
A partir deste projeto eram produzidas diversas rior. Graças ao comércio de um quadro, o pintor
réplicas que, para serem valorizadas, eram reto- mobilizava seu ateliê para a reprodução de deze-
cadas pelo mestre. Ainda era possível constatar nas de exemplares do mesmo. As réplicas eram
outras cópias, mas então consideradas meras produzidas por seus aprendizes e, assim, não
reproduções sem real valor e que não estavam garantiam a assinatura do mestre. Desse modo,
vinculadas ao ateliê. ao passo que a Academia oferecia a legitimida-
de do artista, seu circuito não oferecia, de fato,
Com esta profissionalização do ofício foram meios de subsídio - muito menos contemplava
se consolidando, além do mercado próprio à a demanda do comércio de arte. Assim, em ter-
dinâmica de ateliê, as grandes Academias de mos de sustentabilidade financeira, o artista se
Belas-Artes, que tiveram o seu auge, e a sua dedicava com mais afinco ao segundo patamar
decadência, no século XIX. A Academia centra- do mercado de artes, no qual o ambiente do ateliê
lizava o estabelecimento das convenções técni- era proeminente.
cas de criação assim como de apreciação esté-
tica. Seus principais espaços eram a Escola de A partir da visibilidade que o nome do artis-
Belas-Artes e os Salões. No processo de confor- ta ganhava com a exposição e venda no Salão,
mação de convenções, é estruturada uma hierar- o ateliê do artista se consolidava. Além das re-
quia de gêneros de expressão, valorizando, por produções, o artista passava a incrementar sua
exemplo, a pintura histórica face às pinturas de receita através de encomendas de pinturas pela
paisagem ou retratos. classe burguesa ascendente. Sejam retratos de
entes queridos ou de cenas familiares, como ca-
Estar nos Salões e ser convidado a apresentar os samentos e batizados, o nome do artista se po-
seus trabalhos à ocasião iria definir o valor do pularizava. Nesses casos, parte do mérito de sua
artista, que passa a ter melhores chances de ven- técnica compreendia em realizar o mais próximo

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possível da realidade, de ser fidedigno à imagem Outros aspectos necessários à consideração, mas
encomendada. que não possuem tanta importância quanto os
citados acima, estão relacionados à consolidação
Este sistema de criação artística, tanto da cadeia da classe burguesa e dos princípios da democra-
da prestigiada Academia quando da pragmática cia e do liberalismo econômico (MOURAUX &
replicadora, foram decaindo ao fim do século XIX. SAGOT-DUVAUROUX, 1992). Ascendendo a uma
Por um lado, as inovações técnicas apresentavam condição econômica mais favorável, esses atores
formas consideradas mais fidedignas de retrata- sociais logo passaram a frequentar os Salões,
ção da realidade, principal critério de qualidade chegando, como no ano de 1846, a uma satura-
acadêmica – estou pontuando o advento da lito- ção. Durante o evento, visitaram nada mais nada
grafia e da fotografia. Também eram considera- menos que um milhão e duzentas mil pessoas.
das mais econômicas, visto que a contratação de Atendendo aos diferentes estilos emergentes,
um fotógrafo era mais barata que a manutenção e aos preceitos do acesso à arte como forma de
dos serviços de um pintor retratista. De outro, o educação, é constatada a criação de museus de
crescimento sem precedentes de agentes dentro história natural, da etnologia, assim como de
do circuito de arte, tanto de artistas quanto de arte renascentista e de arte moderna. Muitos ar-
marchands, sobrecarregou a Academia e, por gumentam, contudo, sobre a entrada dos museus
fim, desmantelou seus critérios rígidos e restri- como meio de distinguir a “arte séria” e as feiras
tos de produção artística. de “arte exótica”, caracterizada por trabalhos de
ilusão ótica e realidade virtual, como os panora-
Ademais, justamente com o citado crescimento mas (ver GRAU, Oliver, 2007; CRARY, Jonathan,
da classe, a consolidação de ideais liberais e libe- 2014).
ralizantes entorno dos códigos de produção artís-
tica e da autonomia da arte derrubaram o prestí- Ao passo que a concepção de arte como seção
gio acadêmico. O movimento impressionista iria social que deve ser acessível e popular a fim de
consolidar o regime vocacional das artes (HEINI- uma educação elevada foi se fundamentando, o
CH, 2005, 2008), privilegiando noções como a conceito de trabalho individual e solitário ganha
unicidade e a originalidade. Uma das consequên- força. Centralizando a determinação dos critérios
cias dessa revolução estética trata da afirmação de produção artística ao próprio artista, único
de que o gênio é inato e não pode ser conforma- detentor e responsável pelo estilo artístico em-
do por uma educação acadêmica. Por ser uma pregado em sua obra, ele deve ser um autodidata.
característica extraordinária, tratada aqui como Longe das escolas de belas-artes, ele mesmo que
dádiva, o autor adquire um estatuto solitário e irá investigar a melhor forma de se expressar. A
superior aos demais componentes da produção qualidade do quadro não se encontra mais em
artística – o que denigre definitivamente a dinâ- atender às convenções acadêmicas nem mesmo
mica do ateliê. Este imaginário constituído elabo- na reprodução fidedigna da realidade: está na
ra o mito do gênio incompreendido, condenado originalidade de estilo descoberta pelo gênio au-
ao isolamento social e à penúria financeira (HEI- todidata.
NICH, 1996).
Procurando se diferenciar da fotografia, a arte se
sustenta em dois pilares: a impossibilidade de re-

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produção, que a distancia das “artes industriais”, gularidade de uma arte (seu caráter único
e a liberdade de expressão, que promove a singu- e insólito, sua capacidade de inovação em
laridade de produção artística – a distanciando relação aos cânones) não era senão uma
das “artes mecânicas”. Sem o referencial da Aca- eventualidade, um caso-limite, uma figura
demia, se abre grande espaço para a especulação de exceção destinada mais frequentemente
no mercado de artes. Através do marchand e do ao fracasso, ela se torna o que se chama em
comerciante de artes, é desenvolvido um discur- histórias das ciências um “paradigma”, um
so entorno da obra de arte que alimenta apostas esquema que define o sentido comum da
dos colecionadores. O preço é regulado, antes de normalidade – mesmo que sua realização
tudo, pela unicidade, tendo em vista que não há resulte, nos fatos, excepcional. (HEINICH,
qualquer possibilidade de reprodução daquela 2005, p. 138)
obra. Do mesmo modo, observo a constituição da
polaridade entre o genuíno (verdadeiro) e o falso Desse modo, o que basta à autenticidade do ob-
(falsificado). Tanto a fim de desvalorizar qual- jeto de arte é o reconhecimento por seu autor.
quer cópia possível da obra de arte que precisa Esta figura, contudo, precisa ser virtuosa quanto
ser assinada pelo artista, como para criticar um às práticas artísticas investigadas e só poderá ser
trabalho como derivativo em um regime cujos reconhecida como tal enquanto apresentar pro-
códigos artísticos precisam se renovar constan- cedimentos de produção fora da norma, inces-
temente. Outro fator de valorização é a inovação santemente. O valor da assinatura é exacerbado,
da obra dentro da história da arte, autentificada assim como a autoridade do artista na definição
pela trajetória do artista. dos critérios artísticos. É observado o processo de
abandono de referências extrínsecas à arte (her-
A entrada do século XX é pautada pela estrutura- deiro das premissas kantianas de arte pela arte),
ção do regime de artes vigente, o regime de sin- fruto do rompimento com os critérios acadêmi-
gularidade no campo das artes (HEINICH, 2005, cos. Torna-se integrante do processo de autono-
2008). mização do campo artístico as características de
ausência de modelo, rejeição a conceptualizações
O que aparece com a singularização do objetivas ou diretas sobre a obra e impossibilida-
estatuto, não é só a possibilidade de cor- de de utilidade.
relação entre grandeza e singularidade de
um procedimento artístico: essa possibili- Cette conception autonomisante abou-
dade já tinha sido encarnada por alguns tit à consacrer le primat de l’imaginaire
grandes nomes da Renascença – pensemos sur l’image et de la forme sur la fonction.
em Da Vinci ou Michelangelo – ou pelos (MOULIN, 1978, p. 248)1
gloriosos párias que foram, em seu tem-
po, Cellini ou Caravaggio. É sobretudo a Não só o movimento abstrato na pintura irá
necessidade de tal correlação: não há do- transformar os códigos linguísticos e os meios
ravante artista verdadeiramente grande pelos quais a arte se proclama autônoma. A par-
que não deva inventar um procedimento tir de uma arte ao acaso, uma arte do efêmero
fora da norma em sua obra e, se possível e do fugaz, no decorrer dos anos 1960 são ob-
também, em sua própria vida. Onde a sin- servadas por Raymonde Moulin as mudanças

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mais radicais. Conceitos como “evento”, “aconte- si, que perde a importância da materialidade e
cimento” e “happening” passam a fazer parte da técnica. Quanto ao ponto sobre a exclusividade,
constelação de proposições artísticas. Tudo isso acrescenta Moulin (1978) as obras de arte são
dentro de um gesto artístico para se desfazer da monopolizadas pelos marchands através de con-
arte, com um proclamado objetivo de destruir o trato – o que dificulta o acesso do público ao ob-
conceito de arte. jeto. Além disso, mesmo em suporte digital, as
obras são produzidas em uma tiragem limitada,
Nesse contexto, a autenticidade é reformulada sendo destruída qualquer possibilidade de re-
em dois pontos: sobre o estatuto do artista, que produção graças à destruição do original e, mais
passa a configurar em si a noção da unicidade, uma vez, à dificuldade de acesso ao produto.
e sobre a exclusividade (raridade) das tiragens
da obra. Ao artista cabe estabelecer os objetos The reading of any work will be influen-
transfigurados à apreciação estética, centralizan- ced by the context of its presentation. For
do nele o gesto artístico que é, enfim, marca da works that are not fixed as physical enti-
autenticidade e assinatura da obra de arte. En- ties, however, interpretation also shapes
quanto não se tem certeza sobre os códigos lin- how the work is constituted. There is a
guísticos do campo, tudo pode ser arte. subtle but important shift between the
impact of context on subsequent readings
Martha Buskirk (2003) assinala, entretanto, que and a process of interpretation that ope-
as transformações do ethos da experiência ar- rates in advance to shape the nature of
tística não se delimitam à concepção do termo the work so that it will conform to expec-
duchampiano “gesto artístico”. A autoridade ar- tations. As artists have exercised the au-
tística está em câmbio, cita a crítica de arte ao thority to delegate aspects of production
pontuar o estudo de caso sobre a declaração de or realization, the very possibility of such
Donald Judd (e, decorrentemente, de tantos ou- fragmentation necessitates constant rein-
tros artistas minimalistas, como Richard Serra) terpretation of the nature of artistic au-
que retira sua assinatura de projeto seu realizado thorship. (BUSKIRK, 2003, p. 56)2
e exibido sem seu conhecimento e consentimen-
to pelo colecionador detentor da obra. A questão Considero, enfim, o agenciamento do imaginá-
da autenticidade, então, articula sobre o genuíno rio (ou da imagem) acerca do artista, implican-
e o falso, e a não possibilidade de apreciação es- do outras funções para o ofício e outros modos
tética uma vez reconhecida a violação sobre os de produção artística, que o coletivo artístico em
direitos do autor. Desse modo, o controle sobre estudo apresenta. Com este panorama teórico
os meios de dispor e de contextualizar uma obra também procuro compreender a relação entre o
de arte adquire contornos de autoria, e não mais modo como este grupo se inseriu no campo das
circunscreve um ônus adjacente à cultura do co- artes, a imagem (visibilidade) construída entor-
lecionismo e à política de memória e preservação no do coletivo artístico e o espectro de demandas
da história da arte. e expectativas de sua produção artística dentro
do regime de artes vigente.
A relevância do discurso construído circunscre-
vendo o objeto cresce face ao objeto de arte em

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O coletivo Filé de Peixe realizava em suas primei- Apesar do coletivo não realizar mais propria-
ras edições eventos na esquina de seu bar favo- mente ocupações, ao integrarem alguma mostra
rito, no bairro de Tijuca, zona norte do Rio de ou feira de artes contemporâneas, eles são convi-
Janeiro. A organização desses eventos primava o dados como articuladores. Desse modo, o primei-
encontro de diferentes linguagens artísticas do ro aspecto que quero tratar, e que implica de for-
subúrbio, com o intento de reivindicar que não ma mais acentuada sobre as expectativas que o
era preciso “atravessar o Rebouças” e ir à zona meio artístico tem sobre o coletivo, é o modo co-
nobre da cidade para apresentar e desfrutar da laborativo de produção artística. Disso não quero
produção cultural carioca. O modo de produção dizer que, por ser um coletivo, necessariamente
dessas primeiras edições era mais espontâneo, sua produção se dá desse modo. Sua produção é
no sentido de que o convite para apresentação de colaborativa pois, mesmo que tenham em vista
trabalhos e experimentações em progresso era integrantes fixos, comprometidos oficialmente
aberto. Devido a um processo de identificação com suas ações, o coletivo só pôde realizá-las a
destes integrantes com o mundo das artes, eles partir da criação de uma rede, mesmo que mo-
passaram a conceber determinados conceitos so- mentânea, onde não há uma figura centralizado-
bre como deveria ser o evento – agora mesclado ra senão o local e a data em que o evento precisa
com nomenclaturas próprias do campo, como acontecer. Eles garantiram a sua visibilidade no
happening, acontecimento, performance. meio por conseguirem agenciar uma diversidade
material em uma única experiência artística mais
A organização passou a se enfocar na ocupação ou menos processual e participativa. A unicidade
de outros espaços da cidade, como o centro, mais do evento é promovida durante a realização des-
especificamente a Lapa, bairro considerado bo- te. Ela não se encontra previamente definida.
êmio. As ocupações deste momento do grupo já
estão completamente atravessadas por concei- O que encontro de previamente definido é a se-
tos artísticos e, então, é possível observar que leção de coletivos e artistas que costumavam
o coletivo já lida com determinadas convenções convidar em suas ocupações. E isto se deve à
do circuito de artes vigente. Percebo a profissio- necessidade de compromisso e à noção de res-
nalização de seus compromissos com as ações ponsabilidade sobre a realização do evento com-
planejadas e a demanda de uma dedicação e in- partilhada entre os participantes convidados. O
vestimento maior por parte de seus integrantes. coletivo queria que, de fato, todos participassem
Portanto, a inserção do coletivo no meio acon- e colaborassem com o sucesso da ação. E efetivi-
tece através de uma visibilidade enquanto agita- dade para eles é encontrada na projeção de um
dores, articuladores entre diferentes linguagens espaço de troca e de intercâmbio de trabalhos,
artísticas, sob o sucesso de verificarem um único que se apresentam simultaneamente mas em
momento-evento em que diferentes trabalhos ti- sintonia. É colaborativo pois o coletivo artístico,
vessem uma comunhão. Como espectador, seria por muito tempo, só se preocupou em promo-
possível perceber o processo criativo dos traba- ver um processo, em alimentar uma experiência
lhos apresentados e ter uma experiência artística criada pelo encontro de diferentes linguagens ar-
a partir do diálogo entre os processos criativos tísticas.
no mesmo espaço.

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Eles se consideram, como pude constatar du- Ademais, como eles apelidam: “Nós não temos
rante a entrevista, como articuladores – e esse nenhum trabalho que seja, de fato, nosso. A gen-
aspecto em muito influenciou a forma como se te produz obras que não são nossas” (Fabrício
inseriram no campo das artes e ganharam visi- Cavalcanti, entrevista concedida à autora, 2015).
bilidade. A interpretação que realizei durante a A obra do coletivo se situa intrinsecamente sobre
pesquisa de campo é que, graças à forma como o a manipulação e experimentação da obra de arte
coletivo conquistou visibilidade, o mundo das ar- como conteúdo, como informação, como refe-
tes espera que os integrantes do grupo sejam os rência. Os integrantes propõem outro regime de
articuladores de seus próprios projetos. Portan- compreensão sobre o autêntico a partir da trans-
to, que o próprio coletivo agencie a sua rede de figuração de uma obra de arte alheia sob outro
produção, de circulação e de divulgação de suas contexto. O que é argumentado é que, a partir
obras de arte. Ao produzirem obras de arte que de outro veículo de projeção, de outro meio de
não são objetos, mas que são eventos (aconteci- circulação e de disposição ao público, a obra de
mentos, performances), a expectativa entorno do arte se torna conteúdo, matéria-prima de outro
grupo é que eles mesmos proponham os meios trabalho.
de divulgação e de circulação. Afinal, eles se pro-
jetaram no meio desse modo. Desse modo, o conceito e as experimentações es-
téticas estão sob o modo em que é realizado um
Quando o regime de critérios artísticos está na trabalho. É evidenciado o potencial do processo,
capacidade do próprio artista em se renovar e é este a obra de arte, não o resultado compos-
constantemente, a autenticidade se encontra no to. Essa proposta corrente do coletivo artístico
próprio modo de produção que esta figura en- implica que a originalidade está na articulação,
contra. Eis onde vislumbro algumas problemá- mais uma vez, de outros artistas e processos cria-
ticas encontradas quanto à visibilidade do grupo tivos. A sua autenticidade está na promoção de
no meio – e os entraves descritos sobre as nego- um encontro: seja ele a partir de uma ocupação,
ciações com as instituições. Se o coletivo artís- seja ele a partir da disposição de vídeos de artista
tico é tido como uma organização horizontal de através de outro suporte, de outra circunstância.
produção colaborativa, o curador de uma mostra Esta característica problematiza os meios estabe-
não o convidaria para se submeter a um concei- lecidos pelos quais exposições, mostras, feiras e
to alheio, formulado por ele, para apresentar um salões de arte acontecem no Brasil, assim como
trabalho. Justamente porque o coletivo ganhou está na brecha das políticas institucionais nacio-
reconhecimento no meio através das ocupações nais. Afinal, o coletivo artístico não realiza, exata-
artísticas. A ocupação supõe, sobretudo, que as mente, produtos. Tampouco, apresentam resul-
propostas do coletivo não podem ser desvincu- tados concretos de um processo de articulação de
ladas de seu contexto, performadas segundo os diferentes linguagens artísticas. A experiência do
conceitos de um curador. Elas demandam um processo se bastaria em si mesma.
agenciamento de sentidos colaborativo e coleti-
vamente, de modo que o conceito da mostra pre- Outra convenção que o coletivo artístico inves-
cisa ser aberto e estar disponível a ser processo, tiga, e que trata da autonomização que o campo
mais do que uma exposição per se. de arte constitui atualmente, é a ideia de falsifi-
cação. Quando não é mais possível que a obra de

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arte seja única, tendo em vista a reprodutibilida- NOTAS


de técnica adquirida com as novas tecnologias, o
mercado consegue mantê-la, ao menos, rara – e 1 “Tal concepção de autonomização provoca o pri-
inacessível. Sendo a obra de arte processo, em mado do imaginário sobre a imagem e da forma
que é possível a manipulação de outros artistas sobre a função.” [tradução livre da autora]
enquanto objetos para composição de uma nova
2 “A recepção de qualquer trabalho será influen-
experiência artística, o coletivo artístico não raro
esbarra em convenções sobre a autenticidade ciada pelos meios de sua disposição. Para traba-
quando esta se descreve pela oposição ao falso, lhos que não estão fixados em entidades mais
ao derivado. ou menos materiais, contudo, a leitura também
modula o modo como o trabalho é constituído.
Em termos de visibilidade e de reconhecimento, Existe uma tênue porém fundamental linha entre
ainda é identificado entre os membros do grupo o impacto do contexto que decorre em recepções
uma dificuldade em falar sobre seus trabalhos e a sobre um trabalho e o processo de leitura que age
apresentá-los, pois eles sempre estão em referên- minuciosamente sobre o formato do dispositivo
cia a outros artistas, outros trabalhos que, arti- da obra, que irá conformar meios de recepção.
culados, manipulados e transfigurados sob outro Como artistas apresentaram em sua autoridade a
suporte ou sob outro processo criativo encontra delegação de aspectos da produção ou realização
a sua autenticidade. Enquanto a autenticidade do de um trabalho, o próprio respaldo em fragmen-
coletivo nunca está em questão, constato a pro- tar desta forma uma obra de arte tem demanda-
blemática da originalidade, especialmente por- do constante atualização dos poderes autorais.”
que as suas obras nunca se definem entorno da [tradução livre da autora]
unicidade. E este valor é formado no mercado de
artes pela raridade, ou pela recusa de acesso ao
REFERÊNCIAS
produto. Por o coletivo artístico não responder a
essas demandas, verifico a necessidade de nego- ALPERS, Svetlana. O projeto de Rembrandt: ate-
ciação de outros pontos para que seus projetos liê mercado. São Paulo: Companhia das Letras,
tenham visibilidade e tenham determinada sus- 2010;
tentabilidade financeira.
BECKER, Howard. Art Worlds and Collective
Activity. In: Art Worlds. California: University of
California Press, 1982;
Camila Medina cursa mestrado na linha de pesqui-
sa em Tecnologias da Comunicação e Estética pelo ________________. Uma teoria da ação coleti-
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e va. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e políti-
Bacharel em Produção Cultural pela Universidade ca: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Federal Fluminense, tendo complementado sua for- São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas;
mação em Filosofia da Arte através do intercâmbio v.1)
realizado na Université Paris-VIII, França.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas sim-
bólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
camilafalconi@gmail.com

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________________. O poder simbólico. Rio de ________________. As reconfigurações do


Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A., 1989. estatuto de artista na época moderna e contem-
porânea. Tradução: Sonia Taborda. Porto Alegre:
BUSKIRK, Martha. The contingent object of con- Revista Porto Alegre, v. 13, nº 22, maio de 2005
temporary art. Cambridge, Massachusetts: The LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura
MIT Press, 2003. (vol. 12): O artista, a formação e a questão so-
cial. São Paulo: Editora 34, 2013.
CRARY, Jonathan. Géricault, o Panorama e os
Espaços de Realidade no inicio do Século XIX. MOULIN, Raymonde. O mercado da arte: mun-
(tradução de Joana Negri) Programa de Pós-Gra- dialização e novas tecnologias. Porto Alegre:
duação em Comunicação e Cultura da Universi- Zouk, 2007;
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): Revista
Ecopós, v. 17, n. 2, 2014. __________________. La genèse de la rareté ar-
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ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio. pologie de l’art, T. 8, nº 2/3, 1978. pp. 241-258.
Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
MOURAUX, Nathalie ; SAGOT-DUVAUROUX,
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Estética – Dominique. Les conventions de qualité sur le
literatura e pintura, música e cinema (vol. III). marché de l’art: D’un académisme à l’autre? Es-
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GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. 2016.
São Paulo: Ed. UNESP; Ed. Senac São Paulo,
2007. Portal Coletivo Filé de Peixe. [online] Disponível
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HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. Bauru, com/ > Acesso em 25 de fevereiro de 2016.
São Paulo: Edusc, 2008 ;
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_______________. Être artiste. Les transforma- estética e política. São Paulo: Editora 34, 2ª ed.,
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Paris : Klincksieck, 2005;

________________. La signature comme indi-


cateur d’artification. Sociétés & Representations,
nº 25, 2008/1 ;

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Artigo

Lygia Clark e o Não-Objeto: interatividade e


forma artística
Amanda Bueno Villar Inocencio Costa

Este artigo tem por objetivo analisar sociologicamente a produção artística de Lygia Clark
(1920-1988), de modo a compreender o processo de desenvolvimento da forma artística e sua
interatividade com o público, sendo o Não-Objeto a formulação inicial de destaque dessa interação.
Buscamos analisar a forma clarkiana integrando-a ao mundo artístico do qual constituía,
considerando o caráter de produção de arte coletiva. Investigamos a circulação de obras, abarcando
os alcances da forma clarkiana, assim como o modo de interação com o espaço, do bidimensional
ao tridimensional, e seus agentes, conformando novas maneiras de relação com o público e seus
espaços expositivos.

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Em charge bem-humorada concebida para a di- casa de Lygia Clark, como o próprio Gullar narra:
vulgação da II Exposição de Arte Neoconcreta,
realizada no Ministério da Educação em 1960 no Esse texto nasce depois de uma visita à
Rio de Janeiro , o Neoconcretismo incorpora ao
1 2
casa de Lygia Clark. Ela tinha feito um
movimento o conceito do Não-Objeto, ressaltan- objeto que não sabia como definir, e con-
do a característica de interação do público com vidou alguns amigos para jantar a fim
a obra de arte. Na charge, as artes plásticas são de mostrá-lo. Estávamos lá Mário Pedro-
representadas pelos “Bichos” de Lygia Clark, e a sa, Amilcar de Castro e eu, entre outros.
poesia pela obra de Ferreira Gullar. Como charge O objeto que ela tinha feito era formado
promocional da II Exposição, o convite é também por uma série de tábuas de madeira cru-
direcionado à reflexão da nova proposição de for- zadas umas sobre as outras, assim como
ma artística. O jogo colocado na charge: “Eu não se constroem fogueiras nas festas de São
disse que isso não era um objeto, eu disse que João. Umas tábuas eram cinzentas, outras
isso era um não-objeto” transporta a produção de um verde escuro e mate, como a cor de
neoconcreta para um movimento que requer por abacate. Foi um pouco depois do Manifes-
uma característica única e própria, em que o Não to Neoconcreto. Durante a reunião, ela nos
-Objeto assume sua própria identidade dentro do confessou que não sabia o que era aquilo,
plano artístico. nem como defini-lo. Ninguém conhece essa
obra, talvez por ela não ter dado continui-
Através do humor também é notável na charge dade ao trabalho. (...) O fato é que olha-
a distinção entre “é proibido tocar nos objetos” mos aquela peça e começamos a discuti-la.
e “é favor mexer nos não objetos”, evidenciando “É um relevo”, disse Mário Pedrosa. “Não,
o caráter interativo do público com a forma ar- não é um relevo”, respondi. “Um relevo
tística proposta pelo Neoconcretismo. A ruptura pressupõe um plano ou uma superfície de
proposta por essa forma de arte não age unica- fundo sobre a qual ressalta alguma coisa
mente no movimento construtivo, mas também em relevo, e esse objeto não tem nenhuma
na esfera da arte em exposição no museu, rom- superfície de fundo.” “é verdade, você tem
pendo com convenções tradicionais ao propor razão”, disse Mário, sem definir o objeto.
a manipulação dos (não) objetos artísticos. Por Nesse momento, chegou a empregada di-
meio de uma charge, o Neoconcretismo identi- zendo que o jantar estava servido, e todos
fica na forma do Não-Objeto o meio pelo qual é foram comer. Só eu fiquei lá, observando
possível a transgressão da relação de exposição aquilo e tentando compreendê-lo. Todas as
da obra de arte e sua interação com o público, evidências indicavam que já não era nem
provocando o tensionamento com a maneira ex- pintura nem escultura. Mas sim, era um
positiva tradicional e, especialmente do museu objeto, ou uma coisa que ocupada espaço
moderno, já que é o espaço que o movimento como fazem os objetos. No entanto, ele não
constrói (Sant’Anna, 2003). tinha nenhuma utilidade prática, uma
função, como a cadeira ou a mesa. Imedia-
Lançado pouco tempo após o Manifesto Neocon- tamente fui até a mesa e disse: “Acabo de
creto, a Teoria do Não Objeto é também redigida descobrir o nome desse objeto.” “E qual é”,
por Ferreira Gullar em 1959, após um jantar na
3
perguntaram. “É um não objeto”, respondi,

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e alguns começaram a rir. (GULLAR apud coletivamente, compondo uma rede de relações
JIMÉNEZ, 2013, p.87 a 89, grifo nosso). com outros diversos personagens do mundo da
arte, como o crítico, e de maneira coletiva parti-
A história narrada por Gullar nos traz um ele- cipam da formulação de questões e proposições a
mento relevante para aprofundar a teoria do Não partir de experiências coletivas e do meio o qual
-Objeto: é uma conceituação realizada por um pertencem. Desse modo, a Teoria do Não Obje-
único personagem do movimento, porém produ- to se conforma através de um conjunto de ações,
zida no coletivo. O Não-Objeto é formulado a par- abarcando diversos elementos coletivos e indivi-
tir do desenvolvimento investigativo dos artistas duais para sua elaboração.
individualmente, mas que corroboram sintoma-
ticamente em composições coletivas. A experiên- A partir da Teoria do Não-Objeto, a arte produ-
cia Neoconcreta aqui é evidenciada como notável zida por esse conjunto de artistas, assim como
ao abrir caminhos de investigação e pesquisa no outros, é colocada em questão, dispondo-se ao
campo artístico, permitindo formulações e pro- confronto com a nova classificação de forma
gressos através do coletivo. artística. Quando demonstrado a falta de “utili-
dade prática”, o objeto artístico atinge um novo
Las obras de arte, desde este punto de vis- momento de categorização e pertinência na sua
ta, no son los productos de individuos, de produção. Em parágrafo de abertura da Teoria do
“artistas” que possen un don raro y espe- Não-Objeto a definição é precisa:
cial. Son más bien productos colectivos
de todas las personas que cooperan por A expressão não-objeto não pretende de-
medio de las convenciones característi- signar um objeto negativo ou qualquer
cas de un mundo de arte para concretar coisa que seja o oposto dos objetos mate-
esos trabajos. Los artistas son un sub- riais como propriedades exatamente con-
grupo de los participantes del mundo, trárias desses objetos. O não-objeto não é
que, de comúm acuerdo, tienem un don es- um antiobjeto mas um objeto especial em
pecial y hacen, por lo tanto, un aporte ex- que se pretende realizada a síntese de ex-
traodinario e indispensable al trabajo y lo periências sensoriais e mentais: um corpo
converten en arte. (BECKER, 2008, p.54- transparente ao conhecimento fenome-
55, grifo nosso). nológico, integralmente perceptível, que
se dá à percepção sem deixar resto. Uma
Com a formulação de Howard Becker, pensamos pura aparência. (GULLAR, 2007, p.90, gri-
aqui na produção artística realizada por um cole- fo nosso).
tivo considerando tanto os elementos necessários
para a produção da arte (no caso pintura, escul- Se anteriormente poderíamos pensar em pos-
turas e poesia), como tintas, telas, gráficas, entre síveis não-objetos já presentes nas vanguardas
tantos outros, e também na formulação de ideias modernistas europeias, como no Dadaísmo, a Te-
coletivas, produzidas a partir da inserção num oria do Não-Objeto deixa claro sua especificidade
contexto social e artístico. Assim, o Movimento classificatória: a relação fenomenológica que des-
Neoconcreto é elaborado aqui como um conjun- brava as potenciais significações, ou seja, é atra-
to de artistas que produzem individualmente e vés da experiência sensorial que o objeto artístico

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atribui significado, ao mesmo passo em que ga- Assim, conforme a perspectiva de Gullar, o mo-
nha significado, como um movimento de dupla vimento Neoconcreto força os limites da arte
troca, intrinsecamente dependente da interação. moderna até então produzida, através do cons-
trutivismo, e rompe com essas margens através
Também presente no Manifesto Neoconcreto , da sua proposta radical de criação e interação,
4

a liberdade de criação do artista é exaltada pelo mobilizando elementos como a utilidade prática
movimento: “É assim que, na pintura como na da arte e sua intervenção social, a relação com o
poesia, na prosa como na escultura e na gravura, espaço de exposição, e especialmente a interação
a arte neoconcreta reafirma a independência da com o público, corroborando numa elaboração
criação artística em face do conhecimento prático própria e coletiva de sua classificação artística ao
(moral, política, indústria etc).” (GULLAR apud conceituar o Não-Objeto.
AMARAL, 1977, p.84). Após a defesa da liberdade
de criação, o Neoconcretismo também ressalta a Tais elementos mobilizados pelo movimento
interação do público, tendo como elemento me- Neoconcreto também são encontrados inter-
diador da criação e da interação a forma artística. namente na produção artística de Lygia Clark,
Na Teoria do Não Objeto a forma é radicalizada, apresentam-se como parte constitutiva do de-
necessitando da elaboração de uma nova defini- senvolvimento dos debates do movimento cons-
ção ou classificação. trutivo brasileiro e das concepções da arte mo-
derna em que estava inserida.
Romper a moldura e eliminar a base não
são, de fato, questões de natureza mera- A trajetória de Lygia Clark: anos de formação
mente técnica ou física: trata-se de um es- e inserção no meio artístico
forço do artista para libertar-se do quadro
convencional da cultura, para reencontrar Nascida no ano de 1920 em Belo Horizonte (MG),
aquele “deserto” de que nos fala Malêvit- Lygia inicia seus estudos artístico em 1947 na ci-
ch, onde a obra aparece pela primeira vez dade do Rio de Janeiro com Roberto Burle Marx
livre de qualquer significação que não seja e Zélia Salgado, dois relevantes nomes da arqui-
seu próprio aparecimento. (...) Os artistas tetura e urbanismo e das artes plásticas moder-
dessa tendência [tachistas e informais] nas. Em 1950, viaja à Paris por um ano para dar
(...) Partem da suposição de que o que está continuidade aos estudos, com a orientação de
dentro de uma moldura é um quadro, uma Arpad Szènes, Dobrinsky e Fernand Léger, ob-
obra de arte. É certo que, com isso, tam- tendo contato com a produção artística moderna
bém denunciam o fim dessa convenção, europeia com enfoque na abstração geométrica.
mas sem anunciar o caminho futuro. Esse
caminho pode estar na criação desses Durante a primeira metade dos anos 1950, o
objetos especiais (não-objetos) que re- Cubismo mostra-se a principal influência da ar-
alizam fora de toda convenção artística tista através da investigação intensa de linhas e
e que reafirmam a arte como formula- cores, presentes em obras como Escadas (1951),
ção primeira do mundo. (GULLAR, 2007, Composição (1951), Composição (1952), Compo-
p.94, grifo nosso). sição (1953), participando de exposições coleti-
vas como Primeira Exposição Nacional de Arte

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Abstrata em 1952 e a 2º Bienal Internacional de por mim em quadros e as linhas funcionais


São Paulo em 1953. A artista tem sua estreia indi- arquitetônicas. (CLARK, 1997, p.72)
vidual em Paris na Galerie de L’Institute Endos-
plastique em 1952, obtendo, em seguida, seu pri- A Descoberta da linha orgânica na investigação
meiro prêmio no III Salão de Naturezas Mortas da artista inaugura um processo de questiona-
em 1953, mesmo ano em que também obtém o mentos que serão aprofundados em suas obras
Prêmio da Prefeitura Municipal de Petrópolis na seguintes. Relacionando sua formação com Ro-
Exposição Nacional de Arte Abstrata, referente à berto Burle Marx, tido como o seu grande mestre
produção dessas obras do período de 1951 a 1953. (CLARK, 1997, p.351), Lygia demonstra intensa
preocupação com o elemento do espaço, neste
Neste momento da produção clarkiana, a abstra- momento focado no plano bidimensional, explo-
ção geométrica é estudada e praticada no plano rando as relações “orgânicas” entre os compo-
da tela, ganhando o primeiro questionamento nentes da tela e o seu redor.
em relação a essa forma em 1954, com a obra
Descoberta da linha orgânica. Ao longo da investigação da forma artística e
do questionamento da obra de arte e sua rela-
Com essa obra, a artista dá início a uma série de ção com o espaço, Lygia Clark mantém viva sua
debates acerca de elementos presentes na com- influência arquitetônica, elaborando em 1960
posição do quadro como a cor, a moldura, e em Construa você mesmo seu espaço de viver, estru-
especial a linha. Percebe-se que a mudança esté- tura móvel de madeira e acrílico que propõe ins-
tica proposta na passagem de uma obra a outra tigar a relação do espaço e seu habitante:
cria um jogo específico entre os elementos utili-
zados no plano. Em conferência realizada na Es- É ao meu ver o que de mais revolucionário
cola Nacional de Arquitetura em Belo Horizonte vai se apresentar amanhã, quando novas
no ano de 1957, Lygia debate a transformação de técnicas e materiais maleáveis forem dis-
sua estética, baseada em sua investigação artís- poníveis para o artista e o arquiteto pla-
tica: nejar a futura habitação do homem. Será
ele o artista, totalmente integrado nessa
O artista poderá pesquisar também a fun- coletividade. Ele participará também dessa
ção das linhas que chamei de “orgânicas”, procura, em que o homem de amanhã tal-
linhas funcionais de portas, ementas de vez possa suprir sua insatisfação interior
materiais, de tecidos, etc., para modular tendo possibilidade de ter uma habitação
a superfície. Essa é precisamente a minha própria, completamente dinâmica e mutá-
experiência pessoal, dentre inúmeras ou- vel em função de gostos e caprichos e tam-
tras já feitas por outros artistas no mes- bém da própria funcionabilidade. (CLARK,
mo sentido. Vou explicar como uso estas 1997, p.73)
linhas nos meus trabalhos expostos. O
problema plástico é simplesmente a “valo- A preocupação de Lygia com o espaço é pouco
rização ou desvalorização dessa linha”. Foi relevada em análises de sua trajetória. A ruptura
me baseando nessa observação que encon- de quadros para esculturas também reserva sur-
trei a relação entre esta linha pesquisada presas como Construa você mesmo seu espaço de

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viver no plano da maquete, que guarda em si o ção do ambiente como um todo, transformando
elemento da mobilidade, que se torna central ao também a relação da tela com o público, já que
longo da trajetória clarkiana. O espaço, seja ex- não conta mais com as delimitações postas ante-
positivo ou não, é considerado por Lygia como a riormente pela moldura.
habitação de diferentes formas, artísticas ou hu-
manas, aguçando o pensamento da artista acer- Com essa técnica e forma, Lygia prossegue com
ca da conformação do espaço de acordo com sua sua produção em meados da década de 1950 com
utilidade, sem a fixação de qualquer pressuposto a série Superfícies Moduladas (1955 – 1956), Pla-
ou projeto inalterável. nos em superfície Moduladas (1957 – 1958), e Es-
paço Modulado (1957 – 1959), desenvolvendo um
Com o olhar voltado para a investigação do “or- caminho interno à sua investigação da linha na
gânico” na forma artística, Lygia realiza logo em composição da tela.
seguida a Descoberta da linha orgânica, em 1954,
a série Quebra da Moldura, cristalizando uma A partir dessa última série, comecei a pesquisar
nova maneira de questionamento da forma bidi- uma “linha espaço” com outras características:
mensional e o espaço em que está inserida. Com é uma linha sulcada, mais larga do que a antiga
a técnica mista de tela e madeira, Lygia parece “linha espaço” e pintada de um branco brilhante
esbarrar no limite da obra nela mesma, fazendo que aparece nos limites externos da superfície,
com que a própria tela já tenha sua moldura, dis- confinando diretamente com o espaço exterior.
pensando assim tal convenção para exposição em (...) À medida que fui observando as variações
museus e galerias. dessa mesma linha, em função dessa última fase
(“linha luz”), comecei a suprimir a diagonal e
A função da moldura consiste na simboli- passei a compor simplesmente com horizontais
zação e no reforçamento da dupla função e verticais, pois uma tensão oblíqua surge, au-
do limite da obra de arte. A moldura ex- tomaticamente, quando a linha externa penetra
clui da obra de arte todo o meio ambiente em espaços inteiros da superfície, que é sempre
e, também, o expectador, e ajuda, assim, a preta. Linhas absolutamente iguais, horizontais e
colocar a obra de arte numa distância ne- verticais, produzem entre si uma tensão oblíqua
cessária, para possibilitar o seu consumo distorcendo um quadro: o espaço então se reve-
estético. (SIMMEL, 1998, p.1-2.) la ali como um momento do espaço circundante.
(CLARK, 1997, p.102)
Com a “quebra da moldura” Lygia parece subver-
ter o que Simmel demonstra ser a separação da Com essa produção Lygia continua expondo
obra de arte do ambiente em que está inserida, conjuntamente com o Grupo Frente e ganhando
criando assim continuidade entre a obra de arte destaque em outras exposições relevantes, par-
e o espaço em que se encontra, desmantelando ticipando da II Exposição do Grupo Frente em
a hierarquia posta na relação arte e ambiente, 1955, III Bienal Internacional de São Paulo em
marcada pela moldura, promovendo sua inser- 1955, Artiste Brésiliens: Presentée par Le Musée
ção orgânica no espaço bidimensional. Neste d’Art Moderne de Rio de Janeiro ar le Musée d’Art
contexto, a “linha orgânica” não se restringe ape- Moderne de São Paulo em 1955, III Exposição do
nas ao espaço da tela, e se expande na configura- Grupo Frente em 1956, I Exposição de Arte Con-

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creta em 1956, III Exposição do Grupo Frente em Belo Horizonte, Lígia Clark (“meu nome
1956, IV Bienal Internacional de São Paulo em de guerra”) casou-se aos 18 anos. Conva-
1957 (ganhando o Prêmio de aquisição), e da I lescendo de uma depressão nervosa após
Exposição Nacional de Arte Concreta em 1957. o nascimento de seu terceiro filho resolveu
estudar arte viajando para Paris onde tra-
Já no final da década de 1950, a forma clarkiana balhou com o pintor Fernand Léger. Dois
assume um novo limite no plano bidimensional, anos após exibiu suas “semi-abstrações”,
dessa vez não apenas contestando os limites da mais disse: “Não estava boa. Eu ainda não
linha no espaço, mas também se desdobrando era concreta”. Voltando ao Brasil foi pre-
entre os planos bidimensional e tridimensio- miada na Bienal de São Paulo divorciou-
nal, com as obras Contra Relevo (1959) e Casulo se (“eu me desenvolvia interiormente e ele
(1959). Propondo novamente o questionamento exteriormente”), fez um tratamento pisco
da forma no espaço, Lygia agrega às superfícies -analítico, pintou escadas, janelas e portas
“dobras”, aderindo profundidade à medida que em listras coloridas. “Trabalhei e lutei”, diz
uma superfície salta de outra. Tal movimento ela. “Repentinamente eu descobri a linha
configura não apenas uma nova relação da obra do espaço”. Abandonou as cores – e cha-
com o espaço em que está presente, mas também mou o resultado neoconcreto. “Nasci no-
no modo com que o público se relaciona com a vamente. Foi um parto difícil. Foi mesmo
obra, pois ao propor profundidade ao plano tam- agoniante”. (MEIRA, 1959)
bém atribui movimento observador
Este fragmento faz parte de uma tradução publi-
Do Casulo ao Bicho: Neoconcretismo e cada em 1959, ano do lançamento do Manifesto
Não-Objeto Neoconcreto e da I Exposição Neoconcreta, cujo
original pertence à revista Time, de Nova York.
O ano de 1959 é marcante na produção artística Numa apresentação panorâmica dos personagens
de Lygia Clark, tanto internamente referente a do Neoconcretismo, Lygia ganha destaque ao ser
uma ruptura com o plano bidimensional, quanto considerada “o papa do neoconcretismo”, contan-
contextualmente por estar inserida no Movimen- do com uma especial descrição de sua vida pesso-
to Neoconcreto e por sua presença na concepção al, raramente encontrada em outras publicações.
da Teoria do Não Objeto, que seria lançado no
ano seguinte. Com as séries Superfície Modu- A matéria internacional sobre o Movimento Ne-
lada, Planos em Superfície Modulados e, Espa- oconcreto e a visibilidade de Lygia demonstram
ço Modulado, a artista conquista seu espaço de dois elementos centrais do contexto: O destaque
prestígio no Neoconcretismo, ganhando desta- do Neoconcretismo ao conseguir projeção interna-
que em exposições e críticas especializadas sobre cional - nota-se que a matéria é do mesmo ano do
o movimento. lançamento do manifesto! – inserindo o Neocon-
cretismo no movimento artístico moderno com
O papa do neoconcretismo é a esbelta Lí- grande alcance, e o protagonismo de Lygia como
gia Pimentel Clark Lins (5 pés e duas po- artista do movimento, inserindo-a efetivamente
legadas), com 38 anos. Educada em um no cenário Neoconcreto e, ao mesmo tempo, lhe
colégio católico, filha de um advogado de conferindo projeção individual.

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Após a obra Casulo (1959), Lygia promove uma Na busca por uma expressão viva e orgânica, Ly-
intensa ruptura na sua forma artística, que não gia adere o espaço tridimensional de uma manei-
afetará apenas sua produção individual, mas ra única, provocando uma nova e radical relação
também de maneira coletiva na medida em que entre a obra de arte e o público através da série
se insere no Neoconcretismo e na arte moderna Bichos (1960), reposicionando seus ideais dentro
brasileira. Consideramos aqui essa obra como do Neoconcretismo.
um momento limite da experiência clarkiana no
plano bidimensional, ao passo em que abandona Na arte neoconcreta, há outra espécie de
esse plano e inicia novas investigações com for- revalorização do gesto expressivo. É que o
ma tridimensional. Em texto intitulado A morte gesto não é o gesto do artista quando cria,
do plano5, Lygia reflete sobre sua experiência e mas sim é o próprio diálogo da obra com
transição do plano bidimensional para o tridi- o espectador. (...) O espectador já não se
mensional: projeta e se identificada na obra. Ele vive a
obra, e vivendo a natureza dela, ele vive ele
O quadro adquiria uma significação má- próprio, dentro dele. Somos novos primiti-
gica quando o artista o considerava como vos de uma era e recomeçamos a reviver o
um portador de uma visão total do univer- ritual, o gesto expressivo, mas já dentro de
so. Mas o plano está morto. A concepção um conceito totalmente diferentes de todas
filosófica que o homem projetava sobre ele as outras épocas. (CLARK, 1997, p.122).6
não mais o satisfaz, assim como a ideia
de um Deus exterior ao homem. Ao tomar Compostos por chapas de metal e dobradiças, os
consciência de que se tratava de uma poé- Bichos concretizam o projeto clarkiano de uma
tica de si mesmo projetada para o exterior, obra viva e orgânica, que faça parte do espaço, e
ele compreendeu ao mesmo tempo a ne- que seja passível de criar o diálogo com o espec-
cessidade de reintegrar essa poética como tador através da sua manipulação. Sem utilidade
parte indivisível de sua própria pessoa. Foi ou significado, os Bichos necessitam da interação
também essa introjeção que fez explodir o do “espectador” para aderirem algum signifi-
retângulo do quadrado. Esse retângulo em cado, sendo este próprio de cada pessoa que o
pedaços, nós o engolimos, nós o absorve- manipula. Nessa relação, o público deixa de ser
mos. Anteriormente, quando o artista se espectador, passando a integrar-se à obra como
situava diante do retângulo, projetava-se um agente constitutivo do fazer artístico, pois é
sobre ele e nessa projeção carregava de apenas com a interação que a obra atinge seu es-
transcendência a superfície. Demolir o tado final de significação. Através dessa relação
plano como suporte da expressão é tomar dependente entre obra e público que encontra-
consciência da unidade como um todo vivo mos o Não-Objeto.
e orgânico. Nós somos um todo e agora
chegou o momento de reunir todos os frag- O Bicho tem um circuito próprio de movi-
mentos do caleidoscópio em que a ideia do mentos que reage aos estímulos do sujeito.
homem foi quebrada, reduzia a pedaços. Ele não se compõe de formas independen-
(CLARK, 1997, p.117, grifo nosso) tes e estáticas que possam ser manipu-

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ladas à vontade e indefinidamente, como ano seguinte Lygia recebe o Prêmio de Escultura
num jogo. Ao contrário: suas partes se Nacional na VI Bienal Internacional de São Paulo,
relacionam funcionalmente, como as de realizada no MAM, com a série Bichos, conquis-
um verdadeiro organismo, e o movimen- tando grande prestígio no meio artístico nacio-
to dessa parte é interdependente. Nessa nal. Já na edição seguinte (1963), a artista expõe
relação entre você e o Bicho há dois tipos na VII Bienal em sala especial.
de movimento. O primeiro, feito por você,
é puramente exterior. O segundo, do Bicho, Indivíduo, Corpo e Arte: o público como autor
é produzido pela dinâmica de sua própria da obra
expressividade. O primeiro movimento
(que você faz) nada tem a ver com o Bicho, Os tensionamentos promovidos pelas alterações
pois não pertence a ele. Em compensação, da forma clarkiana na relação entre a obra de
a conjugação de seu gesto com a resposta arte e o público levaram a artista a aprofundar
imediata do Bicho cria uma nova relação cada vez mais essas categorias e a forma artís-
e isso só é possível graças aos movimentos tica. Após a concepção dos Bichos, Lygia dá con-
que ele sabe fazer: é a vida própria do Bi- tinuidade às suas reflexões acerca do papel do
cho. (CLARK, 1997, p.121, grifo nosso) público enquanto agente artístico, inserindo-o
progressivamente na centralidade do fazer artís-
Nesse processo, a tríade composta por artista, tico. Quando em 1953 a artista propõe a obra Ca-
obra e público7 se encontra também numa nova minhando, podemos perceber uma nova fase na
relação, ao passo que o artista não mais é o úni- sua produção, em que as “proposições” ganham
co que concebe a obra e seu significado, dividin- o espaço da “obra”, e o “público” deixa de exis-
do com o público a coautoria. Já o público não tir, passando a ser considerado como o “partici-
se comporta mais como espectador, tornando-se pante”, levando ao limite a correlação necessária
parte do processo constitutivo da obra, cujo sig- entre o indivíduo e a proposição para o aconteci-
nificado e existência enquanto arte só são possí- mento da arte.
veis através da interação desse agente. E por fim,
a obra não se caracteriza mais como um objeto a Caminhando é o nome que dei à minha últi-
ser apreciado, mas uma forma mediadora entre ma proposição. A partir daí, atribuo uma
a proposição do artista e o significado criado por importância absoluta ao ato imanente re-
cada agente interativo. Cada vez que o Bicho é alizado pelo participante. O Caminhando
manipulado por alguém sua significação criada e tem todas as possibilidades ligadas à ação
é própria àquela relação. em si: ele permite a escolha, o imprevisível,
a transformação de uma virtualidade em
A produção dos Bichos ganha continuidade até os um empreendimento concreto. (...) À rela-
anos 1964, participando de exposições nacionais ção dualista entre o homem e o Bicho, que
e internacionais, obtendo destaque em algumas caracterizava as experiências precedentes,
delas, como na Galeria Bonino no Rio de Janeiro, sucede um novo tipo de fusão. Em sendo a
em seu ano de inauguração (1960), apresentando obra o ato de fazer a própria obra, você
um grande número de Bichos, e no mesmo ano e ela tornam-se totalmente indissociáveis.
expõe na II Exposição Neoconcreta no MEC. No (CLARK, 1997, p.151, grifo nosso)

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Com esse reposicionamento, o participante é o tinuamente metamorfoseado pela ação.


protagonista do ato artístico, e nele é instigado Sujeito-objeto se identificam essencial-
a construir seu próprio caminho, seja ele qual mente no ato. (CLARK, 1997, p.164-165,
for, e lhe atribuir significação própria. Através grifo nosso).
dessa proposta de experiência, a obra apenas
existe quando há o participante, não havendo Com esse jogo entre espaço e tempo, a forma
qualquer resquício artístico antes ou após o ato. clarkiana propõe, não só ao participante, mas
Desconstrói-se assim o objeto artístico até então também ao meio artístico da época, uma intera-
formulado pela arte moderna, presente na traje- tividade com a arte de uma nova ordem, em que
tória de Lygia até os Bichos, na medida em que a significação atribuída através da manipulação
o artista não mais produz o objeto artístico para seja condicionada a temporalidades e espaciali-
ser contemplado, passando a ser o propositor da dades variáveis, dentro e fora do próprio objeto
experiência que será concretizada pelo público e, artístico, adicionando ainda mais o caráter sin-
assim, se configura uma nova concepção de arte, gular do tempo no fazer artístico.
voltada para uma temporalidade e espacialidade
específicas. Durante o período de 1963 e 1965, Lygia Clark
expõe individualmente na Alexander Gallery de
Entre os anos 1963 e 1964, Lygia produz Obra Nova York (1963), no MAM carioca (1963) com a
mole (1964), O Dentro de o Fora (1964), O Antes série Bichos e Construa você mesmo seu espaço a
é o Depois (1964) e, Abrigo Poético (1964) e a sé- viver. Na Europa, participa da exposição coletiva
rie Trepantes (1965), últimas esculturas realiza- no Musée d’Arrais em Paris (1964) e expõe no
das pela artista, como um último desdobramento 2nd Pilot Show of Kinetic Art em Londres (1964).
dos Bichos. Em 1965, a artista ganha sua primeira exposição
individual de grande porte na Europa, na Signals
Outro sonho: no interior, que é o exterior, Gallery em Londres, se posiciona no cenário in-
uma janela e eu. Através dessa janela, de- ternacional, inserindo-se numa importante rede
sejo passar para fora, que para mim é o de sociabilidade, envolvendo relevantes artistas e
dentro. Quando acordo, a janela do quarto renomados críticos de arte8.
é a do sonho, o dentro que eu procurava
é o espaço de fora. Desse sonho nasceu o Estabelecida a relação entre o participante e o ato
Bicho que chamei de O dentro é o fora. É artístico, Lygia dá início a proposições que apro-
uma estrutura de aço inoxidável, elásti- fundam a interação da arte com o corpo, convi-
ca e deformável. No meio dessa estrutura dando o participante a uma nova experimenta-
existe um vazio. Quando a manipulamos, ção sensorial. Com as obras elaboradas em 1966
esse vazio interior dá à estrutura aspectos Pedra e ar, Livro sensorial, Ping-pong, Desenhe
completamente novos. Considero O dentro com o dedo, Água e conchas, Respire comigo, Di-
de o fora o resultado das minhas pesquisas álogo de mãos, a artista propõe nessa fase uma
sobre o Bicho (imediatamente antes de O experiência inovadora para o público, sintetizan-
dentro é o fora, fiz um Bicho sem dobradi- do sua trajetória de pesquisa e desenvolvimento
ças que chamei de O antes é o depois). (...) artístico numa nova fase “radical”:
Agora o espaço pertence ao tempo con-

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Eu permaneci muito tempo nesse pesadelo nica num segundo plano, priorizando as relações
e subitamente, quase que por casualida- que a forma possa propor entre o indivíduo e
de, novas possibilidades me apareceram: seu corpo. Com essa nova forma, Lygia mantém
“Quase que por casualidade”, como em cada elementos presentes ao longo da sua trajetória
etapa do meu trabalho, mas tal casualida- artística como a interatividade, sensorialidade,
de não é se não aparente: os Bichos moles construção do espaço, entre outros, transfor-
representam uma longa germinação de tais mando-os através de uma forma composta pela
ideias em mim. Eu denominei essa fase do pluralidade de objetos, buscando criar uma nova
meu trabalho, a mais variada de todas, de forma artística que possa aprofundar as relações
Nostalgia do corpo. Eu compreendi que entre objeto, indivíduo(s) e corpo(s).
uma das propriedades de Caminhando es-
tava então sendo radicalizada: a proposição Se em Nostalgia do corpo o participante é convi-
(pois a palavra “obra” denota passividade dado à investigação de sua própria corporalidade,
do resultado de um trabalho anterior, e por- em 1967 Lygia elabora proposições a fim de esta-
tanto já não era conveniente) nos faz tomar belecer investigações duais com a série A casa é
consciência de nosso próprio corpo. Eu o corpo. Com as Mascarás sensoriais, Luvas sen-
reuni um grande número de materiais sem soriais, Diálogo de Óculos e a série Roupa-corpo
nenhum valor que, quando eu os tocava, a -roupa (O eu e o tu, Cesariana), a forma clarkiana
redescoberta tátil provocava um trauma es- usufrui de diversos materiais para compor os ob-
timulante. (CLARK, 1997, p.188, grifo nosso).jetos, como tecidos, espelhos, espumas, plásticos,
entre outros, estimulando diversas sensações
Nesse projeto que envolve a arte como meio para através de texturas e composições visuais (ou a
conscientizar-se sobre o corpo, o participante é falta desta). Com a série Roupa-corpo-roupa os
instigado a interagir com materiais e formas das participantes vestem macacões e interagem um
mais diversas. Através da manipulação de sacos com o outro, descobrindo aberturas e acesso ao
plásticos com água, conchas, pedras, entre ou- forro da vestimenta, composto por texturas dife-
tros, o público descobre uma nova maneira de se rentes que criam sensações próprias.
relacionar com objetos do cotidiano, propostos
numa forma diferenciada. Através dessas proposições, o objeto e o corpo do
participante se tornam um só, e o ato artístico é
Com esse movimento, Lygia rompe com o Neo- transformando na investigação e (re)descoberta
concretismo e com o construtivismo como um de sensações entre duas pessoas. Deste modo, o
todo, dando início a uma maneira própria de corpo é reposicionado enquanto mediador.
composição de objetos e formas voltadas intrin-
secamente para criar o diálogo entre o corpo e a Penso também que minhas tentativas ar-
sensorialidade do participante. A forma clarkia- quiteturais, nascidas ao mesmo tempo que
na passa, portanto, pelo abandono da técnica o Caminhando queriam ser uma ligação
construtiva, ou seja, do abstracionismo, geome- com o mundo coletivo. Tratava-se de criar
tria, entre outros elementos presentes na arte um espaço-tempo novo, concreto – não
concreta, elaborando sua forma artística a partir apenas para mim, mas também para os
da dissolução da técnica, ou seja, deixando a téc- outros. (CLARK, 1997, p.152)

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A sensorialidade do espectador é provocada de prios corpos através das sensações táteis


maneira que contemple sensações não apenas operadas nos objetos exteriores a elas. Na
individuais, mas também coletivas. Experiências seguinte fase, que eu já comentei no prin-
como o nascimento e a morte são pilares para cípio deste artigo, as pessoas se tornam o
o desenvolvimento das proposições clarkianas, suporte da “obra” e o objeto se incorpora:
direcionando o participante a ter sensações indi- ele desaparece. Por oposição às experiên-
viduais que remetem a experiências comuns ao cias precedentes, eu denominei essa fase
coletivo. de O corpo é a casa, na qual as pessoas se
convertiam na estrutura vivente de uma
Nesse sentido, Lygia desenvolve A casa é o corpo. arquitetura celular, na malha de um tecido
Penetração, ovulação, germinação, expulsão, em infinito, e o que resta do objeto (elásticos,
1968, instalação que instiga o participante a per- folhas de plásticos, sacos de jutas e redes)
correr um trajeto que propicia a vivência espe- já está completamente vazio de significado
cialmente tátil, já que é forrada com tecido negro e sem possibilidades de recobrar vida se-
que dificulta a passagem de luz. Na fase Penetra- não através do suporte humano. (CLARK,
ção, o piso é forrado com tecidos, simulando um Lygia. 1997, p.222-223)
chão fluido e móvel, provocando a sensação de
“falta de chão”. Em seguida, Ovulação imita a es- Lygia apresenta A casa é o corpo no MAM carioca
trutura anterior, com o acréscimo de balões de ar em 1968 e, no mesmo ano, também a expõe na
coloridos, que dificultam a mobilidade do parti- 34º Bienal de Veneza em sala especial, que con-
cipante, envolvendo os balões ao corpo à medida tém a retrospectiva dedicada aos dez anos de sua
que se transita. Na fase Germinação o ambiente é produção. Em dezembro do mesmo ano, inaugu-
iluminado e composto por tecidos transparentes, ra exposição individual na Galerie M. E. Thelen
contendo no centro uma grande bolsa em forma- de Essen, na Alemanha.
to de gota. Por fim, na fase Expulsão, o ambiente
volta a ser escuro, composto por fios pendura- Ainda em 1968, Lygia produz Mascara Abismo
dos de espessuras diferentes, imitando “pelos” (1968), que no ano seguinte são incorporadas à
do teto até o chão, e bolas de plástico espalhadas proposição Casal (1968):
pelo chão. Ao sair da última cabine, o participan-
te se depara com um espelho deformador bem Uma cabine de plástico transparente, susten-
iluminado. “É o final do labirinto destinado, nas tada por estrutura metálica, que ata ao corpo
palavras de Lygia Clark à experiência tátil, fan- de um participante masculino através de um
tasmática e simbólica da interioridade do corpo.” jogo de correias. Esta cabine também se une
(CLARK, 1997, p.229). ao participante através da Máscara abismo
(externa) que ele mesmo está usando, e que
Nesta fase sensorial de minhas pesquisas, está presa à armação metálica. A cabine se
mesmo que o próprio objeto não tenha sig- converte em uma espécie de prolongação da
nificado senão quando da intervenção do máscara. Outro participante (mulher) entra
participante, continua sendo uma conexão no interior da cabine, usando outra Máscara
indispensável entre a sensação e os partici- abismo (interna) também presa à estrutura
pantes. As pessoas reencontram seus pró- metálica. (CLARK, 1997, p.240)

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Em seguida, Lygia realiza a proposição individu- importância essencial – é através dela que
al Camisa-de-força (1969), envolvendo a cabeça as células são construídas, por exemplo
e os braços do participante, estimulando a liber- abrindo os braços, criando com as pernas
dade ao tentar se movimentar e desenrolar das afastadas túneis por onde as pessoas po-
redes de nylon. dem passar. (CLARK, Lygia. 1997, p.247,
grifo nosso)
Após a fase de concepção de objetos relacionais,
Lygia abandona a forma o objeto como meio de Com a proposta de momentos de experiências
criar relações entre os participantes, aprofun- coletivas, Lygia abdica do objeto e do espaço ar-
dando a centralidade do corpo do participante tístico, como o museu ou a galeria, e transfere
como forma mediadora principal. Mudando-se o ato para qualquer ambiente, colocando apenas
para Paris em 1968, onde permanecerá até mea- o participante e seu corpo como elementos ne-
dos de 1976, a artista desenvolve um grande vo- cessários para a criação da proposição coletiva.
lume de proposições com a fase O homem, estru- Neste momento termos como obra, objeto artís-
tura viva de uma arquitetura biológica e celular.tico, público e exposição perdem o sentido, dando
Neste movimento, há a inversão da proposição espaço para o participante ou paciente, e o ritual,
anterior, em que A casa é o corpo, passando para encontrando o ápice das relações orgânicas de-
O corpo é a casa. senvolvidas pela artista desde os Bichos ao passo
em que são criadas e desenvolvidas pelo próprio
Na fase sensorial do meu trabalho, que participante e seu corpo.
chamei de nostalgia do corpo, o objeto
era ainda um meio indispensável entre a As proposições são a série Arquiteturas biológi-
sensação e o participante. O homem re- cas (1968-1969), Estruturas vivas (1969), Baba
encontrava seu próprio corpo através de antropofágica (1973), Viagem (1973), Canibalis-
sensações táteis operadas sobre os objetos mo (1973), Relaxação (1974-1975), Cabeça coleti-
exteriores a ele-mesmo. Mais tarde incor- va (1975). Este conjunto de proposições é desen-
porei o objeto fazendo-o desaparecer. De volvida pela artista a partir de 1972 na Sorbonne,
agora em diante é o homem que assume em Paris, num curso que ministrou sobre comu-
sua própria eroticidade. Ele mesmo é o nicação gestual. O curso consistia em realizar ex-
objeto de sua própria sensação. (...) É periências com grupos de até sessenta pessoas ao
somente na medida em que toma um sen- longo de três horas, duas vezes na semana.
tido para os outros que ela também toma
um para si mesma. Eu chego a ser o ou- Sorbonne: hoje foi impressionante o grupo
tro – que me traz seus significados. É a que fez a Baba. Linhas de várias cores que
soma de todos os significados que lhe dá saem da boca de cada um para se transfor-
seu sentido global. Na medida em que mais marem, em seguida, num monte de baba
pessoas participam, ela toma um sentido coletiva. Depois, na cara do Camurati, e
coletivo tribal. Ela pode se desenvolver todo o mundo se ligou à baba através da li-
não importa onde, nos parques, nas ruas, nha fazendo um grupo todo envolvido pela
na casa de vocês. Nada de local a priori. mesma. Impressionante a experiência que
(...) A expressão corporal tem aqui uma Camurati fez com uma garota: enrolou-a

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toda em papel passando a linha/baba para ainda uma projeção e hoje já não se trata
costurá-la. Depois levantou-a, fez com que de projeção, mas do contrário, de introver-
ela andasse, no fim de uma meia hora ele são. (CLARK, 1997, p.264)
abriu o lugar do seu nariz, depois um olho,
em seguida fez com a mão o espaço inte- Durante o período que vai de 1969 até 1973, Ly-
rior para olhar seu olho. Eu vi, era impres- gia continua a participar de exposições coletivas
sionante! A moça disse depois que ela se com suas obras neoconcretas, como na XII Bie-
sentiu muito bem, segura mas meio dro- nal Internacional de São Paulo (1973) com a série
gada. Outros fizeram o seu próprio fantas- Trepantes, mas sua produção da época não adere
ma na massa e o destruíram em seguida. imediatamente aos espaços sacramentados do
(CLARK, 1997, p.297) meio artístico, afastando-se paulatinamente do
circuito artístico contemporâneo ao seu, contan-
Com essas proposições, Lygia confirma uma do com o espaço da Sorbonne e, em geral, sua
ruptura com a produção artística, passando a própria casa, para realizar suas proposições.
considerar progressivamente o tratamento de
patologias e problemas psicológicos. Nos primei- Ontem estava péssima, me sentindo ultra
ros anos da década de 1970, juntamente com a desagregada. Fui ver Aspazia no hospital
produção dessas proposições, Lygia revisita trau- e ela me falou que meu trabalho é revolu-
mas e problemáticas pessoais, trazendo à tona ção cultural. Depois, eu e Camargo saímos
seus próprios questionamentos corporais e psí- para comer no Domus e uma hora chorei
quicos para sua produção. Aliado a essa visita a de angustia. Camargo começou a colocar
seu próprio interior, a artista inicia seus estudos dúvidas e mais dúvidas no meu trabalho e
sozinha na área da psicologia e psicanálise, como aí tive uma reação positiva, defendendo-o
por exemplo em 1971 ao se dedicar aos estudos com toda a minha lucidez - antes o Camar-
da Ante-Psiquiatria e da obra de Robert Laing, go tinha dito não sei o que e antes de come-
psiquiatra britânico e, no ano seguinte, em 1972, çar a chorar eu disse, quase aos gritos: -
se torna paciente de Pierre Fedida, relevante psi- “O que eu quero é deixar de fazer arte!”
canalista francês, finalizando em 1974 as sessões. (CLARK, 1997, p.281, grifo nosso).

O artista está interessado em trabalhar Os questionamentos sobre seu trabalho relatado


com psicanalistas, dando seu material li- no excerto demonstram os confrontos de Lygia
gado diretamente ao corpo para regredir com o meio artístico, afastando-se deste definiti-
pacientes e fazê-los tomar consciência do vamente em 1976 ao retornar para o Rio de Janei-
próprio corpo. Material esse colhido de ro e dar início à série Objetos Relacionais, voltan-
dentro do próprio artista, que viveu sua do-se exclusivamente para a prática terapêutica.
própria regressão e crescimento através Essa nova abordagem deixa para trás as sessões
de sua elaboração, tendo o que Laing cha- de experiências coletivas, passando a realizar
ma de acidentes psicóticos. (...) O curioso sessões individuais, voltadas para cada pessoa a
é que se expressar através da arte foi até fim de tratar cada caso de modo específico.
hoje um meio de recuperação para os do-
entes mentais. Mas aí, o expressar-se era As sessões terapêuticas são realizadas em seu

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próprio apartamento, em Copacabana, atenden- A partir de 1981, a técnica e o processo terapêuti-


do a uma seleção criteriosa de clientes9, tomando co são transmitidos para Lula Vanderlei, artista e
nota10 de cada caso e dos progressos realizados ao psicoterapeuta, e Gina Ferreira, psicóloga, a fim
longo do tratamento. Essa terapia foi nomeada de garantir a continuidade do trabalho, já que
de Estrutura do Self, contando com os objetos: Lygia diminuía aos poucos o atendimento, encer-
almofadas leves, almofadas leves-pesadas, almo- rando os atendimentos parcialmente em 1984.
fadas pesadas, grande colchão, cobertor, objetos
feitos com meias calças, objeto de semente, obje- Durante esse período dedicado à terapia, Lygia
to de pedra e ar envolto por uma rede, pedrinha, mantém relações com espaços artísticos apenas
respire comigo, saco plástico cheio de água, saco expondo obras de sua fase neoconcreta. De cer-
plástico cheio de ar, saco plástico cheio de areia, to modo, a participação de Lygia em exposições
conchas e tubo. construtivas faz com que se mantenha viva sua
fase artística consolidada, ou seja, a qual perten-
Ao longo das sessões, o cliente ficava seminu e cia a um movimento de arte moderna. Por outro
deitava-se no colchão (formado de plástico e bo- lado, a relação de Lygia com os espaços expositi-
linhas de poliestireno) e recebia estímulos rea- vos são pautados em amostras que ignoram sua
lizados por Lygia com os Objetos relacionais, produção mais atual, expondo majoritariamente
variando a ordem de acordo com a experiência, obras neoconcretas, ou de maneira retrospectiva
reações e necessidades demonstradas pelo clien- ou coletiva. Nestes moldes, em 1977 participa da
te. As sensações táteis eram variáveis conforme o importante exposição Projeto construtivo brasi-
objeto utilizado, variando texturas, pesos e tem- leiro na arte 1950-1962, passando por São Pau-
peraturas, e controlados pela própria Lygia en- lo e Rio de Janeiro, revisitando os movimentos
quanto terapeuta11. construtivos nacionais, assim como em 1984 exi-
be coletivamente na exposição Neoconcretismo
O “objeto relacional” não tem especificida- 1959-1961 no Rio de Janeiro.
de em si. Como seu próprio nome indica é
na relação estabelecida com a fantasia do Em 1986, é realizado o IX Salão de Artes Plásticas
sujeito que ele se define. O mesmo obje- do Rio de Janeiro, contando com exposição con-
to pode expressar significados diferentes junta de Hélio Oiticica e Lygia Clark em espaço
para diferentes sujeitos ou para um mesmo especial no Paço Imperial. Essa exposição marca
sujeito em diferentes momentos. Ele é alvo a última grande reunião de obras da artista em
de carga afectiva agressiva e passional do vida, contendo toda a sua trajetória artística, do
sujeito, na medida em que o sujeito lhe em- neoconcretismo até sua fase sensorial, disponi-
presta significado, perdendo a condição do bilizando todas as obras manipuláveis e experi-
simples objeto para, impregnado, ser vivi- mentais ao público. Após a exposição, Lygia entra
do como parte viva do sujeito. A sensação em crise, voltando a fazer análise em 1988, quan-
corpórea propiciada pelo objeto é o ponto do decide encerrar seu trabalho terapêutico. No
de partida para a produção fantasmática. dia 26 de abril do mesmo ano, Lygia morre em
(CLARK, 1997, p.319) sua casa em decorrência de um infarto.

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Amanda Bueno Villar Inocencio Costa é bacha- história do movimento, compreendendo ao mes-
rel em Sociologia pela Universidade Estadual de mo tempo sua parcialidade e seus interesses.
Campinas (UNICAMP), atualmente mestranda do 4 O Manifesto Neoconcreto é formulado a partir
Programa De Pós-Graduação em Sociologia pela de críticas elaboradas a partir do movimento con-
mesma universidade, possui como interesses de creto paulista, lançado em março de 1959 acom-
pesquisa a relação entre artista, obra e público, panhando a primeira exposição de Arte Neocon-
circulação de obras e consagração de artistas, creta no Museu de Arte Moderna carioca.
conformação dos circuitos artísticos e a relação 5 Texto presente no Livro-obra (1983), reprodu-
entre centro e periferia. zido em CLARK; 1997.
6 CLARK, Lygia. Do Ritual (1960), reproduzido
em CLARK; 1997.
Notas
7 Antônio Candido propõe como metodologia
analítica a tríade conjunto de produtores, con-
1 “Como construir um Não-Objeto”. Fortuna/Ate-
junto de receptores e um mecanismo transmissor
lier de Arte. Jornal do Brasil, 03/12/1960. – Tiri-
(Candido; 2009). Adequamos aqui ao contexto
nha presente no acervo do Museu de Arte Moder-
das artes plásticas, e analisamos a tríade artis-
na do Rio de Janeiro, consultado entre 16 e 25 de
ta, obra e público, na medida em que a obra seja
agosto de 2015.
essencialmente o elemento passível de criar a re-
2 O Movimento Neoconcreto tem como marco a
lação entre o artista e o público.
publicação do Manifesto Neoconcreto, publicado
8 Lygia Clark conhece o crítico francês Guy Brett
originalmente em 23 de março de 1959 no Suple-
em sua passagem por Paris em 1964 através do
mento Dominical do Jornal do Brasil e tem como
artista Sérgio Camargo. Guy Brett acompanha
signatários Amílcar de Castro, Ferreira Gullar,
então a trajetória pessoal e artística de Lygia,
Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Rey-
tornando-se um relevante crítico de arte e estu-
naldo Jardim e Theon Spanúdis. O manifesto é
dioso da obra de sua obra. Brett lança em 1968
estruturado em disputa com o Movimento Con-
o livro Kinetic Art, contendo estudo dedicado à
cretista Paulista, e propõe, sobretudo, que a arte
obra clarkiana.
abstrata tome um novo rumo, que seja menos
9 Em projeto realizado por Suely Rolnik em par-
objetiva e que o artista tenha mais liberdade de
ceria com o Sesc, são entrevistados diversos per-
criação, não se restringindo a princípios e normas
sonagens que fizeram parte da vida e da traje-
rígidas como no movimento paulista.
tória de Lygia Clark, entre eles, Caetano Veloso,
3 Durante a produção dos textos “Manifesto Ne-
Jards Macalé, Paulo Venâncio Filho, entre outros.
oconcreto” e “Teoria do Não-Objeto”, Ferreira
Nesses depoimentos, são relevados os motivos
Gullar está no início de sua carreira como poe-
pelos quais Lygia os aceitou enquanto pacientes.
ta e principalmente como crítico, sendo assim,
Rolnik, Suely. Arquivo para uma obra-aconteci-
um ator interessado no movimento Neoconcreto.
mento. São Paulo: Sesc, 2011.
Além de integrante do concretismo como poeta,
10 Em depoimentos concedidos à Suely Rolnik,
Gullar alça como crítico seu espaço no meio artís-
pacientes relatam os registros que Lygia fazia
tico brasileiro, posicionando-se centralmente no
das sessões realizadas com eles. Alguns desses
discurso e na produção crítica do movimento. A
registros estão resguardados no projeto O mundo
voz de Gullar aparece frequentemente neste texto
de Lygia Clark, no Rio de Janeiro, aos quais tive
por se tratar do personagem narrador central da

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acesso durante o período de pesquisa (agosto de São Paulo: Cosac Naify, 2013.
2015), porém não autorizado à cópia ou repro-
dução. MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark: Obra-Trajeto.
São Paulo, Edusp, 1992.
11 Em texto publicado em 1980 e reproduzido no
catálogo formulado pela Fundació Antoni Tàpies RIVIERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte
(CLARK, 1997, p.319-326), Lygia relata o passo contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac
a passo de seu método terapêutico, como era o Naify, 2014.
desenrolar de cada sessão, sequencial, e a mani-
ROLNIK, Suely. Arquivo para uma obra-
pulação dos objetos relacionais no processo tera- acontecimento. São Paulo: Sesc, 2011.
pêutico.
SANT’ANNA, Sabrina Marques Parracho.
Construindo a memória do futuro: uma análise
Referências Bibliográficas da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
AMARAL, Aracy, org. Arte construtiva no Brasil.
Coleção Adolpho Leirner. São Paulo: Companhia _______________________________. “Pecados
Melhoramentos: DBA Artes Gráficas, 1998. de Heresia”: Trajetória do Concretismo Carioca.
Tese (Doutorado em Sociologia), Rio de Janeiro:
____________. Arte para que?: a preocupação UFRJ, IFCS, 2003.
social na arte brasileira, 1930 – 1970. São Paulo:
Nobel, 1984. SIMMEL, Georg. “A Moldura: Um ensaio
estético” (1902) in SOUZA, Jessé e ÖELZE,
_____________. Projeto Construtivo na Arte: Berthol. Simmel e a modernidade Brasília: UnB,
1950-1962. Rio de Janeiro, Museu de Arte 1998.
Moderna; São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.
_____________. Sociologia do Espaço. Revista
BECKER, Howard. “Mundos de Arte y actividade Estudos Avançados, nº27 (79), p.75–112, 2013.
colectiva”. In: Los mundos del arte : sociología VENANCIO FILHO, Paulo. A presença da arte.
del trabajo artístico. Buenos Aires, Argentina: São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Universidad Nacional de Quilmes, 2008.

CANDIDO, Antonio. “Introdução” in: Formação Referências Primárias


da literatura brasileira: momentos decisivos
1750-1880. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre
“Como construir um Não-Objeto”. Fortuna/
azul; São Paulo: FAPESP, 2009.
Atelier de Arte. Jornal do Brasil, 03/12/1960.
CLARK, Lygia. Lygia Clark. Fundació Antoni
“Times” dá categoria internacional ao
Tapiès, 1997.
Neoconcretismo brasileiro. Tradução de
FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark Mauritônio Meira. Vida Literária, 1959.
– Hélio Oiticica: Cartas, 1964 – 1974. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2ªed. 1998.

GULLAR, Ferreira. Experiência Neoconcreta:


momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naify,
2007.

JIMÉNEZ, Ariel. Conversa com Ferreira Gullar.

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Artigo

IMAGENS DA MORTE NA ARTE CONTEMPORÂNEA


BRASILEIRA
Tadeu Ribeiro

Partindo da análise de obras da arte contemporânea brasileira que exploram as possibilidades da


criação de imagens da morte, este artigo propõe-se investigar suas poéticas articulando-as às noções
de finitude, abjeção, cadáver e violência, buscando assim uma reflexão sobre as particularidades e
contextos de tais manifestações.

Situação...T/T1..., Artur Barrio, 1970.


1970. Parque Municipal de Belo Horizonte, Mi- Na manhã do dia seguinte, uma multidão de
nas Gerais. Durante a madrugada do dia 19 de transeuntes aglomera-se nas margens do Rio Ar-
abril, Artur Alípio Barrio de Souza Lopes – Artur rudas, que corre por dentro do parque, para ob-
Barrio –, jovem artista de vinte cinco anos nas- servar as trouxas abjetas. A situação – segundo o
cido no Porto, em Portugal, e residente no Rio vocabulário de Barrio – causa alvoroço no local.
de Janeiro desde os dez anos, prepara catorze Sob o espectro do AI-5 e das inúmeras violações
trouxas de pano branco amarradas com cordas e de direitos humanos vividas durante o Estado
manchadas de sangue. No interior de cada uma de exceção instituído pela ditadura militar, num
há barro, carne, ossos, facas, cinzel, espuma de contexto de corpos torturados e desaparecidos,
borracha, sacos. “Manuseio de carne em estado a semelhança com cadáveres insinuada por tais
de decomposição... (...) cheiro... memória... tem- objetos era inevitável e perturbadora. A ação re-
po... fumaça (...) liberdade etc... idéias elétricas...” alizada pelo artista afrontava deliberadamente
(BARRIO, 1978, p.19). o rígido regime que sufocava a democracia bra-
sileira já há seis anos, mantendo sob estado de

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Situação...T/T1..., Artur Barrio, 1970.


sítio a produção artística e intelectual no país. A em estado de desmaterialização marcavam a
polícia e os bombeiros chegam ao local para exa- poética da transição entre as décadas de 1960 e
minar as trouxas e, ao fim daquele dia, os objetos 1970: a Teoria do não-objeto de Ferreira Gullar,
foram destruídos e os ossos encaminhados a um recém-publicada no Suplemento Dominical do
laboratório para análise (CALIRMAN, 2012, p.91). Jornal do Brasil, e o acirramento de vertentes
estéticas que buscavam ressignificar o estatuto
Situação...T/T1... é parte de uma série de obras do objeto artístico – como, por exemplo, o mini-
habitualmente referidas como trouxas ensan- malismo nos EUA e o neoconcretismo no Brasil
guentadas, nas quais Barrio utiliza elementos – são manifestações de um profundo reposicio-
abjetos – saliva, urina, sangue, fios de cabelo, ab- namento da arte contemporânea.
sorventes, carne, espuma de alumínio, cimento,
ossos, lixo, plástico etc. – para criar campos de Partindo desse conceito mais amplo de ob-
tensão que desafiam a ordem das instituições ar- jeto, Frederico Morais convida os artistas
tísticas, a concepção de objeto/obra de arte e o para as duas mostras no Palácio das Artes,
pudor dos espectadores. Sua primeira ação – Si- em 1970, e estabelece como critérios que
tuação... ORHHH... ou... 5.000... T.E.... EM... NY... as obras teriam que ser pensadas para o
City... 1969 – foi realizada no Salão da Bússola, local, com sua concretização condicionada
em 1969, no Museu de Arte Moderna do Rio de àquele momento, refutando assim traba-
Janeiro, ocasião em que o artista, ao expor suas lhos já prontos que servissem unicamente
trouxas, cria uma reação de pathos visceral no como objetos de exposição. Além disso, as
público, levando-o a interagir com a obra: muitos obras expostas no parque ou os vestígios
visitantes cuspiam, lançavam lixo e pichavam os das ações que lá ocorreram deveriam ser
panos. A instituição museológica tradicional era deixados no local até que fossem natural-
confrontada pela ironia das trouxas, que “suge- mente destruídas, levadas pelos transeun-
riam que o museu poderia ser um depósito de tes, enfatizando o caráter processual da-
lixo” (REBOUÇAS, 2011, p.36). quela manifestação e dos trabalhos que ali
tiveram espaço. Contrariando o hábito de
A ação de Barrio no Parque Municipal fazia parte inaugurar exposições com a realização de
da exposição Do corpo à terra, organizada pelo vernissages, quando todas as obras estão
crítico Frederico Morais, que ocorria paralela à à mostra, lá os trabalhos deveriam ocorrer
mostra Objeto e participação. Objetos e corpos em horas e locais diversos, de modo que

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ninguém pudesse acompanhar a manifes- eu viva, até que, de perda em perda, nada
tação em sua totalidade. Não haveria catá- mais me reste, e que meu corpo caia por
logo acompanhando os eventos a divulga- inteiro para além do limite, cadere, cadá-
ção seria feita por panfletos (REBOUÇAS, ver. (...) O cadáver – visto sem Deus e fora
2011, p.48). da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a
morte infestando a vida. Abjeto. Ele é um
As trouxas de Barrio instauram um acesso senso- rejeitado do qual não dá pra se separar, do
rial imediato do espectador à abjeção. As reações qual não dá para se proteger como se fa-
manifestadas pelo público – da curiosidade dos ria com um objeto. Estranheza imaginária
passantes à repressão das autoridades – estabe- e ameaça real, ele nos chama e acaba por
lecem estreita relação com a atitude geral do hu- nos devorar. (...) Não é, pois, a ausência de
mano ocidental contemporâneo frente à morte e limpeza [properté] ou de saúde que torna
ao cadáver em seus múltiplas formas de aparição abjeto, mas aquilo que perturba uma iden-
e dimensões simbólicas. Na poética de Barrio, tidade, um sistema, uma ordem. Aquilo
porém, a morte não se reduz à semelhança das que não respeita os limites, os lugares, as
trouxas a cadáveres humanos. Suas obras acio- regras. O intermediário, o ambíguo, o mis-
nam questões relativas à finitude e à decompo- to. (KRISTEVA, 2006, p.3).
sição das formas e conceitos: a tese da morte da
arte, formulada por Hegel no século XIX, é reto- O cadáver é um rasgo na organização do tempo
mada pelo historiador da arte Giulio Carlo Argan profano – regido pelo trabalho, e pelos interditos,
precisamente entre os anos 1960 e 1970 (sendo segundo Georges Bataille –, desvelando hetero-
mais tarde reelaborada por Artur Danto e Hans geneidades, contradições, abjeções. O período de
Belting), propondo a crise do objeto artístico. Afi-
decomposição do defunto e de corrupção da car-
nando-se a essas ideias, as trouxas de Barrio en- ne perturba a ordem e as normas. Yi-fu Tuan, em
carnam a impossibilidade de se pensar a arte sob seu livro Paisagens do medo, de 1979, narra es-
os antigos critérios da tradição das Belas Artes etruturas de repulsa frente ao cadáver em diversas
marca, no Brasil, uma ruptura: seus objetos dila- culturas. Segundo ele, na cultura tradicional chi-
cerados confrontam o espectador com o cadáver nesa, teme-se profundamente o “comportamen-
da própria noção de arte, operando uma muti- to imprevisível” do cadáver. Do instante da morte
lação de sua referência do que seria um objeto até o sepultamento, estabelece-se um período de
artístico. O cadáver, signo da abjeção, é um inter-
perigo, no qual o defunto é objeto de cautela e
dito: furtamo-nos a olhá-lo, sufocados por forte medo, mesmo por seus entes próximos. Em sua
pudor frente ao corpo degenerado: obra L’Homme et Le Sacré, de 1939, Roger Cail-
lois, sociólogo amigo de Bataille, também fornece
O cadáver (cadere, cair), aquilo que irre- relatos sobre hábitos culturais como o das ilhas
mediavelmente caiu, [que é] a cloaca e Sandwisch, onde “ao se conhecer a morte do rei,
morte, perturba mais violentamente ain- a multidão comete todos os atos que consideram
da a identidade daquele que se confron- criminais em época ordinária”. Caillois descreve
ta como um acaso frágil e falacioso (...). também o caso das ilhas Fidji, no qual o tempo de
Desses limites se livra o meu corpo como decomposição do corpo do rei rege um processo
[corpo] vivo. Esses dejetos caem para que de suspensão das normas que só é interrompido

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quando resta apenas o esqueleto régio. ga em si mesma uma ameaça. Não cremos
mais na magia contagiosa, mas quem de
O cadáver é a prova de uma violência sofri- nós poderia dizer que não empalideceria à
da e, mesmo imóvel, o morto ainda partici- visão de um cadáver cheio de vermes? Os
pa da violência que o atingiu e quem fosse povos arcaicos vêem no ressecamento dos
“contagiado” por ele estaria igualmente ossos a prova de que a ameaça da violên-
fadado a sucumbir (...). A morte não per- cia introduzida no instante da morte está
tence à esfera do mundo familiar (...). (...) apaziguada. O mais das vezes, aos olhos
O morto é um perigo para aqueles que fi- dos sobreviventes, o próprio morto, arras-
cam: enterram-no menos para protegê-lo tado pelo poder da violência, participa de
de violências futuras do que para se prote- sua desordem, e é seu apaziguamento que
gerem do “contágio” que possa ocorrer. É manifestam enfim seus ossos secos (BA-
interessante observar que, em algumas so- TAILLE, 2013, p.70).
ciedades, o momento de corrupção da car-
ne corresponde a um tempo de transgres- As imagens de ossos como símbolos da morte
sões. No estudo antropológico de Caillois são tradicionalmente representadas em ima-
sobre a relação do homem com o sagrado, gens ocidentais desde a Idade Média. Do século
há relatos sobre períodos de licenças ritua- XVI ao XVIII, são estruturadas sob a noção de
lísticas desencadeadas pela morte do sobe- vanitas (termo latino que significa “vaidades”).
rano, em comunidades onde a vida social e Como tema do gênero de natureza-morta, os
a natureza se conjugam na pessoa sagrada símbolos do vanitas podiam ser representados,
do rei (RODRIGUES, 2011, p.29). além da figura do crânio e da tíbia, por espelhos,
flores, velas e outros objetos que manifestassem
À repulsa gerada pela visão da carne corrupta, a ideia de finitude, temporalidade e fragilidade
em decomposição, segue-se uma ressignificação da vida humana. Organizadas nas composições
dos restos mortais: com a transformação do ca- pictóricas sempre ao lado de objetos luxuosos,
dáver em esqueleto, a assepsia dos ossos sugere a iconografia do vanitas tem a intenção morali-
um apaziguamento da violência e a morte é ele- zante de um memento moris: a igreja buscava
vada à condição de alegoria. É passado o estágio lembrar aos fiéis – sobretudo à burguesia ascen-
de perigo e a morte, em sua serenidade, nos traz dente, que acumulava bens e riquezas em sua
ferramentas para pensarmos a brevidade da vida fase pré-capitalista (SCHNEIDER apud WITECK,
humana. 2012, p.2) – dos princípios metafísicos cristão,
segundo os quais o mundo terreno é um acú-
(...) A violência que interrompe, atingido o mulo de vaidades e devemos nos voltar para a
morto, o curso regrado das coisas, não ces- dimensão celestial que existe após a morte. Após
sa de ser perigosa mesmo já morto aquele longo período de desuso – sintoma do processo
que foi atingido. Ela constitui até um peri- de secularização que vê na ciência, e não mais
go mágico, capaz de agir por “contágio” a na religião, os paradigmas que devem orientador
partir do cadáver. Muitas vezes, a idéia de a sociedade –, o século XXI presencia um resga-
“contágio” se liga à decomposição do ca- te do conceito de vanitas. As exposições Vanitas,
dáver fresco, é imagem do destino, carre- Meditations on Life and Death in Contemporary

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Ordinário, Berna Reale, 2013.

Art, organizada em 2000 nos Estados Unidos e marca a dinâmica do consumo desenfreado que
C’est la vie! Vanités de Caravagge à Damien Hirst, rege os desejos em nossa atual sociedade; neste
de 2010, na França, retomam a noção do vanitas contexto, obras como a de Hirst podem ser lidas
barroco para pensar possíveis articulações com a como uma irônica constatação deste processo.
arte contemporânea. A obra For the Love of God No entanto, embora uma parcela da população
(2007), de Damien Hirst, veicula um evidente di- brasileira esteja incluída no sistema internacio-
álogo com os crânios das pinturas religiosas. nal de consumo ostensivo, é possível também
pensar uma terceira via para o vanitas contem-
Segundo Ana Paula Witeck, em seu artigo inti- porâneo no Brasil.
tulado Vanitas contemporânea: um possível novo
apelo do tema, de 2012, as apropriações contem- Em sua performance Ordinário, de 2013, Berna
porâneas do vanitas acionam questões diferentes Reale caminha pelas ruas do bairro Jurunas, em
daquelas pensadas pela igreja católica a partir do Belém – um dos mais populosos do perímetro
século XVI: no lugar da moral cristã, as vaidades metropolitano da capital paraense –, carregando
apontadas pelos artistas contemporâneos volta- consigo um carrinho de mão repleto de crânios
riam-se à sociedade de consumo, “à dominação e fragmentos de ossadas das vítimas não identi-
coletiva sofrida pela atual sociedade, ocidental e ficadas encontradas frequentemente nos cemité-
capitalista, subjugada e manipulável por aqueles rios clandestinos da região. Trajando um vestido
que comandam o sistema econômico-social, atra- inteiramente preto que lhe recobre os braços e
vés da dependência das mercadorias produzidas parte do pescoço, a aparência da artista sugere
por eles” (2012, p.1). A incessante busca pela referências à figura de personificação da morte
beleza, pela juventude e pela aquisição de bens (Berna já havia elaborado esta poética de alegoria

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Ordinário, Berna Reale, 2013.

numa série de auto-retratos fotográficos de 2011, particular de cidade. O memento moris reforça,
na qual aparece representando A morte em meio através dos signos funestos, a posição de vulne-
a arranjos de flores circulares típicos de velórios). rabilidade dos cidadãos frente à violência urbana.
Susana da Rocha propõe uma leitura das perfor-
mances da paraense a partir das noções de cho- Nas favelas do Rio de Janeiro há uma expressão
que e silêncio. Segundo ela, a reação de silêncio para designar os tanques utilizados pelo Batalhão
dos espectadores das ações de Berna é uma atitu- de Operações Especiais da Polícia Militar, o BOPE,
de recorrente frente aos signos da violência e que em ocasiões de invasão de território: o caveirão.
é precisamente esta violência silenciosa que a ar- A jornalista Karine Muller, na reportagem Cavei-
tista busca explorar: “a violência silenciosa ou a rão – a viatura do terror, para a revista Fórum,
que é observada em silêncio sem dúvida é a que em 2011, relata que “o carro ganhou esse apelido
mais me angustia”, conta Berna Reale à revista por um detalhe sórdido: um desenho de caveira
Das Artes, em 2013. que traz em sua lataria, o símbolo da morte”. O
símbolo do BOPE, consagrado no longa-metra-
A mórbida figura que atravessa o território de gem Tropa de Elite, de 2007, dirigido por José Pa-
uma região cujos índices de violência são alar- dilha, é a “faca na caveira”. Segundo o discurso da
mantes opera como possibilidade de um vanitas PM-RJ, o veículo só é utilizado em caso de ataque
contemporâneo: a lembrança da constante pre- armado por parte dos traficantes; na prática, este
sença da morte é um fato – a propósito do título tipo de operação é descrito por quem vive nessas
da performance – que Berna define como ordiná- regiões como um brutal massacre cotidiano.
rio, constituinte do cotidiano, das vivências e das
subjetividades que constroem essa experiência

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Ainda na Maré, um outro morador que não tos, apontando transformações e rupturas neste
quis ser identificado faz questão de rela- processo. Segundo Ariès, a sociedade moderna
tar as mensagens de terror que ecoam do elabora, sobretudo a partir da Primeira Guerra
alto-falante do blindado. Segundo ele, são Mundial, um recalcamento das imagens da mor-
frases como “vim buscar sua alma”, “se te, ocultando-a do convívio social e do cotidiano
não sair da frente, passo por cima”, “sai da das cidades, buscando extinguir o luto. Porém, o
frente que a bala vai comer”, entre outras. fim do século XX, ao experimentar um vertigi-
Conta que muitas vezes a mensagem pede noso aumento da violência urbana nas grandes
para que os trabalhadores não corram, se- metrópoles, reconfigura, em determinados con-
não eles matam. Diante dessas circunstân- textos, o regime de contato com a morte: qual
cias, obviamente ele e outros moradores é, por exemplo, a estrutura predominante na
não confiam nos policiais. relação com a morte no Brasil contemporâneo?
Quais as diferentes percepções e reações ao cor-
No dia 18 de maio de 2016, poucos meses antes po em estado cadavérico das diferentes realida-
da abertura dos jogos olímpicos no Rio de Janei- des brasileiras? Como cada grupo social – em sua
ro, quatro artistas – Rafucko, Nico Espinoza, Sa- pluralidade de classes, raças, gêneros etc – inte-
muel Van Ransbeeck e Tori Holmes – exibiram rage com a morte? Em que espaços e situações
a obra Outros registros no Oi Futuro Flamengo, o cadáver gera comoção? E, ainda, que tipos de
zona sul carioca. Criado em colaboração entre os cadáver acionam nosso afeto?
artistas, o projeto consistiu em apresentar um
“caveirão” como instalação sonora, reproduzindo A poética de Berna Reale em Ordinário, a propos-
num auto-falante os dados da violência na cidade ta coletiva da instalação Outros Registros e as ex-
coletados desde 2012 – ano da candidatura do Rio periências de Barrio com as trouxas ensanguen-
para as olimpíadas –, gerados a partir da tabela tadas articulam-se com as ferramentas retóricas
de homicídios em decorrência de ação policial. do vanitas ao refletirem sobre o lugar da morte
À exibição da obra seguiu-se um debate sobre em sua dimensão cotidiana, lembrando-nos da
a violência policial no Rio. A pauta da violência irrevogabilidade do fim. Para Bataille, o traço
urbana – e seus desmembramentos em nossa ex- capital que diferencia os humanos dos demais
periência da cidade ¬– foi tomada nesta obra em animais é, precisamente, a consciência da mor-
seus elementos explícitos, provocando no público te – cujos primeiros vestígios são pré-históricos:
a sensação de estranha familiaridade ao ver uma o escrúpulo que nossos ancestrais manifestavam
imagem de opressão reatualizada num museu, em relação aos cadáveres de seus pares, evidente
numa situação controlada. no enterramento das ossadas –, e é a partir dela
que se desenvolvem as idéias do erotismo e do
A reação frente à morte assume, historicamente, sagrado. O autor define a morte como um dos
posturas variadas em tempos, espaços e estru- interditos que regem a construção da sociedade,
turas culturais diferentes. O historiador francês opondo-se ao tempo regular e à ordem. Porém,
Philippe Ariès nos dá exemplos deste processo como pensar uma cultura na qual a presença da
em sua obra História da morte no Ocidente: o au- morte é tecida no seio do cotidiano, banalizada
tor investiga as diversas formas através das quais e naturalizada como política de Estado? A arte
o homem lida com a morte em diferentes contex- contemporânea, de Barrio à Berna, atenta às ur-

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gências dos corpos em estado de violência, lança KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: an essay on
novas propostas de desnaturalização da violên- abjection. Columbia University Press, 1982.
cia, buscando provocar um movimento em nosso
MULLER, Karine. Caveirão – a viatura do terror.
olhar frente à morte. Revista Forum. 2011. Disponível em: <http://
www.revistaforum.com.br/digital/32/caveira-
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agosto de 2016.
Tadeu Ribeiro é bacharel em História da Arte
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<http://dasartes.com.br/pt_BR/materias/ed-
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Artigo

Reprodutibilidade e fantasmagoria: a reinvenção


do simulacro em Morel
Adalgiso Pereira de Souza Jr.

“A invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares, é uma das mais celebradas obras da literatura
latino-americana. Publicada em 1940, brilhantemente prefaciada por Jorge Luís Borges, seu mentor
e parceiro literário, este romance antecipa de maneira contundente várias questões no âmbito da
tecnologia (como mortes possivelmente causadas por envenenamento radioativo, quanto também
a holografia). Por suas correspondências com a ideia de fantasmagoria como pensada por Walter
Benjamin, e por uma possibilidade de radicalização e perversão tanto deste conceito quanto do de
reprodutibilidade, levou-me às formulações contidas nestas linhas.

“Ela me encontrou na Lapa em uma sexta à noite científico que replica pessoas e ambientes através
quando eu chorava sua partida, e veio em minha de um uso até então impensado das tecnologias
direção, dizendo, ‘Fulano te viu e acha que você de projeção/reprodução.
estava à minha procura’. Deu-me um terno abra-
ço e se despediu. Em silêncio, respondi para mim Antes de passarmos ao artigo em si, antecipamos
mesmo ‘Eu te procurei a Vida toda, mas (sempre neste breve prolegômeno que as referências a
soube que) você nunca esteve disponível’. Chorei Carlos Castaneda, xamanismo tolteca e cultura
mais tarde aquela dor que era como uma segun- egípcia antiga não se dão segundo as regras mais
da morte antes da primeira, nos braços carinho- ou menos aceitas na academia para tal. Elas são
sos de um grande amigo.” resultado não de uma pesquisa estruturada nes-
tes termos, mas de um contato direto do autor
A sinopse de “A invenção de Morel” descreve um deste ensaio com certos aspectos presentes nes-
escritor venezuelano, perseguido politicamente tas tradições mágicas, livremente insertas no tex-
(algo aliás bastante comum em termos de Amé- to por sua conta e risco. O artigo, aliás, também
rica Latina no século passado), que vai parar em não se pretende acadêmico no sentido estrito da
uma ilha para fugir à justiça e acaba por se de- palavra, e representa por ora um segundo passo
parar com estranhos fenômenos, como sóis du- em um viés literário.
plicados, verões antecipados, fauna e flora que
apodrecem e vicejam de maneira estranhamente A figura feminina é definitivamente uma presen-
alternada, marés duplicadas e, por fim, o contato ça fortíssima no texto de Adolfo Bioy Casares. E,
com os “nativos”. Uma em especial, da qual se vê diferente talvez da apresentação do feminino em
enamorado, acaba por trazê-lo de volta ao conta- seu compatriota Borges, que soa muitas vezes
to com a civilização. Faustine é uma das “pesso- como um ideal inatingível ao molde de uma Be-
as” na ilha, e ao se apaixonar por ela o escritor atriz em Dante, poderíamos falar da mulher em
se vê enredado em uma trama que ao descorti- Casares como uma espécie bem-sucedida de he-
nar-se acaba revelando um sórdido experimento roína do cotidiano. É, todavia, e mais ou menos

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o inverso do que enxergamos em “ A Invenção Drácula, Frankenstein, Dorian Gray, Dr. Jekyll/
de Morel” (aqui dizemos mais ou menos, pois Mr. Hide e outros anunciam uma supremacia da
no final observa-se como em outras obras do máquina sobre o humano em uma nova era som-
escritor uma presença feminina redentora): em bria. No fundo, todos os fantasmas do mundo an-
praticamente toda a construção literária do autor tigo sabem-se de antemão condenados no atual,
portenho, a personagem feminina é estruturada, onde a religião é substituída pelo selo da razão e
decidida, forte até o limite e, sim, extremamente do cientificismo que dita os rumos de uma bar-
humanizada. A Faustine que aparece na novela bárie cada vez maior e renovada. Lilly Monster
é um fragmento que se desvela no decorrer da (a noiva de Frankenstein no livro de Shelley) e
trama, e tanto mais se revela em sua dimensão Dorian Gray fazem na série um casal de imor-
de construto quanto mais o protagonista assume tais, com falas que traduzem da melhor forma o
seu amor afirmando um devaneio. fascismo que ocorrerá em nosso próprio mundo,
décadas depois. À exceção talvez desses dois, as
Falemos, pois, de um simulacro. Simulacro mo- demais personagens inauguram aquilo que será
derno, um simulacro índice do progresso no que a marca mais forte desta primeira modernidade
este tem de mais distópico. Antes devir tecnoló- - o anti-herói. Drácula e o monstro Frankenstein
gico, maravilha da ciência positivista europeia, são por excelência a encarnação de um ideal de
agora perversão mais profunda de um sonho época que abraça e assume o sombrio como for-
no fundo inviável. Travestido de memória eter- ma de ser e estar no mundo. Sua bizarria e inade-
nizada na imagem, deixa sua marca no mundo, quação à nova sociedade que surge no que então
corrompido pela ausência de ética ou preocu- se convencionou chamar Ocidente é o retrato fiel
pação com sua consequência mais direta. Uma de um tipo de indivíduo já condenado ao desa-
performance em looping infinito. Um simulacro parecimento, ou melhor dizendo, ao fragmento.
do industrial por excelência (e aqui, diremos que
só o industrial produz o simulacro definitivo). Retomemos, pois, a ideia de simulacro. Simulacro
Recuemos no tempo pouco mais de um século onde o único ponto de fuga talvez resida no amor
e analisemos os grandes romances europeus de entre o escritor e o holograma. Amor holográfico
terror e ficção científica. Impossível não estabe- (amor como holograma?); amor que tudo per-
lecer, para a presente análise, conexões imediatas mite. Assumir na inevitabilidade da morte e da
com o Adonais de Shelley (pensar tais conexões decadência o amor pelo construto, estabelecendo
vitorianas como mitos industriais, também por com este diálogo que se sabe inúteis de antemão.
excelência). Pois o Prometeu moderno é sintoma Ainda assim, amor que redime o amante em sua
de um mundo onde, assim como o amor, o ser própria assunção, e que tanto dignifica quanto
humano é já também fragmento. “monstrualiza” o objeto amado, na medida exata
da violência de sua própria ilusão.
Todos os romances novecentistas e o decadentis-
mo seriam impensáveis sem o industrial. Na sé- Os antigos egípcios, a exemplo de outras cul-
rie de TV Penny Dreadful, vemos como as várias turas, pensavam o ser humano como um ema-
personagens do imaginário gótico europeu des- ranhado de princípios constituintes de sua to-
filam numa intertextualidade estonteante, onde talidade. Dentro da terminologia do “Livro dos
os vários discursos presentes em romances como Mortos Egípcio”, apareciam vários conceitos que

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norteiam não apenas a transição como também


a passagem e sucesso no pós vida (sucesso aqui Ainda assim, podemos inverter a questão: ao
entendido como a consecução de um processo de saber-se moribundo em função de algum efeito
iluminação, que fique bem patente). Um destes mortífero do maquinário que gera os hologra-
era o conceito de khaibit, literalmente um termo mas, a personagem da ilha prefere mergulhar
em egípcio para “sombra”, restos de persona- nesta ilusão e travar com ela uma conversação a
lidade que se desprendem do corpo na hora da partir das falas da projeção que aos poucos ma-
morte, e que precisavam morrer uma segunda peia, combina e recombina em variações diárias
vez se se quisesse alcançar Ka e Khabs, princípios até o dia de sua morte. Aqui o binômio “real-ilu-
espirituais mais elevados que representavam sório” readquire potência e ambiguidade: não
a consciência humana em sua plenitude (essa será o holograma o real e o escritor desengana-
segunda morte é um conceito presente em vá- do já uma sombra em transição? Ou, voltando a
rias culturas e aparece também na Bíblia, mais uma concepção egípcia, será que a imagem que
precisamente no Apocalipse de São João, que inspira o Amor não se equipara às mais eleva-
menciona um lago de fogo onde são lançadas as das realizações e aspirações humanas, a ponto de
almas, e que diferentemente da explicação exo- tornar o amante uma mera ilusão em relação ao
térica comumente admitida não se aplica apenas objeto amado? Esse Eros que brota de um con-
aos “pecadores”, senão que designa um processo tato incompleto e que se torna auto justificado,
pelo qual passam todos os seres humanos antes não será ele tão real a ponto de suplantar e reu-
chegar ao seu processo de individuação). Diz-se nir amante e amado, consubstanciando lhes em
dessas sombras que são orientadas por nossas uma única e terrível realidade? Pois para com-
necessidades mais animalescas, e que reprodu- plicar ainda mais a questão, o protagonista des-
zem de maneira automática no pós-vida a rotina cobre a máquina que gera as projeções, e decide
que o morto tinha em sua encarnação imediata. gravar uma cópia de si mesmo para conversar
Pois bem, tais khaibits podem ser comparados com Faustine, como se enamorados estivessem.
aos hologramas na ilha. De um lado temos o es- Ou seja, trata-se de um Eros que só se concretiza
critor exilado, de outro Faustine. O escritor pode quando o próprio amante se transubstancia em
ser positivamente pensado como “real” em um projeção.
primeiro momento, ele estabelece morada precá-
ria com o que tem em mãos ao redor, e pouco a Walter Benjamin propõe em sua “Obra de Arte…”
pouco constrói uma rotina. Depara-se com Faus- um uso da reprodutibilidade que possa afrontar
tine, em verdade um holograma, com o qual es- e desmistificar a imagem como objeto de culto e
tabelece aos poucos contato e diálogo. Como ela afirmação de um modo de vida e produção bur-
é de antemão objeto intocável, ideal inatingível, gueses por excelência. Com o tempo, a “quebra
não lhe ocorre talvez aproximar-se e verificar a da aura” pode substituir um estatuto da imagem
veracidade de sua presença física. Afinal de con- aos poucos absorvido por uma indústria cultural
tas, quando estamos enamorados, quem é que que se transforma em seu plano de sustentação,
toca o amado para aferir-lhe a existência? Não é antes reauratizando-a e ampliando em looping
precisamente essa a ilusão que o amor provoca e infinito seu caráter esquemático e banalizante. O
que encontra, no contemporâneo, o retrato mais holograma, que permanece ainda de maneira não
cru de sua face fragmentária? plenamente concretizado pela ciência, mas que

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evolui dia-a-dia com a implantação da tecnologia primeiro, alias). Aqui principiamos uma breve
3D no cinema contemporâneo, possui uma gene- digressão, pois os conceitos envolvidos na obra
alogia direta a partir da foto, filmagem e vídeo. de Carlos Castañeda são extremamente sofistica-
Seria, no momento, uma espécie de realização dos. Derivam de uma leitura atualizada de certos
máxima de um tal projeto, tão logo tivéssemos preceitos mágicos presentes na tradição xamâni-
uma tecnologia que concretizasse no ar uma pro- ca tolteca e mazateca, que são culturas amerín-
jeção utilizando-lhe como suporte para a luz em dias pré-colombianas que antecedem o Império
todas as cores (atualmente, o máximo que se con- Asteca no México. Dentro de tal releitura, todo
segue é chegar ao verde). Pode-se comparar tal xamã se submete aos cuidados de um mestre e
holograma ainda ao conceito de “fantasmagoria”, um benfeitor, que irão para efeitos iniciáticos dis-
tão presente em Benjamin e mais recentemente solver entre outras coisas a “auto-importância”
no trabalho de George Didi-Huberman. Ele é por e o apego ao racional do discípulo. Sob tal ótica,
excelência sintoma e realização máxima de uma o iniciado parte do “real” que ele conhece a par-
sociedade que abraça através do industrial o ima- tir do estado de vigília rumo ao Real dos esta-
terial, ao mesmo tempo em que esvazia primeiro dos ampliados de consciência (através do uso de
pela alienação no trabalho e depois consumo a substâncias alucinógenas chamadas pelos inicia-
própria relação humana. Perversão de um ideal dos desta linhagem de conhecimento “plantas do
que prega a emancipação através da captura e poder”, ou mesmo projeção astral ao estilo tolte-
registro da imagem devidamente ressignificada ca, pura e simples). Basta dizer que existe dentro
e potencializada pela montagem, perversão que deste complexo arcabouço de saberes um termo
se realiza ao provocar o consumo destas mesmas para racional (Tonal) e outro para irracional
imagens em escala massiva através da indústria (Nahual). O contato com tais aspectos da realida-
cultural, repotencializada por sua vez via internet de, pouco a pouco, além de dissolverem no brujo
e dispositivos (mas que também e contraditoria- ou bruja (termo em espanhol que designa tais
mente oferece-lhe subsídios críticos que podem feiticeiro (a) (s) os artificialismos gerados pela
cada vez mais ser apropriados por qualquer pes- socialização, revelam a estes aquilo que a vida
soa com acesso a tais hardwares e um mínimo de humana tem de automático, repetitivo, ilusório.
sensibilidade).
Voltando ao romance, em Morel a fantasmagoria
Seguindo o rumo do romance, importante tam- do amor, agora mecanizada, é por sua vez ampli-
bém pensar a máquina como mecanismo de re- ficada através de uma ilusão de eternidade que se
criação do mundo. Existem alguns momentos na tenta preservar via máquina. E talvez tenhamos
história em que a personagem se depara com dois chegado a um ponto fulcral no projeto do inven-
sóis e daí em diante com mais objetos duplicados. tor, pois para ele trata-se antes de mais nada de
Imagem, aliás, utilizada décadas mais tarde por uma (megalômana, sem dúvida) preservação da
Carlos Castañeda em “O Presente da Águia” e memória das coisas que a máquina captura no
mais recentemente pelo escritor de quadrinhos experimento da ilha. Se por um lado encontra-
escocês Grant Morrison em sua obra-prima Os mos redenção no amor que o escritor assume por
Invisíveis. Em ambos, trata-se de experiência de Faustine, talvez aqui se possa falar de perversão
consciência ampliada através de práticas mágico na persistência de objetos que, recriados, recu-
-xamânicas (o segundo em ampla referência ao sam-se a morrer, entrando para o espectador

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em choque com o mundo “real” que os cerca. E mais aspectos de nossa existência.
esse mundo replicado talvez reflita mais tarde a Vistas dentro da noção de fantasmagoria, as pro-
própria fantasmagoria de um mundo onde as re- jeções/simulacros se tornam um terrível retrato
lações humanas cada vez mais se esvaziam. Re- de uma existência humana completamente cir-
tomando Carlos Castañeda em “Viagem a Ixtlan”, cunscrita à sua própria rotina. Novamente vol-
este relata nas palavras do brujo Don Genaro um tamos a Castañeda aqui, quando menciona que
sentimento de isolamento do mundo pelo qual na jornada iniciática de um “brujo” importa não
passam os “homens de conhecimento”, cuja na- apenas mapear como ser completo senhor de
tureza é tal que o mundo inteiro parece povoado sua própria rotina. Isto quer dizer, nos termos
por fantasmas. O processo iniciático dessas po- do sistema xamânico que lhe dá origem, saber
pulações indígenas mexicanas é determinado por espreitar fatos e influências internos e externos,
um tal distanciamento, mesmo que seja exigido abandonando-se ou detendo-se nestes, o que na
destes iniciados uma aparente interação e uso prática implica em uma forma de ser e estar no
estratégico das ferramentas do mundo contem- mundo com grande fluidez, sobredeterminada
porâneo. Em paralelo, o que talvez esteja em jogo por uma imensa desidentificação com este mes-
de forma profética no romance de Bioy seja um mo mundo. Castañeda é advertido o tempo in-
sucessivo esvaziamento nessas relações a partir teiro por seu nahual Dom Juan dos perigos da
do industrial e do pós-industrial imediato, e mais socialização para um homem de conhecimento.
ainda, do ser humano reificado enquanto merca- De fato, mesmo uma pessoa não iniciada pode
doria, signo típico da sociedade de consumo atual. perceber que o processo civilizatório e seus des-
Enxergadas novamente em seu âmbito moderno, dobramentos trazem muitas amarras à criati-
podemos passar a mais uma relação, dessa vez vidade e plena realização do ser humano. Em
com a noção de experiência (Erfahrung) de Ben- verdade, essa “civilização” ocidental e sua etique-
jamin a partir de Proust. Aqui cabe um parênte- ta no fundo europeizante são responsáveis por
se, pois conquanto pareça trair, segundo Márcio muitas das mazelas em âmbito psicológico tão
Seligmann-Silva, certo caráter reacionário por frequentemente mapeadas desde Freud e além
parte do filósofo alemão, que evoca uma imagem dele. O teatro da vida em sociedade, sua rotina,
nostálgica do passado como “algo melhor”, ainda seus ritos, suas repetições, seu tédio e desventu-
assim a maneira como isto é articulado por Ben- ras, tudo isso nos parece representado nas pes-
jamin em sua crítica moderna da modernidade soas e cenários holográficos que a máquina de
se dá de maneira completamente vanguardista e Morel captura e reproduz. Não deixa de ser no
original(talvez no fundo e contraditoriamente a fundo tão aterrador quanto os romances góticos
seu projeto emancipatório e à sua crítica irredu- novecentistas a ideia de uma existência huma-
tível ao progresso, Benjamin ainda legitime certa na enquanto cópia em repetição infinita. Um tal
visão moderna de cunho europeu, devedora do conceito seria abominável aos olhos de um inicia-
projeto iluminista que lhe dá origem). No ro- do do Antigo Egito. Os iniciados do Novo México
mance de Bioy, as projeções e simulacros podem recusam a convivência contínua em sociedade
ser devidamente relidas enquanto antecipações e pelo mesmo motivo. De resto permanece talvez
sintomas das relações em sociedade no mundo a contraditória possibilidade de redenção através
dito contemporâneo, iluminando o que se torna do amor a um simulacro. Assim como a Jocasta
a vida sob a influência da técnica e da máquina, de Pasolini reconhece em Édipo seu filho e ainda
que para o bem e para o mal colonizam cada vez assim o solicita enquanto amante, o protagonis-

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ta de A Invenção de Morel cumpre seu processo Benjamin tratou de uma obra de arte na época de
ao não apenas reconhecer que o objeto de seu sua reprodutibilidade técnica. Casares talvez em
amor é um simulacro, como em também, por sua Invenção de Morel, trate, como diria Mariana
amor, transubstanciar-se em simulacro, ele mes- Pimentel, de um amor na época de sua reprodu-
mo, para acompanhar post-mortem sua amada tibilidade estética.
Faustine. Casares pensa sempre suas mulheres
como heroínas, figuras ao mesmo tempo fortes e Entendo que um ensaio, artigo ou crítica lite-
ainda assim delicadas. Apesar de idealizada aqui rários, para se pretender bom, deve de alguma
ao ponto de se eternizar enquanto holograma, no forma despertar no leitor a curiosidade por co-
final é a figura feminina que redime o homem e nhecer ou retornar ao texto original. Espero que
o (re)humaniza, a despeito de sua reconfiguração isto possa se dar após este artigo de um grande
enquanto simulacro. entusiasta da literatura fantástica portenha.

Assim como H. G Wells, que se imortalizou en- Pós-escrito de Fevereiro de 2017: A ideia conso-
tre outros por um romance passado em uma ilha lidada deste artigo nasceu em uma esquina de
(do Dr. Moreau), e Júlio Verne, que antecipou em Palermo em Outubro de 2016, enquanto descre-
sua obra vários avanços científicos que se con- via a uma colega a estrutura do texto, a intenção
cretizaram anos depois, também Casares o faz de de publicar algo mais livre e literário e - espe-
maneira visionária em Morel - e certamente de cialmente - como buscava superar, em forma de
maneira mais distópica, mais à moda do primei- escritura, certas frustrações amorosas pretéritas.
ro, especialmente em seus romances tardios. Não sei se o texto logrou concretizar a primei-
ra e segunda propostas. Sei apenas que, ao me
Ao assumirmos um amor, sobretudo aquele do despedir, ouvia o som de partido-alto do Cacique
tipo não correspondido, temos várias escolhas de Ramos em plena Palermo, com um sotaque
que vão desde a revolta em relação ao amado portenho até então impensável para mim. Fui ao
por não nos corresponder a outros caminhos, encontro do grupo de versadores locais e propus
que para efeito do seguinte artigo pretendemos então um dos temas clássicos de Mestre Monarco
heroicos. O amante contemporâneo pode assu- da Portela, “Vai Vadiar”. A execução, que não pre-
mir um tal papel, desde que entenda seu caráter tendo primorosa, especialmente pela quantidade
eminentemente fragmentário. Entender que se de vinho ruim da marca Dadá consumida, ao me-
ama o sentimento em si e não necessariamente nos teve uma adesão massiva na esquina onde
o amado pode levar-nos a entender o quanto de estávamos. Não era a Palermo arrabalde dos ro-
ilusão, a despeito da beleza que tal emoção nos mances de Bioy ou dos contos de Borges, muito
inspira, colocamos em jogo aqui. Ou então assu- menos o meu amado bairro de Olaria (onde, ”só
mimos este amor de maneira ética, portanto auto para contrariar”, situa-se o Cacique de Ramos).
justificada. Um tal procedimento pode evitar ou Mas, naquele momento e para sempre, era o
amenizar ao menos um tanto significativo de so- subúrbio, latino em toda a sua intensidade, que
frimento e auto piedade. Ou talvez se trate de as- provoca e obriga os corações à comunhão, nalgu-
sumir, no amor, um tipo completamente novo e ma rua quintessencial e arquetípica.
controlado de loucura.

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Adalgiso Pereira de Souza Jr. cursa Licencia- CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel.
tura em Artes Visuais na UERJ, integra desde Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify,
setembro de 2013 o grupo de pesquisa Escrita: 2006. Título original: La invención de Morel.
Arte, história e crítica (liderado por Sheila Cabo CASTANEDA, Carlos. Viagem a Ixtlan. Rio de
Geraldo). Participação como organizador/exposi- Janeiro: Editora Record, 1972.
tor no seminário Turbulências (Dezembro/2014
no MAR-RJ) e III Encontro para Jovens Pesqui- ______. O Presente da Águia. Rio de Janeiro:
sadores de Arte (CAIA, outubro/2016, Buenos Editora Record, 1972.
Aires).
PIMENTEL, M. A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade estética ou JR. In: Anais, ANPAP
adalmeister@gmail.com 2011. Disponível em: <http://www.anpap.org.
br/anais/2011/pdf/chtca/mariana_rodrigues_
REFERÊNCIAS pimentel.pdf> acesso em 10 fev 2017.

Anônimo. O Livro Egípcio Dos Mortos. São Paulo: SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de
Editora Pensamento, 1993. Walter Benjamin e Theodor W. Adorno. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
BARTHES, Roland. Fragmentos do Discurso
Amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e


Política (Obras escolhidas, v. 1). São Paulo:
Brasiliense, 2012.

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REVISTA DA GRADUAÇÃO DA ESCOLA DE BELAS ARTES - UFRJ

Artigo

ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA: A FOTOGRAFIA DE NHEM EIN


E O LUGAR DA MEMÓRIA
Vitor Brito

Este artigo tem por objetivo relacionar fotografias feitas durante a ditadura cambojana dentro de
um campo de concentração com o pensamento de autores como Thierry De Duve, Arthur C. Danto,
Andreas Huyssen e Harold Rosenberg, sobretudo, devido ao fato do fotógrafo em questão não
ter objetivamente nenhum interesse artístico e, ainda assim, ter sido imediatamente acolhido por
instituições de arte. Questionam-se desse modo os limites éticos deste trabalho e o papel crítico que
se deve exercer diante disso.

Introdução pretende-se desdobrar o debate contrapondo o


pensamento de Andreas Huyssen, que discute a
O presente trabalho tem como objeto de discus- respeito da memória e a retomada incessante do
são uma série de fotografias de civis que foram passado como um meio de “não esquecimento”,
mantidos em campos de extermínio durante a di- para colocá-las no campo do registro histórico.
tadura cambojana, liderada por Pol Pot, de 1975 a
1979, tendo sido tiradas por um jovem a serviço Ética, estética e política: a fotografia de Nhem
do governo, Nhem Ein, que recebeu treinamen- Ein e o lugar da memória.
to justamente para exercer essa função. O cerne
da questão fica evidente na década de 1990, após No texto “A arte diante do mal radical”, Thierry
o fim do regime, época em que as fotos são ad- De Duve expõe que este seu primeiro contato com
quiridas pelo Museu de Arte Moderna de Nova a série ocorreu durante um festival de fotografia
Iorque e começam a ser exibidas como arte, cau- na França chamado “Les rencontres photogra-
sando os impasses relatados em “A arte diante phiques d’Arles”, em 1997, com direção artística
do mal radical”, ensaio do historiador e crítico de Christian Caujolle. Nesse sentido, chama-se
de arte Thierry De Duve, ensejado pela exibição a atenção para a atmosfera criada por Caujolle,
dessas imagens em uma grande mostra interna- inserindo-as entre exposições de motivação es-
cional de fotografia, texto que serve de ponto detritamente estética e não política e que, tornan-
partida para este estudo. do-as públicas, contribui para o enfraquecimento
da potência dessas imagens e acepção delas como
A hipótese que inicialmente se levanta é que De objeto artístico – fato legitimado pelo MoMA ao
Duve, ao problematizar a questão em torno da incorporá-las à sua coleção.
legitimidade de se exibir as fotografias enquan-
to “arte” enfatizando um viés majoritariamen- Ainda, toda esta conjuntura é inusitada e preo-
te estético, termina por se eximir da análise da cupante: “S-21” é tanto o nome da exposição su-
produção de significado histórico dentro de uma pracitada quanto do campo de extermínio do pe-
lógica político-social particular, enfrentando o ríodo em questão. Estima-se que cerca de 14.200
problema apenas parcialmente. A partir disso, pessoas perderam suas vidas ali para o Khmer

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Vermelho, grupo do Partido Comunista da Kam- fim do gosto: uma defesa da arte contemporâ-
puchea, e que Nhem Ein teria sido responsável nea”. Danto tenta dar conta, com bastante suces-
pelo registro de entrada da maioria delas, se não so, da dimensão que a arte toma no século XX,
de todas. Quando foram libertados pelos vietna- sobretudo, como o nome do ensaio indica, depois
mitas em 1979, foram achados em torno de 6.000 das obras de Marcel Duchamp e levando em con-
negativos, sendo 100 destes restaurados por dois sideração como elas são revisitadas por artistas
fotojornalistas americanos em 1994, chamados contemporâneos.
Chris Riley e Douglas Niven.
O que se deve admitir é que desde 1917 Duchamp
Isto posto, a discussão tangencia o campo da alterou o repertório artístico ao introduzir um
fotografia como um todo, visto que desde a sua urinol dentro de um museu e, mais do que trazer
concepção houve muita dificuldade em enqua- o repulsivo para a arte, ele trouxe o não conven-
drá-la enquanto arte. Atualmente, embora esta cional. Isso significa que a “era do gosto” é subs-
situação tenha sido aparentemente superada, tituída pela “era do sentido” (DANTO, 2008),
esse diálogo ainda se faz complexo, pois ela ainda transcendendo questões de ordem estritamente
pode ser praticada por fotógrafos que não tem o formalista e reclamando o significado dos obje-
menor interesse pela alcunha de artista e os limi- tos e signos. Nesse sentido, ao nos depararmos
tes que os definem variam de acordo com valores com essas fotos é essencial que entendamos o
estéticos, éticos e conceituais, por exemplo. Su- que atravessa a sua produção: a morte de civis
ponho que o estranhamento de Thierry De Duve inocentes.
se inicie nesse ponto.
A meu ver, o que essa situação demonstra é que,
Contudo, quando este autor problematiza a de fato, os significados que atravessam o campo
questão a partir de um viés quase que estrita- das artes visuais são diversos, mas os seus meios
mente estético, a meu ver, ele se distancia de uma são éticos? Ou seja, a minha questão principal
possível solução. Segundo ele, “a legitimação hu- é: se pensamos a produção artística como uma
manista da prática da arte está ligada à noção de produção também de conhecimento, não se deve
que artistas são porta-vozes da humanidade no considerar os fatores político-sociais que a ins-
domínio estético, portanto postula a legitimida- tauram e se eles estão de acordo com dados va-
de do artista para falar em nome de todos nós” lores culturais? Além de não haver um impulso
(DE DUVE, 2009, p. 70). Porém, deve-se atentar desejante evidente por parte de Nhem Ein, ao
que Nhem Ein estudou fotografia desde os seus colocá-lo como artista, mais do que assumir ne-
15 anos a pedido do governo e assim ele atende gligência diante dos fatos, assume-se uma coni-
em suas fotos demandas caras a De Duve. Com vência acrítica.
isso, quero dizer que o fotógrafo cambojano está
igualmente preocupado com certa noção de belo, Por sua vez, Andreas Huyssen, pensador de na-
construído através dos efeitos de luz, sombra, ân- cionalidade alemã, apresenta no texto “Passados
gulo, etc. presentes” a atual preocupação com a memória
Assim, primeiramente, o problema apresentado dentro das sociedades ocidentais na qualidade
me levou a um texto do crítico de arte americano de fenômeno cultural e político. Ele entende que,
Arthur C. Danto chamado “Marcel Duchamp e o enquanto no começo do século passado havia

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uma preocupação do presente com o futuro, atu- forma positiva:


almente, há um diálogo intenso entre o presente
e o passado. A crença conservadora de que a musealização
cultural pode proporcionar uma compensação
Para ele, essa nova forma de discurso começou pelas destruições da modernização no mundo so-
a ser introduzida depois da década de 1960, so- cial é demasiadamente simples e ideológica. (...)
bretudo, por conta da descolonização e da neces- A própria musealização é sugada neste cada vez
sidade de uma revisão da história. No entanto, mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos
somente em 1980 ela se estabelece objetivamente e eventos e, portanto, está sempre em perigo de
e, como exemplo, o autor traz o crescente inte- perder a sua capacidade de garantir a estabilida-
resse pelo debate a respeito do Holocausto sur- de cultural ao longo do tempo (HUYSSEN, 2000,
gido nessa época. Ele o reitera como um “lugar p. 30).
comum universal”, de modo que o seu descen-
tramento funciona como um prisma para o reco- Ao pensar a aquisição dessas fotos pelo MoMA,
nhecimento de outros tipos de genocídio (HUYS- talvez essa situação fique mais evidente. O crítico
SEN, 2000). de arte estadunidense Harold Rosenberg no livro
chamado “Objeto ansioso” aponta igualmente
Igualmente importante é a sua observação a res- que essa acepção corresponde a uma necessidade
peito da memória como uma forma de esqueci- imediata de assimilação de variados tipos de pro-
mento. Huyssen assume que, na sociedade con- dução, perguntando-se se de fato estas podem
temporânea, a relação entre as duas é tão estreita ser consideradas como arte. Comenta: “A inten-
que é difícil identificar se “é o medo do esque- sidade do interesse despertado pela novidade já
cimento que dispara o desejo de lembrar ou é, é suficiente para que lhe arranjem um lugar na
talvez, o contrário” (HUYSSEN, 2000, p. 19). Em história da arte” (Rosenberg, 1964, p. 229). Ou
todo caso, em seu entendimento, não é comple- seja, hoje, a possível atenção do público vem an-
tamente possível uma compreensão dessa temá- tes de uma discussão e avaliações críticas mais
tica a partir da ideia de memória coletiva, pois densas.
atualmente as memórias se encontram cada vez
mais fragmentadas (fator diretamente associado Nesse caso em particular, observa-se novamente
ao surgimento das novas tecnologias de mídia). a incessante tentativa de “salvar” todos os obje-
No entanto, penso também o quanto cada uma tos de modo que a reflexão a respeito de seu valor
dessas memórias individuais não é frequentada simbólico se torna, ironicamente, mais superfi-
por essa estrutura social. cial e se estabelece através da premissa de que
num futuro ainda incerto esses possam desem-
Em um último momento, o autor comenta a res- penhar um papel central na história da arte.
peito da musealização como uma ferramenta da
memória. Recorrendo ao filósofo alemão Her- Meu outro questionamento é: será que o reapa-
mann Lubbe, demonstra-se que esta prática não recimento dessas fotografias não dispara muito
diz mais respeito exclusivamente à instituição mais um desejo de lembrar-se do que de contem-
museu, mas na realidade a todas as áreas da vida plação? Com isso, não descarto a importância
cotidiana, o que ele não vê necessariamente de delas para toda a população cambojana (assim

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como o Holocausto para a população alemã), que A ganhadora do segundo lugar da categoria de
comunga das mesmas vivências e precisa conti- “Notícias em Geral” no ano de 2015, Glenna Gor-
nuamente se relembrar de sua própria tragédia don, apresentou como trabalho uma imagem
para que esta não venha a acontecer novamente. muito potente: buscando retratar os diversos ca-
É necessário entender que a produção de subjeti- sos de sequestro e violência do Boko Haram, na
vidade presente nos trabalhos de arte é resultado Nigéria, contra jovens mulheres e adolescentes,
de uma incessante investigação e embora muitas ela fotografa, em uma atmosfera criada por ela
vezes cause incômodo é parte intencional da ex- mesma, o uniforme de três meninas desapareci-
periência artística. Creio que o que incomoda a das. Essa foto é preenchida por um vazio abso-
mim e De Duve é que, até onde se sabe, Nhem luto, da ausência que se faz presente através dos
Ein não age através de um impulso investigativo objetos dessas garotas. A meu ver, é difícil, quase
e, desse modo, é difícil conferir a ele a alcunha de impossível, não associar isso a um impulso artís-
artista, ainda mais se pensarmos nos limites éti- tico e reforça a linha tênue que separa os campos
cos que ele ultrapassa. Além disso, é igualmente supracitados.
complexo que a sua acepção pelo circuito artísti-
co tenha se dado de maneira tão natural. Continuando, ainda no ano de 2015, houve uma
exposição de grande proporção na Caixa Cultural
Entendo que a importância deste trabalho reside do Rio de Janeiro intitulada “Veias” cujo objetivo
justamente na alarmante frequência com que a era apresentar as fotografias de Anders Petersen
espetacularização da tragédia vem acontecendo e Jacob Aue Sobol, dois artistas europeus nascidos
dentro das artes visuais e da fotografia como um na Suécia e na Dinamarca, respectivamente. Por
todo e percebo que esse fato cruza certos limites sua vez, ambos compartilham de uma mesma
éticos e que a sua justificativa se distancia cada temática para os seus trabalhos, que tratam de
vez mais do propósito artístico e da história da grupos socialmente marginalizados. Seja quando
arte. Além disso, cabe julgar igualmente os tra- fazem “residência” em uma casa de prostituição
balhos de fotografia, principalmente fotojornalis- (caso do primeiro) ou viajam pelo Leste Europeu
mo, que se apropriam de valores pictóricos para (caso do segundo), o que lhes interessa é docu-
a sua concepção, uma vez que confundem ainda mentar a realidade do outro.
mais todas essas linguagens.
Ao depararmo-nos com essas fotos, é mais uma
Por exemplo, anualmente na Caixa Cultural do vez inegável a qualidade técnica, contudo, a sua
Rio de Janeiro acontece a mostra de fotojorna- produção de sentido é extremamente problemá-
lismo chamada “Word Press Photo”, que, sub- tica. Como é possível que um artista romantize
dividida em diversos temas, apresenta séries de questões como fome, miséria ou preconceito?
fotografias que se destacaram no último ano e De que modo isso é aceito pelo circuito? Porque
levanta questões como esporte, meio-ambiente, isso vira parte do mercado de arte? É justo que
política, entre outras. Nesse sentido, a qualidade a ascensão destes se dê através de pessoas con-
estética desses trabalhos é inegável, mas mais do tinuamente negligenciadas e oprimidas pela so-
que isso, há uma preocupação conceitual muito ciedade?
forte.

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Ressalto que, definitivamente, os campos arte e ela foi utilizada a favor de interesses duvidosos e
memória, ou mais especificamente arte e regis- até mesmo desonestos.
tro histórico não se anulam, mas é necessário
repensar suas bases para que não os associemos Nesse sentido, Nhem Ein com toda a certeza
equivocadamente, pois estas compõem a experi- pode ser pontuado como uma figura emblemá-
ência e a percepção humana. tica, pois toda a história que envolve a sua pro-
dução e “carreira” artística é desonesta e isso já
O que todos esses trabalhos demonstram é o deveria ser motivo suficiente para distancia-lo da
quão delicado é esse diálogo e que a construção história da arte, considerando-a como produção
dessas narrativas deve ser sempre muito atenta de sentido, mas desde então ele continua apare-
e cuidadosa para não ultrapassar determinadas cendo. Por fim, me pergunto para quem ou a quê
barreiras. Aqui, não busco endossar um discurso tal inserção é vantajosa.
moralizante sobre arte, mas, sobretudo, gerar o
debate e a reflexão uma vez que ao longo da his-
tória, infelizmente, foram diversas as vezes que

Sem título - Prisioneira #246 do Khemer Vermelho (1975/79), Nhem Ein.


Sem título - Prisioneiro #6 do Khemer Vermelho (1975/79), Nhem Ein.

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Sem título - Prisioneiro #8 do Khemer Vermelho (1975/79), Nhem Ein.


Sem título - Prisioneiro #389 do Khemer Vermelho (1975/79), Nhem Ein.

Glenna Gordon, EUA, para Time/The Wall Street. Ano de 2014.

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Sem título, Anders Petersen. Sem título, Anders Petersen.

Sem título, Jacob Aue Sobol.

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Vitor Brito é graduando em História da Arte Referências


pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Foi bolsista do projeto de Iniciação Científica DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e
do programa Novos Talentos Para a Ciência o fim do gosto: uma defesa da arte
contemporânea. ARS, São Paulo, Vol. 6, no.
(CAPES) e arte-educador de instituições como 12, jul/dez, 2008. Disponível em: http://
Centro Cultural Correios e Caixa Cultural (RJ). www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
Atualmente, é pesquisador pelo programa PIBEX arttext&pid=S1678-53202008000200002.
junto do NEQUAT do CCMN/UFRJ. Acessado em: 18/07/2016.

DE DUVE, Thierry. A arte diante do mal


radical. ARS, São Paulo, Vol. 7, no. 13,
jan/jun, 2009. Disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1678-53202009000100005.
Acessado em: 18/07/2016.

HUYSSEN, Andreas. Passados presentes. Rio de


Janeiro: Aeroplano editora, 2000.

ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso. São


Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 229 – 239.

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Artigo

Educação grega:
o ideal que se perdeu da humanidade
Cintia Gameiro, Clarice Saisse e Débora Poncio

O objetivo desde artigo é salientar que o sistema educacional brasileiro encontra-se cada vez em
situação mais precária, possuindo reflexos nas esferas dos colégios e faculdades públicas do país.
Pretendendo remontar ao período histórico da antiguidade grega, em que a educação buscava
atingir tanto o nível físico quanto metafísico, permeando cada aspecto do ser, formando-o em sua
completude, situação essa, que muito difere da realidade com que os estudantes se deparam e o nível
de educação a que possuem acesso, sendo este, igualmente precário em sua defasagem estrutural.
Sabe-se contudo, que quem somente possuía acesso à educação na Grécia antiga, eram os homens,
sendo escravos e mulheres excluídos, não sendo este fato negligenciado em nossas pesquisas.
Entretanto, os resultados das pesquisas e desde artigo pretendem dar luz ao aspecto da educação
que, em determinado momento existiu e que precisamos lutar para que procure se restabelecer, no
sentido da formação que oferecia e não, no da exclusão.

A educação é tema que permeia e é discutido em do em outro termo, “areté” (em grego, adaptação
seu caráter político e social por toda a história perfeita, excelência, virtude). Areté e Paideia são
das civilizações, uma vez que é um dos temas ba- conceitos que se relacionam de forma intrínseca
silares para o fomento de sociedades, as quais, se e juntos, significam a excelência do saber em seu
fazem presentes, a harmonia e justiça, conferin- espectro integral que une a mente, o corpo e o
do sentido à vida dos seres humanos. Na Grécia coração. Seria uma formação intelectual em seu
antiga não houve diferença e assim surge o con- sentido mais profundo e completo.
ceito de “Paideia”.
A música tinha papel importante na vida dos gre-
Paideia (παιδεία) é um termo do grego antigo, gos, de forma que “não saber cantar ou tocar um
empregado para sintetizar a noção de educação instrumento era tão deprimente como, em nos-
na sociedade grega clássica. Inicialmente, a pala- sos dias, não saber ler e escrever” (NEVES, 2013,
vra (derivada de paidos (pedós) - criança) signi- p. 573). A música pode ser observada na peça
ficava “criação dos meninos”. Este vocábulo não “Cena de Escola”, feita em aproximadamente 480
carrega consigo somente sua conceituação pura, a. C., por Douris, um artista da época. O vaso de
uma vez que para os gregos, além de possuir um cerâmica pintada com a técnica de figuras ver-
significado, era antes uma ideologia. Paideia in- melhas, encontra-se atualmente no Museu Staa-
voca tanto o sentido de movimento, do processo tiche, em Berlim e pertence à coleção de antigui-
educacional, quanto a educação em si. dades clássicas, chamadas de Antikensammlung.
A peça é, originalmente da região de Caere, hoje
Antes disso, o conceito que originalmente expri- Ceveteri, na Itália.
mia o ideal de formação social grego estava conti-

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dizado e em cada um deles, estão dois pares de


professores e estudantes. No Lado A, o par do
lado esquerdo pratica a lira, sendo o professor o
homem barbado e o aluno, o inteiramente vesti-
do. O professor do segundo par está sentado em
uma cadeira com almofada, olhando para frente,
com seu pupilo à sua frente, enquanto segura um
pergaminho, aberto parcialmente, tendo algo es-
crito em sua extensão exposta. O terceiro homem
Vaso de Douris, Cena de Escola.
barbado da figura, na direita, olha para a sua
frente com suas pernas cruzadas nos tornozelos,
No interior do vaso, pode-se ver um jovem re- sua cabeça virada para observar as atividades da
tirando suas sandálias, nu e curvado, apoiando escola.
seu pé direito sobre uma espécie de banco, para
retirá-las, enquanto seu bastão de padrões tra-
balhados, se apoia em um louterion – espécie de
vaso da antiguidade, que estando num ambiente
similar ao banheiro de hoje, se apoiava sob um
pedestal e dele os gregos se utilizavam para se
lavarem. Mas essa não era sua única utilidade. –
atrás dele. Lado A, em figura preto e branco.

Detalhe do Lado A, o homem à direita.

No Lado B do vaso, os dois professores são jovens


e não possuem barba. O professor à esquerda,
sentado em um banco sem almofada, toca a flau-
Interior do Vaso de Douris. ta. O professor que se encontra mais ao centro da
peça, está sentado em um banco com almofada,
A cena de escola, propriamente dita, encontra-se com a face para frente, segurando e escrevendo
representada pelo lado de fora do vaso e é dividi- com sua mão direita em uma tábua que apoia-se
da em Lado A e Lado B, por ser circular e assim em seu colo, usando seu stylus – uma espécie de
dividida, é possível observá-la em sua comple- caneta. Há também desse lado, um homem bar-
tude. Ambos os lados retratam cenas de apren- bado sentado e observando. Assim como no lado

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A, há uma inscrição ao longo da parte de cima da talvez esses estudantes devessem invocar em sua
cena e em todas as figuras retratadas no Lado A memória todo o ensinamento, posteriormente.
e B utilizam uma fita vermelha na cabeça, assim
como alguns instrumentos e o pergaminho que
se encontram na parede.

Assinatura de Douris, detalhe


da obra Pieta de Memnon,
que encontra-se no Museu do
Louvre, em Paris.

Platão, apesar de ser de época posterior à obra


“Cena de Escola”, traz ideais que já eram pre-
Lado B completo. sentes nessa época, tendo a música como parte
essencial da sociedade grega. Dessa forma, “os
cidadãos seriam educados desde a infância a
buscar a verdade, praticar o bem e contemplar
a beleza”, como é discutido na obra República. É
importante destacar que nesse período, a mú-
sica e a poesia eram partes integrantes uma da
outra, portanto, os estudantes não iriam somen-
te aprender a lidar com ritmos e tons musicais,
mas também se aprimorariam da palavra fala-
Detalhe do Lado B, prática de flauta.
da. “Para a cultura grega, a poesia e a música são
irmãs inseparáveis, a ponto de uma única pala-
vra grega abranger os dois conceitos” (JAEGER,
2001, p. 786).

Ao se fazer uma análise sobre a formação do ho-


mem grego na antiguidade para servir de com-
parativo com a atual educação, nota-se o quanto
perdemos com o passar dos séculos no quesito
educação de qualidade – apesar de ser verda-
Detalhe do Lado B, professor com stylus. deira, a condição exclusivista com que o ensino
grego era difundido, de forma que somente os
É interessante observar também que todos os meninos seriam educados, deixando de lado os
pupilos da obra, retratados observando seus pro- escravos e as mulheres – ou pelo menos o sentido
fessores – exceto um, que pratica a lira junto com mais puro e verdadeiro que há por traz deste ide-
seu professor (Lado A) – não possuem nenhum al. A educação grega em seus primórdios e prin-
tipo de anotação, só os observam, de forma que cipalmente em seu auge já era muito avançada

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em relação aos tempos atuais. Tal comparação seja lançada a Base Nacional Comum Curricular
não leva em conta o conjunto de conhecimentos definitiva, que determinará as matérias opcio-
que hoje se tem junto as várias tecnologias. Mas nais e obrigatórias.
leva-se em conta o “espírito grego” - como diria
Werner Jaeger - o desejo, a vontade de evoluir Criou-se em nossa sociedade uma cultura em
e com qualidade e principalmente assegurar tal que: “História Antiga, música, filosofia e coisas
desejo e condições para as gerações futuras. que afirmam fortalecer o desenvolvimento pes-
soal, e não a vantagem comercial e política, di-
Os gregos antigos tinham como ideal e preocupa- ficilmente engrossam os números e índices de
ção com a formação de seres humanos integrais e competitividade” (BAUMAN, 2009, pag. 40), sen-
de modo pleno. Educar, para eles era algo muito do dessa forma, o ideal perdido, a qualidade do
mais profundo, precioso e que infelizmente com ensino oferecido aos jovens.
o passar dos séculos foi-se perdendo tal ideal. E
para a humanidade este é um grande prejuízo. Escrito por Cintia Gameiro de Barretos, SP –
Nas palavras de Schmitz “o homem é um eterno Graduanda em História da Arte pela Universida-
insatisfeito. Ele quer a perfeição. Ele quer o abso- de Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, por Clarice
luto. E sempre continua procurando” (SCHMITZ, Saisse do Rio de Janeiro, RJ – Graduanda em His-
1984, pag. 183) tória da Arte pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ e também por Débora Poncio de
Com certeza a conceituação atual de educação é Duque de Caxias, RJ – Graduanda em História da
totalmente distinta de conceitos antigos elabo- Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
rados pela humanidade ao longo das épocas. A – UFRJ. Orientadora: Aline Couri.
educação hoje passou a ter uma conotação muito
voltada por parte dos governos principalmente
REFERÊNCIAS
para o comercial. Ou seja, “neste mundo de es-
tilo empresarial, racional, num mundo em que BAUMAN, Z. Vida líquida. Rio de Janeiro: Edito-
se procura o lucro instantâneo, a administração ra Zahar, 2009.
das crises e a limitação dos danos, qualquer coisa
CLASSICAL ART RESEARCH CENTRE. Attic Red
que não possa provar eficácia instrumental é um
Figure: Douris ‘school cup’. University of Oxford,
tanto evasiva” (BAUMAN, 2009, pag. 39). 2012. Disponível em: <http://www.beazley.
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Não é objetivo do governo criar pessoas inteli- gure/douris.htm>. Acesso em 21/01/2017.
gentes o suficiente para contestar as decisões do
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estado. Não é à toa que o ensino do pensar refle- de e Política na Grécia Antiga. Disponível em:
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Acesso em: 19/01/2017.
gumas matérias opcionais, retirando-as do currí-
culo obrigatório. Dessa forma, o estudante pode- JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem gre-
ria somente escolher uma matéria do currículo go. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins
eletivo. A previsão é de que até meados de 2017 Fontes, 1986.

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Artigo

ArRUAça: estudos iniciais sobre o corpo funkeiro


carioca
Mayara de Assis

Partindo do pressuposto empírico de que o funk carioca é um fenômeno social que manifesta uma
natureza incapturável de forma plena aos mecanismos de colonização, dotado de caráter dinâmico,
sendo em si o próprio movimento, refletiremos aqui sobre o corpo que dança funk, tendo como
principal estudo de caso o espetáculo ArRUAça.

Nos caminhos da ArRUAça O dançar enquanto Ato de colocar-se diante do


mundo, estar ereto, considerando isso enquanto
ArRUAça é o projeto que surge como ilustração Ato político (GODARD,1999), é o que podemos
do Memorial de curso e produção monográfica1 compreender dentro da multiplicidade daquilo
de conclusão em Bacharelado em Dança pela que compete ao nosso próprio fazer artístico:
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Depar- uma ruptura pessoal que transborda, pois se re-
tamento de Artes Corporal do Centro de Ciên- laciona com a vida, oriunda das relações com os
cias da Saúde). Como espetáculo de funk carioca, espaços e as memórias, que fazem da identidade
nasce das inclinações enquanto pesquisadora em dançante algo em constante processo dinâmico
dança, oriundas dos processos reflexivos perpas- de metamorfose.
sados ao longo da trajetória acadêmica da autora
deste presente trabalho, como coreógrafa e bai- As relações históricas, sociais, culturais, políticas
larina. das zonas periféricas serão focadas aqui, no ter-
ritório do Velho Oeste2, ultrapassando seu conhe-
Partindo de um debruçar nas “memórias sub- cido status de imensa área verde. O bairrismo do
terrâneas” (POLLAK, 1989, p. 5), estas que vêm ArRUAça é envolvido pelas energias potentes do
à tona como reivindicação de uma mulher preta morador do Velho Oeste, logo, a discussão tra-
suburbana e funkeira, que teve seu corpo negado rá um contexto desenvolvido por um grupo que
como potência ao longo da graduação, em dife- “reivindica uma maior visibilidade social face ao
rentes episódios, ArRUAça faz parte da análise na apagamento a que foi, historicamente, subme-
forma de experiência em dança, sobre os múlti- tido”. (NOVAES, 1993, p. 25 apud MOUTINHO;
plos borramentos e atravessamentos corpo/terri- BORGES, 2015, p. 3).
tório/Funk. Se aproximando das potencialidades
produtoras de dinâmicas corporais que faz surgir Destacamos em especial a temporada de apresen-
o dançar funkeiro, tais ações são borradas e atra- tações de 2016, onde oportunizamos as reflexões
vessadas por uma identidade pessoal e, multipla- que compõe este trabalho, onde visamos priori-
mente, formada pelo Ato de se relacionar com os tariamente os espaços culturais localizados no
espaços em todas as esferas. subúrbio, pois era nosso desejo promover estes,
e estimular a população local a participar. Que-
ríamos retribuir a estes territórios suburbanos e

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Da esquerda para a direita: Frederick Assis, Mayara de Assis e Flaviano Rodrigues. O elenco de ArRUAça.

periféricos com o nosso espetáculo, posto que o Uma reflexão sobre o corpo Funkeiro que
morador destes locais haviam sido nossas inspi- dança
rações iniciais. Estamos falando dos dias 3, 10, 11,
19, 23 de novembro3, e do dia 15 de dezembro4. Entendendo o funk como uma cultura que nas-
Para finalizar nossa delimitação, ressaltamos ce da herança preta, ancestral, acreditamos que
que ao longo das etapas de elaboração e monta- a marginalização do funk se dá pelos mesmos
gem coreográfica do ArRUAça, nos respaldamos motivos aos quais a cultura preta vem sendo cri-
em: oficinas de experimentação corporal, labo- minalizada ao longo dos séculos, no discurso das
ratórios corporais para elaboração coreográfica, elites dominantes, associados à desordem, e ditas
levantamentos bibliográficos diretos e indiretos como de “classes perigosas” (CARVALHO, 2015).
de fontes secundárias em dados retrospectivos e Não será de nosso interesse aqui apresentar o
contemporâneos, escritos e sobretudo observa- mapeamento da história do funk no Brasil, posto
ções diretas e intensivas na vida Real, caminhos que vinculamos a dança funkeira como ancorada
estes que nos levaram a composição coreográfica e herdeira das afeições ancestrais. Mesmo sem
e estudos em dança que serão apresentados neste que o corpo do dançarino tenha entendimento
texto. disto, acreditamos que dançar funk seja ativar
a nossa ancestralidade em um híbrido de con-
densação histórica sem contradição. (ALMEIDA,
2006).

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Esse corpo de dança associado à errância, ao Segundo Moutinho e Borges, não foi somente a
inapropriado, ao transgressor e à subversão dos influência da chegada do Soul e dos bailes Black
“altos valores”; o mesmo da escravidão aos dias no Brasil, mas toda uma influência vivida no to-
atuais, quanto mais livre, mais incomoda. Nos que do tambor dos pretos, que já compunham o
queriam escravizados. Nos libertamos, transbor- mapa identitário na formação da nossa socieda-
damos, rebolamos, gingamos, quebramos, per- de. “Ao criminalizar o funk, e o estilo daqueles
turbamos, ArRUAçamos. que se identificam como funkeiros, os que hoje
defendem sua proibição são os herdeiros histó-
O funk, esse porta-voz atual da juventude em ricos daqueles que perseguiam os batuques nas
descolonização corporal, criminalizada por par- senzalas”. (MOUTINHO; BORGUES, 2015).
te das esferas de poder e elites, e enriquecido de
potências corporais jocosas, e sensuais, ligado Então, todas as oficinas corporais, laboratórios,
as danças da diáspora africana, o “tabiado” e a que direcionaram a pesquisa (teórica e prática)
“rabiscada”, no eixo solo – corpo – céu, em um partem do ponto primordial do corpo da falante:
jogo constante na busca por essa perspectiva de eu e minha observação corporal dançando funk
eixo vertical, que talvez o corpo do dançante nem e observando as dançarinas e dançarinos funkei-
queira encontrar, estando a “graça” justamente ros do Velho Oeste. Muniz Sodré, falando sobre
no desequilíbrio, subvertendo a verticalidade em o corpo preto e seu movimento na música e na
um eixo vertiginoso. (SODRÉ, 1998). dança, nos fala bem, quando explica partindo da
síncopa musical, metaforizada por Duke Ellington,
Em seu livro “Samba, o Dono do Corpo”, citan- famoso band-leader norte-americano no movi-
do os escritos de um viajante português sobre mento do Jazz, expõe o seguinte:
as manifestações de Cancondos e Quiocos, em
Angola, Muniz Sodré diz que “O corpo inclina- A Síncopa, a batida que falta. Síncopa, sa-
do para frente, mexendo os quadris e batendo be-se, é a ausência no compasso da marca-
palmas, ritmicamente, acompanhado pelo ruído ção de um tempo (fraco) que, no entanto,
incessante dos tambores (…) O que impressiona repercute noutro mais forte. (...) incitando
é o ardor que os pretos põem na dança, como o ouvinte a preencher o tempo vazio com
se fosse qualquer coisa de essencial”. (SODRÉ, a marcação corporal– palma, meneios, ba-
1998, p.22). Embora não tenha se referido ao lanço, dança. É o corpo que também falta –
funk carioca, percebemos qualquer coisa de mui- no apelo da síncopa (...). Sua força magné-
to semelhante aos movimentos corporais que tica, compulsiva mesmo, vem do impulso
ele descreve, e nos ancoramos nesta frase cita- (provocado pelo vazio rítmico) de se com-
da para observarmos o corpo preto que, seja no pletar a ausência do tempo com a dinâmica
berço africano ou com o passar dos tempos, em do movimento no espaço. (SODRÉ, 1998,
manifestações diferentes, carrega características p. 11).
que os aproxima. Um corpo volumoso, de dança
poderosa, que começa na vibração interna, que Com esta citação, começamos a pensar o corpo
em abundância faz transbordar a bacia. Encon- da dança funkeira partindo da expressão popular
tramos nisto nosso diálogo. nos bailes, comum ao Velho Oeste: o Talentinho.
Que pode ser interpretado como a ginga, a ma-

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Flaviano Rodrigues e Frederick Assis, e cena, com o Talentinho

nha, a dinâmica, o colorido ou a graça do movi- Flaviano5, nosso intérprete-criador: “é preciso a


mento. Tal como a síncopa, o tempo vazio precisa manha, o Talentinho, se não fica só mexendo o
do preenchimento com o corpo (seja em palmas pé para frente para trás, ou abaixando e subindo,
ou meneios), o movimento precisa de algo que isso qualquer um faz”, este mesmo intérprete-
lhe dê sentido, que preencha o “tempo vazio”, e criador, quando perguntado de onde vem a “ma-
que de uma forma compulsiva é preenchida pe- nha” que ele fala, não sabe dizer: “Isso não tem
los funkeiros em suas danças com seus sotaques como ensinar”. O Talentinho é algo que não se
corporais, e sua própria identidade. Um dança- pode ensinar, e sim podemos experimentar, cada
rino não se movimenta como o outro, e a dança um com o seu, então nosso encontro em dança é
não se limita em apenas uma execução de passos, promover as experiências corporais na empreita-
fica o exemplo quando no passinho, uma espécie da de experimentar nosso Talentinho.
de “antropofagia” cultural promovida pelo funk,
com alguns movimentos presentes noutra mani- Para observação e experimentação desse Talen-
festação popular, o frevo nordestino por exem- tinho, a priori utilizamos três veículos que nos
direcionaram às investidas corporais em funk,
plo, se não tiver o talentinho do funk, será o frevo
e não uma dança funkeira. foram estes: Peso, Volume, Desejo. Estes nossos
veículos, foram descortinados ao longo dos pro-
Não é apenas o funk ou apenas frevo, pois todos cessos de investigações teóricas e práticas deste
têm o livre acesso à “técnica” da criação daque- trabalho. Peso é por nós visto cercado pelo ca-
le movimento do corpo, mas, segundo Willians ráter histórico e social, e suas reverberações nos

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Willians Flaviano
movimentos. Volume visto como o tamanho que potência do estar, uma organização de presença
o dançarino atinge em sua artistagem funkeira. para o corpo.
Desejo como aquele que direciona todos os ou-
tros, é a busca do colorido, graça da dança. To- Em relação ao peso, a gravidade já contém um
dos estes estão interligados entre si, e são apenas humor, um projeto sobre o mundo. É essa gestão
pontos pelos quais visitamos a dança funkeira, do peso, específica e individual que nos faz reco-
em nossas investidas por experimentarmos o Ta- nhecer (…) chamaremos de pré-movimento essa
lentinho. atitude em relação ao peso e à gravidade, que
existe antes mesmo de se iniciar o movimento,
Peso: Para além do conceito de peso no campo da pelo simples fato de estarmos em pé. (GODARD,
física, sendo a grandeza vetorial que correspon- 1999, p. 13). Estar de pé já é ato, toda a organiza-
de a força exercida por um objeto em virtude da ção e o refinamento que é preciso para que nossas
atração de um outro corpo. Esta grandeza veto- musculaturas estejam erguidas, já compõe a pre-
rial apresenta intensidade direção e sentido. Nos sença, antes da expansão do movimento. A aten-
encontrando com Laban, intermediado por Al- ção corporal começa com a ativação dos múscu-
meida (2006), temos o peso como um dos fatores los que se organizam para a ação, encarregado
que compõem o movimento assim pensado por das nossas posturas. Para nós, analisamos essa
ele, sendo esse peso visto como uma atitude ativa postura como oriunda também das memórias do
de usar a força muscular que resulta em movi- dançarino. E para Godard “é ele quem determina
mento. Então nós aqui analisamos o peso como a o estado de tensão do corpo e define a qualidade

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e a cor específica de cada gesto”, agindo sobre a tórico dos nossos ancestrais e do nosso território.
organização gravitacional, quando fala em pré- Sendo assim, pensamos o volume enquanto algo
movimento”. (GODARD, 1999, p. 14). em constante movimento de redimensionar-se
no corpo da dança FUNKEIRA. Observando nos
A resistência do corpo à gravidade, seria seu peso bailes, os momentos de rodinhas de dança, onde
e sua presença diante do mundo. Em um aspecto acontecem improvisações de dançarinos, existe
das reverberações do histórico e do social neste uma disputa (muitas vezes intrínseca) por qual
corpo, pensamos que corpo seria como a ruptura tem os movimentos mais expansivos, mais volu-
dos tabus que pretendiam silenciar o corpo pre- mosos, mais transbordantes, um centro do corpo
to. Neste sentido, a dança funkeira traz em suas que comanda e irradia a força e potência gestu-
características a postura intrépida de colocação, al para as áreas mais periféricas, começando no
parado ou no movimento, a atitude corporal que umbigo para fora e escapando entre os dedos. A
o funkeiro tem relação com o peso e o poder. expressividade está ligada ao quanto de espaço
esse corpo consegue inaugurar com seu movi-
Essa tomada de poder a partir do peso, que ain- mento, mais glamouroso e mais poderoso ele é.
da se dá na não consciência de uma “identidade
de realeza” que habita em cada um; de comum No ambiente dentro dos bailes que pesquisamos
convencimento entre os dançarinos de funk, que [comumente os dançarinos mais retraídos, não
se intitulam muitas vezes como Reis e Rainhas são os brabos] o volume do dançarino no espaço
da dança, Imperadores e Imperadoras da dan- o faz ser admirado entre os demais e logicamente,
ça, Dançarinas e Dançarinos Brabos, e outras cada um libera a abundância de si através de um
nomenclaturas que tributam um sentimento de estilo (identidade) diferentes. Alguns buscando
poder pelas formas das quais são vistos. Corpos os movimentos afeminados, outros tendo como
juvenis negados, destituídos pelas barreiras co- referências os movimentos de animalidades, ou-
loniais, que outrora não reconhece sua própria tros expressando sentimentos (teatralizando) ou
potência, por um processo que passa por um não há ainda os que têm a dança mergulhada na ini-
existir6. Esses signos de poder relacionados ao ciativa sexual [erótica].
peso, profundamente ligados à liberdade, seja li-
berdade de movimentos e a própria liberação do Desejo: Para nós está ligado, ao já exposto, “cor-
indivíduo que se destaca entre muitos pela sua po que falta” na síncopa (SODRÉ, 1998); o dese-
potência do dançar. jo é o veículo com o qual o FUNKEIRO preenche
seus “tempos vazios”. No dançar, em um sentido
Volume: Neste veículo, estamos direcionados no geral, desejar é o que faz transbordar o peso e
mesmo sentido da unidade de medida, quando o volume. No escuro, e no calor do baile funk,
volume é definido como sendo a quantidade de quando na mistura do suor em meio a vibração
espaço ocupado por um corpo. No entanto visi- da caixa, nos faz mover sem que nós mesmos
tamos fronteiras para além da fórmula, compri- estejamos pensando nesse dançar. Quando in-
mento X largura X altura, e ousamos falar em voluntariamente, nossa bacia começa a pulsar
volume em um aspecto mais amplo irradiado e transborda nossa dança, seja batendo o pé no
para as heranças deste corpo, pensamos o volu- chão ou emitindo a pulsação com a boca, nas zo-
me do nosso corpo também competindo ao his- nas onde não dominamos. Através destes três ve-

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Frederick Assis
ículos, pensamos o talentinho, que como já dito amigos que figuravam dentro do ambiente Aca-
não cabe ser ensinado e sim experimentado; com dêmico.
eles estudamos nossos corpos ao longo das ex-
periências corporais que originaram ArRUAça. E Eu, mulher preta, periférica, sempre que ouvia
para a cena, trazemos estas como sendo nossas uma amiga ou um amigo, que se encontrava na
principais ferramentas de investigação e propos- mesma condição, e relatava o preconceito den-
ta cênica. tro do Ambiente Acadêmico, me fazia refletir e
pensar modos de não abrir mão dos meus ide-
Considerações: ais, e refutar as provocações trazendo de forma
ainda mais PESADA a minha identidade preta,
Abrindo uma janela mais íntima e afetiva, dentro para a minha dança Acadêmica. Quando entrei
das reflexões aqui apresentadas, lançamos mão, no prédio da EEFD (Escola de Educação Física e
para perfazer o trabalho no presente momento, Desportos) da Universidade Federal do Rio de Ja-
de um relato pessoal, este, que talvez tenha sido neiro, na aula inaugural do meu primeiro perío-
um dos pontos essenciais para os desdobramen- do em 2011, quando todos os novos alunos foram
tos e inclinação como pesquisadora; no próprio postos em uma linha de distribuição espacial em
texto [autoral] do espetáculo dizemos: “Durante frente de todo o corpo Docente e Discente dos
muito tempo a gente evitou, mas agora a gen- cursos das graduações em Dança, cada um, su-
te não evita mais, a gente não evita Ser Preto”. cessivamente dizia seu nome, idade, bairro e “de
Construímos essa fala inspirados nos muitos que dança vinha” e na sequência, os mesmos fa-

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Mayara de Assis, em cena com o ArRUAça


riam movimentos que representassem esta dan- Foi quando a vergonha da síndrome do “mora
ça. Enquanto todos mostravam seu virtuosismo, mal” e o medo de estar sozinha se dissolviam,
naquele momento só vinha em meu pensamen- dando espaço para uma ponta de satisfação, ain-
to: “Nossa! Eu não vim de dança nenhuma”. da sem muito deslumbramento por esse meu
lugar. Tive naquele momento força de acreditar.
A realidade de uma garota que nunca teve aulas Soube que não estava sozinha, que nós do extre-
regulares em uma Escola de Dança, a ingenuida- mo Velho Oeste estamos chegando aos lugares,
de de não acreditar que seu corpo dançava, ou eu dando nossos nomes, falando de nosso bairro,
diria que até ignorância, no sentido de ignorar retomando os espaços. Durante minha passagem
mesmo, pois no fundo eu sabia, eu tinha certeza pela graduação em dança, foram alguns episódios
que eu sempre tinha dançado funk. Que toda a de racismos velados que me fizeram refletir e re-
dança de mim, vinha das coisas que eu observava pensar meu lugar nas salas de ensaio, episódios
nas ruas e nos bailes, e que não era bem como desde ter que ficar por último na distribuição es-
esse “De quê dança você vem?”, que pergunta- pacial em sala, até podas em minhas movimenta-
vam, e mais como um “Que dança vem de você?”. ções, lugares que me eram dados a minha revelia,
Lembro-me de não ter “dançado” nada naquele entre outros. Professores que destacavam minha
momento, e ainda ter dito, bem baixo (e já com desobediência como algo a ser lapidado para meu
vergonha) o bairro onde moro: “- Paciência”, e próprio crescimento como profissional da dan-
ouvir umas poucas vozes (surpresa) em ovação ça, no intuito de me encaixar na normatividade
a isso. do contexto de uma dança embranquecida, onde

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meu corpo preto era negado. Notas

Assumi a desobediência como potência para pes- 1 Defendido em Novembro de 2016 sob o título de:
quisar meu corpo preto e de onde essas raízes “ArRUAça, marginalidade e visibilidade: Estudos
vinham, quais eram suas motrizes. Adotei o bor- inspirados na juventude funkeira no subúrbio
carioca para uma proposta artística”.
ramento e o vertiginoso ao revés da pureza e ver-
2 Inspirado em Mansur (2013), que apelida
ticalidade, para contar com o corpo a história ne-
gada, de uma memória ancestre que é pulsante; o extremo da Zona Oeste da cidade do Rio de
priorizando o corpo que se encontra em constan- Janeiro, seguiremos com tal nomenclatura
te processo de obscuridade, entrando em embate durante a escrita.
com o contexto da produção colonial. (SPIVAK, 3 Respectivamente em: Arena Carioca Dicró
2010, p. 84). (Penha), Lona Cultural Sandra de Sá (Santa
Cruz) e na defesa do TCC, que fez parte da
Protagonizamos o corpo preto como potência programação do evento II Encontro de Cultura
performática em descolonização das estéticas, e Dança Afrobrasileira da UFRJ (organização:
enquanto a própria gramática histórica. Nossos Profª Drª Tatiana Tamasceno).
corpos funkeiros estão contando nossas memó- 4 Retorno na Arena Carioca Dicró.
rias egressas na atualidade, e a dança preta é 5 Willians Flaviano, dançarino de passinho e ator,
palavra e organismo vivo, tal como o funk, in- compõe o espetáculo ArRUAça, juntamente com
capturável na plenitude no manancial de mani- Frederick Assis e Mayara de Assis.
festações. 6 O “não existir” do corpo, referente
principalmente em corpos pretos juvenis, será
trabalhado futuramente ao longo dos processos
de investigações em bibliográficas que discutem
Mayara de Assis, novinha Funkeira de Paciên- descolonização.
cia (Zona Oeste Carioca), é bacharela em Dan-
ça pela UFRJ; bailarina, coreógrafa e produtora
pelo Coletivo RUDE, grupo que realiza o projeto
ArRUAça.

rude.producoesartisticas@gmail.com

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Artigo

José Medeiros, o poeta da luz


Gabrielle Nascimento

O intuito deste artigo é investigar a produção do fotógrafo José Medeiros. Antes de analisar as
imagens produzidas por Medeiros, entretanto, faz-se necessário uma apresentação sobre a trajetória
desse profissional: como começou na fotografia, qual equipamento utilizava e como isso refletiu em
sua produção durante o vínculo com a revista O Cruzeiro. Essas informações visam entender o seu
olhar e seu papel como um dos produtores das imagens “inventadas” da “identidade” brasileira.
Na sequência, serão apresentadas algumas fotografias produzidas por Medeiros, com tema sobre
religiões afro-brasileiras, cuja análise será feita de acordo com o contexto social e cultural do
momento em que as imagens foram captadas.

Introdução modernistas, que ocupavam cargos importantes


no governo, se autodeclaravam guias, capazes de
“Mas o verdadeiro primitivismo moderno determinar o melhor rumo para a construção da
não consiste em ver a imagem como uma nação. Diversos deles participaram da formula-
coisa real; imagens fotográficas dificilmen- ção das políticas culturais e educacionais. Tem-se
te são tão reais assim. Em vez disso, a re- como exemplo a participação e o apoio de inte-
alidade passou cada vez mais a se parecer lectuais e artistas como Gustavo Capanema que,
com aquilo que as câmeras nos mostram” enquanto ministro da Educação, entre 1937 e
(SONTANG, Susan. 2004, p. 177). 1945, tinha como parte da equipe de funcionários
Carlos Drummond de Andrade (seu chefe de ga-
A fotografia do período analisado, início da déca- binete durante todo o período do Estado Novo),
da de 50, pretendia representar em suas narrati- Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cândido
vas uma “autêntica identidade nacional”. Definir Portinari e Villa-Lobos.
uma cultura como “autenticamente brasileira”
significava construir um imaginário em torno O projeto Vargas buscava o monopólio da cultu-
da comunidade nacional. Dessa forma, o projeto ra como uma estratégia para o fortalecimento do
de nacionalidade construído buscava incutir na poder político, cuja proposta visava a construção
população valores cívicos, de reconhecimento e de uma narrativa histórica em que alguns símbo-
orgulho (ORTIZ, 2012). Para isso era necessário los pudessem ser reconhecidos por todos como
apresentar à nação um país ainda desconhecido. representantes da nação. Nesse sentido, as nar-
Era preciso descortinar o Brasil e, sobretudo, for- rativas fotográficas procuravam difundir princi-
mar “identidades”.2 palmente os discursos que exaltassem a unidade
nacional, as tradições e a “igualdade” entre os
Essa ideia de brasilidade fazia parte das discus- homens. Dessa forma, foi por meio da imprensa
sões dos modernistas e foi incorporada pelo Es- que o governo investiu na construção e na propa-
tado, no Governo Vargas, que elaborou um pro- gação do imaginário coletivo.
jeto cultural de alcance nacional (DIAS, 2005). Os

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Como observou Helouise Costa (2004), a foto- para transmitir uma mensagem, é possível iden-
grafia converteu-se num poderoso meio de pro- tificar o projeto do autor, a maneira como ele
paganda e manipulação, funcionando de acordo gostaria que ele fosse entendido, qual o tipo de
com os interesses dos proprietários da imprensa, olhar que se deveria utilizar na observação de
que podiam ser a indústria, o capital e os gover- sua obra.
nos. Portanto, é nessa configuração idealizadora
que José Medeiros foi encarregado de mediar esse A hipótese é que a “verdade”2 apontada pela fo-
Brasil imaginado, tornando-se um canal entre o tografia pode ser moldada a partir de interesses
governo e a população. específicos. O sujeito que toma a fala pode con-
ferir significados múltiplos para a imagem, a de-
Sobre a imprensa, ela deve ser entendida como pender do lugar que ela circula. As fotografias ao
uma contribuinte importante do projeto de serem colocadas em reportagens acompanhadas
construção de “identidade” e de consolidação de narrativas escritas, como títulos e legendas, é
do imaginário nacional, uma vez que as repor- possível perceber duplamente o ponto de vista e
tagens eram lidas em diversas partes do terri- o grau de interferência do fotógrafo e da edição
tório brasileiro e estavam intrinsecamente re- da revista no tema abordado. A outra hipótese é
lacionadas à ideologia dos agentes do governo que mesmo com o fim do Estado Novo, em 1945,
Vargas. Sendo assim, tal como afirma Benedict O Cruzeiro continuava afinado com o governo,
Anderson (2012), a imprensa permitiu que um o que fica evidente nas matérias publicadas pela
grande número de pessoas pensasse acerca de si revista em que era possível ver uma série de sím-
mesmas e se relacionasse com as outras de for- bolos nacionais consolidados. A explicação se en-
ma profundamente nova. Essa circulação intensa contra no fato de que no período que se sucedeu
de imagens passou a permitir que até mesmo os à ditadura de Vargas não houve, de fato, nenhu-
analfabetos compreendessem o sentido geral da ma transformação substancial na ordem política
reportagem, unicamente através das fotografias, ou social.
o que ampliava a circulação das informações. No
Brasil, por exemplo, em 1940 havia 57% de anal- Embora as fotografias de José Medeiros tenham
fabetos na população nacional (CANCLINI, 2015, sido divulgadas inicialmente em revistas, hoje es-
p. 68). tão presentes em diversas exposições artísticas e
acervos particulares de colecionadores de artes.
Para a compreensão da fotografia de Medeiros, Mesmo que atualmente essas imagens estejam
deve-se levar em consideração os textos que alocadas em um outro contexto, deve-se levar
acompanham a imagem, sobretudo porque o fo- sempre em consideração que essas fotografias
tógrafo fez o uso da imagem e da linguagem es- contribuíram para a invenção de um Brasil como
crita para narrar o seu ponto de vista sobre o as- se queria e se imaginava identitariamente, na dé-
sunto abordado. Os “iconotextos”, como lembra cada de 50.
Peter Burke (2004, p.18), reforçam a impressão
de que o artista estava preocupado em fornecer
um testemunho preciso, sugerindo sua posição
de “testemunha ocular” das cenas fotografadas.
Quando um artista se vale de imagens e textos

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Lentes locais: a trajetória fotográfica e a cons- sua técnica fotográfica, levando-o para O Cruzei-
trução do olhar de José Medeiros ro3, em 1946. Medeiros foi o primeiro fotógrafo
brasileiro a ser contratado por O Cruzeiro, visto
José Araújo de Medeiros, mais conhecido por José que os outros profissionais que compunham o
Medeiros, ou ainda Zé Medeiros, nasceu em Te- quadro de fotógrafos eram todos estrangeiros.
resina, no Piauí, em 1921. Aos dez anos ganhou
sua primeira câmera fotográfica de seu pai, que Sobre o fotógrafo francês Jean Manzon, ele che-
se dedicava como amador à fotografia. José Me- gou ao Brasil em 1940 durante o período do
deiros dizia que sua intimidade com a fotogra- Estado Novo, fugindo do período de guerras na
fia começou ainda criança, em sua casa, onde a Europa, e tornou-se fotógrafo do Departamento
sala era uma enorme câmera obscura – princípio de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão que con-
básico de uma máquina fotográfica – e por um trolava a imprensa brasileira e demais conteúdos
buraco que entrava luz pelas janelas fechadas, ele ligados à produção simbólica do país. Em 1943,
narra: “as pessoas que passavam na rua eu as via, Manzon foi trabalhar na revista O Cruzeiro, de
invertidas, projetadas numa parede e aquela ‘câ- Assis Chateaubriand. Manteve uma produção afi-
mera escura’ me encantou demais” (1986, p. 25). nada com as ideias disseminadas pelos agentes
do regime, tendo como característica principal
Ainda em sua terra natal, Medeiros começou a de sua linguagem fotográfica imagens posadas.
trabalhar profissionalmente como fotógrafo. Mu- Atuou em parceria com o repórter David Nasser4.
dou-se para o Rio de Janeiro em 1939, onde ten-
tou uma vaga na faculdade de arquitetura, sem Ele também é importante porque foi um dos
sucesso. Tentou também trabalhar como cine- principais responsáveis pela difusão do moderno
grafista no Instituto Nacional de Cinema Educati- fotojornalismo europeu e pelas transformações
vo (INCE), mas não conseguiu. Tornou-se, então, da imprensa brasileira: Manzon investiu na edi-
funcionário público nos Correios e Telégrafos ção, na técnica e na impressão das fotos, confe-
e no Instituto Nacional do Café. Paralelamen- rindo, sobretudo, destaque à imagem, tal como
te, montou um estúdio em sua casa e trabalhou era na Europa. A imagem deixou de ser mera
como freelancer vendendo material para as re- ilustradora do texto para ter sua importância. As
vista Tabu e Rio. Para essas revistas, fotografa- mudanças eram também reflexo de uma deman-
va acontecimentos sociais (coquetéis, recepções, da nacional, pois de acordo com Helouise Costa
festas, etc). Conforme narrou, era muito corte- (1998, p. 140):
jado e, na maioria das vezes, os “grã-finos” que-
riam dar-lhe dinheiro para fotografar as filhas. Naquele momento vivia-se o aumento da
Recebeu influência da revista Vogue, uma revista industrialização e da urbanização, o cres-
sobre moda, e foi inspirado por Eugene Smith e cimento das camadas médias e do opera-
Henri Cartier Bresson em sua técnica e lingua- riado, a diminuição do analfabetismo, a
gem fotográfica. formação de públicos de massa e o aumen-
to das necessidades de lazer nos grandes
Foi por meio dessas publicações que o fotógrafo centros. Em suma: a sociedade moderniza-
Jean Manzon teve contato com o trabalho de Me- va-se a passos largos e era preciso atuali-
deiros e o nomeou como “poeta da luz” devido a zar o periódico.

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Sendo assim, as reportagens passaram a ser na época, afirma que os fatos não eram impor-
apresentadas em página dupla, com a imagem tantes para eles e sim a criatividade. Para Freddy,
em destaque absoluto, ocupando de maneira iné- Manzon tinha escrúpulo zero e o Nasser a mes-
dita uma página inteira, com títulos de impacto, ma coisa. E diz: “Eu nem ia checar. Se vendia,
buscando quase sempre o tom sensacionalista. eu não ia fazer busca. Vendeu, está certo. Nunca
fiz pesquisa para apurar as reportagens de Jean
Aos poucos, a revista O Cruzeiro criou uma gran- Manzon e David Nasser. Eu aceitava, porque an-
de equipe de fotógrafos, incluindo outros brasi- tes de tudo o Assis queria que vendesse” (Apud
leiros. Como destaca Coelho (2006, p. 85), “no CARVALHO, 2001. p. 127). Nesse sentido, nota-
auge da revista, a equipe era composta por 30 se que havia espaço dentro da publicação para a
fotógrafos, só no Rio de Janeiro”, como Indalécio “invenção”, o que corroborou ainda mais para a
Wanderley, Luciano Carneiro, Luis Carlos Barre- construção de um imaginário nacional forjado
to, Flavio Damm, Ed Keffel, Roberto Maia, Peter fotograficamente.
Scheier, Henri Ballot, Eugênio Silva, Edgar Medi-
na, Salomão Scliar, Marcel Gautherot, Pierre Ver- Voltando a Medeiros, ele atuou durante 15 anos
ger, Lutero Ávila e Badaró Braga. Nesse tempo na revista O Cruzeiro e destacou-se nas reporta-
que trabalhou na revista, José Medeiros também gens sobre negros e índios, os quais chamava de
teve influência de Pierre Verger5, com quem teve “os oprimidos da sociedade”. Embora Medeiros
uma grande amizade. tenha declarado a preferência por essa temática,
deve-se levar em consideração que a revista O
Avaliando o seu próprio trabalho, José Medeiros Cruzeiro já abordava essa narrativa, não sendo
afirma: exclusividade de Medeiros.

Penso que meu trabalho, que a fotografia Outra vertente que caracterizava a fotografia de
tem, aliás como tudo, uma função política. José Medeiros era a utilização da câmera Leica6,
A fotografia não conta necessariamente o que permitia a quem a operava captar momentos
real, pelo contrário, ela pode mentir pra rapidamente, sem que o fotografado percebesse
burro. A pessoa por trás da câmera pode a presença de uma câmera no ambiente, visando
mostrar o que quiser, como quiser. Eu, por a espontaneidade dos personagens e das situa-
exemplo, para não defender interesse do ções, assim como a não intervenção na realidade.
patrão, do governo, saía pela tangente fa- Segundo Jean Manzon (1986), José Medeiros não
zendo reportagens sobre os negros, sobre era de ajeitar ninguém, mas estava de olho em
os índios (...) fiquei muito amigo deles (...)
tudo, até conseguir o momento fotográfico dele.
fiz várias reportagens sobre os índios, queEntretanto, como observou-se no acervo do Insti-
são uma gente fantástica (1986, p. 17). tuto Moreira Salles7, uma parte do acervo do José
Medeiros é composta por negativos provenientes
Justamente por saber que a pessoa por trás da das câmeras de médio formato, que necessitava
câmera podia mostrar o que quisesse foi que As- de tempo para que a imagem fosse captada, e era
sis Chateaubriand demonstrou apreço por Jean a mesma que Jean Manzon usava. Isto porque o
Manzon e David Nasser. Freddy Chateaubriand, equipamento era fornecido pela revista e dificil-
sobrinho de Assis, diretor da revista O Cruzeiro mente os fotógrafos poderiam usar sua câmera

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auxiliar, a não ser quando houvesse algum pro- parcialmente que pouco restava a Medeiros ima-
blema técnico com o equipamento principal. ginar. Justifica-se parcialmente porque, ao con-
trário de Medeiros, Verger conseguiu registrar
E as semelhanças não acabam por aí. Observou- a cultura afro-brasileira de forma diferenciada,
se também que David Nasser apareceu como au- mesmo trabalhando para O Cruzeiro.
tor de algumas reportagens fotografadas por José
Medeiros. Como já se sabe, David Nasser e Jean Como enfatiza Sontag, “fotografar é atribuir
Manzon eram uma dupla inseparável em O Cru- importância” (2012, p.173) e, em geral, quando
zeiro. Ao que tudo indica, quando Manzon não se fotografa alguma coisa, se fotografa o que se
podia comparecer em alguma pauta, indicava vê. José Medeiros sabia bem disso. Como nar-
Medeiros para cobri-la. Dessa maneira, é possível rou (1986, p. 54), “fotografamos o que vemos e
perceber que Medeiros estava ligado ao projeto o que vemos depende do que somos”, tal como
da revista, já que Jean Manzon, o então diretor do será apresentado, analisado e discutido a seguir,
departamento fotográfico, depositava-lhe con- no intuito de esclarecer como Medeiros viu e
fiança. A partir de 1950 foi concedido a Medeiros narrou fotograficamente o país e contribuiu para
a permissão para realizar pautas por conta pró- a cristalização de certas ideias no “imaginário”
pria, sem a necessidade de ser acompanhado por brasileiro.
um repórter da revista.
O Brasil de José Medeiros
Maria Beatriz Coelho (2000) afirma que “mes-
mo quando o fotógrafo tinha uma visão distinta, No conjunto das reportagens de Medeiros, há
o conjunto de título, texto e legenda direciona- uma gama de assuntos tal qual a característica
vam o olhar do leitor para uma interpretação da revista, e abrange desde pautas sobre política,
pré definida do conjunto de fotografias da ma- educação, carnaval, futebol até os assuntos rela-
téria”. Entretanto, dentro de um conjunto muito cionados à população indígena e negra. Para essa
extenso de reportagens, o que foi percebido na análise, será considerado o tema sobre religião
investigação para essa pesquisa, é que mesmo afro-brasileira, buscando compreender os modos
quando Medeiros escrevia os textos, seu discurso de ver e as formas de narrar do fotógrafo José
imagético e textual tinha uma narrativa diferente Medeiros.
do que ele se dizia fazer. Nas reportagens obser-
vou-se que o candomblé era representado como
uma manifestação “fetichista”, “primitiva” e “sel-
vagem” (inspirado em Nina Rodrigues).

Entende-se assim que o Brasil já tinha sido ima-


ginado de uma forma “modulada”, já colocada à
disposição pelo governo, pelos modernistas, pelo Figura 1 e 2 - As noivas dos deuses sanguinários - 1951.
olhar de Jean Manzon e pela edição da revista Fonte: Instituto Moreira Salles
O Cruzeiro. Era um projeto hegemônico cujos
agentes já tinham elaborado o roteiro que deve- Durante quatro semanas, o fotógrafo José Me-
ria ser seguido pelos fotógrafos, o que justifica deiros percorreu terreiros em Salvador. As duas

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fotos fazem parte de uma série especialmente dançará seu bailado próprio, ao som nervoso dos
realizada por José Medeiros e Arlindo Silva para atabaques. Ensimesmada, Yemanjá dá a sua “fi-
uma reportagem sobre os candomblés da Bahia. lha” um aspecto sonambúlico”. A outra legenda
Publicado no dia 15 de setembro de 1951 pela re- continua a explicação da imagem à direita:
vista O Cruzeiro, intitulada “As noivas dos deuses
sanguinários”8, o material gerou polêmica, uma “Esta é a figura de Oxóssi, deus da caça.
vez que o fotógrafo adentrou locais sagrados e As ‘yaôs’ são pintadas com as cores cor-
secretos, jamais mostrados para um público não respondentes aos seus orixás. Em volta da
iniciado. Com essa tiragem, a revista aumentou cabeça são desenhadas linhas em forma de
as vendas, o que demonstra o interesse do públi- coroa. O rosto, colo e o corpo são pintalga-
co pelo assunto e o sensacionalismo com que foi dos com os coloridos sagrados. No pescoço
tratado o material, visto que o título já forma um a inicianda ostenta colares também com as
juízo de valor quando caracteriza os deuses do coroas dos santos respectivos. O ritual é
Candomblé como sanguinários. Além disso, peca muito rigoroso”.
ao relacionar o ritual de iniciação com casamen-
to, evidenciado na palavra noiva, quando a rela- A reportagem faz referência ao mundo “civiliza-
ção é mais paternal, uma vez que os praticantes do” em oposição ao mundo “bárbaro”, colocan-
são chamados de filhos de santo. do de um lado, a cultura e a religião do homem
branco e do outro, a cultura e a religião do ho-
Nessas fotografias vê-se um ritual de iniciação, mem negro. A partir do texto é possível observar
em que ambas as mulheres são captadas em es- alguns marcadores da diferença, indicando o ri-
tado de concentração ou transe, já com a pintu- tual como uma prática exótica e fetichista.
ra corporal terminada. No fundo das imagens,
há uma parede rústica, com alguns desenhos. O contexto que levou à realização da reportagem
O texto da reportagem indica que são desenhos sobre o Candomblé não é revelado por Medeiros
de “erês”, espíritos infantis que se apossam das e Arlindo Silva na reportagem. Pelo contrário, o
“yaôs”. Na primeira imagem o enquadramento texto informa que se trata de um adentramento
é aberto, sendo possível ver a mulher com um inédito nos terreiros e no ritual.
vestido branco, colares, braceletes, pulseiras e as
mãos entrelaçadas, assim como observar parte Abrimos espaço para uma reportagem que
do ambiente. Na segunda imagem o enquadra- se destina a mais ampla repercussão den-
mento é fechado, com o foco no rosto e um corte tro e fora do país. Ao entregá-la ao público,
dos ombros para cima. Como revelou Medeiros, está certo O Cruzeiro de que se trata não só
pelo ambiente ser muito escuro, fez as fotos com de uma grande realização jornalística, mas
a Rolleiflex. Essa informação é importante uma também de uma documentação fotográfica
vez que a presença da câmera evidenciou ainda inédita e tanto quanto possível completa
mais a presença do fotógrafo no terreiro. sobre a mais impressionante prática feti-
chista dos negros baianos: a iniciação das
A legenda da imagem à esquerda explica: “Com filhas de santo. (...) E é esta reportagem,
as mãos entrelaçadas, Yemanjá ‘em pessoa’ es- que ora publicamos, realizada pelos dois
pera o momento de sair para o terreiro onde únicos jornalistas brasileiros que até hoje

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assistiram às práticas secretas da religião um livro com o mesmo assunto e fotografias cha-
negra professada na Bahia, que vem reve- mado Candomblé, com edição da Editora O Cru-
lar, ao mundo civilizado, a estranha histó- zeiro, tornando-se o primeiro fotógrafo brasilei-
ria das noivas dos deuses sanguinários. ro a publicar um livro de religião com intenção
documental. O que demonstra que José Medeiros
A reportagem, na verdade, foi resposta a uma seguiu os mesmos caminhos adotado por Henri
outra publicação sobre Candomblé, da revista George Clouzot.
francesa Paris Match pelo francês Henri Geor-
ge Clouzot, em maio de 1951. Com o título Les Sobre o texto escrito por Medeiros para publica-
Possédées de Bahia (As possuídas da Bahia), o ção, observou-se que o mesmo texto foi utilizado
autor alardeava que o material da reportagem na reportagem e na introdução do livro O Can-
era “um extraordinário documento etnográfico”. domblé.
Posteriormente, Clouzot lançou um livro com
as mesmas fotografias, cujo título era Le Cheval Não pode deixar de ser citada a referência
de Dieux (O Cavalo dos Deuses), indicando que a Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison
aquela foi a primeira vez que um branco entrava Carneiro logo na apresentação da publica-
“num santuário de deuses negros”. ção, quando diz que nos rituais de candom-
blé da Bahia, há uma parte completamente
Para Chateaubriand era inadmissível que uma desconhecida, tanto para os leigos como
revista estrangeira publicasse qualquer assunto para os estudiosos do problema. A Nina
nacional com pioneirismo. Fernando de Tacca Rodrigues, precursor dos estudos sobre
(1999) revela que a ideia da reportagem surgiu o negro brasileiro, devemos as primeiras
dentro da redação como embate à Paris Match, pesquisas científicas do Candomblé como
e não como reportagem originalmente pensada religião. Entretanto, nem ele nem os seus
por José Medeiros. Através de uma carta enviada continuadores, inclusive Arthur Ramos,
por Leão Gondim, redator chefe de O Cruzeiro, conseguiram desvendar os rituais secretos
a José Medeiros, é possível constatar essa justi- da iniciação das “filhas-de-santo”. Edison
ficativa. A carta inclusive cita Pierre Verger, que Carneiro, baiano de nascimento, no seu li-
teria imagens do ritual de iniciação, pois já esta- vro “Candomblé da Bahia”, tão exato e mi-
va fotografando o Candomblé na Bahia há alguns nucioso, passa por alto sobre o assunto.
anos, mas não se dispôs a fornecê-las para a re-
vista por questão de ética e compromisso com os É preciso atentar para a escolha dos cientistas
praticantes do culto. sociais citados, principalmente Nina Rodrigues,
pois em diversas outras reportagens fez a citação
José Medeiros também republicou as fotografias desse autor, e dos pensamentos dele, inclusive
em 1952 em O Cruzeiro. Contudo, em 1951 a re- se apropriou de termos utilizados por Nina Ro-
portagem tinha 14 páginas e 38 fotografias, en- drigues ao descrever as religiões africanas como
quanto no ano seguinte a reportagem dispôs de “fetichista”.
quatro páginas, contendo 8 fotografias no total,
entre elas algumas coloridas e a produção do tex- Sendo assim, cabe aqui descrever sucintamente
to feita pelo próprio Medeiros. Em 1957, publicou o trabalho de Nina Rodrigues. De acordo com

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Ferretti (1999), embora ele tenha sido o primei- Dois repórteres de O Cruzeiro desvendam
ro estudioso no Brasil a tratar sobre o negro e os mistérios do mundo ritualístico e bár-
suas crenças, era um teórico racista que baseado baros dos candomblés da Bahia - a inicia-
em teorias evolucionistas pensava a mestiçagem ção das filhas de santo - manifestação de
como degeneração da espécie. Segundo ele, as uma divindade feminina - cenas de um ce-
religiões afro-brasileiras eram exemplos irrefutá- rimonial secreto em toda a sua grandeza
veis da inferioridade e do primitivismo do negro, primitiva. (Arlindo Silva, 1951).
tal como se vê no título do livro escrito em 1900:
O Animismo fetichista dos negros baianos e Mes- Pela primeira vez no jornalismo mundial é
tiçagem, degenerescência e crime. Nina Rodrigues mostrado a iniciação das filhas- de - santo,
acreditava também que o Estado deveria estabe- ritual sangrento dos candomblés da Bahia
lecer um código penal específico para os negros, - um estranho espetáculo de fé primitiva e
pois biologicamente eles eram diferentes, isto é, bárbara. (José Medeiros, 1952).
inferiores e incapazes de compreender a legisla-
ção e a moral tal como eram impostas aos bran- Antes de seguir para a relação do fotógrafo e dos
cos. Concluiu que a “raça” branca era superior fotografados nas imagens acima, faz-se neces-
à negra e que a mestiçagem deveria ser evitada. sário historicizar o Candomblé como uma cons-
Na perspectiva da análise da superioridade e da trução inserida nos discursos de “identidade” do
inferioridade das “raças”, o estudo da religião era projeto nacional.
essencial, inclusive para comprovar a inferiori-
dade de certas formas religiosas. Apontou a baixa O Candomblé, assim como as outras manifes-
situação econômica, os crimes e as enfermidades tações religiosas afro-brasileiras, era tido como
como reflexo da inferioridade e degenerescência. feitiçaria, charlatanismo e exercício ilegal da
E declarou que as mulheres negras e mestiças medicina e seus praticantes eram duramente
apresentavam um hímen diferente do das mu- perseguidos pela polícia. Esse pensamento, pri-
lheres brancas, que facilmente se confundia com meiramente, esteve intrinsecamente relacionado
o hímen rompido. a interesses de poder, já que a igreja católica ti-
nha como tarefa convencer a sociedade da “su-
Na biografia levantada, observou-se que os diver- premacia” dos valores do cristianismo. A outra
sos pesquisadores que tratam de José Medeiros razão está relacionada à ideologia do branquea-
discutem as várias facetas de Medeiros nas re- mento propagada no século XIX, que ao tentar
portagens de 1951, 1952 e também no livro. Se- se assemelhar ao modelo de civilização da Euro-
gundo esses pesquisadores, enquanto a primeira pa estimulou as perseguições das manifestações
reportagem escrita por Arlindo Silva foi classifi- africanas.
cada como sensacionalista, a segunda reporta-
gem e também o livro, ambos escritos por ele, Nos anos de 1930 a 1945, começou-se a discu-
foram identificados como uma escrita com ten- tir as “tradições” brasileiras como evocação das
dência antropológica. Entretanto, o que se vê nos ideias modernistas. Hobsbawm (1984) chama
dois textos é uma proximidade muito grande de atenção para o artificialismo das auto procla-
pensamento. A título de comprovação, seguem os madas “tradições”, salientando que se trata de
dois textos: construções recentes. É nesse sentido que o Con-

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gresso Afro-brasileiro9, realizado em 1934 e 1937, domblé já tendo sido incorporado às discussões
teve importância, pois colocou em evidência as das elites, ele ainda não era plenamente aceito na
religiões fornecendo a originalidade dos traços sociedade brasileira - tal como ainda não é to-
culturais que vinham da África, apresentando lerado atualmente11 - e era apresentado de for-
-as de maneira a preencher as lacunas para uma ma teatralizada, de modo a acentuar ainda mais
cultura que desejava ser “autêntica” em relação o “primitivismo”, “fetichismo” e “barbarismo”
à Europa. É importante destacar que diversos cultuado por pessoas “inferiores” em um Brasil
praticantes do Candomblé também pleitearam “civilizado” e “moderno”.
junto ao governo um lugar de respeito aos cultos
e práticas religiosas. Tem-se como exemplo Eu- A revista O Cruzeiro tinha visibilidade nacional e
gênia Ana dos Santos, a Mãe Aninha, que segun- levar o ritual para as páginas da revista mais lida
do consta, provocou a promulgação do Decreto era um meio de colocá-lo em cena, discutir com
nº. 1.202/3910, no governo de Getúlio Vargas, que maior seriedade o assunto, “desfolclorizando-o”
pôs fim à proibição aos cultos afro-brasileiros, e ampliando o espaço de atuação política. Essa
em 1939. iniciativa deve ser pensada como uma estratégia
e encenação em que os sujeitos sociais criaram
Foi assim que o Candomblé, a Umbanda e o Ma- para buscar, numa sociedade extremamente ex-
racatu, por exemplo, tomaram legitimidade e cludente e racista, visibilidade e legitimidade.
visibilidade, pois forneceram aos intelectuais os Talvez a mãe-de-santo do terreiro, Maria Riso
discursos necessários para a construção de uma Plataforma, esperasse que a reportagem fosse
“identidade nacional”. Contudo, discutir essas um instrumento de apoio à luta pela preservação
manifestações como religião não fazia parte do e transmissão da religião, o que não aconteceu.
interesse nacional e, por isso, elas foram cate- Segundo Tacca (1999), após a reportagem de
gorizadas como itens culturais pertencentes ao iniciação, criou-se mitos a respeito do expurga-
mundo mágico africano, à cultura popular e tam- mento de Maria Riso, inclusive o próprio Medei-
bém ao folclore. ros sustentava a afirmação de que ela tinha sido
assassinada e o terreiro fechado.
Essa “folclorização” foi parte de uma estratégia
das elites de “naturalizar” essas manifestações, Deve-se levar em consideração também o pro-
tornando-as aceitas culturalmente e, ao mesmo cesso de atuação que existe em frente a uma câ-
tempo, apagando qualquer vestígio que as asso- mera fotográfica. Possivelmente essa não era a
ciassem ao tempo de escravidão e a diáspora afri- imagem vivida no cotidiano dos terreiros, mas é
cana. Os negros cidadãos deveriam ser negros aquela que naquele momento os praticantes que-
só na pele. Todos os outros vestígios deveriam riam projetar. O outro ponto a se considerar é
ser apagados, “desafricanizados” (SCHWARCZ, que o lugar era sagrado, e de acesso inacessível
2012) para que pudessem se tornar nacionais. ao público em geral. Portanto, o fotógrafo Medei-
ros recebeu autorização para adentrar no espaço
É nesse sentido que se deve pensar o ritual foto- delas.
grafado por José Medeiros. O Candomblé foi um Por outro lado, isso não deve ser visto como uma
manifesto de resistência ao processo de coloniza- forma de isentar José Medeiros, tão pouco Arlin-
ção e aculturação. Em 1951, mesmo com o Can- do Silva. Quando se propõe a fazer um trabalho

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fotográfico etnográfico, tal como as fotografias étnico raciais a partir do olhar de José Medeiros
foram categorizadas por muitos teóricos, deve-se e mostrar como é problemático e contraditório o
atentar para a falácia da “autoridade etnográfi- olhar desse fotógrafo, tal como o próprio discur-
ca” (Clifford, 1989, p.118). Os dois deveriam ter so da sociedade brasileira. É um fotógrafo bra-
se predisposto a pesquisar, investigar, conversar, sileiro, que mesmo intitulando-se como defen-
priorizando o saber oral transmitido no Can- sor dos “oprimidos”, reproduziu falas e olhares
domblé a fim de compreender os significados racistas em relação aos praticantes das religiões
do ritual, oferecendo, dessa maneira, uma maior afro-brasileiras.
participação desses sujeitos na construção de
suas imagens. A “identidade” e as “tradições” foram histori-
camente construídas e, por isso, é preciso estar
Através das fotografias, das legendas e dos textos atento para o seu fazer, as negociações e conflitos
é possível identificar a visão do fotógrafo e do re- que foram gerados no processo de formação e
pórter. Ambos não tiveram uma preocupação em afirmação identitária no Brasil.
dar “voz” aos praticantes e mostrar sua visão de
mundo, o que estava em voga era a mercantili-
zação da “identidade nacional” manifestada nas Gabrielle Nascimento é bacharel em História da
produções populares. Arte (UFRJ) e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais (PPGAV), da linha
Conclusão de pesquisa Imagem e Cultura, da Escola de Belas
Artes/ UFRJ.
Em um contexto em que a preocupação da difu-
são das ideias nacionalistas era evidente, havia gabriellenas@hotmail.com
o cuidado em se veicular apenas fotografias em
que os discursos narrativos não comprometes-
Notas
sem a unidade nacional. Os discursos analisados
revelaram que as fotografias utilizadas para des-
1 Para Renato Ortiz (2012, p. 8), “não existe uma
crever o povo brasileiro sempre estiveram rela-
identidade autêntica, mas uma pluralidade de
cionadas a uma situação específica, que objeti-
identidades, construídas por diferentes grupos
vava demonstrar uma certa ideia de irmandade
sociais em diferentes momentos históricos. ”
e, ao mesmo tempo, camuflar as tensões relacio-
2 Segundo Foucault (2014), a verdade está inti-
nadas às questões raciais e sociais, priorizando
mamente ligada ao mecanismo de poder, ou seja,
apenas abordagens relacionadas aos elementos
a verdade é definida por uma série de mecanis-
culturais. Era preciso integrar todos aqueles que
mos e regras que teriam por função estabelecer,
se encontravam no Brasil. Dessa maneira, as
num dado momento, quais discursos são, ou não,
imagens fotográficas foram interpretadas como
verdadeiros. Para Foucault, a verdade é desse
um processo de criação e construção, na qual a
mundo, pois foi nele engendrada mediante cons-
imagem era conduzida, monitorada e moldada.
tantes relações de poder e saber.
3 Sobre a revista O Cruzeiro e a atuação de Jean
A proposta deste artigo foi justamente colocar em
Manzon na revista ver COSTA, Helouise. Um olho
discussão os conceitos relacionados às questões
que pensa. Estética Moderna e Fotojornalismo.

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Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e quanto a revista O Cruzeiro atribui o título de


Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Pau- As noivas dos deuses sanguinários. Ambas foto-
lo, 1998. grafias se encontram disponíveis no site do IMS
4 Filho de libaneses, David Nasser nasceu em São e também na reportagem da revista O Cruzeiro,
Paulo, em 1917. Iniciou sua carreira no jornalis- digitalizadas pela Hemeroteca Digital Brasileira.
mo aos 16 anos em O jornal, periódico matutino 9 Dois congressos afro-brasileiros aconteceram
integrante do Diários Associados. Trabalhou no na década de 1930: o primeiro em Recife, orga-
jornal O Globo entre 1936 e 1944. Ingressou em O nizado por Gilberto Freyre, e o segundo em Sal-
Cruzeiro em 1944, trabalhando em parceria com vador, sob a organização de Edison Carneiro. O
Jean Manzon durante 9 anos e na revista até 1975. congresso da capital baiana teve papel destacado
Paralelamente ao jornalismo, se dedicou a uma para o desenvolvimento dos estudos afro-brasi-
carreira de compositor. Entre as centenas de mú- leiros; contou com a presença de intelectuais da
sicas que compôs estão grandes sucessos como Bahia, como Jorge Amado, e estudiosos interna-
“Nêga do cabelo duro” (com Rubens Soares) e cionais como Melville Herskovits e Donald Pier-
“Canta Brasil” (com Alcir Pires Vermelho). son. Diversas lideranças de terreiros da época
5 O francês Pierre Verger (1902-1996) trabalhou também se fizeram presentes, como Martiniano
como fotógrafo de O Cruzeiro em 1946 e mante- Eliseu do Bonfim; Eugênia Ana dos Santos, co-
ve o vínculo até 1951. Num segundo momento, de nhecida como Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá,
1957 até 1960, trabalhou para a O Cruzeiro Inter- entre outros (OLIVEIRA, 2010).
nacional. Morou muitos anos em Salvador, onde 10 “Art. 33. É vedado ao Estado e ao Município: es-
produziu a maior parte de seu acervo. O principal tabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de
foco de suas imagens da Bahia são os aspectos re- cultos religiosos”. Disponível em: <http://www2.
ligiosos dos afrodescendentes. Verger foi denomi- camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decre-
nado etnólogo e chegou a publicar estudos sobre to-lei-1202-8-abril-1939-349366-publicacaoori-
questões econômicas e sociais da cultura africa- ginal-1-pe.html>.
na, como no livro O fumo da Bahia e o tráfico dos 11 Diversas práticas de intolerância religiosa ain-
escravos do Golfo de Benim. da acontecem no dia a dia, como o uso de vio-
6 A revista não abria espaço para a utilização das lência física contra os praticantes das religiões
câmeras compactas, porque o formato do filme Afro. Entretanto, atualmente muitas leis foram
prejudicava a qualidade de impressão das fotos. criadas com o objetivo de proteger ainda mais a
Para burlar o processo e honrar suas preferências religião e promover a tolerância, como a lei fe-
técnicas, os fotógrafos armavam situações, dani- deral nº. 6.292/75, que protege os terreiros de
ficando o flash ou levando filmes insuficientes, candomblé no Brasil contra qualquer tipo de alte-
para que pudessem fotografar com a 35mm. ração de sua formação material ou imaterial; e a
7 A obra completa de José Medeiros, que totaliza lei nº.10.639/03, que torna obrigatório o ensino
cerca de 20 mil negativos, foi adquirida pelo Ins- de História e Cultura Africana e Afro-brasileira
tituto Moreira Salles em agosto de 2005. Disponí- nas escolas de Ensino Fundamental e Médio, ob-
vel em: <http://www.ims.com.br/ims/explore/ jetivando promover uma educação que reconheça
artista/jose-medeiros/obras>. e valorize a diversidade das origens do povo bra-
8 O IMS intitula as fotografias como Ritual de sileiro.
Candomblé de Iniciação das filhas de Santo, en-

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