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O Estado era pensado como um organismo vivo. Não era a riqueza que conferia o escalão
social e a dignidade e sim a posse de uma dignidade, que determinava a seu detentor as
fontes de rendimentos, o poder sobre outros homens. Ela era obtida de diversas maneiras
(por exemplo, por hereditariedade nobiliárquica ou por um determinado serviço prestado
ao rei). Em suma, era uma sociedade de símbolos (trajes ou adornos especiais) e de
privilégios (DURAND, s/d: 531).
O Grande Terror da Jacquerie (e sua repressão) exprimiu com intenso vigor o estado de
tensão latente entre as ordens naquela metade do século XIV — as principais fontes para
a Jacquerie são:Chronique des règnes de Jean II et de Charles V (Delachenal: 1910-1920,
IV vols.), Chronique of Jean de Venette (Newhall: 1953), Chronique de Jean de
Bel (Viard e Dèprez: 1904-1905, II vols.) e as Crônicas de Jean Froissart (1988).
Este artigo trata da Jacquerie na visão do cronista Jean Froissart (c. 1337-1410), um
momento raro em que a voz do camponês se fez presente na documentação medieval. De
fato, o problema da natureza das fontes medievais, seu caráter claramente omisso em
relação a este grupo social, inibe uma análise mais profunda sobre os sentimentos dos
camponeses em relação a seus senhores.
Como o objetivo deste artigo é a Jacquerie, não tratarei da evolução e imbricamento das
condições sociais da massa camponesa (os servos — servi, o escravo do século IX, o
colono e vilão dos séculos XI e XII). Tampouco comentarei as especificidades dos casos
francês e alemão (BLOCH, 1987: 268-287). Trabalharei, nas palavras de Marc Bloch,
com a “oposição primordial” da sociedade medieval (e adotada mais tarde por Georges
Duby): senhores e camponeses.
Os estudos arqueológicos não fornecem dados significativos dos modos de pensar e sentir
daquele estrato social, o maior de todos, a base material que alicerçou as sociedades
medievais durante toda a sua existência — uma projeção bastante cautelosa afirma que
no século XIII eles seriam cerca de 69% da população européia (GEREMEK, 1986: 71).
Para Jacques Le Goff, eles seriam 90% da população européia (LE GOFF, 1998: 109).
Sabemos com relativa segurança as formas de trabalho na terra (DUBY: 1987-1988), as
fomes, os direitos dos senhores (DUBY, 1990: 11-41), os deveres dos camponeses
(FOURQUIN, 1987: 166-175), as persistências pagãs — ver, por exemplo, São Cesário
de Arles (470-543) em seu “Sermão para uma paróquia rural” (LAULAND, 1998: 42-
48). Podemos até mesmo reconstituir a estrutura de uma casa camponesa (NICHOLAS,
1999: 174-177), sua alimentação, mas sobre a natureza dos sentimentos do camponês em
relação à sua condição servil, temos pouca informação. Esta dificuldade deve ser
ressaltada: os silêncios da documentação. É o historiador catando as migalhas
documentais à procura de informações sobre seu tema.
No entanto, esta omissão das fontes não deve nos enganar, pois à toda ação segue-se uma
reação. Ser explorado provoca resistências (por vezes passivas, silenciosas), tumultos,
deserções, fugas para as florestas — especialmente a partir do século XII
(FOURQUIN, op. cit.: 168), violências esporádicas — por exemplo, “...a surda guerrilha
dos roubos nas terras do senhor (...) do incêndio das suas colheitas.” (LE GOFF, 1984,
volume II: 61).
Esta consciência de pertença a um grupo aparece em lampejos cronísticos, fontes que são
sempre escritas por gente que não pertencia a esta ordem — mais um problema da
natureza documental — mas, que mesmo assim, nos mostra que a sociedade medieval
não era tão harmoniosa como os textos a princípio nos fazem crer. Jacques Le Goff já
assinalou bem o motivo pelo qual as fontes medievais silenciam os antagonismos sociais:
o quase monopólio literário dos clérigos até o século XIII (LE GOFF, op. cit., vol. II: 55).
Pierre Bonnassie distingue duas fases na história das revoltas camponesas da Idade
Média:
1) do final do século X até o século XII e
2) séculos XIV-XV (BONASSIE, 1985: 127) — na Alta Idade Média, a documentação
simplesmente omite a existência do camponês: “não há camponês nem mundo rural na
literatura dos séculos V e VI” (LE GOFF, 1980: 121-133).
Por sua vez, Georges Duby destaca o motivo comum das revoltas camponesas medievais:
a resistência aos impostos (DUBY, 1988: 213). Para a primeira fase das revoltas,
selecionei duas passagens de fontes onde a consciência de pertença a um grupo
oprimido está presente: uma revolta na Normandia em 996 brutalmente sufocada pelos
barões e um diálogo fictício entre um amo e seu escravo, na Inglaterra anglo-saxã do
século X.
O discurso baseia-se na afirmativa da unidade do ser humano. “Eles são como nós”: esta
é uma fala que pressupõe o combate (e a consciência de que é a parte fraca na luta). É o
desejo de igualar-se ao inimigo, retirar-lhe a aura mística de superioridade (neste caso, a
dignidade de sua ordem), deixá-lo humano. A ênfase é dada ao corpo (e membros): a dor
é igual para todos. Eles também podem sangrar. Basta coragem. Para isso, é necessário o
juramento coletivo. A união do grupo reforça e inibe o medo. Sem dúvida, trata-se de um
primeiro passo para a afirmação de uma ação coletiva.
Naturalmente, pela natureza tardia do escrito, é certo que tais palavras não foram
proferidas desta forma, talvez nem mesmo tenham sido ditas. No entanto, o desejo de
Wace registrar o fato era, sem dúvida, o de passar a sensação de revolta, o ambiente
turbulhante no qual a Normandia esteve envolvida.
Como nos diz Wace, os camponeses, com a divisa “O nosso inimigo é o nosso senhor”
(Notre ennemi, c’est notre maître) se uniram por um juramento, elegendo “os mais hábeis,
os que melhor falavam” (Les plus adroits, les mieux parlant) para que nunca tivessem
senhor ou mediador. Ao saber disso, o duque enviou um conde, de nome Raoul, com forte
cavalaria, para reprimir os insurretos. A brutal repressão senhorial descrita por Wace fala
por si:
Raoul exaltou-se de tal modo / Que não fez julgamentos / Pô-los todos tristes e doloridos
/ A muitos arrancar os dentes / E a outros mandou empalar / Arrancar os olhos, cortar os
pulsos / A todos mandou assar os jarretes / Mesmo que com isso morressem / Outros
foram queimados vivos / Ou metidos em chumbo a ferver / Assim mandou tratar a todos
/ Ficaram com aspecto horroroso / Não foram depois disso vistos em parte nenhuma /
Onde não fossem bem reconhecidos / A comuna ficou reduzida a nada / E os vilãos
portaram-se bem / Retiraram-se e demitiram-se / Daquilo que tinham começado
(“Raoul s’emporta tellement / Qu’il ne fit pas de jugement / Les fit tous tristes et dolents
/ A plusieurs arracher les dents / Et les autres fit empaler / Arracher les yeux, poings
couper / A tous fit les jarrets rôtir / Même s’ils en devaient mourir / D’autres furent brûlés
vivants / Ou plongués dans le plomb bouillant / Les fit ainsi tous arranger / Hideux furent
à regarder / Ne furent depuis en lieu vus / Qu’ils ne fussent bien reconnus / La commune
est réduit à rien / Et les vilains se tinrent bien / Se sont retirés et démis / De ce qu’ils
avaient entrepris.”) (Citado em LE GOFF: op. cit., volume II: 61)
Lavrador: — Trabalho muito, meu senhor. Saio de casa ao raiar do dia. Levo os bois
para o campo e prendo o arado; por medo do meu senhor, não há inverno tão rigoroso
em que eu ouse me esconder em casa; mas os bois jungidos, a relha e a lâmina no arado,
devo arar um acre ou mais todos os dias.
Lavrador: — Tenho um rapaz que conduz os bois com a aguilhada, que agora está
rouco por causa do frio e dos gritos.
Lavrador: — Faço mais do que isso, com toda certeza. Tenho de encher o estábulo dos
bois com feno, dar água, remover o estrume.
Pois após o ano mil, a decadência das instituições públicas e o gradativo aumento das
exações (DUBY, 1988, vol. II: 96-100) — apesar das cartas de franquia — cartas
outorgadas pelo senhor aos habitantes de vários senhorios que codificavam os costumes
locais e protegiam os servos de interpretações abusivas do senhor e seus funcionários,
“...precisando as condições e os limites em que o senhor, de futuro, poderá exigir tributos
e serviços” (FOURQUIN, op. cit.: 174) —, forçou o campesinato a uma uniformização.
Para baixo. Especialmente a partir do século XIII, tempo que viu alargar a distância entre
ricos e pobres no mundo medieval (DUBY, 1988, vol. II: 150).
Isto fica claro quando se analisa a evolução dos termos aplicados ao camponês: pouco a
pouco, um sentido pejorativo tomou conta do universo semântico que definia o homem
da terra (FOURQUIN, op. cit.: 167), especialmente as palavras rusticus — camponês,
mas desde o século VI como sinônimo de ignorante, iletrado, em suma, a massa
desprovida de cultura (LE GOFF, 1980: 132) — e villani(vilão) — originalmente apenas
o residente da villa (ROBERT, 1989: 2.094), mas no século XIV já com o sentido
de fealdade moral (LE GOFF, 1984, vol. II: 58).
Os rustici também eram retratados pelos letrados com profundo desprezo, ridicularizados
na literatura e na arte, nas chansons de geste, nos contos satíricos e nos poemas
goliárdicos — os goliardos (ouvagants) eram clérigos marginais e urbanos que escreviam
poesias criticando asperamente a sociedade de sua época (LE GOFF, 1993: 31-39).
Por exemplo, um conto dizia que a alma do vilão após a morte seria recusada no Inferno,
pois os diabos se recusariam a levá-la devido ao seu mau cheiro (TUCHMANN, 1990:
162) — apenas se possuísse uma habilidade excepcional alcançaria o paraíso (“É esse o
tema do fabulário intitulado Du vilain qui gagna le paradis par plaid — isto é, o vilão que
ganhou o paraíso pleiteando.”) (LE GOFF, 1984, vol. II: 58).
Um poema goliárdico (A Declinação do camponês) mostrava o vilão como um gatuno
(furem), ladrão (latro), maldito (maledicti), miserável (tristium), mentiroso (mendacibus)
e infiel (infidelibus) (LE GOFF, 1984, vol. II: 59).
Era também comum o camponês ser descrito como um negro. Numa chanson de geste de
Garin le Lorrain, Rigaud, filho do vilão Hervis é descrito da seguinte forma:
Era um rapagão de membros fortes, largo de braços, de rins e de ombros, com os olhos
afastados um do outro de uma mão-travessa; não se poderia encontrar em sessenta
países um rosto mais rude e mais desagradável. Tinha os cabelos eriçados e as faces
negras e curtidas; havia seis meses que não lavava a cara e a única água que lha molhara
tinha sido a chuva do céu”. E na floresta onde Aucassin vai a cavalo, a aparição de um
jovem camponês: “Tinha uma enorme cabeça. mais negra que um tição, e tinha mais de
uma mão-travessa entre os olhos, e tinha enormes bochechas e um grande nariz
achatado, com as narinas largas, e lábios grossos, mais vermelhos que a carne grelhada,
e grandes dentes, amarelos e feios...
(LE GOFF, 1984, volume II: 58).
Enfim, para os letrados, o camponês era um ser intermediário, a meio caminho entre os
animais e o homem (LE GOFF, 1989: 93). A conjuntura do início do século XIV na
França também agravou esse quadro antagônico. As calamidades que afetaram os
abastecimentos (especialmente os anos muitos chuvosos a partir de 1309 e depois nos
anos 1315-1317), as sucessivas guerras (com suas pilhagens e incêndios de colheitas), a
Grande Peste de 1348 e 1349, o conseqüente despovoamento dos campos e a restrição
dos espaços cultivados (DUBY, 1988, vol. II: 161-178) afetaram a crise das ordens no
ano de 1358, e, especialmente, a imagem que o camponês tinha do pacto social e da
nobreza como um todo.
A Revolta dos Jacques (FR 2813), fol. 414, Grandes Chroniques de France, France,
Paris, XIVe s. (70 x 65 mm)
Foi nesse contexto histórico de gradativo e dissimulado confronto social que aconteceu
a Jacquerie. Além disso, as derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos, o cativeiro do
rei João II (1350-1364) na Inglaterra após a derrota em Poitiers (1356), mas, sobretudo,
a venalidade dos ministros do rei, abriram um espaço político para que o Terceiro Estado
— convocado para pagar o resgate de João II — tentassem de alguma forma restabelecer
o controle constitucional. Os primeiros Estados Gerais foram convocados em 1355 e
1358, portanto, no contexto pré-insurrecional (FOURQUIN, op. cit.: 221).
O Delfim Carlos e Etienne Marcel (FR 2813), fol. 404v, Grandes Chroniques de
France. France, Paris, XIVe s. (70 x 65mm)
O pano de fundo do levante burguês foi a convocação dos Estados Gerais para a captação
de dinheiro para a defesa do reino contra a Inglaterra (e o resgate do rei João II). Marcel
comandava metade dos delegados (400), e exigiu o afastamento dos sete conselheiros
reais (sabidamente corruptos) e o confisco de suas propriedades.
Além disso, que fosse formada uma comissão chamada “Conselho dos Vinte e Oito” (12
nobres, 12 burgueses e 4 clérigos) e a libertação de Carlos, o Mau, de Navarra
(TUCHMANN, 1990: 145).
O delfim Carlos fugiu de Paris, rejeitou as exigências e ordenou a dissolução dos Estados,
que se recusaram. Marcel pressionou o delfim, com a ameaça de greves (das guildas e
ofícios de Paris) e violência popular (armando o populacho). Sem recursos, Carlos voltou
a Paris e reconvocou os Estados que, entre fevereiro e março de 1357 elaboraram, em
francês, a chamada “Grande Ordenação”, sessenta e um artigos que expunham o ideal do
bom governo monárquico. Além disso, seria formado um Conselho de Trinta e Seis (doze
de cada Estado), para aconselhar a coroa (COVILLE, 1902: 119-121). Carlos protelou e,
mais uma vez, Marcel pressionou, levando as massas às ruas, que gritavam: “Às armas!”.
Carlos assinou, mas conseguiu que a nobreza retirasse o apoio na reunião dos Estados
Gerais.
Chegando ao quarto do delfim, mataram dois marechais na frente de Carlos, nas palavras
de Marcel, um ato que representava “a vontade do povo” (TUCHMANN, op. cit.: 158).
Após este acontecimento, os nobres definitivamente colocaram-se ao lado da coroa.
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Pelo contrário, entendo que os jacques se sublevaram contra seus senhores por
entenderem que o pacto social havia se rompido e sua condição servil deveria terminar.
Neste aspecto ela deve ser entendida sim como uma luta de ordens, guardadas as devidas
proporções com o ambiente da época, como veremos. Pois eles não afirmaram “o desejo
de aniquilar do mundo toda a nobreza?” (FROISSART, 1988: 181) Como esta passagem
da fonte deve ser entendida? Apenas um “desvairio de uma multidão cega?” (DUBY,
1988, vol. II: 214)
Chegamos então a Froissart. De antemão, digo que seu texto sobre a Jacquerie não é
original. O autor tampouco presenciou os acontecimentos, pois baseou-se para redigir
seus escritos na Crônica de Jean le Bel. Originário de Hainaut, Jean le Bel foi canônico
de Saint Lambert de Liège desde 1311 e lutou ao lado de Jean de Hainaut durante sua
campanha contra a Escócia (1327). O texto de Jean le Bel é considerado a principal fonte
de Froissart (COVILLE, op. cit.: 413). Froissart afirma mesmo que aumentou e historiou
o livro de le Bel, “sem tomar partido, sem colorir uma coisa mais que outra, salvo os bons
feitos dos bons, que os conquistaram pela sua proeza...” (FROISSART, op. cit.: 03).
Froissart inicia sua narrativa sobre a Jacquerie quando Etienne Marcel controlava Paris e
pressionava o delfim. Ele afirma que esta “terrível e grande tribulação” (FROISSART, op.
cit.: 179) iniciou-se no Beauvaisis (fim de maio de 1358). Cerca de cem homens
(jacques — Jacques Bonhomme era o nome depreciativo dado pela nobreza ao camponês)
se reuniram, num cemitério, inicialmente sem líder.
Após a decisão pela revolta, partiram até a casa do gentil-homem mais próximo,
provavelmente um agente do príncipe — homens de armas estabelecidos pelo soberano
(pois a revolta teve como alvo direto os homens que representavam a exploração realizada
pela nobreza). Estes jacques, “armados apenas de bastões com pontas de ferro e facas”
(FROISSART: op. cit.), destruíram a casa,
...mataram o cavaleiro, a dama e os filhos, grandes e pequenos, e incendiaram tudo. Logo
foram a um castelo e ali ainda fizeram pior, pois prenderam o cavaleiro e o ataram a uma
estaca muito fortemente, e muitos violaram a mulher e a filha diante do cavaleiro. Depois
mataram a mulher, que estava grávida, a sua filha e todos os filhos, e o marido, depois de
torturá-lo, queimaram-no e destruíram o castelo. (FROISSART, op. cit.: 180)
Logo surgiram líderes: um tal de Jacques Bonhomme, segundo Froissart, “...de Clermont
em Beauvaisis (...) o pior dos piores”. Outro teve melhor registro:
A condição das bestas é mais feliz que a nossa, pois não são obrigadas a trabalhar mais
do que a sua força lhes permite. E nós, pobres asnos, carregamos fardos e mais fardos (...)
Força então meus bons amigos; despertemos e mostremos que somos homens e não
bestas” (Citado em BONASSIE, op. cit.: 128)
Estas palavras são atribuídas a Guillaume Carle (Cale ou Karle) pelo cronista Belleforest.
Verdadeiras ou não, o fato é que ele se destacou como o líder dos camponeses. Uma
liderança, condição necessária para a resistência passiva tomar a forma de uma rebelião
declarada (CHERUBINI, 1989: 91).
Carle era natural da Picardia, no noroeste da França, uma região com uma alta densidade
populacional já no século X (NICHOLAS, 1999: 325). As crônicas apontam sua
eloqüência natural e capacidade de organização: ele montou uma comuna que, entre
outras coisas, deliberava com um selo oficial e empossava capitães locais eleitos.
Carle ainda mandou seus homens improvisarem espadas de foices e costurarem bandeiras
com a flor-de-lis, para demonstrar que a insatisfação dos camponeses era contra os nobres
e não contra a monarquia. Carle queria a aliança com as cidades; os dois movimentos,
camponês e burguês se uniriam contra os nobres. Obteve razoável resultado: Beauvais e
Senlis abriram suas portas e deram alimentos aos jacques; Beauvais e Amiens chegaram
mesmo a executar vários nobres enviados pelos jacques como prisioneiros. Mas
Compiègne e Caen não aderiram à revolta e receberam nobres refugiados
(TUCHMANN, op. cit.: 164).
Então o autor, baseado na crônica de Jean le Bel, descreve o canibalismo dos jacques,
numa passagem que foi mais tarde repetida em várias crônicas: Pois, entre outras vilanias,
mataram um cavaleiro e o cravaram em um assador para assá-lo no fogo diante de sua
dama e de seus filhos. Depois que dez ou doze forçaram e violaram a dama, quiseram
fazer ela comê-lo à força e logo fizeram-na morrer de má morte.
Houve mais destruição do que mortes. Nas crônicas posteriores, as mortes chegam a um
total de trinta e três nobres (TUCHMANN, op. cit.: 164). Em compensação, as
...gentes miseráveis incendiaram e destruíram mais de sessenta boas casas e fortes castelos
do país de Beauvaisis e dos arredores de Corbie, Amiens e Montdidier (...) saquearam
entre as terras de Coucy, os bispados de Laon, Soissons e Noyon, mais de cem castelos e
boas casas de cavaleiros e escudeiros, matando e roubando tudo o que encontravam
(FROISSART, op. cit.:180- 181).
Mas para que a nobreza não fosse extinta do mundo, Deus deu fim à revolta: “E se Deus
não houvesse posto remédio com Sua graça, a desgraça teria crescido de modo que todas
as comunidades teriam destruído os gentis-homens, depois a santa Igreja e a todas as
gentes ricas de todo o país, pois assim sucedeu no país de Brie e Artois”.
No mesmo dia que os jacques chegaram a Meaux, dois cavaleiros, que voltavam da
cruzada na Prússia, acudiram as damas, um remédio que Deus, com Sua graça, concedeu
a elas:
Agora observai a grande graça que Deus concedeu às damas e donzelas, pois, na verdade,
teriam sido violadas, forçadas e perdidas, por nobres que fossem, se não houvessem sido
salvas pelos gentis-homens que ali estavam, e de modo especial, pelo conde de Foix e
meu senhor captal de Buch, pois estes dois cavaleiros vieram para destruir aqueles
camponeses (FROISSART, op. cit.: 181).
Com cerca de quarenta lanças (120 homens), os cavaleiros, tendo à frente vinte e cinco
cavaleiros de armaduras e gualhardetes de prata mostrando seus símbolos heráldicos,
entraram na ponte. Provavelmente na ânsia da luta, os jacques imprudentemente
decidiram avançar naquele estreito espaço, onde sua superioridade numérica não podia
prevalecer — interessante observar que Froissart não permite que os jacques tenham
nenhum tipo de coragem em batalha, pois afirma que
...quando aqueles miseráveis os viram assim formados, esqueceram o furor de antes.
Ainda que não fossem muitos contra eles, os primeiros começaram a retroceder, e os
gentis-homens a persegui-los e a lançar-lhes lanças e espadas e a derrubá-los. Então os
que estavam diante e sentiam os golpes ou temiam recebê-los, retrocederam todos de uma
vez de terror, e caíram uns em cima dos outros (FROISSART,op. cit.: 184)
Os cavaleiros os “mataram como bestas” — no sentido medieval, besta pode ser qualquer
animal irracional (PANUNZIO: 1963), e morreram naquela dia cerca de sete mil. Meaux
foi saqueada e incendiada, com todos os vilãos do burgo dentro, e ainda ardeu durante
duas semanas, “...e foi posteriormente condenada por crime de lesa-majestade e eliminada
como comuna independente.” (TUCHMAN, op. cit.: 166). Com essa vitória, os nobres
ganharam confiança e a Jacquerie foi reprimida.
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Os Jacques são massacrados em Meaux (1358) (FR 2813), fol. 414v, Grandes
Chroniques de France, France, Paris, XIVe s. (70 x 65 mm)
Mas faltava ainda Guilherme Carle. Carlos de Navarra, agora novamente aliado, contra-
atacou na Picardia e em Beauvais. Marchou em Clermont, sob o controle de Carle, que
comandou um ataque organizado em campo aberto. Surpreso, Navarra preferiu a traição:
convidou Carle para conversar. O picardo aceitou, dirigindo-se ao acampamento de
Navarra sem nenhuma proteção. Num gesto covarde, o rei de Navarra, nobre e cavaleiro,
prendeu Carle e acorrentou-o.
Esta captura desarticulou completamente o exército camponês, que a seguir foi derrotado.
Segundo Froissart, mais de três jacques mil foram mortos: “O próprio rei de Navarra
acabou um dia com três mil muito próximo de Clermont, em Beauvaisis.” Trezentos que
se refugiaram num mosteiro foram queimados vivos e Navarra ainda degolou Carle
depois de tê-lo coroado rei dos jacques, num aro de ferro em brasa (TUCHMANN, op.
cit.: 167).
Gentis-homens
Damas - 15
Cavaleiros - 12
Donzelas - 06
Escudeiros - 05
TOTAL = 38
Citações
Camponeses
Gentes - 09
Gentes miseráveis - 08
Vilãos - 03
Criminosos - 02
Violadores - 01
Jacques - 01
TOTAL = 24
Ao utilizar a análise lexicográfica como método para o tratamento da fonte, percebi que
Froissart trata da sublevação de forma binária, numa oposição simples — a análise
semântica auxilia a confirmação de núcleos de sentido do texto e sua abordagem
quantitativa se baseia na freqüência da aparição de elementos da mensagem. A
observação do conteúdo — após a análise de sua singularidade e das circunstâncias de
sua produção — pode ser mais bem controlada e servir de aferidor metodológico das
hipóteses basilares da observação (BARDIN, 1994: 114-115).
Por fim, tentarei responder às questões levantadas por Garcia de Cortazar e Ruiz de
Aguirre e consideradas essenciais enquanto “perspectivas de abordagem dos movimentos
populares”:
1) a Jacquerie foi um movimento espontâneo ou organizado?
2) Quais foram as suas principais motivações?
3) E sobre a sua estrutura interna?
4) Qual foi o processo da revolta e a reação dos restantes grupos sociais?
5) Qual foi a amplitude geográfica da mesma? e
6) Quais foram as conseqüências do movimento a nível imediato? (CORTAZAR, 1983:
160).
Sua estrutura interna baseava-se no campesinato dos arredores de Paris — segundo Duby,
camponeses ricos (DUBY, 1992: 264). No entanto, Duby não indica a fonte de sua
informação. Talvez se trate de uma hipótese por dedução, já que a região onde a revolta
começou era uma das mais ricas da França, como vimos. Tinham líderes locais de
destaque (como Guilherme Carle) mas sem nenhum tipo de comando militar, fator
essencial nas derrotas de Meaux e Clermont.
Através das palavras de Froissart tentei mostrar pari passu o processo da revolta. O único
grupo social que esboçou uma cooperação foi o dos burgueses citadinos — as cartas de
perdão concedidas pelo infante Carlos depois dos acontecimentos mostram os ofícios
sociais envolvidos com os jacques — açougueiros, padres, tanoeiros, até mesmo oficiais
do rei (LUCE: 1895).
Fontes
Bibliografia
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Paul, 1960.
DUBY, Georges. Economia rural e vida no campo no ocidente medieval. Lisboa: Edições
70, 1987-1988, 02 volumes.
DUBY, Georges. Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D’Arc. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
DURAND, Yves. “As estruturas sociais européias”. In: LIVET, Georges e MOUSNIER,
Roland. História Geral da Europa II. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 531-
546.
FOURQUIN, Guy. Les compagnes de la région parisienne à la fin du Moyen Âge. Paris,
Sorbonne, 1964.
FOURQUIN, Guy. Senhorio e feudalidade na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1987.
GARCIA DE CORTAZAR, Jose Angel e AGUIRRE, Ruiz de. História Rural Medieval.
Lisboa. Editorial Estampa, 1983.
GEREMEK, Bronislaw. A Piedade e a Forca. História da Miséria e da Caridade na
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LE FEBVRE, Y. Etienne Marcel et le Paris des marchants au XIV siècle. Paris, 1927.
LE GOFF, Jacques. “Os camponeses e o mundo rural na literatura da Alta Idade Média
(séc. V e séc. VI)”. In: Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura
no ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980, p. 121-133.
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
LE GOFF, Jacques. Uma vida para a História. Conversações com Marc Heurgon. São
Paulo: Unesp, 1998.
MOLLAT, Michel and WOLFF, Philippe. The Popular Revolutions of the Later Middle
Ages. London: George Allen & Unwin, 1973.
PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d,
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