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Maria de Fátima Lambert

Os Observadores do Céu de Cristina Ataíde

Museu Nacional Soares dos Reis

“Em silêncio descobri essa cidade no mapa


a toda a velocidade: gota
sombria…”
Herberto Helder

“For ages man has labored to put his dreams in order. Look at the result.
Once an idea like the correct time is elucidated
It must fade or spread.”
John Ashbery

O céu nunca é vazio.

Os Observadores do Céu fixam-se nele, quase suspensos, a Ver.

Há Ar, há nuvens – verdadeiras e artificiais, há deuses e há semideuses e há heróis, há anjos,


há constelações e há astros e há estrelas, há desenhos voláteis e outros nebulados, há palavras
escritas que esvoaçam, há dispositivos mecânicos, há aves, pássaros e animais afins, há a terra
refletida vista debaixo para cima e vice-versa, se estivermos no hemisfério Sul. A questão
consiste em estar, permanecer, demorar-se. Há anjos1.

Localizar-se num ponto é resistir à tentação de se mover, demorando-se o mínimo tempo para
saber onde se está. É um desafio contrariador de existências movediças que Cristina Ataíde
propõe com as duas peças de escultura que intitulou por Observadores do Céu.

“O mundo é tão vasto, espaçoso,


O céu tão amplo e majestoso!
Tudo quer ver o meu olhar,
Mas não sei como o imaginar”.2

Os Observadores do Céu descendem de uma linhagem estoica, embora se saiba deles já nos
tempos arcaicos, quando as Cosmogonias dominavam e o Céu era mesmo à séria, nos
primórdios dos Arquétipos. Alguns Observadores do Céu eram mais afeiçoados à Água,
curiosamente. Foram quase discípulos de Tales, supostamente um dos primeiros filósofos. Era
interessante, pois a Água consegui configurar-se, moldar-se às coisas da natureza, ser
absorvida e evaporar-se. Genial. Mas não ficou por então. Antes que dessem primazia ao Ar,
como os Observadores do Céu acreditava dever ser expectável, Anaximandro ainda inventou
algo mais intelectual, impôs o conceito de Apeiron – que na verdade era algo bem simples:
somente se tratava de conceber o Indefinido ou o Ilimitado. Ideias acessíveis, a serem

1
Texto dedicado aos Anjos que amei e não perdi porque os amo.
2
J.W. Goethe, O Jogo das Nuvens, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p.79
compreendidas por qualquer. Finalmente, lá avançou Anaxímenes de Mileto, tomando a
dianteira com a predominância do Ar. Mas, só para o contrariar (pensaram os Observadores do
Céu), Heráclito deu prevalência ao Fogo. A bem da ordem das coisas do mundo, o fogo
significava o movimento, cochichou um dos Observadores do Céu ao seu irmão do lado – que
era uma espécie de Doppelganger “avant la lettre” -uma escultura muito precoce, afirme-se e
assim se conclua, por enquanto.
Voltando às cosmogonias e a esse pensamento eivado de derivas mítico-simbólicas. Parecia
que só lhes faltava achar a Terra… exclamara um dos Observadores do Céu, na ocasião da
história, cansado de tanta argumentação. Ainda por cima, não conseguiam desgarrar-se
totalmente das Mitologias, nem na Grécia, nem depois em Roma. A cronologia, tal como foi
experienciada pelos Observadores do Céu, era algo enrolado, espiralado, dando encontrões
aos pensamentos, conforme soprassem os ditos 4 ventos. Aliás, em casos de algumas
tempestades, tornavam impossível contemplar as constelações; embaralhavam-se as estrelas
e os planetas. Por isso é que estava a demorar tanto organizar as ideias com maior rigor.
Eis que se evidenciou Empédocles de Agrigento, que num impulso quase salomónico,
pretendeu conciliar os termos e fusionou na ideia de Natureza, os 4 elementos e pronto: água
passou a ser Néstis (muito dramática, sempre a evocar as lágrimas dos mortais), o ar seria
Hera, o fogo teria de ser necessariamente Zeus (ou depois não fosse aparecer em cena
Prometeu a querer roubar-lho, para o dar aos mortais) e a terra Hades que seria responsável
pelo desígnio de Orpheu quando lá desceu a esses reinos da morte, para resgatar sua Eurídice
– e deu-se mal, já sabemos.
Resumindo, tempos houve em que os Observadores do Céu começaram a filosofar em demasia
porque foi imprescindível. Queixavam-se dos humanos que se quedavam demasiado agarrados
a uma fase de Astrologia primeva. Mas tudo evoluiria, convivendo a Astrologia, em plataforma
diferente, com a Astronomia que se começou a insinuar e logo meteu a ordem na lógica e
ensinou-os a serem todos razoáveis. Ainda que, os Observadores do Céu reconhecessem que
sem perda de muita sensibilidade, para garantir mais Poiésis e não apenas Tekné. E seria
suficiente para inventar o que se designaria por paisagem. Ai que a paisagem era tão mais
humana embora estivesse rechead[inh]a de Natureza.
De repente, interromperam as energias mais racionalista e lembraram-se de, em tempos idos,
terem sabido que existia Janus (ou Jano), esse deus romano - uma figura surpreendente
sempre haviam concordado – em quem existiam 4 rostos (embora quase sempre só lhe vissem
3 faces…). Andava à procura das 4 partes do Mundo (Este, Oeste, Norte e Sul) – Santo
Agostinho escrevera sobre isso na Cidade de Deus, assinale-se. Janus era um dos responsáveis
por as coisas serem tão efémeras, andarem sempre a mudar…um verdadeiro deus a proclamar
as transições, diga-se. Muitas vezes associado ao Tempo, mas sem ocupar o lugar de Kronos ou
o de Kairós, esse deus que sabe sempre qual é o momento oportuno, em vez de andar a comer
os seus filhos como o outro…

Le bleu inespéré des purs nuages est hardi, car c'est entre les nuages que s'ouvrent ces
baies d'un bleu qui fait rêver de l'été ; mais il est vrai qu'on ne les voit qu'au bord des
nuages purs, dans le ciel automnal partout ailleurs âprement déchiqueté.3

3
Gaston Bachelard, L’Air et les Songes - Essai sur l’imagination du mouvement, Paris, Ed. José Corti, 1943, p.198
Houve momentos gloriosos para os Observadores do Céu, quando os Mapas Celestes
Medievais dominaram os cenários e as ilusões vestidas de racionalidade e tentativas
metodologicamente certeiras. O que se pode contemplar nesses mapas é tão belo e colorido
que faz pasmar. Neles existem tantas coisas explícitas, afirmadas pela escrita ou pelos
ornamentos ínfimos. Conciliavam-se a realidade e o imaginário, parecendo adivinhar que as
Filosofias do Imaginário entrariam em cena muitos séculos após, pois Gilbert Durand fecit,
iriam ter muitos conteúdos a ponderar, mesmo depois e para além do filósofo da Imaginação
da Matéria, Gaston Bachelard, quem reinventara a pregnância dos 4 elementos, detetando-os
e explicitando-lhes potencialidades estéticas e substâncias poéticas. Mas, retorne-se e
revejam-se os Mapas Celestes: estavam povoados por seres imaginários, híbridos e sedutores.
Havia-os temerosos e parecendo nascidos de algum conto noturno de Edgar Allan Poe… No
tempo dos cartógrafos que inventavam mundos – sob suspeita de existirem efetivamente,
como se perceberia bem mais tarde – os mapas imaginários dos habitantes dos Céus eram
uma volúpia admitida pelos mais exigentes. Delas advinham sentenças e certas conciliações
teológicas que se tornavam cúmplices e empurravam os pensamentos criativos mais
idealizados. As Crónicas de Nuremberga (1493) mostravam simbologias tão subtilmente
desenhadas e coloridas, onde os astros se personificavam, iludindo pelo fogo os próprios livros
da Criação.
“O céu é um túmulo ou uma cave, do mesmo modo que um mapa, um relógio, ou um
livro.”4
Em 1590 houve um mapa com a forma de cabeça humana que se intitulava “World Map in a
Fool's Head”. Significava que os humanos andavam tresloucados a deslocar os territórios e os
cumes que se aproximavam dos céus ou que na terra se contrariava o bem-comum. Ou seriam
outras as interpretações a atribuir-lhe. Como se queira. Os Observadores do Céu sabiam que
esse grande humano com cabeça de mapa era um ser utopista e porventura tão tonto que era
um sábio – parecia que adivinhavam que existiria Almada Negreiros a Ver sempre e mais e a
ter olhos enormes no lugar da cabeça com mapa desenhado.

"…o primeiro visível para o Homem foi o Céu e ele próprio na terra: o céu na fixidez dos
astros, ele próprio no que pode a mão."5

Mas que beleza tinham e como os Observadores do Céu se haviam sentido indispensáveis,
essenciais nesses processos, ao inspirarem (bafo divino) astrónomos e cartógrafos, depois
geógrafos e outros demais pesquisadores que se viam infiltrados pelos ares adentro,
tropeçando em nuvens. Visionários afiguraram-se tantos pintores, desenhistas e poetas a
falarem das nuvens sem as terem sentido no rosto por dentro como eles, os Observadores do
Céu. Relevem-se esses detalhes, pois como não prestigiar Alexandre Cozens e seus estudos
desenhados e a descrição escritas das tipologias e variantes das nuvens – pura redundância
pensaram alguns, invejosos de tanta capacidade para observar o ar e virtuosismo em demasia
para as representar. Nas nuvens de John Constable ou de Turner, nunca tinham vislumbrado
Arcanjos, nem mesmo qualquer Pégaso voltara a atravessar a densidade, rodeando as
tempestades ou sumidos na melancolia, essa vertente da nostalgia tão em moda ao tempo.

4
John Durham Peters, “The Marvelous Clouds - Toward a Philosophy of Elemental Media”, Chicago, University of
Chicago Press, 2015, p.175
5
Almada Negreiros, "Ver e a personalidade de Homero II", Ver, Lisboa, Arcádia, 1982, pp.123-124
Isso acontecera há demasiado tempo atrás. Sabia-se que, se fossem incautos – pois os
Observadores do Céu eram vigias do céu, uma espécie de faroleiros fora da linha do mar-,
poderiam não alertar a tempo algum ser alado que pensava e sentia a dor dos humanos, em
reminiscência de ter sido. Algum Anjo Caído poderia mergulhar nos seus círculos de mármore
(em jeito de cabeça e olhos) e aí descansar sem soçobrar, tal era a ideia generosa que os
Observadores do Céu acalentavam pudesse ocorrer. Gostariam de ser uma espécie de sofá
para Anjos descansarem – como se haviam deleitado a ver as Asas do Desejo, onde
dominavam o olhar em sentido oposto ao dos Observadores do Céu. Enquanto os Anjos de
Wim Wenders olhavam para baixa, quer na Biblioteca grandiosa de Berlim, próxima à Neue
Philarmonie (ouviam músicas celestes, seria?) e na vizinhança da Neue National Kunst Galerie,
os Observadores do Céu tinham torcicolos por olharem para cima. Descendendo,
ascendendo…pois claro que São Boaventura tinha acertado ao escrever o Itinerário da Mente
para Deus.
Houvera um, a quem a sorte andara esquiva: era o Anjo da História, reconhecido [e
denunciado] por Walter Benjamin: o seu olhar estava virado ao Passado, fazendo a anatomia
dolorosa da História em queda vertiginosa. Cúmplice da figura simbolicamente representada
enquanto Angelus Novus, pintada por um suíço-alemão que se deslumbrara na paisagem
interior e exterior a si mesmo, saudando a genuinidade dos humanos que se dissipavam. O
artista chamava-se Paul Klee.

« Il représente un ange qui semble sur le point de s’éloigner de quelque chose qu’il fixe
du regard. Ses yeux sont écarquillés, sa bouche ouverte ses ailes déployées. (…) Il
voudrait bien s’attarder, réveiller les morts et rassembler ce qui a été démembré. Mais
du paradis souffle une tempête qui s’est prise dans ses ailes, si violemment que l’ange
ne peut plus les refermer. Cette tempête le pousse irrésistiblement vers l’avenir auquel il
tourne le dos, tandis que le monceau de ruines devant lui s’élève jusqu’au ciel. Cette
tempête est ce que nous appelons le progrès.»6

Quando os Observadores do Céu cumprem os seus propósitos durante o dia solar, podem ser
confundidos pelas sombras e reflexos, desacertarem a mira, desfocarem o ver. Durante a
noite, preferem a lua cheia, embora seja quase excessiva, por vezes, a sua luminosidade e
fiquem deslumbrados, como se de olhos de serpente se tratara a contemplá-los. Pois há que
diferenciar entre observar e contemplar. O primeiro termo é mais profissional, para aquelas
esculturas que se profissionalizam a olhar o céu, deixando-se ser contempladas pelo público.
Haverá de atender cuidadosamente a que o olhar não caia em cima, nem dos próprios
Observadores do Céu, nem tampouco em quem debaixo deles se saiba posicionar para olhar
para cima:
“Tudo estar aí claramente como o céu ou o espaço. Cair infinitamente é o terror que
inspira o espaço o ele ser vazio. Sentirmo-nos despenhar no ar. Tudo ser como o ar
como estar no ar.7”

Estes Observadores do Céu, como bem lhes compete por natureza e intenção, são esculturas
viajadas – quer nos tempos, quer nos espaços, como se provou antes. Umas vezes, colocam-se,
situam-se a céu aberto e pensam-se numa lezíria ribatejana ou num planalto em Trás-os-
Montes. Poderiam ter experimentado alguns problemas de equilíbrio se se tivessem deslocado

6
Walter Benjamin. Sur le concept d’histoire, IX [1940]. Gallimard, 2000, p. 434
7
Ana Hatherly, 351 tisanas, Lisboa, Quimera, 1997, p.62
para as encostas do Douro [talvez houvesse algumas videiras que se aproveitassem da situação
e começassem a enredar-se-lhes nas pernas como fossem esteiros], daí não terem ousado. A
possibilidade de visitarem a orla marítima ainda não foi abandonada, mas o excesso de chuva
deste Inverno adiou o trajeto. Por outro lado, os Observadores do Céu têm curiosidade em
conhecer as ilhas em meio do Atlântico, pois ainda acreditam em utopias e ouviram falar de
Atlântida essa ilha fantástica que inunda os imaginários de metade do mundo. O globo
terrestre que é tão quase perfeitamente redondo não acaba por cumprir a sua virtude sagrada.
Deveria ser na realidade a direito, suscetível de que, negligenciando, se caísse no fim da
planície, da escarpa ou falésia abaixo, como acreditavam os antigos. Como se a Terra fosse
plana, afinal. As sombras atraiçoam, um pouco, essa ideia, pensa um dos Observadores do Céu,
porque não se esticam a direito no chão, sinuosamente movem-se quando a pessoa está
quieta. Ou talvez sejam as sombras do que se vê no céu a misturar com as pessoas cá abaixo.

“A sombra das nuvens corre pelo deserto e pelas estepes. O céu está sempre tão
perto.”8
Na vida real, que lhes assiste enquanto esculturas, residiram transitoriamente em plena
calçada numa movimentada rua de Lisboa. Sentiam-se protegidos pois a porta de entrada da
Galeria, estava mesmo ali a dois passos. Depois vieram para Norte, o que é fácil quando se
trata de Observadores do Céu que seguem as estrelas certas. Ficaram encerrados num Palácio
que fora um antigo Convento e muito houve a saber, apesar do céu estar tapado por um teto
muito lá no alto. Havia grandes janelões o que lhes deu uma outra perspetiva do mundo – de
lado e não para cima.

É aconselhável olhar e ver, mesmo que não se seja [Contemplador] Observador do céu.
Alguém insiste
em que eu me esqueça de contemplar, de ver, de desejar,
e de gritar que a vida é uma injustiça, uma
conversa de surdos, um amor trocado…9

Finalmente, após permanecerem durante algum tempo em hibernação, encontram-se numa


condição de excelência que muito estimam: presentes no Jardim Interior do Museu Nacional
Soares dos Reis, rodeados por Japoneiras submissas e arbustos conversados. Ouvem no
silêncio o ruído da água lentamente mexida na fonte central de pedra. Ainda não tiveram
tempo para contemplar os Painéis de Azulejo que estão uma plataforma abaixo, donde a
dificuldade. Os Observadores do Céu, afinal, estão mais acostumados a ver, quando olham
para cima.
“Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranquilas.”10

8
Bernardo de Carvalho, Mongólia, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.41, p.115
9
Jorge de Sena, “Elegia por certo”, Visão perpétua, Lisboa, Edições 70, 1989, p.93
10
Manuel Bandeira, “O Rio”, Estrela da Vida Inteira, R.J., Nova Fronteira, 1993, p.203
Maria de Fátima Lambert

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