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Resumo
A pesquisa da qual este artigo é parte, partiu de constatações realizadas ao longo de outras
pesquisas realizadas junto a professores de escolas de Educação Básica do município de Santa
Maria/RS. No decorrer dessas pesquisas, constatou-se o quanto esses profissionais julgam-se
despreparados para o desenvolvimento de práticas educativas mais humanizadoras na escola.
Diante disso, a preocupação recaiu sobre os atuais processos de formação de professores: em
que medida estes futuros profissionais sentem-se preparados para este desafio? Para tanto,
realizou-se uma investigação com acadêmicos do 7º e 8º semestres do Curso de Pedagogia de
duas instituições de Ensino Superior do município de Santa Maria – RS, com o objetivo de
pesquisar em que medida estes sentem-se preparados para enfrentar os mais variados desafios
do cotidiano escolar, relacionados às práticas educativas humanizadoras. A coleta de dados
foi realizada através de entrevista semi-estruturada com seis acadêmicas de cada uma das
instituições, e o embasamento teórico teve por base autores como Paulo Freire, Miguel
Arroyo e Humberto Maturana. Foi constatado que, enquanto muitas acadêmicas afirmam não
sentirem-se preparadas para tais desafios, argumentando que poucas vezes lhes foi proposta
uma reflexão em torno da educação humanizadora em seus cursos, outras afirmaram estarem
sim preparadas, embora algumas com dificuldades em conceituar o que é uma educação
humanizadora. Ao lado disso, todas afirmaram a importância da prática que busca a
humanização. Pode-se dizer, portanto, que embora ainda seja pouco debatida essa perspectiva
nos cursos de formação inicial de professores, há um conhecimento por parte dos acadêmicos
que é produzido em outros contextos, principalmente no contexto escola, que os leva a
acreditar na importância de uma prática educativa mais humana.
Introdução
Ao longo dos últimos anos percebemos o quanto a escola vem sendo, cada vez mais,
incumbida de novas responsabilidades e o quanto vem tendo de enfrentar, no dia-a-dia,
desafios que exigem de seus profissionais uma formação constante. Isso tem a ver com os
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tantos acontecimentos ocorridos ao longo dos últimos tempos, pelas grandes e profundas
transformações que até então pareciam distantes da nossa realidade, mas que hoje estão aí, na
porta, quando não dentro, de nossas casas. O reconhecimento dos direitos sociais da mulher e
sua entrada no mercado de trabalho; o crescente processo de industrialização e urbanização e
o grande avanço da tecnologia são algumas das transformações mais significativas que vêm
ocorrendo.
Porém, ao mesmo tempo em que isso vem trazendo o progresso da nossa sociedade,
também vem gerando uma série de preocupações. Essas mudanças também vêm trazendo
consigo a competitividade, o individualismo e a busca constante pelo “ter”. Com isso,
percebemos que as relações humanas têm sido cada vez mais deixadas de lado. A maioria das
pessoas não encontra mais tempo para conversar e mesmo estar junto de pessoas queridas. Os
meios eletrônicos têm tomado esse espaço: o “msn”, o e-mail, o telefone celular, o “orkut”
vêm se tornando quase que a única forma de relacionamento entre as pessoas. As relações
humanas têm se tornado superficiais e isso tem nos tornado cada vez mais egoístas e
insensíveis uns aos outros.
Nos deparamos a cada dia com assaltos, mortes, violência de toda natureza,
degradação e destruição da vida humana. Convivemos com a injustiça, a discriminação, a
exploração e, como resultado dessa sociedade capitalista, com a dominação de uns sobre os
outros. Segundo Sampaio (2004, p. 30), “estamos vivendo uma crise global profunda, onde o
vazio existencial e afetivo, provocado pela manipulação e desmandos, favorece a miséria, a
violência, a corrupção, o medo, a insegurança, resultado da fragilidade das relações e dos
valores humanos”. As pessoas esqueceram-se de que somos seres humanos, de que todos
somos gente (HENZ, 2003).
Enfim, como resultado de tudo isso, percebemos que as crianças que a cada ano
chegam à escola, têm trazido consigo uma carência profunda de carinho, de diálogo. O mundo
delas muitas vezes não lhes permite que vivam sua infância, que sejam respeitadas e tratadas
de forma humana. Muitas vezes a maioria dessas crianças vem à escola em busca de um lugar
onde não as agridam, e em busca de carinho e atenção; por vezes, a escola é o único lugar
onde essas crianças podem ser crianças e viver com alegria. Nas palavras de Freire (2002, p.
69-70),
Mas apesar dessa triste realidade, muitos professores ainda encaram a escola como
uma instituição que têm unicamente a função de ensinar, de transmitir conteúdos, esquecendo
que a escola é lugar de gente (FREIRE, 2002); logo, o professor também é visto como aquele
que tem unicamente a função de transmitir esses conteúdos aos alunos. Também é freqüente
nos depararmos com crianças que vivem em condições mínimas de sobrevivência, diante do
que muitas pessoas insistem em tapar os olhos, se trancando em seu mundo. E muitas vezes
essas pessoas são os próprios professores...
Em pesquisas anteriormente realizadas com colegas professores e professoras de
Educação Básica, constatamos que a maioria destes profissionais, em seus processos de
formação inicial, aprendeu somente a ensinar conteúdos, informar e aplicar procedimentos
metodológicos; não lhes foi proporcionada uma reflexão acerca das relações humanas que
perpassam o ambiente escolar Afinal,
No tempo escolar os mestres têm de dar conta de pessoas, que não estão unicamente
em permanente estado de relação com os conteúdos do currículo, com suas
mudanças, mas que se relacionam, convivem entre iguais e diversos, sentem,
fantasiam, valorizam, dançam, se expressam na totalidade de sua condição humana.
As crianças, adolescentes e jovens... explodem na totalidade de suas vivências no
presente (ARROYO, 2004, p. 232).
E quando se dão conta de toda essa vida que perpassa o ambiente escolar, e do quanto
são em parte responsáveis pela humanização dessas crianças, adolescentes e jovens, esses
profissionais julgam seus cursos de formação inicial como insuficientes: “nós não fomos
preparados para isso; é no peito e na raça”. Além disso, sabem do “tipo de professor” que a
escola precisa hoje: “precisamos de professores mais humanos, que convivam e partilhem dos
problemas de seus alunos”. Afirmam, ainda, que se o professor de hoje não for “humano” o
suficiente para entender o quanto o seu aluno precisa dele, a educação estará fadada ao
fracasso, pois “de professores competentes em suas áreas a escola está cheia, e o problema
não se resolveu”.
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Desenvolvimento
Falar sobre a formação de professores nem sempre é uma tarefa fácil, pois durante
esse processo vive-se muitas surpresas, alegrias, angústias, e também muitas frustrações. As
expectativas são sempre muitas, mas em que medida estas são superadas? E quando ao lado
dela falamos ainda sobre a educação humanizadora, a dificuldade torna-se maior ainda. Ou
pelo menos foi isso o que pareceu claro durante a realização dessa pesquisa.
No decorrer do diálogo realizado com as acadêmicas, estas teceram considerações
acerca de vários aspectos relacionados à educação humanizadora e, em torno deles, refletiam
a todo momento: “mas de que educação humanizadora falamos?” E foram a partir dessas
reflexões que surgiam aspectos muito significativos a respeito do tema para nossa pesquisa,
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pois sentíamos o quanto para algumas acadêmicas tornava-se difícil falar sobre o assunto
proposto.
As opiniões a respeito de muitas questões por vezes assemelhavam-se, mas por vezes
também ficavam muito distantes umas das outras, afinal, as vivências, as experiências e a
história de vida de cada um talvez fale muito mais alto do que o processo de formação
acadêmica propriamente dito.
Algumas acadêmicas, quando questionadas se foram ou não preparadas para trabalhar
com uma educação humanizadora no decorrer do curso, afirmaram que seus professores
proporam sim algumas reflexões: “acredito que sim... devido ao curso ser das Ciências
Humanas e alguns professores terem trabalhado essa questão humanizadora durante as
disciplinas”. Outras afirmaram que sim e que esse é um dos objetivos do Curso: “eu acredito
que sim... porque a faculdade em si de Pedagogia (...) já tem o intuito de humanizar”.
Enquanto isso, outras afirmaram que de certa forma há uma preparação, mas que
deveria existir uma disciplina voltada especificamente para a humanização: “eu acho que há
uma preparação... mas não uma preparação específica (...) eu acho que deveria ter uma
disciplina... alguma coisa assim mais voltada pra isso (...) pra trabalhar com a questão da
humanização”.
Por outro lado, algumas acadêmicas julgam não estarem sendo preparadas para
trabalhar com uma educação humanizadora; estas, queixam-se da falta de preparação advinda
do curso: “acredito que não (...) no curso muito pouco eu vejo sobre isso (...) falta muito isso
no curso de Pedagogia... pensar mais no ser humano”, ou então afirmaram que não,
argumentando que o curso não prepara para a realidade: “quando a gente chega lá fora a gente
se depara com uma coisa muito diferente... acho que o curso em si ele não tá preparado pras
crianças que tem lá fora... pra nos preparar pro que a gente vai encontrar lá fora (...) essa
educação humanizadora... ela não tá acontecendo".
As falas de algumas dessas acadêmicas revelam uma grande insatisfação com seus
cursos por estes estarem distantes demais da prática. Porém, de modo algum acredita-se que
estudos teóricos não sejam absolutamente necessários para a realização da prática. Nesse
sentido, Azambuja & Bald (2007), ao reiterarem que muitos dos profissionais da educação
afirmam haver de fato esse distanciamento da realidade, nos trazem uma importante
contribuição:
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é importante que a formação do formador tenha subsídios teóricos e práticos que lhe
possibilite realizar suas tarefas com maior eficiência, atingindo as metas propostas
nos objetivos sócio-educacionais e buscando a interação com os demais envolvidos
(professores, alunos, sociedade, etc.). Isso porque é por meio de trocas embasadas
teoricamente que se fundamenta a prática e criam-se opções de escolha de outras
posturas, de um novo/outro perfil, no intuito de construir uma ‘práxis’ diferenciada
ao que se tem escutado sobre a atuação docente (AZAMBUJA & BALD, 2007, p.
48).
Entende-se, portanto, que não pode haver dicotomia entre teoria e prática; ambos são
processos que tendem a se complementar, formando concepções que atendam às necessidades
da realidade. Se julgarmos ser importante apenas o contato com a realidade, não teremos a
cientificidade necessária para nela intervir; do mesmo modo, dando primazia à teoria, não
teremos ferramentas suficientes para aplicá-la da maneira certa e na medida certa em nosso
campo de atuação.
Das acadêmicas já atuantes em sala de aula, muitas, ao reconhecerem a importância de
ambas, ainda apontam para a necessidade de mais prática dentro do curso: “depois que eu
comecei a trabalhar diretamente com crianças... dar aula... eu penso que o curso... todo curso
em si... ele dá muita teoria (...) claro... a gente aprende muito nos estágios (...) mas ainda falta
bastante coisa”. Estas, afirmaram que aprenderam a refletir sob essa perspectiva nesses outros
contextos, principalmente no contexto da sala de aula.
Enquanto refletiam acerca da realidade de seus cursos de formação, as acadêmicas
também teciam reflexões acerca do desenvolvimento das práticas humanizadoras com alunos
da Educação Básica. Elas, na grande maioria, apontam que reconhecem a importância da
valorização do “humano” nos processos educativos. Entretanto, pode-se também perceber na
pesquisa, quando as acadêmicas foram questionadas a respeito dos autores que embasam a
prática humanizadora, que algumas delas não têm nenhum pressuposto teórico que baseie
suas concepções acerca da importância da prática humanizadora; geralmente baseiam-se
apenas na prática vivenciada em sala de aula.
Todas as acadêmicas entrevistadas apontaram a importância da prática humanizadora;
apontando a importância das dimensões da afetividade, amorosidade e dialogocidade em sala
de aula: “além de tu transmitir o conhecimento... tu tem que transmitir carinho... afeição...
compreensão... porque eles precisam demais... (...) são muitos os fatores que tu têm que estar
disposta a praticar mesmo na sala de aula... mas principalmente afeto e carinho”.
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Nós, seres humanos modernos, do mundo ocidental, vivemos numa cultura que
desvaloriza as emoções em favor da razão e da racionalidade. Em conseqüência,
tornamo-nos culturalmente limitados para os fundamentos biológicos da condição
humana. Valorizar a razão e a racionalidade como expressões básicas da existência
humana é positivo, mas desvalorizar as emoções – que também são expressões
fundamentais dessa mesma existência, não o é (MATURANA; ZÖLLER, 2004, p.
221).
Muitas das acadêmicas envolvidas nessa pesquisa têm noção do quanto esses fatores
afetam a vida de nossas crianças e, por isso, encaram as práticas humanizadoras como peças-
chave para a preservação da vida. De fato, a educação não pode mais limitar-se à mera
transmissão de conteúdos; não pode ignorar essas tantas crianças e esses tantos adolescentes
que vivem sem perspectivas. Por isso, o interesse do educador pelos educandos deve ser
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completo. Freire (2007), também nos relembra que ninguém educa ninguém, mas que
aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo. Por isso, cabe ao professor,
formador dessas gentes, desses tantos desumanizados, buscar através de uma educação
dialógica e, portanto, humanizadora, resgatar os valores humanos e permitir que a escola não
seja um lugar a mais de desumanização...
Considerações finais
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 31. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2005.
_____. Pedagogia do Oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
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_____. Professora Sim, Tia Não: Cartas a quem ousa ensinar. 11. ed. São Paulo: Olho
d'Água, 2002.
SAMPAIO, Dulce Moreira. A pedagogia do Ser: educação dos sentimentos e dos valores
humanos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004.