Professional Documents
Culture Documents
qualquer televisão com o uso dos videocas- cias tanto técnicas quanto envolvidas em
setes. As possibilidades do vídeo implica- processos como enquadramento-encenação-
ram ainda as facilidades de se gravarem sé- montagem eram libertas das convenções que
ries, filmes e programas exibidos pelas emis- depois foram postas em prol de uma me-
soras de TV, bem como o surgimento de vi- lhor assimilação do espectador à escritura
deotecas feitas, ou comprando as fitas origi- em movimento. Aliás, certas poéticas cine-
nais, ou, como era usual, alugando e copian- máticas adversas à linearidade, como o sur-
do os filmes disponíveis em videolocadoras. realismo e o underground americano, encon-
Na medida em que esse processo se arvorava, traram na vídeoarte um campo fértil para
os espaços antes dedicados aos livros eram suas ambições artísticas.
divididos com fitas de vídeo, catalogadas tal Entretanto, o que definiu o vídeo como
qual uma autêntica biblioteca. linguagem e narrativa reconhecidas foi a
Essas ousadias do espectador divergiam consolidação dos videoclipes como material
com o pressuposto de passividade do recep- de promoção e interação de artistas da indús-
tor e uma geração inteira cresceu assistindo tria fonográfica diante de seu público. O sur-
mais a filmes de videolocadoras e/ou exi- gimento da MTV na década de 1980 abriu
bidos na televisão e em telas pequenas, do uma via antes tentada pelo fonógrafo visual
que nas salas de cinema tradicionais. As- de Thomas Edison no final do século XIX
sim, processos como pausar, ir para frente, (ver Machado, ibid., p. 148-170) e depois
voltar, colocar em slow motion, por exem- explorada pelos jazz shorts e soundies que
plo, eram comuns na vida desses espectado- serviam para apresentar as performances dos
res, o que permitia, inclusive, certas edições artistas em uma espécie de junkebox adap-
caseiras no conteúdo desses filmes, redefi- tado para imagem e som em movimento.
nindo suas narrativas ou mesmo mesclando Embora inovador, esse dispositivo teve seu
outros filmes originais ou programas televi- sucesso abreviado ainda na década de 1940
sivos ao conteúdo destes. Essa autonomia de justamente devido ao nascimento da televi-
manipulação da imagem videográfica, bem são.
como o seu baixo custo de produção, per- A exibição de performances dos artistas
mitiu que artistas visuais – e cinemáticos – via programas de auditório televisivos per-
migrassem para a nova tecnologia e buscas- mitiu à indústria fonográfica expandir seu
sem inflexões e experiências com as texturas, raio de ação promovendo seus artistas para
cores, maleabilidades e insuficiências técni- além das ondas do rádio. Assim, o público
cas próprias do vídeo, como ponto de partida poderia agora não só ouvir, mas ver seus
para novas propostas de escrituras em movi- ídolos em qualquer aparelho de TV. Com
mento (ver Machado, ibid., p. 188-200). o advento do videotape, essas performances
De fato, não havia uma estética do ví- eram gravadas e retransmitidas conforme o
deo e nem mesmo uma linguagem consoli- interesse das emissoras. Entretanto, em ter-
dada, por isso, o período denominado pós- mos de linguagem, o que se via era ainda
cinema é similar ao período do pré-cinema, uma preservação da performance dos artis-
portanto anterior à padronização da lingua- tas, conduzida pela fluência de suas apresen-
gem cinematográfica, em que as experiên- tações.
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 3
www.bocc.ubi.pt
4 Marcelo Moreira Santos
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 5
imagens técnicas; dentre estes, é justo o des- e quão importantes são para se estabelece-
taque a Wim Wenders. rem contatos, vínculos e vivências reais.
Em filmes como Alice nas Cidades Aliás, outra questão que Soderbergh, com
(1974), Paris/Texas (1984), Asas do Desejo seu Sexo, mentiras e videotape, expõe é que,
(1987) é possível perceber o interesse deste dada a sua massificação, a imagem granu-
cineasta em tentar sondar o que de fato as re- lada e desbotada do vídeo, sujeita inclusive
lações inter-subjetivas mediadas pelas ima- a dropouts1 , promoveu uma estética que tor-
gens técnicas e eletrônicas – fotografia, ci- nava suas deficiências, em relação à ima-
nema, vídeo e televisão – implicavam em gem bem definida do cinema, uma peculiari-
termos de memória, experiência e realidade. dade convincente para novos efeitos de rea-
Ao articular uma poética na qual seus perso- lidade. Sob esse foco, cineastas dinamar-
nagens dependiam, guiavam-se ou se redes- queses como Lars von Trier e Thomas Vin-
cobriam por essas imagens, Wim Wenders terberg laçam os pilares canônicos de seu
antecipava algo em que Joel Black (2002) Dogma 95, e uma práxis nômade de produ-
iria enfatizar anos mais tarde: o fato de nos- ção é exposta nos filmes Os Idiotas e Festa
sas vivências e lembranças estarem permea- de Família (ambos de 1998). De fato, em
das e imbrincadas por tais imagens. As- termos de poética, o Dogma não trouxe ino-
sim, o universo ficcional dos filmes, pro- vações, já que boa parte das articulações
gramas, séries, games e todo produto mi- na construção de enquadramento-encenação-
diático cultural, incluindo-se os documen- narrativa aparece na nouvelle vague, porém,
tários, em uma ânsia por efeitos de reali- ao expor a estética do vídeo como material
dade (Black, ibid., 05), implicaram instân- basilar para suas histórias, von Trier e Vin-
cias nas quais essas fronteiras acabam se dis- terberg dão-lhe o crédito e a visibilidade ne-
solvendo, ao ponto de nossa memória estar cessária para que os problemas de alta defi-
permeada por experiências mediadas tanto nição na imagem videográfica sejam trans-
com a realidade, quanto com essas ima- postos (ver Machado, 2008, p. 216-218) e
gens técnicas/eletrônicas, em uma espécie de aceitos como cinematográficos.
complementariedade intelectual, emotiva e Esses novos efeitos de realidade interme-
afetiva. diados pelas deficiências da estética do ví-
De fato, atento a esse aspecto de lique- deo tornam-se o norte de um projeto como
fação e convergência das experiências, ou- A Bruxa de Blair (1999) dos diretores Da-
tro cineasta que traz à baila essa questão niel Myrick e Eduardo Sánchez. A sa-
é Steven Soderbergh com seu Sexo, men- cada em promover o encontro do imaginá-
tiras e videotape (1989), pois, à medida rio das histórias de bruxas, marcante na cul-
que, para se satisfazer sexualmente, o prota- tura europeia e, consequentemente, na norte-
gonista utiliza-se das imagens videográficas americana, com a suposta credibilidade das
gravadas de mulheres que passaram pela sua imagens videográficas, permitiu que os dire-
vida para alcançar uma experiência real de 1
Quando a fita magnética era mascada ou arra-
prazer, Soderbergh vai destacar como essas nhada por uso excessivo ou por defeitos encontrados
interfaces mediadas pelas imagens eletrôni- na câmera de vídeo ou no videocassete que acabavam
cas e técnicas estão entrelaçadas na realidade afetando-a tecnicamente.
www.bocc.ubi.pt
6 Marcelo Moreira Santos
tores explorassem uma interessante intersec- bre uma paisagem, um espaço e um ambiente
ção entre as histórias disseminadas pela cul- fartamente “vivido”.
tura oral e a narrativa documental feita pelo Nas entrelinhas desse processo está uma
registro técnico e eletrônico. Ao se apropriar cultura imersa – e imersiva – em uma ecolo-
da linguagem de documentário e remixá-lo gia hipercomplexa das sintaxes midiáticas e
com o viés lúdico do folclore vinculado à culturais diversas (Santaella, ibid., p. 127).
bruxaria – imbuído aí de ocultismo, boata- Um processo que se torna palpável pela ex-
ria e farta iconografia medieval –, os direto- periência editada pela franquia Matrix. Ao
res só reafirmaram o fato de que uma cul- explorar uma rede de conexões, passagens,
tura pontuada pelas mídias ou pelas relações rumos intercambiantes e integrá-los a um
via ciberespaço não elimina as culturas pre- universo ficcional de Matrix, os irmãos Wa-
gressas: oral e escrita (ver Santaella, 2007, chowski vão apresentar ao cinema uma nova
p. 124). Aliás, a forma de divulgação do poética – a trans-poética – em consonância a
filme foi-se utilizando, em grande parte, de um novo espectador: o internauta.
páginas da Web com informações “planta-
das” para serem consumidas como “verda-
1 Sobre a Poética Transmídia e
deiras”, prevendo uma redistribuição reali-
zada pelos próprios internautas, tal qual uma sua Ecologia Hipercomplexa
notícia ou um boato era reproduzido em tem- O estágio atual da chamada narrativa trans-
pos antigos. mídia assemelha-se aos períodos do pré-
Ainda no rastro dessa liquefação icono- cinema e do pós-cinema. Tateante e im-
gráfica e dessa memória intermediada pe- buída pelo processo de tentativa e erro, essa
las imagens técnicas/eletrônicas está o filme nova forma de se contar histórias no ci-
Dogville (2003), de Lars von Trier; ao se nema não fica reclusa às salas de cinema, ela
desfazer da solidez das paredes e das pai- se espraia, gravita, mergulha e transita por
sagens, von Trier joga com a memória de diferentes fontes, elos, nós e caminhos de
uma época extensamente fotografada, fil- acesso: a chamada multiplataforma de mí-
mada, encenada, citada e representada: a dias (Jenkins, 2009, p. 138). Portanto, mais
Grande Depressão dos Estados Unidos de sensível em proporcionar a multiplicidade de
1929, pois, de certa forma, o espectador já pontos de vista e experiências colaterais a
“esteve lá”, já “viu”, e já “experimentou” um espectador que deseja explorar, colher e
aqueles anos em outras representações e por descobrir informações sobre a história dos
diferentes meios de comunicação. Portanto, personagens e os enredos nos quais estes es-
a ausência de cenários não implica uma au- tão imersos e entrelaçados (Jenkins, ibid., p.
sência de referências, pois o constructo – ou 184).
unidade de escritura e centro de expressão Da mesma forma como o cinema teve que
foucaultianos (ver Santaella, ibid., p. 74- se adaptar à linearidade da linguagem ver-
77) – e o imaginário daquele contexto já bal e depois à tônica do videoclipe em seus
foi tecido em outras obras. Dogville pres- deslocamentos narrativos em conformidade
supõe que esses vínculos já estejam pré- à sintaxe dos possíveis da linguagem sonora,
estabelecidos e vai contar outra história so-
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 7
o cinema feito aos moldes da narrativa trans- centração, atenção e compreensão da infor-
midiática tem que se adaptar à narrativa en- mação.” (Santaella, ibid., p. 310)
contrada no hipertexto e na hipermídia: ali- Como Jenkins esclarece (ibid., p. 136 e
near, multidimensional, interativa e flexível 137), assistir e acessar a franquia de Matrix
(Santaella, ibid., p. 310). Isso está aconte- não é uma experiência fácil e aberta a qual-
cendo porque o espectador mudou, já não é quer leitor, demanda um perfil exploratório
o “passivo” de outrora, nem mais o que se treinado e acostumado aos desvios e às in-
atem em selecionar e apropriar, mas o que terconexões, pois cada cena, diálogo, troca
busca informações: como determinada cena de olhares, personagem, cenários, palavras e
foi feita e os processos técnicos envolvidos; números dispostos em objetos de cena, fase,
quem são os responsáveis pelo filme e seus missão, traço, desenho, narrativa e estética
filmes anteriores; as declarações do diretor e distinta, pode ser um nó, um link de acesso
elenco nas redes sociais, revistas e jornais; para experiências mais profundas. É este de-
com que outras obras e universos ficcionais sign informacional que orienta as possibili-
tal história se relaciona; quais comunidades dades de caminho desse usuário espectador
se interessam pelo filme e como trocar infor- e que lhe confere a abertura necessária para
mações com estas; o que sites especializados seu envolvimento – co-autoria –, seu mergu-
dizem sobre o filme etc. De fato, esse novo lho (jacking in) e vínculo intenso (Santaella,
espectador não entra em uma sala de cinema ibid., 311; Jenkins, ibid., p. 180).
ou acessa um filme, sem antes ter informa- Sobretudo, é a pluralidade de sentido en-
ções suficientes para tal. Assim, de forma trecruzado e disposto nas diferentes obras in-
enciclopédica, explorando diferentes fontes, tegradas que vai permitir que esse espectador
é que este espectador – cujo acesso ao vasto tenha o fascínio de se entregar ao percurso
campo de produtos midiáticos e de diferen- (Santaella, ibid., p. 315), portanto, a obra
tes países se faz notório na Web – se articula não se fecha em um único sentido, mas dis-
e faz suas escolhas. ponibiliza e encoraja múltiplas visões de in-
Sensíveis a essas transformações, os Wa- formação (Santaella, ibid., p. 314) – enredo e
chowski proporcionam em 2003, com o personagem – ficando a cargo do espectador
lançamento das sequências cinematográficas decidir por onde ir e até onde chegar. Jen-
Matrix: Reloaded e Matrix: Revolutions, kins destaca: “O que os irmãos Wachowski
uma experiência em mídias cruzadas que fizeram foi desencadear uma busca de sen-
permitiu que esse novo espectador realizasse tido; eles não determinaram onde o público
aquilo a que estava acostumado na Web: ex- iria encontrar as respostas” (Jenkins, ibid., p.
plorar. Ao combinar games, histórias em 176).
quadrinhos, animações e websites em torno Muitas das críticas referentes ao projeto
da narrativa que embasa a triologia Matrix, imposto pela franquia Matrix enfatizaram
os diretores promoveram aquilo que era es- que tudo não passava de uma jogada de mar-
sencial à junção da poética fílmica com o keting para faturar mais, ou ainda que os fil-
hipertexto: “Quanto maior a interatividade, mes pecavam pela falta de autonomia narra-
mais profunda será a experiência de imersão tiva – isto é, faltavam-lhes as regras de re-
do leitor, imersão que se expressa na sua con- dundância encontradas nos métodos de Syd
www.bocc.ubi.pt
8 Marcelo Moreira Santos
Field, Robert McKee e Christopher Vogler calíptica parece não perceber que o exercí-
que descendem, de uma maneira ou de outra, cio lúdico de desprendimento da realidade
da poética aristotélica –, pois, para entender em direção a mundos diversos que acontece
certas cenas, era necessário jogar o game En- seja lendo um livro, ouvindo uma música, as-
ter the Matrix, assistir às animações contidas sistindo a uma peça de teatro, por exemplo,
na série Animatrix e ler as histórias em qua- é algo fundamental à atividade mental. De
drinhos, e isso, como observa Jenkins (ibid., fato, aparece com o brilho que lhe é neces-
p. 148), os críticos de cinema, acostumados sário no exercício de formulação de hipóte-
apenas a ir às salas multiplex atuais e voltar ses. Aliás, como Vieira esclarece (2007, p.
para suas casas sem ter que ir além, não ad- 26), há em toda hipótese científica graus de
mitiam. ficção, assim o que torna uma hipótese mais
Assim, semelhantemente às posturas dos apta a ser adotada é seu grau de coerência
críticos que ressaltavam a nobreza do teatro, com a realidade.
do romance e da música em referência ao ci- Peirce é ainda mais ousado: “Nossa facul-
nema no começo do século XX, as críticas dade de adivinhação (de formulação de hi-
feitas às narrativas transmidiáticas – hiper- póteses) corresponde aos poderes voadores
textuais e hipermidiáticas – parecem ensaiar e musicais dos pássaros, isto é, ela é para
uma cantiga antiga e obsoleta em defesa da nós o que estes são para eles: o mais ati-
“pureza” do discurso cinematográfico, ainda rado de nossos poderes meramente instinti-
se utilizando ou da teoria do dispositivo, ou vos” (Peirce apud Santaella, 2004, p.105).
da análise textual preocupada com o filme Portanto, o processo instintivo de formula-
em si mesmo. Daí a obsolescência dessas ção de hipóteses é semelhante ao da expe-
teorias (ver Stam & Shohat apud Ramos, riência lúdica objetivada pela fruição esté-
2005, p. 417), diante de uma obra que se tica de uma obra de arte. Assim, ao explorar
abre para a navegação por outras obras com- mundos possíveis (ver Vieira, 2008, p. 78),
plementares, cujos nexos trafegam imersos a tal processo permite que ideias se juntem e
um processo intercambiante de sentido. que gerem novas perspectivas, novos olha-
Sobre a teoria do dispositivo, em conso- res, novos rearranjos, vazando para a con-
nância ao tema central de Matrix, a crítica duta de uma pessoa, mudando-lhe a sensibi-
feita em referência aos simulacros reascende lidade. Como Santaella destaca:
ao se divisar essa inter-relação acionada pela
As obras de arte não são apenas
dinâmica da multiplataforma, pois, ao ex-
ambíguas encarnações de qualida-
pandir a experiência lúdica dos filmes para
des de sentimento, mas formas de
outras interfaces midiáticas, a franquia pa-
sabedoria, de um tipo que fala à
rece reafirmar que esses mundos ficcionais
sensibilidade, ao mesmo tempo em
criados pela indústria cultural estão cada vez
que convida a razão a se integrar
mais espalhados e afeitos a sujeitar o espec-
ludicamente ao sentir (Santaella,
tador – a todo momento e em todo lugar –
2000, p. 151).
a se desprender da fisicalidade do mundo e
viver em um mundo de sonhos criado pela Ocorre que esse tipo de fruição estética
lógica capitalista. Porém, essa crítica apo- mediada pela lógica transmidiática abre à
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 9
www.bocc.ubi.pt
10 Marcelo Moreira Santos
pal mostrada no filme. Assim, a cada ani- De fato, a realidade ficcional apresentada
mação, história em quadrinho, série de TV, cria vida própria fora de seu eixo de ação
curta-metragem, longa-metragem, jogo ele- de origem, pois muito é dito, insuflado, pro-
trônico, peça de teatro, performance, tele- posto pelos espectadores em suas comunida-
novela, radionovela, parque temático, video- des. Tal qual Roland Barthes profetizara em
clipe, vídeo-arte, podcast, página da web 1968: “Para devolver à escritura o seu fu-
e/ou qualquer outro meio de comunicação turo, é preciso inverter o mito: o nascimento
disponível e articulado, novos elementos são do leitor deve pagar-se com a morte do Au-
expostos e acionam novas conexões – por- tor” (Barthes apud Santaella, 2007, p. 76).
tas de acesso – permitindo que o espectador Esses seguidores se apropriam, compõem,
avance em sua busca – chamada à ação – decompõem e recriam enredos inteiros com
pela pista ou chave mestra que lhe permita o intuito de estabelecerem-se os elos possí-
equacionar todo o sistema: 1) compreender veis, costurando os pontos obscuros e pro-
e divisar a realidade ficcional apresentada; 2) movendo outros, atitude prevista por Michel
entender o papel de cada personagem dentro Foucault na mesma época que Barthes (ver
daquele contexto; 3) acompanhar seus de- Santaella, ibid., p. 77) e que vem tirando o
senvolvimentos e diferentes desfechos. sono dos executivos das majors da indústria
As diferentes narrativas servem tanto para do entretenimento norte-americana (ver Jen-
explicar, quanto para motivar novas pergun- kins, ibid., p. 191-196), já que esse processo
tas, portanto são as dúvidas suscitadas que implica a perda do controle autoral da obra.
motivam o interesse do espectador. Não são Entretanto, um dos pilares do êxito de uma
apenas ganchos dramáticos, como os encon- narrativa transmidiática está exatamente na
trados no fim de cada capítulo de uma no- possibilidade de essa liberdade especulativa
vela, por exemplo. São brechas, rupturas e e criativa, ao retirar, privar ou cercear o es-
pontos obscuros nos quais os personagens pectador de tal jogo lúdico, a franquia correr
estão imersos que fazem com que o especta- o risco de cair em desgosto e ver seus segui-
dor queira descobrir o que de fato está acon- dores migrarem para outro título, mais afi-
tecendo. Contudo, por nem tudo estar per- nado aos seus anseios.
feitamente claro, nem para o espectador nem No caso da franquia Matrix, o processo
para os personagens, surge o terreno fértil envolvido na criação dessa obras cruzadas
para as especulações e hipóteses, responsá- teve como fator preponderante o envolvi-
vel pela troca de informações e teorias entre mento de autores, respeitados em suas áreas
os espectadores, formando uma comunidade específicas, para dar sua contribuição es-
de especialistas naquele universo ficcional, tética ao universo de Matrix (ver Jenkins,
pois, dada a complexidade de elementos, ca- ibid., p. 144). Ainda que houvesse premis-
madas e instâncias articuladas, há a neces- sas, esboços, argumentos ou roteiros prontos
sidade de uma análise coletiva das informa- produzidos pelos irmãos Wachowski, houve
ções, que se transformam, com o passar do uma liberdade criativa sem precedentes na
tempo, no material basilar de uma verdadeira realização dessas obras, que permitiu que
enciclopédia virtual à disposição de quem poéticas, já articuladas por estes autores em
queira decifrar tais enigmas. suas obras pregressas, aparecessem como
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 11
novas propostas para se ver, compreender e ções etc. – e as narrativas suscitam mui-
explorar aquela realidade ficcional. tos enigmas e obscuridade em torno dos
Esse processo de cooperação entre auto- personagens e da história. Há uma ne-
res distintos objetivou um intercâmbio en- cessidade de estocagem maior, isto é,
tre poéticas e deu vazão a uma leitura pa- acúmulo de memória e isso implica is-
norâmica – benjaminiana – a respeito de persão de tempo, de dados e de aten-
Matrix. Assim, essa trans-poética promo- ção, aliás, neste tipo de narrativa, há
veu uma multiplicidade de visão de mundo uma troca de informação constante com
– mundividências (Vieira, 2008, p. 54-58) a comunidade especializada. Portanto,
– e uma relatividade semântica – percep- existe muito mais abertura às especula-
ção de camadas e instâncias distintas a cada ções do que certezas.
nova estética desenvolvida – tangível e simi-
lar às experienciadas diante do real inexaurí- 2. A detetivesca (linear e gratificante):
vel (Santaella, 2007, p. 208). os elementos encontrados na transnar-
Ao articular uma sintaxe não só entre as rativa rizomática aparecem na deteti-
mídias, mas também entre poéticas respei- vesca, porém os elos são mais coesos e
tando a autonomia de discurso dos autores entrelaçados. Nesse tipo de narrativa, as
colaboradores e de linguagem dos meios em- mídias cruzadas promovem nós e nexos
pregados, os Wachowski trazem a plurali- que permitem certo grau de linearidade,
dade encontrada em diferentes vertentes au- pois a cada pista “encontrada” é possí-
diovisuais e visuais para convergirem a Ma- vel entender o que está acontecendo na
trix ampliando, com isso, o horizonte semió- história e com os personagens envolvi-
tico de seus filmes. dos. Há certa recompensa e gratificação
Já o processo pelo qual essa sintaxe – a cada pista correta que implica revela-
trans-poética – alinha-se ao formato trans- ções gradativas até o grande final que,
mídia, parece estar em conformidade aos de certa maneira, é catártico. Porém,
perfis cognitivos e estilos de navegação de tal desfecho não é garantia de que to-
um leitor imersivo na cibercultura desenvol- dos os enigmas expostos sejam solucio-
vido por Santaella (2007, p. 322 e 323). As- nados, apenas que a história seja mais
sim, é possível divisar três designs possíveis compreensível. Não há tantas especu-
às narrativas transmidiáticas: lações, mas há um envolvimento eletri-
zante da comunidade que atentamente
1. A rizomática (errática e labiríntica): segue passo a passo, cada segundo, cada
neste tipo de narrativa as mídias cru- diálogo, cada filme, cada narrativa ar-
zadas promovem aberturas tais – nós, ticulada, sabendo que a qualquer mo-
links, elos e nexos – que o espectador mento um elemento decisivo será apre-
passa muito tempo sondando, pesqui- sentado. Cabe ao espectador perceber,
sando e traçando os diferentes cami- colher, testar, descartar ou acolher tal
nhos dispostos. Há um ir e vir cons- informação e levá-la adiante.
tante – releituras dos filmes, dos capí-
3. A turbilionária (recursiva e retroativa):
tulos da série, dos livros, das anima-
www.bocc.ubi.pt
12 Marcelo Moreira Santos
www.bocc.ubi.pt
O Cinema Transmídia e o espectador em rede 13
lidade ficcional para além das salas de ci- Machado, A. (2008). Pré-cinemas & Pós-
nema e dos meios de comunicação. Algo que cinemas. Campinas: Editora Papirus,
pode ser visto como premonitório às próxi- 5o edição.
mas propostas cinemáticas em diferentes gê-
neros e países. Manovich, L. (2005). Remixability and Mo-
dularity. Disponível em Manovich.
Acesso 15/04/2012.
Referências
Morin, E. (2008). O Método 1 – a natureza
Aristóteles. (2005). Arte Poética. São Paulo: da natureza. Porto Alegre: Editora Su-
Martin Claret Editora. lina.
Benjamin, W. (1996). Obras escolhidas I – _____. (2005). O Método 2 – a vida da vida.
Magia e técnica. Arte e política. São Porto Alegre: Editora Sulina.
Paulo: Editora Brasiliense.
Navas, E. (2008). The Author Function in
_____. (2006). Trabalho das passagens.
Remix. Disponível em Remixtheory.
Coordenação de Willi Bole e Olgária
Acesso 15/04/2012.
Matos. Belo Horizonte: Editora da
UFMG. Peirce, C. (2000). Semiótica. São Paulo:
Editora Perspectiva.
Black, J. (2000). The Reality Effect, Film
Culture and the Graphic Imperative. _____. (1998). Antologia Filosófica. Im-
New York: Routledge. prensa Nacional – Casa da Moeda, Por-
tugal.
Bourriaud, N. (2004). Pós-produção, como
a arte reprograma o mundo contempo- _____. (1992). The Essential Peirce – Vo-
râneo. São Paulo: Martins Fontes. lume 1. Bloomington: Indiana Univer-
sity Press.
Busselle, M. (1979). Tudo sobre Fotografia.
São Paulo: Thomson Pioneira. _____. (1998). The Essential Peirce – Vo-
lume 2. Bloomington: Indiana Univer-
Charney, L. & Schwartz, V. (2004). O Ci-
sity Press.
nema e a invenção da vida moderna.
São Paulo: Cosac & Naify. Ramos, F. (2005). Teoria contemporânea
do cinema, volume I e volume II. São
Deuleze, G. (2009). A Imagem-Movimento.
Paulo: Editora Senac.
Cinema I. Lisboa: Assírio & Alvim, 2o
edição. Santaella, L. (2001). Matrizes da linguagem
e pensamento – sonora, visual, verbal.
_____. (2007). A Imagem-Tempo. Cinema
São Paulo: Editora Iluminuras.
II. São Paulo: Brasiliense.
_____. (2000). Estética – de Platão a Peirce.
Jenkins, H. (2009). A Cultura da Convergên-
cia. São Paulo: Aleph, 2o edição. São Paulo: Editora Experimento.
www.bocc.ubi.pt
14 Marcelo Moreira Santos
www.bocc.ubi.pt