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Universidade Federal do Rio de Janeiro

VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO

Evelyn Blaut Fernandes

2008
VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO

Evelyn Blaut Fernandes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).

Orientador: Prof. Doutor Jorge Fernandes da


Silveira.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008

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VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO

Evelyn Blaut Fernandes

Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).

Examinada por:

_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira

_________________________________________________
Profa. Doutora Silvana Maria Pessôa de Oliveira – UFMG

_________________________________________________
Profa. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ

_________________________________________________
Profa. Doutora Dalva Maria Calvão da Silva – UFF, Suplente

_________________________________________________
Profa. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Agosto de 2008

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Letras

Fernandes, Evelyn Blaut


A636cfe Viagem ao avesso de si ou o Conhecimento do inferno /
Evelyn Blaut Fernandes. – Rio de Janeiro : UFRJ, 2008.
113 f. ; 30 cm.

Orientador: Jorge Fernandes da Silveira.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Letras
Vernáculas, 2008.
Bibliografia: f. 106-113.

1. Antunes, António Lobo, 1942- . Conhecimento do


Inferno – Crítica e interpretação. 2. Ficção portuguesa –
História e crítica. 3. Literatura portuguesa. 4. Literatura e
sociedade. I. Silveira, Jorge Fernandes da. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Título.

CDD: 869.37

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VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO

Evelyn Blaut Fernandes

Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).

A proposta deste estudo é a de ler Conhecimento do Inferno, de António Lobo


Antunes, como uma narrativa que insiste na viagem como forma de conhecimento. A
História de Portugal ganha registro ficcional através da crítica às conseqüências da
Revolução dos Cravos, o que mantém alguma ambigüidade entre o fictício e o
referencial histórico. A internação em hospitais psiquiátricos e a Guerra Colonial são
questões que ganham registro como discurso literário e como discurso histórico,
correlacionando a história do país à autobiografia. A representação de um hospital
psiquiátrico funciona como a versão de um lugar sintomático capaz de inscrever a
metáfora da doença para simbolizar a trajetória sócio-histórica do país. O retorno à casa
paterna, como metáfora do retorno à casa de origem, faz dessa narrativa um excelente
exemplo de ficção portuguesa contemporânea que propõe repensar uma memória
pessoal e nacional para, a partir dela, buscar uma forma de resistência renovada a favor
da aquisição da consciência.

Palavras-chave: António Lobo Antunes; Conhecimento do Inferno; Ficção portuguesa.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008

5
RÉSUMÉ

VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO

Evelyn Blaut Fernandes

Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira

Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).

Le but de cette étude est celui de lire le roman Conhecimento do Inferno de


António Lobo Antunes comme un récit insistant sur le voyage comme une façon de
connaissance. L’Histoire de Portugal gagne un registre fictionnel par le biais d’une
critique aux conséquences de la Revolução dos Cravos, ce que maintient quelque
ambigüité entre les faits fictifs et le rapport historique. L’internement dans des hôpitaux
psychiatriques et la Guerre Coloniale sont des questions qui s’inscrivent au même
temps comme discours litéraire et comme discours historique, en faisant une corrélation
entre l’histoire du pays et l’autobiographie. La représentation d’un hôpital psychiatrique
est comme une version d’un lieu symptomatique capable d’inscrire la métaphore de la
maladie afin de symboliser la trajectoire socio-historique du pays. Le retour à la maison
de son père, comme métaphore du retour à la maison d’origine, fait de ce récit un
excellent modèle de fiction portugaise contemporaine qui propose repenser une
mémoire personnelle pour, à partir de cela, chercher une manière de résistance
renouvelée que favorise l’acquisition de la conscience.

Mots-clé : António Lobo Antunes ; Conhecimento do Inferno ; Fiction portuguaise.

Rio de Janeiro

Agosto de 2008

6
À memória dos meus pais e meu irmão.

7
Agradeço

à Tia Marly e ao Tio Gil,


e à Isabel, Rejane, Ionara e Rosane,
um elo familiar

à Tia Tânia,
presença constante na minha vida

e ao Tio Walter,
pelas histórias de Angola e pelos tremoços

ao Renato,
pela heroicidade de todo dia

aos meus professores de Literatura Portuguesa:

Ângela Beatriz Faria,


Cinda Gonda,
Clécio Quesado,
Luci Ruas,
Monica Figueiredo,
Teresa Cerdeira,

pelo aprendizado com sabor adquirido nas aulas

ao Jorge Fernandes da Silveira,


mestre genial e orientador sensível

a CAPES,
pela bolsa de fomento que possibilitou a realização desta
pesquisa.

8
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação de um livro.
1.2. Roteiro para a viagem crítica.

2. ABRIL: PALAVRA-MOTOR
2.1. Portugal depois de Abril.
2.2. O romance depois de Abril.

3. NA ESTRADA
3.1. Viagem progressiva no espaço.
3.1.1. Travessias metafóricas do inferno.
3.1.2. A Guerra Colonial ou exílio na África.
3.1.3. A Nau dos Loucos ou exílio na Pátria.
3.2. Viagem regressiva no tempo.
3.2.1. O encontro com o pai.

4. CONCLUSÃO

5. BIBLIOGRAFIA

9
Pensar a mão, pensar com a mão. Sabendo, podemos
esquecer que sabemos para saber melhor. Mais no
caroço, mais por dentro. E fazer o mundo por detrás.

António Lobo Antunes.


Apontar com o dedo o centro da terra.

10
1. INTRODUÇÃO

1.1. Apresentação de um livro.

Sou médico sou médico sou médico, tenho trinta anos, uma
filha, cheguei da guerra, comprei um automóvel barato há dois
meses, escrevo poemas e romances que não publico nunca, dói-
me um siso de cima e vou ser psiquiatra, entender as pessoas,
perceber o seu desespero e a sua angústia, tranquilizá-las com o
meu sorriso competente de sacerdote laico manejando as hóstias
das pastilhas em eucaristias químicas (...) (CI: 56-57).

Com formação em Medicina e especialização em Psiquiatria, António Lobo

Antunes é também autor conhecido e reconhecido dentro e fora de Portugal, traduzido,

premiado e condecorado. Desde a publicação do seu primeiro livro, o autor inicia uma

ininterrupta produção largamente preenchida por dezenove romances. No jornal

Público, surgiram, na década de 90, crônicas já reunidas e publicadas em quatro

volumes que, atualmente, podem ser lidas na revista Visão e no diário espanhol El País.

Os seus livros publicados até o momento são: Memória de elefante, 1979; Os

cus de Judas, 1979; Conhecimento do inferno, 1980; Explicação dos pássaros, 1981;

Fado alexandrino, 1983; Auto dos danados, 1985; As naus, 1988; Tratado das paixões

da alma, 1990; A ordem natural das coisas, 1992; A morte de Carlos Gardel, 1994; A

história do hidroavião, 1994; Manual dos inquisidores, 1996; O esplendor de Portugal,

1997; Livro de crónicas, 1998; Exortação aos crocodilos, 1999; Não entres tão

depressa nessa noite escura, 2000; Que farei quando tudo arde?, 2001; Segundo livro

de crónicas, 2002; Letrinhas de cantigas, 2002; Apontar com o dedo o centro da terra

(em parceria com Júlio Pomar), 2002; Boa tarde às coisas aqui embaixo, 2003; Eu hei-

de amar uma pedra, 2004; D’este viver aqui neste papel descripto – Cartas da Guerra

(organizado por Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes), 2005; Terceiro livro

11
de crónicas, 2006; Ontem não te vi em Babilónia, 2006; O meu nome é legião, 2007;

Quem me assassinou para que eu seja tão doce? 2008; O arquipélago da insónia, 2008.

Apesar dessa extensa produção, deter-nos-emos tão somente na análise de

Conhecimento do Inferno. Nossa intenção, ainda que modesta, é a de recuperar um

romance injustamente pouco amado e mal julgado, quer por alguma crítica, quer pelo

autor1. O livro reúne formas e temas originais para a Literatura Portuguesa, unindo à

face lírica2 da narrativa uma realidade grotesca, além de combinar com mestria os vieses

político e poético. É, também, a crítica urgente de uma certa prática psiquiátrica

obsoleta e desumana que, a partir dessa crítica, começa a apresentar outras que atingem

a incapacidade de amar – na família, no matrimônio, na guerra, no hospício.

O romance, escrito por volta de 1978, é publicado em 1980 pela Editora Vega,

ano em que António Lobo Antunes se tornou, por pouco tempo, militante da APU

(Aliança Povo Unido, Coligação do PCP). A transição para a década de 80 foi um

momento em que se pretendia dar um novo sentido para a escrita da Literatura em

Portugal, sentido impulsionado pela Revolução dos Cravos. Desse modo, acreditamos

que o romance em questão pode exemplificar de maneira apropriada os caminhos que a

literatura portuguesa contemporânea tem traçado desde a década de 80, quando uma

sensível preocupação de reescrever a pátria passa a ser o grande objetivo daqueles que

melhor fazem literatura em Portugal.

Conhecimento do Inferno é a terceira parte de uma trilogia que forma um

conjunto de escrita com Memória de Elefante e Os Cus de Judas. São três textos

publicados num curtíssimo espaço de tempo, que manifestam uma perspectiva

interligada de temas literários. Nestes livros, encontramos temáticas recorrentes ligadas

1
“(...) O Conhecimento do Inferno, que é provavelmente o mais fraco deles todos, é onde começam a
aparecer, ainda que timidamente, todos os processos que eu depois comecei a tentar desenvolver nos
livros a seguir”, disse António Lobo Antunes, em Ler, nº37, 1997.
2
Como veremos no capítulo 2.2. O romance depois de Abril.

12
a experiências humanas (a relação amorosa, a Guerra Colonial, o exercício da

psiquiatria) e, para além dos temas, uma insistência em situações e em personagens que

migram de um livro para outro. Em entrevista a Mário Ventura, no Diário de Notícias,

sobre a questão das temáticas que enredam os três primeiros romances, António Lobo

Antunes responde:

Nos três primeiros havia três temas que me interessava tratar. Era o
tema da guerra de África, vivido por mim de uma maneira muito
forte. Era o tema do hospital psiquiátrico como universo
concentracionário (...). O terceiro tema era, não o amor, mas a
incapacidade de amar, a solidão. No fundo, eram estes três temas que
me interessavam. A partir daqui, tinha a intenção de que em cada um
desses livros houvesse um tema que fosse mais destacado, para ser
como que um leit motiv que levasse as pessoas a situarem-se (apud
SEIXO, 2002: 500).

Conhecimento do Inferno narra o transcurso de uma viagem de automóvel, do

Algarve à Praia das Maçãs, que abrange parte da tarde e parte da noite de um único dia.

A organização do romance forma consonância com a dos dois anteriores: Memória de

Elefante é composto por uma viagem de carro por Lisboa e por várias paragens que se

desenvolvem durante um dia; em Os Cus de Judas, a detenção em determinados lugares

(o bar e o apartamento) e em algumas situações (conversa com a mulher) centram-se na

noite.

Esses romances anunciam muitas influências autobiográficas e compõem o que

o autor considera o ciclo de aprendizagem3. A trilogia inicial tem ainda em comum uma

corrente de pensamento interior que conduz as narrativas: na primeira, através de

conversas; na segunda, constituída como um monólogo oral pretensamente orientado

como diálogo; e na terceira, integralmente como um monólogo interior que se

desenvolve durante uma viagem solitária. Como os três primeiros romances de António

3
Cf. SPÁNKOVÁ, Silvie. “Reflexões sobre o estatuto da personagem feminina nos romances de António
Lobo Antunes” In: CABRAL, Eunice. A escrita e o mundo em António Lobo Atunes. Actas do Colóquio
Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.241.

13
Lobo Antunes constituem monólogos, podemos afirmar que o embate central destes

personagens – que, aliás, estão tão intrinsecamente ligados, que compõem talvez o

mesmo personagem – encontra-se no âmbito da interioridade.

Nos três primeiros romances, o autor situa a narrativa em circunstâncias que

estão diretamente relacionadas com os acontecimentos da história portuguesa

contemporânea – a Guerra Colonial, o período salazarista, a Revolução do 25 de Abril,

o momento pós-revolucionário. Encontramos, na trilogia, fatos que evidenciam,

inegavelmente, dados autobiográficos, presentes desde as circunstâncias descritas

(detalhes da infância e da adolescência, casos familiares, casamento e separação,

recrutamento da tropa e guerra colonial, curso de medicina e exercício da psiquiatria) às

datas fornecidas.

As três narrativas centram-se, articuladamente, em dois acontecimentos

sociopolíticos – a Guerra Colonial na África e a Revolução dos Cravos –, tendo como

núcleo temático a relação conturbada e problemática do personagem com o mundo

depois do regresso da guerra.

Memória de Elefante, Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno carregam

consigo três conceitos que dialogam entre si. São eles: memória, aprendizagem e

conhecimento. A memória constitui-se como elemento restaurador; a aprendizagem é

dolorosa e é a da agonia4; e o conhecimento, se antes do início do livro está escrito que

é desnecessário5, com o avançar da narrativa, percebemos que é, na verdade,

imprescindível.

Memória de Elefante é o ponto de partida da obra de António Lobo Antunes em

que, ao longo de quase trinta anos de carreira literária, já se somam dezenove romances.

4
Cf. “a dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2003: 43).
5
Cf. epígrafe do romance: “(...) the unnecessary knowledge of hell” (CI, p.9).

14
É a partir deste primeiro volume que os demais se desdobram, marcados pela reiteração

de aspectos e características comuns a muitos dos demais livros, dentre os quais

predomina a sensação de mal-estar, que, em certas circunstâncias, chega a configurar

doença. Mas, da trilogia inicial, Conhecimento do Inferno é, talvez, o que vai mais

fundo no sentido polêmico de ação e contestação dos dois infernos nomeados, a Guerra

em Angola e a prática psiquiátrica no Hospital Miguel Bombarda.

Conhecimento do Inferno descreve uma viagem de automóvel durante a noite a

partir do cenário do “mar de cartão”6 do Algarve até a Praia das Maçãs que é, ao mesmo

tempo, uma subida, ou uma saída do inferno, e um retorno insistente à casa paterna. É

através das reflexões desenvolvidas durante a viagem que o protagonista confronta-se

com o mundo, especialmente com o ambiente profissional, e vai se dando conta de uma

problemática relação afetiva e efetiva com os outros.

Com efeito, o livro organiza-se numa alternância de dois planos narrativos: o do

percurso de carro, do Algarve a Lisboa, e o das divagações que o pensamento,

aparentemente de modo desordenado, localiza em outros espaços. Passa-se do primeiro

ao segundo plano, como que em imersão completa da memória a partir do presente da

enunciação, que é o trajeto de automóvel. A duração de Conhecimento do Inferno é de

algumas horas, desde a tarde de um dia até o momento que antecede o alvorecer do dia

seguinte, e as histórias que se situam fora deste tempo são apresentadas em analepse.

O romance desenvolve-se ao ritmo da viagem solitária, que dá conta das

variadas digressões que interferem no decorrer do deslocamento. O plano diegético

marca algumas paragens realizadas durante o caminho, etapas do percurso: Albufeira,

Messines, Santana, Aljustrel, Canal Caveira, Lisboa. Cada uma dessas paragens evoca

pensamentos de variadas ordens, que se entrecruzam ao longo de cada capítulo. A

6
Cf. CI, p. 11: “O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro (...)”.

15
narrativa processa-se de acordo com o fluxo da consciência do protagonista e o seu

relato não se dirige a nenhum interlocutor em particular, a não ser a si mesmo e ao

leitor.

Cada capítulo é iniciado por uma espécie de prólogo7, que antecede os episódios,

as cenas principais da narrativa. Desta maneira, os cenários que remetem a paisagens do

país constituem prólogos que vão, por alguma semelhança, evocar situações da vida do

protagonista. Cada capítulo centra-se num ponto geográfico da viagem que, a partir

desta, apresenta uma ligação metafórica com os decursos da memória e com as

preocupações existenciais do personagem. Do mesmo modo, os casos de doentes que

surgem ligam-se, na composição do romance, aos pontos geográficos percorridos

durante a viagem do plano diegético.

Nesse livro de viagens, viajar tem muito mais a ver com percorrer os espaços (ou

simplesmente vivê-los) do que se limitar à observação da paisagem. Por isso, as

descrições, sobretudo as dos inícios dos capítulos, não são apenas exposição das

paisagens, mas um desenvolvimento por meio do qual se representa aspectos da

paisagem que impulsionarão as memórias do personagem, como nos exemplos que

seguem:

Deixou Albufeira a caminho de Messines e a cor de icterícia, a cor


cancerosa, a cor amarela da terra trouxe-lhe à lembrança a do pátio do
Hospital Miguel Bombarda, diante da 1ª enfermaria de homens, visto
da janela poeirenta do gabinete dos médicos, com duas secretárias
desconjuntadas frente a frente e um espelho sobre o lavatório cuja
torneira pingava o argirol constipado de uma lágrima eterna (CI: 55).

Tudo no Algarve, pensou, me recorda perspectivas lunares, as algas


prisioneiras, a quietude das setas no Verão onde só as maçãs no
aparador permanecem acordadas e vivas nas taças de loiça, animadas
pela sombra vermelha da luz, e não é impossível que um cardume de
peixes atravesse de repente o alcatrão, agitando em pequenos
espasmos as pestanas lilases da cauda, ou os mil braços de um polvo
passem a vogar entre os arbustos, desenrolados num adeus lânguido

7
Prólogo, no sentido exposto por Aristóteles, na Poética, na qual ficam estabelecidas as partes
constituintes da tragédia. Dentre as quais, o prólogo é uma parte completa que antecede a entrada do
episódio principal (Cf. ARISTÓTELES, 1987: 211).

16
de mulher. Como na Urgência do Hospital Miguel Bombarda, onde
os rostos se engelham e os vultos flutuam (...) (CI: 80).

Mijo no restaurante do Canal-Caveira, onde me sentarei diante do


bife do ano passado com o fastio do ano passado nas tripas,
recusando as batatas fritas da travessa num enjoo imenso (...). E
lembrou-se do jantar dos doentes no hospital, às seis ou sete da tarde,
em refeitórios húmidos e tristes, por entre cujas mesas os enfermeiros
circulavam com os copinhos de plástico das medicações,
distribuindo, de avental, gotas e pílulas (CI: 173).

O personagem principal, introduzido na narrativa por meio de um pronome

oblíquo – “as chaminés que se diriam construídas de cola e paus de fósforo por asilados

habilidosos (...) faziam-no8 sentir-se como os bonecos de açúcar nos bolos de noiva”

(CI:11) –, ganhará, no início da narrativa, o próprio nome próprio de António, descrito,

posteriormente, de forma mais precisa9.

Como afirma Maria Alzira Seixo (Cf. SEIXO, 1986: 24), o que percebemos é

que o personagem pode ser escritor e o escritor pode ser personagem, do que se constata

uma dupla alteridade. Neste sentido, o protagonista, que formula um sentido no seu

percurso de retorno, acaba por traçar existencialmente um retorno histórico, já que o

sentido geográfico que ele empreende é o do Ribatejo, o que lhe sanciona uma outra

dimensão de retorno pessoal. Daí advém a identidade do nome António compartilhado,

no romance, por autor, narrador e personagem.

Isto posto, chegamos à problemática da relação da voz narrativa com o nome da

pessoa autoral. Em Conhecimento do Inferno, pessoa narrativa e pessoa autoral

entretecem uma relação vertiginosa com o nome António, porque é incomum encontrar

no interior do livro o nome próprio gravado na capa: é o nome real que ganha status

ficcional. Por isso, o protagonista de Conhecimento do Inferno pode ser o indivíduo

mais anonimamente comum. Embora, muitas vezes, possa parecer um recurso

8
Os grifos são nossos.
9
Cf. epígrafe desta seção.

17
exibicionista, a autobiografia significa a “colocação do outro no lugar do mesmo (...) e

uma radical questionação da identidade” (SEIXO, 2002: 497). Em outras palavras, é a

ficção que espelha a realidade, o que possibilita revelar um ambiente propício para a

reflexão. A matéria autobiográfica, no romance, pode ser a composição de um quadro

no qual a memória ocupa um espaço que é preciso elucidar, cujas partes compõem

realidades, nem sempre coerentes, orientadas em torno do sujeito.

Para discutir a autobiografia, em Conhecimento do Inferno, refletimos sobre a

veracidade da escrita do sujeito no romance. Isto nos reporta a “Autopsicografia”, de

Fernando Pessoa, poema cuja temática é o fingimento como veracidade. Diz o poeta de

Orpheu (PESSOA, 1995: 164-165):

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
(...)

“Autopsicografia” trata do processo de composição, na qual o poeta não é

apenas alguém que sente, mas é, sobretudo, aquele que transfigura uma dor “que

deveras sente” em dor escrita e, por isso, fictícia. À poesia, portanto, cabe não o sentido

ou a experiência da dor, mas sua representação. Este processo evoca, de alguma

maneira, o ofício de ator, que, ao representar, exprime não as suas emoções, mas as do

personagem, procurando empregar uma dimensão de autenticidade. Como disse Jorge

Fernandes da Silveira, “Autopsicografia” é “poema solar em que Pessoa compara a

produção e o consumo da literatura à encenação teatral. Chamando-nos (autores e

leitores) ‘fingidores’, o poeta produz e dirige a arte de contracenar em poesia”

18
(SILVEIRA, 1986: 254). Quanto ao leitor, este só tem acesso à dor escrita que resultou

do processo artístico de fingimento. No entanto, cabe a ele interpretar a dor escrita de

acordo com seus sentidos e suas experiências, podendo sua leitura nem sempre

tangenciar o sentido atribuído pelo poeta.

Em Conhecimento do Inferno, a referência a datas e nomes de lugares e pessoas

é recurso que se quer como criador de um efeito de real, o que, no entanto, não faz desse

texto um discurso histórico. Por sabermos que a re(a)presentação do real só é possível

através da linguagem, esta, por ser um jogo de significados arbitrários, não pode

substituir o mundo nem representá-lo fielmente. Acreditamos, portanto, que a narrativa

de António Lobo Antunes não se quer como sinônimo do real, mas como possibilidade

de significação latente. Como havia ensinado Fernando Pessoa, o escritor fala sua

verdade como um “fingidor” e só pode aproximar-se dela por meio da linguagem.

Entendemos esse narrador como um artífice em terceiro grau, no sentido de que

simula parecer real aquilo que é fingimento, assumindo uma confusão, muitas vezes

propositada, entre o real e o fictício. É como se ele fingisse que não finge, numa

tentativa ficcional de honestidade. Esse narrador parece-nos particularmente inteligente

porque, por saber o espaço da literatura como o da criação imaginária, elabora um

discurso que se quer propositadamente composto, de algum modo, pelo real e, claro,

pelo ficcional. Constatamos, enfim, uma leitura de mão dupla do fazer narrativo nesse

romance: ele é, antes de tudo, uma criação imaginativa que desenvolve uma

interpretação original da realidade, isto é, verossímil; mas é, ao mesmo tempo, um

espaço que, por se saber fantasioso, é utilizado como artimanha para inscrever um

discurso que pretende denunciar uma realidade.

No livro, misturam-se crítica histórica e embriaguez na cena em que

descobrimos o nome do protagonista, que, por coincidência ou jocosidade, é o do autor.

19
A cabeça do Gouveia, que aparece na porta do gabinete do psiquiatra, o faz recordar das

mulheres e dos homens “frustrados e azedos da Cervejaria Trindade”, na noite em que

conheceu o escritor Luiz Pacheco10, que chega ao bar bêbado e é ridicularizado pelas

mulheres e pelos homens “sem talento da Cervejaria Trindade”, que “riam-se-lhe nas

costas o azedume de leite podre da inveja”. Eis a cena em que nos é dado a conhecer o

nome do protagonista:

– Caralho – pedi eu ao Zé Manel –, pela tua saúde tira o


velho das unhas destes cornos. São os netos dos cabrões que jogavam
pedras no Rato ao Gomes Leal, são os impotentes que se queixam de
que neste país só se faz merda e que quando aparece alguém que não
faz merda desatam a rosnar de fúria e de ciúme diante da tesão alheia
por sentirem o trapo murcho nas ceroulas, por não serem capazes, por
não serem definitivamente capazes de enconar a vida.
– Este é o António Lobo Antunes – disse o Zé Manel na sua
voz afectuosa e doce que transformava as palavras em ternos bichos
de feltro (CI: 76 -77).

Quando um escritor dá seu próprio nome e profissão a um personagem ficcional,

ele está, na verdade, estabelecendo um jogo para indicar o tecido entre realidade e

ficção de que é constituído a literatura. Entretanto, é preciso duvidar deste eu tão

declaradamente inscrito nas páginas da ficção. Como adverte Maria Alzira Seixo (Cf.

SEIXO, 2002: 497), os romances narrados em primeira pessoa nem sempre estão muito

próximos da personalidade do autor, mas repartem essa primeira pessoa em várias

sensibilidades biografadas.

Interessante também seria reparar o quanto António e Antunes coincidem – “até

como se um fosse o patronímico do outro” (SEIXO, 2002: 490) –, mas o nome

intermediário é o mais usado para designar as animizações e as animalizações no

decorrer da narrativa. O nome interposto, o lobo, é também um canídeo, que, a partir

daí, começa a ganhar outros sentidos plausíveis no romance: o do homem perverso, de

maus instintos, que comete atrocidades na guerra colonial e na guerra psiquiátrica; o do

10
Luiz Pacheco, escritor português, também ganha status de personagem nesta cena do romance.

20
indivíduo solitário que realiza seu processo de conhecimento; o do cão, o diabo que vive

(n)o inferno; e o da parte de um órgão, o lobo cerebral. Vejamos a seguinte passagem:

O equinócio de Setembro faz-me lembrar os cães das praias, oxidados


do outono, a trotarem pela areia deserta em manadas cabisbaixas,
lambendo as algas, os pedaços de madeira, os desperdícios que as
ondas devolvem e recusam, fragmentos de pano, bichos, conchas. Os
cães lambem as algas e os desperdícios, roçam uns nos outros os
flancos magros salpicados de crostas de feridas, os banheiros
recolhem os últimos toldos que ninguém usou, a água possui a
tonalidade rósea de um dorso de criança, a respirar a medo nos limos
da muralha (CI: 163-164).

Os “cães das praias” podem equivaler ao desenterro dos recalques, dos

esquecimentos entulhados na memória. Isto nos remete a um verso de Ruy Belo – “o

meu país é o que o mar não quer” (BELO, 2000: 154) – já recuperado por António Lobo

Antunes em Os Cus de Judas. “O meu país” é, portanto, os dejetos e as recusas do

oceano e os habitantes deste país estão a catar, a recolher os cacos das memórias e dos

esquecimentos que lhes pertencem, cacos perdidos no mar por eles já tanto navegado. A

trajetória empreendida pelo narrador-personagem dá conta de uma viagem de

(re)conhecimento do eu e da pátria. Neste sentido, é possível afirmarmos que, de

alguma forma, o romance elege a pátria como assunto de literatura, uma vez que,

procurando a resposta para a pergunta “quem sou eu?”, estamos igualmente diante da

pergunta “quem somos nós?”, porque, como explica Cleonice Berardinelli, “o

nacionalismo não é mais que um individualismo alargado”11.

António Lobo Antunes narra, portanto, duas errâncias: uma pessoal e outra

nacional. Sobre esse duplo aspecto, diz-nos Jacques Le Goff que “a verdadeira história é

a história do indivíduo enquanto universal e do universal enquanto indivíduo” (LE

GOFF, 1984: 212). Este pensamento vem concordar com as concepções postuladas por

11
O texto referido é Garrett e Camilo: românticos heterodoxos? (s/d: 61). Neste texto que privilegia o
estudo do Romantismo em Portugal, Cleonice Berardinelli explica os conceitos de heterodoxia e
ortodoxia, referindo-os, respectivamente, a Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. Tomamos por
empréstimo o seu pensamento quanto à noção de autognose (do eu e da pátria).

21
Johannes Hessen: “No se trata de una alternativa (o el uno, o el otro), sino de una

cumulativa (tanto el uno como el otro). La filosofía es ambas cosas: una concepción del

yo y una concepción del universo” (HESSEN, 1929: 23).

Ainda com relação à questão da voz narrativa, percebemos, em Conhecimento

do Inferno, em alguns momentos, a substituição repentina do ponto de vista, quando a

terceira pessoa cede lugar à primeira, sem que o narrador faça algum tipo de preparação.

O uso do pretérito imperfeito ou mais-que-perfeito é fator que põe o leitor em dúvida

quanto à pessoa narrativa e que pode abranger ambas as pessoas, primeira e terceira.

Este uso um tanto arbitrário das pessoas discursivas nos leva a crer na bipartição do

sujeito: ele é, ao mesmo tempo, o que pensa e o que é pensado. Trata-se do indivíduo

“outrado”12 que se distancia de si mesmo ao falar de si em terceira pessoa. Por exemplo:

Estava13 no passeio à porta do bar, respirando o odor doce da praia,


onde as vagas adquiriam a pouco e pouco o tom transparente dos
ossos das raparigas jovens, que se sentem sob a pele, depois do amor,
à maneira da primeira claridade dos estores nas auroras de gripe,
quando cada ruído, cada cheiro, cada matiz, nos fere e nos ofende
como uma angústia imotivada (...) (CI: 49).

Percebemos, portanto, uma espécie de saturação de si no(s) romance(s). Muitas

das questões do livro posterior, Explicação dos Pássaros, estão esboçadas nos três

primeiros, sobretudo neste que nos dedicamos a estudar. Conhecimento do Inferno é

considerada obra intermediária, porque encerra uma trilogia que se quer autobiográfica

e antecede o livro que inicia uma fase mais ficcional da obra de António Lobo

Antunes14. Não só por isso, mas a terceira das narrativas aponta para o campo

12
Veremos outro sentido para “outrado” no capítulo 3.1.2.
13
Os grifos são nossos.
14
Cf. CABRAL, Eunice. “Experiências de Alteridade (A Guerra Colonial, A Revolução de Abril, o
Manicómio e a Família)” In: A escrita e o mundo em António Lobo Atunes. Actas do Colóquio
Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 372.

22
metafórico que se desenvolve no próximo livro, já que o Conhecimento do Inferno está

repleto de imagens de pássaros e de homens voláteis no pátio do hospital.

Pretendemos traçar algumas linhas interpretativas que serão desenvolvidas nos

próximos capítulos. Apresentado o livro, tentaremos buscar, antes de analisá-lo, os

pressupostos teóricos que nortearão nosso trabalho.

1.2. Roteiro para a viagem crítica.

Entrei no hospital, pensou ele, para uma viagem tão sem fim como
esta viagem, como o mar das oliveiras aproximando-se e afastando-
se, cintilante, nas trevas, agitado por ciciados cortejos de fantasmas
(CI: 142).

Optamos por estruturar nosso trabalho a partir do conceito de “cronotopo”,

estabelecido por Mikhail Bakhtin15. Desse modo, tentaremos analisar a narrativa a partir

de duas categorias que nos parecem evidentes no livro: a de espaço e a de tempo.

Analisaremos o espaço, por acreditar que o texto se constrói a partir da recordação de

dois espaços essenciais: a Angola da Guerra Colonial e o hospital psiquiátrico em

Lisboa. E, ao analisarmos o espaço narrativo, o tempo tornar-se-á elemento

fundamental, na medida em que “o espaço é a passagem do tempo” (SEIXO, 1986: 27).

Desse modo, parece-nos mesmo difícil entender as oscilações temporais do romance

sem perceber que elas ocorrem em paralelo com o espaço.

É importante esclarecer que não é nosso objetivo, neste trabalho, traçar as

coordenadas da História recente de Portugal. Entretanto, para que se tenha um mínimo

de noção da contextualização histórica – que, aliás, mostrar-se-á incontornável para a

leitura do romance –, achamos necessário, ainda que de maneira incompleta, esboçar

15
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). 3 ed. São Paulo:
UNESP, 1993.

23
alguns dos principais eventos que nortearam a Revolução dos Cravos, de modo que se

possa, posteriormente, refletir sobre a importância deste acontecimento histórico para o

estudo do romance português contemporâneo e, sobretudo, para a análise de

Conhecimento do Inferno. Para isso, serão essenciais as referências adotadas sobre

História, Sociologia e Filosofia de Oliveira Marques, José Mattoso, Boaventura de

Sousa Santos e Eduardo Lourenço.

Assim como estabelecemos estudos introdutórios, ainda que concisos, para a

contextualização histórica e para o romance português contemporâneo, encontramos na

História dos Infernos, de Georges Minois, referências para nossa introdução às

travessias metafóricas do inferno.

Interessa-nos destacar o espaço hostil do manicômio como aquele que perpetua

no século XX os esforços de proteção de uma Lisboa que, para Cesário Verde, gera os

“focos de infecção”16 e de uma nação que, para Oliveira Martins, se configura como

“decrépita e louca”17. O presente trabalho pretende, portanto, investigar a representação

do hospital psiquiátrico, muitas vezes enredado com outro inferno, o da Guerra

Colonial, que pode ser entendido como lugar sintomático capaz de inscrever a metáfora

da doença para simbolizar o percurso histórico do país. Para isso, contaremos com a

História da Loucura de Michel Foucault e com a idéia de desconstrução do aparato

manicomial de Franco Basaglia.

Sabemos que a obra-prima da problemática colonial no conjunto de livros de

António Lobo Antunes é, consagradamente, Os Cus de Judas18. É verdade também que

este é um dos livros mais estudados do autor, mas não nos é indiferente a temática do

16
Cf. “O sentimento dum ocidental” (VERDE, 2003: 72).
17
Apud RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: império, guerra colonial e pós-
colonialismo. Porto, Edições Afrontamento, 2004, p. 261.
18
Conferir a Dissertação de Mestrado O Santuário de Judas, Portugal entre a existência e a linguagem,
de Gumercinda Nascimento Gonda (1988).

24
pós-colonialismo que se desenvolve em outros dos seus romances, dentre eles o

Conhecimento do Inferno. No romance que nos propomos a estudar, a perspectiva pós-

colonial sublinha a alteridade e o estranhamento que o deslocamento geográfico suscita,

bem como a experiência da morte, a falta de amor e a noção de doença na relação

institucional com um universo concentracionário.

Tentaremos ainda mostrar, a partir da teoria do conhecimento de Johannes

Hessen19, o que nos parece evidente no livro: a combinação de conhecimento e de

inferno, como conseqüência de uma vivência pessoal e de uma experiência profissional

adquirida pelo protagonista ao longo de sua jornada.

Precisaremos ainda buscar o distanciamento necessário para que este trabalho se

justifique, porque, quando a experiência pessoal se funde com a arte, a leitura do

romance tende a envolver emocionalmente os leitores dessa longa viagem solitária que,

ao fim e ao cabo de uma mescla de memórias dolorosas, encontra-se finalmente com o

pai.

19
HESSEN, Johannes. Teoría del conocimiento. Madrid: Revista de Occidente, 1929.

25
2. ABRIL: PALAVRA-MOTOR

Dêem-me uma palavra: Abril (a primeira que desde então me ocorre).


Que é Abril? É antes de mais um momento (fixação do tempo no
calendário, duração de um dia longo e breve, horas de surpresa e
encontro). Esse momento transformou-se em acto: Abril ficou a
acção por excelência, a transmutação das coisas mais importantes.
Algo que se fez. E quando eu pronuncio a palavra Abril, essa
nomeação fala-me da acção desencadeada, faz-se palavra-motor,
condensa toda uma narrativa.
(...).
Deixem-me pensar, que é sempre bom pensar em Abril. Abril foi,
efectivamente, uma sucessão. Um antes e um depois (SEIXO, 1977:
24-25).

Partimos do Abril colorido de Maria Alzira Seixo, para quem Abril significa

para sempre o fim de um período trevoso da História Portuguesa, a inaugurar o tempo

da transformação do sonho da democracia em ato.

No entanto, veremos que o romance de António Lobo Antunes não aborda o

momento da festa do fim do regime salazarista, da saída das pessoas à rua, mas faz uma

crítica a alguns caminhos do governo provisório. O protagonista do romance é o porta-

voz de uma amarga lucidez que, apesar de desencantado com os rumos da Revolução,

não invalida o movimento revolucionário. Trata-se de uma consciência politicamente

incômoda, uma vez que desestabiliza a Revolução enquanto mito e, ao mesmo tempo,

coerente, ao perceber os erros e os acertos da Revolução. Este personagem, mais

complexo do que à primeira vista aparenta ser, é aquele que questiona os caminhos, nem

sempre felizes, imediatamente posteriores ao 25 de Abril.

26
2.1. Portugal depois de Abril.

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas.


Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por
odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples
proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por medo, medo
dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso
estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução, até 76, fomos
indefectíveis democratas, fomos socialistas (...). E demorámos a
entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a
respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuavam a
ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E
passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos
de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a
palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido
a guilhotina (CI: 132-133).

Eduardo Lourenço, no ensaio “Somos um povo de pobres com mentalidade de

ricos”, esboça o que ele chama de essência da realidade portuguesa, cuja mentalidade é,

desde o seu começo, uma mentalidade de ricos imaginários que, ao longo de oito

séculos de história, tem insistido num diagnóstico calcado na “intrínseca loucura”

(LOURENÇO, 1978: 139). Partindo de outra importante análise sociológica, a de

Boaventura de Sousa Santos, fica concordado que Portugal, sendo um dos países menos

desenvolvidos da Europa, construiu sua história à base de utopia – “do sebastianismo à

revolução de 25 de Abril de 1974” (1999: 49) – a ponto de se imaginar componente de

uma “Europa dos desejos” (1999: 49).

Portugal caracteriza-se por um papel de intermediação, já que, até a

descolonização, era central em relação às suas colônias e periférico em relação à

Inglaterra. Neste sentido, foi, durante muito tempo, um país simultaneamente

colonizador e colonizado.

Importa-nos ainda constatar que a urgência por espaço sempre constituiu um

drama português. Imprensado entre o mar e a Europa, a saída encontrou-se no espaço do

27
outro, aventurada pelo mar aberto. Valendo-se da posição geográfica privilegiada,

Portugal figurou historicamente como uma das nações mais empreendedoras no

processo de expansão ultramarina. Com o fim da Guerra Colonial, viu-se obrigado a

preterir a imensidão do oceano pela sua pequena estrada, a trocar o domínio do outro

pelo conhecimento de si. A partir dos conceitos de Walter Benjamin, no famoso ensaio

“O narrador”, podemos entender o dilema de Portugal entre ser o “marinheiro

comerciante” e o “camponês sedentário” (BENJAMIN, 1994: 199). Dentre tantas outras

conseqüências da Revolução dos Cravos, pensamos que a imagem do português

pelejador e desbravador foi sendo transformada por outra, ainda em construção, a do

povo a realizar a missão também dolorosa de conhecer-se.

Em uma das suas onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal,

Boaventura de Sousa Santos afirma que “em 25 de Abril de 1974 Portugal era o país

menos desenvolvido da Europa e ao mesmo tempo o detentor único do maior e mais

duradouro império colonial europeu” (SANTOS, 1999: 58). Na década que se seguiu à

Revolução, assistiu-se à sociedade dar um passo para a modernidade: a entrada no

Mercado Comum Europeu, que, contudo, não ocultou a formação genuinamente

ambivalente de um país que sempre fora geograficamente europeu e ultramarino nas

concepções imaginárias, marítimo e terrestre, grandioso e pequeno. Acreditamos que,

atualmente, Portugal também se firma numa posição intermediária: de um lado, por

constituir com os países (ex-colônias) de língua e expressão oficial portuguesa a

Comunidade de Países de Língua Portuguesa e, de outro lado, por fazer parte da

Comunidade Européia:

a integração na UE tende a criar a ilusão credível de que Portugal, por


se integrar no centro, passa a ser central, e o discurso político
dominante tem sido o grande agente da inculcação social da
imaginação do centro: estar com a Europa é ser como a Europa
(SANTOS, 1999: 58).

28
Assim, Portugal regressa à sua territorialidade no momento da “desterritorialização” da

Europa, a União Européia.

Mas isso são conseqüências de uma história que começou bem antes. Em 1928,

entra na cena política portuguesa um nome definitivo, António de Oliveira Salazar,

professor de economia de Coimbra, que assumiria desde então a pasta de finanças e a

responsabilidade de ordenar o caos financeiro no qual Portugal se encontrava. O sucesso

de sua política financeira determinou a permanência no governo. A transformação de

economista competente a pai necessário não demorou. A partir daí, o ditador, ainda na

década de 20, inicia um governo que se estendeu até 1974. Mas, se o país já vinha do

século anterior com um histórico de milagrismo salvatório e de ignorância propagada,

Salazar incentivou a imagem dos portugueses como genuína e orgulhosamente pobres,

solitários, patrióticos e religiosos. Como acredita Vitorino Magalhães Godinho,

Portugal permaneceu por muito tempo como Salazar o incentivou e o conservou:

uma civilização tradicional, quase sem cidades, sem operariado,


vivendo do trabalho da terra e dos negócios comerciais-financeiros,
com moeda estável, população largamente analfabeta, sem quadros
formados universitariamente ou sequer por um ensino secundário que
não fosse exclusivo de restrita burguesia; sociedade mais oligárquico-
camponesa que burguesa, onde o catolicismo era religião oficial, e
que se situava mentalmente, no ponto de vista do Estado mesmo,
anteriormente à Revolução Francesa, como à Revolução Industrial
(GODINHO, 1979: 89).

Durante o processo que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, gradualmente

foram caindo os vários impérios coloniais do Ocidente europeu: o da Holanda, o do

Reino Unido, o da Bélgica, e, finalmente, o da França e o de Portugal, já que o da

Espanha havia acabado nos finais do século XIX. Franceses e portugueses estenderam-

se em demoradas guerras coloniais. O Portugal que provocou a guerra na África era o

29
autoritário, cujo regime originou-se nas experiências ditatoriais européias dos finais dos

anos vinte. A Revolução Portuguesa foi feita por jovens oficiais das Forças Armadas,

pela classe trabalhadora e por estudantes universitários que se contrapunham à alta

burguesia e ao centralismo retrógrado do Estado.

Antigos países colonizadores que perderam o seu império e se encerraram no seu

pequeno espaço europeu, como Portugal, começaram a procurar com angústia a

identidade individual e coletiva. Em 1974, assistiu-se ao desmoronamento do império

colonial português. Ao falar amplamente sobre o conceito de decadência, o historiador

Jacques Le Goff afirma que “o tema da ruína e decadência dos impérios serviu,

fundamentalmente, para esclarecer o conceito de marcha da civilização” (LE GOFF,

1984: 401). Entretanto, se, por um lado, a descolonização marca a decadência ou o fim

de um período de cinco séculos de expansão portuguesa pelo mundo, por outro, ela é

também sinal do término de uma época de decadência que se agravara no século XIX.

Como disse Le Goff, “a decadência é uma fase necessária para a renovação” (1984:

418).

A morte dos Estados é, diferentemente da decadência dos organismos vivos,

uma metáfora, no sentido de que “a sua decadência [a dos Estados] não está marcada,

como a nossa, pelo declínio dos anos; o seu envelhecimento é uma quimera” (1984:

405), muitas vezes impulsionada pela guerra, modelo de mudança da história, grande

causadora de ruínas, que atesta a idéia de vulnerabilidade das civilizações. Se for

possível reconhecer o período do 25 de Abril como um tempo de auge da decadência e

de transição, será ele, dentre os critérios da decadência estabelecidos por Jacques Le

Goff, o critério político, aquele que se refere ao desaparecimento dos Estados e dos

impérios, mesmo porque, “a história política é a história de uma série de decadências;

nenhum império durou indefinidamente, sobretudo no mundo ocidental, onde a regra

30
geral é a precariedade das instituições” (1984: 416).

Segundo Le Goff, “o Estado pode morrer de duas maneiras: uma é a ruína que

lhe vem do exterior; a outra, oposta, é a crise interna. A primeira é de difícil previsão e a

segunda é determinada no interior” (LE GOFF, 1984: 417). Acreditamos que as

reflexões de Le Goff possam iluminar nossa consideração sobre o declínio do império

português, duplamente levado ao fim: devido a uma administração voltada para a

exploração, agravada, no século XX, pelo desespero de um governo deteriorado; e pelo

inevitável desejo de independência das colônias motivadas pelas nações vizinhas tão

logo tornadas independentes. A pressão vinha fatalmente de ambas as direções e o

império implodiu.

As independências das possessões alemãs e francesas fizeram crescer o desejo

de autonomia das colônias portuguesas. Os movimentos nacionalistas na África,

desencadeados, sobretudo, a partir de 1961 em Angola, fizeram com que Portugal

gastasse mais do que devia com a manutenção da Guerra Colonial. No entanto, dez anos

antes, os comunicados das Nações Unidas revestiram-se de caráter anticolonialista. Por

insistir numa guerra distorcida, Portugal começou a ficar mal visto pela comunidade

européia e, pelos países africanos, pela intransigência imperialista.

Os aspectos mais importantes desse quase meio século de História Portuguesa,

que engloba a ditadura (1926-1933) e o Estado Novo (1933-1974), são o exercício

autoritário do governo, os planos de fomento econômico, a imposição da independência

política e econômica de Portugal e a luta militar para defender o Ultramar. No início da

década de 70, Portugal deixa de ser efetivamente um país essencialmente agrícola. A

grande beneficiária da transformação econômica foi a classe média, uma nova burguesia

inconformada com a estagnação política, a mediocrização da vida cultural e ausência de

liberdades cívicas e políticas.

31
A crise final do Estado Novo teve início em 1969, quando o regime viu-se

confrontado com o fim do colonialismo. A Guerra Colonial eclodiu no princípio dos

anos sessenta e marcou o começo da fase final do colonialismo português. Temia-se,

sobretudo, o regresso maciço dos portugueses que estavam na África. Aos poucos, o

colonialismo transformou-se na principal atividade do Estado ditatorial, a verdadeira

base material da sua reprodução ideológica. A guerra era uma das medidas propostas

para resolver o problema colonial. Enquanto o regime se apoiava no colonialismo, o

colonialismo apoiava-se na guerra. Como o governo dependia exclusivamente do seu

aparelho militar, foi o impasse de o regime não conseguir vencer a guerra no Ultramar e

de não poder perdê-la que levou o aparelho militar a transformar o problema técnico da

guerra no problema político da guerra. Neste processo, as forças armadas politizaram-

se. Enquanto as altas patentes prestavam vassalagem política ao Governo, os capitães

organizavam, clandestinamente, o Movimento das Forças Armadas (MFA). Sem o seu

aparelho militar, o regime colapsou.

De um modo geral, os conflitos e guerras civis nos países africanos foram

causados por uma combinação de componentes ideológicos, econômicos e étnicos. As

superpotências e as antigas metrópoles coloniais estimulavam a formação de facções,

contribuindo com armas e dinheiro. Nesse cenário complexo, os interesses de

Washington e Moscou muitas vezes se misturavam às relações de ódio entre as tribos

africanas. Num mundo em que a Guerra do Vietnã ofusca uma outra guerra feita por

pobres reais e ricos imaginários, a África, ou, ao menos, as então colônias portuguesas

significaram, durante a Guerra Fria, um excelente mercado para a venda de armas. Pelas

palavras do próprio Lobo Antunes, a Guerra Colonial Portuguesa era, pois, “uma guerra

de pobres”: “Era um jovem recém saído da Faculdade mas ali tinha de fazer de tudo.

Era uma guerra de pobres. Não havia meios de transporte. Só havia um médico por cada

32
companhia de combate. Faltava de tudo” (BLANCO, 2002: 49).

Para Oliveira Marques, não haveria vitória militar dos movimentos de

independência. A vitória seria das tropas portuguesas, se se mantivesse a disposição de

combater (Cf. MARQUES, 1986: 600). Parece que os dados que encontramos na sua

História de Portugal não coincidem com o relato de um soldado, melhor dizer, de um

médico que vivenciou a Guerra em Angola. Em carta de 5 de Fevereiro de 1971, à

mulher Maria José, António Lobo Antunes dá o seu depoimento sobre a guerra, de perto

vivida:

A guerra prossegue monotonamente. Mais 3 minas, felizmente sem


consequências – o terreno arenoso dispersa um bocado a potência da
explosão –, uma espécie de flagelação, apenas por armas ligeiras, e
portanto inocente, aqui a Gago Coutinho, e, sobretudo, muitas
ameaças escritas deixadas na picada. (...) Uma coisa, no entanto, é
significativa: dos 60.000 habitantes de Gago Coutinho apenas cá
vivem agora 5.000. Todos os outros estão na mata ou na Zâmbia,
apoiando o MPLA, e isso são dados oficiais e conhecidos. Em Cessa,
também, por exemplo, havia 10.000 habitantes. Há, agora, cerca de
30 velhos e velhas. No Chiúme, único ponto que ainda não conheço,
a desproporção é ainda mais flagrante. Mais: os tipos já estão melhor
armados do que nós, com canhões sem recuo e morteiros 82, que nós
não temos. O que os nossos soldados têm é imensa coragem e um
espírito de sacrifício que me espanta. Saem para a mata mal comidos
e pessimamente dormidos com um estoicismo extraordinário. E eu,
que já lhes ganhei amizade e os conheço um a um (não somos já
assim tantos como isso) fico em pulgas à espera de ver voltar 2 ou 3
de charola (ANTUNES, 2005: 42).

A Revolução dos Cravos afastou de vez o inferno da ditadura. Finalmente, viu-

se, em 1974, cair por terra um regime totalitário, fascista e sufocante. O 25 de Abril

proporcionou a transição da ditadura para a “fase da revolução democrática e nacional”

(MATTOSO, 1994: 112), a mudança da condição de um Estado obscuro para um país,

em certo sentido, luminoso, cujos resultados significaram a substituição de uma ditadura

implacável por um incerto conjunto institucional. Passado o momento de euforia, a

manutenção da revolução teve o seu custo. Portugal passou por várias modificações em

33
um curto período, como as disputas internas que punham em risco a vitória da

democratização e a descolonização africana. Com o fim da ditadura, Portugal viu-se

livre num mundo maniqueísta:

A Leste não se reconhecem direitos humanos, o que conta é a


gigantesca máquina burocrática de que todos os homens não passam
de peças e engrenagens; a criação cultural, a atitude crítica, a
inovação, a ânsia de inventar outro futuro, levam ao hospital
psiquiátrico ou à “dissidência” – ao exílio depois de mil sofrimentos.
No Ocidente instalou-se a obsolescência vertiginosa – de produtos e
de processos de produção –, a criação alucinante de novas
necessidades que não permitem aos homens autodominarem-se, e a
violência alastra, a rapidez do deitar fora esconde a incapacidade de
mudar do âmago; as estruturas conservam-se congeladas, as
mentalidades não inventam e não se adaptam, os valores e padrões
ruíram sem que outros viessem dar sentido ao viver individual e
colectivo (GODINHO, 1979: 28-29).

A Revolução redimensionou não só a história, a política e a cultura em Portugal,

mas também o imaginário simbólico de um país que, por muito tempo, optou pela

partida como direção. No entanto, nesse momento, era preciso reconstruir sua

verdadeira fisionomia, reabrigar os despatriados, (re)aprender a sua geografia, voltar-se

para si e estabelecer um diálogo com seu continente.

“O 25 de Abril, resgate pelas forças armadas do regime ditatorial que tinham

imposto ao País em 28 de Maio de 1926, veio tornar tudo possível, abrir todos os

caminhos: para o melhor, mas também para o pior” (GODINHO, 1979: 30). No fim de

1975, Portugal era já um novo país. Em termos positivos, a mudança contou com a

restauração das liberdades e dos direitos fundamentais (incluindo o restabelecimento do

divórcio, por acordo com o Vaticano), a descolonização aplicada à Guiné-Bissau,

Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, o fim da guerra e o regresso

dos soldados combatentes, a reforma agrária, a gradual conscientização política dos

cidadãos e sua participação na vida coletiva, o estabelecimento de relações diplomáticas

com quase todos os Estados do mundo etc. Entretanto, a perspectiva negativa foi

34
igualmente impressionante e refletia uma situação econômica e financeira

extremamente grave, um desemprego referente a cinco por cento da população ativa

(sem contar com os retornados das ex-colônias), uma inflação acelerada e incontrolável,

um acentuado divisionismo político interno, fuga de quadros técnicos para o

estrangeiro, a existência de vários presos políticos sem julgamento, etc.

Como explica Oliveira Marques, o movimento militar do 25 de Abril de 1974

foi, antes de tudo, uma Revolução de protesto contra a condição das Forças Armadas e a

eternização da Guerra Colonial (Cf. MARQUES, 1986: 595). O programa do MFA

apresentado no dia da Revolução inseria um conjunto de medidas que incluíam, dentre

outras, a destituição de todas as autoridades supremas do Estado Novo, a extinção da

D.G.S., a prisão dos principais responsáveis do regime, controle econômico e

financeiro, anistia aos presos políticos, abolição das censuras, saneamento das forças

armadas e militarizadas.

A Revolução dos Cravos foi, portanto, o momento de uma “vontade geral de

criar um Portugal novo” (MARQUES, 1986: 597). Mas, sob outro ângulo, assistia-se a

uma situação comparável à da imposta em 1926: um movimento elitista e militar que

guiava o país. Mas se, em 1926, passava-se a governar em ditadura repressiva, em 1974,

pretendia-se governar em regime de ampla liberdade. A libertação de um povo, por

quarenta e oito anos submerso por uma ditadura implacável, operou-se com um golpe

militar que instituiu a ditadura em 1926 e desinstituiu o Estado Novo em 1974.

Boaventura de Sousa Santos esclarece que “as forças armadas do mesmo país podem,

em períodos diferentes, assumir formas de poder ou de intervenção política também

diferentes” (SANTOS, 1992: 43).

O processo sociopolítico da história recente de Portugal pareceu passar por uma

fase de opções. Após quase meio século de ditadura, repressão e proibições de toda

35
ordem, os novos dirigentes criaram práticas pedagógicas revolucionárias que

procurassem lidar com a liberdade. No entanto, como disse António Lobo Antunes, a

liberdade era preciso ser aprendida. Sobre esta questão, vale conferir o trecho “A

aprendizagem da liberdade”, no qual o escritor declara, em entrevista concedida a María

Luisa Blanco, a situação do cidadão português inadaptado à prática da liberdade:

Voltei da guerra em 1973 e, no ano seguinte, foi a Revolução dos


Cravos, o 25 de Abril. Nesse momento toda a gente queria ser livre e
não se sabia o que era a liberdade, nunca tinha havido.
A liberdade passava pelo divórcio, pela separação e por tudo isso. A
gente passou de uma repressão e uma submissão atrozes para, de um
dia para o outro, tudo ser permitido. A repressão política afectava as
atitudes mais elementares: antes, não se podia beijar uma rapariga na
rua, qualquer atitude, por mais inocente que fosse, era interpretada
como uma transgressão e ninguém se atrevia a mexer um dedo, nem
sequer a falar.
De repente, desaparece a polícia política, elimina-se a censura,
liberalizam-se os comportamentos... Passamos do controlo absoluto
para a existência de embaixadas, como a soviética, com centenas de
conselheiros culturais, muitos deles cubanos, a norte-americana...
Sartre na Universidade a explicar a Revolução, todos os protagonistas
de Maio de 68 estavam em Portugal, era incrível o que se passava
aqui, uma Revolução em todos os sentidos.
E, por outro lado, tudo isso, num clima permanente de risco de guerra
civil, com uma enorme insegurança por parte da população, tão
depressa entusiasmada como morta de medo e, até certo ponto, com
nostalgia da ditadura.
As pessoas não sabiam o que fazer com a liberdade porque esta
chegou subitamente, de um dia para o outro, e isso não é fácil de
assimilar.
(...)
Foram momentos entusiastas em que se actuava de forma apaixonada
e muitas decisões, certamente também a minha separação, foram
fruto dessa paixão, do entusiasmo e do desconhecimento. Tínhamos
de ser livres, mas no afã de o sermos, muitos de nós actuámos sem
pensar muito nas coisas, por mimetismo e por moda (BLANCO,
2002: 61-62).

Como disse Maria Alzira Seixo, “o essencial desta revolução que estamos

vivendo é o nivelamento social que nos propomos e as profundas alterações de

mentalidade e de conduta que daí advêm” (SEIXO, 1977: 366). Mas, conforme a análise

proposta por Vitorino Magalhães Godinho, o 25 de Abril se inseriu “mais no processo

36
de decomposição do antigo regime do que marcara uma revolução de raiz nas estruturas

e modos de ser, de pensar, de agir das gentes” (GODINHO, 1979: 67).

A ruptura, instituída com a Revolução de 25 de Abril de 1974, refere-se às

características fascistas do velho regime: o partido único, a polícia política, as milícias

para-militares, o tribunal plenário (para julgamento dos crimes políticos), os presos

políticos, a repressão da liberdade de expressão e de associação. Para além disso, o

processo de reconstrução normativa e institucional foi relativamente lento e desigual.

Dentre as instituições que mantiveram suas estruturas estão as forças policiais e

militarizadas, a administração da justiça e o sistema penitenciário. Um dos mais

importantes pilares ideológicos do Estado Novo, a Igreja Católica, embora questionada,

foi poupada à contestação social.

Vale ainda lembrar as reflexões de Octavio Paz sobre “revolução”. Diz-nos o

crítico e poeta que “o revolucionário é o que procura a mudança violenta das

instituições” (PAZ, 1976: 262):

Desde fins do século XVIII a palavra cardinal dessa tríade [revolta,


revolução, rebelião] é revolução. Ungida pela luz da idéia, é filosofia
em ação, crítica convertida em ato, violência lúcida. Popular como a
revolta e generosa como a rebelião, engloba-as e dirige-as. A revolta
é a violência do povo; a rebelião, a sublevação solitária ou
minoritária; ambas são espontâneas e cegas. A revolução é reflexão e
espontaneidade: uma ciência e uma arte (PAZ, 1976: 263).

Considerando a observação de Paz, acreditamos que, no caso português, a

Revolução dos Cravos foi, sobretudo, uma revolução contra a Guerra Colonial

empreendida pelas próprias forças armadas, mas que, sem dúvida, não teria ocorrido

sem o apoio da opinião pública portuguesa. Depois do 25 de Abril, a preocupação

central foi pôr fim à luta armada e repatriar os milhares de militares que precisavam

voltar da África.

37
O resultado da Revolução, como define Eduardo Lourenço, teve a ver com o

aceleramento da transformação de um povo que deixa um mundo provinciano e rústico

para compor uma civilização consumista e globalizada. Por ter constituído uma ruptura

e marcado uma fronteira entre passado e presente, entre “antes” e “depois”, na história

do país, a Revolução dos Cravos passa a estabelecer-se na mentalidade histórica como

obra e como mito.

Como se vê, o período subseqüente à Revolução de 1974 é, sem dúvida, um dos

mais ricos da História contemporânea de Portugal, e a sua análise está, como afirmam

alguns historiadores e sociólogos, ainda por fazer. Este quadro histórico de imprecisão e

inquietação, ou talvez de revoluções e decepções, é um dos principais componentes do

romance português contemporâneo.

2.2. O romance depois de Abril.

Balzac é o grande culpado da cristalização do romance. E continua-se


a escrever histórias como no tempo dele. Num mundo em que tudo
evoluiu, a arquictetura, a pintura, a música, etc, os nossos escritores
de prosa são as pessoas mais retrógradas que existem. Os diálogos,
tudo muito bem contado, e sobretudo essa coisa horrível a que
chamam “análise psicológica”. A arte é, no fundo, acho eu, uma
imitação da vida. Mas, do mesmo modo que os retratos do Medina
são horrorosos, por serem espelhos sem mistério, também as novelas
que reflectem um universo superficial de pessoas o são. O que eu
penso é que as pessoas são loucas, e que é preciso traduzir essa
secreta loucura, os saltos de imaginação e de humor, o medo da
morte, as coisas inexprimíveis. E deixar de pôr os homens em
prateleiras catalogadas. (...) Eu acho que o romance tem de ser uma
espécie de tricot subterrâneo, a correr por baixo da aparência.
(ANTUNES, 2005: 233-234).

Há, como vimos, um divisor na História de Portugal que não pode ser esquecido

quando se estuda a produção literária do século XX. A Revolução dos Cravos

modificou não só o panorama político como reestruturou a produção cultural

38
portuguesa, fazendo com que a literatura tomasse, também ela, novos sentidos. No

romance português contemporâneo20, o aspecto ficcional e o contexto referencialmente

preciso coexistem, importando tanto o fazer literário, quanto o porquê da produção do

romance estar, de maneira geral, tão comprometida com a realidade histórica. Por isso,

foi-nos fundamental traçar as coordenadas do 25 de Abril para entender como o evento

histórico mais importante dos últimos tempos, em Portugal, refletiu-se na sua literatura.

Percebemos que uma das mais destacadas direções que a literatura produzida a

partir da década de 80 no século XX toma é a da releitura crítica da história portuguesa.

Ao assumir um caráter contestatório, o romance contemporâneo pretende realizar a

crítica do contexto sócio-histórico, dos mecanismos da ficção e do modo de narrá-los.

Theodor Adorno21 já havia apontado a impossibilidade de narrar, ainda que a forma do

romance exija narração, e Walter Benjamin anunciara que “a arte de narrar está em vias

de extinção” (BENJAMIN, 1994: 197), o que nos provoca a convicção de uma crise do

romance. No artigo “A crise do romance”, Walter Benjamin afirma que

a matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não


pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem
ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a
ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência
humana, levando o incomensurável ao paroxismo (BENJAMIN,
1994: 54).

Os pensamentos de Adorno e Benjamin nos encaminham à proposição de que a

escrita do romance português contemporâneo pode ser a escrita de um romance em crise

– um modelo de romance formulado a partir da idéia de que “ser homem significa ser

20
Consideramos romance português contemporâneo aquele produzido após o 25 de Abril de 1974, ou
mais especificamente, a partir da década de 80.
21
Segundo Adorno, “(...) la posición del narrador, la cual se caracteriza hoy por una paradoja : es
imposible narrar, mientras que la forma de la novela exige narración’’ (1962: 45). Sabemos que o
pensamento do filósofo é referente ao período posterior à Segunda Guerra Mundial e que a crítica
elaborada sobre o romance é aquele como forma literária específica da época burguesa. Contudo,
acreditamos que as afirmações contextualizadas de ambos os filósofos – Adorno e Benjamin – podem ser
consideradas em nosso estudo, no qual percebemos um novo método de narração, aliás, como o próprio
Lobo Antunes apontara em nossa epígrafe (Cf. epígrafe da seção 2.2.).

39
solitário” (LUKÁCS, 2000: 34). Para Georg Lukács22, cada personagem de romance

nasce da solidão

e, na solidão insuperável, em meio a outros solitários, precipitar-se ao


derradeiro e trágico isolamento; cada palavra trágica terá de dissipar-
se incompreendida, e nenhum feito trágico poderá encontrar uma
ressonância que o acolha adequadamente. Mas a solidão é algo
paradoxalmente dramático: ela é a verdadeira essência do trágico,
pois a alma que se fez a si mesma destino pode ter irmãos nas
estrelas, mas jamais parceiros. A forma de expressão dramática,
porém – o diálogo –, pressupõe um alto grau de comunhão desses
solitários para manter-se polifônica, verdadeiramente dialógica e
dramática. A linguagem do homem absolutamente solitário é lírica, é
monológica; no diálogo, o incógnito de sua alma vem à luz com
demasiada força e inunda e oprime a univocidade e a acuidade do
discurso (LUKÁCS, 2000: 43).

Daí que se possa afirmar que a ficção portuguesa fez da Revolução um de seus

temas maiores, mas, igualmente, operou uma revolução formal, a ponto de ser possível

falar da morte do romance, ou melhor, da morte de um modelo de romance. Nossa

hipótese é a de que há um tipo de romance que surge nesse momento: aquele escrito em

primeira pessoa, que valoriza formas oriundas da escrita tradicional (crônicas, diários,

memórias), a assegurar a existência de um ser labirinticamente solitário, e que mantém

uma relação perturbadora entre narrador e personagem.

Ao revolucionar o uso da linguagem, essa literatura promove uma revolução no

texto, ao transpor os limites entre prosa e poesia. O que percebemos com a influência do

registro lírico é uma convivência desencadeada pelas relações de atração simultânea

entre poesia e prosa. Assim como se fala em influência da prosa na poesia, o romance

também assimila traços poéticos, como o ritmo, a abordagem de estados de alma, a

expressão por associações imagéticas etc. Assim, vemos estabelecida uma certa

contigüidade entre poesia e prosa, ainda que de maneira sutil, em Conhecimento do

22
Lembramos as considerações de Lukács sobre a “solidão insuperável” do homem, porque acreditamos
que o Conhecimento do Inferno seja um romance caracterizado pela existência de um protagonista
“sozinho de mais” (CI: 313). Segundo a classificação tipológica de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a
narrativa de António Lobo Antunes seria um texto “propenso para o subjectivismo lírico e para o tom
confessional” (SILVA, 1979: 262).

40
Inferno. No livro, há alguma simbiose poética, uma interação do que há de mais elevado

e comovente nas pessoas e nas coisas com passagens prosaicas, algumas até grotescas,

que privilegiam a reflexão sobre o repulsivo e o doloroso.

O Conhecimento do Inferno é, de fato, um romance que assume uma forte

expressão poética, trabalho de caráter lírico, com discurso de índole metafórica, traço

particularmente característico na obra de um autor que entende seus romances como

“possíveis textos poemáticos” (SEIXO, 2002: 528). Talvez, por isso, os romances da

trilogia da aprendizagem são ainda chamados de “romances líricos” (Cf. GOMES,

1993: 55). Um dos processos de assimilação do poético pelo romance de António Lobo

Antunes é aquele que se desenvolve por frases, cada qual num capítulo, que funcionam

como leitmotiv e que proporcionam ritmo à narrativa.

Ao falarmos do romance depois de Abril, acreditamos que seja elucidativo

resgatar aquilo que foi o embrião da literatura pós-revolucionária, o Neo-Realismo,

porque, de um modo geral, alguns escritores que insistem positivamente na temática da

Revolução são herdeiros deste movimento que surgiu na literatura portuguesa a partir da

década de 40.

Fundamentados pelas teorias de Marx e Engels, os neo-realistas insurgiram-se

contra uma postura alienada diante de um Portugal sob o fascismo. Por isso, propuseram

que o movimento estivesse menos atado à defesa da liberdade estética do literário do

que à necessidade de defesa de liberdade no contexto social. Contudo, não se

esqueceram de que o que escreviam era efetivamente literatura e até esta, revolucionária

e engajada, está intimamente vinculada à forma de expressão da linguagem.

Inserida no contexto da ditadura, a ficção portuguesa passa, grosso modo, por

dois momentos: um revolucionário, realizado pela crítica do Neo-Realismo; e outro

reflexivo, desenvolvido pelas obras publicadas depois de 1974. A perspectiva neo-

41
realista cede espaço a um processo de reflexão sobre o sujeito histórico português, que

evidencia uma crise revolucionária e ontológica. É, como se fosse, uma espécie de

renovação da literatura combativa do Neo-Realismo, que pretendeu ser, antes de tudo,

“um documentário humano.”23

A ficção produzida depois de 1974, em contrapartida, procura unir,

conscientemente, o uso estético da linguagem escrita à reflexão sócio-histórica. Por

outras palavras, o romance depois de Abril, ao fazer “várias (...) descidas aos infernos

(ambíguos) do pesadelo extinto” (LOURENÇO, 1984: 9), não dispensa o reconhecido

valor formal da arte literária: são discursos que, de maneira geral, recriam esteticamente

o real ao problematizá-lo de forma crítica. Paradoxalmente, são romances que podem

ser explicados pelo contexto histórico, mas que interessam “precisamente porque

escapa[m] a esse contexto e sobrevive[m] a ele” (COMPAGNON, 2001: 22).

A respeito da índole reflexiva “do indivíduo criador”, diz Lukács,

a ética do escritor no tocante ao conteúdo, possui um caráter duplo:


refere-se ela sobretudo à configuração reflexiva do destino que cabe
ao ideal na vida, à efetividade dessa relação com o destino e à
consideração valorativa de sua realidade. Essa reflexão torna-se
novamente, contudo, objeto de reflexão: ela própria é meramente um
ideal, algo subjetivo, meramente postulativo; também ela se defronta
com um destino numa realidade que lhe é estranha, destino este que,
dessa vez puramente refletido e restrito ao narrador, tem de ser
configurado.
Esse ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo o grande e
autêntico romance” (LUKÁCS, 2000: 86).

Desse modo, a linguagem ficcional converte-se em instrumento para reflexão

sobre o passado, tanto pessoal quanto nacional. Estes dois movimentos refletem, afinal,

uma busca de autognose individual e coletiva. Fato e ficção correlacionam-se na

narrativa que lê e reescreve a História, já que a escrita literária acaba por ser um modo

23
A este propósito, vale rever a célebre nota introdutória de Alves Redol a Gaibéus (1939): “Este
romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário
humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem” (REDOL, 1945: 10 apud
SILVEIRA, 1986: 31).

42
de repensar o passado. O romance português contemporâneo não só procura a

explicação do passado, mas busca uma solução para o futuro. Persistir no passado pode

ser uma forma de lidar com os traumas não resolvidos e olhar para o futuro, uma

possibilidade de refazê-lo.

A Revolução de Abril convoca, por assim dizer, três formas do imaginário: ela

foi, ao mesmo tempo, real, sonhada e mítica. Para as gerações que a sonharam, a

revolução chegou realmente tarde e foram os autores neo-realistas que construíram as

suas obras sobre uma “revolução mítica” (Cf. LOURENÇO, 1984: 8). Por conta da

larga ditadura que se estendeu pelo século XX em Portugal, desde os neo-realistas, a

Literatura Portuguesa esteve propícia à impregnação da realidade política. Segundo

Eduardo Lourenço, a verdadeira escrita da época da Revolução não podia vir das

gerações que a viviam com os olhos encharcados de passado, como os autores das

décadas de 50 ou 60. Para o filósofo, a “geração literária da Revolução” é aquela que

polariza o élan vital e imaginante do seu tempo próprio, aquela para


quem esse tempo é história aberta, luz indecisa na rua, ocasião de
descoberta ou reajustamento do seu ser, do seu viver, escolher, amar
e morrer (ao menos na ficção) (LOURENÇO, 1984: 13).

A reescritura constitui, neste sentido, uma forma de conhecimento histórico e

literário, já que pretende dar conta não da história que foi, mas da que poderia ter sido.

“Uma história é uma narração”, disse Le Goff, ”verdadeira ou falsa, com base na

‘realidade histórica’ ou puramente imaginária” (LE GOFF, 1984: 158). Esta é, talvez, a

diferença primordial entre o ofício do historiador e o ofício do poeta: o primeiro narra o

que aconteceu e o segundo, o que poderia ter acontecido. Trata-se, pois, da distinção

entre o necessário e o verossímil, apontada por Aristóteles:

Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de


poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a
necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por

43
escreverem verso ou prosa (...) diferem, sim, em que diz um as coisas
que sucederam, e outro as que poderiam suceder (ARISTÓTELES,
1987: 209).

O romance, como já dissemos, mantém relações ambíguas com a realidade:

transforma-se num espelho, ao refletir o contexto histórico; ou subverte-o, ao fazer dele

suporte para a criação de metáforas. António Lobo Antunes é um dos mais claros

exemplos de autores da literatura portuguesa atual, e o que aqui nos interessa, que não

se distanciam da realidade sociopolítica do país e, a partir dela, criam um mundo

ficcional. É o que pensa Jeanne Marie Gagnebin, ao dizer que “a tarefa do escritor não

é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas ‘subtraí-los às

contingências do tempo em uma metáfora’” (apud BENJAMIN, 1994: 16), o que faz do

romance, ou mais largamente da escrita, uma “força salvadora da memória” (apud

BENJAMIN, 1994: 16).

A obra de Lobo Antunes é um exemplo de literatura atenta à História do país,

que pode ser considerada um vasto quadro do Portugal do século XX e da sua transição

para o século XXI: A obra de Lobo Antunes “é, naturalmente, universal, mas a

atmosfera dos seus livros, essa constatação da inexorabilidade do tempo e da

caducidade das coisas, respira na obra de Lobo Antunes em simbiose com a melancolia

portuguesa” (BLANCO, 2002: 19). No entanto, estamos convencidos de que o escritor,

na mesma proporção que “relembra os acontecimentos”, os (re)cria em metáforas.

Ao se libertar da tirania de uma ideologia política, o romance português ganha

autonomia para investigar o fenômeno da alienação e da opressão em diferentes

situações e para fazer a crítica não só do regime despótico, mas também da Revolução

de 1974 e das seqüelas do período pós-revolucionário. Estas temáticas inscrevem-se na

literatura portuguesa depois de Abril, ao mesmo tempo, como memória restituída do

44
tempo vivido e como denúncia dele.

De todo modo, o 25 de Abril significa um marco tanto no destino histórico e

político que a Revolução acarretou ao país, como no âmbito da literatura. Se a noite

salazarista foi capaz de tolher a liberdade da escrita, não seria de espantar que o que

não estava nas gavetas dos gabinetes, mantinha-se nas gavetas da memória. O fato é que

com a luz de Abril, muitos escritos também passaram a vir a lume. Poucos anos após a

Revolução, as obras que integram este momento histórico ao imaginário português vêm

anunciar a memória do tempo ditatorial e a saga dos novos tempos. Boa parte da ficção

posterior ao 25 de Abril trouxe os fantasmas insepultos das décadas da ditadura e os

temas que foram conseqüências do governo inflexível de Salazar. Se, para além de

esterilizar a criação literária, a ditadura emudeceu muita gente, o período pós-

revolucionário passa a ser o momento de dizer tudo, de todas as maneiras e de tratar de

temas proibidos ou recalcados antes de Abril, como o combate e a repressão na África,

o exílio e a imigração. Para Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes é um dos autores

da “geração literária da Revolução” que “dará desse apetite [de dizer tudo], em termos

de violência metafórica desconhecida entre nós, a versão mais espectacular”

(LOURENÇO, 1984: 15).

Já dissemos que seus três primeiros romances formam uma trilogia, na qual cada

uma das narrativas dá seguimento à outra. Como se seguisse um fio contínuo, o final de

Os Cus de Judas se dá com a chegada do protagonista em Lisboa a sentir uma

“indiferença puramente mecânica que [o] exclui” (ANTUNES, 2003: 239), depois de

passados “vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas”

(ANTUNES, 2003: 238), a se despedir dos amigos que fizera na guerra e a se separar

“em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço”

(ANTUNES, 2003: 238).

45
Como se retomasse o fio interrompido com o desfecho da narrativa, o romance

seguinte, Conhecimento do Inferno, começa com o percurso de um homem, que passara

férias no Algarve, a pegar a estrada e iniciar uma longa travessia em direção a Lisboa.

46
3. NA ESTRADA

Este é o ponto do enlace e o lugar onde se realizam os


acontecimentos. Parece que o tempo se derrama no espaço e flui por
ele (formando os caminhos); daí a tão rica metaforização do
caminho-estrada: “o caminho da vida”, “ingressar numa nova
estrada”, “o caminho histórico” e etc.; a metaforização do caminho é
variada e muito planejada, mas o sustentáculo principal é o transcurso
do tempo (BAKHTIN, 1993: 350).

Segundo Mikhail Bakhtin, o cronotopo do encontro liga-se ao da estrada, na

medida em que a estrada se torna a metaforização do “caminho da vida”. A estrada,

como aponta o teórico, tende a atravessar o país natal e não um mundo estranho (Cf.

BAKHTIN, 1993: 351). É precisamente esse o itinerário do protagonista de

Conhecimento do Inferno, que, ao passar por algumas cidades nacionais, evoca outros

tempos e outros espaços, como a infância e a África.

Há de particular, na viagem pela estrada, o entrelaçamento do que é histórico,

social e público com o que é biográfico, subjetivo, pessoal. A estrada não é apenas um

lugar que condensa os traços dos decursos do tempo no espaço. Ela é, efetivamente, o

lugar onde as memórias do protagonista são evocadas e se dá o seu processo de

conscientização. É também, por assim dizer, o palco das cenas figurativas observadas

pelo personagem que o levam à reflexão.

É, aliás, com um cenário de cartão que começa o livro, no qual o mar de

grandeza dos aventureiros passados é substituído por uma artificialidade caricatural,

com a voz do narrador a denunciar uma realidade teatral: “O mar do Algarve é feito de

cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem” (CI: 11). A partir daí,

outras expressões como “funcionários públicos, disfarçados de hippies”, “exercício

frenético dedicado a um público inexistente” e “réplicas de gemidos numa convicção

patética de actor” (CI: 12) vêm afirmar a crítica à inautenticidade que permeará a

47
narrativa, apontando criticamente o mau gosto de um mundo postiço. Na cena que abre

o romance – a saída dos turistas da praia “num êxodo cabisbaixo de refugiados de

guerra” (CI: 14) –, tudo é falso “e os ingleses não percebem” (CI: 11). É significativo

que sejam os ingleses os únicos a não perceberem que “o mar do Algarve é feito de

cartão”, como se o narrador inscrevesse, do seu modo, uma crítica devida a uma história

ressentida com a Inglaterra, que culminou com o Ultimatum de 1890. Por isso, o

narrador traça a coexistência de um país de pobres e um país para turistas, no qual os

ingleses são “pessoas de plástico [que] passavam férias de plástico dos ricos, sob

árvores semelhantes a grinaldas de papel de seda que a pupila verde da piscina reflectia

no azul de metileno da água” (CI: 14), enquanto o país do protagonista

são os painéis de Nuno Gonçalves sob a impiedade da luz, faces


secas e humildes talhadas sem simetria na madeira dos músculos,
baços olhos que não voam tal os dos presos e os dos cegos, tristes
olhos cheios de orgulho como os dos cães à noite, fosforescentes de
inquietação, de zanga, de suspeita, pedalando nas estradas do Algarve
a caminho de casa entre tabuletas de restaurantes, de discotecas, de
aldeamentos, de bares, ingleses pálidos, holandeses etéreos, suíças
levitantes como anjos, pessoas sem um peso de terra pobre nas tripas
como nós, de magras raízes, de furiosas ondas, de pedras à beira-mar
onde o sumo dos sinos se prolonga, idêntico ao latir de uma veia na
almofada (CI: 29-30).

O caráter postiço, se aplicado a uma pessoa, é um desvio, porque é condição que

se refere a coisas e objetos, e não a humanos. Assim, o eu reificado, o português

expatriado, por exemplo, assume traços postiços e, nesse sentido, é tão fake quanto o

“mar de cartolina” (CI: 13) do Algarve.

Como podemos notar, a escrita busca uma autenticidade radical para se opor às

máscaras, atrás das quais o privilégio dos ricos, dos poderosos e dos saudáveis esconde

uma miséria comum. O inverso da autenticidade é, conforme Eduardo Lourenço, “o

falso-parecido: a teatralidade, a aparência tomando o lugar da realidade” (LOURENÇO,

1980: 16). Nossa hipótese é a de que esse romance é construído a partir de uma carga

48
sensível à teatralidade inerente às relações humanas numa sociedade, até pouco tempo,

de características provincianas. Nele, inscreve-se o tema do homem que se desmascara e

procura desmascarar a sociedade em que vive.

As imagens teatrais, no início do livro, vão se desenvolver ao longo dele todo,

como o simulacro de um mundo inseguro porque incerto, vaidoso e incapaz de se ver

com realismo, “inconsciente e contente com esta inconsciência” (LOURENÇO, 1980:

17). Nesta sociedade, os dados estão de tal modo falseados que aqueles que ousam

tomar consciência tornam-se “loucos” (LOURENÇO, 1980: 17).

O percurso de Conhecimento do Inferno pretende dar conta de um interior

genuíno soterrado sob a superfície de plástico, que é o mesmo que dizer, por baixo de

uma derme artificiosa das máscaras da hipocrisia, porque, no fundo de si mesmo, o

narrador sabe que tem razão e que os sofrimentos que suscita não são sofrimentos

imaginários nem mesmo pessoais, “pois a experiência de seu protagonista é a unidade

simbólica do destino humano em geral” (LUKÁCS, 2000: 69).

Se ora tratamos da artificialidade criticada no romance, evocamos Eduardo

Lourenço ao apontar o abismo que existe entre o que se é e que se deseja ser:

E assim, lenta e inexoravelmente, a mentalidade de uma classe ociosa


e sem finalidade transcendente, desce e se infiltra nos interstícios da
sociedade portuguesa no seu conjunto como sociedade em perpétua
defasagem entre o que é e o que quer parecer, defasagem até certo
ponto comum a todas as sociedades existentes, mas não como a
nossa, sacrificando, até aos limites da inconsciência, o que é, ao que
quer parecer (LOURENÇO, 1978: 144).

Num texto fundamental, “Psicanálise mítica do destino português”, Eduardo

Lourenço analisa a mistura fascinante “de uma congenital fraqueza e a convicção

mágica de uma protecção absoluta” (LOURENÇO, 1978: 21) do povo português,

alertando-nos para a necessidade da autenticidade:

49
O que é necessário é uma autêntica psicanálise do nosso
comportamento global, um exame sem complacências que nos
devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao
arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto
verdadeiro (LOURENÇO, 1978: 20).

Um bom exemplo do que diz o filósofo é a cena que abre o romance: “O mar do

Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem” (CI:

11). É como se fosse uma reflexão crítica sobre a trajetória de um país que se manteve

impotente mascarado de poderoso, pequeno disfarçado de grandioso – de uma grandeza

muito distante, no Oriente ou no Brasil, que constituía, “concretamente, uma ficção”

(LOURENÇO, 1978: 22). O colosso português aproxima-se mais, sob este ponto de

vista, daquilo que se deseja ser que daquilo que se efetivamente é. Por isso, nesse país

retratado na ficção ferina de Lobo Antunes, os habitantes são “funcionários públicos,

disfarçados de hippies de carnaval” e “um mundo de trouxas de ovos e de croquetes

espetados em palitos [imitam] casas e ruas” (CI: 11).

À pergunta “em que consiste a verdade do conhecimento?”, Johannes Hessen

(Cf. HESSEN, 1929: 40) responde que o conceito de “verdade” está intrinsecamente ligado

à essência do conhecimento, que só será verdadeiro se houver concordância entre a

imagem e o conteúdo. O conceito de “verdade”, segundo esta explicação, expressa uma

relação entre o conteúdo do pensamento e a imagem; por outras palavras, uma relação

entre aparência e essência. Nesse sentido, é possível que se diga que a trajetória do

protagonista de Conhecimento do Inferno simboliza uma busca pela consciência e pela

autenticidade das coisas. Eduardo Lourenço diz-nos que “sob a busca de dignidade e

autenticidade humanas, o escritor persegue uma outra, aquela que só a escrita, loucura

de olhos abertos, é capaz de nos dar” (LOURENÇO, 1980: 21).

Veremos, a seguir, as viagens progressiva no espaço e regressiva no tempo que o

50
protagonista empreende, porque, como afirmou Mikhail Bakhtin, “na estrada (...)

cruzam-se num único ponto espacial e temporal os caminhos espaço-temporais das mais

diferentes pessoas” (BAKHTIN, 1993: 349). Estudaremos os espaços e os tempos

evocados pela memória do narrador que passeia mentalmente pelos espaços, nem

sempre agradáveis, por ele já habitados, e pelos tempos que remontam, de alguma

forma, à sua origem.

3.1. Viagem progressiva no espaço

Passamos agora a acompanhar a jornada de um personagem que assumiu

voluntariamente a dolorosa missão de conhecer. Para isso, tentou compreender aqueles

a quem chamou “os homens distorcidos”, do modo como procura reconhecer o percurso

de impossibilidade do conhecimento devido a uma outra distorção, a profissional. Mais

tarde dirá: “Observo o mundo distorcido”, transferindo, metonimicamente, o que era

característica exclusiva de alguns homens, os doentes, para o mundo: “o propósito

inicial do médico, que consistia em compreender ‘os homens distorcidos’, transforma-se

aqui na própria observação do doente, que diz: ‘Observo o mundo distorcido’” (SEIXO,

2002: 86).

Nesta seção, veremos os espaços dos quais recorda o protagonista de

Conhecimento do Inferno. Mas, antes de percorrermos os pátios e os corredores do

Hospital Miguel Bombarda e os fronts da Guerra Colonial em Angola, passearemos

pelas travessias metafóricas do inferno resgatadas de alguns textos da literatura.

51
3.1.1.Travessias metafóricas do inferno.

Empurrou a porta e sentiu-se como quando a Alice cai no poço no


princípio da história: a súbita transição da claridade excessiva, densa,
quase sólida, palpável, do exterior, para a cova de sombra,
vertiginosamente oca, em que tinha a sensação de haver tombado,
produziu nele um redemoinho de tontura semelhante ao de anos atrás,
ao chegar ao Hospital Miguel Bombarda a fim de iniciar a travessia
do inferno (CI: 35).

Quando Dante construiu seu Inferno, já havia uma longa tradição literária de

viagens às regiões subterrâneas habitadas pelos mortos. Antes dele, Homero e Virgílio

já haviam conduzido seus heróis épicos – Ulisses e Enéas – às profundezas do Hades.

Mas Dante foi o primeiro a criar poeticamente um inferno a que se incorporaria o

imaginário greco-latino e a tradição judaico-cristã. A referência ao inferno dantesco

pode ser entendida como uma representação abstrata e metafórica da danação humana

que conflui a realidade da experiência e a realidade ficcional. O jogo entre realidade e

ficção que se estabelece, de uma maneira geral, em todo tipo de literatura funda uma

indefinição entre realidade e irrealidade. Em contrapartida, o inferno do mundo atual já

não é mais feito de monstros ou de diabos com tridentes, mas de absurdos. E são, pois,

os absurdos da guerra, da prisão, da desumanidade que voltam e insistem na realidade e

na ficção.

Da época clássica aos dias atuais, o inferno continua sendo tema recorrente na

literatura de todos os tempos, adquirindo, atualmente, significados dos mais diversos.

Dentre eles, as portas que dão acesso ao inferno na literatura do século XX são a

experiência de guerra e a prisional, a descida ao mundo subterrâneo do eu e a vida nas

cidades industriais.

O século XIX proclamou a morte do inferno e o nascimento dos infernos: “um

concerto de infernos”, disse Arthur Rimbaud (2007: 47), cujo livro, Uma temporada no

52
inferno, é marcado pela obsessão da maldição. Os séculos passados comunicaram

largamente o inferno como o pesadelo para além da morte, muito ligado à cultura cristã.

Mas o século XX voltou-se para os infernos contemporâneos. Dessacralizado o inferno

cristão tradicional, o homem moderno descobre e cria os seus próprios infernos,

substituindo, portanto, o inferno tradicional24 pelos infernos presentes:

guerras, mundiais ou localizadas, campos de concentração e gulags,


passando pela bomba atómica, desemprego em larga escala, fome
crónica, poluição generalizada, ditaduras totalitárias, loucura
colectiva de massas fanáticas embrutecidas de forma consciente – eis
alguns dos infernos artificiais que foram criados pelas nossas
sociedades (MINOIS, 1997: 425).

No século XX, os imaginários infernais são múltiplos e, às vezes, mesmo

invisíveis: os infernos modernos são a sociedade e os outros. O homem do século XX

descobre que o inferno está nele. O inferno é, neste sentido, o eu que se fecha numa

célula hermética, habitada pela angústia, que surge pelo fato de esse inferno ser bem

conhecido: (d)o nosso mundo e (d)as perturbações humanas. Os infernos

contemporâneos são uma espécie de prisão perpétua, onde se encarcera a raça humana,

os perseguidos pela polícia, os inimigos da sociedade. Eles aterrorizam por constituir

psicologicamente uma região de onde nenhum viajante regressa.

Parece-nos que as afirmações de Georges Minois ratificam o pensamento de

Ronaldo Lima Lins: “A partir do século XIX, a grande viagem realizada pela criação

literária em seu conjunto indicará, ao mesmo tempo, uma descida ao inferno, um inferno

que arderá fora e dentro de nós” (LINS, 1990: 211). E: “O inferno, afinal, não se situava

no além. Estava nas ruas, em casa, nas pessoas, em toda parte” (LINS, 1990: 210).

24
Em concordância com Georges Minois, chamamos aqui “inferno tradicional” aquele ligado às religiões,
que localiza o inferno no além, em oposição aos “infernos modernos”, representações dos fantasmas e das
concepções do mal do homem moderno, que está em todo lugar, fora e dentro de nós. O inferno
tradicional, especialmente o cristão, ocupa o lugar central na história dos infernos, porque foi a forma
mais organizada de todos os imaginários infernais, e se opõe aos infernos modernos laicos, porque nestes
o castigo nem sempre provém do exterior.

53
Como podemos notar, os infernos modernos abrem-se a todos, ao recusar uma visão

maniqueísta que queria que os infernos dissessem respeito apenas ao Mal.

Desde o século XIX, a noção tradicional de inferno foi negada. O inferno, então,

era o outro, a angústia existencial, a vida cotidiana. Por detrás da maioria das

concepções dos infernos modernos, uma componente sobressalta: a da consciência

aguda do homem do fim do século XX da sua própria e irredutível solidão. “O inferno

tradicional”, explica Georges Minois,

era a sanção de uma vida de egoísmo e de maldade em relação aos


outros. O inferno moderno é a tomada de consciência da contradição
lancinante que é a própria essência da existência humana: eu sou uma
consequência dos outros e apenas me posso afirmar em oposição a
eles. A ruptura na dependência ou como viver em permanente
contradição: tal é a infernal consciência moderna e esta situação pode
conduzir ao inferno ou à salvação a partir desta vida. O inferno é a
recusa do real e, portanto, é a recusa dessa condição contraditória
(MINOIS, 1997: 439).

Jean-Paul Sartre, ao fazer Garcin dizer “o inferno são os Outros” (SARTRE,

1977: 99), lançou uma das fórmulas do século XX, que parece concordar com essa

assertiva de Freud:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio


corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo
pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com
forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de
nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que
provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que
qualquer outro (FREUD, 1997: 95).

A ação de Entre quatro paredes desenrola-se no inferno. A peça, escrita em

1944, é mais um exemplo de imagem literária dos infernos modernos. Não se trata,

portanto, do inferno da mitologia cristã, com diabos e cheiro de enxofre, mas um salão

no estilo do Segundo Império. Levados um a um a esse espaço por um criado, chegam

os “mortos”: Garcin, Inês e Estelle, respectivamente um homem de letras, uma

54
funcionária dos correios e uma mulher da alta sociedade. Enclausurados e condenados à

vida em comum, não demoram a tornar a convivência insuportável. Inês é a primeira a

perceber que o carrasco naquele estranho inferno é cada um deles, para cada um dos

outros. Cada um se vê através dos parceiros que lhe revelam sua condição.

O inferno de Entre quatro paredes, de problemática tipicamente existencialista,

é o drama de conhecer-se a partir de outra consciência. Se o outro existe, a existência do

homem está ligada ao julgamento que o outro faz de si. Como ser pensante e pensado, o

homem desfruta a angustiante experiência de “ser sujeito de” e “estar sujeito a” e, a

partir dessa relação, assumir responsabilidades e fazer escolhas. Sendo obrigados a

tolerar-se mutuamente, os personagens descobrem o verdadeiro inferno: o de

(re)conhecer a si a partir da denúncia de outra consciência. O inferno retratado na peça é

um mundo do qual não se escapa: não existe saída da prisão da Humanidade. Como

explica Minois, o fato de serem três personagens também é condição indispensável para

esse inferno:

O inferno é a relação com o outro sob o olhar de um terceiro. Cada


um existe apenas em face dos outros e o seu olhar é um julgamento.
Nessa sala infernal, não há nenhum espelho: só se pode ver através
dos outros, que possuem o nosso ser (...). Nestas condições, não há
necessidade de demónios atormentadores: a presença de um outro
basta para criar o inferno (MINOIS, 1997: 428).

Há ainda um outro sentido talvez mais decisivo: o de ter o sujeito consciência de

ser lançado num mundo sem significação, de ser outro no próprio mundo e, assim como

Camus, “ser ‘estrangeiro’ ao universo e aos outros: é isso o inferno. Tudo o que

podemos fazer é apreender lucidamente a nossa condição e numa atitude de desafio”

(MINOIS, 1997: 429).

55
Acreditamos que o romance de António Lobo Antunes transforma-se numa

extraordinária estação no inferno25 que nos apresenta duas faces: a dos outros, que

dominam e oprimem, e a de si mesmo, o espelho em que se contempla um narciso

degradado. Se a linhagem existencialista de Sartre e o pensamento psicanalítico de

Freud consideram ser o outro o inferno, a ficção de António Lobo Antunes assume uma

direção paralela, ao acrescentar a estas teorias uma outra questão: a de que a relação

mantida pelo ser humano consigo mesmo é também penosa. É como se a narrativa

insistisse na idéia de que o inferno “se esconde no interior da alma” (LINS, 1990: 204).

A partir da relação com o outro, de um drama coletivo, é que se adquire a

consciência da sua própria experiência. Neste sentido, no romance estão inscritos alguns

sentidos de inferno: um historicamente datado, a Guerra Colonial na África; outro

correlacionado com uma experiência pessoal, a atividade psiquiátrica nos manicômios

de Lisboa; e, finalmente, um terceiro que significa, a partir de uma viagem

dolorosamente solitária, o percurso de (re)conhecimento de si.

Muitas vezes, um bom romance começa na epígrafe. A de Conhecimento do

Inferno é a transcrição do trecho de uma resenha publicada no periódico The Quarterly

Review, em 1860, sobre o romance The Mill on the Floss, de George Eliot. O resenhista

condena o tipo de ficção que “ocupa a mente com vícios, aflições e crimes

imaginários”26 e acredita que o efeito destas ficções podem invadir as mentes dos

leitores com o “conhecimento desnecessário do inferno”. Em alguma medida, a

proposta do romance de António Lobo Antunes é a de (re)conhecer o inferno e, como

diria Ítalo Calvino, “tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é

inferno, e preservá-lo, e abrir espaço” (CALVINO, 1990: 150).

25
Cf. RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno.
26
Cf. tradução da epígrafe de Conhecimento do Inferno (ANTUNES, 2006: 7).

56
De modo geral, os títulos das obras literárias fazem parte integrante da obra e

oferecem uma chave de leitura. O de Conhecimento do Inferno, colhido da citação de

George Eliot, tem uma função metafórica, assim como nos dois romances anteriores.

Nele, está presente a imagística do inferno, correlacionada com a doença, a condenação,

o sofrimento e a destruição. O conhecimento é do inferno e trata, portanto, de alguns

sentidos de inferno, dentre os quais, o que tem a ver com a noite e suas várias

conotações, como a solidão, o estado de inconsciência e a morte. Mas, para além do que

já está apontado no título, talvez seja mais importante o conhecimento assim enunciado:

Em 1973, eu regressara da guerra e sabia de feridos, do latir de


gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres
esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de
bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas
fora-me poupado o conhecimento do inferno (CI: 28).

Se partirmos do termo “conhecimento”, constataremos que é o ato de conhecer,

de apreender ou perceber por meio da experiência, de adquirir consciência ou lucidez, o

somatório daquilo que se sabe (que está neste sentido muito próximo da Memória); é

pensamento, intuição, experimentação e se aproxima do significado filosófico que, para

dizer com Johannes Hessen, “vale tanto como amor a la sabiduría, o lo que quiere decir

lo mismo, deseo de saber, de conocimiento” (HESSEN, 1929: 15).

Conhecimento do Inferno pode ser, portanto, o ato sempre contínuo de tomar

consciência dos lugares e das situações infernais. Note-se que conhecimento tem algo de

gerúndio, por ser ato num presente atemporal. No livro, são duas as situações e dois os

lugares que sobrelevam esta característica: a guerra colonial em Angola e a internação

desumana nos hospitais psiquiátricos de Lisboa.

No romance de António Lobo Antunes, o inferno também é a representação da

realidade contemporânea, já que está diretamente correlacionada com a História

57
Portuguesa do pós-25 de Abril. Trata-se de uma viagem que o protagonista acaba por

empreender sozinho, sem auxílio de Virgílio27, mas que parece ser guiado pela mão de

Alice28. O protagonista toma consciência do sistema desumano criado pelo próprio

homem e do qual a cidade (simulacro do país), a guerra e os sistemas carcerários são

símbolos.

Se entendermos o inferno como espaço metafórico, veremos o quanto a

passagem do romance, que nos serviu de epígrafe, na qual Lobo Antunes cita Lewis

Carroll, é característica, porque o fabuloso livro do século XIX guarda algumas das

imagens que serão desenvolvidas no Conhecimento do Inferno. Talvez até possamos

afirmar que as imagens do “poço muito profundo” (CARROLL, 2007: 12) e da “cova de

sombra, vertiginosamente oca” (CI: 35) tenham mais a ver com o livro escrito (não só)

para crianças, do que tanto as imagens infernais de Dante, Rimbaud e Sartre. Vejamos o

trecho, a que Lobo Antunes se refere, de Alice no país das maravilhas:

(...) lá entrou Alice atrás do coelho, sem sequer pensar como é


que iria sair da toca de novo.
A toca continuava reta como um túnel por algum tempo e
depois afundava de repente, tão de repente que Alice não teve como
pensar em parar antes de começar a cair no que parecia ser um poço
muito profundo.
Ou o poço era muito fundo, ou ela estava caindo muito devagar,
pois teve bastante tempo para olhar ao redor enquanto caía e para se
perguntar o que iria acontecer a seguir. Primeiro, tentou olhar para
baixo e descobrir onde ia chegar, mas estava escuro demais para ver
alguma coisa.
(...).
Para baixo, para baixo, para baixo. A queda nunca ia chegar ao
fim? “Gostaria de saber quantos quilômetros já caí a essa altura”,
disse em voz alta. “Devo estar chegando perto do centro da Terra
(...)” (CARROLL, 2007: 12-14).

27
Como se sabe, Virgílio é poeta romano, expoente da literatura latina, cuja obra mais conhecida é
Eneida. Na Divina Comédia, Virgílio é, assim como Dante Alighieri, personagem que realiza uma
jornada pelos três espaços post-mortem (Inferno, Purgatório e Paraíso) e é o guia e mentor de Dante nesta
viagem.
28
Curioso seria se atentássemos para o fato de que Pela mão de Alice é, justamente, o título de
Boaventura de Sousa Santos num livro em que o autor dá conta de um estudo sociológico do Portugal
depois do 25 de Abril, refletindo, especialmente, sobre a característica intermediária do país (colonizador
e colonizado, ultramarino e europeu).

58
Acreditamos que “chegar perto do centro da Terra” possa ser uma outra maneira

de dizer o fim do mundo, não o das terras africanas, os cus de Judas, mas um fim de

mundo que pode ser uma cova “escur[a] demais”, onde se deveria cuidar das pessoas, ao

invés de calar humanos esquecidos num “edifício decrépito” (CI: 35). Por outro lado, no

plano da diegese, o percurso de um homem numa estrada reta e deserta pode

assemelhar-se, em oposição, à queda de uma menina num poço muito profundo; a

trajetória do protagonista em seu automóvel segue uma direção inversa, de subida, a de

chegar ao seu destino próximo do alvorecer.

As temáticas da Guerra Colonial e da prática psiquiátrica estão, pois,

entrelaçadas, trazendo também um outro elemento, a noite, que aparece correlacionada

com o inferno, seja o da doença, seja o da guerra. Mas é no hospital que tudo começa.

Se a experiência da guerra antecede a da prática psiquiátrica na vida de António Lobo

Antunes, a referência ao Hospital ocupa as primeiras linhas de Memória de Elefante,

seu primeiro romance publicado. Neste livro, as temáticas que insistem são o exercício

da psiquiatria e o internamento hospitalar, mais expressivamente narradas, postas lado a

lado com algumas situações da guerra colonial na África. É também o livro que se

detém na temática da impossibilidade de amar e da separação da mulher.

Em Conhecimento do Inferno, aparecem três figuras femininas: Luísa, Isabel e a

mulher na lua-de-mel, no Algarve; serão quatro, se considerarmos a filha Joana. As

mulheres, que mais aparecem nos dois primeiros capítulos, vêm caracterizar a “fracção

de luz” (CI: 31), por oposição à lógica do inferno noturno. O protagonista, um sujeito

soturno, define-se como aquele que necessita de “um indecifrável complemento de si

próprio” (CI: 31), como se buscasse na mulher a luz ausente:

E eu deixava lentamente de te ver, dissolvida no escuro que entrava


pela janela do quarto em ímpetos irresistíveis de bafo de alho,
obrigando-me a buscar-te às apalpeladas à laia de quem procura o
interruptor de luz, na esperança de que o teu sorriso abrisse uma

59
frincha clara nas trevas da almofada, e os teus gestos trêmulos de
polvo se aproximassem dos meus numa tímida reptação de ternura
(CI: 14).

A partir de determinado momento da jornada, seu monólogo interior encontra na

filha Joana uma eventual interlocutora, se não real, afetivamente possível. A

interlocução com a filha constitui um “diálogo implícito que se tornou narrativamente

habitual” (SEIXO, 2002: 83) que entendemos como o diálogo com o feminino que é, na

verdade, o diálogo com um outro com quem se identifique.

Há, portanto, dois tipos de narratários em Conhecimento do Inferno: um

extradiegético, o leitor; outro intradiegético, a filha Joana, receptora virtual mencionada,

que permanece ausente, todavia presente na imaginação do protagonista. Joana, a filha

que dorme no banco traseiro do carro, “de caracóis castanhos espalhados sobre os

braços, e a boca espetada numa espécie de amuo como se fosse chorar, ou falar, ou

zangar-te comigo” (CI: 178), segundo a imaginação que o desejo do protagonista busca,

desempenha, como personagem do romance, apenas a função específica de narratária.

Em suma, o inferno pode assumir variados sentidos no romance. Para arrematá-

los, convocamos Eduardo Lourenço, em “Divagação em torno de Lobo Antunes”:

A obra de António Lobo Antunes é uma descida, não apenas nesse


inferno particular que nós chamamos realmente de loucura, mas
qualquer coisa de mais interessante e mais profundo. É uma descida a
um subterrâneo, para empregar uma imagem de Dostoievski, que é
um subterrâneo que sempre esteve presente, naturalmente, e que os
grandes autores sempre foram capazes, de Dante até Dostoievski, de
recuperar (...) (LOURENÇO, 2004: 354-355).

Nesta seção, pretendemos traçar uma introdução panorâmica sobre o inferno

como metáfora na literatura para, a partir daí, mostrar que conotações ele ganha no

romance, que cria, por assim dizer, uma viagem ao inferno do século XX português. O

livro está repleto de exemplos de infernos modernos, desde a solidão do sujeito até o

60
mundo fechado e carcerário de onde se é difícil escapar. Destes infernos imagísticos,

dois ganham destaque: a Guerra Colonial e a Nau dos Loucos.

3.1.2. A Guerra Colonial ou exílio na África.

Angola, pensou ele (...) a sentir a quase imperceptível presença do


escuro no dia ainda intacto, o escuro que se mirava nas manchas de
sombra do dia como um rosto ao espelho, tenho quase saudades da
guerra porque na guerra, ao menos, as coisas são simples: trata-se de
tentar não morrer, de tentar durar, e achamo-nos de tal modo
ocupados por essa enorme, desesperante, trágica tarefa, que nos não
sobra tempo para perversidades e pulhices (CI: 96-97).

A literatura portuguesa ocupa-se da questão colonial e anticolonialista de uma

maneira que permite um pensamento ético e estético acerca da relação político-cultural

entre colonizadores e colonizados. Durante a Guerra Colonial, os jovens portugueses

eram obrigados pelo regime salazarista a deixar a pátria para lutar contra os africanos na

terra deles, a manter uma guerra insana na qual não se acreditava e a verificar que a luta

era afinal contra si mesmo. Conduzidos a uma experiência de alteridade, viram-se

submetidos a uma situação que os transformara em uma espécie de “entidade

colonizada” (SEIXO, 2002: 505), devido à situação precária do país que assumia há

séculos um imperialismo retrógrado e, em contrapartida, em total dependência

socioeconômica em relação a potências estrangeiras ocidentais29.

29
Cf. Boaventura de Sousa Santos: “O fim do império colonial não determinou o fim do carácter
intermédio da sociedade portuguesa, pois este estava inscrito na matriz das estruturas e das práticas
sociais dotadas de forte resistência e inércia. Mas o fim da função de intermediação de base colonial fez
com que o carácter intermédio que nela em parte se apoiava ficasse de algum modo suspenso à espera de
uma base alternativa. Essa suspensão social permitiu que no pós- 25 de Abril (entre 1974-1976) fosse
socialmente credível a pretensão de Portugal de se equiparar aos países centrais e, mesmo em alguns
aspectos, de assumir posições mais avançadas que as deles. Em 1978, o FMI destruiu a credibilidade
dessa pretensão. Desde então, Portugal entrou num período de renegociação da sua posição no sistema
mundial procurando para ela uma base que preenchesse o vazio deixado pela derrocada do império. No
início da década de oitenta era já claro que essa base teria como elemento fundamental a integração na
comunidade europeia” (SANTOS, 1999: 58).

61
A ficcionalização da Guerra Colonial se dá, em geral, num tempo posterior ao

seu fim, o que a torna mais consistente e significante. Para ser literatura de guerra, um

romance precisa reunir duas condições, apontadas pelo escritor açoriano João de Melo:

a) ter finalidade e substância literária, dentro das convenções


dominantes da qualidade e da sua linguagem específica; b) possuir a
objectividade e a verossimilhança que em regra caracterizam e
definem o objecto literário como uma projecção e uma experiência da
realidade” (MELO, 1988: 14).

António Lobo Antunes pode ser considerado um dos prosadores que mais e

melhor tem sistematizado, em Portugal, a escrita de guerra, da vertente colonial. Faz

parte, portanto, da chamada “Geração Literária da Guerra Colonial” (MELO, 1988: 16),

porque reúne na sua literatura a experiência vivencial e a base cultural. O autor assumiu

uma prática coerente e um posicionamento novo perante a escrita literária a partir das

experiências vividas na guerra, tornando-as assunto ficcional. E, apesar de a temática da

guerra querer dizer mais com a história, a política e a sociologia, interessa-nos perceber

o quanto a experiência da guerra e a prática da escrita literária foram determinantes para

reconhecer nas obras dos escritores desta geração uma nova forma de escrever

literatura. Parece-nos que António Lobo Antunes é um dos melhores exemplos de

homens transformados pela experiência da guerra e de escritores que constroem uma

literatura a partir da temática da guerra, como afirma João de Melo:

Não é banal insistir na ideia de que a independência dos países


africanos resultou na libertação própria, mas se repercutiu também
como revolução no sistema social, político e ideológico português. E,
na justa medida em que os autores portugueses de guerra reafirmam
essa mesma atitude cultural nos seus livros, são, eles mesmos,
homens da mudança (MELO, 1988: 25).

O processo colonizador português foi uma realidade de séculos que findou com

uma guerra de opressão e de confrontos armados que durou década e meia. Como disse

João de Melo, “não é indispensável sequer que seja só dessa geração o escritor que foi e

62
voltou de África; mas todos quantos sabem que, depois da guerra, a diferença reside

neles mesmos.” (MELO, 1988: 19).

De importância determinante na obra desse autor, a experiência colonial surge

como o confronto com a morte, a separação da família e da pátria, o abandono

irremissível a que são relegados os retornados da África e o provável não-lugar ocupado

pelos que dela regressam. Nesse sentido, a obra de António Lobo Antunes pode ser

considerada um espaço literário privilegiado para o estudo da temática colonial e das

relações humanas por ela suscitadas, como as problematizações da identidade e da

alteridade. Concordamos, pois, com Maria Alzira Seixo quando aponta características

pós-coloniais encontradas na obra de António Lobo Antunes, como:

quebra e dificuldade de reconstrução das identidades, deslocação


espacial e estranheza subseqüente, pontos de vista de colonizador e
de colonizado descoincidindo de uma “doxa” dos modos regulares de
actuação, adopção e inversão de atitudes diversas de abrogação,
heterotopias alienantes (que incluem a situação do retornado), etc.
(SEIXO, 2002: 502).

A Guerra Colonial, ou mais largamente a experiência de destruição e de morte,

constitui um dos temas recorrentes na obra de António Lobo Antunes. Sabemos que Os

Cus de Judas é, dos seus romances, aquele no qual o colonialismo impõe-se de modo

mais definitivo. Mas em Conhecimento do Inferno encontramos algumas das cenas mais

atrozes da guerra na África; cenas que se entrecruzam com a loucura de internados nos

manicômios de Lisboa. Veremos que, neste romance, ambos os espaços são indicados

como espaços concentracionários, doentios e mortíferos.

Os Cus de Judas e Conhecimento do Inferno estabelecem entre si uma relação

que dá conta de duas fases às quais o narrador volta incessantemente. Trata-se de um

percurso vivencial, em que cada romance privilegia um ou outro dos espaços

fundamentais, nunca deixando, porém, de enlaçar as duas temáticas essenciais. Assim

63
como o segundo romance tratou de um “fim do mundo”, os cus de judas, Conhecimento

do Inferno, por meio da larga referência à praia, dada numa viagem que tangencia o

litoral, pode ser também uma maneira de dizer um outro fim de mundo. Vejamos o que

Roxana Eminescu esclarece sobre essa paisagem:

A praia, a iminência do mar, o horizonte ondulatório e morganático,


define há muito tempo a existência no meridiano português. É a
garantia da liberdade, a confrontação com o desconhecido, com o
outro – perigo e amizade – é o lugar da morte, mas também o da
nutrição, do alimento. É também a ligação com o passado, a
recordação da época de glória, duplamente significante: glória, mas
também decadência – fim e vergonha (EMINESCU, 1983: 94-95).

A insistência na praia pode ser um modo de pensar a cultura portuguesa

construída sobre o limiar, sobre a consciência do limite entre a pequena terra e o largo

oceano. Se Os Cus de Judas tratava da guerra no território africano, Conhecimento do

Inferno insiste em outra guerra, não a colonial, mas a psiquiátrica.

Entendemos que abordar o território da África significa abordar, por metonímia,

o outro, terras e gentes. Ao regressar desse espaço, o protagonista volta à pátria de

algum modo “outrado” (SEIXO, 2002: 520). O protagonista partira para uma guerra

cujo discurso dos que a desejavam pretendia proteger um império em ruínas e, para isso,

encaminharam populações a se matarem mutuamente. O sujeito que dela regressa é uma

vítima marcada por sua trajetória, desreintegrável à sua sociedade. De volta a Lisboa,

soma à experiência da guerra, a da psiquiatria no Hospital Miguel Bombarda, mas o

protagonista não recusa olhar para Angola, e é o olhar reminiscente sobre essa vivência

que o faz sentir “saudades da guerra”30, porque, se os dois espaços suscitam a idéia de

exílio, a guerra não deixa de ser a realização e a constatação da barbárie, enquanto no

hospital, a condenação parece perpétua para o médico, “que desenvolve a má

consciência de pactuar com uma situação intolerável” (SEIXO, 2002: 77), mas,

30
Cf. epígrafe da seção 3.1.2.

64
sobretudo, para os doentes que, rendidos nas mãos de carcereiros perversos, não

melhoram, apodrecem.

Daí que a guerra vivenciada na ex-colônia se transforma numa outra, talvez mais

trágica, a da constatação da impotência diante da perversidade dos psiquiatras, o que

leva o protagonista a se identificar menos com os médicos do que com os internados

para quem são poucas as saídas: a fuga e o suicídio:

(...) talvez que a guerra continue, de uma outra forma, dentro de nós,
talvez que eu prossiga unicamente ocupado com a enorme,
desesperante, trágica tarefa de durar, de durar sem protestos, sem
revolta, de durar a medo como os doentes da 5ª enfermaria do
Hospital Miguel Bombarda, fitando os psiquiatras num estranho
misto de esperança e de terror (CI: 97).

Conhecimento do Inferno tem imagens insuportáveis, cujas cenas de carnificina

constituem a paisagem da violência vivida na guerra e no hospital, e é, por isso,

considerado pela crítica como um dos livros mais atrozes de António Lobo Antunes. O

que parece ser sensivelmente inteligente, é que, no romance, tanto colonizadores como

colonizados, tanto médicos como pacientes vivem (n)o inferno. Por isso, todo discurso

sobre a violência é ambivalente, como explica Jacques Leenhardt31: “Daí que todo

discurso sobre a violência é dela necessariamente uma representação e não uma

descrição, mostrando-se, por essência, da ordem da ficção. É por essa via, enfim, que

violência e literatura se acham tão intimamente ligadas” (LINS, 1990: 15). É peculiar

também o fato de o romance cumprir uma crítica que se refere à relação que envolve

colonizador e colonizado, bem como as atitudes de violência presentes nos dois lados e

de toda a ordem de prejuízos que a guerra causa também a ambos, inclusive a redução

do caráter de humanidade nos indivíduos que experimentam a bestialidade da guerra.

31
Cf. Prefácio a Violência e Literatura, de Ronaldo Lima Lins (1990).

65
Parece-nos possível afirmar que o Conhecimento do Inferno pode ser lido pelo

viés da atrocidade,32 uma vez que o autor faz refletir na sua literatura a realidade

insuportável da Guerra na África. Reconstruindo um universo de violência, o romance

constitui um espaço literário que abriga o horror e o sofrimento e aborda, de maneira

cáustica, o que, para Ronaldo Lima Lins, consiste na grande temática do nosso tempo: a

violência. Por tratar de temas que fazem parte da memória cultural de um país, mas

questionando, também, conceitos que perpassam e interessam a toda a humanidade,

como a violência, a destruição e a morte, o Conhecimento do Inferno “reflete a vida e

reflete sobre a vida” (LINS, 1990: 31). A este propósito, diz-nos ainda Ronaldo Lima

Lins:

O século da bomba atômica é também, como não poderia deixar de


ser, o século dos temas e das narrativas explosivas. É o século em
que nos indignamos contra a opressão e endereçamos nosso
pensamento no sentido de solucioná-la mesmo que para tanto
tenhamos de enfrentar a dor. Que outra literatura esperar da nossa
força criativa? (LINS, 1990: 26).

Há um personagem que transita pelos três romances: o soldado de Mangando – o

encontramos no oitavo capítulo de Memória de Elefante, e no capítulo T de Os Cus de

Judas e, de volta, no capítulo 10 de Conhecimento do Inferno. É o soldado suicida que

leva horas para morrer enquanto três militares bebem. Seria interessante pensar o quanto

o suicídio (e a morte, de maneira mais ampla) se desenvolve na obra de António Lobo

Antunes, representado nos três primeiros romances no quadro do soldado de Mangando,

mas que ganha maior centralidade em Explicação dos Pássaros. Sobre o suicídio do

soldado em Angola, diz-nos Maria Alzira Seixo:

O suicídio é uma das formas de tentar vencer o absurdo, como toda a


literatura existencialista não se cansou de mostrar, mas o suicídio do
soldado em Angola, cuja missão é matar, faz acrescer a esse absurdo
de ordem existencial, derivado da incompletude entre o ser humano e

32
Atrocidade é termo recuperado por Ronaldo Lima Lins em Violência e Literatura, para quem o século
XX constitui a “era em que a violência se transformou em atrocidade” (LINS, 1990: 29).

66
o sistema social que o condiciona, uma componente identitária que
pode permitir-nos uma leitura pós-colonial deste texto: “As pessoas
matam-se porque estão fartas (...). Fartas de não perceberem porque é
que morrem” (SEIXO, 2002: 510).

A morte do soldado em Mangando marca a experiência e o questionamento da

morte. Esse suicídio, como diz Maria Alzira Seixo (Cf. SEIXO, 2002: 512), evocado

através do velório, coincide com a chegada do narrador, no plano diegético, ao seu

destino de viagem: poderia ser um outro fim? Uma outra espécie de suicídio, uma vez

que o narrador realizou toda essa viagem “sozinho de mais” (CI: 313)?

Chegar daqui a nada à Praia das Maçãs, pensei eu, meter a chave à
porta e encontrar-me morto na sala, de pulsos cortados, como o tipo
que se suicidou com um pedaço de vidro na casa de banho da
enfermaria, quando toda a gente assistia, lá em baixo, à festa de Natal
do manicómio (CI: 265).

Quando o narrador está prestes a chegar a Lisboa, ocorre mais uma fusão de

planos narrativos: desta vez, uma reunião de espectros, os soldados mortos de

Mangando e os doentes que apanham chuva no pátio do hospital se misturam com a

aparição dos cães. É o capítulo da indagação e indignação maior da guerra: “– Porque é

que as pessoas se matam?” (CI: 253). Recorda que estava no quartel de Mangando,

rodeado por suicidas, e, sem demora, conclui:

– Os animais presos – disse eu – preferem muitas vezes morrer


e nós não passamos de animais presos: nunca nos deixarão sair daqui.
Têm medo, em Luanda, que a gente saia daqui: com que cara os tipos
bem fardados, bem alimentados, bem dormidos nos enfrentariam?
Somos o remorso deles.
(...)
– A gente mata-se porque somos os mendigos desta guerra –
declarei eu. – Até os que já estão mortos se matam (CI: 256).

O sétimo capítulo marca a paragem no restaurante, em Canal Caveira, para

jantar e o bife demorado provoca a evocação do jantar dos doentes no hospital e a

sugestão do canibalismo em Gago Coutinho, que resulta em mais uma mistura dos

67
planos narrativos. Outros jantares surgem na seqüência desse restaurante de “retrete

nauseabunda atulhada de merda imemorial dos comensais” (CI: 173): o médico oferece

“um pedaço do ombro do Pereira” (CI: 178) ao cabo que soldava o caixão do Pereira,

“horrorosamente queimado (...) no acidente de unimogue vinte e quatro meses depois do

nosso desembarque em Angola” (CI: 191), sugerindo que os próprios soldados comam

os mortos. A prática canibal sugerida em um momento extremo na África é transposta

para uma reunião elegante entre os médicos. Ambos, médicos e soldados, compartilham

a prática da tortura e o exercício do poder pelo medo, o que atesta um recorrente

paralelismo entre as memórias da guerra e as do hospital. Esse cruzamento de planos

narrativos resulta numa fusão “satírico-surrealizante” (SEIXO, 2002: 83) de restaurante

imundo de rodoviários perto de Grândola, velório em Gago Coutinho e jantar em Sintra

e no Miguel Bombarda.

Com o avançar do romance, percebemos que os entrecruzamentos entre as

descrições das paisagens e as memórias do personagem tornam-se mais complexas ao

ponto de interligarem-se, pedindo, inclusive, maior atenção do leitor, como no trecho a

seguir:

Sentado no restaurante do Canal-Caveira, de cara nas mãos, afogava


cigarro após cigarro no resto de café do cliente anterior, na pasta
escura, amarelada de açúcar, do cliente anterior, a ouvir sem entender
o ruído gritado das vozes, das pequenas discussões, das conversas.
Tinha passado os campos de Grândola talhados nas trevas como
órbitas ocas em cujo bojo as árvores e os insectos invisíveis se
agitavam com misterioso furor, e onde o céu se aparentava a um
largo, ilimitado estuário ao mesmo tempo turbulento e imóvel, tinha
passado a vila de cartão que os faróis obrigavam à rigidez de cenário
de uma peça acabada, e achava-se no refeitório do asilo, de pé no
meio das mesas, observando com alheada indulgência o meu rebanho
de condenados, enquanto outros jantares, noutros lugares, noutros
anos, me apareciam e desapareciam, confundidos, na memória, tal a
sobreposição de imagens num filme que houvesse abolido, de súbito,
o tempo e as distâncias (...) (CI: 174-175).

68
Como já se disse33, o Conhecimento do Inferno é um dos mais duros textos de

António Lobo Antunes sobre o colonialismo. O médico partiu para África,

politicamente alienado, e, quando voltou à pátria, passou por um processo de

“sensibilidade pós-colonial” (SEIXO, 2002: 85) ou de “consciência magoada”

(MAGALHÃES, 2002: 183), o que percebemos em seus relatos de confessionário

interno. É com teor punitivo que o protagonista atravessa uma espécie de auto-

culpabilização, como percebemos no episódio do dia 13 de Outubro de 1972, na Baixa

do Cassanje, quando os oficiais prenderam os três negros que roubavam roupa, dinheiro

e objetos pessoais, no segundo e mais difícil ano de guerra:

Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa,


o dinheiro, os objectos pessoais dos alferes, murros, chibatadas,
insultos da companhia inteira, exausta por muitos meses de guerra,
dos soldados a quem se haviam tirado as armas para que se não
assassinassem uns aos outros na caserna, depois das últimas cervejas,
lá em baixo, num toldo de bambus, junto ao canhão protegido por
uma gabardina de oleado. Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam
camisas, apodrecíamos de parasitas, de paludismo, de água choca, de
medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços
das pauladas, eram os culpados dos tiros, da angústia, da injustiça, da
estupidez da guerra (CI: 216).

Tempos depois, concluíra que os meses de guerra “haviam-[lhes] transformado

em pessoas que não [eram] antes, que nunca [tinham] sido, em pobres animais acuados

repletos de maldade e de terror” (CI: 219). Mas a experiência psiquiátrica é a que

definitivamente acresce um senso de perversidade ao que antes era barbárie. A

companhia, que havia descontado nos negros de Marimba o cafife insuportável da

guerra, ouve o conselho do pide:

– Vocês deviam ter tido mais cuidado (...). – Há maneiras de


fazer as coisas sem se deixar marcas.

33
Cf. Maria Alzira Seixo, a propósito de Conhecimento do Inferno: “(...) sublinhar-se á a brutalidade, a
selvajeria, a criminosa destruição de vidas em requinte de crueldade e maldade incomparável. É um dos
mais sinistros textos de António Lobo Antunes sobre o colonialismo, e a propósito de cujo passo o
próprio narrador comenta: ‘aqueles meses de guerra haviam-nos transformado em pessoas que não
éramos antes, que nunca tínhamos sido, em pobres animais acuados repletos de maldade e de terror’,
reafirmando assim uma sensibilidade pós-colonial” (SEIXO, 2002: 85).

69
Sorria da nossa ingenuidade, da nossa inexperiência: há
maneiras de se fazer as coisas sem se deixar marcas. Um
electrochoque, por exemplo, não deixa marcas. Um coma de insulina
não deixa marcas. Dez anos de psicanálise não deixam marcas: são
formas educadas de matar as pessoas, formas decentes aceitáveis.
Nem uma cicatriz e os cadáveres continuam a falar, a trabalhar, a
produzir filhos, definitivamente assassinados mas completamente
bons (CI: 221-222).

Não é gratuito o fato de, nesse mesmo capítulo, deceparem-lhe o pênis. Foi uma

“rapariga gorda” (CI: 225) que o castrou “de um só golpe, apoiada por uma vingativa e

entusiástica salva de palmas, [quem] desembaraçou-[lhe] de cem gramas inúteis” (CI:

226). Tiraram-lhe, portanto, o símbolo da hombridade: do que é viril, mas também do

que é honroso. A cena final do capítulo é um excelente exemplo do que Maria Alzira

Seixo chama de “sensibilidade pós-colonial” (Cf. SEIXO, 2002: 85). Como se fosse

uma espécie de consciência penosa pelos murros, pontapés e pelo cigarro apagado “num

umbigo apavorado” (CI: 217), o médico ainda ouve um murmúrio de um sopro:

– Boa noite, nosso tropa (...).


E tombado sobre o lavatório distingui os três negros de
Marimba, sorrindo-me mansamente na reverberação dos azulejos (CI:
226).

O protagonista, psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda, é, antes disso, um

retornado dos fronts africanos. Uma vez ido para África, o médico vive uma espécie de

“naufrágio em terra” (MAGALHÃES, 2002: 186), um naufrágio que não é somente o

do país, mas, sobretudo, o de si. E quando retorna da guerra, o país contrasta

absurdamente com a expectativa criada durante o tempo da estada na África. Nesse

romance, a guerra concretiza-se numa corporificação da morte. Ao recuperar o tema da

Guerra Colonial, ou ao insistir nele, o autor traça o perfil da angústia e o do desespero

dos soldados no front, descrevendo a luta pela sobrevivência tal qual uma vertiginosa

descida aos infernos.

70
Lembramos que o percurso do protagonista, no plano diegético, ao partir para a

Praia das Maçãs rumo a uma casa paterna, toma boa parte da noite. Mas a noite como

elemento metafórico do inferno aparece já no primeiro capítulo, motivada pelo episódio

de António Miúdo Catolo. Procuramos, com esse episódio, estabelecer um elo entre

Angola, um “país em guerra” (CI: 23), e por isso noturno, e Lisboa, “a única cidade do

mundo onde a noite não existe” (CI: 22). A história do chefe dos Luchazes ratifica a

artificialidade, que é marca deste primeiro capítulo de viagem. “Foi em África, no país

dos Luchazes, que [o protagonista] soube que em Lisboa não existia a noite” (CI: 22). A

viagem de António Miúdo Catolo à Europa como condecoração do governo o fez

perceber que não existe noite em Lisboa, depois de setenta e duas horas hirto num

quarto alugado de pensão, sem sair, em jejum, esperando, grudado à janela, por uma

noite que não chegava. O “Muata dos Muatas, livre já do pesadelo de uma cidade

diurna” (CI: 26), conta ao médico sua passagem por um país de “claridade ofuscante de

um meio-dia perpétuo” (CI: 22). Assim deu-se conta o protagonista de que até

a noite em Lisboa é uma noite inventada (...), uma noite a fingir. Em


Portugal quase tudo, de resto é a fingir, a gente, as avenidas, as casas,
os restaurantes, as lojas, a amizade, o desinteresse, a raiva. Só o medo
e a miséria são autênticos, o medo e a miséria dos homens e dos cães
(CI: 26-27).

Para Silvana Maria Pessôa de Oliveira, a proposição de que a noite em Lisboa

não existe,

lançada já no primeiro capítulo, vai colocar em cena o jogo de luz e


sombra associado ao de espaço e tempo que de uma maneira ou de
outra atravessa toda a narrativa, chegando mesmo a se constituir em
um de seus fios estruturantes (...). O contraste luz-sombra surge,
portanto, evidenciado por elementos constituintes da geografia
urbana (praças, ruas, jardins, cemitérios) perpetuamente iluminados
seja pela luz natural seja pela artificial e pelos detalhes
representativos da organização hospitalar (enfermarias, armários de
medicamentos, aparelhos de electrochoque, etc.), desoladoramente
percebidos pelo olhar do narrador, que deixa transparecer sua visão

71
ácida sobre a cena. O hospital é visto como uma sombra, uma
mancha escura nessa paisagem brilhante34.

Assim como o hospital constitui uma sombra numa cidade artificialmente

luminosa, a Angola também compõe a memória daquilo que é taciturno, na medida em

que o país dos Luchazes “é um país de leprosos e de trevas, um país de vultos inquietos,

de rumorosos fantasmas” (CI: 22-23).

Mas a noite nem sempre quer significar a obscuridade, o tenebroso e o

mortífero. As suas significações são variadas e, já tendo passado pela metáfora da

solidão salazarista, da mancha escura que abriga doentes e de um continente em guerra,

atinge um sentido finalmente venturoso, o do amadurecimento: “Anoitece tão cedo em

mim, pensava” (CI: 69), que parece conjugar com esta tomada dolorosa de consciência:

“É – (...) – cresci mais depressa do que devia” (CI: 41). Desse modo, de volta ao seu

percurso rumo a Lisboa, o protagonista percebe que a noite começará a envolvê-lo, e

descreve-a de um modo sobretudo subjetivo, estabelecendo por meio de metáforas uma

fronteira fluida entre o mundo louco e o poético:

Vai começar a anoitecer, pensei, vai começar a anoitecer dentro de


uma, duas horas, a tarde vai tornar-se delicada e fina como papel de
seda, um odor de jacintos subirá da terra, insistente e enjoativo como
as flores dos finados. O escuro cresce dos poros do chão, lilás
primeiro, avermelhado a seguir, azul denso depois, povoado de
insectos, de sussurros, de exclamações, de pequeninas lágrimas, as
árvores sacodem-se sem mudar de sítio como as galinhas no choco,
enquanto os ramos adquirem a extraordinária nitidez do crepúsculo,
gravados na placa de cera mole do céu. Nada prenuncia ainda a noite
e contudo um leve véu, uma ténue teia de sombra separa-nos das
coisas, estabelece entre nós e elas a misteriosa distância das trevas,
onde os relógios pulsam ao ritmo ofegante do sangue. A noite,
pensou, é a angústia cardíaca dos despertadores, o botão inlocalizável
do candeeiro que a mão tacteia às cegas sem o encontrar nunca, o
copo de água à cabeceira que parece conter em si uma fatia de Lua e
todos os rios do escuro, os que nascem das coxas das mulheres para
correr, através do lençol, na direcção do nosso corpo em arco, tenso
da raiva lenta do desejo. Vai começar a anoitecer, pensou, e como

34
OLIVEIRA, Silvana Maria Pessôa de. “Sob o céu de Lisboa. Espaço e Negatividade na Ficção de
António Lobo Antunes”. In: CABRAL, Eunice. A escrita e o mundo em António Lobo Antunes. Actas do
Colóquio Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 208.

72
sempre que anoitece uma melancolia indefinida, uma inquietação
difusa, um tremor vago nos ossos, faz vibrar em mim, antes dos
alaranjados, dos cinzas, dos ocres desmaiados do poente, esse vento
sem origem nem rumo, prolongado como um gemido ou um suspiro
que antecede o voo oblíquo das corujas, ocultas no interior dos
troncos como espectros macilentos e cruéis (CI: 92-93).

Isto posto, concluímos parcialmente que os episódios na guerra e no hospital são

narrados de maneira bastante intrínseca, o que nos leva a concordar, pois, com a análise

de Margarida Calafate Ribeiro:

A metáfora organicista de Oliveira Martins da “nação decrépita e


louca” aparece no texto de Lobo Antunes projectada num cenário
ultramarino de guerra em que os soldados portugueses são doentes
psiquiátricos (...). Acrescentando ou combinando a imagética
organicista da nação doente, apodrecida e espectral do século XIX,
com uma dinâmica imagética ligada à psicanálise, Lobo Antunes
descreve a nação, de que os soldados são espelho, não só como um
corpo doente, mas como um espírito bloqueado, num processo que,
aliás, vai ao encontro do discurso metafórico de análise de Eduardo
Lourenço em que (...) palavras como “labirinto”, “paradoxo”,
“contradição”, “esquizofrenia”, “autismo”, “trauma”,
“ressentimento”, “recalcamento”, “denegação” compõem o universo
vocabular de descrição e análise da nação (RIBEIRO, 2004: 261).

É nesse romance, cujo centro diegético é a comparação fundamental guerra-

hospital, que encontramos, talvez, as descrições mais completas e mais implacáveis da

guerra em Angola. Mas a temática mais largamente abordada do romance é a da

representação do hospital psiquiátrico, espaço narrativo que conflui as principais linhas

de construção ficcional.

3.1.2. A Nau dos Loucos ou exílio na Pátria.

Os psiquiatras são malucos sem graça (...), palhaços ricos tiranizando


os palhaços pobres dos pacientes com bofetadas de psicoterapias e
pastilhas, palhaços ricos enfarinhados do orgulho tolo dos polícias,
do orgulho sem generosidade nem nobreza dos polícias, dos donos
das cabeças alheias, dos etiquetadores dos sentimentos dos outros: é
um obcecado, um fóbico, um fálico, um imaturo, um psicopata:

73
classificam, rotulam, vasculham, remexem, não entendem, assustam-
se por não entender e soltam das gengivas em decomposição, das
línguas inchadas sujas de coágulos e de crostas, dos lábios arroxeados
de livores de azoto, sentenças definitivas e ridículas (CI: 65).

A Nau dos Loucos é uma composição pictórica de Hieronymus Bosch, pintor e

gravador holandês dos séculos XV e XVI, cujas obras criticam, com tom satírico, os

vícios do homem medieval. A Nau dos Loucos descreve uma embarcação cujos

passageiros, uma freira e um frade, estão distraídos com um pedaço de comida

pendurado por um fio e não percebem que outros ladrões tiram-lhes o pouco que resta

sobre a mesa.

Ao pintar a profanidade de todos os grupos sociais, mas principalmente a do

clero (dado que é este o primeiro plano da pintura), o quadro de Bosch realiza uma

crítica sobre os costumes daquela sociedade. A intenção desse juízo crítico remete-nos

ao Elogio da Loucura, ensaio escrito em 1509 e publicado em 1511 por Erasmo de

Rotterdam. Trata-se de um livro, cuja narradora é a Loucura, que pretende “criticar os

costumes dos homens sem atacar ninguém pessoalmente”, como declara Desidério

Erasmo em carta a Thomas More (ROTTERDAM, 2006: 11), mas acaba por examinar

sobretudo os hábitos do clero e as práticas corruptas da Igreja Católica Romana. O autor

escreve o livro, porque, “desde que o mundo é mundo, nunca houve um só homem que,

manifestando reconhecimento, fizesse o elogio da Loucura” (ROTTERDAM, 2006: 17).

A Loucura que narra o livro é a potência criativa das ações humanas, a sabedoria de

vida que se opõe ao saber enganoso de uma escolástica desonesta.

Mas a nau dos loucos é também a Stultifera navis, navios que, dos séculos XIV

ao XVII, levavam os considerados insensatos para fora das cidades. As naus dos loucos,

com destino errante, cruzavam os oceanos e os rios europeus, como esclarece Michel

Foucault nesta admirável passagem da História da Loucura:

74
Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio
de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza
exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais
aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada.
É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a
terra à qual aportará não é conhecida, assim como não sabe, quando
desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria
são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem
pertencer (FOUCAULT, 2005: 12).

Ainda segundo a explicação de Michel Foucault, eram “barcos que levavam sua

carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência

facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros” (FOUCAULT, 2005:

9). A exclusão fora recoberta de uma imagem fantasmagórica dos navios que

pretendiam separar os homens lúcidos dos loucos. Qualquer que fosse a diferença entre

a lucidez e a loucura tornava legítimo o controle da primeira sobre a segunda.

A História da Loucura explica que os hospitais eram leprosários, até meados do

século XVII, na Europa, e passaram a ser, a partir daí, destinados ao abrigo de

incuráveis. Esses lugares obscuros eram utilizados para manter os rotulados como

insanos a uma distância sacramentada pelo signo da exclusão. Mesmo depois de

desaparecida a lepra, as estruturas do leprosário permaneceram. Desde então, os

hospitais se caracterizam pelo acolhimento de pobres, presidiários, abandonados e

alienados socialmente excluídos, que, confusamente misturados, eram alojados nos

hospitais da Europa dos séculos XVII e XVIII.

Pouco mais de um século depois da expulsão dos loucos por meio das

embarcações, o itinerário da loucura “de um aquém para um além” (FOUCAULT, 2005:

42) foi transformado numa barca sólida e atada à cidade. Vê-se, assim, desaparecer a

Nau dos Loucos para surgir o Hospital dos Loucos. Nesse “Hospital”, alerta Foucault,

“o internamento é uma seqüência do embarque” (2005: 43). Até meados do século

75
XVII, o hospital não era lugar destinado ao tratamento e ao cuidado de seres humanos,

era uma “estrutura semijurídica” que, assim como os tribunais, “decide, julga e executa”

(FOUCAULT, 2005: 50).

Mas é, sem dúvida, o advento do Racionalismo impulsionado por René

Descartes que definitivamente enclausura, ainda no século XVII, os loucos. Se pensar

significa existir35, ao lado da Razão foi construída a Não-Razão, à qual pertence a

loucura, porque “a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento”

(FOUCAULT, 2005: 46). Seguindo o pensamento cartesiano de Descartes, Philippe

Pinel alterou significativamente a noção de loucura ao anexá-la à razão. Separou

definitivamente os loucos dos criminosos, mas, ao procurar entender e classificar

algumas doenças mentais, transformou os indivíduos e seus corpos em meros objetos de

intervenção e pesquisa clínicas. A introdução dos medicamentos psiquiátricos foi outro

fator que alterou a relação entre médico e paciente. Segundo Franco Basaglia, precursor

da reforma psiquiátrica na Itália,

(...) os medicamentos agem simultaneamente sobre a ansiedade


enferma e a ansiedade daquele que a cura, evidenciando um quadro
paradoxal da situação: através dos medicamentos que administra, o
médico acalma sua própria ansiedade diante de um doente com o qual
não sabe relacionar-se nem encontrar uma linguagem comum.
Compensa, portanto, usando uma nova forma de violência sua
incapacidade para conduzir uma situação que ainda considera
incompreensível, continuando a aplicar a ideologia médica da
objetivação através de um perfeccionismo da mesma. A ação
“sedativa” dos medicamentos fixa o doente no papel passivo de
doente (BASAGLIA, 1985: 128).

No século XX, começou-se a pensar finalmente sobre o destino dos

procedimetos psiquiátricos. O movimento antipsiquiátrico de David Cooper e a

psiquiatria democrátrica de Franco Basaglia modificaram a relação que, até então, se

estabelecia entre médicos e pacientes, ao inserir neste vínculo um caráter humanista.

35
Cf. o axioma de Descartes: “Penso, logo existo”.

76
Ronald Laing e David Cooper, na Inglaterra, Franco Basaglia, na Itália, e

Thomas Szasz, nos Estados Unidos, pretendiam libertar os internados. O termo

“antipsiquiatria” foi inventado por David Cooper, no contexto dos movimentos de

protesto das décadas de 60 e 70. Essa expressão de inspiração anarco-comunista serviu

para designar um movimento político de contestação do saber psiquiátrico na maioria

dos países em que a psiquiatria havia sido implantada.

A Psiquiatria Democrática de Franco Basaglia, apoiada na História da Loucura,

de Michel Foucault, formulou a “negação da psiquiatria” como discurso e prática sobre

a loucura. Basaglia não defendia a idéia de acabar com a psiquiatria, mas pensava que

só ela não dava conta da complexidade da loucura. Assumiu, portanto, uma posição

crítica contra a psiquiatria clássica que sustentava o princípio do isolamento do louco e

a internação como modelo de tratamento. Ao se defrontar com a miséria humana criada

pelas condições do hospital, que dirigiu em 1961, percebeu que só a humanização nas

relações entre médicos e pacientes não bastava. Seriam necessárias transformações mais

profundas no tipo de assistência psquiátrica e nas relações entre a loucura e a sociedade.

Na década seguinte, começou o processo de fechamento do hospital psiquiátrico.

O Conhecimento do Inferno foi escrito num momento em que se repensava, com

base na ideologia do filósofo francês, um modelo institucional. Também o protagonista

narra as promessas dos psiquiatras do Hospital Miguel Bombarda em continuar

a discutir generosas e hábeis teorias importadas de França, de


Inglaterra, de Itália, de Alemanha, dos Estados Unidos, acerca da
Psiquiatria Social, das intervenções na comunidade, das oficinas
protegidas, dos lares pós-cura, e das sinistras maravilhas
concentracionárias que os clínicos inventam para prolongar a loucura,
a transformar em massacres aceitáveis em nome de irrisórios, de
obscuros, de profundamente discutíveis padrões de saúde (CI: 209-
210).

O narrador embarca numa nau dos loucos, um transporte que se sabe ancorado

77
em Lisboa, o Hospital Miguel Bombarda. Lá, a exclusão põe os loucos sob a guarda de

novos capitães que não os conduzem a lugar nenhum. A nau dos loucos já não vaga de

cidade em cidade, exilando os ensandecidos para além dos muros, os navegantes estão

encalhados numa “mancha escura” (OLIVEIRA, 2004: 208) na cidade, dentre os quais o

médico é apenas mais um degradado.

Se, logo no primeiro capítulo, o médico, ao regressar da guerra, diz que lhe

pouparam o conhecimento do inferno36, talvez seja porque o inferno que conhece ao

desenvolver a atividade psiquiátrica seja mais violento. “Se se quer falar de violência

em psiquiatria”, previne David Cooper,

a violência que brada, que se proclama em tão alta voz que raramente
é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpretada pelos outros, pelos
“sadios”, contra os rotulados de loucos. Na medida em que a
psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios,
podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é
preeminentemente a violência da psiquiatria (COOPER, 1989: 31).

É por meio de um processo de devaneio que evoca, pela primeira vez na

narrativa, os “malucos da infância” (CI: 16). Evocados os malucos, o Hospital Miguel

Bombarda e os vários planos da narrativa, o médico apresenta-nos o motivo da escolha

pela psiquiatria: “(...) decidira ser psiquiatra para entender melhor (pensava) a esquisita

forma de viver dos adultos, cuja insegurança pressentia por vezes atrás dos seus cigarros

e dos seus bigodes, inclinados para a sopa do jantar numa seriedade pontifícia” (CI: 17).

E: “(...) resolveu ser psiquiatra a fim de morar entre homens distorcidos como os que

nos visitam nos sonhos e compreender as suas falas lunares e os comovidos ou

rancorosos aquários dos seus cérebros, em que andam, moribundos, os peixes do pavor”

(CI: 17-18).

36
Cf. CI: 28: “Em 1973, eu regressara da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de
explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros
e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento
do inferno”.

78
Expostos os motivos por esta especialidade médica, a Psiquiatria passa a ganhar,

no romance, variados significados, desde o mais sarcástico – “a Psiquiatria é a mais

nobre das especialidades médicas” (CI: 63) – até, no parágrafo seguinte, atingir uma

manifestação autêntica (e é significativo que esta frase seja do pai do protagonista): “–

A Psiquiatria é uma treta – afirmou o pai. – Não tem bases científicas, o diagnóstico não

interessa e o tratamento é sempre o mesmo” (CI: 63).

Parece-nos que a crítica à psiquiatria inscrita no romance é aquela que pretende

ratificar a idéia de Michel Foucault contrária a de Philippe Pinel, numa contradição que

alterna a importância de dominar os melhores procedimentos a fim de compreender

pessoas e a de dominar as pessoas a fim de pesquisar os melhores procedimentos

psiquiátricos. Sobre esta contradição, diz um personagem do romance: “– De que te

serve seres médico? – berrou o alferes oscilando ligeiramente nas pernas sem força. (...)

– De que te serve seres médico se não percebes raspas da gente?” (CI: 266).

Se ora pontuamos a experiência do protagonista nos fronts da Guerra Colonial,

foi com o intuito de demonstrar o quanto há de combate e hostilidade, tanto ou mais, no

hospício. Essa experiência constatada pelo protagonista atinge a cena em que o pátio do

manicômio em Lisboa é comparado a um dos espaços criados pela Segunda Guerra

Mundial:

Estou em Auschwitz, pensou, estou em Auschwitz, fardado de SS, a


escutar o discurso de boas-vindas do comandante do campo enquanto
os judeus rodam lá fora no arame a tropeçarem na própria miséria e
na própria fome, estou bem barbeado, bem engraxado, bem
alimentado, bem vestido, pronto a aprender a cumprir o meu ofício de
guarda, pertenço à raça superior dos carcereiros, dos capadores, dos
polícias, dos prefeitos de colégio e das madrastas das histórias de
crianças, e em vez de se revoltarem contra mim as pessoas aceitam-
me com consideração porque a Psiquiatria é a mais nobre das
especialidades médicas e é necessário que existam prisões a fim de se
possuir a ilusão imbecil de ser livre (...) (CI: 49).

O Hospital Miguel Bombarda apresenta uma fisionomia muito mais próxima a

79
um campo de concentração do que de um estabelecimento destinado ao tratamento de

doentes com benevolência e caridade. A tradicional definição de espaço que oferece

abrigo, acolhimento e proteção a abandonados afasta-se da descrição desse hospício,

lugar inóspito por excelência, tomado pela doença, pela insalubridade e pela miséria,

que chega, como vimos, a ser comparado aos campos de concentração nazistas.

Concordamos, pois, com a observação de Margarida Calafate Ribeiro de que

Conhecimento do Inferno encerra

uma trilogia autobiográfica que o autor apresenta como uma ruptura


com “o universo psiquiátrico, campo de concentração onde o sistema
social outorga ao médico um papel de carrasco ainda mais degradante
e angustiante do que aquele que o Estado impunha aos seus soldados
em África” (RIBEIRO, 2004: 259-260).

A propósito da convergência fundamental, guerra-hospital, acreditamos que a

“sensibilidade pós-colonial” (SEIXO, 2002: 85), apontada por Maria Alzira Seixo, não

se aplica somente às atrocidades cometidas na guerra em Angola, mas também no

manicômio em Lisboa, como percebemos nesta confissão sobre um dos internados, o

Sequeira:

O Sequeira, lembrei-me: mandei que deixassem o Sequeira em


cuecas, fechado à chave, para não fugir. O Sequeira e as suas pernas
magras, a fala embrulhada, os projectos grandiosos, o velho tio
anarquista de bigode branco a mostrar o cartão sindical a toda a
gente: O Comunismo libertário, senhor doutor, há-de salvar o mundo.
O Sequeira, em cuecas, fitava-me por detrás dos vidros como um
animal preso, tinha uma figa de plástico pendurada no cordão de
prata, a boca abria-se e cerrava-se em palavras que eu não podia
ouvir. Escapava-se para casa da mãe e iniciava de imediato uma
frenética actividade de negócios impossíveis, passava cheques sem
cobertura, contactava lojas, vendia centenas de equipamentos
desportivos que não tinha, oferecia casamento na rua às mulheres que
topava. Lembrei-me do Sequeira, nu, sentado na cama, a tremer,
olhando-me por detrás dos vidros como um animal preso, um pobre
animal preso sem defesa. E comecei a chorar em silêncio diante do
psiquiatra, sentindo as lágrimas descerem-me pela cara como as gotas
de humidade que procuram caminho nos azulejos da parede, babando
atrás de si rastos pegajosos de caracol.
(...).
O Sequeira morreu meses depois, de repente, na rua, numa dessas
transversais pequeninas perto do asilo (...). Algumas injecções de

80
penicilina teriam bastado para o curar, mas eu preocupava-me apenas
em mandar tirar-lhe a roupa e em fechá-lo na enfermaria deserta (CI:
158-159).

Como podemos notar, trata-se de uma confissão de atos censuráveis que o

protagonista realizou, cujas testemunhas são os leitores; uma confissão laica, no sentido

de que não visa a absolvição, mas alguma espécie de expiação adquirida pela

expurgação da culpa por meio do fio da fala, cujos confessores são cada um dos seus

leitores. Nesta cena, vemos uma consciência penosa de auto-rejeição por ter cometido

faltas de efeito lesivo contra outrem.

O trecho, no qual o médico confessa o que havia feito com (ou contra) o

Sequeira, é, a nosso ver, um bom exemplo de atitude que elucida, simultaneamente, a

afirmação de Franco Basaglia de que a “ação “sedativa” dos medicamentos fixa o

doente no papel passivo de doente” (BASAGLIA, 1985: 128) e a de David Cooper ao

lembrar que “a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria”

(COOPER, 1989: 31).

Como percebemos, o protagonista remói-se, a posteriori, pelas faltas executadas.

Submeter-se à humilhação pelos demais médicos será uma conseqüência do sentimento

de responsabilidade por danos causados aos internados. Por isso, talvez não seja gratuito

o fato de o médico ser confundido como um internado no mesmo capítulo em que

recorda dos abusos que havia cometido contra o Sequeira, o que nos leva a crer que esta

passagem configura-se, na narrativa, como uma forma de autocrítica:

De forma que quando o enfermeiro se aproximou de mim de


seringa armada e me ordenou
- Ora baixa lá as calcinhas ó artista
desfiz o laço de nastro do pijama e ofereci as nádegas à agulha
como se tentasse pagar um pecado inexpiável (CI: 170).

As imagens combativas do livro vêm, muitas vezes, acompanhadas de ares

81
cômicos. Conhecimento do Inferno não poupa a classe médica ao comparar o exercício

da medicina ao da Inquisição e ao transformar seus colegas em caricaturas laicas,

reduzindo o conhecimento dos médicos a um palavrório difícil e inútil. A prática

psiquiátrica é ridicularizada ao ponto de o próprio protagonista ser tomado por um

paciente, sem que haja qualquer indício de que o equívoco será corrigido. É o mesmo

personagem, que conhecemos como médico, que se vê afastado de sua função para

desempenhar o papel de doente:

– O António não quer dizer o que está a sentir?


(...)
– Sou médico – informei num murmúrio. – Sou médico aqui.
Trabalhámos juntos, participámos juntos em reuniões comunitárias,
herdei doentes teus (CI: 156).

Há alguma incerteza na prática profissional que permeia a consciência desse

médico a lembrar-se de que é esta prática perversa que mantém sua sobrevivência. Mas,

para além de uma mente culpada, ela parece-nos também duvidosa do seu ofício. Como

analisou Eduardo Lourenço, “o médico poder-se-ia ter extraviado no gozo dos seus

poderes ou no da confortável existência social que uma profissão honrosamente

exercida acaba por proporcionar” (LOURENÇO, 1980: 21). Mas, ao contrário disso,

descobre-se irresoluto do seu “trabalho de carcereiro, monótono e inútil” (CI: 263):

(...)crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de aflição, ou de


remorso, sempre que preenchia um boletim de internamento e
aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e tímidas que me
fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer, obtive este
emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de cruzinhas,
provas públicas pago renda de casa, electricidade, gás, aluguer de
telefone, gasolina, e justifico os vinte contos que ganho aprisionando
pessoas no asilo, escutando desatento as suas inquietações e as suas
queixas, chegando tarde ao dispensário para consultas apressadas
(Que mal faz se os doentes esperam por mim das nove ao meio-dia,
que mal faz se em cinco minutos os oiço e os despacho, que mal faz
se me preocupam mais as pernas cruzadas da estagiária do que a
angústia dos que me procuram?) entrando e saindo no asilo numa
pressa de cuco de relógio. Os gajos matam-se porque se matam,
porque o delírio, porque a epilepsia, porque a psicose, declaram-me
Não sei que volta hei-de dar à minha vida e eu penso E à minha que
volta darei eu, que volta darei à minha vida na noite plana, imensa,

82
sem limites do Alentejo, que parece anunciar-me constantemente, no
zunir dos insectos e no Setembro das árvores, o segredo de uma
mensagem indecifrável (CI: 144-145).

A classe médica é aquela que, por ter prestígio social, defende os interesses

morais, religiosos, políticos e econômicos da ideologia dominante, assim como a classe

clerical e o magistrado. Contestar o seu “trabalho de carcereiro” e denunciar um mundo

de plástico e de cartão equivaleria a estremecer o templo e correr o risco de ficar

soterrado sob ele. Os questionamentos e as denúncias são, como se vê, ambições das

mais fundas neste livro de Lobo Antunes que ousou suspeitar da condição médica como

base cúmplice de uma ordem desumana, sendo, talvez por isso, um dos livros menos

estimados do autor.

Daí que o protagonista, ao passar pelo silêncio do Alentejo, começa por refletir

sobre a controvertida atividade psiquiátrica a tal ponto de a comparar com o exercício

de um padre ou de um juiz: “Ria-me de pensar que éramos os modernos, os sofisticados

polícias de agora, e também um pouco os padres, os confessores, o Santo Ofício de

agora” (CI: 132). Queremos acreditar que rir um riso como manifestação ostensiva de

escárnio pode significar um riso de indignação mediante um comportamento

duplamente injusto, uma vez que se trata de uma prática não só testemunhada, mas

exercida. Um riso nem sempre quer exprimir uma demonstração de contentamento ou

de satisfação, podendo assumir as vezes de vergonha e de revolta. Pensamos que é isso

o que ocorre com o protagonista na cena em que, “com Ourique ao longe” (CI: 131),

pensa: “Lembrei-me do nosso ridículo, do nosso pavor, da miséria da nossa pompa e

comecei a rir-me. Ria um riso ao mesmo tempo pobre e alegre, o riso pobre e alegre dos

carrascos” (CI: 131).

Notamos que a crítica ao exercício opressivo da psiquiatria passa, no romance,

83
pelo processo de cotejar a prática do médico com a de um padre, ou de comparar o

hospital com o quartel ou com um campo de concentração. Para justificar essa idéia,

vejamos a cena em que o protagonista

chegou ao Hospital Miguel Bombarda com um papel no bolso, uma


guia de marcha como na tropa, era em Junho de 1973 e suava de calor
sob o casaco, a camisa, a gravata, a farda laica, civil, que vestia.
Estou na tropa, pensou, estou a chegar a Mafra de novo, vão dar-me
uma espingarda, cortar-me o cabelo, ensinar-me, disciplinadamente, a
morrer, e enviar-me para o cais de Alcântara a embarcar num navio
de condenados. E parou a olhar a fachada vulgar do convento, do
colégio militar, do manicómio, e o pátio onde homens de pijama
arrastavam as sapatilhas sob os plátanos, de estranhos rostos vazios
como os das máscaras de carnaval desabitadas (CI: 36).

Isto posto, precisamos esclarecer que é significativo que tenhamos iniciado esse

capítulo lembrando a pintura de Bosch e o ensaio de Erasmo de Rotterdam, ambas obras

do século XVI que pretenderam formar críticas sobre o poder exercido pela Igreja

Católica, aproximando-se, por isso, de uma imagem eclesiástica de moral duvidosa. Em

Conhecimento do Inferno, o narrador reflete sobre a imagem dos médicos na sociedade

e como o seu exercício profissional amplia-se negativamente a uma prática autoritária.

No trecho que se segue, o protagonista compara os psicanalistas e os psiquiatras,

considerando os médicos uma versão para uma ordem laica de vigilância e punição:

(...) de todos os médicos que conheci os psicanalistas, congregação de


padres laicos com bíblia, ofícios e fiéis, formam a mais sinistra, a
mais ridícula, a mais doentia das espécies. Enquanto os psiquiatras da
pílula são pessoas simples, sem veredas, meros carrascos ingênuos
reduzidos à guilhotina esquemática do electrochoque, os outros
surgem armados de uma religião complexa com divãs por altares,
uma religião rigidamente hierarquizada, com os seus cardeais, os seus
bispos, os seus cônegos, os seus seminaristas já precocemente graves
e velhos, ensaiando nos conventos dos institutos um latim canhestro
de aprendizes. Dividem o mundo das pessoas em duas categorias
inconciliáveis, a dos analisados e a dos não analisados, ou seja, a dos
cristãos e a dos ímpios, e nutrem pela segunda o infinito desprezo
aristocrático que se reserva aos gentios, aos ainda não baptizados e
aos que se recusam ao baptismo, a estenderem-se numa cama para
narrarem a um prior calado as suas íntimas e secretas misérias, as
suas vergonhas, os seus medos, os seus desgostos. Nada mais existe
para ele no universo além de uma mãe e um pai titânicos,
gigantescos, quase cósmicos, e de um filho reduzido ao ânus, ao

84
pénis e à boca, que mantém com estas duas criaturas insuportáveis
uma relação insólita de que se acha excluída a espontaneidade e a
alegria. Os acontecimentos sociais limitam-se aos estreitos
sobressaltos dos primeiros seis meses de vida, e os psicanalistas
continuam teimosamente agarrados ao antiquíssimo microscópio de
Freud, que lhes permite observar um centímetro quadrado de
epiderme enquanto o resto do corpo, longe deles, respira, palpita,
pulsa, se sacode, protesta e movimenta (CI: 204-205).

O Hospital Miguel Bombarda37, conjunto arquitetônico do século XVIII situado

em Lisboa, constitui, no romance, mais que mero cenário. Trata-se de um espaço que

enfatiza todo o caráter de artificialidade presente desde a primeira paisagem do

romance. O hospital é, também ele, para além de palco de relações perversas de poder,

um lugar recheado de flores de plástico, onde só o horror é genuíno:

Eis-me no reino das flores de plástico, verificou acariciando com o


polegar as orgulhosas pétalas postiças, no meio dos sentimentos de
plástico, das emoções de plástico, da piedade de plástico, do afecto de
plástico dos médicos, porque nos médicos quase só o horror é
genuíno, o horror e o pânico do sofrimento, da amargura, da morte
(...).Talvez seja por isto, calculou, que põem flores de plástico nas
jarras, porque as flores de plástico são como os bichos empalhados:
assistem numa indiferença absoluta ao espetáculo da dor: nunca
conheci nenhuma flor de plástico que se comovesse diante de um
cadáver (CI: 45-46).

O Hospital Miguel Bombarda está relacionado ao topos do locus horrendus

clássico e é, pois, um exemplo de lugar em que “se fundamentam as singulares

representações da ruína decadente, rejeitada, macabra, nocturna” (LE GOFF, 1984:

126). Desse modo, o Hospital Miguel Bombarda pode ser visto como uma ruína e “a

ruína”, diz Jacques Le Goff, “deve ser colocada em ambiente selvagem e ser concebida

mais como abrigo de mochos e de feras do que de homens” (1984: 119). A observação

de Le Goff transporta-nos ao pensamento de Foucault ao refletir sobre a imagem

animalizada dos loucos:

37
Eis a descrição da tradicional construção arquitetônica de Lisboa: “O Hospital Miguel Bombarda, ex-
convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho edifício
decrépito perto do Campo de Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em estudante, retalhara
ventres em mesas de pedra num nojo imenso, retendo a respiração para que o odor gordo e repugnante das
tripas lhe não assaltasse as narinas do perfume podre da carne sem vida” (CI: 35).

85
o que é loucura é essa encarnação do homem no animal que é,
enquanto degrau último da queda, o signo mais manifesto de sua
culpa, e, enquanto objeto último da complacência divina, o símbolo
do perdão universal e da inocência reencontrada. Doravante, todas as
lições da loucura e a força de seus ensinamentos deverão ser
procurados nessa região obscura, nos confins inferiores da
humanidade, lá onde o homem se articula com a natureza e onde ele é
ao mesmo tempo degradação última e absoluta inocência
(FOUCAULT, 2005: 157-158).

Conhecimento do Inferno formula, portanto, a crítica a uma sociedade que aceita

o “enxoval de uma ciência inútil” (CI: 131) integrado por “pastilhas, ampolas, conceitos

e interpretações”. A loucura, nesse caso, consiste numa criação dos psiquiatras a serviço

de uma burguesia em ascenção. Segundo esse ponto de vista, a sociedade burguesa

aliou-se à psiquiatria para resolver um grande problema: desembaraçar-se de indivíduos

cujo comportamento era incompatível com a ordem proposta e ao mesmo tempo

impossível de serem tratados como criminosos. O manicômio transforma-se, assim, em

depósito para os que apresentam comportamento inconveniente, como mostra

claramente essa passagem do romance: “Ó senhor doutor isto ultimamente é um inferno

sussurra o marido ou a mulher ou o pai ou o filho, fique-nos com ele que a gente já não

o agüenta em casa” (CI: 233). Ou ainda, como no episódio do noivo, o qual, uma vez

casado, para escapar do segundo casamento, resolve inventar uma loucura e acaba por

formar uma confusão numa das cenas mais extravagantes do romance. Mas o noivo, ao

contrário dos indesejados aceitos como loucos, é recusado sob uma justificação lúdica:

“– Você tem de compreender, ó sócio. Para asilo político só as embaixadas” (CI: 118).

À cena do noivo, que pede para ser internado no manicômio, intercala-se a

sugestão de um vôo surrealístico no pátio do hospital. A analogia do vôo com a loucura

correlaciona a simbologia dos pássaros com a da libertação pelo sonho. Curiosamente,

os doentes que voam são aqueles que o médico nunca atende. Depois do episódio da

proposição do vôo realizado por alguns dos pacientes no pátio do hospital, é a vez do

86
médico perder o chão. São definitivamente demolidas as fronteiras entre saudáveis e

insensatos. Acreditamos que a intenção do narrador é a de alterar as posições de médico

e doente, invertendo a própria condição ao ser confundido como um internado,

desestabilizando os papéis desempenhados por um e outro, médicos e pacientes, a ponto

de lhe assaltar a

impressão de que eram os doentes quem tratavam os psiquiatras com


a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes
fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras, iludir um pouco a sua
triste condição de cadáveres que se ignoram, de mortos que se
supõem vivos e cirandam lentamente pelos corredores na gravidade
comedida dos espectros, não os espectros autênticos, os que às
varandas das casas abandonadas espiam o movimento da rua ocultos
pela renda das cortinas, mas espectros falsos, de suíças de estopa e
narizes de cartão, espectros ridículos opados de sabedoria inútil (CI:
64).

É o que explica Michel Foucault ao confrontar a animalidade dos doentes com a

dos médicos, que acreditam

ter entregue os loucos a tudo aquilo que neles pode existir de bestial,
mas na verdade é ele que se vê investido por essa bestialidade, enquanto
na liberdade que lhes é oferecida os loucos vão poder mostrar que nada
haviam perdido daquilo que há de essencial no homem. Quando
formulou a animalidade dos loucos, deixando-os livres para se
movimentarem, ele os libertou dessa animalidade, mas revelou a sua,
encerrando-se dentro dela. Sua raiva era mais insensata, mais desumana
do que a loucura dos dementes. Desse modo, a loucura emigrou para o
lado dos guardiães; os que encerram os loucos como animais são os que
agora detêm toda a brutalidade animal da loucura; é neles que a besta
impera, e a que aparece nos dementes não passa de um turvo reflexo da
primeira (FOUCAULT, 2005: 472).

A partir daí, a narrativa muda o próprio rumo “em jeito de peripécia de tragédia

clássica” (SEIXO, 2002: 80). O narrador abandona o seu posto de observador

distanciado e judicativo para se integrar no grupo dos loucos. Não conseguindo

convencer nenhum dos colegas de que trabalha ali já há algum tempo, acaba por se

transformar de sujeito da humilhação em objeto de sujeição. A conversão do médico em

doente “dá conta da possibilidade de o médico se colocar (ou de ser colocado) na pele

87
de um internado, e de vivenciar individualmente essa experiência” (SEIXO, 2002: 86).

O mal-entendido pode corresponder ao equívoco geral de uma psiquiatria enganosa.

Não por acaso, neste mesmo capítulo o médico recorda alguns abusos que ele mesmo

havia cometido e que se assemelham aos que acabara de sofrer. O Valdemiro, um louco

feliz na sua loucura, é um personagem bastante elucidativo, uma vez que evidencia duas

inversões: a do médico tomado por um doente e a do doente privado pelo próprio

médico que critica os métodos terapêuticos. O Valdemiro, que “sorria, irreal como um

anjo bêbado, (...) como um Cristo em transe a passear de sandálias freak pelas ondas”

(CI: 167), integra, talvez, o personagem que melhor exemplifica a convergência entre a

loucura e a poesia. Valdemiro é o português que rege o espaço sideral: “– Já mexo outra

vez nas estrelas, senhor doutor. Repare como elas me obedecem” (CI: 167).

O sanatório de Conhecimento do Inferno, está cheio de espelhos, como metáfora

da consciência, porque um dos modos de se conhecer o inferno é por meio desta

superfície refletora:

Amanhecera algumas vezes no silêncio de uma casa imóvel, ousada


como uma borboleta morta entre as sombras sem corpo da noite, e
olhava, sentado na cama, os contornos difusos dos armários, a roupa
ao acaso nas cadeiras como teias de aranha cansadas, o rectângulo do
espelho que bebia as flores como as margens do Inferno o perfil aflito
dos defuntos (CI: 15).

Uma vez por semana a equipe médica do Hospital Miguel Bombarda realizava

reuniões na sala de jantar do hospital, às quais “entravam por fim, em grupo (...)

distribuindo em volta sorrisos de tratadores” (CI: 95). Numa dessas reuniões, os

médicos decidiram adotar um inusitado e incoerente método terapêutico: o de ocupar de

espelhos o “quinto dos infernos”, quer dizer, a 5ª enfermaria de senhoras do Hospital:

A 5ª enfermaria, no topo do asilo, a que se acede por intermédio de


um elevador enorme, soluçando de andar em andar agudos guinchos
de pânico, era, quando lá foi colocado, um triste purgatório que os
psiquiatras se esforçavam em vão por alegrar, enchendo as paredes de
espelhos que multiplicavam e devolviam os vultos pardos das

88
doentes, a sua miserável condição de prisioneiras (era-lhes vedado
sair sozinhas, era-lhes vedado passear, era-lhes vedado ter contactos
com homens porque “não queremos responsabilidades, não queremos
sarilhos, não queremos problemas, não queremos protestos das
famílias”), de modo que as únicas diversões permitidas consistiam
em tomar as gotas da medicação, em proceder a vagos trabalhos
inúteis de costura, e em assistir, amontoadas na sala de jantar em
cadeiras de fórmica precárias como dentes de leite, às reuniões do
Clube, uma manhã por semana, dirigidas por técnicos possuídos da
boa vontade untuosa dos carcereiros cristãos (CI: 94-95).

A reunião do clube da enfermaria das senhoras mostrou o quanto os médicos

estão cheios de pretensas certezas com relação ao conhecimento científico dos seus

casos clínicos, mas incertos do sofrimento que aflige os seres humanos que os rodeiam.

Por isso é tão inusitado e incoerente o procedimento terapêutico de preencher os vazios

dos manicômios com espelhos, porque os médicos não pretendiam tornar saudáveis as

internadas e habitável a 5ª enfermaria, mas quiseram sarcasticamente ecoar “o perfil

aflito dos defuntos” (CI: 15). Na verdade, esforçaram-se por revelar o atonismo das

senhoras internadas na 5ª enfermaria, que se miravam

nos espelhos com inexprimível pavor: eram quarenta ou cinquenta


mulheres que os tratamentos psiquiátricos haviam reduzido a animais
indiferentes, de boca oca, de íris ocas, de peito oco, durando
vegetalmente na manhã de Verão ampliada de fulgurações azuis (CI:
107).

Mas parece que os espelhos espalhados pelas enfermarias do manicômio não são

espelhos comuns, porque refletem, para além dos contornos, as essências dos internados

ali aprisionados. Parece-nos que o protagonista, também médico do HMB, a fim de

retificar o fracassado tratamento psiquiátrico que reduziam as internadas a “camisas de

dormir” (CI: 106), propõe um tratamento poético:

(...) devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu, de gesso que nos
emparedava, quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes
que nos medicassem, nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos
medissem a inteligência, o raciocínio, a memória, a vontade, as
emoções, nos catalogassem e nos atirassem por fim, rotulados, para a
escura gaveta de uma enfermaria, aguardando, aterrados, o imenso

89
morcego da noite (CI: 108).

Num romance em que apontamos características de tratamento poético,

Conhecimento do Inferno, apropriadamente, defende uma outra forma de tratamento

psiquiátrico. O próprio escritor fala sobre sua relação, desde o começo de sua vida

literária, com a poesia: “Quando comecei a ler os poetas foi quando realmente começou

a minha inquietação – inquietação literária. Com a poesia compreendia o autêntico valor

da palavra” (BLANCO, 2002: 27-28). Em entrevista concedida a María Luisa Blanco,

confessa-nos António Lobo Antunes:

Volto da guerra e... lá vou para o hospital! Escolhi a especialidade de


psiquiatria, que me pareceu mais fácil que a de dermatologia, e a
primeira vez que entrei num hospital psiquiátrico tive a sensação se
estar a contemplar uma mistura de cenas situadas entre um filme de
Fellini e a casa do meu avô.
O hospital psiquiátrico era como uma dessas grandes casas, enormes,
sombrias e cheias de ameaças. Com gente estranha que me parava,
que me tocava... Faziam-me lembrar, como uma aparição, os velhos
tios do Brasil, meio loucos, meio doentes, que se colavam aos
corredores da casa de família... Tive a impressão de ter voltado à
infância: as tias do Brasil, já muito velhas; as sombras estranhas; os
grandes salões...
Ali começou o meu trabalho depois da guerra, tinha todo o tempo
ocupado e só pensava como escrever. Nessa altura, um interno
ganhava muito pouco dinheiro. A minha mulher, Maria José, estava a
acabar Direito e eu tinha de fazer tudo para ganhar dinheiro: fazia
noites, urgências em pequenos hospitais periféricos, coisas assim.
Havia quatro noites na semana que não dormia em casa.
Recordo daquela época que o melhor ensinamento foi tirado de um
louco. Estava no jardim do hospital. Aproximou-se de mim com o
seu ar misterioso e disse-me: “Sabe? O mundo começou a ser feito
por detrás...”.
Reflecti sobre a frase deste louco e pensei: “A escrita é assim”.
Quando começamos escrevemos para a frente, até que
compreendemos que temos de escrever por detrás, às avessas. Foi
uma frase fantástica (BLANCO, 2002: 54-55).

Como disse Eduardo Lourenço, “a pulsão que comanda e nutre toda a escrita é

um sonho de louco” (LOURENÇO, 1980: 9). O itinerário do escritor-médico levou o

protagonista para regiões em que a loucura e a escrita constituem um só sonho, de dupla

90
leitura. É, inclusive, o que o escritor nos diz sobre a criação literária: “Quando criamos é

como se provocássemos uma espécie de loucura, quando nos fechamos sozinhos para

escrever é como se tornássemos doentes”38. A escrita do/no romance não configura

doença, mas é uma viagem admirável por esse universo fantasmagórico. No fim de

contas, o encontro com o mundo da doença auxilia o processo de conscientização da

fragilidade da condição humana: é através da desordem interior de um ser em pânico

que se procura compreender a desordem do mundo.

No capítulo 11, encontramos o episódio de Margarida, “uma maluca do

Bombarda que esteve aqui a trabalhar” (CI: 286), que quis retornar ao seu trabalho no

salão de cabeleireiro, onde a esperavam manicuras, pedicuras, patroa e clientes

sobressaltadas com o vislumbre de uma notícia em letra maiúscula: “FUGIDA DE UM

HOSPITAL PSIQUIÁTRICO ASSASSINA DOZE PESSOAS NUM

CABELEIREIRO” (CI: 290). Intercala-se a esse episódio o de Hélder, o internado que

se desespera com a hipótese de ter alta:

– Não posso ter alta senhor doutor – disse o Hélder. – Quem é


que me recebe lá fora?
– Precisamos da tua cama – disse eu. – Há por aí malta pior do
que tu (CI: 288).

Margarida, a internada que foge do manicômio, é, afinal, mais uma exilada no

HMB. A idéia de exílio presente no livro é aquela que designa deportação, expatriação,

imigração forçada não mais para um além-mar, mas para qualquer território alienador.

Entendemos a acepção de alienação como a que tem por objetivo transferir a outrem

direitos de toda ordem como conseqüência de abandono ou renúncia. Desse modo,

acreditamos que o hospital psiquiátrico caracteriza-se, na narrativa, como um degredo

que, ao internar seres humanos, afasta-os do contexto social. O internamento

38
ANTUNES, António Lobo. Entrevista concedida a Ferrnando Dacosta, JLA (1982), p. 5 apud
GONDA, 1988: 44.

91
transforma, enfim, os rotulados como loucos em estrangeiros na própria pátria, já que a

permanência nos hospitais psiquiátrico configura, na verdade, o isolamento de todo tipo

de exercício de cidadania. Não por acaso é Margarida quem percebe o quanto o lugar da

atividade psiquiátrica alterou a dinâmica do mundo:

O hospital, pensou a Margarida, modificou o mundo: expulsou as


pessoas risonhas, cúmplices, amáveis, protectoras de outrora, e
substituiu-as por uma cidade azeda, opaca, inimiga, uma cidade que
não era a sua, que não conhecia, que de toda a parte a escorraçava
numa raiva doente, a escorraçava não sabia para onde por não existir
sítio para ir. Sentia-se emparedada
(...)
no interior de si mesma como numa cela minúscula, custava-lhe
respirar, uma espécie de desconforto, de aflição, de picada, de dor,
apertava-lhe o peito, as veias do pescoço, os miolos da testa (CI:
297).

O episódio de Margarida coincide, na narrativa, com o momento em que o

narrador sai de Lisboa em direção à Praia das Maçãs. Este episódio não é apenas um

admirável texto sobre a expressão feminina e sobre a relação da loucura com o mundo

fora dos manicômios; é também “uma espécie de alegoria do regresso, que dá conta

também do regresso dos militares de África e da sua inadaptação como de uma outra

forma de loucura” (SEIXO, 2002: 88), que alia o símbolo do pássaro, presente desde

Memória de Elefante, próximo à conclusão do romance.

Apesar de o médico fazer questão de afirmar-se contrário a todo tipo de

nomenclatura que tenha como objetivo discutir padrões de saúde mental, consideramos

o fragmento a seguir como uma proposição que, de alguma maneira, ratifica a intenção

de negar39 as “instituições completas e austeras”40. Entendemos essa passagem como

um modo de confirmar a atitude realizada por Franco Basaglia de fechar um hospital

psiquiátrico. Diz-nos o protagonista:

39
Rever a idéia de negação da psiquiatria, por Franco Basaglia.
40
Título de um capítulo de Vigiar e punir, de Michel Foucault.

92
(...) a única coisa a fazer era destruir o hospital, destruir fisicamente o
hospital, os muros leprosos, os claustros, os clubes, a horta, a sinistra
organização concentracionária da loucura, a pesada e hedionda
burocratização da angústia, e começar do princípio, noutro local, de
uma outra forma, a combater o sofrimento, a ansiedade, a depressão,
a mania (CI: 230).

Em determinado momento, o médico assume no seu relato que, nunca havia

saído do hospital. Não ter saído do hospital equivale ao aprisionamento do médico e o

do doente ao mecanismo psiquiátrico, além de sugerir a inserção do médico no grupo

dos doentes, os que realmente nunca saem do hospital. Mas nunca ter saído do hospital,

significa, afinal, que a experiência do inferno hospitalar nunca o abandonou:

Nunca saí do hospital (...). E agora regressava a Lisboa sem nunca ter
saído do hospital, porque quando alguém entra no asilo cerram o
enorme portão à chave nas nossas costas, despojam-nos da carteira,
do bilhete de identidade, do fato, do relógio, dos anéis, injectam-nos
nas nádegas cinco ou seis centímetros cúbicos de doloroso
esquecimento, e na madrugada imediata o nosso corpo é um puzzle de
pedaços espalhados no lençol, impossíveis de reunir pela moleza
incerta das mãos (CI: 143-144).

Pode-se achar natural que um médico-escritor resolva os mistérios da psique

humana. Entretanto, é o escritor, e não o médico, que atribui a si o compromisso,

sempre cheio de riscos, de nos introduzir neste mundo, agora apto a ser conhecido, do

inferno psiquiátrico. Isso dito, resta-nos alcançar o significado de inferno num romance

que quis falar da Psiquiatria e seus tratamentos que não curam. Conhecemos, enfim, o

significado de inferno para esse personagem:

O inferno, pensou, são os tratados de Psiquiatria, o inferno é a


invenção da loucura pelos médicos, o inferno é esta estupidez de
comprimidos, esta incapacidade de amar, esta ausência de esperança,
esta pulseira japonesa de esconjurar o reumatismo da alma com uma
cápsula à noite, uma ampola bebível ao pequeno almoço e a
incompreensão de fora para dentro da amargura e do delírio (...) (CI:
65-66).

O Hospital Miguel Bombarda, espaço ficcional do romance, parece cumprir o

93
que propõe Octavio Paz, ao trazer a idéia de que “adaptar o paciente a uma civilização

doente e podre até os ossos não é curá-lo, mas agravar seus males, convertê-lo num

incurável” (PAZ, 1999: 50). Acrescentamos à observação de Octavio Paz, a reflexão de

Susan Sontag que, em A doença como metáfora, reflete sobre as relações entre as

metáforas da doença e a sociedade: “As metáforas da doença são usadas para julgar a

sociedade, não como desequilibrada, mas como repressiva” (SONTAG, 1984: 92).

A partir dessas formulações, encaminhamo-nos a concluir que o HMB pode

constituir um simulacro de uma sociedade, considerando a crítica de Erich Fromm:

A sociedade contemporânea está doente e destila neuroses e conflitos


por uma causa perfeitamente determinada; nossa doença se chama
propriedade privada, capitalismo, trabalho assalariado, regimes
totalitários nazistas e comunistas. Suas epidemias se chamam guerras,
desemprego, fascismo, burocracia estatal, capitalismo de Estado,
“socialismo totalitário” (PAZ, 1999: 50).

Pensamos, enfim, que Conhecimento do Inferno acabou por promover uma

reavaliação da loucura que, pelo viés da ficção, concluiu que o arsenal psiquiátrico é,

silenciosamente, mais cruel. Ficou defendido, durante todo o percurso da viagem e pelo

discurso do personagem, que a psiquiatria não é uma atividade na qual se crê e que o

hospital é um ambiente que se rejeita. A viagem que parte do Algarve e tem Lisboa por

destino ganha, pois, um novo sentido: o de questionar a função da psiquiatria e o seu

exercício. Esse questionamento, a nosso ver, prolonga-se para, a partir da crítica à

prática psiquiátrica, formular reflexões que dêem conta da trajetória pessoal e nacional

de um personagem que, antes de se ver exilado num hospital psiquiátrico, viveu uma

ditadura insana e uma Guerra Colonial que constituiu um retiro enlouquecedor; um

personagem que viveu, enfim, num “mundo distorcido” (CI:251).

94
3.2. Viagem regressiva no tempo

Ao atravessarmos a atrocidade da Guerra Colonial e a perversidade no hospital

psiquiátrico, conhecemos, pela perspectiva do narrador, a crueldade e a hostilidade

presentes em ambas as experiências. Investigados os espaços percorridos pelo médico e

visitados pela sua memória, passamos a examinar o percurso de retorno à casa paterna,

na qual nos deparamos com o que consideramos o episódio incontornável do romance: o

encontro com o pai.

3.2.1. O encontro com o pai.

Sentei-me na cama e voltei o foco do candeeiro na direcção da voz: o


meu pai olhava para mim e sorria, sentado na cadeira vermelha, de
rabo de bacalhau, do quarto: a minha roupa do avesso, arremessada
ao acaso, pendurava-se-lhe dos ombros, dos joelhos, dos braços (...).
Segurava o cachimbo apagado na mão, de boquilha voltada para
cima, e fitava-me. Era a primeira vez que entrava no meu quarto mas
parecia singularmente familiarizado com os meus livros, os meus
papéis, a minha mala, o meu olhar de incredulidade e de espanto.
Calculei que não sentia sequer a peúga que lhe caía sobre a testa à
laia de uma insólita madeixa postiça, quase cómica, no topo das
feições graves e magras. Deixei-me deslizar para trás no travesseiro
até apoiar a nuca no espaldar da cama (CI: 313-314).

A figura do pai é uma representação de toda forma de autoridade. Segundo tal

representação, o pai é o genitor, autor, fundador, protetor, a linha das gerações

anteriores, o motivo que determina. O papel paternal é concebido como aquele que

exerce a influência de limitar, privar, educar. Como explica Nadiá Paulo Ferreira, “o

pai, enquanto função paterna, é uma construção significante. E mais, faz parte da

contingência humana a necessidade desta construção”41.

41
FERREIRA, Nadiá Paulo. “Sob os véus da castração – a questão do pai na modernidade e na
contemporaneidade” In: DAVID, Sérgio Nazar (org.). O que é um pai? Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997, p.
50.

95
O pai do protagonista de Conhecimento do Inferno é aludido ao longo da

narrativa, ganhando corpo somente na cena derradeira do romance. Este pai é imbuído

de um valor que faz com que demais personagens, enfermeiros e funcionários do HMB,

associem-no ao protagonista. A identificação com o pai, que passa pelo exercício da

medicina no mesmo hospital em que trabalhara, é também lembrada na cena em que o

médico chega ao hospital, na qual é reconhecido não pela sua competência ou

experiência clínicas, mas por ser filho do “senhor professor”:

(...) o porteiro orgulhava-se de oferecer o copo não a si mas ao pai


através dele, ao senhor importante que ensinava na Faculdade e
conversava com os serventes do laboratório de igual para igual, a ver
passar no microscópio glóbulos vermelhos idênticos a planetas
distantes, boiando na geleia rosada dos espaços do plasma (CI: 39).

Essa cena talvez enfatize o hospital, ainda que espaço mortífero, como espaço da

continuidade42, comum a uma tradição familiar. O protagonista, que quis levar a filha

Joana ao hospital43, recorda-se ao “olhar a fachada vulgar (...) do manicómio” (CI: 36),

que, em criança, também acompanhara o pai:

Parou a olhar a fachada do hospital (...) e um sujeito pequenino,


calvo, de camisa aos quadrados, apareceu a gingar de um cubículo de
vidro e pendurou-se-lhe efusivamente do braço, de cara aberta em
duas pela ferida enorme do sorriso:
– Raios me partam se não é o filho do senhor professor.
E ele recordou-se de em miúdo acompanhar o pai ao laboratório,
cheio de frascos, de vasos cúbicos em que flutuavam cérebros
gelatinosos, de tubos de ensaio, de microscópios, de bicos de gás, e
de ficar empoleirado num banco giratório a assistir às conversas do
pai com aquele homem mais novo, mais grande, mais hirsuto, vestido

42
Continuidade é um conceito abordado por Georges Bataille, em O erotismo. Segundo o filósofo, “para
nós que somos seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser: a reprodução leva à
descontinuidade dos seres, mas ela põe em jogo sua continuidade, isto é, ela está intimamente ligada à
morte” (BATAILLE, 1987: 13).
43
Cf. CI: 83: “Quando te quis levar ao hospital, Joana, recusaste-te a passar o portão com a firmeza
obstinada, pétrea, inamomível das crianças (...). Das ruas próximas subia um cheiro alegre, um rumor de
vida, a jubilosa reverberação azul dos azulejos, e eu pensei dentro de mim Vou-te mostrar o balneário, os
claustros do balneário, a enorme banheira de mármore tombada como um rinoceronte morto, vou visitar a
horta contigo e caminharemos de mão dada pelo mar das couves, cada vez mais pequenos e felizes como
no fim dos filmes até nos dissolvermos gloriosamente no horizonte de casas da Gomes Freire, vou-te
apresentar aos enfermeiros meus amigos, A minha filha, e ouvir o riso da tua timidez que se me enrola
nas pernas numa vergonha aflita”.

96
de fato-macaco, de boné na cabeça, que ocupava por inteiro uma
atenção que ele exigia fosse sua (CI: 36-37).

No capítulo 12, o protagonista chega à Praia das Maçãs, “na grande e velha casa

dos meus pais” (CI: 311), para a qual precisava voltar para “buscar os meus livros, a

minha roupa, os meus papéis, e regressar no dia seguinte ao hospital e ao meu trabalho

de carcereiro, monótono e inútil” (CI: 262-263). O fato de o destino da viagem ser a

Praia das Maçãs remete-nos à árvore do conhecimento, de cujo fruto Eva e Adão,

respectivamente, comeram sob influência de uma serpente e, por isso, foram expulsos

do Paraíso. Não seria gratuito, a nosso ver, que seja a praia das maçãs, o fim de uma

“longa travessia do inferno” (CI: 27). Segundo uma simbologia (não só) cristã, a maçã é

o fruto proibido que possibilitou o conhecimento daqueles que a experimentaram. A

casa paterna, para a qual parte o protagonista, que afinal fica na Praia das Maças, pode

simbolizar o lugar derradeiro no qual se conclui o processo de conhecimento

desenvolvido ao longo de toda a jornada.

O sentido da viagem de retorno empreendida pelo médico é, de alguma forma,

partir de uma casa paterna de férias (na Balaia, Algarve) em direção a outra casa

familiar (Praia das Maçãs, Lisboa), para a qual se volta deixando um significado

subliminar manifesto de recolhimento ou de retorno, não ao ventre materno, mas à casa

paterna. Para além da leitura de um novo movimento da cultura portuguesa, que são as

viagens de retorno à pátria, não podemos nos esquecer de que a viagem realizada por

esse personagem é, antes disso, uma viagem de regresso a uma casa pessoal paterna.

Como disse Octavio Paz, “para voltar à casa é preciso primeiro abandoná-la. Só o filho

pródigo é quem regressa” (PAZ, 1976: 260).

A parábola do filho pródigo, como se sabe, narra o conflito de um pai, com dois

filhos, que se desespera quando um deles decide sair de casa, mas regressa após acabar

97
com a fortuna que lhe cabia. A narrativa alegórica provoca uma nova imagem de pai,

alicerçada no acolhimento daquele que se alegra ao receber o filho que “estava morto, e

reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se”44.

A chegada à casa, a meio da noite, constitui o segmento final aguardado da

viagem, numa conversa com o pai que surge insolitamente, entre o onírico e o

fantástico, envolvidos pela fumaça do cachimbo, a ouvir o melro do quintal. Ao entrar

no seu quarto, já sonolento e embriagado, o protagonista ouve uma voz a dizer: “– Boa

noite” (CI: 312) e como não percebia o que se passava, justifica para si a voz que ouve:

É a viagem, pensei eu, andei quilómetros a mais, sozinho de mais, ao


longo deste dia, é o vodka do bar de Lisboa a trabalhar-me na cabeça,
são os meus ouvidos que zumbem de cansaço, é o protesto, o gemido,
a zanga, a revolta do meu corpo. É o vento do Algarve, o murmúrio
dos campos do Alentejo, o rumor das folhas e do mar que se
confundem, se combinam, se mesclam, num chamamento semelhante
a um apelo ciciado, e que cuido ouvir aqui, deitado no colchão, semi-
adormecido na manhã que cresce, sob a forma de uma voz que me
desperta (CI: 313).

A identificação com o pássaro, presente no romance, desde as representações de

doentes voláteis no pátio do hospital, assume os vários sentidos que dão conta da

possibilidade de voar. Uma delas é a existência de um melro, justamente, no

encerramento da narrativa, a anteceder o romance seguinte, Explicação dos Pássaros,

cujo tema central é a morte.

Ao fim dessa longa travessia, verificamos um caminhar para a morte. No

entanto, acreditamos que a atmosfera mortífera que se inscreve no livro é aquela que

aprova a vida até na morte (Cf. BATAILLE, 1987: 11). Seria, a nosso ver, uma leitura

ingênua acreditar na morte efetiva do protagonista na cena derradeira do romance. Nela,

ao contrário, vemos uma morte que tem muito mais de renascimento, de ganho de

perspectivas libertadoras, que de perda da vida ou fim definitivo:

44
BÍBLIA SAGRADA, 1969: 104 (S. Lucas, 15, 11-32).

98
Um torpor lento corria-me no interior dos membros, ao comprido dos
ossos, a empastar-me os músculos de uma moleza inerte. (...) e
sentia-me a pouco e pouco liberto do cansaço, do coração opresso,
dos pulmões aflitos, do sujo casulo da roupa, como se as solas dos
sapatos deixassem de pisar o chão e eu flutuasse, sem peso na
atmosfera livre e abstracta dos sonhos, de tal forma que mal me dei
conta de o meu pai se levantar, apagar a luz e dizer
– O melro
na sua voz tranquila (...) e me puxar o lençol, para cima da cabeça,
como um sudário (CI: 314-315).

O sudário, apesar de, etimologicamante, significar um pano usado para limpar o

suor, é, como se sabe, um lençol com que se envolve um cadáver. Ao falarmos em

sudário, vem-nos à mente o Sudário de Turim ou Santo Sudário, tecido que, segundo

alguns católicos, guarda a imagem de Jesus Cristo e é, por isso, uma relíquia cristã.

O protagonista do romance é envolvido por um lençol como (se fosse) uma

mortalha. Defendemos que a sua morte é simbólica, na medida em que é esse encontro

derradeiro com o pai, já que é o pai quem lhe puxa o lençol para cima da cabeça, que

conclui, enfim, o seu processo de interiorização e, conseqüentemente, de

conscientização. Explica Maria Alzira Seixo que

(...) o lençol da cama em que se deita é descrito como um sudário, e a


entrada no sono ao som do melro leva a uma levitação definitiva,
numa narrativa de voos, de saltos e de galopes, a caminho, não dos
longes, mas do encontro próximo do eu (SEIXO, 2002: 484-485).

Com efeito, pensamos que o percurso da narrativa encaminha para esse

encontro. Foi preciso esse encontro com seu pai, ambos a escutar o melro, para que,

numa viagem por Portugal, encontrasse a si mesmo. O protagonista, enfim, desenvolve

uma consciência sobre o papel profissional que desempenha, mas, não por isso, muda

de função; sai do estado de inconsciência, torpor ou inércia e é, fundamentalmente, o

encontro com o pai que valida, corrobora, coroa o seu processo. Esse personagem, às

vezes trazido à tona pela memória do protagonista, mostrou-se, afinal, incontornável na

99
narrativa, para que o protagonista, já em estado inconsciente, onírico e de embriaguez,

despertasse45.

45
Cf. CI: 313.

100
4. CONCLUSÃO

Não percebia o que se passava, explicava-me, porque tudo se


encontrava transtornado, esquisito, diferente, porque os rostos
familiares, as pessoas que conhecia melhor, o irmão, o tio, o padrinho
com quem vivia, tinham mudado subitamente, porque até a casa se
havia alterado embora a disposição dos móveis fosse a mesma, os
cheiros permanecessem idênticos, os estalos da madeira mantivessem
o rangido de outrora, gemendo no silêncio da noite o seu protesto
(CI: 310-311).

O tempo impõe um fim a este texto com a certeza inevitável de que muito ficou

por dizer sobre Conhecimento do Inferno. Esta certeza tem um duplo sentido de ser já

saudosa, mas, ao mesmo tempo, saudável, porque se nosso trabalho tivesse conseguido

esmiuçar toda a narrativa de António Lobo Antunes, estaríamos, pelo menos,

restringindo o poder da ficção, capaz de sugerir outros vieses de leitura, de apontar

tópicos esquecidos e, sobretudo, de envolver emocionalmente aqueles que, pela leitura,

acompanharam essa viagem de escrita. Escrever a viagem de pensamento, que ao fim

refletiu um processo de conscientização sobre o exercício fascista do poder, parece ter

sido a intenção do autor. Em contrapartida, o nosso intuito foi o de escrever sobre as

viagens inscritas no romance e, com elas, também navegar até ancorarmos nesse novo

eldorado, porto de chegada, o conhecimento.

Começamos a nos aproximar da obra de um autor que vai muito além das

problemáticas da guerra e da psiquiatria: fala, acima de tudo, da dimensão humana. Por

entendermos o livro como um retrato dessa condição, resgatamos a trajetória de um

personagem que busca um novo sentido de vida ao repensar e relembrar seu percurso.

Assim, percorremos os caminhos tortuosos da sua memória que, para além de recuperar

o passado, reinventou-o em discurso.

Navegamos pelas linhas da ficção e por meio delas embarcamos num navio de

loucos ancorado em Lisboa. O romance, ao realizar a crítica a uma prática psiquiátrica

101
caduca, já indicara o caminho de análise que passava necessariamente por uma teoria

que pretendesse reavaliar a psiquiatria clássica. Obviamente, concordamos com a

perspectiva do protagonista que questiona o exercício tirânico do poder e, por isso,

optamos por sustentar nosso discurso nos pensamentos que visam à liberdade e à

humanização dos procedimentos psiquiátricos.

Espera-se, num romance tradicional, que o herói espelhe os ideais de uma

comunidade e encarne os valores morais e ideológicos que tal comunidade valoriza.

Como se representasse o oposto da figura notabilizada por suas realizações, o

personagem António Lobo Antunes assume o estatuto de um anti-herói, uma vez que

põe em dúvida os valores sociais, éticos e políticos institucionalizados e aceitos pela

classe médica e pela sociedade, de modo geral. Em contrapartida, faz com seu discurso

um questionamento da farsa na qual vive, no hospital, na guerra, na família, no mundo.

É verdade que sua atitude não é, a priori, alterada, mas seu olhar e, sobretudo, sua

consciência são transformados. E, neste sentido, o personagem despertou em nós

alguma admiração por buscar uma consciência, indagando-se sobre a distorção do

mundo a partir dos limites muito tênues entre a sanidade e a loucura. Assim como os

homens levados ao front na África estavam incertos da finalidade da Guerra Colonial,

este personagem descobre-se o psiquiatra mais cheio de dúvidas com relação à validade

da Psiquiatria.

Estamos de acordo com a afirmativa de Maria Alzira Seixo de que “o

conhecimento do outro (...) leva ao reconhecimento da alienação (e por isso a

composição deste livro é tão feliz em homologar a luta colonial ao tratamento

psiquiátrico)” (SEIXO, 2002: 510), já que o livro expande uma crítica que faz

convergir, inteligentemente, o arsenal bélico e o psiquiátrico. É a reflexão sobre essas

experiências, a guerra colonial e a guerra psiquiátrica, a profissional e a pessoal, que

102
garante ao personagem o desenvolvimento de uma forma de resistência renovada a

favor da conquista da consciência.

Conhecimento do Inferno, ao falar de história e de sociedade, fala também de

cultura, fazendo conviver a música, a pintura, a cultura popular, a arquitetura, para além

da poesia e da literatura universais, estabelecendo uma interlocução entre as várias

possibilidades de produção cultural e literária, não só aquela produzida no século XX

em Portugal, mas com toda uma memória cultural e literária recuperada

intertextualmente pelo romance. Outras áreas do saber foram, igualmente, utilizadas na

tentativa de melhor compreender as referências presentes no livro. A história, a

sociologia, a filosofia, a psicanálise, a antropologia cumpriram o papel interpretativo no

nosso trabalho.

Compreendemos o romance não mais como uma estrutura fechada, que

privilegia os movimentos agônicos da existência humana, mas como uma narrativa

aberta, um recorte de uma realidade, retalhos de vida, monólogos que à primeira vista

não levam a lugar algum e que ignoram, propositalmente, possíveis desfechos. Podemos

considerar que a história desse romance, como disse Roxana Eminescu, é “uma fatia de

vida isolada artificialmente por uma moldura” (EMINESCU, 1983: 81).

A escrita do romance pode significar um angustiado gesto de autognose. O

protagonista é aquele que vai se dando conta, conforme o progredir da viagem, do peso

da própria angústia através de uma verborragia aparentemente desordenada que será, no

fim de contas, uma forma de autoconhecimento. E, ao adquirir seu próprio

conhecimento, acaba também por transmiti-lo por meio do discurso. Desse modo, o

romance pode ser entendido como um espaço a ser conhecido, uma viagem de dupla

aprendizagem, vale dizer, porque escritor e leitor participam desse processo de

(auto)conhecimento, como declarou o próprio autor: “saber ler é tão difícil como saber

103
escrever”46. O texto cumpre a função de objeto intermediador de experiência, quer pela

escrita, quer pela leitura, na sua dupla função de descoberta de si.

Com Conhecimento do Inferno, o autor ratifica a literatura como forma de

conhecimento, para quem a escreve e para quem a lê. Vimos, portanto, traçado um pacto

de leitura e de escrita no romance: “leitura e escrita são um transporte de dor e

contentamento, uma aventura de amor e escárnio não totalitários, pois dialecticamente

complementares” (SILVEIRA, 1986: 254). Nele, autor e leitor percorrem a mesma

viagem de conhecimento e imaginação. Assim, o percurso do leitor e o do escritor

conjugam, pela leitura, “uma espécie de felicidade de encontro amoroso (o amor da

expressão)” (SEIXO, 2002: 479).

Ao fim de sua jornada, o protagonista parece, de alguma maneira, transformado,

depois de uma penosa travessia – uma “peregrinação do indivíduo problemático rumo a

si mesmo” (LUKÁCS, 2000: 82) que pretendeu atingir o doloroso objetivo de conhecer

o inferno. E, se falamos de conhecimento, é apropriado concordar com Maria Alzira

Seixo ao dizer que “o romance é uma forma exemplar de constituição do conhecimento

em literatura” (1986: 70), e com Georg Lukács, quando afirma que

o romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade;


seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si
mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à
prova, encontrar a sua própria essência (LUKÁCS, 2000: 91).

Nesse sentido, Conhecimento do Inferno ofereceu-nos outra face do

conhecimento: faz parte de um novo imaginário, aquele que tem na metáfora do mar

interior o contraponto do tradicional “mar português”. Partindo de uma das imagens

fundacionais da cultura portuguesa, o romance ensina, ou ratifica a lição garrettiana, que

o homem moderno não mais navega no oceano aberto, mas interioriza-se nas terras do

46
ANTUNES, António Lobo. “Saber ler é tão difícil como saber escrever”. In: Diário de Notícias.
09.11.2004.

104
país e de si mesmo. A história recente privilegia, portanto, os viajantes do mar interior,

complementando a saga memorial da peregrinação de além-mar.

A metáfora da viagem pode ser entendida como símbolo de uma busca. O

protagonista, além de condutor da narrativa, é um ser complexo que procura um sentido

para a sua existência. Assim como as viagens por ele empreendidas, a escrita é também

uma aventura errante na qual esse personagem se projeta na tentativa de encontrar o

próprio lugar no mundo, porque, afinal, como disse Georg Lukács, “todo o errante

encontra sua pátria que o aguarda desde a eternidade” (LUKÁCS, 2000: 59).

A errância, navegação na terra, tem um fim: o da reflexão como procedimento

que corajosamente enfrenta a insipiência. Se ora falamos em errância, gostaríamos de

lembrar que “ler é também errar: vagar ao curso de intuição lúcida e razão

sobressaltada, aprender” (SILVEIRA, 1986: 253) e conhecer. E ao errarmos pelas

teorias, pelas leituras críticas e pela literatura, aprendemos a “lição de andar com os

escritores, esses seres de palavras” (SILVEIRA, 1986: 253) e com os seres de papel, os

personagens.

Por sabermos que outras perspectivas de análise existem no romance,

inscrevemos nossa leitura como um dos caminhos possíveis para o estudo de

Conhecimento do Inferno. Com efeito, estamos certos de que o percurso que traçamos

foi-nos essencial para que, ao viajarmos ao extremo desse ser de papel, também

viajássemos ao nosso avesso.

105
5. BIBLIOGRAFIA

1. ADORNO, Theodor. Notas de Literatura. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962.

2. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno. São Paulo: Ed. 34, 1998.

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1983.

6. ______. As Naus. Lisboa: Publicações Dom Quixote/ Círculo de Leitores, 1988.

7. ______. Livro de Crónicas. 4. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.

8. ______. Segundo Livro de Crónicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.

9. ______. Apontar com o dedo o centro da terra. In: POMAR, Júlio. Tratado Dito
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10. ______. D’este viver aqui neste papel descripto. Cartas da guerra. Organização
de Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom
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