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2008
VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira
_________________________________________________
Profa. Doutora Silvana Maria Pessôa de Oliveira – UFMG
_________________________________________________
Profa. Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Dalva Maria Calvão da Silva – UFF, Suplente
_________________________________________________
Profa. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Letras
CDD: 869.37
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VIAGEM AO AVESSO DE SI OU O CONHECIMENTO DO INFERNO
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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RÉSUMÉ
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
6
À memória dos meus pais e meu irmão.
7
Agradeço
à Tia Tânia,
presença constante na minha vida
e ao Tio Walter,
pelas histórias de Angola e pelos tremoços
ao Renato,
pela heroicidade de todo dia
a CAPES,
pela bolsa de fomento que possibilitou a realização desta
pesquisa.
8
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação de um livro.
1.2. Roteiro para a viagem crítica.
2. ABRIL: PALAVRA-MOTOR
2.1. Portugal depois de Abril.
2.2. O romance depois de Abril.
3. NA ESTRADA
3.1. Viagem progressiva no espaço.
3.1.1. Travessias metafóricas do inferno.
3.1.2. A Guerra Colonial ou exílio na África.
3.1.3. A Nau dos Loucos ou exílio na Pátria.
3.2. Viagem regressiva no tempo.
3.2.1. O encontro com o pai.
4. CONCLUSÃO
5. BIBLIOGRAFIA
9
Pensar a mão, pensar com a mão. Sabendo, podemos
esquecer que sabemos para saber melhor. Mais no
caroço, mais por dentro. E fazer o mundo por detrás.
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1. INTRODUÇÃO
Sou médico sou médico sou médico, tenho trinta anos, uma
filha, cheguei da guerra, comprei um automóvel barato há dois
meses, escrevo poemas e romances que não publico nunca, dói-
me um siso de cima e vou ser psiquiatra, entender as pessoas,
perceber o seu desespero e a sua angústia, tranquilizá-las com o
meu sorriso competente de sacerdote laico manejando as hóstias
das pastilhas em eucaristias químicas (...) (CI: 56-57).
premiado e condecorado. Desde a publicação do seu primeiro livro, o autor inicia uma
volumes que, atualmente, podem ser lidas na revista Visão e no diário espanhol El País.
cus de Judas, 1979; Conhecimento do inferno, 1980; Explicação dos pássaros, 1981;
Fado alexandrino, 1983; Auto dos danados, 1985; As naus, 1988; Tratado das paixões
da alma, 1990; A ordem natural das coisas, 1992; A morte de Carlos Gardel, 1994; A
1997; Livro de crónicas, 1998; Exortação aos crocodilos, 1999; Não entres tão
depressa nessa noite escura, 2000; Que farei quando tudo arde?, 2001; Segundo livro
de crónicas, 2002; Letrinhas de cantigas, 2002; Apontar com o dedo o centro da terra
(em parceria com Júlio Pomar), 2002; Boa tarde às coisas aqui embaixo, 2003; Eu hei-
de amar uma pedra, 2004; D’este viver aqui neste papel descripto – Cartas da Guerra
(organizado por Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes), 2005; Terceiro livro
11
de crónicas, 2006; Ontem não te vi em Babilónia, 2006; O meu nome é legião, 2007;
Quem me assassinou para que eu seja tão doce? 2008; O arquipélago da insónia, 2008.
romance injustamente pouco amado e mal julgado, quer por alguma crítica, quer pelo
autor1. O livro reúne formas e temas originais para a Literatura Portuguesa, unindo à
face lírica2 da narrativa uma realidade grotesca, além de combinar com mestria os vieses
obsoleta e desumana que, a partir dessa crítica, começa a apresentar outras que atingem
O romance, escrito por volta de 1978, é publicado em 1980 pela Editora Vega,
ano em que António Lobo Antunes se tornou, por pouco tempo, militante da APU
Portugal, sentido impulsionado pela Revolução dos Cravos. Desse modo, acreditamos
literatura portuguesa contemporânea tem traçado desde a década de 80, quando uma
sensível preocupação de reescrever a pátria passa a ser o grande objetivo daqueles que
conjunto de escrita com Memória de Elefante e Os Cus de Judas. São três textos
1
“(...) O Conhecimento do Inferno, que é provavelmente o mais fraco deles todos, é onde começam a
aparecer, ainda que timidamente, todos os processos que eu depois comecei a tentar desenvolver nos
livros a seguir”, disse António Lobo Antunes, em Ler, nº37, 1997.
2
Como veremos no capítulo 2.2. O romance depois de Abril.
12
a experiências humanas (a relação amorosa, a Guerra Colonial, o exercício da
psiquiatria) e, para além dos temas, uma insistência em situações e em personagens que
sobre a questão das temáticas que enredam os três primeiros romances, António Lobo
Antunes responde:
Nos três primeiros havia três temas que me interessava tratar. Era o
tema da guerra de África, vivido por mim de uma maneira muito
forte. Era o tema do hospital psiquiátrico como universo
concentracionário (...). O terceiro tema era, não o amor, mas a
incapacidade de amar, a solidão. No fundo, eram estes três temas que
me interessavam. A partir daqui, tinha a intenção de que em cada um
desses livros houvesse um tema que fosse mais destacado, para ser
como que um leit motiv que levasse as pessoas a situarem-se (apud
SEIXO, 2002: 500).
Algarve à Praia das Maçãs, que abrange parte da tarde e parte da noite de um único dia.
Elefante é composto por uma viagem de carro por Lisboa e por várias paragens que se
noite.
o autor considera o ciclo de aprendizagem3. A trilogia inicial tem ainda em comum uma
desenvolve durante uma viagem solitária. Como os três primeiros romances de António
3
Cf. SPÁNKOVÁ, Silvie. “Reflexões sobre o estatuto da personagem feminina nos romances de António
Lobo Antunes” In: CABRAL, Eunice. A escrita e o mundo em António Lobo Atunes. Actas do Colóquio
Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.241.
13
Lobo Antunes constituem monólogos, podemos afirmar que o embate central destes
personagens – que, aliás, estão tão intrinsecamente ligados, que compõem talvez o
datas fornecidas.
consigo três conceitos que dialogam entre si. São eles: memória, aprendizagem e
imprescindível.
que, ao longo de quase trinta anos de carreira literária, já se somam dezenove romances.
4
Cf. “a dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2003: 43).
5
Cf. epígrafe do romance: “(...) the unnecessary knowledge of hell” (CI, p.9).
14
É a partir deste primeiro volume que os demais se desdobram, marcados pela reiteração
doença. Mas, da trilogia inicial, Conhecimento do Inferno é, talvez, o que vai mais
fundo no sentido polêmico de ação e contestação dos dois infernos nomeados, a Guerra
partir do cenário do “mar de cartão”6 do Algarve até a Praia das Maçãs que é, ao mesmo
tempo, uma subida, ou uma saída do inferno, e um retorno insistente à casa paterna. É
com o mundo, especialmente com o ambiente profissional, e vai se dando conta de uma
algumas horas, desde a tarde de um dia até o momento que antecede o alvorecer do dia
seguinte, e as histórias que se situam fora deste tempo são apresentadas em analepse.
Messines, Santana, Aljustrel, Canal Caveira, Lisboa. Cada uma dessas paragens evoca
6
Cf. CI, p. 11: “O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro (...)”.
15
narrativa processa-se de acordo com o fluxo da consciência do protagonista e o seu
leitor.
Cada capítulo é iniciado por uma espécie de prólogo7, que antecede os episódios,
país constituem prólogos que vão, por alguma semelhança, evocar situações da vida do
protagonista. Cada capítulo centra-se num ponto geográfico da viagem que, a partir
Nesse livro de viagens, viajar tem muito mais a ver com percorrer os espaços (ou
descrições, sobretudo as dos inícios dos capítulos, não são apenas exposição das
seguem:
7
Prólogo, no sentido exposto por Aristóteles, na Poética, na qual ficam estabelecidas as partes
constituintes da tragédia. Dentre as quais, o prólogo é uma parte completa que antecede a entrada do
episódio principal (Cf. ARISTÓTELES, 1987: 211).
16
de mulher. Como na Urgência do Hospital Miguel Bombarda, onde
os rostos se engelham e os vultos flutuam (...) (CI: 80).
oblíquo – “as chaminés que se diriam construídas de cola e paus de fósforo por asilados
habilidosos (...) faziam-no8 sentir-se como os bonecos de açúcar nos bolos de noiva”
Como afirma Maria Alzira Seixo (Cf. SEIXO, 1986: 24), o que percebemos é
que o personagem pode ser escritor e o escritor pode ser personagem, do que se constata
uma dupla alteridade. Neste sentido, o protagonista, que formula um sentido no seu
sentido geográfico que ele empreende é o do Ribatejo, o que lhe sanciona uma outra
entretecem uma relação vertiginosa com o nome António, porque é incomum encontrar
no interior do livro o nome próprio gravado na capa: é o nome real que ganha status
8
Os grifos são nossos.
9
Cf. epígrafe desta seção.
17
exibicionista, a autobiografia significa a “colocação do outro no lugar do mesmo (...) e
ficção que espelha a realidade, o que possibilita revelar um ambiente propício para a
no qual a memória ocupa um espaço que é preciso elucidar, cujas partes compõem
Fernando Pessoa, poema cuja temática é o fingimento como veracidade. Diz o poeta de
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
(...)
apenas alguém que sente, mas é, sobretudo, aquele que transfigura uma dor “que
deveras sente” em dor escrita e, por isso, fictícia. À poesia, portanto, cabe não o sentido
maneira, o ofício de ator, que, ao representar, exprime não as suas emoções, mas as do
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(SILVEIRA, 1986: 254). Quanto ao leitor, este só tem acesso à dor escrita que resultou
acordo com seus sentidos e suas experiências, podendo sua leitura nem sempre
é recurso que se quer como criador de um efeito de real, o que, no entanto, não faz desse
através da linguagem, esta, por ser um jogo de significados arbitrários, não pode
de António Lobo Antunes não se quer como sinônimo do real, mas como possibilidade
de significação latente. Como havia ensinado Fernando Pessoa, o escritor fala sua
simula parecer real aquilo que é fingimento, assumindo uma confusão, muitas vezes
propositada, entre o real e o fictício. É como se ele fingisse que não finge, numa
discurso que se quer propositadamente composto, de algum modo, pelo real e, claro,
pelo ficcional. Constatamos, enfim, uma leitura de mão dupla do fazer narrativo nesse
romance: ele é, antes de tudo, uma criação imaginativa que desenvolve uma
espaço que, por se saber fantasioso, é utilizado como artimanha para inscrever um
19
A cabeça do Gouveia, que aparece na porta do gabinete do psiquiatra, o faz recordar das
conheceu o escritor Luiz Pacheco10, que chega ao bar bêbado e é ridicularizado pelas
mulheres e pelos homens “sem talento da Cervejaria Trindade”, que “riam-se-lhe nas
costas o azedume de leite podre da inveja”. Eis a cena em que nos é dado a conhecer o
nome do protagonista:
ele está, na verdade, estabelecendo um jogo para indicar o tecido entre realidade e
declaradamente inscrito nas páginas da ficção. Como adverte Maria Alzira Seixo (Cf.
SEIXO, 2002: 497), os romances narrados em primeira pessoa nem sempre estão muito
sensibilidades biografadas.
10
Luiz Pacheco, escritor português, também ganha status de personagem nesta cena do romance.
20
indivíduo solitário que realiza seu processo de conhecimento; o do cão, o diabo que vive
meu país é o que o mar não quer” (BELO, 2000: 154) – já recuperado por António Lobo
oceano e os habitantes deste país estão a catar, a recolher os cacos das memórias e dos
esquecimentos que lhes pertencem, cacos perdidos no mar por eles já tanto navegado. A
alguma forma, o romance elege a pátria como assunto de literatura, uma vez que,
procurando a resposta para a pergunta “quem sou eu?”, estamos igualmente diante da
António Lobo Antunes narra, portanto, duas errâncias: uma pessoal e outra
nacional. Sobre esse duplo aspecto, diz-nos Jacques Le Goff que “a verdadeira história é
GOFF, 1984: 212). Este pensamento vem concordar com as concepções postuladas por
11
O texto referido é Garrett e Camilo: românticos heterodoxos? (s/d: 61). Neste texto que privilegia o
estudo do Romantismo em Portugal, Cleonice Berardinelli explica os conceitos de heterodoxia e
ortodoxia, referindo-os, respectivamente, a Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. Tomamos por
empréstimo o seu pensamento quanto à noção de autognose (do eu e da pátria).
21
Johannes Hessen: “No se trata de una alternativa (o el uno, o el otro), sino de una
cumulativa (tanto el uno como el otro). La filosofía es ambas cosas: una concepción del
terceira pessoa cede lugar à primeira, sem que o narrador faça algum tipo de preparação.
quanto à pessoa narrativa e que pode abranger ambas as pessoas, primeira e terceira.
Este uso um tanto arbitrário das pessoas discursivas nos leva a crer na bipartição do
sujeito: ele é, ao mesmo tempo, o que pensa e o que é pensado. Trata-se do indivíduo
das questões do livro posterior, Explicação dos Pássaros, estão esboçadas nos três
considerada obra intermediária, porque encerra uma trilogia que se quer autobiográfica
e antecede o livro que inicia uma fase mais ficcional da obra de António Lobo
Antunes14. Não só por isso, mas a terceira das narrativas aponta para o campo
12
Veremos outro sentido para “outrado” no capítulo 3.1.2.
13
Os grifos são nossos.
14
Cf. CABRAL, Eunice. “Experiências de Alteridade (A Guerra Colonial, A Revolução de Abril, o
Manicómio e a Família)” In: A escrita e o mundo em António Lobo Atunes. Actas do Colóquio
Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 372.
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metafórico que se desenvolve no próximo livro, já que o Conhecimento do Inferno está
Entrei no hospital, pensou ele, para uma viagem tão sem fim como
esta viagem, como o mar das oliveiras aproximando-se e afastando-
se, cintilante, nas trevas, agitado por ciciados cortejos de fantasmas
(CI: 142).
estabelecido por Mikhail Bakhtin15. Desse modo, tentaremos analisar a narrativa a partir
15
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). 3 ed. São Paulo:
UNESP, 1993.
23
alguns dos principais eventos que nortearam a Revolução dos Cravos, de modo que se
no século XX os esforços de proteção de uma Lisboa que, para Cesário Verde, gera os
“focos de infecção”16 e de uma nação que, para Oliveira Martins, se configura como
Colonial, que pode ser entendido como lugar sintomático capaz de inscrever a metáfora
da doença para simbolizar o percurso histórico do país. Para isso, contaremos com a
este é um dos livros mais estudados do autor, mas não nos é indiferente a temática do
16
Cf. “O sentimento dum ocidental” (VERDE, 2003: 72).
17
Apud RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: império, guerra colonial e pós-
colonialismo. Porto, Edições Afrontamento, 2004, p. 261.
18
Conferir a Dissertação de Mestrado O Santuário de Judas, Portugal entre a existência e a linguagem,
de Gumercinda Nascimento Gonda (1988).
24
pós-colonialismo que se desenvolve em outros dos seus romances, dentre eles o
romance tende a envolver emocionalmente os leitores dessa longa viagem solitária que,
pai.
19
HESSEN, Johannes. Teoría del conocimiento. Madrid: Revista de Occidente, 1929.
25
2. ABRIL: PALAVRA-MOTOR
Partimos do Abril colorido de Maria Alzira Seixo, para quem Abril significa
momento da festa do fim do regime salazarista, da saída das pessoas à rua, mas faz uma
voz de uma amarga lucidez que, apesar de desencantado com os rumos da Revolução,
incômoda, uma vez que desestabiliza a Revolução enquanto mito e, ao mesmo tempo,
complexo do que à primeira vista aparenta ser, é aquele que questiona os caminhos, nem
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2.1. Portugal depois de Abril.
ricos”, esboça o que ele chama de essência da realidade portuguesa, cuja mentalidade é,
desde o seu começo, uma mentalidade de ricos imaginários que, ao longo de oito
Boaventura de Sousa Santos, fica concordado que Portugal, sendo um dos países menos
colonizador e colonizado.
27
outro, aventurada pelo mar aberto. Valendo-se da posição geográfica privilegiada,
preterir a imensidão do oceano pela sua pequena estrada, a trocar o domínio do outro
pelo conhecimento de si. A partir dos conceitos de Walter Benjamin, no famoso ensaio
Em uma das suas onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal,
Boaventura de Sousa Santos afirma que “em 25 de Abril de 1974 Portugal era o país
duradouro império colonial europeu” (SANTOS, 1999: 58). Na década que se seguiu à
Comunidade Européia:
28
Assim, Portugal regressa à sua territorialidade no momento da “desterritorialização” da
Mas isso são conseqüências de uma história que começou bem antes. Em 1928,
economista competente a pai necessário não demorou. A partir daí, o ditador, ainda na
década de 20, inicia um governo que se estendeu até 1974. Mas, se o país já vinha do
Espanha havia acabado nos finais do século XIX. Franceses e portugueses estenderam-
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autoritário, cujo regime originou-se nas experiências ditatoriais européias dos finais dos
anos vinte. A Revolução Portuguesa foi feita por jovens oficiais das Forças Armadas,
Jacques Le Goff afirma que “o tema da ruína e decadência dos impérios serviu,
1984: 401). Entretanto, se, por um lado, a descolonização marca a decadência ou o fim
de um período de cinco séculos de expansão portuguesa pelo mundo, por outro, ela é
também sinal do término de uma época de decadência que se agravara no século XIX.
Como disse Le Goff, “a decadência é uma fase necessária para a renovação” (1984:
418).
uma metáfora, no sentido de que “a sua decadência [a dos Estados] não está marcada,
como a nossa, pelo declínio dos anos; o seu envelhecimento é uma quimera” (1984:
405), muitas vezes impulsionada pela guerra, modelo de mudança da história, grande
Goff, o critério político, aquele que se refere ao desaparecimento dos Estados e dos
30
geral é a precariedade das instituições” (1984: 416).
Segundo Le Goff, “o Estado pode morrer de duas maneiras: uma é a ruína que
lhe vem do exterior; a outra, oposta, é a crise interna. A primeira é de difícil previsão e a
inevitável desejo de independência das colônias motivadas pelas nações vizinhas tão
império implodiu.
gastasse mais do que devia com a manutenção da Guerra Colonial. No entanto, dez anos
insistir numa guerra distorcida, Portugal começou a ficar mal visto pela comunidade
grande beneficiária da transformação econômica foi a classe média, uma nova burguesia
31
A crise final do Estado Novo teve início em 1969, quando o regime viu-se
sobretudo, o regresso maciço dos portugueses que estavam na África. Aos poucos, o
base material da sua reprodução ideológica. A guerra era uma das medidas propostas
aparelho militar, foi o impasse de o regime não conseguir vencer a guerra no Ultramar e
de não poder perdê-la que levou o aparelho militar a transformar o problema técnico da
africanas. Num mundo em que a Guerra do Vietnã ofusca uma outra guerra feita por
pobres reais e ricos imaginários, a África, ou, ao menos, as então colônias portuguesas
significaram, durante a Guerra Fria, um excelente mercado para a venda de armas. Pelas
palavras do próprio Lobo Antunes, a Guerra Colonial Portuguesa era, pois, “uma guerra
de pobres”: “Era um jovem recém saído da Faculdade mas ali tinha de fazer de tudo.
Era uma guerra de pobres. Não havia meios de transporte. Só havia um médico por cada
32
companhia de combate. Faltava de tudo” (BLANCO, 2002: 49).
combater (Cf. MARQUES, 1986: 600). Parece que os dados que encontramos na sua
mulher Maria José, António Lobo Antunes dá o seu depoimento sobre a guerra, de perto
vivida:
se, em 1974, cair por terra um regime totalitário, fascista e sufocante. O 25 de Abril
manutenção da revolução teve o seu custo. Portugal passou por várias modificações em
33
um curto período, como as disputas internas que punham em risco a vitória da
mas também o imaginário simbólico de um país que, por muito tempo, optou pela
partida como direção. No entanto, nesse momento, era preciso reconstruir sua
imposto ao País em 28 de Maio de 1926, veio tornar tudo possível, abrir todos os
caminhos: para o melhor, mas também para o pior” (GODINHO, 1979: 30). No fim de
1975, Portugal era já um novo país. Em termos positivos, a mudança contou com a
Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, o fim da guerra e o regresso
com quase todos os Estados do mundo etc. Entretanto, a perspectiva negativa foi
34
igualmente impressionante e refletia uma situação econômica e financeira
(sem contar com os retornados das ex-colônias), uma inflação acelerada e incontrolável,
foi, antes de tudo, uma Revolução de protesto contra a condição das Forças Armadas e a
financeiro, anistia aos presos políticos, abolição das censuras, saneamento das forças
armadas e militarizadas.
criar um Portugal novo” (MARQUES, 1986: 597). Mas, sob outro ângulo, assistia-se a
guiava o país. Mas se, em 1926, passava-se a governar em ditadura repressiva, em 1974,
quarenta e oito anos submerso por uma ditadura implacável, operou-se com um golpe
Boaventura de Sousa Santos esclarece que “as forças armadas do mesmo país podem,
fase de opções. Após quase meio século de ditadura, repressão e proibições de toda
35
ordem, os novos dirigentes criaram práticas pedagógicas revolucionárias que
procurassem lidar com a liberdade. No entanto, como disse António Lobo Antunes, a
liberdade era preciso ser aprendida. Sobre esta questão, vale conferir o trecho “A
Como disse Maria Alzira Seixo, “o essencial desta revolução que estamos
mentalidade e de conduta que daí advêm” (SEIXO, 1977: 366). Mas, conforme a análise
36
de decomposição do antigo regime do que marcara uma revolução de raiz nas estruturas
Revolução dos Cravos foi, sobretudo, uma revolução contra a Guerra Colonial
empreendida pelas próprias forças armadas, mas que, sem dúvida, não teria ocorrido
central foi pôr fim à luta armada e repatriar os milhares de militares que precisavam
voltar da África.
37
O resultado da Revolução, como define Eduardo Lourenço, teve a ver com o
para compor uma civilização consumista e globalizada. Por ter constituído uma ruptura
e marcado uma fronteira entre passado e presente, entre “antes” e “depois”, na história
mais ricos da História contemporânea de Portugal, e a sua análise está, como afirmam
alguns historiadores e sociólogos, ainda por fazer. Este quadro histórico de imprecisão e
Há, como vimos, um divisor na História de Portugal que não pode ser esquecido
38
portuguesa, fazendo com que a literatura tomasse, também ela, novos sentidos. No
romance estar, de maneira geral, tão comprometida com a realidade histórica. Por isso,
histórico mais importante dos últimos tempos, em Portugal, refletiu-se na sua literatura.
Percebemos que uma das mais destacadas direções que a literatura produzida a
romance exija narração, e Walter Benjamin anunciara que “a arte de narrar está em vias
de extinção” (BENJAMIN, 1994: 197), o que nos provoca a convicção de uma crise do
– um modelo de romance formulado a partir da idéia de que “ser homem significa ser
20
Consideramos romance português contemporâneo aquele produzido após o 25 de Abril de 1974, ou
mais especificamente, a partir da década de 80.
21
Segundo Adorno, “(...) la posición del narrador, la cual se caracteriza hoy por una paradoja : es
imposible narrar, mientras que la forma de la novela exige narración’’ (1962: 45). Sabemos que o
pensamento do filósofo é referente ao período posterior à Segunda Guerra Mundial e que a crítica
elaborada sobre o romance é aquele como forma literária específica da época burguesa. Contudo,
acreditamos que as afirmações contextualizadas de ambos os filósofos – Adorno e Benjamin – podem ser
consideradas em nosso estudo, no qual percebemos um novo método de narração, aliás, como o próprio
Lobo Antunes apontara em nossa epígrafe (Cf. epígrafe da seção 2.2.).
39
solitário” (LUKÁCS, 2000: 34). Para Georg Lukács22, cada personagem de romance
nasce da solidão
Daí que se possa afirmar que a ficção portuguesa fez da Revolução um de seus
temas maiores, mas, igualmente, operou uma revolução formal, a ponto de ser possível
hipótese é a de que há um tipo de romance que surge nesse momento: aquele escrito em
primeira pessoa, que valoriza formas oriundas da escrita tradicional (crônicas, diários,
texto, ao transpor os limites entre prosa e poesia. O que percebemos com a influência do
entre poesia e prosa. Assim como se fala em influência da prosa na poesia, o romance
expressão por associações imagéticas etc. Assim, vemos estabelecida uma certa
22
Lembramos as considerações de Lukács sobre a “solidão insuperável” do homem, porque acreditamos
que o Conhecimento do Inferno seja um romance caracterizado pela existência de um protagonista
“sozinho de mais” (CI: 313). Segundo a classificação tipológica de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a
narrativa de António Lobo Antunes seria um texto “propenso para o subjectivismo lírico e para o tom
confessional” (SILVA, 1979: 262).
40
Inferno. No livro, há alguma simbiose poética, uma interação do que há de mais elevado
e comovente nas pessoas e nas coisas com passagens prosaicas, algumas até grotescas,
expressão poética, trabalho de caráter lírico, com discurso de índole metafórica, traço
“possíveis textos poemáticos” (SEIXO, 2002: 528). Talvez, por isso, os romances da
1993: 55). Um dos processos de assimilação do poético pelo romance de António Lobo
Antunes é aquele que se desenvolve por frases, cada qual num capítulo, que funcionam
Revolução são herdeiros deste movimento que surgiu na literatura portuguesa a partir da
década de 40.
contra uma postura alienada diante de um Portugal sob o fascismo. Por isso, propuseram
esqueceram de que o que escreviam era efetivamente literatura e até esta, revolucionária
41
realista cede espaço a um processo de reflexão sobre o sujeito histórico português, que
outras palavras, o romance depois de Abril, ao fazer “várias (...) descidas aos infernos
valor formal da arte literária: são discursos que, de maneira geral, recriam esteticamente
ser explicados pelo contexto histórico, mas que interessam “precisamente porque
sobre o passado, tanto pessoal quanto nacional. Estes dois movimentos refletem, afinal,
narrativa que lê e reescreve a História, já que a escrita literária acaba por ser um modo
23
A este propósito, vale rever a célebre nota introdutória de Alves Redol a Gaibéus (1939): “Este
romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário
humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem” (REDOL, 1945: 10 apud
SILVEIRA, 1986: 31).
42
de repensar o passado. O romance português contemporâneo não só procura a
explicação do passado, mas busca uma solução para o futuro. Persistir no passado pode
ser uma forma de lidar com os traumas não resolvidos e olhar para o futuro, uma
possibilidade de refazê-lo.
A Revolução de Abril convoca, por assim dizer, três formas do imaginário: ela
foi, ao mesmo tempo, real, sonhada e mítica. Para as gerações que a sonharam, a
suas obras sobre uma “revolução mítica” (Cf. LOURENÇO, 1984: 8). Por conta da
Eduardo Lourenço, a verdadeira escrita da época da Revolução não podia vir das
gerações que a viviam com os olhos encharcados de passado, como os autores das
literário, já que pretende dar conta não da história que foi, mas da que poderia ter sido.
“Uma história é uma narração”, disse Le Goff, ”verdadeira ou falsa, com base na
‘realidade histórica’ ou puramente imaginária” (LE GOFF, 1984: 158). Esta é, talvez, a
que aconteceu e o segundo, o que poderia ter acontecido. Trata-se, pois, da distinção
43
escreverem verso ou prosa (...) diferem, sim, em que diz um as coisas
que sucederam, e outro as que poderiam suceder (ARISTÓTELES,
1987: 209).
suporte para a criação de metáforas. António Lobo Antunes é um dos mais claros
exemplos de autores da literatura portuguesa atual, e o que aqui nos interessa, que não
ficcional. É o que pensa Jeanne Marie Gagnebin, ao dizer que “a tarefa do escritor não
contingências do tempo em uma metáfora’” (apud BENJAMIN, 1994: 16), o que faz do
que pode ser considerada um vasto quadro do Portugal do século XX e da sua transição
para o século XXI: A obra de Lobo Antunes “é, naturalmente, universal, mas a
caducidade das coisas, respira na obra de Lobo Antunes em simbiose com a melancolia
situações e para fazer a crítica não só do regime despótico, mas também da Revolução
44
tempo vivido e como denúncia dele.
salazarista foi capaz de tolher a liberdade da escrita, não seria de espantar que o que
não estava nas gavetas dos gabinetes, mantinha-se nas gavetas da memória. O fato é que
com a luz de Abril, muitos escritos também passaram a vir a lume. Poucos anos após a
Revolução, as obras que integram este momento histórico ao imaginário português vêm
anunciar a memória do tempo ditatorial e a saga dos novos tempos. Boa parte da ficção
temas que foram conseqüências do governo inflexível de Salazar. Se, para além de
o exílio e a imigração. Para Eduardo Lourenço, António Lobo Antunes é um dos autores
da “geração literária da Revolução” que “dará desse apetite [de dizer tudo], em termos
Já dissemos que seus três primeiros romances formam uma trilogia, na qual cada
uma das narrativas dá seguimento à outra. Como se seguisse um fio contínuo, o final de
“indiferença puramente mecânica que [o] exclui” (ANTUNES, 2003: 239), depois de
passados “vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas”
(ANTUNES, 2003: 238), a se despedir dos amigos que fizera na guerra e a se separar
“em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço”
45
Como se retomasse o fio interrompido com o desfecho da narrativa, o romance
férias no Algarve, a pegar a estrada e iniciar uma longa travessia em direção a Lisboa.
46
3. NA ESTRADA
como aponta o teórico, tende a atravessar o país natal e não um mundo estranho (Cf.
Conhecimento do Inferno, que, ao passar por algumas cidades nacionais, evoca outros
social e público com o que é biográfico, subjetivo, pessoal. A estrada não é apenas um
lugar que condensa os traços dos decursos do tempo no espaço. Ela é, efetivamente, o
conscientização. É também, por assim dizer, o palco das cenas figurativas observadas
com a voz do narrador a denunciar uma realidade teatral: “O mar do Algarve é feito de
cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem” (CI: 11). A partir daí,
patética de actor” (CI: 12) vêm afirmar a crítica à inautenticidade que permeará a
47
narrativa, apontando criticamente o mau gosto de um mundo postiço. Na cena que abre
guerra” (CI: 14) –, tudo é falso “e os ingleses não percebem” (CI: 11). É significativo
que sejam os ingleses os únicos a não perceberem que “o mar do Algarve é feito de
cartão”, como se o narrador inscrevesse, do seu modo, uma crítica devida a uma história
ressentida com a Inglaterra, que culminou com o Ultimatum de 1890. Por isso, o
ingleses são “pessoas de plástico [que] passavam férias de plástico dos ricos, sob
árvores semelhantes a grinaldas de papel de seda que a pupila verde da piscina reflectia
expatriado, por exemplo, assume traços postiços e, nesse sentido, é tão fake quanto o
Como podemos notar, a escrita busca uma autenticidade radical para se opor às
máscaras, atrás das quais o privilégio dos ricos, dos poderosos e dos saudáveis esconde
1980: 16). Nossa hipótese é a de que esse romance é construído a partir de uma carga
48
sensível à teatralidade inerente às relações humanas numa sociedade, até pouco tempo,
17). Nesta sociedade, os dados estão de tal modo falseados que aqueles que ousam
genuíno soterrado sob a superfície de plástico, que é o mesmo que dizer, por baixo de
narrador sabe que tem razão e que os sofrimentos que suscita não são sofrimentos
Lourenço ao apontar o abismo que existe entre o que se é e que se deseja ser:
49
O que é necessário é uma autêntica psicanálise do nosso
comportamento global, um exame sem complacências que nos
devolva ao nosso ser profundo ou para ele nos encaminhe ao
arrancar-nos as máscaras que nós confundimos com o rosto
verdadeiro (LOURENÇO, 1978: 20).
Um bom exemplo do que diz o filósofo é a cena que abre o romance: “O mar do
Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem” (CI:
11). É como se fosse uma reflexão crítica sobre a trajetória de um país que se manteve
(LOURENÇO, 1978: 22). O colosso português aproxima-se mais, sob este ponto de
vista, daquilo que se deseja ser que daquilo que se efetivamente é. Por isso, nesse país
(Cf. HESSEN, 1929: 40) responde que o conceito de “verdade” está intrinsecamente ligado
relação entre o conteúdo do pensamento e a imagem; por outras palavras, uma relação
entre aparência e essência. Nesse sentido, é possível que se diga que a trajetória do
autenticidade das coisas. Eduardo Lourenço diz-nos que “sob a busca de dignidade e
autenticidade humanas, o escritor persegue uma outra, aquela que só a escrita, loucura
50
protagonista empreende, porque, como afirmou Mikhail Bakhtin, “na estrada (...)
cruzam-se num único ponto espacial e temporal os caminhos espaço-temporais das mais
evocados pela memória do narrador que passeia mentalmente pelos espaços, nem
sempre agradáveis, por ele já habitados, e pelos tempos que remontam, de alguma
a quem chamou “os homens distorcidos”, do modo como procura reconhecer o percurso
aqui na própria observação do doente, que diz: ‘Observo o mundo distorcido’” (SEIXO,
2002: 86).
51
3.1.1.Travessias metafóricas do inferno.
Quando Dante construiu seu Inferno, já havia uma longa tradição literária de
viagens às regiões subterrâneas habitadas pelos mortos. Antes dele, Homero e Virgílio
pode ser entendida como uma representação abstrata e metafórica da danação humana
ficção que se estabelece, de uma maneira geral, em todo tipo de literatura funda uma
não é mais feito de monstros ou de diabos com tridentes, mas de absurdos. E são, pois,
na ficção.
Da época clássica aos dias atuais, o inferno continua sendo tema recorrente na
Dentre eles, as portas que dão acesso ao inferno na literatura do século XX são a
cidades industriais.
concerto de infernos”, disse Arthur Rimbaud (2007: 47), cujo livro, Uma temporada no
52
inferno, é marcado pela obsessão da maldição. Os séculos passados comunicaram
largamente o inferno como o pesadelo para além da morte, muito ligado à cultura cristã.
descobre que o inferno está nele. O inferno é, neste sentido, o eu que se fecha numa
célula hermética, habitada pela angústia, que surge pelo fato de esse inferno ser bem
contemporâneos são uma espécie de prisão perpétua, onde se encarcera a raça humana,
Ronaldo Lima Lins: “A partir do século XIX, a grande viagem realizada pela criação
literária em seu conjunto indicará, ao mesmo tempo, uma descida ao inferno, um inferno
que arderá fora e dentro de nós” (LINS, 1990: 211). E: “O inferno, afinal, não se situava
no além. Estava nas ruas, em casa, nas pessoas, em toda parte” (LINS, 1990: 210).
24
Em concordância com Georges Minois, chamamos aqui “inferno tradicional” aquele ligado às religiões,
que localiza o inferno no além, em oposição aos “infernos modernos”, representações dos fantasmas e das
concepções do mal do homem moderno, que está em todo lugar, fora e dentro de nós. O inferno
tradicional, especialmente o cristão, ocupa o lugar central na história dos infernos, porque foi a forma
mais organizada de todos os imaginários infernais, e se opõe aos infernos modernos laicos, porque nestes
o castigo nem sempre provém do exterior.
53
Como podemos notar, os infernos modernos abrem-se a todos, ao recusar uma visão
Desde o século XIX, a noção tradicional de inferno foi negada. O inferno, então,
era o outro, a angústia existencial, a vida cotidiana. Por detrás da maioria das
1977: 99), lançou uma das fórmulas do século XX, que parece concordar com essa
assertiva de Freud:
1944, é mais um exemplo de imagem literária dos infernos modernos. Não se trata,
portanto, do inferno da mitologia cristã, com diabos e cheiro de enxofre, mas um salão
54
funcionária dos correios e uma mulher da alta sociedade. Enclausurados e condenados à
perceber que o carrasco naquele estranho inferno é cada um deles, para cada um dos
outros. Cada um se vê através dos parceiros que lhe revelam sua condição.
homem está ligada ao julgamento que o outro faz de si. Como ser pensante e pensado, o
um mundo do qual não se escapa: não existe saída da prisão da Humanidade. Como
explica Minois, o fato de serem três personagens também é condição indispensável para
esse inferno:
ser lançado num mundo sem significação, de ser outro no próprio mundo e, assim como
Camus, “ser ‘estrangeiro’ ao universo e aos outros: é isso o inferno. Tudo o que
55
Acreditamos que o romance de António Lobo Antunes transforma-se numa
extraordinária estação no inferno25 que nos apresenta duas faces: a dos outros, que
Freud consideram ser o outro o inferno, a ficção de António Lobo Antunes assume uma
direção paralela, ao acrescentar a estas teorias uma outra questão: a de que a relação
mantida pelo ser humano consigo mesmo é também penosa. É como se a narrativa
insistisse na idéia de que o inferno “se esconde no interior da alma” (LINS, 1990: 204).
consciência da sua própria experiência. Neste sentido, no romance estão inscritos alguns
Review, em 1860, sobre o romance The Mill on the Floss, de George Eliot. O resenhista
condena o tipo de ficção que “ocupa a mente com vícios, aflições e crimes
imaginários”26 e acredita que o efeito destas ficções podem invadir as mentes dos
diria Ítalo Calvino, “tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é
25
Cf. RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno.
26
Cf. tradução da epígrafe de Conhecimento do Inferno (ANTUNES, 2006: 7).
56
De modo geral, os títulos das obras literárias fazem parte integrante da obra e
George Eliot, tem uma função metafórica, assim como nos dois romances anteriores.
sentidos de inferno, dentre os quais, o que tem a ver com a noite e suas várias
conotações, como a solidão, o estado de inconsciência e a morte. Mas, para além do que
já está apontado no título, talvez seja mais importante o conhecimento assim enunciado:
somatório daquilo que se sabe (que está neste sentido muito próximo da Memória); é
dizer com Johannes Hessen, “vale tanto como amor a la sabiduría, o lo que quiere decir
consciência dos lugares e das situações infernais. Note-se que conhecimento tem algo de
gerúndio, por ser ato num presente atemporal. No livro, são duas as situações e dois os
57
Portuguesa do pós-25 de Abril. Trata-se de uma viagem que o protagonista acaba por
empreender sozinho, sem auxílio de Virgílio27, mas que parece ser guiado pela mão de
símbolos.
passagem do romance, que nos serviu de epígrafe, na qual Lobo Antunes cita Lewis
Carroll, é característica, porque o fabuloso livro do século XIX guarda algumas das
afirmar que as imagens do “poço muito profundo” (CARROLL, 2007: 12) e da “cova de
sombra, vertiginosamente oca” (CI: 35) tenham mais a ver com o livro escrito (não só)
para crianças, do que tanto as imagens infernais de Dante, Rimbaud e Sartre. Vejamos o
27
Como se sabe, Virgílio é poeta romano, expoente da literatura latina, cuja obra mais conhecida é
Eneida. Na Divina Comédia, Virgílio é, assim como Dante Alighieri, personagem que realiza uma
jornada pelos três espaços post-mortem (Inferno, Purgatório e Paraíso) e é o guia e mentor de Dante nesta
viagem.
28
Curioso seria se atentássemos para o fato de que Pela mão de Alice é, justamente, o título de
Boaventura de Sousa Santos num livro em que o autor dá conta de um estudo sociológico do Portugal
depois do 25 de Abril, refletindo, especialmente, sobre a característica intermediária do país (colonizador
e colonizado, ultramarino e europeu).
58
Acreditamos que “chegar perto do centro da Terra” possa ser uma outra maneira
de dizer o fim do mundo, não o das terras africanas, os cus de Judas, mas um fim de
mundo que pode ser uma cova “escur[a] demais”, onde se deveria cuidar das pessoas, ao
invés de calar humanos esquecidos num “edifício decrépito” (CI: 35). Por outro lado, no
com o inferno, seja o da doença, seja o da guerra. Mas é no hospital que tudo começa.
seu primeiro romance publicado. Neste livro, as temáticas que insistem são o exercício
lado com algumas situações da guerra colonial na África. É também o livro que se
mulheres, que mais aparecem nos dois primeiros capítulos, vêm caracterizar a “fracção
de luz” (CI: 31), por oposição à lógica do inferno noturno. O protagonista, um sujeito
59
frincha clara nas trevas da almofada, e os teus gestos trêmulos de
polvo se aproximassem dos meus numa tímida reptação de ternura
(CI: 14).
habitual” (SEIXO, 2002: 83) que entendemos como o diálogo com o feminino que é, na
que dorme no banco traseiro do carro, “de caracóis castanhos espalhados sobre os
braços, e a boca espetada numa espécie de amuo como se fosse chorar, ou falar, ou
zangar-te comigo” (CI: 178), segundo a imaginação que o desejo do protagonista busca,
como metáfora na literatura para, a partir daí, mostrar que conotações ele ganha no
romance, que cria, por assim dizer, uma viagem ao inferno do século XX português. O
livro está repleto de exemplos de infernos modernos, desde a solidão do sujeito até o
60
mundo fechado e carcerário de onde se é difícil escapar. Destes infernos imagísticos,
eram obrigados pelo regime salazarista a deixar a pátria para lutar contra os africanos na
terra deles, a manter uma guerra insana na qual não se acreditava e a verificar que a luta
colonizada” (SEIXO, 2002: 505), devido à situação precária do país que assumia há
29
Cf. Boaventura de Sousa Santos: “O fim do império colonial não determinou o fim do carácter
intermédio da sociedade portuguesa, pois este estava inscrito na matriz das estruturas e das práticas
sociais dotadas de forte resistência e inércia. Mas o fim da função de intermediação de base colonial fez
com que o carácter intermédio que nela em parte se apoiava ficasse de algum modo suspenso à espera de
uma base alternativa. Essa suspensão social permitiu que no pós- 25 de Abril (entre 1974-1976) fosse
socialmente credível a pretensão de Portugal de se equiparar aos países centrais e, mesmo em alguns
aspectos, de assumir posições mais avançadas que as deles. Em 1978, o FMI destruiu a credibilidade
dessa pretensão. Desde então, Portugal entrou num período de renegociação da sua posição no sistema
mundial procurando para ela uma base que preenchesse o vazio deixado pela derrocada do império. No
início da década de oitenta era já claro que essa base teria como elemento fundamental a integração na
comunidade europeia” (SANTOS, 1999: 58).
61
A ficcionalização da Guerra Colonial se dá, em geral, num tempo posterior ao
seu fim, o que a torna mais consistente e significante. Para ser literatura de guerra, um
romance precisa reunir duas condições, apontadas pelo escritor açoriano João de Melo:
António Lobo Antunes pode ser considerado um dos prosadores que mais e
parte, portanto, da chamada “Geração Literária da Guerra Colonial” (MELO, 1988: 16),
porque reúne na sua literatura a experiência vivencial e a base cultural. O autor assumiu
uma prática coerente e um posicionamento novo perante a escrita literária a partir das
guerra querer dizer mais com a história, a política e a sociologia, interessa-nos perceber
reconhecer nas obras dos escritores desta geração uma nova forma de escrever
O processo colonizador português foi uma realidade de séculos que findou com
uma guerra de opressão e de confrontos armados que durou década e meia. Como disse
João de Melo, “não é indispensável sequer que seja só dessa geração o escritor que foi e
62
voltou de África; mas todos quantos sabem que, depois da guerra, a diferença reside
pelos que dela regressam. Nesse sentido, a obra de António Lobo Antunes pode ser
alteridade. Concordamos, pois, com Maria Alzira Seixo quando aponta características
constitui um dos temas recorrentes na obra de António Lobo Antunes. Sabemos que Os
Cus de Judas é, dos seus romances, aquele no qual o colonialismo impõe-se de modo
mais definitivo. Mas em Conhecimento do Inferno encontramos algumas das cenas mais
atrozes da guerra na África; cenas que se entrecruzam com a loucura de internados nos
manicômios de Lisboa. Veremos que, neste romance, ambos os espaços são indicados
63
como o segundo romance tratou de um “fim do mundo”, os cus de judas, Conhecimento
do Inferno, por meio da larga referência à praia, dada numa viagem que tangencia o
litoral, pode ser também uma maneira de dizer um outro fim de mundo. Vejamos o que
construída sobre o limiar, sobre a consciência do limite entre a pequena terra e o largo
algum modo “outrado” (SEIXO, 2002: 520). O protagonista partira para uma guerra
cujo discurso dos que a desejavam pretendia proteger um império em ruínas e, para isso,
vítima marcada por sua trajetória, desreintegrável à sua sociedade. De volta a Lisboa,
protagonista não recusa olhar para Angola, e é o olhar reminiscente sobre essa vivência
que o faz sentir “saudades da guerra”30, porque, se os dois espaços suscitam a idéia de
consciência de pactuar com uma situação intolerável” (SEIXO, 2002: 77), mas,
30
Cf. epígrafe da seção 3.1.2.
64
sobretudo, para os doentes que, rendidos nas mãos de carcereiros perversos, não
melhoram, apodrecem.
Daí que a guerra vivenciada na ex-colônia se transforma numa outra, talvez mais
(...) talvez que a guerra continue, de uma outra forma, dentro de nós,
talvez que eu prossiga unicamente ocupado com a enorme,
desesperante, trágica tarefa de durar, de durar sem protestos, sem
revolta, de durar a medo como os doentes da 5ª enfermaria do
Hospital Miguel Bombarda, fitando os psiquiatras num estranho
misto de esperança e de terror (CI: 97).
considerado pela crítica como um dos livros mais atrozes de António Lobo Antunes. O
que parece ser sensivelmente inteligente, é que, no romance, tanto colonizadores como
colonizados, tanto médicos como pacientes vivem (n)o inferno. Por isso, todo discurso
sobre a violência é ambivalente, como explica Jacques Leenhardt31: “Daí que todo
descrição, mostrando-se, por essência, da ordem da ficção. É por essa via, enfim, que
violência e literatura se acham tão intimamente ligadas” (LINS, 1990: 15). É peculiar
também o fato de o romance cumprir uma crítica que se refere à relação que envolve
colonizador e colonizado, bem como as atitudes de violência presentes nos dois lados e
de toda a ordem de prejuízos que a guerra causa também a ambos, inclusive a redução
31
Cf. Prefácio a Violência e Literatura, de Ronaldo Lima Lins (1990).
65
Parece-nos possível afirmar que o Conhecimento do Inferno pode ser lido pelo
viés da atrocidade,32 uma vez que o autor faz refletir na sua literatura a realidade
cáustica, o que, para Ronaldo Lima Lins, consiste na grande temática do nosso tempo: a
violência. Por tratar de temas que fazem parte da memória cultural de um país, mas
reflete sobre a vida” (LINS, 1990: 31). A este propósito, diz-nos ainda Ronaldo Lima
Lins:
leva horas para morrer enquanto três militares bebem. Seria interessante pensar o quanto
mas que ganha maior centralidade em Explicação dos Pássaros. Sobre o suicídio do
32
Atrocidade é termo recuperado por Ronaldo Lima Lins em Violência e Literatura, para quem o século
XX constitui a “era em que a violência se transformou em atrocidade” (LINS, 1990: 29).
66
o sistema social que o condiciona, uma componente identitária que
pode permitir-nos uma leitura pós-colonial deste texto: “As pessoas
matam-se porque estão fartas (...). Fartas de não perceberem porque é
que morrem” (SEIXO, 2002: 510).
morte. Esse suicídio, como diz Maria Alzira Seixo (Cf. SEIXO, 2002: 512), evocado
destino de viagem: poderia ser um outro fim? Uma outra espécie de suicídio, uma vez
que o narrador realizou toda essa viagem “sozinho de mais” (CI: 313)?
Chegar daqui a nada à Praia das Maçãs, pensei eu, meter a chave à
porta e encontrar-me morto na sala, de pulsos cortados, como o tipo
que se suicidou com um pedaço de vidro na casa de banho da
enfermaria, quando toda a gente assistia, lá em baixo, à festa de Natal
do manicómio (CI: 265).
Quando o narrador está prestes a chegar a Lisboa, ocorre mais uma fusão de
que as pessoas se matam?” (CI: 253). Recorda que estava no quartel de Mangando,
sugestão do canibalismo em Gago Coutinho, que resulta em mais uma mistura dos
67
planos narrativos. Outros jantares surgem na seqüência desse restaurante de “retrete
nauseabunda atulhada de merda imemorial dos comensais” (CI: 173): o médico oferece
“um pedaço do ombro do Pereira” (CI: 178) ao cabo que soldava o caixão do Pereira,
nosso desembarque em Angola” (CI: 191), sugerindo que os próprios soldados comam
para uma reunião elegante entre os médicos. Ambos, médicos e soldados, compartilham
e no Miguel Bombarda.
seguir:
68
Como já se disse33, o Conhecimento do Inferno é um dos mais duros textos de
interno. É com teor punitivo que o protagonista atravessa uma espécie de auto-
do Cassanje, quando os oficiais prenderam os três negros que roubavam roupa, dinheiro
em pessoas que não [eram] antes, que nunca [tinham] sido, em pobres animais acuados
33
Cf. Maria Alzira Seixo, a propósito de Conhecimento do Inferno: “(...) sublinhar-se á a brutalidade, a
selvajeria, a criminosa destruição de vidas em requinte de crueldade e maldade incomparável. É um dos
mais sinistros textos de António Lobo Antunes sobre o colonialismo, e a propósito de cujo passo o
próprio narrador comenta: ‘aqueles meses de guerra haviam-nos transformado em pessoas que não
éramos antes, que nunca tínhamos sido, em pobres animais acuados repletos de maldade e de terror’,
reafirmando assim uma sensibilidade pós-colonial” (SEIXO, 2002: 85).
69
Sorria da nossa ingenuidade, da nossa inexperiência: há
maneiras de se fazer as coisas sem se deixar marcas. Um
electrochoque, por exemplo, não deixa marcas. Um coma de insulina
não deixa marcas. Dez anos de psicanálise não deixam marcas: são
formas educadas de matar as pessoas, formas decentes aceitáveis.
Nem uma cicatriz e os cadáveres continuam a falar, a trabalhar, a
produzir filhos, definitivamente assassinados mas completamente
bons (CI: 221-222).
Não é gratuito o fato de, nesse mesmo capítulo, deceparem-lhe o pênis. Foi uma
“rapariga gorda” (CI: 225) que o castrou “de um só golpe, apoiada por uma vingativa e
que é honroso. A cena final do capítulo é um excelente exemplo do que Maria Alzira
Seixo chama de “sensibilidade pós-colonial” (Cf. SEIXO, 2002: 85). Como se fosse
uma espécie de consciência penosa pelos murros, pontapés e pelo cigarro apagado “num
retornado dos fronts africanos. Uma vez ido para África, o médico vive uma espécie de
dos soldados no front, descrevendo a luta pela sobrevivência tal qual uma vertiginosa
70
Lembramos que o percurso do protagonista, no plano diegético, ao partir para a
Praia das Maçãs rumo a uma casa paterna, toma boa parte da noite. Mas a noite como
de António Miúdo Catolo. Procuramos, com esse episódio, estabelecer um elo entre
Angola, um “país em guerra” (CI: 23), e por isso noturno, e Lisboa, “a única cidade do
mundo onde a noite não existe” (CI: 22). A história do chefe dos Luchazes ratifica a
artificialidade, que é marca deste primeiro capítulo de viagem. “Foi em África, no país
dos Luchazes, que [o protagonista] soube que em Lisboa não existia a noite” (CI: 22). A
perceber que não existe noite em Lisboa, depois de setenta e duas horas hirto num
quarto alugado de pensão, sem sair, em jejum, esperando, grudado à janela, por uma
noite que não chegava. O “Muata dos Muatas, livre já do pesadelo de uma cidade
diurna” (CI: 26), conta ao médico sua passagem por um país de “claridade ofuscante de
um meio-dia perpétuo” (CI: 22). Assim deu-se conta o protagonista de que até
não existe,
71
ácida sobre a cena. O hospital é visto como uma sombra, uma
mancha escura nessa paisagem brilhante34.
que o país dos Luchazes “é um país de leprosos e de trevas, um país de vultos inquietos,
mim, pensava” (CI: 69), que parece conjugar com esta tomada dolorosa de consciência:
“É – (...) – cresci mais depressa do que devia” (CI: 41). Desse modo, de volta ao seu
34
OLIVEIRA, Silvana Maria Pessôa de. “Sob o céu de Lisboa. Espaço e Negatividade na Ficção de
António Lobo Antunes”. In: CABRAL, Eunice. A escrita e o mundo em António Lobo Antunes. Actas do
Colóquio Internacional da Universidade de Évora. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 208.
72
sempre que anoitece uma melancolia indefinida, uma inquietação
difusa, um tremor vago nos ossos, faz vibrar em mim, antes dos
alaranjados, dos cinzas, dos ocres desmaiados do poente, esse vento
sem origem nem rumo, prolongado como um gemido ou um suspiro
que antecede o voo oblíquo das corujas, ocultas no interior dos
troncos como espectros macilentos e cruéis (CI: 92-93).
narrados de maneira bastante intrínseca, o que nos leva a concordar, pois, com a análise
de construção ficcional.
73
classificam, rotulam, vasculham, remexem, não entendem, assustam-
se por não entender e soltam das gengivas em decomposição, das
línguas inchadas sujas de coágulos e de crostas, dos lábios arroxeados
de livores de azoto, sentenças definitivas e ridículas (CI: 65).
gravador holandês dos séculos XV e XVI, cujas obras criticam, com tom satírico, os
vícios do homem medieval. A Nau dos Loucos descreve uma embarcação cujos
pendurado por um fio e não percebem que outros ladrões tiram-lhes o pouco que resta
sobre a mesa.
clero (dado que é este o primeiro plano da pintura), o quadro de Bosch realiza uma
crítica sobre os costumes daquela sociedade. A intenção desse juízo crítico remete-nos
costumes dos homens sem atacar ninguém pessoalmente”, como declara Desidério
Erasmo em carta a Thomas More (ROTTERDAM, 2006: 11), mas acaba por examinar
escreve o livro, porque, “desde que o mundo é mundo, nunca houve um só homem que,
A Loucura que narra o livro é a potência criativa das ações humanas, a sabedoria de
Mas a nau dos loucos é também a Stultifera navis, navios que, dos séculos XIV
ao XVII, levavam os considerados insensatos para fora das cidades. As naus dos loucos,
com destino errante, cruzavam os oceanos e os rios europeus, como esclarece Michel
74
Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio
de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza
exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais
aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada.
É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a
terra à qual aportará não é conhecida, assim como não sabe, quando
desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria
são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem
pertencer (FOUCAULT, 2005: 12).
Ainda segundo a explicação de Michel Foucault, eram “barcos que levavam sua
carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência
9). A exclusão fora recoberta de uma imagem fantasmagórica dos navios que
pretendiam separar os homens lúcidos dos loucos. Qualquer que fosse a diferença entre
incuráveis. Esses lugares obscuros eram utilizados para manter os rotulados como
Pouco mais de um século depois da expulsão dos loucos por meio das
42) foi transformado numa barca sólida e atada à cidade. Vê-se, assim, desaparecer a
Nau dos Loucos para surgir o Hospital dos Loucos. Nesse “Hospital”, alerta Foucault,
75
XVII, o hospital não era lugar destinado ao tratamento e ao cuidado de seres humanos,
era uma “estrutura semijurídica” que, assim como os tribunais, “decide, julga e executa”
fator que alterou a relação entre médico e paciente. Segundo Franco Basaglia, precursor
35
Cf. o axioma de Descartes: “Penso, logo existo”.
76
Ronald Laing e David Cooper, na Inglaterra, Franco Basaglia, na Itália, e
a loucura. Basaglia não defendia a idéia de acabar com a psiquiatria, mas pensava que
só ela não dava conta da complexidade da loucura. Assumiu, portanto, uma posição
pelas condições do hospital, que dirigiu em 1961, percebeu que só a humanização nas
relações entre médicos e pacientes não bastava. Seriam necessárias transformações mais
O narrador embarca numa nau dos loucos, um transporte que se sabe ancorado
77
em Lisboa, o Hospital Miguel Bombarda. Lá, a exclusão põe os loucos sob a guarda de
novos capitães que não os conduzem a lugar nenhum. A nau dos loucos já não vaga de
cidade em cidade, exilando os ensandecidos para além dos muros, os navegantes estão
encalhados numa “mancha escura” (OLIVEIRA, 2004: 208) na cidade, dentre os quais o
Se, logo no primeiro capítulo, o médico, ao regressar da guerra, diz que lhe
desenvolver a atividade psiquiátrica seja mais violento. “Se se quer falar de violência
a violência que brada, que se proclama em tão alta voz que raramente
é ouvida, é a sutil, tortuosa violência perpretada pelos outros, pelos
“sadios”, contra os rotulados de loucos. Na medida em que a
psiquiatria representa os interesses ou pretensos interesses dos sadios,
podemos descobrir que, de fato, a violência em psiquiatria é
preeminentemente a violência da psiquiatria (COOPER, 1989: 31).
pela psiquiatria: “(...) decidira ser psiquiatra para entender melhor (pensava) a esquisita
forma de viver dos adultos, cuja insegurança pressentia por vezes atrás dos seus cigarros
e dos seus bigodes, inclinados para a sopa do jantar numa seriedade pontifícia” (CI: 17).
E: “(...) resolveu ser psiquiatra a fim de morar entre homens distorcidos como os que
rancorosos aquários dos seus cérebros, em que andam, moribundos, os peixes do pavor”
(CI: 17-18).
36
Cf. CI: 28: “Em 1973, eu regressara da guerra e sabia de feridos, do latir de gemidos na picada, de
explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros
e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento
do inferno”.
78
Expostos os motivos por esta especialidade médica, a Psiquiatria passa a ganhar,
nobre das especialidades médicas” (CI: 63) – até, no parágrafo seguinte, atingir uma
A Psiquiatria é uma treta – afirmou o pai. – Não tem bases científicas, o diagnóstico não
ratificar a idéia de Michel Foucault contrária a de Philippe Pinel, numa contradição que
serve seres médico? – berrou o alferes oscilando ligeiramente nas pernas sem força. (...)
– De que te serve seres médico se não percebes raspas da gente?” (CI: 266).
hospício. Essa experiência constatada pelo protagonista atinge a cena em que o pátio do
Mundial:
79
um campo de concentração do que de um estabelecimento destinado ao tratamento de
lugar inóspito por excelência, tomado pela doença, pela insalubridade e pela miséria,
que chega, como vimos, a ser comparado aos campos de concentração nazistas.
“sensibilidade pós-colonial” (SEIXO, 2002: 85), apontada por Maria Alzira Seixo, não
Sequeira:
80
penicilina teriam bastado para o curar, mas eu preocupava-me apenas
em mandar tirar-lhe a roupa e em fechá-lo na enfermaria deserta (CI:
158-159).
protagonista realizou, cujas testemunhas são os leitores; uma confissão laica, no sentido
de que não visa a absolvição, mas alguma espécie de expiação adquirida pela
expurgação da culpa por meio do fio da fala, cujos confessores são cada um dos seus
leitores. Nesta cena, vemos uma consciência penosa de auto-rejeição por ter cometido
O trecho, no qual o médico confessa o que havia feito com (ou contra) o
de responsabilidade por danos causados aos internados. Por isso, talvez não seja gratuito
recorda dos abusos que havia cometido contra o Sequeira, o que nos leva a crer que esta
81
cômicos. Conhecimento do Inferno não poupa a classe médica ao comparar o exercício
paciente, sem que haja qualquer indício de que o equívoco será corrigido. É o mesmo
personagem, que conhecemos como médico, que se vê afastado de sua função para
médico a lembrar-se de que é esta prática perversa que mantém sua sobrevivência. Mas,
para além de uma mente culpada, ela parece-nos também duvidosa do seu ofício. Como
analisou Eduardo Lourenço, “o médico poder-se-ia ter extraviado no gozo dos seus
exercida acaba por proporcionar” (LOURENÇO, 1980: 21). Mas, ao contrário disso,
82
sem limites do Alentejo, que parece anunciar-me constantemente, no
zunir dos insectos e no Setembro das árvores, o segredo de uma
mensagem indecifrável (CI: 144-145).
A classe médica é aquela que, por ter prestígio social, defende os interesses
soterrado sob ele. Os questionamentos e as denúncias são, como se vê, ambições das
mais fundas neste livro de Lobo Antunes que ousou suspeitar da condição médica como
base cúmplice de uma ordem desumana, sendo, talvez por isso, um dos livros menos
estimados do autor.
Daí que o protagonista, ao passar pelo silêncio do Alentejo, começa por refletir
agora” (CI: 132). Queremos acreditar que rir um riso como manifestação ostensiva de
duplamente injusto, uma vez que se trata de uma prática não só testemunhada, mas
o que ocorre com o protagonista na cena em que, “com Ourique ao longe” (CI: 131),
comecei a rir-me. Ria um riso ao mesmo tempo pobre e alegre, o riso pobre e alegre dos
83
pelo processo de cotejar a prática do médico com a de um padre, ou de comparar o
hospital com o quartel ou com um campo de concentração. Para justificar essa idéia,
Isto posto, precisamos esclarecer que é significativo que tenhamos iniciado esse
do século XVI que pretenderam formar críticas sobre o poder exercido pela Igreja
considerando os médicos uma versão para uma ordem laica de vigilância e punição:
84
pénis e à boca, que mantém com estas duas criaturas insuportáveis
uma relação insólita de que se acha excluída a espontaneidade e a
alegria. Os acontecimentos sociais limitam-se aos estreitos
sobressaltos dos primeiros seis meses de vida, e os psicanalistas
continuam teimosamente agarrados ao antiquíssimo microscópio de
Freud, que lhes permite observar um centímetro quadrado de
epiderme enquanto o resto do corpo, longe deles, respira, palpita,
pulsa, se sacode, protesta e movimenta (CI: 204-205).
em Lisboa, constitui, no romance, mais que mero cenário. Trata-se de um espaço que
romance. O hospital é, também ele, para além de palco de relações perversas de poder,
126). Desse modo, o Hospital Miguel Bombarda pode ser visto como uma ruína e “a
ruína”, diz Jacques Le Goff, “deve ser colocada em ambiente selvagem e ser concebida
mais como abrigo de mochos e de feras do que de homens” (1984: 119). A observação
37
Eis a descrição da tradicional construção arquitetônica de Lisboa: “O Hospital Miguel Bombarda, ex-
convento, ex-colégio militar, ex-Manicómio Rilhafoles do Marechal Saldanha, é um velho edifício
decrépito perto do Campo de Santana, perto do casarão húmido da Morgue, onde, em estudante, retalhara
ventres em mesas de pedra num nojo imenso, retendo a respiração para que o odor gordo e repugnante das
tripas lhe não assaltasse as narinas do perfume podre da carne sem vida” (CI: 35).
85
o que é loucura é essa encarnação do homem no animal que é,
enquanto degrau último da queda, o signo mais manifesto de sua
culpa, e, enquanto objeto último da complacência divina, o símbolo
do perdão universal e da inocência reencontrada. Doravante, todas as
lições da loucura e a força de seus ensinamentos deverão ser
procurados nessa região obscura, nos confins inferiores da
humanidade, lá onde o homem se articula com a natureza e onde ele é
ao mesmo tempo degradação última e absoluta inocência
(FOUCAULT, 2005: 157-158).
o “enxoval de uma ciência inútil” (CI: 131) integrado por “pastilhas, ampolas, conceitos
e interpretações”. A loucura, nesse caso, consiste numa criação dos psiquiatras a serviço
sussurra o marido ou a mulher ou o pai ou o filho, fique-nos com ele que a gente já não
o agüenta em casa” (CI: 233). Ou ainda, como no episódio do noivo, o qual, uma vez
casado, para escapar do segundo casamento, resolve inventar uma loucura e acaba por
formar uma confusão numa das cenas mais extravagantes do romance. Mas o noivo, ao
contrário dos indesejados aceitos como loucos, é recusado sob uma justificação lúdica:
“– Você tem de compreender, ó sócio. Para asilo político só as embaixadas” (CI: 118).
os doentes que voam são aqueles que o médico nunca atende. Depois do episódio da
proposição do vôo realizado por alguns dos pacientes no pátio do hospital, é a vez do
86
médico perder o chão. São definitivamente demolidas as fronteiras entre saudáveis e
de lhe assaltar a
ter entregue os loucos a tudo aquilo que neles pode existir de bestial,
mas na verdade é ele que se vê investido por essa bestialidade, enquanto
na liberdade que lhes é oferecida os loucos vão poder mostrar que nada
haviam perdido daquilo que há de essencial no homem. Quando
formulou a animalidade dos loucos, deixando-os livres para se
movimentarem, ele os libertou dessa animalidade, mas revelou a sua,
encerrando-se dentro dela. Sua raiva era mais insensata, mais desumana
do que a loucura dos dementes. Desse modo, a loucura emigrou para o
lado dos guardiães; os que encerram os loucos como animais são os que
agora detêm toda a brutalidade animal da loucura; é neles que a besta
impera, e a que aparece nos dementes não passa de um turvo reflexo da
primeira (FOUCAULT, 2005: 472).
A partir daí, a narrativa muda o próprio rumo “em jeito de peripécia de tragédia
convencer nenhum dos colegas de que trabalha ali já há algum tempo, acaba por se
doente “dá conta da possibilidade de o médico se colocar (ou de ser colocado) na pele
87
de um internado, e de vivenciar individualmente essa experiência” (SEIXO, 2002: 86).
Não por acaso, neste mesmo capítulo o médico recorda alguns abusos que ele mesmo
havia cometido e que se assemelham aos que acabara de sofrer. O Valdemiro, um louco
feliz na sua loucura, é um personagem bastante elucidativo, uma vez que evidencia duas
médico que critica os métodos terapêuticos. O Valdemiro, que “sorria, irreal como um
anjo bêbado, (...) como um Cristo em transe a passear de sandálias freak pelas ondas”
(CI: 167), integra, talvez, o personagem que melhor exemplifica a convergência entre a
loucura e a poesia. Valdemiro é o português que rege o espaço sideral: “– Já mexo outra
vez nas estrelas, senhor doutor. Repare como elas me obedecem” (CI: 167).
superfície refletora:
Uma vez por semana a equipe médica do Hospital Miguel Bombarda realizava
reuniões na sala de jantar do hospital, às quais “entravam por fim, em grupo (...)
88
doentes, a sua miserável condição de prisioneiras (era-lhes vedado
sair sozinhas, era-lhes vedado passear, era-lhes vedado ter contactos
com homens porque “não queremos responsabilidades, não queremos
sarilhos, não queremos problemas, não queremos protestos das
famílias”), de modo que as únicas diversões permitidas consistiam
em tomar as gotas da medicação, em proceder a vagos trabalhos
inúteis de costura, e em assistir, amontoadas na sala de jantar em
cadeiras de fórmica precárias como dentes de leite, às reuniões do
Clube, uma manhã por semana, dirigidas por técnicos possuídos da
boa vontade untuosa dos carcereiros cristãos (CI: 94-95).
estão cheios de pretensas certezas com relação ao conhecimento científico dos seus
casos clínicos, mas incertos do sofrimento que aflige os seres humanos que os rodeiam.
dos manicômios com espelhos, porque os médicos não pretendiam tornar saudáveis as
aflito dos defuntos” (CI: 15). Na verdade, esforçaram-se por revelar o atonismo das
Mas parece que os espelhos espalhados pelas enfermarias do manicômio não são
espelhos comuns, porque refletem, para além dos contornos, as essências dos internados
(...) devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu, de gesso que nos
emparedava, quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes
que nos medicassem, nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos
medissem a inteligência, o raciocínio, a memória, a vontade, as
emoções, nos catalogassem e nos atirassem por fim, rotulados, para a
escura gaveta de uma enfermaria, aguardando, aterrados, o imenso
89
morcego da noite (CI: 108).
psiquiátrico. O próprio escritor fala sobre sua relação, desde o começo de sua vida
literária, com a poesia: “Quando comecei a ler os poetas foi quando realmente começou
Como disse Eduardo Lourenço, “a pulsão que comanda e nutre toda a escrita é
90
leitura. É, inclusive, o que o escritor nos diz sobre a criação literária: “Quando criamos é
como se provocássemos uma espécie de loucura, quando nos fechamos sozinhos para
doença, mas é uma viagem admirável por esse universo fantasmagórico. No fim de
Bombarda que esteve aqui a trabalhar” (CI: 286), que quis retornar ao seu trabalho no
HMB. A idéia de exílio presente no livro é aquela que designa deportação, expatriação,
imigração forçada não mais para um além-mar, mas para qualquer território alienador.
Entendemos a acepção de alienação como a que tem por objetivo transferir a outrem
38
ANTUNES, António Lobo. Entrevista concedida a Ferrnando Dacosta, JLA (1982), p. 5 apud
GONDA, 1988: 44.
91
transforma, enfim, os rotulados como loucos em estrangeiros na própria pátria, já que a
de exercício de cidadania. Não por acaso é Margarida quem percebe o quanto o lugar da
narrador sai de Lisboa em direção à Praia das Maçãs. Este episódio não é apenas um
admirável texto sobre a expressão feminina e sobre a relação da loucura com o mundo
fora dos manicômios; é também “uma espécie de alegoria do regresso, que dá conta
também do regresso dos militares de África e da sua inadaptação como de uma outra
forma de loucura” (SEIXO, 2002: 88), que alia o símbolo do pássaro, presente desde
nomenclatura que tenha como objetivo discutir padrões de saúde mental, consideramos
o fragmento a seguir como uma proposição que, de alguma maneira, ratifica a intenção
39
Rever a idéia de negação da psiquiatria, por Franco Basaglia.
40
Título de um capítulo de Vigiar e punir, de Michel Foucault.
92
(...) a única coisa a fazer era destruir o hospital, destruir fisicamente o
hospital, os muros leprosos, os claustros, os clubes, a horta, a sinistra
organização concentracionária da loucura, a pesada e hedionda
burocratização da angústia, e começar do princípio, noutro local, de
uma outra forma, a combater o sofrimento, a ansiedade, a depressão,
a mania (CI: 230).
dos doentes, os que realmente nunca saem do hospital. Mas nunca ter saído do hospital,
Nunca saí do hospital (...). E agora regressava a Lisboa sem nunca ter
saído do hospital, porque quando alguém entra no asilo cerram o
enorme portão à chave nas nossas costas, despojam-nos da carteira,
do bilhete de identidade, do fato, do relógio, dos anéis, injectam-nos
nas nádegas cinco ou seis centímetros cúbicos de doloroso
esquecimento, e na madrugada imediata o nosso corpo é um puzzle de
pedaços espalhados no lençol, impossíveis de reunir pela moleza
incerta das mãos (CI: 143-144).
sempre cheio de riscos, de nos introduzir neste mundo, agora apto a ser conhecido, do
inferno psiquiátrico. Isso dito, resta-nos alcançar o significado de inferno num romance
que quis falar da Psiquiatria e seus tratamentos que não curam. Conhecemos, enfim, o
93
que propõe Octavio Paz, ao trazer a idéia de que “adaptar o paciente a uma civilização
doente e podre até os ossos não é curá-lo, mas agravar seus males, convertê-lo num
Susan Sontag que, em A doença como metáfora, reflete sobre as relações entre as
metáforas da doença e a sociedade: “As metáforas da doença são usadas para julgar a
sociedade, não como desequilibrada, mas como repressiva” (SONTAG, 1984: 92).
reavaliação da loucura que, pelo viés da ficção, concluiu que o arsenal psiquiátrico é,
silenciosamente, mais cruel. Ficou defendido, durante todo o percurso da viagem e pelo
discurso do personagem, que a psiquiatria não é uma atividade na qual se crê e que o
hospital é um ambiente que se rejeita. A viagem que parte do Algarve e tem Lisboa por
prática psiquiátrica, formular reflexões que dêem conta da trajetória pessoal e nacional
de um personagem que, antes de se ver exilado num hospital psiquiátrico, viveu uma
94
3.2. Viagem regressiva no tempo
visitados pela sua memória, passamos a examinar o percurso de retorno à casa paterna,
anteriores, o motivo que determina. O papel paternal é concebido como aquele que
exerce a influência de limitar, privar, educar. Como explica Nadiá Paulo Ferreira, “o
pai, enquanto função paterna, é uma construção significante. E mais, faz parte da
41
FERREIRA, Nadiá Paulo. “Sob os véus da castração – a questão do pai na modernidade e na
contemporaneidade” In: DAVID, Sérgio Nazar (org.). O que é um pai? Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997, p.
50.
95
O pai do protagonista de Conhecimento do Inferno é aludido ao longo da
narrativa, ganhando corpo somente na cena derradeira do romance. Este pai é imbuído
de um valor que faz com que demais personagens, enfermeiros e funcionários do HMB,
Essa cena talvez enfatize o hospital, ainda que espaço mortífero, como espaço da
continuidade42, comum a uma tradição familiar. O protagonista, que quis levar a filha
Joana ao hospital43, recorda-se ao “olhar a fachada vulgar (...) do manicómio” (CI: 36),
42
Continuidade é um conceito abordado por Georges Bataille, em O erotismo. Segundo o filósofo, “para
nós que somos seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser: a reprodução leva à
descontinuidade dos seres, mas ela põe em jogo sua continuidade, isto é, ela está intimamente ligada à
morte” (BATAILLE, 1987: 13).
43
Cf. CI: 83: “Quando te quis levar ao hospital, Joana, recusaste-te a passar o portão com a firmeza
obstinada, pétrea, inamomível das crianças (...). Das ruas próximas subia um cheiro alegre, um rumor de
vida, a jubilosa reverberação azul dos azulejos, e eu pensei dentro de mim Vou-te mostrar o balneário, os
claustros do balneário, a enorme banheira de mármore tombada como um rinoceronte morto, vou visitar a
horta contigo e caminharemos de mão dada pelo mar das couves, cada vez mais pequenos e felizes como
no fim dos filmes até nos dissolvermos gloriosamente no horizonte de casas da Gomes Freire, vou-te
apresentar aos enfermeiros meus amigos, A minha filha, e ouvir o riso da tua timidez que se me enrola
nas pernas numa vergonha aflita”.
96
de fato-macaco, de boné na cabeça, que ocupava por inteiro uma
atenção que ele exigia fosse sua (CI: 36-37).
No capítulo 12, o protagonista chega à Praia das Maçãs, “na grande e velha casa
dos meus pais” (CI: 311), para a qual precisava voltar para “buscar os meus livros, a
minha roupa, os meus papéis, e regressar no dia seguinte ao hospital e ao meu trabalho
Praia das Maçãs remete-nos à árvore do conhecimento, de cujo fruto Eva e Adão,
respectivamente, comeram sob influência de uma serpente e, por isso, foram expulsos
do Paraíso. Não seria gratuito, a nosso ver, que seja a praia das maçãs, o fim de uma
“longa travessia do inferno” (CI: 27). Segundo uma simbologia (não só) cristã, a maçã é
casa paterna, para a qual parte o protagonista, que afinal fica na Praia das Maças, pode
partir de uma casa paterna de férias (na Balaia, Algarve) em direção a outra casa
familiar (Praia das Maçãs, Lisboa), para a qual se volta deixando um significado
paterna. Para além da leitura de um novo movimento da cultura portuguesa, que são as
viagens de retorno à pátria, não podemos nos esquecer de que a viagem realizada por
esse personagem é, antes disso, uma viagem de regresso a uma casa pessoal paterna.
Como disse Octavio Paz, “para voltar à casa é preciso primeiro abandoná-la. Só o filho
A parábola do filho pródigo, como se sabe, narra o conflito de um pai, com dois
filhos, que se desespera quando um deles decide sair de casa, mas regressa após acabar
97
com a fortuna que lhe cabia. A narrativa alegórica provoca uma nova imagem de pai,
alicerçada no acolhimento daquele que se alegra ao receber o filho que “estava morto, e
viagem, numa conversa com o pai que surge insolitamente, entre o onírico e o
no seu quarto, já sonolento e embriagado, o protagonista ouve uma voz a dizer: “– Boa
noite” (CI: 312) e como não percebia o que se passava, justifica para si a voz que ouve:
doentes voláteis no pátio do hospital, assume os vários sentidos que dão conta da
entanto, acreditamos que a atmosfera mortífera que se inscreve no livro é aquela que
aprova a vida até na morte (Cf. BATAILLE, 1987: 11). Seria, a nosso ver, uma leitura
ao contrário, vemos uma morte que tem muito mais de renascimento, de ganho de
44
BÍBLIA SAGRADA, 1969: 104 (S. Lucas, 15, 11-32).
98
Um torpor lento corria-me no interior dos membros, ao comprido dos
ossos, a empastar-me os músculos de uma moleza inerte. (...) e
sentia-me a pouco e pouco liberto do cansaço, do coração opresso,
dos pulmões aflitos, do sujo casulo da roupa, como se as solas dos
sapatos deixassem de pisar o chão e eu flutuasse, sem peso na
atmosfera livre e abstracta dos sonhos, de tal forma que mal me dei
conta de o meu pai se levantar, apagar a luz e dizer
– O melro
na sua voz tranquila (...) e me puxar o lençol, para cima da cabeça,
como um sudário (CI: 314-315).
sudário, vem-nos à mente o Sudário de Turim ou Santo Sudário, tecido que, segundo
alguns católicos, guarda a imagem de Jesus Cristo e é, por isso, uma relíquia cristã.
mortalha. Defendemos que a sua morte é simbólica, na medida em que é esse encontro
derradeiro com o pai, já que é o pai quem lhe puxa o lençol para cima da cabeça, que
encontro. Foi preciso esse encontro com seu pai, ambos a escutar o melro, para que,
uma consciência sobre o papel profissional que desempenha, mas, não por isso, muda
encontro com o pai que valida, corrobora, coroa o seu processo. Esse personagem, às
99
narrativa, para que o protagonista, já em estado inconsciente, onírico e de embriaguez,
despertasse45.
45
Cf. CI: 313.
100
4. CONCLUSÃO
O tempo impõe um fim a este texto com a certeza inevitável de que muito ficou
por dizer sobre Conhecimento do Inferno. Esta certeza tem um duplo sentido de ser já
saudosa, mas, ao mesmo tempo, saudável, porque se nosso trabalho tivesse conseguido
viagens inscritas no romance e, com elas, também navegar até ancorarmos nesse novo
Começamos a nos aproximar da obra de um autor que vai muito além das
personagem que busca um novo sentido de vida ao repensar e relembrar seu percurso.
Assim, percorremos os caminhos tortuosos da sua memória que, para além de recuperar
Navegamos pelas linhas da ficção e por meio delas embarcamos num navio de
101
caduca, já indicara o caminho de análise que passava necessariamente por uma teoria
optamos por sustentar nosso discurso nos pensamentos que visam à liberdade e à
personagem António Lobo Antunes assume o estatuto de um anti-herói, uma vez que
classe médica e pela sociedade, de modo geral. Em contrapartida, faz com seu discurso
É verdade que sua atitude não é, a priori, alterada, mas seu olhar e, sobretudo, sua
mundo a partir dos limites muito tênues entre a sanidade e a loucura. Assim como os
este personagem descobre-se o psiquiatra mais cheio de dúvidas com relação à validade
da Psiquiatria.
psiquiátrico)” (SEIXO, 2002: 510), já que o livro expande uma crítica que faz
102
garante ao personagem o desenvolvimento de uma forma de resistência renovada a
cultura, fazendo conviver a música, a pintura, a cultura popular, a arquitetura, para além
nosso trabalho.
aberta, um recorte de uma realidade, retalhos de vida, monólogos que à primeira vista
não levam a lugar algum e que ignoram, propositalmente, possíveis desfechos. Podemos
considerar que a história desse romance, como disse Roxana Eminescu, é “uma fatia de
protagonista é aquele que vai se dando conta, conforme o progredir da viagem, do peso
conhecimento, acaba também por transmiti-lo por meio do discurso. Desse modo, o
romance pode ser entendido como um espaço a ser conhecido, uma viagem de dupla
(auto)conhecimento, como declarou o próprio autor: “saber ler é tão difícil como saber
103
escrever”46. O texto cumpre a função de objeto intermediador de experiência, quer pela
conhecimento, para quem a escreve e para quem a lê. Vimos, portanto, traçado um pacto
si mesmo” (LUKÁCS, 2000: 82) que pretendeu atingir o doloroso objetivo de conhecer
conhecimento: faz parte de um novo imaginário, aquele que tem na metáfora do mar
o homem moderno não mais navega no oceano aberto, mas interioriza-se nas terras do
46
ANTUNES, António Lobo. “Saber ler é tão difícil como saber escrever”. In: Diário de Notícias.
09.11.2004.
104
país e de si mesmo. A história recente privilegia, portanto, os viajantes do mar interior,
para a sua existência. Assim como as viagens por ele empreendidas, a escrita é também
próprio lugar no mundo, porque, afinal, como disse Georg Lukács, “todo o errante
encontra sua pátria que o aguarda desde a eternidade” (LUKÁCS, 2000: 59).
lembrar que “ler é também errar: vagar ao curso de intuição lúcida e razão
teorias, pelas leituras críticas e pela literatura, aprendemos a “lição de andar com os
escritores, esses seres de palavras” (SILVEIRA, 1986: 253) e com os seres de papel, os
personagens.
Conhecimento do Inferno. Com efeito, estamos certos de que o percurso que traçamos
foi-nos essencial para que, ao viajarmos ao extremo desse ser de papel, também
105
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