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GIOELE SOLARI
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G. Solari, La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, Turim 1962, pg. 174. A introdução vem
anônima.
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Espero que, assim renovado e enriquecido, este pequeno livro possa continuar
longamente a representar na nossa escola um guia essencial para muitos jovens e o
testemunho de um magistério exemplar.
Luigi Firpo
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1
A concepção clássica do Estado
pode considerar-se como virtude deste ou daquele extrato social, mas é virtude de
todos, e princípio imanente que harmoniza as várias classes do Estado na atividade
do todo. No suum agere faz Platão consistir a justiça.
Também para Platão o estado é a condição indispensável para compreender e
ser virtuoso, único meio que produz e conserva tanto a ciência como a virtude, que
assegura quer o triunfo do bem quer o do mal. Compreende-se como o Estado
platônico pudesse ser uma aristocracia, um governo de virtude e de inteligência
exercitado por um ou por poucos. Fazendo dos filósofos os dirigentes do Estado,
Platão pretendia dizer que as funções diretivas cabem a aqueles que sabem operar
com sabedoria, a quem sabe governar aqueles que são dominados pelas paixões e
pelos sentidos.
A exigência de unidade domina toda a concepção política platônica. A
unidade do Estado poderia ser comprometida pelo prevalecer da vida instintiva e dos
interesses privados. Isto induz Platão fazer da família e da propriedade instituições
públicas reguladas pelo Estado, subtraídas do arbítrio singular. O regime de
comunhão quer da família quer dos bens parece a ele o meio mais seguro para
realizar a unidade e a harmonia interior do Estado.
Para tornar possível uma vida política, Platão concebia ser necessário não
apenas eliminar todo elemento perturbador, mas ainda prover a educação dos
cidadãos, assim tornando-os aptos para os fins do Estado. A educação para Platão
não pode ser senão a de Estado e deve variar segundo a classe à qual o indivíduo é
destinado, em relação às inclinações e ao caráter por qualquer um demonstrado.
Foi opinião geral até Hegel considerar a Republica como uma utopia. Ainda
que abstraindo o fato de Platão chegar por idealizar a cidade helênica e teve presente
a constituição espartana, não se deve esquecer que para ele somente a idéia e
verdadeira e real e somente o Estado fundado na idéia eterna de justiça pode ser
realizado. O Estado empírico possui valor somente nos limites nos quais realiza o
Estado ideal, o qual se alça deste modo como modelo das instituições políticas e
como seu próprio critério de avaliação.
De resto o próprio Platão não crê na plena realização do seu ideal político,
feito “não para homens, mas para Deuses ou filhos de Deuses”. E no diálogo das
Leis propõe-se encontrar um compromisso entre o ideal de Estado e a realidade
existente. Não sendo possível a virtude perfeita, quase parece contentar-se com as
Leis da virtude média. Por isso o Estado das Leis não é o Estado ideal, mas o Estado
legítimo, que tende a aproximar-se daquele. A exigência do relativo em política não
tolhe a veracidade da idéia.
foi a de ter elevado a política a ciência independente. Distingue-se ele de Platão seja
pelo método seguido, seja pela diversa concepção da realidade. Aristóteles foi mais
afeito à observação e à análise da realidade concreta. Sabemos com certeza que ele
havia recolhido bem 150 Constituições entre as quais a de Roma e a de Cartago.
Desta coletânea resta somente um fragmento concernente à Constituição dos
Atenienses, descoberto em 1890.
Não desconhece Aristóteles que a realidade empírica encontra-se relacionada
com um princípio ideal, mas este concebeu como fim ao qual tendem todas as
formas do real. O princípio da diversidade e da individualidade do real não é para
ele menos essencial e necessário do que aquele da unidade. O bem e a virtude são na
sua essência idênticos, mas manifestam-se diversamente na realidade. O bem se
realiza em grau diverso de perfeição, no indivíduo, na família, no Estado. Somente
neste último o bem (que é exercício de atividade segundo a finalidade humana) e
portanto a humanidade realiza-se plenamente.
O Estado é para Aristóteles um ente autárquico, que basta a si mesmo, que
não deriva de outro ente superior a sua razão de ser e o seu fim e não é por outro
ente condicionado. Em Aristóteles o conceito de Estado é intimamente derivado dos
seus princípios metafísicos; este participa da natureza de todos os outros seres e
resulta de elementos formais e materiais associados entre si por uma dinâmica e
informados pela idéia de um fim. Na maneira pela qual a matéria do Estado
(território, família, indivíduo) combina-se a cada momento no gradual
desenvolvimento do ser, atua o escopo ou a idéia do Estado. Na ordem lógica o
Estado precede os indivíduos e as famílias, mas na ordem real e temporal a parte, ou
seja os indivíduos e as famílias, precedem ao Estado. O Estado é o fim que dá às
partes que o constituem a perfeição que as faz serem conforme o seu conceito.
Aristóteles afirma que o homem é por natureza um ser político, não porque não
possa viver fora do Estado, mas porque somente no Estado pode alcançar e plenitude
e a perfeição da sua natureza. Por isso o Estado é uma associação de seres humanos
e é a forma mais plena de associação humana.
Nestas premissas metafísicas está implícita a defesa feita por Aristóteles da
família e da propriedade privada contra Platão. A família responde por duas
fundamentais exigências da natureza humana: é união dos sexos para a procriação e
conservação da espécie; é sociedade de senhores e escravos para proverem-se os
meios de sobrevivência. Assim encontramos na família três ordens naturais de
relações: conjugais, parentais, servis. Na antigüidade a atividade econômica era
conjunta com a vida em família, da qual a escravidão era condição essencial. O
princípio metafísico da unidade e diversidade encontra aplicação na família, a qual
de um lado é organismo unificado em um senhor, do outro resulta de relações
diversas. A comunhão das mulheres e dos filhos, proposta por Platão, é contrária à
natureza. O sentimento de posse pessoal é a condição do afeto, o qual é eficaz e
estável somente se é concentrado, duas sendo as coisas que, segundo Aristóteles,
impulsionam a amar: o próprio e o caro. De outra parte, o cuidado do homem com o
que lhe é próprio é maior em relação àquilo que é comum.
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transformações econômicas, mas sim à elevação moral do homem que triunfa sobre
o próprio egoísmo para reviver no Estado a idéia universal de justiça. Ao Estado
grego contrapõe-se o Estado liberal moderno que, reconhecendo ao indivíduo
direitos próprios, põe-se a si mesmo ao serviço dos interesses privados. Os antigos
conheceram a liberdade política, não a liberdade civil, isto é, conheceram a
liberdade de participarem do governo, não a liberdade de agir sobre o Estado no
interesse individual.
A antigüidade clássica ignorou ainda um segundo dualismo: o dualismo entre
e Igreja e o Estado. Não existia antigamente uma lei divina que impusesse ao Estado
determinados fins, nem extraia o Estado o seu valor de princípios religiosos. Isto que
no mundo moderno é repartido em duas instituições, o Estado e a Igreja, no Estado
antigo constituia uma unidade indissolúvel. O Estado antigo é, ainda, a Igreja; como
tal devia exercitar não apenas o direito, mas também uma disciplina moral. Este
açambarca tudo aquilo que ao homem é sagrado e caro, e o cidadão devia consagrar-
se ao Estado em íntimo sentimento. Bem diversa é a condição do homem moderno
submetido a uma dúplice autoridade, a uma dúplice lei, em freqüente conflito entre
si.
A soberania da lei é uma outra característica do Estado antigo. A lei é a
divindade cambiante, impessoal, que comanda assim aos homens como aos
governantes. O Estado é órgão da lei, não é seu autor. Qualquer que seja a forma de
governo a lei domina soberana. E na idéia de lei estava implícito o conceito de
limite, a condenação de todo o poder desenfreado e incontrolável, a redução à
unidade e à harmonia dos termos antitéticos da liberdade e da autoridade. A
concepção anárquica da liberdade, como a concepção despótica do poder, encontram
na lei soberana a sua condenação.
alcançar a norma para operar. Para Platão o homem que não é capaz de elevar-se à
contemplação do mundo das idéias (que são a natureza em relação ao espírito) é, só
por isso, ser inferior, privado de personalidade. E justificava a escravidão da maior
parte dos homens, imersos na sensibilidade, subtraíam-se ao conhecimento do
verdadeiro e do bom. Elevar-se ao mundo das idéias, viver segundo a virtude, não é
para todos, mas somente para poucos eleitos. Por isso os homens não são todos
iguais, nem possuem todos a mesma capacidade de conhecerem e praticarem a
verdade e a justiça. Não se pode falar de uma igualdade entre todos os homens,
porque a natureza dá a cada um disciplinas e capacidades diversas para apreender a
verdade. Por isso Platão fazia consistir a justiça sobre a qual se funda o Estado no
suum agere, e Aristóteles falava dos homens nascidos para comandar e dos homens
nascidos para obedecer. É-se naturalmente escravo, como se é naturalmente livre.
Liberdade e escravidão encontram os respectivos fundamentos na natureza e
constituem aspectos necessários da realidade. Liberdade e igualdade não são
atributos do homem, mas são qualidades objetivas e naturais. A submissão às leis
inexoráveis da natureza conduzia ao desconhecimento da personalidade e da
liberdade.
Com a personalidade moral era negada a personalidade jurídica.
Personalidade no domínio do direito significa capacidade de ser sujeito de direito. A
nós modernos parece óbvio que o homem como tal seja sujeito de direito, isto é,
pessoa. O reconhecimento da personalidade jurídica a todos os homens é conquista
recente. O Estado antigo assemelhou na escravidão o homem às coisas,
considerando-o objeto, não sujeito de direito. De outra parte para Platão, como para
Aristóteles, condição de liberdade e de capacidade política era pertencer à . A
personalidade possui simplesmente um valor político; é atributo do cidadão e não do
homem. Por isso o estrangeiro não é sujeito de direito e uma diversidade de valores
dos homens vem a ser afirmada em dependência da diversidade de ordenamentos
políticos. A sujeição à natureza e ao Estado impediu ao homem antigo afirmar a
personalidade como fonte de direito.
Mesmo aqueles que não partilham da opinião comum que o indivíduo no
Estado antigo não possui uma esfera de livre atividade frente ao Estado, devem
reconhecer que na antigüidade não chegara à consciência do caráter jurídico desta
esfera de liberdade frente ao Estado. E isto se dá em conseqüência da ausência de
antinomia entre o indivíduo e o Estado. Da liberdade como autonomia do querer e
como atividade criadora da ordem jurídica encontramos traço somente nas correntes
filosóficas que contrastam o pensamento dominante, isto é, nas escolas sofistas e
cépticas. Mas tais escolas fizeram obra crítica e negativa, e por isso infecundas.
A concepção naturalística e intelectualística da realidade tolheu aos gregos a
possibilidade de resolverem o contraste entre o direito ideal e o positivo. Para os
gregos somente o direito fundado na natureza é o verdadeiro direito; o direito
positivo não é outro que o direito natural traduzido nas leis. O direito natural se
colocava como verdade jurídica absoluta e suprema, que não admitia exceções,
adaptações. De outra parte não podia escapar aos gregos as imperfeições, as
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FONTES
Senofonte, Detti e fatti memorabili di Socrate, tr. de G. M. Bertini, Torino,
1877; Platão, The Republic, ed. by B. Jowett and L. Campbell, Oxford 1894, 3 vol;
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idem, La Repubblica, tr. de O. Zuretti, Bari, 1915; idem, Le leggi, tr. it. de A.
Cassarà, Bari, 1921, 2 vol. [reestampa Padova 1947]; [Todos os escritos políticos de
Platão, tr. de F. Adorno, Torino, 1970, 2 vol.]; Aristóteles, The Politcs; trans. by
W.L. Newman, Oxford 1887-1902, 4 vol.; idem, La Politica, trad. de V. Costanzi,
Bari, 1918; [trad. de C.A. Viano, Torino 1955].
BIBLIOGRAFIA
K. Hildenbrand, Geschichte und System der Rechts-und Staatsphilosophie, I
Bd. Das klassische Altertum, Leipzig, 1860; H. Arnim, Die politischen Theorien des
Altertums, Wien, 1919; W. Oncken, Die Staatslehre des Aristoteles, Leipzig 1870-
1875, 2 vol.; Ed. Salin, Platon und die griechische Utopie, München 1921; Fr.
Filomusi-Guelfi, La dottrina dello Stato nell’antichità greca, Napoli 1873; P. Janet,
Histoire de la science politique, Paris 1913.[ampla bibliografia sobre o pensamento
político grego in: T.A. Sinclair, Il pensiero politico classico, aos cuidados de L.
Firpo, Bari, 1973, 2 vol.].
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A concepção cristã do Estado
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N.T.: a expressão equivalente em português seria Idade Média. Todavia, deu-se preferência à forma italiana
em várias passagens desta tradução onde o termo “medioevo”, mais conciso, oferece uma estética narrativa
melhor.
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governo não é condicionada por sua forma, mas do ser reto e justo, isto é, de tender
para o bem comum.
São Tomás e em geral o medioevo consideraram a monarquia como a melhor
forma de governo, sobretudo pelas mais vastas agregações, enquanto as associações
de cidadãos melhor se regem com a participação do povo no governo da cumuna.
Não se deve esquecer o apoio dado pela Igreja às comunas, aos governos populares
e mistos do medioevo. Mas os reinos, pela multiplicidade e complexidade dos
elementos que participam de sua constituição, “propter necessitatem compugnationis
et mutui auxilii contra hostes”, melhor são governados por aqueles que
“antonomastice rex vocatur”12. A preferência pela monarquia se encontrava em
relação com a ordenação monárquica do universo, com a exigência da ordem e da
unidade. A monarquia medieval não era monarquia absoluta, mas ela coordenava-se
na organização hierárquica da sociedade medieval, que não admitia poderes
autônomos, não subordinados a um poder superior. O limite do poder monárquico
também era a existência de uma lei natural inderrogável. A violação das leis divinas
e naturais tornava o governo tirânico. A tirania é possível em qualquer forma de
governo: sua característica essencial é o exercício imoral do poder, e imoral é o
poder que não tende “ad bonum commune”, mas “ad bonum privatum regentis”13.
FONTES
Santo Agostinho, De civitate Dei, ed. Dombart-Kalb, Lipsiae 1928-29; tr. it.
de Passavanti, Torino 1853; [tr. de C. Giorgi, Firenze 1927-1930, 4 vols.]; São
Tomás, De regimine principum, ed. Mathis, Torino 1924; tr. de Mathis, Torino 1928;
[idem, Escritos Políticos, ao cuidado de A. Passerin d’Entrèves, Bologna, 1946].
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BIBLIOGRAFIA
P. Janet, Histoire, cit.; R.W. Carlyle, A History of Medioeval Political Theory
in the West, London 1903-1928 [6 vols., tr. di L. Firpo, Bari 1956-1968, 4 vols., com
amplíssima bibliografia para os séculos I-XIV]; J. Bryce, Storia del sacro romano
impero, trad. de Balzini, Napolis 1886; G. Carle, Le vita del diritto, Torino 1890; O.
Gierke, Les théories politiques du moyen âge, avec une intr. par. W. Maitland, Paris
1914; E. Troeltsch, Die Sozialehren der christlichen Kirchen und Gruppen,
Tübingen 1923; [trad. de G. Sanna, Firenze 1949-1960, 2 vols.]; O. Schilling, Die
Staats – und Soziallehre des hl. Augustinus, Freiburg 1911; Idem, Die Staats – und
Soziallehre des hl. Thomas von Aquin, des grossten Themlogen und Philosophen der
katholischen Kirche, Leipzig 1873; Idem, Die Staatslehre des hl. Thomas v. Aquin,
Leipzig 1909; J. Zeller, L’idée de l’Etat dans Saint Thomas d’Aquin, Paris 1910;
Crahay, La politique de Saint Thomas d’Aquin, Louvain 1896; M. Demongeot, Le
meilleure régime politique selon, S. Th., Paris 1928; B. Roland-Gosselin, La
doctrine politique de S. Thomas, Paris 1928; [exaustivos subsídios preliminares em:
S. Vanni Rovighi, Introduzione a Tommaso d’Aquino, Bari 1973].
3.
A concepção liberal do Estado
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N.T.: “monarcomachi” significa aquele que combate os soberanos absolutos (conf. verbete do dicionário
italiano “Lo Zinichelli”, pag. 1101, ed. 1997). À ausênica de vocábulo específico em português, que expresse
com exatidão o conceito que se pretende transmitir, nesta tradução preferiu-se manter o vocábulo italiano que
supre, desta forma, a lacuna existente.
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a) Não existem direitos acima e além do Estado. Não se deve esquecer que o
Estado absoluto formou-se historicamente nas lutas contra o papado e o
Império de um lado e, do outro, contra os privilégios feudais e a liberdade
comunal. O ordenamento jurídico medieval havia favorecido o
fracionamento da soberania, o multiplicar-se das jurisdições em prejuízo
da autoridade real e do governo central. Exprimia o Estado absoluto a
exigência de reconstruir o poder soberano na sua forma unitária e
indivisível, contra todas as forças morais e históricas que limitavam ou
obstaculizavam a sua autonomia e o seu livre desenvolvimento. Não
existem diante do Estado absoluto nem hierarquias, nem classes sociais,
nem castas, nem privilégios. Os próprios direitos privados são concessões
graciosas, e revogáveis, do soberano. Não se pode falar em direitos
pertencentes ao homem enquanto tal.
b) O príncipe é a encarnação do Estado. Isto significa que o sujeito de
direito público não é o Estado, mas o príncipe que o personifica, e que
todos os poderes do Estado são resumidos na pessoa do soberano. O
Estado não é uma realidade distinta do soberano, de forma que a sorte de
um é inseparável da do outro.
praticado pelo indivíduo que se faz vingador das ofensas produzidas à consciência
religiosa da coletividade. Nas formas e com argumentos originados na tradição,
inicia-se a luta do indivíduo contra o Estado Absoluto.
O movimento filosófico suscitado por Bacon e por Descartes não podia ficar
sem efeitos com relação às ciências morais e jurídicas. Nas suas obras, a extensão
dos princípios por eles postos, trazia implícito um renovamento das ciências morais.
A restaurada liberdade do espírito, o novo conceito do homem, da sua personalidade
e do seu valor, deveriam originar uma nova orientação do problema do direito e do
Estado. Ao conceito de uma vontade divina, que somente por sua intangível
autoridade institui e determina os ordenamentos sociais, substitui-se enfim por um
outro conceito: que estes ordenamentos devem ter o seu princípio e a sua lei no
próprio sujeito, isto é, no homem considerado na sua constituição natural e racional.
E fala-se de um direito natural de uma escola do direito natural, dos iusnaturalistas
e de iusnaturalismo para indicar a tendência de se descobrir para o direito um
fundamento na natureza; mas não se tratava como na antigüidade, da natureza física
exterior, mas da natureza do homem, considerada como fonte do direito.
A primeira conseqüência do movimento de idéias suscitado pela reforma
baconiana e cartesiana foi a distinção da filosofia jurídica da teologia. A distinção
possui uma grande importância histórica porque tornou possível a liberdade de
espírito na ordem de tratamento dos problemas relativos ao fundamento do direito e
do Estado. É celebre a passagem de Hugo Grócio (considerado como o fundador da
escola do direito natural) na qual afirma que o direito natural existiria “etiamsi
daremus Deum non esse”.
O princípio segundo o qual o Direito é expressão da personalidade e não é
condicionado por pressupostos naturalísticos e teológicos, transforma-se no ponto de
partida da nova especulação jurídica, que desenvolve-se em diversas formas e em
diversas direções, mas sobre a base de alguns conceitos fundamentais comuns.
Destes são particularmente importantes: 1)o conceito de direito natural do homem;
2)o conceito de um estado de natureza originário; 3)o contrato social.
A doutrina dos direitos do homem surge como conseqüência do princípio que
o direito é produção do sujeito, é afirmação da personalidade do homem em relação
à natureza externa e em relação aos seus semelhantes. Para a especulação anterior o
direito possui o seu fundamento na ordem natural ou divina, pressuposta ao homem
e à sua natureza; o direito subjetivo do homem é compreendido sobre a base e nos
limites de uma ordem objetiva imutável. Em conseqüência da concepção idealística
ocorre uma inversão pela qual o direito subjetivo é condição e limite do direito
objetivo. O homem transforma-se na substância de todo direito e os ordenamentos
civis são compreendidos em função de sua liberdade. Ocorria no seio da filosofia do
direito uma revolução análoga àquela que Bacon havia causado na ciência da
natureza e Descartes no domínio da filosofia racional.
Conjunta à doutrina dos direitos naturais do homem estava a doutrina de um
Estado de Natureza, no qual o homem liberto de qualquer vínculo político
desenvolve livremente a própria personalidade e o próprio direito. Para explicar a
passagem do Estado de natureza ao Estado civil e político, sem infringir o princípio
de que o homem é o autor da realidade política, surge a idéia de um pacto em virtude
do qual os homens, para reciprocamente garantirem-se o gozo dos direitos naturais,
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criam o Estado; este não possui mais origem natural ou divina, mas contratual, isto
é, voluntária e consensual. Os conceitos de direito natural, de Estado de Natureza, de
pacto social recebem cor e significado empírico ou racional de acordo com serem
empíricos ou racionais os pressupostos metafísicos que os movem.
ordem racional de relações aos fins da paz e da conservação. Mas tal ordem não
sendo natural, deve ser coativa, nem possui outra possibilidade de manter-se que à
força.
A influência exercida por Hobbes também em idade posterior deriva de haver
ele levado às conseqüências extremas o postulado do egoísmo puro, não temperado
por exigências éticas e sociais. E se à parte admitimos que há egoísmo no operar,
deveremos reconhecer o lado de verdade perene ínsita na doutrina de Hobbes.
Contra os excessos da liberdade e do egoísmo, contra o desconhecimento dos
interesses coletivos, o despotismo invocado por Hobbes pode verdadeiramente
surgir como o remédio para salvar o povo do perigo da anarquia. A férrea lógica de
Hobbes demonstrou, ainda que de forma paradoxal e em grandes letras, que a
liberdade natural desenfreada implica em sua negação. Hobbes teve presente o
sentido do direito e do Estado e viu, com realismo que recorda a Maquiavel, as
deficiências dos ordenamentos políticos fundados sobre abstrações racionais e
morais.
Em Hobbes (cuja lógica inexorável ignorou os sábios temperamentos, a
prudente reserva de Grócio) os conceitos que parecem caracterizar a concepção
liberal do Estado, quais sejam os direitos do homem, o estado de natureza, o pacto
social, dir-se-iam invocados para demonstrar a sua radical impotência para criar
qualquer ordenamento civil, que surge da negação, do estabelecer-se do extremo
despotismo. Porém, é verdade que o absolutismo de Hobbes não se origina, como
aquele de Maquiavel, da força e da virtude do príncipe, mas surge de um cálculo
racional de utilidade consagrada em um pacto. Trata-se de um absolutismo que
poderia chamar-se individualista, não apenas porque nele o Estado concretiza-se na
pessoa do príncipe, mas sobretudo porque é um absolutismo criado e consentido
pelos indivíduos que se submetem às regras do seu jogo, e representa o único
ordenamento que permite ao indivíduo conservar-se e gozar a segurança do direito.
O idealismo empírico aplicado ao problema do Estado admitia outras
soluções. O sistema de Hobbes permanece ou falece na medida em que se aceite ou
se rejeite as suas premissas psicológicas. Ainda antes que em sede de princípios, o
pessimismo de Hobbes encontrava desmentido na revolução inglesa de 1689, que
instaurava uma ordem política liberal e assinalava o fim do absolutismo real. No ano
seguinte, quase a justificar o grande acontecimento histórico, John Locke publicava
o seu Tratado Sobre o Governo Civil, que é o texto clássico do liberalismo político.
A concepção liberal do Estado foi expressa em múltiplas formas no período de
formação do Estado constitucional moderno. Mas três podem considerar-se as
formas típicas de tal concepção, também pela influência histórica que exerceram: o
liberalismo empírico (Locke-Montesquieu); o liberalismo ético (Rousseau); o
liberalismo jurídico (Kant-Humboldt). Vejamos brevemente cada uma destas formas.
pareceu definitiva. A renúncia à liberdade deve ser a mínima possível, isto é, deve
conter-se nos limites estritamente necessários para que o Estado possa cumprir as
suas funções de defesa da liberdade individual não renunciada. E as funções do
Estado reduzem-se a fixar os limites à liberdade de cada um em respeito à dos
outros; a fazer-se árbitro de eventuais contendas; a exercitar a função punitiva em
defesa da ordem natural. De outro modo: a condição de renúncia à liberdade é que
essa seja feita por todos na mesma medida. A lei da liberdade igual e da igual
limitação transformam-se em dogma de uma constituição liberal do Estado. Por
último, devem colocar-se as garantias contra os abusos do poder por parte do Estado.
Aquele que possui a força é naturalmente inclinado a dela abusá-la. Tais garantias
vão da nulidade dos atos lesivos ao pacto, ao direito de resistência e de sublevação,
proclamados por Locke, à divisão dos poderes proposta por Montesquieu, que opera
automaticamente a garantia da liberdade política.
do direito público da Revolução. O segredo de seu sucesso não deve somente recair
na qualidade excepcional do escritor, no constante amor vivo pela causa da
humanidade aviltada, oprimida por secular iniquidade, mas sobretudo em ter
compreendido e expresso a alma francesa na sua tendência mais própria e profunda,
restaurando, contra o empirismo e materialismo dominantes, o método cartesiano, o
culto da idéia, da consciência, na determinação daquilo que é verdadeiro e bom.
A obra de Rousseau aparece no momento no qual a ação crítica e negativa do
enciclopedismo ameaçava seriamente o espírito nacional. Religiosamente a
Enciclopédia significava para alguns ateísmo, para outros deísmo, para todos
negação do sentido cristão de vida, que entretanto era profundamente arraigada nos
espíritos. Na filosofia a Enciclopédia significava sensualismo, materialismo,
egoísmo. Na educação, as tendências de Rousseau estavam em pleno contraste com
o ambiente e com a filosofia do enciclopedismo. Ele era um espírito intimamente
religioso, mas de uma religiosidade toda ela interior, que mais se alimentava do
sentimento do que da razão. Sem Deus, para ele não é possível nem a moralidade
privada nem a pública. Ao deísmo, que considerava a religião como uma abstrata,
vaga exigência racional, opunha a religião do coração expontâneo, vivo, sincero. Ele
profere palavras ásperas contra o materialismo, que dava alma às plantas para negá-
la ao homem. Antes de Kant fazia o processo à razão humana, revelando os seus
limites e perigos. Ao racionalismo cartesiano, que elevava a evidência a critério de
verdade, as idéias claras e distintas a fonte do saber, Rousseau opunha a voz
infalível da consciência, o senso inato do verdadeiro e do bom.
A nova religião do coração, a nova filosofia do sentimento, atuaram sobre as
mentes não corrompidas pelo enciclopedismo e determinaram o sucesso de
Rousseau. A consolidarem sua fama e popularidade contribuíram as doutrinas
sociais e políticas. Neste campo, as tendências a um só tempo libertárias e
autoritárias de Rousseau afirmaram-se num duplo apostolado: na exaltação da
liberdade natural do homem selvagem e na exaltação da liberdade moral e civil no
Estado.
A natureza compreendida por Rousseau, não era a natureza sem alma dos
enciclopedistas, mas era a natureza sentida como revelação do pensamento e
bondade de Deus. Escreve: “tudo que sai das mãos de Deus é bom; tudo aquilo que
passa pelas mãos do homem corrompe-se” 22. Esta natureza “touchante et pure”
exaltou-a Rousseau como promessa de libertação. Este homem rebelde a toda
autoridade, zeloso da liberdade até evitar os seus semelhantes, compreendeu o
retorno à natureza como meio de emancipar-se da tutela social, como necessidade de
independência.
O estado de natureza é para ele uma realidade psicológica ainda antes do que
histórica; que tenha realmente existido, ele mesmo o põe em dúvida. Mas não é
dúbia a tradição bíblica segundo a qual o homem emerge das mãos de Deus em
condições de inocência, de simplicidade, somente consigo e com suas necessidades
naturais, que podia largamente satisfazer sem obstáculos e fadiga. D’onde o erro de
Hobbes e Locke, que falam de uma bondade e uma maldade naturais, atribuindo os
vícios ou virtudes da civilização a um estado que por hipótese é o seu oposto. E em
nenhum caso pode-se falar de paz e guerra entre homens que vivem isolados e
excluídos da possibilidade de ofenderem-se mutuamente.
Naturalmente livres e iguais são os homens no estado de natureza; mas a sua
liberdade é faculdade de satisfazer as necessidades naturais sem encontrar
obstáculos: a igualdade deriva da identidade de condições naturais e da recíproca
independência.
As condições do homem no estado de natureza seriam bem próximas àquelas
dos animais, se o homem não tivesse, em relação a estes últimos, o sentimento da
piedade, a qualidade de agente livre, a possibilidade de aperfeiçoar-se. A piedade
contém em germe a vida moral, porque, moderando em cada indivíduo o amor
próprio, o leva a viver os prazeres e a dor dos seus semelhantes e concorre para a
mútua conservação.
O homem possui a faculdade de conceder ou resistir à natureza e na
consciência desta liberdade de escolha revela a espiritualidade de sua alma e a sua
superioridade em relação aos animais. O homem desenvolve-se nas suas faculdades
físicas, na imaginação, no intelecto, e em relação a tal desenvolvimento desperta
nele novos impulsos, novos desejos, novas paixões. O desenvolvimento não é
uniforme, mas varia infinitamente de indivíduo para indivíduo, assim como as
desigualdades físicas e morais apenas sensíveis no estado de natureza, afirmam-se
sempre mais no desenvolver-se sucessivo do espírito humano. Isto é inevitável, nem
Rousseau tem motivo para maravilhar-se ou de lamentar-se, também porque as
desigualdades naturais em si mesmas não atentam contra a liberdade e a felicidade
do homem. A diversidade de atitudes, das necessidades, das condições, se implica
numa mútua dependência entre os homens, não significa daí sujeição de um a outro
até que cada qual, em qualquer momento, possa subtrair-se dos vínculos sociais e,
22
N.T.: in Emílo ou Da Educação, livro I. A versão brasileira da obra apresenta a seguinte versão da citação:
“Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (São
Paulo, Martins Fontes, 1995, pg. 7, trad.: Roberto Leal Ferreira).
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quer ser a verdadeira história do homem concebido como ser natural, contra a
história imaginária e falsa de Hobbes e Locke. Fundar o Estado sobre a liberdade
empírica, sobre o pressuposto de seres que perseguem a própria vantagem, significa
para Rousseau favorecer a causa do despotismo. E isto Hobbes havia
verdadeiramente intuído e afirmado. Escapar às conseqüências de Hobbes, sem cair
no liberalismo empírico de Locke, condenado a um tempo pela natureza e pela
razão, foi a tarefa a que se propôs Rousseau no Contrato Social (1762) que
caracteriza a fase reorganizadora definitiva e de seu pensamento político.
23
N.T.: “estúpido e limitado” ... “ser inteligente e um homem
48
Se a vontade geral é sempre reta, o juízo que a guia não é sempre iluminado.
O povo sempre quer o seu bem, mas nem sempre o conhece e freqüentemente é
desviado pelas paixões. Daqui a necessidade de um bom legislador, que cumpra em
relação ao povo o ofício que o educador cumpre em relação ao indivíduo, devendo
ele transformar o homem em cidadão , isto é, o homem que persegue o seu interesse
particular no cidadão que sente e vive o valor ético da vida em comum (Cont., II, 7).
dever: deve ele seguir esta última, porque quer ser livre. Fora do Estado não se dá
para Rousseau a verdadeira vida moral, a verdadeira liberdade. Não que antes do
Estado não existissem no homem os germes da vida moral (Contr., I, 8), mas tais
germes apenas no estado civil encontram condições favoráveis de desenvolvimento
e se transformam no sentido consciente do dever. Para Rousseau a sociedade é
condição de progresso ético e jurídico do indivíduo. Não de outro modo haviam
pensado a antiguidade e o medioevo. Somente os excessos do individualismo dos
séculos XVII e XVIII haviam feito esquecer estes ensinamentos e haviam difundido
a idéia de que o homem deve tudo a si mesmo, que só ele é autor, assim, tanto do
bem como do mal, que a sociedade civil serve apenas para garanti-lo contra
eventuais lesões.
Certo que Rousseau não foi liberal no sentido de Locke, convicto como era de
que o liberalismo empírico, abandonando o indivíduo a si mesmo, às suas tendências
naturais, abria a via à permissividade e ao despotismo. Também não foi absolutista
no sentido de Hobbes, porque quis a força, a coação do Estado a serviço da razão e
da liberdade moral. Foi ele liberal e autoritário ao mesmo tempo, mas sempre com a
mente dirigida ao melhoramento e à elevação moral do indivíduo.
Consiste o defeito de Rousseau na falta de solução para os dualismos em um
sistema de idéias lógico e unitário. Em sua obra encontramos motivos diversos e
contrastantes, artificiosamente compostos em unidade. Exigências empíricas e ideais
também não se fundam em uma síntese filosófica. Não separou a moral do direito e
concebeu o Estado mais como organismo ético do que político. Não se vê como a
liberdade moral do indivíduo possa realizar-se com os meios coativos de que dispõe
o Estado. Por isso o liberalismo de Rousseau, valendo-se de meios inadequados,
corria o risco de terminar na utopia ou de degenerar em um novo despotismo. As
exigências empíricas e morais imanentes ao liberalismo político reclamavam
superação. A isto deveria buscar Kant com a sua concepção de liberdade externa e
do Estado jurídico. Rousseau não escapou das conseqüências deletérias do método
abstrato aplicado para solucionar problemas empíricos, como são os problemas da
vida política, na qual, mais do que sufocar a natureza, trata-se de reconhecer as
legítimas, insuprimíveis exigências, para dominá-la e elevá-la à luz de um princípio
mais alto, que não pode ser somente ético, mas correspondente às peculiares
necessidades e possibilidades do direito. O Estado não é constituído de indivíduos
reduzidos ao denominador comum da igualdade moral e racional. A luta entre o
sentido e a razão, entre liberdade natural e moral é condição de vida e de progresso
da sociedade humana, nem pode a coação do Estado servir para suprimir os fatos, a
história. Tivemos a sua confirmação luminosa, ainda que trágica, na Revolução
Francesa, que verteu o ideal da liberdade política na abstrata forma doutrinal de
Locke e de Rousseau.
diversas fases, aquilo que diz respeito a Rousseau, aquilo que diz respeito a outros,
não apenas pelo vertiginoso suceder dos acontecimentos, mas pelos interesses e
paixões que uma vez por outra prevaleceram, pela diversa formação e mentalidade
dos líderes que se sucederam na direção do movimento revolucionário. Portanto, não
se pode a priori excluir nem a influência de Rousseau, nem aquela de Montesquieu,
em todas as sucessivas fases da Revolução, também porque, como destacamos,
Rousseau não teve uma linha única e constante de pensamento político e quando
encontrou-se constrangido a resolver problemas práticos apoiou-se largamente em
Montesquieu. D’outra parte o ódio ao despotismo, a paixão pela liberdade
individual, deveria, sobretudo em um primeiro momento, reunir e confundir os
seguidores de Rousseau e Montesquieu e atenuar o profundo dissenso acerca do
modo de compreender a liberdade e de instrumentalizá-la. Mais que a lógica ou os
particulares de uma doutrina devemos destacar o espírito geral predominante nos
diversos momentos do turbilhão revolucionário. Sob este ponto de vista não há
dúvidas para nós que a preocupação pela liberdade individual foi o impulso mais
forte no primeiro período da Revolução, enquanto no segundo período contra a
anarquia reinante pareceu melhor conselho restaurar a autoridade do Estado e
garantir a liberdade individual com os meios indicados por Rousseau.
28
N.T.: “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”.
29
N.T.: “o objetivo de toda instituição política”.
30
N.T.: “os atos do poder legislativo e aqueles do poder executivo”.
31
N.T.: “fazer tudo que não seja nocivo a outrem”.
55
32
N.T.: “que tem por princípio a natureza”.
56
não foi menor o mérito de Kant havê-la reafirmado sob o fundamento de uma
correspondente doutrina do direito.
O problema da autonomia do direito em relação à moral havia assumido na
era prékantiana importância e significado histórico. Esse era um aspecto da luta que
o indivíduo, em defesa das suas liberdades fundamentais, sustentava contra o Estado
absoluto, tirânico ou paternalista que fosse, que pretendia estender a sua ação ao
domínio ético e contribuir com os seus meios para a felicidade dos indivíduos. Na
especulação dirigida para distingüir o direito da moral estava implícita a questão da
natureza e dos limites da atividade política no resguardo do indivíduo.
Não era fácil estabelecer um critério diferencial universalmente válido entre
as duas formas da atividade prática. Malgrado Grócio, o fundador da escola do
direito natural, houvesse deste último afirmado a sua independência da teologia e
houvesse reconhecido a sua intrínseca validade “etiamsi daremus Deum non esse” 34,
dominava sempre a doutrina tradicional que não fazia do direito uma parte da moral,
na forma expressa por Leibniz e por sua escola, isto é, no sentido que a justiça existe
primeiro numa forma empírica, utilitária (ius strictum) para elevar-se
progressivamente à esfera da moralidade (aequitas) e por último àquela da religião
(pietas).
Somente um jurista germânico da escola de Grócio, Cristiano Thomasius
(1655-1728), turbado pela multiplicidade e iniqüidade dos processos de heresia e de
magia que golpeavam as consciências e tornavam necessárias as torturas para
extirpar a confissão aos presumidos culpados, revelou o perigo, para a liberdade e
dignidade humanas, da confusão daquilo que é ético com o que é jurídico, e dirige o
melhor de sua atividade para assinalar os limites insuperáveis à ação do direito e do
Estado na proteção da vida ética individual. De outro modo Thomasius, distinguindo
entre felicidade e paz interna, felicidade e paz externa, a esta última tocava o direito,
cujas normas, em contraponto àquelas éticas, apresentam o carácter da negatividade,
exterioridade, bilateralidade, coatividade. Insistia ele sobretudo na coação como
característica essencial e diferencial das normas jurídicas, pela qual estas realizam-
se ainda contra a vontade de quem as cumpre e como tais podem dizer-se perfeitas
em relação às morais, em relação às quais ninguém pode garantir a observância.
Kant reparou na necessidade de distingüir a moral do direito, mas não
acolheu os critérios empíricos de Thomasius, fundados na natureza e finalidade das
normas. Ele procurou na atividade prática do sujeito o fundamento da distinção. Esta
atividade, essencialmente livre, pode afirmar-se ou em relação às leis morais, ou nas
relações externas, sociais. No primeiro caso determina-se pelo dever em si, pelo seu
valor intrínseco e absoluto, livre de qualquer impulso interessado, de qualquer
motivo que não seja o respeito pela lei. No segundo caso a vontade determina-se à
ação por motivos econômicos, calculistas: é vontade particular, não universal. Por
isso o homo iuridicus, isto é, o homem que age juridicamente, é o homem dominado
pelos sentidos, que persegue fins subjetivos e apenas é capaz de uma conformidade
externa à lei (legalidade), de uma racionalidade exterior de seus atos. Portanto, a
34
[“Ainda querer admitir que Deus não existe”]
58
racional. Por isso o contrato em Kant não é social, mas político; não cria o Estado,
mas o constitui em razão do direito.
FONTES
Maquiavel, O príncipe, intr. e notas de F. Chabod, Turim 1924, [rist. 1962];
Hobbes, Leviatano, tr. de M. Vincinguerra, Bari, 1911-12, 2 vl.; [idem, Opere
politiche, tr. de Norberto Bobbio, Turim, 1959]; Locke, Saggio sul governo civile, tr.
de V. Beonio-Brocchieri, Turim, 1925; [idem, Due trattati sul governo, tr. de L.
Pareyson, Turim, 19602]; Montesquieu, Esprit des lois, ed. Garnier, 1874; [tr. de S.
Cotta, Turim, 19652, 2 vl.]; Rousseau, The political Writings, int and notes by C.E.
Vaughan, Cambridge 1915; idem; Du contract social, ed. Beaulavon, Paris, 1922;
idem, Contratto sociale, tr. int. di G. Perticone, Turim, 1927(contiene anche la tr. dei
Discours del 1750 e 1754); [idem, Scritti politici, tr. di P. Alatri, Turim, 1970]; Kant,
La dottrina del diritto, tr. de G. Vidari, Turim 1923; idem, Scrittici politici, tr. di P.E.
Lamanna, Lanciano 1917; [trad. di G. Solari e G. Vidari, Turim, 19652].
38
[Não será inútil recordar que Solari escrevia, e não hesitava publicar, estas corajosas palavras em 1930,
enquanto o fascismo oprimia a liberdade].
66
BIBLIOGRAFIA
a) Geral: P. Janet, Histoire, cit.; F. Pollock, Introduzione alla storia della
scienza politica, tr. de V. Beonio-Brocchieri, Turim, Bocca, 1923; F. Meinecke, Die
Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte, Munique 1924; [tr. it. de G. Solari,
Firenze 1942]; C.E. Vaughan, Studies in the history of political phiosophy before
and after Rousseau, edited by A.G. Little, Manchester 1925, 2 vl.; B. Croce,
Elementi di Politica, Bari 1925; G. de Ruggiero, Storia del liberalismo europeo,
Bari 1925 (com appendice bibliografica).
4
Liberalismo, constitucionalismo, democracia
nas doutrinas políticas do século XVIII
67
utilidade. Desta razão comum não pode ser juiz imparcial o singular, mas o
indivíduo médio, despido de suas particularidades, contemplado na sua abstrata
natureza empírica, personificado no Estado, criação dos indivíduos que, pretendendo
coexistir segundo uma lei da razão, limitam-se reciprocamente e se tornam garantes,
ainda que coativamente, da ordem natural que se extrai desta recíproca limitação.
Portanto, o Estado liberal personifica o homem natural, normal, no qual os sentidos
e a razão harmonizam-se, que respeita nas relações externas a lei da igualdade; esta
não é homenagem feita a uma lei impessoal, mas é o respeito à lei enquanto exprime
a igual medida de liberdade de cada um.
40
J. Locke, Two treatises of governament (1689), lib. II, 18-19; C. de Montesquieu, L’esprit des lois (1748),
lib. Xi, 6.
72
Estado não surge de uma alienação total ou parcial de direitos por si próprios
inalienáveis, mas surge para a sua mais segura e eficaz defesa.
D’outra parte era evidente o perigo de uma doutrina que abandonava a sorte
do Estado ao volátil juízo dos indivíduos e da coletividade. Por isso a técnica
constitucional, não podendo renegar o princípio, pôs todo o cuidado para torná-lo
praticamente inane mediante um mecanismo constitucional que parecia excluir
automaticamente a possibilidade do Estado desviar-se de seus fins. Tal mecanismo,
representado por Locke, era por Montesquieu traduzido na doutrina dos três poderes
e de sua separação. Deste modo rompia-se com a tradição de Bodin e Hobbes da
soberania absoluta e indivisível, que se consubstancia na pessoa do príncipe. No
Estado liberal a unidade do poder soberano é apenas formal: de fato as funções e as
atividades fundamentais do Estado (legislativa, judiciária, executiva) concretizam-se
em outros tantos poderes, cada um dos quais na sua esfera é absoluto e autonomo, e
nenhum deles pode subsistir sem a cooperação do outro. Ao dogma da unidade do
poder soberano opunha-se o dogma da pluralidade dos poderes, elaborados de modo
que os próprios excessos de um eram compensados pela natural resistência dos
outros. Por esta teoria, bem mais do que por aquela tradicional da melhor forma de
governo, encontrava adequada garantia não apenas a liberdade civil, mas aquela do
cidadão defronte ao Estado. Porque, se a liberdade civil poderia ser encontrada
também nas formas despóticas de governo, a liberdade política compreendida como
defesa do indivíduo contra os abusos do poder somente poderia realizar-se nas
constituições liberais, enquanto estas representavam a antítese absoluta de toda
forma de despotismo, quer em sentido monárquico, quer democrático. Em Locke,
mais do que uma divisão, temos ainda uma hierarquia de poderes. O poder
legislativo é poder proeminente e verdadeiramente soberano. Como poder que faz as
leis e impõe a sua observância, é ele superior aos órgãos do Estado que devem
aplicá-las e executá-las. É verdade que o próprio poder legislativo em Locke, mais
do que criar leis novas, é chamado a interpretar, a determinar as leis naturais; por
isso desenvolve uma atividade condicionada e limitada. Juiz último da atividade
legislativa é a comunidade dos indivíduos que o criou. A soberania do povo, ainda
que não declarada expressamente, estava implícita na doutrina liberal de Locke.
Em Montesquieu não é mais questão do estado de natureza, nem do pacto
constitutivo, nem da soberania natural do homem. Diminui o interesse pela origem e
pela legitimidade do Estado e as atenções concentram-se sobre o seu funcionamento,
sobre os meios dirigidos para impedir eventuais desvios em prejuízo do indivíduo.
Deste modo, vinha a técnica constitucional com Montesquieu a integrar a doutrina
liberal do Estado.
homme, le bon sauvage”, ele bem viu que a liberdade natural do homem,
desenvolvendo-se, conduz inevitavelmente às desigualdades econômicas e sociais e,
portanto, ao despotismo, enquanto a igualdade, aquela que o liberalismo lockeano
desejava, implicava em uma restrição arbitrária da liberdade e originava um
equilíbrio abstrato, instável, que ocultava nas formas da igualdade legal, profundas,
injustificadas desigualdades reais. Por isso convenceu-se que em sede empírica não
são possíveis nem a verdadeira igualdade, nem a verdadeira liberdade; que o
liberalismo empírico instaurava uma nova forma de servidão social, econômica; que
urgia resolver o problema político “ex principiis” e não “ex datis”, substituindo o
dogma da igualdade e da liberdade naturais, pelo postulado da liberdade e da
igualdade moral e racional. Quanto a tradição religiosa calvinista influiu sobre a
formação da doutrina democrática de Rousseau não é o caso de indagar-se. Certo é
que ela podia fundar-se e justificar-se sobre o pressuposto cartesiano de que a razão
é o oráculo infalível de todas as regras do bem e do mal e que a única igualdade
natural de que se pode falar entre os homens é a igualdade da razão. Na primeira
página do Discours sur la méthode lê-se: “Le bon sens ou la raison est naturellement
égale en tous les hommes ... car pour la raison, ou le sens, d’autant qu’elle est la
seule chose qui nous rend hommes et nous distingue des bêtes, je veux croire qu’elle
soit tout entière en chacun, et suivre en ceci l’opinion commune des philosophes qui
disent qu’il n’y a de plus et du moins qu’entre les accident, et non point entre les
formes ou natures des individus d’une même espècie”42. Era necessário o gênio de
Rousseau para extrair do racionalismo cartesiano uma doutrina verdadeiramente
democrática, que realizasse o princípio da igualdade entre indivíduos dominados
pelo egoísmo, pelos sentidos, rebeldes ao freio da razão, da natureza inclinada a
acentuar as suas desigualdades originais, Rousseau intuiu que o problema do Estado
não era o de conciliar interesses e egoísmos naturalmente inconciliáveis, mas, antes,
arrebatar o homem da servidão à natureza e aos sentidos para elevá-lo à dignidade
do cidadão, ou seja, de membro de uma associação na qual domina soberana a lei,
ou seja, a razão, “que é una e inteira em cada um” e, como tal, é verdadeiramente
comum e igual para todos. O Estado é o reino da razão, da liberdade verdadeira,
moral, contraposto à natureza, na qual as desigualdades e o arbítrio dominam e se
perpetuam. Por isso, no Estado, como templo da razão, ingressa-se por um ato de
renúncia, que significa a aceitação de uma lei superior de liberdade que comanda a
natureza inferior. Rousseau fala, é verdade, de uma alienação incondicionada de
todos os direitos naturais da parte do indivíduo, mas esta alienação deve ser
compreendida no sentido de que o indivíduo no exercício da sua atividade se
submete à disciplina da razão, que não suprime a sua individualidade empírica, mas
a eleva, a enobrece, de molde a torná-la capaz de desenvolver-se em harmonia com
as mais altas exigências espirituais e morais. A democracia de Rousseau é toda
42
N.T.: “O bom senso, ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens ... pois por razão, ou sentido, na
medida em que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, eu quero crer seja
completamente inteira em cada um de nós, e seguir nisso a opinião comum dos filósofos que dizem haver
menos ou mais apenas entre os acidentes, e não entre as formas ou natureza dos indivíduos de uma mesma
espécie.
75
identificar a vontade unânime com a vontade majoritária. A soma dos votos não teria
por si mesma nenhum significado, se devesse exprimir apenas uma pluralidade de
vontades particulares: mas através do voto dos melhores reconhece-se se uma lei
está conforme o querer comum, unitário, que é imanente e pleno em cada um de nós.
Com o seu voto o cidadão obedece aquela natureza racional que de per si pode
justificar o Estado. A vontade majoritária fornece uma fundada presunção de que a
opinião da maioria exprime verdadeiramente a vontade geral. O divórcio entre
maioria e minoria não deve traduzir-se como um divórcio entre o interesse geral e o
interesse particular, mas como divórcio acerca do modo de compreender e
interpretar a vontade geral. “Quand on propose une loi dans l’assemblée du peuple
ce qu’on demande [aux citoyens] n’est pas précisément s’ils approuvent la
proposition ou s’ils la rejettent, mais si elle est conforme ou non à la volonté
générale, qui est la leur” 44. A vontade majoritária declara que a lei proposta concorda
com a vontade geral, isto é, com o bem público. Quando prevalece a opinião
contrária à minha, “cela ne prouve autre chose sinon que je m’etais trompé, et que ce
que j’estimais être la volonté générale ne l’était pas”45 (Cont., IV, 2 etc.).
Mas não era fácil fazer corresponder a teoria à prática democrática. Era
sempre possível às vontades particulares unirem-se e prevalecerem numericamente
sobre o expresso querer do bem público. Em uma sociedade na qual as diferenças de
riquezas e de condições sociais não são abolidas, mas na qual todos os cidadão são
politicamente iguais, grande é a tentação de fazer uso do voto para proteger e para
sustentar os interesses dos mais pobres, que são naturalmente os mais numerosos.
Uma aparência de justiça está ínsita no movimento dirigido a estender a igualdade às
relações econômicas e sociais, ainda abstraindo da “inveja democrática”, que
reconhece em qualquer superioridade um motivo de injustiça. E na verdade pode
parecer uma contradição imoral proclamar a igualdade política dos homens e manter
entre eles uma hierarquia econômica e social. Se a função do Estado é de realizar a
justiça, deve parecer natural e legítimo valer-se disso para fazer cessar as
desigualdades reais. O próprio Rousseau que, todavia, não chegou a elevar a
princípio de justiça a igualdade econômica e social, viu o perigo político derivado
das gritantes desigualdades econômicas e sociais; e, como já Aristóteles, considerou
a mediocridade como condição de estabilidade do Estado. Aqui mais profundo se
revela o divórcio entre o ideal de Rousseau e aquele do liberalismo, ao qual a
diversidade de gênios, das atitudes, deveria aparecer um bem socialmente bem
maior do que a uniforme mediocridade.
O dissídio entre liberalismo e democracia deveria aprofundar-se à medida que
o ideal democrático tendia a estender o princípio da igualdade natural às relações
econômicas e sociais. Não é justo fazer de Rousseau o responsável pela
degeneração, no sentido do realismo e do materialismo, do ideal democrático. A
igualdade possui para ele, como para Montesquieu, seu fundamento na virtude, isto
44
N.T.: “Quando se propõe uma lei na Assembléia do povo o que se pede [aos cidadãos] não é precisamente
se eles aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas se ela é conforme ou não à vontade geral, que é a deles.
45
N.T.: “isso não prova outra coisa, senão que estava errado, e o que eu estimava ser a vontade geral não o é”.
77
46
N.T.: “a força das coisas tende sempre a destruir a igualdade, a força da legislação deve, sempre, tender a
mentê-la”.
78
47
N.T.: “a lei deve ser a mesma para todos, seja protegendo, seja punindo. Todos os cidadãos, sendo iguais a
seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua
capacidade e sem outra distinção que não seja a de suas virtudes e de seus talentos.
48
Em 1787 saia a quinta edição da obra de De Lolme, Constitution de l’Angleterre ou Etat du gouvernament
anglais, comparé avec la forme républicaine et avec les autres monarchies de l”Europe, Genebra, 1787. De
Lolme, calvinista, era membro do Conselho dos 200 da República de Genebra. O sucesso da obra reeditada
em 1790, revela a tendência política dos espíritos. A obra teve uma tradução italiana em Nápoles em 1861, aos
cuidados de Emanuele Rocco.
79
Declaração de 1793) resulta concluir senão que: “la nature a donné à tous les
hommes un droit égal à la jouissence de tous le biens” 51 (art. 1º da Analyse de la
doctrine de Babeuf, Paris 1796). Para realizar esta condição de fato não há para
Babeuf senão um meio: “Les travaux et lesjouissances doivent être communes” 52
(idem, art. 4º). A igualdade dos direitos civis e políticos não é senão uma ficção, se
não vem acompanhada pela igualdade social, isto é, pela igualdade de condições,
única capaz de realizar a igualdade real, daí a necessidade de uma nova revolução no
interesse não de uma classe, mas de todos. “La révolution française”, declara o
Manifeste des Egaux, “n’est que l’avant-courrière d’une autre révolution bien plus
grande, bien plus solennelle et qui sera la dernière” 53. A nova revolução social
deveria restabelecer a primitiva igualdade real mediante a supressão da propriedade
privada e a eqüitativa distribuição das riquezas e da cultura. O divórcio com o ideal
da revolução burguesa foi expresso por Robespierre, quando afirmou que a
igualdade sonhada por Babeuf “est une chimère, essentiellement irréalisable dans la
société civile, et supposant nécessairement la communauté, qui est encore plus
visiblement chimérique parmi nous”54. Também Rousseau havia exaltado o Estado
de igualdade originária da humanidade, mas havia também reconhecido que esse não
podia manter-se e que só a atividade dos indivíduos regulada pelo Estado soberano
podia originar ente os homens uma condição de vida social conforme a razão. A
Revolução Francesa podia aderir à doutrina de Rousseau enquanto ela garantia o
pleno, variado desenvolvimento da individualidade, debaixo de uma lei superior de
liberdade e de razão expressa pelo Estado. O comunismo de Babeuf, enquanto dava
ao dogma da igualdade natural um conteúdo concreto, não era a conseqüência
lógica, mas a negação aberta da mentalidade e da doutrina revolucionária, assim na
sua direção empírico-liberal como naquela racional-democrática. Por isso a
conspiração de Babeuf em 1796, logo reprimida, não teve seguidores imediatos e
não desviou a Revolução de sua finalidade. O erro de Babeuf foi o de invocar uma
ideologia essencialmente individualista, contrastante com o ideal de justiça e
igualdade social que ele se propunha realizar.
Schutz que o havia repreendido de haver com a sua filosofia contribuído à formação
da consciência revolucionária. Na Doutrina do direito55 Kant havia dado a
justificação jurídica da Revolução, destacando o erro de Luís XVI de haver confiado
ao povo o seu poder soberano de fazer as leis. Nem o direito soberano do povo podia
compreender-se limitado à particular questão de prover a uma mais eqüitativa
repartição dos tributos, porque a soberania é por sua natureza plena e indivisível.
Mas não tanto por sua legitimação se explica a simpatia de Kant pela Revolução,
quanto pelas razões morais e ideais que nela triunfaram, como se pode notar nas
considerações a propósito expressas no Conflito das Faculdades (1798). Nem por
isso se deve pensar que cria Kant realizado na Revolução a sua concepção do direito
e do Estado. Antes se deveria dizer que ele admirava na Revolução o manifestar-se
daquelas forças cegas, naturais, expontâneas, que na história agem
independentemente de qualquer prevenção humana para o triunfo do que é
verdadeiro e justo.
Sem dúvida, não se pode menosprezar a aversão de Kant por toda forma de
despotismo, fosse esse do príncipe ou do povo, legítimo ou violento. Em qualquer
forma de despotismo via Kant o predomínio do arbítrio da vontade singular ou
associada no seu particularismo e na sua subjetividade, da qual não podia extrair
nem uma norma, nem uma autoridade possuidora de valor objetivo, universal,
impessoal. E na prática o direito e o Estado são para Kant conceitos transcendentais
que pertencem a uma realidade inteligível e não podem erigir-se senão a priori ao
largo de qualquer experiência. Somente isto que a priori possui validade objetiva,
universal.
Particularmente severo demonstra-se Kant contra o despotismo ético, tanto na
sua forma pessoal, empírica, iluminada da sua pátria, quanto na forma racional e
democrática de Rousseau. O Estado que pretende atuar por meios coativos a
felicidade individual ou a moral coletiva não alcança tal escopo e transforma-se
opressor. Há interesses concernentes à personalidade natural que se subtraem à ação
do direito e do Estado e que somente o indivíduo pode satisfazer. Trata-se de
interesses que o Estado pode limitar, regular nas suas manifestações externas, nos
seus efeitos sociais, políticos, mas não pode substituir. A personalidade do homem
nas suas exigências naturais e morais ainda possui para Kant valor absoluto e não
pode nem existir, nem desenvolver-se sem a ação livre, direta do indivíduo. Por este
culto quase religioso da personalidade pode afirmar-se ser Kant intimamente liberal
e em conseqüência antidemocrático, se por democracia compreende-se a
subordinação do indivíduo a uma legislação externa que deriva a sua autoridade e o
seu valor do Estado concebido como realidade empírica.
Kant não acolhe a exigência igualitária implícita na doutrina democrática:
mas também não se pode afirmar ser liberal no sentido em que o liberalismo era
compreendido por Locke, por Montesquieu e que foi traduzido nas Declarações e
Constituições anglo-americanas e francesas. Hoje, depois de uma experiência
secular, pode-se afirmar que Kant com a sua concepção do Estado jurídico pôs o
55
[I. Kant, Scritti politici, cit., pg. 532-533].
82
põe a norma (poder legislativo) que, pela mediação da menor (poder executivo) deve
levar à conclusão (sentença do juiz).
O poder legislativo deve ser organizado de modo a exprimir verdadeiramente
a soberania do povo compreendido não empiricamente, mas como unidade moral do
Estado. Enquanto a lei exprime a vontade de um, de poucos, do próprio povo
considerado como soma das vontades particulares, ela é intimamente,
necessariamente injusta; enquanto a lei, ainda a mais dura, quando procede da
vontade unitária é justa, porque a constituí-la converge cada indivíduo como
membro de um reino de fins racionais. Só nesta condição possui valor a máxima:
“volenti non fit iniuria”59.
O poder executivo concretiza-se na pessoa do “governante”, que gere os
negócios do Estado, opera não por leis possuidoras de valor universal, mas por
decretos, por ordenações que são sempre atos particulares e regulam casos
particulares. O poder executivo é um poder subordinado, pelo qual o governante
responde pelos seus atos para o poder legislativo soberano que pode em qualquer
momento substituí-lo e depô-lo (idem, § 49, pp. 503-504).
O poder judiciário não pode tocar nem ao soberano, nem ao governante, pois
toda vez que eles cometessem uma injustiça não haveria meio de repará-la. Somente
pelo juiz eleito pelo povo e que é o seu representante, podem ser os cidadãos
julgados. Julgando a si mesmos por meio do magistrado, o povo não pratica ato
soberano, porque julgar é declarar em particular aquilo que é o suum de cada um.
Em virtude dos três poderes, constitui-se o Estado em forma autônoma, isto é,
mantêm-se “segundo as leis da liberdade”. Consiste a saúde do Estado na sua
unidade, o que não significa a sua prosperidade e a sua felicidade, “le bonheur
commun” como ainda se exprimia a Declaração de 1793. Tais tarefas podem ser
melhor e mais seguramente realizadas debaixo do despotismo. A verdadeira “salus
publica” consiste na constituição a que cada um assegura a faculdade “de perseguir a
própria felicidade pela senda que lhe parecer melhor” (Detto comune, p. 264;
Dottrina del diritto, §49, p. 505). Uma essência comum une os três poderes
enquanto são relações da vontade coletiva do povo e deduzem-se da própria
natureza da soberania concebida como uma idéia pura (Gedankending) possuidora
de uma realidade prática objetiva (Dottrina del diritto, § 51, p. 529).
Além disso, a unidade essencial dos poderes não exclui a diversidade das
funções e a necessidade de mantê-las separadas. Como Montesquieu e o próprio
Rousseau, também Kant destaca o perigo, para a liberdade dos cidadãos e a
estabilidade do Estado, da confusão das funções. A cada uma das quais corresponde
uma idéia, a idéia da lei, do poder, de liberdade, de cujo concurso e de cuja
organização resulta o Estado e a constituição ideal. Porque se a liberdade e a lei não
são sustentadas por um forte poder é inevitável a desordem e a anarquia. D’outra
parte apenas do poder ou em união com a lei, mas sem liberdade, possui origem o
despotismo60. A constituição na qual o poder se associa à lei e à liberdade e na qual
59
[“Não se faz injustiça àquele que é consciente”].
60
E. Kant, Antropologia prammatica, tradução italiana de G. Vidari, Turim, 1921, p.264.
88
61
N.T.: “Eu chamo República todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa
ser ... Todo governo legítimo é republicano”.
62
N.T.: “Não entendo por essa palavra apenas uma aristocracia ou uma democracia mas, em geral, todo
governo guiado pela vontade geral, que é a lei. Para ser legítimo, o governo não deve se confundir com o
soberano, ele deve ser seu ministro: então a monarquia é, ela própria, a república”.
63
N.T.: “o é apenas durante as eleições dos membros do parlamento; tão logo eles são eleitos, ele é escravo,
ele não é nada” ... “o arrefecer do amor pela pátria, a atividade de interesse privado, a imensidão dos
Estados”.
89
affaires de l’état: Que m’imprte? on doit compter que l’Etat est perdu” 64 (idem). E
observa melancolicamente que os homens amam bem mais a vantagem do que a
liberdade e temem bem menos a escravidão política do que a miséria. Para quem não
concebia a liberdade se não pela mediação da vontade geral, a deploração e a
conseqüência deveriam parecer naturais.
Não se pode porém negar que a esta condenação do parlamentarismo
Rousseau era movido além da lógica dos princípios, pela experiência histórica e
psicológica. E de tal natureza são os argumentos que ele traz. As vicissitudes
históricas do liberalismo deveriam confirmar largamente as suas previsões e as suas
preocupações. Mas, quem como Kant partia do ponto de vista do Estado puro da
razão, podia alcançar diversa conseqüência. Para Kant o Estado ideal não pode ser
senão representativo. “Toda verdadeira república não é e não pode ser senão um
sistema representativo do povo” (Dottrina del diritto, § 52, p. 532). Na Paz
perpétua o princípio é estendido a qualquer forma de governo. “Toda forma de
governo que não seja representativa não é propriamente uma forma de governo (ist
eine Unform)” (p. 295). Não havia em Kant a preocupação de Rousseau pelo Estado
ético, o qual não pode ser totalitário e deve compreender o dever cívico em ordem
aos fins que compreendem a completa atividade do indivíduo em todos os seus
aspectos econômicos, éticos, religiosos. Kant foi decisivamente avesso ao Estado
desviado para fins outros, éticos ou econômicos que fossem. Por isso devia
considerar a atividade do indivíduo dirigida para realizar seus próprios fins não
inferiores em dignidade e necessidade àqueles que o indivíduo desenvolve no Estado
aos fins da liberdade externa. Também para Kant o Estado não é apenas custodial do
direito natural privado, mas é pessoa moral à cuja formação todos os indivíduos têm
o dever de concorrer; mas a ela concorrem não tanto em razão de sua naturalidade
ou da sua destinação moral, quanto para realizar as condições externas de uma vida
comum conforme a razão. Ora, isto que para tal fim é essencial, é a conformidade da
atividade legislativa ao espírito do pacto originário, às razões ideais que o
determinaram. Nem todos estão em condições de participar ativamente e
diretamente na vida do Estado, enquanto todos estão em condições de julgar se uma
lei foi emanada no espírito do contrato político. Quando as leis emanadas pelos
corpos legislativos são tais que cada um as possa racionalmente acolher, o soberano
direito do povo é respeitado. D’outra parte a soberania é para Kant uma idéia pura
da razão e para realizá-la há necessidade de uma pessoa física que a represente.
Característica do despotismo, daquele monárquico ou daquele democrático, é de não
admitir a representação debaixo do pressuposto de que o rei ou o povo representam
Deus, a si mesmo. Ora, para Kant todo aquele que é investido do poder soberano
(príncipe, nobres, povo) enverga necessariamente a qualidade de um representante,
enquanto não age para si ou para outros, mas em representação da idéia do Estado
nos termos do pacto originário.
64
N.T.: “Tão logo alguém diga, a respeito dos assuntos do Estado: que tem a ver comigo? Deve-se considerar
que o Estado está perdido”.
90
direito, mas se afirma como pessoa moral, como razão comum, como soberania
absoluta e a vontade particular dos indivíduos não pode erigir-se a juiz daquilo que é
universal e infalível. Retorna em Kant o argumento de Rousseau, a concepção
unitária, racional da soberania, a qual não pode reconhecer um direito contra si
mesma. Permanecia sempre a possibilidade de um divórcio entre a vontade geral
soberana e a pessoa ou as pessoas físicas que a representavam. Em Rousseau o
divórcio é solucionado pelo povo que pode em qualquer momento alterar a forma de
governo e as pessoas dos governantes (Cont., III, 18). Mas é difícil sustentar que o
“povo” de Rousseau seja o equivalente da vontade geral soberana. E no significado
empírico no qual Rousseau habitualmente o usa, o povo se dissolve nos indivíduos,
a quem cabe por último o direito de resistência contra os atos arbitrários do governo
que existe como poder autonomo ainda que subordinado. Contrariamente, em Kant,
o soberano e a pessoa que o representa em concreto são indivisíveis e exprimem
conjuntamente a majestade do Estado. Quem por qualquer motivo se insurge contra
o governo, viola formalmente a lei soberana, destrói com o governo o princípio de
autoridade, a própria idéia do Estado (Dottrina del diritto, § 49 A, p. 506-508).
Aqueles que insistem na contradição entre a exigência de um Estado ideal e o
dever de reconhecer a validade jurídica de uma constituição que da justiça pode ser a
mais aberta violação, confundem dois pontos de vista que Kant tinha claramente
distintos. A questão da possibilidade ou não do direito de resistência Kant começou a
resolve-la em sede de princípios, não ainda em sede de fato. A questão para ele era
se o Estado concebido, seja em função da liberdade externa, seja como “coisa em si”
podia comportar da parte dos indivíduos singulares ou associados um direito de
resistência. E para ele a resposta negativa era a única lógica, porque um direito de
resistência pode somente admitir-se sobre o pressuposto teórico de que o indivíduo
seja soberano, que ele seja abastecido por direitos naturais inatos, que do Estado
surja e se conserve pelo arbítrio dos indivíduos possuidores por natureza o direito de
o controlar e julgar os seus atos. Todos estes pressupostos eram negados por Kant
que buscava subtrair a universalidade do direito e do Estado à particularidade do
arbítrio singular ou associado, a fazer da soberania uma idéia da razão e não um
direito do homem, e considerava os governantes como os representantes da idéia
pura do Estado. O problema de um direito de resistência apenas podia surgir para
Kant em sede empírica e neste campo a solução também negativa que ele fornece,
inspira-se não em razões teoréticas, mas em seu particular modo de compreender a
relação entre o fato e a idéia. O problema do domínio da filosofia jurídica pura
passava pelo domínio filosófico-histórico, e é necessário ter em conta a filosofia da
história de Kant, se desejarmos compreender o seu comportamento em relação aos
Estados e aos governos estabelecidos.
do querer conserva do seu lado íntegro o seu valor. Toda vez que a vontade exercita-
se em contraste com a necessária ordem natural, ela não realiza o seu fim. Portanto,
das finalidades que a vontade pode propor-se, apenas aquelas nas quais a natureza a
impulsiona são realizáveis. “A razão”, escreve Kant, “não é suficientemente
iluminada para açambarcar toda a série das causas determinantes que permitem
prever com segurança o efeito bom ou mal do fazer ou do não fazer dos homens
segundo o mecanismo da natureza” (Pace perpetua, pp. 317-318), o qual surge para
Kant como a revelação de uma primeira causa inteligente, de uma Providência que
dirige as coisas com infinita sabedoria e as leva ao seu fim (aqui, pp. 306-307, nota).
Nem por isso a autonomia do homem é comprometida porque o homem pertence à
natureza e é submetido às leis da Providência como ser sensível, não como ser
racional. Por meio do intelecto o homem penetra e conhece o mecanismo natural, a
ele pode adaptar a sua ação para o conquistar consciente dos seus fins, enquanto
com a sua razão retorna em um reino inteligível de fins, é subtraído a qualquer
dependência externa. Permanece sempre aberto o problema metafísico da relação
entre liberdade transcendental e o mundo da causalidade natural.
Para nos limitarmos ao nosso problema particular, Kant não subordina a idéia
do direito e do Estado ao mecanismo natural. Ele afirma expressamente que a razão
prática e jurídica, não a experiência do mal, “não o fato torna necessário uma
constrição legal e pública” (Dottrina del diritto, § 44, p. 498). Desta razão prática
jurídica e política Kant põe em relevo não apenas o valor teorético, mas sobretudo
aquele deontológico, elevando a atuação da idéia do direito e do Estado a dever dos
governantes. Isto significa, praticamente, que se os homens venham a encontrarem-
se em um Estado cujas instituições e tendências estão em contraste com o pacto
originário e normativo, a razão impõe a eles o deixarem. A liberdade transcendental
aqui pressuposta deve realizar-se na realidade empírica. A relatividade e
continuidade histórica também é para Kant condição de realização da idéia do
direito. O Estado ideal não se encontra no princípio da história como os
jurisconsultos, Locke e os enciclopedistas sustentavam, mas no final do processo
histórico e é conquista laboriosa da liberdade por meio da dinâmica da história. Não
que o direito e o Estado como idéias da razão estejam subordinados à natureza, mas
a liberdade na qual o direito e o Estado se fundam deve inserir-se no mundo da
história para transformá-lo aos seus fins. A tarefa da razão é facilitada por aquilo que
o processo natural e histórico por meio de inescrutável projeto da providência, é
preordenado para os fins do direito e do Estado ideais. “A natureza quer que a
humanidade realize por si os fins da sua destinação” (Idea, tese 5, p. 129). E em
outro lugar (Idem, tese 3, p. 126), afirma Kant que a natureza deu ao homem a razão
e fundou sobre ela a liberdade, para que “não participasse de outra felicidade ou
perfeição se não aquela que ele mesmo, livre dos instintos, cria com a sua razão”. E
acrescenta: “Para que à natureza não seja dada a pena de fazê-lo viver bem, mas
somente de preocupar-se com que ele se eleve através do seu esforço, tornando-o
digno com a sua conduta para a vida e para a felicidade”. A atuação da lei do dever e
da justiça é o fim imanente da natureza e da história, na qual pensadores e homens
95
de Estado podem encontrar “um fio condutor, que não só pode ser útil para
esclarecer a dinâmica assim complicada das coisas humanas, ou a pressagiar os
futuros câmbios políticos dos Estados... mas... se descortinará uma visão
reconfortante do porvir, no qual a espécie humana despontará distante como se
houvesse finalmente alcançado aquela condição de vida na qual todos as sementes
postas nela pela natureza levam a conseguir um perfeito desenvolvimento e a sua
destinação sobre a terra será plenamente satisfeita” (Idea, tese 9, p. 136)70. É verdade
que o sujeito atuante na história dos fins da justiça é a espécie e não o indivíduo. Isto
não impede que o indivíduo participe com a sua razão do processo histórico e faça
com liberdade e consciência aquilo que, de outro modo, seria pela natureza
constrangido. Kant não impede à razão a possibilidade de agir sobre o mecanismo
natural e de fazê-lo servir aos seus fins: “O mecanismo da natureza... pode ser
utilizado pela razão como um meio para alcançar a própria finalidade, que é o
preceito do direito” (Paz perpétua, p. 313). Isto que a natureza quer
irresistivelmente, o homem dever querer racionalmente. Isto significa que aquilo
“que o homem deveria fazer segundo a lei da liberdade mas não o faz, ele o fará
constrangido pela natureza, sem que, d’outra parte seja comprometida esta liberdade
moral” (Idem, p. 311).
Depois disto, melhor se compreende a posição de Kant com relação ao direito
de resistência. Cohen71 foi o primeiro a revelar a íntima relação entre a doutrina
kantiana em mira e a sua filosofia da história. A atividade da história para o
desenvolvimento do direito e do Estado revela-se sobretudo nos momentos de crises
e de revolução. De fato, observa-se que Kant conciliava a obediência ao Estado
surgido de uma revolução vitoriosa. “Quando uma revolução obtêm êxito e (é?)
fundada uma nova constituição, a ilegalidade de sua origem e o seu modo de
estabelecer-se não podem liberar os súditos da obrigação de adaptarem-se à nova
ordem das coisas e eles não podem negar-se a obedecer honestamente àquela
autoridade que possui atualmente o poder” (Dottrina del diritto, p. 510). No
Conflitto delle Facoltà (pp. 219 sgg.) temos referências explícitas aos governos
revolucionários franceses. As revoluções quando são verdadeiramente o produto de
uma necessidade histórica revelam um estado de crise da consciência política que
deve ser superada; por isso devem-se aceitar os resultados ainda que
temporariamente desconformes às exigências da justiça. “Retorna nas leis
permissivas da razão”, escreve Kant, “que se permite subsistir um direito público
viciado por injustiça até quando tudo esteja maduro por si para uma transformação
radical, ou que a maturidade se avizinhe por meios pacíficos; e isto para que
qualquer constituição legal, ainda que em pequeno grau conforme o direito, é
sempre melhor que a falta de qualquer constituição, e uma reforma precipitada teria
como resultado a anarquia. A sabedoria política, portanto, no atual estado de coisas,
fará um dever de reformar o Estado em conformidade à idéia do direito público e
70
Também na Critica del giudizio (ed. cit., pp. 295-296) encontramos inserida a ordem jurídica na totalidade
da história.
71
H. Cohen, Kants Begründung der Ethik, Berlim, 19102, p. 430.
96
utilizará as revoluções, quando a própria natureza o provoca, não como pretexto para
instaurar um despotismo maior, mas como exortação da natureza para realizar de
forma radical uma constituição legal fundada sobre princípios de liberdade” (Paz
perpétua, p. 230, nota). A resistência portanto aos governos de fato revolucionários
deveria parecer a Kant uma estéril reação àquilo que era produto inevitável da
história; sobretudo, era o desconhecimento daquelas aspirações ideais dirigidas a
uma forma mais elevada de justiça que por meio da revolução se afirmavam.
A revolução é um fato histórico, coletivo, o qual Kant não podia deixar de
levar em conta uma vez ocorrido. Mas, em geral, ele condena a resistência ativa dos
súditos e dos poderes subalternos ao soberano legislador, ainda se justificada por
caráter defeituoso e injusto da organização do Estado. A esta condenação contribuem
não apenas razões formais, segundo a qual a obediência à autoridade possui um
valor em si, independentemente do seu conteúdo material e do seu modo de
exercício (Dottrina del diritto, p. 556-567), mas razões derivadas da natureza do
processo histórico entre os quais atua-se a idéia do direito e do Estado. A
gradualidade e a continuidade são para Kant as características do desenvolvimento
histórico. As adaptações dos sistemas de governo ao ideal republicano, escreve Kant,
“não podem ter lugar em um único golpe, mas por modificações insensíveis e
continuadas” (idem, § 52, p. 531). A resistência, ainda que justificada abstratamente,
ainda que coroada de sucesso, representa uma brusca interrupção do processo
histórico e os seus resultados não são duradouros. Porque as boas constituições não
são o efeito “do cego acaso” e muito menos são obras de atos improvisados,
precipitados. Estes são o fruto de longa e dura experiência histórica e reclamam uma
alta consciência política, difícil de encontrar-se não só na coletividade, mas também
nos indivíduos.
Os mais modernos intérpretes do pensamento de Kant (Haensel, Walz,
Dünnhaupt) puseram em relevo justamente o novo significado que o direito positivo
veio adquirindo em Kant em relação ao direito natural. Já Gierke 72 havia revelado o
mérito de Kant de ter superado o antigo contraste entre direito natural e positivo
mediante a lei peremptória do Estado. A escola do direito natural havia ignorado o
contraste entre direito natural e positivo e o havia ignorado porque considerava o
direito positivo como a tradução em ato da norma de direito natural. O próprio Kant
(idem, p. 400, 416), depois de haver distinguido formalmente o direito natural, e
positivo, fazendo deste último a emanação da vontade do legislador, havia conferido
ao direito positivo autoridade e fundamento no direito natural. E durante o tempo em
que o Estado foi concebido como garante e interprete do direito natural, não era
possível contraste entre este e o direito positivo e não se podia desconhecer o direito
de resistência contra normas positivas que desrespeitavam o direito natural. Além
disso, fazendo Kant do Estado a condição peremptória da existência do direito
natural, resolvia a relação entre direito natural e positivo, na forma de todo moderna
entre direito natural e público. Só o direito peremptório, estatal, possui valor real,
enquanto o direito natural se transforma em uma exigência ideal. A conseqüência era
72
O. von Gierke, J. Althusius und die entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien, cit., p. 304.
97
BIBLIOGRAFIA.
O. Gierke, J. Althusius und die Entwicklung der naturr. Staatstheorien,
Breslau, 19133: H. Cohen, Begründung der Ethik, Berlim, 19102; P.E. Lamanna, Il
fondamento morale della politica secondo Kant (intr. à trad. italiana dos Scritti
politici de E. Kant, Lanciano, 1917; desta tradução existe uma reedição com
numeração diversa); W. Metzger, Gesellschaft, Recht und Staat in der Ethik des
deutsches Idealismus, Heidelberg, 1917; W. Haensel, Kant’s Lehre vom
Widerstandsrecht, Berlim, 1926; R. Hubert, Le principe d’autorité dans
l’organisation démocratique, Paris, 1926; R. Dünnhaupt, Sittlichkeit, Staat und
Recht bei Kant, Berlim, 1927; K. Borries, Kant als Politiker, Leipzig, 1928; A. Walz,
Die Staatsidee des Rationalismus, Berlim, 1928; L. Rougier, La mystique
démocratique, Paris, 1929; [C. Antoni, La dottina dell’“Aufklärung” in Kant, in La
lotta contro la ragione, Firenze 1942; B. Barillari, La dottrina del diritto in Kant,
Torre del Greco, 1942; C. Curcio, L’utopia pacifista in Saint-Pierre, Rosseau, Kant,
Roma, 1947; N. Bobbio, Diritto e Stato nel pensiero di E. Kant, Turim, 1957; D.
Pasini, Diritto, società e Stato in Kant, Milano 1957; G. Lumia, La dottrina
kantiana del diritto e dello Stato, Milano, 1960; V. de Ruvo, La filosofia del diritto
di Kant, Padova, 1961; P.E. Lamanna, Studi sul pensiero morale di Kant, Firenze,
1968].
99
5
Do Estado jurídico ao Estado ético;
Guilherme von Humboldt e o seu pensamento político
1.Kant e o Estado.
Com Kant o liberalismo político encontrava a sua sistematização racional. O
Estado se afirma enfim como Estado de direito, não no sentido de que o direito se
origina do Estado, mas no sentido que o Estado encontra no direito a sua justificação
e o seu limite racional. Justificar o Estado em função do direito, ou seja, como
liberdade externa, foi a grande conquista de Kant. O Estado não é desejo do
soberano, nem desejo dos indivíduos e nem mesmo desejo impessoal sobrestante ao
soberano assim como aos indivíduos. O Estado é uma idéia da razão prática jurídica
e brota da íntima essência do direito, que é coexistência dos arbítrios sob de uma lei
da razão. Por isso o Estado kantiano identifica-se com uma república ideal na qual
as vontades singulares formalmente consideradas unem-se e convergem para realizar
o direito. O Estado liberto de qualquer resíduo de empirismo, assemelha-se à mesma
idéia de liberdade realizada nas relações sociais. O ato pelo qual os homens
organizam-se em Estado, bem pode compreender-se nos termos postos por Rousseau
como renúncia que regula as relações externas segundo o arbítrio individual e como
implícita aceitação de uma lei racional de limitação dos arbítrios. Mas neste caso a
idéia do contrato manifesta-se como uma exigência racional, implícita na essência
do direito. Essa é a forma sob a qual se exprime a unidade e universalidade do
direito.
O Estado não possui por finalidade o direito, mas é o mesmo direito realizado
pela vontade dos indivíduos que desejam viver em liberdade. Esta, para Kant, é
sinônimo de paz, de reconhecimento recíproco do valor absoluto da pessoa também
nas relações externas. D’onde a extensão racional da idéia do direito e do Estado,
das relações internas àquelas interestaduais, e o surgir de um direito e de um Estado
cosmopolítico. O ideal de uma paz perpétua não possui para Kant valor material,
mas formal; esta significa a idéia do direito estendida a todos os povos.
A esta altura a doutrina política de Kant produz uma metafísica. A
organização da humanidade sob a idéia do direito constitui-se de um lado em uma
101
exigência ética que possui raízes no mundo inteligível; d’outro parece surgir da
íntima estrutura do mecanismo natural, ainda que os homens dela não possuam
consciência e obrem contra tal finalidade. Kant não esclareceu o seu pensamento a
respeito. Certamente não compartilha a idéia do jovem Fichte segundo quem o
Estado é instituto utilitário, destinado a tornar-se supérfluo e a desaparecer com o
progresso ético da humanidade.
O Estado não é compreendido para Kant na esfera moral estritamente
considerada; este é para ele ordenamento exterior, formal, indiferente aos motivos,
às “máximas” que presidem as ações dos cidadãos. Neste sentido ele distingue
claramente entre o “bom cidadão” e o homem “moralmente bom” e chega mesmo a
dizer que “o problema da constituição de um Estado é solucionável, ainda que a
expressão possa parecer dura, também para um povo de demônios, porque são
dotados de inteligência” (paz perpétua, p. 312). Kant é certamente contrário a toda
política que se proponha fins éticos, filantrópicos como aquela que termina por
abandonar “os direitos dos homens aos seus chefes” (idem, p. 335).
Esta desvalorização dos valores éticos, sentimentais não contrasta com o
reconhecimento da parte de Kant da utilidade ética das instituições jurídicas. Na Paz
perpétua (p. 325) vemos Kant apresentar a idéia do direito como um dever (Sollen),
como uma tarefa “da lei moral”; portanto o problema dirigido para atuar esta idéia
nas relações internas, externas, cosmopolíticas, não é absolutmente um problema de
técnica constitucional, mas é essencialmente um problema moral. “A verdadeira
política”, diz em outro ponto Kant (idem, p. 329), “não pode fazer nenhum
progresso, se primeiro não rendeu homenagem à moral”. Não se deve esquecer que
Kant tem aqui presente não tanto a massa dos cidadãos, quanto os dirigentes do
Estado. Mas, se nega que uma boa constituição do Estado deva garantir-se sobre as
forças morais, reconhece porém que ela é útil à educação moral do povo (idem, p.
313). Malgrado incertezas e contradições, a nós isto parece certo: que Kant não pode
ser incluído entre aqueles que contribuíram para desvalorizar o Estado e, enquanto o
concebeu em função do direito e da liberdade externa, não o considerou nem
estranho, nem indiferente à vida moral. Bem diversa foi a posição de Guilherme
Humboldt em relação ao Estado74.
74
Guilherme von Humboldt nasceu em Potsdam em 1767 de rica família, de antiga nobreza ao serviço dos
príncipes de Brandemburgo. Seu irmão Alexandre, o célebre geógrafo, era dois anos mais jovem. Passou a
juventude em Berlim quando o Iluminismo encontrava-se em pleno desenvolvimento e já se iniciava o
movimento romântico dos espíritos. Em 1787 esteve em Frankfurt estudando direito. Em 1788 o encontramos
estudando em (Gottinga?). Em 1789 faz as primeiras viagens à França e à Suíça. Concluídos os estudos
jurídicos, foi responsável pelo tribunal cameral de Berlim; mas depois de um ano, 1791, abandonou o serviço
do Estado para dedicar-se aos estudos e para unir-se em matrimônio com Carolina de Dacheröden. Na
quietude de Burgörner viveu os anos de 1791 a 1794, entregue aos estudos da Antigüidade Clássica, na leitura
de Kant, na discussão e exposição dos problemas políticos e estéticos. De 1794 a 1796 estabelece-se em Jena
e relaciona-se com Schiller e Goethe. A sua formação espiritual concluiu-se nos anos de 1797 a 1801 com as
viagens à Áustria, França e Espanha. De volta à Alemanha, sofreu a influência romântica, sobretudo de
Schelling. A nomeação para Conselheiro de Embaixada junto à Santa Sé em Roma em 1802 permitiu a
Humboldt satisfazer o seu intenso desejo de uma viagem à Itália. Em 1809 foi chamado a Berlim para assumir
a direção dos assuntos da cultura e da educação junto ao Ministério do Interior. Organizou a educação na
Prússia e em 1809 cooperou na fundação da Universidade de Berlim. Foi embaixador em Viena (1810-1816) e
102
que se estende entre dois séculos, em uma fase de profundas alterações históricas, é
fácil encontrar refletidas nele as correntes dominantes de pensamento, também
porque tudo revivia nele e de tudo extraía estímulo para a sua atividade. Nem se
deve esquecer que o pensamento de Humboldt, em contínua formação, revelou-se
por meio de escritos fragmentados, nos mais novos e diversos campos, sem alcançar
organizar-se em um sistema definitivo. Mais útil, segundo nós, é revelar não tanto os
aspectos que Humboldt possui em comum com os movimentos espirituais da época,
quanto as transformações que eles sofreram em seu espírito. Colhendo os aspectos
vitais destes movimentos, Humboldt preparou e às vezes antecipou aquela síntese
idealística objetiva, que deveria encontrar em Goethe e em Hegel a sua plena e
consciente sistematização. Apenas revelando as tendências e exigências de
Humboldt que confluíram no idealismo naturalista e especulativo de Goethe e de
Hegel, podemos nos dar conta das suas relações com as correntes espirituais nas
quais se formou, correntes que assimilou em parte, em parte renegou, pelo mais
superou com genial intuição.
Não se pode distinguir o pensamento político de Humboldt da formação da
sua consciência filosófica. E esta, como aquele, apresentam-se com características
de particular relevo e significado em dois momentos distintos de sua vida: um,
corresponde aos anos de 1790-1793, completa a formação juvenil do seu
pensamento filosófico-político e encontra a sua expressão típica no ensaio sobre os
limites da ação do Estado; o outro, da idade madura, culmina no projeto de reforma
da constituição da Prússia de 1819.
Deve-se compreender o primeiro período como a solução provisória da crise
na qual vem a se achar Humboldt depois de seu afastamento do pensamento do
Iluminismo e depois de suas relações com as correntes pré-românticas e
irracionalistas76. Não significa que ele entrasse em relação direta com Hamann e
conhecesse as críticas por este movidas a Kant. Mas é certo que Humboldt teve em
comum com Hamann a tendência a apreciar o valor da história, da tradição, da
linguagem. Mesmo faltando a influência direta, não faltou aquela indireta por meio
de Herder e de Jacobi. Sabemos que os fermenta cognitionis contidos nos escritos de
Hamann atuaram como fermento sobre os espíritos impacientes da filosofia
tradicional77.
Humboldt deveria assimilar o novo espírito da época mais diretamente de
Herder, o amigo de Hamann e de Jacobi. No diário de viagem de Herder, que
remonta a 1769, encontramos o primeiro documento da sua emancipação do
racionalismo. É desta época a sua idéia de opor à concepção leibniziana de um
mundo de substâncias espirituais, fechadas em si, unidas entre si por relações
externas, mecânicas, a concepção da unidade orgânica de todos os seres do universo,
que se transformam e se desenvolvem sem solução de continuidade, segundo leis
uniformes, imutáveis. Falta o distanciamento entre o homem e os outros seres, entre
76
Conforme a ampla introdução de F. Heinemann à seleção de ensaios e estratos das obras de Humboldt
publicadas com o título Phisosophische Anthropologie und Theorie der Menschenkenntniss, Halle 1925.
77
Conforme o ensaio de B. Croce sobre Hamann em Saggio sul Hegel, Bari 1913, p.291 e segs.
105
consciência; ele sente ter sido posto no centro entre o sensível e o ultra-sensível, o
natural e o sobrenatural. De um lado sabe-se súdito da natureza, d’outro sente
dominá-la. Isto que o sobreleva à natureza, as suas faculdades mais nobres e
melhores, ele chama de razão”80. Razão neste sentido é liberdade, espontânea
elevação do sujeito ao mundo do supra-sensível, não é faculdade de escolha, mas
energia criadora. Esta inexprimível individualidade, que da intimidade irracional do
sentimento traz vida e valor, em pleno contraste com o mecanismo natural, com o
espírito raciocinante, é o conceito que Jacobi transmitia ao Humboldt juntamente
com a profunda aspiração diante do invisível.
Kant. É desta época o ensaio sobre Limiti dell’attività dello Stato, que Spranger (p. 66) atribui à influência de
Kant. A terceira leitura ocorreu no Outono de 1793. Em uma carta de 27 de Outubro ele escreve ao fanático
kantiano Körner de haver relido todos os escritos de Kant do princípio ao fim: “Tais estudos”, escreve, “são
em matéria filosófica aquilo que é o Corpus iuris em matéria jurídica”. E acrescenta que as dúvidas já
nutridas em torno da Crítica da Razão Pura e às duas obras morais estão desaparecidas. Mas já nesta época o
problema estético começa a preocupar Humboldt debaixo da predominante influência da Crítica do Juízo.
82
Por primeiro o fez isto Humboldt no Plan einer vergleichenden Anthropoligie (1795); principalmente no
escrito Das 18 Jarhundert (1797).
109
pensamento pós-kantiana. Disto temos clara confirmação nos seus escritos políticos
desta época.
85
A estreita relação entre os fatos da vida e o pensamento político de Humboldt foi posto em relevo por
Kähler, na introdução à escolha dos seus escritos políticos (W. von Humboldt, Eine Auswahl aus seinem polt.
Scriften, Berlim 1922). “Die Beziehung W. von Humboldt und der Staat weniger ein systematisches als ein
biographisches Problem enthält und nach biographyscher Darstellung verlangt” (p.9).
86
Sobre as relações entre Humboldt e Gentz deu interessantes notícias Wittichen, que publicou a
correspondência deles em quatro volumes (Munique, 1909).
87
Conforme S. A. Kälehr, W. von Humboldt und der Staat, Munique 1927, p. 128. O Saggio sulla
Constituzione dello Stato foi escrito em Agosto de 1791 e publicado na “Berlinische Monatsschrift” de
Janeiro de 1792. Tivemos presente a última edição de 1922, contido no compêndio citado dos escritos
políticos de Humboldt aos cuidados de Kähler.
111
também a sua superioridade em relação aos muitos (Burke, Gentz, Fichte, Kant), que
nos mesmos anos expressaram juízos sobre a Revolução88.
Humboldt tinha plena consciência de perseguir na avaliação da Revolução
Francesa uma via autonôma, em contraste com aquela prevalecente na publicística
da época de parecer, como ele mesmo escreve, paradoxal. Ele lamenta nos juízos
correntes sobre a Revolução o escasso conhecimento dos fatos, os sentimentos
comprometidos, o medo infundado, a critica dirigida ao particular. E destacou o erro
de julgar os grandes acontecimentos históricos com considerações éticas, em relação
a pensamentos e finalidades abstratas e gerais.
Humboldt colheu no grande drama da Revolução aquilo que constituia o novo
acontecimento em relação ao qual deveriam avaliar-se todas as outras manifestações.
Este acontecimento era a formação do Estado, ou melhor, a criação de um novo
sistema político, correspondente às exigências da consciência racional, iluminada,
moderna. “A Assembléia nacional constituinte”, escreve no Ensaio de 1791, “iniciou
a construção de um Estado inteiramente novo, segundo puros princípios racionais”
(ed. cit., p. 3). Assim posto o problema da Revolução, surge para Humboldt
espontaneamente a pergunta: é possível a realização de um tal desejo? E se possível,
pode-se considerá-lo durável? A resposta de Humboldt é pronta e segura: “não há
nenhuma possibilidade de sucesso um Constituição construída segundo um plano
pré-estabelecido pela razão, ainda que realizada”. A evidência deste princípio é tal
para Humboldt, que ele não evita elevá-lo a princípio geral do agir. E a tornar a
demonstração de sua tese ainda mais eficaz, Humboldt pressupõe não apenas que a
Assembléia legislativa francesa havia verdadeiramente querido constituir uma
Constituição segundo os ditames da verdadeira razão, mas a havia realmente
construído e com o propósito de adaptá-la, o quanto era possível e sem prejuízo dos
princípios, às particulares condições da França. Malgrado isto, ela deveria
considerar-se não vital e destinada à morte certa.
O eixo da demonstração de Humboldt é o seguinte. A França pretendeu
substituir um sistema político absoluto, com o objetivo de servir aos fins, à ambição
de um só, por um sistema político destinado a garantir a liberdade, a segurança, a
felicidade de todos. Se assim é, não se vê o vínculo que une os dois sistemas
políticos opostos, nem se vê quem tenha capacidade e força para realizar a
passagem, malgrado todo conhecimento exato do presente, toda mais prudente
avaliação do futuro.
Humboldt aqui se esforça para por o critério de conhecimento dos fatos
históricos, bem como assinalar os limites e as condições do agir político. A
originalidade das idéias expressas confere ao Ensaio de 1791 valor programático. A
razão mediante as suas idéias não nos faz conhecer senão parcialmente e
imperfeitamente o particular que é objeto da experiência. As idéias são abstratas e
genéricas; os fatos da experiência são concretos, individuais. Na história
encontramos sentimentos, tendências, ações particulares, e o complexo mecanismo
88
Gooch (in Germany and the French Revolution, Londres, 1920, p. 108) afirma que Humboldt com este
ensaio inicia a série dos escritos políticos daquela época e antecipa as idéias da escola histórica do direito.
112
segue inteiramente nem uma nem outra, porque ambas lhes são muito importantes
para que ele possa sacrificar uma à outra” (idem, p. 6). A individualidade se conhece
mergulhando no passado, por revive-lo no presente, não se isolando, mas
contemplando-se na vida do todo. Mesmo o homem mais perfeito, considerado em
um dado momento histórico, “é uma bela flor, mas também apenas uma flor. Apenas
a memória pode entrelaçar a guirlanda que une o passado com o presente”.
Todavia o problema político da constituição apresenta-se a Humboldt como
um aspecto da vida nacional. Já a partir desse seu primeiro ensaio, o conceito de
nação a ele se revela autônomo, distinto do Estado, como produto mais alto e
perfeito do curso histórico. A analogia do desenvolvimento da nação com aquele do
indivíduo é afirmada explicitamente. “Isto que vale para os indivíduos vale para
todas as nações. Estes seguem o mesmo curso. Disto as diferenças entre uma e outra
nação, e as diferenças dentro de uma mesma nação em épocas diversas” (idem, p. 6).
A singularidade é o destino das nações, a sua potência é medida pelo grau de
individualização alcançado.
Se assim é, uma nação não poderá mais considerar-se madura ao acolher uma
constituição construída pela razão pura, porque esta é mais apta a obstaculizar do
que a favorecer a formação da individualidade. Isto não significa banir a razão da
vida política. “O legislador sábio”, escreve Humboldt, “deverá possuir exata medida
da condição histórica atual, determiná-la na sua individualidade, atuar sobre ela para
favorecer ou contrastar as suas tendências. Sobre a realidade modificada atuará
novamente, e assim sucessivamente, contentando-se em aproximar-se da perfeição
nos limites do possível”. Humanizar os ideais, neles reviver a chama viva do
sentimento, atuá-los por meio da ação lenta, gradual, em relação às energias
imanentes às coisas, desfrutando as ocasiões, sem nunca deixar-se desviar do fim;
nisto consiste a atividade do homem de Estado. Se o mero cálculo racional dirige a
ação, esta aparecerá débil e fria, mecânica; poderá ser admirada, mas será privada de
individualidade, de humanidade e, portanto, de verdade.
Se a nação, como a personalidade singular, é uma formação espiritual
autônoma, como se justifica o Estado, quais as causas que o geram, o conservam,
quais as suas finalidades e os seus limites em relação àquelas realidades psicológicas
e históricas que são os indivíduos e as nações? O problema do Estado apresentou-se
a Humboldt já a partir deste primeiro ensaio e é notável nele a tentativa de
reproduzir nos seus momentos essenciais os fatos históricos do Estado para dele
extrair argumentos contra as pretenções de constituições racionais.
A necessidade, a precisão, primeiro induziram os homens a submeterem-se à
autoridade de um chefe. Superado o perigo, a tendência natural à liberdade não pôde
sempre e por toda parte reafirmar-se contra o poder do soberano. Isto está conforme
a natureza do homem, que age fora de si contrastando com as forças que
obstaculizam a sua atividade, atua em si mesmo desenvolvendo a sua energias
naturais. A união debaixo de um único querer é necessária quando mais forças
contendem; mas o sentimento mais alto da liberdade reafirma-se vigoroso quando a
finalidade comum é alcançada. O cidadão romano que livremente discutia as leis no
114
Foro, no Senado, era aquele mesmo que oferecia as costas ao chicote do centurião
no momento de perigo. Isto prova claramente que os ordenamentos políticos surgem
por causas naturais e necessárias, e não sob o fundamento de um frio cálculo
racional.
No medioevo o retorno da barbárie determinou o despotismo feudal. A
liberdade manteve-se nos contrastes entre os senhores que conquistavam a sua
liberdade com a opressão dos outros. Contra a nobiliarquia feudal os reis buscaram
apoio das cidades e do povo. A vitória dos reis assinalou o ocaso da classe
nobiliárquica que, se foi primeiro um mal necessário, torna-se depois um mal
supérfluo. O absolutismo real deveria favorecer indiretamente o renascer da
liberdade. A opressão direta, pessoal, dos nobres, deu lugar à opressão indireta e
distante dos príncipes, para cujas finalidades de poder, melhor que a servidão
pessoal dos súditos, favoreciam a sua riqueza. A política do absolutismo foi toda
dirigida a favorecer a indústria, a atividade econômica dos súditos, para aumentar a
possibilidade da pressão tributária. Era uma política perigosa que favorecia a
liberdade e plantava os germes da rebelião. A esconjurá-la vem oportunamente a
doutrina política do Iluminismo com o seu princípio de que o governo surge para o
bem e para a felicidade da nação. Esta era a pior forma de despotismo, que dava
ilusão de liberdade ao mesmo tempo que soterrava as suas fontes.
Todavia, do próprio excesso do mal brotou o remédio e este foi representado
pelo progresso das consciências, do sentimento sempre mais vivo e difuso dos
direitos e da dignidade do homem, sobretudo pelo complexar-se e mecanizar-se dos
ordenamentos políticos. Era natural que em França, onde mais agudo manifestou-se
o contraste entre a ciência e a política iluminista, irrompesse a Revolução e fosse
inaugurada a nova ordem política pelos princípios da razão abstrata e da liberdade
formal, plena, ilimitada. A humanidade, caída no extremo do despotismo, buscou
salvação no extremo do racionalismo político. Mas a história ensina que um
ordenamento político racional não tem possibilidades de sucesso.
Nem por isso Humboldt desconhecia os benéficos efeitos da Revolução. O
seu valor histórico, mais do que dos princípios racionais, derivava do grau no qual
estes princípios poderiam influir sobre a realidade histórica, modificando-a e
transformando-a segundo as exigências ideais maturadas na consciência popular.
Estes efetivos benefícios podem avaliar-se à distância de tempo e lugar. “A
Revolução esclarecerá as idéias, ressuscitará toda virtude ativa, e os seus efeitos
benéficos estender-se-ão muito além dos confins da França” (idem, p. 16).
Todo acontecimento histórico, ainda que possa parecer irracional, inútil,
danoso, oculta em si os germes de futuros progressos. Pense-se (observa Humboldt,
p. 9) nas ordens religiosas, no regime feudal, em relação aos objetivos de cultura, de
liberdade que eles contribuíram para alcançar. Aquilo que em uma época possui
valor secundário e quase irrelevante, em uma época sucessiva adquire importância
de primeiro grau. E como na história, assim como no homem nas diversas idades da
vida, cada uma das quais o contém inteiro, mas apenas em um particular aspecto. A
realidade considerada nos seus momentos particulares é parcial, abstrata; apenas se
115
vista em seu conjunto, no nexo que a une ao passado e ao futuro, ela é verdadeira e
completa. Isto significa que as situações históricas, as ações, seja dos indivíduos,
seja da coletividade, possuem valor relativo e não absoluto; nunca são definitivas,
mas retornam em um processo formativo; por isso não se devem avaliar pelos
resultados transitórios, mas pela forças constantes que as produzem e que são
geradas incessantemente no seio do curso histórico.
O Ensaio de 1791 era um programa de vida e de estudo. Dúplice o critério
metodológico por ele seguido: o critério histórico elevado a critério de avaliação dos
fatos políticos; a idéia de liberdade, de humanidade, elevada a fim das instituições
na sua gradual realização histórica. Por isso Humboldt podia admirar a Revolução
não pelos seus propósitos de reconstrução nacional das relações políticas, não pelo
espírito igualitário, democrático, que a informava, mas pelos esforços heróicos de
todo um povo para realizar uma mais alta e humana condição de vida.
No Ensaio de 1791 ganhava relevo a tendência de fazer do homem, na sua
individualidade psicológica e histórica, o fator do progresso político. O ideal do
Iluminismo não era renegado, mas para a sua realização não mais se invocava o
Estado, mas as vivas, profundas energias operantes no indivíduo e na história. Era o
afastamento definitivo de Humboldt das correntes dominantes do pensamento
político. O homem abstrato dos empiristas e dos racionalistas Humboldt o substituía
pelas forças conscientes e inconscientes atuantes no indivíduo e na história. A
vontade geral de Rousseau, unidade de vontades abstratamente iguais, Humboldt a
substituía pela vida bem diversamente variada e complexa da nação. O Estado
kantiano, órgão da razão prática jurídica, união de indivíduos sob as leis do direito,
Humboldt o substituía pelo conceito do Estado como órgão de defesa, de segurança
da vida individual e coletiva. A necessidade do Estado é histórica, não racional,
sendo indiferente se ele historicamente serviu com mais freqüência aos interesses
dos governantes do que à liberdade dos governados. No contraste entre autoridade e
liberdade, entre a força extrínseca do Estado e a força intrínseca do indivíduo e da
nação, viu Humboldt a essência da vida política. Mas já neste primeiro ensaio
podemos ressaltar a tendência contrária ao Estado, porque se o Estado aparece a
Humboldt como uma necessidade histórica, ele também lhe parece como uma
realidade carente de valor ético. O Estado não resume em si todas as forças do
indivíduo e da nação: ele é externo àquele ou a esta; é um mecanismo que não
possui em si o princípio da vida, assim como a sua atividade é melhor dirigida para
conter a liberdade do que a favorece-la.
89
O ensaio sobre Os Limites da Acção do Estado, foi completado na primavera de 1792, em Erfurt, quando
Humboldt se encontrava na casa de campo de Burgörner, em Fevereiro, junto dos parentes da mulher Carolina
de Dacheröden, filha de um magisrado da cidade. O ensaio tem a sua origem em uma longa carta de
Humboldt a Gentz de 9 de Janeiro de 1792. A desenvolve-lo e a levá-lo a terminar induziu-o Carlos von
Dalberg, coadjutor em Erfurt do príncipe eleitor de Magonza. Os capítulos I-VI, VIII, XV, são em grande
parte extraídos da carta a Gentz. O conteúdo essencial do capítulo VII deriva da primeira parte do ensaio
anterior Ueber Religion, enquanto a segunda parte desta última foi refundida e reelaborada no capítulo VIII.
Leitzmann presume com base no epistolário que também os capítulos IX-XIV tiveram uma elaboração
anterior (Conforme Spranger, W. von Humboldt und die humanitätsidee, 2ª ed., Berlim, 1928, p.51, nota). Da
carta de 1 de Junho a Foster resulta que o ensaio estava pronto há algumas semanas. Foi enviada para
publicação copia do manuscrito a Biester, diretor da “Berlinische Monatschrift” e depois outra cópia a
Schiller. As tratativas com os editores foram longas e difíceis. Depois do repúdio de Vieweg de Berlim,
Humboldt se dirige por meio de Schiller a Göschen de Lipsia. Mas quando, por obra de Schiller, as
dificuldades pareciam superadas, Humboldt, com o pretexto de remanejar o ensaio, retirou-o, renunciando à
publicação imediata. Isto resulta da carta de 18 de Janeiro de 1793 a Schiller. Humboldt não deveria mais
pensar em publicá-lo. Das duas cópias manuscritas do ensaio, aquela enviada a Biester perdeu-se. Dela
Biester extrai matéria para três artigos publicados na sua própria revista nos três últimos fascículos de 1792.
Esses correspondem aos capítulos V (cuidado do Estado pela segurança externa), VI (cuidado do Estado pela
segurança e pela educação dos cidadãos), VIII (do aperfeiçoamento dos costumes mediante a ação do Estado).
Schiller, ao restituir a Humboldt a cópia manuscrita que tinha junto de si, reteve seis folhas, cujo conteúdo
aparece no fascículo V da sua revista “Thalia”. Esses correspondem ao capítulo II do ensaio (o homem
considerado como indivíduo) e à primeira parte do III (cuidado do Estado pelo bem positivo do indivíduo).
Esta obra manuscrita tolhida de seis folhas foi reencontrada em 1850 em Ottmachau na Silésia no castelo que
a gratidão nacional havia doado a Humboldt. Esta cópia, integrada com as partes publicadas na “Thalia”, veio
à luz em Brelau, junto ao editor Trewndt, pelo cuidado de Edoardo Cauer, que a enriqueceu com uma
introdução ilustrativa. A edição apresenta duas lacunas em conseqüência da perda das seis folhas acima
recordadas: uma é de poucas linhas no final do capítulo I, a outra ao menos de duas páginas entre a primeira e
a segunda parte do capítulo III. Recordamos desta obra de Humboldt as duas traduções francesas de Marrast
(Paris 1866) e a de Chrétien (Paris 1867). Esta última nem sempre exata é precedida por um amplo estudo
sobre o autor, que integra aquele de Challemel-Lacour (La philosophie individualiste. Etude sur G. de H.,
Paris 1864). Na Itália a obra de Humboldt foi traduzida integralmente na Biblioteca di Scienze politiche
dirigida por A. Brunialti, Turim, 1891, vol. VII. Uma tradução não fiel ao texto, com lacunas, espantosamente
abreviada na parte especial (capítulos X-XVI), fê-la G. Perticone, Turim, Paravia, 1929.
117
sobretudo como escritor político, não foi estranho a tal interpretação. Humboldt foi
quase de um golpe removido do seu ambiente natural e transportado a um clima
histórico em tudo diverso. E foi, por este ensaio, associado aos representantes do
individualismo político estremo, aos adversários declarados do Estado, sobretudo a
Mill, a Spencer, isto é, a homens, a orientações as mais contrastantes com a sua
formação espiritual95.
Na Alemanha, onde o culto a Humboldt manteve-se vivo antes e depois do
ensaio, prevaleceu a tendência de compreende-lo em contraste com as correntes
históricas e românticas, a relacioná-lo com a influência kantiana 96. Com isto
terminava por se compreender o ensaio como uma obra de exceção na produção de
Humboldt, em contraste não apenas com os tempos, mas com aquelas que deveriam
revelar-se em época posterior as suas mais verdadeiras e profundas preferências
políticas. Neste divórcio com o tempo e consigo mesmo buscam muitos a razão
inconfessada da publicação ausente da obra.
Ainda recentemente Kähler ao refazer a história do pensamento político de
Humboldt, considera o ensaio uma derivação em relação ao método e à ideia contida
na carta de 1791 a Gentz e reafirma “o estremo individualismo, o filosófico
anarquismo que constitui o espírito do ensaio”97. A forma abstrata na qual Humboldt
expressou o seu pensamento, as afirmações programáticas contidas na introdução,
confirmam para Kähler esta interpretação. Analogamente Spranger sustenta que o
ensaio aparece ao próprio Humboldt como uma pura teoria filosófica em sentido
iusnaturalista, como aquela que diz respeito a uma abstrata, absoluta impossibilidade
fática98. Esta interpretação comum do ensaio de 1792 não nos parece a verdadeira.
95
Como seguidor da escola constitucional francesa, discípulo de Necker, de Mirabaeu, Humboldt foi celebrado
em França por causa deste ensaio. Conforme, neste sentido, Laboulaye, L’Etat et ses limites, Paris 1863.
Segundo Challemel-Lacour (La philosophie, cit., p. 74) o ensaio foi escrito para a França. Para Chrétien
(introdução à tradução francesa cit.) o ensaio foi inspirado na parte prática pela Revolução francesa, na parte
especulativa por Kant, o que o remete a Leroy-Beaulieu na obra L’Etat moderne et ses fonctions, Paris, 1889.
Segundo Laboulaye, o ensaio de Humboldt teria inspirado o de Mill, Sobre a liberdade (1859). Também na
Itália Humboldt foi geralmente incluído entre os clássicos do liberalismo político. Neste sentido o recordaram
e o exaltaram Minghetti, Luzzatti, Barzellotti. Conforme este último a introdução (p. XXVI) à edição italiana
da obra de Spencer, L’individuo e lo Stato, Città di Castelo, 1901. Brunialti introduziu o ensaio de Humboldt
no vl. VII (Serie I) da Biblioteca de Scienze politiche (Torino, 1891) ao lado das obras dos teóricos do Estado
de Direito naquele momento favorecidos (Bähr, Gneist, Leroy-Beaulieu) e o fez acompanhar, como apêndice,
do ensaio acima citado de Laboulaye. Ainda neste sentido entende Perticone o ensaio de Humboldt na
premissa à introdução italiana cit.
96
Cauer na introdução à primeira edição do ensaio revela o dissídio entre a tese individualística por ele
sustentada e a tendência oposta da consciência política alemã: “o nosso ideal político”, escreve, “é todo outro
daquele de Humboldt”. Na sua nota monográfica sobre Humboldt (W. von Humboldt Lebensbild
u.Charakteristik, Berlim, 1856) Haym, julgando o ensaio, o exalta “die stark ausgepräte Neigung für
individuelle Eingenthumlichkeit, die hohe Achtung für die Freiheit und die innere Würde des Menschen... die
stark hervortretende Sinnlichkeit, auf deren Spitze sich der sublimste Spiritualismus erhebt” (p.65). Com
Spranger acentua o caráter ante-romântico e kantiano do ensaio.
97
Conforme Kähler, Humboldt und der Staat, cit., p. 138. Também neste sentido Spranger, W. von Humboldt
und Kant, cit. (1909), p. 51. Este, depois de haver ressaltado que o ensaio foi escrito sob a influência de
Rousseau, de Mirabeau, de Kant, e que o método seguido pertence à época do iusnaturalismo, afirma que ele
representa um retrocesso em relação ao anterior, todo ele penetrado pelo espírito histórico.
98
Conforme idem, p. 52.
120
desabrochar de vida interior. O homem abstrato interessa bem mais aos modernos do
que o indivíduo concreto; o universalismo ético-jurídico atrai mais as mentes
singulares; e enquanto os antigos buscavam a felicidade do homem na virtude, os
modernos desgastavam-se em vão separando a virtude da felicidade. O próprio Kant,
opondo a felicidade ao dever, representa com argumentos artificiosos a felicidade
como prêmio estranho à virtude, não como bem próprio do homem. Ao ideal moral
de Kant, Humboldt prefere aquele de Aristóteles, segundo o qual o bem de todo ser
consiste em viver de acordo com a natureza que lhe é própria. O homem dotado de
razão, quanto mais a seguir, quanto mais será feliz100.
Através das páginas introdutivas delineia-se o pensamento de Humboldt em
relação ao problema político. Deste viu a união indissolúvel entre o princípio da
individualidade e a ação do Estado. O divórcio permanecia, e profundo, entre
aqueles que consideravam a liberdade como condição de desenvolvimento da
individualidade e queriam a ação do Estado limitada à segurança, e aqueles, e eram a
maioria, que elevavam a fim supremo do Estado o bem físico e moral do indivíduo.
Era o divórcio entre constitucionalistas e jacobinos em França, entre aqueles que
eram educados pelos princípios liberais de Locke e de Montesquieu, e aqueles que
sobre a trilha de Rousseau compreendiam como na antigüidade o Estado e a
atividade política como meio para instaurar uma ordem ética de justiça, para forjar o
novo homem de razão em oposição ao homem natural. Humboldt deveria alinhar-se
com os primeiros, mas não inteiramente, porque partia de um conceito da
individualidade que não era aquele do liberalismo abstrato dominante, mas o
aproximava das correntes políticas românticas.
O ensinamento de Maquiavel, que a arte do governo deve fundar-se sobre o
conhecimento do homem “efetivo”, isto é, do homem considerado na sua dinâmica
passional, nas suas aspirações ideais, nos seus cálculos racionais, nas circunstâncias
externas do seu agir, havia feito nos séculos posteriores uma ciência política na qual
o homem, que era o seu precípuo objeto, era considerado na sua abstrata natureza
empírica ou racional. Não se deve esquecer as necessidades históricas e doutrinais às
quais esta direção de pensamento político atendia. Desejava-se subtraída a atividade
política ao arbítrio do príncipe e da razão de Estado, para reconduzi-la à unidade e
estabilidade dos princípios; e isto em uma época de luta do indivíduo contra o
despotismo real, significava reconduzi-la em consideração ao homem, das
exigências fundamentais da sua natureza, elevada à dignidade de direito.
Esta abstração empírica ou racional pelo movimento de pensamento era
traduzido na prática de governo e revelava-se aos olhos de Humboldt com
características particularmente danosas na política do Iluminismo. Nos países onde a
doutrina e a prática constitucional eram informadas pelos princípios de Locke,
menor era o perigo, porque o indivíduo, nos limites estabelecidos pela lei,
essencialmente formal, não era vinculado no exercício de sua atividade. O seu
100
Humboldt recorda a obra ética de Kant até então publicada e precisamente o Fundamento da metafísica dos
costumes (1785) e a Crítica da razão prática (1788). De Aristóteles cita o passo correspondente da Ética a
Nicômaco, livro X, capítulo 7, final.
125
direito abstrato servia apenas para defende-lo contra os atos ilegítimos do Estado.
Mas, como na Alemanha, onde o Estado não reconhecia limites à sua ação e se
irrogava a tarefa de regular a atividade do indivíduo em todas as suas formas e
direções, inclusas aquelas atinentes à sua felicidade privada, a livre explicação da
individualidade era simplesmente negada e a atividade do Estado substituía em
cheio aquela do indivíduo.
Isto explica como no ensaio de 1792 o problema da individualidade
transforma-se no problema fundamental. Ao resolve-lo, Humboldt percorre as
correntes reativas à concepção abstrata da personalidade retomada pela Declaração
dos direitos colocada como preâmbulo da Constituição de 1791. Por isso ao
problema da individualidade é dedicado o segundo capítulo do ensaio.
rústicas da vida natural e permanecem as formas mais sublimes e delicadas. Isto não
seria prejudicial, se a humanidade fosse um homem ou se a energia própria de uma
era se transmitisse, como as coisas externas, à era sucessiva. Infelizmente isto não é
assim, pelo que é de perguntar-se se a força derivante de uma mais perfeita
civilização não se deveria conservar restaurando as naturais e primitivas energias.
Humboldt não quis aprofundar o problema, mas não é dúbia a sua opinião. Como no
homem a sensibilidade é condição de vida e de expressão de toda mais sublime
espiritualidade, assim a humanidade subtrai-se da decadência que se segue a uma
perfeita e refinada civilização renovando a sua natural virtude originária. Parece aqui
retornar, aplicado à vida da sociedade civil, o ensinamento de Maquiavel, segundo
quem os organismos políticos regeneram-se mediante “a redução aos princípios” 105.
Humboldt não se furta quanto aos perigos e aos males inerentes ao progresso “das
luzes” e temia com Rousseau as conseqüências de uma sociedade fundada sobre o
excesso de intelectualismo. A individualidade singular e coletiva não se alimenta de
abstrações; para ele, como para Rousseau, o retorno à natureza significa o retorno à
experiência dos sentidos, que são a fonte viva e perene de todo o progresso humano.
Toda a atividade posterior de Humboldt deveria confirmar esta sua intuição.
O segundo capítulo do Ensaio se completa com a enunciação de dois
postulados prejudiciais para a ciência política e em particular para o problema
relativo aos limites da atividade do Estado. Humboldt formula o primeiro postulado
nestes termos: “A melhor condição de vida para o homem é aquela na qual cada um,
em plena liberdade, desenvolve-se a si mesmo na sua originalidade”. Aqui
Humboldt tem em mira a personalidade moral e intelectual, que não deve ser de
nenhum modo e por nenhum motivo obstaculizada na sua formação espontânea. O
segundo postulado concerne à exteriorização da personalidade e é assim formulado:
“O homem não pode desejar condições melhores daquelas nas quais, nos limites das
suas forças e do seu direito pode livremente modelar as coisas do mundo externo
segundo a medida de sua necessidade e da sua inclinação”. Apenas a necessidade
pela própria conservação pode significar a violação de tais princípios ditados pela
razão eterna das coisas.
Por estes postulados, que resumem as suas reflexões sobre a individualidade,
Humboldt parece inserir-se na corrente tradicional iusnaturalista, segundo a qual a
consideração do homem e da sua natureza constitui a premissa metodológica de
qualquer indagação sobre o direito e sobre o Estado. Em particular por sua
concepção da individualidade Humboldt parece conectar-se por um lado a Locke e,
por outro a Kant, onde um havia exaltado a atividade original do homem nas
relações externas econômicas e o outro a atividade racional e formal. E como Locke
de sua premissa havia concluído que o Estado deve limitar a sua ação para garantir a
atividade econômica do homem, assim Kant deveria ao longo do tempo fazer do
Estado o custodial da norma racional que garante a pacífica coexistência das ações
externas.
105
Conforme N. Maquiavel, Discorsi sulla prima deca di Tito Livio, liv. III, 1.
131
convicção de Humboldt que o próprio ideal da época diante do Estado defensor dos
direitos do homem não poderiam ser satisfeitos eficazmente até que não se
ultrapassasse a concepção abstrata do direito e do Estado e não se resolvesse o
problema prejudicial da natureza e dos fins do indivíduo. Este problema para
Humboldt desenvolve-se por suas íntimas energias originárias, organicamente, em
relação necessária, indissolúvel com seus similares, ao largo de qualquer ação da
parte do Estado. Era a condenação implícita do iluminismo político.
Aquilo que era implícito, torna-se explícito nos capítulos terceiro, sexto,
sétimo e oitavo do Ensaio, nos quais Humboldt considera os efeitos da ação estatal
em relação ao bem estar econômico dos indivíduos, ao seu aperfeiçoamento
religioso e moral. Ele rejeita toda solução apriorística do problema; prefere
considerar os efeitos úteis ou danosos do Estado em relação ao desenvolvimento
multifacetado da individualidade. Esta ação o Estado pode exercitar de três formas:
ou mediante leis coativas; ou criando condições externas favoráveis aos seus fins,
tais como colocar o cidadão diante da necessidade de agir em uma determinada
direção; ou agindo sobre idéias, sobre sentimentos, sobre inclinações dos cidadãos
para colocá-los em harmonia com a sua vontade. Da ação limitada a atos isolados,
passa o Estado a dar forma e direção unívoca e geral à conduta externa, para
determinar por último o modo de pensar e de sentir do cidadão. A sua influência se
amplia à medida em que se faz interna. Contra uma opinião largamente difundida
naquele século, Humboldt não exclui a possibilidade de uma influência eficaz e
decisiva do Estado sobre as próprias fontes da individualidade.
Humboldt considera antes de tudo positiva a ação do Estado dirigida a
manifestar ou a produzir o bem estar físico da nação. Buscavam este fim as leis em
defesa da população contra os males naturais, as providencias em favor dos
enfermos, dos necessitados, o fomento da agricultura, indústria, comércio, as
operações monetárias e financeiras, as proibições de importar e de exportar, etc.
Aqui não se tratam de medidas que se compreendem, segundo Humboldt, na política
propriamente dita, enquanto as conseqüências das mesmas são danosas, se
consideradas em relação ao desenvolvimento da antigüidade. Para avaliar a
dimensão até agora da crítica de Humboldt devemos ressaltar, nesta primeira fase de
seu pensamento político, a preocupação de limitar (não de negar, como outros
afirmaram) as razões do Estado às suas universais e essenciais funções. O seu maior
interesse era pelo indivíduo considerado como valor supremo, que necessitava
subtrair a todo vínculo desnecessário, quase a despertar as suas energias e a ensaiar
depois de séculos de opressão, as possibilidades de desenvolvimento.
Nas medidas dirigidas ao bem-estar material da nação, o espírito de quem
governa, enquanto iluminado e nobremente inspirado, produz uniformidade de ação.
As vantagens materiais que o indivíduo alcança, ainda que notáveis, não se podem
considerar como o fruto da sua iniciativa, dos seus esforços, dos seus próprios
sacrifícios. A ingerência do Estado tolhe valor da vida em comum, cuja utilidade é
medida pelo grau com que se desenvolve a diversidade de atitudes e das condições.
O Estado, ao garantir o bem estar e a paz interna, é naturalmente levado a favorecer
133
uma certa uniformidade de vida e de conduta; isto não está no interesse do indivíduo
que aspira à glória com sacrifício da felicidade e do bem estar material. Nada ofende
mais a sua humanidade do que ser reduzido à condição de uma máquina movida por
causas externas.
A crítica de Humboldt golpeava em cheio a política iluminista fundada sobre
o pressuposto de que o fim do Estado fosse garantir a felicidade e o bem estar
externo e que este fim poderia obter-se com o suprimir as diferenças e os contrastes
entre os indivíduos, sujeitando-os a um sistema uniforme de vida e de condições.
Fundava-se este pressuposto por sua vez em um pressuposto ainda mais geral,
segundo o qual não o múltiplo, mas o idêntico, constitui a essência do homem e que
a felicidade e a paz pública são garantidas na medida em que a igualdade entre os
indivíduos é realizada. A preocupação pela igualdade abstrata dominava os espíritos
e tolhia a possibilidade de discernir a verdade proclamada por Humboldt, que a
harmonia social surge do contraste, da variedade das forças, da sua redução à
unidade.
Assim como a matéria múltipla, infinita, observa Humboldt, extrai vida da
matéria que a informa e a unifica nos seus elementos contrastantes, é a matéria
negada por uma forma que lhe é estranha. No homem tudo se produz organicamente,
isto é, por uma energia íntima, que dá forma e significado às coisas. Por isso, o
entusiasmo que mantém viva e desperta em nós a atividade criadora, alimenta-se
pela idéia de uma propriedade presente ou futura. O homem considera como
propriedade sua não tanto aquilo que possui, quanto aquilo que produz, sendo o
jardineiro mais verdadeiramente proprietário do jardim do que aqueles que o gozam
no ócio suas vantagens.
A sutil, genial menção aqui feita do fundamento da propriedade, merece
relevo particular. A referência da propriedade como fundamento da personalidade foi
feita primeiro por outros do que por Humboldt, e por outros deveria repetir-se e
desenvolver-se depois dele. Respondia esta justificativa à tendência individualística
da época e brotava do íntimo da novel civilização capitalista. Segundo Locke a
propriedade é explicação da personalidade empírica mediante o trabalho; segundo
Kant-Hegel a propriedade é determinação racional da personalidade sobre o mundo
externo. Mas em uns e em outros a justificativa era abstrata e fundava-se sobre as
exigências abstratas da personalidade. Humboldt baseia-se na energia criadora do
homem, que transforma as coisas é confere a elas o selo da individualidade. A
concretude de Humboldt revela-se no aceno aos estados de ânimo que acompanham
o formar-se da propriedade. O seu momento constitutivo não é o ato da posse, mas é
o processo que se revela no júbilo, no entusiasmo da criação. As exigências
econômicas e racionais eram deste modo reforçadas e o sentimento originário, que
segundo Rousseau leva o homem à propriedade, era definida pela sua natureza ativa.
Humboldt abstraía a exigência jurídica do reconhecimento, fornecia um critério
válido para distinguir o simples detentor do proprietário, condenava implicitamente
toda propriedade não fecundada e transformada pela atividade individual.
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FONTES
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italiana completa do Ensaio in “Biblioteca de Ciência Política, aos cuidados de A.
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(Ensaio etc., Turim, 1929); G. Marcovaldi, Scritti di estetica, Firenze, 1934; G.
Necco, Pagine politiche, Veneza 1945; G.B. Bianchi, Saggio etc., Milão, 1947; F.
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W. v. H. und der Staat, Munique-Berlim, 1927 (reestampa, Göttingen, 1963); R.
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