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A FORMAÇÃO HISTÓRICA E FILOSÓFICA


DO ESTADO MODERNO
aos cuidados de Luigi Firpo

GIOELE SOLARI

Premissa à primeira edição:

Nos anos acadêmicos 1929-1930 e 1930-1931 Gioele Solari ministrou junto


ao Instituto Superior de Magistério de Torino um breve curso de lições de história do
pensamento político destinado a constituir para os jovens alunos um preambulo
histórico-filosófico ao prescrito curso de Instituições de Direito Público e de
legislação escolástica, que era entregue ao encargo de um jovem e puro jurista,
destinado à mais brilhante carreira.

Por outro lado, a incumbência seria modesta e desincumbida de pronto, mas


Solari tinha da escola um alto e severo conceito, que lhe impunha uma dedicação
plena, um empenho sem reservas: determinou-se por isso a escrever suas lições,
ocasião para uma reelaboração de uma matéria imensurável à qual vinha se
dedicando – e continuaria a dedicar-se no futuro – com pesquisas, ensaios, cursos
acadêmicos, meditações.

Os primeiros quatro capítulos do presente volume vieram a lume entre


Janeiro de 1930 e Maio de 1931 na revista “L’Erma”, que se publicava em Torino
no órgão do Instituto Superior de Magistério1; de cada parte da obra não vieram
impressas as separatas, mas o tipógrafo conservou os tipos tendo em vista uma
futura reimpressão conjunta do curso inteiro. As coisas porém procederam-se de
outra forma: afastado daquele modesto cargo por razões políticas, Solari não teve
mais estímulo para levar adiante o trabalho e, depois de longo retardamento,
1
Cfr. G. Solari, A concepção clássica do Estado, “L’Erma” (Torino), I , n.3, Janeiro 1930, pg. 1-9; A
concepção cristã do Estado, aqui n. 5, Março 1930, pg. 32-42; A concepção liberal do Estado, aqui n. 7,
Maio 1930, pg. 8-35; Kant e sua doutrina do Estado jurídico, aqui II, nº. 1-2, Outubro-Novembro 1930, pg.
57-65; Liberalismo, constitucionalismo, democracia nas doutrinas políticas do século XVIII, aqui n.8, Maio
1931, pg. 828-859.
2

autorizou uma tiragem em pouquíssimos exemplares das páginas já divulgadas, com


o título: A formação histórica e filosófica do Estado Moderno, Parte I, Lições
introdutórias ao curso de direito público, Torino, Edições de “L’Erma”, 1934, (pg.
96). Pequenas adições foram inseridas limitadamente nos sumários à testa dos
capítulos e às indicações bibliográficas que os concluem. O fascículo tráz (datado de
Novembro de 1933) este breve preâmbulo do autor: “Aqui estão recolhidas algumas
lições, limitadas aos pontos mais relevantes, ministradas no Instituto Superior de
Magistério de Torino nos anos 1929-1930 e 1930-1931 já publicadas nos dois
primeiros volumes de ‘L’Erma’, a revista publicada aos cuidados dos ‘Amigos do
Magistério’. Na intenção do professor Augusto Guzzo2, primeiro diretor de
‘L’Erma’, estas lições eram destinadas a servirem de introdução histórica e filosófica
ao curso de Instituições de Direito Público e de legislação escolástica ministrado
superiormente pelo Professor Piero Bodda3, ora ministrando no ensino universitário.
A estas lições devem seguir mais algumas sobre Guilherme Humboldt e sobre o
Estado ético e corporativo; mas essas reclamam uma ulterior elaboração. Aos fins e
nos limites do curso devem ser aplicadas estas lições e aquelas que se seguirem”.
Apesar das lições dedicadas a Guilherme Humboldt terem começado a vir à
luz na revista4, encontravam-se elas inacabadas, preferindo Solari omiti-las por
inteiro do que publicá-las incompletas, ainda que a sua última frase deixe antever a
possibilidade de continuidade do trabalho.
Este, pela limitada difusão da revista, pela exígua tiragem da separata à
margem do comércio, resulta pouco menos do que desconhecido. O próprio autor
pareceu considerá-la como obra apenas delineada e quase inédita, quando trouxe os
parágrafos 8-12 da parte IV para acolhe-los, sob o título O liberalismo de Kant e a
sua concepção do Estado de Direito, na coletânea de ensaios histórico-filosóficos,
que deu à luz em 1949, afetuosamente impelido a vencer a própria relutância pelos
colegas da Faculdade Jurídica Torinense. No mesmo volume foi reimpresso o ensaio
sobre Humboldt, mas limitadamente às duas primeiras partes da obra, sendo a
terceira deixada ao abandono por puro esquecimento5.
Quando da liberdade recuperada, pode Solari aduzir em nota a este último
texto (pg. 342), que por sua laconicidade revela a sua austeridade e recusa a
qualquer retórica: “Estas lições sobre o pensamento político de Humboldt seguem
aquelas publicadas nos anos precedentes na ‘L’Erma’ com o título: a formação
histórica e filosófica do Estado Moderno (Turim, Edizioni de ‘L’Erma’, 1934) e não
2
Augusto Guzzo, nascido em Nápoles em 1894, professor emérito de Filosofia teorética na Universidade de
Torino.
3
Pietro Bodda (Saluzzo, 1904 - Turim, 1965), professor de direito Administrativo na Universidade de
Messina (1933), Pavia e Turim (1938).
4
G. Solari, Do Estado jurídico ao Estado ético, I: Guilherme Humboldt e seu pensamento político, “L’Erma”
(Turim), IV: n. 1, Novembro de 1932, pg. 42-58; aqui n.4, Fevereiro de 1933, pg. 416-426; aqui n.7, Maio de
1933, pg. 813-829. Nesta última página a advertência: “continua”.
5
G. Solari, Studi etici di folosofia del diritto, Turim, 1949, pg. 231-250 (com pequenos retoques na
bibliografia) e 315-342. Os mesmos parágrafos 8-12 da parte IV, precedidos dos parágrafos 23-28 da parte III,
foram reimpressos na introdução a I. Kant, Scritti politici e di filosofia della storia e del diritto, traduzidos
por G. Solari e G. Vidari, Torino 1956, pg. 11-46 (2ª ed., 1965).
3

foram complementadas porque o autor foi exonerado do cargo de professor por


inconformismo político. Passaram a fazer parte do conselho diretivo do Instituto
Superior de Magistério, não ainda elevado a Faculdade Universitária, membros de
estrita obediência política (Cesare Maria De Vecchi, Silvio Pivano, Vittorio Cian).
Essas lições sobre Humboldt (como de resto as precedentes) não estão inteiramente
elaboradas, destinadas como eram à escola; mas podem render testemunho do
método seguido, da seriedade do entendimento do autor no cumprimento do encargo
a si confiado”.
A esta seriedade e à perene validade científica e didática destas páginas,
quiseram render homenagem em Junho de 1962, quando do decênio da morte do
Mestre, alguns de seus discípulos “particularmente ligados ao Instituto de Ciências
políticas da Universidade de Turim, ao qual Solari cede o nome”, promovendo em
reedição fiel ao fascículo de 1934, à qual Norberto Bobbio dedica uma página
calorosa e comovida6.
“Assim transforma-se acessível”, escrevera então, “na forma mais decorosa,
uma obra que representa bem a conduta de pesquisa, o seguro domínio da matéria, a
paixão moral de um estudioso, que exatamente no campo da história das doutrinas
políticas deu os seus melhores contributos; e ao mesmo tempo pode oferecer ainda
hoje uma leitura útil, sobretudo aos jovens que se iniciam nos estudos de Direito e
da ciência política, pela feliz concisão, pela validade e honestidade dos juízos , pela
ampla tentativa de uma reconstrução pessoal da história que é parte integrante e
quanto mais viva (ainda que nem sempre reconhecida) do mundo civil no qual nos
encontramos vivendo, lutando e esperando”.
Para esta nova edição acreditei oportuno seguir uma atualização crítica
escrupulosa. Todo o texto foi revisto, extirpado de erros de imprensa, unificado na
grafia e na pontuação. Nos capítulos III e IV as páginas dedicadas a Kant são não
apenas confrontadas com a reimpressão de 1949, revista pelo autor, mas adequadas
às versões e remissões à edição italiana dos Escritos Políticos de Kant, à qual Solari
se dedicava nos seus últimos anos e que é publicada postumamente em 1956: seria
anacronismo Solari citar pelas outras velhas traduções, uma vez que é de uso
corrente entre os estudiosos a sua própria, mais acurada. Sendo evidente pertencer
ao presente curso o ensaio incompleto sobre Humboldt, restituí-o à sua sede original,
transcrevendo as suas duas primeiras partes revistas pela reimpressão revista de
1949, a terceira e – infelizmente - última das esquecidas páginas da “L’Erma” de
1933. Quis o autor que sucintas fossem as indicações postas ao pé dos capítulos para
sugerir uma primeira aproximação às Fontes e à Bibliografia; limitei-me a poucas
atualizações essenciais (sempre contidos entre colchetes) para não desnaturar o
caráter sumário, que no intento do autor deveria caracterizar estes subsídios
elementares.

6
G. Solari, La formazione storica e filosofica dello Stato moderno, Turim 1962, pg. 174. A introdução vem
anônima.
4

Espero que, assim renovado e enriquecido, este pequeno livro possa continuar
longamente a representar na nossa escola um guia essencial para muitos jovens e o
testemunho de um magistério exemplar.

Luigi Firpo
5

A formação histórica e filosófica


do Estado Moderno
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1
A concepção clássica do Estado

Sumário: 1. O fundamento natural do Estado na antigüidade clássica. 2. A


política como ciência no ensinamento socrático. 3. O ideal platônico de Estado. 4. O
Estado ótimo de Aristóteles. 5. Características diferenciais do Estado antigo. 6.
Deficiências da concepção clássica do Estado.

1. O fundamento natural do Estado na antigüidade clássica.


Os gregos logo sentiram a necessidade de encontraram um fundamento
intrínseco para o Estado. A busca do Estado ótimo impõe-se a eles como uma
exigência lógica e ética. Para satisfazerem esta exigência os pensadores gregos não
encontraram outra solução senão cercarem o fundamento do Estado fora do homem,
ou melhor no homem não considerado como um fim em si, mas como parte
integrante de um mundo que o compreende, isto é na , em contraposição ao
, expressão da vontade humana. Se a natureza, em um primeiro momento foi
compreendida como princípio material privado de qualquer espiritualidade, com
Socrates já aparece dominada por uma mente, com Platão se afirma como idéia pura,
com Aristóteles figura como síntese de matéria e de forma. Há deste modo uma
progressiva espiritualização da natureza, a qual atribuem-se características de
racionalidade que são próprias do espírito humano. E a natureza, se de um lado
representa a essência das coisas, do outro significa a perfeição absoluta e coloca-se
como critério de avaliação das instituições humanas. Comparar aquelas à natureza
significa adjudicar-lhes a medida daquilo que é sempre idêntico a si mesmo, daquilo
que é válido universalmente. Por isso poderia-se legitimamente falar de um estado
natural, em cuja medida, como um princípio de verdade e perfeição, avaliar o direito
positivo. O Estado ideal não era para os pensadores gregos uma abstração subjetiva,
uma aspiração utópica, mas uma realidade objetiva, expressa do profundo absoluto
da natureza. Portanto, a concepção clássica do Estado deve ser considerada como
naturalística, como aquela que extrai o seu fundamento de um princípio estranho e
pressuposto ao espírito.
O naturalismo grego era intimamente conexo com o intelectualismo, porque,
se a realidade existe independentemente do espírito, surge a questão do modo como
o apreendemos. Aos sofistas que invocavam a experiência e o testemunhos dos
7

sentidos, Socrates contrapõe a atividade intelectiva que, superando as aparências


sensíveis, capacita-se a recolher da realidade natural os elementos essenciais e a
reduzi-los em conceitos. A realidade natural vem, portanto, espelhar-se no espírito
sob a forma do conceito. Com Aristóteles a doutrina do conceito alcançava uma
completa sistematização. A concepção naturalística do Estado resolvia-se na sua
apreensão intelectualística.

2. A política como ciência no ensinamento socrático.


A doutrina grega do Estado possui o seu ponto de partida no ensinamento
socrático. Para Socrates o Estado é uma necessidade natural e moral; participar dele
é um dever. O indivíduo mais do que na família, celebra a sua existência no Estado.
Senofonte, no Memorável, recorda uma conversação entre Aristippo e Socrates, na
qual Aristippo sustentava que ele não queria ser cidadão de um Estado, e desejaria
viver sem pátria, sem leis, como cidadão do universo. Socrates demonstra a ele que
isto não é possível, porque viver fora do Estado é viver fora da humanidade, é
despir-se da condição de Homem: subtrair-se do Estado não é liberdade, mas
servidão e miséria. Aos sofistas, que haviam criado um dualismo entre natureza e
Estado, Socrates opõe que o Estado é natural, e chega a sustentar que o cidadão deve
obediência ao Estado ainda que injusto, em função do princípio de ordem que este
exprime e que é fundado na natureza.
Assim para Socrates a política não é uma arte, habilidade, mas uma ciência,
como a virtude. Não se pode operar sem o saber, especialmente em política onde o
operar é pela coletividade, pelo bem e pela felicidade de todos. Ele compara a arte
de governo àquela do pastor e do navegador. Os problemas políticos resolvem-se nas
questões do saber. Somente a plena consciência de si mesmo e da própria capacidade
devem aspirar ao governo, porque somente agora governar é dever. E Socrates com
o seu magistério propunha-se a educar os seus concidadãos à vida pública.
Elevando a política a ciência punha-se em contraste com tantos quantos faziam da
política uma arte, uma habilidade instintiva, insidiosa, abandonando-a ao acaso ou à
fortuna.

3. O ideal platônico de Estado.


O magistério socrático encontrou na República de Platão e na Política de
Aristóteles a sua expressão mais alta e perfeita. O estado ideal expresso por Platão
na República é aquele que atua em si a idéia eterna do justo. Para Platão a justiça é
proporção, harmonia, que mantêm cada faculdade da alma, cada classe social, em
sua ordem. O Estado é um organismo constituído por três classes (governantes,
guerreiros, povo) correspondentes às três faculdades fundamentais do espírito
humano (razão, coragem, sentidos). Cada classe possui uma função específica a
cumprir, à qual corresponde uma virtude particular: a sabedoria, a fortaleza, o
temperamento. A justiça não corresponde a uma faculdade especial do espírito, nem
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pode considerar-se como virtude deste ou daquele extrato social, mas é virtude de
todos, e princípio imanente que harmoniza as várias classes do Estado na atividade
do todo. No suum agere faz Platão consistir a justiça.
Também para Platão o estado é a condição indispensável para compreender e
ser virtuoso, único meio que produz e conserva tanto a ciência como a virtude, que
assegura quer o triunfo do bem quer o do mal. Compreende-se como o Estado
platônico pudesse ser uma aristocracia, um governo de virtude e de inteligência
exercitado por um ou por poucos. Fazendo dos filósofos os dirigentes do Estado,
Platão pretendia dizer que as funções diretivas cabem a aqueles que sabem operar
com sabedoria, a quem sabe governar aqueles que são dominados pelas paixões e
pelos sentidos.
A exigência de unidade domina toda a concepção política platônica. A
unidade do Estado poderia ser comprometida pelo prevalecer da vida instintiva e dos
interesses privados. Isto induz Platão fazer da família e da propriedade instituições
públicas reguladas pelo Estado, subtraídas do arbítrio singular. O regime de
comunhão quer da família quer dos bens parece a ele o meio mais seguro para
realizar a unidade e a harmonia interior do Estado.
Para tornar possível uma vida política, Platão concebia ser necessário não
apenas eliminar todo elemento perturbador, mas ainda prover a educação dos
cidadãos, assim tornando-os aptos para os fins do Estado. A educação para Platão
não pode ser senão a de Estado e deve variar segundo a classe à qual o indivíduo é
destinado, em relação às inclinações e ao caráter por qualquer um demonstrado.
Foi opinião geral até Hegel considerar a Republica como uma utopia. Ainda
que abstraindo o fato de Platão chegar por idealizar a cidade helênica e teve presente
a constituição espartana, não se deve esquecer que para ele somente a idéia e
verdadeira e real e somente o Estado fundado na idéia eterna de justiça pode ser
realizado. O Estado empírico possui valor somente nos limites nos quais realiza o
Estado ideal, o qual se alça deste modo como modelo das instituições políticas e
como seu próprio critério de avaliação.
De resto o próprio Platão não crê na plena realização do seu ideal político,
feito “não para homens, mas para Deuses ou filhos de Deuses”. E no diálogo das
Leis propõe-se encontrar um compromisso entre o ideal de Estado e a realidade
existente. Não sendo possível a virtude perfeita, quase parece contentar-se com as
Leis da virtude média. Por isso o Estado das Leis não é o Estado ideal, mas o Estado
legítimo, que tende a aproximar-se daquele. A exigência do relativo em política não
tolhe a veracidade da idéia.

4. O Estado ótimo de Aristóteles.


A Política é a obra na qual Aristóteles expressa a sua concepção de Estado e é
de lamentar-se que a nós tenha chegado incompleta e defeituosa. Mérito indiscutível
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foi a de ter elevado a política a ciência independente. Distingue-se ele de Platão seja
pelo método seguido, seja pela diversa concepção da realidade. Aristóteles foi mais
afeito à observação e à análise da realidade concreta. Sabemos com certeza que ele
havia recolhido bem 150 Constituições entre as quais a de Roma e a de Cartago.
Desta coletânea resta somente um fragmento concernente à Constituição dos
Atenienses, descoberto em 1890.
Não desconhece Aristóteles que a realidade empírica encontra-se relacionada
com um princípio ideal, mas este concebeu como fim ao qual tendem todas as
formas do real. O princípio da diversidade e da individualidade do real não é para
ele menos essencial e necessário do que aquele da unidade. O bem e a virtude são na
sua essência idênticos, mas manifestam-se diversamente na realidade. O bem se
realiza em grau diverso de perfeição, no indivíduo, na família, no Estado. Somente
neste último o bem (que é exercício de atividade segundo a finalidade humana) e
portanto a humanidade realiza-se plenamente.
O Estado é para Aristóteles um ente autárquico, que basta a si mesmo, que
não deriva de outro ente superior a sua razão de ser e o seu fim e não é por outro
ente condicionado. Em Aristóteles o conceito de Estado é intimamente derivado dos
seus princípios metafísicos; este participa da natureza de todos os outros seres e
resulta de elementos formais e materiais associados entre si por uma dinâmica e
informados pela idéia de um fim. Na maneira pela qual a matéria do Estado
(território, família, indivíduo) combina-se a cada momento no gradual
desenvolvimento do ser, atua o escopo ou a idéia do Estado. Na ordem lógica o
Estado precede os indivíduos e as famílias, mas na ordem real e temporal a parte, ou
seja os indivíduos e as famílias, precedem ao Estado. O Estado é o fim que dá às
partes que o constituem a perfeição que as faz serem conforme o seu conceito.
Aristóteles afirma que o homem é por natureza um ser político, não porque não
possa viver fora do Estado, mas porque somente no Estado pode alcançar e plenitude
e a perfeição da sua natureza. Por isso o Estado é uma associação de seres humanos
e é a forma mais plena de associação humana.
Nestas premissas metafísicas está implícita a defesa feita por Aristóteles da
família e da propriedade privada contra Platão. A família responde por duas
fundamentais exigências da natureza humana: é união dos sexos para a procriação e
conservação da espécie; é sociedade de senhores e escravos para proverem-se os
meios de sobrevivência. Assim encontramos na família três ordens naturais de
relações: conjugais, parentais, servis. Na antigüidade a atividade econômica era
conjunta com a vida em família, da qual a escravidão era condição essencial. O
princípio metafísico da unidade e diversidade encontra aplicação na família, a qual
de um lado é organismo unificado em um senhor, do outro resulta de relações
diversas. A comunhão das mulheres e dos filhos, proposta por Platão, é contrária à
natureza. O sentimento de posse pessoal é a condição do afeto, o qual é eficaz e
estável somente se é concentrado, duas sendo as coisas que, segundo Aristóteles,
impulsionam a amar: o próprio e o caro. De outra parte, o cuidado do homem com o
que lhe é próprio é maior em relação àquilo que é comum.
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Nesta consideração Aristóteles reabilita inclusive a propriedade privada.


Além do maior rendimento econômico, ela impede a discórdia e os litígios inerentes
ao regime de comunhão, responde às naturais desigualdades humanas, estimula ao
trabalho e favorece a liberdade. Somente o uso da propriedade deve ser de um certo
modo comum, em virtude daquela solidariedade natural que obriga entre si, como
um vínculo de amizade, os cidadãos do Estado.
Devemos a Aristóteles a clássica distinção das formas de governo tendo por
base o número daqueles que são investidos do poder soberano, bem como o fim ao
qual é dirigida a ação do governo. As formas de governo são puras ou corrompidas,
segundo o fim do Estado é o bem comum, ou o interesse de quem governa. Três são
as formas puras: monarquia (governo de um), aristocracia (governo de poucos),
democracia (governo do povo). A eles correspondem as formas corrompidas da
tirania, oligarquia, demagogia.
O termo  (que significa constituição em geral) é por Aristóteles
usado para indicar a forma ótima de constituição, fundada sobre o povo, mas
dirigida pelos melhores e mais capazes. O seu elemento aristocrático tempera o
elemento democrático. A monarquia somente possui uma justificação racional no
caso puramente ideal e hipotético de um indivíduo absolutamente constituído na
virtude. Aos homens assim perfeitos poderia-se atribuir o direito de governar sem o
freio da lei. Mas na realidade é mais fácil fazer uma lei ótima que encontrar um
homem ótimo. A capacidade de um indivíduo não pode igualar-se à de um agregado
de indivíduos. Muitos são menos facilmente corrompidos do que apenas um. Mesmo
o homem mais capaz não pode governar sem o concurso dos outros.
Aristóteles não trata do Estado absolutamente ótimo, isto é, do Estado no qual
domina soberana a virtude e se traduz na forma da monarquia e da aristocracia. Tal
Estado não pode existir de fato, motivo pelo qual dirige a sua atenção ao Estado
relativamente ótimo, que é o Estado melhor possível em função da média dos
homens, bem como das circunstâncias históricas. Na política como na moral vale o
princípio de que na média encontra-se a perfeição. É preciso evitar no Estado os
extremos da pobreza e da riqueza, da virtude e do vício. Os gregos conheceram e
aplicaram o ostracismo aos homens dotados de virtude superior à média. No Estado
ótimo a classe média é mais forte que uma e outra, ou de ambas as classes extremas.
À atuação do Estado ótimo devem concorrer circunstâncias externas
favoráveis de clima, de território, de população, além de um sistema educativo apto
a formar o caráter do povo segundo o espírito da constituição. O sistema educativo
proposto por Aristóteles corresponde, no geral, ao de Platão.

5. Características diferenciais do Estado antigo.


Da sumária exposição das doutrinas políticas de Platão e Aristóteles
poderemos revelar as características do Estado antigo e mais particularmente o
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helênico. O Estado helênico é o Estado-cidade, isto é, uma comunidade estatal


limitada no território e na população. A vida política na Grécia era a vida das muitas
cidades que a constituíam, sobretudo Atenas e Esparta possuidoras de tendências
hegemônicas. Nem todos os componentes da cidade participavam da vida política,
mas somente aqueles que pela natureza da atividade desenvolvida eram
considerados capazes de assumir funções públicas. Os encarregados dos trabalhos
servis, os “gravados” de indignidade moral, aqueles que desenvolviam uma
atividade essencialmente e prevalentemente econômica, eram excluídos da vida
política, para a qual reclamava-se um modo de ser e educação especiais.
Naturalidade, eticidade, unidade interior, soberania da lei são as
características do Estado antigo. Para os antigos o Estado não é uma obra humana,
não é fruto de convenções, mas é imposto pela própria natureza das coisas. De outra
parte o homem não é um ser solitário que vive para si mesmo, separado dos outros,
mas é ser que a natureza fez para a vida social e política. E não apenas o viver social
é natural, mas também o viver político, não distinguindo os antigos, ainda, entre
sociedade e Estado; somente no Estado a sociedade encontra a forma perfeita de
organização. Por isso o apartar-se da vida política aquele que possuía capacidade e
preparo, era considerada ação contrária à natureza.
A Eticidade é a segunda característica do Estado helênico. Formar o sentido e
o dever do Estado constituia verdadeiramente um organismo ético, porque ético era
o fim ao qual mirava, éticos os meios dos quais se valia. Mais do que órgão de
defesa e coação, apresenta-se o Estado antigo como instituto de educação tendo por
escopo formar os cidadãos para a virtude, de colaborarem com as leis para a
perfeição moral. A atividade política resolvia-se essencialmente em atividade ética e
pedagógica. Não foi ignorado pelos antigos o contraste entre a atividade política e as
exigências da moral. Tanto Platão quanto Aristóteles dedicaram larga parte nas suas
obras à doutrina da tirania, que é a forma de governo intimamente imoral e injusta.
Mas eles consideraram a tirania um estado anormal e transitório e condenaram
como um erro a separação da política da moral.
A unidade interior constitui o caráter distintivo e essencial do Estado grego
em todas as suas formas. O Estado antigo ignorou os dualismos que caracterizam o
Estado moderno: o dualismo entre o indivíduo e o Estado, o dualismo entre a Igreja
e o Estado. O indivíduo na antigüidade não possui uma esfera de direito própria para
opor ao Estado. Este é parte do Estado e enquanto tal possui direitos como cidadão.
Deste modo o interesse privado era absorvido pelo interesse público, era
inconcebível a rebelião do indivíduo contra o Estado. A idéia de que o singular
somente alcança valor enquanto parte de um organismo político superior encontrou a
sua mais pura e mais elevada expressão no Estado grego, almenos para os cidadãos
que gozavam da plenitude dos direitos. Por isso muitos puderam falar de um
socialismo platônico, porque em Platão a subordinação do indivíduo ao Estado, a
comunhão das mulheres e dos bens, pareceram exprimir o ideal socialista do Estado.
Trata-se todavia de um socialismo limitado às classes superiores e ditado mais por
razões éticas do que econômicas. De fato a sua atuação não implica em
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transformações econômicas, mas sim à elevação moral do homem que triunfa sobre
o próprio egoísmo para reviver no Estado a idéia universal de justiça. Ao Estado
grego contrapõe-se o Estado liberal moderno que, reconhecendo ao indivíduo
direitos próprios, põe-se a si mesmo ao serviço dos interesses privados. Os antigos
conheceram a liberdade política, não a liberdade civil, isto é, conheceram a
liberdade de participarem do governo, não a liberdade de agir sobre o Estado no
interesse individual.
A antigüidade clássica ignorou ainda um segundo dualismo: o dualismo entre
e Igreja e o Estado. Não existia antigamente uma lei divina que impusesse ao Estado
determinados fins, nem extraia o Estado o seu valor de princípios religiosos. Isto que
no mundo moderno é repartido em duas instituições, o Estado e a Igreja, no Estado
antigo constituia uma unidade indissolúvel. O Estado antigo é, ainda, a Igreja; como
tal devia exercitar não apenas o direito, mas também uma disciplina moral. Este
açambarca tudo aquilo que ao homem é sagrado e caro, e o cidadão devia consagrar-
se ao Estado em íntimo sentimento. Bem diversa é a condição do homem moderno
submetido a uma dúplice autoridade, a uma dúplice lei, em freqüente conflito entre
si.
A soberania da lei é uma outra característica do Estado antigo. A lei é a
divindade cambiante, impessoal, que comanda assim aos homens como aos
governantes. O Estado é órgão da lei, não é seu autor. Qualquer que seja a forma de
governo a lei domina soberana. E na idéia de lei estava implícito o conceito de
limite, a condenação de todo o poder desenfreado e incontrolável, a redução à
unidade e à harmonia dos termos antitéticos da liberdade e da autoridade. A
concepção anárquica da liberdade, como a concepção despótica do poder, encontram
na lei soberana a sua condenação.

6. Deficiências da concepção clássica do Estado.


A concepção clássica do Estado representa um momento, uma fase superada
do espírito humano nos seus esforços para encontrar uma solução para o problema
político. É fácil a nós modernos revelarmos as suas deficiências e suas
insuficiências. Ela era constrita a uma concepção da realidade que não pode ser a
nossa. Se para nós o problema do Estado é um problema do espírito, para os Gregos
era um problema do ser concebido fora do espírito.
Como conseqüência de sua premissa naturalística o Estado antigo devia
desvalorizar a personalidade moral e jurídica do homem. A personalidade moral é
estreitamente conexa à afirmação de uma vida interior, subtraída à ação do Estado,
fonte de direitos e de deveres que o Estado deve reconhecer e respeitar. O Estado
antigo ignorou a vida e as exigências da consciência. Se a realidade é a natureza e a
natureza é a fonte dos valores absolutos, a meta do homem é fundir-se com o cosmo,
isto é, objetivar-se, renunciando a reconhecer-se como pessoa. O “conheça-te a ti
mesmo” de Socrates não significa a consciência de si mesmo como pessoa, mas era
a exortação para o homem compreender o posto que ocupa na natureza, para
13

alcançar a norma para operar. Para Platão o homem que não é capaz de elevar-se à
contemplação do mundo das idéias (que são a natureza em relação ao espírito) é, só
por isso, ser inferior, privado de personalidade. E justificava a escravidão da maior
parte dos homens, imersos na sensibilidade, subtraíam-se ao conhecimento do
verdadeiro e do bom. Elevar-se ao mundo das idéias, viver segundo a virtude, não é
para todos, mas somente para poucos eleitos. Por isso os homens não são todos
iguais, nem possuem todos a mesma capacidade de conhecerem e praticarem a
verdade e a justiça. Não se pode falar de uma igualdade entre todos os homens,
porque a natureza dá a cada um disciplinas e capacidades diversas para apreender a
verdade. Por isso Platão fazia consistir a justiça sobre a qual se funda o Estado no
suum agere, e Aristóteles falava dos homens nascidos para comandar e dos homens
nascidos para obedecer. É-se naturalmente escravo, como se é naturalmente livre.
Liberdade e escravidão encontram os respectivos fundamentos na natureza e
constituem aspectos necessários da realidade. Liberdade e igualdade não são
atributos do homem, mas são qualidades objetivas e naturais. A submissão às leis
inexoráveis da natureza conduzia ao desconhecimento da personalidade e da
liberdade.
Com a personalidade moral era negada a personalidade jurídica.
Personalidade no domínio do direito significa capacidade de ser sujeito de direito. A
nós modernos parece óbvio que o homem como tal seja sujeito de direito, isto é,
pessoa. O reconhecimento da personalidade jurídica a todos os homens é conquista
recente. O Estado antigo assemelhou na escravidão o homem às coisas,
considerando-o objeto, não sujeito de direito. De outra parte para Platão, como para
Aristóteles, condição de liberdade e de capacidade política era pertencer à . A
personalidade possui simplesmente um valor político; é atributo do cidadão e não do
homem. Por isso o estrangeiro não é sujeito de direito e uma diversidade de valores
dos homens vem a ser afirmada em dependência da diversidade de ordenamentos
políticos. A sujeição à natureza e ao Estado impediu ao homem antigo afirmar a
personalidade como fonte de direito.
Mesmo aqueles que não partilham da opinião comum que o indivíduo no
Estado antigo não possui uma esfera de livre atividade frente ao Estado, devem
reconhecer que na antigüidade não chegara à consciência do caráter jurídico desta
esfera de liberdade frente ao Estado. E isto se dá em conseqüência da ausência de
antinomia entre o indivíduo e o Estado. Da liberdade como autonomia do querer e
como atividade criadora da ordem jurídica encontramos traço somente nas correntes
filosóficas que contrastam o pensamento dominante, isto é, nas escolas sofistas e
cépticas. Mas tais escolas fizeram obra crítica e negativa, e por isso infecundas.
A concepção naturalística e intelectualística da realidade tolheu aos gregos a
possibilidade de resolverem o contraste entre o direito ideal e o positivo. Para os
gregos somente o direito fundado na natureza é o verdadeiro direito; o direito
positivo não é outro que o direito natural traduzido nas leis. O direito natural se
colocava como verdade jurídica absoluta e suprema, que não admitia exceções,
adaptações. De outra parte não podia escapar aos gregos as imperfeições, as
14

iniqüidades da lei escrita, o profundo contraste entre as exigências ideais da justiça e


as suas manifestações concretas. Mas tal contraste eles compreendiam como
conseqüência de um falso ou incompleto conhecimento do direito ideal. A
relatividade, a mutabilidade das leis escritas constituem para eles um accidens, um
fato transitório que pode e deve ser superado pela ciência. Daqui a importância por
eles dada à educação e à filosofia como únicos meios aptos a fazerem conhecer e
atuar a verdadeira justiça. Eles não suspeitaram que as razões do direito positivo não
são menos essenciais daquelas que valem para a afirmação do direito ideal. Por isso
persistiram na busca e na afirmação de um Estado e de um direito perfeitos e
continuaram a crer na possibilidade de atuá-los, ainda que de fato adaptaram-se a um
Estado e a um direito apenas relativamente ótimos.
Conseqüência posterior do seu naturalismo foi a negação da historicidade do
Estado, do progresso político e jurídico. A história implica naquilo que se produz no
tempo mediante as ações do homem. O Estado antigo não é um produto do homem,
não é histórico: existe para si mesmo na natureza, como expressão de uma ordem
natural imutável. Não que faltasse aos gregos a ideia do devir, mas a
compreenderam em sentido objetivo, inerente às coisas, como atributo do ser, não
como processo do espírito. Daqui a lógica grega, que trabalha os conceitos como
dados imutáveis, suscetíveis de dedução e não de desenvolvimento.
Com o sentido de historicidade faltou aos gregos toda idéia de progresso
jurídico e político. O progresso implica um sujeito que se propõe um fim e luta por
realizá-lo. Somente fazendo do Estado um processo da consciência, que
continuamente se faz e se aperfeiçoa, é possível o progresso. Ausente dos antigos a
noção do devir do sujeito, devia a eles faltar a noção do progresso do direito e do
Estado.
Resumindo, o problema do Estado era insolúvel junto aos gregos porque lhes
faltou a noção do espírito como atividade criadora da experiência política. Tendo
soluciona do o pensamento no ser, nisto procuraram a razão do Estado sem pode-la
encontrar, porque o Estado é obra do homem, da sua atividade espiritual. Bem
advertiram eles para a exigência da objetividade e universalidade do Estado; mas
esta exigência era destinada a restar insatisfeita porque compreendida como
exigência externa, não como exigência interior do espírito.

FONTES
Senofonte, Detti e fatti memorabili di Socrate, tr. de G. M. Bertini, Torino,
1877; Platão, The Republic, ed. by B. Jowett and L. Campbell, Oxford 1894, 3 vol;
15

idem, La Repubblica, tr. de O. Zuretti, Bari, 1915; idem, Le leggi, tr. it. de A.
Cassarà, Bari, 1921, 2 vol. [reestampa Padova 1947]; [Todos os escritos políticos de
Platão, tr. de F. Adorno, Torino, 1970, 2 vol.]; Aristóteles, The Politcs; trans. by
W.L. Newman, Oxford 1887-1902, 4 vol.; idem, La Politica, trad. de V. Costanzi,
Bari, 1918; [trad. de C.A. Viano, Torino 1955].

BIBLIOGRAFIA
K. Hildenbrand, Geschichte und System der Rechts-und Staatsphilosophie, I
Bd. Das klassische Altertum, Leipzig, 1860; H. Arnim, Die politischen Theorien des
Altertums, Wien, 1919; W. Oncken, Die Staatslehre des Aristoteles, Leipzig 1870-
1875, 2 vol.; Ed. Salin, Platon und die griechische Utopie, München 1921; Fr.
Filomusi-Guelfi, La dottrina dello Stato nell’antichità greca, Napoli 1873; P. Janet,
Histoire de la science politique, Paris 1913.[ampla bibliografia sobre o pensamento
político grego in: T.A. Sinclair, Il pensiero politico classico, aos cuidados de L.
Firpo, Bari, 1973, 2 vol.].
16

2
A concepção cristã do Estado

Sumário: 1. O cristianismo e a renovação da consciência religiosa, filosófica,


moral. 2. A Cidade de Deus de Santo Agostinho e o novo significado da justiça. 3.
A contribuição germânica à nova forma de vida política. Recursos humanos no
medioevo7. A idéia de uma monarquia universal cristã. 4. A doutrina escolástica do
Estado. O De regimine principum de São Tomás. 5. As relações entre a Igreja e o
Estado e a doutrina escolástica da hierarquia dos fins. 6. Analogias e diferenças entre
a concepção cristã e a concepção clássica do Estado. 7. Dissolução da concepção
cristão do Estado.

1. O cristianismo e a renovação da consciência religiosa, filosófica e


moral. No cristianismo era implícito, em relação aos antigos, uma tríplice
revolução: religiosa, filosófica, moral. Enquanto para os antigos o divino é
impessoal, indistinto da natureza, da qual exprime íntima semelhança, racionalidade
e atividade imanente, para o cristianismo Deus é pessoa, isto é, inteligência e
vontade infinita, é princípio transcendente do qual o livre ato criativo produz a
natureza e o homem. Desta personalidade e transcendência do divino, conjugada

7
N.T.: a expressão equivalente em português seria Idade Média. Todavia, deu-se preferência à forma italiana
em várias passagens desta tradução onde o termo “medioevo”, mais conciso, oferece uma estética narrativa
melhor.
17

com a fé na sua onipotência e perfeição absoluta, o sentimento religioso deveria


exprimir-se de forma e com intensidade desconhecidas na antigüidade.
À nova concepção do princípio divino corresponde o novo comportamento da
especulação. De filosófica esta transforma-se necessariamente em teológica: do
estudo do objeto esta é levada a estudar o sujeito que da natureza e de tudo que
existe é o autor. Inicia-se uma filosofia do sujeito, mas de um sujeito que é ciência,
espiritualidade, atividade infinita, do qual o ser criado recolhe luz e exemplo. A
verdade e o bem estão em Deus. Deus é princípio e fim do real. Ao naturalismo da
antigüidade sucede-se o espiritualismo cristão.
Deve o homem, agora, convergir a sua atividade teorética e prática em Deus,
de cuja natureza participa como sujeito inteligente e livre. Aquilo que o distingue de
Deus é o grau e a extensão de sua espiritualidade. A especulação grega, mesmo
distinguindo o espírito da natureza, tendia a atenuar a distância, a estabelecer entre
eles um equilíbrio, fazendo do intelecto o princípio formal que extrai do exterior o
fundamento e a matéria da sua vida, adequando a verdade conceitual à verdade
natural. O cristianismo construiu um abismo intransponível entre natureza e o
espírito, transformando a nossa natural relação com o externo, na relação espiritual
entre o homem e Deus. Mas se a atividade intelectual na antigüidade bastava para
apreender a essência das coisas, essa não podia mais, agora, por si só, transcender à
infinita via que separa a atividade cognitiva do homem da mente divina. Isto explica,
ao menos numa primeira fase, a preferência dada ao conhecimento pela intuição do
que pelo raciocínio, à consciência sobre a ciência, à posição mística sobre a
naturalística e intelectual do pensamento.
Com o reino do espírito o cristianismo instaurava o reino da liberdade, da
vida interior. O naturalismo clássico, subordinando o homem à natureza, não podia
evitar o determinismo e o fatalismo ético. Rompido o vínculo que manteve o homem
constrito à natureza, o cidadão ao Estado, constituía-se o novo vínculo do homem
com Deus, e não era vínculo se sujeição coativa, mas vínculo espiritual de amor e fé.
Espiritualizar a vida era por si só elevar a dignidade e personalidade do homem.
Este, não mais passivo como antigamente em relação à natureza, cria em si a nova
vida do espírito e transforma-se símile a Deus. A este fim devia tender a educação do
querer. À medida que o cristianismo desprezava o valor do intelecto exaltava a
vontade. A perfeição moral não era obra, como para os gregos, de inteligência, mas
de vontade, a qual, auxiliada pela graça, determina o triunfo do espírito sobre a
matéria, a realização do divino em nós, a revelação e união com Deus.
As relações do homem com os seus semelhantes nesta concepção vinham
profundamente modificadas. Como seres possuidores da mesma natureza espiritual,
a mesma destinação, os homens são iguais e como filhos do mesmo Pai devem
amar-se como irmãos. O amor ao próximo, ainda que inimigo, era elevado a dever
cristão. Diante disto as diferenças de classe, de raça, de condição social possuem
valor acidental, concernem à vida e aos bens externos, àquilo que é efêmero e
passageiro. Novas virtudes, a fé, a esperança, a caridade, ignorada pelos antigos,
ganham grau junto e preferencialmente à virtude humana. E entre estas são as mais
18

exaltadas a castidade e a pobreza que resguardam o homem da atração dos sentidos,


dos bens do mundo, para prepará-lo para a beatitude eterna. Daí a desvalorização de
tudo aquilo que é natural e humano e a exaltação do sobrenatural e do divino. As
conseqüências da nova concepção da realidade e da vida moral deveriam refletir-se
na doutrina do direito e do Estado.

2. A cidade de Deus de Santo Agostinho e o novo significado da Justiça.


À indiferença diante das instituições políticas e jurídicas do cristianismo
apostólico, seguiu, no decorrer do tempo, em hostilidade aberta. O saque de Roma
por parte de Alarico em 410 d.C. provocou acerbadas críticas contra os cristãos
imputando-lhes a decadência e a ruína da potência romana, porque sua doutrina,
tendia a desvalorizar as virtudes civis e militares e a deslocar as razões da vida para
uma realidade supra-sensível.
Em defesa da nova civilização cristã escreve Santo Agostinho a sua Cidade
de Deus (413-426). Nesta, Roma é representada como a civitas terrena, na qual o
egoísmo (amor sui) domina, decorrendo disto a violência e a iniqüidade. Suprimida
a Justiça, o Estado reduz-se num “magnum latrocinium” e é destinado a sucumbir. A
partir da história particular de Roma, elevando-se a uma interpretação geral da
civilização antiga sustenta Santo Agostinho que toda organização política surgida
antes do cristianismo procede do pecado, é uma perversão do estado natural perfeito,
é obra do demônio. A cidade terrena só foi querida por Deus para que a humanidade
corrompida não decaísse na anarquia. Nos divinos decretos arcanos também o mal
serve ao bem. A potência e grandeza de Roma não foram fortuitas, mas serviram
para preparar aquela paz exterior na qual Cristo nasce e a redenção se faz possível.
À civitas terrena Santo Agostinho contrapõe o ideal cristão da Cidade de
Deus, isto é, a organização religiosa da humanidade na qual Cristo é Rei. O vínculo
que nesta une os homens não é político, mas espiritual: a lei que governa as suas
relações não é natural, mas mortal e divina. Não mais o amor sui é parâmetro de
justiça, mas o amor Dei. A política da força é substituída pela política do amor que
cinge todos os homens em um vínculo de solidariedade e os guia à beatitude eterna.
Ressurge a concepção platônica da justiça, não referida ao mundo das idéias, mas a
um mundo de seres criados para cumprirem o fim eterno. A justiça identifica-se
neste ponto com a vontade de Deus: “Quod Deus vult ipsa iustitia est”8. Não se
busca a razão do justo, mas só se Deus o há querido. O direito não é mais um
complexo de normas racionais, mas um sistema de preceitos, de imperativos. E, se
para os gregos o conhecimento do justo natural é condição para operar justamente,
para Santo Agostinho se faz necessário a participação ativa do sujeito. O homem
transforma-se deste modo em artífice da justiça e a injustiça não é só defeito de
inteligência, mas de vontade. Expressão da vontade de Deus, a justiça assume
caráter religioso: possuindo a sua base na consciência do sujeito, a virtude social de
Aristóteles transforma-se em virtude moral e individual.
8
[“Aquilo que Deus quer é de per si a justiça”].
19

A Civitas Dei era um ideal político-religioso que pressupunha homens


capazes de regularem-se segundo a lei do espírito, isto é, de Deus. Mas no homem,
adjacente ao espírito encontramos o corpo, cuja lei encontra-se em oposição violenta
à lei do espírito. A vida cristã perfeita, pressuposta na Civitas Dei, não era de fato
possível. Só no ascetismo houve a tentativa de atuar o perfeito ideal cristão. Uma
sociedade de santos é tão utópica quanto a cidade de sábios imaginada por Platão. A
natureza humana, ainda que redimida, ainda que sustentada pela graça, é vacilante,
débil, cede ao mal, ao egoísmo. Isto adverte o próprio Santo Agostinho quando,
abandonada a posição crítica e negativa, afirma a necessidade do Estado como meio
válido para conter os egoísmos humanos e garantir a paz e a ordem exteriores, isto é,
a condição que permite à Igreja desenvolver a sua missão religiosa. Compreende-se
que, assim como o corpo é sujeito à alma, os fins materiais e temporais aos fins
espirituais eternos, o Estado deve subordinar-se à Igreja e aos seus fins. O Estado,
como outras instituições humanas, possui valor ético não de per si, como na
antigüidade, mas enquanto imbuído de espírito cristão e servil aos desígnios da
providência. À medida que o ideal da Cidade de Deus, pelo corromper-se e
humanizar-se da Igreja, distanciava-se, a sociedade civil deveria assumir valor e
reafirmar as suas finalidades.

3. A contribuição germânica à nova forma de vida política. Recursos


humanos no medioevo. A idéia de uma monarquia universal cristã.
A dissolução da idéia clássica e romana do Estado não foi apenas
conseqüência de sua incompatibilidade com o ideal cristão de vida, mas foi
historicamente determinada pelo choque com o germanismo. Quando os povos
germânicos entraram em contato com Roma, conservaram evidentes as marcas do
ordenamento patriarcal e militar. Eles não conheciam a convivência na cidade;
viviam divididos em grupos de famílias, recolhidos em comunidades de vilas, em
contínuo movimento, organizados militarmente submetidos à autoridade dos chefes,
dos quais era conhecida a virtude na guerra. Socialmente inferiores aos gregos e aos
romanos, os povos germânicos portavam consigo os germes do conceito de nação,
isto é, a consciência de um vínculo não político, nem religioso, mas étnico,
revalorizado pela recordação das proezas cumpridas em comunidade. E com os
germes de uma forma de agregamento mais vasta que a cidade grego-romana,
possuíam vivo e vigoroso o sentimento da própria força e da personalidade
individual que eram diminuídas na Grécia e em Roma. Para eles o direito não é
norma objetiva de conduta, não é sinônimo de ordem e de vínculo social, mas
significa poder inerente à pessoa que se faz vindicadora com a família do próprio
direito que trás consigo em qualquer lugar. Homens de ação, os germanos
primeiramente não reconheceram outra lei senão a da própria força e somente a
freqüência das vinganças privadas os induzia a submeter-se à autoridade de um
chefe civil que busca moderar os conflitos privados e impor a paz.
20

O Império Romano, já minado internamente pelo cristianismo, deveria ceder


ao golpe externo da gente germânica, os quais, à sua volta, na fase caótica que se
segue submeteram-se à disciplina da vida civil sob a ação moral da Igreja, sob a Lei
e a organização romana. A coroação de Carlos Magno em 800 significou a união do
elemento germânico e do elemento religioso para restaurar na humanidade renovada
pelo cristianismo a idéia universal romana. Esta idéia, sobrevivente à dissolução do
Império, impôs-se aos seus conquistadores mesmos, associou-se à idéia cristã da
unidade religiosa do gênero humano, originando o conceito de uma república
universal no espaço celeste de Deus, governada na terra pelos seus vicários, o
pontífice e o imperador. E enquanto na realidade histórica o esfacelamento e o
particularismo político não podiam ser maior, em idéia a sociedade medieval
apresenta-se como um grande organismo unitário, dotado de alma e de corpo,
possuidor de uma missão temporal e espiritual, oriunda de uma dúplice autoridade.
Em Santo Agostinho a cidade celeste e a cidade terrena estão entre si em luta e em
contraste, mas na Idade Média reaparecem reconciliados e aliados naqueles aspectos
de um único “corpus cristianum”. Este enquanto divino e eterno, depende do
pontífice; enquanto temporal e humano, depende do imperador. Compreende-se
como o problema das suas relações transformasse a base da metafísica social do
tempo. Sacerdócio e império não podiam coexistir harmônicamente por muito
tempo. Logo surge a questão da precedência, pretendendo os pontífices, como
representantes de Deus, a plenitudo potestatis também em relação aos princípios e às
coisas temporais, opondo aos “empreendedores” a sua imediata dependência de
Deus e a sua autonomia em relação aos interesses civis. D’onde as lutas entre a
Igreja e o Império que dominaram a Idade Média.
Tais lutas pelo intangível ideal de organizar a humanidade sobre a base da
unidade da fé e da vida civil, não impediram o curso natural da história. Este curso
foi primeiro caracterizado pelo sistema de vida feudal e comunal, depois pela
tendência de criar sobre as ruínas dos feudos e das comunas, enfim exaustos pelas
próprias lutas, formas de agregações políticas mais vastas nas quais já se revelam as
características do Estado Moderno.
A idéia de um sistema de coisas sociais e humanas que seria efetiva no
medioevo é de Vico, em quem esta idéia conecta-se a um processo constante da
mente humana, sobre o qual modelam-se as modificações do curso da humanidade.
A mente humana, que a todo momento inicia “uma nova ordem da humanidade”,
deve refazer brevemente o caminho já percorrido. Naturalmente as “recordações”,
realizando-se sobre materiais históricos diversos, não se resumem na mera repetição,
mas dão lugar a resultados diversos. A “barbárie rediviva” do medioevo parece de
fato reclamar em vida, na forma dos feudos, os fortes ordenamentos familiares e
territoriais que precederam por toda a parte as associações propriamente políticas. E
na vigorosa vida das comunas medievais ressurge o ideal clássico da cidade. O
sistema de Vico exprime a exigência da humanidade recapitular o caminho já
percorrido para alcançar uma agregação mais vasta. Esta agregação mais vasta
deveria ser o Estado Moderno, que em si dissolve a vida feudal e comunal,
21

reconstruindo o poder soberano e unificando os povos sobre a sólida base do


interesse nacional.

4. A doutrina escolástica do Estado.


Às novas formações políticas que se traduziram historicamente nas
monarquias e nos reinos deve-se, sobretudo, referir-se a doutrina escolástica do
Estado. Mais do que às razões do Império e da Igreja e às suas relações, esta
doutrina mirava justificar natural e racionalmente o Estado na sua forma mais
perfeita e sublime, isto é, na monarquia. A doutrina escolástica do Estado foi
expressa tipicamente por São Tomás de Aquino sobretudo em De regimine
principum, que é seu no livro primeiro e em parte do livro segundo, enquanto o
restante é de seu discípulo Tolomeo da Lucca. Esta doutrina não foi infensa à
influência de Aristóteles, cujo texto da Política, desconhecido dos árabes, foi
traduzido para o latim por Guilherme de Moerbeke em torno de 1260, que também
ajudou São Tomás na interpretação e comentário da Política. São Tomás teve
presente a concepção clássica e a concepção agostiniana do Estado e oferece uma
solução conciliadora, igualmente distante da solução dos curialistas, defensores do
absolutismo papal, e da solução dos escritores “gibelinos”, sequazes da
independência do Estado.
No livro I, capítulo I, em De regimine duas teses são demonstradas: a)
“naturale est homini ut sit animale sociale et politicum” 9. Assim era afirmada a tese
da naturalidade da vida social e política; b) “necesse est homines simul viventes ab
aliquo diligenter regi”10. Assim era afirmada a necessidade de um governo.
São Tomás teve clara a distinção entre a sociedade e o Estado. Viver em
sociedade não significa, como na antigüidade, viver em uma associação política. A
primeira e necessária forma de sociedade é a família. O Estado não é de primeira
necessidade, mas é o natural complemento da família. São Tomás não se limitou a
afirmar dogmaticamente que Deus criou o homem para a sociedade, mas aduz
argumentos racionais, fundados sobre a exigência da natureza humana, derivando-os
em parte de Aristóteles. Uma tríplice ordem de considerações induz admitir a
naturalidade da vida social: a) a “naturalis necessitas”, isto é, a constituição física do
homem em relação aos outros animais, aos quais a natureza provê diretamente
alimentos, indumentos, meios de defesa. O homem na ausência destes, e quase em
compensação, possui a “ratio” e com a indústria de suas mãos procura o necessário
para a vida. Mas justamente por isso faz-se necessário a ajuda e a cooperação de
seus semelhantes; b) os animais possuem o instinto (“naturalis industria”) que os
guia na distinção do que lhes é útil ou danoso. O homem somente possui um
conhecimento natural genérico (“in comuni”) e alcança o conhecimento das coisas
particulares, necessárias à vida, partindo dos princípios universais. O homem
singular não pode conhecer todas as coisas, pelo que se faz necessária a divisão do
9
[“é natural para o homem ser um animal político e social”]
10
[“é indispensável aos homens que vivem em conjunto serem governados pelo empenho de qualquer um”]
22

trabalho e de atividades e a ajuda recíproca; c) da natureza social do homem é


manifestação evidente a linguagem, através da qual pode comunicar as suas idéias
aos outros. Os animais comunicam-se entre si de modo genérico (“in comuni”) e
imperfeito. De todos os animais, também aqueles que vivem em comunidade, o
homem é o mais “communicativus” e celebra na linguagem a sua natureza social.
Portanto, possui a sociedade uma origem natural e dessa existência São
Tomás extrai a necessidade de uma “vis regitiva”, ou seja de um poder dirigente
soberano. São Tomás, como em geral o medioevo, não distingue o Estado do
Governo. Mais que o Estado como sociedade política em geral, ele teve em mira o
Estado como governo desta sociedade, isto é, o Estado em concreto personificado no
príncipe. Demonstra a necessidade de um poder soberano com três argumentos: a)
existindo a sociedade para um fim, deve organizar-se para alcançá-lo. O poder
soberano é o poder organizador da vida social; b) a sociedade é constituída por
indivíduos, cada um dos quais persegue fins particulares. É necessário que haja
quem providencie o bem comum, no interesse da comunidade. O bem comum
constitui-se no maior bem dos indivíduos considerados estes como seres de razão
que tendem a superar a individualidade empírica para atuarem na vida social, isto é,
aquilo que é universal e necessário; c) “in omnibus, quae in unum ordinantur, aliquid
invenitur alterius regitivum”11. Como no universo todos os corpos são mantidos na
sua ordem por Deus, como no homem a alma governa o corpo, e entre as partes do
corpo uma move a outra, assim é necessário “in omni multitudine aliquid
regituvum”.
A perfeição da sociedade é em razão de sua capacidade de bastar-se a si
mesma, a prover “ad necessaria vitae”. Esta perfeição, mais que da família ou da
comuna, possui para São Tomás o reino, que também chama de “província”. A
província era um organismo criado mediante a reunião de cidades, ou de pequenos
Estados, tendo por fim a defesa e o desenvolvimento das forças internas. Esta
associação mais ampla originava-se, mais do que do livre consenso dos elementos
que as constituíam, da força de um deles, ou daquela de um soberano estrangeiro.
Mais do que um Estado unitário, melhor seria falar de uma federação de agregados
políticos menores. Deste modo o reino vinha inserir-se na organização federal e
hierárquica medieval. Para São Tomás não escaparam as novas formações políticas
que preparavam o Estado unitário moderno de carácter absoluto e nacional; mas não
as considerava incompatíveis com a autonomia e a razão de ser das associações
menores.
A última conseqüência a que chega São Tomás é esta: Deus, tendo criado o
homem para a sociedade, quis a autoridade civil. Mas em seu pensamento a
derivação do poder de Deus é apenas formal, isto é, considerada enquanto na relação
abstrata entre aquele que comanda e aquele que é comandado. Isto não implica que
se realize numa determinada pessoa e numa certa forma de governo. A soberania em
concreto é o direito humano e Deus a comunica diretamente às multidões, às quais
cabe organizar um determinado regimento político de governo. A bondade do
11
[“em todas as coisas que são ordenadas a constituir uma unidade reconhece-se algo que governa o resto”].
23

governo não é condicionada por sua forma, mas do ser reto e justo, isto é, de tender
para o bem comum.
São Tomás e em geral o medioevo consideraram a monarquia como a melhor
forma de governo, sobretudo pelas mais vastas agregações, enquanto as associações
de cidadãos melhor se regem com a participação do povo no governo da cumuna.
Não se deve esquecer o apoio dado pela Igreja às comunas, aos governos populares
e mistos do medioevo. Mas os reinos, pela multiplicidade e complexidade dos
elementos que participam de sua constituição, “propter necessitatem compugnationis
et mutui auxilii contra hostes”, melhor são governados por aqueles que
“antonomastice rex vocatur”12. A preferência pela monarquia se encontrava em
relação com a ordenação monárquica do universo, com a exigência da ordem e da
unidade. A monarquia medieval não era monarquia absoluta, mas ela coordenava-se
na organização hierárquica da sociedade medieval, que não admitia poderes
autônomos, não subordinados a um poder superior. O limite do poder monárquico
também era a existência de uma lei natural inderrogável. A violação das leis divinas
e naturais tornava o governo tirânico. A tirania é possível em qualquer forma de
governo: sua característica essencial é o exercício imoral do poder, e imoral é o
poder que não tende “ad bonum commune”, mas “ad bonum privatum regentis”13.

5. As relações entre a Igreja e o Estado e a doutrina escolástica da


hierarquia dos fins.
À solução da questão relativa às relações entre a Igreja e o Estado São Tomás
aplicou a sua doutrina da hierarquia dos fins. Esta doutrina reconhece a autonomia
dos fins em cada grau do real e a o mesmo tempo coordena o fim do grau inferior
àquele superior, que o compreende em si e o eleva ao mais alto e espiritual
significado.
O poder civil não possui outra razão de ser do que dirigir a sociedade ao seu
fim. Mas o fim da sociedade é o fim dos indivíduos que a compõem, pelos quais o
poder civil atua o seu objetivo cuidando “ut in subiecta multitudine bonam vitam
instituat; ut institutam conservet; ut conservatam ad meliora promoveat”. Em outras
palavras, o poder civil deve atuar o bem comum, conservá-lo, fazê-lo progredir.
Promovendo o seu fim específico a autoridade civil colabora com a Igreja e
cria as condições para que esta possa desenvolver a sua missão de guiar os homens à
eterna beatitude. O Estado não possui a dignidade de fim último, o qual somente se
atua fora e sobre a sociedade civil, em uma vida sobrenatural debaixo da direção da
Igreja. E se isto implica uma coordenação e subordinação de fins e de poderes,
ressalva a autonomia do poder civil que pode sempre realizar na sua esfera [de
competência] o bem comum segundo os meios que cre melhores. São Tomás exige
que o poder civil seja cristão, não pretende que o Estado seja governado pela Igreja.
12
[ “...Pela necessidade de combaterem unidos e darem-se recíproca ajuda contra os inimigos ... chama-se
pela antonomasia rex].
13
[“Ao bem comum, mas ao interesse privado daqueles que governam”].
24

O espiritual e o temporal devem ser separados “ut a terrenis essent spiritualia


distincta”14. A supremacia moral e espiritual da Igreja não implica ingerência direta
no domínio temporal, porque a Igreja não dispõe dos meios eficazes para conduzir
os fins humanos. Existe um ponto onde parece que São Tomás adere à tese
teocrática. Diz ele: “Sicut corpus habet esse ab anima, sic etiam temporalis
iurisdictio principum habet esse per spiritualem Petri et successorum eius” 15. Para
provar esta tese São Tomás invoca, mais do que argumentos racionais, argumentos
de fato, históricos. De fato, circunstâncias históricas levaram os pontífices no
medioevo a exercitarem funções civis. Isto, segundo São Tomás, apenas pode ter
lugar excepcionalmente “rationi delicti”, quando os princípios, pelo exercício imoral
do poder, deixam de ser “legitimi domini”, transformam-se em tirânicos. Somente
em época posterior a São Tomás, por obra de Egidio Romano e do Papa Bonifácio
VIII, a doutrina teocrática da “plenitudo potestatis” do pontífice houve nova e
vigorosa afirmação. Mas essa já era agora superada pela doutrina e pela realidade
histórica. A prevalência resultou pela doutrina e pela solução de São Tomás, que
conciliava a exigência da fé cristã com o sentido da concretude e da relatividade
sociais, derivado do estudo de Aristóteles. E compreende-se como a doutrina
escolástica, enquanto refletia o mais honesto e geral sentimento da época, se
transformasse na doutrina oficial da Igreja e se perpetuasse na Idade Moderna como
o ideal cristão da vida e da realidade.

6. Analogias e diferenças entre a concepção cristã e a concepção clássica


do Estado.
A concepção cristã do Estado, expressa na sua forma mais sublime e típica na
doutrina escolástica, reproduz muitos motivos da especulação antiga, sobretudo
aristotélica, e ao mesmo tempo os supera e os vivifica com o espírito cristão,
construindo uma nova e original concepção. Retorna, derivado de Aristóteles, o
conceito de naturalidade e necessidade do Estado, não condicionado à natureza
“lapsa” do homem, à sua degeneração por efeito do pecado original. Retorna o fim
ético do Estado, a distinção aristotélica das formas de governo em razão do exercício
moral e imoral do mesmo; retorna a aversão à tirania, a preferência dada à
capacidade de escolha dos governantes, o conceito da lei natural como limite do
poder público. Mas estes e outros elementos, que atestam a vitalidade e a
persistência do pensamento antigo na era cristã, retornam profundamente
modificados no seu conteúdo e seria grave erro supervalorizar a influência clássica
ou crer em uma pura e simples recepção do antigo pensamento na concepção cristã
do Estado. A origem natural da sociedade e do Estado não excluem em São Tomás a
origem divina. A eticidade do Estado deve compreender-se em relação com a
tendência cristã de negar ao Estado a tarefa da educação, melhor confiada à família
14
[“para que as coisas espirituais fossem separadas daquelas terrenas”].
15
[“Assim como o corpo recebe o ser da alma, a jurisdição temporal dos princípios é posta no ser graças à
jurisdição espiritual de São Pedro e dos seus sucessores”]
25

santificada no matrimônio. Também o Estado cristão tem em mira a felicidade, o


“bem viver”, mas este é meio ao mais alto fim. Retorna a lei natural, mas no sentido
de participação da razão humana na divina.
O Estado antigo vinha profundamente modificado no seu fundamento, nas
suas características, na sua finalidade pela concepção cristã da vida e da realidade. A
diferença fundamental entre as duas concepções deriva de que a realidade suprema
não é o Estado como na antigüidade, mas o indivíduo. O indivíduo não traz o seu
valor pela sua inserção na civitas, mas da sua qualidade de ser moral, pela qual se
insere em uma outra realidade, em uma outra vida estranha, superior ao Estado.
Como cidadão da cidade de Deus ele submete-se à disciplina de uma outra
autoridade, aquela da Igreja; como ser possuidor de valor final não é mais encerrado
em uma obediência incondicionada ao Estado, mas dele se distingue e a ele opõe o
seu direito de viver conforme a sua verdadeira, ultima destinação. Com isto eram
estabelecidos os germes do dualismo entre o indivíduo e o Estado, que deveria ser
desse modo fecundo pela causa da liberdade humana. Os indivíduos opõem-se ao
Estado não mais “uti singuli”, mas agora “uti universi”, isto é, como partes daquele
corpo social que por decreto divino é o verdadeiro sujeito da soberania e da qual em
última instância dependem os governadores. À soberania muda e impessoal da lei o
medioevo prefere a viva voz de Deus e, por este, do corpo social, razão pela qual
nenhum governo pode legitimamente durar contra o consenso da coletividade dos
indivíduos. À concepção intelectual do Estado, renovada pela escolástica, agrega-se
um elemento novo fundado sobre vontade e liberdade humanas, e dessa maneira
penetra no direito público medieval, seja contudo em forma incerta e implícita, um
elemento contratual ou quase-contratual, ignorado na antigüidade.
Começa-se a compreender que, se o poder vem de Deus e se consubstancia
nos homens, estes não o exercem legitimamente se não se empenharem por realizar
o bem reclamado implicitamente ou explicitamente pelo corpo social.
De outra parte as doutrinas políticas da escolástica devem ser compreendidas
em relação a uma situação histórica que não era mais aquela da antigüidade. Nelas
refletiam-se, de um lado, a persistência do regime feudal, do outro a formação dos
governos centralizados e nacionais. A influência feudal revela-se na organização
hierárquica dos indivíduos, das classes, dos grupos sociais, unidos em idéia, mas de
fato separados e em conflito entre si. De outra parte, na defesa e na exaltação do
governo de um só contra o fracionamento da soberania, adverte-se a exigência da
unidade política, que somente no reino poderia encontrar condições de
sobrevivência, de defesa, de desenvolvimento adequado.

7. Dissolução da concepção cristã do Estado.


A concepção espiritual do direito e do Estado tinha por pressuposto a
organização religiosa da vida, a harmonia da razão e da fé, a subordinação e a
coordenação dos fins e dos poderes civis aos fins e aos poderes religiosos. Mas a
26

harmonia e o equilíbrio pretendidos pela escolástica vieram diminuídos de outra


parte na ordem especulativa como na ordem prática. Ressurge depois de São Tomás
no seio da especulação, e com reflexo na vida, o dualismo entre as tendências
místicas e as correntes racionalísticas. O espírito místico de derivação agostiniana,
trazia na sua forma extrema a negação da personalidade, a sua desintegração em
Deus. Ao sábio estóico que aspirava inserir a sua individualidade na natureza
corresponde no medioevo místico o ideal do santo que, rompidos os vínculos com o
mundo, enleva-se em Deus, faz renúncia explícita de si, ao seu direito, às relações
que o vinculam à família e ao Estado. As bases mesmas do Estado eram abaladas
pelo misticismo e ascetismo medievais pela exaltação implícita neles da castidade,
da pobreza, da renúncia aos bens, em detrimento dos valores econômicos, civis e
humanos.
Não menos grave nas suas conseqüências foram as derivações racionalísticas
da escolástica, para as quais o intelecto humano fatigava-se inutilmente
racionalizando a fé, a imitar a ordem das idéias existentes “ab aeterno” na mente
divina. Ressurgia por esta via a passividade e heteronomia do espírito, que buscava
numa realidade espiritual dogmatizada o fundamento do saber e do operar, com
sacrifício da livre energia espiritual e da espontaneidade do sentimento religioso.
O sistema de equilíbrio entre o Estado e a Igreja com tanto cuidado
construído por São Tomás, de fato demonstrou-se instável e não pode reger as forças
históricas que tendiam destruí-lo. Por isso, se a Igreja era o árbitro dos supremos
destinos do homem e da humanidade, essa, na plena consciência de sua missão
divina, era autorizada a intervir na vida interna dos Estados cristãos em defesa da lei
divina e humana violadas pelos princípios inescrupulosos e ímpios. E estes
princípios, na era dos Senhores e da formação dos Estados nacionais, eram em
grande número, e não era de certo o temor das sanções religiosas que poderia
desistimulá-los de suas políticas de potência e de prepotência.
De outro lado o ideal cristão de uma norma suprema de justiça derivada de
Deus e superior ao Estado era frustrado pela tendência da Igreja organizar a vida
religiosa de forma e com finalidade que não eram sempre e inteiramente
evangélicas. A submissão ao querer divino transformava-se praticamente em
submissão à autoridade eclesiástica, que afirmou-se muitíssimo, e pelos fins dos
interesses temporais, rival do poder civil, impondo aos fieis e aos príncipes uma
disciplina exterior incompatível não apenas com a liberdade do espírito, mas com a
conquista do bem humano. A Igreja revelou-se muito freqüentemente como uma
“potência” que “reinava” no mundo à maneira dos Estados e não esconde a sua
veleidade de domínio, comprometendo não apenas a autoridade dos soberanos, mas
de seu próprio prestígio sobre os povos.
Houve um momento na tarda Idade Média na qual a personalidade moral e
jurídica do homem, que o cristianismo houvera tanto cooperado para elevar em
dignidade, resultara obstaculada e oprimida não apenas pela força centrípeta dos
Estados, mas pela própria atividade da Igreja tendente a traduzir a vida espiritual
numa organização visível, exterior. A relação do homem com Deus transformou-se
27

em uma relação sempre mais mediada, numa dependência hierárquica entre os


ministros e os súditos da divindade. Ao ímpeto espontâneo da consciência para com
Deus, à iniciativa religiosa, que cria o Santo, o apóstolo da fé, o herói da caridade,
sucede uma rígida disciplina exterior do pensamento e da ação, uma vida religiosa
travada, sufocada pelos ritos do culto externo, pelos dogmas engessados na forma e
no seu significado. O princípio da autoridade termina por dominar tiranicamente não
apenas a vida política, mas a própria vida espiritual, isto é, no campo onde menos
poderia dominar e onde iria encontrar a maior resistência.
A personalidade jurídica, e com ela a liberdade e igualdade humana, não
obtiveram no medioevo o reconhecimento correspondente ao espírito cristão.
Naquela era vemos perpetuarem-se, sem resistência eficaz por parte da Igreja, as
diferenças sociais, os privilégios, os vínculos jurídicos e políticos próprios da
antigüidade. A escravidão foi tolerada e mesmo justificada como conseqüência do
pecado original. Se na antigüidade a condição de estrangeiro implicava o
desconhecimento da personalidade jurídica, no medioevo cristão um análogo
desconhecimento era implícito na distinção entre fiéis e infiéis, entre cristãos e
hereges, entre réprobos e eleitos. Vemos a capacidade jurídica condicionada a uma
fé religiosa, o Estado religioso tornar-se fonte de privilégio, de desigualdade jurídica
na vida familiar e civil.
Uma reação dirigida a percutir a dúplice servidão espiritual, a reafirmar o
esquecido senso de humanidade do direito e do Estado se faz inevitável. Esta reação
se chamou humanismo.

FONTES
Santo Agostinho, De civitate Dei, ed. Dombart-Kalb, Lipsiae 1928-29; tr. it.
de Passavanti, Torino 1853; [tr. de C. Giorgi, Firenze 1927-1930, 4 vols.]; São
Tomás, De regimine principum, ed. Mathis, Torino 1924; tr. de Mathis, Torino 1928;
[idem, Escritos Políticos, ao cuidado de A. Passerin d’Entrèves, Bologna, 1946].
28

BIBLIOGRAFIA
P. Janet, Histoire, cit.; R.W. Carlyle, A History of Medioeval Political Theory
in the West, London 1903-1928 [6 vols., tr. di L. Firpo, Bari 1956-1968, 4 vols., com
amplíssima bibliografia para os séculos I-XIV]; J. Bryce, Storia del sacro romano
impero, trad. de Balzini, Napolis 1886; G. Carle, Le vita del diritto, Torino 1890; O.
Gierke, Les théories politiques du moyen âge, avec une intr. par. W. Maitland, Paris
1914; E. Troeltsch, Die Sozialehren der christlichen Kirchen und Gruppen,
Tübingen 1923; [trad. de G. Sanna, Firenze 1949-1960, 2 vols.]; O. Schilling, Die
Staats – und Soziallehre des hl. Augustinus, Freiburg 1911; Idem, Die Staats – und
Soziallehre des hl. Thomas von Aquin, des grossten Themlogen und Philosophen der
katholischen Kirche, Leipzig 1873; Idem, Die Staatslehre des hl. Thomas v. Aquin,
Leipzig 1909; J. Zeller, L’idée de l’Etat dans Saint Thomas d’Aquin, Paris 1910;
Crahay, La politique de Saint Thomas d’Aquin, Louvain 1896; M. Demongeot, Le
meilleure régime politique selon, S. Th., Paris 1928; B. Roland-Gosselin, La
doctrine politique de S. Thomas, Paris 1928; [exaustivos subsídios preliminares em:
S. Vanni Rovighi, Introduzione a Tommaso d’Aquino, Bari 1973].

3.
A concepção liberal do Estado
29

Sumário: 1. Significado do humanismo e do renascimento. 2. A reforma


protestante e as novas formas de vida religiosa. 3. O Estado absoluto e suas
características. 4. As lutas religiosas e o discórdia entre o indivíduo e o Estado. 5. A
doutrina dos “monarcomachi”16 sobre a origem contratual dos governos. 6. Bacon,
Descartes e o idealismo moderno. 7. A escola do direito natural e seus conceitos
fundamentais. 8. Contratualismo e absolutismo em Grócio. 9. O direito natural da
força em Hobbes e a justificação do absolutismo. A CONCEPÇÃO LIBERAL DO ESTADO E
SUAS FORMAS. O liberalismo empírico (Locke-Montesquieu). 10. O liberalismo
empírico de Locke. 11. Liberalismo empírico e constitucionalismo de Montesquieu.
12. Avaliação histórica e crítica do liberalismo empírico. O liberalismo ético
(Rousseau). 13. Rousseau e o enciclopedismo. 14. O homem e o Estado de natureza
no Discurso de 1750. 15. A origem das desigualdades sociais. O Discurso de 1754.
16. O significado do segundo Discurso. 17. O conteúdo do Contrato Social (1762).
18. Origem e natureza do governo. 19. O liberalismo ético de Rousseau. 20.
Rousseau e a filosofia política da revolução francesa. 21. A Constituição de 1791 e
o seu significado. 22. A Constituição Jacobina de 1793. O liberalismo jurídico
(Kant). 23. A distinção entre direito e moral. 24. Kant e a concepção do Estado de
direito. 25. O contrato social em Kant como idéia necessária da razão. 26. A
constituição republicana segundo Kant. 27. O Estado como liberdade. 28. O ideal da
liberdade na filosofia política de Kant.

1. Significado do humanismo e do renascimento.


Em seu aspecto negativo o humanismo é reação ao espírito cristão. Mais que
negar o dogma, o humanismo demonstra desinteresse, indiferença para com os
valores religiosos sobrenaturais que o medioevo mais havia amado e celebrado.
Segundo a interpretação dada por Gentile, o humanismo também possui um
significado positivo e sob este aspecto é filologia, é o homem que busca e encontra a
si mesmo, que se exalta no estudo dos antigos ressucitados com plena liberdade de
espírito, revelados pelas fontes genuínas não deformadas ou mutiladas por
preocupações dogmáticas. Não possuindo filosofia própria, o humanismo a encontra
nos escritos de Platão e Aristóteles e os descobre originais e diversos em relação
àqueles conhecidos pelo medioevo. Retorna a fé no homem, a consciência da sua
dignidade e potência. A vida reconquista por inteiro o seu valor, enquanto a doutrina

16
N.T.: “monarcomachi” significa aquele que combate os soberanos absolutos (conf. verbete do dicionário
italiano “Lo Zinichelli”, pag. 1101, ed. 1997). À ausênica de vocábulo específico em português, que expresse
com exatidão o conceito que se pretende transmitir, nesta tradução preferiu-se manter o vocábulo italiano que
supre, desta forma, a lacuna existente.
30

da dupla verdade permite aos mais prudentes conciliar as exigências da própria


consciência religiosa com as ousadias do pensamento.
O humanismo preparou a nova concepção da vida e da realidade que
foi expressa pelo Renascimento, no qual o homem desabrocha-se, despoja-se da
cega veneração pelos antigos, para atingir no grande livro da natureza e da história
aquilo que a natureza e o homem realmente são. A natureza não é mais, como no
medioevo, contraposta ao espírito, não é mais princípio inerte, privado de valor,
fonte de males, obstáculo à elevação espiritual. Para os filósofos do Renascimento,
para Telesio, Bruno, Campanella, espiritualiza-se a natureza, há em si movimento,
sentido, pensamento, virtude. Nela identifica-se o homem, reflete as suas intimas,
profundas harmonias, aqui descobre uma alma, uma vida universal da qual participa
como a vida divina.

2. A reforma protestante e as novas formas de vida religiosa.


No ambiente espiritual criado pelo humanismo e pelo renascimento preparou-
se o despertar da personalidade, a emancipação do intelecto dos vínculos da
humanidade, a revolta do indivíduo contra a dúplice e secular opressão religiosa e
política. Dois acontecimentos contribuíram para este movimento de regeneração do
espírito como liberdade: a reforma protestante e a formação dos Estados Absolutos.
O que significou a reforma protestante para a civilização moderna não é fácil de
dizer e é sempre objeto de discussão. Pode-se concordar no reconhecimento que no
seu espírito originário significou ela a libertação do indivíduo da hierarquia
eclesiástica, a proclamação do infinito valor da pessoa à qual se reconhece o livre
exame da própria verdade religiosa. Sobretudo a reforma rompia a unidade religiosa
e moral que o medioevo havia procurado realizar com a orientação e com a
cooperação dos dois poderes supremos igualmente soberanos e universais. À medida
que a religião transformava-se em expressão de interioridade, na sua forma visível
ela assumia caracter territorial e nacional. Ao ideal medieval de uma organização
unitária e cristã de toda a humanidade sucede o particularismo religioso na forma
concreta da Igreja de Estado e inúteis resultaram os esforços da Igreja romana para
reafirmar o antigo primado católico, para restabelecer a unidade da fé e da doutrina.

3. Estado Absoluto e suas características.


Com a unidade e a universalidade religiosa, faltaram à época da reforma e
também para as lutas religiosas que dela derivaram, a unidade e a universalidade
política. Sobre as ruínas do ideal imperial medieval surgiram os novos Estados
nacionais, na forma, com meios e para os fins indicados por Maquiavel. O novo
Estado não possui mais limites e finalidades morais, não é instrumento do bem
comum, não é fim em si mesmo: surge e conserva-se pela força e habilidade do
príncipe. E como Estado absoluto apresenta-se no princípio como Estado moderno,
o qual fundava-se sobre dois princípios fundamentais:
31

a) Não existem direitos acima e além do Estado. Não se deve esquecer que o
Estado absoluto formou-se historicamente nas lutas contra o papado e o
Império de um lado e, do outro, contra os privilégios feudais e a liberdade
comunal. O ordenamento jurídico medieval havia favorecido o
fracionamento da soberania, o multiplicar-se das jurisdições em prejuízo
da autoridade real e do governo central. Exprimia o Estado absoluto a
exigência de reconstruir o poder soberano na sua forma unitária e
indivisível, contra todas as forças morais e históricas que limitavam ou
obstaculizavam a sua autonomia e o seu livre desenvolvimento. Não
existem diante do Estado absoluto nem hierarquias, nem classes sociais,
nem castas, nem privilégios. Os próprios direitos privados são concessões
graciosas, e revogáveis, do soberano. Não se pode falar em direitos
pertencentes ao homem enquanto tal.
b) O príncipe é a encarnação do Estado. Isto significa que o sujeito de
direito público não é o Estado, mas o príncipe que o personifica, e que
todos os poderes do Estado são resumidos na pessoa do soberano. O
Estado não é uma realidade distinta do soberano, de forma que a sorte de
um é inseparável da do outro.

Um poder assim ilimitado pôde inicialmente justificar-se em função das


qualidades pessoais do príncipe; mas com o desenrolar do tempo consolidou-se
sobre a base de uma tríplice justificação jurídica: 1) Foi invocada a unânime
doutrina dos juristas gibelinos segundo a qual “princeps legibus solutus est”17; 2)
Foi recuperada a tradição da “Lex regia de imperio” fundada na ficção de uma
delegação dos poderes feita pelo povo ao príncipe; 3) Foi elaborada a nova teoria do
direito divino, segundo a qual o príncipe é vicário de Deus, a quem responde pelo
seu agir.

4. As lutas religiosas e o divórcio entre o indivíduo e o Estado.


A concepção liberal do Estado, espiritualmente preparada pelo humanismo,
pelo renascimento, pela reforma protestante, maturou-se e desenvolveu-se em
antítese e em reação ao absolutismo político. Pressuposto de tal concepção foi o
divórcio sempre mais profundo entre o indivíduo e o Estado. Na passagem do
medioevo à Idade Moderna atravessou o indivíduo uma crise de desorientação. Se
de um lado evoluiu a confiança em si, a consciência do próprio valor, do outro
encontrava no Estado um inimigo que sufocava as suas energias, suas aspirações
mais legítimas em homenagem a uma pretensa razão de Estado. O novo Estado não
garantia ao indivíduo a paz, a justiça, a segurança. Sob este aspecto a mudança
política do século deveria apresentar-se ao indivíduo como um retrocesso em relação
à antigüidade e à Idade Média. O cidadão do Estado antigo sentia-se seguro na sua
cidade, onde encontrava as condições para alcançar o seu fim; se não era livre como
17
[“O príncipe não é vinculado pelas leis”]
32

indivíduo, o era como membro do Estado. Na Idade Média cristã a tutela e a


orientação da Igreja o garantia contra as turbações da vida, liberava-o do angustiante
problema do além vida; o prejuízo da dependência era compensado pela vantagem
de uma regra fixa e segura de vida. No renascimento falta a unidade de direção, a
eficaz tutela do Estado e da Igreja, das duas supremas autoridades que até então
haviam regulado a vida na sua dúplice finalidade temporal e espiritual. O indivíduo
sentiu-se só, em contraste com o passado, preocupado com o porvir diante do Estado
que perseguia fins políticos incompatíveis com a sua consciência ética e religiosa.
Com maior razão da servidão política o indivíduo compreendeu o início da
opressão espiritual. Não se deteve a razão de Estado nem diante das incoercíveis
exigências da consciência religiosa. O novo princípio de direito público da época,
estabelecido para regular as relações entre as diversas confissões expresso pela
fórmula: “cuius regio illius religio”, que não era destinada a provocar divórcio nos
Estados nos quais a religião do príncipe era aquela dos súditos. Mas lá onde
coexistiam diversas confissões religiosas e o princípio da tolerância era não apenas
ignorado, mas adversário daqueles princípios em homenagem também à unidade
religiosa do Estado, a aplicação daquele princípio deveria provocar contrastes e lutas
sangüinolentas. Sobretudo na França a luta entre calvinistas e católicos inserindo-se
sobre contrastes de índole dinástica e política, culminou na matança da noite de São
Bartolomeu (1572). No ânimo dos vencidos, os quais foram uns sobre os outros
protestantes e católicos, deveriam manifestar-se sentimentos de rebelião contra o
Estado que violava o mais sagrado dos direitos, a liberdade de consciência e de
culto.

5. A doutrina dos “monarcomachi” sobre a origem contratual dos


governos.
Foi no tumulto das lutas religiosas que surgiram as primeiras discussões em
torno do fundamento da autoridade pública, em torno dos limites e dos fins do poder
soberano em relação ao indivíduo. Recordemos a escola dos “monarcomachi”, dos
quais os primeiros e mais numerosos saíram das fileiras dos protestantes (Hotman,
Beza, “Junius Brutus”, Buchanan), outros dos católicos, principalmente jesuítas
(Boucher, Mariana, Suárez). Os “monarcomachi” valeram-se das fontes bíblicas e
escolásticas para estabelecer que o Estado existe na vantagem dos povos e não no
interesse dos governantes, os quais extraem a legitimidade de seu poder de um
contrato concluído com a coletividade, em virtude do qual eles se obrigam a
governar segundo as leis morais e divinas. Violando aqueles princípios transformam-
se em “publici hostes” e qualquer um pode armar-se contra eles. E protestantes e
católicos ao regicídio recorreram nesta época de ódio e de lutas religiosas. A questão
do tiranicídio foi largamente tratada no medioevo e prevaleceu a doutrina de São
Tomás, segundo quem a insurreição armada contra o soberano não se admitia salvo
naqueles casos de tirania intolerável e somente pelo juízo e decreto da autoridade
pública. Os “monarcomachi” induziram-se até a admitir a legitimidade do regicídio
33

praticado pelo indivíduo que se faz vingador das ofensas produzidas à consciência
religiosa da coletividade. Nas formas e com argumentos originados na tradição,
inicia-se a luta do indivíduo contra o Estado Absoluto.

6. Bacon, Descartes e o idealismo moderno.


A questão das relações entre o indivíduo e o Estado uma vez posta, não mais
foi abandonada. Na época do absolutismo ela torna-se questão vital para a sorte do
indivíduo em luta contra o Estado na defesa de sua liberdade. O liberalismo político
extrai deste divórcio a sua origem e justificação histórica. Porém, as novas soluções,
antes de invocarem no interesse do indivíduo a autoridade da Bíblia e de São Tomás,
inspiraram-se na evolução filosófica iniciada na primeira metade do século XVII por
Bacon e por Descartes. A partir deles coloca-se um novo conceito de ciência, um
novo método de estudo. Eles abrem a via à concepção idealística da realidade e, em
conseqüência, à solução idealística do problema do problema do Estado.
O idealismo em sentido geral iniciou-se no dia no qual a realidade foi
compreendida não como realidade natural ou divina, mas como espiritualidade,
consciência, produção do sujeito. O dualismo entre espírito e matéria, sobre o qual
se baseava a concepção espiritualista cristã, tende na filosofia moderna a solucionar-
se e a própria realidade material revela-se como criação da atividade do espírito.
Este processo de solução surge no princípio da Idade Moderna pela obra de Bacon e
Descartes, dos quais um inicia o idealismo empírico, o outro o idealismo racional;
um tende a solucionar a realidade nas sensações, o outro nas idéias inatas; para um
conhece-se a realidade exterior mediante aquilo que a nós revelam os sentidos, para
o outro mediante aquilo que se pode deduzir das idéias claras e exatas.
Tanto Bacon quanto Descartes iniciaram suas obras de restauração filosófica
com uma reforma metodológica. Il Novum Organum di Bacon (1609) e o Discurso
do Método de Descartes (1637) assinalam o surgimento da lógica do sujeito em
contraposição à lógica aristotélica do objeto. Se a realidade é consciência, se o
objeto do pensamento não é a natureza ou Deus, mas o próprio pensamento, se o
limite do pensamento é aquilo que manifesta-se ao sujeito, compreende-se uma nova
lógica, aquela da atividade do sujeito que constrói o verdadeiro.
Em conseqüência da dúplice reforma metodológica, a ciência, a verdade
adquirem um novo significado. Não mais ciência objetiva, preocupada em fixar a
essência imutável das coisas, mas a nova ciência, que busca a certeza e a evidência
do verdadeiro. Não mais ciência feita, a nós pressuposta, mas ciência e verdade que
se fazem continuamente através da atividade incessante do sujeito. A verdade
objetiva tanto possui valor para nós, enquanto transforma a nossa verdade e cria a
certeza de existir no verdadeiro.

7. A escola do direito natural e seus conceitos fundamentais.


34

O movimento filosófico suscitado por Bacon e por Descartes não podia ficar
sem efeitos com relação às ciências morais e jurídicas. Nas suas obras, a extensão
dos princípios por eles postos, trazia implícito um renovamento das ciências morais.
A restaurada liberdade do espírito, o novo conceito do homem, da sua personalidade
e do seu valor, deveriam originar uma nova orientação do problema do direito e do
Estado. Ao conceito de uma vontade divina, que somente por sua intangível
autoridade institui e determina os ordenamentos sociais, substitui-se enfim por um
outro conceito: que estes ordenamentos devem ter o seu princípio e a sua lei no
próprio sujeito, isto é, no homem considerado na sua constituição natural e racional.
E fala-se de um direito natural de uma escola do direito natural, dos iusnaturalistas
e de iusnaturalismo para indicar a tendência de se descobrir para o direito um
fundamento na natureza; mas não se tratava como na antigüidade, da natureza física
exterior, mas da natureza do homem, considerada como fonte do direito.
A primeira conseqüência do movimento de idéias suscitado pela reforma
baconiana e cartesiana foi a distinção da filosofia jurídica da teologia. A distinção
possui uma grande importância histórica porque tornou possível a liberdade de
espírito na ordem de tratamento dos problemas relativos ao fundamento do direito e
do Estado. É celebre a passagem de Hugo Grócio (considerado como o fundador da
escola do direito natural) na qual afirma que o direito natural existiria “etiamsi
daremus Deum non esse”.
O princípio segundo o qual o Direito é expressão da personalidade e não é
condicionado por pressupostos naturalísticos e teológicos, transforma-se no ponto de
partida da nova especulação jurídica, que desenvolve-se em diversas formas e em
diversas direções, mas sobre a base de alguns conceitos fundamentais comuns.
Destes são particularmente importantes: 1)o conceito de direito natural do homem;
2)o conceito de um estado de natureza originário; 3)o contrato social.
A doutrina dos direitos do homem surge como conseqüência do princípio que
o direito é produção do sujeito, é afirmação da personalidade do homem em relação
à natureza externa e em relação aos seus semelhantes. Para a especulação anterior o
direito possui o seu fundamento na ordem natural ou divina, pressuposta ao homem
e à sua natureza; o direito subjetivo do homem é compreendido sobre a base e nos
limites de uma ordem objetiva imutável. Em conseqüência da concepção idealística
ocorre uma inversão pela qual o direito subjetivo é condição e limite do direito
objetivo. O homem transforma-se na substância de todo direito e os ordenamentos
civis são compreendidos em função de sua liberdade. Ocorria no seio da filosofia do
direito uma revolução análoga àquela que Bacon havia causado na ciência da
natureza e Descartes no domínio da filosofia racional.
Conjunta à doutrina dos direitos naturais do homem estava a doutrina de um
Estado de Natureza, no qual o homem liberto de qualquer vínculo político
desenvolve livremente a própria personalidade e o próprio direito. Para explicar a
passagem do Estado de natureza ao Estado civil e político, sem infringir o princípio
de que o homem é o autor da realidade política, surge a idéia de um pacto em virtude
do qual os homens, para reciprocamente garantirem-se o gozo dos direitos naturais,
35

criam o Estado; este não possui mais origem natural ou divina, mas contratual, isto
é, voluntária e consensual. Os conceitos de direito natural, de Estado de Natureza, de
pacto social recebem cor e significado empírico ou racional de acordo com serem
empíricos ou racionais os pressupostos metafísicos que os movem.

8. Contratualismo e absolutismo em Grócio.


A primeira solução dada para o problema político pela escola do direito
natural funda-se sobre a consideração empírica do homem e de sua natureza, e esta
consideração empírica reflete o modo de compreender o estado de natureza e o pacto
social. Nos primeiros seguidores da tendência empírica, em Grócio e sobretudo em
Hobbes, a nota pessimista e realista prevalece na compreensão do homem e do seu
direito natural. A eles parece presente o ensinamento de Maquiavel, segundo quem
aquele que funda um Estado deve pressupor todos os homens naturalmente malignos
e sem exceção inclinados a dar livre curso à própria perversidade natural na primeira
ocasião que se lhes oferecer fazê-lo seguramente.
Em Grócio (1585-1645) é afirmada a inata sociabilidade humana (appetitus
societatis) e com a finalidade de conservação e de desenvolvimento das relações
sociais é concebido o direito natural. Somente na excepcional condição original de
inocência e de simplicidade os homens vivem pacificamente em comunhão
existencial e patrimonial segundo as normas do direito natural. O pecado original
corrompeu os costumes, transformou os homens hostis entre si, necessitando criar
através de um pacto um Estado forte e capaz de impor a paz e de garantir o gozo do
direito natural. O pacto que dá origem ao Estado é um verdadeiro e próprio pacto de
subjugação, que implica para o indivíduo a renúncia de seus direitos em favor do
soberano que os farão valer. Que esteja implícito que o soberano deva utilizar-se do
poder que lhe foi conferido para os fins de defesa e da conservação social, não é
menos verdade que o soberano exercita o seu poder de forma absoluta por direito
próprio, em virtude de um pacto irrevogável, sem que ao indivíduo permaneça
garantia de proteção contra o arbítrio. Partindo da premissa individualística Grócio
justificava o absolutismo político.

9. Direito natural da força em Hobbes e a justificação do absolutismo.


A resultado análogo chega o empirismo de Thomas Hobbes (1588-1679), mas
com lógica mais rigorosa, que escreve a sua obra principal, o Leviathan (1652), no
período das lutas civis inglesas. Ele parte do princípio que o homem, como conhece
por meio dos sentidos, assim determina sua ação sob o impulso do prazer e da dor.
Hobbes nega a existência de impulsos sociais no homem. A sociedade não é um
estado natural; é buscada se e quando traz vantagem. Os homens são por natureza
egoístas, e com base no egoísmo regulam as suas relações; compreendem a
liberdade como ausência de impedimento à sua ação e denominam direito a
atividade que cada um estende com qualquer meio para conservar-se. O “ius
36

omnium in omnia”18 é norma geral no estado de natureza e tal direito aumenta em


razão da força e potência de qualquer um. O estado de guerra (“bellum omnium
contra omnes”19) é a condição normal de seres que perseguem o seu interesse e se
valem da reflexão para potenciarem com a fraude e o ardil a força física. Com isto
não se garante a lei fundamental da vida, que é aquela de conservar-se. A razão e a
conveniência aconselham o homem a sair do estado de guerra e buscar a paz e esta é
possível somente mediante a condição de que cada um limite o próprio direito
natural na medida em que também os outros o limitem. Esta recíproca limitação é
consagrada em um pacto, que exprime um compromisso entre o direito de natureza e
as exigências da paz. Em caso contrário, falta a garantia que o pacto seja observado
e resista às prepotentes tendências egoístas da natureza humana. Melhor
providencia-se aos fins da conservação e da segurança com a criação de um poder
suficientemente forte que, impondo-se aos egoísmos, garanta os pactos e a paz. Tal
poder surge em virtude de um “pactum subiectionis”20 pelo qual as vontades
individuais, os singulares interesses concorrem em conjunto para criarem um único
querer, um único interesse, aquele do soberano. Com o pacto obrigam-se os
indivíduos a transferir todos os seus poderes a um só homem, que a todos
representa, a submeter ao seu juízo e beneplácito a própria vontade, renunciando à
resistência e à anulação do poder transferido. O Estado em virtude do contrato
coloca-se como uma individualidade superpontente, enquanto concentra em si a
força dos indivíduos em conjunto reunidos. Por isso Hobbes o chama Leviathan,
com nome extraído da Bíblia. O contrato que dá vida ao Estado é contrato de todos
com cada um e não mais de todos com a pessoa do soberano, e este, personificando
o Estado, transforma-se em árbitro da vida e do patrimônio dos súditos. À natural
razão privada substitui-se a razão civil, pública. Não mais se pode falar em direitos
do homem a ele pertencentes naturalmente. Todos os direitos, como toda a força dos
indivíduos, concentram-se na vontade e na capacidade do soberano, que regula as
atividades dos súditos segundo as exigências da paz e da segurança, que constituem
a razão de Estado, a medida de sua atividade. Por isso todo o direito é positivo e
imperativo e possui valor não em consideração de sua justiça intrínseca, mas
somente enquanto emana da vontade do soberano. O indivíduo é livre nos limites
traçados pela lei: “silentium legis, libertas civium”.
Thomas Hobbes passa à história da doutrina política como o filósofo da
autoridade, do despotismo, como o adversário mais resoluto e conseqüente da
liberdade elevada a princípio da ordem política. Ele está convencido de que o
egoísmo imanente à natureza humana somente pode estar contido por um
ordenamento político absoluto como ele concebia. À multiplicidade dos egoísmos,
entre si contrastantes, impotentes para dar origem a uma ordem de vida pacífica e
segura, Hobbes prefere um só e grande egoísmo, aquele do Estado, que não
possuindo rival, não temendo por sua conservação, está capacitado para atuar uma
18
[“O direito de cada um sobre todas as coisas”].
19
[ “A guerra de qualquer um contra todos”].
20
[“Pacto de subjugação”].
37

ordem racional de relações aos fins da paz e da conservação. Mas tal ordem não
sendo natural, deve ser coativa, nem possui outra possibilidade de manter-se que à
força.
A influência exercida por Hobbes também em idade posterior deriva de haver
ele levado às conseqüências extremas o postulado do egoísmo puro, não temperado
por exigências éticas e sociais. E se à parte admitimos que há egoísmo no operar,
deveremos reconhecer o lado de verdade perene ínsita na doutrina de Hobbes.
Contra os excessos da liberdade e do egoísmo, contra o desconhecimento dos
interesses coletivos, o despotismo invocado por Hobbes pode verdadeiramente
surgir como o remédio para salvar o povo do perigo da anarquia. A férrea lógica de
Hobbes demonstrou, ainda que de forma paradoxal e em grandes letras, que a
liberdade natural desenfreada implica em sua negação. Hobbes teve presente o
sentido do direito e do Estado e viu, com realismo que recorda a Maquiavel, as
deficiências dos ordenamentos políticos fundados sobre abstrações racionais e
morais.
Em Hobbes (cuja lógica inexorável ignorou os sábios temperamentos, a
prudente reserva de Grócio) os conceitos que parecem caracterizar a concepção
liberal do Estado, quais sejam os direitos do homem, o estado de natureza, o pacto
social, dir-se-iam invocados para demonstrar a sua radical impotência para criar
qualquer ordenamento civil, que surge da negação, do estabelecer-se do extremo
despotismo. Porém, é verdade que o absolutismo de Hobbes não se origina, como
aquele de Maquiavel, da força e da virtude do príncipe, mas surge de um cálculo
racional de utilidade consagrada em um pacto. Trata-se de um absolutismo que
poderia chamar-se individualista, não apenas porque nele o Estado concretiza-se na
pessoa do príncipe, mas sobretudo porque é um absolutismo criado e consentido
pelos indivíduos que se submetem às regras do seu jogo, e representa o único
ordenamento que permite ao indivíduo conservar-se e gozar a segurança do direito.
O idealismo empírico aplicado ao problema do Estado admitia outras
soluções. O sistema de Hobbes permanece ou falece na medida em que se aceite ou
se rejeite as suas premissas psicológicas. Ainda antes que em sede de princípios, o
pessimismo de Hobbes encontrava desmentido na revolução inglesa de 1689, que
instaurava uma ordem política liberal e assinalava o fim do absolutismo real. No ano
seguinte, quase a justificar o grande acontecimento histórico, John Locke publicava
o seu Tratado Sobre o Governo Civil, que é o texto clássico do liberalismo político.
A concepção liberal do Estado foi expressa em múltiplas formas no período de
formação do Estado constitucional moderno. Mas três podem considerar-se as
formas típicas de tal concepção, também pela influência histórica que exerceram: o
liberalismo empírico (Locke-Montesquieu); o liberalismo ético (Rousseau); o
liberalismo jurídico (Kant-Humboldt). Vejamos brevemente cada uma destas formas.

A CONCEPÇÃO LIBERAL DO ESTADO E SUAS FORMAS.


38

O liberalismo empírico (Locke-Montesquieu).

10. liberalismo empírico de Locke.


Partindo de premissa não menos empírica que aquela de Hobbes, Locke
chega a uma solução liberal para o problema do Estado. Mediante o contrato
justificaram-se as formas mais diversas da vida política. Assim, isso legalizava a
renúncia à liberdade em vantagem da autoridade, como a extensão máxima daquela
em prejuízo desta. Na antítese imanente à doutrina de Hobbes, pela qual o homem
seguindo os impulsos de sua natureza é condenado à infelicidade e ao despotismo, é
superada por Locke ao admitir a harmonia natural original do sentido e da razão, do
interesse próprio com o interesse alheio.
O homem despojado de todos os seus atributos contingentes reduzido às suas
tendências e qualidades originárias, que opera em conformidade às relações naturais
e necessárias, inerentes às coisas extraídas da razão é, segundo Locke, o homem
natural. Ele possui os direitos e segue aquelas normas que bem podem se chamar
naturais. Tais direitos resumem-se nos direitos de liberdade, igualdade, propriedade.
A liberdade é exercício da individualidade sem encontrar obstáculos. Limite da
liberdade é a igualdade, porque cada um não pode pretender para si maior liberdade
do que aquela que reconhece aos outros. Liberdade e igualdade devem concretizar-
se na propriedade, que é justificada se fundada sobre o trabalho, se além não se
desdobra a capacidade de trabalho e de consumo e se respeita o igual direito de
todos ocuparem as coisas.
Os homens possuem e exercitam os direitos naturais anteriormente à
constituição do Estado, no estado de natureza, o qual é uma condição ideal e moral,
no qual os homens exercitam os seus direitos naturais nos limites postos pela lei da
natureza debaixo da orientação da razão, sem necessidade de autoridade constituída
ou de leis positivas. Por isso é estado de paz, de mútua assistência e benevolência.
Mas como todos os ideais esse representa uma condição de coisas possíveis, mas
não reais. O estado de natureza é um estado precário: nele as leis da natureza são
incertas e indeterminadas: em caso de contraste falta o juiz imparcial que as aplique
e falta o poder que as garanta, contra as violações, a observância das leis e a
execução das sentenças do juiz. A precariedade e a insuficiência do estado de
natureza aconselharam a criação da sociedade civil e do Estado.
Também para Locke o pacto é a forma legal de existência do Estado. O
conteúdo do pacto são os direitos fundamentais do homem; seu fim é o
reconhecimento e a defesa de tais direitos. O Estado deve, antes de tudo, reconhecer
e definir o direito natural e com este escopo constitui-se o poder legislativo, cujas
funções são dirigidas a não fazer novas leis, mas sim determinar aquelas naturais.
Para os casos dúbios e controvertidos organiza-se o poder judiciário e institui-se um
terceiro poder, o executivo, ao qual cabe fazer valer as normas e as sentenças do juiz.
O indivíduo, entrando no Estado, não renúncia aos seus direitos originários:
aqui entra para melhor garanti-los. O direito positivo não é senão o direito natural
39

reconhecido e garantido pelo Estado. Os direitos do homem e aqueles dos cidadãos


identificam-se. Na garantia de seus direitos reserva-se o indivíduo o direito de
resistência e, nos casos extremos, de sublevação. É incerto se para Locke a relação
entre quem governa e quem é governado é uma relação contratual ou uma relação
fiduciária revogável. Parece inclinar-se a concebe-lo como uma delegação fiduciária
dos poderes não revogáveis pelo arbítrio, mas só no caso nos quais os governantes
agem contra o ofício a eles confiado. Ainda que Locke não fale de soberania
popular, a admite implicitamente atribuindo ao poder legislativo o caráter de poder
supremo, que deve exercitar-se nos limites impostos pelo direito natural e pelo pacto
que o sanciona. O povo é praticamente o custódio da constituição e é juiz e vingador
de sua violação.
Com Locke o liberalismo empírico encontrava a sua clássica sistematização
doutrinária. O indivíduo, considerado sobretudo na sua atividade econômica,
constituía-se com o Estado o órgão destinado a defender os seus sagrados,
inalienáveis direitos. A declaração dos direitos do homem e o estabelecimento dos
governos constitucionais eram implícitos na doutrina de Locke. E é singular a
correspondência entre o liberalismo empírico e a exigência da burguesia capitalista,
que andava nesta época formando-se em contraste com a aristocracia feudal
fundiária. Não sem um profundo significado histórico Locke, puritano, justificava a
propriedade criada pelo trabalho e condenava a propriedade pelo privilégio de
nascimento.

11. Liberalismo empírico e constitucionalismo de Montesquieu.


Em Montesquieu, autor do Espírito das Leis (1748), obtivemos o
aperfeiçoamento técnico do liberalismo empírico de origem inglesa. O seu interesse
não é pelo direito natural, mas pelas leis positivas que devem atuar em um Estado já
constituído. Enquanto para os iusnaturalistas o direito positivo é a tradução em lei
dos ditames do direito natural, Montesquieu afirma a sua autonomia e a sua
relatividade. Esta relatividade não é arbitrária, mas exprime uma dúplice relação
necessária: a) uma relação entre as leis e os governantes de um lado e as condições
físicas e geográficas do outro; b) uma relação entre as leis e os governantes de um
lado e o grau de cultura e civilidade de um povo do outro.
Em ralação à dupla correlação, Montesquieu distingue os governos em
despóticos, monárquicos, republicanos. O despotismo é o governo no qual “un seul
sans loi et sans règle entraine tout par sa volonté et par ses caprices” 21. Na definição
é implícita a valoração e a condenação do despotismo, que desfruta dos vícios e da
corrupção humana e se mantêm pelo medo. Os governos monárquicos fundam-se
sobre o sentimento da honra e da fidelidade, que são próprios das classes
aristocráticas e militares. Leis e instituições correspondem à prevalência que tais
classes possuem na vida do Estado. Montesquieu não oculta a sua preferência pelos
governos republicanos, fundados na virtude em sentido político, na devoção ao
21
N.T.: “Um só sem lei e sem regra conduz tudo por sua vontade e por seus caprichos”.
40

dever civil. O ideal democrático de Montesquieu, mais do que nos modelos


clássicos, inspirava-se no regime constitucional inglês. A sua superioridade derivava
não tanto por aquilo que melhor garantia a liberdade civil (que também pode ser
garantida por um governo absoluto), mas sim por aquilo que melhor garantia a
liberdade política (compreendida como participação dos cidadãos no governo da
coisa pública). Mas o princípio fundamental segundo o qual uma constituição efetua
a liberdade política, para Montesquieu, é o respeito à separação dos poderes, isto é,
um equilíbrio dos órgãos e funções, pelos quais os excessos de um poder são
compensados pela natural resistência dos demais. A separação dos poderes era
elevada a critério diferencial do Estado constitucional em relação ao Estado
despótico, no qual todos os poderes são resumidos na pessoa do soberano.

12. Avaliação histórica e crítica do liberalismo empírico.


O postulado da liberdade constitui o pressuposto de todas as doutrinas que no
século XVIII propuseram-se solucionar o problema político. Queria-se um Estado
liberal pela sua origem, pela sua finalidade, pela sua constituição. Assim não o era o
Estado na antigüidade e na Idade Média. Aquele era obra da natureza; o seu fim não
era o homem mas a civitas: a sua constituição deveria ser erguida sobre o desenho
posto pela  e deveria garantir a ordem interna da cidade. No medioevo o
Estado é querido por Deus, que criou o homem social e político; almeja a perfeição e
à felicidade do homem associado, subordina-se aos fins morais e religiosos.
Somente com Locke no fim do século XVII o Estado é construção do homem e
serve a ele e à sua liberdade. De fato, surge por um ato livre do homem, isto é, por
um pacto que une aqueles que o formaram; surge no interesse do indivíduo para
garantir a sua liberdade natural e; deve constituir-se de modo que o indivíduo não
tenha porque temer o abuso que o Estado possa fazer da autoridade a ele conferida.
O problema, de político, transforma-se em constitucional, porque tratava-se
de fazer coexistir termos antitéticos, como a liberdade e a autoridade, de criar o
Estado, mas sem sacrifício da liberdade individual. Este era o novo e crucial
problema da época porque a antigüidade havia sacrificado o indivíduo às exigências
da civitas e o medioevo havia originado, sem resolve-lo, o dualismo entre as
finalidades morais e religiosas do indivíduo e aquelas civis e políticas do Estado.
Nem a origem contratual do Estado era garantia suficiente da liberdade individual,
porque o pacto político poderia significar, como em Grócio e em Hobbes, a renúncia
à liberdade natural e a consolidação do absolutismo.
Locke, e na sua linha Montesquieu, deveria dar a primeira formulação de um
ordenamento político no qual a liberdade humana e a autoridade do Estado podem
harmonizar-se. Na medida em que o surgimento do Estado sempre implica em
renúncia de uma parcela da liberdade individual, a questão transforma-se em: qual a
medida em que a renúncia deve ser feita; quais as condições pelas quais ela é válida;
quais as garantias que os limites e as condições serão respeitadas. A este tríplice
problema Locke, e ainda antes a constituição inglesa, haviam dado uma resposta que
41

pareceu definitiva. A renúncia à liberdade deve ser a mínima possível, isto é, deve
conter-se nos limites estritamente necessários para que o Estado possa cumprir as
suas funções de defesa da liberdade individual não renunciada. E as funções do
Estado reduzem-se a fixar os limites à liberdade de cada um em respeito à dos
outros; a fazer-se árbitro de eventuais contendas; a exercitar a função punitiva em
defesa da ordem natural. De outro modo: a condição de renúncia à liberdade é que
essa seja feita por todos na mesma medida. A lei da liberdade igual e da igual
limitação transformam-se em dogma de uma constituição liberal do Estado. Por
último, devem colocar-se as garantias contra os abusos do poder por parte do Estado.
Aquele que possui a força é naturalmente inclinado a dela abusá-la. Tais garantias
vão da nulidade dos atos lesivos ao pacto, ao direito de resistência e de sublevação,
proclamados por Locke, à divisão dos poderes proposta por Montesquieu, que opera
automaticamente a garantia da liberdade política.

Compreende-se a receptividade encontrada pela doutrina de Locke e de


Montesquieu numa época na qual o indivíduo lutava contra o absolutismo e
afirmava contra o Estado opressor os direitos havidos da natureza. De outro modo, a
solução de Locke-Montesquieu fundava-se sobre o pressuposto do homem e da
liberdade empírica. O homem natural de Locke é o homem que realiza uma
atividade essencialmente econômica, isto é, voltada à vantagem e à felicidade
próprias e que pede ao Estado para ser protegido no livre exercício desta sua
atividade. Não é a toa que Locke faz da propriedade a condição mesma de liberdade
do indivíduo, de não ser impedido em sua iniciativa. Locke teve viva a fé no
equilíbrio natural dos interesses, na harmonia preestabelecida da natureza entre o
sentido e a razão, entre a própria vantagem e os interesses coletivos. Mas era um
otimismo utópico contradito pela realidade. De fato, não se vê como de seres
preocupados consigo mesmos, com a própria vantagem, com a própria felicidade,
possa brotar a ordem, a unidade, a harmonia, isto é, condições de vida comum que
impliquem princípios e finalidades que não são experimentados e que ao mesmo
tempo a dominam e a regulam.
O liberalismo de Locke não pode transcender o empirismo de sua premissa
psicológica e condena a vida política a desenvolver-se numa permanente condição
de precariedade e instabilidade.
O homo oeconomicus, que é portanto o homem jurídico de Locke, procurará
sempre estender, com qualquer pretexto, a própria liberdade a risco e dano da
liberdade alheia, e o Estado deverá sempre estar pronto a intervir em defesa da
ordem e da liberdade comum. Exaure-se toda a vida política na tensão entre o
indivíduo naturalmente inclinado a violar a liberdade alheia e o Estado que reage
para restabelecer com a força o equilíbrio da liberdade. A luta política transforma-se
em luta de interesses particulares contidos coativamente e sempre prontos a
romperem os freios, a conturbarem a paz pública. A solidariedade dos interesses sob
orientação de uma reta razão iluminada não pode ser mais do que precária. Na
42

realidade a sociedade humana é sistema de forças em contraste, que somente a


coação pode manter em equilíbrio instável.
O liberalismo empírico não subordina o indivíduo a finalidade que o
transcenda. Para Locke o fim do Estado estabelece-se no fim dos indivíduos que o
compõem. O indivíduo é árbitro da vida do Estado e, este, não possuindo fins
próprios para fazer valer, transforma-se em instrumento de finalidades particulares.
Faltou ao liberalismo político o sentido de Estado, o sentido de uma missão
espiritual a cumprir, o sentido de ser órgão dos interesses que concernem à natureza
moral e racional do homem.
Os pretensos direitos do homem somente por equívoco podem considerar-se
direitos, enquanto não são senão naturais inclinações da natureza sensível do
homem. Quem obedece a natureza, isto é, os instintos, não é livre, mas escravo, age
segundo as leis da necessidade, não da liberdade. Não se pode falar de igualdade
natural entre seres que, empiricamente considerados, são diversíssimos e nada
apresentam de comum. De outra parte a propriedade não é somente relação natural
entre nós e as coisas do mundo externo, mesmo quando fundada sobre o trabalho,
mas também e sobretudo é reconhecimento de parte dos outros desta relação. Não é
a propriedade, portanto, direito do homem, mas é direito do homem sociável, do
homem que vive em relação com outros seres e com eles opera para uma obra
comum.
Nem pode passar em silêncio o equívoco de confundir aquilo que é natural
com aquilo que é racional, de compreender a natureza empírica, originária,
expontânea, como fonte de verdade e de patrimônio. Locke quase parece esquecer-
se, e com ele os seguidores do liberalismo empírico, que a ordem ética-jurídica é
superamento da natureza, é subordinação dela a um fim mais alto e qualitativamente
diferente. O homem que trabalha para as suas necessidades econômicas, para a sua
felicidade, ainda não é nem sujeito moral, nem jurídico. A moralidade e a justiça
afirmam-se e progridem na medida em que nós alcançamos subtrair à nossa natureza
sensível, a criar contra e acima dela uma nova natureza, a natureza moral e racional,
que é, então, a natureza especificamente humana.
O liberalismo de Locke exprime a exigência histórica e teórica de fazer do
indivíduo o autor do direito e do Estado. Mas degradou o homem a ser econômico, o
Estado a órgão coativo e de conservação e de defesa dos interesses particulares. Por
isso não teve êxito em justificar o Estado em si mesmo e a faze-lo a expressão de
uma ordem objetiva de razão e de liberdade moral.

O liberalismo ético (Rousseau).


13. Rousseau e o enciclopedismo.
As deficiências do liberalismo empírico não escaparam a Rousseau que, com
outro método e sobre o fundamento da liberdade moral realizada no Estado, deveria
resolver o problema político da época. Todos já são concordes em reconhecer a
decisiva influência, e em certos momentos exclusiva, de Rousseau sobre a formação
43

do direito público da Revolução. O segredo de seu sucesso não deve somente recair
na qualidade excepcional do escritor, no constante amor vivo pela causa da
humanidade aviltada, oprimida por secular iniquidade, mas sobretudo em ter
compreendido e expresso a alma francesa na sua tendência mais própria e profunda,
restaurando, contra o empirismo e materialismo dominantes, o método cartesiano, o
culto da idéia, da consciência, na determinação daquilo que é verdadeiro e bom.
A obra de Rousseau aparece no momento no qual a ação crítica e negativa do
enciclopedismo ameaçava seriamente o espírito nacional. Religiosamente a
Enciclopédia significava para alguns ateísmo, para outros deísmo, para todos
negação do sentido cristão de vida, que entretanto era profundamente arraigada nos
espíritos. Na filosofia a Enciclopédia significava sensualismo, materialismo,
egoísmo. Na educação, as tendências de Rousseau estavam em pleno contraste com
o ambiente e com a filosofia do enciclopedismo. Ele era um espírito intimamente
religioso, mas de uma religiosidade toda ela interior, que mais se alimentava do
sentimento do que da razão. Sem Deus, para ele não é possível nem a moralidade
privada nem a pública. Ao deísmo, que considerava a religião como uma abstrata,
vaga exigência racional, opunha a religião do coração expontâneo, vivo, sincero. Ele
profere palavras ásperas contra o materialismo, que dava alma às plantas para negá-
la ao homem. Antes de Kant fazia o processo à razão humana, revelando os seus
limites e perigos. Ao racionalismo cartesiano, que elevava a evidência a critério de
verdade, as idéias claras e distintas a fonte do saber, Rousseau opunha a voz
infalível da consciência, o senso inato do verdadeiro e do bom.
A nova religião do coração, a nova filosofia do sentimento, atuaram sobre as
mentes não corrompidas pelo enciclopedismo e determinaram o sucesso de
Rousseau. A consolidarem sua fama e popularidade contribuíram as doutrinas
sociais e políticas. Neste campo, as tendências a um só tempo libertárias e
autoritárias de Rousseau afirmaram-se num duplo apostolado: na exaltação da
liberdade natural do homem selvagem e na exaltação da liberdade moral e civil no
Estado.

14. Homem e o Estado de natureza no Discurso de 1750.


Numa época de luzes, de progresso científico, de intensa vida social,
Rousseau ousou proclamar a superioridade da vida selvagem. A primeira obra em
que o fez conhecer foi o Discurso sobre as ciências e as letras (1750), no qual é
sustentada a superioridade da natureza sobre o artifício da civilização, da
simplicidade sobre o luxo, da ingênua ignorância sobre a orgulhosa ciência. A
conclusão paradoxal a que chega Rousseau neste ensaio é que o desenvolvimento
das ciências, das letras, das artes é a causa para o homem de corrupção e
infelicidade.
44

A natureza compreendida por Rousseau, não era a natureza sem alma dos
enciclopedistas, mas era a natureza sentida como revelação do pensamento e
bondade de Deus. Escreve: “tudo que sai das mãos de Deus é bom; tudo aquilo que
passa pelas mãos do homem corrompe-se” 22. Esta natureza “touchante et pure”
exaltou-a Rousseau como promessa de libertação. Este homem rebelde a toda
autoridade, zeloso da liberdade até evitar os seus semelhantes, compreendeu o
retorno à natureza como meio de emancipar-se da tutela social, como necessidade de
independência.
O estado de natureza é para ele uma realidade psicológica ainda antes do que
histórica; que tenha realmente existido, ele mesmo o põe em dúvida. Mas não é
dúbia a tradição bíblica segundo a qual o homem emerge das mãos de Deus em
condições de inocência, de simplicidade, somente consigo e com suas necessidades
naturais, que podia largamente satisfazer sem obstáculos e fadiga. D’onde o erro de
Hobbes e Locke, que falam de uma bondade e uma maldade naturais, atribuindo os
vícios ou virtudes da civilização a um estado que por hipótese é o seu oposto. E em
nenhum caso pode-se falar de paz e guerra entre homens que vivem isolados e
excluídos da possibilidade de ofenderem-se mutuamente.
Naturalmente livres e iguais são os homens no estado de natureza; mas a sua
liberdade é faculdade de satisfazer as necessidades naturais sem encontrar
obstáculos: a igualdade deriva da identidade de condições naturais e da recíproca
independência.
As condições do homem no estado de natureza seriam bem próximas àquelas
dos animais, se o homem não tivesse, em relação a estes últimos, o sentimento da
piedade, a qualidade de agente livre, a possibilidade de aperfeiçoar-se. A piedade
contém em germe a vida moral, porque, moderando em cada indivíduo o amor
próprio, o leva a viver os prazeres e a dor dos seus semelhantes e concorre para a
mútua conservação.
O homem possui a faculdade de conceder ou resistir à natureza e na
consciência desta liberdade de escolha revela a espiritualidade de sua alma e a sua
superioridade em relação aos animais. O homem desenvolve-se nas suas faculdades
físicas, na imaginação, no intelecto, e em relação a tal desenvolvimento desperta
nele novos impulsos, novos desejos, novas paixões. O desenvolvimento não é
uniforme, mas varia infinitamente de indivíduo para indivíduo, assim como as
desigualdades físicas e morais apenas sensíveis no estado de natureza, afirmam-se
sempre mais no desenvolver-se sucessivo do espírito humano. Isto é inevitável, nem
Rousseau tem motivo para maravilhar-se ou de lamentar-se, também porque as
desigualdades naturais em si mesmas não atentam contra a liberdade e a felicidade
do homem. A diversidade de atitudes, das necessidades, das condições, se implica
numa mútua dependência entre os homens, não significa daí sujeição de um a outro
até que cada qual, em qualquer momento, possa subtrair-se dos vínculos sociais e,
22
N.T.: in Emílo ou Da Educação, livro I. A versão brasileira da obra apresenta a seguinte versão da citação:
“Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (São
Paulo, Martins Fontes, 1995, pg. 7, trad.: Roberto Leal Ferreira).
45

isolando-se, possa satisfazer-se por si as suas necessidades naturais. Inútil é a lei do


mais forte até que pode o homem a ela subtrair-se.

15. A origem das desigualdades sociais. O Discurso de 1754.


Mas, as desigualdades naturais preparam a via para as desigualdades sociais e
o estado de natureza degenera fatalmente em estado civil de opressão, de
despotismo. Como isto progressivamente apareceu, explica Rousseau no seu
segundo discurso: Sobre a origem da desigualdade entre os homens (1754) com
método que ele mesmo denomina de congectural, mas que encontra confirmação na
psicologia do homem que desviou-se do estado de inocência originária. Também
aqui o Rousseau calvinista tem presente a descrição bíblica do homem pecador, que
afunda sempre mais no mal e na corrupção enquanto Deus não providencia a sua
redenção.
A invenção das artes aplicadas, especialmente da metalurgia e da agricultura,
determinou uma profunda mudança na história da humanidade. “O ferro e o trigo
civilizaram os homens, mas perderam o gênero humano”. Tais artes não podiam
prosperar sem a exploração coativa do trabalho humano, sem a transformação do
estado primitivo de comunhão em propriedade privada do solo. O surgimento da
propriedade foi o princípio dos males e das desigualdades sociais. “O primeiro que,
tendo delimitado um terreno, disse: isto é meu, e encontrou pessoas suficientemente
simples para acreditar-lhe, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”.
O cultivo do solo devia levar necessariamente à sua divisão, uma vez que não
se pode conceber que o homem aplique a sua atividade à terra, sem garantir-se o
produto da terra trabalhada. E a posse continuada transforma-se naturalmente em
propriedade. Isto não teria sido um grande mal, se a indústria, as atitudes, as
atividades tivessem sido iguais, se a ocupação do solo não se tivesse tornado sempre
mais difícil e contestada. Com o crescimento da população, com o estender-se das
propriedades, o aumento não pode mais ter lugar a não ser às expensas dos outros;
os fracos, os impotentes, deixados sem a posse, foram constrangidos pela
necessidade a submeterem-se à vontade dos mais hábeis, dos mais inteligentes e
ativos.
As usurpações dos ricos, as resistências do pobres, as paixões desenfreadas de
todos, sufocavam todo o natural sentimento de piedade e de bondade, tornaram os
homens avaros, ambiciosos, maus; a sociedade caiu num estado de guerra perpétua,
que não satisfazia a ninguém, tornando a vida de todos insegura, a posse dos ricos
precária. Surgiu nos ricos, mais interessados na ordem, na paz, a idéia de associar os
pobres numa obra que na aparência era de mútua defesa e preservação, na realidade
era de legitimação e consolidação das usurpações efetuadas. E criou-se, por mútuo
consentimento, sobre estado de fato violento e iníquo, a ordem legal, que o costume
convalidou e a religião apresentou como ordem objetiva e divina.
A história da humanidade no pensamento de Rousseau, não é senão a história
do progressivo consolidar-se das desigualdades humanas. Numa primeira fase, sobre
46

o fundamento da ordem natural, constitui-se a lei e o direito de propriedade; numa


segunda cria-se mediante o pacto a ordem legal e política; numa terceira e última
fase a ordem legal consensual transforma-se em poder despótico, que reduz os
homens a escravos e constitui o último grau da desigualdade, até que novas
revoluções dissolvam completamente os governos e os reconstituam em forma
legítima.

16. O significado do segundo Discurso.


Qual o ensinamento, qual a conclusão extrai Rousseau da representação da
história humana feita no Discurso? Se o estado civil é fonte de males, de
infelicidade, de iníqua desigualdade, a conclusão óbvia pareceria aquela de retornar
ao estado de natureza ou ao menos fazer deste estado o ideal ao qual a humanidade
oprimida deve almejar como estado de libertação. Não é esta a conclusão a que
chega Rousseau, que antes exclui explicitamente tal possibilidade de retorno. Como
o rio não pode retornar à nascente, assim o homem evoluído, transformado pela
civilização, não pode remontar-se à virgindade natural. Excluída esta solução, a
humanidade parece condenada a recair periodicamente no despotismo. Assim
compreendido, o Discurso transforma-se na obra de um profeta da desventura, que
parece comprazer-se em denunciar os males dos quais a humanidade sofre sem
indicar os remédios.
Esta interpretação negativa do Discurso não parece ser a verdadeira e
contrasta com o vivo e constante interesse de Rousseau pela causa da liberdade e da
humanidade. Possui o Discurso para nós um significado positivo e está em estreita e
necessária relação com o Contrato Social. Naquele Rousseau quis demonstrar a
insolubilidade do problema político em sede empírica. Por outra via deveria a
humanidade decaída redimir-se e romper o cerco fatal que a condenava ao
despotismo.
No Discurso é reconstruída a origem e o desenvolvimento de fato das
instituições humanas sobre o pressuposto do homem empírico e da liberdade natural.
As premissas do Discurso não podiam consentir senão numa teoria empírica do
direito e do Estado; mas esta teoria distingue-se em muitos aspectos daquelas
análogas de Hobbes e de Locke e freqüentemente as supera. Contra Hobbes,
Rousseau demonstra, com maior senso de verdade psicológica e histórica, que a
maldade, o egoísmo, a infelicidade não são originários, que o estado de guerra não é
natural entre os homens, que as desigualdades sociais são artificiais, que o
despotismo é o produto necessário das causas psicológicas e históricas e o pacto não
o gera, mas só o consolida. Com feliz perspicácia Rousseau percorria a doutrina e a
crítica socialista ao dar relevo ao fator econômico e à propriedade privada como as
causas determinantes das instituições jurídicas e políticas.
De outra parte Rousseau não cai no erro de Locke de confundir aquilo que é
natural com aquilo que é racional e moral, de pressupor a existência de uma lei
natural que o homem conhece e aplica. Com outro fundamento, Rousseau afirma
que a ordem moral não é originária, mas é lenta, laboriosa conquista. O Discurso
47

quer ser a verdadeira história do homem concebido como ser natural, contra a
história imaginária e falsa de Hobbes e Locke. Fundar o Estado sobre a liberdade
empírica, sobre o pressuposto de seres que perseguem a própria vantagem, significa
para Rousseau favorecer a causa do despotismo. E isto Hobbes havia
verdadeiramente intuído e afirmado. Escapar às conseqüências de Hobbes, sem cair
no liberalismo empírico de Locke, condenado a um tempo pela natureza e pela
razão, foi a tarefa a que se propôs Rousseau no Contrato Social (1762) que
caracteriza a fase reorganizadora definitiva e de seu pensamento político.

17. conteúdo do Contrato Social (1762).


No Contrato o método empírico da observação psicológica e histórica é
abandonado; este método dava resultados estéreis porque os homens não mudam e a
lógica do empirismo é a lógica do egoísmo, que torna inevitável o despotismo.
Necessitava acentuar a insolubilidade do problema político no âmbito dos fatos,
para depois tentar a sua solução no âmbito dos princípios racionais. No Contrato
abstrai-se da natureza e da história, não se procura a origem empírica do direito ou
do Estado, mas com método cartesiano constitui-se uma ordem política conforme as
exigências da justiça e da razão. A liberdade é sempre a razão e o fim do Contrato,
mas não se trata mais da liberdade natural, fonte de escravidão moral e política;
trata-se da liberdade própria de um ser de razão que impõe a si mesmo a lei à qual
obedecer. Antes de Kant Rousseau compreende a liberdade como autonomia, como
atividade do homem que constrói a priori a ordem ética.
Mas como o homem natural do Discurso transforma-se no homem moral do
Contrato? Mediante o Estado. Rousseau elevava-se a crítico severo do
individualismo ético e político. Também sob este aspecto ele reagia contra uma
tendência geral da época e proclamava que somente no Estado o indivíduo é livre e
encontra as condições da vida moral.
Depois disto compreende-se como o homem de Rousseau cria o Estado
mediante um ato de alienação de todos os direitos que possui da natureza (Cont., I,
6). A alienação total assinala o fim do Estado de Natureza e o princípio da nova vida
civil e moral. A transformação é profunda e substancial. A justiça, não mais o
instinto, transforma-se em norma de conduta; a voz do dever substitui o impulso
físico; o direito sucede aos desejos, a razão aos sentidos. As vantagens do estado de
natureza às quais o homem renúncia são compensadas por sua elevação intelectual, a
qual de animal “stupide et borné” faz dele “être intelligent et un homme” 23. Ele
conquista, no lugar da liberdade natural renunciada, a nova liberdade moral e civil.
Não mais limitada pelas forças individuais, a liberdade se engrandece pela força do
Estado e o homem transforma-se verdadeiramente em senhor de si, “car l’impulsion
du seul appétit est esclavage, et l’obéissance à la loi qu’on s’est prescrite est
liberté”24 (Cont., I, 8).

23
N.T.: “estúpido e limitado” ... “ser inteligente e um homem
48

O problema do Estado transforma-se deste modo em um problema moral.


Somente no Estado as ações conquistam a moralidade “qui leur manquait
auparavant”25 (idem). A conciliação no Estado da autoridade com a liberdade é
possível somente mediante a condição de estarem a liberdade e a autoridade a
serviço de um ideal ético. Por isso para Rousseau o problema político se reduz a
encontrar uma forma de associação na qual o indivíduo é protegido, na sua pessoa e
no seu patrimônio, da força comum, e na mais absoluta subordinação à coletividade
obedece somente a si próprio e “reste aussi libre qu’auparavant” 26 (Cont., I, 6). Isto
pode suceder somente mediante a condição que a comunidade imponha ao indivíduo
aquilo que ele sente como dever moral. A renúncia ao egoísmo, se é dolorosa para o
homem natural, transforma-se para o homem civil numa necessidade de seu ser
moral.

O Estado de Rousseau, não é, como o de Locke, um agregado de indivíduos


reunidos pelo mesmo interesse egoístico. O contrato constituído enfraqueceria o seu
fim se fosse somente a expressão “de la volonté de tous”, isto é, fosse a soma das
vontades particulares (Cont., II, 3). Ele deve exprimir uma vontade verdadeiramente
comum, isto é “générale”, que é a vontade dos singulares extirpada de qualquer
particularismo, sinônimo de espirit public, de interesse comum. Em virtude do
contrato substitui-se aos indivíduos particulares um corpo moral e coletivo que é o
eu comum, dotado de vida, de vontade, de poder (Cont., I, 6). Este corpo político é o
soberano; surge do pacto mas não é por ele vinculado; ele impõe a sua vontade, que
é geral, à vontade dos indivíduos, que é particular, constrangendo-os à obediência,
isto é, “a serem livres” (Cont., I, 7). A vontade geral, para ser respeitada, deve
exprimir um interesse comum. A totalitariedade da alienação deve compreender-se
em relação com a criação de um querer comum, nem pode concernir àqueles
aspectos da liberdade individual cujo uso não possui importância para a
comunidade. Se bem que somente o soberano seja o juiz desta importância, este não
pode “charger les subjets d’aucune chaîne inutile à la communauté” 27 (Cont., II, 4).
Também para Rousseau a soberania é absoluta somente em relação ao fim específico
para o qual foi criada.
Depois de haver dado vida e existência ao Estado com o pacto social,
necessita-se dar-lhe movimento e vontade. Isto se obtém com a lei, a qual, se quer
ser expressão da vontade geral, deve ser ela própria geral e não somente da fonte da
qual emana, mas pelo objeto e pelas pessoas às quais se destina. Não se dá a vontade
geral em relação a objetos e pessoas particulares. Aquilo que a todos concerne deve
ser obra de todos e vice-versa. A lei que serve para criar privilégios em favor de
indivíduos ou de classes não é mais expressão da vontade geral. Por isso deve
comandar em abstrato e a todo o povo (Cont., II, 6).
24
N.T.: “pois o impulso de um único desejo é escravidão, e a obediência à lei que lhe é determinada é a
liberdade”.
25
N.T.: “que lhes faltava antes”.
26
N.T.: “permanece tão livre quanto antes”.
27
N.T.: “prender os súditos de qualquer grilhão inútil à comunidade”.
49

Se a vontade geral é sempre reta, o juízo que a guia não é sempre iluminado.
O povo sempre quer o seu bem, mas nem sempre o conhece e freqüentemente é
desviado pelas paixões. Daqui a necessidade de um bom legislador, que cumpra em
relação ao povo o ofício que o educador cumpre em relação ao indivíduo, devendo
ele transformar o homem em cidadão , isto é, o homem que persegue o seu interesse
particular no cidadão que sente e vive o valor ético da vida em comum (Cont., II, 7).

18. Origem e natureza do governo.


Naquilo que concerne a ordem do governo ou do poder executivo, Rousseau
rejeita a doutrina que o faz originar de um pacto entre a comunidade e os
governantes. O ato de instituição do governo é compreendido por Rousseau como
ato do poder legislativo no qual somente reside a vontade geral e a soberania. A
relação entre governantes e governados é uma relação fiduciária, pela qual os
políticos assumem a qualidade de mandatários precários ao arbítrio do povo que os
há nomeado e do qual gozam confiança (Cont., III, 6). Diferentemente de
Montesquieu, Rousseau não admite o sistema representativo. A soberania do povo
não pode ser alienada e em conseqüência não pode ser representada.
Excepcionalmente admitia a representação unida ao mandato imperativo e com o
procedimento do referendum e do plebiscito. Tinha ele em mente os pequenos
Estados, onde tais sistemas são possíveis, e não esconde a sua aversão pelos grandes
Estados nos quais a representação se impunha como uma necessidade prática
(Contr., III, 15).
Qualquer forma de governo é boa para Rousseau quando é legítima, isto é,
quando é tributário das leis, porque somente agora o interesse público governa. Esta
forma de governo Rousseau denomina de republicana. Com este nome compreende
não apenas uma aristocracia ou uma democracia, mas em geral qualquer governo
guiado pela vontade geral, que é a lei. A legitimidade do governo somente implica
que ele não se confunda com o soberano, mas seja o seu ministro. Neste sentido,
também a monarquia pode ser república (Contr., II, 6). As predileções de Rousseau
não são pela democracia, na qual um grande número governa e implica num “povo
de deuses”, mas pela aristocracia, na qual os melhores e mais capazes governam
(Contr., III, 4-5).
Passando da teoria à prática, isto é, dos princípios à sua aplicação, Rousseau
leva em conta a experiência e não despreza o ensinamento da história, sobretudo
valendo-se da autoridade de Montesquieu. Da segunda metade do Livro II do
Contrato, sobretudo nos projetos de reforma constitucional para Genebra, Polônia,
Córsega, que o seguiram, o sentido do relativo, o critério da oportunidade, revelam-
se em Rousseau em grau sempre mais elevado. Com isto reconhece que os
princípios mais verdadeiros atuam-se gradualmente e devem curvar-se e adequar-se
à realidade empírica. Possui Rousseau profunda fé no valor prático, deontológico
das idéias. Numa era na qual as idéias se extraem do sentidos e o homem era
rebaixado ao nível da natureza, Rousseau proclamava o valor absoluto das idéias, a
50

sua capacidade de transformar o mundo empírico da natureza e da história. A


verdadeira realidade para Rousseau é a realidade ideal, que o indivíduo cria contra e
acima da natureza, desenvolvendo os germes que se encontram no homem selvagem
de forma rudimentar enquanto instinto e sentimento.

19. liberalismo ético de Rousseau.


Fizemos de Rousseau o representante da idéia liberal do Estado em sentido
ético em contraste àqueles que o vêm como o teórico do absolutismo democrático. E
esta última interpretação parece, verdadeiramente, encontrar confirmação na
renúncia do indivíduo a todos os seus direitos em favor do Estado, na formação de
uma vontade geral distinta e superior à individual, no dogma da soberania popular,
na subordinação plena e absoluta do indivíduo ao Estado.
A preservar o liberalismo de Rousseau, outros sustentam que a alienação total
dos direitos, que constitui a cláusula fundamental do contrato, é um ato conceitual
fictício como o próprio contrato. Uma e outro são postulados da razão, cânones da
construção jurídica, necessários para operar uma espécie de conversão ideal pela
qual os direitos naturais, conservando a sua natureza, são convertidos em civis. Pelo
ato fictício da alienação muda somente a forma dos direitos do homem, não a sua
substância; de direitos naturais transformam-se em civis. O Estado, depois de have-
los absorvido, restitui-os imediatamente, mudados apenas no carácter civil.
As duas interpretações a nós parecem contraditórias ao espírito, além de o
serem à letra, da doutrina de Rousseau. O absolutismo de Rousseau é somente
formal e se resolve numa reafirmação e elevação do ideal liberal. Gera-se o Estado
do consenso, isto é, da vontade individual soberana. É verdade que se cria uma
vontade geral distinta e sobranceira àquela dos indivíduos, mas esta vontade geral
não surge contra eles, mas em seu favor: antes de suprimir a individualidade, a
potencializa, a exalta. Os direitos do homem através da vontade geral purificam-se
das impurezas do particularismo e do naturalismo para reviverem de forma mais
perfeita e verdadeira.
De outra parte, quem fala de alienação fictícia, que deixa invariáveis os
direitos naturais do homem antes e depois do contrato, mostra desconhecer toda a
importância que Rousseau atribui ao ato de alienação, que opera uma conversão não
apenas formal, mas substancial. A renúncia não é apenas uma fórmula jurídica, mas
é sobretudo uma necessidade ética, como aquela que transforma a liberdade natural,
isto é, negativa e passiva, em liberdade moral, que é autonomia. Somente por esta
renúncia e por esta transformação é possível a redenção humana, a libertação do
despotismo, a instauração da nova ordem de razão e de liberdade.
Não se pode negar que o Estado de Rousseau seja absoluto e absoluto não
apenas na forma, mas na substância. Mas o absolutismo de Rousseau é a condição
de seu liberalismo: um e outro devem ser compreendidos eticamente. O Estado,
escreve Rousseau, deve poder constranger o homem a ser livre, malgrado seu. No
Estado de Rousseau o homem não possui a escolha entre a lei do sentido e aquela do
51

dever: deve ele seguir esta última, porque quer ser livre. Fora do Estado não se dá
para Rousseau a verdadeira vida moral, a verdadeira liberdade. Não que antes do
Estado não existissem no homem os germes da vida moral (Contr., I, 8), mas tais
germes apenas no estado civil encontram condições favoráveis de desenvolvimento
e se transformam no sentido consciente do dever. Para Rousseau a sociedade é
condição de progresso ético e jurídico do indivíduo. Não de outro modo haviam
pensado a antiguidade e o medioevo. Somente os excessos do individualismo dos
séculos XVII e XVIII haviam feito esquecer estes ensinamentos e haviam difundido
a idéia de que o homem deve tudo a si mesmo, que só ele é autor, assim, tanto do
bem como do mal, que a sociedade civil serve apenas para garanti-lo contra
eventuais lesões.
Certo que Rousseau não foi liberal no sentido de Locke, convicto como era de
que o liberalismo empírico, abandonando o indivíduo a si mesmo, às suas tendências
naturais, abria a via à permissividade e ao despotismo. Também não foi absolutista
no sentido de Hobbes, porque quis a força, a coação do Estado a serviço da razão e
da liberdade moral. Foi ele liberal e autoritário ao mesmo tempo, mas sempre com a
mente dirigida ao melhoramento e à elevação moral do indivíduo.
Consiste o defeito de Rousseau na falta de solução para os dualismos em um
sistema de idéias lógico e unitário. Em sua obra encontramos motivos diversos e
contrastantes, artificiosamente compostos em unidade. Exigências empíricas e ideais
também não se fundam em uma síntese filosófica. Não separou a moral do direito e
concebeu o Estado mais como organismo ético do que político. Não se vê como a
liberdade moral do indivíduo possa realizar-se com os meios coativos de que dispõe
o Estado. Por isso o liberalismo de Rousseau, valendo-se de meios inadequados,
corria o risco de terminar na utopia ou de degenerar em um novo despotismo. As
exigências empíricas e morais imanentes ao liberalismo político reclamavam
superação. A isto deveria buscar Kant com a sua concepção de liberdade externa e
do Estado jurídico. Rousseau não escapou das conseqüências deletérias do método
abstrato aplicado para solucionar problemas empíricos, como são os problemas da
vida política, na qual, mais do que sufocar a natureza, trata-se de reconhecer as
legítimas, insuprimíveis exigências, para dominá-la e elevá-la à luz de um princípio
mais alto, que não pode ser somente ético, mas correspondente às peculiares
necessidades e possibilidades do direito. O Estado não é constituído de indivíduos
reduzidos ao denominador comum da igualdade moral e racional. A luta entre o
sentido e a razão, entre liberdade natural e moral é condição de vida e de progresso
da sociedade humana, nem pode a coação do Estado servir para suprimir os fatos, a
história. Tivemos a sua confirmação luminosa, ainda que trágica, na Revolução
Francesa, que verteu o ideal da liberdade política na abstrata forma doutrinal de
Locke e de Rousseau.

20. Rousseau e a filosofia política da revolução francesa.


Admite-se geralmente que não a história, não a experiência, inspiraram a
reforma constitucional da Revolução Francesa, a qual pareceu nesta época
52

transformou-se em ato e prática legislativa e política. As discussões e as


divergências mostram qual das doutrinas foi decisiva e dominante, se aquela de
Rousseau ou a de Locke, se o pressuposto de tais reformas foi a vontade geral de
um, ou a concepção dos direitos do homem do outro. Segundo a opinião dominante,
a influência de Rousseau teria sido proeminente e decisiva em todas as fases da
Revolução. Teria sido o Contrato Social o Evangelho no qual teriam se inspirado
todas as assembléias que se sucederam naquele período. Todas teriam acolhido,
ainda que em graus diferentes, os dois dogmas fundamentais do Contrato: o dogma
da soberania popular e o dogma da subordinação do poder executivo ao poder
legislativo. A influência de Rousseau não contrasta, segundo estes mesmos
intérpretes, com o ideal de liberdade individual que a Revolução se propõe realizar
nas suas Constituições; é antes a sua melhor confirmação, sempre que se
compreendam o contrato, a alienação total, a vontade geral, como atos fictícios,
postulados metodológicos privados de valor real, imaginados para melhor
reafirmarem o princípio da liberdade sacra e inalienável, que é o espírito do sistema
de Rousseau e constitui a sua razão verdadeira e substancial.
Segundo outros, ao invés, a influência de Rousseau deve limitar-se ao período
jacobino da Convenção, ao predomínio de Robespierre e de Saint-Just, que com zelo
fanático entregaram-se a operar em todo o seu rigor o dogma da vontade geral, sem
preocuparem-se se de fato e nos termos nos quais o dogma era compreendido trazia
a supressão de toda a liberdade individual, à instauração de um novo absolutismo
sob vestes democráticas, que nada deixava invejar às formas de despotismo que
Rousseau havia infamado. O verdadeiro espírito genuíno da Revolução deveria ser
procurado não no período da aberração jacobina, mas no período mais propriamente
liberal, coincidente com a obra da Constituinte e da Legislativa, nas quais operaram,
como fatores determinantes da sua atividade, as influências de Locke e
Montesquieu, aquelas da constituição inglesa e das declarações americanas dos
direitos do homem.
Outros, enfim, distinguem entre a teoria e a prática, e enquanto reconhecem
que em teoria Rousseau teria sido maestro e inspirador da Revolução em todas as
suas fases, na prática, debaixo da pressão da realidade o seu pensamento foi
modificado e deformado com elementos derivados de Locke e de Montesquieu.
Segundo estes escritores, a própria Declaração de 1789 mais do que o indivíduo
teria buscado fixar, sobre a trilha de Rousseau, a essência do Estado. Os direitos do
homem nela consagrados não significam os direitos que o homem pode fazer valer
contra o Estado, antes do Estado, mas no Estado e pela obra do Estado. No art. 6º da
Declaração é feito explícito aceno à vontade geral. Também naqueles artigos da
Declaração nos quais parecem postos limites à vontade geral (art. 6º e ss.), na
realidade tratam-se de limites que a própria vontade geral impõe a si mesma.
Também lá onde são evidentes as marcas de Locke e de Montesquieu, vê-se o claro
esforço de enquadrar no sistema de Rousseau os princípios derivados de outras vias.
Distingue-se a nossa opinião das três precedentes. Em geral, pode-se afirmar
que não é sempre fácil distingüir nas reformas políticas da Revolução, nas suas
53

diversas fases, aquilo que diz respeito a Rousseau, aquilo que diz respeito a outros,
não apenas pelo vertiginoso suceder dos acontecimentos, mas pelos interesses e
paixões que uma vez por outra prevaleceram, pela diversa formação e mentalidade
dos líderes que se sucederam na direção do movimento revolucionário. Portanto, não
se pode a priori excluir nem a influência de Rousseau, nem aquela de Montesquieu,
em todas as sucessivas fases da Revolução, também porque, como destacamos,
Rousseau não teve uma linha única e constante de pensamento político e quando
encontrou-se constrangido a resolver problemas práticos apoiou-se largamente em
Montesquieu. D’outra parte o ódio ao despotismo, a paixão pela liberdade
individual, deveria, sobretudo em um primeiro momento, reunir e confundir os
seguidores de Rousseau e Montesquieu e atenuar o profundo dissenso acerca do
modo de compreender a liberdade e de instrumentalizá-la. Mais que a lógica ou os
particulares de uma doutrina devemos destacar o espírito geral predominante nos
diversos momentos do turbilhão revolucionário. Sob este ponto de vista não há
dúvidas para nós que a preocupação pela liberdade individual foi o impulso mais
forte no primeiro período da Revolução, enquanto no segundo período contra a
anarquia reinante pareceu melhor conselho restaurar a autoridade do Estado e
garantir a liberdade individual com os meios indicados por Rousseau.

21. A Constituição de 1791 e o seu significado.


A resolver a questão das influências doutrinárias persistem as sucessivas
Constituições votadas, cujo estudo direto, extirpado qualquer preocupação teórica,
possa oferecer conclusões positivas. Quatro foram as constituições votadas: a) A
Constituição da Assembléia Legislativa de 3 de Setembro de 1791, mas preparada e
discutida na última metade de 1789 e nos primeiros meses de 1790; b) a
Constituição da Convenção de 24 de Junho de 1793, mas suspensa e não mais
exeqüida; c) a Constituição do Diretório de 22 de Agosto de 1795 (ano III); d) a
Constituição do Consulado de 13 de Dezembro de 1799 (ano VIII). Destas quatro
Constituições aquelas que têm importância para determinar a influência das diversas
doutrinas em conflito, a sua contribuição à formação do Estado constitucional, são
aquelas de 1791 e 1793, enquanto aquelas do Diretório (1795) e do Consulado
(1799) foram redigidas com critérios de oportunidade e de reação e com espírito
deliberadamente contrário ao de Rousseau. As nossas considerações limitam-se às
duas primeiras.
A Constituição de 1791 é precedida à guisa de preâmbulo por uma
Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que também pode ser considerada à
parte porque, discutida em Agosto de 1789, foi aprovada no dia 26 do mesmo mês.
Foi premissa inalterada à Constituição de 1791, mas o preâmbulo e o primeiro título
desta última contêm além da confirmação, a explicação e o complemento daquela.
Qualquer um que leia descompromissadamente a Declaração de 89, não pode fazê-lo
sem reconhecer a inspiração de Locke, de Montesquieu, sobretudo da declaração dos
direitos americana (1776), cujas palavras algumas vezes parecem repetidas.
54

Sabemos que entre os projetos da Declaração aparece, e entre os primeiros (11 de


Julho de 1789), o do General La Fayette, herói popular da guerra de independência
americana. No preâmbulo da Declaração está escrito que a Assembléia constituinte,
considerando como causa única dos males públicos e da corrupção dos governos a
ignorância, o olvido, o desprezo pelos direitos do homem, decide expor numa
Declaração solene “les droits naturels, inalienables et sacrés de l’homme” 28. O
respeito por tais direitos constitui “le but de toute institution politique” 29 e os
cidadão sempre devem tê-los presentes para julgarem na sua medida “les actes du
pouvoir législatif et ceux du pouvoir exécutif” 30. A Declaração fala dos direitos do
homem, não do cidadão, isto é, dos direitos que cabem ao homem por sua natureza,
antes e independentemente do Estado. Tudo isto é incompatível com a doutrina de
Rousseau que conhece apenas os direitos que o cidadão recebe do Estado.
A Declaração, depois de haver afirmado a igualdade jurídica entre todos os
homens (art. 1º), na linha da tradição que remonta a Locke e à constituição inglesa,
indica como direitos naturais e imprescritíveis do homem a liberdade, a propriedade,
a segurança, a resistência à opressão (art. 2º). E a liberdade é aqui definida
empiricamente como faculdade de “faire tout ce qui ne nuit pas à autrui” 31 (art. 4º) e
o princípio da igual liberdade é elevado a critério para determinar a esfera de
exercício dos direitos a qualquer um concernentes (idem). A vontade geral, de que se
fala no art. 6º, é ainda sempre a vontade de todos, isto é, o conjunto das vontades
particulares que coexistem nos limites estabelecidos pela lei (art. 4º).
Contrariamente à doutrina de Rousseau, o Estado concebido pela Declaração de 89
não possui poder absoluto, incondicionado. O indivíduo conserva imutáveis os seus
direitos naturais na sociedade civil e os arts. 6º e ss. são dirigidos a por limites à
ação do Estado no interesse dos indivíduos. A estes por último cabe o direito de
resistência contra o Estado que viola os direitos naturais, o que teria sido
inconcebível para Rousseau. A influência de Montesquieu revela-se no art. 16, que
proclama a separação dos poderes como condição de existência do Estado
constitucional.
O liberalismo empírico, que implica no dualismo entre indivíduo e Estado,
que faz do Estado custodial dos direitos naturais do homem, encontra a sua
expressão histórica na Declaração de 1789. Não se chega a outra conclusão se
considerarmos nos seus princípios fundamentais a Constituição de 1791. A distinção
nela contida entre cidadãos ativos e passivos estava em total contraste com o
sufrágio universal desejado por Rousseau. Nem menos contrário ao pensamento de
Rousseau era a distinção entre leis constitucionais e particulares, introduzida para
tolher a primeira autoridade do soberano, isto é, do povo. Distanciava-se de
Rousseau a Constituição de 1791, proclamando não apenas a separação, mas a
independência do poder executivo da autoridade legislativa soberana. O sistema de

28
N.T.: “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”.
29
N.T.: “o objetivo de toda instituição política”.
30
N.T.: “os atos do poder legislativo e aqueles do poder executivo”.
31
N.T.: “fazer tudo que não seja nocivo a outrem”.
55

representação, repudiado por Rousseau, encontrava pleno acolhimento na


Constituição de 1791.
Concluindo, nós acreditamos que o espírito de Rousseau é ausente da
Constituição de 1791 e que com razão foi dito que, se se quisesse escrever um
dístico na obra constitucional de 1791, esse nome deveria ser o de Montesquieu. Foi
a meta da Constituição de 1791 garantir os direitos do indivíduo mais do que
reforçar a autoridade do Estado. O seu significado é indicado pela Declaração que
constitui o seu pressuposto.

22. A Constituição Jacobina de 1793.


A constituição de 1793 foi discutida quando maior era o conflito entre
jacobinos e girondinos e foi aprovada logo após a queda destes últimos. É a
Constituição mais democrática jamais feita outra na França ou fora dela. Nem por
isso deve dizer-se embasada no Contrato. Não obstante seja evidente e relevante a
influência de Rousseau sobre os redatores da Constituição, esta reproduz não apenas
a estrutura formal, mas em pontos essenciais aquela de 1791. A preocupação com os
direitos do homem, com a defesa do indivíduo contra o Estado, está nela sempre
viva e presente. Também os legisladores de 1793 sentiram a necessidade de
acompanhar a Constituição com uma Declaração de direitos, que não se harmoniza
com os ensinamentos do mestre. Nesta retornam os mesmos direitos do homem (art.
2º), não excluído o direito de resistência (arts. 33, 34), que Rousseau mais havia
condenado. Retorna a mesma concepção empírica da liberdade (art. 6º) “qui a pour
principe la nature”32 e que não é seguramente a liberdade moral da qual fala
Rousseau. O conceito ético do Estado, que se funda sobre a virtude, sobre a devoção
incondicionada dos cidadãos, em vão se perquiriria na Constituição de 1793. Os
mesmos conceitos, derivados de Rousseau, assumem significado empírico,
individualístico, como por exemplo quando se faz consistir o fim da sociedade na
“bonheur commun” (art. 1º). A inspiração de Rousseau é evidente e inquestionável
nos artigos da Declaração nos quais se fala da soberania popular (art. 25), dos
direitos do povo (art. 28), dos mandatários do povo (art. 29), “de l’action de tous” a
garantia dos direitos individuais (art. 23); mas fica a impressão de que o alto ideal
civil e moral de Rousseau esteja, por meio da interpretação dos jacobinos de 1793,
degradado e equivocado. Particularmente significativos são aqueles artigos da
Declaração de cunhagem claramente social (ou melhor: socialistas), devidos
sobretudo a Robespierre, dirigidos a garantir aos trabalhadores o direito ao trabalho
e à subsistência social e defende-los contra os empresários e proprietários (arts. 18,
21). Mas, ao lado destas disposições e com espírito claramente individualista, é
proclamada a inviolabilidade da propriedade privada e a liberdade ilimitada de
iniciativa industrial (arts. 16, 17). Refletem-se na Constituição de 1793 os primeiros
conflitos de classe e as finalidades sociais do Estado. Mas, mais do que a influência

32
N.T.: “que tem por princípio a natureza”.
56

de Rousseau, os jacobinos de 1793 obedeciam nesta parte a preocupações políticas e


demagógicas que contrastam com as tendências do Contrato.
De certo, a influência de Rousseau é mais larga na Constituição, que consagra
o sufrágio universal, eliminando a odiosa distinção entre cidadãos ativos e passivos;
acolhe o princípio da representação, mas com o temperamento sugerido pelo próprio
Rousseau, do plebiscito ou referendum; põe o poder executivo na direta dependência
do poder legislativo. Mas em qual medida estas disposições foram influenciadas
pelos acontecimentos, não é fácil precisar.
Em conclusão desta nossa investigação sobre o carácter e significado da
filosofia política da Revolução, cremos poder reagir contra a communis opinio que
faz de Rousseau o norte das Constituições. O autor do Contrato está ausente, ainda
que o seu nome seja celebrado, ainda que nas Constituições desta época muitos
princípios por ele proclamados sejam reproduzidos. Tais princípios são reproduzidos
segundo o espírito do iluminismo, adaptados ao individualismo empírico do tempo,
ao ideal eudemonístico dominante. O Rousseau do Estado ético, o apóstolo da
liberdade moral, o defensor dos direitos das coletividades nacionais sobre os direitos
do homem está ausente porque não compreendido, porque pregava em um clima
histórico ainda não preparado para compreende-lo. Apenas na era posterior do
idealismo romântico a concepção da vontade geral, do valor ético e nacional do
Estado foi acolhida e disseminada. A maior preocupação dos revolucionários
franceses foi a proclamação dos direitos do homem, da liberdade que “a pour
principe la nature”33. Mais que instituir a autoridade do Estado, eles miravam
defender o indivíduo contra o Estado, por limites à atividade estatal, debilitar a ação
do poder executivo para exaltar a lei que põe limites insuperáveis à ação do Estado.
Os mesmos jacobinos de 1793 houveram a necessidade de uma Declaração dos
direitos do homem, mas não advertiram que uma correspondente Declaração dos
deveres encontrava-se mais no espírito do mestre. A paixão da época pelo indivíduo,
pela sua liberdade, e a este ideal persevera fé a Revolução, malgrado incertezas,
derivações, contradições justificadas pelas necessidades políticas contingentes. As
Constituições por ela inspiradas no século vindouro, em tempos menos inflamados
pelas paixões intensas, menos divididos por dissensões doutrinais deveriam revelar
melhor ainda a gênese e o genuíno significado do pensamento político da grande
Revolução.

O liberalismo jurídico (Kant).


23. A distinção entre direito e moral.
A superação do liberalismo empírico de Locke, assim como do ético de
Rousseau, é o liberalismo jurídico de Kant. Aquele era sempre um liberalismo de
classe de conteúdo econômico, este um liberalismo de Estado dominado por
finalidade não jurídica. A idéia liberal encontrava em Kant forma jurídica universal.
Se foi mérito de Maquiavel ter afirmado a autonomia da política diante da moral,
33
N.T.: “tem por princípio a natureza”.
57

não foi menor o mérito de Kant havê-la reafirmado sob o fundamento de uma
correspondente doutrina do direito.
O problema da autonomia do direito em relação à moral havia assumido na
era prékantiana importância e significado histórico. Esse era um aspecto da luta que
o indivíduo, em defesa das suas liberdades fundamentais, sustentava contra o Estado
absoluto, tirânico ou paternalista que fosse, que pretendia estender a sua ação ao
domínio ético e contribuir com os seus meios para a felicidade dos indivíduos. Na
especulação dirigida para distingüir o direito da moral estava implícita a questão da
natureza e dos limites da atividade política no resguardo do indivíduo.
Não era fácil estabelecer um critério diferencial universalmente válido entre
as duas formas da atividade prática. Malgrado Grócio, o fundador da escola do
direito natural, houvesse deste último afirmado a sua independência da teologia e
houvesse reconhecido a sua intrínseca validade “etiamsi daremus Deum non esse” 34,
dominava sempre a doutrina tradicional que não fazia do direito uma parte da moral,
na forma expressa por Leibniz e por sua escola, isto é, no sentido que a justiça existe
primeiro numa forma empírica, utilitária (ius strictum) para elevar-se
progressivamente à esfera da moralidade (aequitas) e por último àquela da religião
(pietas).
Somente um jurista germânico da escola de Grócio, Cristiano Thomasius
(1655-1728), turbado pela multiplicidade e iniqüidade dos processos de heresia e de
magia que golpeavam as consciências e tornavam necessárias as torturas para
extirpar a confissão aos presumidos culpados, revelou o perigo, para a liberdade e
dignidade humanas, da confusão daquilo que é ético com o que é jurídico, e dirige o
melhor de sua atividade para assinalar os limites insuperáveis à ação do direito e do
Estado na proteção da vida ética individual. De outro modo Thomasius, distinguindo
entre felicidade e paz interna, felicidade e paz externa, a esta última tocava o direito,
cujas normas, em contraponto àquelas éticas, apresentam o carácter da negatividade,
exterioridade, bilateralidade, coatividade. Insistia ele sobretudo na coação como
característica essencial e diferencial das normas jurídicas, pela qual estas realizam-
se ainda contra a vontade de quem as cumpre e como tais podem dizer-se perfeitas
em relação às morais, em relação às quais ninguém pode garantir a observância.
Kant reparou na necessidade de distingüir a moral do direito, mas não
acolheu os critérios empíricos de Thomasius, fundados na natureza e finalidade das
normas. Ele procurou na atividade prática do sujeito o fundamento da distinção. Esta
atividade, essencialmente livre, pode afirmar-se ou em relação às leis morais, ou nas
relações externas, sociais. No primeiro caso determina-se pelo dever em si, pelo seu
valor intrínseco e absoluto, livre de qualquer impulso interessado, de qualquer
motivo que não seja o respeito pela lei. No segundo caso a vontade determina-se à
ação por motivos econômicos, calculistas: é vontade particular, não universal. Por
isso o homo iuridicus, isto é, o homem que age juridicamente, é o homem dominado
pelos sentidos, que persegue fins subjetivos e apenas é capaz de uma conformidade
externa à lei (legalidade), de uma racionalidade exterior de seus atos. Portanto, a
34
[“Ainda querer admitir que Deus não existe”]
58

separação do direito da moral para Kant funda-se sobre o pressuposto da liberdade


externa, não moral. Somente por isso a ciência do direito é ciência verdadeiramente
autonôma, possui uma específica tarefa sua, dispõe de princípios racionais próprios
como condição de toda a possível experiência jurídica. A ordem jurídica formal
constitui o limite necessário da atividade atinente aos fins da coexistência externa.
A vontade que se explica em vista dos fins subjetivos não é ainda vontade
jurídica. A esfera do lícito não coincide com aquela do direito. A liberdade externa
na qual consiste o direito é uma idéia de correspondência, implica uma relação entre
duas vontades. D’onde a necessidade de uma norma de razão reguladora da própria
liberdade. Esta norma se resume no reconhecimento e no respeito recíproco da
liberdade. A igualdade é a essência da justiça kantiana; por ela é possível pensar
racionalmente a coexistência entre vontades empíricas. O equilíbrio de tais vontades,
segundo a lei da igualdade, implica em ação e reação recíprocas e, portanto, coação.
A estabilidade de um sistema jurídico pode conceber-se sobre o pressuposto de que
todo o querer, qualquer que seja o motivo que o determina a agir, mantenha-se
exteriormente nos limites impostos pela lei de coexistência sem a possibilidade de
subtrair-se. Por isso a coação como poder de obrigar ao adimplemento do direito é
condição de liberdade e se estende quanto a própria liberdade. A coação não serve
aos fins subjetivos das vontades que estão relacionadas entre si, mas serve à norma
da razão que regula o exercício dos arbítrios.
Apenas mediante esta condição a coação é legítima e é o equivalente do
direito, o qual teria vã reputação, se não houvesse em si a força de fazer-se valer.

24. Kant e a concepção do Estado de direito.


Da idéia do direito Kant extrai a exigência racional do Estado. O estado
jurídico natural, no qual as relações entre os indivíduos são reguladas segundo a lei
da igual liberdade, é uma idéia da razão prática e exprime a idéia do direito
inteiramente compreensível. Este estado possui apenas valor provisório, porque nele
cada um é juiz em causa própria, ausente a autoridade que estabeleça e sancione o
direito. Elevando o homem a sujeito de direitos, que pode operar em vista do
interesse privado, Kant não podia excluir do estado natural a possibilidade de
violação à lei da liberdade eqüanime. D’outra parte os indivíduos não apenas têm a
obrigação de não violar o direito alheio, mas devem garanti-lo e segurá-lo. “quilibet
praesumitur malus, donec securitatem dederit opposit” 35. Por isso, qualquer um
possui o direito de obrigar a qualquer outro que com ele se encontre em relações, a
conjuntamente ingressar em uma sociedade jurídica, na qual a lei comum da razão
tenha autoridade e força para fazer-se valer contra as vontades particulares
propensas a violá-la. Este é o supremo postulado do direito público. Somente no
Estado o direito transforma-se peremptório, encontra as condições para realizar-se.
O Estado é definido por Kant como “uma união de homens que se propõem viver
juridicamente”, isto é, que pretendem coexistir pacificamente no exercício das
35
[“Pressupõe-se que qualquer um seja indigno até prova em contrário”].
59

respectivas liberdades empíricas debaixo de uma lei e coação universais. O Estado


estabelece-se como órgão do Eu comum e é chamado a traduzir em ação a exigência
racional implícita na norma universal. Se esta é débil, deve ser imperfeita a reação
individual às lesões da liberdade externa, ainda mais ineficaz deve revelar-se a
autoridade da razão contra a violação às suas normas em relação a um princípio de
absoluta justiça. O Estado é a idéia do direito em ação. Kant pode escrever que o
maior problema para a humanidade é a constituição de uma sociedade civil na qual a
liberdade externa venha adjacente com um poder irresistível que faça o direito valer
universalmente.

25. contrato social em Kant como idéia necessária da razão.


Também para Kant a passagem do estado de natureza ao civil se dá mediante
o contrato, que não é entendido por ele como um fato histórico, “quase que para
encontrar-se obrigado à constituição civil vigente dever-se-ia primeiro demonstrar
historicamente que um povo realmente cumpriu em um dado momento um
determinado ato e nos transmitiu oralmente ou por escrito uma sua notícia segura ou
um instrumento”. É trabalho inútil, segundo Kant, procurar as origens empíricas da
sociedade civil. Sobre o terreno dos fatos é mais verossímil supor que o Estado surja
antes da violência do que do consenso. A questão para Kant, como já antes para
Rousseau, soluciona-se não sobre o terreno da experiência, mas sobre aquele dos
princípios. Sob este aspecto o contrato é uma idéia necessária da razão e implica na
sua constituição em um ato dos indivíduos pelo qual eles declaram uti singuli a
renúncia de suas liberdades externas para reconquistá-las uti universi, isto é, como
membros de um corpo comum. Coloca-se o contrato para Kant como título racional
da legitimidade do Estado, o qual deve ser constituído de modo que cada um deve
reconhecer a sua racionalidade e conferir-lhe o seu assentimento.
Ao compreender o contrato como ato originário, constitutivo da sociedade
civil, Kant opõe-se ao empirismo de Locke, assim como ao racionalismo ético de
Rousseau. Distingue-se dos empiristas não só porque concebe o contrato como uma
idéia da razão jurídica prática, mas porque o sujeito do contrato não é para ele o
homem empírico, que renuncia ao seu direito de liberdade nos limites impostos pela
exigência de defesa e segurança comuns, mas é o homem noumênico, que realiza em
união com os seus semelhantes, por meio do Estado, a condição de vida
correspondente à sua condição de ser racional. A obediência à lei consagrada no
pacto, mais do que a conseqüência de uma renúncia, é o reconhecimento de um
dever, a condição de uma liberdade, a homenagem feita à nossa verdadeira e
profunda humanidade. Nisto Kant concorda com Rousseau, do qual parece
reproduzir o pensamento também nas expressões adotadas. Mas enquanto para
Rousseau o contrato significa renúncia ao estado e à liberdade naturais, criação de
uma nova ordem moral e social, para Kant ele não inova sobre a ordem jurídica
natural, e somente tende a consolidá-la, a realizá-la em uma forma mais perfeita e
60

racional. Por isso o contrato em Kant não é social, mas político; não cria o Estado,
mas o constitui em razão do direito.

26. A constituição republicana segundo Kant.


A constituição ideal para Kant é a constituição republicana. Funda-se ela
sobre a divisão dos poderes, isto é, deve compreender em si três poderes:
Legislativo, Executivo, Judiciário. Aqui inspira-se Kant em Montesquieu. Mas
enquanto Montesquieu havia concebido os três poderes em uma relação puramente
mecânica, sem explicar como a multiplicidade dos poderes poderia conciliar-se com
a unidade e indivisibilidade da soberania do Estado, Kant os concebe unidos e
distintos a um tempo como as três proposições de um silogismo. Única é a vontade
do Estado, a qual distingue-se em três funções: na função legislativa soberana; na
função daquele que governa em conformidade com a lei; na função do juiz que
atribui a cada um o seu segundo a lei. Isso toca à vontade concorde e coletiva dos
cidadãos, que se tornam interpretes da lei da razão reguladora da liberdade externa.
Cidadãos são aqueles que fazem parte do Estado e participam da legislação. A
qualidade de cidadão resulta do concurso de três condições: liberdade, ou seja
faculdade de obedecer apenas àquelas leis às quais livremente consentiu; igualdade,
ou seja paridade de direitos e obrigações; independência econômica.
A constituição na qual a lei é soberana, na qual a vontade do povo identifica-
se com a lei e concretiza-se em um sistema representativo é por Kant chamada de
republicana, o que não significa constituição democrática. Kant tinha em extremo
desprezo o povo compreendido como multidão confusa, desordenada, irracional.
Para Kant o povo significa unidade racional de vontades expressas na lei: isso
implica na formação, por meio do pacto, de uma vontade geral que se impõe à
vontade singular. Esta formação raramente possui lugar nas democracias, enquanto
pode ser mais facilmente encontrada nas monarquias e nas aristocracias. O
despotismo de muitos não é menos odioso daquele de um só. A proeminência da
constituição republicana deriva não tanto da forma autocrática, aristocrática ou
democrática do Estado, quanto da soberania da lei e da separação do poder
legislativo do executivo que nessa atua-se. As predileções de Kant eram pela
monarquia representativa, na qual o poder legislativo toca ao povo que o exercita
não diretamente, como queria Rousseau, mas por meio de representantes escolhidos
entre os melhores e mais sábios. Nesta forma de Estado o poder executivo pode
tocar a um só, que não poderá transformar-se em tirano, porque a sua ação deve
conformar-se à lei soberana, expressão da razão comum, que garante a todos o
exercício da liberdade nos limites da liberdade de todos. Autoridade e liberdade
nesta república ideal kantiana conciliam-se e são as melhores possíveis, porque o
direito dos cidadãos tanto mais extenso e seguro será quanto mais forte e absoluto o
poder que o defende.

27. Estado como liberdade.


61

A concepção kantiana de Estado de direito possui uma fisionomia própria,


que a distingue claramente das análogas e equívocas doutrinas anteriores. A
exigência de um Estado jurídico era admitida implicitamente pelos teóricos do
absolutismo (Grócio, Hobbes) no dogma da estatalidade do direito. Em virtude deste
dogma o direito deveria ser compreendido em função do Estado e o Estado como
órgão do direito. Mas só impropriamente se pode falar de um Estado jurídico,
quando o direito, ainda que distinto da moral, genera-se pelo Estado, serve a fins
políticos, identifica-se com o arbítrio do soberano. A doutrina kantiana não apenas
postula a clara separação entre moral e direito mas afirma a autonomia e a
anterioridade lógica do direito em relação ao Estado, o qual se põe como exigência
racional para a realização do direito.
A crítica kantiana, mais ainda do que contra o despotismo hobbesiano, ao
qual não era estranho o reconhecimento negativo da liberdade humana, desenvolve-
se particularmente áspera contra o eudemonismo jurídico e político, contra o
absolutismo iluminado, que pretendiam servir o Estado e o direito aos fins da
felicidade e da perfeição individual. O ideal de Estado na época imediatamente
anterior a Kant era o Estado paternalista, tutor do indivíduo, árbitro, na forma do
direito, da vida física e espiritual do homem, ao qual era tolhida qualquer iniciativa,
era negada qualquer esfera de liberdade não apenas externa, mas também interna.
Para Kant isto significava a morte da vida moral, a servidão do espírito, isto é, a
forma mais odiosa de despotismo. O Estado não pode com os meios fornecidos pelo
direito fazer-se órgão de felicidade, porque ninguém pode constranger outrem a ser
feliz à sua maneira. O indivíduo deve buscar a sua felicidade com os meios que lhe
pareçam melhores, contanto que não violente o direito do outro. No regime
paternalista os cidadãos, como os filhos menores que não sabem distinguir o que
lhes é útil do danoso, aguardam o juízo do príncipe de como devem ser felizes. O
soberano, escreve Kant, querendo tornar o povo feliz segundo a sua própria vontade,
transforma-se em déspota: o povo, não querendo ser privado da pretensão que todos
os homens possuem à própria felicidade, transforma-se em rebelde.
Também não pode o Estado jurídico kantiano confundir-se com o
universalismo ético-político de Rousseau, que sacrifica o direito e a liberdade
naturais do indivíduo para instaurar mediante o Estado uma nova ordem de razão, da
qual o indivíduo deriva o seu direito e no qual solucionam-se todos os
particularismos. Nesta concepção o direito não é mais do homem, mas do Estado,
que se afirma como valor supremo, como condição de vida moral. Para Kant o
Estado não pode ser concebido como um organismo ético, porque ele não possui a
faculdade de constranger os homens ao adimplemento daquilo que é dever. A boa
intensão, na qual consiste a moralidade, não se forma com os meios coercitivos ao
dispor do Estado. Espontaneidade ética e coação jurídica são termos incompatíveis.
Além disso, Kant não podia seguir Rousseau no negar a liberdade natural, na
desconsideração das imprescindíveis exigências da natureza sensível do homem. A
ordem jurídica surge e se justifica sobre o pressuposto de seres que agem debaixo do
estímulo do interesse e da felicidade e criam o Estado para regular racionalmente o
62

exercício da liberdade empírica. A doutrina política kantiana é inconciliável quer


com o despotismo dos sentidos, quer com o da razão. O direito não atua sem a força
e autoridade do Estado. Mas isto não se justifica a não ser em relação ao direito, isto
é, à liberdade dos indivíduos.
O Estado jurídico de Kant é o Estado que se cria a partir do direito concebido
como liberdade externa. Os fins humanos, quais sejam éticos, econômicos,
eudemonísticos, culturais, religiosos, não podem ser exercitados a não ser em uma
sociedade jurídica, que permita de um lado a máxima liberdade e, portanto,
apresente um antagonismo geral entre os seus membros e, do outro lado, determine
com normas racionais e garanta de modo mais rigoroso os limites da liberdade de
qualquer um, para que possa coexistir com aquela dos outros. Por isso o Estado
perfeitamente justo é para Kant aquele no qual a liberdade externa vem conjunta
com um poder irresistível. Kant não possui a confiança de Locke no egoísmo
iluminado e regulado pela razão e também não possui a fé de Leibniz na autoridade
da razão contra as intemperanças do egoísmo. A liberdade jurídica não se mantém
sem a força do Estado. O homem é impelido a subjugar-se politicamente pela sua
própria liberdade natural, dos males (e são os maiores) que os homens a si
abandonados causam uns aos outros. Participa Kant do pessimismo de Maquiavel,
de Hobbes, de Rousseau em relação ao homem e à sua liberdade empírica: isto o
levava a compreender a ordem jurídica como ordem coativa pela qual a liberdade
natural, de poder cego e desordenado, transforma-se em força regulada por uma
norma racional. No Estado jurídico os mesmos impulsos naturais contrastantes, isto
é, aqueles impulsos que quiseram Hobbes e Rousseau reprimir, produzem os
melhores efeitos, “como as árvores em um bosque, porque cada um busca tolher ar e
sol ao outro, constringem-se reciprocamente a buscar um e outro além de si e por
isso crescem belas e direitas, enquanto as árvores que em liberdade e distantes entre
si espalham ramos ao léu, crescem deformadas, torcidas e tortuosas”36.
Além disso o Estado jurídico kantiano, que da liberdade surge e à defesa da
liberdade tende, também não pode ser confundido com o liberalismo empírico de
Locke e de seus seguidores, pelos quais o Estado surge da renúncia, ainda que
parcial, à liberdade empírica, isto é, da renúncia ao direito natural consentida nos
limites impostos pela necessidade da paz e conservação social. Para Locke o Estado
se afirma bem mais como órgão de defesa dos interesses particulares do que órgão
dos interesses coletivos. Para Kant, ao invés, o Estado deve ser compreendido em
relação à norma de razão que busca garantir as condições de coexistência e como tal
coloca-se como expressão de um querer comum. Ele representou na lei universal,
que é elemento integrante da sua definição de direito, um sistema de relações
supraindividuais, do qual o sujeito é o homem noumênico, chamado a celebrar com
os outros seres racionais a sua mais alta e verdadeira humanidade. O Estado para
Kant não é apenas custodie e defensor do direito, mas personifica as exigências da
vida associada contemplada sub specie aeterni.
36
[I. Kant, Scritti politici e di filosofia della storia e del diritto, trad. de G. Solari e G. Vidari, Turim, 19652,
pg. 129].
63

Por isso, melhor que a Locke, compete a Kant o dístico de filósofo da


liberdade; esta esteve presente para ele não apenas em seu significado moral, como
autonomia do querer, mas também no seu significado natural e econômico, como
exercício de individualidade em vista de interesses privados. Este exercício não pode
ter lugar sem interferências entre os indivíduos, as quais a razão regula mediante a
autoridade do Estado. O Estado jurídico kantiano é liberal no sentido de que o
Estado quer respeitada o mais possível a liberdade externa do indivíduo e a quer
apenas regulada e coarctada nos limites impostos não pelas considerações utilitárias,
eudemonísticas, mas por um princípio de razão capaz de criar ao menos
exteriormente uma vontade e ação comuns. A unidade das vontades, que também
para Kant é fundamento do Estado, não significa nem uma realidade psicológica,
nem uma pessoa moral, mas exprime o acordo em torno a uma norma imposta pela
necessidade de coexistência exterior, isto é, o acordo na realização do direito.
O Estado jurídico de Kant não é apenas uma exigência racional, mas é
também expressão de potência, é força coativa a serviço da norma da razão, isto
também em harmonia com a concepção do direito que se identificava com a coação.
Ao absoluto da norma corresponde o absoluto da coação, compreendida nos limites
e na finalidade daquela. Por isso as antíteses da liberdade e coação, direito e Estado,
que antes de Kant parecia insolúvel senão com o sacrifício de um ou outro termo, foi
por ele superada no próprio conceito de direito, que é síntese de liberdade empírica e
coação racional.

28. Ideal de liberdade na filosofia política de Kant.


Depois disto compreende-se como o Estado contemplado por Kant não seja
nem democrático, nem despótico, mas jurídico e somente enquanto tal, liberal. Nele
domina não a vontade do povo ou do príncipe, mas a razão comum fundada no
postulado da liberdade externa, na igualdade de todos os homens no exercício da
individualidade empírica. O Estado não possui fins próprios aos quais
eventualmente sacrificar a liberdade individual, ou seja, o direito. Para Kant a razão
política não pode mais prevalecer sobre a razão jurídica. A justiça é o fundamento e
a razão do Estado, cuja força deve afirmar-se inexorável, sem falsa piedade, sem vão
sentimentalismo, quando em jogo se encontra a causa do direito. Por isso pode Kant
elevar a princípio jurídico a máxima: “Fiat iustitia, pereat mundus” 37, contanto não
seja confundida como autorização para desfrutar em grau máximo o próprio direito,
mas seja compreendida como obrigação do Estado de não desconhecer ou sacrificar
o direito de alguém por parcialidade ou sentimento de piedade. O Estado não deve
ceder a considerações calculistas, eudemonísticas, mas deve informar a sua ação
pelo puro conceito de direito, quaisquer que sejam as conseqüências práticas que
dele derivem.
Da especulação política e jurídica anterior, Kant havia herdado três
problemas, que haviam permanecido insolúveis: o problema da necessidade objetiva
37
[“Cumpra-se a justiça, pereça o mundo”]
64

do Estado; o problema das relações entre liberdade e autoridade; o problema de uma


constituição verdadeiramente liberal. A este tríplice problema responde Kant com a
sua teoria do Estado jurídico. O Estado não é fruto do arbítrio, mas é uma idéia da
razão, que se impõe à naturalidade de nossa existência em medida igual e constante.
A coação não é extrínseca, mas intrínseca, essencial ao direito, e é a própria
liberdade em ação. A melhor constituição é aquela que não obedece aos fins
utilitários e de felicidade coletiva, mas se funda na idéia da liberdade externa, isto é,
no respeito ao menos exterior da liberdade e da humanidade de cada um nos limites
do respeito e da humanidade de todos.
Portanto, o Estado jurídico de Kant não é o Estado agnóstico, indiferente,
depauperado de toda substância espiritual, concebido como entidade estranha e
oposta ao indivíduo e à sua liberdade. Pôde ter sido este o ideal do liberalismo
empírico, mas certamente não o de Kant, pelo qual o Estado, se não existe “in
interiore homine”, é sempre a mesma liberdade individual extrínseca e efetuada
racionalmente. Na sua concepção a liberdade é a própria substância do Estado.
Satisfez a alguns fazer de Kant o filosofo da burguesia triunfante exatamente
naqueles anos da Revolução Francesa. Que a burguesia havia encontrado na doutrina
do Estado kantiana a confirmação de suas aspirações pode-se admitir, porque nós
não nos identificamos à opinião que se compraz em representar a burguesia inimiga
do Estado, preocupada em salvaguardar os seus interesses de classe com o sacrifício
de toda finalidade coletiva. Não faltaram certamente manifestações e aberrações
neste sentido, particularmente entre os sequazes do empirismo filosófico, levados a
compreender a liberdade jurídica em sentido essencialmente econômico, em
considerar o Estado como um mal necessário, um instituto de mútua asseguração da
liberdade empírica, preocupados somente com a felicidade do indivíduo,
indiferentes a toda finalidade verdadeiramente pública, superior aos interesses
singulares ou associados. Este ideal de Estado por certo não podia a burguesia
encontrar em Kant, cujo Estado da razão é antípoda a uma concepção econômica da
vida política. Não há dúvidas aqui de que a formação histórica da burguesia conecta-
se a uma revolução econômica e mais propriamente ao constituir-se do capitalismo,
que, segundo alguns, exprime a quintessência do espírito e da mentalidade burguesa.
E compreende-se que o surgir da economia capitalista viesse acompanhada com
ordenamentos políticos adequados; mas não se podem esquecer elementos de outra
natureza, jurídicos, morais e até religiosos, que vieram constituir a civilização assim
denominada burguesa, que é, portanto, a característica da civilização moderna. E
esta bem podia acolher e celebrar o alto valor ético da liberdade e da personalidade
humanas afirmado por Kant e constituir este ideal a vida política. Pode-se assim
realçar na burguesia, de um lado, a aversão, que foi própria de Kant, contra a
concepção democrática e igualitária da liberdade, que leva à tirania popular; por
outro a preferência, que também foi de Kant, pelas constituições políticas que
respeitam o rico, multifacetado exercício da individualidade empírica, e extraem da
própria natureza da liberdade a necessidade de uma ordem jurídica, que impeça com
medidas racionais e uniformes as suas intemperanças. Tarefa esta difícil, se
65

considerada a violência e prepotência do egoísmo humano ainda que legítimo, mas


que justifica ainda mais a necessidade de um Estado forte e autoritário, capaz de
solucionar os antagonismos individuais numa ordem formal da razão. Melhor se
pode reconhecer que aquele que foi um ideal de uma classe historicamente
determinada, em luta contra as outras classes, através da doutrina de Kant, eleva-se a
um significado universal. O Estado liberal cessa de ser o Estado particular de uma
época, de uma classe, para revelar-se o Estado no qual o homem na integridade de
sua natureza empírica e racional, externamente aquieta-se. A doutrina jurídica
kantiana é destinada a ressurgir toda vez que a liberdade externa é ameaçada e
sacrificada por preocupações não jurídicas, e teme o indivíduo transformar-se em
um instrumento dos fins de organizações religiosas, econômicas, políticas38.
A crítica da concepção kantiana do Estado deveria ser feita pela história e
pela especulação do século seguinte. Esta crítica foi dirigida não tanto para negar
aquela que foi a grande descoberta de Kant, a descoberta do homem e do mundo
jurídico, que é o mundo da liberdade externa, quanto a integrá-la e resumi-la em
uma concepção orgânica da vida social e política.

FONTES
Maquiavel, O príncipe, intr. e notas de F. Chabod, Turim 1924, [rist. 1962];
Hobbes, Leviatano, tr. de M. Vincinguerra, Bari, 1911-12, 2 vl.; [idem, Opere
politiche, tr. de Norberto Bobbio, Turim, 1959]; Locke, Saggio sul governo civile, tr.
de V. Beonio-Brocchieri, Turim, 1925; [idem, Due trattati sul governo, tr. de L.
Pareyson, Turim, 19602]; Montesquieu, Esprit des lois, ed. Garnier, 1874; [tr. de S.
Cotta, Turim, 19652, 2 vl.]; Rousseau, The political Writings, int and notes by C.E.
Vaughan, Cambridge 1915; idem; Du contract social, ed. Beaulavon, Paris, 1922;
idem, Contratto sociale, tr. int. di G. Perticone, Turim, 1927(contiene anche la tr. dei
Discours del 1750 e 1754); [idem, Scritti politici, tr. di P. Alatri, Turim, 1970]; Kant,
La dottrina del diritto, tr. de G. Vidari, Turim 1923; idem, Scrittici politici, tr. di P.E.
Lamanna, Lanciano 1917; [trad. di G. Solari e G. Vidari, Turim, 19652].

38
[Não será inútil recordar que Solari escrevia, e não hesitava publicar, estas corajosas palavras em 1930,
enquanto o fascismo oprimia a liberdade].
66

BIBLIOGRAFIA
a) Geral: P. Janet, Histoire, cit.; F. Pollock, Introduzione alla storia della
scienza politica, tr. de V. Beonio-Brocchieri, Turim, Bocca, 1923; F. Meinecke, Die
Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte, Munique 1924; [tr. it. de G. Solari,
Firenze 1942]; C.E. Vaughan, Studies in the history of political phiosophy before
and after Rousseau, edited by A.G. Little, Manchester 1925, 2 vl.; B. Croce,
Elementi di Politica, Bari 1925; G. de Ruggiero, Storia del liberalismo europeo,
Bari 1925 (com appendice bibliografica).

b) Especial: Sobre Maquiavel cfr. a Nota bibliografica anexa de F. Chabod à


ed. cit. do Principe; F. Ercole, La politica di Machiavelli, Roma 1926; L. Russo,
intr. às anotações do Principe, Firenze, Le Monnier, 1931; Hobbes cfr. as
monografias de Tönnies (T. Hobbes, Leben und Lehre, Stuttgart 19253) e de Landry
(Hobbes, Paris 1930), com bibliografia. Para a bibliografia relativa a Locke cfr. a
intr. de Carlini introdução à sua monografia, La filosofia de G. Locke, Firenze, 1920.
Para Montesquieu cfr. L. Vian, Histoire de M., sa vie et ses oeuvres, Paris 1878. Para
Rousseau cfr. a intr. de Vaughan e de Beaulavon à ed. cit. dos seus escritos políticos
e além disso M. Masson, La religion de J.J.R., Paris 19162; R. Hubert, R. et
l’Encyclopédie, Paris 1928; A. Schinz, La pensée de J.J.R., Paris 1929; G. del
Vecchio, Su la teoria del contratto sociale, Bolonha 1906. Para o pensamento
político e jurídico de E. Kant cfr. as obras de caráter geral acima citadas; as notas
monográficas de Cantoni, de Kuno Fischer, e além disso: Borries, Kant als Politiker,
Leipzig 1928. [Para a bibliografia dos autores precedentes há amplo elenco de
versões italianas de N. Bobbio (Hobbes), L. Pareyson (Locke), S. Cotta
(Montesquieu), P. Alatri (Rousseau), e G. Solari – G. Vidari (Kant)].

4
Liberalismo, constitucionalismo, democracia
nas doutrinas políticas do século XVIII
67

Sumário: 1. Democracia na antigüidade e na Idade Média. 2. Razões


históricas e filosóficas do liberalismo. 3. A doutrina liberal do Estado. Liberdade e
igualdade civil. 4. Constitucionalismo liberal. Direito de resistência e divisão dos
poderes. 5. Democracia e liberalismo. O dogma democrático da igualdade natural e
política. O Estado democrático de Rousseau 6. Constitucionalismo democrático.
Soberania popular e princípio majoritário. A democracia social. 7. As correntes
liberais e democráticas na Revolução Francesa. 8. O liberalismo de Kant e sua
concepção de Estado de direito. 9. A doutrina kantiana do Estado como “coisa em
si”. Unidade distributiva e coletiva do Estado. O Estado como organismo. 10. A
constituição ideal de Kant. Estado republicano e sistema representativo. 11. A
doutrina kantiana relativa ao direito de resistência. 12. Kant e o Estado de fato.
Filosofia da história e o problema do Estado.

1.Democracia na antigüidade e na Idade Média.


A doutrina kantiana do Estado possui um duplo significado: teorético e
histórico. De um lado ela colocava as condições pelas quais era possível pensar e
avaliar a experiência política; do outro tendia a resolver o divórcio implícito na
consciência política moderna na sua primeira fase de formação, entre o princípio
liberal e o princípio democrático, princípios pelos quais foi expresso o ideal da
liberdade e da igualdade humana na vida civil.
Liberalismo e democracia nas suas origens, no seu desenvolvimento
doutrinário e histórico, conectam-se à dinâmica de emancipação do indivíduo do
jugo da autoridade política e da autoridade religiosa que caracteriza a Idade
Moderna. Como tais não possuem paralelo nem na antigüidade, nem no medioevo.
Analogias extrínsecas escondem diferenças substanciais. Os antigos ignoraram o
indivíduo soberano, que cria o Estado e a lei para garantia dos seus originais direitos
naturais. Para eles o Estado possui fundamento na natureza e atende a uma exigência
moral: o dever do homem é contribuir com as suas forças, com a própria capacidade,
à vida, aos fins do Estado. Determinar a proporção na qual cada um deve contribuir
para ele é tarefa da Justiça. A igualdade proporcional dos deveres constitui deste
modo o fundamento da igualdade política. E compreende-se como todos os esforços
da ciência política clássica fossem dirigidos à pesquisa e determinação da melhor
forma de governo, pois não se tratava de criar um poder soberano para determinar a
lei. Esta é natural, preexiste ao Estado, comanda os cidadãos e os governantes e
todos encontram-se em condições de conhece-la com os meios fornecidos pelo
intelecto. O problema era, antes, de como realizá-la e aplicá-la, defendendo uns ser o
melhor meio o governo de um só, outros o governo dos melhores e mais sábios,
outros, entre eles Aristóteles, a participação de todos segundo o mérito e o valor
pessoal, isto é, um governo democrático. É claro que, onde este último pode atuar,
constituia o governo e o estado ótimo, pelo que pode afirmar-se que o Estado antigo
68

era naturalmente democrático. Mas democrático não no sentido moderno de Estado


no qual todos os cidadãos são soberanos e são chamados a legiferar em razão de sua
igualdade natural, mas democrático no sentido de que todos são chamados ao
governo da coisa pública por uma lei de justiça superior ao Estado, em razão de sua
capacidade.
Tucidides39 exprime o típico ideal democrático por meio de Péricles, que,
chamado a fazer o elogio aos guerreiros mortos pela pátria, preferiu exaltar as
instituições democráticas atenienses que o sacrifício deles tornou possível. “A
constituição que nos rege”, diz substancialmente, “não é feita sobre o modelo de
outras, apesar de poderem elas assim servir. Enquanto tende ela a realizar o útil do
maior número e não a vantagem particular, o seu nome é democracia, que possui por
princípio supremo a igualdade. Nas relações privadas a lei não faz diferença entre
cidadãos. Na vida pública há-se consideração não com o nascimento, não com a
fortuna, mas com o mérito; não os galardões sociais, mas a competência e a
inteligência abrem o caminho para a honra. Uma igualdade assim compreendida,
que deixa o campo aberto ao valor pessoal, não compromete a liberdade. Todos são
livres para agir, mas a sua liberdade possui por limite os direitos do Estado, os
deveres da disciplina cívica. A vida na polis exige o respeito à autoridade, a
obediência às leis, ainda àquelas não escritas que emanam da justiça imanente da
natureza e da consciência universal”. Neste sentido compreende Aristóteles a
democracia, opondo-a às degenerações demagógicas nas quais o arbítrio da multidão
e a preponderância do número possuem por conseqüência inevitável a impotência
dos bons e o domínio dos malévolos. O Estado democrático antigo compreendia a
liberdade e a igualdade em sentido relativo, não desconhecia as desigualdades
naturais e pessoais, nem se propunha ao igualitarismo das condições sociais e
econômicas. Nem por isso pode confundir-se com o Estado liberal moderno,
fundado sobre a liberdade e sobre a igualdade como atributos do homem, possuindo
valor em si, não pelo Estado. Não o homem antigo era livre, mas o cidadão, e sua
liberdade justificava-se em função do Estado. Isto explica o carácter político da
liberdade e da igualdade na antigüidade clássica, em confronto ao carácter individual
e originário da liberdade e da igualdade modernas.
O ideal democrático também não foi estranho ao medioevo cristão. Nele a
sociedade humana organiza-se debaixo do império da lei divina pelo bem comum; e
o poder dirigente, que a tal fim é por Deus predisposto, constitui-se na forma
monárquica em homenagem ao princípio de unidade que regula o universo. A
doutrina escolástica não exclui nem a investidura democrática da soberania, nem a
legitimidade dos ordenamentos democráticos. Não é absolutamente pacífico que
Deus invista de soberania uma pessoa determinada, enquanto muitos intérpretes do
pensamento escolástico admitem que a soberania é concebida no povo como
unidade espiritual. D’outra parte é geralmente admitido que o povo possa constituir-
se na forma democrática, salvo o reconhecimento dos direitos inerentes à
personalidade e à igualdade moral dos indivíduos. Não obstante o Estado
39
Tucidides, De bello Peloponnesiaco, II, 36-41
69

democrático medieval não pode confundir-se com as formas liberais e democráticas


modernas, as quais surgem por um ato de rebelião à lei natural e divina e
subordinam o Estado à vontade do indivíduo e à lei que os indivíduos, com o seu
consentimento, criam.

2.Razões históricas e filosóficas do liberalismo.


A idéia democrática medieval, na era sucessiva do individualismo jurídico e
político pode reviver nas formas tradicionais das doutrinas dos monarcomachi e dos
jesuítas, mas teve que suportar primeiro uma interrupção, em seguida a uma
profunda transformação diante da formação da consciência política liberal. Isto
porque o movimento dirigido a emancipar o indivíduo dos vínculos da autoridade
teve ainda que subtraí-lo à tirania da lei natural e divina, que constituia o
pressuposto do Estado democrático tradicional. O sujeito, colocando-se agora como
autor do Estado, deveria forjá-lo à sua imagem e semelhança, na defesa dos direitos
inalienáveis de sua natureza. Ao dogma da inalienabilidade dos direitos do homem
estão vinculados os destinos da consciência liberal. Durante o tempo em que o
indivíduo consentia na renúncia de sua liberdade ao soberano, a ele revelava-se a
ordem civil como uma ordem transcendente e tirânica, análoga à ordem natural e
divina. Mas quando com Locke o indivíduo afirmou os fins de sua razão e criou o
Estado em defesa de sua liberdade, pode-se dizer constituída a doutrina liberal.
Cessa a liberdade de ser condicionada a uma determinada forma de governo; afirma-
se pela consciência e pela defesa que dela pode fazer o homem. Enfim, não se pode
entender o Estado senão em termos de liberdade, qualquer que seja a sua forma. A
democracia não é mais condição de liberdade política, como na antigüidade, mas a
liberdade do homem justifica a forma democrática de governo.
O direito do homem do qual parte o liberalismo não pode compreender-se
senão a partir de uma lei de justiça que regule as manifestações da liberdade
individual em relação ao próximo, como em relação às coisas externas. Esta lei de
justiça natural, que é regra e medida da liberdade individual, é a lei de igualdade,
que revela-se no liberalismo em um significativo particular, enquanto quer exprimir
a igualdade na desigualdade. O ideal liberal não implica nem na igualdade moral,
nem na igualdade natural dos homens, mas na sua desigualdade, fundada na
realidade das tendências, dos hábitos, das necessidades, dos modos de satisfaze-los.
Também aqueles que com o empirismo lockeano admitiam a originária
indiferenciação do espírito humano podiam acolher e justificar o postulado liberal da
desigualdade, enquanto esta é a necessária conseqüência das condições externas nas
quais cada um forma e explica a sua individualidade.
A felicidade pública e privada estão em razão da diferenciação das atitudes e
das funções, em acordo com o significado ético da atividade humana aplicada à
conquista do bem estar econômico. Esta aplicação não se conectava a uma
concepção materialística da vida e da realidade, mas era completamente penetrada
por elementos éticos, espirituais. Como demonstraram os recentes estudos de Weber,
70

de Sombart, de Troeltsch, de Sée, não foi estranha à formação do liberalismo


burguês a educação calvinista, que foi educação do caráter, da vontade, foi
afirmação da personalidade e da responsabilidade individual, foi santificação do
trabalho, foi sobretudo diferenciação de atitudes e de funções, prenúncio daquela lei
da divisão do trabalho que Adam Smith deveria elevar a condição de progresso
econômico e civil. O espírito liberal, portanto, que revelou-se na vida econômica e
política, não era somente consciência da personalidade abstrata, comum a todos os
homens como seres morais e racionais, mas era sobretudo consciência da particular
vocação que o indivíduo era chamado a cumprir durante a vida. Por isso o direito à
liberdade era direito de exercício da personalidade naquilo que esta possuía de mais
próprio, era reconhecimento de livre criação e iniciativa do sujeito, era faculdade de
dar à realidade externa a marca da própria individualidade, era, em uma palavra,
propriedade, isto é, liberdade objetiva.

3.A doutrina liberal do Estado. Liberdade e igualdade civil.


Todavia, em uma concepção de liberdade assim compreendida impunha-se o
problema de regular e fazer coexistir pacificamente individualidades diversas e
contrastantes. Em um primeiro momento cedeu o liberalismo a uma visão otimista
do homem e de sua natureza no limiar da utopia. Pense-se no idealismo pluralístico
de Leibniz, na sua concepção de uma harmonia preestabelecida entre substâncias
espirituais, constituindo cada uma, uma individualidade plena e distinta. O ideal
encontrava em Leibniz a sua expressão metafísica. De sua parte Locke preferia uma
ordem natural segundo a qual os vários interesses e egoísmos particulares
compunham-se espontaneamente em um feliz equilíbrio sobre a base do respeito e
da igualdade recíprocas. Contudo, este ideal de ordem e de paz somente era
concebível em um estado de natureza hipotético: de fato, a harmonia interior entre
os sentidos e a razão, a observância nas relações externas da igual liberdade não, não
se podiam sustentar sem uma ordem civil coativa, que impusesse um limite igual
para todos na exteriorização da liberdade. O binômio liberdade-igualdade
transforma-se no princípio do liberalismo. A igualdade elevada como medida da
liberdade constitui a justiça no sentido liberal.
Neste conceito da justiça, isto é, da igualdade na liberdade, consiste a
novidade e modernidade do liberalismo. A igualdade não se referia mais a uma lei
natural ou divina estranha e superior ao homem, que a todos se dirigia igualmente,
sobre o pressuposto do igual valor político e moral: esta refere-se a sujeitos livres,
sotopostos à lei de sua particular natureza, que na igual e recíproca limitação,
buscam as condições de uma maior liberdade. A idéia de igualdade, de objetiva que
era na tradição aritotélica-escolástica, transforma-se subjetiva e soluciona-se no
respeito não mais pela lei, mas pela justa liberdade de cada qual. Para defende-la
contra as intemperanças do egoísmo é criado o Estado. Fácil é compreender que o
igual limite em que a liberdade desigual de cada um deve exercitar-se não é
estabelecido pela natureza, mas pela razão, mas por um bem estudado cálculo de
71

utilidade. Desta razão comum não pode ser juiz imparcial o singular, mas o
indivíduo médio, despido de suas particularidades, contemplado na sua abstrata
natureza empírica, personificado no Estado, criação dos indivíduos que, pretendendo
coexistir segundo uma lei da razão, limitam-se reciprocamente e se tornam garantes,
ainda que coativamente, da ordem natural que se extrai desta recíproca limitação.
Portanto, o Estado liberal personifica o homem natural, normal, no qual os sentidos
e a razão harmonizam-se, que respeita nas relações externas a lei da igualdade; esta
não é homenagem feita a uma lei impessoal, mas é o respeito à lei enquanto exprime
a igual medida de liberdade de cada um.

4.Constitucionalismo liberal. Direito de resistência e divisão dos poderes.


Era no espírito do liberalismo que o Estado deveria defender a ordem natural,
enquanto esta significava o respeito pela individualidade, a liberdade de expressão
do indivíduo nos limites da igualdade. Por isso o problema fundamental do
liberalismo não era tanto o de criar o Estado, quanto o de criá-lo de modo que as
exigências da liberdade fossem garantidas e satisfeitas. A experiência do passado
deveria revelar o perigo de abandonar ao Estado, sem controle, sem garantia, a sorte
da liberdade individual. Ainda que surgido do pacto, o Estado era naturalmente
levado a constituir-se como pessoa moral com fins de conservação e de potência
contrastantes com as razões e finalidades de defesa da liberdade individual que o
haviam feito nascer. A própria força da qual dispunha exclusivamente era a ocasião
de valer-se dela a dano do indivíduo, que deveria, portanto, deliberar os meios mais
adequados para previnir inevitáveis desvios do Estado dos seus fins naturais. Com
isto o liberalismo resolvia-se no constitucionalismo, isto é, no problema de organizar
o Estado de modo a garantir ao indivíduo a máxima expressão de sua atividade
compatível com a liberdade alheia. O problema da garantia constitucional substituía
aquele aristotélico-escolástico das formas de governo; enquanto estes dizem respeito
ao exercício do poder soberano e à sua forma, buscam as garantias constitucionais
tolher a possibilidade do Estado, qualquer que seja a sua forma, de desviar-se da
ordem natural, que é, portanto, a ordem derivada da harmonia das liberdades
convizinhas. Para isto tendem os dois princípios da resistência à opressão e da
divisão dos poderes, um particularmente elaborado por Locke e o outro por
Montesquieu40.
Segundo a doutrina inglesa, o direito de resistência individual e coletivo é
medida excepcional, mas não extralegal, não podendo-se negar ao indivíduo e ao
povo o direito de reagir ao atos injustos e ilegais do poder político, surgido para a
conservação e para a defesa dos direitos naturais. Como medida excepcional esse
poder é condicionado assim nas causas que o justificam, como no modo de
exercício. O direito de resistência retorna na lógica do liberalismo, segundo a qual o

40
J. Locke, Two treatises of governament (1689), lib. II, 18-19; C. de Montesquieu, L’esprit des lois (1748),
lib. Xi, 6.
72

Estado não surge de uma alienação total ou parcial de direitos por si próprios
inalienáveis, mas surge para a sua mais segura e eficaz defesa.
D’outra parte era evidente o perigo de uma doutrina que abandonava a sorte
do Estado ao volátil juízo dos indivíduos e da coletividade. Por isso a técnica
constitucional, não podendo renegar o princípio, pôs todo o cuidado para torná-lo
praticamente inane mediante um mecanismo constitucional que parecia excluir
automaticamente a possibilidade do Estado desviar-se de seus fins. Tal mecanismo,
representado por Locke, era por Montesquieu traduzido na doutrina dos três poderes
e de sua separação. Deste modo rompia-se com a tradição de Bodin e Hobbes da
soberania absoluta e indivisível, que se consubstancia na pessoa do príncipe. No
Estado liberal a unidade do poder soberano é apenas formal: de fato as funções e as
atividades fundamentais do Estado (legislativa, judiciária, executiva) concretizam-se
em outros tantos poderes, cada um dos quais na sua esfera é absoluto e autonomo, e
nenhum deles pode subsistir sem a cooperação do outro. Ao dogma da unidade do
poder soberano opunha-se o dogma da pluralidade dos poderes, elaborados de modo
que os próprios excessos de um eram compensados pela natural resistência dos
outros. Por esta teoria, bem mais do que por aquela tradicional da melhor forma de
governo, encontrava adequada garantia não apenas a liberdade civil, mas aquela do
cidadão defronte ao Estado. Porque, se a liberdade civil poderia ser encontrada
também nas formas despóticas de governo, a liberdade política compreendida como
defesa do indivíduo contra os abusos do poder somente poderia realizar-se nas
constituições liberais, enquanto estas representavam a antítese absoluta de toda
forma de despotismo, quer em sentido monárquico, quer democrático. Em Locke,
mais do que uma divisão, temos ainda uma hierarquia de poderes. O poder
legislativo é poder proeminente e verdadeiramente soberano. Como poder que faz as
leis e impõe a sua observância, é ele superior aos órgãos do Estado que devem
aplicá-las e executá-las. É verdade que o próprio poder legislativo em Locke, mais
do que criar leis novas, é chamado a interpretar, a determinar as leis naturais; por
isso desenvolve uma atividade condicionada e limitada. Juiz último da atividade
legislativa é a comunidade dos indivíduos que o criou. A soberania do povo, ainda
que não declarada expressamente, estava implícita na doutrina liberal de Locke.
Em Montesquieu não é mais questão do estado de natureza, nem do pacto
constitutivo, nem da soberania natural do homem. Diminui o interesse pela origem e
pela legitimidade do Estado e as atenções concentram-se sobre o seu funcionamento,
sobre os meios dirigidos para impedir eventuais desvios em prejuízo do indivíduo.
Deste modo, vinha a técnica constitucional com Montesquieu a integrar a doutrina
liberal do Estado.

5.Democracia e liberalismo. O dogma democrático da igualdade natural


e política.
A dinâmica de emancipação política do indivíduo na era prékantiana
desenvolve-se em duas direções antitéticas: uma liberal, representada por Locke e
73

Montesquieu, outra democrática expressa tipicamente por Rousseau. As duas


direções de pensamento deveriam informar por si a vida do Estado moderno, surgido
da reação ao absolutismo e gerar em seu seio divisões e lutas de idéias e de partidos.
O ideal democrático funda-se sobre o postulado da igualdade natural. Este
postulado não deriva de nenhum modo do princípio da igualdade moral da
humanidade proclamado pelo estoicismo assim como pelo cristianismo. “Todos os
homens são irmãos, porque todos são filhos de Deus” proclama Epitteto em
conjunto com São Paulo. Mas nem estóicos, nem cristãos pensaram em tempo algum
derivar da igualdade moral dos homens a sua igualdade natural e, em conseqüência
aquela política, social. São Paulo escreva aos Coríntios: “Unusquisque in qua
vocatione vocatus est in ea permaneat” 41. Para o estóico a verdadeira liberdade é
interior, e cada um no seu estado é destinado à tarefa que a natureza lhe assinala.
Também não se pode dizer que o dogma da igualdade natural respondesse às
exigências que eram afirmadas pela doutrina liberal. A experiência que esta invocava
era contrária a tal dogma e revelava nos indivíduos desigualdades físicas,
intelectuais, morais. A esta diversidade de atitudes era deixado o progresso
econômico e científico com a sua crescente divisão do trabalho social, com a
necessidade de especialização que dele derivava.
Não se pode negar que a doutrina empírica do espírito como tabula rasa,
como simples recepção, podia invocar-se para justificar o princípio da igualdade
natural. Mas, Locke e a escola liberal deveriam sustentar que a doutrina da
originária indiferenciação do espírito humano não excluía a diversidade das atitudes
humanas, reagindo cada um diferentemente à influência dos estímulos externos.
D’outra parte a igualdade natural respondia a uma condição primitiva, amorfa, da
humanidade, a um estado hipotético, utópico, original, do qual não era nem possível
nem desejável o retorno. Isto não impediu que o ideal igualitário devesse encontrar
largo favor em uma era de profundas e injustificadas desigualdades sociais, e que os
espíritos devessem reportarem-se nostalgicamente ao estado primitivo da
humanidade como um estado de felicidade e justiça. E não devemos nos maravilhar
se o empirismo da tabula rasa pode alimentar a ilusão das atitudes iguais em todos
os homens a alcançar o mesmo grau de cultura. Pela obra dos Enciclopedistas e
debaixo da influência do sensualismo de Condillac sucede axiomático que não a
natureza, mas a educação e as condições sociais fazem a diferença entre os espíritos.
No seu livro De l’esprit (1758) Helvetius deveria exprimir a sua firme convicção de
que os homens “ne sont que le produit de leur éducation” e que a educação “peut
tout”. A fé na onipotência da educação sobre os indivíduos andava conjunta com a fé
na onipotência das legislações sobre os povos.
Enquanto o empirismo filosófico, fundando-se sobre a experiência, era,
malgrado a sua abstração, levado a dar uma solução liberal para o problema político,
o racionalismo cartesiano, na aplicação feita por Rousseau no Contract social,
favoreceu a formação da doutrina e da mística democrática. Porque, se Rousseau
acolhe o dogma da igualdade natural, se também ele exaltou no lugar do “honnête
41
I Epístola aos Coríntios, VII, 20: [“Cada um permaneça na condição em que estava quando foi chamado”].
74

homme, le bon sauvage”, ele bem viu que a liberdade natural do homem,
desenvolvendo-se, conduz inevitavelmente às desigualdades econômicas e sociais e,
portanto, ao despotismo, enquanto a igualdade, aquela que o liberalismo lockeano
desejava, implicava em uma restrição arbitrária da liberdade e originava um
equilíbrio abstrato, instável, que ocultava nas formas da igualdade legal, profundas,
injustificadas desigualdades reais. Por isso convenceu-se que em sede empírica não
são possíveis nem a verdadeira igualdade, nem a verdadeira liberdade; que o
liberalismo empírico instaurava uma nova forma de servidão social, econômica; que
urgia resolver o problema político “ex principiis” e não “ex datis”, substituindo o
dogma da igualdade e da liberdade naturais, pelo postulado da liberdade e da
igualdade moral e racional. Quanto a tradição religiosa calvinista influiu sobre a
formação da doutrina democrática de Rousseau não é o caso de indagar-se. Certo é
que ela podia fundar-se e justificar-se sobre o pressuposto cartesiano de que a razão
é o oráculo infalível de todas as regras do bem e do mal e que a única igualdade
natural de que se pode falar entre os homens é a igualdade da razão. Na primeira
página do Discours sur la méthode lê-se: “Le bon sens ou la raison est naturellement
égale en tous les hommes ... car pour la raison, ou le sens, d’autant qu’elle est la
seule chose qui nous rend hommes et nous distingue des bêtes, je veux croire qu’elle
soit tout entière en chacun, et suivre en ceci l’opinion commune des philosophes qui
disent qu’il n’y a de plus et du moins qu’entre les accident, et non point entre les
formes ou natures des individus d’une même espècie”42. Era necessário o gênio de
Rousseau para extrair do racionalismo cartesiano uma doutrina verdadeiramente
democrática, que realizasse o princípio da igualdade entre indivíduos dominados
pelo egoísmo, pelos sentidos, rebeldes ao freio da razão, da natureza inclinada a
acentuar as suas desigualdades originais, Rousseau intuiu que o problema do Estado
não era o de conciliar interesses e egoísmos naturalmente inconciliáveis, mas, antes,
arrebatar o homem da servidão à natureza e aos sentidos para elevá-lo à dignidade
do cidadão, ou seja, de membro de uma associação na qual domina soberana a lei,
ou seja, a razão, “que é una e inteira em cada um” e, como tal, é verdadeiramente
comum e igual para todos. O Estado é o reino da razão, da liberdade verdadeira,
moral, contraposto à natureza, na qual as desigualdades e o arbítrio dominam e se
perpetuam. Por isso, no Estado, como templo da razão, ingressa-se por um ato de
renúncia, que significa a aceitação de uma lei superior de liberdade que comanda a
natureza inferior. Rousseau fala, é verdade, de uma alienação incondicionada de
todos os direitos naturais da parte do indivíduo, mas esta alienação deve ser
compreendida no sentido de que o indivíduo no exercício da sua atividade se
submete à disciplina da razão, que não suprime a sua individualidade empírica, mas
a eleva, a enobrece, de molde a torná-la capaz de desenvolver-se em harmonia com
as mais altas exigências espirituais e morais. A democracia de Rousseau é toda
42
N.T.: “O bom senso, ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens ... pois por razão, ou sentido, na
medida em que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, eu quero crer seja
completamente inteira em cada um de nós, e seguir nisso a opinião comum dos filósofos que dizem haver
menos ou mais apenas entre os acidentes, e não entre as formas ou natureza dos indivíduos de uma mesma
espécie.
75

penetrada de exigências morais e desenvolve-se pela fé profunda no


aperfeiçoamento do homem, no triunfo da razão, isto é, na verdadeira humanidade e
liberdade, sobre a naturalidade de nosso ser. E compreende-se que, dado o
pressuposto, a solução para o problema político da parte de Rousseau não podia ser
senão democrática. A exigência da igualdade racional sobre a qual ela se fundava
não é possível fora do Estado, que somente poderia realizar politicamente aquele
ideal que até então foi apenas uma aspiração da consciência ética e religiosa. O ideal
político de Rousseau não é o Estado liberal moderador da liberdade e das
desigualdades naturais e sociais, mas é o Estado que impõe coativamente a
igualdade, isto é, constrange os homens a serem livres e iguais, para aquela
liberdade e igualdade que é conforme à sua natureza e destinação enquanto seres
racionais.

6.Constitucionalismo democrático. Soberania popular e princípio


majoritário. A democracia social.
O mecanismo constitucional erigido por Rousseau deveria responder às
premissas e às finalidades do sistema, no qual não encontra lugar nem a idéia de um
equilíbrio e de uma harmonia exterior de liberdade, nem a doutrina da divisão dos
poderes e de soberania, nem o conceito de uma igualdade formal e legal, nem a
possibilidade de um direito de resistência e de revolução. Retorna em Rousseau o
conceito da soberania una, indivisível, absoluta, não mais personificada no arbítrio
de um homem, ou objetivada em um território, mas identificada com a vontade
geral, concretizada na lei impessoal. A soberania é uma idéia prática da razão
política, imanente ao conceito de Estado, subtraída ao arbítrio e às contingências
exteriores. Por isso, o poder legislativo é o único poder verdadeiramente soberano,
sendo órgão da vontade geral. Todos os outros poderes exercitam funções delegadas
mediante ações particulares. A democracia de Rousseau é decisivamente
antiparlamentarista, sendo inconcebível representação da soberania que é exercitada
diretamente pelo povo, isto é, pelas vontades singulares unificadas em um querer
comum porque racional. Também para Rousseau o problema da forma de governo
não possui valor essencial e deve ser resolvido a partir de considerações empíricas.
O problema central para a democracia é a constituição da vontade geral, na
qual consiste a soberania do povo. Da sua constituição participam todos os cidadãos
diretamente, igualmente, em razão de sua unidade, abstração feita das desigualdades
econômicas, sociais, pessoais. Todo homem vale o outro politicamente, tanto que
Rousseau pôde aplicar a lei do número e determinar a vontade geral: “Du calcul des
voix se tire la déclaration de la volonté genérale” 43. Como do cálculo dos votos
pode extrair a unidade e não a simples pluralidade de vontades? Sobre o pressuposto
de que a vontade geral existe em cada um de nós e fala a cada um igualmente. Basta
interrogar a nossa humanidade, a nossa racionalidade, para que cada um possa
reconhecer em si próprio a vontade geral. Nesta consideração Rousseau pôde
43
N.T.: “Da soma das vozes se tira a declaração da vontade geral”.
76

identificar a vontade unânime com a vontade majoritária. A soma dos votos não teria
por si mesma nenhum significado, se devesse exprimir apenas uma pluralidade de
vontades particulares: mas através do voto dos melhores reconhece-se se uma lei
está conforme o querer comum, unitário, que é imanente e pleno em cada um de nós.
Com o seu voto o cidadão obedece aquela natureza racional que de per si pode
justificar o Estado. A vontade majoritária fornece uma fundada presunção de que a
opinião da maioria exprime verdadeiramente a vontade geral. O divórcio entre
maioria e minoria não deve traduzir-se como um divórcio entre o interesse geral e o
interesse particular, mas como divórcio acerca do modo de compreender e
interpretar a vontade geral. “Quand on propose une loi dans l’assemblée du peuple
ce qu’on demande [aux citoyens] n’est pas précisément s’ils approuvent la
proposition ou s’ils la rejettent, mais si elle est conforme ou non à la volonté
générale, qui est la leur” 44. A vontade majoritária declara que a lei proposta concorda
com a vontade geral, isto é, com o bem público. Quando prevalece a opinião
contrária à minha, “cela ne prouve autre chose sinon que je m’etais trompé, et que ce
que j’estimais être la volonté générale ne l’était pas”45 (Cont., IV, 2 etc.).
Mas não era fácil fazer corresponder a teoria à prática democrática. Era
sempre possível às vontades particulares unirem-se e prevalecerem numericamente
sobre o expresso querer do bem público. Em uma sociedade na qual as diferenças de
riquezas e de condições sociais não são abolidas, mas na qual todos os cidadão são
politicamente iguais, grande é a tentação de fazer uso do voto para proteger e para
sustentar os interesses dos mais pobres, que são naturalmente os mais numerosos.
Uma aparência de justiça está ínsita no movimento dirigido a estender a igualdade às
relações econômicas e sociais, ainda abstraindo da “inveja democrática”, que
reconhece em qualquer superioridade um motivo de injustiça. E na verdade pode
parecer uma contradição imoral proclamar a igualdade política dos homens e manter
entre eles uma hierarquia econômica e social. Se a função do Estado é de realizar a
justiça, deve parecer natural e legítimo valer-se disso para fazer cessar as
desigualdades reais. O próprio Rousseau que, todavia, não chegou a elevar a
princípio de justiça a igualdade econômica e social, viu o perigo político derivado
das gritantes desigualdades econômicas e sociais; e, como já Aristóteles, considerou
a mediocridade como condição de estabilidade do Estado. Aqui mais profundo se
revela o divórcio entre o ideal de Rousseau e aquele do liberalismo, ao qual a
diversidade de gênios, das atitudes, deveria aparecer um bem socialmente bem
maior do que a uniforme mediocridade.
O dissídio entre liberalismo e democracia deveria aprofundar-se à medida que
o ideal democrático tendia a estender o princípio da igualdade natural às relações
econômicas e sociais. Não é justo fazer de Rousseau o responsável pela
degeneração, no sentido do realismo e do materialismo, do ideal democrático. A
igualdade possui para ele, como para Montesquieu, seu fundamento na virtude, isto
44
N.T.: “Quando se propõe uma lei na Assembléia do povo o que se pede [aos cidadãos] não é precisamente
se eles aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas se ela é conforme ou não à vontade geral, que é a deles.
45
N.T.: “isso não prova outra coisa, senão que estava errado, e o que eu estimava ser a vontade geral não o é”.
77

é, em condições morais e racionais, não está subordinada a situações de fato


econômicas, sociais, que atinjam a nossa natureza sensível. A vontade geral, que
constitui a substância do Estado, exprime somente valores universais, não pode
propor-se finalidade de natureza contingente e particular. A atuação da igualdade
econômica deveria parecer para Rousseau um ideal não apenas praticamente
inalcançável, mas contrastante com as exigências da individualidade. Poucos como
Rousseau tiveram vivo o sentido da personalidade, da independência, da liberdade
individual. Os direitos do homem foram por ele elevados das tendências da natureza
empírica a exigências da personalidade moral e somente neste sentido o Estado os
reconhece e os protege. Também para ele a propriedade é condição necessária para a
explicação da pessoa e o Estado intervém com a lei para regulá-la para impedir que
ela transforme-se em instrumento de opressão e gere desigualdades realmente
incompatíveis com a dignidade humana e com a igualdade moral e política. Por isso
Rousseau pôde escrever que a igualdade é o fim precípuo de toda legislação e , se
“la force des choses tend toujours à détruire l’égalité, la force de la législation doit
toujours tendre à la maintenir”46. A intervenção do Estado não é contra a
propriedade, mas contra a desigualdade que gera a servidão de uns e a opressão de
outros. Por isso no ideal “d’une vertueuse médiocrité, d’une douce égalité de
conditions”, pareceu a Rousseau realizar-se o acordo entre interesses particulares e
gerais dos quais praticamente depende a validade do governo democrático.

7. As correntes liberais e democráticas na Revolução Francesa.


Os acontecimentos da Revolução Francesa, por trás das contradições,
incertezas, derivações, revelam evidentes os traços da dúplice mentalidade liberal e
democrática que os determinaram. E freqüentemente a dupla mentalidade confronta-
se nos próprios atos legislativos, assim justificando os juízos mais diversos, as
interpretações mais disparatadas. A Declaração dos direitos, preparada em 1789 e
que serviu de preâmbulo à Constituição de 03 de Setembro de 1791 proclama dois
princípios que constituem o norte de toda doutrina liberal. Um, inspirado no
empirismo político inglês, é aquele do interesse geral como fundamento exclusivo
das distinções sociais. Em virtude deste princípio as instituições políticas perdem
qualquer caráter transcendental, transformam-se em serviços públicos submetidos ao
controle daqueles que os usam, com a conseqüente responsabilidade dos
governantes. O segundo princípio eleva a fim de toda associação política a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Com isto afirmava-se
a soberania do indivíduo, a sua autonomia diante do Estado, cuja intervenção para
limitar os direitos de cada um apenas é legítima na medida em que é necessário para
proteger os direitos de todos.

46
N.T.: “a força das coisas tende sempre a destruir a igualdade, a força da legislação deve, sempre, tender a
mentê-la”.
78

Também revela-se a mentalidade liberal dos Constituintes pelo fato de


proclamarem a igualdade civil para todos, enquanto apenas timidamente e com
muitas restrições reconhecem a igualdade política. A noção da igualdade civil é
claramente definida pelo art. 6º da Declaração de 1789: “La loi doit être la mème
pour tous, soit qu’elle protège, soit qu’elle punisse. Tous le citoyens, étant égaux à
ses yeux, sont également admissibles à toutes les dignités, places et emplois publics,
selon leur capacité et sans autre distinction que celle de leurs vertus et leurs
talents”47. Ninguém pensava em 1789 em uma equivalência dos indivíduos, em uma
liberdade ilimitada, em uma uniformidade de condições políticas, econômicas,
sociais. A burguesia, que fazia a revolução, não podia acolher o princípio
democrático de que um homem valia o outro. Ela admitia a igualdade, mas limitada
à igualdade civil diante da lei; proclamava a liberdade, mas ao mesmo tempo
providenciava a proteção dos bons cidadãos contra os movimentos populares (lei de
20 de Outubro de 1789), para impedir as coalizões operárias para a defesa dos
“prétendus” interesses comuns (lei de 17 de Junho de 1791). O novo Estado liberal
surgido da Revolução de 1789 proclamava o sacro caráter da propriedade privada e
o livre curso das leis econômicas. As distinções fundadas sobre o trabalho, sobre a
propriedade, isto é, sobre o expontâneo uso das faculdades individuais são as únicas
legítimas, porque as únicas naturais e, como tais, justificam as desigualdades
políticas. Os cidadãos são distinguidos em ativos (que exercitam os direitos políticos
e participam da coisa pública) e passivos (que não gozam senão da garantia dos seus
direitos naturais e do exercício dos seus direitos civis) e a Constituição de 1791
introduz o regime censitário, que sobre aquela distinção se funda.
Mas já na Declaração de 1789, em contraste com a doutrina liberal dos
direitos do homem e da soberania individual, é proclamado o princípio da soberania
nacional. “La loi est l’expression de la volonté générale” (art. 6º). Não somente, mas
a Constituição de 1791 (tit. III, 1) declarava a soberania nacional “une, indivisible,
inaliénable et imprescriptible”. Desta forma reconhecia-se ao Estado um poder
absoluto, ilimitado, incluso o direito de suspender a liberdade individual; não
apenas, mas a soberania una, indivisível, inalienável significava logicamente a
exclusão de qualquer descentralização, de qualquer separação de poder, de qualquer
representação ou delegação de funções soberanas. Na realidade, porém, com uma
incoerência que revela a influência sempre dominante da doutrina liberal e aquela
sempre presente da constituição inglesa48, a mesma Constituição de 1791
proclamava o princípio da representação, da separação e delegação dos poderes.
Com isto o princípio da soberania popular era virtualmente negado; Rousseau o

47
N.T.: “a lei deve ser a mesma para todos, seja protegendo, seja punindo. Todos os cidadãos, sendo iguais a
seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua
capacidade e sem outra distinção que não seja a de suas virtudes e de seus talentos.
48
Em 1787 saia a quinta edição da obra de De Lolme, Constitution de l’Angleterre ou Etat du gouvernament
anglais, comparé avec la forme républicaine et avec les autres monarchies de l”Europe, Genebra, 1787. De
Lolme, calvinista, era membro do Conselho dos 200 da República de Genebra. O sucesso da obra reeditada
em 1790, revela a tendência política dos espíritos. A obra teve uma tradução italiana em Nápoles em 1861, aos
cuidados de Emanuele Rocco.
79

havia afirmado expressamente: “A l’istant qu’un peuple se donne des réprésentants


il n’est plus libre; il n’est plus” 49 (Cont., III, 15). O direito do indivíduo era limitado
à escolha dos representantes. D’outra parte a Constituição de 1791, introduzindo o
censo eleitoral que separava a classe dos proprietários da classe dos proletários,
revelava ainda mais, malgrado a proclamada teoria da soberania nacional, o seu
carácter intimamente burguês e liberal.
Somente a partir de 10 de Agosto de 1792 com o decreto relativo à formação
da Convenção nacional, que estendia o direito de voto a todo indivíduo “vivant du
produit de son travail comme tout autre citoyen actif”, pensou-se verdadeiramente
na igualdade política, que instaurava a democracia sobre o fundamento da soberania
popular exercitada mediante o sufrágio universal e direto. Porém, ainda remanescia
na Constituição de 1793 o divórcio entre a soberania incondicionada do Estado,
“une, indivisible, inaliénable” (art. 25), e os direitos imprescritíveis do homem, cuja
violação justifica o direito de resistência e de revolução (art. 33).
Agudiza-se o divórcio em relação à propriedade, que uns proclamam direito
natural do homem, sacro e inviolável, enquanto outros a concebem como instituição
social, sobre a qual o Estado exercita o seu eminente direito. Teoricamente Rousseau
havia superado a contradição entre as duas doutrinas opostas, sustentando que a
propriedade é verdadeiramente um direito natural, mas que, uma vez constituído o
Estado, ela transformava-se em uma instituição social regulada pela lei. E foi esta a
teoria seguida por todos os legisladores da Convenção. Robespierre vivifica na
propriedade individual uma instituição social garantida pela lei na medida em que
não é prejudicial “ni à la sûreté, ni à la liberté, ni à l’existence, ni à la propriété
même de nos semblables”50. E é óbvio realçar-se que o interesse social da
propriedade deveria compreender-se e realizar-se em relação aos ideais e aos
interesses da classe burguesa, que haviam feito a Revolução. Estes interesses são
expressos pela Convenção de forma ainda mais radical do que a Constituinte e a
Legislativa, destruindo em todas as suas formas a propriedade coletiva, suprimindo
sem indenização os seus rendimentos feudais, fracionando e limitando as grandes
fortunas mediante leis de sucessão. Mais do que destruir a propriedade privada ou
em transformá-la em propriedade do Estado, a Convenção trabalhou por multiplicá-
la, por estende-la, reconhecendo nela a condição da liberdade e da igualdade
política.
Não obstante o favor da Convenção pela pequena propriedade estendida em
medida quase igual a todos, ela não revogou o caráter sacro, inviolável da
propriedade privada. Na trilha de Rousseau, concebeu a igualdade econômica como
eqüipolência e uniformidade da propriedade do solo. D’onde a oposição dos
revolucionários de todas as graduações à teoria comunista de Babeuf, responsável
por haver derivado do dogma da igualdade natural aquele da igualdade econômica e
social. Se todos os homens são iguais por natureza e diante da lei (art. 3º da
49
N.T.: “”No instante em que um povo admite representantes ele não é mais livre, ele não é mais”.
50
N.T.: “Nem à segurança, nem à liberdade, nem à existência, nem à propriedade mesma das nossas
semelhanças
80

Declaração de 1793) resulta concluir senão que: “la nature a donné à tous les
hommes un droit égal à la jouissence de tous le biens” 51 (art. 1º da Analyse de la
doctrine de Babeuf, Paris 1796). Para realizar esta condição de fato não há para
Babeuf senão um meio: “Les travaux et lesjouissances doivent être communes” 52
(idem, art. 4º). A igualdade dos direitos civis e políticos não é senão uma ficção, se
não vem acompanhada pela igualdade social, isto é, pela igualdade de condições,
única capaz de realizar a igualdade real, daí a necessidade de uma nova revolução no
interesse não de uma classe, mas de todos. “La révolution française”, declara o
Manifeste des Egaux, “n’est que l’avant-courrière d’une autre révolution bien plus
grande, bien plus solennelle et qui sera la dernière” 53. A nova revolução social
deveria restabelecer a primitiva igualdade real mediante a supressão da propriedade
privada e a eqüitativa distribuição das riquezas e da cultura. O divórcio com o ideal
da revolução burguesa foi expresso por Robespierre, quando afirmou que a
igualdade sonhada por Babeuf “est une chimère, essentiellement irréalisable dans la
société civile, et supposant nécessairement la communauté, qui est encore plus
visiblement chimérique parmi nous”54. Também Rousseau havia exaltado o Estado
de igualdade originária da humanidade, mas havia também reconhecido que esse não
podia manter-se e que só a atividade dos indivíduos regulada pelo Estado soberano
podia originar ente os homens uma condição de vida social conforme a razão. A
Revolução Francesa podia aderir à doutrina de Rousseau enquanto ela garantia o
pleno, variado desenvolvimento da individualidade, debaixo de uma lei superior de
liberdade e de razão expressa pelo Estado. O comunismo de Babeuf, enquanto dava
ao dogma da igualdade natural um conteúdo concreto, não era a conseqüência
lógica, mas a negação aberta da mentalidade e da doutrina revolucionária, assim na
sua direção empírico-liberal como naquela racional-democrática. Por isso a
conspiração de Babeuf em 1796, logo reprimida, não teve seguidores imediatos e
não desviou a Revolução de sua finalidade. O erro de Babeuf foi o de invocar uma
ideologia essencialmente individualista, contrastante com o ideal de justiça e
igualdade social que ele se propunha realizar.

8.O liberalismo de Kant e sua concepção de Estado de direito.


Na obra política de Kant escrita depois de 1795, não podia faltar o eco dos
acontecimentos revolucionários franceses. Ainda que excessivo pareça o juízo de
Marx, de que Kant escreveu a teoria da revolução francesa, é verdadeiramente certo
que ele a vivenciou intimamente e teve a consciência da nova ordem que se
maturava. Esta sua simpatia pela Revolução não passou desapercebida pelos
contemporâneos e sabemos que o seu discípulo Reuss em 1792 o defendeu contra
51
N.T.: “A natureza deu a todos os homens um direito igual ao gozo de todos os bens”.
52
N.T.: “Os trabalhos e gozos devem ser comuns”.
53
N.T.: “é apenas o ensaio de uma outra revolução bem maior, bem mais solene, e que será a
última”.
54
N.T.: “é uma quimera, essencialmente irrealizável na sociedade civil, supondo necessáriamente a
comunidade, o que é ainda mais visivelmente quimérico, entre nós”.
81

Schutz que o havia repreendido de haver com a sua filosofia contribuído à formação
da consciência revolucionária. Na Doutrina do direito55 Kant havia dado a
justificação jurídica da Revolução, destacando o erro de Luís XVI de haver confiado
ao povo o seu poder soberano de fazer as leis. Nem o direito soberano do povo podia
compreender-se limitado à particular questão de prover a uma mais eqüitativa
repartição dos tributos, porque a soberania é por sua natureza plena e indivisível.
Mas não tanto por sua legitimação se explica a simpatia de Kant pela Revolução,
quanto pelas razões morais e ideais que nela triunfaram, como se pode notar nas
considerações a propósito expressas no Conflito das Faculdades (1798). Nem por
isso se deve pensar que cria Kant realizado na Revolução a sua concepção do direito
e do Estado. Antes se deveria dizer que ele admirava na Revolução o manifestar-se
daquelas forças cegas, naturais, expontâneas, que na história agem
independentemente de qualquer prevenção humana para o triunfo do que é
verdadeiro e justo.
Sem dúvida, não se pode menosprezar a aversão de Kant por toda forma de
despotismo, fosse esse do príncipe ou do povo, legítimo ou violento. Em qualquer
forma de despotismo via Kant o predomínio do arbítrio da vontade singular ou
associada no seu particularismo e na sua subjetividade, da qual não podia extrair
nem uma norma, nem uma autoridade possuidora de valor objetivo, universal,
impessoal. E na prática o direito e o Estado são para Kant conceitos transcendentais
que pertencem a uma realidade inteligível e não podem erigir-se senão a priori ao
largo de qualquer experiência. Somente isto que a priori possui validade objetiva,
universal.
Particularmente severo demonstra-se Kant contra o despotismo ético, tanto na
sua forma pessoal, empírica, iluminada da sua pátria, quanto na forma racional e
democrática de Rousseau. O Estado que pretende atuar por meios coativos a
felicidade individual ou a moral coletiva não alcança tal escopo e transforma-se
opressor. Há interesses concernentes à personalidade natural que se subtraem à ação
do direito e do Estado e que somente o indivíduo pode satisfazer. Trata-se de
interesses que o Estado pode limitar, regular nas suas manifestações externas, nos
seus efeitos sociais, políticos, mas não pode substituir. A personalidade do homem
nas suas exigências naturais e morais ainda possui para Kant valor absoluto e não
pode nem existir, nem desenvolver-se sem a ação livre, direta do indivíduo. Por este
culto quase religioso da personalidade pode afirmar-se ser Kant intimamente liberal
e em conseqüência antidemocrático, se por democracia compreende-se a
subordinação do indivíduo a uma legislação externa que deriva a sua autoridade e o
seu valor do Estado concebido como realidade empírica.
Kant não acolhe a exigência igualitária implícita na doutrina democrática:
mas também não se pode afirmar ser liberal no sentido em que o liberalismo era
compreendido por Locke, por Montesquieu e que foi traduzido nas Declarações e
Constituições anglo-americanas e francesas. Hoje, depois de uma experiência
secular, pode-se afirmar que Kant com a sua concepção do Estado jurídico pôs o
55
[I. Kant, Scritti politici, cit., pg. 532-533].
82

problema do liberalismo político nos seus verdadeiros termos, evitando o dúplice


obstáculo do empirismo e do moralismo, integrando o liberalismo ético-religioso
extraído da reforma protestante e o liberalismo econômico que na obra de Adam
Smith havia encontrado a sua definição clássica. As críticas feitas por Kant no Dito
comum e no Conflito das Faculdades contra a política e o sistema constitucional
inglês não passam de um aspecto de sua aversão ao empirismo e utilitarismo
político56. D’outra parte admirou em Rousseau o entusiasmo ético, o profundo
sentido de humanidade, mas não o seguiu no seu radicalismo e moralismo políticos.
Kant intuiu a insolubilidade do problema político se esse não se apoiava sobre
uma válida doutrina do direito, sobre a exata determinação do momento jurídico na
vida do espírito. O direito não é nem mera naturalidade, nem mera eticidade, mas é a
sua síntese na exigência peculiar da coexistência: em outras palavras, é legislação
externa, que assim deixa sobreviver inteira a liberdade natural, como aquela moral,
mas quer ambas reguladas por uma norma de razão expressiva das exigências da
vida de relação. Por isso é liberdade externa e coação. Desta liberdade externa, é o
Estado realização. O Estado kantiano é liberal no sentido que ele surge do consenso
para garantir a todos os homens as condições exteriores para o exercício da atividade
econômica e moral. Com isto Kant exprimia a exigência implícita no liberalismo
lockeano; mas ao mesmo tempo a superava, porque não abandonava as relações
humanas ao livre curso das forças naturais, não abstraía das superiores exigências
éticas do indivíduo, mas queria ambas subordinadas à lei do limite, elevado a dever
da razão comum. Esta não é uma realidade nova ou diversa que se impõe aos
indivíduos, mas extrai da sua própria liberdade natural e moral que não pode
desenvolver-se independentemente das relações de coexistência. Todo o perigo do
despotismo natural ou ético era eliminado com a fórmula kantiana, porque o Estado
surge para os fins do indivíduo, para garantir exteriormente a possibilidade de sua
liberdade interna. O princípio de que o indivíduo é fim e não meio não é menos
válido no mundo jurídico e político do que no mundo ético.
Jurídico portanto, é o Estado e o liberalismo kantiano, não econômico, não
ético, que surge para realizar a idéia do direito ou, como se expressa Kant, a justiça
distributiva, que é a liberdade externa igualmente distribuída. Não a sociedade, mas
os indivíduos são para Kant o pressuposto lógico do Estado. Por isso, justa é aquela
constituição “que garante a qualquer um a sua liberdade mediante a lei” 57. No
domínio puramente ético o indivíduo realiza a liberdade em si, libertando-se da
servidão dos sentidos; no domínio econômico a realiza negativamente reconhecendo
os obstáculos que se opõem à satisfação de suas necessidades; no domínio jurídico o
indivíduo atua a liberdade limitando-se em relação aos outros. Se não se quer
renunciar à própria idéia do direito (escreve Kant na Doutrina do direito, cit., § 44,
p. 498) o indivíduo deve sair do Estado de liberdade natural desenfreada, sem regras,
para “unir-se com todos os outros (com os quais ele não pode evitar de encontrar-se
em recíprocas relações) submetendo-se a uma coação externa publicamente legal”.
56
Cfr. K. Borries, Kant als Politiker, Leipzig, 1928, pgs. 197-198.
57
[I. Kant, Scritti politici, cit. p. 264. As citações que se seguem no texto referem-se sempre a esta edição].
83

Isto significa entrar em um estado de direito no qual o suum de qualquer um esteja


legalmente determinado e seja assinalado por um poder externo e superior ao
indivíduo. No Estado não é questão de autonomia do querer, mas de autonomia
externa, segundo a qual cada um obedece a leis que ele mesmo se impôs ou às quais
não pode racionalmente negar o seu assentimento (Paz perpetua, p. 292, nota).
O Estado jurídico, ou seja, liberal no sentido kantiano, deve constituir-se de
modo a garantir a cada um dos seus membros a liberdade enquanto homem, a
igualdade enquanto súdito, a independência enquanto cidadão. O Estado deve em
primeiro lugar impedir que o homem sirva a outro homem, transforme-se ainda que
só exteriormente em instrumento dos fins alheios. A escravidão em todas as suas
formas, também na forma econômica, era por Kant implicitamente condenada. Isto
não impedia o indivíduo de obrigar-se diante dos outros, de submeter-se ao querer
alheio, mas a obrigação deveria ser livre, recíproca e, em todo caso, não lesiva à
personalidade moral.
O Estado jurídico deve em segundo lugar garantir a todo indivíduo como
súdito a igualdade, a qual é compreendida por Kant conforme a tradição liberal, isto
é, em sentido civil, como igualdade diante da lei. Como tal não implica nem
igualdade política, nem igualdade econômica e social. O Estado não pode impedir,
nem desconsiderar as desigualdades de fato, não hereditárias, fundadas sobre livre,
variado exercício da individualidade. A igualdade dos indivíduos em um Estado
pode conciliar-se com a máxima desigualdade física, moral, econômica e social.
“Todo membro do Estado deve poder perseguir aquele grau ao qual possa elevá-lo o
seu talento, a sua operosidade e a sua fortuna, sem encontrar obstáculo nos outros
súditos que invocam prerrogativas hereditárias” (Detto comune, p. 257). Não
existem privilégios de nascimento e ninguém pode transmitir o privilégio de sua
posição social e política conquistada com o seu valor pessoal. Apenas os bens
econômicos são alienáveis e portanto transmissíveis e justificam as desigualdades de
fato. Permanece em todo caso intacto o princípio de que todos são iguais em
direitos. Kant faz coexistir a igualdade jurídica ou externa na relação “pela qual
ninguém pode legitimamente constranger a qualquer coisa um outro, sem ao mesmo
tempo submeter-se à possibilidade de ser por sua vez igualmente constrangido” (Paz
perpetua, p. 292).
O caráter liberal do Estado kantiano revela-se ainda melhor pela terceira
exigência à qual este deve satisfazer, isto é, de garantir a todo indivíduo, enquanto
cidadão a independência, sobre a qual se funda a igualdade política, ou seja a
participação no poder legislativo. E a independência não deve somente natural, mas
também econômica. As mulheres, as crianças, são naturalmente dependentes; mas
são dependentes também aqueles que vivem do próprio trabalho, não possuem
qualquer propriedade, ainda que pequena, não são pessoas sui iuris. Como tais não
são cidadãos, não exercitam funções soberanas.
A propriedade vem deste modo a colocar-se como princípio supremo no
sistema jurídico e político kantiano. A razão e a constituição do Estado sobre ela
fundam-se. A propriedade não é para Kant, como para Hobbes e para Rousseau, uma
84

criação do Estado; também não é um conceito econômico fundado sobre o trabalho


como para Locke. Ela preexiste ao Estado e funda-se na posse; primeiro é uma mera
relação natural e física entre o homem e a coisa para transformar-se depois em
relação inteligível regulada pelo direito. A posse alça-se a categoria suprema da
ordem jurídica natural kantiana, porque nela a atividade jurídica do homem, a sua
liberdade externa ganha forma concreta. D’onde se vê a profunda transformação da
teoria dos direitos do homem em Kant. Ele não nega o caráter originário, inato da
liberdade, da igualdade, da independência (Doutrina del diritto, pp. 416-417); mas
para que surja a relação jurídica ocorre o ato do querer, a norma que limita o seu
exercício, a reciprocidade, o poder de constranger os outros ao seu respeito. Na
propriedade a liberdade externa ganha forma e valor jurídico.
Além disso, no estado de natureza a propriedade apenas possui caráter
provisório; d’onde a necessidade, antes o dever de criar o Estado, a quem cabe
garanti-la, torná-la estável, durável, transformá-la, para usar um termo kantiano, de
provisória em peremptória. Portanto, o Estado surge e constitui-se para a defesa da
propriedade individual e somente o proprietário reveste-se da condição de cidadão,
isto é, de compartícipe da soberania. O Estado jurídico kantiano realizava um dos
postulados do liberalismo que associava em um vínculo indissolúvel a liberdade e a
propriedade. Mas enquanto para Locke e para a escola econômica inglesa a
propriedade era fundada subjetivamente sobre o vínculo espiritual que une o homem
à coisa fecundada e revalorizada pelo trabalho, Kant com os fisiocratas, com os
revolucionários franceses retorna à tradição romana da propriedade real que surge da
ocupação e se consubstancia na propriedade da terra. A categoria estática da
substância era invocada por Kant para justificar a excelência, a proeminência da
propriedade do solo, sobre qualquer outra forma de propriedade. A propriedade
capitalista, fundada sobre o trabalho, típica expressão da civilização burguesa,
permanece estranha ao Estado jurídico kantiano como permaneceu estranha à
consciência revolucionária francesa.

9.A doutrina kantiana do Estado como “coisa em si”. Unidade


distributiva e coletiva do Estado. O Estado como organismo.
A concepção do Estado jurídico que se constitui em defesa do direito natural
privado, dos direitos fundamentais do homem, não resume todo o pensamento
político de Kant. Nele devemos relevar os esforços dirigidos para elevar o Estado a
órgão das vontades supraindividuais, a “coisa em si”, a “pessoa moral”. Com esta
última expressão, quase a exprimir a dignidade e o significado ético, Kant indica o
Estado (Pace perpetua, p. 284; Dottrina del diritto, § 53, p. 534). A idéia de que o
Estado não pode exprimir a simples soma das vontades individuais, mas deve
constituir um todo unitário, uma vontade geral, Kant podia encontrar em Rousseau;
mas essa era implícita nas suas premissas metafísicas e, em todo caso, se houve
derivação, esta foi sobretudo na forma e na expressão e se faz acompanhar de
notáveis, essenciais diferenças. O Estado de Rousseau pressupõe o pacto de
85

constituição da sociedade. Sua tarefa é a organização da vida coletiva e esta


personifica-se no povo. A vontade geral é a vontade do povo e da nação expressas na
lei. Por isso o Estado de Rousseau não surge sobre o fundamento de uma
determinada noção de direito; ele surge em função da vida social, na qual o
indivíduo encontra as condições de desenvolvimento de sua humanidade.
Kant distingue claramente entre sociedade e Estado e opõe ao pacto de
constituição social (pactum sociale), o pacto da formação de uma constituição civil
(pactum unionis civilis). A união política possui isto de particular: que ela é um fim
em si, e é fim que cada um deve ter (Detto comune, p. 253). O dever do Estado era
por Kant proclamado e não somente por razões de justiça distributiva e de jurisdição
(Douttrina del diritto, §§ 36 e 42, pp. 482-3 e 493-4), mas porque o Estado constitui
uma realidade e um fim possuidores de valor absoluto. O Estado não é para Kant um
produto do arbítrio subjetivo, que os indivíduos constituem para fins subjetivos e
pelos quais podem resultar por outros fins não menos subjetivos. Ao dever objetivo
do homem de regular racionalmente as suas relações externas, corresponde a
necessidade objetiva do Estado de organizar racionalmente a vida em comum.
Portanto, o Estado é uma necessidade da razão. Nem Locke, nem Rousseau podiam
atingir a dedução racional do Estado, porque neles o Estado é ainda instrumento dos
fins subjetivos, éticos ou eudemonísticos, aos quais o indivíduo não pode ser
constrangido.
A racionalidade do Estado, durante o tempo em que é compreendida em
função do direito, é sempre relativa e o Estado possui valor não em si, mas pelo
direito que ele realiza. Com isto se chega à identificação do direito e do Estado, mas
não se justifica o Estado como “pessoa moral”, como legislador supremo, que se
constitui não pela dedução lógica, mas por um ato de vontade, mediante um pacto
que soluciona a multiplicidade das vontades em uma única vontade geral. Se Kant
deduz o Estado do direito, condiciona porém a sua existência à formação de um
querer coletivo. Porque, escreve ele, se todos os homens, ainda que singularmente
considerados, sentem o dever de viver em uma constituição legal informada pelos
princípios de liberdade, isto não basta para fazer surgir da multiplicidade das
vontades singulares a unidade do Estado. Não basta “a unidade distributiva do
querer de todos, é necessária... a unidade coletiva das vontades unidas, para que se
forme a unidade total da sociedade civil” (Paz perpetua, p. 318). Além das vontades
singulares deve produzir-se a causa unificadora das mesmas e esta produção é obra
do pacto, que exprime a exigência racional do querer coletivo e não somente é
condição formal, mas princípio constitutivo do Estado. Isto não é somente dedução
lógica da idéia do direito, mas princípio que eleva o direito a comando do querer
comum. Também para Kant o povo é soberano, mas enquanto exprime a unidade dos
indivíduos, a qual comanda a multidão que obedece. Extrapola o conceito de povo
toda consideração empírica e permanece a exigência racional da unidade. Depois
disto, melhor se compreendem as expressões kantianas tendentes a assinalar ao
Estado finalidade transcendente à mera consideração jurídica. Na crítica da obra de
Herder está escrito que o escopo do Estado é garantir “a atividade e a urbanidade
86

sempre crescentes e progressivas” (Paz perpetua, p. 173). A consideração do Estado


como coisa em si, como pessoa moral, significava reconhecer a ele autonomia que é
própria dos seres racionais. Isto pode fazer crer que Kant abandonava o ponto de
vista liberal e jurídico na concepção do Estado. Na realidade Kant percebeu a
necessidade de compreender a idéia do direito em relação a uma forte organização
política. A idéia do direito como liberdade não se realiza se o Estado não é
concebido como poder unitário, orgânico, absoluto58. Na luta contra o Estado
absoluto era implícito o perigo de abalar o princípio de autoridade e de soberania, de
comprometer a própria causa da liberdade. O liberalismo se não queria degenerar em
anarquia, se não queria constituir um regime de revolução permanente deveria
subtrair o Estado do arbítrio dos indivíduos e criar um poder absoluto, “irresistível”.
É este, afirma Kant, o maior e mais grave problema que incumbe à espécie humana,
mas é da sua solução que depende a realidade da idéia liberal, isto é, do direito como
liberdade externa (Idea d’una storia universale, etc., p. 129). Também para Kant,
como para Rousseau a soberania é una, indivisível, inalienável, mas com esta
substancial diferença: que para Kant ela possui um limite na natureza do direito. O
absolutismo político de Kant não é eudemonístico, não é ético, não é em outra
palavra despótico, é jurídico, isto é, liberal.

10.A constituição ideal de Kant. Estado republicano e sistema


representativo.
A idéia do Estado como coisa em si, como pessoa moral que atua a liberdade
externa, é o fio condutor para compreender a constituição ideal de Kant a qual não é
redutível nem à constituição liberal inglesa acolhida por Montesquieu, nem à
constituição democrática de Rousseau. A recepção implícita da teoria dos três
poderes (Dottrina del diritto, § 45, pp. 499-500) poderia de fato aproximá-lo de
Montesquieu; mas isto deve excluir-se porque a teoria dos poderes como era
compreendida por Montesquieu é inconciliável com a unidade e a soberania absoluta
do Estado pressupostas por Kant, que também chama os três poderes, três
“dignidades políticas” (idem, § 47, p. 502), ficção necessária do Estado concebido
idealmente, isto é, construído segundo puros princípios racionais, mas ao mesmo
tempo afirma com Rousseau, que a soberania reside toda e somente no poder
legislativo, que exprime a coletividade compreendida como povo, isto é, na sua
unidade. Longe de compreender a relação entre os três poderes como uma relação de
equilíbrio mecânico, Kant o compreende, e não só por analogia, como a relação
indivisível, hierárquica entre as três proposições de um silogismo, das quais a maior
58
Na Critica del giudizio (tradução italiana de A. Gargiulo, Bari 1907, p. 232, nota) Kant, depois de haver
com a habitual precisão e profundidade definido a relação entre o mecanismo e o organismo da natureza,
aplica a idéia de organismo para determinar a organização política. “Tratando-se da empresa de uma total
transformação de um grande povo em um Estado, é-se empregada mesmo e muito oportunamente a palavra
organização para designar ... todo o corpo do Estado. Porque em um todo como este, todo membro deve ser
não apenas meio, mas também fim; e, enquanto concorre à possibilidade do todo, é determinado à sua volta
pela idéia do todo, relativamente ao seu posto e à sua função”.
87

põe a norma (poder legislativo) que, pela mediação da menor (poder executivo) deve
levar à conclusão (sentença do juiz).
O poder legislativo deve ser organizado de modo a exprimir verdadeiramente
a soberania do povo compreendido não empiricamente, mas como unidade moral do
Estado. Enquanto a lei exprime a vontade de um, de poucos, do próprio povo
considerado como soma das vontades particulares, ela é intimamente,
necessariamente injusta; enquanto a lei, ainda a mais dura, quando procede da
vontade unitária é justa, porque a constituí-la converge cada indivíduo como
membro de um reino de fins racionais. Só nesta condição possui valor a máxima:
“volenti non fit iniuria”59.
O poder executivo concretiza-se na pessoa do “governante”, que gere os
negócios do Estado, opera não por leis possuidoras de valor universal, mas por
decretos, por ordenações que são sempre atos particulares e regulam casos
particulares. O poder executivo é um poder subordinado, pelo qual o governante
responde pelos seus atos para o poder legislativo soberano que pode em qualquer
momento substituí-lo e depô-lo (idem, § 49, pp. 503-504).
O poder judiciário não pode tocar nem ao soberano, nem ao governante, pois
toda vez que eles cometessem uma injustiça não haveria meio de repará-la. Somente
pelo juiz eleito pelo povo e que é o seu representante, podem ser os cidadãos
julgados. Julgando a si mesmos por meio do magistrado, o povo não pratica ato
soberano, porque julgar é declarar em particular aquilo que é o suum de cada um.
Em virtude dos três poderes, constitui-se o Estado em forma autônoma, isto é,
mantêm-se “segundo as leis da liberdade”. Consiste a saúde do Estado na sua
unidade, o que não significa a sua prosperidade e a sua felicidade, “le bonheur
commun” como ainda se exprimia a Declaração de 1793. Tais tarefas podem ser
melhor e mais seguramente realizadas debaixo do despotismo. A verdadeira “salus
publica” consiste na constituição a que cada um assegura a faculdade “de perseguir a
própria felicidade pela senda que lhe parecer melhor” (Detto comune, p. 264;
Dottrina del diritto, §49, p. 505). Uma essência comum une os três poderes
enquanto são relações da vontade coletiva do povo e deduzem-se da própria
natureza da soberania concebida como uma idéia pura (Gedankending) possuidora
de uma realidade prática objetiva (Dottrina del diritto, § 51, p. 529).
Além disso, a unidade essencial dos poderes não exclui a diversidade das
funções e a necessidade de mantê-las separadas. Como Montesquieu e o próprio
Rousseau, também Kant destaca o perigo, para a liberdade dos cidadãos e a
estabilidade do Estado, da confusão das funções. A cada uma das quais corresponde
uma idéia, a idéia da lei, do poder, de liberdade, de cujo concurso e de cuja
organização resulta o Estado e a constituição ideal. Porque se a liberdade e a lei não
são sustentadas por um forte poder é inevitável a desordem e a anarquia. D’outra
parte apenas do poder ou em união com a lei, mas sem liberdade, possui origem o
despotismo60. A constituição na qual o poder se associa à lei e à liberdade e na qual
59
[“Não se faz injustiça àquele que é consciente”].
60
E. Kant, Antropologia prammatica, tradução italiana de G. Vidari, Turim, 1921, p.264.
88

as duas funções, legislativa e executiva, estão separadas é a constituição ideal que


Kant também chama de republicana (Paz perpétua, pp. 294-295; Dottrina del
diritto, § 52, pp. 531-532). Para nós não há dúvidas de que o nome e o conceito de
Kant derivaram de Rousseau, que no Contrat (II, 6) escreve: “J’appelle république
tout Etat régi par des lois, sous quelque forme d’administration que ce puisse être...
Tout gouvernament légitime est républicain” 61. E em nota explica ainda melhor o seu
pensamento: “Je n’entends pas seulement par ce mot une aristocratie ou une
démocratie, mais en général tout gouvernement guidé par la volonté générale, qui est
la loi. Pour être légitime, il ne faut pas que le gouvernement se confonde avec le
souverain, mais qu’il en soit le ministre: alors la monarchie elle-même est la
république”62. Kant não se exprime de outro modo: “A única constituição
permanente é aquela republicana na qual a lei é soberana e não depende de nenhuma
pessoa particular”. É esta a única constituição racional que põe a liberdade como
princípio e a faz dela condição da obrigação política.
O profundo divórcio de Rousseau está em que para este o sistema
representativo é incompatível com o Estado ideal republicano, enquanto que para
Kant constitui a sua essência. Para Rousseau o princípio da representação política
pode admitir-se para o poder executivo que, sendo a força aplicada da lei, não pode
pertencer à generalidade e não pode concentrar-se nas mãos de poucos, mas
contradiz a essência do poder legislativo que exprime a vontade geral, isto é, a
vontade de todos e de cada um, que não pode representar-se porque inalienável
(Cont., III, 1, 15). Por paradoxal que possa parecer a tese de Rousseau é inegável
que esta continha em sede teórica um fundo de verdade e estava em relação com o
alto, religioso, conceito que ele fazia do Estado. Participar do Estado na sua
atividade legislativa, isto é, soberana, constitui para cada cidadão não apenas um
dever jurídico, mas moral, ao qual não pode subtrair-se para investi-lo em um outro.
No sistema parlamentar Rousseau devia ver um cômodo meio para o indivíduo
subtrair-se à responsabilidade da vida pública e ter maior tranqüilidade para cuidar
dos interesses privados. E trazia como exemplo o povo inglês, que crê ser livre e não
o é: “il ne l’est que durant l’élection des membres du parlement; sitôt qu’ils sont élus
il est esclave, il n’est rien” (idem). Reconhece Rousseau que “l’attiédissement de
l’amour de la patrie, l’activité de l’intérêt privé, l’immensité des Etats” 63 tornam
necessário quase por toda a parte o sistema representativo, mas o deplora e o indica
como causa precípua da decadência das instituições políticas. Estas não se
conservam se não são amadas e o amor deve ser ativo, feito de sacrifícios
continuados, de devoção ilimitada ao bem público. “Sitôt que quelqu’un dit des

61
N.T.: “Eu chamo República todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa
ser ... Todo governo legítimo é republicano”.
62
N.T.: “Não entendo por essa palavra apenas uma aristocracia ou uma democracia mas, em geral, todo
governo guiado pela vontade geral, que é a lei. Para ser legítimo, o governo não deve se confundir com o
soberano, ele deve ser seu ministro: então a monarquia é, ela própria, a república”.
63
N.T.: “o é apenas durante as eleições dos membros do parlamento; tão logo eles são eleitos, ele é escravo,
ele não é nada” ... “o arrefecer do amor pela pátria, a atividade de interesse privado, a imensidão dos
Estados”.
89

affaires de l’état: Que m’imprte? on doit compter que l’Etat est perdu” 64 (idem). E
observa melancolicamente que os homens amam bem mais a vantagem do que a
liberdade e temem bem menos a escravidão política do que a miséria. Para quem não
concebia a liberdade se não pela mediação da vontade geral, a deploração e a
conseqüência deveriam parecer naturais.
Não se pode porém negar que a esta condenação do parlamentarismo
Rousseau era movido além da lógica dos princípios, pela experiência histórica e
psicológica. E de tal natureza são os argumentos que ele traz. As vicissitudes
históricas do liberalismo deveriam confirmar largamente as suas previsões e as suas
preocupações. Mas, quem como Kant partia do ponto de vista do Estado puro da
razão, podia alcançar diversa conseqüência. Para Kant o Estado ideal não pode ser
senão representativo. “Toda verdadeira república não é e não pode ser senão um
sistema representativo do povo” (Dottrina del diritto, § 52, p. 532). Na Paz
perpétua o princípio é estendido a qualquer forma de governo. “Toda forma de
governo que não seja representativa não é propriamente uma forma de governo (ist
eine Unform)” (p. 295). Não havia em Kant a preocupação de Rousseau pelo Estado
ético, o qual não pode ser totalitário e deve compreender o dever cívico em ordem
aos fins que compreendem a completa atividade do indivíduo em todos os seus
aspectos econômicos, éticos, religiosos. Kant foi decisivamente avesso ao Estado
desviado para fins outros, éticos ou econômicos que fossem. Por isso devia
considerar a atividade do indivíduo dirigida para realizar seus próprios fins não
inferiores em dignidade e necessidade àqueles que o indivíduo desenvolve no Estado
aos fins da liberdade externa. Também para Kant o Estado não é apenas custodial do
direito natural privado, mas é pessoa moral à cuja formação todos os indivíduos têm
o dever de concorrer; mas a ela concorrem não tanto em razão de sua naturalidade
ou da sua destinação moral, quanto para realizar as condições externas de uma vida
comum conforme a razão. Ora, isto que para tal fim é essencial, é a conformidade da
atividade legislativa ao espírito do pacto originário, às razões ideais que o
determinaram. Nem todos estão em condições de participar ativamente e
diretamente na vida do Estado, enquanto todos estão em condições de julgar se uma
lei foi emanada no espírito do contrato político. Quando as leis emanadas pelos
corpos legislativos são tais que cada um as possa racionalmente acolher, o soberano
direito do povo é respeitado. D’outra parte a soberania é para Kant uma idéia pura
da razão e para realizá-la há necessidade de uma pessoa física que a represente.
Característica do despotismo, daquele monárquico ou daquele democrático, é de não
admitir a representação debaixo do pressuposto de que o rei ou o povo representam
Deus, a si mesmo. Ora, para Kant todo aquele que é investido do poder soberano
(príncipe, nobres, povo) enverga necessariamente a qualidade de um representante,
enquanto não age para si ou para outros, mas em representação da idéia do Estado
nos termos do pacto originário.

64
N.T.: “Tão logo alguém diga, a respeito dos assuntos do Estado: que tem a ver comigo? Deve-se considerar
que o Estado está perdido”.
90

Segundo a pessoa do soberano as formas do Estado são três: autocrática,


aristocrática, democrática (Dottrina del diritto, § 51, p. 529). Qual destas formas de
Estado seria a melhor, Kant não o diz, e não poderia dizer porque a questão não se
resolve com critérios a priori. “Como o homem pode criar um representante
soberano da justiça pública, que seja ele mesmo justo” não é questão que se possa
resolver, porque “de um tronco torto, como é aquele do qual é feito o homem, não
pode sair nada de inteiramente direito” (Idea, p. 130). Apenas uma aproximação do
ideal republicano é possível na prática. Em geral pode observar-se “que, quanto
menor o número das pessoas que exercitam o poder político, e ao invés, quanto
maior é o número dos representantes delas no Estado, tanto mais a constituição
política se identifica com o sistema de governo republicano” (Paz perpetua, p. 295).
A monarquia constitucional representativa, melhor do que qualquer outra, realizava
esta condição. A pior forma de governo é a forma democrática porque nela “todos
querem ser soberanos” (idem). Por isso a democracia é necessariamente despótica;
nela a vontade de todos e a vontade geral confundem-se; o povo que faz a lei é o
mesmo povo que a realiza e destrói em particular aquilo que decidiu no universal: a
democracia “é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade”
(p. 295).
Com a sua doutrina da constituição republicana e do sistema representativo
Kant evitou o defeito das constituições liberais nas quais a representação pode ser
meio para subtrair-se ao dever público e não caiu no erro democrático de fazer do
povo o representante de si mesmo ao invés de representante da idéia do Estado.

11.A doutrina kantiana relativa ao direito de resistência.


A exigência implícita na doutrina do Estado de Kant também pode revelar-se
no seu comportamento em relação ao direito de resistência. Este é, por assim dizer,
imanente na doutrina liberal e encontrou a sua expressão solene nos ordenamentos
constitucionais franceses da época revolucionária. Tal direito foi a conseqüência do
divórcio entre indivíduo e Estado, da luta desde os tempos dos “monarcomachi” o
indivíduo combateu contra o estado absoluto. A doutrina liberal da soberania deveria
elevar este direito à dignidade de direito natural do homem. Segundo esta doutrina a
soberania está naturalmente no indivíduo e a soberania do Estado é soberania
derivada, convencional, subordinada ao vigilante controle dos indivíduos, sempre
prontos a insurgirem-se contra o soberano que viola o direito natural para cuja
defesa o Estado é criado.
Com esta teoria estava comprometida a força e a estabilidade do Estado,
erigia-se o indivíduo a juiz do soberano. Nem o pacto político podia fornecer
garantia válida contra o arbítrio, porque juiz da violação do pacto era em última
análise o povo, isto é, a pluralidade dos indivíduos. Por isso a doutrina absolutista de
Maquiavel, de Bodin, de Hobbes, de Spinoza havia unanimemente negado o direito
de resistência como incompatível com a própria natureza da soberania. Para os
91

iusnaturalistas da escola de Grócio este direito podia conceber-se como um direito


natural, mas não era mais justificado no Estado civil e no direito positivo.
Além disso as soluções absolutistas para salvaguardar a unidade do Estado
terminavam por negar o inalienável direito do homem de defender-se e ao próprio
direito contra as violações do poder soberano. O conflito entre a vontade do
soberano e o direito natural individual permanecia insolúvel. Rousseau deveria
endereçar o problema para a sua correta solução sustentando a identidade
substancial entre o direito absoluto do soberano e o direito natural dos indivíduos
considerados como membros do Estado “dont ils doivent jouir en qualité
d’hommes”65. Em Rousseau era igualmente vivo o sentido da unidade e do absoluto
da soberania e o respeito pelo direito e pela dignidade humana. Os indivíduos
mediante o pacto criam o Estado como pessoa moral, como ser de razão, isto é, na
condição de que ele não possa cometer nem erro, nem injustiça. Como corpo
unitário, indivisível, ele não pode contrair obrigações diante dos outros que
derroguem o ato do qual extrai sua existência. Produto dos indivíduos não possui o
soberano, nem pode possuir, interesses a eles contrários, não pode possuir a vontade
de prejudicar, “n’a nul besoin de garant envers les sujets” 66 (Cont., I, 7). Só o
indivíduo que persegue fins particulares contra a vontade comum pode encontrar-se
em contraste com o Estado, não o homem que há aceitado a soberania da lei,
expressão de sua verdadeira humanidade.
Além disso, em Rousseau permanecia sempre a possibilidade de um conflito
entre o indivíduo e a vontade geral enquanto esta se determina mediante a maioria,
isto é, a pluralidade dos indivíduos, enquanto era permanente o conflito entre o
poder legislativo soberano e o governo que é um “nouveau corps” interposto entre o
soberano e os indivíduos, uma nova “pessoa moral” entre a “pessoa moral” do
Estado, em “tout subalterne dans le tout” que extrai do soberano uma “vie
empruntée et subordinée”67 mas “réelle” e permanece “ministre du souverain” sem
vontade própria e com múltiplas limitações, mas munido diante dos singulares da
necessária autonomia para a execução da lei. Portanto, o indivíduo, se não podia
temer injustiça da parte do soberano e da vontade geral, devia temê-la dos atos dos
governantes por sua natureza particular, por meio dos quais ressuscitava o direito de
resistência contra estes.
Kant, partindo da concepção do Estado jurídico, deveria negar o direito de
resistência. O Estado de direito não surge para a defesa dos direitos do homem, mas
para realizar a idéia do direito. O indivíduo enquanto tal não possui direitos para
fazer valer diante do Estado, nem este é tido em garantia diante do indivíduo. A
liberdade que o Estado realiza não é liberdade do indivíduo, mas é liberdade externa,
relativa, é liberdade do indivíduo em relação aos outros.
D’outra parte havíamos visto que o pensamento político de Kant não se
exaure no conceito de Estado jurídico. O Estado não é apenas órgão de realização do
65
N.T.: “dos quais devem usufruir na qualidade de homens”.
66
N.T.: “não tem nenhuma necessidade de defesa em relação a seus súditos”.
67
N.T.: “vida emprestada e subordinada”.
92

direito, mas se afirma como pessoa moral, como razão comum, como soberania
absoluta e a vontade particular dos indivíduos não pode erigir-se a juiz daquilo que é
universal e infalível. Retorna em Kant o argumento de Rousseau, a concepção
unitária, racional da soberania, a qual não pode reconhecer um direito contra si
mesma. Permanecia sempre a possibilidade de um divórcio entre a vontade geral
soberana e a pessoa ou as pessoas físicas que a representavam. Em Rousseau o
divórcio é solucionado pelo povo que pode em qualquer momento alterar a forma de
governo e as pessoas dos governantes (Cont., III, 18). Mas é difícil sustentar que o
“povo” de Rousseau seja o equivalente da vontade geral soberana. E no significado
empírico no qual Rousseau habitualmente o usa, o povo se dissolve nos indivíduos,
a quem cabe por último o direito de resistência contra os atos arbitrários do governo
que existe como poder autonomo ainda que subordinado. Contrariamente, em Kant,
o soberano e a pessoa que o representa em concreto são indivisíveis e exprimem
conjuntamente a majestade do Estado. Quem por qualquer motivo se insurge contra
o governo, viola formalmente a lei soberana, destrói com o governo o princípio de
autoridade, a própria idéia do Estado (Dottrina del diritto, § 49 A, p. 506-508).
Aqueles que insistem na contradição entre a exigência de um Estado ideal e o
dever de reconhecer a validade jurídica de uma constituição que da justiça pode ser a
mais aberta violação, confundem dois pontos de vista que Kant tinha claramente
distintos. A questão da possibilidade ou não do direito de resistência Kant começou a
resolve-la em sede de princípios, não ainda em sede de fato. A questão para ele era
se o Estado concebido, seja em função da liberdade externa, seja como “coisa em si”
podia comportar da parte dos indivíduos singulares ou associados um direito de
resistência. E para ele a resposta negativa era a única lógica, porque um direito de
resistência pode somente admitir-se sobre o pressuposto teórico de que o indivíduo
seja soberano, que ele seja abastecido por direitos naturais inatos, que do Estado
surja e se conserve pelo arbítrio dos indivíduos possuidores por natureza o direito de
o controlar e julgar os seus atos. Todos estes pressupostos eram negados por Kant
que buscava subtrair a universalidade do direito e do Estado à particularidade do
arbítrio singular ou associado, a fazer da soberania uma idéia da razão e não um
direito do homem, e considerava os governantes como os representantes da idéia
pura do Estado. O problema de um direito de resistência apenas podia surgir para
Kant em sede empírica e neste campo a solução também negativa que ele fornece,
inspira-se não em razões teoréticas, mas em seu particular modo de compreender a
relação entre o fato e a idéia. O problema do domínio da filosofia jurídica pura
passava pelo domínio filosófico-histórico, e é necessário ter em conta a filosofia da
história de Kant, se desejarmos compreender o seu comportamento em relação aos
Estados e aos governos estabelecidos.

12.Kant e o Estado de fato. Filosofia da história e o problema do Estado.


93

Na Crítica da razão pura68 Kant acena o seu modo de compreender a relação


entre as exigências do mundo ideal e aquelas da realidade empírica. Referindo-se à
República de Platão, ele observa que quando também essa não puder mais realizar-
se, a idéia que a representa como meta ideal é verdadeira e justa e com base nela
devem-se avaliar as constituições existentes. Longe de escarnecer como irrealizáveis
estas utópicas pretensões políticas, melhor seria que os homens se esforçassem para
adequar a elas, no limite do possível, as suas constituições. Dezessete anos mais
tarde, em 1798, no Conflitto delle Facoltà (p. 226, nota) Kant reafirmava o mesmo
ponto de vista. Falando da Atlantida de Platão, da Utopia de Morus, da Oceana de
Harrington, da Severambia de Allis, observa que se trata de “doces sonhos”, que é
inútil esperar pela sua realização; isto não impede de trabalhar para aproximar-se
deles, não apenas pode pensar-se, mas é dever de quem exercita o poder soberano.
Deste passo é clara a tendência de Kant de desfazer da aparência fenomênica o ideal
do Estado da razão.
A concepção do Estado como produto de causas naturais ao largo de qualquer
intervenção da reflexão e da vontade humana, remonta aos primeiros escritos
políticos de Kant (Idea di una storia universale, 1784; Recensione de Herder, 1785;
Congetture sull’origine della storia, 1786). Nestes o problema do Estado resulta
bem mais como o objeto de indagação naturalística do que a dedução de uma
metafísica dos costumes. Além disso, a natureza não é livre associação; nos seus
processos esta implícita uma exigência teológica enquanto ela desenvolve-se e leva
à perfeição as disposições naturais próprias de cada ser. As disposições que no
homem têm por fim o uso da razão obtêm o seu pleno desenvolvimento não no
indivíduo, mas na espécie considerada na sua existência histórica. Deste ponto de
vista a história humana pode considerar-se a atuação contínua, progressiva de um
plano secreto da natureza para a realização do Estado de razão (Idea, tese 1, 2, 8; pp.
125 e 134-136). Independentemente do concurso da vontade humana, a natureza por
força própria, desfrutando a natural tendência do homem para a felicidade, mesmo o
seu egoísmo “origina a desigualdade entre os homens, esta profusa fonte de muitos
males, mas também de todo o bem (no singular não fica melhor?)” (Congetture, p.
207). Escreve Kant em outro lugar que o estado originário de violência e de miséria
estimula os homens a suportarem a disciplina da coação e das leis públicas, ou seja a
adotarem os meios que a própria razão prescreve. Analogamente as contínuas
guerras com os danos que dela derivam induzem os povos a cingirem-se em uma
liga segundo um direito estabelecido em comum (Detto comune, p. 278).
Portanto o Estado possui em Kant uma dúplice justificação, uma dupla
necessidade, natural e racional, pelo qual surge o problema de determinar a parte que
a vontade livre do homem possui na sua realização. Porque se a natureza age
necessariamente tendo em vista os seus fins malgrado toda vontade contrária,
segundo o antigo ditado: “Fata volentem ducunt, nolentem trahunt” 69, a autonomia
68
Tradução italiana de G. Gentile, Bari, 1910, vol. I , pp. 293-294
69
[Seneca, Epist. CVII, 11 (mas o ditado é de Cleante, fragmento 527): “Conduz o destino quem é
conscencioso, mas arrastem quem recalcitra”].
94

do querer conserva do seu lado íntegro o seu valor. Toda vez que a vontade exercita-
se em contraste com a necessária ordem natural, ela não realiza o seu fim. Portanto,
das finalidades que a vontade pode propor-se, apenas aquelas nas quais a natureza a
impulsiona são realizáveis. “A razão”, escreve Kant, “não é suficientemente
iluminada para açambarcar toda a série das causas determinantes que permitem
prever com segurança o efeito bom ou mal do fazer ou do não fazer dos homens
segundo o mecanismo da natureza” (Pace perpetua, pp. 317-318), o qual surge para
Kant como a revelação de uma primeira causa inteligente, de uma Providência que
dirige as coisas com infinita sabedoria e as leva ao seu fim (aqui, pp. 306-307, nota).
Nem por isso a autonomia do homem é comprometida porque o homem pertence à
natureza e é submetido às leis da Providência como ser sensível, não como ser
racional. Por meio do intelecto o homem penetra e conhece o mecanismo natural, a
ele pode adaptar a sua ação para o conquistar consciente dos seus fins, enquanto
com a sua razão retorna em um reino inteligível de fins, é subtraído a qualquer
dependência externa. Permanece sempre aberto o problema metafísico da relação
entre liberdade transcendental e o mundo da causalidade natural.
Para nos limitarmos ao nosso problema particular, Kant não subordina a idéia
do direito e do Estado ao mecanismo natural. Ele afirma expressamente que a razão
prática e jurídica, não a experiência do mal, “não o fato torna necessário uma
constrição legal e pública” (Dottrina del diritto, § 44, p. 498). Desta razão prática
jurídica e política Kant põe em relevo não apenas o valor teorético, mas sobretudo
aquele deontológico, elevando a atuação da idéia do direito e do Estado a dever dos
governantes. Isto significa, praticamente, que se os homens venham a encontrarem-
se em um Estado cujas instituições e tendências estão em contraste com o pacto
originário e normativo, a razão impõe a eles o deixarem. A liberdade transcendental
aqui pressuposta deve realizar-se na realidade empírica. A relatividade e
continuidade histórica também é para Kant condição de realização da idéia do
direito. O Estado ideal não se encontra no princípio da história como os
jurisconsultos, Locke e os enciclopedistas sustentavam, mas no final do processo
histórico e é conquista laboriosa da liberdade por meio da dinâmica da história. Não
que o direito e o Estado como idéias da razão estejam subordinados à natureza, mas
a liberdade na qual o direito e o Estado se fundam deve inserir-se no mundo da
história para transformá-lo aos seus fins. A tarefa da razão é facilitada por aquilo que
o processo natural e histórico por meio de inescrutável projeto da providência, é
preordenado para os fins do direito e do Estado ideais. “A natureza quer que a
humanidade realize por si os fins da sua destinação” (Idea, tese 5, p. 129). E em
outro lugar (Idem, tese 3, p. 126), afirma Kant que a natureza deu ao homem a razão
e fundou sobre ela a liberdade, para que “não participasse de outra felicidade ou
perfeição se não aquela que ele mesmo, livre dos instintos, cria com a sua razão”. E
acrescenta: “Para que à natureza não seja dada a pena de fazê-lo viver bem, mas
somente de preocupar-se com que ele se eleve através do seu esforço, tornando-o
digno com a sua conduta para a vida e para a felicidade”. A atuação da lei do dever e
da justiça é o fim imanente da natureza e da história, na qual pensadores e homens
95

de Estado podem encontrar “um fio condutor, que não só pode ser útil para
esclarecer a dinâmica assim complicada das coisas humanas, ou a pressagiar os
futuros câmbios políticos dos Estados... mas... se descortinará uma visão
reconfortante do porvir, no qual a espécie humana despontará distante como se
houvesse finalmente alcançado aquela condição de vida na qual todos as sementes
postas nela pela natureza levam a conseguir um perfeito desenvolvimento e a sua
destinação sobre a terra será plenamente satisfeita” (Idea, tese 9, p. 136)70. É verdade
que o sujeito atuante na história dos fins da justiça é a espécie e não o indivíduo. Isto
não impede que o indivíduo participe com a sua razão do processo histórico e faça
com liberdade e consciência aquilo que, de outro modo, seria pela natureza
constrangido. Kant não impede à razão a possibilidade de agir sobre o mecanismo
natural e de fazê-lo servir aos seus fins: “O mecanismo da natureza... pode ser
utilizado pela razão como um meio para alcançar a própria finalidade, que é o
preceito do direito” (Paz perpétua, p. 313). Isto que a natureza quer
irresistivelmente, o homem dever querer racionalmente. Isto significa que aquilo
“que o homem deveria fazer segundo a lei da liberdade mas não o faz, ele o fará
constrangido pela natureza, sem que, d’outra parte seja comprometida esta liberdade
moral” (Idem, p. 311).
Depois disto, melhor se compreende a posição de Kant com relação ao direito
de resistência. Cohen71 foi o primeiro a revelar a íntima relação entre a doutrina
kantiana em mira e a sua filosofia da história. A atividade da história para o
desenvolvimento do direito e do Estado revela-se sobretudo nos momentos de crises
e de revolução. De fato, observa-se que Kant conciliava a obediência ao Estado
surgido de uma revolução vitoriosa. “Quando uma revolução obtêm êxito e (é?)
fundada uma nova constituição, a ilegalidade de sua origem e o seu modo de
estabelecer-se não podem liberar os súditos da obrigação de adaptarem-se à nova
ordem das coisas e eles não podem negar-se a obedecer honestamente àquela
autoridade que possui atualmente o poder” (Dottrina del diritto, p. 510). No
Conflitto delle Facoltà (pp. 219 sgg.) temos referências explícitas aos governos
revolucionários franceses. As revoluções quando são verdadeiramente o produto de
uma necessidade histórica revelam um estado de crise da consciência política que
deve ser superada; por isso devem-se aceitar os resultados ainda que
temporariamente desconformes às exigências da justiça. “Retorna nas leis
permissivas da razão”, escreve Kant, “que se permite subsistir um direito público
viciado por injustiça até quando tudo esteja maduro por si para uma transformação
radical, ou que a maturidade se avizinhe por meios pacíficos; e isto para que
qualquer constituição legal, ainda que em pequeno grau conforme o direito, é
sempre melhor que a falta de qualquer constituição, e uma reforma precipitada teria
como resultado a anarquia. A sabedoria política, portanto, no atual estado de coisas,
fará um dever de reformar o Estado em conformidade à idéia do direito público e
70
Também na Critica del giudizio (ed. cit., pp. 295-296) encontramos inserida a ordem jurídica na totalidade
da história.
71
H. Cohen, Kants Begründung der Ethik, Berlim, 19102, p. 430.
96

utilizará as revoluções, quando a própria natureza o provoca, não como pretexto para
instaurar um despotismo maior, mas como exortação da natureza para realizar de
forma radical uma constituição legal fundada sobre princípios de liberdade” (Paz
perpétua, p. 230, nota). A resistência portanto aos governos de fato revolucionários
deveria parecer a Kant uma estéril reação àquilo que era produto inevitável da
história; sobretudo, era o desconhecimento daquelas aspirações ideais dirigidas a
uma forma mais elevada de justiça que por meio da revolução se afirmavam.
A revolução é um fato histórico, coletivo, o qual Kant não podia deixar de
levar em conta uma vez ocorrido. Mas, em geral, ele condena a resistência ativa dos
súditos e dos poderes subalternos ao soberano legislador, ainda se justificada por
caráter defeituoso e injusto da organização do Estado. A esta condenação contribuem
não apenas razões formais, segundo a qual a obediência à autoridade possui um
valor em si, independentemente do seu conteúdo material e do seu modo de
exercício (Dottrina del diritto, p. 556-567), mas razões derivadas da natureza do
processo histórico entre os quais atua-se a idéia do direito e do Estado. A
gradualidade e a continuidade são para Kant as características do desenvolvimento
histórico. As adaptações dos sistemas de governo ao ideal republicano, escreve Kant,
“não podem ter lugar em um único golpe, mas por modificações insensíveis e
continuadas” (idem, § 52, p. 531). A resistência, ainda que justificada abstratamente,
ainda que coroada de sucesso, representa uma brusca interrupção do processo
histórico e os seus resultados não são duradouros. Porque as boas constituições não
são o efeito “do cego acaso” e muito menos são obras de atos improvisados,
precipitados. Estes são o fruto de longa e dura experiência histórica e reclamam uma
alta consciência política, difícil de encontrar-se não só na coletividade, mas também
nos indivíduos.
Os mais modernos intérpretes do pensamento de Kant (Haensel, Walz,
Dünnhaupt) puseram em relevo justamente o novo significado que o direito positivo
veio adquirindo em Kant em relação ao direito natural. Já Gierke 72 havia revelado o
mérito de Kant de ter superado o antigo contraste entre direito natural e positivo
mediante a lei peremptória do Estado. A escola do direito natural havia ignorado o
contraste entre direito natural e positivo e o havia ignorado porque considerava o
direito positivo como a tradução em ato da norma de direito natural. O próprio Kant
(idem, p. 400, 416), depois de haver distinguido formalmente o direito natural, e
positivo, fazendo deste último a emanação da vontade do legislador, havia conferido
ao direito positivo autoridade e fundamento no direito natural. E durante o tempo em
que o Estado foi concebido como garante e interprete do direito natural, não era
possível contraste entre este e o direito positivo e não se podia desconhecer o direito
de resistência contra normas positivas que desrespeitavam o direito natural. Além
disso, fazendo Kant do Estado a condição peremptória da existência do direito
natural, resolvia a relação entre direito natural e positivo, na forma de todo moderna
entre direito natural e público. Só o direito peremptório, estatal, possui valor real,
enquanto o direito natural se transforma em uma exigência ideal. A conseqüência era
72
O. von Gierke, J. Althusius und die entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien, cit., p. 304.
97

a de que não se podia mais admitir um direito de natural de resistência contra o


direito positivo que havia de per si não somente a força e a autoridade do soberano,
mas as condições formais nas quais revelava-se como o único e verdadeiro direito.
Agrega-se que o Estado era para Kant “coisa em si”, pessoa moral, que emana leis
que transcendem o indivíduo em ralação a uma realidade prática objetiva.
Reconhecer um direito de resistência contra o absoluto poder soberano do Estado,
significa limitar este poder e, na realidade, negá-lo (Dottrina del diritto, p. 567).
Disto deriva o princípio do qual culmina o seu absolutismo segundo o qual o
soberano no Estado possui diante dos seus súditos somente direitos e nenhum dever
coativo (idem, p. 506). As deficiências, as lacunas, as injustiças da constituição
existente devem ser corrigidas, integradas, extraídas por meio de reformas
preparadas pelo próprio soberano em conformidade com o espírito da constituição
ideal (idem, § 52, p. 531-532).
Se o indivíduo não pode fazer ato de resistência e de rebelião à autoridade
soberana, deve contribuir ativamente à reforma do Estado. A atividade do indivíduo
compreendida para transformar o Estado no sentido da exigência ideal da justiça,
para ser legítima, deve revestir-se da forma da publicidade. Esta é a condição de
toda pretensão jurídica e corresponde, no domínio do direito, àquele que é a
universalidade da norma no domínio da moral. Apenas a máxima que pode tornar-se
publica é justa, enquanto aquela que não se pode fazer conhecer sem provocar uma
reação geral e que possui na calada a condição do seu sucesso é só por só, injusta. A
condição da publicidade vale assim tanto para os cidadãos, quanto para os
governantes; ela implica a condenação quer das conspirações, quer da política da
razão de Estado; dela depende a possibilidade da justiça e da paz não apenas interna,
mas internacional (Paz perpétua, p. 330, 335-336)
Para que possa participar publicamente da vida pública, deve reconhecer-se
ao cidadão o direito de manifestar livremente as suas opiniões, de discutir os
interesses comuns. Na trilha de Montesquieu (Esprit de lois, XIX, 27), Kant
considera a liberdade de imprensa direito inalienável do cidadão. Além disso, o
direito de livre manifestação das idéias não era por Kant compreendido no sentido
democrático moderno; ele o limita ao cidadão e considera a liberdade de imprensa
apenas como um meio para estabelecer uma relação imediata entre povo e governo.
Observa Borries73 que Kant também deriva, com a idade, o progresso e a cultura do
(superior? Da hierarquia? Da elite?). Por isso, possuía maior confiança nos filósofos,
do que nos juristas, os quais estão sempre prontos a justificar, a exaltar, a legalizar as
situações de fato, ainda as mais iníquas, a disfarçar nos seus esquemas de justiça
formal, lá onde os filósofos, quando são deixados a falar livremente, imunes como
devem ser (ao?) espírito faccioso, não possuindo a força que turba a liberdade do
juízo da razão, estão nas mais favoráveis condições para aconselhar e iluminar os
governos (Paz perpétua, p. 315-316).
Com esta nossa análise buscamos por ordem e unidade no pensamento
político de Kant, solucionando as principais contradições que lhe são comumente
73
K. Borries, Kant als Politiker, cit., p. 178
98

impingidas. Kant iluminou os contrastes que se ocultavam no pensamento político


liberal e buscou solucioná-los debaixo do pressuposto de uma concepção racional do
direito e do Estado. Sobretudo salvou a idéia liberal das degenerações democráticas.
Não se deve perder de vista o alto conceito no qual Kant tinha o problema do direito
e do Estado. O interesse pelos problemas políticos é anterior à sua obra crítica. Às
duas grandes leis que saciavam o seu ânimo de entusiasmo, a lei do céu estrelado
acima de nós e aquela da lei moral em nós, devería-se acrescentar uma terceira, a lei
do direito externa a nós.

BIBLIOGRAFIA.
O. Gierke, J. Althusius und die Entwicklung der naturr. Staatstheorien,
Breslau, 19133: H. Cohen, Begründung der Ethik, Berlim, 19102; P.E. Lamanna, Il
fondamento morale della politica secondo Kant (intr. à trad. italiana dos Scritti
politici de E. Kant, Lanciano, 1917; desta tradução existe uma reedição com
numeração diversa); W. Metzger, Gesellschaft, Recht und Staat in der Ethik des
deutsches Idealismus, Heidelberg, 1917; W. Haensel, Kant’s Lehre vom
Widerstandsrecht, Berlim, 1926; R. Hubert, Le principe d’autorité dans
l’organisation démocratique, Paris, 1926; R. Dünnhaupt, Sittlichkeit, Staat und
Recht bei Kant, Berlim, 1927; K. Borries, Kant als Politiker, Leipzig, 1928; A. Walz,
Die Staatsidee des Rationalismus, Berlim, 1928; L. Rougier, La mystique
démocratique, Paris, 1929; [C. Antoni, La dottina dell’“Aufklärung” in Kant, in La
lotta contro la ragione, Firenze 1942; B. Barillari, La dottrina del diritto in Kant,
Torre del Greco, 1942; C. Curcio, L’utopia pacifista in Saint-Pierre, Rosseau, Kant,
Roma, 1947; N. Bobbio, Diritto e Stato nel pensiero di E. Kant, Turim, 1957; D.
Pasini, Diritto, società e Stato in Kant, Milano 1957; G. Lumia, La dottrina
kantiana del diritto e dello Stato, Milano, 1960; V. de Ruvo, La filosofia del diritto
di Kant, Padova, 1961; P.E. Lamanna, Studi sul pensiero morale di Kant, Firenze,
1968].
99

5
Do Estado jurídico ao Estado ético;
Guilherme von Humboldt e o seu pensamento político

Sumário: 1. Kant e o Estado. 2. Humboldt e a crítica do Estado iluminista. 3. A


formação espiritual de Humboldt. Suas relações com as correntes pré-românticas:
Hamann, Herder, Jacobi. 4. Relação de Humboldt com o criticismo teorético e
prático de Kant. 5. As primeiras manifestações do pensamento político de Humboldt.
Análise do seu Ensaio sobre a Constituição do Estado (1791). 6. O ensaio sobre os
limites da ação do Estado (1792); antecipações e vicissitudes. A carta a Forster de
Junho de 1792. Interpretações do ensaio e o seu significado. 7. O capítulo
introdutivo ao ensaio de 1792. Como se coloca o problema político de Humboldt. A
relação entre a individualidade e o Estado. Revolução ou reforma. A solução do
problema político nas Constituições da antigüidade clássica e dos Estados modernos:
analogias e diferenças. Divórcio da extensão da ação do Estado em relação ao
indivíduo. Humboldt contra o abstrativismo político. A modernidade do seu
100

pensamento político. 8. O capítulo II do Ensaio. O problema e os fatores da


individualidade. A originalidade. Influência kantiana: a distinção entre matéria e
forma. Influência de Goethe: a individualidade como organismo. Individualidade e
civilização. Os dois postulados prejudiciais de toda ciência política. Humboldt e o
iusnaturalismo. 9. O capítulo III do Ensaio. O problema dos fins do Estado: fins
positivos e negativos. Felicidade e segurança; meios com os quais o Estado as atua.
A ação do Estado em relação ao bem estar exterior dos cidadãos. Os danos derivados
da uniformidade e passividade do agir. Considerações de Humboldt sobre a
propriedade. A ação do Estado e o caráter moral. Humboldt e o culto da
interioridade. O homem interessante de Humboldt. Os efeitos econômicos e morais
da liberdade do solo. Os efeitos da ação do Estado em relação ao matrimônio. A
relação entre os dois sexos e as características da mulher. Individualidade e
socialidade. Sociedade e Estado na concepção do Iluminismo e de Humboldt.

1.Kant e o Estado.
Com Kant o liberalismo político encontrava a sua sistematização racional. O
Estado se afirma enfim como Estado de direito, não no sentido de que o direito se
origina do Estado, mas no sentido que o Estado encontra no direito a sua justificação
e o seu limite racional. Justificar o Estado em função do direito, ou seja, como
liberdade externa, foi a grande conquista de Kant. O Estado não é desejo do
soberano, nem desejo dos indivíduos e nem mesmo desejo impessoal sobrestante ao
soberano assim como aos indivíduos. O Estado é uma idéia da razão prática jurídica
e brota da íntima essência do direito, que é coexistência dos arbítrios sob de uma lei
da razão. Por isso o Estado kantiano identifica-se com uma república ideal na qual
as vontades singulares formalmente consideradas unem-se e convergem para realizar
o direito. O Estado liberto de qualquer resíduo de empirismo, assemelha-se à mesma
idéia de liberdade realizada nas relações sociais. O ato pelo qual os homens
organizam-se em Estado, bem pode compreender-se nos termos postos por Rousseau
como renúncia que regula as relações externas segundo o arbítrio individual e como
implícita aceitação de uma lei racional de limitação dos arbítrios. Mas neste caso a
idéia do contrato manifesta-se como uma exigência racional, implícita na essência
do direito. Essa é a forma sob a qual se exprime a unidade e universalidade do
direito.
O Estado não possui por finalidade o direito, mas é o mesmo direito realizado
pela vontade dos indivíduos que desejam viver em liberdade. Esta, para Kant, é
sinônimo de paz, de reconhecimento recíproco do valor absoluto da pessoa também
nas relações externas. D’onde a extensão racional da idéia do direito e do Estado,
das relações internas àquelas interestaduais, e o surgir de um direito e de um Estado
cosmopolítico. O ideal de uma paz perpétua não possui para Kant valor material,
mas formal; esta significa a idéia do direito estendida a todos os povos.
A esta altura a doutrina política de Kant produz uma metafísica. A
organização da humanidade sob a idéia do direito constitui-se de um lado em uma
101

exigência ética que possui raízes no mundo inteligível; d’outro parece surgir da
íntima estrutura do mecanismo natural, ainda que os homens dela não possuam
consciência e obrem contra tal finalidade. Kant não esclareceu o seu pensamento a
respeito. Certamente não compartilha a idéia do jovem Fichte segundo quem o
Estado é instituto utilitário, destinado a tornar-se supérfluo e a desaparecer com o
progresso ético da humanidade.
O Estado não é compreendido para Kant na esfera moral estritamente
considerada; este é para ele ordenamento exterior, formal, indiferente aos motivos,
às “máximas” que presidem as ações dos cidadãos. Neste sentido ele distingue
claramente entre o “bom cidadão” e o homem “moralmente bom” e chega mesmo a
dizer que “o problema da constituição de um Estado é solucionável, ainda que a
expressão possa parecer dura, também para um povo de demônios, porque são
dotados de inteligência” (paz perpétua, p. 312). Kant é certamente contrário a toda
política que se proponha fins éticos, filantrópicos como aquela que termina por
abandonar “os direitos dos homens aos seus chefes” (idem, p. 335).
Esta desvalorização dos valores éticos, sentimentais não contrasta com o
reconhecimento da parte de Kant da utilidade ética das instituições jurídicas. Na Paz
perpétua (p. 325) vemos Kant apresentar a idéia do direito como um dever (Sollen),
como uma tarefa “da lei moral”; portanto o problema dirigido para atuar esta idéia
nas relações internas, externas, cosmopolíticas, não é absolutmente um problema de
técnica constitucional, mas é essencialmente um problema moral. “A verdadeira
política”, diz em outro ponto Kant (idem, p. 329), “não pode fazer nenhum
progresso, se primeiro não rendeu homenagem à moral”. Não se deve esquecer que
Kant tem aqui presente não tanto a massa dos cidadãos, quanto os dirigentes do
Estado. Mas, se nega que uma boa constituição do Estado deva garantir-se sobre as
forças morais, reconhece porém que ela é útil à educação moral do povo (idem, p.
313). Malgrado incertezas e contradições, a nós isto parece certo: que Kant não pode
ser incluído entre aqueles que contribuíram para desvalorizar o Estado e, enquanto o
concebeu em função do direito e da liberdade externa, não o considerou nem
estranho, nem indiferente à vida moral. Bem diversa foi a posição de Guilherme
Humboldt em relação ao Estado74.
74
Guilherme von Humboldt nasceu em Potsdam em 1767 de rica família, de antiga nobreza ao serviço dos
príncipes de Brandemburgo. Seu irmão Alexandre, o célebre geógrafo, era dois anos mais jovem. Passou a
juventude em Berlim quando o Iluminismo encontrava-se em pleno desenvolvimento e já se iniciava o
movimento romântico dos espíritos. Em 1787 esteve em Frankfurt estudando direito. Em 1788 o encontramos
estudando em (Gottinga?). Em 1789 faz as primeiras viagens à França e à Suíça. Concluídos os estudos
jurídicos, foi responsável pelo tribunal cameral de Berlim; mas depois de um ano, 1791, abandonou o serviço
do Estado para dedicar-se aos estudos e para unir-se em matrimônio com Carolina de Dacheröden. Na
quietude de Burgörner viveu os anos de 1791 a 1794, entregue aos estudos da Antigüidade Clássica, na leitura
de Kant, na discussão e exposição dos problemas políticos e estéticos. De 1794 a 1796 estabelece-se em Jena
e relaciona-se com Schiller e Goethe. A sua formação espiritual concluiu-se nos anos de 1797 a 1801 com as
viagens à Áustria, França e Espanha. De volta à Alemanha, sofreu a influência romântica, sobretudo de
Schelling. A nomeação para Conselheiro de Embaixada junto à Santa Sé em Roma em 1802 permitiu a
Humboldt satisfazer o seu intenso desejo de uma viagem à Itália. Em 1809 foi chamado a Berlim para assumir
a direção dos assuntos da cultura e da educação junto ao Ministério do Interior. Organizou a educação na
Prússia e em 1809 cooperou na fundação da Universidade de Berlim. Foi embaixador em Viena (1810-1816) e
102

2.Humboldt e a crítica do Estado iluminista.


Humboldt se formou, como Kant, na idade do iluminismo e com Kant teve
em comum a aversão ao Estado alemão, fracionado em pequenos Estados soberanos,
que se governavam de forma patriarcal com príncipes que consideravam o Estado
como patrimônio privado, com uma nobreza hereditária não tirânica, mas tão pouco
inteligente, que cria ter satisfeito os seus deveres diante dos súditos provendo as
necessidades elementares da vida material e moral 75. A autoridade jurídica e política
apresentava-se na forma de uma perpétua tutela que não deixava aos súditos nenhum
poder de iniciativa e os condenava à inércia e à obediência passiva.
Kant e Humboldt consideraram esta condição política como uma tirania
ainda pior na medida em que rompia com os nervos da rebelião e, enquanto deixava
subsistir um aparente bem estar exterior, sufocava as energias espirituais interiores e
com ela a razão da vida. Parecia que o ideal de um bom ordenamento político seria
aquele de criar ao lado de uns poucos iluminados uma massa de súditos degradados
à condição de animais satisfeitos. O Rousseau dos Discursos com a sua idealização
do homem natural, abandonado aos seus instintos, satisfeito nas suas necessidades,
feliz na sua ignorância, bom pela ausência de oportunidades para o mal, para a
corrupção, fornecia argumentos favoráveis à política paternalista alemã daquela
época. Todavia, na crítica contra o adversário comum, Kant e Humboldt seguiram
caminhos diferentes e toda influência de um sobre o outro, a nosso parecer, deve ser
excluído.
Inclinava-se Kant à doutrina política anglo-francesa, que havia tido em Locke
o seu teórico. Desta orientação de pensamento ele trouxe a idéia da liberdade como
direito originário, a idéia do contrato como ato constitutivo do Estado. Os dois
princípios eram incompatíveis com a doutrina política do Iluminismo, que afirmava
a origem divina da soberania, negava a relação de igualdade entre o príncipe e os
em Londres (1817). Conforme seu desejo, retornava depois de um ano à Alemanha e em 1819 era nomeado
Ministro da Cooperação. Depois de pouco tempo, por dissenso com os ventos políticos dominantes, retirou-se
à vida privada. Dedicou os últimos anos sobretudo ao estudo das línguas. Morreu em 1835 no castelo herdado
de seus antepassados em Tegel.
Principais escritos políticos de Humboldt: Ideen über Staatsverfassung, durch die neue französische
Konstitution veranlasst, na “Berlinische Monatsschrift”, Janeiro de 1792 (Idéia sobre a constituição por
ocasião da nova constituição francesa); Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der Wirksamkeit des Staats zu
bestimmen (Ensaio para determinar os limites da atividade do Estado). Parcialmente publicado em 1792 na
“Thalia” de Schiller, fascículo 5, e na “Berlinische Monatsschrift”, 1792; Denkschrift über die deutsche
Verfassung (Memória sobre a constituição alemã), Dezembro 1813; Denkschrift über “Ständische Verfassung
in Prussen” (Memória sobre a organização de classes na Prússia), 4 de Fevereiro de 1819; Über
“Verwaltungsreform” (Sobre a reforma da administração), Fevereiro de 1825.
75
Desenvolvendo os germes plantados por Leibniz, Wolff havia teorizado este sistema de política paternalista
em uma obra notável, intitulada: Verünftige Gedanken von dem gesellschaftlichen Leben der Menschen, Halle,
1721 (5ª ed. 1740) (Sensatas ponderações sobre a vida do homem em sociedade). Nesta obra (§ 264) é
proclamado o princípio que está na base do iluminismo político alemão: “Regierende Personen verhalten sich
zu Unterthanen wie Väter zu den Kinder” (Os governantes estão para os súditos, assim como os pais para os
filhos). E no § 215: “Die gemeine Wohlfahrt... und Sicherheit ist das höchste und letze gesetz in gemeinen
Wesen” (O bem estar comum e a segurança constituem a lei suprema e última da vida comum).
103

súditos, implícita na idéia do contrato, atribuía ao Estado o fim da felicidade, que


não podia realizar-se se não negando a liberdade dos indivíduos e causando-lhes a
infelicidade. Porque a felicidade é conceito empírico, relativo, e cada indivíduo a
atua segundo as suas particulares tendências e exigências.
Mas ao mesmo tempo em que acolhia os conceitos fundamentais do
empirismo político anglo-francês, Kant os superava. O contrato constitutivo do
Estado, de fato empírico, elevava-se para ele em postulado da razão prática jurídica.
A liberdade sobre a qual o Estado se funda perdia o seu significado empírico e
negativo para transformar-se em liberdade externa, em liberdade em relação aos
outros, limitada pela igual liberdade dos outros. As exigências implícitas no
empirismo político eram traduzidas em princípios a priori da razão prática jurídica.
Bem diversa pelas origens, pelo significado, pelos princípios junto aos quais
se forma, é a aversão de Humboldt ao Estado iluminista. A sua família era
estreitamente ligada à casa reinante da Prússia e nos ambientes da corte ele próprio
era nascido e criado. Havia passado sua juventude em Berlim, o grande centro do
Iluminismo alemão nos anos nos quais dominavam as mentes de Lessing, de Herder,
de Mendelsohn.
Dos seus mestres, sobretudo de Engel, aprendeu a filosofia popular da época, que
era aquela de Leibniz e de Wolff. Nem lhe faltou a experiência de vida. Cumpridos
os estudos legais foi admitido por mais um ano (1790-1791) junto ao Tribunal
Cameral de Berlim. Isto lhe deu oportunidade de conhecer intimamente o
mecanismo burocrático do Estado iluminista, criado pelo grande Frederico e
aperfeiçoado pelos seus sucessores.
Todo penetrado de espírito filantrópico, tal sistema de governo parecia
garantir e revelar uma era de felicidade aos povos subjugados. Desta fase iluminista
do seu pensamento permaneceu vivo e constante em Humboldt a fé no ideal da
humanidade.
Malgrado as influências do ambiente, da educação, Humboldt rompe com o
iluminismo e a ruptura culmina no seu afastamento voluntário do serviço do Estado
na primavera de 1791. Não é fácil refazer a história deste dissolver-se do ideal
iluminista no jovem Humboldt. Mais do que uma crise espiritual repentina, devería-
se, segundo nós, falar de um gradual desenvolvimento de sua rica, complexa
personalidade sob a ação dos novos estudos, das novas experiências, dos novos
acontecimentos.

3.A formação espiritual de Humboldt. Suas relações com as correntes


pré-românticas: Hamann, Herder, Jacobi.
A personalidade de Humboldt é uma personalidade de exceção e como tal não
é fácil defini-la. Nem a tese de um Humboldt kantiano, sustentada por Spranger,
nem aquela de um Humboldt romântico, sustentada recentemente por Kälher,
satisfazem inteiramente: a estas e a outras influências, fecundadas por sua
genialidade, foi receptivo o espírito de Humboldt. Na sua vasta e variada produção,
104

que se estende entre dois séculos, em uma fase de profundas alterações históricas, é
fácil encontrar refletidas nele as correntes dominantes de pensamento, também
porque tudo revivia nele e de tudo extraía estímulo para a sua atividade. Nem se
deve esquecer que o pensamento de Humboldt, em contínua formação, revelou-se
por meio de escritos fragmentados, nos mais novos e diversos campos, sem alcançar
organizar-se em um sistema definitivo. Mais útil, segundo nós, é revelar não tanto os
aspectos que Humboldt possui em comum com os movimentos espirituais da época,
quanto as transformações que eles sofreram em seu espírito. Colhendo os aspectos
vitais destes movimentos, Humboldt preparou e às vezes antecipou aquela síntese
idealística objetiva, que deveria encontrar em Goethe e em Hegel a sua plena e
consciente sistematização. Apenas revelando as tendências e exigências de
Humboldt que confluíram no idealismo naturalista e especulativo de Goethe e de
Hegel, podemos nos dar conta das suas relações com as correntes espirituais nas
quais se formou, correntes que assimilou em parte, em parte renegou, pelo mais
superou com genial intuição.
Não se pode distinguir o pensamento político de Humboldt da formação da
sua consciência filosófica. E esta, como aquele, apresentam-se com características
de particular relevo e significado em dois momentos distintos de sua vida: um,
corresponde aos anos de 1790-1793, completa a formação juvenil do seu
pensamento filosófico-político e encontra a sua expressão típica no ensaio sobre os
limites da ação do Estado; o outro, da idade madura, culmina no projeto de reforma
da constituição da Prússia de 1819.
Deve-se compreender o primeiro período como a solução provisória da crise
na qual vem a se achar Humboldt depois de seu afastamento do pensamento do
Iluminismo e depois de suas relações com as correntes pré-românticas e
irracionalistas76. Não significa que ele entrasse em relação direta com Hamann e
conhecesse as críticas por este movidas a Kant. Mas é certo que Humboldt teve em
comum com Hamann a tendência a apreciar o valor da história, da tradição, da
linguagem. Mesmo faltando a influência direta, não faltou aquela indireta por meio
de Herder e de Jacobi. Sabemos que os fermenta cognitionis contidos nos escritos de
Hamann atuaram como fermento sobre os espíritos impacientes da filosofia
tradicional77.
Humboldt deveria assimilar o novo espírito da época mais diretamente de
Herder, o amigo de Hamann e de Jacobi. No diário de viagem de Herder, que
remonta a 1769, encontramos o primeiro documento da sua emancipação do
racionalismo. É desta época a sua idéia de opor à concepção leibniziana de um
mundo de substâncias espirituais, fechadas em si, unidas entre si por relações
externas, mecânicas, a concepção da unidade orgânica de todos os seres do universo,
que se transformam e se desenvolvem sem solução de continuidade, segundo leis
uniformes, imutáveis. Falta o distanciamento entre o homem e os outros seres, entre
76
Conforme a ampla introdução de F. Heinemann à seleção de ensaios e estratos das obras de Humboldt
publicadas com o título Phisosophische Anthropologie und Theorie der Menschenkenntniss, Halle 1925.
77
Conforme o ensaio de B. Croce sobre Hamann em Saggio sul Hegel, Bari 1913, p.291 e segs.
105

o espírito e a matéria, entre o mundo da natureza e aquele da história. As forças que


agem no âmago da realidade cósmica alcançam no homem a consciência, a
perfeição, e revelam-se na forma coletiva da existência.
A vida das sociedades humanas, que Montesquieu havia estudado nas leis e
nos ordenamentos positivos, Herder faz surgir das espontâneas energias da
consciência popular. A sociedade não é como para Rousseau construção da vontade
manifestada, mas é produto histórico necessário, em contínuo desenvolvimento. Por
isso os fatos do mundo humano compreendem-se pelas suas relações e pela sua ação
recíproca. O fim do desenvolvimento social, que para o racionalismo iluminista era
o triunfo da razão, a felicidade dos indivíduos, para Herder é o triunfo da
humanidade, que não é por ele compreendida abstratamente e unilateralmente, mas
como desenvolvimento pleno, harmônico, da raça humana em todas as suas
atividades e direções. O homem não é mais considerado em relação a uma única
atividade, a razão, mas como personalidade plenamente explicada no entender, no
querer, no sentir. O aperfeiçoamento exclusivo do intelecto, longe de constituir um
progresso, enfraquece as energias da personalidade. À idéia de uma felicidade e
perfeição uniformes, Herder opõe o vário diferenciar-se dos indivíduos em relação
às suas particulares exigências. À determinação da individualidade singular faz
contraste a formação da individualidade coletiva, concebida não como abstrata,
artificiosas construções da razão ou da lei, mas como organismos historicamente
formados e diferenciados. Tais organismos ainda não são para Herder fim em si; são,
porém, condição necessária do desenvolvimento do indivíduo, que permanece o
valor supremo, o escopo último do devir social; nele alcança a consciência aquilo
que a coletividade no seu curso regular elaborou de forma inconsciente. A afinidade
destas idéias com aquelas que deveria depois sustentar Humboldt deve parecer
evidente.
Herder influiu sobre a formação espiritual do jovem Humboldt também por
aquilo que toca a natureza e a finalidade das instituições políticas. O Estado, pareceu
a Herder, ainda antes do que a Humboldt, uma formação artificiosa, um mal
necessário. No seu conceito orgânico da vida coletiva, Herder considera como
essenciais apenas as associações que integram a personalidade.
A relação do indivíduo com o Estado é abstrata, indireta, distante, e é de
escasso interesse saber como se formou. Por isso, o Estado não deve nem substituir,
nem obstaculizar o emergir das associações naturais, que apenas servem ao
progresso da humanidade. E enquanto o racionalismo da época contemplava o
Estado da razão, cosmopolítico, compreendendo-o como a extensão da
personalidade do indivíduo, Herder opõe o Estado nacional, no qual os indivíduos
entram não na sua abstrata igualdade, mas na sua individualidade diferenciada e
concreta.
Concluindo, Herder afirmava que a realidade no seu eterno transformar tende
como a uma meta última à formação da individualidade, que esta extrai da vida
coletiva condições de desenvolvimento infinitas, que o Estado não é um fim em si,
nem pode substituir-se ao indivíduo. O contraste destas idéias com aquelas
106

sustentadas por Kant não podia passar desapercebido de Humboldt. De fato, é


conhecido que para Kant a história é o produto de forças atuantes não no indivíduo,
mas na espécie humana, que é penetrada por uma imanente finalidade e
racionalidade que escapam à compreensão do intelecto e revelam-se no
desenvolvimento da espécie78.
Ainda mais decisiva e direta sobre a formação espiritual do jovem Humboldt
foi a influência de Jacobi, o único grande filósofo da época com o qual Humboldt
correspondeu e desfrutou de relações pessoais 79. De particular interesse aos nossos
fins é o novo conceito da individualidade que brotava da especulação de Jacobi, na
qual culmina a reação contra o Iluminismo racionalista da época. Também para
Jacobi a individualidade é a única realidade: também para ele ela possui valor
concreto e não apenas racional e abstrato. Mas enquanto para Herder ela é
determinada por fatores externos, surge do fundo obscuro da natureza e se forma no
curso da vida histórica e social, para Jacobi a individualidade é a intimidade do Eu, é
amor próprio, é vida interior. A verdadeira vida do homem não é aquela da razão, da
ciência, mas é aquela do sentimento, da fé. Verdade e bem existem objetivamente,
mas nós os conhecemos por um ato de revelação. A realidade do mundo externo não
é demonstrável com raciocínios; nem por isso é menos certa para nós, porque
daquela temos o sentimento imediato, por meio do qual o homem é unido aos outros
por um vínculo indissolúvel. Ao ipse solus de Descartes substitui-se a relação do
ego e do alter que é dado imediatamente, ao largo de qualquer processo dialético,
demonstrativo.
Adquire a razão um novo significado em Jacobi, porque ele a distingue do
intelecto, cuja tarefa é a de traduzir em forma lógica as revelações do sentimento. A
razão não é faculdade discursiva, mas intuitiva; é órgão da realidade supra-sensível,
daquilo que não é apreendido pelos sentidos; é o sentimento do divino, a aspiração
àquele absoluto que nós sentimos e cremos sem ver. Também Kant deveria distinguir
a razão do intelecto; mas para ele a razão é órgão da idéia, da realidade inteligível,
transcendental, enquanto a razão para Jacobi não conhece, não sabe, e apenas pode
pressentir, intuir, sentir. Pela faculdade racional assim compreendida distingue-se o
homem dos outros seres do universo. Não a continuidade entre natureza e espírito,
mas clara, profunda separação. Contra o naturalismo de Herder, Jacobi afirma que o
homem “é cidadão de dois diversos mundos maravilhosos interferentes: um visível e
outro invisível, um sensível e outro ultra-sensível. Por isso possui o homem uma
78
Conforme, sobre Herder, a introdução citada de Heinemann, p. XXI e segs.; A. Gerbi, La politica del
romanticismo. Le origine, Bari, 1932, p. 115 e segs.
79
Conforme o citado Heinemann, p. XXVIII e segs. Aqui é dito que enquanto Humboldt não teve relações
pessoais e com Herder Jacobi, o amigo de Goethe e de Hamann, o correspondente de Herder e de Wieland,
exercitou influência sobre Humboldt até 1788, quando Humboldt, estudante na Universidade de Gotinga,
andou a fazer-lhe visitas em Pempelfort, permanecendo refém de sua riqueza “na neuen, grossen und tiefen
Ideen”, enquanto Jacobi descobria em Humboldt uma mente especulativa excepcional. Tivemos de Humboldt
o ensaio crítico de Woldemar de Jacobi na “Allgemeine Literaturzeitung” de Setembro de 1794. Conforme
ensaio de B. Magnino sobre Jacobi e sua posição filosófica em “Giornale critico de filosofia italiana”, 1931-
1932, e a introdução de Bobbio à tradução dos escritos menores de Jacobi com o título Idealismo e realismo,
Turim, 1948.
107

consciência; ele sente ter sido posto no centro entre o sensível e o ultra-sensível, o
natural e o sobrenatural. De um lado sabe-se súdito da natureza, d’outro sente
dominá-la. Isto que o sobreleva à natureza, as suas faculdades mais nobres e
melhores, ele chama de razão”80. Razão neste sentido é liberdade, espontânea
elevação do sujeito ao mundo do supra-sensível, não é faculdade de escolha, mas
energia criadora. Esta inexprimível individualidade, que da intimidade irracional do
sentimento traz vida e valor, em pleno contraste com o mecanismo natural, com o
espírito raciocinante, é o conceito que Jacobi transmitia ao Humboldt juntamente
com a profunda aspiração diante do invisível.

4.Relação de Humboldt com o criticismo teorético e prático de Kant.


Em 1788, Humboldt encontrava-se definitivamente orientado com os
filósofos da vida, contra o racionalismo iluminista. Não que ele já se declarasse seu
seguidor; mas sofria o seu fascínio. Sentia que eles haviam aberto uma nova era para
a determinação concreta do conceito de individualidade. Herder havia estudado o
homem em relação à natureza externa e no devir histórico da humanidade. Jacobi
havia revelado o homem na intimidade da consciência. Mas o gênio de Humboldt
não era de molde a aquietar-se diante de posições de pensamento adquiridas; não
podia escapar-lhe o defeito fundamental da nova filosofia do sentimento, que
sacrificava, por amor ao concreto, ao subjetivo, a objetividade e a universalidade do
conhecimento. Ele bem podia encontrar-se de acordo com os irracionalistas no
combate à pretensão da razão de tudo saber, de tudo demonstrar, mas não podia
consentir com aqueles que acolhiam a verdade da razão negando ao mesmo tempo à
razão a capacidade de demonstrá-la. “Esses não querem raciocinar”, escrevera,
“esses querem crer; não querem pensar, mas sentir”. Era a via aberta ao misticismo,
ao subjetivismo teorético e moral. Ao fim desta época Humboldt teve o
pressentimento que a solução do problema da individualidade deveria pesquisar-se
não nas posições extremas do irracionalismo e do racionalismo leibniziano, mas na
superação do dualismo entre natureza e espírito, entre mecanismo e idéia, entre
felicidade e dever. Desde esta época Humboldt teve a consciência da sua profunda
harmonia e unidade. Os filósofos da vida despertaram o seu gênio especulativo, mas
o seu temperamento não era aquele de um sonhador, de um romântico que sacrifica
ao sentimento as exigências da ciência. Nele afirmou-se sempre de forma mais clara
a exigência de conciliar a razão com a vida, de transcende-la na idéia, a natureza no
pensamento refletido.
Compreende-se depois disto o interesse com o qual Humboldt deveria
aproximar-se da filosofia de Kant. Não por acaso a primeira leitura das suas obras
coincide com o conhecimento pessoal por ele feito com Jacobi em 1788 81. Ambos
80
B. Magnino, op. cit., p. 393.
81
Conforme W. Spranger, E. von Humboldt und Kant, in “Kant-Studien”, XIII, 1908, p. 65-67. Sob o
epistolário Spranger pôde estabelecer que Humboldt lesse por três vezes, em anos diversos, a obra de Kant. A
primeira vez em 1788 em Frankfurt; a segunda no Verão de 1791 depois de seu afastamento do serviço do
Estado. Em uma carta a Jacobi de 22 de Agosto de 1791, escreveu que havia novamente iniciado o estudo de
108

estavam em contraste com a filosofia dominante; ambos estavam pela via da


filosofia da atividade do sujeito; ambos satisfaziam o seu profundo sentimento pela
personalidade. Kant deveria atraí-lo por particulares razões teóricas e práticas. Não
pôde escapar-lhe que Kant iniciava uma era na história do racionalismo moderno,
superando aquela sua fase na qual cria-se a razão na posse de verdades absolutas em
torno da íntima estrutura do real, de forma a poder derivar delas novas verdades,
sem recorrer à experiência. Por isso Humboldt subitamente compreendeu o valor da
distinção kantiana entre exigência gnoseológica e metafísica. A metafísica das
escolas embaralhava o nexo lógico das idéias com o nexo real, identificava o
conhecimento conceptual com a realidade metafísica. Esta para Kant possui valor
em si, não condicionado ao conhecimento, o qual possui o seu campo limitado às
representações fenomênicas da experiência. Humboldt na distinção entre ciência e
metafísica vê satisfeitas a um tempo as exigências do intelecto e aquelas da
consciência. Ao intelecto era vedado o conhecimento da realidade metafísica, mas
era reconhecida uma atividade constitutiva no domínio da experiência. Com isto
estavam salvas as razões da ciência positiva, a cujo desenvolvimento Humboldt
deveria dar contributos preciosos.
Spranger observa com propriedade que Humboldt aplicou o método crítico
em campos negligenciados por Kant e até então inexplorados. É conhecido que o
sentido especulativo de Kant foi despertado pela exigência de salvar a realidade do
mundo externo do ceticismo e relativismo fenomenológico de Berkeley e de Hume,
cuja doutrina gnoseológica ressente-se desta visão unilateral. Não de outro modo se
explica o seu comportamento em relação à experiência psicológica, aos fatos do
mundo social, por ele subtraídos do mecanismo causal. Esta exclusão da psicologia e
das ciências teóricas e morais da consideração científica deveria revelar-se como
injustificada para Humboldt, e todos os seus esforços deveriam em seguida buscar
compreender segundo as categorias kantianas os fatos da vida íntima, da história, do
mundo moral, a elevar os seus estudos à dignidade científica82.
Não se pode nem mesmo duvidar do fascínio exercitado sobre Humboldt pela
doutrina kantiana do dever. O subjetivismo teorético e moral não deveria para ele
solucionar-se na negação da objetividade do verdadeiro e do bom. Com a sua
doutrina das categorias Kant havia elevado a experiência subjetiva a verdade
objetiva, com a doutrina do dever ele subtraía a moral ao arbítrio do sentimento, ao
empirismo da felicidade. A obra de Humboldt acolheu de Kant o momento
normativo, teológico, contra o naturalismo social de Herder, o subjetivismo ético de
Jacobi.

Kant. É desta época o ensaio sobre Limiti dell’attività dello Stato, que Spranger (p. 66) atribui à influência de
Kant. A terceira leitura ocorreu no Outono de 1793. Em uma carta de 27 de Outubro ele escreve ao fanático
kantiano Körner de haver relido todos os escritos de Kant do princípio ao fim: “Tais estudos”, escreve, “são
em matéria filosófica aquilo que é o Corpus iuris em matéria jurídica”. E acrescenta que as dúvidas já
nutridas em torno da Crítica da Razão Pura e às duas obras morais estão desaparecidas. Mas já nesta época o
problema estético começa a preocupar Humboldt debaixo da predominante influência da Crítica do Juízo.
82
Por primeiro o fez isto Humboldt no Plan einer vergleichenden Anthropoligie (1795); principalmente no
escrito Das 18 Jarhundert (1797).
109

Malgrado as inegáveis influências, não se pode sem equívoco falar de um


Humboldt kantiano. Debaixo desta luz foi apresentado pelos primeiros autorizados
intérpretes de seu pensamento, por Haym, que considera a sua obra como um
“platonisierte Kantianismus”, por Steinthal, que a compreende como um “kantisierte
Spinozismus”. Spranger fala de um absoluto período kantiano na vida de Humboldt
e o faz corresponder ao decênio 1789-1798. Em torno de 1790, Humboldt teria
abandonado a orientação até então seguida de Mendelsohn, de Jacobi, para abraçar o
criticismo kantiano. Segundo Spranger, a obra “Os limites da Acção do Estado” 83
teria sido escrita no espírito da moral kantiana. Segundo ele, tudo no ensaio tende a
exaltar a energia natural do homem, a subtrair a interioridade ao mecanismo do
Estado, a cuja atividade é posto um seguro limite de defesa dos direitos do homem,
da dignidade da pessoa humana no sentido proclamado por Rousseau e por Kant.
A interpretação kantiana contrasta com a obra e com a personalidade de
Humboldt, o qual acolhe o kantismo nos limites nos quais ele podia integrar-se no
novo movimento dos espíritos provocado por Herder e por Jacobi. Não se deve
esquecer que deles, antes e mais do que Kant, Humboldt obteve impulso para a
especulação e todos os seus esforços foram dirigidos para compreender o ideal
iluminista da humanidade em relação à dinâmica do pensamento por aqueles
provocada. O significado da especulação kantiana não poderia ser aquela de
Humboldt, que tendia a aproximar natureza e espírito, sentido e razão, sensível e
supra-sensível, não a contrapo-los. Sobre o dualismo do fenomênico e do noumênico
não se podia para Humboldt compreender nem o homem, nem a história, não era
possível a educação do homem, tornava incompreensível a relação da realidade
empírica com a universalidade da idéia, da experiência com a razão. Humboldt havia
aprendido com Jacobi a reconhecer no sentimento uma fonte viva e real de
conhecimento. O imediatismo do sentimento não está necessariamente em contraste
com a objetividade da verdade. Para Humboldt, os direitos da intuição, da
consciência imediata, não deveriam ser sacrificados à exigência da objetividade do
saber. Para atenuar a separação, não basta nem mesmo a afirmação de Spranger
segundo a qual no reconhecimento dos direitos da subjetividade Humboldt teria
desenvolvido os germes contidos na Crítica do Juízo84, enquanto bem mais direta e
eficaz deve considerar-se a influência de Jacobi.
Também mais profundo é o afastamento de Kant no domínio ético, no qual os
esforços de Humboldt foram dirigidos para conciliar a moral do sentimento com a
aquela do dever, a superar a solidão e austeridade moral de Kant para compreender o
homem em relação com os seus semelhantes e com a realidade universal. O homem
de Humboldt é um ser intermediário entre a natureza e o espírito (Mittelwesen); e é
um produto histórico e psicológico, no qual liberdade e necessidade concorrem.
O estudo de Kant distanciou Humboldt definitivamente do Iluminismo e ao
mesmo tempo permitiu-lhe eliminar o irracionalismo pré-romântico na sua
unilateralidade e nas suas intemperanças, aproximando-o das correntes de
83
N.T.: tradução portuguesa pela editora Resjuridica, Porto, 1990.
84
N.T.: tradução brasileira pela editora Forense Universitária
110

pensamento pós-kantiana. Disto temos clara confirmação nos seus escritos políticos
desta época.

5.As primeiras manifestações do pensamento político de Humboldt.


Análise do seu Ensaio sobre a Constituição do Estado (1791).
O pensamento político de Humboldt formou-se e desenvolveu-se em estreita
relação com a sua consciência filosófica. Como esta, também aquele não se traduziu
em obra sistemática definitiva, mas afirmou-se em ensaios reveladores. A formá-lo
certamente contribuíram circunstâncias ocasionais, experiências de vida, o impulso
dos acontecimentos históricos85. Os fatores pessoais foram decisivos, o espírito de
observação, as discussões e meditações sobre os problemas do tempo, dominadas
pela fundamental exigência espiritual de aproximar os fatos às idéias. A maior
liberdade, independência, originalidade de juízo, caracterizaram o pensamento
político de Humboldt. Por isso, não se pode compreende-lo completamente à luz do
universalismo e do nacionalismo político da época. Não que ele já não tivesse
percebido tais direções, mas o seu universalismo e o seu nacionalismo tiveram nele
significado especial e não vêm dissociados do motivo fundamental de sua
especulação política, que é o valor absoluto da individualidade singular e coletiva.
A revolução francesa foi o grande acontecimento que despertou o gênio
político de Humboldt e determinou a primeira formulação de seu pensamento. A ele
tocou a sorte de encontrar-se em Paris nos primeiros meses da Revolução, de assistir
à queda da Bastilha, à renúncia de 4 de Agosto. “In loco” e com mente serena, ele
pôde observar o desenvolvimento dos acontecimentos, sem ceder ao entusiasmo dos
demais, mas também sem participar dos temores infundados e comprometidos de
muitos. Nele era vivo o desejo de apreender, de captar os fatos para compreende-los
nas suas íntimas, espirituais razões. De volta a Berlim com largo cabedal de
observações diretas, Humboldt teve parte ativa nas discussões que os
acontecimentos na França suscitavam nos ambientes intelectuais e nos círculos
políticos. Entre os entusiastas estava Federico Gentz, que deveria em seguida
transformar-se em crítico severo da Revolução 86. A ele Humboldt dirigia o seu
primeiro ensaio político, sugerido pela Constituição francesa de 1791 87. O ensaio é
um documento precioso para avaliar o grau de maturidade política de Humboldt, e

85
A estreita relação entre os fatos da vida e o pensamento político de Humboldt foi posto em relevo por
Kähler, na introdução à escolha dos seus escritos políticos (W. von Humboldt, Eine Auswahl aus seinem polt.
Scriften, Berlim 1922). “Die Beziehung W. von Humboldt und der Staat weniger ein systematisches als ein
biographisches Problem enthält und nach biographyscher Darstellung verlangt” (p.9).
86
Sobre as relações entre Humboldt e Gentz deu interessantes notícias Wittichen, que publicou a
correspondência deles em quatro volumes (Munique, 1909).
87
Conforme S. A. Kälehr, W. von Humboldt und der Staat, Munique 1927, p. 128. O Saggio sulla
Constituzione dello Stato foi escrito em Agosto de 1791 e publicado na “Berlinische Monatsschrift” de
Janeiro de 1792. Tivemos presente a última edição de 1922, contido no compêndio citado dos escritos
políticos de Humboldt aos cuidados de Kähler.
111

também a sua superioridade em relação aos muitos (Burke, Gentz, Fichte, Kant), que
nos mesmos anos expressaram juízos sobre a Revolução88.
Humboldt tinha plena consciência de perseguir na avaliação da Revolução
Francesa uma via autonôma, em contraste com aquela prevalecente na publicística
da época de parecer, como ele mesmo escreve, paradoxal. Ele lamenta nos juízos
correntes sobre a Revolução o escasso conhecimento dos fatos, os sentimentos
comprometidos, o medo infundado, a critica dirigida ao particular. E destacou o erro
de julgar os grandes acontecimentos históricos com considerações éticas, em relação
a pensamentos e finalidades abstratas e gerais.
Humboldt colheu no grande drama da Revolução aquilo que constituia o novo
acontecimento em relação ao qual deveriam avaliar-se todas as outras manifestações.
Este acontecimento era a formação do Estado, ou melhor, a criação de um novo
sistema político, correspondente às exigências da consciência racional, iluminada,
moderna. “A Assembléia nacional constituinte”, escreve no Ensaio de 1791, “iniciou
a construção de um Estado inteiramente novo, segundo puros princípios racionais”
(ed. cit., p. 3). Assim posto o problema da Revolução, surge para Humboldt
espontaneamente a pergunta: é possível a realização de um tal desejo? E se possível,
pode-se considerá-lo durável? A resposta de Humboldt é pronta e segura: “não há
nenhuma possibilidade de sucesso um Constituição construída segundo um plano
pré-estabelecido pela razão, ainda que realizada”. A evidência deste princípio é tal
para Humboldt, que ele não evita elevá-lo a princípio geral do agir. E a tornar a
demonstração de sua tese ainda mais eficaz, Humboldt pressupõe não apenas que a
Assembléia legislativa francesa havia verdadeiramente querido constituir uma
Constituição segundo os ditames da verdadeira razão, mas a havia realmente
construído e com o propósito de adaptá-la, o quanto era possível e sem prejuízo dos
princípios, às particulares condições da França. Malgrado isto, ela deveria
considerar-se não vital e destinada à morte certa.
O eixo da demonstração de Humboldt é o seguinte. A França pretendeu
substituir um sistema político absoluto, com o objetivo de servir aos fins, à ambição
de um só, por um sistema político destinado a garantir a liberdade, a segurança, a
felicidade de todos. Se assim é, não se vê o vínculo que une os dois sistemas
políticos opostos, nem se vê quem tenha capacidade e força para realizar a
passagem, malgrado todo conhecimento exato do presente, toda mais prudente
avaliação do futuro.
Humboldt aqui se esforça para por o critério de conhecimento dos fatos
históricos, bem como assinalar os limites e as condições do agir político. A
originalidade das idéias expressas confere ao Ensaio de 1791 valor programático. A
razão mediante as suas idéias não nos faz conhecer senão parcialmente e
imperfeitamente o particular que é objeto da experiência. As idéias são abstratas e
genéricas; os fatos da experiência são concretos, individuais. Na história
encontramos sentimentos, tendências, ações particulares, e o complexo mecanismo
88
Gooch (in Germany and the French Revolution, Londres, 1920, p. 108) afirma que Humboldt com este
ensaio inicia a série dos escritos políticos daquela época e antecipa as idéias da escola histórica do direito.
112

das forças individuais afirma-se e desenvolve-se ao largo de qualquer intervenção da


razão por leis intrínsecas a nós desconhecidas ou imperfeitamente captadas. A razão
é força entre as forças atuantes na natureza; ela não cria estas últimas, mas pode
contrastá-las, elaborá-las, modificá-las, guiá-las.
A posição gnoseológica de Humboldt que surge do Ensaio de 1791 distingue-
se daquela de Kant sob um dúplice ponto de vista. Também para Humboldt o
conhecimento é síntese de fatos e idéias; mas para ele a experiência não é apenas
elaboração intelectiva, nem extrai do sujeito as leis da sua existência. D’outra parte a
razão não possui apenas valor formal, mas possui função ativa e criativa da
experiência. A síntese gnoseológica afirma-se entre natureza e espírito. O
afastamento de Kant já se revela profundo, porque em Humboldt prepara-se a
interpenetração, que não é ainda identidade, da natureza e do espírito.
O curso da história revela-se desde esta época para Humboldt como um
processo dialético de ação e reação. Deste processo a luta entre as forças
individualizantes e a razão constitui a forma exterior, a condição de vida e de
progresso. Através desta luta estabelece-se o vínculo que une o velho ao novo, o
passado ao futuro. As instituições trazem força e vitalidade não dos seres racionais
mas do seu inserir-se no processo histórico. Por isso Humboldt pôde afirmar (idem,
p. 4) que possuem possibilidade de vida apenas as Constituições que surgem do
contraste entre as forças atualmente ativas e a razão. “Esta bem pode plasmar a
matéria existente, não possui a força para recriá-la. Tal força está ínsita na natureza
das coisas e estas atuam despertadas e dirigidas pela razão. As Constituições não se
deixam inserir sobre os homens, como os brotos das árvores. Onde tempo e natureza
não predispuseram o terreno, é como costurar folhas. O primeiro sol do meio dia as
abate” (idem, p. 5).
Um Constituição concebida sistematicamente e segundo puros princípios da
razão não pode encontrar o tempo e a natureza favoráveis. Isto porque a razão tende,
nos seus resultados, à unidade, à uniformidade, à harmonia de todas as forças; essa
exige a sua perfeição, a sua estabilidade, a sua coexistência segundo normas de
absoluta justiça; sobretudo ela busca estender o mais possível as forças em todos os
campos e direções. Bem diverso é o destino da humanidade expresso no curso da
história; este tende àquilo que é unilateral, exclusivo, singular. Os produtos da
história esquivam-se da uniformidade abstrata, quantitativa, para revelarem-se em
cada momento qualitativamente diversos, em formas e direções determinadas. O
repetir-se dos mesmos atos na mesma forma e direção cria o costume; deste surge o
caráter no qual a realidade humana e histórica afirma-se na forma mais alta e
perfeita.
Ainda que a ação do singular possa ser modificada e transformada pela
relação na qual essa se encontra com a ação dos outros, não é possível destruir as
características e as diferenças individuais. No homem a cultura pode desenvolver-se
em detrimento do caráter, e aquilo que é tolhido deste perde-se pelas forças
produtivas da realidade histórica. Ainda que o desenvolvimento da cultura e a
afirmação da individualidade estejam entre si em relação inversa, o ensaio “não
113

segue inteiramente nem uma nem outra, porque ambas lhes são muito importantes
para que ele possa sacrificar uma à outra” (idem, p. 6). A individualidade se conhece
mergulhando no passado, por revive-lo no presente, não se isolando, mas
contemplando-se na vida do todo. Mesmo o homem mais perfeito, considerado em
um dado momento histórico, “é uma bela flor, mas também apenas uma flor. Apenas
a memória pode entrelaçar a guirlanda que une o passado com o presente”.
Todavia o problema político da constituição apresenta-se a Humboldt como
um aspecto da vida nacional. Já a partir desse seu primeiro ensaio, o conceito de
nação a ele se revela autônomo, distinto do Estado, como produto mais alto e
perfeito do curso histórico. A analogia do desenvolvimento da nação com aquele do
indivíduo é afirmada explicitamente. “Isto que vale para os indivíduos vale para
todas as nações. Estes seguem o mesmo curso. Disto as diferenças entre uma e outra
nação, e as diferenças dentro de uma mesma nação em épocas diversas” (idem, p. 6).
A singularidade é o destino das nações, a sua potência é medida pelo grau de
individualização alcançado.
Se assim é, uma nação não poderá mais considerar-se madura ao acolher uma
constituição construída pela razão pura, porque esta é mais apta a obstaculizar do
que a favorecer a formação da individualidade. Isto não significa banir a razão da
vida política. “O legislador sábio”, escreve Humboldt, “deverá possuir exata medida
da condição histórica atual, determiná-la na sua individualidade, atuar sobre ela para
favorecer ou contrastar as suas tendências. Sobre a realidade modificada atuará
novamente, e assim sucessivamente, contentando-se em aproximar-se da perfeição
nos limites do possível”. Humanizar os ideais, neles reviver a chama viva do
sentimento, atuá-los por meio da ação lenta, gradual, em relação às energias
imanentes às coisas, desfrutando as ocasiões, sem nunca deixar-se desviar do fim;
nisto consiste a atividade do homem de Estado. Se o mero cálculo racional dirige a
ação, esta aparecerá débil e fria, mecânica; poderá ser admirada, mas será privada de
individualidade, de humanidade e, portanto, de verdade.
Se a nação, como a personalidade singular, é uma formação espiritual
autônoma, como se justifica o Estado, quais as causas que o geram, o conservam,
quais as suas finalidades e os seus limites em relação àquelas realidades psicológicas
e históricas que são os indivíduos e as nações? O problema do Estado apresentou-se
a Humboldt já a partir deste primeiro ensaio e é notável nele a tentativa de
reproduzir nos seus momentos essenciais os fatos históricos do Estado para dele
extrair argumentos contra as pretenções de constituições racionais.
A necessidade, a precisão, primeiro induziram os homens a submeterem-se à
autoridade de um chefe. Superado o perigo, a tendência natural à liberdade não pôde
sempre e por toda parte reafirmar-se contra o poder do soberano. Isto está conforme
a natureza do homem, que age fora de si contrastando com as forças que
obstaculizam a sua atividade, atua em si mesmo desenvolvendo a sua energias
naturais. A união debaixo de um único querer é necessária quando mais forças
contendem; mas o sentimento mais alto da liberdade reafirma-se vigoroso quando a
finalidade comum é alcançada. O cidadão romano que livremente discutia as leis no
114

Foro, no Senado, era aquele mesmo que oferecia as costas ao chicote do centurião
no momento de perigo. Isto prova claramente que os ordenamentos políticos surgem
por causas naturais e necessárias, e não sob o fundamento de um frio cálculo
racional.
No medioevo o retorno da barbárie determinou o despotismo feudal. A
liberdade manteve-se nos contrastes entre os senhores que conquistavam a sua
liberdade com a opressão dos outros. Contra a nobiliarquia feudal os reis buscaram
apoio das cidades e do povo. A vitória dos reis assinalou o ocaso da classe
nobiliárquica que, se foi primeiro um mal necessário, torna-se depois um mal
supérfluo. O absolutismo real deveria favorecer indiretamente o renascer da
liberdade. A opressão direta, pessoal, dos nobres, deu lugar à opressão indireta e
distante dos príncipes, para cujas finalidades de poder, melhor que a servidão
pessoal dos súditos, favoreciam a sua riqueza. A política do absolutismo foi toda
dirigida a favorecer a indústria, a atividade econômica dos súditos, para aumentar a
possibilidade da pressão tributária. Era uma política perigosa que favorecia a
liberdade e plantava os germes da rebelião. A esconjurá-la vem oportunamente a
doutrina política do Iluminismo com o seu princípio de que o governo surge para o
bem e para a felicidade da nação. Esta era a pior forma de despotismo, que dava
ilusão de liberdade ao mesmo tempo que soterrava as suas fontes.
Todavia, do próprio excesso do mal brotou o remédio e este foi representado
pelo progresso das consciências, do sentimento sempre mais vivo e difuso dos
direitos e da dignidade do homem, sobretudo pelo complexar-se e mecanizar-se dos
ordenamentos políticos. Era natural que em França, onde mais agudo manifestou-se
o contraste entre a ciência e a política iluminista, irrompesse a Revolução e fosse
inaugurada a nova ordem política pelos princípios da razão abstrata e da liberdade
formal, plena, ilimitada. A humanidade, caída no extremo do despotismo, buscou
salvação no extremo do racionalismo político. Mas a história ensina que um
ordenamento político racional não tem possibilidades de sucesso.
Nem por isso Humboldt desconhecia os benéficos efeitos da Revolução. O
seu valor histórico, mais do que dos princípios racionais, derivava do grau no qual
estes princípios poderiam influir sobre a realidade histórica, modificando-a e
transformando-a segundo as exigências ideais maturadas na consciência popular.
Estes efetivos benefícios podem avaliar-se à distância de tempo e lugar. “A
Revolução esclarecerá as idéias, ressuscitará toda virtude ativa, e os seus efeitos
benéficos estender-se-ão muito além dos confins da França” (idem, p. 16).
Todo acontecimento histórico, ainda que possa parecer irracional, inútil,
danoso, oculta em si os germes de futuros progressos. Pense-se (observa Humboldt,
p. 9) nas ordens religiosas, no regime feudal, em relação aos objetivos de cultura, de
liberdade que eles contribuíram para alcançar. Aquilo que em uma época possui
valor secundário e quase irrelevante, em uma época sucessiva adquire importância
de primeiro grau. E como na história, assim como no homem nas diversas idades da
vida, cada uma das quais o contém inteiro, mas apenas em um particular aspecto. A
realidade considerada nos seus momentos particulares é parcial, abstrata; apenas se
115

vista em seu conjunto, no nexo que a une ao passado e ao futuro, ela é verdadeira e
completa. Isto significa que as situações históricas, as ações, seja dos indivíduos,
seja da coletividade, possuem valor relativo e não absoluto; nunca são definitivas,
mas retornam em um processo formativo; por isso não se devem avaliar pelos
resultados transitórios, mas pela forças constantes que as produzem e que são
geradas incessantemente no seio do curso histórico.
O Ensaio de 1791 era um programa de vida e de estudo. Dúplice o critério
metodológico por ele seguido: o critério histórico elevado a critério de avaliação dos
fatos políticos; a idéia de liberdade, de humanidade, elevada a fim das instituições
na sua gradual realização histórica. Por isso Humboldt podia admirar a Revolução
não pelos seus propósitos de reconstrução nacional das relações políticas, não pelo
espírito igualitário, democrático, que a informava, mas pelos esforços heróicos de
todo um povo para realizar uma mais alta e humana condição de vida.
No Ensaio de 1791 ganhava relevo a tendência de fazer do homem, na sua
individualidade psicológica e histórica, o fator do progresso político. O ideal do
Iluminismo não era renegado, mas para a sua realização não mais se invocava o
Estado, mas as vivas, profundas energias operantes no indivíduo e na história. Era o
afastamento definitivo de Humboldt das correntes dominantes do pensamento
político. O homem abstrato dos empiristas e dos racionalistas Humboldt o substituía
pelas forças conscientes e inconscientes atuantes no indivíduo e na história. A
vontade geral de Rousseau, unidade de vontades abstratamente iguais, Humboldt a
substituía pela vida bem diversamente variada e complexa da nação. O Estado
kantiano, órgão da razão prática jurídica, união de indivíduos sob as leis do direito,
Humboldt o substituía pelo conceito do Estado como órgão de defesa, de segurança
da vida individual e coletiva. A necessidade do Estado é histórica, não racional,
sendo indiferente se ele historicamente serviu com mais freqüência aos interesses
dos governantes do que à liberdade dos governados. No contraste entre autoridade e
liberdade, entre a força extrínseca do Estado e a força intrínseca do indivíduo e da
nação, viu Humboldt a essência da vida política. Mas já neste primeiro ensaio
podemos ressaltar a tendência contrária ao Estado, porque se o Estado aparece a
Humboldt como uma necessidade histórica, ele também lhe parece como uma
realidade carente de valor ético. O Estado não resume em si todas as forças do
indivíduo e da nação: ele é externo àquele ou a esta; é um mecanismo que não
possui em si o princípio da vida, assim como a sua atividade é melhor dirigida para
conter a liberdade do que a favorece-la.

6.O ensaio sobre os limites da ação do Estado (1792); antecipações e


vicissitudes. A carta a Forster de Junho de 1792. Interpretações do ensaio
e o seu significado.
116

O ensaio sobre Os Limites da Acção do Estado segue por poucos meses a


carta a Gentz sobre a Constituição francesa89. A relação entre os dois ensaios foi
variamente interpretada. Spranger crê que o secundo seja inspirado em Kant, outros
falam de uma interrupção de desenvolvimento ideológico, de um regresso em
relação ao ensaio anterior: apenas encontramos nele acentuado um comportamento
de espírito que na carta a Gentz é apenas acenado. Esta carta foi a causa extrínseca
do novo ensaio. Sabemos que nos primeiros meses de 1792 Humboldt, encontrando-
se em Erfurt, discutiu o conteúdo daquela carta com Carlos von Dalberg,
representante do príncipe de Magonza naquela cidade. Dalberg representava o ideal
iluminista até o fanatismo. A sua confiança no Estado para a felicidade e o progresso
intelectual e moral dos cidadãos era ilimitada. Sempre viva e presente era nele a
idéia leibniziana, segundo a qual os germes da verdade, do bem, estão sepultadas na
alma do homem e apenas por meio da ação externa podem ressuscitar e desenvolver-
se. Religião e legislação eram portanto as instituições fundamentais para a educação
da humanidade e nenhum limite deveria antepor-se à ação do Estado e da Igreja. Na
sua veleidade de suceder ao eleitor de Magonza, Dalberg, discutindo com Humboldt,

89
O ensaio sobre Os Limites da Acção do Estado, foi completado na primavera de 1792, em Erfurt, quando
Humboldt se encontrava na casa de campo de Burgörner, em Fevereiro, junto dos parentes da mulher Carolina
de Dacheröden, filha de um magisrado da cidade. O ensaio tem a sua origem em uma longa carta de
Humboldt a Gentz de 9 de Janeiro de 1792. A desenvolve-lo e a levá-lo a terminar induziu-o Carlos von
Dalberg, coadjutor em Erfurt do príncipe eleitor de Magonza. Os capítulos I-VI, VIII, XV, são em grande
parte extraídos da carta a Gentz. O conteúdo essencial do capítulo VII deriva da primeira parte do ensaio
anterior Ueber Religion, enquanto a segunda parte desta última foi refundida e reelaborada no capítulo VIII.
Leitzmann presume com base no epistolário que também os capítulos IX-XIV tiveram uma elaboração
anterior (Conforme Spranger, W. von Humboldt und die humanitätsidee, 2ª ed., Berlim, 1928, p.51, nota). Da
carta de 1 de Junho a Foster resulta que o ensaio estava pronto há algumas semanas. Foi enviada para
publicação copia do manuscrito a Biester, diretor da “Berlinische Monatschrift” e depois outra cópia a
Schiller. As tratativas com os editores foram longas e difíceis. Depois do repúdio de Vieweg de Berlim,
Humboldt se dirige por meio de Schiller a Göschen de Lipsia. Mas quando, por obra de Schiller, as
dificuldades pareciam superadas, Humboldt, com o pretexto de remanejar o ensaio, retirou-o, renunciando à
publicação imediata. Isto resulta da carta de 18 de Janeiro de 1793 a Schiller. Humboldt não deveria mais
pensar em publicá-lo. Das duas cópias manuscritas do ensaio, aquela enviada a Biester perdeu-se. Dela
Biester extrai matéria para três artigos publicados na sua própria revista nos três últimos fascículos de 1792.
Esses correspondem aos capítulos V (cuidado do Estado pela segurança externa), VI (cuidado do Estado pela
segurança e pela educação dos cidadãos), VIII (do aperfeiçoamento dos costumes mediante a ação do Estado).
Schiller, ao restituir a Humboldt a cópia manuscrita que tinha junto de si, reteve seis folhas, cujo conteúdo
aparece no fascículo V da sua revista “Thalia”. Esses correspondem ao capítulo II do ensaio (o homem
considerado como indivíduo) e à primeira parte do III (cuidado do Estado pelo bem positivo do indivíduo).
Esta obra manuscrita tolhida de seis folhas foi reencontrada em 1850 em Ottmachau na Silésia no castelo que
a gratidão nacional havia doado a Humboldt. Esta cópia, integrada com as partes publicadas na “Thalia”, veio
à luz em Brelau, junto ao editor Trewndt, pelo cuidado de Edoardo Cauer, que a enriqueceu com uma
introdução ilustrativa. A edição apresenta duas lacunas em conseqüência da perda das seis folhas acima
recordadas: uma é de poucas linhas no final do capítulo I, a outra ao menos de duas páginas entre a primeira e
a segunda parte do capítulo III. Recordamos desta obra de Humboldt as duas traduções francesas de Marrast
(Paris 1866) e a de Chrétien (Paris 1867). Esta última nem sempre exata é precedida por um amplo estudo
sobre o autor, que integra aquele de Challemel-Lacour (La philosophie individualiste. Etude sur G. de H.,
Paris 1864). Na Itália a obra de Humboldt foi traduzida integralmente na Biblioteca di Scienze politiche
dirigida por A. Brunialti, Turim, 1891, vol. VII. Uma tradução não fiel ao texto, com lacunas, espantosamente
abreviada na parte especial (capítulos X-XVI), fê-la G. Perticone, Turim, Paravia, 1929.
117

apresentava projetos de reforma e de ação política destinadas a regenerar o povo, a


esconjurar o perigo da revolução.
Contra estas idéias, contra esta mentalidade, insurgiu-se Humboldt na carta a
Gentz. Aqui ele havia antecipado idéias e tendências que se encontravam em
profundo contraste com o espírito difundido e dominante na Alemanha, a pátria de
Leibniz e Frederico II, um teórico, o outro intérprete do Iluminismo político. Não
havia Humboldt no ensaio de 1791 sustentado que o governo iluminado
solucionava-se no despotismo mais opressivo (der ärgste und drükkende
Despostismus), que em política os resultados nada são enquanto as forças que os
produzem são tudo, que o Estado não cria as forças atuantes na história, e no
defende-las e garanti-las consiste a sua função e o seu limite? Estes mesmos motivos
encontram no ensaio de 1792 amplo, orgânico desenvolvimento.
O problema do Estado naqueles momentos de profundas alterações históricas
era o problema angustiante. O velho Estado iluminista alemão, minado nas suas
bases teóricas pela crítica kantiana, pelas correntes românticas, mostrava-se cada vez
menos capacitado a satisfazer as aspirações liberais: d’outra parte estas afirmavam-
se com a Revolução francesa nas formas e constituições políticas abstratas, que
Humboldt não aprovava. Entre os entusiastas da Revolução, como Gentz e Foster, e
os fanáticos do Iluminismo político, como Dalberg, Humboldt perseguiu uma via
própria e intuiu a solução destinada a prevalecer. Contra os primeiros defendeu a
exigência da individualidade concreta, contra os segundos reclamou do Estado
aqueles fins de segurança que haviam constituído a sua justificação histórica. A
origem e a natureza polêmica do ensaio levaram Humboldt a acentuar a crítica do
Estado iluminista, a exaltar o seu ideal de individualidade. Isto pode explicar o
quanto de excessivo e de contigente apresenta a demonstração da dupla tese.
Que a tese dos limites da atividade do Estado para a vantagem do indivíduo
engendra-se na mente de Humboldt bem antes do embate com Dalberg,
demonstram-no as notícias que hoje possuímos acerca dos seus estudos juvenis. Em
1786, quando freqüentava em Berlim o curso privado de direito natural do
conselheiro comeral Klein, as suas idéias políticas estenderam-se ainda
completamente na esfera do Iluminismo90. Mas já em 1789, depois dos estudos
completados em Gottinga, um diálogo com o seu mestre Dohm, da escola iluminista,
revela que ambos convergiam para a idéia de limitar a atividade do Estado à “esfera
da segurança” e isto não por amor de uma liberdade abstrata, mas pelo escopo
claramente expresso de fazer “o bem do homem” 91. Com isto o ponto de vista
iluminista não se podia dizer superado, porque era característica do iluminismo
elevar o “bem do homem” a fim do Estado 92. O diálogo de 1789 é apenas um
90
Resulta isto dos exercícios escolásticos que remontam a esta época. Conforme S.A. Kähler , W. Humboldt
und der Staat, cit. p. 135-136.
91
O diálogo é reproduzido no diário de Humboldt. Conforme Tagebücher publicado por Leitzmann em dois
volumes, Berlim, 1916-1918, vl. I, p.90.
92
Se a isto se reduz o ensaio de 1792, devería-se atribuí-lo, com Kähler, como escrito no espírito do
Iluminismo e, pelo método, em retrocesso em relação ao ensaio anterior. Portanto, o próprio Kähler é
constrangido a reconhecer que em muitas partes, por exemplo no capítulo V, o ensaio de 1792, está em
118

momento de transição no pensamento de Humboldt que, se havia acolhido o


princípio da segurança, ainda não possuía clara a relação entre o Estado e o
indivíduo. Apenas nos dois ensaios de 1791 e 1792, por influência de Kant e da
Revolução, o problema da individualidade concreta e não abstrata, coletiva e não
individual, afirmou-se como um problema central na sua especulação.
Mais do que o Estado e a sua atividade, o ensaio de 1792 parece ter por
objeto o homem (“der interessante Mensch”) e a sua formação espiritual. O próprio
Humboldt escrevia ao amigo Foster poucas semanas após haver terminado o
ensaio93. “A atenção com o homem como termo último é o princípio inspirador da
obra. O mais alto e harmonioso desenvolvimento de todas as energias humanas em
relação ao todo foi o escopo tido sempre presente e o único ponto de vista sob o qual
tratei a matéria inteira. A prosperidade de um país não é criação do Estado, mas
surge despertando, com a liberdade, as forças e as energias dos homens. A atividade
do Estado deve com maior vantagem dirigir-se a criar as mais diversas situações que
permitam ao homem desenvolver a sua personalidade. A situação mais vantajosa
para o cidadão no Estado deriva de ser ele conectado pelo maior número possível de
relações aos seus cidadãos, e de ser o menos possível perturbado pelo governo,
porque o homem isolado pode desenvolver-se tão pouco quanto o homem vinculado
na sua liberdade94. Apenas pela segurança impõe-se a intervenção do Estado. Todas
as outras coisas o homem produz por si, todo bem ele conquista por si, todo mal
evita por si ou associado em livre união. Mas a conservação da segurança é tarefa do
Estado, porque, originando-se de cada luta sempre uma nova luta, torna-se
necessário um poder soberano irresistível, e é este o caráter autêntico do Estado”.
O conteúdo desta carta a Foster permite avaliar a profunda alteração de
pensamento de Humboldt em relação a 1786. De uma supervalorização da função
educativa do Estado, passou à negação de qualquer intervenção sua na educação do
homem.
A carta a Foster pareceu a confirmação explícita da opinião segundo a qual o
ensaio só negativamente possui por objeto o problema do Estado, enquanto no seu
significado positivo ele é a celebração dos direitos do homem, assim para alçar-se
como expressão típica daquele individualismo filosófico que deveria encontrar larga
acolhida entre os escritores políticos liberais do século XIX. O próprio fato de que a
obra foi descoberta e difundida em 1851, quando Humboldt era quase ignorado,
contraste com o espírito do Iluminismo. Conforme S.A. Kähler, Einleitung, cit., na seleção dos escritos de
Humboldt, p. 19-20.
93
A carta é de 1º de Junho de 1792, e pode-se lê-la em Kähler (W. von Humboldt und der Staat, cit, p. 136-
137).
94
Este mesmo pensamento havia Humboldt expresso no seu Diário já em 1789: “Todo homem existe
propriamente por si: o desenvolvimento de indivíduo para indivíduo, segundo as forças e as atitudes que lhe
são próprias, deve constituir o único escopo de toda educação humana. Nem sempre se pode buscar este
objetivo diretamente, porque a educação mesma do indivíduo implica sempre em um socializar-se, isto é, no
vínculo com o todo”. Conforme Tagebücher, cit., em 5 de Outubro de 1789. Recordando esta passagem,
Kähler observa que com isso Humboldt teria demonstrado considerar a sociedade como um mal necessário.
Isto deve ser afastado, admitindo-se que para Humboldt as relações sociais são a condição necessária para o
desenvolvimento intelectual e moral do indivíduo.
119

sobretudo como escritor político, não foi estranho a tal interpretação. Humboldt foi
quase de um golpe removido do seu ambiente natural e transportado a um clima
histórico em tudo diverso. E foi, por este ensaio, associado aos representantes do
individualismo político estremo, aos adversários declarados do Estado, sobretudo a
Mill, a Spencer, isto é, a homens, a orientações as mais contrastantes com a sua
formação espiritual95.
Na Alemanha, onde o culto a Humboldt manteve-se vivo antes e depois do
ensaio, prevaleceu a tendência de compreende-lo em contraste com as correntes
históricas e românticas, a relacioná-lo com a influência kantiana 96. Com isto
terminava por se compreender o ensaio como uma obra de exceção na produção de
Humboldt, em contraste não apenas com os tempos, mas com aquelas que deveriam
revelar-se em época posterior as suas mais verdadeiras e profundas preferências
políticas. Neste divórcio com o tempo e consigo mesmo buscam muitos a razão
inconfessada da publicação ausente da obra.
Ainda recentemente Kähler ao refazer a história do pensamento político de
Humboldt, considera o ensaio uma derivação em relação ao método e à ideia contida
na carta de 1791 a Gentz e reafirma “o estremo individualismo, o filosófico
anarquismo que constitui o espírito do ensaio”97. A forma abstrata na qual Humboldt
expressou o seu pensamento, as afirmações programáticas contidas na introdução,
confirmam para Kähler esta interpretação. Analogamente Spranger sustenta que o
ensaio aparece ao próprio Humboldt como uma pura teoria filosófica em sentido
iusnaturalista, como aquela que diz respeito a uma abstrata, absoluta impossibilidade
fática98. Esta interpretação comum do ensaio de 1792 não nos parece a verdadeira.

95
Como seguidor da escola constitucional francesa, discípulo de Necker, de Mirabaeu, Humboldt foi celebrado
em França por causa deste ensaio. Conforme, neste sentido, Laboulaye, L’Etat et ses limites, Paris 1863.
Segundo Challemel-Lacour (La philosophie, cit., p. 74) o ensaio foi escrito para a França. Para Chrétien
(introdução à tradução francesa cit.) o ensaio foi inspirado na parte prática pela Revolução francesa, na parte
especulativa por Kant, o que o remete a Leroy-Beaulieu na obra L’Etat moderne et ses fonctions, Paris, 1889.
Segundo Laboulaye, o ensaio de Humboldt teria inspirado o de Mill, Sobre a liberdade (1859). Também na
Itália Humboldt foi geralmente incluído entre os clássicos do liberalismo político. Neste sentido o recordaram
e o exaltaram Minghetti, Luzzatti, Barzellotti. Conforme este último a introdução (p. XXVI) à edição italiana
da obra de Spencer, L’individuo e lo Stato, Città di Castelo, 1901. Brunialti introduziu o ensaio de Humboldt
no vl. VII (Serie I) da Biblioteca de Scienze politiche (Torino, 1891) ao lado das obras dos teóricos do Estado
de Direito naquele momento favorecidos (Bähr, Gneist, Leroy-Beaulieu) e o fez acompanhar, como apêndice,
do ensaio acima citado de Laboulaye. Ainda neste sentido entende Perticone o ensaio de Humboldt na
premissa à introdução italiana cit.
96
Cauer na introdução à primeira edição do ensaio revela o dissídio entre a tese individualística por ele
sustentada e a tendência oposta da consciência política alemã: “o nosso ideal político”, escreve, “é todo outro
daquele de Humboldt”. Na sua nota monográfica sobre Humboldt (W. von Humboldt Lebensbild
u.Charakteristik, Berlim, 1856) Haym, julgando o ensaio, o exalta “die stark ausgepräte Neigung für
individuelle Eingenthumlichkeit, die hohe Achtung für die Freiheit und die innere Würde des Menschen... die
stark hervortretende Sinnlichkeit, auf deren Spitze sich der sublimste Spiritualismus erhebt” (p.65). Com
Spranger acentua o caráter ante-romântico e kantiano do ensaio.
97
Conforme Kähler, Humboldt und der Staat, cit., p. 138. Também neste sentido Spranger, W. von Humboldt
und Kant, cit. (1909), p. 51. Este, depois de haver ressaltado que o ensaio foi escrito sob a influência de
Rousseau, de Mirabeau, de Kant, e que o método seguido pertence à época do iusnaturalismo, afirma que ele
representa um retrocesso em relação ao anterior, todo ele penetrado pelo espírito histórico.
98
Conforme idem, p. 52.
120

Certamente ele não representa o pensamento definitivo de Humboldt em matéria


política, nem podem excluír-se comportamentos mentais antiquados, concessões aos
métodos e às doutrinas dominantes. Mas como não acreditamos que ele possa
compreender-se como a expressão clássica da concepção liberal e individual do
Estado, assim negamos que ele pertença à construção abstrata do Estado. A sua
concretude resulta do princípio de individualidade, que constitui o seu fundamento,
da tendência a superar o dualismo entre indivíduo e Estado, entre liberdade e
autoridade, a solucionar o problema político independentemente daquele jurídico,
em função da coletividade nacional. Tudo isto torna-se evidente por um exame das
doutrinas mais características expostas no ensaio e que apenas se compreendem em
relação às exigências espirituais, às direções de pensamento, aos novos problemas
que o grande acontecimento revolucionário havia desencadeado.

7.O capítulo introdutivo ao ensaio de 1792. Como se coloca o problema


político de Humboldt. A relação entre a individualidade e o Estado.
Revolução ou reforma. A solução do problema político nas Constituições
da antigüidade clássica e dos Estados modernos: analogias e diferenças.
Divórcio sobre a extensão da ação do Estado em relação ao indivíduo.
Humboldt contra o abstrativismo político. A modernidade de seu
pensamento político.
O estudo do ensaio sobre os Limites da acção do Estado foi feito o mais
abstratamente, com a preocupação por problemas e por condições históricas que não
eram exatamente aqueles do autor. Tratando-se de um escritor original como
Humboldt, o apego ao seu pensamento também quanto às expressões é necessário.
Nele, como nos escritores verdadeiramente maiores, a riqueza e a profundidade do
pensamento conjugam-se com a propriedade e a variedade das formas. Presente está
em Humboldt a consciência de tratar com métodos e pontos de vista novos o
problema político que os acontecimentos políticos em França haviam levado em
1792 ao primeiro plano.
Desde a introdução ao ensaio ele dirige a sua crítica às mais conhecidas
constituições da época, aos tratados comuns de direito público, os quais, antes de
moverem-se para o problema prejudicial dos fins do Estado e dos limites da sua
ação, punha toda atenção em determinar a parte cabente aos singulares no governo
do Estado, em descrever os vários ramos da administração pública, na pesquisa dos
meios para impedir a mútua usurpação dos direitos. Mais do que o problema do
Estado, estava em seu coração o problema dos soberanos direitos do indivíduo, que
o Estado não tivesse valor em si e devesse definir-se em função do direito que era
chamado a defender. Por isso ao problema fundamental do Estado ou não davam
resposta ou propunham soluções incompletas e insuficientes.
Para Humboldt o problema político debruça-se sobre dois objetos
fundamentais: sobre a Constituição do Estado e, portanto, sobre a relação entre
quem governa e quem obedece, de um lado e, do outro, sobre a determinação da
121

esfera da sua atividade. Dos dois objetos o verdadeiro e essencial é o segundo, ao


qual o primeiro serve como meio. Enquanto os publicistas da época partiam do
indivíduo e dos seus fins para compreender o Estado, Humboldt definiu a atividade
do Estado em relação à livre atividade individual.
Portanto, não se pode sustentar que fosse a intenção de Humboldt negar a
razão de Estado , de remover a autoridade, de opô-lo como obstáculo intransponível
ao desenvolvimento da individualidade. A intenção de Humboldt foi antes a de
salvaguardar as exigências da individualidade contra os perigos derivados do
desconhecimento dos fins do Estado e dos limites nos quais pode utilmente
desenvolver a sua ação. O desenvolvimento e a defesa da individualidade contra
verdadeiras ou presumidas exigências do Estado constituíam também para
Humboldt o maior problema da época; mas ao resolve-lo ele perseguiu via própria,
porque contra a política do Iluminismo dominante na Alemanha ele destacou o erro
e o dano derivados de confiar à providência do Estado a sorte da individualidade;
contra o constitucionalismo francês, disposto a sacrificar o Estado aos direitos do
homem, fez ver o perigo bem maior da anarquia.
Todavia, o divórcio de Humboldt das correntes políticas do tempo não
limitava-se ao problema do Estado; este era ainda mais profundo em relação ao
problema da individualidade. Iluministas e constitucionalistas concordavam em
compreende-la abstratamente. O homem era por eles concebido na genérica
tendência à felicidade, na sua abstrata aspiração ao bem, ao justo, extirpado de
qualquer particularidade, de tudo aquilo que o distinguia do outro, que o
caracterizava como indivíduo. Pareceu sabedoria suprema reduzir o homem à
uniformidade e à igualdade das leis e da ação política. Mas por isso mesmo o
indivíduo, integrando o Estado, sacrificava “o caro e o próprio”, para usar a
expressão aristotélica, negava-se como indivíduo no padrão de cidadão. A noção
concreta do indivíduo era para Humboldt o problema prejudicial da ciência política,
intimamente conexo ao problema dos fins e dos limites do Estado.
A individualidade segundo Humboldt afirma-se essencialmente na atividade
humana em relação a um determinado fim. O homem forte busca a felicidade não na
posse, no repouso, mas na busca com todas as suas forças físicas e morais da meta,
ainda que esta a ele se represente nas formas ilusórias da fantasia e do ideal. A vida é
ação, enquanto a inércia é a morte do espírito. O homem inculto busca prazer na
variedade e multiplicidade dos objetos; mas o homem educado às formas espirituais
de vida concentra-se em um único objeto e por isso luta até a vitória, despreocupado
com o prêmio, indiferente aos resultados. Por isso o homem ama o domínio mais do
que a liberdade, prefere os sacrifícios e as preocupações que acompanham a
conquista e a conservação da liberdade, do que o gozo desta. Portanto, a liberdade
vem compreendida como possibilidade de exercitar uma atividade variada,
indeterminada; a atividade política é forma particular, nem por isso menos real, de
liberdade, a aspiração na qual se resolve às mais das vezes no sentimento de sua
privação.
122

Portanto, se o problema da individualidade é o problema da atividade humana


não obstruída no seu desenvolvimento, a investigação relativa aos fins e aos limites
da ação do Estado assoma como investigação fundamental, como fim último de toda
política. Porque apenas em relação à natureza e às formas da individualidade é posto
e solucionado o problema político. Assim o estabelecera a Revolução francesa, mas
o havia solucionado com recurso aos métodos revolucionários que Humboldt não
aprovava.
Humboldt não escondeu a sua admiração pela Revolução, pelas verdades por
ela proclamadas, pela aspirações às quais buscava satisfazer. Com clara referência
aos acontecimentos em França, fala no capítulo introdutivo ao ensaio “da espada
armada da nação que limita o poder material do soberano” e chama “belo e nobre o
espetáculo de um povo que na plena consciência dos seus direitos de homem e de
cidadão rompe os seus grilhões”99. No ensaio de 1791, Humboldt havia destacado o
erro dos legisladores franceses de construírem o novo Estado segundo puros
princípios racionais, abstraindo dos fatores históricos e das forças morais que
conferem à Constituição vigor e estabilidade. No novo ensaio ele acentua o seu
divórcio dos métodos revolucionários para a efetivação das reformas políticas. Ele
não ignora que as revoluções não se verificam sem dano e sem o concurso de
circunstâncias fortuitas e excepcionais; mas, ainda que se abstraia isto,
desenvolvendo pensamentos contidos no ensaio anterior, ele aproxima as
instituições políticas aos produtos da natureza os quais são tanto melhores quanto
mais são graduais e espontâneos: “A semente que a terra acolhe e nutre,
imperceptivelmente produz colheitas mais abundantes do que a fúria do vulcão,
certamente necessário, mas sempre prejudicial. A este argumento de caráter geral e
de fundo naturalístico, Humboldt agregava, em confirmação de sua opinião,
argumentos informados pelo seu profundo senso histórico e político. Todo governo,
qualquer que seja a sua forma, pode sem comoção, sem atos de violência, limitar ou
estender a sua atividade, alcançando por esta via mais seguramente a sua finalidade.
Ao espetáculo de um povo em revolta pela defesa do seu direito, ele prefere o gesto
de um príncipe, que em homenagem à lei, não constrangido pela necessidade,
despedaça os grilhões, concede a liberdade, e isto o faz não por um sentimento de
benevolência, mas em cumprimento de um absoluto, imprescindível dever.
Mais ainda do que na boa vontade do príncipe, Humboldt deposita confiança
na plenitude e maturidade dos tempos, os quais, desenvolvendo o sentido da
individualidade e da dignidade humana, são particularmente favoráveis para
restringir nos justos limites a atividade do Estado, posto que, se tais restrições não
eram possíveis quando, por defeitos no indivíduo quanto ao seu conhecimento do
Estado, o mesmo deveria agir sobre massa amorfa, em tempos iluminados o
indivíduo, na plena consciência das suas possibilidades, deveria receber a tutela do
Estado como intolerável. Portanto, a investigação dirigida a determinar os limites da
ação do Estado nas novas condições de civilidade e de educação individual não pode
99
Ainda em 9 de Novembro de 1792 ele escrevia a Brickmann: “A verdade da Revolução francesa
permanecem eternamente verdadeiras ainda se 1200 loucos a profanem”.
123

senão favorecer uma maior liberdade de energias, uma maior verossimilhança de


situações. A liberdade alcançada com a alteração revolucionária da constituição,
observa Humboldt, está para a liberdade obtida do Estado já constituído como a
esperança está para o prazer, a possibilidade para a realidade.
Historicamente, nenhuma constituição antiga e moderna solucionou o
problema dos limites da atividade do Estado segundo uma ordem racional e
constante de princípios. Quando muito procurou-se de restringir a liberdade
individual seja para organizar e consolidar o Estado, seja em função da preocupação
pela educação física ou moral da nação. Nas antigas constituições a vida privada
aparece como um aspecto da vida política. A intrínseca debilidade das constituições
antigas, a sua imperfeição técnica, deveria induzir os legisladores a recorrerem a
todos os meios para terem consigo a vontade da nação, adaptando a ela a
constituição. Se, como havia ensinado Montesquieu, todos os Estados republicanos
deveriam, para sustentar, confiar na virtude dos cidadãos, não é menos verdade que
a liberdade privada favorece-se da decadência da liberdade política, enquanto a
segurança segue a sorte desta última. A grande importância atribuída pelos antigos
ao querer moral do cidadão explica como para eles o Estado aparece sobretudo
como um instituto de educação.
Na tendência das leis e constituições modernas em dar forma determinada
para a vida privada é evidente o propósito de fazer o bem dos indivíduos. A alteração
em relação aos antigos está em razão da maior estabilidade intrínseca das
constituições modernas, da sua relativa independência do caráter da nação, da
influência dos teóricos educados com vistas ao horizonte amplo, do grande número
de invenções que permitiram um mais favorável, fecundo, aproveitamento das
energias nacionais, sobretudo do conceito religioso segundo o qual os governantes
respondem a Deus pelo bem moral e material dos súditos.
Malgrado a tendência das constituições hodiernas em subtraírem a vida
privada da ação do Estado, numerosas restrições da liberdade individual são nelas
originadas pela necessidade de arrecadar tributos, mas são justificadas como
antigamente pela necessidade de conservar a constituição. Porém, sempre existe uma
notável diferença em termos das limitações da liberdade entre os antigos e os
modernos. Os antigos limitavam a liberdade em razão dos fins éticos e, se de um
lado as limitações por eles introduzidas, agindo sobre a vida interior, eram mais
graves e opressivas e produziam, para a vida e educação em comum, uniformidade e
unilateralidade de hábitos e de costumes, do outro lado elas despertavam as energias
espirituais, favoreciam o seu desenvolvimento variado e múltiplo, formavam o
homem forte física e moralmente. As limitações dos modernos são de certo menores,
tocam o homem “mais naquilo que tem, do que naquilo que é”, preocupam-se menos
em formar o homem interiormente e mais de impor-lhe uma determinada ordem de
idéias, assim que ao dano da unilateralidade agregam aquele de sufocar as energias
do espirito, as condições de seu desenvolvimento. Em conseqüência disto, os
grandes progressos realizados pelos modernos no campo da técnica, da indústria, da
prática não encontram como antigamente correspondência em um rico e variado
124

desabrochar de vida interior. O homem abstrato interessa bem mais aos modernos do
que o indivíduo concreto; o universalismo ético-jurídico atrai mais as mentes
singulares; e enquanto os antigos buscavam a felicidade do homem na virtude, os
modernos desgastavam-se em vão separando a virtude da felicidade. O próprio Kant,
opondo a felicidade ao dever, representa com argumentos artificiosos a felicidade
como prêmio estranho à virtude, não como bem próprio do homem. Ao ideal moral
de Kant, Humboldt prefere aquele de Aristóteles, segundo o qual o bem de todo ser
consiste em viver de acordo com a natureza que lhe é própria. O homem dotado de
razão, quanto mais a seguir, quanto mais será feliz100.
Através das páginas introdutivas delineia-se o pensamento de Humboldt em
relação ao problema político. Deste viu a união indissolúvel entre o princípio da
individualidade e a ação do Estado. O divórcio permanecia, e profundo, entre
aqueles que consideravam a liberdade como condição de desenvolvimento da
individualidade e queriam a ação do Estado limitada à segurança, e aqueles, e eram a
maioria, que elevavam a fim supremo do Estado o bem físico e moral do indivíduo.
Era o divórcio entre constitucionalistas e jacobinos em França, entre aqueles que
eram educados pelos princípios liberais de Locke e de Montesquieu, e aqueles que
sobre a trilha de Rousseau compreendiam como na antigüidade o Estado e a
atividade política como meio para instaurar uma ordem ética de justiça, para forjar o
novo homem de razão em oposição ao homem natural. Humboldt deveria alinhar-se
com os primeiros, mas não inteiramente, porque partia de um conceito da
individualidade que não era aquele do liberalismo abstrato dominante, mas o
aproximava das correntes políticas românticas.
O ensinamento de Maquiavel, que a arte do governo deve fundar-se sobre o
conhecimento do homem “efetivo”, isto é, do homem considerado na sua dinâmica
passional, nas suas aspirações ideais, nos seus cálculos racionais, nas circunstâncias
externas do seu agir, havia feito nos séculos posteriores uma ciência política na qual
o homem, que era o seu precípuo objeto, era considerado na sua abstrata natureza
empírica ou racional. Não se deve esquecer as necessidades históricas e doutrinais às
quais esta direção de pensamento político atendia. Desejava-se subtraída a atividade
política ao arbítrio do príncipe e da razão de Estado, para reconduzi-la à unidade e
estabilidade dos princípios; e isto em uma época de luta do indivíduo contra o
despotismo real, significava reconduzi-la em consideração ao homem, das
exigências fundamentais da sua natureza, elevada à dignidade de direito.
Esta abstração empírica ou racional pelo movimento de pensamento era
traduzido na prática de governo e revelava-se aos olhos de Humboldt com
características particularmente danosas na política do Iluminismo. Nos países onde a
doutrina e a prática constitucional eram informadas pelos princípios de Locke,
menor era o perigo, porque o indivíduo, nos limites estabelecidos pela lei,
essencialmente formal, não era vinculado no exercício de sua atividade. O seu
100
Humboldt recorda a obra ética de Kant até então publicada e precisamente o Fundamento da metafísica dos
costumes (1785) e a Crítica da razão prática (1788). De Aristóteles cita o passo correspondente da Ética a
Nicômaco, livro X, capítulo 7, final.
125

direito abstrato servia apenas para defende-lo contra os atos ilegítimos do Estado.
Mas, como na Alemanha, onde o Estado não reconhecia limites à sua ação e se
irrogava a tarefa de regular a atividade do indivíduo em todas as suas formas e
direções, inclusas aquelas atinentes à sua felicidade privada, a livre explicação da
individualidade era simplesmente negada e a atividade do Estado substituía em
cheio aquela do indivíduo.
Isto explica como no ensaio de 1792 o problema da individualidade
transforma-se no problema fundamental. Ao resolve-lo, Humboldt percorre as
correntes reativas à concepção abstrata da personalidade retomada pela Declaração
dos direitos colocada como preâmbulo da Constituição de 1791. Por isso ao
problema da individualidade é dedicado o segundo capítulo do ensaio.

8.O capítulo II do Ensaio. O problema e os fatores da individualidade. A


originalidade. Influência kantiana: a distinção entre matéria e forma.
Influência de Goethe: a individualidade como organismo.
Individualidade e civilização. Os dois postulados prejudiciais de toda
ciência política. Humboldt e o iusnaturalismo.
A novidade do pensamento de Humboldt no compreender o conceito de
individualidade, deveria despertara a admiração de Schiller, a ponto de crer que
pudesse extrair do manuscrito de Humboldt o capítulo segundo para publicá-lo
integralmente na sua revista, a “Thalia”. Era, pensamos nós, a homenagem feita ao
percursor da doutrina romântica da individualidade conexa à idéia da universalidade
humana. Enquanto o século XVIII inclinava-se a compreender o destino do homem
em relação às suas tendências e inclinações naturais, Humboldt tratou de derivá-la
da razão eterna, que penetra e governa a realidade universal. Com isto ele afirmava a
necessidade de reinterpretar o homem, a sua existência, a sua finalidade, em uma
ordem objetiva, que o individualismo ético-jurídico havia destruído. As tendências
empíricas são a revelação de uma individualidade mais profunda e objetiva, que
resplandece na sua verdadeira luz quanto mais as suas atividades desenvolvem-se
harmônicamente ordenadas em um todo.
À formação da individualidade concorrem, segundo Humboldt, dois fatores
bem distintos: a liberdade e a multiplicidade de situações. Também para ele, como
para Kant, a liberdade é autonomia, é atividade sintética que dá unidade e forma à
vida interior. Todavia, o homem mais livre e independente, colocado em condições
uniformes de vida, não poderia desenvolver-se inteiramente. Para o seu pleno
desenvolvimento é essencial a multiplicidade das condições, que apenas em parte é
o produto da nossa liberdade, porque esta pressupõe a resistência que à nossa
atividade realizadora opõe o mundo externo. Na relação entre liberdade e
multiplicidade de condições é velada por Humboldt a relação metafísica entre
liberdade e necessidade, que se distinguem como termos opostos, mas que se
implicam e substancialmente se identificam.
126

Ao integral e harmônico desenvolvimento da individualidade parece opor-se a


necessidade de acentuar e de evoluir em uma única direção a atividade espiritual
para evitar a sua dispersão e, portanto, o seu exaurimento. O homem, para evitar o
dano de um desenvolvimento unilateral, mais do que multiplicar os objetos sobre os
quais age, deve em cada fase de sua existência recapitular e intensificar as energias
com as quais age, avivando a atividade adormecida ou acalmada, associando as
formas mais variadas às novas e atuais.
Os efeitos, que para o desenvolvimento da individualidade se produzem pela
união do passado e do futuro no presente, surgem na sociedade pela união com os
outros. O indivíduo com as suas forças não pode na vida realizar toda a sua
humanidade; por isso deve extrair das relações com os outros o conteúdo da sua
própria consciência. Aqui ocorre aquilo que tem lugar na união entre dois sexos, que
separados são débeis e imperfeitos, unidos integram-se, potencializam-se e formam
o caráter. Por isso os antigos legisladores, sobretudo gregos, desfrutaram ao fim da
educação o amor e a amizade.
As vantagens da associação são medidas pelo grau no qual os indivíduos
conservam nela a própria independência e a intimidade do vínculo que os une. Sem
a força e a intimidade da união não há mútua compreensão; sem autonomia um não
pode apropriar-se das qualidades que admira no outro. Estas duas condições, que
apenas na aparência se elidem, pressupõem, de um lado, a energética atividade dos
indivíduos, do outro uma diversidade entre eles que não seja tão grande que
incompreensível, não tão pequena a tolher o estímulo de fazer nosso aquilo que nos
outros nos atrai.
Da união da liberdade com a multiplicidade gera-se a originalidade, à qual o
homem deve objetivar para ser verdadeiramente grande, para influir os seus
semelhantes. A própria natureza inanimada, que obedece a leis externas, imutáveis, a
nós estranhas, revela-se com características originais ao homem original, ao qual a
plenitude e a beleza da natureza manifestam-se no grau em que a revive e a contém
em si. Em medida bem maior deverá revelar-se original o homem ao exprimir a sua
própria interioridade espiritual.
Não pode escapar a origem e o caráter romântico desta concepção da natureza
como espiritualidade, que vive com o homem e no homem, com ele compreendida
na única vida da realidade. Nesta concepção estava implícita a exigência realista de
identificar na atividade do eu o aspecto objetivo e subjetivo do real101.
Este segundo capítulo do Ensaio apresenta particular interesse pela influência
e orientações da leitura de obras recentes de Kant e de Goethe. Sabemos por
Spranger que em 1791 Humboldt na quietude de Burgörner retornara ao estudo de
Kant e pela primeira vez havia tomado conhecimento da Crítica do Juízo, publicada
em 1790102. De Kant Humboldt extrai a distinção entre matéria e forma e faz a sua
101
O ensaio de Schiller (Ueber naive und sentimentalische Dichtung), no qual a concepção da natureza como
espiritualidade era particularmente afirmada, foi publicada apenas em 1796.
102
Conforme Spranger, Wilhem von Humboldt und Kant, cit., p. 65 e ss. Em uma carta a Jacobi de 22 de
Agosto de 1791 Humboldt escrevia: “Ocupo-me novamente, sobretudo, da metafísica. Propus-me de submeter
as minhas próprias convicções a uma nova e séria revisão e de reestudar integralmente o sistema kantiano”.
127

aplicação ao conceito de individualidade. Kant havia afirmado que a experiência era


o produto de uma síntese do conteúdo sensível da consciência com a atividade
formal do intelecto. Analogamente, Humboldt afirma que a individualidade é síntese
de matéria e de forma, isto é, de sensações, representações, sentimentos, unificados
pela idéia. E como o processo cognoscitivo desenvolve-se por meio de sucessivas
generalizações e unificações, assim a individualidade desenvolve-se pelas sucessivas
sínteses espirituais, cada uma das quais transforma-se em matéria de sínteses mais
elevadas. O valor da individualidade é medido, por um lado, pela riqueza e
multiplicidade dos sentimentos, por outro, pela intimidade do liame que os une. Na
maior individualidade a natureza e o espírito alcançam a unidade e a fusão mais alta
e perfeita: “Ein Götterkind ist nur die Frucht unsterblicher Eltern” (um filho divino
não pode ser senão o produto de pais imortais).
Todavia a distinção kantiana da forma e da matéria nas suas aplicações ao
conceito de individualidade ilumina-se e preenche-se de novo significado sob a
influência das geniais intuições de Goethe sobre a vida e sobre a natureza dos
organismos vegetais. Humboldt recorda e desfruta para os seus fins o ensaio sobre a
Metamorfose das plantas, que Goethe havia publicado em 1790103. Dele, ainda mais
do que de Kant, Humboldt extraiu a concepção orgânica da individualidade. Sem
dúvida, na Crítica do Juízo, Kant havia posto e esclarecido a distinção entre
mecanismos e organismos, mas havia negado ao nosso intelecto, essencialmente
analítico e discursivo, a capacidade de conhecer o processo pelo qual constitui-se a
unidade orgânica104. Apenas um intelecto intuitivo, o arquétipo, como Kant também
o chama, estaria em condições de compreender o processo pelo qual a idéia, ou seja,
o todo, vive nas partes e revela-se ao mundo sensível.
Goethe, por meio de longas, profundas experiências, estava convencido de
que as diversas partes constitutivas dos organismos naturais eram transformações de
um organismo tipo, originário, que podia estudar-se em si, em idéia, abstraindo as
formas nas quais revela-se no tempo e no espaço. Exprime este organismo originário
a essência dos organismos vivos, o seu princípio ativo determinante, ao qual se

No Capítulo VIII do ensaio Humboldt cita repetidamente a Crítica do Juízo.


103
Conforme para notícia sobre esta obra a edição da obra de Goethe na Deutsche national Litteratur, XXXIII,
Nauturwissens. Schriften, Bd. I, herausg. von R. Steiner. Notável o prefácio de Schröer. As relações de
Humboldt com Goethe remontam a esta época e certamente foi o seu intermediário von Dalberg (1744-1817)
conforme supra p. 165. Goethe o chama de amigo, protetor, colaborador fiel do seu trabalho sobre a
metamorfose das plantas, e descreve breve, eficaz traço da sua figura: “Era um homem que havia bem
merecido, em tempo de paz, a fortuna à qual parecia destinado; que com a sua incansável atividade era digno
de ocupar os mais altos cargos, de gozar-lhe as vantagens. Bom, colaborador, útil com todos: não se podia
sempre consentir no seu modo de pensar, mas sempre se o encontra particularmente pleno de espírito e de
grande ajuda. Na minha atividade científica devo muito a ele, que soube excitar as minhas meditações sobre a
natureza, posto que ele tinha a capacidade de mediar com adequadas expressões verbais o verdadeiro intuito
de se fazer compreender” (conforme Obras, cit., I, p. 100-101).
104
Na Crítica do Juízo (trad. italiana, Bari, 1907, p.267) Kant escreve: “O nosso intelecto possui isto de
particular em relação ao juízo: que no conhecimento que este fornece o particular não é determinado mediante
o geral e portanto o primeiro não pode derivar do segundo”. Isto significa que nas formações orgânicas o
intelecto não colhe a idéia do todo e deve referir o nexo entre o todo e as partes de uma causa externa,
estranha a ambos.
128

reduzem os diversos órgãos, malgrado a aparente variedade das formas. Enquanto no


mundo inorgânico os corpos produzem-se uns dos outros por uma ação mecânica
externa, nos organismos o princípio que os move e os organiza é interno, ideal, pelo
qual a experiência é o produto da idéia e esta pode apenas ser percebida pela razão,
não pelo intelecto. Isto não significa que também os organismos não estejam sujeitos
às leis e às influências do mundo externo; apenas significa que tais influências são
dominadas e assimiladas pela energia formativa intrínseca ao organismo. Nas
plantas o princípio formativo não possui realidade psíquica, não existe como centro
determinativo; vive e se expande exteriormente. Os diversos órgãos, o cálice, a
corola, o estame, o pistilo, a semente, o fruto, resultam das transformações de um
órgão primitivo, que para Goethe é a folha. A planta, portanto, resolve-se em uma
individualidade complexa, constituída por muitas individualidades simples. Cada
órgão seu, considerado a partir do princípio que o informa, é idêntico ao outro.
Humboldt ficara profundamente influenciado por esta doutrina de Goethe,
invocando-a em confirmação das intuições sobre a natureza da individualidade. Na
flor que se transforma em fruto, no fruto que gera a semente, da qual se desenvolve
o broto que se cobrirá de flores, Humboldt vê reproduzido o processo de formação
da individualidade, no qual a forma vivifica e transforma a matéria e esta, feita mais
rica e diversificada, conjuga-se em nexo sempre mais íntimo para transformar-se em
matéria de uma forma ainda mais perfeita. A maturidade é para o indivíduo aquilo
que é a florescência nas plantas, isto é, o momento culminante do desenvolvimento.
Também o fruto mais simples e rústico faz pressagiar a beleza da flor que
desabrocha para morrer. Tudo aquilo que nasce é desagradável e imperfeito e apenas
paulatinamente ganha forma atraente. Isto pode revelar-se pelo constituir-se da
haste, em conter as tenras folhas a tendência para unirem-se, para comprimirem-se
entre si, até que na formação do cálice parecem alcançar o termo último do seu
desejo. Não de outro modo desenvolve-se a individualidade do homem, com a
diferença que, enquanto o ciclo de desenvolvimento das plantas é uniforme e
renova-se periodicamente imutável, no homem o desenvolvimento é contínuo e
progressivo. Os seus produtos não morrem como as flores da árvore, mas geram
frutos sempre mais copiosos e perfeitos, até perder-se no infinito que oculta do olhar
os frutos mais altos e atraentes. Do desenvolvimento é que o homem trás para fora
apenas a semente, e ele a fecunda com a sua atividade criadora. Na medida em que
esta é vigorosa e original, a semente dá frutos melhores.
Para Humboldt como para Goethe a individualidade é sinônimo de orgânico
e, como nos organismos vegetais, assim no homem a forma, isto é, a idéia, é aquilo
que dá vida e direção ao conteúdo sensível da consciência. A riqueza e variedade da
vida espiritual fornece à atividade organizadora indefinidas, sempre novas, sempre
mais perfeitas possibilidades de desenvolvimento. Na eterna sucessão da matéria e
da forma é reproduzido o íntimo, indissolúvel conúbio da dúplice natureza humana.
A individualidade que de tal consórcio desenvolve-se será tanto mais original,
quanto mais forte forem os elementos que a constituem. Depois disto compreende-se
como para Humboldt o ideal maior do homem é aquele de viver em um Estado que
129

lhe permita desenvolver-se inteira e livremente. As próprias lutas que rompem


inevitáveis entre os homens, naturalmente e moralmente levados a associarem-se,
são honradas e gloriosas, manifestam e a um tempo desenvolvem a atividade
humana, se são lutas de seres livres e iguais em campo aberto, não de seres em um
circo fechado.
A nossa admiração pela antigüidade greco-romana surge do espetáculo que
ela nos apresenta de homens em luta contínua contra a natureza, contra outros
homens. Em tais lutas temperavam-se os carateres e as qualidades e forças
originárias encontravam condições favoráveis de desenvolvimento. As idades que se
seguiram assinalam sob este aspecto uma progressiva decadência. A civilização
tende à uniformidade. O progresso agrícola, enquanto tende a destruir florestas, a
secar lagoas, a cavar terrenos, compromete a variedade natural, enquanto o
intensificar-se das comunicações, das relações sociais, atenua a variabilidade dos
homens. Os espetáculos da natureza perdem a sua imensidade e sublimidade,
enquanto os progressos técnicos tolhem do homem a atração pelo imprevisto, a
ocasião para deliberações novas, súbitas. De um lado os progressos da ciência,
criando instrumentos válidos de luta, enfraquecem a resistência da natureza à ação
do homem; de outro lado a luta contra as dificuldades naturais desenvolvem-se de
forma sempre mais associada. A própria perfeição conquistada pela ciência atenua o
estímulo pela pesquisa e pelo estudo.
Estas considerações de Humboldt sobre as relações entre civilidade e
individualidade evocam a análoga posição de Rousseau, de quem Humboldt cita a
passagem do Livro V do Emílio (Des vouyages) onde se deplora que a miscigenação
das raças, a confusão dos povos, quase cancelaram o caráter originário das nações.
Todavia, o sentimento de aversão à civilização difundida em França por Rousseau
conectava-se à intolerância diante das leis e das instituições existentes e surgia do
contraste com o estado de natureza no qual o homem era representado feliz na
solidão e independência da vida, na simplicidade das necessidades, na felicidade e
segurança de satisfaze-las. Mas nem Rousseau cria em uma interrupção no
desenvolvimento psicológico do homem e também não cria em um retorno ao estado
de natureza. Este estado hipotético melhor serviu a ele para justificar a criação de
uma ordem ético-política mediante a renúncia da parte dos indivíduos à sua
naturalidade.
Humboldt não condena a civilização e também não se perde em hipóteses
sobre as primitivas condições da humanidade. Ele se limita a destacar que as
condições exteriores de vida para a ação da civilização tornam-se sempre mais
uniformes, não favorecem como antigamente o desenvolvimento da individualidade.
Em compensação reconhece a inegável superioridade dos modernos para aquilo que
concerne ao desenvolvimento da vida interior. A uma menor variedade de condições
físicas corresponde uma maior variedade moral e intelectual. A subjetividade que
antigamente ainda era dispersa e confusa na exterioridade, junto dos modernos
adquire autonomia e consciência de si, faz-se mais intensa, variada, delicada, e não
apenas para os singulares, mas para a coletividade. Perdem-se as formas mais
130

rústicas da vida natural e permanecem as formas mais sublimes e delicadas. Isto não
seria prejudicial, se a humanidade fosse um homem ou se a energia própria de uma
era se transmitisse, como as coisas externas, à era sucessiva. Infelizmente isto não é
assim, pelo que é de perguntar-se se a força derivante de uma mais perfeita
civilização não se deveria conservar restaurando as naturais e primitivas energias.
Humboldt não quis aprofundar o problema, mas não é dúbia a sua opinião. Como no
homem a sensibilidade é condição de vida e de expressão de toda mais sublime
espiritualidade, assim a humanidade subtrai-se da decadência que se segue a uma
perfeita e refinada civilização renovando a sua natural virtude originária. Parece aqui
retornar, aplicado à vida da sociedade civil, o ensinamento de Maquiavel, segundo
quem os organismos políticos regeneram-se mediante “a redução aos princípios” 105.
Humboldt não se furta quanto aos perigos e aos males inerentes ao progresso “das
luzes” e temia com Rousseau as conseqüências de uma sociedade fundada sobre o
excesso de intelectualismo. A individualidade singular e coletiva não se alimenta de
abstrações; para ele, como para Rousseau, o retorno à natureza significa o retorno à
experiência dos sentidos, que são a fonte viva e perene de todo o progresso humano.
Toda a atividade posterior de Humboldt deveria confirmar esta sua intuição.
O segundo capítulo do Ensaio se completa com a enunciação de dois
postulados prejudiciais para a ciência política e em particular para o problema
relativo aos limites da atividade do Estado. Humboldt formula o primeiro postulado
nestes termos: “A melhor condição de vida para o homem é aquela na qual cada um,
em plena liberdade, desenvolve-se a si mesmo na sua originalidade”. Aqui
Humboldt tem em mira a personalidade moral e intelectual, que não deve ser de
nenhum modo e por nenhum motivo obstaculizada na sua formação espontânea. O
segundo postulado concerne à exteriorização da personalidade e é assim formulado:
“O homem não pode desejar condições melhores daquelas nas quais, nos limites das
suas forças e do seu direito pode livremente modelar as coisas do mundo externo
segundo a medida de sua necessidade e da sua inclinação”. Apenas a necessidade
pela própria conservação pode significar a violação de tais princípios ditados pela
razão eterna das coisas.
Por estes postulados, que resumem as suas reflexões sobre a individualidade,
Humboldt parece inserir-se na corrente tradicional iusnaturalista, segundo a qual a
consideração do homem e da sua natureza constitui a premissa metodológica de
qualquer indagação sobre o direito e sobre o Estado. Em particular por sua
concepção da individualidade Humboldt parece conectar-se por um lado a Locke e,
por outro a Kant, onde um havia exaltado a atividade original do homem nas
relações externas econômicas e o outro a atividade racional e formal. E como Locke
de sua premissa havia concluído que o Estado deve limitar a sua ação para garantir a
atividade econômica do homem, assim Kant deveria ao longo do tempo fazer do
Estado o custodial da norma racional que garante a pacífica coexistência das ações
externas.

105
Conforme N. Maquiavel, Discorsi sulla prima deca di Tito Livio, liv. III, 1.
131

Todavia, a novidade de Humboldt consiste em haver superado


definitivamente tanto o empirismo como o racionalismo iusnaturalista mediante o
seu conceito de individualidade orgânica e concreta. O homem é essencialmente
força, atividade, que dá vida e forma própria tanto ao conteúdo sensível da
consciência quanto aos objetos do mundo externo. Assim compreendido, o indivíduo
não se isola da realidade, dos seus semelhantes, mas aquele e estes resumem em si
revivendo-os nas formas da sua subjetividade. A concepção orgânica da
individualidade era a condenação de toda forma de absolutismo, daquele jurídico de
Hobbes, daquele ético de Rousseau e do Iluminismo alemão. D’outra parte esta
concepção permitia superar aquilo que era unilateral e exclusivo no individualismo
anterior, opondo ao homem econômico de Locke, ao homem racional de Kant, o
homem na multiplicidade e unidade de sua natureza, síntese de sentido e de razão. O
novo homem de Humboldt não vive, nem prospera, como o homem da natureza de
Rousseau ou aquele moral de Kant, na sua soberba solidão, quase que diminuído em
seu valor pelos relacionamentos sociais. A esta concepção restrita, que fazia da vida
em sociedade um estado convencional, exterior, Humboldt opõem o homem que a si
reencontra nos outros, que trás da multiplicidade das relações sociais elementos de
vida e de desenvolvimento, que se individualiza socializando-se. Deste modo a
sociedade revela-se como uma exigência, uma integração do indivíduo; os vínculos
que surgem entre os indivíduos perdem todo caráter arbitrário para transformar-se na
expressão de sua íntima espiritualidade. O liberalismo jurídico deveria transformar-
se no pensamento de Humboldt no liberalismo nacional.

9. O capítulo III do Ensaio. O problema dos fins do Estado: fins positivos


e negativos. Felicidade e segurança; meios com os quais o Estado os atua.
A ação do Estado em relação ao bem estar exterior dos cidadãos. Os
danos derivados da uniformidade e passividade do agir. Considerações
de Humboldt sobre a propriedade. A ação do Estado e o caráter moral.
Humboldt e o culto da interioridade. O homem interessante de
Humboldt. Os efeitos econômicos e morais da liberdade do solo. Os
efeitos da ação do Estado em relação ao matrimônio. A relação entre os
dois sexos e as características da mulher. Individualidade e socialidade.
Sociedade e Estado na concepção do Iluminismo e de Humboldt.
No capítulo terceiro Humboldt enfrenta a questão dos fins do Estado, em
torno da qual profundo era o divórcio entre os seguidores do absolutismo iluminado
e seguidores do Estado jurídico e liberal, entre aqueles que queriam fazer servir o
Estado a instrumento do bem estar individual e aqueles que o queriam limitado à
atividade de defesa do direito. Seguidores do Estado como órgão de felicidade
chama Humboldt os primeiros; seguidores do Estado como órgão de segurança
chama os segundos. O dissenso entre ele e os escritores políticos da época estava no
modo de compreender o indivíduo, pela sua tendência de condicionar o problema do
Estado e dos seus fins às exigências da individualidade concreta, posto ser
132

convicção de Humboldt que o próprio ideal da época diante do Estado defensor dos
direitos do homem não poderiam ser satisfeitos eficazmente até que não se
ultrapassasse a concepção abstrata do direito e do Estado e não se resolvesse o
problema prejudicial da natureza e dos fins do indivíduo. Este problema para
Humboldt desenvolve-se por suas íntimas energias originárias, organicamente, em
relação necessária, indissolúvel com seus similares, ao largo de qualquer ação da
parte do Estado. Era a condenação implícita do iluminismo político.
Aquilo que era implícito, torna-se explícito nos capítulos terceiro, sexto,
sétimo e oitavo do Ensaio, nos quais Humboldt considera os efeitos da ação estatal
em relação ao bem estar econômico dos indivíduos, ao seu aperfeiçoamento
religioso e moral. Ele rejeita toda solução apriorística do problema; prefere
considerar os efeitos úteis ou danosos do Estado em relação ao desenvolvimento
multifacetado da individualidade. Esta ação o Estado pode exercitar de três formas:
ou mediante leis coativas; ou criando condições externas favoráveis aos seus fins,
tais como colocar o cidadão diante da necessidade de agir em uma determinada
direção; ou agindo sobre idéias, sobre sentimentos, sobre inclinações dos cidadãos
para colocá-los em harmonia com a sua vontade. Da ação limitada a atos isolados,
passa o Estado a dar forma e direção unívoca e geral à conduta externa, para
determinar por último o modo de pensar e de sentir do cidadão. A sua influência se
amplia à medida em que se faz interna. Contra uma opinião largamente difundida
naquele século, Humboldt não exclui a possibilidade de uma influência eficaz e
decisiva do Estado sobre as próprias fontes da individualidade.
Humboldt considera antes de tudo positiva a ação do Estado dirigida a
manifestar ou a produzir o bem estar físico da nação. Buscavam este fim as leis em
defesa da população contra os males naturais, as providencias em favor dos
enfermos, dos necessitados, o fomento da agricultura, indústria, comércio, as
operações monetárias e financeiras, as proibições de importar e de exportar, etc.
Aqui não se tratam de medidas que se compreendem, segundo Humboldt, na política
propriamente dita, enquanto as conseqüências das mesmas são danosas, se
consideradas em relação ao desenvolvimento da antigüidade. Para avaliar a
dimensão até agora da crítica de Humboldt devemos ressaltar, nesta primeira fase de
seu pensamento político, a preocupação de limitar (não de negar, como outros
afirmaram) as razões do Estado às suas universais e essenciais funções. O seu maior
interesse era pelo indivíduo considerado como valor supremo, que necessitava
subtrair a todo vínculo desnecessário, quase a despertar as suas energias e a ensaiar
depois de séculos de opressão, as possibilidades de desenvolvimento.
Nas medidas dirigidas ao bem-estar material da nação, o espírito de quem
governa, enquanto iluminado e nobremente inspirado, produz uniformidade de ação.
As vantagens materiais que o indivíduo alcança, ainda que notáveis, não se podem
considerar como o fruto da sua iniciativa, dos seus esforços, dos seus próprios
sacrifícios. A ingerência do Estado tolhe valor da vida em comum, cuja utilidade é
medida pelo grau com que se desenvolve a diversidade de atitudes e das condições.
O Estado, ao garantir o bem estar e a paz interna, é naturalmente levado a favorecer
133

uma certa uniformidade de vida e de conduta; isto não está no interesse do indivíduo
que aspira à glória com sacrifício da felicidade e do bem estar material. Nada ofende
mais a sua humanidade do que ser reduzido à condição de uma máquina movida por
causas externas.
A crítica de Humboldt golpeava em cheio a política iluminista fundada sobre
o pressuposto de que o fim do Estado fosse garantir a felicidade e o bem estar
externo e que este fim poderia obter-se com o suprimir as diferenças e os contrastes
entre os indivíduos, sujeitando-os a um sistema uniforme de vida e de condições.
Fundava-se este pressuposto por sua vez em um pressuposto ainda mais geral,
segundo o qual não o múltiplo, mas o idêntico, constitui a essência do homem e que
a felicidade e a paz pública são garantidas na medida em que a igualdade entre os
indivíduos é realizada. A preocupação pela igualdade abstrata dominava os espíritos
e tolhia a possibilidade de discernir a verdade proclamada por Humboldt, que a
harmonia social surge do contraste, da variedade das forças, da sua redução à
unidade.
Assim como a matéria múltipla, infinita, observa Humboldt, extrai vida da
matéria que a informa e a unifica nos seus elementos contrastantes, é a matéria
negada por uma forma que lhe é estranha. No homem tudo se produz organicamente,
isto é, por uma energia íntima, que dá forma e significado às coisas. Por isso, o
entusiasmo que mantém viva e desperta em nós a atividade criadora, alimenta-se
pela idéia de uma propriedade presente ou futura. O homem considera como
propriedade sua não tanto aquilo que possui, quanto aquilo que produz, sendo o
jardineiro mais verdadeiramente proprietário do jardim do que aqueles que o gozam
no ócio suas vantagens.
A sutil, genial menção aqui feita do fundamento da propriedade, merece
relevo particular. A referência da propriedade como fundamento da personalidade foi
feita primeiro por outros do que por Humboldt, e por outros deveria repetir-se e
desenvolver-se depois dele. Respondia esta justificativa à tendência individualística
da época e brotava do íntimo da novel civilização capitalista. Segundo Locke a
propriedade é explicação da personalidade empírica mediante o trabalho; segundo
Kant-Hegel a propriedade é determinação racional da personalidade sobre o mundo
externo. Mas em uns e em outros a justificativa era abstrata e fundava-se sobre as
exigências abstratas da personalidade. Humboldt baseia-se na energia criadora do
homem, que transforma as coisas é confere a elas o selo da individualidade. A
concretude de Humboldt revela-se no aceno aos estados de ânimo que acompanham
o formar-se da propriedade. O seu momento constitutivo não é o ato da posse, mas é
o processo que se revela no júbilo, no entusiasmo da criação. As exigências
econômicas e racionais eram deste modo reforçadas e o sentimento originário, que
segundo Rousseau leva o homem à propriedade, era definida pela sua natureza ativa.
Humboldt abstraía a exigência jurídica do reconhecimento, fornecia um critério
válido para distinguir o simples detentor do proprietário, condenava implicitamente
toda propriedade não fecundada e transformada pela atividade individual.
134

Prosseguindo no desenvolvimento de seu pensamento, Humboldt não nega


que o Estado, melhor do que o privado, possui modos e meios de estender o
conhecimento científico e portanto de favorecer o progresso intelectual e moral dos
cidadãos. Todavia, observa Humboldt, a extensão do saber, a possibilidade de
apreende-lo, ainda não significa desenvolvimento intelectual, o qual depende
diretamente da atividade do indivíduo e apenas indiretamente da providência do
Estado. Este pode apenas eliminar os obstáculos que se opõem à livre iniciativa
individual, como também pode criar condições externas que permitam ao indivíduo
alcançar por si verdades já conhecidas, cujo conhecimento pelo Estado julga útil à
educação intelectual da nação. Deste modo o indivíduo encontra em si mesmo o
processo que levou à descoberta científica e o Estado contribui com meios externos
para a difusão do saber.
Ainda mais evidente é o prejuízo causado pela ação do Estado em relação à
formação do caráter dos cidadãos. Humboldt é, aqui, dominado pela influência de
Kant, que havia proclamado o valor absoluto da consciência ética individual, contra
a tendência implícita no Iluminismo de deslocar as bases do dever, do mérito, da
culpa, da interioridade para o externo. O hábito de fazer depender do Estado, da lei,
debilitava o valor moral da ação e quase destruía o sentido da responsabilidade
individual. Antes de considerar o bem como aquilo que possui valor em si, que se
revela à consciência nas formas do dever, que o indivíduo atua pela ação, lutando
contra obstáculos externos, contra resistências internas, tendia-se a considerar bem
aquilo que o Estado impõe como suas normas, assim que o indivíduo podia-se
considerar liberto de todo dever não imposto. Legalidade e moralidade culminavam
deste modo por identificar-se e a desconfiança pelo Estado transforma-se em
desconfiança por aquilo que é justo. Os vínculos de solidariedade, que estreitam os
homens nas diversas formas de vida coletiva, lacerados das intensas forças da
interioridade, deveriam arrefecer por meio das formas legais externas até a
indiferença. Não é sem um profundo significado que os sentimentos de humanidade
enraízam-se e desenvolvem-se mais intensamente nos estratos sociais inferiores,
que não usufruem das providências do Estado.
A felicidade à qual pode o homem aspirar é apenas aquela que ele constrói
para si com a sua atividade. As dificuldades agudizam o espírito, revigoram o
caráter. O melhor que pode fazer o Estado é não obstaculizar o indivíduo na luta pela
felicidade e pelo bem estar, de não despertar nele a esperança pela ajuda exterior,
que debilitam a resistência e pela sua ineficácia criam desilusões e decepções
maiores. Não é boa tática, para afastar a morte, procurar a morbidez. Humboldt
repete o ditado de Platão que, quando não existiam médicos, os homens não
conheciam nada além da saúde ou da morte.
Enquanto o Iluminismo fazia consistir o progresso na expansão quantitativa
das relações e dos fins da existência, Humboldt reclama o novo homem para o culto
da interioridade, à consciência das suas infinitas possibilidades, das suas energias
espirituais, das quais dependem a unidade e a razão da vida. O ideal do homem é
conhecer a natureza para dominá-la, para imprimir nela a marca de sua
135

personalidade, para transformar o escopo e o objeto externo, em escopo e objeto


próprio. “Der interessant Mensch ist in allen Lagen und allen geschäften
interessant”. O homem interessante de Humboldt é o homem que em qualquer
condição de vida soluciona o mundo na sua mais alta humanidade e vive em
harmonia com o seu caráter. Por isso podem tornar-se artistas os operários e os
agricultores que amam desinteressadamente a sua arte e a aperfeiçoam com a sua
capacidade inventiva. Por meio do trabalho pessoal a inteligência lapida-se, o caráter
revigora-se, os prazeres elevam-se. A inteligência e a moral do homem são medidas
pelo grau no qual ele conquista o hábito de viver o mundo das idéias e dos
sentimentos, a dar valor à interioridade como causa primeira e escopo final de toda a
sua faina, de considerar, em relação à intimidade espiritual, o corpo como invólucro,
os objetos como instrumentos.
Em uma página poeticamente inspirada e que recorda análoga observação de
Hegel sobre a condição do trabalhador livre, Humboldt celebra os benéficos efeitos
da liberdade da gleba. Ele certamente não ignorava o apostolado dos fisiocratas em
França em favor da agricultura liberta dos seculares vínculos que obstaculizavam o
seu desenvolvimento. Mas, ainda mais do que as vantagens econômicas, Humboldt
põe em relevo os efeitos morais do trabalho livre “que a colheita compensa e cinge o
agricultor em um vínculo de amor ao seu campo e à sua Casa.” A recorrente
experiência das mãos que semeiam e da natureza que produz, a perpétua
dependência do trabalho agrícola do revezamento das estações, desperta nas almas a
confiança e o medo conjuntos nos seres superiores aos quais dirige-se com orações e
agradecimentos. O trabalho nos campos desperta o senso do sublime, da ordem
eterna, da bondade infinita: por isso educa o homem à simplicidade, à urbanidade, à
expontânea submissão às leis dos costumes. A visão da natureza, que sempre cria e
nada destrói, torna o agricultor pacífico, mas ao mesmo tempo impaciente diante
daquele que atenta contra a sua paz, violando a ordem da justiça natural.
Tolhida a liberdade, a atividade não se exercita utilmente e aquilo que esta
produz, produz-se mecanicamente, sem o signo da espiritualidade. Erraram os
antigos em considerar a atividade dirigida à persecução dos fins materiais menos
digna do homem. Eles justificaram a escravidão como um meio para garantir a uns
poucos o desenvolvimento intelectual e moral com o sacrifício da humanidade de
muitos. Não a natureza do trabalho é degradante, mas o modo de cumpri-lo. Todas
as profissões, da mais simples à mais elevada, enobrecem aqueles que as exercitam,
se as cumprem com plena liberdade de espírito. O trabalho deve ser amado em si,
como exigência nossa, mais do que pelos efeitos úteis que almeja. Por isso os
resultados que o Estado tem em mira com as suas providências econômicas não
podem ser alcançados sem o sacrifício dos indivíduos.
A imposição externa produz conseqüências ainda mais danosas, se diz
respeito a atividades em si desinteressadas, que seriam a atividade científica e a
religiosa. Com particular satisfação Humboldt dedica-se a considerar os efeitos da
ação do Estado sobre a união matrimonial, à qual conectam-se essenciais interesses
públicos e privados.
136

O argumento do matrimônio era um dos mais discutidos, depois que


Rousseau reclamou sobre ele a atenção dos contemporâneos. Profundo era o
divórcio entre os defensores de uma tradição dirigida a considerar o matrimônio
quanto aos fins religiosos e civis e aqueles que queriam vinculá-lo às suas bases
naturais, e sustentavam a liberdade do sentimento e do amor contra as ingerências
seculares da Igreja e aquelas novíssimas do Estado. Rousseau fornecia argumentos a
uns e a outros, porque, se nos seus romances pedagógicos, a Nouvelle Eloise e
L’Emile, ele deixou-se levar pelo amor liberto de qualquer vínculo externo, no
Contrat social defendeu o matrimônio civil fundado sobre a liberdade moral. Em
Humboldt encontramos o eco daqueles contrastes, que deveriam acentuar-se na
época imediatamente posterior, quando as teses do amor livre, pela obra de Schlegel
e de Schleiermacher, encontrava na dinâmica romântica a sua solene proclamação,
provocando a reação de Hegel, que reivindicava contra os românticos a eticidade do
matrimônio.
No matrimônio, qualquer que seja a sua forma, o modo, a finalidade, o
homem revela pela evidência o seu caráter, a força de sua sensibilidade. Os efeitos
do matrimônio em relação à personalidade e à felicidade dos cônjuges dependem de
causas múltiplas e variadas: pela natureza interna ou externa das finalidades que os
cônjuges se propõem; pela solidariedade maior ou menor no vínculo contratual; pelo
prevalecer da reflexão ou do sentimento; pelo grau com que os cônjuges conservam
na união as suas práticas originais, etc. mas, quaisquer que sejam as causas e
circunstâncias que influenciam o matrimônio, é certo que do seu profícuo ou cativo
êxito depende a nossa felicidade, o engrandecimento ou amesquinhamento do nosso
ser.
Isto vale sobretudo para as mulheres, que possuem constituição mais
delicada, sensibilidade mais profunda. Intimamente vinculada ao organismo
familiar, não afeita às tarefas externas, a mulher pode desenvolver livremente a vida
dos afetos. A sua força não está tanto naquilo que pode fazer, mas naquilo que pode
ser; é mais eloqüente no silêncio do que nas manifestações sentimentais; a estrutura
física delicada, os olhos móveis, a voz penetrante, tornam a mulher em alto grau
adaptada à expressão imediata. Nas relações com as outras mulheres, mais do que
irem avante, possuem a virtude de compreenderem e de acolherem. Frágeis, sentem
porém admiração e apego por aquele que se distingue pela força e grandeza. Isto que
através da união recebem, plasmam e restituem formado. Possuem a coragem que
provem do amor, da força do sentimento, que não desafia a adversidade, mas não
cede ao desconforto. Pelo concurso destas qualidades, as mulheres personificam
melhor do que o homem o ideal da humanidade, e se raramente o alcançam isto
decorre do fato que é mais fácil seguir a senda do mal do que a trilha do bem.
Nenhuma maravilha que um ser que apresenta tanto fascínio e tanta unidade, no qual
nada é sem efeito, e todo efeito toca não uma parte, mas o todo, seja turbado pela
desarmonia externa. Por isso inumeráveis são as vantagens que derivam para a
sociedade da educação e do caráter da mulher. Se é verdade que todas as categorias
dos seres exprimem uma qualidade em grau eminente, diremos que é próprio das
137

mulheres custodiarem por inteiro o tesouro da eticidade 106. Enquanto esforça-se o


homem para remover os obstáculos externos que se opõe ao seu desenvolvimento, a
mulher afetuosamente estabelece os benéficos limites internos por meio dos quais
esta força pode render plenamente os seus frutos. Tais limites ela tanto mais
facilmente poderá estabelecer, quanto mais profundo for o conhecimento que possui
do homem e das suas múltiplas relações. A intuição possui nela o lugar do
raciocínio, que freqüentemente eclipsa o verdadeiro. De resto a história ensina que o
progresso moral das nações está em razão da consideração na qual a mulher é tida 107.
Desta digressão sobre o matrimônio e sobre as diferenças sexuais Humboldt
extrai a conclusão de que, quando se trata de uniões que vivem e se alimentam da
interioridade, a ação coercitiva da lei não favorece e é melhor confiar no amor
“verdadeiro, natural, livre”. O costume age neste campo melhor do que a lei, que
freqüentemente veda aquilo que esta permite. Humboldt opõe ao dever externo,
legal, as afinidade e as inclinações naturais, sobretudo os deveres que surgem da
intimidade e se traduzem nas normas objetivas do costume. Em virtude desta
experiência ética coletiva é melhor garantir a indissolubilidade e perpetuidade da
união conjugal. Humboldt está bem distante dos desvios românticos do amor livre,
que não conhece outra lei a não ser aquela subjetiva e freqüentemente cega e
arbitrária do instinto e do sentimento: ao mesmo tempo combate a tese de tantos
quantos se iludiam em prestigiar o casamento transformando-o em uma instituição
civil, com finalidades estranhas à sua natureza.
O desenvolvimento moral, além daquele físico e intelectual, é incompatível
com a situação de isolamento. O próprio Rousseau, que exalta o homem natural, o
homem que basta a si mesmo, feliz na sua solidão, constrói o Estado como condição
de vida e liberdade moral. Humboldt nega, com a hipótese do homem solitário, a
concepção do Estado como organismo ético. O desenvolvimento moral do homem
não está condicionado aos vínculos políticos, mas àqueles sociais. As concepções
políticas da era do Iluminismo fundavam-se sobre o pressuposto da igualdade moral
e racional dos homens. Para Humboldt o pressuposto do Estado é o princípio da
individualidade, que implica na diferenciação originária de cada homem. As relações
sociais são condições essenciais de desenvolvimento da individualidade e o Estado
as favorece abstendo-se de qualquer ação direta. Abandonado deste modo o artifício
do estado de natureza e do contrato, Humboldt podia proceder ao desenvolvimento
de sua doutrina, fundada sobre a união indissolúvel de individualidade e
sociabilidade. Não o indivíduo na sua abstrata natureza racional e moral é o
pressuposto do Estado, mas o indivíduo que desenvolve a sua natureza em relação
com os seus semelhantes. Esta nova visão do problema político permitia a Humboldt
106
Humboldt aqui cita o verso de Torquato Tasso de Goethe (ato II, cena I): “Nach Freiheit strebt der Mann,
das Weib nach Sitte” (o homem tende à liberdade, a mulher ao bem consagrado pelo costume).
107
Sobre o argumento da diversidade dos sexos e da união matrimonial, retornava Humboldt em 1795 em dois
ensaios anônimos publicados nos fascículos 2 e 3 da “Horen” de Schiller. Um é intitulado: “Ueber den
Geschlechtsunterschied und dessen Einfluss auf die organische Natur; intitula-se o outro: Ueber männliche
und weibliche Form. É conhecido o interesse de Humboldt pelos estudos de antropologia comparada
executados sob um ponto de vista filosófico. Conforme introdução cit. de Heinamann, p. XXVIII e ss.
138

considerar o Estado não apenas em relação ao homem singular, mas em relação à


variedade e multiplicidade das relações sociais, das quais o indivíduo extrai as
condições para afirmar e desenvolver os seus direitos originais.
Portanto, os homens estreitam entre si vínculos sociais não para sacrificar as
suas características individuais, mas para subtraírem-se ao seu isolamento. “A
união”, escreve Humboldt, “não deve mudar um ser em um outro, mas deve abrir o
sentido de um para o outro”. Como a variedade se forma pelos esforços de todos,
assim o homem aumenta a sua capacidade prática comparando-se com os outros,
reconhecendo aquilo que no seu caráter é imperfeito, de incompatível com a vida em
comum e com a verdadeira transcendência, que surge da intensificação das relações
sociais, pela mútua compreensão e comparação por aquilo que é mais
verdadeiramente humano em nós para ser estimulado, fecundado, desenvolvido.
D’onde a necessidade de penetrar nos outros para compreende-los e revelá-los em
nós, para deles trazer benefício, para poder agir sobre eles nos limites do respeito às
suas personalidades, que é, portanto, a propriedade de um ser livre. E a ação sobre
os nossos semelhantes apenas é possível mediante a condição de que o homem se
lhes mostre inteiramente, na sua verdadeira essência, posicionando-se nas suas
observações como objeto de confronto. É este para Humboldt o mais alto princípio
que preside a vida de relações, princípio negligenciado por quantos se esforçaram
para reduzir os homens à abstrata igualdade.
Humboldt, antecipando métodos e teorias modernas, elevava a comparação
psicológica a instrumento de compreensão e de desenvolvimento da
individualidade108. A relação social não é para Humboldt relação entre seres iguais,
considerados naquilo que possuem de essencialmente comum, isto é, na sua
racionalidade ou sensibilidade abstrata, mas é relação entre seres especificamente
diversos, que pelos caracteres que os distinguem se unem e se favorecem
reciprocamente. A relação social em Humboldt perdia o seu caráter abstrato e
descortinava a estrada à concepção da individualidade espiritual coletiva.
A originalidade de Humboldt em relação ao Iluminismo revela-se sob um
outro aspecto. Habitualmente nesta época a sociabilidade era compreendida como
forma do sentimento de piedade e de simpatia, como natural tendência do homem. A
doutrina de Grócio do appetitus societatis em cada homem fora definitivamente
imposta pela concepção do homem hobbesiano. Esta sociabilidade espontânea, em
conformidade com o difuso senso de humanidade, traduzia-se politicamente em um
pacto que havia perdido qualquer característica coativa, naturalística, para
transformar-se em um pacto correspondente à natureza racional e social do homem.
Apenas Rousseau havia trazido uma nota dissonante ao convencimento geral. Para
ele os vínculos sociais possuem origem natural, mas se desenvolvem coativos e
opressivos para o homem, que somente pode salvar-se no Estado eticamente e
108
As antecipações de Humboldt em relação à importância do método comparativo nas ciências
antropológicas e morais, não foram no geral ressaltadas por aqueles que depois dele desenvolveram tal
método e o aplicaram particularmente. Conforme, entre outros, Baldwin, Social and ethical interpretations in
mental development, London, 1897; G. Carle, La filosofia del diritto nello Stato moderno, Túrim, 1903, p. 84
e ss.
139

racionalmente constituído. Deve-se aqui, sobretudo, perquirir a causa do divórcio


entre Rousseau e os Enciclopedistas. Enquanto Rousseau buscava o remédio no
despotismo ético, instituído pela vontade moral dos indivíduos, os Enciclopedistas
trabalhavam para difundir as luzes como meio para intensificar, além do Estado, os
sentimentos de solidariedade e de humanidade. Tendia o divórcio a polarizar-se entre
os seguidores da vida coletiva renovada pela cultura e os sequazes da soberania
absoluta do Estado como princípio de organização e elevação moral da nação. Inútil
destacar que para os Enciclopedistas a sociedade era essencialmente relação social,
ainda não unidade espiritual orgânica.
Entre estas duas correntes de pensamento político e social Humboldt segue
uma trilha própria. Distanciava-se a sua concepção da individualidade de Rousseau e
da consideração ética do Estado. D’outra parte, não compartilhava da fé, do
entusiasmo dos Enciclopedistas pela sociedade como condição de progresso
intelectual e moral. Os Enciclopedistas contemplavam uma filosofia, uma ciência
social; os seus ideais não apenas políticos, mas teóricos, morais, artísticos, brotavam
das discussões dos salons e por obra deles transformavam-se em forças vivas do
movimento renovador109. A forma social elevava-se deste modo a categoria suprema
de toda manifestação de vida espiritual. Bem outro é o pensamento de Humboldt.
Para ele as relações sociais não devem ser procuradas por passatempo, como
remédio para o tédio da solidão, para a preguiça intelectual e moral, ou como meio
fácil para desafogar o sentimento de simpatia humana, sob o pressuposto que os
homens se procuram e se associam pelas suas melhores e comuns qualidades. Para
Humboldt a vida em sociedade é vida de lutas, é campo aberto a toda iniciativa, a
toda disputa. Ela ressalta aquilo que distingue, aquilo que divide, sob o pressuposto
de que somente por meio da competição social forma-se e tempera-se o caráter e
realiza-se a verdadeira unidade, que é a unidade do vário, não do idêntico.
Humboldt não se mostrou menos avesso à tendência utilitária, igualmente
característica do Iluminismo, de avaliar a vida social em razão das vantagens que ela
procura e, em seguida, de desdenhar a companhia dos homens incultos, como se
deles nada se pudesse extrair de útil. Este soberbo isolamento das classes
intelectuais é estigmatizado por Humboldt como ofensa à humanidade, que se revela
em cada homem com características originais, tornando-o sempre, em qualquer grau
interessante. Ignorar a humanidade alheia é ignorá-la em nós mesmos, é isolar-se, é
travar a via das trocas úteis, das benéficas influências. D’outra parte, quem busca a
companhia dos outros apenas pelas vantagens que a ele traz, é levado a negligenciar
as mais nobres atividades espirituais, isto é, aquelas que mais se distinguem pelo seu
caráter desinteressado. Sobretudo a quem governa se impõe o conhecimento dos
homens nos suas atitudes específicas para deles extrair vantagem, para dominá-las,
nos limites nos quais a ação do governo pode ser eficaz. Esta ação revela-se pela
experiência ineficaz e danosa quando o Estado propõe-se a fins positivos de
felicidade e de bem estar. Pelo nexo indissolúvel que une o físico ao moral, aquilo
109
Sobre isto e seu valor e significado da urbanité nesta época em França E. Cassirer, Die Philosophie der
Aufklärung, Tübingen, 1932, p. 360-361.
140

que impede o desenvolvimento da personalidade exterior não pode solucionar-se em


dano da personalidade espiritual.

FONTES
W. von Humboldt, Gesammelte Schriften, Berlim 1903-1936, 17 vl; tradução
italiana completa do Ensaio in “Biblioteca de Ciência Política, aos cuidados de A.
Brunialti, ser. I., vl. VII, Turim, 1891; escolha e seleção antológica de G. Perticone
(Ensaio etc., Turim, 1929); G. Marcovaldi, Scritti di estetica, Firenze, 1934; G.
Necco, Pagine politiche, Veneza 1945; G.B. Bianchi, Saggio etc., Milão, 1947; F.
Serra, Antologia degli scritti politici, Bolonha, 1961; N. Merker, Roma, 1965; N.
Merker, Stato, società e storia, Roma, 1974.

BIBLIOGRAFIA
R. Haym, W. von Humboldt. Lebensbild und Charkteristik, Berlim 1856; M.
Challemel-Lacour, La philosophie individualiste. Etude sur G. De H., Paris, 1864;
B. Gebhardt, W. v. H. s. geschichtliche Wetanschauung im Lichte des klassischen
Subiektivismus, Leipzig, 1901; O. von Harnack, W. v. H., Berlim, 1913; S.A. Kähler,
W. v. H. und der Staat, Munique-Berlim, 1927 (reestampa, Göttingen, 1963); R.
Leroux, G. de H. La formation de as pensèe jusqu’en 1794, Paris, 1932; P.
Binswanger, W. v. H., Trauenfeld-leipzig, 1937; C. Antoni, H. in: Considerazioni su
Hegel e Marx, Nápoles, 1946; F. Schaffstein, W. v. H. Ein Lebensbild, Frankfurt,
1957; C. Menze, W. v. H. s. Lehre und Bild vom Mensch, Ratingen, 1965; F.
Tessitore, I fondamenti della filosofia politica di H., Nápoles, 1965; F. Serra, W. v.
H. e la revoluzione tedesca, Bolonha, 1966; P. Berglar, W. v. H. s. in
Selbstzeugnissen und Bilddokummenten, Reinbek, 1970.
141

ÍNDICE

Premissa à primeira edição de Luigi Firpo

1. A concepção clássica do Estado


2. A concepção cristã do Estado
3. A concepção liberal do Estado
4. Liberalismo, constitucionalismo, democracia nas doutrinas políticas do
século XVIII
5. Do Estado jurídico ao Estado ético; Guilherme von Humboldt e o seu
pensamento político

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