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RESUMO: Este artigo tem como objetivo mostrar a evolução crescente do Novo Cangaço no
cenário da criminalidade violenta brasileira, desde sua origem periférica, no sertão nordestino,
até o surgimento de uma inédita e emergente modalidade do crime organizado em nível
nacional: o Domínio de Cidades. O trabalho traça, ainda, reflexões sobre as consequências
nefastas que deverão afetar grande parte da população em um breve futuro, caso medidas
policiais e judiciárias urgentes e integradas não sejam tomadas.
1 – INTRODUÇÃO
As ações do Cangaço, termo que se refere à insurgência armada que atuou no Nordeste
brasileiro, sob a justificativa de combater injustiças sociais, envolveram violência que deixou
marcas indeléveis no imaginário sertanejo, espalhando-se como modalidade criminosa para o
resto do país. É um fenômeno de banditismo universal, conforme Frederico Pernambucano de
Mello2.
Virgulino Ferreira, o Lampião, líder e expoente máximo do controverso movimento
marginal do Brasil à época, potencializou o alcance de invasões, saques e assassinatos em nível
nacional. Foi romanceado, cantado, filmado, pintado, louvado e, inclusive, execrado em verso
e prosa. E ainda noticiado em publicações midiáticas espetaculosas, que mostraram a força do
poder público: combateu e cortou o mal pela raiz, decapitou e criou mártires.
Seria bom que Lampião e seus seguidores descansassem em paz nas páginas de
importante capítulo da História brasileira. Porém, a dinâmica de acontecimentos criminosos em
cadeia não é tão simples assim. Na verdade, é bem complexa.
1
Bacharel em Ciência Econômicas e Agente de Polícia Federal no Brasil
2
Pesquisador de história social da Fundação Joaquim Nabuco, Recife/PE. Autor do livro: Guerreiros do Sol:
Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil.
Lança-se aqui o objetivo audacioso: a tentativa de, sem discutir eventuais motivações
de caráter sociológico, comprovar que o modelo fora da lei de tempos passados deixou raízes
profundas no solo pobre de uma caatinga cada dia mais inóspita e mortal.
Em recente publicação, VICENTE (2017) mostra a origem da aterrorizante designação
de um ramo do crime organizado contemporâneo:
...“Essa categoria de roubos a bancos – Novo Cangaço – vem causando terror
nas pequenas cidades brasileiras, tendo intensas semelhanças com o antigo
modo cangaceiro do bando de ‘Lampião’. Ataques em pequenas cidades,
grupos fortemente armados, reféns e desafio aos órgãos policiais são
características que podem ser vistas entre estes grupos” (VICENTE, 2017, p.
34).
Vê-se que floresceu no mesmo sertão nordestino, secularmente castigado pela seca e
pela ausência de políticas públicas eficazes, com raras novidades estruturais, a repaginação de
um nome cruel: Novo Cangaço.
O potencial de evolução desse fenômeno atual é estarrecedor, à medida em que tais
grupos criminosos, destemidos e articulados, conseguem fácil e rápido acesso a armamentos de
avançada tecnologia e alto poder destrutivo. De maneira planejada, colocam a segurança
pública em xeque ao tomarem cidades e acuarem policiais mal pagos e mal treinados, inseridos
em infraestrutura que lhes impede de seguir procedimento operacional padrão (POP) à altura
da ameaça real e perigosa que lhes afigura, numa guerra assimétrica.
A partir deste trabalho passamos a estudar um neologismo que abarca todo um cenário
sombrio de ações criminosas múltiplas, simultâneas e coordenadas: o “Domínio de Cidades”.
Como ausência do Estado, sob o ponto de vista da segurança pública, é realidade que
não afeta apenas o sertão nordestino; as ramificações das organizações criminosas tomam
proporções nacionais. Elas vêm se articulando e, no dinamismo social, um novo salto evolutivo
dos cangaceiros contemporâneos está prestes a acontecer.
Rapidamente, já no início dos anos 1990, tais disputas evoluíram para sua primeira
transformação. Os inimigos de longa data perceberam que toda a estrutura criminosa montada
apenas “como ataque e defesa na matança entre as famílias”, nas palavras de RENATO
JÚNIOR e FERRAÇO (2018), poderia muito bem ser explorada como meio de vida. Os autores
de Guerra Federal prosseguem:
“Não existem mais ‘causas nobres e de honra’ como objetivo, mas tão somente
o dinheiro pelo dinheiro, a ganância como fim em si mesma, a mais
assustadora causa possível. A promiscuidade com outras modalidades
criminosas, como o tráfico de drogas, também é latente, visto que se financiam
alternadamente, conforme a necessidade” (RENATO JÚNIOR e FERRAÇO,
2018).
Durante a década de 90 e começo dos anos 2000, os assaltos a banco, sob a terrível
chancela do Novo Cangaço, disseminaram-se no Nordeste brasileiro e logo se destacaram dos
roubos de valores comuns, inaugurando a modalidade conhecida como Tomada de Cidades, no
dizer de OLIVEIRA e BEZERRA (2011, p. 02). Os dados da época são escassos e pouco
confiáveis, mas revelam um modus operandi padronizado, segundo o Caderno Didático de
Crimes Violentos, da Polícia Federal:
“Neste tipo de ação, usualmente desencadeada em municípios pequenos e
distantes da capital do Estado, entre dez a 20 perpetradores, munidos de
metralhadoras .50 e .30, fuzis 7,62mm e 5,56mm e pistolas de uso restrito,
rendem a guarnição policial militar, ou a delegacia de polícia civil caso
existente, e tomam de assalto todas as instituições bancárias do município,
inclusive agências lotéricas, logrando subtrair milhares de reais” (RIBEIRO,
FIGUEIREDO et. al., 2010, p. 13).
A especialização e a divisão de tarefas são mais uma dificuldade que se impõe às forças
de segurança pública, que, quando conseguem surpreender os infratores, se colocam em
perseguição perigosa. RENATO JÚNIOR e FERRAÇO (2018) explicam que os bandidos “...
espalham miguelitos pelo caminho – pregos entrelaçados e soldados em formato de estrela ou
chapas pontiagudas, de modo que sempre haverá pontas afiadas voltadas para cima, prontas a
estourar pneus de viaturas policiais desavisadas no breu da madrugada”.
O modelo de Cangaço Noturno logo é expandido a outras regiões brasileiras, para além
do Nordeste, focando inicialmente em pequenas cidades periféricas. O movimento migratório
é mostrado por RENATO JÚNIOR e FERRAÇO:
“Somente em 2013 foram 86 ataques a caixas eletrônicos no Estado de Goiás,
uma explosão a cada quatro dias. Nesta época muitos caixas ainda eram
recheados com até R$ 190 mil cada, sua capacidade máxima aproximada”
(2018).
São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pará, Minas Gerais, Mato Grosso
também recebem o alastramento de explosões em bancos e roubos a carros-fortes, em um
evidente alinhamento interestadual destas infrações penais.
Lamentavelmente, o cenário que se avizinha não é favorável à segurança pública,
principalmente diante da clamorosa desagregação das forças policiais no país.
3 - DOMÍNIO DE CIDADES: A NOVA REALIDADE
O mês de novembro de 2015 inaugura uma nova tendência, que hoje é sólida
modalidade, de crime contra o patrimônio: invasão a bases de empresas transportadoras de
valores. Nada mais impactante do que ocorreu em Campinas/SP – uma das maiores e mais ricas
cidades do interior de São Paulo, distante a apenas 100 km da capital – para a largada desse
marco criminoso.
A base da Prosegur de Campinas não foi exatamente a primeira a ser atacada na história
da bandidagem brasileira. Levantamento especial obtido junto à Associação Brasileira de
Transporte de Valores (ABTV)3 indica que houve ações anteriores neste sentido, porém
esporádicas, pouco organizadas, fruto de sequestros de gerentes ou outros funcionários das
unidades de guarda de valores e arrombamentos sem subjugar a segurança pública local.
A ação de 2015 representa um divisor de águas, porque assimila e potencializa as
características já observadas da Tomada de Cidades, realizada pelo Novo Cangaço Noturno.
Nesse ponto, a modalidade evolui para o Domínio de Cidades, pela primeira vez citada no
estudo de RENATO JÚNIOR e FERRAÇO:
“A ‘Tomada de Cidades’ para explosão de bancos e empresas de guarda de
valores já é uma triste realidade brasileira. Se continuarmos a dar respostas
apenas reativas e desconexas a este fenômeno criminal tão nosso, a tendência
é que a tomada evolua para o ‘Domínio de Cidades’, quando então os bandidos
deverão atacar alvos múltiplos. Além das explosões para roubos simultâneos,
aproveitariam o controle da situação para liberar presos, executar desafetos,
enfim, subjugar toda a população de um município” (2018).
3
Disponível apenas para associados.
considerado inexpugnável, ruiu ante a três explosões aterrorizantes e a quarenta minutos de
intenso tiroteio, num patamar de violência típico de guerra.
A Polícia Militar, à frente das forças de segurança pública, durante o primeiro embate
com os criminosos, teve pouco a fazer. Quase R$ 28 milhões foram roubados.
Difícil de estancar sem um trabalho integrado e minucioso, a sangria perdura noutras
bases de valores, conforme se constata nas informações fornecidas pelas delegacias
responsáveis por investigar os respectivos casos:
EMPRESA - DATA CIDADE - UF VALOR DECLARADO (R$)
Prosegur – 06/11/2015 Campinas/SP 27.961.255,56
Protege – 14/03/2016 Campinas/SP 48.372.833,13
Prosegur – 04/04/2016 Santos/SP 12.167.591,384
Prosegur – 22/04/2016 Barreiras/BA 10.244.862,71
Prosegur – 05/07/2016 Ribeirão Preto/SP 51.255.957,21
Prosegur – 05/09/2016 Marabá/PA 17.901.544,99
Brinks – 21/02/2017 Recife/PE 11.859.839,355
Protege – 16/10/2017 Araçatuba/SP 8.108.061,92
Rodoban – 06/11/2017 Uberaba/MG 48.517.081,72
Total 236.389.027,97
Fonte: Boletins de Ocorrência de cada fato.
4
Deste valor, R$ 8.799.408,57 foram recuperados por PMs em troca de tiros com os bandidos em fuga.
5
Valor obtido no Inquérito Policial nº 09.902.9011.00025/2017-12 - PC/PE.
“Além de bloquear cinco pontos estratégicos nas redondezas da empresa de
custódia de valores, localizada na zona oeste da cidade, a quadrilha impede a
progressão de ninguém menos do que os policiais da 1ª Companhia
Independente de Operações Especiais (CIOE), considerada a base dos seals
pernambucanos. Acuada em sua própria sede, isolada na mata do bairro do
Jiquiá, a tropa de elite do Estado opta por realizar um confronto mais
precavido, dado o poderio bélico do oponente” (RENATO JÚNIOR e
FERRAÇO, 2018).
Abandonado o ceticismo quanto à progressão das ações do Novo Cangaço, que evoluiu
ao Domínio de Cidades, necessário se faz compreender o fenômeno como tecnologia criminal
genuinamente brasileira e como produto de exportação.
Em abril de 2017, bandidos brasileiros sitiaram Ciudad del Este por mais de três horas
e roubaram U$ 11.720.255 no total (entre dólares americanos, reais e guaranis).
Chega-se a um novo patamar.
Detalhes são abundantes na imprensa e nos anais dos órgãos de segurança pública, mas
sua análise exigiria aprofundamento inviável ao presente estudo. Fica aqui evidenciado, no
entanto, que as devastadoras consequências das ações do Novo Cangaço merecem respostas
estatais urgentes e contundentes.
Dentre tais consequências destacam-se:
6
16ª Audiência Pública de 2017, realizada em 14/09/17, disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cspcco/audiencias-publicas.
As evoluções do Novo Cangaço têm se revelado galopantes nas últimas décadas, com
inegável acentuação a partir de 2015. Os dados estatísticos da ABTV comprovam a afirmação
em números, ao relatar exatas 1.824 ocorrências criminais entre 1990 e 2014, envolvendo
roubos a carros-fortes (explosão, rendição da guarnição, com sequestro ou no aeroporto) e a
bases de valores. O prejuízo total dessas ações chega a R$ 433,86 milhões. Frise-se que o item
específico “roubo a bases de valores”, nesse período, traz um número absoluto de 134
ocorrências – menos de 8% do total de registros.
Como dado comparativo, evidenciador da evolução preocupante, observa-se que entre
novembro de 2015, quando foi roubada a base de valores da empresa Prosegur, em
Campinas/SP, e novembro de 2017 no assalto à Rodoban de Uberaba/MG, tem-se cerca de R$
236 milhões roubados. Esse dado sequer leva em conta o evento estrangeiro, de Ciudad del
Este/PY.
Pode-se perceber, portanto, que, nos últimos dois anos (novembro de 2015 a 2017), o
prejuízo provocado pelas organizações criminosas, somente com o numerário expropriado das
bases transportadoras de valores, representa mais que 54% de tudo o que foi subtraído em vinte
e cinco anos de ações delitivas, computando todo o segmento de transporte e guarda de valores
no país.
DINIZ, Breno Freire; ZAMPRONHA, Luís Flávio; BEZERRA, Marco Aurélio Sousa.
Repressão aos crimes patrimoniais. Academia Nacional de Polícia. Brasília/DF, 2014.
PAIVA, Marcos Emanuel Torres de. 16ª Audiência Pública 2017 da Comissão de Combate ao
Crime Organizado – Câmara dos Deputados. Apresentação ABTV.FENAVAL. Disponível
em:http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/cspcco/audiencias-publicas. Acesso em 27 nov. 2017