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10.12.

2009

Unicamp – Universidade Estadual de Campinas


Instituto de Estudos da Linguagem
Docente: Profa. Dra. Viviane Veras
Aluna: Adriana Fiuza Meinberg
adriana.tradutora@gmail.com

Tradutora juramentada: a quem jurei servir?

Quanto mais a mim se revelam os inúmeros significados da palavra


‘juramentada’, tanto mais os adornos do manto (Benjamin: 2008) da promessa
prestada a mim se tornam visíveis, desfilando cruéis e impunemente ao
asseverarem minha dívida, minha missão, minha tarefa (Derrida: 2006) e, por
conseguinte, minha angústia.
Como que em vigília, passo a empreender uma breve investigação,
refletindo acerca do meu ofício de Tradutora Juramentada. Coloco-me a
examinar a relação que se estabeleceu entre mim, a lei e o texto original.
Em várias ocasiões a literatura relativa aos estudos da tradução faz
constar adjetivos atribuíveis àquele que traduz, descrevendo-o penosamente
como o que trai, transgride, violenta o texto (Rajagopalan: 2000), faz o espírito
humano passar de um povo para outro[1] (Hugo apud Venuti: 2005), um sujeito que se
acha imediatamente endividado pela existência do original (...), obrigado a fazer
alguma coisa pelo original e sua sobrevida (Benjamin apud Derrida:?). Blanchot
(1997), por sua vez, descreve o (hábil) tradutor como aquele que preserva um
sentimento de imperfeita comunicação e, em L’Amitié (1971), segue afirmando
“... Le traducteur est un homme étrange, nostalgique, qui ressent, à titre de manque,
dans sa propre langue (...)”. Assim, com a estranheza de um forasteiro, vejo todos
estes traços ratificarem meu estado de angústia perante a atividade tradutória e
tudo o que ela engendra.
Poderíamos proceder a distintas leituras do conceito/significação da
palavra angústia, cuja origem latina indica angustura, estreitamento, aperto.

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Substantivo feminino que quer dizer falta, inquietude, tormento, sofrimento. Na
psicologia, descreve-se como medo sem um objeto determinado, enquanto na
filosofia, Kierkegaard (apud Houaiss) a relata como um sentimento ameaçador
e indeterminado, e Heidegger a expõe como “uma situação afetiva
fundamental, despertada pela consciência da inevitabilidade da morte, que
coloca o homem em presença do Nada absoluto e incontornável” (apud
Houaiss).
O tradutor juramentado é credenciado “por uma promessa” (Silva: 1961,
p. 892), adquirindo fé pública, em fé ou fiança deste compromisso. Portanto, é
aquele que jurou, prometeu. O mesmo autor afirma que juramento, por sua vez,
na terminologia romana, era dito affirmatio religiosa, pois significava a promessa
feita sob a invocação dos deuses, não havendo maior castigo que o divino
quando a divindade era falsamente invocada. Considero em alguma medida
relevante registrar que, para os romanos, a invocação da divindade não se fazia
absolutamente indispensável, pois o jurando podia estar obrigado à sua
consciência, visto que o dever de prestar juramento era de tal modo imperioso
que aquele que se negasse a fazê-lo era tido como indigno. Mais além, o Direito
Romano conceituava o juramento como algo que conferia um caráter sagrado às
promessas ou às obrigações.
Logo, partindo da premissa Romana de juramento, o tradutor
juramentado jurou, prometeu e, assim, credenciou-se mediante compromisso
assumido perante o estado, sob a lei, estando igualmente obrigado por sua
consciência – e, neste aspecto, não creio que se diferencie de modo algum do
tradutor não juramentado.
Portanto, desapropriada de autonomia, a tradução juramentada tende a
refletir o teor do original de modo a constituir sua fotografia, em um “esforço
por assim dizer pragmático” (Aubert: 1996) em tornar-se o mais literal possível,
literalidade esta justificada pelo fato de dever assegurar-se portadora da fé
pública da tradução para fins legais, reforçada pelo dever de estar acompanhada
de seu original, para que resulte em tais efeitos. Em virtude de seu juramento, o
tradutor juramentado comprometeu-se a oferecer uma “reprodução integral”

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do texto original; ou seja, trabalhar com a literalidade e, por conseguinte, com
fidelidade ao texto original, gerando assim uma tradução que não é “totalmente
autônoma”.
Investigando acerca da tipologia da tradução juramentada, encontramos
a classificação de Aubert (1996: p.106) descrevendo-a como “outra variante da
tradução pragmática” por referir-se a uma “intenção comunicativa” com
finalidades legais e/ou comercais, e não a uma “intenção estética”. Por tradução
pragmática ele considera:

(i) a tradução de textos promocionais (publicidade, propaganda,


anúncios), que incorpora, de forma similar à dos textos literários,
uma preocupação com a equivalência estética, mas apenas de forma
marginal e circunstancial, com a forma de partida;

(ii) a tradução de textos que, dada a sua natureza e/ou a sua


finalidade especifica, normalmente exigem um vinculo estreito com
o original (por exemplo, balanços patrimoniais e outros
demonstrativos financeiros), e que não se ocupa com a equivalência
estética, quer porque tal componente estético inexiste ou, se existe, é
irrelevante mesmo no original;

(iii) a tradução de textos descritivos c instrucionais, de conteúdo


tecnológico (técnicos no sentido estrito do termo), para os quais,
como em (ii), a questão da equivalência estética e, para todos os
efeitos práticos, irrelevante, mas que tendem a priorizar a perfeita
assimilação pelo destinatário da tradução, com o menor índice
possível de "ruídos" culturais, linguísticos, etc.

Além dessa “invariância semântica”, Aubert (1996: p.112-113) trata da


questão da forma, ou seja, do aspecto visual nas traduções juramentadas.
Segundo o autor, o estilo do texto juramentado no Brasil segue o estilo cartorial,
“sem marcação de parágrafos” e com “fins de linha plenamente preenchidos”.
Assim argumentando, conclui que, tipologicamente, a tradução juramentada
não se compatibiliza com as “diversas variantes da tradução pragmática”,
embora possa se estabelecer uma dada equivalência com a tradução literária,
uma vez que a juramentada, na intenção de reproduzir o texto de partida
palavra por palavra, evidencia o valor da forma do texto fonte, sem que ocorram,
contudo, recriações estéticas. Valendo-se disso, Aubert termina por sugerir que

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a tradução juramentada seja classificada como ‘metalinguística’, no que tange à
sua “forma de execução”.
Em razão de todas estas considerações, gostaria de resgatar minha
angústia, tratando novamente da relação que se estabeleceu entre mim, a lei e o
texto original (não necessariamente nessa ordem).
Creio que minha angústia resida no fato de haver um juramento perante
a Lei e o Estado, pelo qual o tradutor juramentado assume o compromisso de
ser o mais fiel possível no ato tradutório, lei esta que, soberanamente, vem
sobrepor-se às leis do próprio texto, sob a alegação de que a literalidade em
questão configura-se de tal maneira emancipada das tantas outras implicações
tradutórias, que se basta para fazer resultar o efeito que se pretende. Minha
angústia reside no fato de que, assim como no conceito Romano do juramento,
encontro-me aqui não apenas obrigada pela minha consciência, mas
primordialmente por ela submetida, empenhada, penhorada. Portanto, meu
compromisso se estabelece com ela, minha consciência, que se debate face ao
dever do cumprimento da lei da fé pública, sabendo que inúmeras vezes é
possível ser infinitamente mais fiel (caso tal fato exista) ao original, traduzindo-
o diferentemente, seguindo a liberdade que Cícero concedeu à tradução,
perdoando sua dívida “em relação à palavra por palavra”, como afirma
Derrida, ao discutir sobre o que é uma tradução “relevante” (1999).
Se a psicologia define a angústia como o medo sem um objeto
determinado, e Lacan vai redefini-la como um afeto que não engana, começo a
identificar o objeto da minha angústia (é a certeza de que falta algo que causa a
angústia – é nesse sentido que ela é “certa”, e não engana), seria plausível supor
que esta se dissipasse. Curiosamente, ocorre exatamente o contrário. Minha
angústia não se dissipou com minha constatação. Neste momento,
simplesmente me é possível nomea-la, o que a torna em parte estranha, mas um
tanto quanto familiar, permitindo que fique, sem ser assim tão estrangeira a
mim, tão incômoda. Permanece aqui, produzindo um dado estreitamento, um
aperto, uma inquietude.

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Portanto, assim se dá minha relação com a lei e o texto (e a lei do texto).
Relação baseada em um compromisso firmado pela consciência daquela que
jurou. Jurei respeitar de tal modo o texto original, delimitada às fronteiras da fé
pública, que esquecer-me disso seria perjúrio, passível de castigo divino.
Minha angústia é perceber que, ao resguardar a fé pública da tradução,
transgrido, violo, violento e traio o original, para ver aceita minha tradução,
violentando a mim. Ironicamente, a lei vem legitimar, afiançar tal traição,
tornando-me duplamente endividada, imperfeita. Não me cabe indagar a que
senhor devo servir no ato tradutório em fé pública. Tal senhor não me parece
ser o texto, mas a lei. Em essência, inquestionável.
Fundamentalmente, ouso presumir que a grande contradição da
tradução juramentada habita no compromisso de trair para ser fiel.

Bibliografia
AUBERT, Francis Henrik. Tipologia da tradução: o caso da tradução juramentada.
In: Anais do V Encontro nacional de Tradutores. Milton, John; Laranjeira,
Mário; Aubert, Francis H. (Org.). São Paulo: Humanitas Publicações, 1996.
________________. Dilemas da literalidade na tradução juramentada. São Paulo:
ATPIESP, 2005 (Reescrita).
BEIJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
Tradução de Susana Lages.
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Bauru: EDUSC, 2002.
SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Companhia Editora
Florense, 1973.
BLANCHOT, Maurice. L’Ámitié. Paris: Gallimard, 1971.
_______________. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: UFMG, 2006. Tradução
Junia Barreto.
_______________. O que é uma tradução “relevante”? (1999). Trad. Olívia
Niemeyer Santos, ALFA. Revista de Linguística. São Paulo: UNESP, v.44, 2000,
p.13-44.
_______________. Mesa redonda sobre tradução (fragmento). Tradução inédita
para o português de Olívia Niemeyer Santos e Paulo Ottoni. 2003.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Traição versus Transgressão: Reflexões acerca da
tradução e pós-modernidade. São Paulo: ALFA, 2000. v-44, n.esp., p-1-6.
SARGENTIM, Hermínio. Dicionário de ideias afins. São Paulo: IBEP, [s.d.].
VENUTI, Lawrence. Local contingencies: Translation and national identities. In:
BERMAN, Sandra; WOOD, Michael (eds). Nation, Languages and the Ethics of
Translation. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2005.

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