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Literatura

Portuguesa: Poética
Material Teórico
Do Romantismo ao Realismo

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha

Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Albert
Do Romantismo ao Realismo

• Introdução

• O Contexto Português

• O Realismo

• Um expoente do Realismo Português - Antero de Quental

·· Nesta unidade, daremos continuidade ao estudo dos textos líricos


da Literatura Portuguesa e iremos percorrer o século XIX.
·· Trata-se de um período bastante complexo, pois corresponde
à mudança de classe dominante: a nobreza cede espaço à
burguesia e com ela novos padrões estéticos serão privilegiados.
Num primeiro momento, veremos o Romantismo e depois o
Realismo, que cumpre, a um só tempo, o papel de ser reação
a alguns aspectos do Romantismo e continuação dele.

Atenção

Para um bom aproveitamento do curso, leia o material teórico atentamente antes de realizar as
atividades. É importante também respeitar os prazos estabelecidos no cronograma.

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Contextualização

Mais que uma escola literária, o Romantismo significou uma mudança radical nos padrões
estéticos do Ocidente. Trata-se de um momento em que a alternância de poder entre a Nobreza
e a Burguesia provoca uma alteração significativa na cultura e, é claro, com reflexo nas artes.
Extremamente libertário, o Romantismo passa a cultivar a liberdade de expressão, a valorizar
o povo e a expressar os sentimentos de forma, às vezes, exagerada. Fazem parte, ainda, desse
período: a atração pela Idade Média, conhecida como o período das trevas; o escapismo quer
pela morte, quer pela fuga espacial, entre outras características que serão apresentadas mais
detalhadamente no material teórico desta unidade.
A partir da segunda metade do século XIX, os exageros românticos são contidos pelo Realismo.
Essa tendência, nascida sob influência dos avanços científicos e tecnológicos do período, tenta
repor a objetividade perdida e propõe uma arte menos idealizada, mais próxima do cotidiano.
Mesmo assim, os aspectos do Romantismo não foram totalmente esquecidos ou combatidos.
Em certo sentido, discutiremos que o Realismo e outros movimentos posteriores, inclusive os que
fazem parte da arte contemporânea, podem ser encarados como desdobramentos da tendência
romântica, que marcou o século XIX.
Especificamente em Portugal, temos a luta entre liberais e absolutistas, na primeira metade
do século XIX, evento que marca a sociedade e prepara o terreno para a queda da monarquia
e o advento da República, em 1890. No campo das artes A Questão Coimbrã e as Conferências
do Cassino de Lisboa são marcos da mudança de mentalidade dos intelectuais da época.
Nesta unidade, tivemos de selecionar e sintetizar os principais aspectos dos dois períodos, bem
como eleger apenas alguns autores e textos mais representativos de cada momento. Esperamos
que você amplie seus estudos para conhecer mais sobre o tema, por meio das bibliografias
indicadas no material teórico e das sugestões do material complementar.

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Introdução

O século XIX é marcado por grandes tendências artísticas: O Romantismo; o Realismo


e Naturalismo; o Parnasianismo e o Simbolismo. Nesta unidade, vamos abordar, mais
especificamente, o Romantismo e o Realismo. Olhando panoramicamente o período, contudo,
podemos perceber que essas tendências, por mais que possuam aspectos que entram em
confronto uns com os outros, a subjetividade do Romantismo e a objetividade do Realismo, por
exemplo, apresentam-se como desdobramentos do momento marcante para a arte ocidental que
foi a alternância de poderes entre a Nobreza e a Burguesia, momento marcado pelo surgimento
da estética romântica como expressão dos valores burgueses na arte.
Nesse sentido, a história da literatura ocidental pode ser dividida em dois grandes períodos: o
clássico, que corresponde ao período da antiguidade greco-latina até o século XVIII e o período
moderno, que vai do final do século XVIII (já falávamos no pré-romantismo de Bocage) até os
dias atuais.
O escritor clássico possuía uma visão fechada do mundo, seu discurso era mimético, ou seja,
imitativo, mantendo uma relação de verossimilhança com o objeto que se propunha a retratar
artisticamente. Verossimilhança é aquilo que poderia ter sido, é a verdade possível.
Sendo assim, a estética clássica assume um tom normativo, porque tenta impor um modelo
que corresponda a um sistema sustentado pela classe dominante no período, a aristocracia.
O domínio será mantido pelo discurso e está intimamente ligado à retórica, à habilidade de
convencer por meio da palavra. A Retórica, compreendida na sua perspectiva clássica, é a
disciplina que visa estabelecer as regras e os procedimentos que devem ser utilizados quando se
transforma o pensamento em discurso, objetivando dar-lhes coerência e credibilidade.
Camões, por exemplo, segue o modelo clássico em sua obra Os Lusíadas, mas já em seu
tempo, o mundo clássico está em dissolução. Prova disso é que o poeta faz a imitação da
epopeia de Homero, A Odisseia, quando retrata a viagem dos portugueses às Índias, mas o
seu herói, Vasco da Gama, não assume a função mais importante na narrativa, esta é dedicada
ao Estado português, daí a opção pelo título da obra, uma expressão plural que representa
uma homenagem ao povo lusitano, diferente do título da epopeia homérica que representa
uma homenagem ao herói individual, singular, ou seja, Odisseu, Ulisses ou ainda a epopeia de
Virgílio, Eneida, cujo título também se refere diretamente a Enéas, fundador mítico de Roma.
Encontramos exemplos da dissolução do discurso clássico, ainda, nas várias referências que
Camões faz à ambição do povo português, a exemplo destas: no episódio do Velho do Restelo,
em que o personagem diz: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça” (Os Lusíadas, canto IV, 95),
referindo-se aos navegantes que partem para as viagens às Índias; e no epílogo da obra, quando
diz que está cansado de cantar para gente surda e endurecida e que a pátria está metida na
mais austera e vil tristeza: “No mais, Musa, no mais,/ que a lira tenho destemperada e a voz
enrouquecida,/ e não do canto, mas de ver que venho/ cantar a gente surda e endurecida./ O
favor com que mais se acende o engenho/ não nos dá a pátria, não, que está metida/ no gosto
da cobiça e na rudeza/ duma austera, apagada e vil tristeza./desta vaidade a quem chamamos
Fama!” (Os Lusíadas, canto X, 145).

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Ainda que desgastado, o discurso clássico terá seu resgate no século XVIII. Será, contudo,
uma espécie de café coado pela terceira vez: a primeira foi o classicismo da Antiguidade; a
segunda, o classicismo do Renascimento. Dessa forma, o homem do século XVIII, pelo menos
na arte, tem de negar seu tempo, sua história, já que o período é marcado pela perspectiva da
crença do futuro melhor. Diz-se que esse período é marcado pelo signo de Jano, Deus romano
que tinha duas faces, uma voltada para o passado e outra para o futuro. No caso do século XVIII,
o Iluminismo, o Racionalismo, o Enciclopedismo e a valorização da ciência representam a face
voltada para o futuro, enquanto que o culto à arte da Antiguidade clássica e do Renascimento
representa a face voltada para o passado.
Diante desse conflito, podemos dizer que os grandes autores do período Árcade anteciparam,
em certo sentido, os aspectos que estariam presentes no Romantismo. Além disso, o período
árcade teve uma duração relativamente curta, pois os modelos de construção que impunha aos
autores eram incompatíveis com a essência da criação artística, que é a originalidade.
A originalidade como marca da criação artística e, consequentemente, literária, será valorizada
no período romântico. O Romantismo, segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, apresenta uma
nova concepção do “eu”. O espírito humano é compreendido como uma entidade que tende
para o infinito e que aspira romper com os limites que o restringem numa busca constante
do absoluto, embora esse absoluto permaneça sempre como um alvo inatingível. Como a
sociedade impõe restrições ao romântico, ele é um eterno insatisfeito, vive numa busca constante
e angustiada por uma verdade que poderia iluminar a sua vida.
Paralelamente a isso, o romântico abre-se ao sobrenatural e ao mistério, pois acredita que o
verdadeiro conhecimento exige do homem que se desvie de tudo o que o cerca e desça dentro
de si próprio. Considerando o mundo exterior o universo das sombras, o romântico procura em
sua interioridade a verdade que procura ansiosamente.
Nessa busca, apega-se à ideia de que o homem é um ser em parte divino, uma espécie de rio
turvo que nasceu de uma fonte pura. Se o destino humano é feito de miséria, solidão e rebeldia,
ele pode triunfar buscando a morte. O titanismo é uma característica do Romantismo, ou seja, o
culto aos seres que, na mitologia, não são nem deuses nem homens, têm poderes que superam
os humanos, mas sofrem como os humanos, a exemplo de Prometeu, que deu o fogo divino aos
homens e por isso foi punido pelos deuses do Olimpo.
O Romântico também cultua seres que foram marcados pela rebeldia, como Caim e Satã, que
desafiaram o Criador. Ao mesmo tempo, cultuam personagens como Cristo, pela sua dedicação
à humanidade, pelo sofrimento, enfim, pela sua excepcionalidade.
A busca da excepcionalidade, da individualidade, marca o herói romântico nas narrativas e a
imagem do sujeito poético nos textos líricos: trata-se da construção de um homem fatal, de face
pálida, olhar sem piedade, que carrega uma melancolia, um desespero, uma revolta e um desejo
de destruição que beira o mal, ao mesmo tempo em que cultua a defesa dos fracos e oprimidos,
dos injustiçados. Como você pode perceber, trata-se de um homem bastante complexo que
revela a complexidade da sociedade em que vive.
Os poetas consideram-se geniais, incompreendidos pela sociedade e pelos outros homens,
condenados à solidão e a desafiar o destino. Esse conjunto de ideias leva ao chamado Mal do
Século, uma espécie de doença psicológica que atinge os românticos, torna a vida deles tediosa
a ponto de desejarem a morte. Esse mal pode levar o poeta à morte.

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Outro recurso de que o romântico se serve para exprimir suas ideias é a ironia, que nasce da
consciência do caráter contraditório da realidade, da percepção da relatividade dos conceitos,
do desgosto com o mundo que o cerca.
Esse desgosto leva à fuga para outras terras, ao gosto pelo exotismo de outras terras, o gosto
pelo primitivo. O romântico, contudo, também valoriza sua terra, imprime em suas obras a
chamada “cor local”, reprodução pitoresca dos aspectos característicos de um país ou região.
Outro tipo de evasão empreendida pelo romântico é a evasão temporal. Descontente com
o presente, revaloriza a Idade Média, em parte para contrapor-se ao árcade, que valorizava o
período do Renascimento. O romântico vai buscar no período medieval as lendas, os costumes,
o mistério, as tradições, o idealismo cavalheiresco que cercava a época. Além disso, busca na
Idade Média, berço das nações modernas, a gênese de seu povo, de sua história. O gosto pela
cultura medieval influenciou principalmente com o resgate de gêneros daquele tempo como a
balada e os romances (compreendidos aqui como poesias narrativas), entre outros.
A complexidade do período romântico manifesta as contradições próprias desse tempo.
Simultaneamente a uma literatura de evasão, a literatura romântica também exprime os problemas
de seu tempo, é enraizada na história e procura agir sobre a história. Paralelamente ao fato de
ser uma arte idealista, visionária, o romantismo também apresenta atitudes intelectualistas e
um olhar crítico sobre o homem de seu tempo, o burguês, apesar de ser produto da burguesia.
Temos, nesse aspecto, a semente do Realismo, tendência da segunda metade do século XIX.
Não obstante ser uma arte voltada para o fantástico, para o grotesco, para o que é excessivo e
anormal, o romântico também atenta para o real e para o objetivo, procura retratar o homem e
o mundo com autenticidade.
Com relação à Natureza, o romântico procura projetar nela seu estado de espírito. Diferente
do período árcade, em que havia fórmulas de representação de uma natureza idealizada, o
locus amoenus, o romântico individualiza e personifica os elementos naturais como reflexo de
seu “eu”, de forma que o Universo seja um prolongamento da individualidade do artista. Em
certo sentido, pode-se dizer que o romântico redescobre o sentimento religioso na visão da
Natureza, identifica-a com Deus.
Também o “eu” romântico projeta-se na pátria, torna-se solidário àqueles que pertencem ao
seu grupo e defende a democracia. Em política, o romântico é liberal e, muitas vezes, produz
uma literatura de cunho social em defesa, inclusive, do proletariado. Opondo-se à concepção
clássica de beleza como algo equilibrado, uniforme, universal, o romântico vê a beleza na
diversidade, no gosto pessoal.

Glossário
Liberalismo – conjunto de ideias e doutrinas que buscam assegurar a liberdade individual no
campo da política, da moral, da religião, enfim da sociedade.
Liberalismo econômico e político – doutrina que prega a não intervenção do Estado nos
negócios privados, visando ao estabelecimento da liberdade política do indivíduo em relação ao
Estado e preconizando liberdades iguais para todos.

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Em face da complexidade do movimento, podemos sintetizar algumas das características que


serão encontradas nos textos românticos no plano das ideias e dos temas literários:
»» Reação contra os clássicos: revolta contra regras, modelos e normas e busca da
total liberdade de criação artística.
»» Defesa da impureza dos gêneros literários. Em lugar da rígida divisão clássica
que separa a tragédia e a comédia surge a tragicomédia, mistura de drama com
comédia.
»» Predomínio da aventura em lugar da estabilidade e da ordem clássicas;
preferência pelo caos em lugar do equilíbrio e do individualismo em lugar do
universalismo.
»» Elevação do “eu” ao status de centro do universo, o que leva o romântico a uma
contemplação narcisista de si mesmo e, quando vê o mundo, este é considerado
como um prolongamento de seu próprio “eu”.
»» Oposição: ao culto da razão pelo culto das razões do coração; ao racionalismo pelo
sentimentalismo e à especulação pela imaginação.

O Contexto Português

O século XIX é bastante complexo do ponto de vista histórico em Portugal. Entre 1807 e
1811, a França, sob o domínio de Napoleão, invadiu o país três vezes em retaliação à fidelidade
de Portugal à aliança inglesa.
A família real foge para o Brasil, em 1807, para assegurar a independência de Portugal
e a colônia é elevada à condição de reino. Depois da expulsão dos franceses, a Inglaterra
passa a ter enorme influência sobre Portugal, o que gera reações internas que culminam com a
Revolução Liberal do Porto, em 1820, que terminou provisoriamente com o regime absolutista
no país. Foram anos de tensão provocada, entre outros fatores, pela perda do Brasil, que se
tornou independente em 1822; pela contrarrevolução absolutista de 1823; e pelas lutas entre
os absolutistas e liberais, uma das maiores guerras civis de Portugal, tendo à frente os irmãos D.
Miguel e D Pedro I do Brasil (IV de Portugal), que se estendeu entre os anos de 1830 a 1847,
período da Restauração.

Explore
Para saber mais sobre a história de Portugal no período, visite o site História de
Portugal, no endereço eletrônico.
99 http://www.ribatejo.com/hp/

Nesse clima de instabilidades política, econômica e social que ilustra bem o embate entre
ideias do século XVIII e do século XIX, ou seja, entre o absolutismo e o liberalismo, desenrola-se
o Romantismo português, que teve como seu introdutor o escritor Almeida Garrett.

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Sintomaticamente, a obra desse autor, considerada a primeira do romantismo português, foi
publicada quando ele estava exilado na França, em 1825, e tem como tema e título Camões.
Ao eleger o escritor clássico como tema, Garrett presta um tributo ao Classicismo. No entanto,
ao tratar nessa obra da vida sentimental do poeta clássico, seus amores por Natércia, Garrett
evidencia, ao mesmo tempo, o caráter pessoal e sentimental que envolve a epopeia amorosa
do escritor quinhentista.
O Romantismo evoluiu, em Portugal, em três fases: a primeira geração romântica portuguesa
apresenta a sobrevivência de características neoclássicas, o nacionalismo, o historicismo e o
medievalismo. São autores principais desse período: Almeida Garrett (1799-1854), Alexandre
Herculano (1810-1877) e Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875). Deste período, daremos
destaque a Almeida Garrett, pois embora Alexandre Herculano também tenha escrito poesias,
seu nome destaca-se na prosa.
A segunda geração romântica portuguesa apresenta traços do Ultrarromantismo: o Mal do
século, os excessos do subjetivismo e do emocionalismo românticos, irracionalismo, escapismo,
fantasia e pessimismo. São os principais autores dessa geração: Camilo Castelo Branco (1825-
1890) e Soares Passos (1826-1860). O primeiro foi essencialmente prosador. Já o segundo, será
estudado como representante da poesia dessa fase.
A terceira geração romântica aproxima-se do Realismo. Dela fazem parte, entre outros, Júlio Diniz
(1839-1871), prosador, e João de Deus (1830-1896), poeta. Daremos destaque à figura de João de
Deus, pois se trata de um escritor que foi bastante respeitado pela geração dos realistas.

Primeira Geração do Romantismo Português

Almeida Garrett
Garrett nasceu em 1799, na cidade do Porto. Em 1809, sua família teve de ir para a Ilha Terceira
por causa das invasões francesas. Recebeu de um tio bispo, uma educação religiosa e clássica. Mais
tarde, em 1816, começou a cursar Direito em Coimbra onde aderiu às ideias liberais e começou a
escrever algumas peças de teatro. Em 1820, escreveu a tragédia Catão, representada em Lisboa, em
1821, o mesmo ano em que se casou com Luísa Midosi e publicou o poema “Retrato de Vênus”,
pelo qual foi processado judicialmente, acusado de usar linguagem obscena. Foi absolvido e ganhou
celebridade graças à defesa que fez em causa própria. Em 1823, depois da Revolução de Vila
Franca, em que os absolutistas assumiram o poder, exilou-se na Inglaterra, onde teve contato com
a literatura romântica (Byron e Walter Scott), além de ter relido William Shakespeare. Em 1824,
foi para a França trabalhar como correspondente onde, em 1825, publicou Camões. Em 1826,
publicou D. Branca e regressou a Portugal trabalhando como jornalista político. Em 1828, quando
mais uma vez o Absolutismo triunfou, voltou a exilar-se na Inglaterra. Em 1830, inicia a compilação
do Romanceiro e, em 1832, integrou-se no exército liberal de D. Pedro IV, desembarcou no Mindelo
e participou do cerco à cidade do Porto, escrevendo aí a primeira parte do Arco de Santana.
Terminada a guerra civil, em 1834, Almeida Garrett foi nomeado cônsul geral em Bruxelas. Estuda a
língua e a literatura alemãs (Herder, Schiller e Goethe). Em 1836, regressou a Portugal e separou-se
de Luísa Midosi, que o teria traído em Bruxelas. Passos Manuel encarregou-o de reorganizar o teatro
nacional, nomeando-o inspetor dos teatros, cargo que perdeu em 1837, por causa da demissão do
amigo Passos Manuel. Apaixonou-se por Adelaide Deville, que morreu em 1841 e com quem teve
uma filha, Maria Adelaide. Entre 1838 e 1843, dedicou-se ao teatro e, no ano de 1842 passou

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

a lutar contra a ditadura que foi instalada pelo governo de Costa Cabral. Em 1845, publicou o
romance Arco de Santana e a coletânea de poemas Flores sem Fruto. Apaixonou-se por Rosa
Montufar, a Viscondessa da Luz. Entre 1846 e 1851 publicou o romance Viagens na Minha Terra,
teve seu drama Frei Luís de Sousa representado no Teatro Nacional, foi nomeado ministro dos
Negócios Estrangeiros e recebeu o título de Visconde. Em 1853, publicou Folhas Caídas, coletânea
poética que causou escândalo na época. Morreu em dezembro de 1854.

Nesta unidade, interessa-nos Garrett poeta. Nesse gênero, a obra Folhas Caídas ganha
destaque sobre as demais produções do autor, em parte pela maturidade literária do poeta
quando a escreveu e, em parte, pelo caráter de confessionalismo que apresenta, já que a obra
teria sido escrita sob a inspiração do amor que Garrett nutria pela Viscondessa da Luz. Um dos
poemas mais conhecidos e que exprime de modo exemplar os aspectos do Romantismo é “Este
inferno de amar”, não só pela temática amorosa, mas pela forma como ela é expressa:

Este Inferno de Amar !


Este inferno de amar — como eu amo!
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida — e que a vida destrói —
Como é que se veio a atear,
Quando — ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra; o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez… — foi um sonho —
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar…
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso


Eu passei… dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Que fez ela? Eu que fiz? — Não no sei
Mas nessa hora a viver comecei…

Observe a liberdade de criação dos aspectos formais do poema que rompe com a rigidez
formal imposta pelo Arcadismo. O texto aproxima-se da prosa versificada, não tem a preocupação
excessiva com rimas externas ou com a regularidade métrica. Além disso, a pontuação emocional,
composta por pontos de exclamação, interrogação e reticências, acentua o caráter dramático da
composição. A sintaxe retorcida pelos hipérbatos revela certo descontrole emocional do sujeito
que se coloca como centro do texto: “como eu amo”. O sentimento amoroso é infernal, mas ao
mesmo tempo o sujeito parece gostar do sofrimento, “chama que alenta e consome”.
Outro dado romântico que aparece no texto é a referência ao passado, que é associada a
uma possível vida alternativa do sujeito, uma vida de sonho, em que havia paz e que agora se
rompeu. A idealização de um passado glorioso ou a idealização do sonho como um sucedâneo,
ou seja, substituto da dura realidade é frequente nos textos românticos. Para esse efeito de
sentido concorre a seleção lexical empreendida pelo autor, palavras que remetem ao mundo
onírico: “sonho”, “sonhar”, “dormir”, “doce [...] sonhar”, “outra vida”, “paz tão serena”.
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Formalmente, os cinco últimos versos, que correspondem ao encontro com a mulher, o
despertar do amor e o renascimento do sujeito poético, estão isolados da vida passada, que era
composta de paz, tranquilidade e sonho como mostram os doze primeiros versos. Essa ruptura
formal corresponde à ruptura temática, ou seja, à mudança de perspectiva que ocorreu para o
sujeito a partir do momento em que conheceu a mulher.
O Romantismo do texto fica mais evidente em seu caráter confessional se considerarmos que
o poema reflete a paixão de Garrett pela Viscondessa da Luz, fato que o autor faz questão de
apontar no texto por meio da metáfora: “...dava o Sol tanta luz!”
Vamos analisar, a seguir, outro poema do autor. Leia-o com atenção:

Não te Amo
Não te amo, quero-te: o amor vem d’alma.
E eu n ‘alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.

Ai! não te amo, não.


Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero


De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.


Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,


De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto


Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Neste texto, mais uma vez, encontramos o tom teatral, dramático do sujeito poético construído
por Almeida Garrett. A confissão, a contraposição entre o amor idealizado e o desejo, o sujeito
que pretende revelar-se de forma narcisista, ególatra. No caso do texto “Não te amo”, existe
a consciência do sujeito a respeito dos males do amor, mas ao mesmo tempo o mergulho no
sentimento, ou seja, a negação da razão.

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Podemos destacar, ainda, os hipérbatos ou os exageros linguísticos que caracterizam o


sentimento, como “o querer bruto e fero” (feroz) que devora o sangue entre outras imagens.

Para complementar seus estudos sobre Garrett, sugerimos a leitura do estudo sobre
o poema, “Barca bela”, feita por Laeticia Jensen Eble, em que a autora propõe uma
visão metalinguística do texto, ou seja, uma visão do texto como um poema que fala da
consciência do sujeito sobre o ato de escrever. Tratando-se de um poema romântico, essa
leitura é relevante, pois um dos aspectos desse estilo é a dificuldade do sujeito poético de
transformar os seus sentimentos em palavras ou de encontrar palavras que deem conta
de traduzir seus sentimentos.

Você pode encontrar a leitura no endereço eletrônico: http://www.jornaldepoesia.jor.br/


laeticiajensen5.html, último acesso em 8/11/2013.

Segunda Geração do Romantismo Português


Essa segunda geração do Romantismo Português corresponde ao Ultrarromantismo. Esse foi o
período em que a produção poética apresentou um excesso de sentimentalismo, de dramaticidade.
Um dos autores ultrarromânticos mais conhecidos em Portugal foi Soares Passos (1826-1860). Filho
de burgueses, Soares Passos trabalhou no comércio e, depois, cursou Direito em Coimbra. Fundou o
periódico O Novo Trovador, em 1851, que reunia poetas medievalistas. A tuberculose foi a causa de
sua morte prematura, em 1860, aos 34 anos, e talvez do seu isolamento. Deixou um livro de poemas
publicado em 1855, cujo título é Poesias, do qual se pode extrair um texto antológico que caracteriza
o pensamento ultrarromântico, “O Noivado do Sepulcro”.

O Noivado do Sepulcro
Balada
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe


Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D’entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste


Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto


Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

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Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

“Mulher formosa, que adorei na vida,


“E que na tumba não cessei d’amar,
“Por que atraiçoas, desleal, mentida,
“O amor eterno que te ouvi jurar?

“Amor! engano que na campa finda,


“Que a morte despe da ilusão falaz:
“Quem d’entre os vivos se lembrará ainda
“Do pobre morto que na terra jaz?

“Abandonado neste chão repousa


“Há já três dias, e não vens aqui...
“Ai, quão pesada me tem sido a lousa
“Sobre este peito que bateu por ti!

“Ai, quão pesada me tem sido!” e em meio,


A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

“Talvez que rindo dos protestos nossos,


“Gozes com outro d’infernal prazer;
“E o olvido cobrirá meus ossos
“Na fria terra sem vingança ter!

– “Oh nunca, nunca!” de saudade infinda


Responde um eco suspirando além...
– “Oh nunca, nunca!” repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,


Longas roupagens de nevada cor;
Singela c’roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

“Não, não perdeste meu amor jurado:


“Vês este peito? reina a morte aqui...
“É já sem forças, ai de mim, gelado,
“Mas inda pulsa com amor por ti.

“Feliz que pude acompanhar-te ao fundo


“Da sepultura, sucumbindo à dor:
“Deixei a vida... que importava o mundo,
“O mundo em trevas sem a luz do amor?

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Unidade: Do Romantismo ao Realismo

“Saudosa ao longe vês no céu a lua?


– “Oh vejo sim... recordação fatal!
– “Foi à luz dela que jurei ser tua
“Durante a vida, e na mansão final.
“Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
“Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
“Quero o repouso de teu frio leito,
“Quero-te unido para sempre a mim!”
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d’infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

A temática do poema é romântica: o amor que se prolonga além da vida. Além disso, trata-se
de um tipo de amor que se realiza em um ambiente de mistério, sombrio, fantástico, negro, o que
denuncia o gosto do ultrarromântico pela excepcionalidade, pelo mistério, tudo isso sintetizado
no cenário perfeito, que é o cemitério.
Também estão presentes no texto a dramaticidade e a passionalidade com que os personagens
encaram o sentimento amoroso e vivem os acontecimentos. Perceba que podemos, aqui, falar
em personagens do poema porque Soares Passos recupera um gênero medieval, a balada, para
compor seu texto. Trata-se de um gênero que remete o leitor ao clima da Idade Média, época
para a qual o romântico se volta. Frequentemente, a balada é a narrativa de uma história em
versos, em que há diálogo, personagens. A presença do diálogo confere dramaticidade ao texto.
Veja algumas especificidades do gênero Balada no texto a seguir e compare-as com o poema
“Noivado no Sepulcro”:

...a balada poderia assim ser apresentada como um tipo de poema narrativo, cuja
literariedade foi ao longo dos séculos objecto de debate e reapreciação, que tende em
regra a organizar a história num enredo algo depurado (muitas vezes centrado numa só
personagem, num só acontecimento/episódio, num só conflito ou numa só temática),
reduzido a lances capitais narrados de forma linear e sintética, lacônica ou até elíptica,
característica infelizmente agravada pela condição fragmentária ou lacunar de que
padecem muitas baladas antigas. Esse sintetismo explica não só a tendência para a
compactação, por vezes sincrónica ou até acrônica, dos acontecimentos narrados por

16
um narrador impessoal ou invisível, mas também para a extremização ou polarização
dos conflitos e das personagens, tendência essa que, reforçada pelo recurso ao diálogo
e pela frequente presença de um atmosfera trágica ou ominosa, confere à balada um
cunho acentuadamente dramático. A ele vem por vezes juntar-se o elemento mágico,
maravilhoso ou sobrenatural responsável pela inverossimilhança, pela implausibilidade
e pelo irrealismo da balada, criticados e condenados por épocas, gostos, setores e
indivíduos mais racionalistas.

Fonte: Miguel Alarcão: “Balada”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL),


coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.edtl.com.pt>, consultado
em 8-11-2013.

Esta balada de Soares Passos ganhou bastante notoriedade a ponto de ser cantada pelas
ruas em noites de luar na cidade do Porto. A aproximação do romântico com o gosto popular é
também uma das características da estética, já que esse estilo reflete o modo de vida burguês e,
em certo sentido, opõe-se aos valores aristocráticos.
Em geral, os ultrarromânticos foram condenados pela falta de criatividade, pelo uso de clichês
e pelo excesso de sentimentalismo que marcaram suas produções. No caso específico de Soares
Passos, é possível que a convivência com a doença que lhe seria fatal tenha intensificado o gosto
pelas formas de expressão que aproximam a arte da própria vida como uma válvula de escape.

Saiba mais sobre o Ultrarromantismo* e sobre o poema de Soares Passos em comparação


com o ultrarromântico brasileiro Álvares de Azevedo lendo o artigo: “Soares de Passos,
Álvares de Azevedo e as diversas faces do ultra-romantismo”, Luciene Marie Pavanelo, no
endereço eletrônico: http://www.revistas.usp.br/crioula/article/download/54945/58593,
último acesso em 8/11/2013.

Nota: a partir da última reforma ortográfica de 2009, o termo Ultrarromantismo passou


a ser grafado sem hífen. Em alguns artigos ou sites mais antigos, bem como em livros
anteriores à reforma, você encontrará o termo com hífen: Ultra-Romantismo.

Terceira Geração do Romantismo Português


A renovação da linguagem romântica irá ocorrer nessa terceira fase, quando já se aproximava
o Realismo, período em que a contenção lírica torna-se uma preocupação como recurso para
atenuar o exagero do ultrarromantismo.

João de Deus (1830-1896) é um poeta que representa essa terceira fase do Romantismo
português. Ele frequentou o curso de Direito na Universidade de Coimbra e depois dedicou-se
ao jornalismo e à advocacia em Coimbra, Beja, Évora e Lisboa. Esteve ligado, inicialmente,
ao Ultrarromantismo, mas abandonou essa tendência seguindo uma estética muito própria.
Na faculdade, conviveu com Antero de Quental, que seria um dos mentores do Realismo em
Portugal e de quem foi amigo e admirador. As suas poesias foram reunidas na coletânea Campo
de Flores, publicada em 1893. Também dedicou-se à pedagogia, período em que escreveu a
Cartilha Maternal, publicada em 1876, tendo como finalidade o ensino da leitura às crianças.

17
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Segundo Massaud Moisés (1981, p. 282-283), João de Deus é o maior poeta romântico
português, porque há nele uma identificação entre a sua sensibilidade e o autêntico lirismo
romântico, bem como com o lirismo tradicional que remonta à Idade Média.

Vamos ler o poema a seguir:

Não sei o que há de vago,


Incoercível, puro,
No voo em que divago
À tua busca, amor!
No voo em que procuro
O bálsamo, o aroma,
Que, se uma forma toma,
É de impalpável flor!
Oh como te eu aspiro
Na ventania agreste!
Oh como te eu admiro
Nas solidões do mar!
Quando o azul celeste
Descansa nessas águas
Bem como nestas mágoas
Descansa o teu olhar!
Que plácida harmonia
Então a pouco e pouco
Me eleva a fantasia
A novas regiões!
Dando-me ao uivo rouco
Do mar, nessas cavernas,
O timbre das mais ternas
E pias orações!
Parece todo o mundo
Só um imenso templo!
O mar já não tem fundo
E não tem fundo o céu!
E, em tudo, o que contemplo,
O que diviso em tudo,
És tu!... esse olhar mudo!...
O mundo... és tu... e eu!...

É possível perceber, no texto, a íntima identificação do sujeito lírico com a natureza. O sujeito
assume a forma de um pássaro em busca de uma impalpável flor. O ambiente onírico domina
o texto “no voo em que divago” e, mais ainda, o ambiente etéreo, composto por coisas que se
dissolvem e ao mesmo tempo que sugerem liberdade, como por exemplo o adjetivo incoercível,
aquilo que não se coage, que não se domina.

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A identificação total com a Natureza mostra o pendor romântico para projetar seu estado de
espírito no espaço circundante: as mágoas do sujeito misturam-se às águas. A Natureza também
é personificada, pois o sujeito fala em “uivo rouco do mar” que adquire o tom de “pias orações”.
O que se percebe no poema é um tom lírico, porém sem os exageros sentimentais que
caracterizavam as outras fases do Romantismo, o que já nos remete à contenção lírica que será
exigida pelos realistas.

O Realismo

O Realismo como movimento artístico nasceu na França, ligado à pintura, num primeiro
momento. Gustave Courbert (1819-1877) colocou à venda quadros e desenhos intitulados
“Realismo – Exposição” em meados do século XIX. O nome das obras devia-se ao fato de
elas retratarem aspectos banais das vidas rural e burguesa. Courbert, apesar de não ter sido
apoiado pela crítica, foi defendido por Champfleury, novelista da época, que escreveu artigos,
a partir de 1850, defendendo a atitude do pintor de inserir as classes mais baixas nas artes e
também de pintar com impessoalidade. Esse movimento ganhou notoriedade até consolidar-
se, na literatura, com a publicação do romance de Gustave Flaubert (1821- 1881), Madame
Bovary, em 1857.
O Realismo reflete, na arte, o Cientificismo da segunda metade do século XIX. Os grandes avanços
científicos e tecnológicos em todas as áreas do conhecimento deram à Ciência um status de forma
de conhecimento privilegiada. A realidade passou a ser concebida sob uma perspectiva materialista
e mecanicista. Nesse sentido, o combate ao subjetivismo romântico colocou-se como uma forma de
se chegar, objetivamente, a verdades universais e impessoais. Para a Ciência, aquilo que tem valor é
o que pode ser comprovado pela observação e pela experimentação.
Esses procedimentos traduzem-se em arte por meio da descrição, da precisão dos pormenores
para que o leitor pudesse fazer rigoroso exame crítico daquilo que era apresentado e chegar à
suposta “verdade objetiva”.
Em Portugal, houve marcos importantes do Realismo. O primeiro deles foi a Questão
Coimbrã, polêmica entre os românticos e os realistas que ocorreu ao longo dos anos de 1865 e
1866. O segundo marco foram as Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense, em 1871,
marco do Realismo português.

Questão Coimbrã
A Questão Coimbrã foi grande polêmica literária do século XIX em Portugal,
protagonizada por dois nomes ideológica e literariamente opostos: Antero de Quental e
António Feliciano de Castilho.
Em 1865, António Feliciano de Castilho, o grande símbolo do Ultrarromantismo português,
faz uma referência, pouco elogiosa, à nova literatura portuguesa (representada, entre
outros, por Antero de Quental), no posfácio a um livro de Pinheiro Chagas.
Antero de Quental respondeu à provocação numa famosa carta aberta – “Bom Senso
e Bom Gosto” – em que utiliza um sarcasmo violento, o que desencadeou a troca de
folhetins e artigos entre as duas facções debatendo a questão.

19
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

A batalha literária chegou a se tornar uma batalha física, pois Antero de Quental
e Ramalho Ortigão (defensor de Castilho) chegaram a duelar, por causa de uma
referência ofensiva feita por Quental à cegueira de Castilho.

A polémica envolveu outras figuras marcantes, entre elas Camilo Castelo Branco,
Teófilo Braga e Pinheiro Chagas, e marcou um grande movimento de mudança da
cultura e da literatura portuguesas, abrindo portas para as Conferências do Cassino
e para o Realismo literário.

Saiba mais em http://faroldasletras.no.sapo.pt/questao_coimbra.htm, acesso em


17/11/2013.

Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense

As Conferências do Cassino foram uma série de conferências realizadas em 1871,


em Lisboa. Foram organizadas pelo poeta Antero de Quental, que participava do
Grupo do Cenáculo. O grupo também passou a ser conhecido como Geração de 70.
Eram jovens escritores e intelectuais da época que defendiam ideias de Vanguarda e
alguns deles haviam participado da Questão Coimbrã.

Saiba mais sobre as Conferências do Cassino e a Geração de 70 em Farol das Letras:


99 http://faroldasletras.no.sapo.pt/conferencias_do_casino.html, acessado em 17/11/2013.

Saiba mais sobre o Realismo Português e o Cenáculo em:


99 http://faroldasletras.no.sapo.pt/realismo_naturalismo.html, acessado em 17/11/2013.

Um expoente do Realismo Português - Antero de Quental

Antero Tarquínio de Quental (1842-1891) frequentou a Universidade de Coimbra, viveu


algum tempo em Paris e viajou pelos Estados Unidos e Canadá, fixando-se em Lisboa. Pertenceu
à chamada Geração de 70, grupo que pretendia renovar a mentalidade portuguesa, e participou
nas Conferências do Cassino. Foi amigo, entre outros, de Eça de Queirós e Oliveira Martins.
Suicidou-se nas ilhas de Açores. As suas obras vão da poesia à reflexão filosófica. O escritor é
conhecido pela obra Odes Modernas, de 1865, cuja proposta, contrária ao Ultrarromantismo,
desencadeou a Questão Coimbrã.

Destacamos, nessa unidade, um soneto que é bastante significativo a respeito do que o


realista espera da arte.

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A um Poeta
(surge et ambula)

Tu que dormes, espírito sereno,


Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São
canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Como se percebe pelo título e pela epígrafe, o texto convoca o poeta a levantar-se e andar.
A frase em latim nos remete à história do Novo Testamento em que Jesus teria, por meio dessas
palavras, ressuscitado Lázaro que morrera há dias e já estava em estado de putrefação.

Essa referência transforma o sujeito poético em uma espécie de profeta, aquele que vê além
e, a partir dessa postura messiânica, ele passa a dar ordens aos poetas que dormem “à sombra
dos cedros seculares” como um levita, ou seja, um sacerdote, “à sombra dos altares”.

A postura de refugiar-se no sonho, na inação, de viver “longe da luta e do fragor terreno”, ou seja,
do ruído estrondoso do mundo é criticada pelo sujeito poético. As ordens são para que os poetas
acordem, escutem e ergam-se para transformar a “luz do sonho puro” em “espada de combate”.

A concepção realista da arte aparece nesse poema por meio do pragmatismo que deve ser inerente
à criação literária. Como você deve ter percebido, pelo estudo das Conferências do Cassino e das
ideias realistas de justiça social, há uma mudança de tom em que se prega que o poeta não coloque
sua arte a serviço apenas da expressão de suas emoções, mas a serviço da sociedade.

Perceba que, embora a mudança de tom seja importante, alguns dos procedimentos
românticos ainda podem ser notados no texto. O espírito revolucionário, de luta, e a idealização
da arte como algo que pode mudar o mundo não deixam de ser aspectos daquele mesmo
desejo de liberdade que norteava os românticos e que os fez romperem com os clássicos. Por
isso, é possível dizer que o Realismo coloca-se antes como um desdobramento do Romantismo
do que como uma estética que substitui os valores da arte romântica. O Realismo coloca-se
como uma atitude reformadora.

21
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Um poeta português que podemos chamar de Realista é Cesário Verde (1855 - 1886).
Cesário Verde não teve uma carreira brilhante de poeta em vida, nem combateu os românticos
abertamente como fez Antero de Quental. Morreu quase ignorado como poeta, deixando
um espólio de 40 textos em jornais e revistas. Morreu ressentido com a falta de interesse que
suas obras despertaram nos contemporâneos ou com o julgamento excessivamente crítico
dos próprios realistas. Em 1874, Ramalho Ortigão publicou num artigo, a respeito do poema
“Esplêndida”, que Cesário deveria tornar-se “menos Verde e mais Cesário”.
Vamos destacar alguns aspectos do Realismo de Cesário Verde, não de escola, mas de atitude,
contidos no poema a seguir: “Esplêndida”:

Esplêndida Ei-la! Como vai bela! Os esplendores


Do lúbrico Versailles do Rei-Sol!
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste


Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas


Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,


E as mãos, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.

É ducalmente esplêndida! A carruagem


Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai como a voragem!

Os lacaios vão firmes na almofada;


E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.

22
E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejado o lugar dos seus truões,
Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,


A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata


Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!

Glossário
Arrebol: Cor rubra visível no céu ao amanhecer ou ao pôr do sol. O amanhecer ou o pôr do sol.
Ducalmente: referente a Duque ou Ducado. Nobre, no caso.
Langor: languidez, diminuição do ânimo, frouxidão.
Equipagem: Equipamento ou equipe, grupo que cuida do equipamento.
Landau: Carruagem de quatro rodas, coberta com capota dupla, em forma de fole, e que se abre
ao meio e pode ser arriada ou levantada de modo independente.
Libré: Uniforme com galões, com fitas de enfeite, usados por empregados em casas nobres.
Marechala: Feminino de Marechal ou mulher do Marechal.
Reseta: chapéus com reseta, chapéus com enfeites.
Trintanário: Auxiliar de cocheiro que viajava ao seu lado, na boleia, para abrir e fechar a
portinhola, levar recados.
Trottoir: do francês, trotar (do cavalo)

Dubarry, Montespan e Maintenon: Madame de Montespan, mulher sensual e inteligente que


era tratada, nos corredores da corte francesa, como a verdadeira Rainha de França graças à
influência que tinha sobre Luís XIV (1638 -1715), rei que acabaria por casar-se com a última
das suas amantes, Madame de Maintenon. O seu neto, Luís XV (1715-1774), teve por amante
Madame DuBarry, prostituta que se tornou a favorita oficial da corte de Versalhes, que acabou
na guilhotina durante a Revolução Francesa.
Nesse poema, o sujeito pinta a imagem de uma dona que realça e aumenta o brilho da
máxima realeza que, nesse caso, é identificada à imagem terrena do apogeu da nobreza o

23
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

“Versailles do Rei-Sol”, numa referência ao palácio parisiense e ao rei Luís XIV, que dá uma
ideia ambígua do ápice do luxo e da altivez a um só tempo e mina, já num primeiro momento,
a idealização romântica da mulher.

Luís XIV (1638 -1715), monarca absolutista da França, que reinou entre 1643 e
1715, chamado de “Rei-Sol”. É conhecido como um monarca que cultuou a própria
personalidade e o luxo, tendo lançado a moda do uso de elaboradas perucas, costume
que se espalhou pelas cortes europeias e nas colônias da América. Construiu o Palácio
dos Inválidos e o luxuoso Palácio de Versalhes.

Além disso, percebe-se o esforço de pintar uma imagem da mulher em que se fundem muitas
cores às sedas multicores da mulher que, por sua vez, refletem-se na languidez do azul-celeste
do cetim que forra a carruagem. Temos a languidez que evoca a voluptuosidade que o poeta
extrai do azul, e não a pureza e o ideal, características idealizadas dessa cor.
O contraste, a todo esse cromatismo, nós encontramos nos negros corcéis “Velozes como a
peste” que “Sobem a trote a Rua do Alecrim”. Podemos divisar a releitura da imagem mítica
de uma deusa, ao mesmo tempo bela e soberba : “Tem a altivez magnética e o bom tom/Das
cortes depravadas”. Essa mulher que atrai como a voragem, como o turbilhão, segue indiferente
“Ela, no brilhantismo da equipagem,/Ela, de olhos cerrados, a cismar/Atrai como a voragem!”.
Na segunda parte do poema, a mulher é tirada do centro do cenário e substituída pela figura
dos lacaios:

Os lacaios vão firmes na almofada;


E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.

Percebam que estes vão firmes e vestidos de forma aprimorada em contraste com o poeta
que vai “de colarinho amarrotado”, desejando “o lugar de seus truões”, ou seja, de seus servos,
o que o faz desejar integrar as fileiras dos serviçais da mulher como o mais humilde dos servos,
ou seja, trintanário, aquele criado que viajava ao lado do cocheiro na boleia do carro, cuja
função era abrir a portinhola, fazer recados e serviços menores.
Esse desejo, porém, torna-se um misto de vassalagem e desprezo na última estrofe, quando
o sujeito vira as costas para a mulher ensimesmado com a própria farda:

Os lacaios vão firmes na almofada;


E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.

24
Dessa forma, o poeta antes “de colarinho amarrotado”, “sinistro e mal trajado”, “poeta
solitário”, ironicamente vira as costas para a mulher, “famosa aristocrata”, pois agora ostenta
“galões de velha prata”.
O poema nos ajuda a fazer uma reflexão sobre a própria figura do poeta no mundo utilitário
burguês, um lacaio sinistro e mal trajado, mas capaz de preservar e suplantar a imagem efêmera
da mulher que passa por meio da arte.
Cesário teve uma vida de comerciante que contrastava com a sua vocação poética. Teve
necessidade de afastar-se da vida boêmia e assumir os negócios do pai, uma loja de ferragens e
a produção de frutas para exportação na Quinta Linda-a-Pastora, nos arredores de Lisboa. Esses
negócios variados fizeram, ainda, com que transitasse entre a vida agitada da cidade e o retiro
no campo. Por isso, nesse poeta, entram em conflito o desejo de ser poeta e as contingências da
vida burguesa, bem como a agitação cosmopolita e o sossego do campo.
Essa contrariedade, Cesário Verde expressou, dois meses antes de morrer, ao amigo
Sousa Pinto, pedindo que este corrigisse as informações que ele, Cesário, dera ao médico:
“O doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe
naturalmente: ‘Empregado no comércio’. [...] Ora, meu querido amigo, o que eu te peço é que,
conversando com o Dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que não sou o Sr. Verde empregado
do comércio”(VERDE, 1983, 13).
O poema a seguir, “Contrariedades”, é um dos que põe em confronto as questões que
envolvem o senso prático e a visão artística da realidade:

Contrariedades
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
25
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta


No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine


Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.


Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,


Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,


Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,


Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;


Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!


Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.


Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Ouço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.


Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

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Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a reclame, a intriga, o anúncio, a
blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?


A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

Taine - Hippolyte Adolphe Taine (1828 - 1893) foi um crítico e historiador francês,
membro da Academia Francesa e um dos expoentes do Positivismo do século XIX, na
França. O Método de Taine consistia em fazer história e compreender o homem à luz de
três fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento histórico. Estas teorias foram
aplicadas ao movimento artístico realista.

Zaccone - Pierre Zaccone (1817-1895). Escritor romântico francês, romancista popular,


autor de novelas, romances e folhetins histórico-dramáticos, traduzidos em várias línguas.

O sujeito é um poeta imerso em seus problemas, que está “cruel frenético, exigente”, fumando
cigarros consecutivamente, abafando desesperos mudos, “cheio de raivas frias” por causa de
um jornal que lhe rejeitou uns versos; por causa de “Mais de uma redação, das que elogiam
tudo” terem lhe fechado as portas; por causa da crítica que o ignora. De repente, depara-se, de
sua janela, com a imagem grotesca da engomadeira que mora em frente à casa dele. A mulher
é feia, sem peito, doente dos dois pulmões, é solitária e vive de engomar para fora. Trata-se de
um “Pobre esqueleto branco” que está desenganada pelo médico: “O doutor deixou-a”. Além
disso, deve à farmácia e mal ganha para comer.

O sentimento de exclusão do poeta em relação ao mundo intelectual que lhe nega espaço
porque é independente, “Eu nunca dediquei poemas às fortunas” e, porque não adula os
literatos, “A adulação repugna aos sentimentos finos”, projeta-se na miserabilidade da imagem
da mulher tísica, feia e desgraçada. O poeta sente-se injustiçado, uma vez que os jornalistas
receiam que, se publicarem seus poemas, os leitores, que gostam da frivolidade dos folhetins de
Zaccone, cancelem as assinaturas.

A imagem da tísica, nesse caso, tanto pode ser a imagem “da consciência de que o trabalho
poético resulta inútil e da consciência da pobre vizinha” (GOMES, 1989, 150), como pode ser,
numa outra leitura, a miséria daqueles que vivem encantados com a frivolidade, a adulação,
asfixiados pela mediocridade e disso não se dão conta, como a própria engomadeira:

27
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!


Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes de entrar na cova.


Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

O pão e o chá, assim como a opereta nova, que fazem parte da dieta e do repertório da
engomadeira, são apenas lenitivos que a mantêm antes que ingresse na cova, assim como
a arte burguesa mantém uma sociedade que “supervaloriza o útil” e “despreza e condena o
ócio”(GOMES, 1989, 151).
Nos versos finais, o poeta conforma-se com a falta de editores para suas obras e com a falta
de compreensão dos leitores: “Vou findar sem azedume”. Tem esperanças de ainda poder editar
suas rimas caso fique rico. Quanto à engomadeira, porém:

A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?


Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

Este poema é bem ilustrativo da consciência da realidade presente em Cesário Verde.


Chamado “o poeta do cotidiano”, extrai do prosaico os temas para suas obras. Repare que o texto
se assemelha à prosa versificada, é como se o poeta refletisse sem afetação ou derramamento
lírico sobre a realidade.

Para terminar...
Procuramos construir, nessa unidade, um painel significativo do século XIX e da poesia portuguesa
no período. Este momento histórico e literário serviu como base para a literatura contemporânea.
Questões como a originalidade e a imitação, a intersecção entre a arte e a realidade e a função
do poeta na sociedade continuam em voga em nosso tempo. É importante que você procure
conhecer mais sobre os poetas estudados nessa unidade e perceba que alguns deles, como Garrett e
Cesário, exerceram muitas influências sobre os autores modernos e contemporâneos. Para isso, leia
a bibliografia recomendada e os sites sugeridos no material complementar.

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Material Complementar

Para que você possa entender melhor o fenômeno que gerou, na segunda metade do
século XIX, o Realismo, é necessário que você entenda as correntes filosóficas do tempo,
especialmente o Positivismo.
Está à disposição, na Internet, um excelente site que indicamos sobre o assunto. Trata-se da
página História da Filosofia Moderna, mantida pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Veja em: http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/novo/2216y840.htm, (último acesso em 20/11/2013).

29
Unidade: Do Romantismo ao Realismo

Referências

FIGUEIREDO, Fidelino de. Antero. São Paulo: Departamento Municipal de Cultura de São
Paulo, 1942.

GOMES, Álvaro Cardoso. O Poético: magia e iluminação. São Paulo: Edusp: Perspectiva,1989.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 1984.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 11ª ed. São Paulo:
Cultrix, 1981.

MOOG, Viana. Eça de Queirós e o século XIX. São Paulo:Civilização Brasileira, 1966.

QUENTAL, Antero de. Poesia e prosa. São Paulo: Cultrix, 1974.

QUENTAL, Antero de. Sonetos completos de Antero de Quental. Lisboa: Europa-América,


1998.

SILVA, V.M.A. Teoria da literatura. 8ª ed. Coimbra:Almedina.1979.

VECHI, C. A.; BARROS, E. A.; SILVEIRA, F. M.; RIBEIRO, R. S.. A Literatura portuguesa em
perspectiva – Romantismo, Realismo. São Paulo: Atlas, 1994.

VERDE, Cesário. O Livro de Cesário Verde. Lisboa:Verbo, 1983.

Referências Bibliográficas (disponível para consulta)

E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia: http://www.edtl.com.pt, acessado em 24/10/2013.

Farol das Letras: http://faroldasletras.no.sapo.pt/, acessado em 1/10/2013.

História de Portugal: http://www.ribatejo.com/hp/, acessado em 24/10/2013.

Jornal de Poesia: http://www.jornaldepoesia.jor.br/, acesso em 31/10/2013.

Projeto Vercial: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/, acesso em 31/10/2013.

SIBI: Sistema Integrado de Bibliotecas – Revistas Usp: www.revistas.usp.br, acessado em


31/10/2013.

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Anotações

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