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Leonardo Martinelli
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
martinellix@gmail.com
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A partir de então constata-se uma nova etapa do relacionamento entre os processos com-
posicionais e a percepção da música (essa eventualmente colocada à parte pela índole
estruturalista das poéticas seriais), quando então voltou-se para sua materialidade, ou seja,
o fenômeno sonoro em si. O conceito de timbre passa então a desempenhar papel de
maior destaque nos processos composicionais devido à ampliação e ao desenvolvimento
de novas formulações conceituais no seio do círculo criativo por meio do pensamento
de índole teórico-especulativa, dentre os quais, destacamos aqui as contribuições que os
compositores Phillipe Manoury e Pierre Boulez ofereceram tanto do ponto de vista esté-
tico-teórico como pela perspectiva prático-composicional.
Ambos compositores tomam como premissa uma dupla dimensão inerente ao conceito de
timbre. Em Manoury (1991) ela se articula entre sua condição como material tradicional
(no qual o timbre é entendido como um componente do som) e material novo,no qual ele
é entendido comocomposto sonoro, elemento constituído, formado por alturas, durações
e intensidades. A partir desta perspectivaseu hermetismo fenomenológico é rompido, ao
mesmo tempo em que passa a ser considerado não mero parâmetro, mas simmaterial
musical, pois passível de manipulação ao nível da escritura.
Tal pensamento encontra ampla ressonância na conceitualização elaborada por Boulez
(1987), que por sua vez articula o conceito entre as noções de timbre cru e de timbre
organizado. O primeiro diz respeito a seu entendimento de forma essencialmente tradi-
cional, paramétrica, quantitativa e hermético. Seu uso artisticamente pleno só é possível
quando ele é submetido aos processos típicos da composição musical (timbre organizado,
entendimento estreitamente ligado à noção de material novo de Manoury). Em ambas
perspectivas (material novo ou timbre organizado) a manipulação musical do timbre ocorre
necessariamente por meio de uma escritura musical de ênfase textural.
Boulez aponta para o cerne da problemática em torno da composição musical contem-
porânea: como lidar esteticamente, durante a criação de um objeto estético (ou seja, a
música), com um elemento (o timbre) que, em sua acepção básica, possui uma função
técnica bem definida, porém extremamente ligada a uma prática tradicionale, logo, ina-
dequada e indesejada para uma nova música? Como, enfim, estetizar o que nasceu como
não-estético?
A resposta para essa questão passa justamente pela admissão do timbre e do somin abstrac-
to como elemento essencialmente estético, pois “as possibilidades funcionais do timbre
só são válidas se elas estiverem relacionadas à linguagem. Sem um discurso musical ele
é nada, porém pode por si próprio formar um discurso inteiro”.1 A inserção do material
tímbrico-textural em um contexto discursivo acabam não apenas por legitimar a auto-
nomia estética do timbre, mas de certa maneira, deixa entrever que essa autonomia só
pode ser plena quanto mais o elemento tímbrico-textural for “impurificado” pelo discurso
musical.
É exatamente nesse sentido que Cohen-Levinas (2013) acusa o processo de afetivação do
timbre, pois “o sublime experimentado pelo timbre é determinado, provisoriamente, por
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sua dimensão de apelo. Por affetti do timbre entendemos a transfiguração do material
puro em escritura”2.
A assimilação do timbre como material musical de processos composicionais – que dentro
de certas poéticas é tomado como elemento affettivo estrutural – tem necessariamente
como pressuposto sua legitimação estética. Somente então pode ser conferido ao som de
qualquer natureza acústica pleno potencial semântico, e desta forma, consolidar seu uso
como elemento expressivo, tal como vem sido realizado de forma sistemática por diferen-
tes poéticas musicais desde a segunda metade do século passado até os dias atuais.
Referências
BOULEZ, P. “Timbre and composition – timbre and language”. Contemporary Music Review, v. 2,
p. 161-171, 1987.
COHEN-LEVINAS, D. L’opéra et son double. Paris: Vrin, 2013.
______ (Org.). Récit et représentation musicale. Paris: L’Harmattan, 2002.
MANOURY, P. Les limites de la notion de “timbre” (In: Le timbre, métaphore pour la composition).
Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1991. p. 293-299.
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