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A TRAVESSIA ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE: O

RENASCIMENTO DOS VALORES AFRICANOS NA OBRA UM RIO


CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA, DE MIA COUTO

Alexsandra Loiola Sarmento∗

Introdução

O estudo que se apresenta busca analisar a obra Um rio chamado tempo uma
casa chamada terra do escritor moçambicano Mia Couto, sob a perspectiva do ritual da
morte como travessia entre a tradição e a modernidade, evidenciando-se o renascimento
dos valores africanos. É possível verificar na obra estudada, a partir da morte do
personagem avô Mariano, uma preocupação com a morte dos valores da família, da
casa, do lugar e a tentativa de preservação dos valores ancestrais, através do seu suposto
neto que é o narrador da obra.

A narrativa tem como núcleo o posicionamento insólito do morto que exige que
seu enterro seja adiado até que sejam feitas as revelações que tem a fazer ao neto. A
comunicação entre o morto e o personagem-narrador é feita através de cartas sob forma
de autopsicografia, numa transposição de oralidade para a escrita. O que constitui uma
híbrida forma de dizer a África híbrida em meio à iminência de perda dos seus valores
ancestrais frente à modernidade, tendo a escrita como guardiã.

O trabalho foi organizado da seguinte forma: no primeiro momento, é abordada


a morte do personagem avô Mariano, associada à morte dos valores africanos frente ao
capitalismo, e um possível renascimento através do neto que é o porta-voz da luta de


Professora do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros –
UNIMONTES. Pós-Graduada lato sensu em Lingüística e Produção de Textos, pelas Faculdades
Integradas de Patrocínio - FIP; Pós-Graduada lato sensu em Literatura Luso-Brasileira, pela Universidade
Estadual de Montes Claros – UNIMONTES; Mestranda em Letras / Literatura Brasileira, pelo Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF. Orientador: Prof. Dr. Gilberto Mendonça Teles. Co-
orientador: Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva. Contato: alexsandrasarmento@ig.com.br.

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perpetuação dos valores africanos. Logo em seguida, são explorados como a escrita
cumpre o papel de defender a preservação dos valores africanos e promover a união dos
tempos: ancestralidade e modernidade.

1. Morte e renascimento: a ligação entre o arcaico e o moderno

A narrativa da obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra expressa
uma grande ternura pela África ao atentar-se para o sentimento de família, de entes
queridos, dando realce aos gestos e a voz dos personagens. De acordo com Carmem
Lúcia Tindó Secco, Mia Couto “funde sua dicção lírica, que busca recuperar a ternura
perdida em meio aos sofrimentos provocados pela guerra, com um olhar crítico sobre a
realidade do país”1.

Assim é que, no que se refere às simbologias, a presença da família é exposta


com grande carga de significância na obra. Começa com a notícia que Mariano recebe
da morte de seu avô, mais tarde revelado como seu verdadeiro pai. Interessante fato
ocorre quando o suposto avô incumbe o neto de ser o “chefe de cerimônia” ou de
“exercer as primazias” no ritual fúnebre. O avô depois de morto escreve cartas ao neto
pedindo para não ser concluída a cerimônia de enterro. Pois, precisava de mais tempo
para fazer revelações que só agora poderiam ser feitas.

Através das cartas, que o morto envia de forma enigmática a Mariano, são
revelados os relacionamentos familiares, as preocupações em relação à tradição frente
às mudanças, as causas dos conflitos que sofriam, o lugar onde viviam e, sobretudo, a
identidade do avô frente à identidade do neto Mariano. O avô só deixa concluir a
cerimônia da morte depois que são desvendados os mistérios da família Malilanes, da
casa Nyumba-Kaya, a Ilha “Luar-do-chão” e depois da confirmação de que Mariano
avô vai continuar sobrevivendo no neto Mariano através da escrita.

Além dos personagens avô Mariano e o personagem narrador da história, que é


Mariano, o neto, destaca-se, neste trabalho, o personagem Tio Ultímio, o filho mais
novo do patriarca Mariano. Ultímio, a quem todos demonstram críticas, antipatia,
julgam-no traidor, representa o capitalismo, a globalização e a perda da tradição
africana frente à modernidade.

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O clímax da obra se faz no momento da descoberta do verdadeiro pai, ou seja, o
avô Mariano revela ser o verdadeiro pai do narrador, e não Fulano Malta como se
pensava. É quando se compreendem os sentidos dos enunciados: “não apenas eu
continuava a vida do falecido. Eu era a vida dele [...]. A vida escolheu no seu nome o
meu próprio nome”2.

Compreende-se a identificação que Mariano sempre teve com o avô e a grande


admiração que tinha para com ele. De certa maneira, o avô havia sido uma espécie de
professor, de guia. Observa-se, na obra, a simbologia do pai que Chevalier e
Gheerbrant esclarecem da seguinte forma: “O pai é não somente o ser que alguém quer
possuir ou ter, mas também que a pessoa quer vir a ser, e de quem quer ter o mesmo
valor. E esse progresso passa pela via do pai outro para o acesso ao pai eu mesmo”3.

No entanto, a personificação do pai na obra vai além da relação familiar ou da


psicologia filial, há uma metáfora dos valores e da tradição da África. O filho Mariano
que se torna ou dá continuidade ao próprio pai Mariano, está ligado ao desejo de
permanência das tradições da África frente às inovações trazidas pelo capitalismo e a
globalização. A morte do pai pode simbolizar a morte da África e de sua tradição. É o
que aparece nas cartas do avô Mariano:

você não veio aqui chamado para um funeral de pessoa viva. Quem o
convocou foi a morte de todo este lugar [...]. Esta terra começou a
morrer no momento em que começamos a querer ser outros, de outra
existência, de outro lugar4.

De acordo com Chevalier e Gheerbrant, o pai: “é ao mesmo tempo arcaico e


prospectivo [...]. Tal identificação com o pai traz consigo o duplo movimento de morte
(ele) e renascimento (eu)”5.

Constata-se o desejo de permanência e transcendência dos valores africanos


através da morte do pai Mariano e a permanência espiritual deste no seu filho. O

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narrador Mariano exerce o papel de moderador entre o passado de tradição e as
mudanças. Com essa morte e renascimento acontece a dinâmica dos tempos arcaico e
prospectivo.

2- A escrita como intermediária: a árvore da permanência

A necessidade de perpetuar a tradição e os valores africanos faz com que, na


tessitura da obra, Mariano neto se coloque como intermediário do avô e a vida.
Mariano Neto passa a escrever com o uso da psicografia do avô. O papel da psicografia
pode retratar no romance uma das fórmulas de narrar, que José de Sousa Miguel
Lopes constata como possibilidade de “manter um elo entre os velhos e os novos e
perpetuar a transmissão das vivências e dos conhecimentos antigos”6

Mia Couto, que também pode ser identificado como um contador de histórias,
vale-se deste recurso para mostrar como se realiza o ritual de contar histórias na
África: “uma das normas é que o contador de histórias nunca se intitule ele próprio um
criador, ele está reproduzindo a palavra divina dos antepassados”7. É com esse recurso
que Mariano passa a narrar a história, através do antepassado homônimo. Mariano neto
passa a receber cartas contínuas do avô falecido. Há nas cartas a explicação de que
quem as escreve é o filho, mas quem guia e dita o que se vai escrever é o velho
Mariano: “Eu dou as vozes, você dá a escritura”8.

O que se vê é uma escrita que surge através de palavras doadas pelo outro.
Pode-se identificar nessa fórmula de escrita a presença da oralidade, marca tão
reconhecida da Literatura africana, especialmente, da Literatura Moçambicana de que
faz parte Mia Couto. A respeito da comunidade Moçambicana, José Miguel Lopes
afirma que uma das características mais marcantes de Moçambique “é a de que ela
possui traços extremamente fortes de oralidade, que parecem configurar uma cultura
essencialmente acústica”9.

As cartas adquirem significados, além de suporte de comunicação, elas são


resultado da dinâmica oralidade e escrita, juventude e velhice, tradição e renovação.
Como bem explica Mariano avô: “Estas cartas são o modo de lhe ensinar o que você

4
deve saber. Neste caso, não posso usar os métodos da tradição: você já está longe dos
Malilanes e seus xicuembos. A escrita é a ponte entre os nossos e os seus espíritos”10.

Mariano narrador, portanto, representaria a força jovem que, de acordo com


Secco, “na sabedoria ancestral africana, é capaz de renovar o mundo pelo lirismo,
acordando velhas tradições”11.

A partir da imbricação oralidade e escrita, como veículos de conservação e


resistência do passado, passa-se a compreender a aversão, e antipatias demonstradas
em relação ao personagem Ultímio. Aquele que supostamente seria o último filho de
Mariano, o avô, pois Ultímio representa o fim da tradição africana, a traição aos
valores em nome da entrega ao capitalismo multinacional, à globalização. Um futuro
de morte dos costumes. Essa representação pode ser inferida a partir das observações
que são feitas pelo narrador-personagem:

Já meu Tio Ultímio, o mais novo dos três, muito se dava a exibir,
alteado e sonoro, pelas ruas da capital. Não freqüentara mais a sua
ilha natal, ocupado entre os poderes e seus corredores. Nenhum dos
irmãos se dava, cada um em individual conformidade”12.

Ultímio personifica os males que o capitalismo multinacional provoca no


continente, as seduções, enganos e ilusões trazidas por ele e a necessidade de afastá-lo
ou humanizá-lo. Secco mostra o pensar de Mia Couto sobre esta realidade:

Segundo ele, Moçambique mostrava-se uma nação sem memória,


sem passado, onde quase ninguém mais falava de guerras. Era um
país em viagem, em construção, voltado apenas, para os
investimentos modernos, para o futuro, esquecido de que essa palavra
não existia em algumas das línguas faladas pelas etnias

5
moçambicanas, para quem o porvir se afigurava como um território
sagrado, proibido de ser visitado13.

É este contexto da realidade africana que leva o morto Mariano a pedir o


adiamento do seu enterro. Era necessário que, antes do seu enterro, a casa, a família e a
Ilha fossem protegidas da aniquilação, através da ligação espiritual com as raízes
ancestrais de que o avô é o representante14.

Após ser revelado o passado ocultado sobre a identidade do pai, o


renascimento de Mariano avô acontece: “Aproveitemos a madrugada que é hora de
nascer”15. Pois a ligação entre Mariano velho e Mariano jovem já se havia concretizado
através da escrita. Chega-se então o momento em que Mariano avô considera propício
à conclusão do seu funeral. O falecido pede para ser enterrado junto ao rio e pede ainda
um último favor: que as cartas sejam depositadas junto a seu corpo.

As cartas são enterradas e há um fato inusitado: Mariano neto ao deitar sobre a


sombra de uma árvore na margem do rio Madzimi, lugar onde o avô havia sido
enterrado, vê as folhas da árvore se transformam em folhas de papel, cartas do Dito
Mariano. O que acontece no desfecho da narrativa é a presença da árvore que se
transforma em escrita propiciadora do elo Mariano pai e Mariano filho. O elo entre os
valores ancestrais e os valores modernos havia se formado.

Considerações finais

Pode-se afirmar que a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra,
do autor moçambicano Mia Couto trata a questão da morte sob uma perspectiva do
ritual de travessia entre a tradição e a modernidade, evidenciando-se a representação do
renascimento dos valores ancestrais na África.

Uma outra problemática exposta é o conflito entre os valores ancestrais e os


valores da modernidade personificados com a morte de Mariano avô e Ultímio, ficando
o neto Mariano, o narrador da obra, como aquele incumbido de promover o elo entre a
tradição e a modernidade africana.

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Ao final do estudo, é possível afirmar que a obra analisada, com o ritual da
morte de Mariano avô e seu renascimento através das cartas que escreve ao neto,
metaforiza a busca da união dos tempos ancestrais e modernos.

Referências bibliográficas:

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Trad. Vera da Costa e Silva. et. al.
Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores,
números. 19. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

____________. O Gato e o novelo. Entrevista a José E. Agualusa. JL,. Lisboa, 8 out.


1997. Apud. SECCO, Carmem Lucia Tindó. Mia Couto e a “Incurável Doença
de Sonhar”. In: CAMPOS, Maria do Carmo Sepúlveda, SALGADO, Maria
Teresa (Org.). África e Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.

LOPES, José de Souza Miguel. Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso
da literatura em Moçambique. In: LEÃO, Ângela Vaz (Org.). Contatos e
Ressonâncias: literaturas africanas de língua. Belo Horizonte: PUC Minas,
2003.

MATA, Inocência. A condição pós-colonial das literaturas africanas de língua


portuguesa: algumas diferenças e convergências e muitos lugares-comuns. In:
LEÃO, Ângela Vaz (Org.). Contatos e Ressonâncias: literaturas africanas de
língua. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.

SECCO, Carmem Lucia Tindó. Mia Couto e a “Incurável Doença de Sonhar”. In:
CAMPOS, Maria do Carmo Sepúlveda, SALGADO, Maria Teresa (Org.). África
e Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.

1
SECCO, 2000, p. 269.
2
COUTO, 2005, p. passim.
3
CHEVALIER & GHEERBRANT, 2005, p. 678.
4
COUTO, 2005, p. passim.
5
CHEVALIER & GHEERBRANT, op. cit., p. 678.
6
LOPES, 2003, p. 278.
7
COUTO apud SECCO, 2000, p. 13.
8
COUTO, 2005, p. passim.
9
LOPES, op. cit., p. 265.
10
COUTO, 2005, pp. 25-126.
11
SECCO, op. cit., p. 275.
12
COUTO, 2005, p. 16.
13
SECCO, op. cit., p. 273.
14
COUTO, 2005, pp. 64-65.
15
COUTO, 2005, p. 239.

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