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Monstruos y Monstruosidades

Facultad de Filosofía y Letras


Monstros e monstruosidades em Lucano
Rolim de Moura, Alessandro; Vieira, Brunno V. G.
Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas,
Universidade Federal do Paraná/Brasil.

O monstruoso se impõe em nossa época de um modo que lembra o romântico.


Pensemos na empolgação de Hugo em seu elogio do grotesco, da dissonância e do feio,
e do papel que teriam esses elementos na pintura integral de uma individualidade, na
representação dos diversos lados do homem. Hoje, a individualidade, ainda
ardorosamente defendida, se afirma sob o emblema do monstruoso. As mais diversas
sensibilidades, individuais ou de grupo, procuram afirmar suas idiossincrasias também
através da assunção corajosa de signos tradicionalmente associados à marginalidade, ao
defeito, ao disforme. O que poderia ser uma marca vergonhosa é transformado em
estandarte de uma nova humanidade. Um processo semelhante se vê freqüentemente
nas artes: os vícios apontados pela crítica numa determinada forma artística podem vir a
ser as grandes virtudes de uma estética fundada em outras bases. Mas, mesmo criados
um novo homem e uma nova arte, estes ainda convivem com os códigos artísticos e
ideológicos antigos, porque as épocas não se substituem, mas se sobrepõem e se
misturam umas às outras, de modo que às vezes repetimos hoje palavras e gestos da
França do século XIX, da Atenas de Sófocles ou da Roma no início do Império. Ainda
que, certamente, esses signos se atualizem em outro contexto, e portanto se revistam de
significados sempre diferentes, trazem consigo, acumulados numa crosta difícil de
manusear, os sentidos que tiveram ou têm nas outras épocas e lugares.Daí, ao se arrogar
o poder de anunciar uma nova forma, a monstuosidade recupera, por exemplo, um
pouco da idéia de monstrum da Antigüidade clássica: trata-se de um presságio, de um
sinal extraordinário apontando para o futuro. Mas a monstruosidade como doença
também permanece, obviamente sem excluir o sentido de aviso sobre o porvir, já que
pode ser lida como anúncio de catástrofe. A censura, a crítica acadêmica, a polícia
política e a medicina continuam a luta para identificar, classificar e extirpar a
monstruosidade. E mesmo os novos monstros, embora orgulhosos de seus corpos e
mentes originais, sofrem com seu status ambíguo, o que advém do tratamento múltiplo
que sua condição recebe nos sempre moventes espaços da ideologia. Seu amor pelo
disforme é também um ódio, um ódio contra os acusadores e contra a sociedade que
demoniza aquela individualidade, mas paradoxalmente esse amor se reveste de um ódio
voltado precisamente à própria deformidade, de um desejo de ser (e ser visto como)
normal. Insensivelmente, conforme se alteram as circunstâncias do espaço-tempo, vão
se alterando as regras de normalidade e os limites do monstruoso, e o antigo réu se torna
inquisidor e algoz. De modo semelhante, a busca da normalidade atinge um excesso
aberratório; e a monstruosidade, desejada, concebida e moldada até as últimas
conseqüências, perde-se no vazio das novidades e bizarrias apelativas da ciranda do
consumo. Talvez essa não tenha sido a tônica em todas as épocas, e provavelmente são
os períodos de crise mais profunda os que se mostram mais aptos a borrar os limites
entre o monstruoso e o aceito como saudável e belo. O Ocidente contemporâneo,
nutrido por uma cultura cosmopolita e aberto a uma multiplicidade de estímulos
semióticos em quantidades e velocidades nunca antes vistas, está novamente colocando
essas questões e, simultaneamente, tocando numa outra antiga pergunta-ferida: nosso
mundo, não é ele mesmo uma monstruosidade? Não é o homem um câncer da natureza,
um processo sem sentido, sempre transbordando suas próprias margens, sufocando a
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outrem e a si mesmo? Não é a natureza um imenso câncer da divindade, incontrolável e
terrivelmente belo? Esta é a introdução de um trabalho de literatura romana. Mas não é
vão sugerir essas questões, já que é também uma percepção do mundo contemporâneo
que nos anima a desvendar significados novos num poeta como Lucano, que também
viveu num mundo em crise e traduziu sua experiência com signos ligados à
monstruosidade. Seu poema A Guerra Civil é, por si só, um monstrum: é uma grande
obra dissonante e um presságio assombroso. Antes de passar a uma análise mais detida
do texto antigo convém ainda acrescentar que para muitos o próprio fato de se ler esse
escrito de dois mil anos pode ser encarado como monstruosidade intelectual. Fenômeno
talvez também conhecido dos antigos, é um monstrum muito contemporâneo o leitor se
metamorfosear no objeto da leitura.
É na época de Nero, um tempo de esperança e decepção, de fé e descrença, de
pretensas racionalidades e catastróficas paixões, que vem à luz a Farsália de Lucano,
também conhecida como A Guerra Civil (Bellum Ciuile), incorporando na retórica de
seu texto a instabilidade discursiva da sociedade romana naquele período.
Ao recontar o episódio da Guerra Civil entre César e Pompeu, Lucano
recupera o ambiente controverso do final da República, o violento embate semântico,
discursivo e ideológico que acabou em luta armada, e reapresenta esse estado de coisas
como análogo ao historicamente controverso Principado de Nero. Pode-se dizer que a
Farsália é uma exortação ao leitor de seu tempo a reavaliar a história de Roma, do
passado e do presente, sob um ponto de vista que incorpora a ética estóica. Isso é feito
ao se enumerarem os vícios e virtudes dos personagens e eventos da guerra.
Se pensarmos nas relações entre o discurso e seu contexto de enunciação, a
escolha do tema, justamente um dos momentos mais difíceis da história do império
romano, e o tratamento pessimista que tal assunto recebe, podem ser um índice de uma
insatisfação com a realidade histórica vivida pelo autor. Se a Eneida se erige como o
poema da pietas no início do Principado, denotando um certo otimismo romano com a
consolidação do poder de Otávio Augusto, a Farsália é seu antípoda ao explorar a
derrota dos ideais políticos, sejam eles republicanos ou cesaristas, pela ação da cobiça e
da ganância humana.
Forma e conteúdo na Farsália denotam a épica do fracasso romano e o tema da
guerra civil corrobora a expressão desse estado de coisas. Para Lucano, esse gênero de
guerra, por colocar frente a frente concidadãos e - levando a idéia da destruição da
pietas às últimas conseqüências - confrontando tropas aparentadas, evoca a subversão
da ordem natural das coisas. Daí o seu apego a uma representação da realidade apartada
dos parâmetros harmoniosos que se destacam em muitas obras da Antigüidade; daí o
desenvolvimento de uma épica sem a intervenção das tradicionais divindades olímpicas
e o seu gosto pelo feio e sombrio, pelo corpo violado e mutilado.
Para Lucano, o princípio da guerra civil consolida a ruptura das convenções e
leis da sociedade humana organizada, o que acaba por se refletir na representação de um
mundo que perdeu a sua forma e seu sentido e que se vê desamparado, ou mesmo traído
pelas divindades.
Sendo assim, a adesão ao doce e miraculoso Olimpo da religiosidade estatal,
presente por exemplo na obra de Virgílio, cede lugar à expressão dos monstros e
monstruosidades tétricas da bruxaria e do mundo infernal. Como bem notou Sulpício
Verulano, um erudito renascentista responsável por uma das primeiras edições anotadas
da Farsália, ao comparar o ingenium de Virgílio ao de Lucano: "Aquele, venerável
como um pontífice, parece progredir com uma certa religiosidade (temor religioso), este
ao modo dos generais, com um terror dos mais inflamados".
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A obra de Lucano é violenta como os generais e incorpora o terror como
recurso de expressão. Assim, essas dicotomias entre terrore e religione, e entre
pontificio e imperatorio, apontadas por Verulano, parecem esclarecer uma interpretação
da Farsália como contraponto da obra virgiliana, stricto sensu, e de modo mais
abrangente como uma suplantação da estética clássica pelo grotesco e terror de um
mundo em cataclismo.
A ânsia por representar uma sublevação da ordem natural das coisas leva
Lucano a marcar seu trabalho poético com a intensidade da antítese e da hipérbole. Se,
fisiologicamente até, alguns monstros são seres provenientes do excesso, vale lembrar
que essa característica da obra de Lucano pode nos dar uma pista da monstruosidade
que ela representa no bojo da produção literária em língua latina. Podemos dizer, então,
que a Farsália, no plano mesmo de sua materialidade literária, é um monstro. E essa
monstruosidade da obra como um todo, além de provir da estrutura mesma do poema, é
a somatória de excessos e exageros que podem ser encontrados no arranjo interno de
cada excerto do texto.
Mas representar as batalhas da Guerra Civil é algo terrível e difícil de ser
pronunciado, mesmo para o narrador da Farsália. De modo que o primeiro confronto
entre tropas romanas se dá apenas no canto IV da epopéia.
O canto I traz consigo uma miríade terrível de presságios do conflito. O canto
II rememora o terror das guerras civis romanas anteriores. E é só no canto III que ocorre
efetivamente a primeira batalha da guerra, porém entre as tropas cesáreas e os habitantes
de Marselha, uma colônia grega. Não se trata ainda de uma guerra propriamente civil,
mas de algo que poderíamos qualificar como um ensaio da série de impiedades e atos
violentos que viria.
Que cenas violentas são inerentes às epopéias antigas, isso é um fato que não
pode ser negado. Contudo, em Lucano essa violência atinge proporções extraordinárias.
Num mundo em dissolução, que, por conseguinte, perdeu os parâmetros de sobriedade e
normalidade impostos pelas leis civilizatórias humanas, Lucano parece querer enfatizar,
na sua hiperbólica violência, a irracionalidade e inconveniência daquele conflito. É com
esse espírito que se dá a Batalha Naval junto a Marselha.
Depois de um frustrado cerco terrestre à cidadela, César parte para a Espanha
e deixa suas tropas sob o comando do general Bruto, que organiza uma grande batalha
no mar. Tudo aqui é contra-senso: o mar (rubro sangue) se torna uma ilha de corpos, o
fogo se espalha na água, as vísceras vêm à luz, a fúria do combate transforma os
componentes dos navios e mesmo seus tripulantes moribundos em inusitadas armas.
Mas o dado estilístico mais marcante desse combate é o recurso de intenso
realismo nas narrações das mortes de dez combatentes de ambas as esquadras. A
descrição pormenorizada cria um efeito de violência em slow motion, num arranjo
narrativo absolutamente inovador dentro da Antigüidade. Esse recurso se encaixa
perfeitamente na expressão do contra-senso daquele combate. Ao deslocar o foco da
significação política do conflito para o destino singular de alguns combatentes, Lucano
cria um mundo de mortes sem sentido como aquele que surge nos tempos de hoje em
filmes como Faces of Death, "Faces da Morte".
Isso podemos constatar tomando como exemplo a morte do grego Lícidas:
"Ao cravar seus vorazes ganchos na popa, um arpão trespassou Lícidas. Ele teria
mergulhado nas profundezas, mas os seus o detêm e seguram suas pernas suspensas.
Rasgado, divide-se em dois, e o sangue não jorrou como em um simples ferida: lento
caiu de todas as rompidas veias, e a corrente vital que caminha para os diversos
membros, é interceptada pelas águas. A vida de um nenhum daqueles mortos escapou
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por uma via tão grande. A parte inferior do tronco entregou à morte os membros já sem
vida; mas aquela em que está o inflamado pulmão, aquela em que as vísceras refervem,
ali os fados por longo tempo titubearam e tendo muito lutado com esta parte do varão,
com esforço todos os membros levaram." (Farsália., III, 635-46)
Nesse mesmo estilo, os outros nove gêneros de morte do episódio são
excelentes exemplos do tratamento singular dado por Lucano às batalhas. Convém
acrescentar que, diferentemente da luta entre heróis (ou entre um soldado anônimo e um
herói) comum às epopéias, Lucano busca na indistinta soldadesca os atores de grande
parte de seus combates. O caráter anônimo dos atores envolvidos nessas mortes é um
dado inovador de Lucano, que ao despersonalizar os participantes dessa luta, torna-a
ainda mais desprovida de sentido, e portanto mais próxima do grotesco.
Mais adiante, outras manifestações do monstruoso chamam a atenção.
Façamos uma leitura mais detida do canto IX. Ao se iniciar essa parte da Farsália,
estamos diante de um cenário que poderia inspirar um sentimento de profundo
desespero em qualquer simpatizante da causa pompeiana. A grande batalha da Guerra
Civil já tinha ocorrido, com expressiva vitória das forças cesaristas. Esse massacre havia
sido apresentado pelo poeta como o marco da destruição final da República e o início da
tirania. O próprio Pompeu, que buscara refúgio em Alexandria após o revés militar,
tinha sido traiçoeiramente assassinado a mando do rei egípcio, desejoso de tomar o
partido dos vencedores. Os manes de Pompeu, contudo, penetram no peito de Bruto e na
mente de Catão, indicando que o conflito continuará.
Esse Catão, personagem que encarna como ninguém a rigidez moral estóica,
conseguira organizar uma retirada das tropas republicanas, e agora se encontra no norte
da África. É o novo líder dos opositores de César, e possui sob seu comando exércitos e
navios em grande número, o que sugere que ainda tem possibilidades de planejar uma
reação. Seu posicionamento político se explicita no início do canto: agora, mais do que
nunca, ele vê a necessidade de lutar ardorosamente, pois Pompeu podia representar uma
ameaça de centralização do poder tão grande quanto César. Morto Pompeu, a luta é pela
liberdade (libertas), o que poderia significar, na linguagem da época, a reconstrução das
instituições republicanas, tão abaladas pelo poder despótico de caudilhos como Sila,
Mário, Crasso e César.
A postura de Catão, contudo, contém uma contradição interna difícil de
compreender. Ao mesmo tempo em que incentiva os soldados com a esperança da
liberdade, com a glória que adviria de uma luta contra a escravidão, o herói estóico
expressa publicamente uma visão pessimista das circunstâncias. No discurso que
pronuncia nos funerais de Pompeu, afirma que a liberdade já havia morrido há muito
tempo, e que com o falecimento de Pompeu morria apenas uma ficção de liberdade.
Os outros personagens se entregam ao desconsolo. Cornélia, a esposa de
Pompeu, deseja acompanhar o marido na morte. Alguns soldados promovem uma
tentativa de deserção em massa: continuar na guerra não faz mais nenhum sentido para
eles. Catão, entretanto, reprime o motim. Em seguida, poderíamos esperar dele um
plano de luta, uma estratégia para conter César. Mas suas ordens parecem assimilar o
desejo de morte de Cornélia, e a valorização do suicídio como saída honrosa e sábia,
idéia já presente no quadro axiológico estóico, acaba por assumir um papel dominante
na cosmovisão do general romano. Isso porque Catão, ao invés de preservar suas tropas
para futuros combates, engaja os soldados em perigosos exercícios militares cuja
utilidade, dado o contexto, é no mínimo duvidosa.
Inicialmente, sob a alegação de que essas atividades manteriam seus
comandados num estado de tensão necessário à sua própria natureza guerreira, dirige-se
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à cidade de Cirene, e em seguida resolve buscar a ajuda do rei africano Juba. Não
obstante, entre os romanos e Juba estão as Sirtes, bancos de areia que são terríveis
obstáculos para a navegação. Descreve-se então a luta de Catão para fazer a travessia. O
texto latino, contudo, é ambíguo, já que não fica claro se o exército atingiu sua meta ou
se, fracassando, permaneceu preso no ponto de partida. É possível ver aí até uma
ambigüidade intencional. Em todo caso, o próximo passo de Catão é promover uma
ousada marcha pelo meio do deserto, contornando as Sirtes por terra. Agora não se faz
mais referência à busca de aliados ou a algum ponto de chegada concreto, e a
perspectiva é lançar os exércitos entre povos desconhecidos. O discurso de Catão é
significativo: segundo o general, seguem-no apenas aqueles para os quais não importam
a segurança e a vida, aqueles para quem a maior vitória é recusar a submissão: "[...] que
venham com amor pela pátria em ruínas, venham através da Líbia e experimentem
caminhos inacessíveis, todos aqueles que não têm nenhum desejo de chegar, aqueles
que julgam suficiente ir." (Farsália, IX, 385-8) O narrador deixa claro: é um caminho
de que eles jamais voltarão.
À medida que o poema se aprofunda na narrativa dessa viagem sem destino, o
leitor parece ser conduzido a um universo cada vez mais distante da realidade
historiográfica e cada vez mais próximo da imaginação poética. Isso é particularmente
significativo num autor como Lucano, tão apegado à racionalização dos mitos. O
primeiro obstáculo é uma tempestade de areia, e seu efeito é o de confundir a percepção
dos soldados: não é mais possível distinguir o caminho. Mas a trajetória prossegue,
marcada por fortes demonstrações de estoicismo: ao se encontrar um pouco de água,
apenas o suficiente para o general, Catão não só recusa a bebida que lhe trazem, mas a
derrama na areia; ao se depararem com um curso d'água repleto de serpentes venenosas,
os papéis se invertem, e Catão é primeiro a beber. Tudo se passa como se a maior
demonstração de virtude fosse se expor à morte. Essa atitude, tradicional no discurso
épico, reveste-se de um sentido especial quando um guerreiro se posta nas primeiras
fileiras para lutar contra o inimigo. Aqui, todavia, o ato corajoso se transforma em ato
temerário e quase vazio, inclusive por se realizar num deserto, sem a presença de um
adversário digno desse esforço. Aliás, é a partir desse local cheio de serpentes que
penetramos definitivamente num mundo fantástico em que a monstruosidade vem
expressar justamente o grotesco, com ele se confundindo: a presença do disforme, tanto
no plano físico quanto no da mente e no da cultura, vem associada a uma insuficiência
dos parâmetros racionais na tentativa de compreender um mundo que parece
subitamente dominado pelo erro, pelo desvio e pela ausência de sentido. Lucano,
habituado a fornecer explicações "científicas" em substituição às crenças do mito, vê-se
sem recursos diante dessa região tão densamente povoada por serpentes fantásticas, as
quais o poeta chama monstra: "Por que o ar da Líbia abunda em grandes pestes, por que
é tão fértil em mortes, ou o que uma natureza secreta misturou a esse solo nocivo, isso
nem nosso interesse nem nosso estudo pode conhecer; nenhuma explicação existe além
da fábula que, divulgada pelo orbe no lugar de uma causa verdadeira, enganou os
séculos". (Farsália, IX, 619-23) De fato, em seguida Lucano põe-se a narrar a dita
fábula, na qual ocupa posição central a figura da Medusa. Segundo a narrativa, a origem
das serpentes da região está no sangue e no veneno que gotejam da cabeça cortada da
Górgona morta por Perseu.
Os efeitos das mordidas dos animais são extraordinários. Uma cobra causa o
derretimento total e imediato do corpo de um jovem, outra provoca uma sede tão
intensa, que a vítima corta as próprias veias para beber sangue. Seria ocioso descrever
os pormenores desses quadros de horror; o corpo humano mais uma vez é rebaixado e
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esfacelado das mais variadas maneiras, numa seqüência que enfatiza a fragilidade do
homem diante de forças naturais inexplicáveis e só aumenta a impressão de absurdo,
quase de pesadelo, de que se reveste essa caminhada no deserto. A última parada dessa
viagem simbólica de autodestruição é a comunidade dos psilos, um povo que vive na
região das serpentes e tornou-se imune aos seus venenos, a tal ponto, que as crianças do
lugar brincam com os monstros. Parece-nos significativo que todo esse trajeto tenha
conduzido a uma nação fantástica que, em relação ao padrão romano, se configura
também como monstruosidade, mas que, vivendo em segurança entre as feras mais
nefastas, propõe um modelo diferente de humano.
No nosso modo de ver, essa viagem do canto IX propicia um questionamento
e uma relativização até mesmo dos valores estóicos. Estes são interpretados por Catão
com um extremismo tal, que ganham, eles mesmos, aspectos de monstruosidade. Esse
excesso ideológico é tratado de modo equívoco, pois se, de um lado, pode ser
interpretado como a construção de uma identidade nova, a qual por sua própria
novidade se apresenta como monstruosa para os que têm uma escala de valores mais
convencional (como os soldados que não compreendem as motivações de Catão), por
outro, esse excesso se mostra mesmo como deficiência, como um pensamento que não
traz nenhum fruto além da morte dos seus seguidores. Nessa linha de análise, torna-se
muito apropriado o ambiente de aridez absoluta em que os personagens se encontram.
Isso se relaciona com o sentido mais global do poema, que, como vimos, se
impõe a tarefa de representar um mundo esmagado pela ilegalidade e pela violência,
pelo desequilíbrio e pelo desentendimento. Não à toa, o canto VI, que ocupa uma
posição central no texto, é dominado pela figura da bruxa Ericto, personagem sobre a
qual se acumulam incontáveis sugestões de deformidade física e moral, e que aparece
inclusive associada à imagem de desordem da natureza, tão freqüente na obra. Mesmo
porque a feiticeira, entre as várias divindades ctônicas que invoca, chama também pelo
Caos.
Se a diferença em relação à norma é vista de modo negativo no poema, como
indício de uma desordem do mundo, não se deve omitir que há também em Lucano a
diferença afirmada como virtude, principalmente pelo modo como Farsália se mostra
consciente da originalidade literária que propõe. Lembremos ainda que a
monstruosidade se apresenta não apenas sob o signo do excesso, mas também sob a
égide da falta, da incompletude. E também aí a Farsália tem algo a nos dizer, pelo
modo abrupto como termina, passando aos leitores de ontem e de hoje a impressão de
ser uma obra inacabada. Mas há, é certo, alguns que defendem que o final da epopéia
foi pensado e redigido exatamente como podemos ler hoje. Num dos casos, o poeta foi
interrompido pela morte (sabe-se que Lucano participou de uma conspiração contra
Nero e morreu em decorrência da repressão que destruiu esse movimento político). Sua
obra ganha então aspectos talvez mais trágicos, pela inevitável conexão com uma luta
política que está inscrita no poema e ao mesmo tempo o transcende. A incompletude da
obra é um sinal da incompletude da vida e dos ideais do autor. Ao seguirmos a outra
leitura, teríamos de admitir que Lucano não quis dar o fecho que talvez se esperasse de
seu poema. Ao modelo da Odisséia, que chega aos últimos versos com a cessação de
praticamente todos os conflitos, Lucano preferiu o exemplo da Ilíada, que termina em
aberto. Nada mais adequado a um poeta que sentia o mundo em profunda
transformação, e que não desejou ou não pôde enquadrá-lo numa estrutura estática,
simétrica, unívoca ou definitiva.

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Bibliografia

Hugo, V. Do grotesco ao sublime: tradução do prefácio de Cromwell (Tradução de C.


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Lucano. Farsalia (Edición preparada por S. Mariner), Madrid, Editora Nacional, 1978.
Lucano, M. A. Farsalia (Introducción, traducción y notas de A. H. Redondo), Madrid,
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Masters, J. Poetry and civil war in Lucan's Bellum Ciuile, Cambridge, Cambridge
University Press, 1992.
Sell, R. "The comedy of hyperbolic horror: Seneca, Lucan and 20th century grotesque",
Neohelicon, (XI [1]), pp. 277-300, 1984.

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