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Sonhos Lúcidos

FLORINDA DONNER‐GRAU

“Para todos aqueles que ensonham sonhos de feiticeiros.


E para aqueles que os ensonharam comigo.”

PREFÁCIO

Florinda Donner é uma discípula de Don Juan Matus, um mestre bruxo do


estado de Sonora, México e, por mais de vinte anos, uma companheira minha nesta
aprendizagem. Devido a seus talentos naturais, Don Juan e duas de suas companheiras
feiticeiras, Florinda Grau e Zuleica Abelar, deram a Florinda Donner uma instrução e
cuidados muito especiais. Entre os três a treinaram como “ensonhadora” e a levaram a
desenvolver sua “atenção de ensonho” a um grau de controle extraordinário.
De acordo com os ensinamentos de Don Juan Matus, os feiticeiros do antigo
México praticavam duas artes: a arte de espreitar e a arte de ensonhar. Praticar uma
ou outra arte estava decretado pela atitude inata de cada praticante da feitiçaria.
Ensonhadores eram aqueles que possuíam a habilidade de fixar o que os bruxos
chamam de “atenção de ensonhos”, um aspecto especial da consciência, nos
elementos dos sonhos normais.
Chamavam espreitadores a aqueles que possuíam uma aptidão inata conhecida
como a “atenção de espreita”, outro estado especial da consciência, que permite
encontrar os elementos chave de qualquer situação no mundo cotidiano e fixar essa
dita atenção neles, a fim de alterá‐los ou de ajudá‐los a permanecer em seu curso.
Através de seus ensinamentos, Don Juan Matus sempre deixou muito claro que
as idéias dos bruxos da antiguidade ainda permanecem em vigência hoje em dia, e que
os bruxos modernos sempre se reúnem nesses dois grupos tradicionais. Para tanto,
seu esforço como mestre foi inculcar em seus discípulos as idéias e práticas dos bruxos
da antiguidade por meio de um rigoroso treinamento e uma disciplina férrea.
A idéia dos bruxos é que, ao fazer com que a atenção de ensonhos se fixe nos
elementos dos sonhos normais, estes sonhos se transformam de imediato em
ensonhos. Para eles, os ensonhos são estados únicos da consciência; algo como
comportas abertas até outros mundos reais, porém alheios à mente racional do
homem moderno. Na primeira vez que Don Juan me falou da arte de ensonhar, eu lhe
perguntei:
_Você quer dizer, Don Juan, que um feiticeiro toma a seus sonhos como se
fossem uma realidade?
_Um feiticeiro não toma nada como se fosse outra coisa – contestou. –Os
sonhos são sonhos. Os ensonhos não são algo que se pode tomar como a realidade: os
ensonhos são uma realidade a parte.
_Como é tudo isso? Me explique.
_Você tem que entender que um bruxo não é um idiota nem um transtornado
mental. Um bruxo não tem nem o tempo nem a disposição para enganar a si mesmo,

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ou para enganar a ninguém, e menos ainda para dar um passo em falso. O que
perderia fazendo isso é demasiado grande. Perderia sua ordem vital, a qual leva uma
vida inteira para se aperfeiçoar. Um feiticeiro não vai desperdiçar algo que vale mais
que sua vida tomando uma coisa por outra. Os ensonhos são algo real para um bruxo
porque neles ele pode atuar deliberadamente; pode escolher dentro de uma variedade
de possibilidades àquelas que sejam as mais adequadas para levá‐lo aonde ele
necessite ir.
_Então você quer dizer que os ensonhos são tão reais como o que estamos
fazendo agora?
_Se prefere comparações, lhe direi que os ensonhos são talvez mais reais. Neles
a pessoa tem poder para mudar a natureza das coisas, ou para mudar o curso dos
eventos. Mas tudo isso não é o importante.
_O que é então o importante, Don Juan?
_O jogo da percepção. Ensonhar ou espreitar significa ampliar o campo do que
se pode perceber a um ponto inconcebível para a mente.
Na opinião dos bruxos, todos nós em geral possuímos dons naturais de
ensonhadores ou espreitadores, e a muitos de nós nos resulta muito fácil ganhar o
controle da atenção de ensonhos ou o da atenção de espreita, e o fazemos de uma
maneira tão hábil e natural que na maioria das vezes nem nos damos conta de o haver
realizado. Um exemplo disto é a história do treinamento de Florinda Donner, que
precisou de anos inteiros de agonizante trabalho, não para ganhar o controle de sua
atenção de ensonho, e sim para clarear seus ganhos como ensonhadora e integrá‐los
ao pensamento linear de nossa civilização.
Certa vez foi perguntado a Florinda Donner qual era a razão pela qual escreveu
este livro, e ela respondeu que lhe era indispensável contar suas experiências no
processo de enfrentar e desenvolver a atenção de ensonho a fim de tentar, intrigar ou
incitar, pelo menos intelectualmente, a aqueles que se interessem em levar a sério as
afirmações de Don Juan Matus acerca das ilimitadas possibilidades da percepção. Don
Juan acreditava que no mundo inteiro não existe, nem talvez já tenha existido, outro
sistema, exceto o dos bruxos do antigo México, que conceda à percepção seu

merecido valor pragmático.


CARLOS CASTANEDA

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NOTA DA AUTORA

Meu primeiro contato com o mundo dos feiticeiros não foi algo planejado ou
buscado por mim, ou melhor, foi um evento fortuito. Conheci a um grupo de pessoas
no norte do México em julho de 1970, que eram os fiéis discípulos da tradição
feiticeira dos índios do México pré‐colombiano.
Aquele primeiro encontro teve em mim um poderoso efeito; introduziu‐me em
outro mundo que coexiste com o nosso. Há vinte anos estou comprometida com esse
mundo, e esta é a crônica de como começou meu compromisso e de como ele foi
estimulado e dirigido pelos feiticeiros responsáveis pelo meu ingresso nele.
A pessoa mais proeminente entre eles foi uma mulher chamada Florinda
Matus. Foi minha mentora e minha guia. Foi também quem me deu seu nome —
Florinda — como um presente de amor e poder.
Chamá‐los feiticeiros não é escolha minha. Bruxos e bruxas, ou seja, feiticeiros
e feiticeiras, são os termos que eles mesmos usam para designarem‐se a si mesmos.
Sempre me incomodou a conotação negativa dessas palavras, mas os próprios
feiticeiros me tranqüilizaram de uma vez por todas, explicando que o que se denomina
feitiçaria é algo bastante abstrato: a habilidade que algumas pessoas desenvolvem
para expandir os limites de sua percepção normal. A qualidade abstrata da feitiçaria,
então, anula automaticamente qualquer conotação positiva ou negativa dos termos
usados para descrever àqueles que a praticam.
Expandir os limites da percepção normal é um conceito que surge da crença
dos feiticeiros de que nossas opções na vida são limitadas devido ao fato de estarem
definidas pela ordem social. Os feiticeiros crêem que a ordem social cria nossa lista de
opções, mas que nós fazemos o resto; ao aceitar somente essas opções limitamos
nossas quase ilimitadas possibilidades.
Por sorte estas limitações, de acordo com os feiticeiros, são aplicáveis somente
ao nosso lado social e não ao outro, praticamente inacessível, que não cai dentro do
domínio da percepção comum. Para tanto, seu principal esforço tende a revelar esse
lado. Eles conseguem isso quebrando a débil e, contudo, resistente carapaça das

suposições humanas aceitam


Os feiticeiros com respeito
que emao nosso
que somos e do
mundo dosque somosdiários
afazeres capazesháde ser. prove
quem
o desconhecido em busca de opções diferentes da realidade, mas argumentam que,
por desgraça, tais buscas são essencialmente de natureza mental. Nunca nos
abastecem da energia necessária para mudar nosso modo de ser. Sem energia, novos
pensamentos e novas idéias quase nunca produzem mudanças em nós.
Algo que aprendi no mundo dos feiticeiros é que, sem retirar‐se do mundo e
sem avariarem‐se no processo, eles conseguem realizar a magnífica tarefa de romper o
pacto que tem definido a realidade.

3
CAPÍTULO UM

Respondendo a um impulso, após assistir ao batismo da filha de uma amiga na


cidade de Nogales, Arizona, decidi cruzar a fronteira e entrar no México. Quando já
saía da casa de minha amiga, uma de suas hóspedes, uma mulher chamada Delia
Flores, me pediu que a levasse até Hermosillo.
Era uma mulher morena, talvez de uns quarenta e tantos anos, de estatura
média e físico corpulento. Tinha um cabelo negro e liso, recolhido em uma grossa
trança, e seus olhos escuros e brilhantes realçavam um rosto redondo, astuto, e sem
embargo levemente juvenil. Segura de que se tratava de uma mexicana nascida no
Arizona, lhe perguntei se necessitava um visto de turista para ingressar no México.
—Para quê preciso de um visto de turista para entrar em meu próprio país? —
respondeu, abrindo os olhos num gesto de exagerada surpresa.
—Seu modo de ser e de falar me fizeram pensar que você era do Arizona —
contestei.
—Meus pais eram índios de Oaxaca — explicou — mas eu sou uma ladina.
—O que é uma ladina?
—Os ladinos são índios astutos, criados na cidade — declarou. Havia em sua
voz uma estranha excitação que me foi difícil entender quando acrescentou: —Adotam
as maneiras do homem branco e o fazem tão bem que podem se fazer passar pelo que
não são.
—Isso não é algo para orgulhar‐se — julguei — e por certo que em nada
favorece a vocês, senhora Flores.
A contraída expressão de seu rosto cedeu, dando lugar a um amplo sorriso.
—Talvez não a um verdadeiro índio ou a um verdadeiro branco — rebateu com
descaro — mas eu estou perfeitamente satisfeita comigo mesma — e, aproximando‐
se, acrescentou: —E não me chame por você. Por favor chame‐me Delia. Tenho a
impressão de que seremos grandes amigas.
Sem saber o que dizer me concentrei na estrada, e seguimos em silêncio até
chegar ao posto de controle. O guarda pediu meu visto de turista, mas não o de Delia.

Pareceu
Delia menão reparar
deteve comnela; não trocaram
um movimento palavras de
imperioso nemsuaolhares. Quando
mão, ante tentei
o qual falar lhe,
o guarda me
dirigiu um olhar interrogante. Ao constatar que eu não lhe responderia, se encolheu de
ombros e com um gesto me ordenou prosseguir em meu caminho.
—Como foi que o guarda não solicitou seus papéis? — perguntei quando
tínhamos nos afastado um trecho.
—Oh, ele me conhece — mentiu, e sabendo que eu sabia que mentia, riu
desavergonhadamente. —Acho que eu o assustei e ele não se animou a falar comigo
— mentiu de novo, e insistiu com sua risada.
Decidi mudar de assunto, ainda mais que não fosse para conservar‐lhe uma
escalada às suas mentiras. Comecei a falar de coisas da atualidade, mas na maior parte
do tempo viajamos em silêncio. Não resultou ser um silêncio tenso e incômodo: foi
como o—Onde
desertoeu
que
tenos rodeava,
deixo? extenso,quando
— perguntei, vazio e entramos
estranhamente tranquilizante.
em Hermosillo.
—No centro — respondeu. —Sempre me hospedo no mesmo hotel quando
visito esta cidade. Conheço bem a seus donos, e estou segura de poder conseguir para
você a mesma tarifa que eu pago.

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Agradecida, aceitei sua oferta.
O hotel era velho e descuidado, o quarto que me deram abria‐se a um pátio
poeirento. Uma cama dupla de quatro colunas e uma maciça e antiquada cômoda o
reduziam a dimensões claustrofóbicas. Haviam lhe agregado um pequeno banheiro,
mas sob a cama havia um pinico, que fazia jogo com a bacia de porcelana situada
sobre a cômoda.
A primeira noite foi horrível. Dormi mal, e em meus sonhos tive consciência de
sussurros e de sombras que se projetavam nas paredes. Dos móveis surgiam formas e
animais monstruosos, e dos cantos se materializavam seres pálidos e espectrais.
No dia seguinte percorri a cidade e seus arredores, e nessa noite, apesar de
encontrar‐me exausta, me mantive acordada. Quando por fim dormi e cai num
horrendo pesadelo, vi uma figura escura em forma de ameba, que me espreitava pelos
pés da cama. Tentáculos iridescentes pendiam de suas fendas cavernosas, e ao
inclinar‐se sobre mim respirou, emitindo tons e sons raspantes que terminaram num
engasgo.
Meus gritos foram afogados por suas cordas iridescentes que se ajustaram em
torno de meu pescoço, e logo tudo se fez negro quando a criatura — que de alguma
maneira eu sabia que era feminina — me esmagou jogando‐se sobre mim. O momento
intempestivo entre o dormir e o despertar foi por fim quebrado por insistentes golpes
sobre minha porta, e pelas preocupadas vozes dos hóspedes do hotel, que chegavam
do corredor. Acendi a luz e murmurei desculpas e explicações através da porta.
Com o pesadelo ainda grudado em minha pele como se fosse suor, me dirigi ao
banheiro e sufoquei um grito ao contemplar no espelho as linhas roxas que cruzavam
minha garganta, e os pontos roxos eqüidistantes que sulcavam meu peito como uma
tatuagem inacabada. Frenética, empacotei minhas coisas. Eram três horas da manhã
quando pedi a conta.
—Aonde vai a esta hora? — perguntou Delia Flores, surgindo da porta
localizada atrás do balcão. —Fiquei sabendo do pesadelo. Preocupou a todo o hotel.
Estava tão feliz de encontrar‐me com ela que a abracei e deixei correr meu
choro.

cabelos.—Bom, bom pode


—Se quiser, — murmurou
dormir no em
meutom de consolo,
quarto. enquanto
Eu cuidarei de você. acariciava meus
—Nada neste mundo me faria continuar neste hotel — repliquei. —Volto a Los
Ângeles neste mesmo instante.
—Costuma ter pesadelos com frequência? — perguntou como ao acaso,
enquanto me conduzia a um sofá rangente localizado num canto.
—Tenho sofrido com pesadelos toda minha vida — respondi. —Mais ou menos
tenho me acostumado a eles, mas esta noite foi diferente; mais real, o pior que já tive.
Dirigiu‐me um longo olhar, como se me avaliasse. Logo, arrastando suas
palavras, disse: —Quer se desfazer de seus pesadelos? — e enquanto falava, deu uma
rápida olhada à porta por cima do ombro, como se temesse que dali nos estivessem
escutando. —Conheço a alguém que na verdade poderia te ajudar.
—Eu
as linhas quegostaria muito
cruzavam dissogarganta,
minha — murmurei,
e lhedesatando
confiei osadetalhes
echarpe precisos
para mostrar‐lhe
de meu
pesadelo. —Já viu algo parecido? — perguntei.

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—Parece bastante sério — disse‐me, examinando com cuidado minhas feridas.
—Na verdade você não deveria partir sem antes ver à curandeira que tenho. Vive a
umas cem milhas ao sul daqui. Uma viagem de umas duas horas.
A possibilidade de ver a uma curandeira me agradou. Havia estado em contato
com elas desde meu nascimento na Venezuela. Quando ficava doente meus pais
chamavam um médico, e nem bem este partia, nossa caseira venezuelana me levava a
uma curandeira. Quando cresci e já não quis ser tratada dessa maneira — nenhum de
meus amigos o era — ela me convenceu de que não havia nada de mal nesta dupla
proteção. O hábito tomou tal corpo que, ao mudar‐me para Los Ângeles, quando ficava
doente, não deixava de ver tanto um médico como a uma curandeira.
—Acha que me verá hoje? — perguntei, e ao observar a expressão perplexa de
Delia precisei lembrá‐la que já era domingo.
—Te verá qualquer dia — me assegurou. —Por que não me espera aqui e eu te
levarei até ela? Juntar minhas coisas não levará mais que uns minutos.
—Por que você está se esforçando tanto em me ajudar? — perguntei de
pronto, desconcertada por sua oferta. —Depois de tudo sou uma perfeita estranha
para você.
—Precisamente! — disse, pondo‐se de pé e olhando‐me de maneira
indulgente, como se pudesse perceber as incômodas dúvidas que surgiam em mim. —
Que melhor razão poderia haver? — inquiriu de maneira retórica. —Ajudar a um
perfeito estranho é um ato de loucura ou um ato de grande controle. E o meu é um de
grande controle.
Impossibilitada de contestar só pude olhar fixo em seus olhos, esses olhos que
pareciam vislumbrar o mundo com assombro e curiosidade. De todo seu ser emanava
algo estranhamente tranquilizador. Não era só por confiar nela; era como se a
houvesse conhecido por toda a vida, fazendo‐me pressentir que entre nós existia uma
união, uma proximidade.
E sem embaraço, ao vê‐la desaparecer pela porta em busca de seus pertences,
brinquei com a idéia de pegar minhas malas e fugir. Não desejava trazer‐me
dificuldades por causa de minha ousadia, como tantas vezes aconteceu no passado,

mas umadeinexplicável
sensação curiosidade
perigo que me dominava.me reteve, apesar da insistente e conhecida
Passaram‐se vinte minutos de espera, quando surgiu uma mulher da porta
situada atrás do mostrador da recepção, vestindo um conjunto roxo de jaqueta e
calças, e sapatos de plataforma. Parou embaixo da luz, e com um gesto estudado
sacudiu para trás sua cabeça, de modo que os cachos de sua peruca loira brilharam na
claridade.
—Não me reconhece, não é? — perguntou, rindo.
—Não é você, Delia? — respondi, contemplando‐a de boca aberta.
—O que você acha? — e sem parar de rir saiu comigo à rua na procura de meu
carro, estacionado em frente ao hotel. Jogou sua cesta e uma bolsa no banco traseiro
de meu pequeno conversível, e logo ocupou o banco junto a mim. —A curandeira na
qual vousetevestir
luxo de levardedisse que apenas
maneira os jovens e os muitos velhos podem permitir‐se o
excêntrica.
Antes que se me apresentasse a oportunidade de lembrar‐lhe que, em matéria
de idade, ela não era nem um nem outro, confessou ser muito mais velha do que
aparentava. Seu rosto estava radiante quando me olhou de frente para esclarecer:

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—Uso este conjunto para deslumbrar a meus amigos.
Não especificou se isso era aplicável a mim ou à curandeira. Eu, certamente,
estava deslumbrada. A diferença não se encontrava apenas nas roupas; todo seu porte
havia mudado, eliminando qualquer traço da mulher distante e circunspecta que
viajou comigo de Nogales a Hermosillo.
—Esta será uma viagem encantadora — anunciou —, especialmente se
baixarmos a capota. — sua voz soava feliz e sonolenta. —Adoro viajar de noite com a
capota aberta.
Eu a atendi com gosto. Eram quase quatro da manhã quando deixamos para
trás Hermosillo. O céu, terno, negro e pontilhado de estrelas, parecia mais alto que
qualquer céu que tivesse visto antes. Dei velocidade ao veículo, e no entanto era como
se não nos movêssemos. As silhuetas retorcidas dos cactos e das árvores de mezquite
(algarobeira) apareciam e desapareciam sem cessar à luz de meus faróis. Todos
pareciam do mesmo formato e tamanho.
—Embrulhei uns pães doces e uma térmica cheia de champurrado — pegando
a cesta que jogara no banco traseiro. —Chegaremos na casa da curandeira no começo
da manhã. — serviu‐me um meio copo de delicioso chocolate, feito com farinha de
milho, fazendo‐me saborear, pedaço a pedaço, um tipo de pão doce dinamarquês.
—Estamos atravessando terras mágicas — informou, ao mesmo tempo em que
saboreava ao delicioso chocolate —, terras mágicas habitadas por guerreiros.
—E quem são esses guerreiros? — perguntei, não querendo parecer
condescendente.
—Os Yaquis de Sonora — respondeu, ficando logo depois em silêncio, talvez
medindo minha reação. —Admiro os índios Yaquis, pois têm vivido constantemente
em guerra. Primeiro com os espanhóis e logo depois com os mexicanos, e isso até
épocas tão recentes como 1934. Ambos têm experimentado a selvageria, a astúcia e a
severidade dos guerreiros Yaquis.
—Não admiro à gente guerreira — disse. E logo, como para desculpar meu tom
belicoso, expliquei que eu era proveniente de uma família alemã destroçada pela
guerra.

—Seu caso
—Um é diferente
momento, — sustentou.
— protestei —Você não possui
— é precisamente os ideais
porque possuodaos
liberdade.
ideais da
liberdade que acho a guerra tão abominável.
—Estamos falando de dois tipos diferentes de guerra — insistiu.
—A guerra é a guerra — insisti.
—Seu tipo de guerra — prosseguiu, ignorando minha interrupção — é entre
dois irmãos, ambos chefes, que lutam pela supremacia. — Se aproximou e, num
sussurro urgente, acrescentou: —O tipo de guerra ao qual eu me refiro é entre um
escravo e um patrão que acredita ser o dono da gente. Entende a diferença?
—Não, não a compreendo — respondi, teimosa, e repeti que a guerra era a
guerra, independentemente de suas razões.
—Não posso estar de acordo contigo — disse ela, suspirando fundo e
reclinando‐se no
que proviemos deassento.
distintas—Talvez a razão
realidades de nosso desacordo filosófico radique em
sociais.
Assombrada pelas palavras pronunciadas por Delia, automaticamente diminui a
marcha do carro. Não desejava ser descortês, mas escutar de sua boca essa sequência

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de conceitos acadêmicos era algo tão incongruente e inesperado que não pude evitar
rir‐me. Delia não se ofendeu. Me observou sorridente, muito satisfeita de si mesma.
—Quando chegar a conhecer meu ponto de vista pode ser que mude sua
opinião — e disse isto com tal seriedade, mas não isenta de carinho, que senti
vergonha por ter rido. —Até pode desculpar‐se por rir de mim — acrescentou, como
se tivesse lido meus pensamentos.
—Peço desculpas, Delia — disse com total sinceridade —, sinto muito ter sido
descortês, mas me surpreenderam tanto suas declarações que não soube o que fazer
— olhei‐a de soslaio antes de agregar, compungida: —De modo que ri.
—Não me referia a desculpas sociais por seu comportamento — respondeu, e
sacudiu a cabeça para evidenciar sua desilusão —, me refiro a desculpas por não haver
compreendido a condição do homem.
—Não sei do quê você está falando — respondi incômoda. Sentia que seus
olhos me perfuravam.
—Como mulher deveria entender muito bem essa condição. Tem sido uma
escrava toda sua vida.
—Do que está falando, Delia? — perguntei, irritada por sua impertinência, mas
de imediato me acalmei, pensando que sem dúvida a pobre índia tinha um marido
prepotente e insuportável.
— Acredite em mim, Delia. Sou inteiramente livre. Faço o que quero.
—Talvez você faça o que quer, mas não é livre — insistiu. —Você é mulher, e
isso automaticamente significa que está à mercê dos homens.
—Não estou à mercê de ninguém! — gritei.
Não sei se foi minha afirmação ou o tom de minha voz que fizeram com que
Delia se desatasse em gargalhadas, tão fortes como as minhas de momentos antes.
—Parece estar gozando de sua vingança — observei incomodada. —Agora é a
sua vez de rir, não é?
—Não é o mesmo — replicou, repentinamente séria. —Você riu de mim porque
se sentia superior. Escutar a uma escrava que fala como seu amo sempre diverte ao
amo por um momento.
‐ ‐
Desejei
nela como umainterrompê
escrava, oula, dizer
nem lhe que como
a mim nem me haviaamo,
a um passado
mas pela
ela cabeça
ignoroupensar
meus
esforços, e no mesmo tom solene explicou que o motivo pelo qual havia rido de mim
era porque eu me achava cega e estúpida ante minha própria feminilidade.
—O que está acontecendo, Delia? — perguntei intrigada. —Você está me
insultando deliberadamente.
—Muito certo — respondeu rindo, por completo indiferente à minha raiva
crescente. Logo depois, golpeando‐me forte no joelho, acrescentou: —O que me
preocupa é que você não sabe que, pelo simples fato de ser mulher, é escrava.
Recorrendo a toda a paciência que pude reunir disse‐lhe que estava
equivocada:
—Ninguém é escravo hoje em dia.
—As
aturdem mulheres esão
às mulheres, seuescravas
desejo de— nos
insistiu Delia
marcar —, os
como homens as suas
propriedades escravizam. Eles
nos envolve
em névoa, a névoa resultante se prende a nós como uma bigorna.
Meu olhar vazio a fez sorrir. Recostou‐se no assento, abraçando o peito com as
mãos.

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—O sexo desorienta as mulheres — acrescentou de maneira suave, mas
enfática —, e o faz tão irrefutavelmente que não podem considerar a possibilidade de
que sua baixa condição seja a consequência direta do que se lhes faz sexualmente.
—Essa é a coisa mais ridícula que jamais escutei — declarei; logo,
pesadamente, embarquei numa longa discussão acerca das razões sociais, econômicas
e políticas que explicavam a baixa condição da mulher.
Com grande detalhe falei das mudanças ocorridas nas últimas décadas, e de
como as mulheres haviam tido bastante êxito em sua luta contra a supremacia
masculina. Incomodada com sua expressão irreverente, não pude conter o comentário
de que ela, sem dúvida, era vítima dos prejuízos de sua própria experiência e
perspectiva do tempo.
Todo o corpo de Delia começou a sacudir‐se com o esforço que fazia para
controlar seu riso. Conseguiu fazê‐lo e me disse:
—Na realidade nada mudou. As mulheres são escravas. Temos sido criadas
como escravas. As escravas que foram educadas estão hoje atarefadas denunciando os
abusos sociais e políticos cometidos contra a mulher. Não obstante, nenhuma dessas
escravas pode enfocar a raiz de sua escravidão — o ato sexual — a não ser que envolva
um estupro, ou esteja relacionado com alguma forma de abuso físico — um leve
sorriso adornou seus lábios quando disse que os religiosos, os filósofos e os homens da
ciência têm mantido durante séculos, e certamente o seguem fazendo, que tanto os
homens como as mulheres devem seguir um imperativo biológico ditado por Deus,
que diz respeito diretamente à sua capacidade sexual reprodutiva.
—Temos sido condicionadas para acreditar que o sexo é bom para nós —
ressaltou. —Esta crença e aceitação inata nos têm incapacitado para fazer a pergunta
certa.
—E qual é essa pergunta? — inquiri, esforçando‐me para não rir de suas
convicções totalmente erradas.
Delia pareceu não haver me escutado; esteve tanto tempo em silêncio que
pensei se haveria dormido, e por isso me surpreendeu quando disse:
—A pergunta que ninguém se atreve a fazer é: o que é quê o ato de que nos

montem nos faz aDelia…


—Vamos, nós, mulheres?
— retruquei jocosamente.
—O aturdimento da mulher é tão total que enfocamos qualquer outro aspecto
de nossa inferioridade, menos aquele que é a causa de tudo — manteve.
—Mas Delia — disse rindo —, não podemos viver sem sexo. O que seria do
gênero humano se…?
Parou minha pergunta e meu riso com um gesto imperativo de sua mão.
—Hoje em dia mulheres como você, em sua febre por se igualar ao homem,
imitam‐no, e o fazem até ao extremo absurdo de que o sexo que lhes interessa não
tem nada que ver com a reprodução. Equiparam o sexo à liberdade, sem sequer
considerar o que o sexo faz a seu bem‐estar físico e emocional. Temos sido tão
cabalmente doutrinadas que acreditamos firmemente que o sexo é bom para nós —
me tocou
—Ocom o cotovelo
sexo e, como
é bom para nós.se
É estivesse
agradável,recitando uma ladainha,
é necessário. Alivia as acrescentou:
depressões, as
repressões e as frustrações. Cura as dores de cabeça, a hipertensão e a pressão baixa.
Faz desaparecer as espinhas da cara. Faz crescer a bunda e os seios. Regula o ciclo
menstrual. Resumindo: é fantástico! É bom para as mulheres. Todos o dizem. Todos o

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recomendam. — fez uma pausa para depois declamar com dramática finalidade: —
Não há mal que uma boa trepada não cure.
Suas declarações me pareceram muito engraçadas, mas de repente fiquei séria
ao recordar como minha família e amigos, inclusive nosso médico particular, o haviam
sugerido (é claro que não de maneira tão crua) como uma cura para todos os males da
adolescência que me angustiavam por crescer em um meio tão estritamente
repressivo. Havia dito que, ao casar‐me, teria ciclos menstruais regulares, aumentaria
de peso e dormiria melhor. Inclusive adquiriria uma disposição de ânimo mais doce.
—Não vejo nada de mal em desejar sexo e amor — me defendi. —Minhas
experiências neste sentido têm sido muito prazerosas, e ninguém me domina ou
atordoa. Sou livre! Eu faço com quem quero e quando quero.
Nos olhos escuros de Delia vi um lampejo de alegria ao dizer:
—O fato de escolher seu companheiro não altera o fato de que te montam. —
Em seguida sorriu, como para mitigar a aspereza de seu tom, e acrescentou: —
Equiparar o sexo com a liberdade é a suprema ironia. A ação de aturdir, por parte do
homem, é tão completa, tão total, que nos tem drenado a energia e a imaginação
necessárias para enfocar a verdadeira causa de nossa escravidão. — Logo enfatizou: —
Desejar a um homem sexualmente, ou enamorar‐se romanticamente por um, são as
únicas opções dadas às escravas, e tudo o que nos tem sido dito acerca dessas duas
opções não são outra coisa que desculpas, que nos submergem na cumplicidade e na
ignorância.
Indignei‐me, pois não podia deixar de pensar nela como em uma reprimida que
odiava aos homens.
—Por que odeia tanto aos homens, Delia? — perguntei, apelando ao meu tom
mais cínico.
—Não me desagradam — assegurou —, ao que me oponho apaixonadamente é
à nossa renúncia a examinar quão profundamente doutrinadas estamos. A pressão que
têm exercido sobre nós é tão terrível e fanática que nos convertemos em cúmplices
complacentes. Aquelas que se animam a discordar são rotuladas como monstros que
detestam aos homens, e sofrem a conseguinte zombaria.
‐ ‐
Corada,
depreciativa do observei
amor e dea sub
sexorepticiamente, e decidi
pois, no fim das que
contas, eraelavelha,
podiae falar de forma
por estar mais
além de todo desejo.
Rindo contidamente, Delia colocou as mãos atrás da cabeça. —Meus desejos
físicos não caducaram porque seja velha —confessou — e sim porque me foi dada a
oportunidade de usar minha energia e imaginação para converter‐me em algo
diferente da escrava para a qual me criaram.
Porque havia lido meus pensamentos me senti mais insultada que
surpreendida. Comecei a defender‐me, mas minhas palavras só provocaram sua risada.
Quando parou de rir me encarou; seu rosto mostrava‐se tão sério e severo como o de
uma professora a ponto de dar uma reprimenda a um aluno.
—Se você não é uma escrava, como é que te criaram para ser uma Hausfrau
que não pensa em outra coisa que em heiraten e em seu futuro Herr Gernahl que dich
mitnehmen?
Ri tanto ante seu uso do alemão, que precisei parar o carro para não correr o
risco de bater, e meu interesse por averiguar de onde havia aprendido tão bem esse
idioma fez com que esquecesse de defender‐me de sua pouco lisonjeira acusação, de

10
que tudo o que eu ambicionava na vida era encontrar um marido que se unisse
comigo. Com respeito a seu conhecimento de alemão, apesar de minhas insistentes
súplicas, manteve‐se desdenhosamente refratária a fazer revelações.
—Você e eu teremos tempo de sobra no futuro para falar em alemão —
assegurou, e depois de me olhar de forma irreverente, completou — ou do fato de ser
uma escrava — e adiantando‐se à minha réplica, sugeriu que falássemos de algo
impessoal.
—Como o quê, por exemplo? — perguntei, e coloquei o carro em movimento.
Colocou seu assento numa posição quase reclinada e fechou os olhos.
—Deixe eu te contar algo acerca dos quatro líderes mais famosos que tiveram
os Yaquis — murmurou. —A mim me interessam os líderes, seus êxitos e seus
fracassos.
Antes que eu pudesse objetar que na verdade não me interessavam as histórias
de guerra, Delia disse que Calixto Muní foi o primeiro yaqui em atrair sua atenção.
Contar histórias não era seu forte. Seu relato era direto, quase acadêmico, e apesar
disso me encontrei pendente de cada palavra.
Calixto Muni foi um índio que durante anos navegou sob bandeira pirata por
águas do Caribe. Ao regressar à sua Sonora natal, dirigiu, por volta de 1730, uma
revolta contra os espanhóis. Foi traído, capturado e executado. Logo Delia se estendeu
numa sofisticada explicação sobre como, na década de 1820, depois de obtida a
independência mexicana, seu governo pretendeu parcelar as terras yaquis, e a
resultante resistência se converteu numa ampla revolta. Foi Juan Bandera, explicou,
quem — guiado pelo mesmíssimo espírito — organizou as unidades combativas dos
yaquis. Armados com frequência só com arcos e flechas, as hostes de Bandera lutaram
durante quase dez anos contra as tropas mexicanas. Em 1832 Bandera foi derrotado e
executado.
Segundo Delia o líder seguinte que se destacou foi José María Leyva, mais
conhecido como Cajeme, “o que não bebe”, yaqui de Hermosillo e homem educado,
que havia adquirido seus conhecimentos militares servindo no exército mexicano.
Graças a esses conhecimentos unificou a todos os yaquis. Desde seu primeiro levante,

por volta de
derrotado pelo1870, Cajeme
exército manteve
mexicano suas em
em 1887 forças em estado
Buataviche, umade revoltamontanhês
cidadela ativa. Foi
fortificada, e apesar de ter conseguido escapar e se ocultar em Guaymas.
Eventualmente foi traído e executado.
O último dos grandes heróis yaquis foi Juan Maldonado. Conhecido também
como Tebiate, “pedra rolante”. Reorganizou o restante das forças yaquis nas
montanhas de Bacatete, e dali conduziu uma feroz e desesperada guerra, feita de
guerrilhas contra as tropas mexicanas, por mais de dez anos.
—Em fins do século — e com isto Delia finalizou sua narração — o ditador
Porfirio Díaz havia inaugurado uma campanha de extermínio dos yaquis. Os matava
enquanto trabalhavam nos campos; milhares foram capturados e enviados para
trabalhar nas plantações de agave (sisal) em Yucatán, e para Oaxaca, nas de cana de
açúcar.Seus conhecimentos me impressionaram, mas ainda não podia entender por
que me havia contado tudo isso. Não lhe ocultei minha admiração:
—Soa como uma erudita, como uma historiadora do modo de vida dos yaquis.
Quem, na verdade, é você?

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Por um momento pareceu desconcertada por minha pergunta, que por outro
lado era puramente retórica, mas recobrando‐se com rapidez disse:
—Já lhe disse quem eu sou. Acontece que conheço muito sobre os yaquis. Vivo
entre eles, sabia? — Caiu num momentâneo silêncio, logo fez um breve movimento de
cabeça, como quem chega a uma conclusão, e acrescentou: —O motivo pelo qual lhe
contei sobre os líderes dos yaquis é porque compete às mulheres conhecer a força e a
debilidade do líder.
—Por quê? — perguntei. —A quem interessa os líderes? No que me diz
respeito, são todos uns tontos.
Delia coçou a cabeça por baixo da peruca, espirrou repetidas vezes e disse com
um vacilante sorriso:
—Por desgraça as mulheres devem congregar‐se em torno deles, a não ser que
desejem ser elas mesmas as que guiam.
—E a quem iriam guiar? — perguntei de maneira sarcástica.
Olhou‐me com assombro, depois friccionou a parte superior de seu braço.
Tanto o gesto como o rosto pareciam pertencer a uma jovenzinha. —É muito difícil de
explicar — murmurou, a voz dominada por uma rara suavidade, metade ternura e a
outra metade indecisão, misturada com falta de interesse. —É melhor que nem o
tente. Poderia perder você para sempre. Tudo o que posso dizer no momento é que
não sou erudita nem historiadora. Sou uma narradora de histórias, que ainda não lhe
contou a parte mais importante de seu conto.
—E qual é esse conto? — perguntei, intrigada por seu desejo de mudar de
tema.
—Tudo o que te dei até agora é informação precisa. Daquilo que ainda não falei
é do mundo mágico a partir do qual operavam esses líderes yaquis. Para eles as ações
do vento, das sombras, dos animais e das plantas eram tão importantes como os atos
dos homens. Essa é a parte que mais me interessa.
—As ações do vento, das sombras, dos animais e das plantas? — repeti
zombando.
Em nada perturbada por meu tom, Delia assentiu com um movimento de

cabeça,
vento e depoiscom
brincasse de seus
levantar se no
cabelos assento
negros tirou a peruca loira, para permitir que o
e lisos.
—Esses são os montes do Bacatete — anunciou, assinalando umas montanhas
localizadas a nossa esquerda, apenas delineadas contra a semi‐obscuridade do céu de
alvorada.
—É para lá aonde nos dirigimos? — perguntei.
—Hoje não — respondeu, deslizando‐se de novo no assento. Um sorriso
enigmático brincava em torno de seus lábios quando me encarou.
—Talvez algum dia você tenha a oportunidade de visitar essas montanhas —
acrescentou, fechando os olhos —, o Bacatete está habitado por criaturas de outro
mundo, de outra época.
—Criaturas de outro mundo, de outra época? — repeti, imprimindo à voz uma
falsa seriedade. —Quem
—Criaturas ou ovagamente
— disse que são? —, criaturas que não pertencem ao nosso
tempo ou ao nosso mundo.
—Vamos, Delia. Está querendo me assustar? — e não pude evitar o riso.

12
Mesmo na escuridão seu rosto brilhava. Parecia extraordinariamente jovem,
com sua pele sem rugas, que se dobrava sobre as curvas de suas bochechas, testa e
nariz.
—Não, não estou tentando te assustar — disse com naturalidade, ao mesmo
tempo em que acomodava uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. —Simplesmente
estou lhe transmitindo o que nesta região é público e notório.
—Interessante. E que tipo de criaturas são? — perguntei, e precisei morder os
lábios para controlar o riso. —Já os viu?
Respondeu‐me com tom indulgente.
—É claro que os vi. Se não fosse assim, não estaria me referindo a eles — e
sorriu com doçura, sem vestígios de ressentimento. —São seres que povoaram a terra
em outro tempo, e que agora se retiraram a lugares isolados.
Inicialmente não pude evitar rir‐me de sua credulidade. Logo, ao ver quão séria
e convencida estava da existência desses seres, decidi aceitá‐los e não zombar‐me
dela. Afinal de contas, ela estava sendo meu contato com uma curandeira, e não
desejava antagonizá‐la com minhas indagações racionais.
—Esses seres, são os fantasmas dos guerreiros yaquis que perderam a vida nas
guerras? — perguntei.
Negou com um gesto de cabeça; depois, como se temesse que alguém pudesse
nos escutar, se aproximou para sussurrar‐me no olvido.
—É bem sabido que estas montanhas são habitadas por seres encantados:
pássaros que falam, arbustos que cantam, pedras que dançam, e criaturas que podem
adotar a forma que desejam.
Reclinada em seu banco me contemplou em expectativa.
—Os yaquis chamam a essas criaturas surem, e crêem que são velhos yaquis
que recusaram ser batizados pelos primeiros jesuítas que vieram catequizar aos índios.
—Acariciou meu braço afetuosamente. —Cuide‐se, dizem que os surem gostam das
loiras — e riu, encantada de sua advertência. —Talvez seja isso o que provoca seus
pesadelos: um surem tratando de roubar‐te.
—Você não acredita em tudo isso de verdade, não é? — perguntei

desdenhosamente,
—Não, acabojáde
incapaz de dissimular
inventar isso de queminha irritação.
os surem gostam das loiras — respondeu
em tom tranquilizante. —Não lhes agrada em absoluto.
Apesar de não ter me virado para olhá‐la, pude perceber seu sorriso e o
lampejo de humor em seus olhos, ao qual me incomodou, e me fez pensar que Delia
era muito cândida, esquiva ou, pior ainda, muito louca.
—Na realidade não acredita na existência de seres de outro mundo, não é? —
irrompi mal humorada.
Em seguida, temendo tê‐la ofendido, a encarei com uma semi‐ansiosa desculpa
nos lábios, mas antes que eu pudesse articular palavra, me respondeu no mesmo tom
forte e agressivo que eu empregara anteriormente.
—Mas é óbvio que eu acredito. Por que não haveriam de existir?

seguida—Sinceramente,
desculpar‐me. porque não! — disse de maneira seca e autoritária, para em
Falei‐lhe de minha criação pragmática, e de como meu pai me havia levado a
admitir que os monstros de meus sonhos, e meus supostos invisíveis companheiros de
jogo, não eram outra coisa que produto de uma imaginação hiperativa.

13
—Desde muito nova fui criada para ser objetiva e para qualificar tudo.
—Esse é o problema — observou Delia —, as pessoas são tão razoáveis que só
de falar nisso minha vitalidade diminui.
—Em meu mundo — continuei, ignorando seu comentário —, não existe dado
algum acerca de criaturas de outros mundos: só especulações e anseios, fantasias de
mentes perturbadas.
—Não pode ser tão densa! — expressou‐se alegre entre acesos de riso, como
se minha explicação tivesse oprimido suas expectativas.
—Pode me provar que esses seres existem? — a desafiei.
—E em que consistiria a prova? — perguntou com um ar de desconfiança,
obviamente falso.
—Se alguma pessoa pudesse vê‐los, essa seria uma prova.
—Quer dizer que se você, por exemplo, conseguisse vê‐los, essa seria uma
prova de sua existência? — perguntou, aproximando sua cabeça à minha.
—Esse poderia ser um começo.
Com um suspiro Delia apoiou a cabeça contra o respaldo de seu banco, e se
manteve tanto tempo em silêncio que tive a certeza de que havia dormido, e me
surpreendi sobremaneira quando se levantou abruptamente para pedir‐me que
parasse o automóvel ao lado do caminho. Precisava aliviar‐se, disse.
Decidi aproveitar a interrupção de nossa viagem com idêntico fim, e me enfiei
atrás dela no matagal. Estava por abaixar meu jeans quando escutei uma forte voz
masculina, muito perto de mim, dizer: “¡Qué cuerote!” e suspirar. Com meus jeans
ainda sem desprender corri até onde se encontrava Delia.
—É melhor a gente dar o fora daqui — gritei —, há um homem escondido no
matagal!
—Não seja idiota — respondeu —, o único que está aqui é um burro.
—Os burros não suspiram como homens depravados — observei, e repeti as
palavras que escutei.
Delia caiu vítima de um ataque de riso, mas ao observar minha preocupação fez
um gesto conciliatório com a mão.

—Chegou
—Não a ver o homem?
foi necessário — respondi —, apenas escutá‐lo me bastou.
Por uns instantes não se moveu; depois se encaminhou até o carro, mas antes
que subíssemos ao desnível da estrada se deteve num tranco e, virando‐se para mim,
sussurrou:
—Aconteceu algo bastante misterioso, que preciso lhe revelar — e, pegando‐
me pela mão, me levou de volta ao lugar onde me pus de cócoras. E ali mesmo, atrás
de uns arbustos, vi um burro.
—Antes não estava ali — insisti.
Delia me observou, divertida, depois encolheu os ombros e se dirigiu ao animal.
—Burrinho — disse no tom que se usa com os bebês —, ¿Le miraste el trasero?
(Você olhou pra bunda dela?)

burro sóPensei
zurrouque Delia
forte era uma vezes.
e repetidas ventríloqua, e que se iria fazer o animal falar, mas o
—Vamos sair daqui — roguei‐lhe, puxando sua manga. —Deve ser o dono dele
que está escondido entre os arbustos.

14
—Mas o pobrezinho não tem dono — disse, no mesmo tom infantil, enquanto
acariciava suas largas e suaves orelhas.
—Mas é claro que tem dono. Não vê o tanto que está bem cuidado e
alimentado que até brilha? — e numa voz que enrouquecia por império dos nervos e
da impaciência, ressaltei outra vez sobre os perigos que representava para duas
mulheres ao ver‐se sozinhas em um deserto a caminho de Sonora.
Delia me observou em silêncio, aparentemente preocupada. Logo assentiu com
a cabeça e me convidou por sinais a segui‐la. Pegado a mim caminhava o burro,
topando minhas nádegas com o focinho, mas quando me virei para encará‐lo, precisei
me conformar com apenas um praguejar. O burro já não estava ali.
—Delia! — gritei assustada. —O que aconteceu com o burro?
Alarmada por meu grito, um bando de pássaros alçou um ruidoso vôo, traçou
um círculo em torno e depois se alinhou em direção ao leste, e uma frágil abertura no
céu era indício do fim da noite e o começo do dia.
—Onde está o burro? — insisti em um sussurro apenas audível.
—Ali o tem, em frente a ti — retornou, assinalando uma árvore nodosa,
desfolhada.
—Não o vejo.
—Precisa de óculos.
—Não tenho problemas com meus olhos — repliquei. —Até consigo ver as
lindas flores da árvore — e assombrada pela beleza dos casulos brancos e brilhantes,
em forma de campainhas, me aproximei.
—Que tipo de árvore é?
—Palo Santo.
Por um segundo desconcertante acreditei que era o animal, que nesse
momento emergia por detrás do tronco, que havia falado. Virei‐me na direção de
Delia.
—Palo Santo — repetiu, rindo.
Ali me ocorreu a idéia de que Delia me estava pregando uma peça. O burro
provavelmente pertencia à curandeira que, sem dúvida, vivia nas imediações.

—Ode
sabichona que é que
meu te causa tanta graça? — perguntou Delia, ao captar a expressão
rosto.
—Estou com uma cólica terrível — menti, sentando‐me com as mãos sobre o
estômago. —Por favor, me espere no carro.
Nem bem fiquei sozinha tirei meu lenço para amarrá‐lo no pescoço do burro, e
gozei antecipando a surpresa de Delia quando descobrisse (ao chegar à casa da
curandeira) que todo o tempo eu estava a par de sua brincadeira. Contudo, toda
esperança de reencontrar‐me com o animal ou meu lenço desapareceram logo.
Levamos quase duas horas para chegar ao nosso destino.

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CAPÍTULO DOIS

Por volta das oito da manhã chegamos na casa da curandeira, nos arredores de
Ciudad Obregón; uma casa velha, maciça, de paredes pintadas e teto de telhas cinzas por
causa da passagem do tempo. Ostentava grades de ferro e um pórtico em forma de arco.
A pesada porta da rua estava aberta de par em par, e com a confiança de quem conhece o
terreno, Delia Flores me conduziu através de um vestíbulo escuro e um largo corredor até
os fundos, a um quarto apenas mobiliado com uma cama estreita, uma mesa e várias
cadeiras. O mais estranho desse cômodo era que em cada parede havia uma porta, todas
elas fechadas.
—Espere aqui — ordenou Delia, assinalando a cama com a testa. —Durma um
pouco enquanto busco a curandeira, o que pode custar‐me algum tempo — e fechou a
porta após sair.
Aguardei a que os sons de seus passos se amortecessem antes de inspecionar a
mais estranha sala de curas que jamais meus olhos viram. As paredes brancas estavam
desnudas, e as lajotas marrom‐claro brilhavam como um espelho. Não havia altar,
imagens ou figuras de santos, da Virgem nem de Jesus, que supunha fossem de praxe em
tais quartos. Investiguei as quatro portas; duas abriam a corredores sombrios, e as outras
a um pátio cercado por um muro alto.
Quando caminhava nas pontas dos pés por um dos corredores rumo a outro
quarto, ouvi atrás de mim um grunhido abafado e ameaçante. Virei‐me lentamente, e
apenas a poucos metros vi um enorme cão negro, de aspecto feroz. Não me atacou, mas
firme em sua postura, me desafiava com grunhidos e com a exibição de seus caninos. Sem
olhá‐lo diretamentenos olhos, mas mantendo‐o sempre enfocado, retrocedi de costas até
a sala de curas, seguida até a própria porta pelo animal. Fechei a porta com suavidade em
seu próprio focinho, para depois apoiar‐me contra a parede, até conseguir que se
normalizassemas batidas de meu coração. Depois me deitei na cama, e em pouco tempo,
sem sequer me propor a isso, caí num sono profundo. Despertou‐me uma leve pressão
sobre o ombro, e ao abrir os olhos tinha ante mim o rosto enrugado e rosado de uma
mulher de idade.

—Está ensonhando
Assenti — dissecom
automaticamente — eaeucabeça,
sou parte
masdesem
seu ensonho.
estar de todo convencida de
estar sonhando. A mulher era chamativamente pequena; não anã nem pigméia, e sim,
melhor dizendo, do tamanho de uma criança, de braços descarnadose ombros estreitos e
frágeis.
—É a curandeira?— perguntei.
—Sou Esperanza— respondeu.—Sou a que traz os ensonhos.
Sua voz era suave e muito baixa, dotada de uma qualidade curiosa e exótica, como
se o espanhol (que falava de maneira fluida) fosse uma língua à qual os músculos do lábio
superior não estavam acostumados.Gradualmenteo som de sua voz ganhou intensidade,
até converter‐se numa força desconexa que enchia o recinto, fazendo‐me pensar em
águas que corriam na profundidadede uma caverna.
—Não é uma mulher — murmurei para comigo mesma —, é o som da
obscuridade.
—Agora vou remover a causa de seus pesadelos — anunciou, fixando em mim seu
olhar imperioso, ao mesmo tempo em que seus dedos pressionavam com suavidade
minha garganta. —Vou tirá‐las uma por uma — prometeu, enquanto suas mãos se

16
moviam sobre meu peito em suaves ondulações. Sorriu de maneira triunfal, e então me
convidou a examinar as palmas de suas mãos.
—Vê? Saíram sem esforço algum.
Observava‐me com tal expressão de conquista e assombro que não pude dizer‐lhe
que não via nada em suas mãos, e certa de que a sessão curativa havia terminado, a
agradeci e me levantei. Ela sacudiu a cabeça num gesto de reprovação, e com suavidade
me obrigou a recostar‐me.
—Está adormecida— me recordou. —Sou a que traz os ensonhos, lembra?
Adoraria insistir que estava desperta, mas a única coisa que consegui foi sorrir
como uma idiota, ao mesmo tempo em que o sono me afundava em um estado
confortável.
Risos e sussurros me cercavam como sombras; lutei por despertar, e precisei fazer
um grande esforço para abrir os olhos, levantar‐me e olhar a aqueles que se haviam
juntado ao redor da mesa. O peculiar nevoeiro do quarto entorpeciaa possibilidadede vê‐
los claramente.Delia estava entre eles, e estava a ponto de pronunciar seu nome quando
um insistentesom raspante me fez virar para averiguar o que aconteciaàs minhas costas.
Um homem, precariamente erguido sobre um tamborete alto, descascava
amendoins fazendo muito barulho. A primeira vista parecia jovem, mas de alguma
maneira eu sabia que era velho. Seu sorriso era uma mistura de espertezae inocência.
—Quer? — ofereceu.
Antes que eu pudesse ensaiar qualquer resposta minha boca se abriu em
assombro, e não pude fazer outra coisa que olhá‐lo fixamente,ao ver‐lhe transportartodo
seu peso a uma mão e, sem esforço, elevar seu corpo pequeno e tenso na vertical. Dessa
posição me jogou um amendoim, que caiu em minha boca aberta. Me engasguei, e um
golpe seco em minhas costas de imediato restabeleceua respiração. Agradecida,virei‐me
para averiguar quem, entre todos os que agora se haviam agrupado em torno de mim,
havia reagido com tanta presteza.
—Sou Mariano Aureliano — disse aquele que me havia ajudado.
Me deu um aperto de mãos. Seu tom suave e a encantadora formalidade de seu
gesto mitigaram a feroz expressãode seus olhos, e a severidadede seus traços aquilinos.A

inclinação
cabelos de suasesobrancelhas
brancos, escuras elhecurtido,
o rosto bronzeado dava um aspecto
falavam dedeanos,
ave de
masrapina. Seus
seu corpo
musculoso exalava vitalidadede juventude.
Havia seis mulheres no grupo, incluindo a Delia, e todas me deram um aperto de
mãos de idêntica e eloqüente formalidade. Não me disseram seus nomes, simplesmente
se pronunciaram felizes por conhecer‐me. Não se pareciam fisicamente,apesar de existir
entre elas uma chamativa similaridade,uma contraditóriamistura de juventude e velhice,
de força e delicadeza que me desorientava, acostumada como estava à brusquidão e
ausência de sutilezasde minha patriarcalfamília alemã.
Assim como não conseguia decifrar a idade de Mariano Aureliano e do acróbata do
tamborete, tampouco conseguia fazê‐lo com a das mulheres, que poderia estar tanto nos
quarenta como nos sessenta anos. O fato de que as mulheres persistissem em olhar‐me
fixamente
impressão demeque
produziu umadentro
podiam ver ansiedade passageira.
de mim, Experimentei
e estavam analisando a bem
o visto. Seusdefinida
sorrisos
divertidos e contemplativos não me proporcionavam maior segurança, de modo que,
ansiosa por quebrar esse incômodo silêncio por qualquer meio, me dirigi ao homem do
tamboretepara perguntar‐lhe se era acróbata.

17
—Sou o senhor Flores — disse, e com uma pirueta para atrás abandonou o
tamborete e aterrissou no chão sobre suas pernas cruzadas. —Não sou um acróbata —
esclareceu—, sou um mágico — e com um sorriso de inocultávelgozo extraiu de um bolso
o xale de seda que eu havia atado ao pescoço do burro.
—Já sei quem é você. Você é o marido dela! — e apontei um dedo acusador a
Delia. —Vocês sim que me fizeram um belo truque sujo!
O senhor Flores não respondeu, limitando‐se a olhar‐me em meio a um silêncio
cortês.
—Não sou o marido de ninguém — disse por fim, e saiu do quarto por uma das
portas que conduziam ao pátio, fazendo medialunas. (Termo relacionadocom a acrobacia,
estrelinhas, meia‐lua).
Respondendo a um impulso saltei da cama e fui atrás dele. Por uns instantes,
ofuscada pela luz exterior, fiquei imóvel. Depois cruzei o pátio e corri em paralelo ao
caminho de terra, até encontrar‐me num terreno recém cultivado, delimitado por árvores
de eucaliptos. Fazia calor, o sol parecia estar em chamas e os sulcos resplandeciamcomo
grandes víboras efervescentes.
—Senhor Flores! — gritei, sem obter resposta, e certa de que se ocultava atrás de
uma das árvores, cruzei o terreno correndo.
—Cuidado com esses pés descalços!— advertiu uma voz que chegava do alto.
Surpreendida, olhei para cima e ali, cara a cara comigo, estava o senhor Flores,
pendurado pelas pernas.
—É perigoso e bobo caminhar sem sapatos — me reprovou, balançando‐se como
um trapezista. —Este lugar está infestado de víboras cascavel. Melhor me acompanhar
aqui encima. É seguro e fresco.
Apesar de saber que os galhos estavam fora de meu alcance, elevei meus braços
com confiança infantil, e antes que pudesse adivinhar as intenções do senhor Flores, ele já
me havia tomado pelos pulsos, e sem maior esforço do que o necessário para alçar a uma
boneca de trapo, me havia levantado do solo e me depositado na árvore. Deslumbrada,
sentei‐me junto a ele para olhar as folhas sussurrantes que brilhavam ao sol como lascas
de ouro.

—Consegue
um longo silêncio, e escutar o que
girou sua lheem
cabeça diz um
o vento? —sentido
e outro perguntou
paraoque
senhor Flores depois
eu pudesse de
apreciar
a maneira assombrosaem que movia as orelhas.
—Zamurito!— sussurrei,enquanto as lembrançasinundavam minha mente.
Zamurito, “abutrezinho”, era o apelido de um amigo de minha infância
venezuelana. O senhor Flores tinha seus mesmos traços delicados, semelhantes a um
pássaro, cabelos negros e os olhos cor mostarda e, para encher‐me de assombro, ele,
assim como Zamurito, podia mover as orelhas uma de cada vez, ou ambas ao mesmo
tempo.
Contei ao senhor Flores sobre meu amigo, a quem conhecia desde o jardim da
infância. No segundo grau havíamos compartilhado uma mesa, e durante os longos
recessos do meio‐dia, em lugar de comer nossa merenda no colégio, nós escapávamos
para
árvore de‐lomanga
fazê no altododemundo,
uma colina
cujospróxima, à sombra
galhos mais dotocavam
baixos que acreditávamos
o solo e osser a maior
mais altos
roçavam as nuvens. Na estação das frutas nos enchíamos de mangas. O alto dessa colina
era nosso lugar favorito, até o dia em que encontramos o corpo do bedel do colégio
pendurado num galho.

18
Não nos animamos a nos mover nem a gritar; nenhum desejava perder prestígio
ante o outro. Nesse dia não subimos nos galhos. Procuramos comer nosso almoço
praticamente embaixo do corpo do morto, perguntando‐nos internamente qual dos dois
se desmoronariaprimeiro.Fui eu quem cedeu.
—Alguma vez pensou em morrer? — perguntou‐me Zamurito,em voz muito baixa.
Eu acabara de olhar ao pendurado, e nesse instante o vento havia movido os
galhos com uma insistênciachamativa,e nesse roçar das folhas eu havia escutado o morto
dizer‐me que a morte era apaziguante. Isso me pareceu tão insólito que me pus de pé e
fugi aos gritos, indiferenteao que Zamurito pudesse pensar de mim.
—O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — disse o senhor Flores
quando terminei meu conto. Sua voz era baixa e suave, e seus olhos de ouro brilharam
com luz febril ao explicar‐me que no momento da morte, num relâmpago instantâneo,as
memórias, sentimentose emoções do velho bedel se haviam liberado para ser absorvidas
pela mangueira.
—O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — repetiu —, pois o
vento por direito te pertence. — com olhos aplanados, olhou através das folhas, buscando
além do horizonte que se perdia sob o sol. —O fato de ser mulher lhe permite comandar
ao vento — prosseguiu. —As mulheres não o sabem, mas em qualquer momento podem
dialogar com o vento.
Sacudi a cabeça sem compreender.
—Na verdade não sei do que você está falando — disse‐lhe, e meu tom de voz
delatou minha crescente inquietude. —Isto é como um sonho, e se não fosse porque
segue e segue, juraria que é um de meus pesadelos.
Seu prolongadosilêncio me incomodou,e senti o rosto sufocado pela irritação.
—Que faço eu aqui, sentada numa árvore com um velho louco? — me perguntei,
mas ao mesmo tempo, temendo tê‐lo ofendido, optei por pedir desculpas por minha
aspereza.
—Sei que minhas palavras não têm muito sentido para você — admitiu. —Isso é
porque há muita crosta em você, a qual lhe impede de escutar o que o vento tem para
dizer.

—Demasiada crosta? — perguntei, confusa e duvidosa. —Você quer dizer que


estou suja?
—Isso também — disse, fazendo‐me enrubescer. Sorriu e repetiu que eu estava
envolta em uma crosta muito grossa, e que essa crosta não podia ser eliminada com água
e sabão, independentemente de quantos banhos tomasse. —Está cheia de juízos —
explicou —, e eles lhe impedem de entender o que estou lhe dizendo, e que o vento é teu
para o que quiser mandá‐lo.
Observou‐me com olhos críticos,tensos.
—E então? — exigiu com impaciência, e antes que pudesse me dar conta do que
estava acontecendo, ele me havia tomado pelas mãos, girando‐me, e me depositado no
chão. Acreditei ver como seus braços e pernas se estiravam, como se fossem bandas
elásticas, imagem passageira que expliquei a mim mesma como uma distorção perceptual
causada
Flores e pelo
seuscalor. Nãoque
amigos, pensei mais nisso,
estendiam umpois nessepedaço
grande exato momento me distraíram
de lona embaixo Delia
da árvore
vizinha.
—Quando vieram para cá? — perguntei‐lhe, desorientada, pois nem havia visto
nem ouvido ao grupo acercar‐se.

19
—Vamos ter uma comidinha em sua honra — disse.
—Porque hoje você se uniu a nós — acrescentououtra das mulheres.
—Como foi que me uni a vocês? — perguntei, sentindo‐me incômoda. Não havia
conseguidoindividualizara quem falou, e as olhei uma por uma, esperando que uma delas
explicasseessa declaração.
Indiferentes a minha inquietude as mulheres se concentraram na lona,
assegurando‐se de que estivesse uniformemente estendida. Quanto mais as observava,
maior era minha preocupação. Tudo se me parecia tão estranho. Podia explicar com
facilidade porque havia aceitado o convite de Delia para visitar a curandeira, mas não
podia compreenderminhas ações posteriores.Era como se alguém me tivesse privado de
minhas faculdades racionais, obrigando‐me a permanecer ali, e reagir, e dizer coisas
alheias à minha vontade. E agora organizavamuma celebraçãoem minha honra, da qual o
mínimo que se podia dizer era que me era desconcertante,e apesar de meus esforços não
conseguiaexplicar minha presença nesse lugar.
—Por certo que não me mereço nada disto — murmurei, revelando minha
formação alemã —, as pessoas não costumam fazer coisas pelos outros, ainda mais assim,
sem mais.
Somente quando escutei a exuberante risada de Mariano Aureliano percebi que
todos estavam me olhando.
—Não há razão alguma para que considere tão a fundo o que está lhe
acontecendohoje — disse, tocando‐me com suavidade o ombro. —Organizamoso almoço
porque nos agrada fazer as coisas sob o impulso do momento, e posto que hoje você foi
curada por Esperanza, a meus amigos lhes agrada dizer que o almoço é em sua
homenagem. — falou de maneira casual, quase com indiferença, como se se tratasse de
um assunto sem importância, mas seus olhos diziam algo diferente; sua dureza parecia
indicar que era vital que eu o escutassedetidamente.
—É uma alegria para meus amigos poder dizer que é em sua honra, — continuou
— aceite‐o tal qual eles o oferecem, com simplicidade e sem premeditação— seus olhos
se encheram de ternura ao olhar às mulheres. Depois se virou para mim para acrescentar:
—A comida, posso lhe assegurar, não é em absoluto em sua honra, e sem embargo o é.

Esta é uma contradição


—Não que lheque
pedi a ninguém custará
façatempo paramim
nada por entender.
— disse, mal humorada. Me havia
tornado extremadamentepesada, tal qual sempre o havia feito ao sentir‐me ameaçada.
—Delia me trouxe aqui, e estou agradecida — me senti obrigada a acrescentar — e
gostaria de pagar por qualquer coisa que tenham feito por mim.
Estava segura de tê‐los ofendido; sabia que a qualquer momento me pediriam que
fosse embora, ao qual, fora o fato de afetar adversamente a meu ego, não me haveria
importado em demasia. Estava assustada, e já haviam ultrapassado minha medida. Para
minha surpresa e raiva não me levaram a sério. Se riram de mim, e quanto mais me
irritava maior era seu júbilo, seus olhos sorridentese brilhantes fixos em mim como se eu
fosse um organismo desconhecido.
A ira fez com que eu esquecesse meu temor, e os agredi, acusando‐os de tomar‐
me porparceiros)
como uma boba. meAcusei‐ospregado
haviam de que Delia marido (não sei por quê insistia em vê‐los
e seusuja.
uma peça
—Você me traiu — disse, virando‐me para Delia — para que você e seus amigos
me usassem como palhaço.

20
Quanto mais rabugenta, mais se riam, deixando‐me perto de chorar de raiva,
frustração e lástima de mim mesma, até que Mariano Aureliano parou junto a mim e
começou a falar comigo como se eu fosse uma criança. Queria dizer‐lhe que podia cuidar
de mim sozinha, que não precisava de sua simpatia, e que me ia embora para casa,
quando algo em seu tom, em seus olhos, me apaziguou ao ponto de acreditar que havia
me hipnotizado.E sem embargo, sabia que não o havia feito.
O que mais me perturbou foi a súbita e completa mudança que se produziu em
mim. O que normalmente haveria levado dias havia acontecido em um instante. Toda
minha vida me havia permitido ruminar acerca das indignidades— reais ou imaginárias—
que havia sofrido. Com cabal minuciosidade, eu as desmiuçava até que cada detalhe
ficasse explicado à minha inteira satisfação. Ao olhar para Mariano Aureliano, senti
vontade de rir de minha recente explosão. Podia apenas me lembrar daquilo que a pouco
me enfureceuaté quase me deixar às lágrimas.
Delia me pegou pelo braço e me pediu que ajudasse às outras mulheres a
desembrulharos pratos, os copos de cristal e a prataria dos vários cestos em que haviam
sido trazidos. As mulheres não falaram comigo nem o fizeram entre elas, e apenas breves
suspiros de prazer escapavam de seus lábios à medida que Mariano Aureliano exibia as
iguarias: havia tamales, enchiladas (panquecas de milho condimentadas),um guisado de
pimenta malagueta e tortilhas feitas à mão. Não eram tortilhas de farinha, comuns no
norte do México, e que não me apeteciam muito, e sim tortilhas de milho. Delia me
preparou um prato que continha um pouco de tudo, e comi com tal voracidade que fui a
primeira a terminar.
—Isto é o mais delicioso que já comi em minha vida — disse, esperando uma
repetição que ninguém me ofereceu. Para dissimular minha frustração me dediquei a
elogiar a beleza do velho rendado que bordeava a lona sobre a qual estávamossentados.
—Isso fui eu que fiz — anunciou uma mulher sentada à esquerda de Mariano
Aureliano. Era velha, e seus descuidadoscabelos grisalhos ocultavam seu rosto. Apesar do
calor usava uma saia longa, blusa e malha.
—É um rendado belga autêntico — me explicou com voz suave e sonolenta. Suas
mãos longas e delicadas, nas quais brilhavam esquisitos anéis, se demoraram amorosas

sobre a longa
mostrando ‐me franja. Come as
os pontos riqueza
linhasde detalhes
usados metrabalho.
nesse falou dePor
suas habilidades
momentos manuais,
obtinha uma
versão passageira de seu rosto através da massa de cabelos, mas não poderia dizer que
aspecto tinha.
—É renda belga autêntica— repetiu —, é parte de meu enxoval. — Alçou um copo
de cristal, bebeu um gole de água e acrescentou: —Estes também são parte de meu
enxoval. São Baccarat.
Eu não duvidava disso. Os lindos pratos, cada um deles diferente dos outros, eram
da mais fina porcelana,e me estava perguntandose uma discreta olhada embaixo do meu
prato passaria inadvertida, quando a mulher sentada à direita de Mariano Aureliano me
incitou a fazê‐lo.
—Não seja tímida. Anda. Está entre amigos — e sorrindo, levantou o seu. —
LimogesA— anunciou,
mulher tinhaetraços
depoisdelicados,
levantou oinfantis.
meu e marcou que era
Era pequena, deum Rosenthal.
olhos negros, redondos,
e cílios grossos. Seu cabelo era negro, exceção feita à coroa de sua cabeça que se havia
tornado branca, e estava arrumado e preso num apertado mignon. Havia nela algo
cortante, uma força bastante gélida, que notei quando me apertou com perguntas,diretas

21
e pessoais. Não me importava seu tom inquisitorial,acostumada ao bombardeio ao qual
me submetiam meu pai e meus irmãos, quando saía com um homem, ou me embarcava
em alguma atividade própria. Isso me incomodava, mas era o normal em minha vida
familiar. Portanto, nunca aprendi a conversar: a conversação para mim consistia em
desviar ataques verbais e defender‐me a qualquer custo.
Me surpreendi quando o interrogatório coercitivo da mulher não me levou a
defender‐me de imediato.
—É casada? — me perguntou.
—Não — respondi, com suavidade mas com firmeza, desejando que mudasse de
assunto.
—Tem um homem? — insistiu.
—Não, não tenho — rebati, e comecei a sentir os vestígios de meu velho ser
defensivoeriçando‐se em mim.
—Há algum tipo de homem pelo qual sente particular apego? — insistiu. —Sente
preferênciapor algum traço de personalidadeem especial no homem?
Por um momento pensei que ela estava brincando, mas parecia genuinamente
interessada,assim como suas companheiras.Seus rostos curiosos e ávidos me acalmaram,
e deixando de lado minha natureza belicosa, e o fato de que essas mulheres tinham idade
para ser minhas avós, lhes falei como a amigas de minha mesma geração, com quê
estivéssemosfalando sobre homens.
—Deve ser alto e apresentável — comecei — e ter senso de humor. Deve ser
sensível sem ser afetado, inteligente sem ser um intelectual.—Baixei o tom de minha voz
para adicionar confidencialmente:—Meu pai costumava dizer que os homens intelectuais
são fracos até os ossos, e todos eles são traidores.Acho que coincido com meu pai.
—Isso é o que deseja de um homem?
—Não — me apressei em responder. —Sobretudo, o homem de meus sonhos
deve ser atlético.
—Como seu pai — observou uma das mulheres.
—Naturalmente— acrescentei na defensiva. —Meu pai foi um grande atleta. Um
fabuloso esquiador e nadador.

—Você se dava bem com


—Maravilhosamente ele? com um tom entusiasta. —O mero pensar nele me
— disse
faz lacrimejar.
—Por que não está com ele?
—Somos demasiado parecidos — expliquei. —Há algo em mim que não entendo
plenamentenem posso controlar,que me afasta dele.
—E o que há de sua mãe?
—Minha mãe — suspirei, e fiz uma momentânea pausa para encontrar as
melhores palavras para descrevê‐la. —É muito forte. É minha parte sóbria; a parte
silenciosaque não precisa ser reforçada.
—Você é muito ligada aos seus pais?
—Em espírito sim — repus com ternura —, na prática sou uma solitária. Não tenho
muitas
defeitoligações. — Depois,que
de personalidade como se algo
nem dentro
sequer de mim
em meus se esforçasse
momentos maispor sair, revelei um
introspectivos me
animava a confessar a mim mesma. —Antes que apreciar ou alentar afeto pelas pessoas,
eu as uso… — mas de imediato retifiquei minha declaração:—Mas também sou capaz de
sentir afeto.

22
Com uma mistura de alívio e frustração olhei a uns e outros. Nenhum parecia ter
dado importância à minha confissão. Seguindo outra linha, as mulheres perguntaram se
descreveriaa mim mesma como um ser valente ou covarde.
—Sou uma total covarde — respondi —, mas por desgraça, minha covardia jamais
me detém.
—Detém de que? — perguntou a mulher que me havia estado interrogando.Seus
olhos negros passavam uma expressão séria, e suas sobrancelhas, semelhantes a linhas
pintadas com carvão, estavam enrugadas num gesto de preocupação.
—De fazer coisas perigosas — respondi. Satisfeita ao notar que pareciam estar
pendentesde cada palavra minha, passei a explicar‐lhes que outro de meus sérios defeitos
era minha grande facilidadepara meter‐me em problemas.
—Em qual problema esteve do qual pode nos falar? — perguntou, e seu rosto,
sério até esse momento, se iluminou com um sorriso brilhante,quase malicioso.
—Que lhe parece este, meu problema atual? — perguntei, meio de brincadeira,
temerosa de que interpretassemmal meu comentário, mas para surpresa e alívio todos
riram e gritaram, como costumam fazer os rancheiros mexicanos quando algo lhes é
gracioso ou atrevido.
—Como acabou nos Estados Unidos? — inquiriu a mulher quando todos se
acalmaram.
Me encolhi de ombros, não sabendo ao certo o que responder.
—Desejava ir à universidade— murmurei por fim. —Estive primeiro na Inglaterra,
mas ali o que mais fiz foi me divertir. Na verdade não sei bem o que quero estudar.
Acredito estar em busca de algo sem saber exatamenteo quê.
—Isso nos leva à minha primeira pergunta — continuou a mulher, seu rosto
atrevido e seus olhos escuros destemidos e curiosos como os de um animal. —Busca um
homem?
—Suponho que sim — admiti, para depois acrescentar de maneira impaciente. —
Que mulher não o está, e por que me pergunta isso tão insistentemente? Tem um
candidato?Seria este algum tipo de exame?
—Temos um candidato — interpôs Delia flores —, mas não é um homem… — e

tanto ela
juntar como
a seu as outras riram de tal maneira que não pude fazer menos do que me
festejo.
—Isto é definitivamenteum exame — me assegurou a inquisidora, quando todos
se haviam aquietado. Guardou silêncio durante um momento, seus olhos alertas e
reflexivos. —Pelo quê nos mencionou, concluo que você é completamente de classe
média — prosseguiu,abrindo os braços num gesto de forçada aceitação.—Mas, que outra
coisa pode ser uma mulher alemã nascida no novo mundo? — e observou a raiva refletida
em meu rosto com um sorriso apenas reprimido. —As pessoas da classe média têm
sonhos de classe média.
Ao observar que eu estava a ponto de explodir, Mariano Aureliano me explicou
que ela fazia essas perguntas simplesmenteporque sentia curiosidade por minha pessoa.
Quase nunca recebiam visitas, e muito raras vezes gente jovem.
—Isso
Como senãoeuquer
nãodizer que tenham
houvesse queMariano
dito nada, me insultar — protestei.
Aureliano continuou desculpandoàs
mulheres. Seu tom calmo e sua carinhosa carícia em minhas costas tornaram a derreter
minha raiva, tal qual fizera anteriormente,e seu sorriso era tão angelical que nem por um
momento duvidei de sua sinceridadequando começou a me adular. Disse que eu era uma

23
das pessoas mais extraordinárias que eles haviam conhecido, o qual me emocionou ao
extremo de convidá‐lo a perguntar‐me qualquer coisa que desejasse saber acerca de
minha pessoa.
—Você se sente importante?— perguntou.
Assenti.
—Todos somos importantespara nós mesmos. Sim, creio que sou importante,não
em um sentido geral e sim específico,para mim mesma — e me embarquei num discurso
acerca de uma imagem própria positiva e valiosa, e do vital que era o reforçar nossa
importânciaa fim de sermos indivíduosfisicamentesãos.
—E o que pensa das mulheres? Acredita que são mais ou menos importantes que
os homens?
—É óbvio que os homens são mais importantes — disse. —As mulheres não têm
escolha. Devem ser menos importantes para que a vida familiar corra bem sobre os
trilhos, por assim dizer.
—Mas isso está bem? — insistiu.
—Naturalmente que está bem — declarei. —Os homens são intrinsecamente
superiores,por isso manejam o mundo. Eu fui criada por um pai autoritárioque, apesar de
conceder‐me tanta liberdade como a de meus irmãos, me fez saber, não obstante, que
certas coisas não eram tão importantes para a mulher. Por isso não sei que faço na
universidade,nem o que é o que desejo da vida — e logo acrescenteinum tom infantil e
desvalido: —Suponho que busco a um homem tão seguro de si mesmo como o era meu
pai.
—É uma simplória!— disse uma das mulheres.
—Não, ela não é — assegurou Mariano Aureliano. —Simplesmente está
confundida,e é tão persistentecomo seu pai.
—Seu pai alemão — corrigiu enfaticamenteo senhor Flores, ressaltandoa palavra
alemão. Havia descido da árvore como uma folha, suavemente e sem ruído. Serviu‐se de
uma quantidadeimoderada de comida.
—Quanta razão você tem — concordou Mariano Aureliano, sorrindo —, ao ser tão
obstinada como seu pai alemão, não fez outra coisa que repetir o que escutou toda sua

vida. Minha raiva, que subia e abaixava como uma febre misteriosa, não se devia só ao
que diziam de mim, e sim ao fato de que falavam de mim como se eu não estivesse
presente.
—Não tem remédio — disse outra das mulheres.
—Está muito bem para o projeto que temos em mãos — observou Mariano
Aureliano, defendendo‐me com convicção. O senhor Flores respaldou a Mariano
Aureliano, e a única mulher que até então não havia falado disse com voz profunda e
rouca que estava de acordo com os homens: que eu servia muito bem para o propósito
em mãos.
Era alta e delgada. Seu rosto pálido, delicado e severo, estava coroado por cabelos
brancos, trançados e ressaltadospor olhos grandes e luminosos.Apesar de sua vestimenta
gasta e —O
descolorida,havia
que estão em torno
fazendo dela—
comigo? uma aurajáde
gritei, elegância.
incapaz de controlar‐me. —Não se dão
conta do horrível que é para mim escutar que falam como se eu não estivessepresente?
Mariano Aureliano fixou em mim seus olhos ferozes.

24
—Você não está aqui — disse num tom desprovido de toda emotividade —, ao
menos pelo momento. E, o mais importante,é que isto não conta. Nem agora nem nunca.
Quase desmaiei de ira. Ninguém me havia falado jamais com tal dureza e
indiferençapara com meus sentimentos.
—Eu cago em todos vocês, gusanos comemierda, filhos da puta! — gritei.
—Deus meu! Uma alemã obscena! — exclamou Mariano Aureliano,e todos riram.
Estava a ponto de ficar de pé e ir‐me quando Mariano Aureliano me deu repetidos
golpezinhosnas costas.
—Bom, bom — murmurou, como quem tranquiliza à criança que arrotou. E como
antes, em lugar de incomodar‐me ao ser tratada como criança, minha raiva desapareceu.
Me senti vibrante e feliz, e sacudindoa cabeça em sinal de incompreensão,os olhei e ri.
—Aprendi castelhano nas ruas de Caracas com a ralé — expliquei. —Conheço
todos os palavrões.
—Não lhe encantaram os tamales doces? — perguntou Delia, fechando os olhos
para demonstrarsua apreciação.
Sua pergunta pareceu ser uma senha: o interrogatóriocessou.
—Mas é claro que lhe encantaram! — respondeu o senhor Flores por mim —, só
lamenta que não lhe serviram mais, pois tem um apetite insaciável — e veio sentar‐se ao
meu lado.
—Mariano Aureliano se excedeu, e nos cozinhou um manjar.
Não podia acreditarnisso.
—Quer dizer que ele cozinhou? Tem a todas estas mulheres e cozinhou? — e de
imediato, preocupada pela interpretação que pudessem dar às minhas palavras, me
desculpei, explicando minha enorme surpresa ante o fato de que um macho mexicano
cozinhasse em sua casa quando havia mulheres para fazê‐lo. As resultantes risadas me
demonstraramque tampouco era isso o que quis dizer.
—Especialmentese essas mulheres são suas mulheres; é isso o que queria dizer?
— perguntou o senhor Flores, suas palavras entre misturadas com os risos de todos. —
Tem razão, são as mulheres de Mariano ou, para ser mais preciso, elas lhe pertencem— e
se deu um divertido golpe no joelho. Depois, dirigindo‐se à mais alta das mulheres, aquela

que só havia falado emouma


—Obviamente oportunidade,
senhor disse:
Aureliano não tem—Por que
essa não lhe conta
quantidade acerca de
de esposas — nós?
disse,
ainda mortificadapor meus lapsos.
—E por que não? — retrucou a mulher, e todos riram de novo. O riso era alegre,
juvenil, mas não conseguia tranquilizar‐me. —Todos aqui estamos unidos por nossa luta,
pelo profundo afeto que nos professamos e pela certeza de que se não estamos juntos
nada é possível — disse.
—Mas vocês não são parte de nenhum grupo religioso, não é? — perguntei, e
minha voz revelou minha crescente apreensão. —Nem de nenhuma espécie de
comunidade?
—Pertencemos ao poder — respondeu a mulher. —Meus companheiros e eu
somos os herdeirosde uma antiga tradição.Somos parte de um mito.

estavamNãofixos
compreendi
em mim; o queobservavam
estava dizendo;
‐me intranquila,
com umaolhei para osdeoutros;
mistura seus olhos
expectativa e
contentamento. Voltei minha atenção à mulher alta, que também me observava com a
mesma expressão embriagada. Seus olhos brilhavam ao ponto de chispar. Inclinada sobre
seu copo de cristal, bebia sua água em delicados goles.

25
—Somos essencialmente ensonhadores — explicou —, agora estamos todos
ensonhando e, pelo fato de que foi trazida a nós, você também está ensonhando conosco
— disse isto num tom tão suave que na verdade não pude captar o que foi dito.
—Você quer dizer que estou dormindo e compartilhandoum sonho com vocês? —
perguntei com jocosa incredulidade, e precisei morder‐me os lábios para segurar o riso
que borbulhavaem meu interior.
—Não é exatamente o que está fazendo, mas passa perto — admitiu, e em nada
incomodadapor meus risinhos nervosos, explicou que o que eu estava experimentandose
parecia mais a um sonho extraordinário, onde todos me ajudavam ao ensonhar meu
ensonho.
—Mas isso é uma...... — comecei, mas ela me silenciou com um gesto de mão.
—Todos estamos ensonhando o mesmo ensonho — me assegurou,
aparentementeextasiadapor uma felicidadeque eu não alcançavacompreender.
—E o que me diz dessas coisas deliciosas que acabo de comer? — procurei o
molho de chili que havia derramado sobre minha blusa. Mostrei‐lhe as manchas. —Isto
não pode ser um sonho! Eu comi dessa comida! — insisti em tom forte e agitado. —Sim,
eu mesma a comi!
Seu olhar era tranqüilo,como se tivesse estado esperando tal arrebatamento.
—E o que me diz de como o senhor Flores te subiu ao alto da árvore de eucalipto?
— perguntou.
Estava a ponto de informar‐lhe que não me havia subido ao alto da árvore, e sim
simplesmentea um galho, quando me interrogouem voz baixa.
—Você pensou nisso?
—Não, não pensei nisso — respondi de mau jeito.
—É claro que não — concordou, movendo a cabeça com um gesto sabichão, como
se soubesse que nesse exato instante eu havia recordado que mesmo o galho mais baixo
de qualquer uma das árvores que nos rodeavam eram impossíveis de alcançar do chão.
Explicou que a razão pela qual eu não me havia dado conta disso era porque nos ensonhos
não somos racionais.
—Nos ensonhos podemos unicamenteagir — ressaltou.

admito.—Um momento
Sem contar — interrompi
que você —, pode
e seus amigos são aser que mais
gente eu esteje um tanto
estranha atordoada,
que jamais eu
conheci,
mas estou desperta até não mais poder — e, vendo que ria de mim, gritei: —Isto não é um
sonho!
Com um imperceptível movimento de cabeça atraiu a atenção do senhor Flores,
que num rápido movimento se apoderou de minha mão e, juntos, nos elevamos a um
galho do eucalipto mais próximo. Ali ficamos uns instantes, sentados, e antes mesmo que
eu pudesse dizer algo, ele me baixou para a terra, ao mesmo lugar em que estive sentada.
—Compreendeo que quero dizer? — perguntou a mulher alta.
—Não, não compreendo— gritei, sabendo que havia sofrido uma alucinação.Meu
temor se converteu em fúria, e lancei uma enxurrada de maldições obscenas. Esgotado
meu furor senti lástima por mim mesma e comecei a chorar. —O que vocês me fizeram?
— exigi—Não
em meio ao meu
fizemos choro.
nada —Puseram
disso algo na
— respondeu comminha comida?
bondade Na água?
a mulher alta. —Você não
precisa de nada…
Apenas conseguia escutá‐la; minhas lágrimas eram como um véu escuro que
desfiguravatanto seu rosto como suas palavras.

26
—Aguenta — a escutei dizer, apesar de não poder vê‐la e nem a seus
companheiros.—Aguenta,não desperte ainda.
Havia algo tão imperioso em seu tom que compreendi que minha própria vida
dependia de vê‐la de novo, e graças a uma força desconhecida, e por completo
inesperada, consegui atravessar o véu de minhas lágrimas. Escutei um suave ruído de
aplausos e em seguida os vi. Eles sorriam, e seus olhos brilhavam com tal intensidadeque
suas pupilas pareciam iluminadas por algum fogo interno. Me desculpei primeiro ante as
mulheres, e depois aos dois homens, por minha reação boba, mas não desejavam nem
falar dela, dizendo que eu havia me desempenhadode maneira excepcional.
—Somos as partes viventes de um mito — disse Mariano Aureliano,depois do qual
juntou os lábios para soprar. —Eu lhe soprarei até à única pessoa que agora tem o mito
em suas mãos — anunciou. —Ele lhe ajudará a esclarecertudo isto.
—E quem pode ser essa pessoa? — perguntei com um certo ar petulante,e estava
a ponto de inquirir se essa pessoa seria tão teimosa como meu pai, mas Mariano
Aureliano me distraiu. Continuava soprando, os cabelos brancos eriçados, e as bochechas
roxas e infladas.
Em evidente resposta a seus esforços, uma suave brisa começou a infiltrar‐se por
entre os eucaliptos.Mariano Aureliano fez um sinal com a cabeça, como se admitisseestar
inteirado de minha confusão e de meus pensamentos não expressados,e com suavidade
me fez girar até eu ficar de frente às montanhas do Bacatete.
A brisa se converteu em vento, um vento tão frio e áspero que tornava doloroso o
respirar. Com um movimento ondulante, como se não tivesse esqueleto, a mulher alta se
levantou, tomou minha mão e me arrastou através dos sulcos arados. No meio do campo
culvitado fizemos uma repentina parada, e poderia jurar que, com seus braços estendidos,
incitava e atraía à espiral de terra e folhas mortas que se enredemoinhavamà distância.
—Nos ensonhos tudo é possível — sussurrou.
Ri, abri os braços para chamar o vento, e a terra e as folhas bailaram em torno de
nós com tal força que tudo se borrou ante minha vista. De repente vi à mulher alta muito
longe. Seu corpo parecia dissolver‐se numa luz avermelhada até desaparecer por
completo de meu campo de visão. Então um negrume encheu minha cabeça.

27
CAPÍTULO TRÊS

A essa altura me era difícil determinar se o piquenique havia sido um sonho ou


se na realidade havia acontecido. Não era capaz de recordar em ordem sequencial
todos os eventos dos quais havia participado desde o momento em que adormeci na
cama da sala de curas. A seguinte lembrança nítida era a de encontrar‐me falando com
Delia nesse mesmo quarto.
Habituada a esses lapsos de memória, comuns em minha juventude, a princípio
não dediquei demasiada importância a esta anomalia. De criança, quando me
assaltavam ganas de brincar, com frequência abandonava a cama semi‐adormecida, e
saía de casa furtivamente através das grades de uma janela. Muitas vezes despertei na
praça, brincando com outras crianças que não eram obrigadas a ir deitar‐se tão cedo
como eu.
Não abrigava dúvidas a respeito da autenticidade da refeição, apesar de não
poder situá‐la temporalmente. Tentei pensar, reconstruir os fatos, mas me assustava
atualizar a idéia de meus lapsos infantis. De certo modo eu resistia a fazer perguntas a
Delia sobre suas amigas, e tampouco ela ofereceu informação. No entanto abordei o
tema da sessão curativa, que não duvidava ter sido um sonho. Me introduzi no tema
com cautela: —Tive um sonho muito nítido a respeito de uma curandeira — disse. —
Não só me disse seu nome como me assegurou haver eliminado todos os meus
pesadelos.
—Não foi um sonho — rebateu Delia, num tom que deixava claro seu
desagrado, enquanto me olhava com incômoda insistência. —A curandeira lhe disse
seu nome, e de fato curou seus transtornos de sonho.
—Mas foi um sonho — insisti —, e nele a curandeira tinha o tamanho de uma
criança. Ela não pode ter sido real.
Delia pegou um copo de água que havia sobre a mesa, mas não bebeu. Em
troca o fez girar infinitas vezes em sua mão, sem derramar uma gota, depois do qual
me olhou com olhos resplandecentes.
—A curandeira lhe deu a impressão de ser pequena, isso é tudo — e fez um

movimento
achou de cabeça
satisfatórias. comosua
Bebeu se essas
água palavras tivessem
em ruidosos goles,acabado
e seus de lhe ocorrer,
olhos e as
se tornaram
suaves e reflexivos.
—Precisava ser pequena para poder lhe curar.
—Precisava ser pequena? Quer dizer que eu somente a vi como se ela fosse
pequena?
Delia assentiu repetidas vezes com a cabeça, e depois se aproximou de mim e
cochichou:
—O que aconteceu é que você ensonhava, e sem dúvida o que ensonhava não
era um sonho. A curandeira na verdade veio a você e lhe curou, mas você não estava
no lugar em que está agora.
—Vamos, Delia — objetei —, do que está falando? Eu sei que foi um sonho.
Sempre tenho plena
completamente consciência
reais. Esse de lembra
é meu mal, estar ‐sonhando,
se? já que os sonhos me são
—Talvez agora que está curada já não seja seu mal, e sim seu talento —
retrucou Delia com um sorriso —, mas voltando à sua pergunta. A curandeira tinha

28
que ser pequena, como uma criança, porque você era muito criança quando
começaram seus pesadelos.
Sua declaração me soou tão absurda que nem sequer consegui rir.
—E agora estou curada? — perguntei jocosamente.
—Você está — me assegurou. —Nos ensonhos as curas se realizam com grande
facilidade, quase sem esforço. O difícil é fazer que a gente ensonhe.
—Difícil? — perguntei, e minha voz soou mais áspera do que eu houvesse
desejado. —Todos sonhamos. Todos temos que dormir, não é assim?
Delia dirigiu uma olhada travessa até o teto; depois me encarou para dizer:
—Esses não são os sonhos aos quais me refiro. Esses são sonhos comuns. O
ensonhar tem um propósito do qual os sonhos comuns carecem.
—Mas é claro que o têm! — declarei em enfática oposição, para depois
embarcar‐me numa longa retórica a respeito da importância psicológica dos sonhos, e
citar obras de psicologia, filosofia e arte.
Meus conhecimentos não impressionaram a Delia nem um pouco. Estava de
acordo em que os sonhos cotidianos ajudavam a manter a saúde mental do indivíduo,
mas insistiu em que isso não lhe concernia.
—Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm — reiterou.
—Que propósito, Delia? — perguntei de maneira complacente. Desviou seu
rosto, como se quisesse impedir que eu o visse, mas momentos depois me encarou de
novo. Algo frio e isolado dominava seus olhos, e sua mudança de expressão se havia
endurecido a tal ponto que me assustou.
—O ensonho sempre tem um propósito prático, e serve ao ensonhador de
maneira simples ou intrincada. Ele serviu a você para superar seus pesadelos, serviu às
bruxas que lhe fizeram a comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para fazer
com que o guarda da fronteira, que lhe pediu seu visto de turista, não estivesse
consciente de mim.
—Estou começando a entender o que me diz, Delia — murmurei. —Quer dizer
que vocês podem hipnotizar aos outros contra sua vontade?
—Chame‐o assim se quiser — respondeu, e em seu rosto se distinguia por uma

calma
que indiferença
você mesma, que
comdenotava pouca pode
pouco esforço, simpatia. —Onoque
entrar contudo
que não conseguiu
você chama ver é
de um estado
hipnótico. Nós o chamamos ensonhar um sonho que não é um sonho, mas um
ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém deseje.
As palavras de Delia estavam a ponto de adquirir sentido para mim, mas eu
carecia das necessárias palavras para expressar meus pensamentos e sentimentos.
Olhei para ela, desorientada. De repente recordei um episódio de minha juventude.
Quando por fim me foi permitido ter aulas de direção com o Jeep de meu pai,
surpreendi à minha família demonstrando que já sabia acionar as marchas, algo que
durante anos vinha fazendo em meus sonhos. Na minha primeira tentativa, com uma
segurança que até a mim surpreendeu, tomei a velha estrada de Caracas ao porto de
Guayra. Duvidei sobre falar a Delia desse episódio, e escolhi em troca abordar o tema
do tamanho
—Nãodaé curandeira.
uma mulher alta — respondeu. —Mas tampouco é tão pequena como
você a viu. Em seu ensonho curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e,
ao fazê‐lo, apareceu pequena. Essa é a natureza da magia. Deve ser aquilo cuja
impressão deseja dar.

29
—É uma maga? — perguntei esperançosa. A idéia de que todos trabalhavam
em um circo, de que eram parte de um espetáculo de magia, me havia cruzado a
mente em várias ocasiões. Acreditava que isso explicaria muitas coisas acerca deles.
—Não, não é uma maga. É uma feiticeira — disse, e Delia me olhou com tal
desdém que me envergonhei de minha pergunta. —Os magos são do teatro. Os
feiticeiros são do mundo, sem ser parte do mundo — explicou. Logo caiu num longo
silêncio, ao fim do qual suspirou antes de fazer‐me a seguinte pergunta: —Você
gostaria de ver Esperanza agora?
—Sim! — respondi animada. —Eu gostaria muito.
A possibilidade de que a curandeira fosse um ser real e não um sonho me
atordoava. Delia não me convencera de tudo, e no entanto desejava crer‐lhe a todo
custo. Meus pensamentos se fragmentaram; de repente me dei conta de não haver
mencionado a Delia o fato de que a curandeira de meu sonho havia manifestado
chamar‐se Esperanza.
Tão absorta estava em meus pensamentos que não percebi que Delia falava.
—Perdão, o que disse? — perguntei‐lhe.
—A única maneira em que pode encontrar sentido a tudo isto é ensonhando de
novo — respondeu, e com um suave riso agitou sua mão, como convidando a alguém a
apresentar‐se.
Suas palavras careciam de importância para mim, meus pensamentos já fluíam
por outros trilhos. Esperanza era um ser real, e me animava a certeza de que me
esclareceria tudo. Além disso, ela não havia comparecido à refeição, nem me havia
aviltado como fizeram as outras mulheres. Abrigava a vaga confiança de que eu havia
caído bem a Esperanza, e este pensamento, de certa forma, restaurou minha
segurança. Para ocultar meus sentimentos de Delia, manifestei ansiedade em ver à
curandeira.
—Queria agradecer a ela e, lógico, pagar‐lhe por tudo quanto fez por mim.
—Já está tudo pago — anunciou Delia, e o matiz pungente de seus olhos
revelou que tinha acesso a meus pensamentos.
—O que quer dizer com isso de “já está tudo pago”? — perguntei com voz

estridente. —Quem
—É difícil o pagou?
explicá‐lo — respondeu, e o distante toque de bondade que denotava
sua voz me trouxe tranquilidade. —Tudo começou na festa de sua amiga em Nogales.
Você chamou minha atenção de imediato.
—Não me diga? — perguntei intrigada, ansiosa por escutar elogios referentes
ao bom gosto de meu cuidadosamente selecionado figurino.
Sobreveio um incômodo silêncio. Não conseguia ver os olhos de Delia, velados
atrás de suas pálpebras semicerradas, e havia algo perturbador em sua voz, contudo
tranquila, quando disse haver observado que cada vez que eu precisava falar com a
avó de minha amiga parecia absorta e como se adormecida.
—Absorta não é a palavra — respondi. —Não tem idéia do que tive que lutar
para convencer à velha de que eu não era o diabo encarnado.
Delia pareceu não
—De imediato percebi que‐me,
escutar e prosseguiu
tinha falando:
grande facilidade para ensonhar, de modo que
lhe segui pela casa para ver você em ação. Você não tinha plena consciência do que
fazia ou dizia, e no entanto se desempenhava muito bem, rindo, falando e mentindo
descaradamente para cair bem.

30
—Está me chamando de mentirosa? — perguntei de brincadeira, e sem dúvida
deixando em descoberto o fato de sentir‐me ferida. Senti a necessidade de irritar‐me,
e para amortizar esse perigoso impulso, fixei a vista no jarro de água sobre a mesa.
—Não me atreveria a chamar‐lhe de uma mentirosa — explicou Delia um tanto
pomposamente —, eu te qualificaria como uma ensonhadora.
Sua voz estava carregada de solenidade, mas seus olhos brilhavam de gozo e
boa malícia quando disse:
—Os feiticeiros que me criaram diziam que não importava o que se pode
chegar a dizer, sempre e quando se tenha o poder para dizê‐lo — e sua voz transmitia
tal entusiasmo e aprovação que tive a certeza de que havia alguém atrás de uma das
portas escutando‐nos. —E a maneira de conseguir esse poder é ensonhando. Você não
sabe disso porque o faz de uma maneira natural, mas quando se vê enfrentada por
alguma dificuldade, sua mente se submerge de imediato no ensonho.
—Foi criada por feiticeiros, Delia? — perguntei para mudar de assunto.
—É claro — respondeu, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
—Seus pais eram feiticeiros?
—Oh, não — respondeu com um riso contido. —Um dia os feiticeiros me
encontraram, e dali em diante me criaram.
—Que idade você tinha? Era uma criança?
Delia riu como se com minha pergunta eu houvesse alcançado a quintessência
do humor.
—Não, não era uma criança. Talvez tivesse sua mesma idade quando me
encontraram e se encarregaram de minha criação.
—O que quer dizer com “se encarregaram de minha criação”?
Delia me olhou sem que seus olhos me enfocassem, fazendo‐me pensar que
não havia me ouvido ou, de tê‐lo feito, não estar disposta a responder. Repeti a
pergunta, ante a qual sorriu encolhendo‐se de ombros.
—Me criaram como quem cria a um menino — disse finalmente. —Não
importa a idade que ele tenha. Em seu mundo ele é um menino.
Assaltada de súbito pelo temor de que nossa conversa pudesse ser escutada,

olhei por cima desão


—Quem meu ombro
esses e disse Delia?
feiticeiros, em voz baixa:
—Essa é uma pergunta difícil — cochichou —, e por este momento nem sequer
posso intentar uma resposta. Tudo o que posso dizer acerca deles e que são aqueles
me disseram que ninguém deve mentir para ser acreditado.
—E por que então deveria alguém mentir? — perguntei.
—Pelo simples prazer que há em fazê‐lo — respondeu com presteza, e se pôs
de pé para dirigir‐se até a porta que conduzia ao pátio, mas antes de atravessar o
umbral se virou para mim, e com um sorriso perguntou: —Conhece aquele ditado “se
não está mentindo para ser acreditado pode dizer o que quiser, sem se importar com o
que pensem de você?”
—Nunca escutei isso — supus que o havia inventado. Tinha a sua cara. —Além
do mais—Estou
— acrescentei
segura —, não entendo
de que sabe simo—que está tratando
afirmou, de dizer.
e me olhou de relance através da
madeixa de sua negra cabeleira. Com um gesto de sua testa me incitou a segui‐la. —
Vamos agora mesmo ver Esperanza.

31
Me levantei de um salto e a segui, somente para deter‐me abruptamente na
porta. Cegada de momento pela luz externa me detive procurando determinar o que
havia acontecido. Parecia que o tempo não tinha passado desde o momento em que
corri atrás do senhor Flores através do campo arado. O sol, como então, estava ainda
no zênite.
Tive uma rápida visão da saia vermelha de Delia no momento em que dobrava
uma esquina. Corri atrás dela, atravessando um arco de pedra que levava a um pátio
encantador. Inicialmente me achei cegada, tão intenso era o contraste entre a
deslumbrante luz do sol e as profundas sombras do pátio.
Me mantive imóvel, ofegante, inalando o ar úmido, fragrante graças ao odor
das laranjeiras, madressilvas e ervilhas‐doce. Subindo por linhas que pareciam
suspensas no céu, os ramos da ervilha‐doce se destacavam como uma cortina
brilhante entre a folhagem de árvores, arbustos e samambaias.
Sentada em uma cadeira de balanço, no meio do pátio, descobri a feiticeira que
vi antes em meu sonho. Era muito mais velha que Delia e as outras mulheres, ainda
que como eu o soube não poderia dizer. Se movia com um ar de abandono, e senti
uma angústia dolorosa em todo meu ser quando me assaltou a certeza irracional de
que cada movimento de sua cadeira a afastava de mim. Uma onda de agonia e uma
sensação de solidão indescritível me envolveram. Queria cruzar o pátio para retê‐la,
mas algo na intrincada trama das escuras lajotas impedia o livre movimento de meus
pés. Por fim pude pronunciar seu nome, porém em voz débil, apenas audível para
meus ouvidos.
—Esperanza.
Abriu os olhos e sorriu sem demonstrar surpresa alguma, tal como se houvesse
estado me aguardando, e após ficar de pé, caminhou até mim. Pude então apreciar
que não era do tamanho de uma criança, e sim da minha mesma altura, delicada e de
aspecto frágil, apesar do qual irradiava uma vitalidade ante a qual me senti
empequenecida.
—Estou muito feliz em vê‐la de novo — saudou, num tom que soava sincero, e
com um gesto me convidou a tomar assento em uma das cadeiras de junco junto à

cadeiraEm
de balanço.
torno de nós, nas imediações, descobri às outras mulheres, incluindo Delia,
sentadas em cadeiras de junco, semi‐escondidas entre árvores e arbustos. Também
elas me olhavam com curiosidade, algumas sorrindo, outras comendo tamales dos
pratos que tinham sob suas saias.
Na verde luz difusa do pátio, e não obstante sua mundana atividade
gastronômica, pareciam imaginárias, insubstanciais, e contudo estranhamente vívidas,
apesar da ausência de nitidez que as envolvia. Pareciam ter absorvido a verde luz do
pátio, que a tudo impregnava como uma névoa transparente. A idéia passageira e
nada agradável de estar em uma casa povoada por fantasmas tomou conta de mim por
um instante.
—Quer comer algo? — perguntou Esperanza. —Delia preparou uns pratos que
você nem imagina.
—Não, obrigado — murmurei, numa voz que não parecia a minha, e ao
observar seu olhar inquisidor acrescentei sem muita convicção: —Não tenho fome. —
Me sentia tão nervosa e agitada que, mesmo se estivesse desmaiando de fome, não
teria podido engolir nem um bocado.

32
Esperanza deve ter intuído meu medo pois, aproximando‐se, segurou meu
braço como para me passar confiança.
—O que é que você quer saber? — perguntou.
Minha resposta saiu aos borbotões:
—Achei ter visto você num sonho — e ao ver o riso em seus olhos acrescentei:
—Estou sonhando agora?
—Sim — respondeu, enunciando suas palavras de maneira lenta e precisa —,
mas não está dormindo.
—Como posso estar sonhando e não estar dormindo?
—Algumas mulheres podem fazê‐lo com grande facilidade. Podem ensonhar
sem dormir. Você é uma delas. Outras precisam batalhar toda sua vida para consegui‐
lo.
Pressenti um toque de admiração em sua voz, mas não me senti lisonjeada nem
um pouquinho. Ao contrário, estava mais preocupada que nunca.
—Mas como é possível: sonhar sem dormir? — insisti.
—Se eu te explico não o entenderá — contrapôs. —Aceite minha palavra; é
preferível postergar a explicação por agora — de novo segurou meu braço, e um doce
sorriso iluminou seu rosto. —Por hora lhe basta saber que, para você, eu sou a que
traz os ensonhos.
Não considerei isso suficiente, mas tampouco me animei a dizer‐lhe isso. Em
troca perguntei:
—Eu estava desperta quando você me curou de meus pesadelos, e estava
sonhando quando estive sentada fora com Delia e as outras?
Esperanza me contemplou por um longo tempo antes de fazer um movimento
com a cabeça, como se houvesse decidido revelar uma verdade monumental.
—É demasiado simplória para compreender o mistério do que fazemos — disse
isto de maneira tão casual, tão sem intenção de emitir um juízo, que não me senti
ofendida nem intentei réplica alguma.
—Mas você poderia me fazê‐lo entender, não é? — supliquei ansiosamente.
Se escutaram risinhos das outras mulheres, não irônicos, mas sim um murmúrio

como de um
mulheres e simcoro
dasem surdinadocujo
sombras ecoMais
pátio. me que
envolveu, som
risinhos quesussurros,
eram não parecia
umaprovir das
delicada
advertência a fim de apaziguar‐me, que apagou minhas dúvidas impertinentes, minhas
ânsias de saber, e soube então, sem a mais remota dúvida, que em ambas
oportunidades estive desperta e ao mesmo tempo sonhando. Não poderia explicar
esta certeza que superava o poder da palavra. Contudo, depois de um breve lapso,
senti a obrigação de dissecar minha análise, de colocar tudo num marco lógico.
Esperanza me olhava com evidente prazer. Depois disse:
—Vou lhe explicar quem somos e o que é que fazemos — mas antecipou seu
esclarecimento com uma admoestação: advertiu‐me que tudo o quanto devia me dizer
era de difícil aceitação, e portanto eu deveria suspender qualquer juízo e escutá‐la sem
perguntas nem interrupções.
—Pode
—Mas éfazê ‐lo?
claro.
Guardou silêncio, medindo‐me com seus olhos. Deve ter intuído minha
incerteza, e também à pergunta que estava a ponto de saltar de meus lábios.

33
—Não é que não queira responder à suas perguntas — sustentou —, melhor
dizendo, é que neste momento lhe será impossível compreender as respostas.
Fiz um gesto com a cabeça, temerosa de que a menor interferência de minha
parte a faria emudecer. Num tom de voz que não passava de um suave murmúrio me
disse algo por sua vez incrível e fascinante. Disse ser a descendente de feiticeiros que
viveram milênios antes da conquista espanhola, no vale de Oaxaca. Depois mergulhou
num longo silêncio, e seus olhos, fixos nas ervilhas‐doce multicoloridas, pareciam
estender‐se nostalgicamente até o passado.
—Pelo que sei, a parte das atividades desses feiticeiros que diz respeito a você
se denomina “ensonhar”— continuou. —Esses feiticeiros foram homens e mulheres
possuidores de grandes poderes derivados do ensonho, e realizaram atos que
desafiam a imaginação.
Abraçada a meus joelhos a escutei. Esperanza era uma talentosa narradora e
uma excelente mímica. Seu rosto mudava com cada uma de suas explicações; por
momentos era o rosto de uma mulher jovem, em outros de uma velha, ou também de
um homem, ou de uma criança inocente e travessa.
Sustentou que milhares de anos atrás homens e mulheres possuíam a
faculdade de entrar e sair do mundo normal, e portanto dividiram suas vidas em duas
áreas: o dia e a noite. Durante o dia desenvolviam atividades semelhantes ao mais
comum dos mortais, sendo sua conduta a normal e esperada, mas de noite se
convertiam em ensonhadores, e sistematicamente ensonhavam ensonhos que
transcendiam os limites do que consideramos a realidade.
Fez uma nova pausa, como para dar tempo a que suas palavras me
penetrassem.
—Usando a escuridão como manto, eles conseguiram algo inconcebível: foram
capazes de ensonhar estando despertos — antecipando a pergunta que eu estava a
ponto de formular, explicou que isso lhes significava poder submergir‐se, estando
conscientes e despertos, num ensonho que lhes dava a energia necessária para realizar
prodígios que estremeciam a mente.
Devido à modalidade agressiva imperante em minha casa, nunca desenvolvi a

habilidadecom
enfrentar necessária
perguntasparadiretas,
poder escutar durante
belicosas, então um longointercâmbio
nenhum período. Se verbal,
não podia
por
mais interessante que fosse, tinha sentido para mim. Por não poder discutir me
impacientei. Morria de vontade em interromper Esperanza. Fervia de perguntas, mas
que me explicassem as coisas não era o objetivo de minha necessidade de
interromper.
O que eu desejava era render‐me à compulsão de discutir aos gritos com ela,
para assim recuperar minha normalidade. Se diria que Esperanza estava a par de
minha inquietude, já que após me olhar fixamente me ordenou a falar, ou pelo menos
assim eu o acreditei. Abri a boca para dizer, como sempre, a primeira coisa que me
viesse na mente, estivesse ou não relacionada com o tema, mas não pude articular
palavra. Lutei por falar, e emiti sons guturais para deleite das mulheres nas sombras.
Esperanza
intentos, retomou a palavra,
e me surpreendeu como se
sobremaneira não houvesse
comprovar notado meus
que continuava frustrados
comandando
toda minha atenção. Disse que a srcem dos conhecimentos dos feiticeiros somente
podia‐se entender em termos de lenda. Um ser superior, apiedando‐se da terrível

34
condição do homem, de ser perseguido, como um animal, pela fome e a reprodução,
conferiu‐lhe o poder de ensonhar e lhe ensinou como usar esses sonhos.
—Naturalmente as lendas dizem a verdade de um modo velado — explicou. —
Seu êxito em ocultar a verdade reside na convicção do homem de que não passam de
simples histórias. Lendas de homens que se transformam em anjos ou em pássaros são
relatos de verdades ocultas que parecem ser fantasia ou, simplesmente, as alucinações
de mentes alteradas ou primitivas. Durante milhares de anos a tarefa dos feiticeiros
tem sido a de inventar novas lendas, ou descobrir a verdade escondida nas antigas.
Aqui é onde figuram os ensonhadores, tarefa na qual se sobressaem as mulheres.
Possuem a faculdade de abandonar‐se, de deixar‐se ir. A mulher que me ensinou a
ensonhar podia manter duzentos ensonhos.
Esperanza me observou com atenção, como ponderando minha reação, que era
algo de completo estupor, pois não tinha idéia do significado de tudo isso. Explicou
que manter um ensonho significava que a pessoa podia ensonhar algo específico a
respeito de si mesmo, e entrar nesse ensonho à vontade. Sua mestra, disse, podia
entrar voluntariamente em duzentos ensonhos que lhe concerniam.
—Como ensonhadoras as mulheres são insuperáveis — me assegurou
Esperanza. —São extremadamente práticas, e para manter um ensonho elas devem
sê‐lo, pois o ensonho deve tocar aspectos práticos de si mesmo. O favorito de minha
mestra era ensonhar‐se como um falcão; outro como uma coruja. De modo que,
dependendo do momento do dia, podia ensonhar‐se como qualquer um dos dois e,
dado que ensonhava desperta, era real e absolutamente um falcão ou uma coruja.
Havia tal sinceridade e convicção em seu tom e em seus olhos, que caí por
completo sob seu encanto. Não duvidei dela nem por um instante, e nada do que
pudesse ter dito me haveria parecido incoerente.
Prosseguiu com o tema:
—Para levar a cabo um ensonho dessa natureza as mulheres necessitavam
possuir uma disciplina de ferro — e aproximando‐se a mim, como se não quisesse que
as demais escutassem, explicou: —Por disciplina de ferro não quero aludir a nenhum
tipo de rotina árdua, ou melhor, as mulheres devem acabar com a rotina do que se

espera
Com delas, e devem
frequência, quandofazê lo em suachegam
as mulheres juventude,
a umaquando suasque
idade em forças estão
já não têmintactas.
que ser
mulheres, decidem que é chegado o momento de preocupar‐se com pensamentos e
atividades não mundanas ou extramundanas. Não sabem nem querem acreditar que
tais empenhos quase nunca têm êxito — com suavidade golpeou meu estômago, como
se estivesse tocando um tambor. —O segredo da fortaleza da mulher está em seu
útero.
Esperanza moveu sua cabeça de maneira enfática. Se diria que havia escutado a
pergunta boba que invadiu minha mente: Seu útero?
—As mulheres — continuou — devem começar por queimar seu útero. Não
podem ser o terreno fértil que deve ser fecundado pelo homem, seguindo o mandato
do próprio Deus. — continuou inspecionando‐me de muito perto, sorriu e perguntou.
—Por acaso, é religiosa?
Neguei com a cabeça. Não podia falar, e minha garganta estava tão
constrangida que apenas se conseguia respirar. Me encontrava paralisada pelo medo e
o assombro, não tanto pelo que me dizia como pela mudança operada nela. Se me
tivessem perguntado sobre isso, não teria podido dizer quando mudou, mas de

35
repente seu rosto era jovem e radiante; parecia que um fogo interno houvesse
incendiado seu ser.
—Isso é bom! — exclamou. —Deste modo não terá que lutar contra crenças
que são muito difíceis de superar. Eu fui criada como uma devota católica, e por pouco
não morri quando precisei examinar minha atitude frente à religião. — suspirou, sua
voz se tornou nostálgica e suave quando acrescentou: —Isso não foi nada comparado
com a batalha que precisei travar antes de converter‐me numa ensonhadora fiel.
Aguardei expectante, respirando apenas, enquanto uma sensação bastante
prazerosa, semelhante a uma corrente elétrica, se estendia por todo meu corpo. Supus
que me narraria algo horripilante, a crônica de sua luta contra criaturas aterrorizantes,
e mal pude dissimular meu desencanto quando revelou que a tal batalha foi contra si
mesma.
—Para converter‐me numa ensonhadora precisei vencer ao eu que é nosso ser,
e nada, absolutamente nada, é tão difícil. Nós, as mulheres, somos as mais
desgraçadas prisioneiras de nosso ser. É nossa prisão, feita de ordens e expectativas
com as quais nos atordoam desde o momento em que nascemos. Você sabe como é:
se o primogênito é varão, o fato se celebra. Se é mulher, há um encolhimento de
ombros e a resignada frase:
“—Está bem; por igual irei querê‐la bem, e farei qualquer coisa por ela.”
Por respeito não dei vazão ao meu riso. Jamais em minha vida havia escutado
declarações de tal natureza. Eu me considerava uma mulher independente, mas era
óbvio, sob a luz do que disse Esperanza, que minha situação era igual à de qualquer
outra mulher, e contrariamente ao que tivesse sido minha reação normal ante tal
conceito, concordei com ela.
Sempre se me havia ensinado que minha precondição de mulher me obrigava à
dependência, e se me ensinou que uma mulher podia considerar‐se afortunada se era
desejável, para assim conseguir a atenção dos homens. Se me disse que competia à
minha condição de mulher o realizar de qualquer tarefa encomendada, e que o lugar
da mulher é em sua casa, junto a seu marido e seus filhos.
—Assim como você, fui criada por um pai autoritário, ainda que compreensivo

— continuou
filosofia Esperanza(que
dos feiticeiros — e, como você,
a liberdade nãoacreditei serser
significava livre.
o euPara
quemim, entender
era meu ser) foia
quase a morte. Ser eu mesma significava afirmar minha feminilidade, e consegui‐lo
consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao contrário, os feiticeiros entendem a
liberdade como a capacidade para fazer o impossível, o inesperado; ensonhar um
ensonho que carece de base e de realidade na vida cotidiana — sua voz se converteu
de novo num sussurro ao acrescentar: —O excitante e novo é o conhecimento dos
feiticeiros, e imaginação é o que a mulher necessita para mudar seu ser e converter‐se
numa ensonhadora.
Esperanza disse que se não tivesse conseguido vencer seu ser, só teria
conseguido ter a vida de uma mulher normal: a que seus pais lhe haviam traçado, uma
vida de derrota e humilhação, desprovida de todo mistério. Uma vida programada pelo
costume e a tradição.
Esperanza me beliscou o braço, e a dor me fez gritar. —É melhor que preste
atenção — me sermoneou.
—Eu estou — murmurei defensivamente, esfregando o braço. Estava certa de
que ninguém notaria meu interesse minguante.

36
—Não entrará no mundo dos feiticeiros por ter sido tentada ou enganada —
me advertiu. —Deve escolher, consciente do que lhe espera.
As mudanças de meu estado de ânimo me assombravam pelo irracional que
eram. Deveria de ter sentido medo, contudo me encontrava tranqüila, como se minha
presença ali fosse o mais natural do mundo.
—O segredo da fortaleza de uma mulher está em seu útero — repetiu
Esperanza, e uma vez mais me deu um golpe no estômago. Disse que as mulheres
ensonhavam com seus úteros ou, melhor, a partir de seus úteros. O fato de ter útero
as faz ensonhadoras perfeitas. Antes sequer de que eu conseguisse completar o
pensamento “por que o útero é tão importante?”, Esperanza me deu a resposta.
—O útero é o centro de nossa energia criativa, a tal ponto que, se
desaparecessem os machos do mundo, as mulheres continuariam se reproduzindo, e
então o mundo estaria povoado unicamente pela parte feminina da espécie humana.
— Acrescentou que, reproduzindo‐se unilateralmente, as mulheres somente
conseguiriam reproduzir clones de si mesmas.
Me senti genuinamente surpreendida por esta específica mostra de erudição,
mas não pude conter minha interrupção e dizer a Esperanza que havia estudado o
referente à reprodução assexuada e partogenéica na aula de Biologia.
Se encolheu de ombros e prosseguiu com sua explicação.
—A mulher, tendo então a habilidade e os órgãos para reproduzir a vida,
também possui a habilidade para produzir ensonhos com esses mesmos órgãos — ao
observar a dúvida em meus olhos me advertiu: —Não se preocupe em como se
consegue, a explicação é muito simples, e por ser simples é o mais difícil de entender.
A mim ainda me causa dificuldades, de modo que, como uma boa mulher, atuo.
Ensonho, e deixo as explicações aos homens.
Esperanza aduziu que srcinalmente os feiticeiros dos quais me havia falado
transmitiam seus conhecimentos a seus descendentes biológicos, ou a pessoas de sua
própria escolha, mas os resultados haviam sido catastróficos.
Em lugar de ampliar essa erudição os novos feiticeiros, escolhidos por
favoritismo arbitrário, conspiraram para promover‐se a si mesmos. Foram finalmente

destruídos, e decidiram
sobreviventes essa destruição
então quequase extinguiu
no futuro o conhecimento.
sua sabedoria Os poucos
jamais seria legada a seus
descendentes ou a pessoas de sua escolha, senão àqueles eleitos por um poder
impessoal chamado “o espírito”.
— Agora tudo isto nos traz a você. Os feiticeiros da antiguidade decidiram que
somente aqueles predeterminados seriam qualificados. Você nos foi assinalada, e aqui
está! É uma ensonhadora nata, e depende das forças que nos regem qual será seu
futuro caminho. Não depende de você nem, logicamente, de nós. Só pode aceitar ou
recusar.
Julgando pela urgência de sua voz e à luz especial de seus olhos, era óbvio que
Esperanza me havia fornecido esta informação com toda a devida seriedade, e foi isto
o que impediu que me risse. Ademais, me encontrava demasiado exausta. A
concentração mental
Desejava dormir. que precisei
Ela insistiu em quepara segui‐la as
eu estirasse havia sidoe por
pernas me demais intensa.
encostasse para
relaxar‐me. O fiz ao ponto de cair adormecida.
Despertei sem idéia do quanto havia dormido. Busquei a reconfortante
presença de Esperanza ou das outras mulheres, mas não havia ninguém no pátio.

37
Contudo, não me senti só; de alguma maneira sua presença continuava vigente em
torno de mim, entre a verde folhagem. Uma brisa moveu as folhas, e eu a senti em
minhas pálpebras, morna e suave. Soprou em torno de mim, e depois passou por cima
de mim como passava sobre o deserto, rapidamente, sem som.
Com a vista fixa nas lajotas caminhei ao redor do pátio, procurando entender
seu complicado desenho, e me alegrou comprovar que as linhas conduziam de uma
cadeira de junco à outra. Tentei lembrar quem havia ocupado cada uma das cadeiras,
mas meu esforço se mostrou inútil. Não podia recordá‐lo.
Me distraiu um delicioso aroma de comida, realçado por alho e cebola, e guiada
pelo odor cheguei à cozinha, um cômodo largo e retangular, tão deserta como o pátio.
O desenho alegre das lajotas me recordava as do pátio, mas não me detive a constatar
sua similaridade, pois achei a comida que tinha sobrado sobre uma maciça mesa de
madeira no meio do recinto. Presumindo que era para mim, tomei assento e comi
tudo. Se tratava do mesmo guisado temperado que havia comido com eles. Aquecido
ficava ainda melhor.
Ao recolher os pratos, descobri um bilhete e um mapa embaixo de minha
esteira de palha. Nele Delia me sugeria regressar a Los Ângeles via Tucson, onde se
encontraria comigo em certa cafeteria indicada no mapa. Somente ali, informava,
poderia dizer‐me mais acerca de si mesma e de seus amigos.

38
CAPÍTULO QUATRO

Ansiosa por conhecer as revelações de Delia, regressei a Los Ângeles via


Tucson, e cheguei à cafeteria ao cair da tarde. Um velho me orientou até um espaço
vazio na área de estacionamento, e assim, quando abriu a porta de meu veículo,
consegui reconhecê‐lo.
—Mariano Aureliano! — exclamei. —Que surpresa. Me alegra tanto vê‐lo. Que
faz você aqui?
—Te esperava — afirmou. —Por isso meu amigo e eu lhe reservamos este
espaço.
Tive uma fugaz visão de um índio corpulento que manejava uma velha
camionete colorida. Deixava o local no momento em que eu entrava.
—Lamento que Delia não tenha podido vir. Precisou viajar inesperadamente a
Oaxaca — disse Mariano Aureliano e me deu um amplo sorriso antes de agregar: —
Estou aqui como seu substituto. Espero poder preencher satisfatoriamente o vazio.
—Você não tem idéia do quanto encantada que estou em vê‐lo — afirmei com
toda sinceridade, convencida de que ele, melhor que Delia, poderia me ajudar dando
sentido a tudo o que me havia acontecido nos últimos dias. —Esperanza me explicou
que eu estava em uma espécie de transe quando conheci a todos vocês — acrescentei.
—Disse isso? — perguntou com um tom quase ausente.
Sua voz, sua atitude e todo seu comportamento diferiam tanto da lembrança
que conservava dele, que me dediquei a observá‐lo com detenção, na esperança de
descobrir o que havia mudado. O rosto, rudemente esculpido, havia perdido sua
ferocidade mas, preocupada por minhas próprias inquietudes, desviei meus
pensamentos.
—Esperanza me deixou sozinha na casa — prossegui. —Ela e todas as mulheres
se foram sem sequer se despedir de mim, mas… — me precipitei em completar — isso
não me preocupou, apesar de que normalmente me sinto muito incomodada quando
as pessoas não são cortêses.
—Não me diga! — exclamou, como se eu houvesse dito algo extremamente

importante.
Temerosa de que se ofendesse pelo que eu havia dito acerca de suas
companheiras, de imediato comecei a explicar‐lhe que não havia sido minha intenção
acusar a Esperanza e às outras de não ser amigáveis.
—Muito pelo contrário — lhe assegurei —, foram o mais cortêses e carinhosas.
— estive a ponto de revelar o que me fora confiado por Esperanza, mas sua olhada
enérgica me deteve. Não havia nessa olhada raiva nem ameaça, senão uma qualidade
penetrante que perfurou minhas defesas, e tive a sensação de que tinha acesso à
confusão reinante em minha mente.
Desviei o olhar para esconder meu nervosismo, e declarei em tom quase de
brincadeira não haver me sentido por demais afetada ao ficar sozinha na casa.
—O que me intrigou foi que conhecia cada rincão do lugar — confessei, e me
detive, incerta a‐me
Seguiu olhando respeito do impacto
fixo. —Fui que minhas
ao banheiro, palavras
e comprovei podiam
que havia haver
estadolhe
ali causado.
antes. O
banheiro não tem espelhos, e recordei desse detalhe antes mesmo de entrar. Depois
lembrei da ausência total de espelhos na casa, percorri cada cômodo e o confirmei.

39
Ao comprovar sua ausência de reação ante minhas palavras, lhe confessei que
ao escutar a rádio durante minha viagem à Tucson me havia dado conta de que andava
atrasada em um dia, e terminei dizendo, num tom esforçado:
—Devo ter dormido todo um dia.
—Não dormiu um dia inteiro — assinalou Mariano Aureliano com indiferença
—, caminhou por toda a casa e falou muito conosco antes de dormir como um tronco.
Comecei a rir, um riso próximo ao histérico, mas ele não pareceu notá‐lo. Riu
comigo, e isso me relaxou.
—Nunca durmo como um tronco — me senti obrigada a explicar. —Meu sono é
muito instável.
Mariano Aureliano se calou, e quando retomou a palavra sua voz era séria e
exigente.
—Lembra de haver sentido curiosidade sobre como as mulheres se vestiam e se
penteavam sem a ajuda de espelhos?
Não me ocorreu nenhuma resposta, e ele prosseguiu.
—Lembra que lhe pareceu estranho a ausência de quadros nas paredes e…?
—Não lembro de haver falado com ninguém — interrompi, para depois
observá‐lo com cautela na crença de que, talvez, nada mais que para confundir‐me,
alegaria que eu confraternizei com todos nessa casa, quando na verdade nada disso
havia acontecido.
—Não lembrá‐lo não significa que não aconteceu — disse laconicamente.
Senti em meu estômago uma involuntária revoada de mariposas. Não me havia
sobressaltado seu tom de voz, e sim o fato de haver dado resposta às minhas não
formuladas perguntas. Na certeza de que se seguisse falando algo dissiparia minha
crescente apreensão, me embarquei em uma longa e confusa recitação acerca de meu
estado de ânimo. Reconstruí o acontecido e me deparei com buracos na ordem do que
ocorreu entre a sessão curativa e minha viagem à Tucson, prazo no qual, eu sabia,
perdi todo um dia.
—Vocês me estão fazendo algo — os acusei, sentindo‐me momentaneamente
virtuosa —, algo incomum e ameaçante.

—Agora
Aureliano sorriu.está
—Sesealgo
portando comoe uma
é incomum tonta —
ameaçante é sóe porque
pela primeira
é novo vez
paraMariano
você. É
uma mulher forte, e cedo ou tarde lhe encontrará o sentido.
Me incomodou o uso de mulher. Teria preferido que dissesse garota,
acostumada como estava a que pedissem meus documentos para provar que tinha
mais de dezesseis anos. De repente me senti velha.
—A juventude deve estar unicamente nos olhos de quem contempla — disse
como se uma vez mais estivesse lendo meus pensamentos. —Quem quer que te olhe
deve perceber sua juventude, seu vigor, mas está mal que você se sinta uma
pequenina. Precisa ser inocente sem ser imatura.
Por alguma razão inexplicável suas palavras excederam minha capacidade de
tolerância. Desejava chorar, não por sentir‐me ferida, e sim de desalento. Incapaz de
sugerir —Estou
algo melhor, sugeride
morrendo comer.
fome — anunciei com falso alvoroço.
—Isso não é verdade — retrucou autoritário. —Está tentando mudar de
assunto.

40
Surpreendida por seu tom e suas palavras olhei‐o aterrada, e minha surpresa
de imediato se converteu em raiva. Não só tinha fome, como também estava cansada
e tensa por causa da longa viagem. Desejava gritar, fazê‐lo alvo de minha ira e
frustração, mas seus olhos me impediam todo movimento, esses olhos que não
piscavam, e pareciam possuir atributos de réptil. Por um momento pensei que poderia
chegar a devorar‐me, do mesmo modo em que uma víbora devora a um indefeso e
hipnotizado pássaro. A tensão por temor e ira alcançou tal intensidade que senti o
sangue invadindo meu rosto, e soube por uma curiosa e quase imperceptível elevação
de sobrancelhas que Mariano Aureliano havia percebido essa mudança de cor. Desde
muito nova eu havia sofrido terríveis ataques de mau gênio, e a não ser por procurar
acalmar‐me, ninguém havia tentado impedir minha entrega a eles, e eu o fazia até ao
ponto de convertê‐los em monumentais ataques de raiva, nunca causados por me ser
negado algo que desejava fazer ou possuir, mas sim por indignações, reais ou
imaginárias, infligidas à minha pessoa.
Não obstante, as circunstâncias desse momento me fizeram sentir vergonha de
meu hábito. Fiz um esforço consciente para controlar‐me que quase consumiu todas as
minhas forças, mas me acalmei.
—Esteve todo um dia conosco, um dia que agora não pode recordar — explicou
Mariano Aureliano, pelo visto indiferente aos meus flutuantes estados de ânimo. —
Durante esse tempo esteve muito comunicativa e receptiva, o qual nos encantou.
Quando ensonha melhora, e se converte num ser mais atraente, menos geniosa. Nos
permitiu conhecer‐lhe muito profundamente.
Suas palavras me inquietaram. Por ter crescido defendendo‐me e afirmando‐
me, tal qual fiz, me permitiu ser muito apta em detectar significados ocultos por trás
das palavras. “Conhecer‐me muito profundamente” me preocupou. Em especial
“profundamente”. Só podia ter um significado, pensei, mas de imediato o descartei
por ser descabido.
Me absorvi de tal maneira em meus próprios cálculos que deixei de atentar ao
que dizia. Continuava com as explicações do dia perdido por mim, mas apenas captei
pedaços isolados, e devo de ter grudado minha vista muito fixamente nele, pois de

repente—Não
deixouestá
de prestando
falar. atenção — me admoestou severamente.
—O que me fizeram quando estive em transe? — retruquei, naquilo que, mais
que uma pergunta, era uma acusação.
Me surpreenderam minhas próprias palavras por impensadas, e Mariano
Aureliano se surpreendeu ainda mais, e quase o afogou o rompante de riso que se
seguiu à sua inicial expressão de sobressalto.
—Pode estar certa de que não nos aproveitamos de criancinhas — e não só
pareceu dizê‐lo com sinceridade, senão até ofendido por minha acusação. —Esperanza
lhe disse quem somos: gente muito séria. —E depois, num tom brincalhão,
acrescentou: —E levamos a sério este negócio.
—Que tipo de negócio? — exigi belicosamente. —Esperanza não me disse o
que queriam
—Sei de
quemim.
o disse — respondeu com tal segurança que por um instante me
perguntei se não haveria estado oculto, escutando nossa conversa no pátio. Eu o
considerava bem capaz de fazer isso.

41
—Esperanza lhe disse que você nos havia sido assinalada — prosseguiu. —E
agora isso nos impulsiona, como a você lhe impulsiona o medo.
—A mim não me impulsiona nada nem ninguém — gritei, esquecendo que
ainda não me havia revelado o que desejavam de mim.
Em aparência indiferente ante minha raiva, disse que Esperanza havia sido
muito clara ao explicar‐me que dali em diante eles estavam comprometidos em criar‐
me.
—Criar‐me!? — gritei. —Vocês estão loucos. Já recebi toda a criação que
necessito!
Ignorando meu estouro se dedicou a explicar que o compromisso deles era
total, e o fato de que eu o entendesse ou não, não lhes importava. Fiquei olhando‐o,
incapaz de ocultar meu medo. Jamais havia escutado a alguém expressar‐se com tanta
indiferença e ao mesmo tempo com interesse. Num esforço por ocultar meu alarme
procurei injetar em minha voz um valor que estava longe de sentir, e perguntei:
—O que é que querem insinuar quando falam em criar‐me?
—Exatamente o que ouviu — respondeu. —Estamos comprometidos a guiar‐te.
—Mas, por quê? — estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo. —Você não vê
que não preciso de direção, nem quero que…?
O riso de Mariano Aureliano afogou minhas palavras.
—Não há dúvida alguma de que necessita direção. Esperanza já te fez ver que
sua vida carece de significado — e antecipando minha iminente pergunta me pediu
silêncio. —E no tocante a por quê você e não outra pessoa, ela lhe explicou que
deixamos ao espírito a escolha de quem devemos dirigir, e o espírito assinalou você.
—Um momento, senhor Aureliano — protestei —, não quero ser grosseira nem
ingrata, mas você precisa entender que não busco direção. A simples idéia me
aborrece. Você entende? Fui suficientemente clara?
—Sim, e compreendo o que quer que eu entenda — e ao dizer isto deu um
passo para trás para afastar‐se de meu dedo em riste —, mas precisamente por não
desejar nada, você se converte na candidata ideal.
—Candidata? — gritei, farta de sua insistência. Olhei ao redor, perguntando‐me

se aqueles que entravam e saíam da cafeteria poderiam ter me escutado, e continuei


gritando:
—O que é isto? Você e seus companheiros são um bando de loucos! Deixem‐
me em paz, me ouviu? Não preciso de vocês nem de ninguém.
Para surpresa e mórbida alegria de minha parte, Mariano Aureliano terminou
por irritar‐se e se pôs a criticar‐me tal como faziam meus pais e meus irmãos. Com voz
controlada, que não transcendia ao cenário de nossa discussão, me insultou, tratando‐
me de estúpida e de malcriada. Depois, como se o insultar‐me lhe desse ímpeto, disse
algo imperdoável. Gritou que minha única fortuna era a de ter nascido loira e de olhos
azuis, numa terra onde esses atributos eram reverenciados.
—Jamais teve que lutar por nada — assegurou. —A mentalidade colonial dos
mestiços de seu país fez que te olhassem como se merecesse tratamento especial. Um
privilégio
tonto que baseado na posse de uma cabeleira loira e olhos azuis é o privilégio mais
pode existir.
Eu estava passada, pois jamais fui dos que recebem insultos sem reagir. Os anos
de treinamento familiar para essas batalhas gritadas que mantínhamos, e as
extremamente descritivas vulgaridades aprendidas (e nunca esquecidas) nas ruas de

42
Caracas quando era menina, essa tarde me foram de suma utilidade. Disse coisas a
Mariano Aureliano que me envergonham até o dia de hoje. Tal era meu estado de
nervos que não percebi que o índio corpulento condutor da camionete se havia
juntado a nós, e apenas o soube ao escutar sua forte risada. Ele e Mariano Aureliano
praticamente estavam no chão, segurando as barrigas e gritando alvoroçados.
—O que tem isto de engraçado? — gritei ao índio corpulento, a quem também
insultei.
—Que mulher tão boca‐suja! — disse em perfeito inglês —, se eu fosse seu pai
lhe lavava a boca com água e sabão.
—Quem te deu vela neste enterro, gordo de merda? — e cega de fúria, dei‐lhe
um chute no tornozelo.
A dor lhe fez soltar um grito, e me insultou. E eu estava a ponto de agarrar‐lhe
o braço e mordê‐lo quando Mariano Aureliano me pegou por trás e me jogou no ar.
O tempo se deteve. Minha descida foi tão lenta, tão imperceptível, que me
pareceu estar suspensa no ar indefinidamente. Não caí em terra com os ossos
quebrados como esperava, e sim nos braços do índio corpulento. Não cambaleou ao
receber‐me, sustentando‐me como a uma levíssima almofada. Consegui captar um
malicioso reflexo em seus olhos, e tive a certeza de que me iria lançar para cima de
novo, mas deve ter intuído meu temor, pois sorriu e, com suavidade, me depositou no
chão. Esgotadas minhas forças e minha ira, me apoiei contra o carro e chorei.
Mariano Aureliano me rodeou com seus braços e acariciou minha cabeça e meu
braço, tal como fazia meu pai quando eu era menina. Murmurando palavras
tranquilizantes me assegurou não estar nem um pouco incomodado pelas
barbaridades que lhe havia gritado. A culpa, e um sentimento de pena por mim
mesma, aumentaram a intensidade de meu choro. Ante isto ele sacudiu a cabeça num
gesto de resignação, ainda que seus olhos brilhassem de gozo. Depois, num esforço
evidentemente destinado a fazer‐me rir, confessou que, contudo, lhe custava acreditar
que eu conhecesse um linguajar tão sujo, e menos ainda usá‐lo.
—Bom — cochichou — suponho que a linguagem existe para ser usada, e o
linguajar sujo para quando as circunstâncias o requerem.

Suaseu
compaixão palavras nãocomo
comecei, me causaram graça,
era habitual em emim,
umaavez superado
remoer o ataque de
sua afirmação de que
autoa
única coisa que eu possuía era o cabelo loiro e os olhos azuis. Devo ter revelado algo a
Mariano Aureliano acerca de meus sentimentos, pois me assegurou haver dito isso
somente para mortificar‐me, e que não havia nada de certo nisso. Sabia que mentia, e
por um momento me considerei duplamente insultada, e depois espantada, ao dar‐me
conta de que minhas defesas estavam destruídas. Estava de acordo com ele. Havia
estado certo em tudo o que havia dito. Com um só golpe me havia desmascarado,
perfurado minha couraça. Ninguém, nem sequer meu pior inimigo, já havia conseguido
me aplicar um golpe tão demolidor, e no entanto, pensasse o que pensasse de
Mariano Aureliano, sabia que não era meu inimigo. Essa descoberta me produziu
vertigens, como se uma força invisível estivesse pressionando algo em meu interior a
idéia deMariano
mim mesma. Algo me
Aureliano quepegou
costumava fortificar
pelo braço ‐me
e me agora me
conduziu atéesgotava.
a cafeteria.
—Vamos fazer uma trégua — me sugeriu jovialmente. —Preciso que me faça
um favor.

43
—Você não precisa nada mais do que pedir — respondi, e procurei imitar seu
tom.
—Antes que você chegasse pedi um sanduíche na cafeteria, e praticamente se
recusaram a me servir. Quando protestei o cozinheiro me dispensou. Isso acontece por
eu ser índio — queixou‐se abatido.
—Denuncie o cozinheiro para o gerente — sugeri indignada, meus próprios
problemas misteriosamente esquecidos.
—Isso não me ajudaria em nada — confessou Mariano Aureliano, e me
assegurou que a única maneira em que eu podia ajudá‐lo era entrando na cafeteria
para sentar‐me no balcão, pedir um bom almoço, e deixar cair nele uma mosca morta.
—E tacar a culpa no cozinheiro? — conclui por ele. Tudo me parecia tão
absurdo que acabei rindo, mas ao perceber que falava a sério, prometi fazer o que me
pedia.
—Espere aqui — disse, e depois, junto com o índio corpulento (que ainda não
me havia sido apresentado) se encaminharam até a camionete roxa, estacionada na
rua, para regressar quase de imediato.
—A propósito — disse Mariano Aureliano —, este é John. É um índio Yuma do
Arizona.
Estava por perguntar se John também era feiticeiro, mas Mariano Aureliano se
adiantou a mim.
—É o membro mais jovem de nosso grupo.
Com um risinho nervoso estendi minha mão:
—Encantada em conhecer‐lhe.
—Igualmente — retribuiu. Sua voz era profunda, ressonante, e seu aperto de
mãos, cálido. —Espero que você e eu nunca nos agarremos a tapas.
Apesar de não ser muito alto exalava a vitalidade e a força de um gigante. Até
seus grandes dentes brancos pareciam indestrutíveis. Com ânimo brincalhão
inspecionou meus bíceps e opinou:
—Aposto que pode desmontar a um sujeito com um só soco bem dado.
Antes que pudesse desculpar‐me por meus chutes e insultos, Mariano

Aureliano
—Apôs uma—
mosca pequena caixa
explicou. em minhas
—John sugeriu mãos.
que use isto — e tirou uma peruca negra
e enrolada de uma bolsa. —Não se preocupe, é nova em folha — disse, enquanto a
acomodava em minha cabeça. Depois, afastando‐se um pouco para inspecionar‐me,
disse que servia. —Não está mal. Não quero que te reconheçam — e se ocupou de
ocultar minha longa cabeleira loira.
—Não há necessidade de disfarçar‐me — protestei. —Posso assegurar‐lhes que
não conheço a ninguém em Tucson. —me observei no espelho retrovisor de meu
carro. —Não posso entrar assim, pareço um poodle.
Mariano Aureliano me observava com um exasperante ar divertido, enquanto
acomodava uns fios rebeldes.
—Não se esqueça que tem que se sentar no balcão e gritar como uma louca
quando—Por
descobrir
quê?a mosca em sua comida.
Olhou‐me como se eu fosse uma retardada.
—Tem que chamar a atenção e humilhar ao cozinheiro.

44
A cafeteria estava repleta pelos clientes de primeira hora, mas não demorei em
arranjar um lugar no balcão. Uma cansada mas bem disposta garçonete pegou meu
pedido. Semi‐oculto atrás da grade dos pedidos pude ver ao cozinheiro, mexicano ou
norte‐americano de srcem mexicana, que desempenhava suas tarefas com tal bom
ânimo que tive a certeza de que era inofensivo, incapaz de malícia alguma; mas ao
pensar no velho índio que me aguardava na praça de estacionamento, não hesitei em
esvaziar o conteúdo da caixa de fósforos sobre o hambúrguer perfeitamente assado
que havia pedido, e o fiz com tal velocidade e dissimulação que nem sequer os homens
sentados de cada lado notaram minha ação. Meu grito de asco foi autêntico, ao ver
uma enorme barata morta em minha comida.
—O que foi, querida? — perguntou a garçonete.
—Como o cozinheiro espera que eu coma isto? — me queixei. Não foi
necessário pretextar raiva. Estava indignada, não com o cozinheiro e sim com Mariano
Aureliano. —Como pôde fazer isto comigo? — perguntei em voz alta.
—Só pode ser um horrível acidente — explicou a mulher aos dois curiosos
clientes que me ladeavam, ao mesmo tempo em que mostrava o prato ao cozinheiro.
—Fascinante! — opinou o cozinheiro em voz alta, e coçando a testa
inspecionou o prato. Não demonstrava preocupação alguma, e tive a vaga suspeita de
que se ria de mim. —Esta barata ou caiu do teto ou… — e olhou minha cabeça como se
fascinado — …de sua peruca.
Antes que eu pudesse demonstrar‐lhe minha indignação e colocá‐lo em seu
lugar, me ofereceu a escolha de qualquer prato do menu.
—Por conta da casa — prometeu.
Pedi um bife e um caldo quente, o qual me foi trazido quase de imediato, e
quando estava a ponto de colocar os temperos em minha salada, o qual sempre deixo
para o final, descobri uma aranha de respeitável tamanho emergindo por debaixo da
folha. Foi tal minha surpresa ante a evidente provocação que nem sequer pude gritar,
e ao levantar os olhos vi ao cozinheiro atrás da treliça, acenando‐me com a mão e com
um amplo sorriso. Mariano Aureliano me aguardava, impaciente.
—O que aconteceu? — perguntou.

—Você
cozinheiro não esesua asquerosa
incomodou, barata!
e se — muitíssimo,
divertiu disse incisiva. —Não
claro aconteceu
que às nada. O
minhas custas. A
única que se incomodou fui eu.
A pedido seu, dei a Mariano Aureliano um detalhado informe do acontecido.
Quanto mais eu falava mais parecia divertir‐se. Desconcertada por sua reação exigi:
—O que é tão engraçado para você?
Lutou por manter‐se sério, mas seus lábios o traíram, e o riso inicial se
converteu numa explosão de boas gargalhadas.
—Não pode se levar tão a sério — me repreendeu. —É uma excelente
ensonhadora, mas não é atriz.
—Não estou atuando agora — retruquei defensivamente em voz chorosa.
—Quero dizer que contava com sua habilidade para ser convincente —
esclareceu.
que poderia—Tinha
fazê‐lo. que fazer o cozinheiro acreditar em algo que não era certo. Pensei
—Como você se atreve a me criticar? — gritei. —Faço o papel de tonta em seu
favor, e tudo o que se lhe ocorre dizer é que não sei atuar! — tirei a peruca e a joguei
longe. —Por certo que agora estou com piolhos.

45
Ignorando meu rompante Mariano Aureliano observou que Florinda já lhe havia
antecipado que eu era incapaz de fingir.
—Tínhamos que nos assegurar para colocá‐la na repartição apropriada —
acrescentou. — Os feiticeiros são ou ensonhadores ou espreitadores.
—Do que está falando? Que bobagem é esta de ensonhadores e espreitadores?
—Os ensonhadores se ocupam de ensonhos — explicou. —Obtêm seu poder e
sua sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com
o mundo cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus
semelhantes.
—Evidentemente você não me conhece — disse de maneira depreciativa. —Eu
sei lidar muito bem com as pessoas.
—Isso não é verdade — me contradisse. —Você mesma já disse que não sabia
conversar. É uma boa mentirosa, mas mente só para conseguir o que deseja. Suas
mentiras são demasiado específicas, por demais pessoais. E sabe por quê? — fez uma
pausa, como para dar‐me tempo de responder, mas antes que eu pudesse pensar em
algo, continuou: —Porque para você as coisas são brancas ou pretas, sem meios tons,
e não falo em termos de moral mas sim em termos de conveniência; sua conveniência,
é claro. Uma verdadeira autoritária. — Mariano e John trocaram olhares, depois
ambos endireitaram seus ombros, fizeram soar os saltos de seus sapatos, e fizeram
algo para mim imperdoável. Estiraram os braços numa saudação fascista e gritaram:
—Mein Führer!
Quanto mais riram mais aumentava minha fúria. Senti o sangue zunindo em
meus ouvidos, sufocando meu rosto, e desta vez não fiz nada para acalmar‐me além
de chutar meu carro e dar murros na capota. Em vez de consolar‐me, tal qual teriam
feito meus pais ou meus amigos, os dois homens se dedicaram a rir como se eu lhes
estivesse proporcionando o espetáculo mais divertido imaginável. Sua indiferença, sua
total falta de preocupação comigo era tão chocante, que minha ira diminuía
lentamente por si mesma. Nunca havia sido ignorada a tal ponto. Senti‐me perdida,
sem capacidade de manobra. Nunca soube, até esse dia, que se as testemunhas de
meus ataques de raiva se mostravam indiferentes, eu não sabia que caminho tomar.

disse a—Creio
John, que
e oagora estácom
rodeou confundida. Não esabe
seu braço o que fazer.em
acrescentou — Mariano
voz baixaAureliano
mas o
suficientemente alta como para que eu escutasse: —Agora vai começar a chorar, e
quando o fizer, chorará até que a consolemos. Não há nada mais chato que uma
putinha malcriada.
Isso foi o auge. Como um touro ferido, baixei a cabeça e investi contra Mariano
Aureliano. Tanto lhe surpreendeu meu furioso e inesperado ataque que quase perdeu
o equilíbrio, o qual me deu tempo suficiente para cravar os dentes na parte carnosa de
sua barriga. Seu grito foi uma mistura de dor e riso. John me pegou pela cintura para
separar‐me, mas eu não afrouxei a mordida enquanto não cedeu minha prótese
dental. Havia perdido dois de meus dentes superiores frontais aos treze anos, numa
briga entre os estudantes venezuelanos e alemães da Escola Alemã de Caracas. Os dois
homens
segurando riram aos gritos,
a barriga o carro. sobre o porta‐malas de meu Volkswagen,
John recostado
e golpeando
—Tem um rombo entre os dentes como um jogador de futebol! — conseguiu
articular entre alaridos.

46
Minha vergonha superou toda descrição. Tal era minha raiva que meus joelhos
se afrouxaram. Caí ao chão como uma boneca de trapo e desmaiei. Quando recuperei
os sentidos estava sentada dentro da camionete. Mariano Aureliano me pressionava as
costas e, sorrindo, acariciava repetidas vezes minha cabeça. Depois me abraçou. Me
surpreendeu minha ausência de emoção; não me sentia enraivecida nem
envergonhada. Estava relaxada, em paz, dona de uma serenidade, de uma
tranquilidade nunca experimentada anteriormente. Pela primeira vez em minha vida
me dei conta de que jamais havia estado em paz comigo nem com os outros.
—Gostamos muito de você — disse Mariano Aureliano —, mas precisa se curar
desses ataques. Se não o fizer eles te matarão. Desta vez foi culpa minha, e preciso
pedir perdão por ela. Eu te provoquei deliberadamente.
Me encontrava por demais tranquila para responder. Desci da camionete para
estirar braços e pernas. Sentia câimbras nas panturrilhas. Depois de um tempo lhes
pedi desculpas a ambos, e lhes disse que meu caráter havia piorado desde que passei a
tomar bebidas gasosas compulsivamente.
—Então deixe de fazê‐lo — sugeriu Mariano Aureliano. Depois mudou por
completo de assunto e seguiu como se nada houvesse acontecido. Disse estar muito
contente por eu ter‐me unido a eles.
—De verdade? — perguntei sem compreender. —Eu me uni a vocês?
—Assim é. Um dia tudo terá sentido para você — e me assinalou um bando de
corvos que nos sobrevoavam. —Os corvos são um bom presságio. Olhe como são
lindos. Como uma pintura no céu. Vê‐los agora é uma promessa de que nós nos
veremos de novo.
Fiquei olhando aos pássaros até que desaparecessem. Quando me voltei para
olhar a Mariano Aureliano já não estava ali. A camionete se havia ido sem sequer um
ruído.

47
CAPÍTULO CINCO

Sem me importar com as aranhaças me lancei atrás do cão que, a grande


velocidade, se enfiava por entre os arbustos de Artemísia. De súbito perdi de vista sua
pelagem dourada, e segui a pista de seus latidos, cada vez mais fracos na distância.
Intranquila, observei a grossa névoa avançando para mim, para cerrar‐se em torno do
lugar onde me encontrava, e em poucos momentos o céu se apagou. A suavizada bola
do sol declinante da tarde era apenas avistada, e a magnífica vista da baía de Santa
Mônica, agora mais imaginada que vista a partir das montanhas de Santa Susana, havia
desaparecido com incrível rapidez. Não me preocupava a perda do cachorro, mas não
tinha idéia de como regressar ao apartado local escolhido por meus amigos para o
piquenique, nem onde se encontrava o caminho de pedestres que tomei para
perseguir ao animal.
Encaminhei uns passos inseguros na mesma direção tomada pelo cachorro
quando algo me deteve. Descendendo desde alguma abertura na névoa vi como um
pequeno ponto luminoso caía até mim. Outro o seguiu, depois outro, semelhantes a
pequenas chamas atadas a uma linha; tremiam e vibravam no ar para extinguir‐se
justo antes de me alcançar, como tragadas pela névoa. Dado que desapareceram a
poucos metros diante de mim, me aproximei desejosa de examinar o extraordinário
espetáculo, e perfurando a névoa com a vista, vi deslizarem‐se umas escuras figuras
humanas, suspendidas no ar a curta distância do sólo como se caminhassem nas
pontas dos pés sobre as nuvens. Uma atrás da outra se agacharam até formar um
círculo. Ensaiei uns passos vacilantes para depois deter‐me quando a névoa ficou mais
espessa e tragou as figuras.
Permaneci imóvel, sem saber o que fazer, vítima de um estranho medo, não o
conhecido, e sim um medo que afetava o corpo, o estômago, o tipo de medo que os
animais devem experimentar. Não sei quanto tempo permaneci ali. Quando a névoa
levantou‐se o suficiente descobri à minha esquerda, a uns vinte e tantos metros, dois
homens sentados no chão com as pernas cruzadas. Cochichavam, e o som de suas
vozes parecia vir de todas as direções, presas em pequenas capas de névoa

semelhantes
aos a tufos
meus ouvidos mede algodão.tranquilidade;
produziu Não lhes entendi, masespanhol.
falavam uma ou outra palavra chegada
—Estou perdida! — gritei.
Ambos se viraram com lentidão, hesitantes e incrédulos, como quem vê a uma
aparição. Olhei atrás de mim para ver se alguém que estivesse ali fosse o causador de
sua dramática reação. Não havia ninguém.
Sorrindo, um dos homens se levantou. Estirou seus membros até fazer estalar
suas articulações, e depois, com rápidos passos percorreu a distância entre nós. Era
jovem, de baixa estatura e forte constituição: ombros poderosos e cabeça grande.
Seus olhos escuros irradiavam uma divertida curiosidade. Disse‐lhe que passeava com
amigos e me havia perdido perseguindo seu cão.
—Agora não sei como juntar‐me de novo a eles.
—Por
penhasco — eaqui
comnão se pode
grande seguir me
seriedade — me advertiu.
pegou —Estamos
pelo braço parados sobre
e me conduziu um
à própria
borda do precipício, distante não mais de uns três metros de onde eu havia estado
parada. —Este amigo — e assinalou ao outro homem que havia permanecido sentado
— acabava de contar‐me que abaixo há um velho cemitério indígena, quando você

48
apareceu e quase nos matou de susto. Você é sueca? — perguntou, estudando meu
rosto e minha longa trança loira.
Ainda confusa com o que foi dito pelo jovem acerca do cemitério, fixei minha
vista na névoa. Sob circunstâncias normais, como estudante de antropologia, me
haveria entusiasmado a idéia do cemitério indígena, mas nesse momento pouco me
importava o que havia abaixo nessa cavidade enevoada. A única coisa em que
conseguia pensar era que, de não me haver distraído essas luzes, eu poderia ter
terminado enterrada ali.
—Você é sueca? — insistiu.
—Sim — menti, e de imediato o lamentei, mas não podia pensar em como
desdizer‐me sem perder prestígio.
—Fala castelhano com perfeição — comentou. —Os suecos possuem uma
maravilhosa facilidade para os idiomas.
Apesar de sentir‐me muito culpada, não pude fazer nada menos que
acrescentar que, mais que um dom, era uma necessidade para os escandinavos
aprender vários idiomas, se desejavam comunicar‐se com o resto do mundo.
—Ademais — confessei —, me criei na América do Sul.
Por alguma estranha razão esta informação pareceu desorientá‐lo. Sacudiu a
cabeça, como para exteriorizar sua dúvida; depois permaneceu um longo tempo em
silêncio, absorto em seus pensamentos. Logo após, como se houvesse chegado a uma
decisão, me pegou pela mão e me levou junto ao outro homem que permanecia
sentado.
Não era minha intenção entregar‐me à sociabilidade. Queria juntar‐me com
meus amigos o mais rápido possível, mas o jovem me deixou tão envaidecida, que em
lugar de pedir‐lhe que me conduzisse ao caminho de pedestres, lhe ofereci uma
detalhada versão das luzes e das figuras humanas que acabara de ver.
—Que raro que o espírito tenha lhe ajudado — murmurou o homem sentado
como para seus botões, franzindo o cenho, mas era óbvio que se dirigia a seu
companheiro, que respondeu com outro ininteligível murmúrio, e trocaram olhares
que intensificaram minha inquietude.

disse. —Perdão? — disse, dirigindo me ao homem sentado. —Não entendi o que
Olhou para mim de modo agressivo.
—Foi advertida do perigo — anunciou em voz grave e ressonante. —Os
emissários da morte vieram em seu auxílio.
—Quem? — me senti obrigada a perguntar, apesar de ter lhe entendido
perfeitamente bem.
Olhei‐o de perto, e por um momento tive a certeza de que o conhecia bem,
mas ao completar meu estudo cheguei à conclusão de não tê‐lo visto jamais, apesar de
não poder descartar a impressão inicial. Não era tão jovem como o outro, embora
tampouco velho, e sem dúvida alguma era índio, de tez escura, cabelo negro e liso da
grossura de uma escova. Mas não era seu aspecto exterior o que o fazia familiar. Era
mal humorado
de pé como só
abruptamente, eu podia
anunciou ser.
que mePelo vistopara
levaria meujunto
exame
de omeus
incomodou,
amigos. pois ficando
—Siga‐me, e não se atreva a cair. Cairia encima de mim e ambos nos
mataríamos — disse em tom pouco amável, e antes de dar‐me a oportunidade de

49
responder que não era uma tonta, se adiantou por um pronunciado declive na direção
oposta ao penhasco.
—Sabe aonde vai? — gritei‐lhe, revelando na voz meu nervosismo.
Não podia orientar‐me (nunca fui boa para isso), mas não achei estar subindo
um monte quando persegui ao cão. O homem se virou, o rosto iluminado por um
sorriso, apesar de que seus olhos não sorriram. Me lançou um olhar pétreo.
—Te levarei para com seus amigos — foi tudo o que disse.
Não me agradava o sujeito, mas sem dúvida acreditava nele. Não era muito
alto, talvez um metro e setenta, e de ossos pequenos, apesar do qual seu corpo
impressionava por ser maciço e compacto. Se movia com muita confiança na névoa,
pisando com graça e facilidade naquilo que eu acreditava ser uma baixada vertical.
O homem mais jovem desceu atrás de mim, ajudando‐me em cada uma de
minhas dificuldades. Tinha as polidas maneiras de um velho cavalheiro. Suas mãos
eram suaves ao tato, porém fortes, bonitas e de tremendo poder. Várias vezes, com
grande facilidade, alçou‐me por cima de sua cabeça, talvez não uma grande façanha
dado meu peso escasso, mas impressionante posto que estávamos parados sobre
beiradas de argila, e ele só era mais alto que eu por quatro ou cinco centímetros.
—Precisa agradecer‐lhes, aos emissários da morte — ordenou o que havia
encabeçado nossa travessia, nem bem alcançamos terra plana.
—Sim? — perguntei, zombando; a mera idéia me parecia ridícula. —Devo
ajoelhar‐me? — perguntei entre risadas.
Ao homem não lhe pareceu tão gracioso. Com os braços na cintura me olhou
nos olhos sem sorrir. Havia um quê ameaçante em seu porte, em seus escuros olhos
inclinados, que olhavam sob sobrancelhas hirsutas que se uniam sobre a ponte de seu
nariz esculpido. De improviso me deu as costas e se afastou, para sentar‐se sobre uma
rocha próxima.
—Não podemos nos ir daqui até que você agradeça aos emissários da morte —
repetiu.
De repente me preocupou a comprovação de estar só num lugar perdido,
prisioneira da névoa e junto com dois homens estranhos, um deles talvez perigoso,

que não
mas, quese moveria em
surpresa… do lugar se para
lugar do tanto
temor, sentieuvontade
não cumprisse
de rir. Osua ridícula
sorriso exigência,
compreensivo
do homem jovem revelava às claras que sabia como eu me sentia, o qual lhe causava
grande prazer.
—Não precisa chegar ao extremo de ajoelhar‐se — disse, depois do qual,
incapaz de controlar seu regozijo, soltou uma risada alegre que soava como se
pequenos seixos caíssem em torno. Seus dentes eram imaculadamente brancos e
paralelos, como os de uma criança, e seu rosto por sua vez doce e travesso. —Basta
apenas dizer obrigado — aconselhou. —Diga‐o. O que pode perder com isso?
—Me sinto boba — confessei, procurando de forma deliberada ganhá‐lo para
meu lado. —Não o farei. — depois, entre risos, repeti: —Eu sinto muito, mas não
posso fazê‐lo. Sou assim. Enquanto alguém me insiste que faça algo que não quero
fazer, me ponho
Com tensa
a vista fixaeno
irritada.
chão, a testa descansando sobre os nós dos dedos, moveu a
cabeça em sinal de estar ponderando o assunto.
—É um fato que algo impediu que você se machucasse, talvez até que se
matasse. Algo inexplicável.

50
Estive de acordo, e ainda admiti que tudo me parecia muito estranho. Inclusive
tentei exibir‐me falando sobre um fato fortuito que, por coincidência, acontece no
lugar certo e na hora certa.
—Tudo isso está muito bem, mas não explica seu caso particular — e me deu
um carinhoso golpe na testa. —Você recebeu um presente, chame ao doador de
coincidência, circunstância, cadeia de acontecimentos ou o que seja, mas o fato é que
você não foi ferida e nem sofreu dor alguma.
—Talvez tenha razão — concedi. —Deveria mostrar‐me mais agradecida.
—Não mais agradecida, mais flexível, mais fluida — opinou rindo, e vendo a
raiva que se gestava em mim, abriu bem os braços como para abarcar os arbustos de
Artemísia que nos rodeavam. —Meu amigo acredita que o que você viu tem relação
com o cemitério indígena que por certo está aqui.
—Não vejo nenhum cemitério — respondi na defensiva.
—É difícil de reconhecer, e não é a névoa o que impede de vê‐lo. Mesmo em
dias de sol a única coisa que se vê são os arbustos. — se ajoelhou, e me olhou com um
sorriso. —Não obstante, para o olho conhecedor, se trata de um grupo de arbustos de
forma insólita. — se deitou no chão, sobre o estômago, a cabeça virada para a
esquerda, indicando‐me para fazer o mesmo.
—Esta é a única forma de vê‐lo com claridade — explicou.—Eu não o saberia a
não ser por meu amigo, que conhece todo tipo de coisas interessantes.
Inicialmente não vi nada; depois, uma por uma, descobri as rochas entre o
espesso mato. Escuras e brilhantes, como se a névoa as houvesse lavado, estavam
reunidas em círculo, e mais pareciam criaturas que pedras, e quando me dei conta de
que eram idênticas às figuras humanas vistas entre a névoa, precisei reprimir meu
grito.
—Agora estou assustada de verdade — murmurei. —Eu lhes disse que vi figuras
humanas sentadas em círculo — e tratei de procurar em seu rosto repúdio ou ironia,
antes de acrescentar: —É demasiado inaudito, mas quase juraria que essas rochas são
as pessoas que vi.
—Eu sei disso — falou em voz tão baixa que precisei me aproximar. —Tudo é

muito misterioso.
cemitérios Meutêm
indígenas amigo,
um que como
círculo ouvocê
umajá fila
teráde
notado, é índio,
pedras. Essasdisse quesão
pedras certos
os
emissários da morte — me observou com detenção, e depois, como para assegurar‐se
de minha total atenção, confessou: —Tome nota. São os emissários, não a
representação dos emissários.
Fixei minha vista no homem, não só porque não sabia bem como interpretar
suas palavras, e sim pelo fato de que esse rosto mudava à medida que ele falava e
sorria. Porém não eram os traços os que mudavam, era o rosto que um minuto era o
de um menino de seis anos, depois de um adolescente de dezessete, e também o de
um velho.
—São crenças estranhas — continuou, indiferente a meu olhar inquisidor. —Eu
não lhes dei maior crédito até o momento em que você apareceu de improviso,
quando
dizendo meu amigo me
que acabara de falava
vê‐los. dos emissários
Se eu da àmorte
fosse dado e justamente
suspeitas vem se
— e seu tom você nos
tornou
subitamente ameaçador — diria que você e ele estão confabulados.

51
—Não o conheço! — me defendi, a simples suspeita me indignava. Depois, em
voz baixa, para que só ele pudesse me escutar, acrescentei: —Para ser‐lhe franca, seu
amigo me dá medo.
— Se eu fosse dado à suspeitas — repetiu o jovem, ignorando minha
interrupção —, acreditaria que vocês dois estão tratando de assustar‐me. Mas sou
confiante, de modo que o único que posso fazer é suspender todo juízo e desejar saber
mais sobre você.
—Eu não quero que saiba nada de mim — disse com irritação — e de qualquer
jeito não sei de que merda você fala. — olhei‐o furiosa. Não simpatizava com seu
dilema, pois também ele me estava inspirando medo.
—Está falando de agradecer aos emissários da morte — disse o homem maior
que havia chegado onde eu estava, e me olhava de maneira estranha.
Desejosa de abandonar o lugar e a esses dois loucos, fiquei de pé e gritei meu
agradecimento. Minha voz rebateu no mato rasteiro, que parecia ter se convertido em
rocha, e a escutei até que o eco se extinguiu. Depois, como possuída, e fazendo algo
que meu bom juízo censuraria, gritei meu agradecimento uma e outra vez.
—Estou certo de que os emissários estão mais que satisfeitos — opinou o
jovem, golpeando minha panturrilha e deixando‐se cair ao chão para rir às
gargalhadas. Eu não duvidei por um instante que, apesar da leviandade de meu gesto,
havia de fato agradecido aos emissários da morte e, curiosamente, me sentia
protegida por eles.
—Quem são vocês? — perguntei, dirigindo‐me ao mais jovem dos dois homens.
Num salto ágil se pôs de pé.
—Eu sou José Luis Cortez, meus amigos me chamam Joe — e me estendeu a
mão —, e este aqui, é meu amigo Gumersindo Evans Pritchard.
Temendo soltar uma risada mordi os lábios e comecei a coçar o joelho.
—Há de ser uma pulga — disse‐lhes, olhando de um para outro. Ambos
devolveram meu olhar, desafiando‐me a zombar do nome, e tal era a seriedade de
suas expressões que meu riso se desvaneceu. Gumersindo Evans‐Pritchard pegou
minha mão e a sacudiu com vigor.

—Por um —Encantado
momentoempensei
conhecê
quela você
— disse
eraem perfeito
uma dessasinglês de classe alta
mulherzinhas britânica.
estúpidas e
presunçosas sem outra graça que não a boceta.
Em uníssono meus olhos e minha boca se dilataram. Apesar de intuir que suas
palavras mais continham um elogio que um insulto, meu choque foi tão intenso que
fiquei como paralisada, apesar de ser capaz de competir com quem fosse no uso de
linguajar sujo, mas a palavra boceta (coño) me soou tão espantosamente ofensiva que
fiquei privada da fala.
Joe veio em meu auxílio. Desculpou ao seu amigo com a explicação de que era
um iconoclasta social extremado, e antes de permitir‐me a oportunidade de dizer que
Gumersindo havia feito em pedacinhos meu sentido de decência e de boas maneiras,
acrescentou que a compulsão de Gumersindo a ser iconoclasta se devia a ser seu
sobrenome
—NãoEvans ‐Pritchard.
deveria surpreender a ninguém. Seu pai é um inglês que abandonou à
sua mãe, uma índia de Jalisco, antes de Gumersindo nascer.
—Evans‐Pritchard? — repeti cautelosamente, e depois perguntei a Gumersindo
se era correto permitir a Joe revelar a uma estranha seus segredos de família.

52
—Não há segredos de família — respondeu Joe por seu amigo — e sabe por
quê? — e fixou em mim seus olhos escuros e brilhantes, que não eram negros nem
castanhos, e sim da cor de cerejas maduras. Sacudi a cabeça em gesto de desamparo,
minha atenção presa ao seu olhar insistente, onde um olho parecia rir de mim,
enquanto o outro se mantinha sério, agourento e ameaçador.
—Porque o que você chama segredos de família constitui a fonte de energia de
Gumersindo. Sabia que seu pai é agora um famoso antropólogo inglês? Gumersindo o
odeia.
Com um gesto quase imperceptível de cabeça, como orgulhoso de seu ódio,
Gumersindo aprovou. Não podia acreditar em minha boa sorte. Estavam se referindo a
E. E. Evans‐Pritchard, um dos antropólogos sociais mais importantes do século XX, e
era precisamente nesse semestre na universidade que eu estava preparando um
trabalho sobre antropologia social, e sobre os mais eminentes investigadores nesse
campo.
Que sorte a minha! Precisei reprimir a tentação de gritar e saltar de alegria!
Descobrir semelhante segredo: um grande antropólogo que seduz e abandona a uma
mulher índia. Pouco importava que Evans‐Pritchard não tenha trabalhado no México
(era mais conhecido por suas investigações na África), pois estava certa de descobrir
que durante alguma de suas visitas aos Estados Unidos havia estado no México. Tinha
a prova diante de meus olhos.
Com um sorriso suave nos lábios contemplei a Gumersindo, e me fiz uma
secreta promessa de não revelar nada sem sua permissão. Bom, talvez eu dissesse algo
a algum dos professores: depois de tudo, uma pessoa não topava todos os dias com
este tipo de informação. As possibilidades giravam em minha mente. Talvez uma
conversa íntima com alguns estudantes selecionados na casa de um de meus
professores. Até selecionei o professor, alguém que não me caía muito bem, e que
tinha uma maneira um tanto infantil de querer impressionar a seus alunos. Nos
encontrávamos de tanto em tanto em sua casa, onde cada vez descobria sobre sua
escrivaninha, como deixada ao acaso, uma nota dirigida a ele pelo famoso antropólogo
Claude Lévi‐Strauss.

manga.—Não nos disse seu nome — recordou Joe, puxando me suavemente pela
—Carmen Gebauer — respondi sem titubear, dando o nome de uma amiga de
minha infância, e para abrandar minha culpa e incômodo por ter mentido, perguntei a
Joe se era da Argentina, e ao observar sua expressão confusa me apressei a
acrescentar que seu sotaque era definitivamente argentino, ainda que não parecesse
um argentino, completei.
—Sou mexicano — disse —, e julgando por seu sotaque, você foi criada em
Cuba ou na Venezuela.
Não quis seguir essa linha de conversação, de modo que mudei de assunto com
rapidez.
—Sabe como voltar ao caminho de pedestres? — perguntei, subitamente
consciente
—Eudenão
que meus amigos podiam
— confessou estar candura
Joe com preocupados por mim.
infantil —, mas meu amigo
Gumersindo Evans‐Pritchard sim.
Gumersindo nos guiou através do chaparral, por uma estreita trilha do outro
lado da montanha, e não demoramos muito em ouvir as vozes de meus amigos e ao

53
latido de seu cachorro. Experimentei um intenso alívio, mas ao mesmo tempo me
desiludiu e desagradou o fato de que nenhum dos dois mostrava‐se interessado em se
comunicar de novo comigo.
—Bom, é certo que voltaremos a nos ver — se despediu Joe
desinteressadamente, e Gumersindo Evans‐Pritchard me surpreendeu beijando
galantemente minha mão, e o fez de maneira tão natural e graciosa que não me
ocorreu rir.
—Está em seus genes — explicou Joe. —Apesar de ser só meio inglês, seu
refinamento é impecável. É um perfeito galã!
Sem mais delongas ambos desapareceram na névoa, e duvidei muito se os veria
de novo. De repente me senti muito culpada por haver mentido sobre meu nome, e
estive a ponto de correr atrás deles, mas o cachorro de meus amigos me derrubou no
chão ao tratar de saltar para lamber‐me a cara.

54
CAPÍTULO SEIS

Confusa, examinei ao orador convidado. Ajeitado em seu terno, recém


barbeado e com seu cabelo curto e enrolado, Joe Cortez parecia alguém de outra
época entre os estudantes de cabelo longo, barbudos, carregados de enfeites e
vestidos com negligência, que lotavam um dos grandes salões‐auditório da
Universidade da Califórnia, em Los Ângeles. Acomodei‐me no assento vazio da última
fila, que me havia reservado a amiga com quem fiz o passeio pelas montanhas de
Santa Susana.
—Quem é? — perguntei.
Minha amiga sacudiu a cabeça, impaciente e incrédula, e rabiscou Carlos
Castaneda num pedaço de papel.
—E quem diabos é Carlos Castaneda?
—Te dei seu livro — respondeu, e depois acrescentou que era um antropólogo
muito conhecido, que havia levado à cabo extensas investigações no México.
Estava a ponto de confiar à minha amiga que o orador era a mesma pessoa que
conheci nas montanhas no dia em que me perdi, mas por uma razão muito boa não o
fiz. Esse homem era responsável pela quase ruptura de nossa amizade, a qual eu
valorizava sobremaneira. Minha amiga insistia obstinadamente em catalogar a história
do filho de Evans‐Pritchard como uma conversa fiada. Eu insistia que nenhum dos dois
homens ganharia nada em mentir. Sabia que de maneira ingênua haviam dito a
verdade, porém minha amiga, indignada, me rotulou de tonta e de crédula. Já que
nenhuma das duas estava disposta a ceder, a discussão se fez agitada, e o marido de
minha amiga, numa tentativa para acalmar‐nos, havia sugerido que talvez eu dizia a
verdade, e minha amiga, irritada ante essa falta de solidariedade, lhe havia ordenado
aos gritos que se calasse.
Fizemos a viagem de regresso num silêncio hostil, a amizade sob tensão, e
precisamos de duas semanas para restabelecer a cordialidade. Entretanto eu fiz
averiguações entre várias pessoas a respeito do filho de Evans‐Pritchard, pessoas mais
versadas em antropólogos e antropologia que minha amiga e eu, e folga dizer que me

fizeram cair
conhecia como uma
a verdade. idiota. Obstinada,
Me haviam criado parapersisti em minha
ser prática: versão
se alguém de que
mentia, só ser
devia eu
para obter uma vantagem de outro modo inalcançável, e não chegava a entrever quê
vantagem pretendiam obter esses homens com a sua.
Prestei pouca atenção à conferência de Carlos Castaneda, demasiado absorta
em tratar de sondar sua razão para mentir‐me sobre seu nome. Dada minha tendência
a deduzir os motivos alheios a partir de uma simples dedução ou observação, se
mostrava muito problemático neste caso dar com uma pista satisfatória, mas depois
lembrei que também eu havia dado um nome falso, e não podia explicar‐me a razão.
Após uma longa deliberação mental decidi que havia mentido porque
automaticamente não havia confiado nele. Eu o achei demasiado seguro de si mesmo,
demasiado presunçoso para inspirar‐me confiança. Minha mãe me havia ensinado a
desconfiar
dizer que osdos homens
machos latinos,
latinos eramemcomo
especial se não
os galos dese mostravam
rinha, humildes.
interessados Costumava
unicamente em
brigar, comer e fazer amor, nessa ordem, e suponho que acreditei nela sem prestar
atenção ao assunto.

55
Por fim olhei para Carlos Castaneda. Suas palavras não tinham para mim nem
pé nem cabeça, mas me fascinaram seus movimentos. Parecia falar com todo o corpo,
e suas palavras, mais que sair de sua boca, davam a impressão de surgir de suas mãos,
as quais movia com a graça e a habilidade de um mágico. Procurei‐o ao terminar a
conferência. Rodeado por estudantes, se mostrava tão solícito e amável com as
mulheres que automaticamente o depreciei.
—Me mentiu acerca de seu nome, Joe Cortez — disse‐lhe em castelhano,
apontando‐lhe um dedo acusador.
Segurando o estômago com as mãos, como se houvesse recebido um golpe, me
olhou com a mesma expressão vacilante e incrédula que mostrou quando pela
primeira vez nos vimos na montanha.
—Também é mentira que seu amigo Gumersindo é filho de Evans‐Pritchard,
não é? — emendei antes que conseguisse repor‐se de sua surpresa.
Com um gesto de súplica me pediu para não continuar, mas não parecia em
absoluto envergonhado. Havia em seus olhos tal olhar de surpresa que minha ira
justificada se desvaneceu. Com suavidade me pegou por uma mão, como se temendo
que o abandonasse. Quando terminou com os estudantes me conduziu em silêncio até
um banco afastado, sombreado por um gigantesco pinheiro.
—Tudo isto é tão surpreendente que me deixou sem fala — disse em inglês ao
sentarmos, olhando‐me como se ainda não pudesse crer que me tinha sentada ao seu
lado. —Não pensei que lhe encontraria de novo — disse em tom meditativo. —Depois
que você se foi, meu amigo, cujo nome em tudo isto é Nestor, e eu falamos muito de
você, e chegamos à conclusão de que era uma semi‐aparição. — Mudou de repente ao
espanhol e confessou que inclusive haviam regressado ao lugar onde me deixaram na
esperança de encontrar‐me.
—Por que queria encontrar‐me? — perguntei em inglês (confiada em que
responderia nesse idioma) que o havia feito porque gostava de mim.
Em castelhano não há modo de dizer que uma pessoa simplesmente “gosta” de
outra, a resposta precisa ser mais enfeitada e ao mesmo tempo mais precisa. Em
castelhano uma pessoa pode arriscar um manso me caes bien, ou despertar paixão

total com
Parecia medebatendo
estar gustas. Minha inocente
consigo pergunta
entre falar ou não.oPor
mergulhou
fim disse num
que olongo silêncio.
encontrar ‐me
na névoa naquela tarde o havia transtornado, e seu rosto revelava isso ao dizê‐lo,
assim como sua voz, quando acrescentou que me encontrar na sala de conferências
havia representado a culminação.
—Por quê? — perguntei, aguçada em minha vaidade, mas de imediato lamentei
de ter perguntado, pois estava convencida de que confessaria estar perdidamente
apaixonado de mim, e isso me perturbaria por não saber o que responder.
—É uma longa história — respondeu, ainda pensativo. Fez um trejeito com a
boca. Parecia estar falando sozinho, ensaiando a próxima coisa a dizer.
Eu reconhecia os sinais do sujeito a ponto de proferir:
—Não li nada seu — disse, visando desviar do tema. —O que você faz?
—Escrevi
—Que tipoum
depar de livrosVudú,
feitiçaria? sobreespiritualismo
a feitiçaria. ou o que?
—Sabe algo sobre feitiçaria? — perguntou, com uma nota de expectativa na
voz.

56
—É claro… cresci com ela. Passei bastante tempo na região costeira da
Venezuela, área famosa por seus feiticeiros. Eu passava a maior parte de meus verões
com uma família de bruxos.
—Bruxos?
—Sim — respondi, contente com sua reação. —Eu tinha uma babá que era
bruxa, uma negra de Puerto Cabello que me cuidou até a adolescência. Meus dois pais
trabalhavam, e quando eu era menina me deixavam aos seus cuidados. Ela me
manejava melhor que a qualquer um dos dois, me deixava fazer o que queria. Meus
pais, naturalmente, deixavam que ela me levasse por onde desejasse, e durante as
férias escolares ela me levava para visitar sua família, não sua família biológica e sim
sua família de bruxos. Não me permitiam participar de seus rituais nem sessões de
transe, contudo ainda assim consegui ver bastante.
Joe me olhou com curiosidade, como se não me acreditasse. Depois perguntou
sorridente:
—O que é que fazia dela uma bruxa?
—Todo tipo de coisas. Matava galinhas e as oferecia aos deuses em troca de
favores. Ela e seus companheiros bruxos, homens e mulheres, dançavam até cair em
transe, e ela recitava encantações secretas que tinham o poder de curar a seus amigos
e de fazer danos a seus inimigos. Sua especialidade eram as poções de amor. As
preparava com todo tipo de plantas medicinais e resíduos humanos, como sangue
menstrual, restos de unhas e cabelo, em especial pelos púbicos. Confeccionava
amuletos de boa sorte para o jogo e para as coisas de amor.
—E seus pais permitiam isso?
—Em casa ninguém sabia disso, exceto é claro minha babá, seus clientes e eu.
Fazia visitas a domicílio como qualquer médico, mas em casa se limitava a acender
velas no toalete dos fundos quando eu tinha pesadelos, e dado que parecia surtir
efeito e não havia perigo de incêndio, por causa dos azulejos, minha mãe lhe concedia
ampla liberdade para fazê‐lo.
Subitamente Joe ficou de pé e começou a rir.
—O que tem de engraçado? — pensei que talvez suspeitasse que eu o havia

inventado. —Teafirma
—Você asseguro
algoque é verdade.
e, enquanto lhe diz respeito, isso se converte em verdade —
e a expressão de seu rosto era serena.
—Mas é verdade — insisti, certa de que se referia à minha babá.
—Eu vejo através das pessoas — assegurou com calma. —Por exemplo, vejo
que está convencida de que lhe vou declarar meu amor. Se convenceu disso e isso
agora é a verdade. É disso que falo.
Desejei dizer algo, mas a indignação me deixou sem ar. Gostaria de ter fugido,
mas acabaria sendo muito humilhante. Franziu o cenho, e tive a desagradável
impressão de que conhecia meus sentimentos. Enrubesci, e tremi com reprimida ira.
Contudo, em pouco tempo, me senti extraordinariamente calma, ainda que não
devido a um esforço consciente de minha parte. No entanto tive a clara sensação de
que
umaalgo em mimsemelhante,
experiência havia mudado, e a que
ainda vagaminha
reminiscência
memóriade ter atravessado
falhasse alguma vez
tão logo entrava em
ação.
—O que está me fazendo? — murmurei.

57
—Se dá o caso de que posso ver através das pessoas. Não sempre, e por certo
não com todas, somente com aquelas com as quais estou intimamente ligado. Não
entendo por que acontece contigo.
Sua sinceridade era evidente. Parecia muito mais confundido que eu. Sentou‐se
de novo e se aproximou de mim. Permanecemos um período em total silêncio, e foi
uma experiência prazerosa o poder abandonar todo esforço por conversar, e não
sentir que eu era estúpida. Olhei o céu, limpo de nuvens e transparente como vidro
azul. Uma suave brisa soprava entre os pinheiros, e suas agulhas caiam sobre nós
como uma chuva mansa. Depois a brisa se tornou vento, e as folhas caídas de um
sicômoro próximo se enredemoinharam ao redor com um som suave e rítmico, e em
uma de suas rajadas o vento as elevou até as alturas.
—Essa foi uma bonita demonstração do espírito — murmurou — e foi para
você: as folhas girando ao vento bem diante de nós. O feiticeiro com quem trabalho
diria que esse é um presságio. Algo lhe assinalou, para que eu te visse no exato
momento em que pensava que seria melhor que me fosse embora. Agora não posso
fazê‐lo.
Pensando em nada mais que em suas últimas palavras me senti
inexplicavelmente feliz. Não uma felicidade triunfalista, do tipo que sentimos quando
nos sorri um êxito, ou melhor, era uma sensação de profundo bem‐estar que não
perdurou. Meu ser impulsivo tomou conta de súbito e exigiu que me desfizesse desses
pensamentos e sentimentos. Eu não tinha por que estar ali. Havia faltado a uma aula,
ao almoço com meus verdadeiros amigos e à minha diária cota de natação no ginásio
feminino.
—Talvez seja melhor que eu me vá — disse. A intenção foi de aparentar alívio,
mas quando a anunciei soou como se sentisse pena de mim mesma, o qual, de certo
modo, era verdade. Em lugar de ir‐me lhe perguntei da maneira mais casual possível se
sempre havia podido ver através das pessoas.
—Não, não sempre — e seu tom carinhoso denunciou com clareza que
percebia minha inquietude interna. —O velho feiticeiro com quem trabalho o ensinou‐
me recentemente.

—Acha acho
—Sim, que ele
quepoderia ensiná
sim. Se lo apor
sentir mim?
ti o mesmo que eu sinto, ele fará — e
pareceu assombrado por suas próprias palavras.
—Conhecia algo de feitiçaria antes? — perguntei com timidez, emergindo com
lentidão de minha inquietação.
—Na América Latina todos acreditam saber, e eu não era exceção. Nesse
sentido você me faz lembrar a mim mesmo. Como você, estava convencido de que
sabia o que era a feitiçaria, mas depois, quando a conheci de verdade, não era como
eu a havia concebido.
—Como era?
—Simples, tão simples que assusta — confessou. —Acreditamos que a feitiçaria
assusta por sua malignidade, mas a que eu descobri não tem nada de maligno, e por
isso é oEu
mais pavoroso que
o interrompi existe.
para assinalar que sem dúvida estava se referindo à magia
branca, em contraposição à magia negra.
—Não diga bobagens, caralho!

58
O choque de escutá‐lo falar‐me nesse tom me obrigou a respirar pela boca. De
imediato renasceu minha inquietação. Ele desviou o olhar para evitar o meu. Havia se
permitido gritar comigo, e me enfureci ao ponto de achar que me descomporia. Me
arderam as orelhas, e vi pontos negros ante meus olhos. Eu o teria pegado se não
tivesse se posto fora de meu alcance num rápido movimento.
—É muito indisciplinada — opinou ao sentar‐se de novo — e bastante violenta.
Sua babá deve de ter permitido muito a você, e te tratado como se você fosse de vidro
— mas ao notar meu rosto aborrecido, explicou que não me havia gritado por sentir
impaciência ou raiva. —Pessoalmente não me importa se presta atenção ou não, mas
importa a aquele em cujo nome gritei com você. Alguém que nos está observando.
No começo senti perplexidade, depois inquietude. Olhei em torno de nós,
pensando que talvez seu mestre feiticeiro fosse quem nos observava. Me ignorou e
prosseguiu:
—Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o
fez porque não o sabia, como você tampouco o sabe.
—De que bobagens está falando? — e minha voz irritada refletia meus
sentimentos do momento. Me havia gritado, me havia insultado, e me incomodava
que estivesse conversando como se nada tivesse acontecido. Se ele achava que sua
conduta ia passar por alto uma surpresa lhe esperava.
—Não se sairá com essa… — disse‐lhe, sorrindo com malícia. —Não comigo,
menininho.
—Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença que não é
força, entidade nem presença — explicou com um sorriso angelical. Parecia totalmente
indiferente a meu estado de ânimo belicoso. —Te parecerá conversa mole mas não o
é. Refiro‐me a algo que unicamente os feiticeiros conhecem. Chamam‐no o espírito,
nosso observador pessoal, nossa testemunha permanente.
Não sei exatamente como, ou qual palavra exata fez o prodígio, mas de repente
ele teve toda a minha atenção. Prosseguiu falando dessa força que, segundo ele, não
era Deus, nem tinha nada que ver com a religião ou a moral, e sim uma força
impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos

nos agradou
me reduzir aseu
nada. Inclusive
toque suave me pegou
e forte. pela
Senti mão,
‐me o qual não me
morbidamente desagradou.
fascinada Melhor,
pelo estranho
poder que exercia sobre mim, e me horrorizava comprovar que ansiava sentar‐me
indefinidamente com ele nesse banco, com minha mão unida à sua.
Continuou falando, eu pendente de cada uma de suas palavras, mas ao mesmo
tempo perversamente intrigada a respeito de quando me ia tocar as pernas. Sabia que
somente a mão não lhe havia de satisfazer, e que eu nada podia fazer para impedi‐lo.
Ou era eu que não desejava fazer nada para impedi‐lo? Explicou que ele havia sido tão
negligente e indisciplinado mais do que tudo, porém que nunca conheceu a diferença
por estar aprisionado pela modalidade do tempo.
—E o que é a modalidade do tempo? — perguntei com tom áspero e
inamistoso, destinado a não fazer‐lhe saber que desfrutava por estar em sua
companhia.
—Em nossos dias, o que os feiticeiros chamam a modalidade do tempo é a
preocupação da classe média. Eu sou homem da classe média, assim como você é
mulher da classe média...

59
—Enquadramentos desse tipo não têm validez — interrompi com rudeza, ao
mesmo tempo em que arrancava minha mão da sua. —Não são mais que
generalidades — lancei‐lhe um olhar, furiosa e desconfiada.
Havia algo chamativamente familiar em suas palavras, mas não pude precisar
de onde as havia escutado, ou qual importância eu estava lhes concedendo, contudo
estava certa de sua vital importância se pudesse apenas recordar o sabido por mim
acerca delas.
—Não me venha com essas asneiras científico‐sociais. — disse jovialmente. —
Conheço‐as tanto como você.
Cedi a um momento de total frustração, peguei sua mão e a mordi.
—Na verdade sinto muito — murmurei antes que ele conseguisse se repor de
sua surpresa. —Não sei por que fiz isso. Não mordia a ninguém desde que era menina
— e escorri até o extremo do banco à espera de sua retaliação, que não chegou.
—É completamente primitiva — foi tudo o que disse, esfregando a mão com
um ar como confundido.
Emiti um profundo suspiro de alívio. Havia se quebrado o poder que exercia
sobre mim, e lembrei ter uma velha dívida a cobrar. Ele me havia transformado na
“faz‐me‐rir” de minhas colegas de antropologia.
—Regressemos ao problema srcinal — disse, procurando abafar minha raiva.
—Por que me contou todas essas besteiras acerca do filho de Evans‐Pritchard? Você
deve ter se dado conta de que eu cairia como uma tonta. — observei‐o com cuidado,
certa de que, ao confrontá‐lo desta maneira, e depois da mordida, terminaria por
quebrar seu autocontrole, ou pelo menos incomodá‐lo. Esperei que gritasse, que
perdesse sua confiança e insolência, mas permaneceu imperturbável. Suspirou fundo e
adotou uma expressão séria.
—Sei que parece um simples caso de alguém que mente por diversão, porém a
coisa é mais complexa — e riu disfarçado antes de recordar‐me que naquele momento
ele desconhecia minha condição de estudante de antropologia, e de que eu terminaria
fazendo um papelão. Fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras
adequadas, depois encenou um impotente encolhimento de ombros e acrescentou: —

Verdadeiramente
como não
filho de Evans posso explicar
‐Pritchard, a menoslhe que
agora
te por
conteque apresentei
muito ao meu
mais acerca amigoe
de mim
minhas metas, e isso não é algo prático.
—Por quê?
—Porque quanto mais saiba de mim, mais te complicará — e seus olhos me
demonstravam sua sinceridade —, e não me refiro a uma confusão mental, e sim a
algo pessoal comigo.
Esta aberta demonstração de descaramento me devolveu a confiança.
Desenterrei o meu já testado sorriso sarcástico, e falei num tom cortante:
—É repugnante, e conheço seu tipo. É o exemplo típico do macho latino
confesso, contra o qual tenho lutado toda minha vida — e ao ver sua expressão
surpreendida, insisti, dando livre vazão a toda minha soberba: —Como se atreve a
pensar Seu
que posso
rostochegar envolver‐me contigo?
não aenrubesceu como eu esperava. Em lugar disso riu
estrepitosamente, golpeando‐me o joelho como se o dito por mim houvesse sido o
mais cômico que escutou em sua vida e, para completar, começou a fazer‐me

60
cosquinhas do mesmo modo em que se faz a uma criança. Temendo rir‐me (as
cosquinhas me afetavam muito), gritei minha indignação.
—Como se atreve a me tocar! — e tremendo me pus de pé para retirar‐me,
mas em seguida assombrei a mim mesma recuperando meu assento. Vendo que
pretendia continuar com as cosquinhas, cerrei os punhos e os esgrimi ante seus olhos.
—Vou quebrar seu nariz se me tocar de novo — adverti.
Por completo indiferente à minha ameaça, reclinou a cabeça contra o encosto
do banco e fechou os olhos. Espasmos de riso o faziam sacudir.
—Você é a típica menina alemã que cresceu rodeada por negrinhos.
—Como sabe que sou alemã se nunca lhe disse isso? — perguntei com voz
insegura, à qual tentei dar uma inflexão levemente ameaçante.
—Sabia que era alemã desde o instante em que te conheci. Você o confirmou
no momento em que mentiu que era sueca. Unicamente alemães nascidos no Novo
Mundo depois da Segunda Guerra Mundial mentem assim. Isso, é claro, se vivem nos
Estados Unidos.
Apesar de que não se admitiria isso, ele tinha razão. Com frequência havia
sentido a hostilidade daqueles que se interavam de que meus pais eram alemães: para
eles isso nos fazia automaticamente nazistas, e de nada adiantava se lhes dizia que
meus pais eram idealistas. Logicamente preciso admitir que, como bons alemães, se
achavam superiores, mas eram boas pessoas, sendo que toda sua vida foi apolítica.
—Eu não fiz nada além que concordar contigo — disse acidamente. —Você viu
cabelo loiro, olhos azuis, pômulos altos, e só pôde pensar em uma sueca. Não tem
muita imaginação, sabia? — aproveitei minha vantagem para dizer‐lhe que ele não
tinha nenhum direito de mentir. —A menos que seja um mentiroso de merda por
natureza — e à medida que falava minha voz se fazia estridente contra minha vontade.
Terminei dando‐lhe uns golpezinhos no peito com meu dedo indicador: —Joe Cortez
então, hein?
—E seu nome é Cristina Gerbauer? — retrucou, imitando minha voz alta e
odiosa.
—Carmen Gebauer! — gritei, ofendida porque não o havia recordado

completamente.
mas ao fim de unsDepois,
minutosarrependida
me detive,de meu estouro,
consciente tentei
de não estaruma caótica
falando comautodefesa,
coerência.
Admiti ser alemã, e que Carmen Gebauer era o nome de uma amiga de infância.
—Eu gosto disso — comentou com um sorriso apenas esboçado, mas não pude
estabelecer se se referia às minhas mentiras ou à minha confissão. Em seus olhos
brilhava uma luz entre bondosa e divertida, e com doçura passou a me contar a
história de sua amiga de infância, Fabiola Kunze.
Porque me confundiu sua reação desviei a vista até o sicômoro próximo e aos
mais distantes pinheiros. Depois, ansiosa por ocultar meu interesse em seu relato,
comecei a brincar com minhas unhas, com a cutícula e o esmalte, que eu descascava
de forma metódica.
A história de Fabiola Kunze se assemelhava tanto à minha que em poucos
minutos
era pura esqueci minha
invenção, pretensa
apesar do qualindiferença para
precisei lhe darescutá‐la com
crédito atenção.
por certos Supus que
detalhes que
unicamente a filha de uma família alemã do Novo Mundo podia conhecer.
Segundo a história Fabiola Kunze vivia num mortal temor dos morenos garotos
latinos, mas igualmente temia aos alemães; aos latinos por sua irresponsabilidade, e

61
aos alemães por ser tão previsíveis. Soltei uma risada quando descreveu cenas
ocorridas aos domingos de tarde na casa de Fabiola, quando duas dezenas de alemães
se reuniam ao redor de uma mesa esquisitamente posta, com a melhor louça, prataria
e cristaleria, e ela precisava escutar duas dezenas de monólogos que pretendiam ser
conversas.
À medida que Joe proporcionava detalhes dessas tardes de domingo comecei a
sentir‐me mais e mais incomodada: ali estava o pai de Fabiola, que proibia os debates
políticos em sua casa mas compulsivamente intentava dar pé a eles, ao buscar por
meios tortuosos contar piadas obscenas a respeito dos sacerdotes católicos, e o medo
mortal da mãe: que sua louça fina estivesse nas mãos desses caipiras imorais.
As palavras de Joe Cortez eram guias às quais eu respondia inconscientemente;
comecei a ver cenas de minhas tardes dominicais projetadas sobre a parede. Me
converti num feixe de nervos, senti desejo de chutar e de me descontrolar como só eu
sabia fazê‐lo. Desejava odiar a esse homem, mas não podia. Necessitava ser justiçada,
receber desculpas. Queria dominá‐lo, que se enamorasse por mim para poder rejeitá‐
lo. Envergonhada de meus sentimentos imaturos procurei, mediante um grande
esforço, reagir, e pretextando aborrecimento me aproximei dele para perguntar:
—Por que mentiu a respeito de seu nome?
—Não menti — respondeu. —Esse é meu nome, tenho vários. Os feiticeiros
têm nomes diferentes para ocasiões diferentes.
—Que conveniente! — comentei com sarcasmo.
—Muito conveniente — repetiu, e me piscou o olho, atitude que me enfureceu.
Logo depois fez algo insólito e inesperado. Me abraçou, sem que esse abraço
encerrasse conotações sexuais. Foi um espontâneo, doce e simples gesto de um
menino que deseja consolar a um amigo, e me tranquilizou ao ponto de me fazer
soluçar de maneira incontrolável.
—Sou uma merda — confessei. —Quero agredir você e olhe‐me: estou em seus
braços — e estava a ponto de acrescentar que isso me agradava, quando me invadiu
uma corrente de energia, e como se saísse de um sonho, o afastei. —Deixe‐me! —
gritei, e me afastei a grandes trancos.

Escutei
se dissipado meuqueataque.
o riso oFiquei
afogava, o qual não
paralisada, me preocupou
tremendo em absoluto,
e incapacitada por já‐me.
para afastar ter
Então, como se respondesse a uma banda elástica aderida a meu corpo, regressei ao
banco.
—Não se sinta mal — disse com bondade. Parecia saber muito bem o que me
arrastara de novo ao banco. Espalmou minhas costas tal como se faz com um bebê
depois de ter comido. —Não é o que você e eu fazemos — continuou. —É algo fora de
nós que nos está influenciando. Está influenciando a mim desde há muito tempo e me
acostumei a ele, mas não entendo por que atua sobre você. Não me pergunte de quê
se trata — disse, antecipando‐se à minha pergunta. —Ainda não o posso explicá‐lo.
De todo modo não pretendia perguntar‐lhe nada. Minha mente havia deixado
de funcionar, me sentia como dormida, sonhando que falava. Momentos depois meu
adormecimento
senti muito mais cedeu, e apesar de não haver regressado ao que era meu normal, me
animada.
—O que me está acontecendo? — perguntei.

62
—Está sendo enfocada por algo que não emana de ti. Algo te está empurrando,
usando‐me a mim como instrumento. Algo está sobrepondo outro critério sobre suas
convicções de classe média.
—Não comece com essa bobagem de classe média — protestei debilmente.
Senti como se o estivesse suplicando isso.
Apresentei um sorriso desamparado, pensando que havia perdido minha usual
impulsividade.
—Lembre‐se que estas não são minhas próprias idéias ou opiniões — disse. —
Como você, sou produto de uma ideologia de classe média. Imagine meu horror
quando precisei enfrentar‐me com uma ideologia diferente e mais avassaladora. Me
fez em pedaços.
—Que ideologia é essa? — perguntei humildemente, minha voz tão fraca que
apenas escutava‐se.
—Um homem a trouxe‐me, ou melhor, o espírito falou e me influenciou através
dele. Esse homem é um feiticeiro, sobre quem tenho escrito. Se chama Juan Matus, e é
quem me fez enfrentar minha mentalidade de classe média.
—Juan Matus certa vez me fez uma pergunta importante: “O que você acha
que é uma universidade?”. Eu, evidentemente, lhe respondi como um cientista social:
“um centro de estudos superiores”. Ele me corrigiu, dizendo que uma universidade
deveria chamar‐se “um Instituto de Classe Média”, pois é o lugar ao qual
comparecemos para aperfeiçoar nossos valores de classe média. Disse que
comparecemos a esses institutos para nos convertermos em profissionais. A ideologia
de nossa classe social nos diz que devemos nos preparar para ocupar posições
gerenciais, que ali vamos para nos tornarmos engenheiros, advogados, médicos,
etecétera, e as mulheres para conseguir um marido adequado, provedor e pai de seus
filhos. Adequado é logicamente definido pelos valores da “classe média”.
Desejava contradizê‐lo, gritar‐lhe que conhecia gente à qual não os interessava
uma carreira ou encontrar marido; que conhecia gente interessada em idéias, no
conhecimento em si. Mas não conhecia a tais pessoas. Senti uma terrível pressão no
peito, e tive um acesso de tosse seca. Não foram a tosse nem o mal estar físico os que

me fizeram
que retorcer
se referia a mim:no
euassento e impediram
ia à Universidade paraque discutisse
encontrar um com ele.adequado.
homem Era a certeza de
De novo me pus de pé, disposta a partir. Inclusive estendi minha mão para
despedir‐me, quando senti um poderoso puxão em minhas costas, tão forte que
precisei sentar‐me para não cair. Sabia que ele não me havia tocado. Estive
observando‐o todo o tempo. Memórias de pessoas não de todo recordadas, de sonhos
não esquecidos, inundaram minha mente e formaram uma intrincada trama da qual
não podia desembaraçar‐me. Rostos desconhecidos, orações semi‐escutadas, imagens
escuras e borradas de lugares e pessoas me remeteram momentaneamente a uma
espécie de limbo. Estive próxima de recordar algo deste caleidoscópio de sons e
visualizações, mas o conhecimento se desvaneceu, dominando‐me uma sensação de
calma e alívio, uma tranquilidade tão profunda que eliminou todo desejo de afirmar‐
me. Estiquei as pernas ante mim como se não tivesse uma só preocupação no
mundo (e nesse momento não tinha) e comecei a falar. Não lembro de tê‐lo feito com
tanta franqueza anteriormente, e não podia descobrir por que de repente baixei
minhas defesas ante ele. Contei‐lhe da Venezuela, de meus pais, minha juventude,

63
minha vida inquieta e sem significado. Contei‐lhe coisas que não admitiria a mim
mesma.
—Venho estudando antropologia desde o ano passado, e na verdade não
entendo por quê. — começava a sentir‐me levemente incômoda ante minhas próprias
revelações. Me movi inquieta no banco, mas não pude deixar de acrescentar: —As
duas matérias que mais me interessam são a literatura castelhana e a alemã, e estar
em antropologia desafia tudo o que sei acerca de mim mesma.
—Isso me intriga sobremaneira — opinou. —Não posso pensar nisso agora,
mas me parece que fui posto aqui para que você me encontrasse, ou vice‐versa.
—Que significa tudo isto? — perguntei, e fiquei corada ao me dar conta de que
estava centrando e interpretando tudo em torno de minha feminilidade.
Ele parecia estar completamente a par de meu estado mental. Pegou minha
mão e a apertou contra o coração. “¡Me gustas, Nibelunga!”, exclamou
dramaticamente, e depois traduziu a frase ao inglês. “Você me atrai de maneira
apaixonada, Nibelunga”.
Fez a paródia de me devorar com os olhos, ao estilo amante latino, e depois
soltou uma gargalhada.
— Está convencida de que cedo ou tarde preciso dizer isto, de modo que bem
podia ser agora.
Em lugar de irritar‐me por ser alvo de seu humor, ri; seu humor me agradava
muito… os únicos Nibelungos que conhecia eram provenientes do livro de meu pai
sobre mitologia alemã; Siegfrid e suas Nibelungen. Até onde podia me lembrar se
tratava de seres subterrâneos, mágicos e anões.
—Está me chamando de anã? — perguntei em tom de gracejo.
—Que Deus não o permita! — protestou —, te estou comparando com um ser
mitológico alemão.
Mais tarde, como se fosse a única coisa que podíamos fazer, fomos de carro até
as montanhas de Santa Susana, ao lugar onde nos havíamos conhecido. Nenhum dos
dois pronunciou palavra alguma quando estivemos sentados no penhasco sobre o
cemitério indígena. Movidos por um puro impulso de companheirismo ficamos em

silêncio, indiferentes à tarde que se convertia em noite.

64
CAPÍTULO SETE

Joe Cortez estacionou seu carro aos pés de uma baixada. Abriu minha porta, e
com um gesto galante me ajudou a descer. Senti alívio por ter ao fim detido nossa
marcha, ainda que não saberia dizer por que. Estávamos no meio do nada, depois de
haver viajado desde as primeiras horas da manhã. O calor, o deserto chato, o sol
inclemente e a poeira do caminho se tornaram uma vaga memória quando respirei o
ar frio e pesado da noite.
Agitado por esse vento o ar se enredemoinhava em torno de nós como algo
palpável, vivo. Não havia lua, e as estrelas, incríveis em número e em brilho, pareciam
intensificar nosso isolamento. Sob o inquieto resplendor os montes e o deserto se
estendiam ao redor, quase invisíveis, cheios de sombras e sons murmurados. Procurei
orientar‐me pelas estrelas, mas não soube identificar as constelações.
—Estamos de frente ao leste — sussurrou Joe Cortez, como se eu houvesse
falado em voz alta, e com paciência tentou me instruir a respeito das constelações
maiores desse céu de verão. Eu só recordava da estrela Vega, pois seu nome me trazia
à memória o escritor espanhol do século XVII, Lope de Vega.
Sentados ali, em silêncio, sobre sua perua, passei em revista aos
acontecimentos de nossa viagem. Não se haviam ainda completado as vinte e quatro
horas desde que, enquanto comíamos num restaurante japonês de Los Ângeles, ele
me pedira, sem preâmbulo algum, que o acompanhasse à Sonora por uns dias.
—Me encantaria — respondi impulsivamente. —Minhas aulas terminaram e
estou livre. Quando planeja partir?
—Esta noite! — respondeu. —Na verdade, assim que terminarmos de comer.
Tive que rir. Estava certa de que esse convite não passava de um gracejo.
—Não posso partir com tão pouco pré‐aviso. O que você acha de amanhã?
—Esta noite — insistiu, e estendeu sua mão para segurar a minha num apertão
formal. Somente ao ver o brilho travesso e alegre de seus olhos me dei conta de que
não estava se despedindo, e sim que selava um acordo.
—Quando se toma uma decisão se deve agir de imediato — anunciou, e as

palavras pudéssemos
verdade ficaram flutuando no arsua
adivinhar diante
formadeemeus olhos. Ambos as olhamos como se na
seu tamanho.
Concordei, apenas consciente de haver tomado uma decisão. A oportunidade
estava ali, independente de minha vontade, pronta e inevitável. Nada precisei fazer
para que se materializasse. De repente, com uma intensidade demolidora, lembrei
minha viagem do ano anterior à Sonora, e meu corpo se endureceu, comovido e
temeroso, à medida que imagens descontínuas em sequência ganhavam vida em meu
interior. Os acontecimentos daquela viagem rara haviam se esfumaçado de minha
consciência a tal ponto que, até momentos antes, era como se nunca tivessem
ocorrido, mas agora adquiriam uma claridade idêntica à que tiveram no momento em
que aconteceram.
Tremia, não de frio, mas sim por um medo indefinível, e encarei Joe Cortez para
falar‐lhe edessa
escuros profundos, Olhava‐me com
viagem.absorveram meu rara intensidade,
espanto e seus
e fizeram olhos, como
retroceder túneis
as imagens
temidas, as quais, uma vez perdido seu impulso, deixaram minha mente em branco.
Nesse momento acreditei, fiel à minha maneira de pensar, que nada poderia contar‐
lhe, pois uma verdadeira aventura sempre dita sua própria direção, e os eventos mais

65
emocionantes de minha vida haviam sido sempre aqueles em cujo curso não me havia
interposto.
—Como quer que te chame, Joe Cortez ou Carlos Castaneda? — perguntei‐lhe
com desagradável jovialidade feminina. Seu rosto avermelhado se desdobrou num
sorriso.
—Sou seu companheiro de infância — respondeu. —Dê‐me um nome. Eu te
chamarei Nibelunga.
Ao não acertar com um nome adequado, perguntei‐lhe:
—Existe uma ordem em seus nomes?
—Bom, Joe Cortez é cozinheiro, jardineiro e “faz‐tudo”, um homem solícito e
pensativo. Carlos Castaneda é homem do mundo acadêmico, mas não creio que o
tenha conhecido ainda. — olhou‐me fixo e sorriu, e esse sorriso levava implícito algo
infantil e intensamente sincero.
Decidi chamá‐lo Joe Cortéz.
Passamos a noite (em quartos separados) num motel de Yuma, Arizona. Depois
de sair de Los Ângeles, e através de uma longa viagem, me preocupei muito no que
dizia respeito a onde e como dormiríamos. Por momentos temi que tentaria algo antes
que chegássemos ao motel. Afinal, era um homem jovem e forte, agressivo e muito
seguro de si mesmo. Não me haveria preocupado tanto se ele fosse europeu ou norte‐
americano, mas por ser latino eu sabia quais eram suas intenções. O fato de aceitar
seu convite de passar juntos uns dias significava que aceitava compartilhar sua cama.
Sua preocupação e bom comportamento durante a viagem se encaixavam
perfeitamente com o que eu pensava e esperava dele. Preparava o terreno. Era tarde
quando chegamos ao motel. Ele se dirigiu ao escritório do gerente para reservar
quartos. Eu permaneci no carro, imaginando obscuras cenas. Tão absorta estive com
minhas fantasias que não percebi seu retorno, e ao escutar o tilintar das chaves, que
ele fazia dançar ante meus olhos, me sobressaltei, deixando cair a sacola de papel que
continha meus artigos de toalete, comprados no caminho, que eu inconscientemente
apertava contra o peito.
—Te consegui um quarto na parte traseira do motel — anunciou. —Está longe

da estrada
neste, — da
perto indicou
rua. uma porta
Estou situada próxima,
acostumado antes Eram
aos ruídos. de acrescentar:
os únicos—Eu dormirei
quartos que
sobraram.
Desiludida, tomei a chave que me estendia. Todas minhas visões se
evaporaram. Já não teria a oportunidade de rechaçá‐lo, o qual na verdade não
desejava, mas minha alma clamava por uma vitória, por pequena que fosse.
—Não vejo por que devemos alugar dois quartos — opinei com fingida
indiferença, e minhas mãos tremiam ao recolher os artigos caídos, que recoloquei na
sacola. O que acabara de dizer era incrível, mas não pude evitá‐lo. —O tráfego não te
permitirá descansar, e você precisa tanto como eu. — não podia conceber que alguém
pudesse dormir dado o ruído que provinha da estrada. Sem olhá‐lo, desci do carro e
me escutei dizer: —Poderíamos dormir no mesmo quarto, em duas camas, é claro.

reação Fiquei aturdida e espantada.


tão esquizofrênica. Jamais
Dizia coisas sem havia feito algo
me propor semelhante,
dizê‐las, ou é quenem tido
as dizia
deliberadamente, sem saber o que sentia? Seu riso pôs fim à minha confusão, e era
tão forte que se acenderam as luzes num quarto, e alguém nos exigiu silêncio aos
gritos.

66
—Dividir seu quarto e permitir que se aproveite de mim no meio da noite,
depois de ter me dado um banho de água fria? Nem pensar! — disse entre ondas de
alegria.
Enrubesci ao ponto que minhas orelhas ardiam. Quis morrer de vergonha. Esta
não era uma de minhas cenas imaginadas. Voltei ao carro e fechei a porta com
violência.
—Leve‐me ao ônibus da Greyhound — apontei, dominando minha indignação.
—Por que diabos vim contigo? Deveria fazer com que examinassem minha cabeça!
Sem deixar de rir abriu a porta e, com suavidade, me fez sair.
—Durmamos não só no mesmo quarto, e sim na mesma cama. Deixe‐me fazer
amor com você — suplicou, e tive a impressão de que desejava isso de verdade.
Horrorizada, me desfiz dele e gritei:
—Jamais em sua puta vida!
—Bom — disse —, diante de tão feroz recusa não me animo a insistir — pegou
minha mão e a beijou. —Me rejeitou e me pôs em meu lugar. Se acabaram os
problemas. Está vingada.
Me afastei dele, a ponto de chorar. Meu desgosto não se devia à sua falta de
desejo de passar a noite comigo – se ele tivesse querido, com toda franqueza, não
teria sabido como reagir – e sim ao fato de que me conhecia melhor do que eu
conhecia a mim mesma. Eu havia recusado dar crédito ao que acreditava ser sua
maneira de se auto‐lisonjear. Para ele eu era transparente, e de repente isso me
assustou. Joe se aproximou para abraçar‐me, um abraço doce e simples. Tal qual
aconteceu anteriormente, minha inquietação se evaporou como se nunca houvesse
existido. Devolvi seu abraço, e disse outra coisa incrível:
—Esta é a aventura mais excitante de minha vida. — de imediato quis retratar‐
me; as palavras pronunciadas não eram minhas. Nem sequer sabia qual havia sido
minha intenção ao proferi‐las. Esta não era a aventura mais excitante de minha vida.
Havia feito muitas viagens emocionantes: havia percorrido o mundo.
Minha irritação chegou ao cume quando me deu um beijo de despedida, um
beijo suave e doce como o que se dá em uma criança, e contra minha vontade me

agradou.
meu Havia
quarto. perdido a‐me,
Maldizendo vontade.
senteiCom umcama
‐me na empurrão Joede
e chorei mefrustração,
enviou emraiva
direção ao
e pena
de mim mesma. Desde os alvores de minha vida sempre se haviam satisfeito meus
caprichos. Estava acostumada a isso. Estar confusa e não saber o que queria era uma
experiência nova e nada agradável. Tive uma noite de sono intranquilo. Dormi vestida,
até que ele bateu em minha porta bem cedo de manhã.
Viajamos todo o dia por caminhos afastados e tortuosos. Tal qual me havia
informado, Joe Cortez era na verdade atento, e durante toda a longa viagem provou
ser o mais bondoso e divertido dos companheiros. Me mimou com comidas, canções e
contos. Era dono de uma profunda porém clara voz de barítono, e conhecia todas
minhas canções favoritas: espalhafatosas canções de amor de todos os países sul‐
americanos, e seus hinos nacionais. Velhas baladas e até canções infantis. Seus contos
me fizeram
fascinada comrircada
atécaso.
doerEra
osum
músculos
imitadorabdominais. Como narrador
nato. Sua assombrosa imitaçãome
de manteve
todos os
acentos sul‐americanos, inclusive o singular português do Brasil, superava a imitação
para converter‐se em magia. Estávamos empoleirados no teto da perua quando Joe
formulou a advertência:

67
—Melhor descermos. As noites no deserto se tornam frias.
—É um meio ambiente indômito — comentei. Desejava gozar de novo do
refúgio da cabine, e então nos afastamos dali. Observei‐o enquanto recolhia algumas
sacolas do interior do veículo. Havia comprado toda sorte de presentes para aqueles
que íamos visitar.
—Por que paramos no meio do nada? — perguntei.
—Nibelunga, você faz as perguntas mais bobas — disse. —Nós paramos aqui
pois é o local onde começa nossa viagem.
—Chegamos ao misterioso destino sobre o qual não pôde falar? — perguntei
com sarcasmo. A única coisa que havia entorpecido nossa agradável viagem havia sido
sua renúncia a informar‐me com exatidão para onde nos dirigíamos.
Em questão de segundos me enfureci ao extremo de querer lhe dar um grande
soco no nariz, mas a noção de que minha repentina irritabilidade obedecia ao cansaço
de um longo dia produziu o necessário alívio.
—Estou me pondo desagradável, mas não por querê‐lo — disse num tom jovial
que soava falso, pois a tensão de minha voz revelava a dificuldade para controlar‐me.
Preocupava‐me a rapidez com que me enfurecia com ele.
—Na verdade você não sabe conversar — acusou‐me com um grande sorriso —
, só sabe pressionar.
—Oh! Vejo que Joe Cortez se foi. Vai começar a insultar‐me de novo, Carlos
Castaneda?
Minha observação lhe causou graça, apesar de que minha intenção era outra.
—Este lugar não está no meio do nada, a cidade de Arizpe está perto, e a
fronteira dos Estados Unidos ao norte, Chihuahua ao leste e Los Ângeles em algum
ponto ao noroeste — recitou.
Sacudiu a cabeça num gesto desdenhoso e tomou à dianteira. Em silêncio
caminhamos através do chaparral, mais intuído do que visto, por uma estreita e
serpenteada trilha que se alargava ao chegar a um amplo espaço aberto encerrado por
baixas algarobeiras. Conseguimos discernir os contornos de duas casas, recortadas
contra a escuridão. No interior da maior brilhavam luzes. Uma casa menor se alçava a

curta adistância.
onde Caminhamos
luz se infiltrava em direção
pelas janelas à casa grande. Pálidas traças revoavam por
panorâmicas.
—Devo advertir‐lhe que a gente que vai conhecer é um tanto estranha —
sussurrou. —Não diga nada. Deixe que eu falo.
—Direi o que se me der na telha — respondi. —Não me agrada que me digam
como devo comportar‐me. Não sou uma criança. Ademais, meus hábitos sociais são
impecáveis, e posso lhe assegurar que não te farei passar vergonha.
—Deixe de idiotices, caralho! — respondeu, esforçando‐se por controlar a voz.
—Não me trate como se eu fosse sua esposa, Carlos Castañeda — gritei a
plenos pulmões, pronunciando seu sobrenome como eu considerava que deveria se
pronunciar: com ñ (nhe), o qual sabia que ele não gostava.
Contudo, ele não se irritou. Minha tirada o fez rir, algo frequente nele quando
eu esperava que
equanimidade explodisse. “Nunca
era extraordinária. se irrita”,
Nada parecia pensei
confundi com fazer
‐lo, nem um ‐suspiro. Sua
lhe perder o
controle. Inclusive, quando gritava, os gritos soavam falsos.
Quando Joe estava por bater, a porta se abriu, e um homem frágil projetou sua
sombra negra no retângulo de luz. Com um gesto impaciente nos convidou a entrar, e

68
ingressamos num vestíbulo abarrotado de plantas. Com rapidez, como se temesse
mostrar a cara, nos precedeu e, sem uma palavra de boas‐vindas, abriu outra porta
cujos vidros não estavam bem fixos, e que soavam ao abri‐la. O seguimos por um
escuro corredor e através de um pátio interno, onde um jovem sentado numa cadeira
de palha cantava com voz tremulante, acompanhando‐se com o violão. Fez uma pausa
ao nos ver, não retribuiu minha saudação, e continuou tocando quando dobramos
uma esquina e encaramos outro corredor escuro.
—Por que todos são tão pouco gentis? — sussurrei no ouvido de Joe Cortez. —
Tem certeza de que estamos na casa certa?
—Já lhe disse, são excêntricos — murmurou.
—Está seguro de que os conhece?
—Que tipo de pergunta é essa? — rebateu num tom tranquilo, ainda que
ameaçante. —É claro que os conheço.
—Passaremos a noite aqui? — perguntei, intranquila.
—Não tenho a menor idéia — e ao dizê‐lo me beijou na bochecha. —E por
favor, não faça mais perguntas. Estou tentando levar a cabo uma manobra quase
impossível.
—Que manobra é essa? — perguntei também em voz baixa. Uma súbita
percepção me fez sentir ao mesmo tempo ansiosa e incomodada, e por sua vez
estimulada. A palavra manobra havia proporcionado a pista.
Ao parecer convencido de meus sentimentos íntimos, passou as sacolas que
portava a um de seus braços, e com suavidade pegou minha mão para beijá‐la, contato
que enviou agradáveis correntes de prazer através de meu corpo. Cruzamos um
umbral para ingressar numa sala grande, tenuemente iluminada e exiguamente
mobiliada. Não era minha idéia de uma sala de província mexicana. As paredes e o teto
eram de um branco imaculado, por completo desprovidas de quadros ou ornamentos.
Contra a parede oposta à porta havia um grande sofá, e sentadas sobre ele três
imponentes senhoras, vestidas com elegância. Não pude ver bem seus rostos, mas a
luz fraca permitiu comprovar a chamativa semelhança e o ar familiar existente entre
elas, mesmo sem parecerem‐se. Isto me desorientou ao ponto de que apenas pude

repararàsem
junto trêsduas pessoas
mulheres deisentadas em salto
um grande poltronas próximas.
involuntário, Nonão
por meuterafã por chegar
reparado nos
desníveis do piso de ladrilhos, e ao estabilizar‐me notei um lindo tapete oriental, e à
mulher sentada numa das poltronas.
—Delia Flores! —exclamei. —Deus santo, não posso acreditar nisso! — toquei‐a
para assegurar‐me que não era uma figura fruto de minha imaginação. Em vez de
saudá‐la, perguntei:
—O que está acontecendo? — e ao mesmo tempo percebi que as mulheres do
sofá eram minhas velhas conhecidas do ano anterior na casa da curandeira. Permaneci
com a boca aberta, gelada, a mente aturdida pela descoberta. Um esboço de sorriso
crispava os cantos dos lábios das mulheres quando se viraram em direção ao ancião de
cabelos brancos, sentado na outra poltrona.
—Mariano Aureliano — minha voz saiu fraca e quebrada; tinha perdido toda
sua energia.
Virei‐me até Joe Cortez, e nesse mesmo tom débil o acusei de ter me
enganado. Desejava gritar‐lhe, insultá‐lo, agredi‐lo fisicamente, mas não tinha nem
forças para levantar um braço. Tampouco para notar que, como eu, estava parado

69
como se estivesse preso ao chão, o rosto pálido de assombro e confusão. Mariano
Aureliano, ficando de pé, se aproximou, os braços estendidos em sinal de abraço.
—Estou tão feliz de ver‐lhe novamente! — sua voz era doce, seus olhos
brilhavam de felicidade, e com um abraço de urso me levantou do chão. Meu corpo
frouxo, desprovido de forças, não acertava em retribuir seu carinho. Não pude
articular palavra. Me depositou de novo ao chão, e foi em direção à Joe Cortez, para
dar‐lhe uma igualmente efusiva boas‐vindas.
Delia Flores e suas amigas se aproximaram, cada uma com seu abraço, e
murmuraram algo em meu ouvido. Me reconfortaram suas carícias e vozes suaves,
contudo não entendi uma só palavra. A mente não me acompanhava. Podia sentir e
escutar, mas não captar a essência de minhas sensações. Mariano Aureliano dirigiu‐se
a mim com voz clara que dissipou meu nublado entendimento.
—Você não foi enganada. Eu lhe disse desde o princípio que te sopraria até ele.
—De modo que você é… — não pude terminar a frase, pois finalmente captei
que Mariano Aureliano era o homem de quem tanto me havia falado Joe Cortez: Juan
Matus, o feiticeiro que mudou o curso de sua vida.
Abri a boca para dizer algo, e em seguida a fechei. Tinha a sensação de ter sido
separada de meu corpo. Minha mente não podia acomodar novas surpresas. Depois vi
ao senhor Flores emergir por entre as sombras, e ao dar‐me conta de que havia sido
ele quem nos abriu a porta, desmaiei. Quando recuperei os sentidos me encontrava
sobre o sofá, sentindo‐me extraordinariamente bem, descansada e livre de ansiedade.
Para determinar o tempo que estive inconsciente me levantei para alçar o braço e
olhar meu relógio de pulso.
—Esteve fora de comissão exatamente dois minutos e vinte segundos —
anunciou o senhor Flores, consultando seu pulso desprovido de relógio. Estava
sentado numa otomana de couro vizinha ao sofá, e na posição de sentado pareceu
mais alto, pois suas pernas eram curtas e seu dorso largo.
—Que terrivelmente dramático, isso de desmaiar‐se! — disse ao sentar‐se a
meu lado. —Sinto muito que tenhamos lhe assustado — mas seus olhos cor âmbar,
plenos de riso, desdiziam o tom genuinamente preocupado de sua voz. —E desculpe‐

me por
com nãopesada
essa os ter saudado
jaqueta, ao abrirque
pensei a porta.
vocêCom
era seu cabelo—escondido
homem. entretantosobele
o chapéu, e
brincava,
encantado, com minha trança.
Ao ficar de pé precisei me apoiar no sofá. Continuava algo mareada. Insegura,
percorri o quarto com a vista. Nem as mulheres nem Joe Cortéz estavam ali. Mariano
Aureliano estava sentado numa das poltronas com a vista fixa à frente. Talvez estivesse
dormido com os olhos abertos.
—Assim que os vi de mãos dadas pensei que Charlie Spider tinha virado bicha…
— disse o senhor Flores em inglês, pronunciando cada palavra de maneira impecável e
com genuíno gosto.
Ri ao escutar esse nome, e da formal pronúncia inglesa.
—Charlie Spider? Quem é?
—Não
—Não,onão
sabe?
sei.— perguntou,
Por abrindo
acaso deveria os olhos, autenticamente desconcertado.
saber?
Expressou sua surpresa ante minha negação coçando a cabeça, e depois
perguntou:
—Com quem estava de mãos dadas?

70
—Carlos segurava minha mão ao entrar nesta casa.
—Pois isso — aprovou o senhor Flores, sorrindo contente como se tivesse
solucionado um difícil enigma. Depois, ao ver minha expressão ainda perplexa,
acrescentou: —Carlos Castaneda não só é Joe Cortez como também Charlie Spider.
—Charlie Spider — repeti. —É um nome muito repelente.
—Dos três, era o que mais me agradava, sem dúvida devido à minha afeição
pelas aranhas, às quais jamais temi. Nem sequer às grandes aranhas tropicais. Nos
cantos de meu apartamento sempre se podiam encontrar suas teias, as que não eram
destruídas ao se fazer a limpeza.
—Por que se faz chamar Charlie Spider? — perguntei.
—Diferentes nomes para diferentes situações — e o senhor Flores recitou a
resposta como se estivesse anunciando um produto. —Quem pode explicar‐lhe tudo
isto é Mariano Aureliano.
—Mariano Aureliano é também Juan Matus?
—Eu acho que sim — respondeu com um amplo e divertido sorriso. —Também
ele tem distintos nomes para distintas situações.
—E você, senhor Flores, também tem diferentes nomes?
—Flores é meu único nome. Genaro flores — e aproximando‐se, se insinuou em
tom conquistador, apenas murmurado: —Pode me chamar de Genarito.
Sacudi a cabeça sem querer. Algo nele me assustava mais que Mariano
Aureliano, mas num nível racional não conseguia determinar a causa. O senhor Flores
parecia muito mais abordável que o outro. Era infantil, brincalhão e de fácil trato,
apesar do qual não me sentia confortável em sua companhia. O senhor Flores
interrompeu meus pensamentos profundos:
—A razão pela qual tenho um só nome é que não sou um nagual.
—E o que é um nagual?
—Ah, isso é muito difícil de explicar — e me ofereceu um sorriso cativante. —
Unicamente Mariano Aureliano ou Isidoro Baltazar podem explicar isso.
—Quem é Isidoro Baltazar?
—Isidoro Baltazar é o novo nagual.

—Está me—Basta. Não me diga


confundindo, senhormais nada e—ainda
Flores, e levando
estoua fraca
mão à—frente
e comme sentei
olhar no sofá.
suplicante,
perguntei: —Onde está Carlos?
—Charlie Spider está tecendo um sonho aracnóide — o senhor Flores disse a
frase inteira em seu inglês extravagante, após o qual emitiu um breve riso, como se
estivesse saboreando uma anedota especialmente boa. Olhou com malícia a Mariano
Aureliano (que seguia com a vista fixa na parede), depois a mim, e por último de novo
a seu amigo. Deve de ter pressentido meu crescente medo, pois encolheu os ombros e
elevou as mãos num gesto resignado antes de dizer: —Carlos, também conhecido
como Isidoro Baltazar, foi visitar a…
—O que, ele se foi?! — meu grito fez com que Mariano Aureliano se virasse
para olhar‐me. Me perturbava mais ficar sozinha com os dois velhos que saber que
Carlos
Mariano Castaneda
Aurelianotinha ainda outro
se levantou, fez nome e era o novo
uma profunda nagual,efosse
reverência, isso o que
estendendo suafosse.
mão
para ajudar‐me a ficar de pé, perguntou:
—O que pode ser mais agradável e recompensador para dois velhos que cuidar
de ti até que te despertará de seus ensonhos?

71
Seu gracioso sorriso e sua cortesia finissecular eram irresistíveis. Relaxei‐me de
imediato.
—Não posso pensar em nada mais agradável — concordei, e permiti que me
conduzisse a um refeitório bem iluminado, situado do outro lado do corredor, a uma
mesa de caoba ovalada nos fundos do aposento. Com um gesto galante me ofereceu
uma cadeira. Aguardou a que me instalasse comodamente, e depois disse que não era
demasiado tarde para comer, e que ele mesmo se encarregaria de trazer‐me algo
delicioso da cozinha. Minha proposta de ajudar foi recusada com finura.
O senhor Flores, em vez de caminhar até a mesa, exibiu sua destreza acrobática
impulsionando‐se com uma meia‐lua, e calculou a distância com tal precisão que
aterrissou a poucos centímetros da mesa. Com um sorriso tomou assento a meu lado.
Seu rosto não revelava o esforço realizado, e nem sequer ofegava.
—Apesar de que negue ser um acrobata, creio que você e seus amigos são
parte de um espetáculo mágico — opinei.
O senhor Flores saltou de sua cadeira, o rosto iluminado por intenções
travessas.
—Você tem toda a razão do mundo! Somos parte de um espetáculo mágico! —
e pegou um jarro de cerâmica que estava sobre um largo aparador. Serviu‐me uma
caneca de chocolate quente. —Isto e um pedaço de queijo representam para mim uma
refeição — e me cortou um pedaço de queijo Manchego. Juntos eram uma delícia.
Apesar de meus desejos não me ofereceu repetir. A meia caneca que me serviu
não me satisfez. Sempre gostei de chocolate, que nenhum dano me fazia por mais que
comesse, e tinha a certeza de que se me concentrasse em meu desejo de comer mais,
ele se veria na obrigação de oferecer‐me outra caneca sem um pedido de minha parte.
De menina, isto me dava resultado quando era forte meu desejo por algo. Observei‐lhe
retirar dois copos e dois pratinhos extras do armário, e notei que entre a louça, os
cristais e a prataria, pastava uma rara mistura de figuras de cerâmica pré‐hispânica e
uns monstros pré‐históricos de plástico.
—Esta é a casa das bruxas — informou o senhor Flores com ar de conspirador,
como se isso explicasse a incongruência do conteúdo do móvel.

—Asvez
Em esposas de Marianome
de responder Aureliano?
convidou—com
perguntei desafiante.
um gesto a olhar atrás de mim.
Mariano Aureliano estava às minhas costas.
—As mesmas — admitiu, colocando uma sopeira de porcelana sobre a mesa. —
As mesmas bruxas que fizeram esta deliciosa sopa de rabo de boi — e com um concha
de prata encheu um prato e me instou a juntar‐lhe um pedaço de lima e outro de
abacate. Assim fiz, devorando tudo nuns poucos goles. Comi vários pratos até ficar
fisicamente satisfeita, quase saciada.
Permanecemos ao redor da mesa um longo tempo. A sopa de rabo de boi
exerceu um maravilhoso efeito sedativo sobre mim. Sentia‐me tranquila. Algo
usualmente muito desagradável em mim estava desconectado, e todo meu ser, corpo
e espírito, agradecia ao fato de não ter que utilizar energia para defender‐me.
Assentindo
pensamentos,com a cabeça,
Mariano como
Aureliano me confirmando
observava comem silêncio
olhos agudoscada um de Estava
e divertidos. meus
a ponto de dirigir‐me a ele chamando‐o Juan Matus quando antecipou meu intento e
disse:

72
—Eu sou Juan Matus para Isidoro Baltazar. Para você sou o nagual Mariano
Aureliano. — sorrindo, chegou mais perto e sussurrou confidencialmente: —O homem
que te trouxe aqui é o novo nagual, o nagual Isidoro Baltazar. Você deve usar esse
nome quando falar com ele ou o mencionar.
—Não está totalmente dormida nem desperta — continuou Mariano Aureliano
—, de modo que poderá entender e recordar tudo o que lhe dizemos — e vendo que
eu estava a ponto de interrompê‐lo, acrescentou com suavidade: —E esta noite não
vai ficar fazendo perguntas estúpidas.
Não foi tanto seu tom e sim uma força, um cordão, o que me gelou, paralisando
minha língua. Contudo minha cabeça, como independente de minha vontade, fez um
gesto de assentimento.
—Precisa colocá‐la à prova — lembrou o senhor Flores a seu amigo. Um brilho
decididamente perverso apareceu em seus olhos. —Ou melhor ainda, deixe que eu o
faça.
Mariano Aureliano fez uma pausa, longa e deliberada, plena de sinistras
possibilidades, e me olhou em forma crítica, como se minhas feições pudessem dar‐lhe
um indício para algum importante segredo. Imobilizada por seus olhos penetrantes,
nem sequer pisquei. Depois deu seu perdão, e o senhor Flores me formulou uma
pergunta em voz grave e profunda:
—Está enamorada de Isidoro Baltazar?
E que me condenem se não disse que sim, de maneira mecânica e inanimada.
O senhor Flores se aproximou até que nossas cabeças quase se tocaram, e em
um murmúrio cheio de riso sufocado perguntou: —De verdade, louca, loucamente
apaixonada?
Repeti que sim, e ambos os homens estouraram em sonoras gargalhadas. O
som de suas risadas, repiqueteando em torno do aposento como bolinhas de ping‐
pong, pôs fim a meu estado de transe. Me agarrei ao som e saí do encantamento.
—Que porra é esta? — perguntei a todo pulmão.
Ambos os homens saltaram em suas cadeiras, assustados por meus gritos. Se
olharam, e logo seus olhares convergiram em mim, e ambos se abandonaram a um riso

extático.
tão Quanto
contagioso eramais
seueloqüentes
entusiasmoeram meus
que não insultos,
pude evitarmaior eram
de aderir‐mesuas gargalhadas, e
a ele.
Quando nos acalmamos, Mariano Aureliano e o senhor Flores me
bombardearam com perguntas. Os interessava em especial como e quando havia
conhecido a Isidoro Baltazar, e cada pequeno detalhe os enchia de alegria. Quando
repeti os acontecimentos pela quarta ou quinta vez, havia ampliado ou melhorado a
história, ou recordado detalhes que não teria suspeitado que poderia recordar.
—Isidoro Baltazar conseguiu ver através de você e de todo o assunto — julgou
Mariano Aureliano quando finalizei minha exposição. —Contudo, ainda não vê o
suficientemente bem. Nem sequer concebeu que fui eu quem te enviou a ele — e me
lançou outra de suas olhadas perversas antes de corrigir‐se: —Na verdade não fui eu e
sim o espírito, que me elegeu para fazer seu mandato, e te soprei até ele quando
estava
maneiranocasual,
máximo de seu
quase compoder, no meio
negligência, de seu ensonhar
e somente desperta
seus olhos — falava sua
transpareciam de
sabedoria. —Talvez seu poder para ensonhar desperta foi a razão pela qual Isidoro
Baltazar não percebeu quem era, apesar a que estava vendo, ainda quando o espírito o
tenha revelado desde o primeiro momento em que ele te viu. Não pode existir maior

73
indício que essa exibição de luzes na névoa. Que estupidez a de Isidoro Baltazar de não
ver o óbvio.
Riu contidamente e eu concordei, sem saber com quê estava concordando.
—Isso te demonstrará que o fato de ser feiticeiro não é grande coisa. Isidoro
Baltazar é feiticeiro; ser um homem de conhecimento é algo diferente. Para chegar a
isso, os feiticeiros precisam às vezes esperar toda uma vida.
—Qual é a diferença? — perguntei.
—Um homem de conhecimento é um líder — explicou em voz baixa, sutilmente
misteriosa. —Os feiticeiros precisam de líderes para guiá‐los até e através do
desconhecido. Um líder se revela por suas ações; eles não têm preço, o que significa
que não se pode os comprar, subornar, adular ou mistificar.
Acomodou‐se melhor em sua cadeira, e disse que todos os membros de seu
grupo haviam concordado em estudar aos líderes através da História, para descobrir se
algum deles chegou a justificar sua condição de tal.
—E vocês encontraram alguns que o conseguiram?
—Alguns — admitiu. —Os que encontramos poderiam ter sido naguais. Os
naguais são, pois, líderes naturais, homens de tremenda energia, que se convertem em
feiticeiros agregando um marco a mais ao seu repertório: o desconhecido. Se esses
feiticeiros chegam a converter‐se em homens de conhecimento não existe
praticamente limite ao que podem alcançar.
—Podem as mulheres…? — não me permitiu terminar.
—As mulheres, como descobrirá algum dia, podem fazer coisas infinitamente
mais complexas ainda.
—Isidoro Baltazar — interrompeu o senhor Flores —, lhe fez lembrar a alguém
que conhecera previamente?
—Bom — respondi —, me senti muito bem com ele, como se o conhecesse de
toda a vida. Me fez recordar a alguém, talvez alguém de minha infância, um amigo
esquecido.
—De modo que não recorda tê‐lo conhecido antes? — insistiu o senhor Flores.
—Você quer dizer na casa de Esperanza? — talvez estivera ali e eu não o

recordava.
Sacudiu sua cabeça, desiludido. Depois, pelo visto esgotado seu interesse em
minha resposta, perguntou se eu havia reparado em alguém que nos saudava com a
mão quando dirigíamos em direção à casa.
—Não, ninguém.
—Pense bem — insistiu.
Contei‐lhe que depois de Yuma, em vez de nos dirigirmos ao leste, a Nogales na
Rota 8, o caminho mais lógico, Isidoro Baltazar havia marchado até o sul, ao México,
depois ao leste através de “El Gran Desierto”, depois de novo ao norte entrando nos
Estados Unidos por Sonoyta a Ajo, Arizona, depois de novo ao México à Caborca, onde
desfrutamos de um delicioso almoço de língua de boi em molho picante de pimenta
verde.

atenção—Quando voltamos
à rota — admiti. aoque
—Sei carro com o por
passamos estômago cheio,
Santa Ana, já quase
e após nem prestei
nos dirigimos até o
norte à Cananea, e depois outra vez ao sul. Tudo muito confuso, em minha opinião.
—Não lembra ter visto a alguém na rota — insistiu o senhor Flores —, alguém
que os saudava com a mão?

74
Fechei bem os olhos, procurando visualizar a quem pudesse ter‐nos saudado de
tal maneira, mas minha lembrança da viagem era feita de contos, canções e cansaço
físico. E de repente, quando estava a ponto de abrir os olhos, surgiu a fugaz imagem de
um homem. Disse‐lhes que recordava vagamente a um jovem às margens de um
desses povoados, de quem pensei que nos pedia que o levássemos.
—Pode ter feito sinais com a mão, mas não o posso assegurar.
Ambos riram como crianças empenhadas em ocultar um segredo.
—Isidoro Baltazar não estava muito seguro de nos encontrar — anunciou
Mariano Aureliano —, por isso seguiu essa rota insólita. Seguiu a rota dos feiticeiros, o
caminho do coiote.
—Por que não estaria seguro de encontrá‐los?
—Não sabia se nos encontraria até ver ao jovem fazendo‐lhe sinais — explicou
Mariano Aureliano. —Esse jovem é uma sentinela do outro mundo. Seu sinal era prova
de que se podia seguir adiante. Isidoro Baltazar deveria ter sabido ali mesmo quem
era. Mas, como você, é extremamente cauteloso, e quando não o é, é extremamente
temerário. — fez uma pausa para permitir que suas palavras se registrassem, e depois
acrescentou significativamente: —O mover‐se entre esses dois pontos é a maneira
mais segura de errar. A cautela cega tanto como o atrevimento.
—Não entendo a lógica de tudo isto — murmurei fatigada.
Mariano Aureliano esclareceu:
—Quando Isidoro Baltazar traz um convidado, precisa prestar atenção ao sinal
da sentinela antes de seguir viagem.
—Certa vez trouxe a uma garota por quem estava enamorado — informou o
senhor Flores, e fechou os olhos como transportado por sua lembrança da garota. —
Era alta, forte e de cabelos escuros. Pés grandes e rosto bonito. Percorreu toda a Baja
Califórnia, e a sentinela nunca lhe autorizou a passagem.
—Quer dizer que traz suas namoradas? — perguntei com mórbida curiosidade.
—Quantas tem trazido?
—Umas tantas — respondeu o senhor Flores com inocência. —Naturalmente o
fez por conta própria. Seu caso é diferente. Você não é sua namorada; você retornava.

Isidoro as
todas Baltazar quase do
indicações explodiu quando
espírito. Ele descobriu que por
simplesmente tontodenão
serviu compreendeu
chofer. Nós te
esperávamos.
—O que teria acontecido se a sentinela não estivesse lá?
—O que sempre acontece quando Isidoro Baltazar vem acompanhado —
retrucou Mariano Aureliano. —Não nos teria encontrado, porque não corresponde a
ele eleger a quem trazer ao mundo dos feiticeiros — sua voz se fez agradavelmente
doce ao acrescentar: —Somente aqueles a quem o espírito tenha assinalado podem
bater à nossa porta, depois que um de nós o tenha admitido.
Estive a ponto de interromper, mas recordando a advertência de não fazer
perguntas tontas, tapei minha boca com a mão. Com um sorriso Mariano Aureliano
acrescentou que em meu caso Delia havia sido quem me trouxe ao mundo.

mundo,—É uma éde


a outra nossas
Clara, duas conhecerá
a quem colunas, por assim dizer, que fazem a porta de nosso
logo.
Havia uma genuína admiração em seus olhos e em sua voz quando disse:
—Delia cruzou a fronteira nada mais que para trazer‐lhe à casa. A fronteira é
um fato concreto, mas os feiticeiros o usam de maneira simbólica. Você estava do

75
outro lado e precisava ser trazida a este lado. No outro está o mundo do cotidiano,
mas neste se encontra o mundo dos feiticeiros.
“Delia te escoltou com delicadeza, um trabalho verdadeiramente profissional;
uma manobra impecável que você apreciará mais e mais à medida que passe o
tempo.”
Mariano Aureliano se levantou em sua cadeira para alcançar a compoteira de
porcelana da divisória. Colocou‐a diante de mim com um convite: —Sirva‐se, são
deliciosos.
Fascinada olhei os damascos polpudos e logo provei um deles. Eram tão
deliciosos que, de imediato, despachei mais três. O senhor Flores, depois de piscar‐me
um olho, me instigou a comê‐los todos, antes que retirassem o prato. Com a boca
cheia fiquei corada, e procurei pedir desculpas.
—Não se desculpe! — recomendou Mariano Aureliano. — Seja você mesma,
mas você mesma sob controle. Se quer acabar com os damascos, termine‐os, e
assunto encerrado. O que jamais deve fazer é terminá‐los e depois arrepender‐se.
—Então os terminarei — disse, e isso os fez rir.
—Sabia que conheceu a Isidoro Baltazar no ano passado? — disse o senhor
Flores, que se balançava tão precariamente em sua cadeira que temi que caísse para
trás e batesse contra o armário das louças. Um brilho maligno apareceu em seus olhos,
ao mesmo tempo em que começou a cantarolar uma bem conhecida ranchera,
fazendo um arremedo da letra para contar a estória de Isidoro Baltazar, famoso
cozinheiro de Tucson, que jamais perdia a calma, nem sequer quando se lhe acusavam
de pôr baratas mortas na comida.
—Oh! — exclamei —, o cozinheiro! O cozinheiro da cafeteria era Isidoro
Baltazar! Mas isso não pode estar certo. Não acredito que ele… — interrompi a frase
na metade.
Olhei fixamente a Mariano Aureliano, na esperança de descobrir algo em seu
rosto, em seu nariz aquilino, em seus olhos penetrantes, e senti um involuntário
calafrio. Havia algo de selvagem em seus olhos frios.
—Sim — me incitou. —Não acredita que ele… — e com um movimento de

cabeça
que me pressionava
Isidoro Baltazar eraa capaz
completar minha‐me
de mentir frase. Estive
dessa por dizer
maneira, masque
nãonão
meacreditava
animei a
formular a frase. Os olhos de Mariano Aureliano se endureceram, mas eu me sentia
tão mal comigo mesma que não tinha cabimento para o medo.
—Ou seja, que, depois de tudo, fui enganada — explodi por fim, olhando‐o com
fúria. —Isidoro Baltazar sabia todo o tempo quem era eu. Tudo não é mais que um
jogo.
—Tudo é um jogo — concordou Mariano Aureliano —, mas um jogo
maravilhoso. O único que vale a pena jogar. — fez uma pausa, como para dar‐me a
oportunidade de continuar com minhas queixas, mas antes que eu pudesse fazê‐lo me
lembrou da peruca que ele insistiu em colocar‐me naquela oportunidade. —Se você
não reconheceu a Isidoro Baltazar, que não estava disfarçado, o que te faz pensar que
ele te reconheceu em seu disfarce
Mariano Aureliano seguia de
mecachorro peludo?
observando. Seus olhos haviam perdido sua
dureza, agora se viam tristes e cansados.
—Não foi enganada, nem sequer pensei em fazê‐lo, não que não o faria se o
julgasse necessário — acrescentou. —Disse‐lhe como eram as coisas desde o começo.

76
Tem sido testemunha de coisas estupendas, mas não tem reparado nelas. Como faz a
maioria das pessoas, associa a feitiçaria com comportamentos incomuns, rituais,
drogas, encantamentos — e, aproximando‐se, baixou a voz ao nível de um sussurro
para acrescentar que a verdadeira feitiçaria era uma muito sutil e esquisita
manipulação da percepção.
—A verdadeira feitiçaria — o senhor Flores concluiu — não permite a
interferência humana.
—Mas o senhor Aureliano diz ter me soprado até Isidoro Baltazar — assinalei
com imatura impertinência. —Não é isso uma interferência?
—Sou um nagual — respondeu Mariano Aureliano. —Sou o nagual Mariano
Aureliano, e o fato de ser o nagual me permite manipular a percepção.
Eu o havia escutado com toda atenção, mas não tinha a menor idéia do que
queria dizer com manipulação da percepção. De puro nervosismo, estendi a mão para
tomar o último damasco do prato.
—Você vai ficar doente — disse o senhor Flores —, é tão pequena, e no
entanto é uma dor de cabeça.
Mariano Aureliano parou atrás de mim, e apertou minhas costas de tal maneira
que me fez devolver o último damasco que tinha na boca.

77
CAPÍTULO OITO

Neste ponto a sequência dos fatos, tal como eu os recordo, se faz confusa. Não
sei o que aconteceu depois. Talvez dormi sem ter me dado conta disso, ou talvez a
pressão que exerceu Mariano Aureliano sobre minhas costas foi tão forte que
desmaiei. Quando voltei a mim estava estendida sobre uma esteira no chão. Abri os
olhos e de imediato me dei conta da luminosidade que me rodeava. O sol parecia
brilhar dentro do quarto. Pisquei repetidas vezes, pensando ter algum problema com
os olhos, pois não podia centrá‐los.
—Senhor Aureliano — chamei —, acho que algo anda mal com meus olhos… —
tentei levantar‐me sem consegui‐lo.
Não eram o senhor Aureliano ou o senhor Flores que estavam de pé junto a
mim, e sim uma mulher, que estava inclinada para frente a partir da cintura, tapando a
luz. Seus cabelos negros balançavam soltos em torno de seus ombros e seus lados;
tinha um rosto redondo e um busto imponente. De novo procurei levantar‐me. Não
me tocava, apesar do qual soube que de alguma maneira era ela que me retinha.
—Não o chame de senhor Aureliano, ou senhor Mariano. Essa é uma falta de
respeito de sua parte. Chame‐o nagual, e quando falar dele refira‐se ao nagual
Mariano Aureliano. Ele gosta de seu nome completo. — sua voz era melodiosa.
Simpatizei com essa mulher.
Queria averiguar o que era toda essa bobagem com relação à falta de respeito.
Tinha escutado a Delia e todas as outras mulheres chamá‐lo pelos mais ridículos
diminutivos, e fazer‐lhe festa como se ele fosse seu boneco favorito, e por certo que
ele havia desfrutado de cada momento, mas eu não podia recordar de onde o havia
presenciado.
—Entende? — perguntou a mulher.
Quis dizer que sim, mas tinha ficado sem voz. Aventei, sem êxito, de abrir a
boca, de falar, mas quando ela insistiu em perguntar se eu havia compreendido, tudo o
que pude fazer foi afirmar com a cabeça. Ofereceu‐me sua mão para me ajudar a
levantar, mas antes que me tocasse eu já estava de pé, como se meu desejo tornasse

inútil o contato
Assombrada por com
esta sua mão, e derivação
inesperada conseguidoquis
seufazer
objetivo antes de sua
‐lhe perguntas, masintervenção.
apenas era
possível manter‐me em pé, e quanto a falar, as palavras se recusavam a sair de minha
boca. Acariciou repetidas vezes meus cabelos, obviamente interada de meu problema.
Sorriu bondosamente e disse:
—Está ensonhando.
Não a escutei dizer isso, mas sabia que suas palavras se haviam movido sem
transição de sua mente à minha. Fez um sinal afirmativo com a cabeça, e me informou
que, de fato, eu podia escutar seus pensamentos e ela aos meus. Me assegurou ser
como uma invenção de minha imaginação, apesar do qual podia atuar comigo ou
sobre mim.
—Preste atenção! — ordenou. —Não estou movendo meus lábios e contudo
estou lhe
Suafalando. Faça
boca não se omovia
mesmo.
em absoluto, e a fim de averiguar se seus lábios o faziam
ao enunciar suas palavras, desejei tocar sua boca com meus dedos. Era bonita, mas de
aspecto ameaçante. Tomou minha mão e a apertou contra seus lábios sorridentes.
Não senti nada.

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—Como posso falar sem meus lábios? — pensei.
—Tem uma fenda entre as pernas — me informou, introduzindo as palavras de
maneira direta em minha mente. —Concentre sua atenção nela. A perereca fala.
Essa observação tocou uma fibra especial em mim, e ri até ficar sem ar e
desmaiar de novo. A mulher me sacudiu até me fazer reagir. Continuava sobre a
esteira no chão, mas agora apoiada num grosso almofadão em minhas costas. Pisquei,
um calafrio me sacudiu, suspirei fundo e a olhei. Estava sentada ao meu lado sobre o
chão.
—Não costumo desmaiar — disse, surpreendida de poder fazê‐lo com palavras.
O som de minha própria voz era tão reconfortante que ri forte e repeti a mesma frase
várias vezes.
—Eu sei, eu sei — disse para apaziguar‐me. —Não se preocupe, não está de
todo desperta. Eu sou Clara. Já nos conhecemos na casa de Esperanza.
Deveria ter protestado, ou perguntado o que queria dizer com isso. Entretanto,
sem duvidar por um só instante, aceitei que seguia adormecida e que havíamos nos
conhecido na casa de Esperanza. Lembranças, pensamentos brumosos, visões de gente
e de lugares começaram a surgir lentamente. Um pensamento muito claro tomou
conta de minha mente. Certa vez havia sonhado que a conheci; foi um sonho, portanto
nunca havia pensado nele como num acontecimento real. Nesse momento lembrei de
Clara.
—É claro que já nos conhecemos — declarei triunfalmente —, mas nos
conhecemos num sonho, por conseguinte não é real. Devo de estar sonhando neste
momento, e desse modo posso me lembrar de você.
Suspirei, feliz de que tudo pudesse ser explicado com tamanha facilidade, e me
reclinei sobre os almofadões. Outra clara lembrança de um sonho se estampou. Não
podia lembrar quando o havia sonhado, porém me lembrava dele com a mesma
fidelidade de um fato real. Nele, Delia me apresentava à Clara, a quem havia descrito
como a mais gregária das mulheres ensonhadoras.
—Tem amigos que a adoram — me confessou.
A Clara do sonho era bastante alta, forte e rotunda, e me havia observado com

insistência
olhos como
atentos quem nervosos.
e sorrisos observa aEum membroapesar
entretanto, de uma
de espécie
seu olhardesconhecida, com
penetrante, havia
gostado muito dela. Seus olhos eram especulativos, verdes e sorridentes, e o que mais
recordava de seu olhar era sua similaridade com o de um gato: o fato de não piscar.
—Eu sei que este é só um sonho, Clara — repeti, como se precisasse me
assegurar disso.
—Não, este não é só um sonho, é um sonho especial — me contradisse Clara.
—Faz mal em urdir tais pensamentos. Os pensamentos têm poder, você deve cuidar
deles.
—Você não é real, Clara — insisti, minha voz aguda e tensionada —, é um
sonho. Por isso não posso lembrar de você quando estou acordada.
Minha obstinada persistência fez Clara sorrir.
—Nunca
mulheres, somosintentou recordar‐práticas.
extremamente me. Não havia razão
É nosso nem sentido
grande defeito para isso. Nós,
e nosso as
grande
capital.
Estava a ponto de perguntar‐lhe qual era o aspecto prático de recordá‐la agora,
quando se antecipou à minha pergunta.

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—Dado que estou frente a você necessita recordar‐me, e me recorda. — se
agachou ainda mais para fixar em mim seu olhar felino e disse: —E já não me
esquecerá. Os feiticeiros que me criaram me disseram que as mulheres necessitam
dois de cada coisa para que se fixe. Duas vistas de algo, duas leituras, dois sustos, etc.
Você e eu já nos encontramos um par de vezes. Agora sou sólida e real — e para
provar o quanto era real, arregaçou a blusa e flexionou seus bíceps. —Toque‐os —
convidou‐me.
Rindo, eu o fiz. Na verdade ela tinha músculos duros, poderosos e bem
definidos. Também me fez provar os de suas coxas e panturrilhas.
—Se este é um sonho especial, que faço eu nele? — perguntei cautelosamente.
—O que se te der vontade. Até agora está indo bem. Não posso guiar você, pois
não sou sua mestra de ensonhos, e sim simplesmente uma bruxa gorda que cuida de
outras bruxas. Foi minha sócia, Delia, quem te trouxe ao mundo dos feiticeiros, como
uma parteira. Mas não foi quem primeiro te encontrou. Essa foi Florinda.
—E quem é Florinda, e quando me encontrou?
—Florinda é outra bruxa. Você a conheceu; é a que te levantou em seu
ensonho, na casa de Esperanza. Lembra da refeição no campo?
—Ah… — suspirei, compreendendo. —Refere‐se à mulher alta de voz
profunda? — me senti feliz; sempre admirei as mulheres altas.
Clara confirmou minha suposição:
—A mulher alta de voz profunda. Ela encontrou você em uma festa, à qual você
compareceu faz alguns anos, com seu amigo. Um acontecimento elegantíssimo na casa
de um petroleiro, em Houston, Texas.
—E o que fazia uma bruxa numa festa na casa de um petroleiro? — perguntei.
Em seguida, me golpeou o pleno impacto de sua declaração. Fiquei muda. Apesar de
não lembrar ter visto a Florinda lembrava muito bem da festa. Eu havia comparecido
com um amigo, que havia voado de propósito em seu jato particular desde Los
Ângeles, e regressado no dia seguinte. Eu fui sua tradutora. Compareceram vários
homens de negócios, mexicanos que não falavam inglês.
—Meu Deus! — exclamei em segredo. —Que insólito! — e descrevi a festa com

riqueza de detalhes
deslumbrada à Clara.
admiradora de Aquela
estrelasfoi
deminha primeira
cinema, visitame
os homens ao deixaram
Texas, e como
boba, uma
não
por serem lindos e sim porque me parecia tão chamativa sua indumentária: seus
chapéus Stetson, seus ternos cor pastel e suas botas de cowboy. O petroleiro havia
contratado artistas e montado um espetáculo digno de Las Vegas, numa gruta que
fazia as vezes de um night‐club, cheia de luzes e música estridente, e lembrava da
comida como sendo de primeiríssima qualidade.
—Mas por que Florinda iria a uma festa desse tipo?
—O mundo dos feiticeiros é o que de mais estranho existe — respondeu Clara,
que com um acrobático salto se levantou sem utilizar os braços, para percorrer o
quarto num ir e vir frente à esteira e ostentar seu aspecto chamativo: uma ampla saia
escura, blusa de algodão com as costas bordadas em alegres cores, e sólidas botas de
vaqueiro.
dia, dava oUm chapéu
toque final australiano,
à tão insólitacuja longa aba escondia seu rosto do sol do meio‐
vestimenta.
—Gostou do meu conjunto? — perguntou radiante, detendo‐se frente a mim.

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—É fabuloso! — aplaudi. Não havia dúvida de que Clara possuía o atrevimento
e a confiança necessários para usar tais roupas. —Elas lhe caem muito bem —
acrescentei.
Ajoelhando‐se junto a mim me fez uma confidência:
—Delia está verde de inveja. Sempre competimos para ver quem se anima a
usar a roupa mais maluca. Precisa ser louca sem ser estúpida — guardou silêncio
durante os segundos em que me contemplou: —Se desejar competir é bem‐vinda —
ofereceu. —Quer participar do nosso jogo?
Aceitei com muito prazer, e ela me pôs a par das regras.
—Originalidade, praticidade, preço baixo e nada de ostentação — enumerou.
Depois se pôs novamente de pé para percorrer o quarto e, rindo, desparramar‐se ao
meu lado. —Florinda acha que devo animá‐la a participar. Disse‐me que naquela festa
descobriu que você mostra uma tendência para conjuntos sumariamente práticos… —
apenas conseguiu terminar a frase, pois a assaltou um ataque de risos.
—Florinda falou comigo lá? — perguntei, olhando‐a furtivamente, intrigada por
saber se ela forneceria os detalhes daquela festa que eu não havia dado, e nem estava
disposta a proporcionar.
Clara negou com um movimento de cabeça, e logo sorriu de maneira distraída,
destinada a evitar novas referências à festa.
—Como foi que Delia assistiu ao batismo em Nogales, Arizona? — perguntei,
orientando a conversa para o tema da outra festa.
—Florinda a enviou — admitiu Clara, recolhendo seus cabelos soltos sob o
chapéu australiano. —Chegou dizendo a todos que voltaria contigo.
—Um momento! — interrompi. —Isto não é um sonho. O que está tentando
fazer comigo?
—Estou procurando instruir‐lhe — insistiu Clara sem modificar seu ar
indiferente, utilizando um tom quase casual. Não parecia interessar‐lhe o efeito que
suas palavras pudessem ter em mim, apesar do qual me observou de maneira
cuidadosa ao agregar: —Este é um ensonho, e certamente estamos falando em seu
ensonho porque eu também estou ensonhando seu ensonho.

Que suas
ensonhava. Minha insólitas
mente declarações
se acalmou,bastaram
sonolenta,para apaziguar
e capaz me foi
de aceitar prova de Escutei
a situação. que eu
minha voz separada de minha vontade.
—Não havia modo de que Florinda soubesse de minha viagem a Nogales —
disse. —O convite de minha amiga foi feito no último momento.
—Sabia que isto seria incompreensível a você — suspirou Clara, e olhando no
fundo de meus olhos e pesando suas palavras cuidadosamente, declarou: —Florinda é
sua mãe, mais que qualquer outra mãe que jamais tenha tido.
Essas palavras me pareceram absurdas, mas não podia dizer nada a respeito.
—Florinda te pressente — continuou Clara com um toque diabólico nos olhos.
— Utiliza um dispositivo rastreador. Sabe onde você se encontra.
—Que aparelho rastreador? — perguntei, sentindo que de súbito minha mente
estava sob controle.
todo o momento O simples
me encheu pensar que alguém pudesse saber meu paradeiro a
de medo.
—Os sentimentos dela por você são um aparelho rastreador — respondeu Clara
com esquisita simplicidade, e num tom tão doce e harmonioso que meus temores
desapareceram.

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—Que sentimentos, Clara?
—Quem sabe, filha? — e encolheu as pernas, as rodeou com os braços e
descansou a testa sobre os joelhos. —Nunca tive uma filha assim.
Meu estado de ânimo mudou de maneira abrupta; o temor voltou, e com meu
velho estilo racional e ponderado, comecei a preocupar‐me pelas sutis implicações do
que foi dito por Clara. E foram precisamente essas deliberações racionais as que me
fizeram retomar minhas dúvidas. Não era possível que isto fosse um sonho. Eu estava
desperta, somente assim se poderia explicar meu intenso grau de concentração.
Deslizando‐me pelo almofadão, no qual apoiava minhas costas, semicerrei os
olhos. Mantive a vista fixa em Clara através das pálpebras, e me perguntei se
desapareceria lentamente, como desaparecem as pessoas e as visões nos sonhos. Não
o fez, e momentaneamente me tranquilizou a idéia de que ambas estávamos
despertas.
—Não, não estamos despertas — contradisse Clara, de novo intrometendo‐se
em meus pensamentos.
—Posso falar — disse, para justificar meu estado de total consciência.
—Grande façanha! — zombou ela. —Agora farei algo que te despertará, para
que possa continuar esta conversa estando verdadeiramente desperta — e enunciou a
última palavra com extremo cuidado, prolongando‐a exageradamente.
—Espere, Clara, espere — roguei. —Dê‐me tempo para adaptar‐me a tudo isto
— preferia minha insegurança ao que pudesse me fazer.
Indiferente à minha súplica, Clara ficou de pé e esticou a mão até uma jarra de
água colocada sobre uma mesa próxima. Rindo, girou sobre mim, mantendo a jarra
sobre minha cabeça. Tentei desviar‐me para um lado sem consegui‐lo; meu corpo se
recusava a obedecer, parecia cimentado à esteira. Antes que ela chegasse a despejar a
água sobre mim, senti uma suave e fria garoa sobre meu rosto, e o frio, mais que o
molhado, produziu uma sensação muito particular. Primeiro semi‐ocultou o rosto de
Clara, como as ondas que distorcem a superfície da água: logo o frio se concentrou em
meu estômago, fazendo me retrair sobre mim mesma como uma manga invertida, e
meu último pensamento foi que me afogaria num jarro de água. Borbulhas e mais

borbulhas escuras
Quando bailaram
recobrei ao meu redor
a consciência já até
nãoque tudosobre
estava se fezanegro.
esteira, e sim sobre um
divã na sala. Duas mulheres se encontravam aos meus pés, olhando‐me com grandes
olhos fixos. Florinda, a mulher alta de voz rouca, estava sentada ao meu lado,
cantarolando uma canção de ninar, ou assim pareceu a mim, e acariciava meu cabelo,
meu rosto e meus braços com grande ternura. O contato e o som de sua voz me
serenaram. Permaneci deitada, meus olhos fixos nos seus, certa de estar
experimentando um de meus sonhos vívidos que sempre começavam como sonhos e
acabavam como pesadelos.
Florinda me falava, me ordenava olhá‐la nos olhos, e suas palavras se moviam
sem som, como asas de mariposa, mas o que vi em seus olhos me encheu de uma
sensação familiar, o terror abjeto e irracional que experimentava em meus pesadelos.
Levantei‐mesempre
animal que de umassalto e corri até a porta, respondendo à reação automática e
acompanhava.
—Não tenha medo, meu amor — me consolou Florinda, que me havia seguido.
—Relaxe, estamos todos aqui para lhe ajudar. Não deve se angustiar, pois danificará
seu corpinho se o submeter ao temor desnecessário.

82
Eu me havia detido junto à porta, não em reação às suas palavras, e sim por
não poder abri‐la. Meu tremor aumentou, sacudindo‐me ao ponto de fazer doer o
corpo e bater o coração de maneira tão forte e irregular que pressenti que terminaria
por estourar.
—Nagual! — gritou Florinda por cima de seu ombro —, terá que fazer algo ou
ela morrerá de susto.
Eu não conseguia ver a quem se dirigia, mas em minha aloucada busca de um
lugar por onde fugir divisei uma segunda porta no outro extremo do cômodo. Estava
certa de contar com suficiente energia como para alcançá‐la, porém minhas pernas
cederam, e como se a vida tivesse abandonado meu corpo, caí ao chão já sem respirar.
Os longos braços da mulher descenderam sobre mim como as asas de uma águia
enorme, me recolheram, e pondo sua boca sobre a minha insuflou ar em meus
pulmões.
Lentamente meu corpo se relaxou, se fez normal meu ritmo cardíaco, e me
invadiu uma estranha paz que, de repente, se transformou em viva excitação. Não era
o medo a causa, e sim o ar recebido da mulher, ar forte que abrasou minha garganta,
meus pulmões, meu estômago e virilha para chegar às minhas mãos e meus pés. Num
instante percebi que ela era igual a mim, só que mais alta, tão alta como eu gostaria de
ter sido, e senti tal amor por ela que fiz algo incrível: beijei‐a apaixonadamente. Senti
que sua boca se alargou num sorriso, e depois jogou a cabeça para trás e riu.
—Esta ratita me beijou — anunciou, dirigindo‐se aos outros.
—Estou sonhando! — exclamei, e todos riram com um abandono infantil.
Inicialmente não pude evitar rir com eles, mas quase em seguida me
transformei em meu verdadeiro eu: envergonhada por causa de um ato impulsivo, e
irritada por ter sido desmascarada. A mulher alta me abraçou.
—Sou Florinda — disse, e alçando‐me me ninou em seus braços como se fosse
uma criança. —Você e eu somos iguais. Você é tão pequena como eu gostaria de ser.
Ser alta é uma grande desvantagem. Ninguém pode ninar você. Eu meço um metro e
setenta e sete.
—Eu, um metro e cinquenta e sete — confessei, e ambas rimos, pois nos

entendíamos àe perfeição.
arredondava, Eude
estava certa eraque
umcom
pouco menoracontecia
Florinda no últimoaocentímetro
contrário. mas sempre o
Beijei suas bochechas e seus olhos, amando‐a com um amor que me era
incompreensível, sem dúvidas, medo ou expectativas. Era o amor que se sente nos
sonhos. Pelo visto concordou comigo. Florinda deixou escapar um suave riso. A luz
fugaz de seus olhos e o branco fantasmal de seu cabelo representavam algo assim
como uma lembrança esquecida. Tinha a impressão de conhecê‐la desde o dia que
nasci, e se me ocorreu que os meninos que admiram às suas mães têm que ser
meninos perdidos. O amor filial, unido à admiração física pela mãe, deve produzir um
amor total como o que eu sentia por esta mulher alta e misteriosa. Depositou‐me no
chão, e virando‐me até a uma mulher bonita, de cabelo e olhos escuros, disse:
—Esta é Carmela. — os traços de Carmela eram delicados e sua pele impecável;
pele suave e da palidez
—Somente tomocremosa
banhos de
de quem
lua — está sempre
sussurrou emdentro de casa.ao abraçar‐me. —
meu ouvido
Deveria fazer o mesmo. É demasiado branca para estar ao sol; está lhe arruinando a
pele.

83
Mais que nada foi sua voz a que reconheci. Era a mesma que me havia feito
todas aquelas perguntas diretas e pessoais na refeição do campo. Lembrava dela
sentada, e então me parecia frágil; agora, para minha surpresa, comprovei que me
ultrapassava em oito ou nove centímetros, e seu corpo poderoso e muscular me fez se
sentir insignificante em comparação.
Com seu braço em torno de meu ombro Florinda me guiou até a outra mulher,
que estava parada junto ao divã quando despertei. Era alta e musculosa, ainda que não
tão alta como Florinda; a sua não era uma beleza convencional (seus traços eram
demasiado fortes para isso), apesar do qual havia nela algo chamativo que atraía,
inclusive a tênue sombra que povoava seu lábio superior, e que obviamente eu não
achava necessário ter. Pressenti nela uma tremenda força, uma agitação subjacente,
mas totalmente controlada.
—Esta é Zoila — disse Florinda.
Zoila não insinuou abraçar‐me ou apertar minha mão, e foi Carmela quem,
rindo, falou por ela:
—Estou muito contente de ver você de novo. — a boca de Zoila se curvou no
mais delicioso dos sorrisos, mostrando dentes brancos, grandes e paralelos, e quando
sua longa e fina mão cheia de jóias roçou minha bochecha me dei conta de que era
aquela cujo rosto esteve oculto sob uma massa de cabelos desarrumados. Era quem
havia costurado a renda belga nas bordas da lona sobre a qual nos sentamos nessa
ocasião da comida.
As três mulheres me rodearam, obrigando‐me a sentar no divã.
—Quando lhe conhecemos estava ensonhando — informou Florinda —, de
modo que não houve oportunidade para nos relacionarmos. Agora está desperta, e
sendo assim, então nos fale de você.
Estive a ponto de interrompê‐la para dizer‐lhe que este era um sonho, e que
durante o piquenique, adormecida ou desperta, já lhes havia contado tudo o que se
merecia saber de minha vida.
—Não, não. Está equivocada — respondeu Florida, como se de fato eu
houvesse exteriorizado esse pensamento. —Agora está totalmente desperta, e o que

desejamos
nos saber
de Isidoro é o que tem feito desde nosso último encontro. Em especial conte
Baltazar.
—Quer dizer que este não é um sonho? — perguntei timidamente.
—Não, não é um sonho — assegurou‐me. —Há uns minutos você ensonhava,
mas isto é diferente.
—Não vejo a diferença.
—Isso se deve a que é uma boa ensonhadora — explicou. —Seus pesadelos são
reais; você mesma disse isso.
Todo meu corpo se tensionou e, depois, como sabendo que não resistiria a
outro ataque de medo, se afrouxou, abandonando‐se ao momento. Repeti a elas o já
narrado e recontado a Mariano Aureliano e ao senhor Flores. Contudo, nesta
oportunidade recordei detalhes passados por alto anteriormente, tais como os dois
lados do rosto
revelavam de Isidoro
seus olhos: Baltazar,sinistro,
o esquerdo e os dois simultâneos
ameaçador, estados
o direito de eânimo
aberto que
amistoso.
Sustentei que era um homem perigoso.
—Possui o raro poder de mover os fatos até onde lhe agrada, enquanto ele
permanece fora deles e observa como estes se contorcem.

84
Às mulheres lhes fascinou o que eu revelava, e Florinda me indicou com um
sinal que prosseguisse.
—O que torna à gente tão vulnerável a seus encantos é sua generosidade —
continuei —, e a generosidade é talvez a virtude que não podemos resistir por
estarmos despossuídos dela, seja qual for nossa base. — ao dar‐me conta do alcance
dessas palavras me detive abruptamente e as observei espantada, medindo sua
reação.
—Não sei o que me aconteceu — disse tentando desculpar‐me. —Na verdade
não sei por que disse isso, quando eu mesma não pensei em Isidoro Baltazar nesses
termos. Não sou eu quem fala, pois nem sequer sou capaz de fazer esse tipo de juízo.
—Não importa de onde lhe vêm esses pensamentos, menina — consolou
Florinda. —Obviamente os está sacando direto da fonte. Todos nós fazemos isso: tirá‐
los da própria fonte, mas se precisa ser feiticeiro para dar‐se conta disso.
Não entendi o que intentava dizer‐me. Repeti que não havia sido minha
intenção deixar que minha língua me dominasse. Florinda riu, e durante uns
momentos me contemplou pensativa.
—Atue como se estivesse ensonhando. Seja audaz e não se desculpe.
Me senti tonta, incapaz de analisar o que sentia. Florinda ordenou às suas
companheiras:
—Conte‐lhe de nós.
Carmela limpou sua garganta, e sem olhar‐me, disse:
—Nós três e Delia formamos uma unidade. Nos ocupamos do mundo cotidiano.
Eu estava atenta a cada uma de suas palavras, mas não consegui entendê‐la.
—Somos a unidade de feiticeiras que trata com a gente. Há outra unidade de
quatro mulheres que nada têm a ver com as pessoas.
Carmela tomou minha mão na sua e examinou a palma, como se estivesse por
ler minha sorte, para depois formar um punho com ela e acrescentar: —Por alto é
como nós, e em particular como Florinda. Pode lidar com as pessoas. — fez uma nova
pausa, e com uma olhada sonolenta repetiu o que Clara já me havia antecipado:
—Foi Florinda quem te encontrou. Assim, enquanto permanecer no mundo dos

feiticeiros,
tom que melhe pertence.
deixou Ela há de
em profunda guiar e cuidar de você. — era tal a certeza de seu
preocupação.
—Não pertenço a ninguém e não preciso que cuidem de mim — disse, e minha
voz soava tensa, insegura e nada natural.
As três mulheres me observaram em silêncio, sorridentes.
—Crêem que necessito ser guiada? — perguntei desafiante, passando meu
olhar de uma à outra. Seus olhos estavam semicerrados, seus lábios abertos em
sorrisos contemplativos, e os imperceptíveis movimentos de suas testas, indicava que
aguardavam que eu terminasse com o que tinha a dizer. —Creio que me arranjo
bastante bem na vida — terminei alegando com escassa convicção.
—Lembra‐se do que fez na festa, aquela onde te encontrei? — perguntou
Florinda.
Ao notar
—Não seque eu reagia
inquiete. assombrada,
Sempre Carmela
encontrará cochichou
um modo em meu
de explicá ouvido:
‐lo por inteiro — e
pelo gesto de desdém que traçou com sua mão, deu a entender não estar
minimamente preocupada. A mim me dominou o pânico só de pensar que pudessem
saber que naquela festa eu me havia passeado desnuda frente a dezenas de pessoas.

85
Até esse momento, se não até orgulhosa dele, eu aceitava esse ato desinibido
como uma manifestação de minha personalidade espontânea. Em primeiro lugar havia
feito um longo passeio a cavalo com o dono da casa, vestindo meu traje de noite e sem
cela, depois que ele me desafiou a fazê‐lo e apostasse que não o faria. Foi para
demonstrar que eu era tão boa montando como qualquer cowboy. Tive um tio na
Venezuela dono de um haras, e montava desde que era muito pequena. Após ganhar a
aposta, mareada pelo esforço e pelo álcool, arrematei minha façanha mergulhando
nua na piscina.
—Foi ali, na piscina, onde você se exibiu pelada — disse Florinda, obviamente a
par de meus pensamentos. —Me roçou com suas nádegas desnudas, e escandalizou a
todos, inclusive a mim. Me agradou sua ousadia, sobretudo a atitude de caminhar nua
de um lado ao outro da piscina, nada mais que para esfregar‐se contra mim. O tomei
como uma indicação de que o espírito te estava assinalando para benefício meu.
—Não pode estar certo — murmurei —, se tivesse estado nessa festa eu me
lembraria de você. É muito alta e chamativa para passar inadvertida. — não disse isso
em som de elogio. Queria convencer‐me de que estava sendo enganada, manipulada.
—Me agradou isso de você estar se matando para exibir‐se — continuou
Florinda. —Era um palhaço ansioso por chamar a atenção por qualquer meio, em
especial quando saltou sobre uma mesa e dançou sacudindo sua bunda
desavergonhadamente enquanto o anfitrião gritava como louco.
Ao invés de envergonhar‐me, seus comentários me produziram uma sensação
incrível de tranquilidade e agrado. Se havia feito público meu segredo, o que jamais
me havia animado a admitir: eu era uma exibicionista capaz de qualquer ato que
centrasse a atenção em mim. Dominou‐me um novo estado de ânimo, definitivamente
mais humilde, menos defensivo, mas temi que este estado seria de curta duração.
Sabia que as percepções e as realizações às quais alcancei em sonhos jamais foram
duradouras. Mas talvez Florinda estivesse certa e não era este um sonho, e por
conseguinte meu exaltado estado perduraria. Evidentemente conhecedora de meus
pensamentos, as três mulheres concordaram de maneira enfática, o qual, em lugar de
estimular‐me, só fez reavivar minha incerteza. Tal como temia, meu estado perceptivo

foi efêmero.
—Onde Emestá
poucos minutos
Delia? fervia de dúvidas, e precisava de uma trégua.
— perguntei.
—Em Oaxaca — informou Florinda, e depois acrescentou sutilmente: —Esteve
aqui nada mais que para saudar‐lhe.
Pensei que se mudasse de assunto conseguiria um respiro e a oportunidade de
recuperar minhas forças, mas agora enfrentava algo contra o qual me encontrava
desprovida de recursos. Não podia acusar a Florinda de mentir deliberadamente para
manipular‐me, o qual normalmente teria feito com qualquer um. Não podia
argumentar que suspeitava que me houvessem drogado e levado de quarto em quarto
enquanto estava inconsciente.
—O que você disse, Florinda, é absurdo — a censurei. —Sem dúvida não
esperará que te leve a sério. Sei que Delia está escondida em um dos quartos.
Os olhos
—Não de outra
tem Florinda pareciamque
alternativa a ‐de
dizer melevar
que ‐entendia meu
me a sério — dilema.
e apesar do tom ser
moderado, a intenção era categórica.
Virei‐me até as outras duas mulheres, com a esperança de obter algum tipo de
resposta, qualquer coisa capaz de apaziguar meu crescente temor.

86
—Se outra pessoa lhe guia é muito fácil ensonhar — confiou‐me Carmela. —A
única desvantagem é que essa pessoa precisa ser um nagual.
—Faz tempo que venho escutando essa palavra. O que é um nagual?
—Um nagual é um feiticeiro de grande poder, que pode conduzir a outros
feiticeiros através da escuridão e levá‐los à luz — explicou Carmela —, mas o nagual já
lhe disse isso, não se lembra?
Florinda intercedeu ao comprovar o esforço que eu fazia para recordar.
—Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos
muita prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco.
Precisamos lutar muito para recuperá‐los, simplesmente porque o corpo os armazena
em diferentes lugares. Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula —
continuou — as instruções para ensonhar começam por fazer com que desenhem um
mapa de seus corpos, um trabalho cuidadoso que revela onde as visões dos ensonhos
são armazenadas.
—Como se traça esse mapa, Florinda? — perguntei, autenticamente intrigada.
—Percorrendo e investigando cada polegada do corpo, mas não posso dizer
mais. Sou sua mãe, não sua mestra de ensonho. Sua mestra recomenda um martelinho
de madeira para golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito
raramente o corpo armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda
no peito, costas e ventre são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A
única coisa que diz respeito a você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a
pressão física sobre o ponto específico onde está armazenada essa visão. Por exemplo
— terminou dizendo com amável simplicidade — se empurrar sua vagina pressionando
o clitóris, recordará o que te disse Mariano Aureliano.
Olhei‐a espantada, e depois caí num acesso de risinhos nervosos. Não pensava
empurrar nada. Florinda também riu, ao parecer estar desfrutando de meu
desconcerto.
—Se não o fizer — ameaçou —, então terei que fazer com que Carmela o faça
por você.
Virei‐me até Carmela, que com um sorriso a ponto de tornar‐se gargalhada, me

assegurou
—Nãoquefaz
o faria.
falta! — gritei. —Eu lembro de tudo! — e de verdade o recordava, e
não só o dito por Mariano Aureliano. —O senhor Aureliano...
Carmela não me permitiu continuar.
—Clara lhe disse que o chame de nagual Mariano Aureliano.
—Os ensonhos são portas que conduzem ao desconhecido — disse Florinda,
acariciando minha cabeça. —Os naguais guiam por meio de ensonhos, e o ato de
ensonhar com um propósito é a arte dos feiticeiros. O nagual Mariano Aureliano tem
lhe ajudado a chegar aos ensonhos que todos nós ensonhamos.
Pisquei repetidas vezes, sacudi a cabeça, e depois me deixei cair sobre os
almofadões do divã, espantada pelo absurdo do quanto estava recordando. Lembrei
ter sonhado com eles um ano atrás em Sonora, um sonho que pareceu durar
eternamente.
ensonhadoras. Nesse sonho
Disseram conheci
‐me que quema dirigia
Clara, essa
Nélida e Hermelinda,
equipe era Zuleica,amas
equipe de
que eu
ainda não podia sonhar com ela.
À medida que a memória desse sonho se aclarava, também se fez claro que
entre essas mulheres nenhuma era mais ou menos que a outra. Que uma de cada

87
grupo fosse líder de nenhuma maneira implicava poder, prestígio ou realização, mas
sim por uma simples questão de eficiência. Não sei por que, mas eu estava convencida
de que a única coisa que a elas importava era o profundo afeto existente entre elas.
Naquele sonho todos me haviam dito que Zuleica era minha professora de
ensonhos; era tudo o que podia recordar. Tal como me havia dito Clara, necessitava
vê‐las ou sonhar com elas uma vez mais para cimentar meu conhecimento de suas
personalidades. No momento não passavam de lembranças incorpóreas.
Vagamente escutei a Florinda dizer que depois de outras poucas tentativas eu
melhoraria em mover‐me de minha lembrança de um ensonho ao ensonho que estava
ensonhando, e depois ao estado normal de consciência. Escutei Florinda rindo, mas eu
já não estava na casa e sim fora, caminhando através do chaparral, lentamente, por
uma trilha invisível, e um tanto intranquila devido à falta de luz, lua ou estrelas.
Atraída por uma força invisível entrei num aposento grande, escuro salvo por
umas linhas de luz que cruzavam de parede a parede sobre as cabeças daqueles que
estavam sentados em dois círculos, um externo e outro interno, linhas que
aumentavam e diminuíam de intensidade como se alguém no círculo manipulasse um
interruptor que acendia e apagava a corrente.
Reconheci a Mariano Aureliano e a Isidoro Baltazar, sentados costas contra
costas no meio do círculo interior. Reconheci tanto seus rostos como sua energia, a
qual não era mais brilhante ou intensa que a dos outros, e sim mais massiva, mais
volumosa; um esplêndido e enorme montão de brilho inacabável.
O quarto emitia um brilho límpido e tudo, cada ângulo, cada esquina, reluzia
uma força quase irreal. Tal era a claridade que tudo se destacava em separado, em
especial aquelas linhas de luz aderidas às pessoas sentadas no círculo, ou que
emanavam delas. Todas elas estavam conectadas por raios luminosos que pareciam os
pontos de suspensão de uma gigantesca teia de aranha, e se comunicavam sem
palavras através da luz. Me vi atraída em direção a essa tensão elétrica e silenciosa, até
converter‐me eu também num ponto dessa rede de luminosidade.
—O que vai acontecer? — perguntei a Florinda. Encontrava‐me estirada no divã
com a cabeça em seu colo.

lado comNãoosrespondeu; tampouco


olhos fechados. Carmela
Repeti nem Zoila,
a pergunta váriasque estavam
vezes, mas sentadas
só obtiveaocomo
seu
resposta a suave respiração das três mulheres. Tinha a certeza de que dormiam, e no
entanto sentia sobre mim a presença de seus olhos. O silêncio e a escuridão rondavam
a casa como algo vivo, trazendo com eles um vento gelado e o perfume do deserto.

88
CAPÍTULO NOVE

Tremendo de frio apertei a coberta ao redor de meu corpo e me levantei. Me


encontrei numa cama estranha, num quarto estranho mobiliado só com uma cama e
uma mesa de noite, apesar do qual todo o entorno exsudava familiaridade. Contudo
não conseguia dizer por que tudo me era tão bem conhecido. “Talvez ainda esteja
dormindo”, pensei. “Como sei que não é um sonho?” Me deixei cair novamente sobre
as almofadas e permaneci ali, com meus braços atrás da cabeça, deixando que os raros
acontecimentos presenciados e vividos, metade sonho, metade lembrança,
percorressem minha mente.
Pelo visto tudo havia começado no ano anterior, quando acompanhei a Delia
Flores à casa da curandeira. Ela mantinha que a comida que compartilhei com todos
havia sido um ensonho, e eu rejeitei suas pretensões como absurdas. Não obstante,
ela tinha razão. Agora eu sabia que a refeição no campo havia sido um ensonho, não
meu, e sim um ensonho ensonhado por outros, ao qual eu fui convidada: eu fui uma
convidada participante. Meu erro todo esse tempo havia sido o de negá‐lo
obstinadamente, em descartar como falso sem saber o que significava falso para mim.
A única coisa que consegui com isso foi banir o fato tão completamente de minha
mente que perdi consciência dele.
Eu precisava aceitar o fato de que possuímos uma senda por onde somente os
ensonhos transitam. De ter‐me decidido a recordar o ensonho que tive em Sonora
unicamente como tal, teria conseguido reter todo o admirável que aconteceu
enquanto o ensonho era ensonhado. Quanto mais especulava acerca disso, e de tudo o
que me estava acontecendo, maior era meu mal‐estar, porém o mais surpreendente
era que toda essa gente não me assustava, pois apesar a que me apoiavam, não
deixavam de ser um grupo intimidante. E de repente me ficou claro o motivo pelo qual
não os temia: os conhecia muito bem, e a prova era que eles mesmos haviam
expressado a estranha e no entanto reconfortante sensação que eu sentia: a de estar
voltando para casa.
Descartei todos estes pensamentos nem bem os havia formulado, e com toda

honestidadedisso,
conscientes me perguntei
estavam seseaproveitando
não seria eu
de uma
mim. desequilibrada
De maneira séria mental, e eles,
e sistemática,
passei em revista a minha história familiar, num intento de recordar tudo o que
pudesse ter escutado acerca de enfermidades mentais na família. Existiu, por exemplo,
aquele tio‐avô materno que, com a Bíblia em mãos, pregava nas esquinas das ruas.
Depois tanto meu bisavô como meu avô, em começos da Primeira e da Segunda
Guerra Mundial, haviam se suicidado ao comprovar que tudo estava perdido para eles,
e uma de minhas avós estourou os miolos quando se deu conta de que havia perdido
sua beleza e atração sexual. Agradava‐me pensar que havia herdado meu sentido de
autonomia por ser a autêntica neta de todos esses loucos. Sempre acreditei que meu
sentido de autonomia era o que alimentava minha audácia.
Estes mórbidos pensamentos me causaram tal ansiedade que, com
movimentos nervosos,
enorme surpresa me desfizmedeencontrei
e desconcerto minhas cobertas e saltei
vestindo um da camisão
grosso cama. Para minha
de flanela,
meias longas de lã, luvas e um cardigã (blusa de lã). “—Devo estar doente”, disse a
mim, — “por que, se não, estaria sentindo frio com todas estas roupas?”.
Normalmente eu dormia nua, indiferente às condições atmosféricas.

89
Recém então notei a luz do sol no quarto, filtrando‐se através do grosso e semi‐
opaco vidro da janela. Tinha a certeza de que essa luz em meus olhos era a
responsável por me acordar, além do mais tinha necessidade de encontrar o banheiro.
Temendo que a casa não tivesse instalação sanitária interna me dirigi até a porta
corrediça no outro extremo do cômodo, e ali encontrei um guarda‐roupa grande com
um pinico com tampa encima.
—Caralho! — gritei. —Não posso ir ao banheiro num guarda‐roupa!
A porta se abriu para deixar que Florinda entrasse.
—Está bem — disse, abraçando‐me. —Há uma latrina fora da casa. O pinico é
uma relíquia do passado.
—Que sorte que já é de dia — disse rindo. —Ninguém saberá que sou por
demais covarde para ir à latrina na escuridão.
Florinda me olhou de maneira estranha, e depois desviou seus olhos antes de
perguntar‐me num sussurro.
—O que te faz pensar que já é de manhã?
—O sol me despertou faz um tempinho — respondi, movendo‐me até a janela.
Era incrível para mim que ainda fosse de noite.
O rosto de Florinda se iluminou, e a risada sacudia seus ombros quando me
assinalou o foco de luz da lâmpada situada junto a minha cama, que eu havia
confundido com a luz do sol.
—O que te faz tão segura de que está desperta? — perguntou.
—Minha incontível necessidade de ir ao banheiro — respondi.
Tomando‐me pelo braço me ofereceu sua ajuda.
—Deixe que eu te leve à latrina antes que se desgrace.
—Não vou a parte alguma se para tanto não me disser se estou desperta ou
adormecida — gritei.
—Que mau gênio! — comentou Florida, baixando sua cabeça até fazer que sua
frente tocasse com a minha. —Está ensonhando desperta — informou, enunciando
cada palavra com suma deliberação.
Apesar de minha crescente apreensão comecei a rir, e o som desse riso,

reverberando
não por todo
me preocupou o ofato
quarto como desperta,
de estar um eco distante, dissipou
ou dormida minha ansiedade,
sonhando. e já
Toda minha
atenção se concentrou em chegar ao banheiro.
—Onde fica o vaso? — perguntei de mau modo.
—Você sabe onde está — respondeu Florinda dobrando os braços sobre o peito
— e nunca chegará a tempo a menos que se obrigue a isso. Mas não traga o vaso à sua
cama. A isso lhe chamam “o ensonhar do desleixado”, e é a melhor maneira para
emporcalhar sua cama. Anda até a latrina em um abrir e fechar de olhos!
Comprovei espantada, ao tentá‐lo, que não podia alcançar a porta. Meus pés
haviam perdido a confiança e, lentos e incertos, como indecisos, se arrastavam um
após o outro. Resistindo‐me a aceitar que já não me obedeciam, intentei acelerar
meus movimentos ajudando‐os com minhas mãos, levantando um e depois o outro pé.

e pena AdeFlorinda pareciacomeçaram


mim mesma a ‐formar
não importar lhe o que
‐se me
em acontecia.
meus olhosLágrimas de frustração
enquanto eu seguia
como parafusada ao chão. Meus lábios contornaram a palavra ajude‐me, mas nenhum
som escapou de minha boca.

90
—O que acontece? — perguntou, tomando um de meus braços para fazer que,
com suavidade, me sentasse no chão.
Depois me tirou as grossas meias de lã e examinou meus pés, e ali se mostrou
autenticamente preocupada. Queria explicar‐lhe que minha incapacidade para mover‐
me obedecia a que me encontrava emocionalmente exausta, porém, por mais que o
tentasse, não podia transformar meus pensamentos em palavras, e enquanto lutava
por emitir sons descobri problemas com minha vista: meus olhos não conseguiam
enfocar seu objetivo, e o rosto de Florinda permanecia borrado apesar de meus
intentos, independente de se estar meu rosto perto ou longe do seu.
—Eu sei o que te acontece — sussurrou Florinda em meu ouvido. —Tem que ir
ao vaso. Faça‐o! Intente chegar lá!
Com um enfático movimento de cabeça evidenciei meu assentimento. Sabia
que eu estava ensonhando desperta, ou melhor, que vivia em outra realidade que
ainda não me pertencia por inteiro, mas à qual tinha acesso por intermédio desta
gente. E me senti inexplicavelmente tranquila, e de repente estava na latrina, uma
autêntica latrina, não produto dos sonhos. Gastei bastante tempo em inspecionar o
que me cercava, em assegurar‐me de sua realidade, e durante um certo período o
consegui.
Depois, não sei como, me encontrei de novo no quarto. Florinda ponderou
sobre minha capacidade para ensonhar, ao qual prestei escassa atenção, pois me
distraiu a pilha de cobertores acomodados contra a parede. Não os havia notado ao
despertar, mas tinha a certeza de tê‐los visto antes. Minha sensação de bem‐estar
desapareceu rapidamente quando procurei recordar de onde havia visto essas
cobertas. Cresceu minha ansiedade. Já não soube se seguia na mesma casa à qual
chegara com Isidoro Baltazar, ou em algum outro lugar.
—De quem é esta residência? — perguntei — e quem me vestiu com toda esta
roupa? — escutar minha própria voz me aterrorizava.
Florinda me acariciou os cabelos, e com voz suave revelou que pelo momento a
casa era minha. Também que havia sido ela quem me abrigou para evitar um
esfriamento, explicando que o deserto era muito enganador, em especial de noite.

Olhava me com
preocupou, pois uma
suasexpressão
palavras enigmática, como se aludisse
não proporcionaram indício aalgum
algo, oacerca
qual me
do
presumivelmente insinuado. Meus pensamentos giravam sem rumo. A palavra‐chave,
decidi, era deserto. Eu não sabia que a casa das bruxas se localizava no deserto, pois
havíamos chegado nela depois de tantos rodeios que não poderia localizá‐la com
exatidão.
—De quem é esta casa, Florinda? — perguntei.
Ela parecia estar lutando com algum problema importante, pois sua expressão
mudou várias vezes, de pensativa a preocupada. “Está em sua casa”, disse por fim, sua
voz profunda embargada de emoção, e antes que eu pudesse lembrar‐lhe que não
havia respondido à minha pergunta, apontou em direção à porta e me indicou por
sinais para ficar em silêncio.
Algonão
sabia que sussurrou na escuridão
era nem um nem externa. Podia
outro. Era umter sidofamiliar,
som o vento tranquilizante,
e as folhas, masque
eu
recriava a memória da refeição no campo, em especial as palavras de Mariano
Aureliano: “Te soprarei, como soprei às outras, à pessoa que agora tem o mito em suas
mãos”.

91
As palavras soaram em meus ouvidos, e me virei como se Mariano Aureliano
tivesse entrado no quarto, e nesse exato momento as estivesse pronunciando em voz
alta. Florinda assentiu com um movimento de cabeça. Havia lido meus pensamentos, e
seus olhos, fixos nos meus, estavam me obrigando a aceitar minha compreensão da
frase do nagual. Durante a comida não havia designado demasiada importância à
frase, simplesmente me pareceu absurda. Agora era tal minha curiosidade por
averiguar quem eram “as outras” que não podia permitir que o tema se desvanecesse.
—Isidoro Baltazar falou acerca de certa gente que trabalha com ele — insinuei
com cautela. —Disse que lhe havia sido encomendada, e que era seu dever sagrado
ajudá‐los. São eles os que… foram soprados até ele? — perguntei vacilante.
Florinda repetiu seu característico movimento afirmativo de cabeça. Um leve
sorriso ondulava seus lábios, como se minha renúncia em utilizar a palavra soprar lhe
causasse graça. —Essas são as que o velho nagual soprou ao novo nagual. São
mulheres e se parecem com você.
—Se parecem a mim? — perguntei insegura, e pensei que teria sido preferível
se, em lugar de estar tão absorta com meus alternantes estados de ânimo e
sentimentos com relação a Isidoro Baltazar durante a viagem, tivesse prestado maior
atenção a tudo o que me revelou acerca de seu mundo.
—Em quê maneira essas mulheres se parecem a mim? — perguntei, para
depois acrescentar com fingida indiferença: —Você as conhece?
—Eu já as vi — disse sem comprometer‐se.
—Quantas mulheres foram sopradas a Isidoro Baltazar? — perguntei sem
conseguir ocultar que me afetava, apesar de que o mero pensar nelas era ao mesmo
tempo excitante e alarmante.
A Florinda lhe encantou minha reação.
—Umas tantas. Não se parecem fisicamente com você, e contudo são como
você. O que quero dizer é que se parecem entre si como eu com minhas irmãs
feiticeiras. Você mesma não se surpreendeu com nossa grande semelhança assim que
nos conheceu?
Dei‐lhe a razão, depois do qual Florinda explicou que o que fazia tão parecidas

às suas companheiras
devoção ao mundo doscom ela, apesar das óbvias diferenças físicas, era sua absoluta
feiticeiros.
—Nos une um afeto até agora incompreensível para você.
—Não me cabe dúvida alguma — comentei com o tom mais cínico possível.
Depois minha curiosidade em respeito às mulheres que haviam sido sopradas a Isidoro
Baltazar me dominou: —Quando as conhecerei?
—Quando as encontrar — respondeu Florinda.
—E como poderei encontrá‐las se não as conheço? Será algo impossível.
—Não para uma bruxa. Como já disse, não se parecem fisicamente com você,
mas seu resplendor interno é tão intenso como o delas. Por esse resplendor as
reconhecerá, é o resplendor dos feiticeiros. — Seus olhos se fixaram intensamente em
mim, como se de fato pudesse ver meu resplendor interno, sua voz baixou de tom e
seu rosto adquiriu
Teria um matiz
preferido grave.
dizer uma irreverência, mas algo em sua postura me alarmou.
—Eu posso ver esse resplendor? — perguntei.

92
—Para isso necessitamos do nagual — respondeu Florinda, apontando para
Mariano Aureliano, que estava de pé no canto em sombras do quarto. Não havia
notado sua presença, mas sua repentina aparição não me alarmou.
Florinda o colocar a par de meu desejo, e ele me fez sinais para segui‐lo até o
meio do recinto.
—Vou lhe mostrar esse resplendor — disse, pondo‐se de cócoras, e, elevando
ambas as mãos, me instruiu por sinais a que eu subisse em suas costas.
—O que? Vamos dar um passeio de cavalinho? — perguntei sem ocultar minha
desilusão. —Você não ia me mostrar o resplendor dos feiticeiros? — apesar de lembrar
muito bem de sua advertência de que a verdadeira feitiçaria não implicava
comportamento estranho, rituais, drogas ou encantamentos, agora esperava alguma
demonstração de seu poder, tal como o misturar feitiços e ervas sobre o fogo, mas
ignorando meu desencanto me convidou a rodear seu pescoço com meus braços,
recomendando fazê‐lo com a devida precaução a fim de não sufocá‐lo.
—Você não acha que sou um pouco crescidinha para que me levem assim?
Surgiu um riso na garganta de Mariano Aureliano e explodiu com gosto. Em um
salto ficou de pé, e acomodando seus braços atrás de meus joelhos me colocou em
posição cômoda, e saiu ao hall sem que minha cabeça batesse no umbral da porta.
Caminhou tão sem esforço e com tal rapidez que experimentei a sensação muito
concreta de estar flutuando pelo longo e escuro corredor. Observei curiosa tudo o que
me rodeava, mas nossa velocidade me impedia de captar detalhes da casa. Um suave
embora persistente perfume invadia tudo: uma fragrância de laranjeiras e a frescura
do ar frio.
Uma mortalha de névoa cobria o pátio exterior, reduzindo minha visão a uma
massa uniforme de silhuetas escuras, revelando e depois apagando as estranhas
formas de árvores e pedras. Contudo, de uma coisa eu tinha certeza: não estávamos
na casa das bruxas. Um único som chegava a meus ouvidos, um rítmico resfolegar (não
sabia se meu ou de Mariano Aureliano), que invadia todo o pátio, fazia tremer as
folhas e invadia meu corpo para produzir uma tontura que me obrigava a aferrar‐me
aos ombros do nagual a fim de não perder os sentidos; mas antes que pudesse dizer‐

lhe nada.
um o que estava experimentando a névoa me envolveu e senti que me dissolvia em
—Descansa sua testa sobre minha cabeça — ordenou Mariano Aureliano numa
voz que parecia vir de muito longe, e me produziu uma sacudida, pois havia esquecido
que cavalgava sobre suas costas. — Faça o que fizer — continuou — não se solte —
disse, acomodando‐me de maneira que minha cabeça sobressaísse sobre a sua.
—O que poderia acontecer se eu me soltar? — perguntei, revelando meu
temor —, somente cairia ao chão, não é?
Mariano Aureliano riu sem contestar. Pausadamente, quase com passos de
dança, percorreu várias vezes o extenso pátio, depois do qual, por um instante, tive a
muito aguda sensação de que nos elevávamos, perdíamos peso e sulcávamos o
espaço. Depois, através do corpo de Mariano Aureliano, me senti de novo em terra
firme. Nãohavia
mas algo soube se a névoa
mudado. se fosse
Talvez havia só
dissipado ou se
o ar que se fez
havíamos mudado
mais denso, de difícil
mais cenário,
de
respirar. Não havia lua e apenas se avistavam as estrelas, porém o céu brilhava como
iluminado desde algum lugar distante. Lentamente, como se alguém estivesse
reforçando seus contornos, as árvores adquiriram nitidez.

93
Mariano Aureliano fez uma parada frente a uma alta e frondosa árvore de
sapoti, em cujos pés estava reunido um grupo de umas doze ou catorze pessoas. As
folhas, pesadas de névoa, escureciam seus rostos ressaltados por uma estranha luz
verde emanada da árvore, cujo reflexo relampejava cada traço, olhos, narizes e lábios,
apesar do qual eu não conseguia identificar a nenhum, nem sequer determinar se
eram homens ou mulheres.
—O que fazem? Quem são? — sussurrei no ouvido de Mariano Aureliano.
—Mantenha sua testa sobre minha cabeça.
Obedeci sua ordem, temerosa de exercer demasiada pressão e fundir meu
rosto em seu crânio. Na esperança de reconhecer a alguém pela voz lhes dei um “boa‐
noite”, mas apenas consegui sorrisos muito fugazes, pois me viraram os rostos. Um
som raro partiu do grupo, um som carregado de energia pois, igual à árvore, cada um
deles começou a resplandecer, não com luz verde e sim com um brilho dourado, que
em pouco tempo se converteu numa enorme bola de ouro, que ficou suspensa sob a
árvore. Depois a bola se dissolveu para formar pedaços de luminosidade que, como
gigantescos vaga‐lumes, apareciam e desapareciam entre as árvores, espalhando luzes
e sombras quando passavam.
—Lembre‐se desse fulgor — murmurou Mariano Aureliano, e sua voz
repercutiu dentro de minha cabeça. —É o fulgor dos… surem.
Um repentino golpe de vento esparramou suas palavras, um vento vivo que
brilhava contra a escuridão do céu, soprando com grande violência e um estranho e
desgarrante som. E esse vento se virou contra mim, e tive a certeza de que pretendia
aniquilar‐me. Gritei de dor quando uma forte baforada chamuscou meus pulmões, e
um intenso frio dominou e endureceu meu corpo.
Não pude determinar se foi Mariano Aureliano ou o vento quem falou. O vento
rugiu em meus ouvidos, e depois penetrou meus pulmões, agitando‐se como um ser
vivo desejoso de devorar cada célula de meu corpo. Senti que me desmoronava, e
soube que estava morrendo, mas o rugido cessou, e se fez um silêncio tão repentino
que cheguei a ouvi‐lo. Ri com todas as minhas forças, agradecida pelo fato de seguir
com vida.

94
CAPÍTULO DEZ

A cama era grande, branda e confortável. Uma irradiação aurífera enchia o


quarto, e na esperança de prolongar esse momento de bem‐estar fechei os olhos e
mergulhei numa felicidade sonolenta, entre fragrantes lençóis de linho e o aroma de
travesseiros perfumados com lavanda. Sentia tensos cada músculo e cada osso de meu
corpo ao recordar os acontecimentos da noite, fragmentos desunidos de um sonho
horrível. Não existia continuidade nem sequência linear em tudo o que experimentei
durante essas horas intermináveis. Duas vezes despertei aquela noite em camas
diferentes, em quartos distintos, inclusive em casas distintas.
Se diria que essas imagens separadas possuíam vida própria, pois de repente se
empilharam e se expandiram para formar um labirinto que, de alguma maneira,
consegui compreender. Melhor dizendo, percebi cada evento simultaneamente. A
sensação dessas imagens, nascendo de minha cabeça para formar uma enorme e
caprichosa touca, era tão forte que saltei da cama para chegar até a cômoda de aço e
vidro, cujo espelho de três painéis encontrei coberto com papel arroz. Tentei arrancar
um pedaço desse papel, mas estava aderido como uma pele. Ver o jogo de escova e
pentes montados sobre prata, os frascos de perfume e os potes de cosméticos sobre a
cômoda, teve sobre mim um efeito tranquilizante, pois também eu os teria disposto
por tamanho como ferramentas. De algum modo soube que me encontrava no quarto
de Florinda, na casa das bruxas, e isto restabeleceu meu sentido de equilíbrio.
O quarto de Florinda era enorme, e a cama e a cômoda seus únicos móveis.
Estavam localizadas em cantos opostos, em ângulo, e separadas das paredes, deixando
atrás delas um espaço triangular. Esta disposição não deixou de intrigar‐me, pois não
sabia se era em resposta a alguma trama esotérica cujo significado me escapava, ou se
simplesmente respondia ao capricho estético de sua dona.
Senti curiosidade pelas três portas do quarto. E meu desejo de saber para onde
conduziam me levou a prová‐las. A primeira estava fechada por fora, a segunda abria a
um pequeno pátio, retangular e amuralhado. Estudei intrigada o céu, até que por fim
me dei conta de que não era de manhã, tal qual supus ao despertar, mas o fim da

tarde.pois
feliz, Nãoconvencida
me preocupava
de serouma
fato insone
de haver dormido
crônica, todo me
sempre o dia: ao contrário,
extasia o excederme
‐mesenti
em
dormir. A terceira porta abria a um corredor, e ansiosa por encontrar a Isidoro Baltazar
me dirigi à sala, que encontrei vazia.
Havia algo imponente na maneira prolixa e simples em que estava disposto o
mobiliário. Nada induzia a crer que o sofá e as poltronas tivessem sido ocupados na
noite anterior. Até as almofadas estavam esticadas como soldados em posição de
sentido. Também o refeitório, seguindo pelo corredor, parecia abandonado. Nem uma
cadeira fora de lugar, nem uma migalha, nem uma mancha sobre a lustrada superfície
da mesa de caoba, nada delatava o fato de que na noite anterior eu havia ceiado ali
com o nagual Mariano Aureliano e o senhor Flores.
Na cozinha, separada do refeitório por um pórtico e um estreito vestíbulo,
encontrei um jarro
doces. A fome me fezcom restos
resistir ao de champurrada
incômodo e um‐los.
de esquentá prato
Metampado,
servi umadecaneca
tamales
do
espesso chocolate e comi os três tamales diretamente de seus pacotes. Tinham
recheio de pedaços de pinha, uvas passas e amêndoas, que achei deliciosos.

95
Era‐me inconcebível que me tivessem deixado sozinha na casa, mas não podia
ignorar o silêncio que me rodeava. Não era a paz reconfortante que se percebe
quando os moradores deliberadamente se abstêm de fazer ruídos, antes era o rotundo
silêncio de lugar deserto, e a possibilidade de ter sido abandonada me fez engasgar
com um pedaço de tamale.
De volta ao quarto de Florinda me detive ante cada porta para golpear
repetidas vezes e perguntar “Tem alguém em casa?”; ninguém respondeu. Estava a
ponto de sair ao pátio quando ouvi com nitidez uma voz que perguntava:
—Quem chama? — voz profunda e áspera cujo sexo não pude determinar,
assim como tampouco a direção de onde vinha.
Retrocedi e repeti a pergunta a plenos pulmões. Ao chegar ao extremo do
corredor parei um instante frente a uma porta fechada, depois acionei a maçaneta e
entrei. Com os olhos fechados, apoiada contra a parede, esperei até que se
normalizassem as batidas de meu coração, e pensei com antecipada culpa nas
consequências que podia acarretar‐me o fato de ser surpreendida ali. Mas minha
curiosidade venceu, superei a sensação de estar cometendo um ato delituoso, e aspirei
o ar de encanto e de mistério que impregnava o cômodo.
Pesadas cortinas escuras impediam toda a claridade, e a iluminação vinha de
uma lâmpada cujo enorme abajur adornado com franjas vertia um círculo de luz
amarela sobre o sofá próximo à janela. No próprio centro uma cama de quatro
colunas, com dossel e cortinado, dominava tudo qual se fosse um trono, e as figuras
orientais de bronze e madeira, talhadas a mão e dispostas sobre as quatro mesinhas
situadas em cada canto, pareciam ser as sentinelas celestiais que guardavam o
aposento. Livros, papéis e jornais estavam amontoados sobre a escrivaninha e sobre
um armário; a cômoda carecia de espelho, e em lugar de pente e escova, ou frascos de
perfume e cosméticos, a superfície de vidro estava coberta por uma coleção de
pequenas taças. Colares de pérolas, correntes de ouro, anéis e broches transbordavam
das taças de bordas douradas como tesouros abandonados, e reconheci dois dos anéis
por tê‐los visto nas mãos de Zoila.
Reservei para o final a inspeção da cama. Quase com reverência, como se de

fato se tratasse
almofadas de um
brilhantes trono,
sobre corri overde
a colcha cortinado e emiti uma
me lembravam exclamação
flores silvestres de
numgozo: as
prado.
Contudo, não pude impedir que um calafrio sacudisse meu corpo, pois só podia
atribuir a uma ilusão esse calor e mistério que o quarto exalava.
A sensação de ter‐me introduzido em algum tipo de miragem se fez mais
pronunciada no terceiro cômodo, que a princípio também me pareceu cálido e
amistoso. O próprio ar era suave e afetuoso, ecos de risos pareciam repicar de suas
paredes, porém esta atmosfera era tão tênue e fugaz como a luz do entardecer
infiltrando‐se através do cortinado transparente de uma janela. Como no outro quarto,
a cama, também com dossel, e decorada com almofadas multicolores distribuídas ao
acaso, dominava o espaço. Uma máquina de costura descansava contra uma parede:
velho artefato de pé, pintado a mão. Junto a ela havia uma biblioteca, cujas estantes se
viam forradasempilhados
prolixamente com rolospordascormais finas
e por sedas,Seis
textura. algodões
perucas edegabardines
diferentes de lã,
cores,
estendidas sobre cabaças, estavam em exibição sobre uma mesa baixa junto à janela,
entre elas a peruca loira que usou Delia Flores, e a escura e esquisita que Mariano
Aureliano me enfiou na cabeça no dia do incidente da cafeteria de Tucson.

96
O quarto cômodo estava um tanto afastado dos outros, e do outro lado do
vestíbulo. Comparado com os demais dava a impressão de estar vazio. Os últimos raios
do sol da tarde, infiltrando através de uma parede treliçada, jaziam no piso como um
tapete de luzes e sombras, trama ondulante e retangular. As poucas peças de mobília
estavam tão engenhosamente distribuídas que faziam com que parecesse maior do
que na realidade era. Estantes baixas para livros, com portas de vidro, se alinhavam
junto às paredes, e num extremo do cômodo havia uma cama estreita cuja manta com
quadrinhos cinzas e brancos pendia até o piso e fazia jogo com as sombras no piso. A
delicada secrétaire de madeira rosa, com sua cadeira de igual madeira com bronze,
antes aumentava que reduzia a sensação espartana do ambiente. Sabia que era o
quarto de Carmela.
Gostaria de ter examinado os títulos dos livros, mas minha ansiedade era muito
grande, e como perseguida por alguém, saí precipitadamente ao corredor e dali ao
pátio. Sentei‐me numa cadeira de junco: tremia e transpirava, e apesar disso sentia as
mãos geladas. Não era por causa da culpa que tremia (não me teria importado que me
surpreendessem xeretando) e sim a estranha, não mundana, qualidade que distinguia
esses quartos tão lindamente mobiliados, a quietude aderida às paredes era uma
quietude singular que nada tinha a ver com a ausência de seus moradores, mas sim
com a ausência dos sentimentos e emoções que normalmente distinguem os lugares
habitados.
Eu havia rido comigo mesma cada vez que alguém se referia às mulheres como
bruxas e feiticeiras. Nem se pareciam ou se comportavam como se espera que façam
as bruxas: extravagantemente dramáticas e sinistras. Mas agora não me cabia dúvida
alguma de que eram diferentes de outros seres humanos. Assustava‐me que fossem
diferentes de uma maneira para mim incompreensível e inconcebível.
Um som suave e raspante pôs fim a meus inquietantes pensamentos, e em
busca de sua srcem deslizei na ponta dos pés pelo corredor, afastando‐me dos
dormitórios em busca dos fundos da casa. O ruído emanava de um quarto detrás da
cozinha, mas quando cheguei a ele e encostei meu ouvido na porta, parou, para
reiniciar assim que me afastei. Intrigada, aproximei de novo minha orelha e outra vez

parou,movimentos.
meus e assim várias vezes, como se o som e o consequente silêncio dependessem de
Decidida a descobrir quem se escondia ou, pior ainda, quem deliberadamente
tratava de assustar‐me, busquei a maçaneta da porta, mas ao não poder abrir lutei
vários minutos antes de me dar conta de que estava fechada, e com a chave na
fechadura.
Nem bem me encontrei dentro pensei que alguém perigoso bem podia, por
muitas boas razões, estar encerrado neste aposento. Uma penumbra opressiva se
aderia às pesadas cortinas fechadas, como algo vivo que atraía às sombras de toda a
casa até esse recinto enorme. A luz se enfraqueceu, as sombras se engrossaram ao
redor do que pareciam ser móveis descartados, e de figuras incomuns, enormes e
pequenas, feitas de madeira e de metal.

sombrasO se
mesmo som raspante
deslizavam que como
pelo quarto me trouxe
felinosa em
estebusca
quarto
dequebrou o silêncio.
uma presa, enquantoAs
gelada de terror eu observava como a cortina batia e respirava igual a um dos
monstros de meus pesadelos. De repente cessaram o som e o movimento, fazendo
ainda mais temível a resultante quietude e silêncio, e já me dispunha a abandonar o

97
lugar quando o ruído recomeçou. Então, armando‐me de valor, cruzei o quarto e
descorri o cortinado, e soltei uma risada ao comprovar que através do vidro quebrado
da janela o vento havia estado chupando e soprando a cortina.
A luz declinante da tarde, ao penetrar pelas cortinas semi‐abertas, reagrupava
as sombras e revelava um espelho ovalado quase escondido por uma das estranhas
figuras de metal. Consegui deslizar‐me entre a escultura e a parede para contemplar
embelezada o velho espelho veneziano, manchado e gasto pelos anos, que ao
distorcer grotescamente minha imagem me obrigou a fugir do lugar.
Saí afora pela porta traseira e encontrei deserta a ampla clareira detrás da casa.
O céu seguia brilhante, mas as altas árvores de frutas já haviam adquirido os tons do
crepúsculo. Um bando de corvos passou voando, suas negras asas escureceram a luz, e
se fez noite sobre o lugar. Dominada pela tristeza e a desesperança me sentei no chão
e chorei, e quanto mais forte era meu pranto maior prazer me ocasionava lamentar‐
me em viva voz. O ruído de um rastelo me tirou de meu lamento, e ao levantar a vista
vi a uma pessoa ágil arrastando folhas em direção a um fogo que ardia nos fundos do
pátio.
—Esperanza! — gritei, correndo até ela, mas me detive ao comprovar que não
era ela e sim um homem quem manipulava o rastelo. — Eu lamento — murmurei —, o
confundi com outra pessoa — e lhe estendi minha mão para apresentar‐me. Procurei
não olhá‐lo muito fixamente, mas não pude evitar, pois não estava de todo segura de
que não se tratasse de Esperanza disfarçada de homem.
Apertou minha mão suavemente, e a título de apresentação anunciou que era
o “cuidador”. Não disse seu nome. Quando tive sua mão na minha me pareceu tão
frágil como a asa de um pássaro; também seu rosto tinha algo de pássaro, aquilino e
de olhos vivos, cabelo branco semelhante a plumas e penacho. Em suma, um homem
fraco e antigo. Mas não eram só sua aparência de passarinho e sua delicadeza as que
me faziam lembrar a Esperanza, como também o rosto enrugado e carente de
expressão, os olhos límpidos e brilhantes como os de uma criança, e os dentes
pequenos, quadrados e muito brancos.
—Sabe onde está Florinda? — perguntei, e ante sua resposta negativa

acrescentei: —E osnum
Aguardou outros?
amplo silêncio, e depois, como se eu não tivesse feito pergunta
alguma, repetiu que era o cuidador.
—Eu cuido de tudo o que está aqui — disse.
—Não me diga? — perguntei, observando‐o com desconfiança. Tal era sua
fragilidade que era difícil concebê‐lo cuidando de algo, inclusive de si mesmo.
—Cuido de tudo — repetiu com um doce sorriso, destinado talvez a eliminar
minhas dúvidas, e parecia estar a ponto de acrescentar algo quando mudou de idéia,
mordeu pensativo seu lábio inferior, para logo dar meia volta e continuar reunindo as
folhas num pequeno monte, mediante hábeis movimentos de sua ferramenta.
—Onde estão todos? — perguntei.
Com a testa descansando sobre a mão que segurava o rastelo me dirigiu uma
olhada
momento ausente.
alguémDepois,
pudessecom um sorriso
aparecer vazio,deolhou
por detrás ao redor
uma das como
árvores se a qualquer
de frutas. Com um
forte e audível suspiro eu estava prestes a me retirar. Ele limpou sua garganta, e com
voz rouca e gasta pelos anos, disse:

98
—O velho nagual levou a Isidoro Baltazar às montanhas. — não me olhou; seus
olhos enfocavam algo na distância. —Regressarão em alguns dias.
—Dias! — gritei indignada. —Está certo de ter escutado bem? — e abatida por
haver se concretizado meu maior temor, só pude murmurar: —Como podem ter me
deixado sozinha desta maneira?
—Partiram de noite. — informou o velho, ao mesmo tempo em que recobrava
uma folha que o vento lhe havia roubado.
—Isso é impossível, acabamos de chegar de noite — retruquei. —Bem tarde.
Indiferente à minha presença e meu tom agressivo, o velho botou fogo no
monte de folhas.
—Isidoro Baltazar deixou alguma mensagem para mim? — perguntei, ficando
de cócoras junto a ele. —Não deixou nada dito para mim ou algo parecido? — sentia
vontade de gritar, mas algo me impedia disso. Um certo aspecto mistificador do velho
me desconcertava, e a idéia de que pudesse ser Esperanza disfarçada não me havia
abandonado ao todo.
—E Esperanza, foi com eles para as montanhas? — perguntei, e minha voz
tremeu, atacada por um súbito e desesperado desejo de rir. A não ser que abaixasse
suas calças e me mostrasse seus genitais, nada que ele fizesse poderia me convencer
de que era homem.
—Esperanza está na casa — murmurou, sua atenção fixa no monte de folhas
fumegantes. —Está na casa com os demais.
—Não seja ridículo, ela não está na casa — o contradisse de mau modo. —Não
há ninguém na casa. Eu os estive buscando toda a tarde, e revistei todos os quartos.
—Está na casa pequena — repetiu o velho com obstinação, transferindo seu
intenso olhar das folhas ao meu rosto. O brilho malicioso de seus olhos fez com que eu
desejasse chutá‐lo.
—Que pequena…? — não completei a pergunta, pois lembrei da outra casa que
havia visto quando chegamos, e a lembrança chegou a me causar uma dor física.
—Deveria de ter me dito desde o princípio que Esperanza estava na casa
pequena — o censurei, enquanto sub‐repticiamente buscava o lugar, oculto de minha

vistalápelas
está comograndes
disse —árvores
e fiqueiede
porpé.uma parede. —Irei ver se é verdade que Esperanza
O velho também se levantou, e da árvore mais próxima pegou uma lamparina e
um saco de estopa que estavam pendurados num galho baixo. —Eu sinto muito, mas
não posso deixá‐la ir lá sozinha — anunciou.
—Não vejo por que não? — respondi incomodada. —Talvez não o saiba, mas
sou hóspede de Florinda. Me levaram à casinha de noite. — fiz uma pausa antes de
acrescentar: —Estive lá, não duvide disso.
Escutou com atenção, mas a dúvida se refletia em seu rosto.
—É complicado chegar lá — advertiu —, preciso lhe preparar o caminho.
Preciso… — pareceu parar no meio de um pensamento que não desejava expressar.
Encolheu‐se de ombros e repetiu o referente à preparação do caminho.

com um—O que—


facão? é perguntei
que tem que
sem preparar? Temirritação.
ocultar minha que se abrir caminho pelo chaparral
—Sou o cuidador. Eu preparo o caminho — repetiu com obstinação, e se
sentou no chão para acender a lamparina de azeite. Antes de acender‐se
satisfatoriamente, a lamparina apresentou problemas. Depois, sob sua luz, os traços

99
do velho pareceram descamados, sem rugas, como se essa luz tivesse apagado os
maus‐tratos do tempo.
—Assim que terminar de queimar estas folhas te levarei até lá.
—Eu lhe ajudarei — retorqui.
Era óbvio que estava senil e necessitava que o satisfizessem. Colaborei com ele
juntando as folhas em pequenos montículos que ele de imediato queimava, para
colocá‐las no saco de estopa assim que se esfriavam. O interior da bolsa estava
recoberto de plástico. E foi este detalhe, o forro plástico, o que ressuscitou uma
lembrança quase esquecida de minha infância.
Enquanto juntávamos as folhas na bolsa contei‐lhe que de menina, vivendo
num povoado vizinho à Caracas, com frequência me despertava o ruído de um rastelo.
Então me escapulia da cama, e com passo de gato deixava para trás os dormitórios dos
meus pais e irmãos, e chegada ao quarto que ficava de frente à praça, com extremo
cuidado por causa das dobradiças traiçoeiras, abria as persianas de madeira e me
deslizava por entre as barras de ferro. O velho, a cujo encargo estava a limpeza da
praça, me dava as boas‐vindas com um sorriso desdentado, e juntos costumávamos
recolher as folhas caídas durante a noite em pequenos montículos, relegando os
demais dejetos às latas de lixo. Queimávamos as folhas e, ao esfriarem‐se, as
metíamos em um saco de estopa forrado de seda. Segundo o velho, as fadas aquáticas
que moravam num riacho sagrado nas montanhas próximas convertiam as cinzas em
pó de ouro.
—Também conhece às fadas que transformam as cinzas em pó de ouro? —
perguntei ao perceber o quão feliz que estava o velho com o conto.
Não respondeu, mas riu com tal prazer e abandono que não pude fazer menos
que juntar‐me à sua felicidade. Logo chegamos ao último montículo de cinzas junto ao
portão em arco implantado na parede: o portão de madeira estava aberto de par em
par. Do outro lado do chaparral, quase oculta em sombras, encontrava‐se a outra casa.
Nenhuma luz brilhava em suas janelas, e me deu a impressão de que se afastava de
mim. Perguntei‐me se tudo não seria mais que fruto de minha imaginação, um lugar
recordado em um sonho, e pisquei repetidas vezes e esfreguei meus olhos. Decidi que

algo andava
Isidoro mal Aaocasa
Baltazar. lembrar
menorminha
ficavachegada
à direitaà da
casa das bruxas
maior. Como,na noitea anterior
então, via agoracom
do
pátio traseiro da casa das bruxas? Em minha tentativa por orientar‐me me movi de um
lado a outro, choquei‐me com o velho, agachado junto a um monte de cinzas, e cai no
chão. Com incrível agilidade ficou pé e me ajudou a levantar.
—Está cheia de cinzas — disse, limpando‐me o rosto com o punho recolhido de
sua camisa de trabalho.
—Lá está! — gritei. Recortada nitidamente contra o céu a casa esquiva parecia
estar a poucos passos. —Lá está. — repeti, e comecei a saltar como se com esses pulos
conseguiria reter a casa em seu lugar e no tempo. —Essa é a verdadeira casa das
bruxas — acrescentei, enquanto deixava que o velho continuasse com a limpeza de
meu rosto —, a casa grande é só uma fachada.
—A casa das
depois gargalhar, bruxas —
parecendo serepetiu
divertir.ele, lentamente, saboreando cada palavra, para
Enfiou as últimas cinzas em sua bolsa, e com um sinal me convidou a segui‐lo.
Dois pés‐de‐laranja cresciam do outro lado do portão, afastados da parede. Uma brisa
fresca soprava através de seus galhos floridos, mas as flores em si não se moviam, não

100
caíam ao chão. Contra a escura folhagem, pareciam talhadas em quartzo leitoso. Como
sentinelas, as duas árvores guardavam o estreito caminho, branco e muito reto, como
traçado com uma régua.
O velho me entregou a lamparina; depois extraiu um punhado de cinzas da
bolsa, as quais passou várias vezes de uma mão à outra, como se as pesasse, antes de
espalhá‐las pelo chão.
—Não faça perguntas e siga minhas instruções — disse numa voz já não rouca,
e sim dotada de uma qualidade aérea, enérgica e convincente. Levemente encurvado e
caminhando para trás deixou que o resto das cinzas caíssem da bolsa sob o estreito
caminho.
—Mantenha seus pés na linha das cinzas — advertiu. —Se não o fizer nunca
chegará na casa.
Tossi para esconder meu riso nervoso, e estendendo os braços encarei a
estreita linha de cinzas como se caminhasse por uma corda bamba: e cada vez que
parávamos para permitir ao velho recuperar o fôlego, me virava para olhar a casa
recém abandonada, a qual parecia afastar‐se apesar de que a outra não dava a
impressão de aproximar‐se. Tentei me convencer de que se tratava de uma ilusão de
ótica, mas me pesou a vaga certeza de que jamais alcançaria uma ou outra casa se o
tentasse por minha conta. Diria‐se que o velho percebeu meus temores, pois segurou
meu braço para dar‐me ânimo.
—Por isso estou preparando o caminho — explicou, e olhando dentro de sua
bolsa acrescentou: —Não tardaremos a chegar. Lembre‐se de manter seus pés sobre a
linha de cinzas. Se o fizer poderá transitar sem problema num ou noutro sentido a
qualquer momento.
Minha mente me dizia que o homem era um louco, mas meu corpo sabia que
sem ele e suas cinzas eu estava perdida. E tão absorta estive em manter meus pés
sobre a linha que me surpreendeu quando finalmente nos encontramos frente à porta.
O velho pegou de volta a lamparina, limpou sua garganta e depois golpeou
suavemente com os nós dos dedos sobre o painel entalhado. Não esperou resposta,
empurrou e entramos.

—Não
O seguivápor
tãoum
rápido! — gritei,
estreito temerosa
vestíbulo, ondededeixou
ser deixada para trás.
a lamparina sobre uma mesa
baixa, e logo a seguir, sem uma palavra, e sem sequer olhar atrás, abriu uma porta e
desapareceu tragado pela escuridão. Guiada por uma vaga lembrança entrei no quarto
adjacente, apenas iluminado, e de imediato me dirigi à esteira que cobria o piso. Não
tinha a menor dúvida de ter estado ali e dormido sobre essa esteira na noite anterior,
mas não estava tão segura sobre o jeito em que cheguei. Que Mariano Aureliano me
havia carregado em suas costas através do chaparral estava claro em minha mente,
como também ter despertado nesse quarto com Clara ao meu lado, antes de ser
levada pelo velho nagual.
Confiante de que tudo me seria explicado em breve me sentei sobre a esteira. A
luz da lamparina vacilou e depois se apagou, e pressenti, mais que vi, coisas e pessoas
movendo ‐see ao
cada canto, redor.
entre Escutei
todos o murmúrio
eles reconheci de vozes
um familiar e sons
frufru intangíveis
de saias surgindo
e um suave de
risinho.
—Esperanza? — sussurrei. —Meu Deus, não sabe quanto me alegra por lhe
ver! — e apesar de ser ela quem me esperava, me surpreendi quando a tive a meu
lado. Timidamente toquei seu braço.

101
—Sou eu — me assegurou.
Apenas escutar sua voz me convenceu de que na verdade era Esperanza, e não
o cuidador, que havia trocado sua roupa de trabalho caqui por anáguas sussurrantes e
um vestido branco. Quando senti o toque tranquilizante de sua mão sobre meu rosto
desapareceu toda a preocupação pelo cuidador.
—Como cheguei aqui? — perguntei.
—O cuidador te trouxe — respondeu rindo. —Não lembra? — e virando‐se até
a mesa acendeu de novo a lamparina.
—Falo da outra noite — esclareci. —Sei que estive aqui, despertei sobre esta
esteira. Clara estava comigo, e Florinda, e as outras mulheres… — e minha voz apagou
ao lembrar que depois havia despertado na sala da outra casa, e depois sobre uma
cama. Sacudi a cabeça, como para por ordem em minhas lembranças. Sentindo‐me
desamparada olhei para Esperanza, confiante de que ela estava enrolando, e lhe falei
das dificuldades que estava experimentando para recordar, em sua ordem seqüencial,
dos acontecimentos daquela noite.
—Não deveria ter problemas — respondeu. —Meteu‐se no trilho dos
ensonhos. Agora está ensonhando desperta.
—Quer dizer que neste exato instante estou dormindo? — perguntei
brincando. —Você também dorme?
—Não estamos dormindo — respondeu, articulando suas palavras com
cuidado. —Você e eu estamos ensonhando despertas — e elevando suas mãos num
gesto desvalido, acrescentou: —Eu lhe disse isso no ano passado. Lembra?
Tive de repente um pensamento salvador que chegou como se dito por alguém
em meu ouvido: na dúvida a pessoa deve separar os dois trilhos, o dos assuntos
ordinários e o dos ensonhos, já que cada um tem um diferente estado de consciência.
Isso me levantou o ânimo, pois sabia que o primeiro a ser examinado era o dos
ensonhos; se a situação não corresponde a este trilho então a pessoa não está
ensonhando. Meu júbilo desapareceu quando tentei examinar o trilho dos ensonhos.
Não tinha noção de qual era, nem de como se faz, para proceder à sua revisão e, para
piorar, não lembrava quem me havia recomendado este procedimento.

—Fui
ensonhos. eu —
Quase revelouoEsperanza.
recordou —Você
que te disse o anotem avançado
passado, no diamuito nodareino
depois dos
comida.
Disse então a você que quando duvidar sobre se está ou não ensonhando, precisa
examinar o trilho pelo qual marcham os ensonhos, significando com isto que precisa
examinar o grau de consciência que temos nos ensonhos, sentindo aquele com o qual
está nesse momento em contato. Se está ensonhando, esse sentir regressa a você
como um eco; se não regressar, é sinal de que não está ensonhando.
Sorrindo, beliscou minha coxa e disse:
—Prove com esta esteira sobre a qual está recostada. Experimente com suas
nádegas. Se obter resposta, então está ensonhando…
Minhas intumescidas nádegas não receberam resposta. De fato, eu estava tão
intumescida que nem sequer sentia a esteira. Tinha a sensação de estar estendida
sobre
deveriaasimperar
ásperasolajotas docaso
oposto: chão.seExperimentei um forte
receba resposta, entãodesejo informar‐mas
se estádedesperto, lhe que
me
detive a tempo pois sabia, acima de qualquer dúvida, que para ela o significado de “o
sentir que regressa como um eco” nada tinha a ver com nosso conhecido e aceito
entendimento do que é uma sensação ou um eco. A diferença entre estar desperta e

102
ensonhar desperta me escapava, apesar de minha certeza de que essa diferença não
coincidia em absoluto com nossa maneira convencional de entender a consciência. No
entanto, nesse momento, as palavras abandonavam minha boca sem controle de
minha parte. Disse:
—Sei que estou ensonhando desperta e ponto final. — Pressenti a estar
aproximando‐me a um novo e mais profundo nível de compreensão que, contudo, não
conseguia assimilar. —O que queria saber é: quando eu dormi? — perguntei.
—Já te disse, não está adormecida. Está ensonhando desperta.
Sem querer comecei a rir de maneira tranquila, mas visivelmente nervosa. Ela
não pareceu notá‐lo nem importar‐se.
—Quando teve lugar a transição? — perguntei.
—Quando o cuidador te estava fazendo cruzar o chaparral, e tinha que
concentrar‐se em manter seus pés sobre as cinzas.
—Deve ter me hipnotizado! — disse de não muito bom grado.
Comecei a falar de forma incoerente, enredando‐me em palavras sem
conseguir que elas tivessem sentido, para terminar chorando e denunciando a todos.
Esperanza me observou em silêncio, sobrancelhas levantadas e olhos abertos em
atitude de surpresa. De imediato lamentei meu rompante, apesar de que me satisfez o
fato de ter falado, pois senti um momentâneo alívio do tipo que se experimenta depois
de uma confrontação.
—Sua confusão se srcina em sua facilidade para passar de um tipo de
consciência a outra. Se tivesse tido que lutar para conseguir isso, como o faz todo
mundo, então saberia que o ensonhar desperto não é somente hipnose. — Esperanza
fez uma pausa antes de continuar. —O ensonhar desperto é o estado mais sofisticado
que os seres humanos podem conseguir.
Olhou em direção às sombras do quarto, como se de lá alguém pudesse lhe
fornecer uma explicação mais clara. Depois, virando‐se para mim, perguntou:
—Você comeu sua comidinha?
A mudança de assunto me surpreendeu, e comecei a balbuciar. Ao recobrar‐
me, disse‐lhe que, de fato, havia comido os tamales doces, que havia tido tanta fome

que nem
com me incomodei
seu chale Esperanzaemmeesquentá los, edetalhada
pediu uma que estavam deliciosos.
versão de tudoEnquanto brincava
o que havia feito
desde meu despertar no quarto de Florinda. Como se me tivessem administrado uma
poção reveladora da verdade, soltei mais do que era minha intenção divulgar. A
Esperanza não pareceu importar‐lhe minha passagem pelos quartos das mulheres,
nem lhe impressionou o fato de que eu soubesse qual quarto correspondia a cada
uma. O que se lhe interessou, não obstante, foi meu encontro com o cuidador, e com
um sorriso de inocultável felicidade, escutou o relato de minha confusão, de tê‐lo
tomado a ele por ela. Ao admitir que em determinado momento estive a ponto de
pedir‐lhe a exibição de seus genitais como prova, fez com que ela se torcesse de risos
sobre a esteira.
Apoiando‐se em mim, cochichou em meu ouvido:

meus. —Te tranquilizarei — e com um brilho perverso nos olhos adicionou —, olhe os
—Não é necessário, Esperanza — retruquei, intentando dissuadi‐la. —Não
duvido de que seja mulher.

103
—Não há como se estar seguro disso — rebateu, ignorando minhas palavras, e
indiferente ao meu desconcerto (ocasionado não tanto pela iminente desnudez, e sim
pelo fato de ter que contemplar um corpo velho e enrugado) se recostou na esteira e,
com grande sutileza, levantou lentamente suas saias.
Minha curiosidade triunfou sobre meu desconcerto, e a olhei boquiaberta. Não
usava calcinhas, e carecia por completo de pelos púbicos. Seu corpo era incrivelmente
jovem, as carnes fortes e firmes, e os músculos delicadamente delineados. Era de uma
só cor, um uniforme rosa‐avermelhado; sua pele não exibia uma só mancha nem
varizes, e nada danificava a uniforme suavidade de suas pernas e seu abdômen.
Me estiquei para tocá‐la, como se precisasse do tato para assegurar‐me de que
essa pele sedosa era real, e ela abriu os lábios de sua vagina com os dedos. Afastei
meu rosto, não tanto por sentir‐me incomodada, mas por causa de minhas conflitadas
emoções. Não era uma questão de desnudez: havia nascido num lugar sem
preconceitos, onde ninguém tinha problemas a esse respeito, e durante meus dias
escolares na Inglaterra fui convidada um verão a passar duas semanas na Suécia, na
casa de uma amiga que morava junto ao mar. Toda sua família pertencia a uma colônia
nudista que adorava o sol com cada pedaço de sua pele desnuda.
Ver a Esperanza sem roupas ante mim foi diferente, e me excitou de maneira
muito especial. Nunca havia reparado antes nos órgãos sexuais de uma mulher.
Certamente já havia examinado a mim mesma no espelho. Desde todo ângulo possível.
Também havia assistido à exibição de filmes pornográficos, que não só me
desagradaram como me ofenderam, mas vê‐la assim a Esperanza foi uma experiência
demolidora, pois sempre considerei normais minhas reações no terreno sexual. Pensei
que como mulher unicamente me excitaria um homem, e me surpreendeu
tremendamente um incontível desejo de montá‐la, neutralizado somente por minha
falta de pênis.
Quando Esperanza ficou de pé e tirou a blusa, aspirei o ar num sonoro gesto de
surpresa, e depois mantive a vista fixa no piso até que se amainou a sensação febril em
meu pescoço e em meu rosto.
—Olhe‐me! — exigiu impaciente. Estava totalmente nua, os olhos brilhantes e

as bochechas
aparentava coradas.
vestida, e seusSeu corpo
seios cheiosera leve, porém maior e mais forte do que
e firmes.
—Toque‐os! — ordenou num tom suave e convidativo.
Suas palavras rebateram ao redor do quarto como um ritmo enfeitiçador, um
som mais sentido que escutado, que pouco a pouco cresceu em intensidade até
tornar‐se tão forte como o de meu próprio coração. Depois não escutei nem senti
outro som além do da risada de Esperanza.
—O cuidador não estará escondido aqui, verdade? — perguntei quando pude
falar, repentinamente receosa e sentindo‐me culpada por minha ousadia.
—Espero que não! — rebateu com tal ar de espanto que não pude evitar o riso.
—Onde está? — insisti.
Esperanza abriu bem os olhos e sorriu, como quem se preparara a gargalhar,
mas de imediato
cuidava das duas adotou
casas, euma expressão
não era séria, eespiar
seu costume em tom formal explicou que o homem
as pessoas.
—Mas é verdadeiramente o cuidador? — perguntei, cuidando para mostrar‐me
ascética. —Não quero menosprezá‐lo, mas não me parece capaz de cuidar de nada.
Segundo Esperanza, a fragilidade do cuidador era só aparente.

104
—É muito capaz, — me assegurou — e deve se ter cuidado com ele, pois ele
gosta de moças jovens, em especial das loiras — e se aproximou para cochichar em
meu ouvido: —Ele tentou algo contigo?
Acudi em sua defesa.
—Céus, não! Foi muito correto e de grande utilidade. É só que… — e minha voz
se arrastou até se fazer um sussurro, e minha atenção se desviou até os móveis do
quarto, que não conseguia distinguir por causa da má luz da lamparina de azeite.
Quando por fim pude enfocar de novo minha atenção em Esperanza o cuidador
deixou de me preocupar. Somente podia pensar, com tenaz insistência, em por que
Isidoro Baltazar havia partido sem avisar‐me, sem sequer deixar‐me um bilhete.
—Por que me deixou desta maneira? — perguntei a Esperanza. — A alguém
deve de ter avisado quando voltará — e, ao notar seu sorriso irônico, emendei com
tom beligerante: —Estou segura de que você sabe algo sobre tudo isto.
—Não sei de nada — insistiu, incapaz de entender meu problema. —Essas
coisas não me preocupam, e tampouco deveriam preocupar a você. Isidoro Baltazar se
foi, e assunto acabado. Regressará num par de dias, num par de semanas… quem
sabe? Tudo depende do que aconteça nas montanhas.
Achei abominável sua falta de compreensão e simpatia.
—Tudo depende?! — gritei. —E eu? Eu não posso ficar semanas aqui.
—Por que não? — perguntou Esperanza com ar inocente.
Olhei‐a como quem olha a um demente, e logo me lancei a dizer que não tinha
com que me arranjar, que não havia nada que eu pudesse fazer ali. Minha lista de
queixas era interminável, e mal a havia acabado quando me esgotei.
—Simplesmente tenho que ir pra casa, regressar a meu meio normal — concluí,
lutando contra minhas inevitáveis lágrimas, às quais opus valente batalha.
—Normal? — e Esperanza repetiu a palavra com lentidão, como se estivesse
saboreando‐a. —Pode ir quando quiser; ninguém lhe impede disso. Podemos arranjar
para fazer‐lhe chegar sem problemas à fronteira, de onde pode tomar um ônibus da
Greyhound que lhe deixará em Los Ângeles.
Não me animei a falar, de modo que assenti com um gesto. Tampouco sabia

que não partir
intolerável. era o modo
De algum que eueudesejava,
sabia quepois a mera
se eu fosse, idéia deencontraria
jamais ausentar mede me
novoeraa
essas pessoas, nem sequer a Isidoro Baltazar em Los Ângeles. Comecei a chorar
incontrolavelmente. Não poderia ter posto minhas emoções em palavras, mas a aridez
de uma vida, de um futuro sem essa gente, me era inconcebível.
Não percebi a partida e o regresso de Esperanza do quarto, mas não teria
percebido nada a não ser pelo aroma delicioso de chocolate que senti sob minhas
narinas.
—Se sentirá melhor depois que tiver comido — disse, colocando uma bandeja
em minha saia, e sorrindo carinhosamente tomou assento a meu lado, e confessou
que o chocolate era o melhor remédio para a tristeza.
Concordei plenamente com ela, bebi uns poucos goles e comi umas tantas
tortilhas
bem a ela enroladas
nem às esuas
untadas comnão
amigas, manteiga, e confessei
podia conceber que, apesar
o afastar ‐me e de
nãonão
vê‐conhecer
las mais.
Admiti que com elas sentia uma liberdade e uma soltura jamais experimentada antes.
Uma sensação estranha, expliquei, em parte física e em parte psicológica, que

105
desafiava toda análise, que só podia se descrever como uma sensação de bem‐estar,
ou como a certeza de ter encontrado por fim um lugar ao qual pertencia.
Esperanza sabia com exatidão o que eu intentava expressar. Disse que o
pertencer ao mundo dos feiticeiros, ainda por um curto tempo, provocava vício,
dependência. Não era a extensão do tempo, ressaltou, e sim a intensidade dos
encontros o que importava. —Seus encontros foram muito intensos… — afirmou.
—Eles foram? — perguntei.
Esperanza levantou as sobrancelhas num autêntico gesto de surpresa, e depois
coçou sua testa de maneira exagerada, como se estivesse ponderando um problema
sem solução. Depois de um longo silêncio emitiu sua opinião:
—Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não
pode voltar à sua antiga vida — sua voz, apesar de ser apenas audível, continha uma
força extraordinária; seus olhos prenderam um instante os meus, e ali reconheci o
significado de suas palavras.
—Para mim nada voltará a ser igual — disse. Esperanza concordou.
—Regressará ao mundo, mas não ao seu mundo, à sua antiga vida —
considerou, levantando‐se da esteira com essa abrupta majestade própria de pessoas
pequenas. Correu até a porta, parou bruscamente e, virando‐se para mim, pronunciou
outra de suas sentenças: —É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o
é mais, se você se decide a fazer algo sem saber qual será o resultado.
Estive em completo desacordo com ela, e disse‐lhe:
—Preciso saber o que faço. Necessito saber em quê estou me metendo.
Esperanza suspirou e levantou as mãos numa cômica atitude de súplica.
—A liberdade causa muito temor — disse asperamente, e antes que eu tivesse
chance de responder, mudou de tom, e agregou com doçura: —A liberdade requer
atos espontâneos. Não tem idéia do que significa o abandonar‐se espontaneamente...
—Tudo o que eu faço é espontâneo — interrompi. —Por que acha que estou
aqui? Acha que pensei muito sobre se deveria vir ou não?
Voltou à esteira e ficou contemplando‐me um longo período antes de dizer:
—É evidente que não o pensou muito, mas seus atos de espontaneidade se

devem
com mais
o pé à sua
para falta de
impedir umaavaliação que a um ato
nova interrupção de abandono
de minha — e golpeando
parte, acrescentou: o chão
—Um ato
verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas
só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram
devidamente levados em conta e descartados, pois nem se espera nada nem se
lamenta nada. Com atos dessa natureza os bruxos convocam a liberdade.
—Não sou uma bruxa — murmurei em voz baixa, e procurei retê‐la segurando
o meio de seu vestido, mas ela deixou bem claro que não tinha interesse algum em
continuar com nossa conversa. Eu a segui pelo caminho que conduzia à outra casa. Tal
qual fizera o cuidador, também ela me recomendou manter os pés sobre a linha de
cinzas.
—Se não o fizer — disse —, você cairá no abismo.

rodeava.—Abismo? — repeti, olhando em torno, à massa do escuro chaparral que nos


Se alçou uma leve brisa, e das sombras chegaram vozes e sussurros.
Instintivamente me aferrei à sua saia.
—Pode ouvi‐los? — perguntou.

106
—O que é que devo ouvir?
Ela se aproximou como se temesse que alguém nos escutasse, para me dizer no
ouvido:
—Surems de outro tempo. Usam o vento para vagar pelo deserto, sempre
despertos.
—Fantasmas?
—Não existem os fantasmas — manifestou de maneira terminante, e retomou
sua caminhada.
Me certifiquei muito bem de manter os pés sobre a linha de cinzas, e não soltei
a saia de Esperanza até que ela parou bruscamente no meio do pátio da casa grande.
Ali vacilou um instante, como se não pudesse decidir a qual parte da casa havia de
levar‐me. Percorreu corredores e dobrou em várias esquinas, até que por fim
ingressamos num enorme aposento que havia escapado de minha exploração anterior.
As paredes estavam cobertas do piso ao teto com livros; em um extremo havia uma
mesa larga e forte, e em outro estava pendurada uma rede tecida, de cor branca.
—Que quarto magnífico! — exclamei. —A quem pertence?
—É seu — ofereceu Esperanza com um gracioso gesto, e depois, de um armário
próximo à porta, extraiu três grossas cobertas de lã.
—Pegue, as noites são frias — disse.
—Quer dizer que posso dormir aqui? — perguntei, e todo meu corpo tremeu
de prazer quando forrei a rede com as cobertas e me instalei nela… De menina, foram
muitas as vezes em que dormi numa rede, de modo que, recriando esses momentos,
suspirei feliz e passei a me balançar. Depois meti as pernas e me estendi
voluptuosamente.
—Saber dormir em rede é como saber andar de bicicleta. Nunca se esquece —
disse, mas ninguém me escutou.
Esperanza havia partido sem que eu o notasse.

107
CAPÍTULO ONZE

Apaguei a luz e permaneci muito quieta na rede, embalada pelos ruídos da


casa: estalos estranhos, e o gotejar da água de um filtro de barro situado junto à porta
de meu quarto. O inconfundível som de passos no corredor me fez levantar
bruscamente.
—Quem pode ser a esta hora? — me perguntei.
Abandonei a rede, e nas pontas dos pés me aproximei da porta para apoiar
meu ouvido contra ela. Os ruídos eram fortes, e meu coração acelerou ao constatar
que chegaram perto e pararam ante meu quarto. Houve uma batida na porta
carregada de urgência que, apesar de esperar por isso, me sobressaltou. Dei um salto
para trás e derrubei uma cadeira.
—Teve um pesadelo? — perguntou Florinda ao entrar. Deixou a porta semi‐
aberta, e a luz do corredor invadiu o recinto. —Pensei que ficaria feliz ao escutar o som
de meus passos — disse de brincadeira. —Não queria me aproximar furtivamente —
acrescentou, enquanto pendurava uma camisa e uma calça cor caqui sobre o encosto
de uma cadeira. —Com os cumprimentos do cuidador. Disse que pode ficar com elas.
—Ficar com elas? — repeti, olhando as prendas com desconfiança. Davam a
impressão de estar limpas e recém passadas. —O que tem de errado com meus jeans?
—Se sentirá mais cômoda com essas calças durante a longa viagem a Los
Ângeles — explicou Florinda.
—Mas eu não quero ir! Eu fico aqui até que Isidoro Baltazar volte.
Ao observar que eu estava a ponto de entregar‐me ao choro, Florinda riu.
—Isidoro Baltazar regressou, e você pode ficar mais um tempo, se assim o
desejar.
—Oh, não, nada disso — respondi, esquecida já de toda a ansiedade acumulada
nesses dois dias, assim como também de todas as perguntas que desejava fazer a
Florinda. Somente conseguia pensar no fato de que Isidoro Baltazar estava de volta.
—Posso vê‐lo já?
—Temo que não — e Florinda me impediu que abandonasse o quarto.

Poraté
entender, unsque
minutos não compreendi
ela repetiu que naquelaonoite
sentido
nãode suas
seria palavras.
possível Olhei
ver ao novoa fixo sem
nagual.
—Por que não? — perguntei confundida. —Estou certa de que ele desejaria me
ver.
—Sem dúvida alguma — rebateu —, mas está profundamente adormecido, e
não pode ser despertado. — ante a tão terminante recusa não pude fazer nada mais
que contemplá‐la em silêncio.
Florinda passou um longo tempo com o olhar fixo no chão, e quando por fim
me encarou seu olhar era triste. Por um momento achei que modificaria sua decisão e
me levaria junto a Isidoro Baltazar, mas concluiu repetindo que não poderia vê‐lo essa
noite, e dito isto, como temerosa de arrepender‐se, me abraçou e me beijou,
abandonou o quarto, apagou a luz do corredor, e das sombras me mandou ir dormir.

estava Incapaz de conciliar


por amanhecer o sono,
quando decidipassei longas
levantar ‐me ehoras
vestirrevolvendo ‐me trazidos
os presentes na rede.por

Florinda. Salvo as calças, que por falta de cinta precisei segurar com uma corda, o
conjunto me caía bem. Com os sapatos na mão atravessei o corredor, deixei para trás

108
o quarto do cuidador, e me dirigi à entrada traseira. Cuidando para não fazer ruído,
abri parcialmente a porta.
Lá fora estava escuro, mas o suave azul da madrugada já coloria o céu. Corri até
o pórtico assentado sobre a parede, parando apenas junto às duas árvores sentinelas
do caminho. Um forte aroma de flor de laranjeiras perfumava o ar, e toda a dúvida a
respeito de cruzar o chaparral morreu quando comprovei que cinzas frescas cobriam o
chão. Sem pensar duas vezes corri até a outra casa.
A porta estava entreaberta, porém adiei meu ingresso. Escondida sob uma
janela, esperei ser guiada por algum som, que me chegou em pouco tempo na forma
de sonoros roncos. Deixei passar uns minutos, entrei, e guiada pelos roncos me
encaminhei diretamente ao quarto dos fundos da casa. Na escuridão apenas distingui
uma forma adormecida sobre uma esteira, mas não tive dúvidas de que se tratava de
Isidoro Baltazar. Temerosa de que um despertar repentino o perturbasse, voltei ao
aposento da frente e me sentei no sofá. Tal era minha excitação que não conseguia
ficar quieta, feliz com a idéia de que a qualquer momento despertaria. Duas vezes
regressei na ponta dos pés para olhá‐lo. Havia mudado de posição durante o sono, e já
não roncava.
Devo ter adormecido no sofá, pois através de meu inquieto sono tive a
sensação de que alguém havia entrado no quarto. Ergui‐me um pouco para murmurar
“estou esperando que Isidoro Baltazar desperte”, mas sabia que nenhum som havia
saído de minha boca. Com um esforço consciente me sentei, e tudo dançou ante meus
olhos, até que pude enfocar ao homem de pé diante de mim. Era Mariano Aureliano.
—Isidoro Baltazar, ainda dorme? — perguntei.
O velho nagual me contemplou por um longo período, e não sabendo se
sonhava, tentei pegar sua mão. Precisei soltá‐la precipitadamente, pois ardia como
uma brasa. Arqueou as sobrancelhas, ao parecer surpreendido por meu
comportamento.
—Não poderá ver a Isidoro Baltazar até a manhã — disse, e pronunciou estas
palavras lentamente, como se o fazê‐lo lhe ocasionasse um grande esforço.
Antes que tivesse oportunidade de dizer que já era quase de manhã, e que

aguardaria
sobre a Isidoro
minhas costas,Baltazar onde
expulsando estava,
‐me senti a mão fervente de Mariano Aureliano
do quarto.
—Volte para a sua rede.
Houve um repentino golpe de vento, e quando me virei para protestar Mariano
Aureliano já não estava ali. O vento retumbou em minha cabeça como um tambor
grave, para fazer‐se cada vez mais suave e morrer numa simples vibração. Abri a boca
para prolongar os últimos frágeis ecos. Despertei no meio da manhã na rede, vestindo
as roupas que me deixara Florinda. Automaticamente, quase sem pensar, me
encaminhei até a casa pequena, cuja porta encontrei fechada à chave. Apesar dos
golpes que dei nela e de meus gritos não recebi resposta. Tentei forçar as janelas, que
também encontrei fechadas.
Aturdida e próxima às lágrimas, corri colina abaixo até a clareira junto ao
caminho,
de Isidoroúnico lugar
Baltazar nãoonde se podia
estava estacionar
ali. Depois umem
percorri carro, parabom
vão um descobrir
trecho que a perua
do caminho
em busca de rastros recentes de rodas de carro. Não havia nenhum.
Muito confusa voltei à casa, e sabendo que seria inútil buscar pelas mulheres
em seus quartos, parei no meio do pátio interno e chamei aos gritos por Florinda. A

109
única réplica foi o eco de minha voz. Repassei incontáveis vezes às palavras de
Florinda, sem chegar a uma conclusão satisfatória. A única certeza que me assistia era
a de que Florinda tinha vindo ao meu quarto no meio da noite para trazer‐me as
roupas que agora eu vestia. Essa visita, e seu anúncio de que Isidoro Baltazar havia
regressado, sem dúvida alguma haviam produzido tão vivido sonho em mim.
Para conter‐me de toda especulação acerca do motivo de estar só na casa, pois
nem sequer o cuidador havia dado sinais de vida, me dediquei a lavar os pisos. Este
tipo de trabalho sempre exerceu um efeito tranquilizante sobre mim, e havia
terminado com todos os cômodos, inclusive a cozinha, quando escutei o inconfundível
som de um motor Volkswagen. Corri colina abaixo e me atirei nos braços de Isidoro
Baltazar ainda antes que ele abandonasse o veículo, quase derrubando‐o no chão.
—Não posso acreditar — disse rindo, enquanto me abraçava. —Você é a moça
de quem tanto me falou o nagual. Sabia que quase desmaiei quando lhe deram as
boas‐vindas?
Não esperou minha resposta. Abraçou‐me de novo e, rindo, me levantou nos
braços. Depois, como se alguma comporta se tivesse aberto nele, começou a falar sem
pausa. Disse que fazia um ano que sabia de minha existência, pois o nagual lhe havia
informado que lhe encomendaram uma garota estranha, à qual descreveu como “o
meio‐dia de um dia claro, não ventoso nem calmo, nem frio nem quente, mas que
alterna entre tudo isso, deixando‐lhe louco”. Isidoro Baltazar confessou que sendo o
tonto pomposo que era, havia sabido instantaneamente que o nagual estava se
referindo à sua namorada.
—Quem é sua namorada? — o interrompi.
Fez um movimento brusco com a mão, evidentemente incomodado por minhas
palavras.
—Esta não é uma história de feitos — disse irritado —, é uma história de idéias,
de modo que verá o idiota que sou. — de repente sua irritação cedeu lugar a um
brilhante sorriso. —Até cheguei a acreditar que poderia averiguar por mim mesmo
quem era essa garota — e fez uma pausa antes de acrescentar: —Inclusive cheguei a
incluir a uma mulher casada, com filhos, em minha busca.

Suspirou
—A moralfundo,
destasorriu e disse:
história é que no mundo dos feiticeiros a pessoa deve eliminar
o ego ou sofrer as consequências, pois não há forma em que pessoas como nós
possam predizer algo.
Ao notar que eu chorava me afastou um pouco e perguntou ansioso:
—O que aconteceu, Nibelunga?
—Na verdade nada — respondi, rindo em meio a meus soluços. —Não possuo
uma mentalidade abstrata capaz de preocupar‐se do mundo das histórias abstratas —
e acrescentei, com todo o cinismo e a dureza que pude reunir: —Me preocupo com o
aqui e o agora. Não tem idéia das coisas que passei nesta casa.
—Claro que sim; tenho uma muito boa idéia — retrucou com deliberada rudeza
— pois já faz anos que lido com isso. — olhou‐me com olhos de inquisidor ao formular
sua seguinte
estado pergunta: —O que desejo saber é por que não me disse que já havia
com eles?
—Estava a ponto de fazê‐lo, mas não me pareceu importante — respondi
confusa, mas em seguida minha voz se fez firme à medida que as palavras surgiam

110
alheias à minha vontade: —De longe, vejo que a única coisa importante que fiz na vida
é ter me relacionado com eles.
Para ocultar a surpresa que me produziu esta admissão, comecei a queixar‐me
de ter sido abandonada, de ter ficado sozinha nessa casa.
—Não tive oportunidade de lhe avisar que eu ia às montanhas com o nagual —
disse.
—Isso eu já esqueci — assegurei‐lhe. —Estou falando do dia de hoje. Esta
manhã, ao despertar, esperava ver você aqui. Estava segura de que tinha passado a
noite na casinha, dormindo sobre uma esteira, e ao não te encontrar entrei em pânico.
Ao notá‐lo intrigado, contei‐lhe da visita noturna de Florinda, e de meu sonho
de encontrar‐me sozinha na casa ao despertar. Sabia que meu discurso era incoerente,
meus pensamentos e palavras confusas, mas não pude deter‐me. Conclui meu discurso
dizendo:
—Há tanto que não posso aceitar, e tampouco refutar.
Isidoro Baltazar não respondeu, e seu olhar, suas sobrancelhas arqueadas e a
expressão espirituosa de seu rosto delgado e cansado, cor de fumaça, pareciam indicar
que aguardava a que eu continuasse falando. Sua pele exsudava uma estranha
frescura, e um vago cheiro a terra, como se houvesse passado dias numa caverna
subterrânea.
Todo vestígio de inquietude desapareceu quando encarei seu sinistro olho
esquerdo e sua terrível, inclemente olhada. Nesse momento deixou de importar‐me
qual era a verdade autêntica, a ilusão, o ensonho dentro do ensonho. Ri feliz, leve
como o vento, livre do insuportável peso que carregava em minhas costas. Reconheci o
olho de bruxo, igual ao que tinham Florinda, Mariano Aureliano, Esperanza e o
cuidador. Destinado desde os princípios do tempo a carecer de sentimento e emoção,
esse olho refletia o vazio, e como se já tivesse revelado demais, uma pálpebra interna,
como a do olho de um lagarto, se fechou sobre a pupila esquerda. Antes que eu tivesse
chance de comentar sobre seu olho Isidoro Baltazar fechou ambos; quando, depois de
um instante, os abriu, se viam idênticos, escuros, brilhantes e sorridentes. O olho de
bruxo caiu em ilusão. Com um braço rodeando meus ombros subimos a encosta. Antes

de chegar
—Tenaespero
casa Isidoro Baltazar —
no automóvel medisse.
ordenou recolher minhas coisas.
Pareceu‐me estranho que não entrasse comigo, mas nesse momento não me
ocorreu investigar sua razão, e somente quando estava recolhendo meus poucos
pertences, ocorreu‐me que talvez temesse às mulheres, o qual me provocou riso, pois
se havia algo que Isidoro Baltazar não temia era às mulheres. Disso estava totalmente
segura. Ao chegar junto ao carro continuava com meu riso, e abri a boca para explicar
a Isidoro Baltazar o motivo de meu júbilo, quando me invadiu uma forte e estranha
emoção.
Não era paixão sexual o que sentia, tampouco afeto platônico, e menos ainda
aquele carinho para com meus pais e irmãos. Simplesmente amava a ele com um amor
ausente de expectativas, dúvidas e temores, e como se eu tivesse dito tudo isto em voz
alta, Isidoro Baltazar
Partimos me lentamente,
muito abraçou cometalbotei
forçaaque apenas
cabeça mejanela,
pela permitia respirar. que
acreditando
poderia ver o cuidador entre as árvores.

111
“Sinto‐me rara, partindo desta maneira”, pensei. “De certo modo, Florinda se
despediu de mim à noite, mas eu teria gostado de agradecer a Esperanza e ao
cuidador.”
O caminho de terra serpenteava em torno do monte, e ao chegar a uma curva
fechada vimos de novo a casa. Isidoro Baltazar parou o carro, desligou o motor, e com
o dedo assinalou ao velho, sentado sobre um caixote em frente à casa. Quis abandonar
o veículo e correr até ele, mas Isidoro Baltazar me deteve.
—Dê adeus com a mão.
O cuidador se levantou; o vento brincava com sua camisa solta e suas calças,
fazendo que parecessem asas batendo contra seus membros. Soltou uma gargalhada,
se encurvou, e ao parecer aproveitando a força do vento, deu dois saltos mortais para
trás. Por um momento pareceu estar suspenso no ar, porém nunca aterrissou.
Simplesmente se evaporou, como se o próprio vento o tivesse sugado.
—O que aconteceu? Para onde foi? — perguntei assombrada.
—Ao outro lado — respondeu Isidoro Baltazar, rindo com a felicidade de uma
criança se divertindo. —Essa foi sua maneira de se despedir.
Colocou o carro em movimento, e enquanto viajávamos, como se estivesse me
tentando, lançava‐me ocasionais olhadas irreverentes.
—O que é que te preocupa, Nibelunga? — perguntou.
—Você sabe quem ele é, verdade? — acusei‐o —Não é o cuidador, não?
Isidoro Baltazar franziu o cenho, e depois de um longo silêncio me lembrou
que, para mim, o nagual Juan Matus era Mariano Aureliano, assegurando‐me que
deveria existir uma razão muito boa para que o conhecesse por esse nome, e agregou:
—Estou certo de que deve de existir uma justificativa igualmente válida para
que o cuidador não te revele seu nome.
Eu argumentei que já que sabia quem era Mariano Aureliano, a pretensão do
cuidador não tinha sentido e — acrescentei com propriedade — eu sei quem é o
cuidador… — e ao dizê‐lo, olhei de soslaio a Isidoro Baltazar, cujo rosto nada revelou.
Quando falou foi para dizer que, como todos os seres do mundo dos feiticeiros,
o cuidador também era um feiticeiro, mas que eu não sabia quem era. Lançou‐me um

breve olhar, e emde


—Depois seguida
todos transferiu
estes anossua
euatenção
mesmoao caminho.
não sei quem são eles realmente, e
incluindo ao nagual Juan Matus. Enquanto estou com ele creio saber quem é, mas
assim que me vira as costas, estou perdido.
Com acento quase sonhador, Isidoro Baltazar acrescentou que no mundo
cotidiano nossos estados subjetivos eram compartilhados por todos nossos
semelhantes. Por tal razão sabemos a todo momento o que fariam estes semelhantes
sob certas condições.
—Está equivocado! — gritei. — Totalmente equivocado. Não saber o que farão
nossos semelhantes sob certas circunstâncias é o que faz excitante a vida. É uma das
poucas coisas excitantes que nos sobram. Não me diga que o quer eliminar.
—Não sabemos com exatidão o que fariam nossos semelhantes, — explicou
pacientemente —muito
sentido. Uma lista mas longa,
poderíamos redigir
te advirto, uma lista
no entanto umadelista
possibilidades
limitada. Paraque teria‐
escrevê
la não necessitamos averiguar as preferências de nossos semelhantes. Só precisamos
nos colocar em seu lugar e escrever as possibilidades que nos concernem. Serão

112
aceitáveis a todos, pois as compartilhamos. Nossos estados subjetivos são
compartilhados por todos nós.
Disse depois que nosso conhecimento subjetivo do mundo nos é conhecido
como sentido comum. Pode diferir de grupo em grupo, de cultura em cultura, mas
apesar de todas essas diferenças, o sentido comum é o suficientemente homogêneo,
como para garantir a declaração de que o mundo cotidiano é um mundo
intersubjetivo.
—Entretanto com os feiticeiros o sentido comum, ao qual estamos
acostumados, não tem vigência. Possuem outro tipo de sentido comum, pois têm
outro tipo de estados subjetivos.
—Quer dizer que são como seres de outro planeta? — perguntei.
—Sim — respondeu Isidoro Baltazar, rindo —, são como seres de outro planeta.
—É por isso que são tão reservados?
—Não acho que o termo reservado seja o correto — observou pensativo. —
Lidam de maneira diferente com o mundo cotidiano, e seu comportamento nos parece
reservado pois não compartilhamos seu significado, e já que carecemos de padrões
para medir o que para eles é sentido comum, optamos por acreditar que seu
comportamento é reservado.
—Eles fazem o que nós fazemos: dormem, cozinham suas refeições, lêem —
observei —, contudo, nunca pude surpreendê‐los no ato de fazê‐los. Eu lhe asseguro
que são reservados.
Sorrindo, sacudiu a cabeça.
—Viu o que eles quiseram que visse, apesar do qual não te ocultavam nada.
Simplesmente você não conseguia ver.
Estava a ponto de contradizê‐lo, mas me abstive, pois não queria que me
tomasse antipatia. Não era tanto o fato de que tivesse a razão, pois afinal eu não
entendia de quê falava. Antes disso, sentia que todas minhas averiguações e
curiosidades não me haviam dado pista alguma a respeito de quem eram essas
pessoas e o que faziam. Com um suspiro, fechei os olhos e reclinei minha cabeça
contra o encosto do banco.

roncandoNo sobre
trajetoalhe falei de
esteira. meu
Falei‐lhesonho, do quão
de minha real que
conversa commeMariano
foi o vêAureliano,
lo dormidodoe
calor de sua mão, e quanto mais falava mais me convencia de que tudo isso não havia
sido um sonho, e me agitei de tal forma que terminei chorando.
—Não sei o que me fizeram — disse. —Neste momento não estou muito certa
se estou sonhando ou se me encontro desperta. Florinda sempre insiste em que eu
ensonho desperta.
—O nagual Juan Matus se refere a isso como “consciência intensificada” —
esclareceu Isidoro Baltazar.
—Consciência intensificada — repeti.
As palavras me eram familiares, ainda que parecessem exatamente o oposto de
ensonhar desperto. Recordei vagamente de tê‐las ouvido antes. Florinda ou Esperanza
as havia sentido
adquirir utilizado, mastalvez)
(vago não lembrava em mente
mas minha quê contexto, e já estavam
se encontrava a ponto por
sobrecarregada de
minhas vãs tentativas de recontar minhas atividades diárias na casa das feiticeiras.
Apesar do muito que me esforcei não conseguia lembrar certos episódios.
Lutava por dar com palavras que empalideciam e se desvaneciam ante meus próprios

113
olhos, igual a visões semivistas e lembradas pela metade. Não era que tivesse
esquecido, e sim que as imagens me chegavam fragmentadas, como peças de um
quebra‐cabeça que se recusam a encaixar. Tudo isto adquiria estatura de sensação
física, e podia resumir‐se como uma névoa descida sobre certas partes de meu
cérebro.
—De modo que consciência intensificada e ensonhar desperto são o mesmo?
— mais que uma pergunta era essa uma declaração cujo significado me escapava.
Mudei de posição no assento, e recolhendo as pernas me sentei de frente a
Isidoro Baltazar. O sol fazia ressaltar seu perfil, seus cabelos negros e enrolados caindo
sobre sua frente, os pômulos cinzelados, sua forte testa e nariz, e os lábios finos, lhe
davam um aspecto romano.
—Devo de estar ainda em estado de consciência intensificada — disse —, não
me havia fixado antes em você.
Jogou a cabeça para trás e riu, e essa ação fez com que o carro balançasse.
—Não há dúvida de que está ensonhando desperta. A pouco você se esqueceu
de que sou nanico, negro e de aspecto insignificante?
Tive que rir, não porque estivesse de acordo com essa descrição de si mesmo, e
sim porque era a única coisa que lembrava que ele havia dito naquela conferência em
que o conheci formalmente. Minha alegria logo cedeu lugar a uma estranha ansiedade.
Tive a sensação de que haviam se passado meses, e não apenas dois dias, desde nossa
chegada à casa das feiticeiras.
—A passagem do tempo é diferente no mundo dos feiticeiros — disse Isidoro
Baltazar, interpretando meus pensamentos —, e também o vivemos de maneira
diferente.
Depois acrescentou que um dos aspectos mais difíceis de sua aprendizagem foi
o de ter que lidar com sequências de acontecimentos em termos de tempo. Com
frequência essas confusas imagens se misturavam em sua mente, que penetravam
mais profundamente quando mais tentava enfocá‐las.
—Somente agora, com a ajuda do nagual, consigo recordar fatos e aspectos de
seus ensinamentos, que tiveram lugar há muitos anos — disse.

—Comofez
—Me te ajuda?
mudar —osperguntei.
níveis de—Te hipnotiza?e, ao fazê‐lo, não só lembro
consciência
acontecimentos passados como também os revivo.
—E como faz isso? Me refiro a fazer‐lhe mudar seus níveis de consciência.
—Até a bem pouco tempo achava que se conseguia com uma forte palmada
nas costas, entre os ombros, mas agora estou seguro que o consegue com sua mera
presença.
—Então, não te hipnotiza?
Sacudiu a cabeça.
—Os feiticeiros são experts em mudar seus próprios níveis de consciência.
Alguns o são tanto que conseguem mudar os níveis de outros.
Eu fervia de perguntas, mas com um gesto ele me pediu paciência.
—Os feiticeiros
nosso conceito dela, ounos fazem
seja, ver nos
o que que foi
a natureza
ensinadototal da realidade
a acreditar que éé diferente de
a realidade.
Intelectualmente estamos dispostos a brincar com a idéia de que a cultura
predetermina nossa existência, nossa conduta, o que estamos preparados a aprender
e o que podemos sentir. Mas não estamos dispostos a dar corpo a esta idéia, aceitá‐la

114
como uma proposta prática e concreta, e a razão é que não queremos aceitar que a
cultura também predetermina o que somos capazes de perceber.
—A feitiçaria — continuou — nos faz dar conta de diferentes realidades,
diferentes possibilidades, não só acerca do mundo e sim sobre nós mesmos, ao
extremo de nos fazer entrar num estado no qual já não estamos em condições de
acreditar sequer nas mais sólidas convicções a nosso respeito e ao nosso entorno.
Surpreendeu‐me poder absorver suas palavras com tanta facilidade, visto que
na realidade não as compreendia.
—Um feiticeiro não só tem consciência de diferentes realidades — continuou
— como usa a esse conhecimento com um sentido prático. Os feiticeiros sabem, não
só intelectualmente, e sim praticamente, que a realidade, ou o mundo, tal como o
conhecemos, consiste apenas de um acordo extraído a cada um de nós. Se poderia
fazer que esse acordo se derrube, dado que é apenas um fenômeno social, e quando
se derruba, todo o mundo se derruba com ele.
Ao ver que eu não conseguia seguir seus argumentos, tratou de apresentá‐los
por outro ângulo. Disse que o mundo social nos define a percepção em proporção à
sua utilidade em nos guiar através da complexidade da experiência na vida diária. O
mundo social fixa limites ao que percebemos e ao que somos capazes de perceber.
Para um feiticeiro a percepção pode exceder esses parâmetros acordados. Estes
parâmetros estão feitos e respaldados por palavras, pelo idioma, por pensamentos, ou
seja, por acordos.
—E os feiticeiros não têm acordos? — perguntei, fazendo um esforço para
compreender sua premissa.
—Sim, eles os têm — respondeu —, mas seus acordos são diferentes. Os
feiticeiros quebram o acordo normal, não só intelectual como física ou praticamente.
Os feiticeiros derrubam os parâmetros da percepção socialmente determinada, e para
compreender o que querem dizer os feiticeiros com isso, a pessoa deve converter‐se
em um praticante, ela precisa comprometer‐se, ela precisa empregar tanto a mente
como o corpo. Precisa ser uma rendição consciente e sem medo.
—O corpo? — perguntei, de imediato desconfiada a respeito do tipo de ritual

que isso—Nada,
poderia Nibelunga
exigir. —O que é que querem
— esclareceu comDepois,
rindo. meu corpo?
num tom sereno embora
bondoso, acrescentou que nem meu corpo nem minha mente se encontravam ainda
em condições de seguir o árduo caminho de feiticeiro, e ao perceber minha intenção
de protestar, se apressou a assegurar‐me que nem meu corpo nem minha mente
sofriam de falha alguma.
—Um momento! — interrompi.
Isidoro Baltazar ignorou minha interrupção e prosseguiu seu discurso para dizer
que o mundo dos feiticeiros era um mundo sofisticado, e que não era suficiente
compreender seus princípios de maneira intuitiva. Também era necessário assimilá‐los
intelectualmente.
—Contrariamente ao que as pessoas acreditam — explicou —, os feiticeiros
não sãoEpraticantes
tempo. de obscuros
a modalidade de nosso etempo
esotéricos ritos,Em
é a razão. e sim quesomos
geral estãohomens
à frenterazoáveis.
de nosso
Não obstante os feiticeiros são homens de razão, o que é totalmente diferente: têm
um romance com as idéias, cultivam a razão até seus limites, pois crêem que
unicamente compreendendo plenamente o intelecto podem corporificar os princípios

115
da feitiçaria sem perder sua própria integridade e sobriedade. Aqui reside a drástica
diferença entre os feiticeiros e nós. Nós possuímos pouca sobriedade e ainda menos
integridade.
Lançou‐me uma olhada furtiva e sorriu. Eu sentia a desagradável impressão de
que ele sabia com exatidão o que eu estava pensando nesse momento, ou melhor, que
me encontrava incapacitada para pensar. Havia entendido suas palavras, mas não seu
significado. Não sabia o que dizer nem sequer o que perguntar, e pela primeira vez em
minha vida me senti uma estúpida total. Contudo não me incomodei, pois não podia
negar que ele tinha razão. Meu interesse em assuntos intelectuais foi sempre muito
superficial, e para mim pensar em ter um romance com idéias era totalmente insólito.
Chegamos à fronteira em poucas horas, mas a viagem acabou sendo
extremamente cansativa. Eu queria falar, mas não sabia o que dizer, ou melhor, não
encontrava as palavras para expressar‐me. Sentia‐me intimidada, uma sensação nova
para mim!
Isidoro Baltazar notou minha insegurança e meu mal‐estar, e se apropriou da
palavra. Com candidez admitiu que até esse mesmo momento o mundo dos feiticeiros
o desorientava, apesar dos muitos anos de estudar e agir com eles.
—E quando digo estudar, falo muito à sério — esclareceu. —Esta mesma
manhã esse mundo me avassalou de uma maneira impossível de descrever.
Falava num tom que era meio afirmação e metade queixa, apesar do qual sua
voz estava carregada de tal alegria e potência interior que me senti exaltada. Me
transmitiu uma sensação de onipotência e de capacidade para tolerar tudo sem deixar
que nada importasse, e constatei uma vontade e habilidade para sobrepor‐se a todos
os obstáculos.
—Imagine: pensei que minha viagem com o nagual havia sido de só dois dias —
e virando‐se para mim, e rindo, me sacudiu com sua mão livre.
Eu estava tão absorta pela vitalidade de sua voz que não compreendi o
significado de suas palavras. Pedi a ele para repetir o que dissera: ele o fez, e continuei
sem compreender.
—Não entendo o que é que te excita tanto — disse repentinamente irritada por

minha
de dias,incapacidade
e daí? para entender o que pretendia dizer me. —Esteve ausente um par
—Como? — gritou, e seu grito fez com que eu saltasse em meu banco e batesse
com a cabeça no teto do veículo.
Seu olhar penetrou até o fundo de meus olhos, mas não pronunciou uma só
palavra. Sabia que não me acusava de nada, mas sim que zombava de minha aspereza,
meus humores variantes e minha falta de atenção. Parou o veículo às margens do
caminho, desligou o motor, e se acomodou para ficar de frente para mim.
—Agora quero que me conte todas as suas experiências — sua voz transmitia
excitação nervosa, inquietação e vitalidade, ao assegurar‐me que a ordem dos
acontecimentos não importava em absoluto, e seu sorriso me tranquilizou ao extremo
de fazer‐me contar em detalhes tudo o que recordava. Escutou com atenção, rindo de
tanto em tanto
—De e animando
modo ‐meisto
que… tudo comte um gesto deem…
aconteceu sua dois
testadias?
cada vez que eu vacilava.
—Sim — rebati com firmeza.
Cruzou os braços sobre seu peito.

116
—Tenho uma notícia para você — e a luz divertida de seus olhos traiu a
seriedade de sua voz e a firmeza de sua boca quando acrescentou: —Eu estive ausente
doze dias, mas achei que foram só dois. Pensei que iria apreciar a ironia de meu erro
por ter mantido um melhor controle do tempo, mas não foi assim. É igual a mim:
perdemos dez dias.
—Dez dias — murmurei perplexa, e meu olhar se perdeu na paisagem que
estava além da janela.
Não pronunciei uma só palavra durante o resto da viagem. Não era que não lhe
acreditasse, nem que não quisesse falar. Simplesmente nada tinha para dizer, nem
sequer depois de ter comprado o Los Ângeles Times e corroborado a verdade sobre a
perda dos dez dias. Contudo, estavam de verdade perdidos? Me fiz essa pergunta sem
desejar obter uma resposta.

117
CAPÍTULO DOZE

A oficina‐estúdio de Isidoro Baltazar consistia em um quarto retangular, que


dava sobre uma praça de estacionamento, uma pequena cozinha e um banheiro de
azulejos rosados. Levou‐me para ali na noite que voltamos de Sonora. Eu, por demais
exausta para notar algo, o segui dois pisos acima por um corredor acarpetado de cor
escura até o apartamento 8. Assim que minha cabeça entrou em contato com o
travesseiro caí adormecida, e sonhei que seguíamos pela rota. Havíamos viajado sem
parar desde Sonora, alternando ao volante, parando somente para comer e para
colocar combustível.
O apartamento estava mobiliado apenas com o imprescindível. Junto ao beliche
havia uma longa mesa dobrável que servia de escrivaninha, uma cadeira, também
dobradiça, e dois arquivos de metal para suas anotações. Vários ternos e meia dúzia de
camisas pendiam em dois guarda‐roupas junto ao banheiro. O resto do espaço era
ocupado por livros, pilhas de livros. Não havia estantes, e os livros davam a impressão
de nunca ter sido abertos, menos ainda lidos. Também os armários da cozinha estavam
repletos de livros, salvo um reservado para um prato, um jarro, um jogo de garfos e
facas, e uma colher. Sobre o fogão havia uma chaleira para ferver água e uma caçarola.
Em três semanas encontrei um apartamento novo para mim, a mais ou menos
uma milha da universidade e virando a esquina do escritório‐estudio de Isidoro
Baltazar, apesar do qual continuava passando a maior parte de meu tempo em sua
casa. Ele instalou uma segunda cama para mim, uma mesa daquelas que se usa para
jogar cartas, e uma cadeira dobrável idêntica à sua, no outro extremo do quarto.
Nos seis meses seguintes, Sonora se converteu para mim num lugar mítico. Não
desejando já bloquear minhas experiências juntei as lembranças das duas
oportunidades em que estive lá, mas por mais que o intentasse não consegui recordar
absolutamente nada dos onze dias perdidos: um na primeira e dez na segunda
oportunidade.
Isidoro Baltazar recusou de imediato qualquer menção à perda desses dias. Por
momentos eu concordava plenamente com ele: o absurdo de considerar perdidos

esses dias,
muito simplesmente
lhe agradeci porque
por não não podia
conceder recordáaolos,
importância se me fez
assunto. tão claro
Estava evidente
que que
me
protegia. Não obstante, em outras oportunidades, e sem que me desse razão para isso,
me dominava um forte ressentimento. Era seu dever ajudar‐me, esclarecer‐me o
mistério, repetia a mim mesma, até convencer‐me de que deliberadamente me
escondia coisas.
—Você vai ficar louca se continuar com isso — disse‐me um dia —, e toda sua
preocupação será em vão porque nada resolverá. — titubeou um momento, como não
se animando a por em palavras o que desejava dizer, depois encolheu de ombros e
acrescentou num tom desafiante: —Por que não usa essa mesma energia de modo
mais prático, como para enumerar e examinar seus maus hábitos?
Eu, em lugar de admitir a sabedoria da sugestão, de imediato contra‐ataquei
com a outra
mulheres queixa
jovens que se aninhava
encomendadas empelo
a ele mim, que nagual.
velho ainda não
Mehavia
haviaconhecido às outras
falado tanto delas
que sentia que já as conhecia, pois cada vez que fiz perguntas ele me respondeu em
detalhes. Falava delas extasiado, com profunda e pelo visto sincera admiração,
dizendo que alguém de fora as descreveria como atraentes, inteligentes e exitosas.

118
Todas possuíam títulos universitários e eram seguras de si mesmas, e ferozmente
independentes. Mas para ele eram muito mais que isso: eram seres mágicos que
compartilhavam seu destino, unidas a ele por laços de afeto e compromisso que nada
tinham a ver com a ordem social. Compartilhavam a comum busca pela liberdade.
Certa vez até lhe dei um ultimato:
—Tem que me levar para conhecê‐las, ou do contrário…
Isto provocou risos em Isidoro Baltazar.
—Tudo o que posso lhe dizer é que não é o que você imagina, e não há forma
de determinar quando as conhecerá. Simplesmente terá que esperar.
—Já esperei o bastante! — gritei, e ao não receber reação de sua parte,
acrescentei: —Está louco se acha que poderei encontrar a um grupo de mulheres em
Los Ângeles. Nem sequer sei por onde começar a buscar.
—As encontrará como encontrou a mim, e como encontrou ao nagual Mariano
Aureliano.
Olhei‐o com desconfiança. Não podia menos que suspeitar que abrigava uma
certa e secreta malícia.
—Não te andava buscando — respondi com impertinência — nem tampouco a
Mariano Aureliano. Acredite em mim que, em ambos os casos, nossos encontros foram
fortuitos.
—Não existem os encontros fortuitos no mundo dos feiticeiros — disse, e já
estava a ponto de dizer‐lhe que não precisava deste tipo de conselho, quando ele
acrescentou seriamente: —As conhecerá quando chegar o momento adequado. Não
tem que andar em busca delas.
De cara para a parede contei até dez, depois o enfrentei para dizer com
suavidade.
—O problema contigo é que é um típico latino. Amanhã sempre é perfeito para
você. Não tem conceito de apressar ou fazer as coisas — elevei a voz para impedir que
me interrompesse, e terminei dizendo: —Minha insistência em conhecer às suas
amigas é um exemplo de apressar as coisas.
—De apressar as coisas? — repetiu sem compreender. —Qual é a afobação?

—Você
— recordei ‐lhe.vem me dizendo,
—Você quase que
mesmo sempre faladiariamente, que
do importante resta
que muito
é para mimpouco tempo‐
o conhecê
las, e no entanto age como se tivesse a eternidade pela frente.
Tornou‐se impaciente.
—Te digo isto constantemente porque desejo que se apresse a limpar seu ser
interno, não porque quero que se levem a cabo com rapidez atos sem importância
como pretende você. Não é meu dever o apresentá‐las a você; se assim fosse, não
estaria sentado aqui, escutando suas tolices. — Fechou os olhos e suspirou de modo
exagerado, num gesto de fingida resignação, mas em seguida acrescentou com um
doce sorriso: —É demasiado tonta para dar‐se conta do que acontece.
—Não acontece nada — retruquei, doída pelo insulto. —Não sou tão estúpida
como acha. Tenho notado o ar de ambivalência que envolve suas reações para comigo.
Às vezes—Sei
tenho a clara impressão
exatamente de que
o que devo não
fazer — sabe o que fazer comigo.
assegurou.
—Se é assim, por que reage sempre de maneira tão indecisa quando proponho
algo?

119
Isidoro Baltazar me lançou um olhar severo, e por um instante pensei que me
atacaria utilizando essas palavras ásperas que costumava usar para demolir‐me com
alguma crítica aguda, mas quando falou para conceder razão sobre minha opinião o fez
com suavidade.
—Sempre espero até que os acontecimentos decidam por mim — afirmou. —
Depois me movo com velocidade e com vigor. Se não se cuidar te deixarei para trás.
—Já estou muito atrás — disse lamentando‐me. —Dado que não me ajudará a
encontrar a essas mulheres estou condenada a continuar atrasada.
—Mas não é esse o verdadeiro problema. O mal é que você ainda não se
decidiu — e levantou as sobrancelhas como se estivesse à espera de um rompante de
minha parte.
—Não sei o que quer dizer com isso. O que é que devo decidir?
—Não se decidiu a juntar‐se ao mundo dos feiticeiros. Está parada no umbral,
observando, à espera do que está por acontecer. Está à espera de algo prático que lhe
possa ser lucrativo.
Palavras de protesto se formaram em minha garganta, mas antes que pudesse
manifestar minha profunda indignação, ele acrescentou que eu tinha a errônea idéia
de que o ter‐me mudado a um novo apartamento e deixado para trás minha velha
forma de vida significavam uma mudança.
—E o que é então uma mudança? — perguntei com sarcasmo.
—Não deixou nada para trás exceto seus pertences — respondeu, ignorando
meu tom. —Para certas pessoas isso significa um passo gigantesco, mas para você isso
não é nada. Você não se interessa em possuir coisas.
Estava de acordo.
—Não, não me interessa — disse, e depois insisti que, não obstante seu juízo,
eu me havia decidido a juntar‐me ao mundo dos feiticeiros há muito tempo. —Por que
acha que estou aqui se ainda não me decidi?
—Sem dúvida o fez corporalmente, mas não em espírito. Agora está esperando
que te dêem um mapa, algum plano reconfortante, antes de tomar sua decisão final.
Entretanto seguirá dando‐lhes corda. Seu principal problema é que necessita estar

convencida de queele
—E então o não
mundo dos feiticeiros tem algo para lhe oferecer.
tem?
Isidoro Baltazar me encarou com o rosto estampado por um sorriso.
—Sim, tem algo muito especial para oferecer. Chama‐se liberdade, mas não há
garantia alguma de que a obtenha, ou que algum de nós tenha êxito nesta empresa.
Digeri suas palavras, e depois lhe perguntei o que devia fazer para convencê‐lo
de que já me havia unido ao seu mundo.
—Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a
porta atrás de você.
—Que porta?
—A que você mantém aberta; a que te permitirá escapar se as coisas não são
de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas.
—Está
Olhou‐medizendo
com que
umadeserdarei?
expressão enigmática, depois deu de ombros. —Isso fica
entre o espírito e você.
—Mas se você mesmo acha que…

120
—Eu não acho nada — interrompeu. —Entrou neste mundo da mesma maneira
que todos os outros. Ninguém teve nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou
qualquer outro decide se retirar.
Olhei‐o, confusa.
—Mas suponho que tentará me convencer… se eu… — gaguejei.
Sacudiu a cabeça antes que eu terminasse de falar.
—Não convencerei a você nem a ninguém. Sua decisão carecerá de poder se
precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou duvidar.
—Quem me ajudará então? — perguntei alarmada.
—Eu; eu sou seu servidor — respondeu com um sorriso doce e tímido, por
completo desprovido de cinismo. —Mas antes sirvo ao espírito. Um guerreiro não é
um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos não tomam decisões, os
servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente.
—E minha ajuda não entra no cálculo — continuou. —Não posso investir em
você e, claro, tampouco você pode investir em mim ou no mundo dos feiticeiros. Esta
é a premissa básica desse mundo: nada se faz que possa ser catalogado como útil. Só
se permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como
vivo. O feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas.
Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.
Sobreveio um longo silêncio; eu mudei de posição sobre a cama em que me
achava sentada. Minha mente se encheu de pensamentos. Talvez nenhum dos
feiticeiros poderia chegar a acreditar‐me, mas sem dúvida alguma eu havia mudado,
imperceptivelmente a princípio. Eu o notava porque tinha a ver com um dos
problemas mais difíceis que uma mulher pode enfrentar: os ciúmes e a necessidade de
saber.
Meus ataques de ciúmes eram um pretexto, não necessariamente um pretexto
consciente, mas contudo havia neles algo de posse. Algo em mim exigia que tivesse
ciúmes de todas as outras mulheres que formavam parte da vida de Isidoro Baltazar,
mas de igual maneira algo me fazia perceber que a vida do novo nagual não era a de
um homem comum, nem sequer de quem pudesse ter muitas esposas.

moldesNossa relação,
habituais se assim se
e conhecidos, podiadechamá
apesar meusla, não sepor
esforços encaixava em inseri
conseguir nenhum dos
‐la num
contexto. Para que os ciúmes e o sentido de posse tenham sustentação é necessário
um espelho, não só um próprio, como também um do companheiro, e Isidoro Baltazar
já não refletia os impulsos, os sentimentos, as necessidades e as emoções de um
homem.
Minha necessidade de conhecer a vida de Isidoro Baltazar era opressora, e me
amargava o fato de que não me dava acesso a seu mundo privado. Não obstante, eu
não lutava contra isso. Teria sido fácil segui‐lo ou revisar seus papéis para descobrir de
uma vez por todas quem era ele de verdade, mas não pude fazê‐lo. Algo me dizia que
com ele eu não podia proceder como estava acostumada; e o que me inibia, mais que
um sentido de decência, era a confiança que havia depositado em mim. Isidoro
Baltazar
inviolável.me havia dado livre acesso a seus pertences, e isso para mim o tornava
Ri forte. Entendia qual era o ato estratégico do guerreiro. Isidoro Baltazar
estava equivocado; confundia meu inveterado mau humor e minha afetação alemã
com falta de decisão. Não importava. Eu sabia que pelo menos havia começado a

121
compreender e praticar a estratégia do guerreiro, ao menos enquanto ele se
encontrava presente. Não obstante, na sua ausência, com frequência eu fraquejava, e
quando isso acontecia costumava dormir em seu estúdio.
Certa noite, enquanto enfiava a chave na fechadura, apareceu um braço e, sem
mais nem menos, me levou ao interior do estúdio. Gritei aterrorizada, e comecei a
balbuciar “quê…”, quando a mão que apertava meu braço me soltou. Para recuperar
meu equilíbrio e acalmar meu coração que galopava, recostei‐me contra a parede, e ali
surgiu uma figura conhecida.
—Florinda! — gritei, ainda confusa. Ela vestia uma longa bata, presa na cintura,
e seus cabelos pendiam por suas costas e por ambos os lados de seu rosto. Duvidando
se era na verdade ela ou uma aparição, ressaltada por uma suave luz atrás de suas
costas, me aproximei para tocar sua manga.
—É você, Florinda, ou estou sonhando?
—Eu em pessoa, querida. O produto autêntico.
—Como chegou aqui? Está sozinha? — perguntei tontamente, e em seguida,
procurando sorrir, acrescentei: —Se eu soubesse que você viria teria iniciado a limpeza
mais cedo. Eu adoro limpar o estúdio de Isidoro Baltazar de noite. Sempre o faço de
noite.
Em vez de responder Florinda se situou de maneira que a luz iluminava seu
rosto, e um sorriso perverso brilhou em seus olhos.
—Eu lhe adverti que nunca deveria seguir a nenhum de nós, ou apresentar‐se
sem ser convidada. Tem sorte de que não foi outra pessoa quem te conduziu para
dentro esta noite.
—E que outra pessoa poderia ter sido? — perguntei com um tom desafiante
que estava longe de sentir.
Florinda me contemplou um instante, depois se virou e me deu sua resposta
por cima do ombro.
—Alguém a quem não lhe teria importado que você morresse de susto. —
agitou uma mão no ar como para afastar suas palavras enquanto atravessava o quarto
procurando a pequena cozinha. Não parecia caminhar, e sim deslizar num tipo de

dançacortina
uma não premeditada que por
prateada tocada balançava
uma luzseus longos cabelos brancos, semelhantes a
indefinida.
Eu a segui, parodiando seu gracioso andar.
—Saiba que tenho a chave — informei‐lhe. —Tenho vindo aqui todos os dias, a
qualquer hora, desde que regressamos de Sonora. Na verdade eu praticamente vivo
aqui.
—Isidoro Baltazar não te disse para não vir aqui enquanto ele está no México?
— o tom de Florinda era suave, quase casual. Não me acusava, mas eu senti como se o
fizesse.
—Talvez tenha dito algo — respondi com estudada indiferença, e vendo que
franzia o cenho me senti obrigada a me defender. Confessei‐lhe que muitas vezes eu
estava sozinha no apartamento, e achava que não importava muito se Isidoro Baltazar
estava a cinco
aprovação ou quinhentas
às minhas milhas
palavras admiti dealém
que, distância, e ali
de fazer alentada
minhaspor sua escolares,
tarefas aparente
passava horas pondo em ordem seus livros, classificando‐os por tema e por autor. —
Alguns deles são tão novos que as páginas nem sequer foram cortadas — expliquei. —
Eu os estou abrindo. Isso é o que vim fazer esta noite.

122
—Às três da manhã?
Não pude evitar de ficar vermelha ao responder:
—É, sim. Há muito por fazer. Quando se é cuidadosa e não se deseja danificar
as páginas, este é um trabalho de nunca acaba. Mas é tranquilizante, e a mim me
ajuda a dormir bem.
O comentário de Florinda se reduziu a uma palavra, apenas modulada:
—Extraordinário.
Animada por sua aparente aprovação continuei falando.
—Tenho certeza de que você entende o que estar aqui significa para mim.
Neste apartamento me sinto livre de minha antiga vida, de todos e de tudo, salvo
Isidoro Baltazar e seu mundo mágico. O próprio ar me enche de um sentido de entrega
total. — suspirei profundamente. —Aqui nunca me sinto sozinha, apesar da maior
parte do tempo o estar. Há algo na atmosfera que me lembra a casa das feiticeiras.
Essa mesma frieza e ausência de sentimentos banais, que a princípio tanto me
incomodavam, se aderem a estas paredes, e é precisamente essa distância, essa falta
de calidez, o que busco dia e noite. Eu a acho curiosamente reconfortante, me dá
forças.
Enquanto se dirigia à pia da cozinha com o bule na mão, Florinda meneou a
cabeça como se duvidando, murmurou “incrível” e depois algo que não alcancei ouvir,
afogadas as palavras pelo ruído da água.
—Fico muito feliz de saber que se sente confortável aqui — suspirou
dramaticamente e completou: —Deve sentir‐se muito segura neste ninhozinho,
sabendo que têm um companheiro — e terminou num tom jocoso, aconselhando‐me a
fazer todo o possível por fazer feliz a Isidoro Baltazar, mencionando práticas sexuais,
que descreveu com horrenda grosseria.
Contemplei‐a boquiaberta, espantada pelo que acabara de ouvir, enquanto ela,
com a segurança e a eficiência de alguém conhecedora da disposição da cozinha,
pegava duas xícaras, meu bule de chá favorito e o pacote de biscoitos de chocolate
que eu mantinha escondido por trás dos dicionários de idiomas alemão e francês.
Com um sorriso Florinda virou‐se para mim e perguntou:

—A quem
—Não esperava
a você encontrar
— respondi aqui esta noite?
abruptamente, percebendo tarde demais que minha
resposta me delatava, e me lancei numa extensa e elaborada explicação de por que
esperava encontrar ali, se não a todas, pelo menos a uma das outras jovens mulheres.
—Cruzarão seu caminho quando chegar o tempo adequado — respondeu
Florinda. —Não é sua obrigação forçar um encontro com elas.
De repente, sem poder controlar minhas palavras, me encontrei culpando a ela,
a Mariano Aureliano e a Isidoro Baltazar por minha atitude furtiva. Disse‐lhe que era
impraticável, para não dizer impossível, pretender que eu esperasse a que umas
mulheres desconhecidas cruzassem meu caminho, e achar que eu as reconheceria por
algo tão inconcebível como sua radiação interna, e como de costume, quanto mais me
queixava, melhor me sentia.
Florinda me
duas colheradas, ignorou,
e uma para ea com exagerado
chaleira acentoque
— à medida britânico cantarolou
colocava — uma,
o chá. Depois, de
maneira casual, observou que a única coisa caprichosa e impraticável era que eu
pensasse em Isidoro Baltazar como homem, e o tratasse como tal.
—Não sei o que me quer dizer com isso — rebati na defensiva.

123
Olhou‐me com tal intensidade que corei.
—Sabe perfeitamente o que quero dizer — retrucou enquanto servia o chá nas
xícaras, e com um rápido gesto de sua testa indicou qual das duas era a minha. Com o
pacote de biscoitos na mão, sentou na cama de Isidoro Baltazar, e sorveu seu chá,
enquanto eu, sentada ao seu lado, fazia o mesmo.
De improviso me lançou uma acusação:
—Você não mudou nada.
—Isso é exatamente o que me disse Isidoro Baltazar faz uns dias — repus —,
mas eu sei que mudei muito.
Disse‐lhe que meu mundo havia mudado totalmente desde a volta de Sonora, e
expliquei em detalhes sobre a troca de apartamento, minha mudança, deixando para
trás todas minhas posses. Escutou com glacial indiferença, dura como uma pedra.
—Na verdade não posso me atribuir muito crédito por romper rotinas e fazer‐
me inacessível — admiti, sentindo‐me incômoda ante seu silêncio. —Qualquer um que
esteja em estreito contato com Isidoro Baltazar deve esquecer que há limites entre o
dia e a noite, entre jornadas de trabalho e feriados. O tempo flui e… — não pude
terminar minha frase, pois me assaltou um estranho pensamento. Que eu lembrasse,
ninguém me havia falado de romper rotinas e fazer‐me inacessível. Olhei fixo para
Florinda, e meu olhar fraquejou. Seria coisa dela? De onde me vinham essas idéias? E o
mais desconcertante era que eu sabia com exatidão o que era que essas idéias
significavam.
—Isso deveria servir para advertir‐lhe que algo está por acontecer em você —
sentenciou Florinda, como se tivesse seguido o fluxo de meus pensamentos, e
acrescentou que tudo o que foi feito por mim em ensonhos, até esse momento, ainda
não havia imbuído minhas horas de vigília com a dureza e a autodisciplina necessária
para atuar no mundo dos feiticeiros.
—Nunca fiz algo assim em minha vida — protestei. —Dê‐me uma
oportunidade. Sou nova nisto.
Estava de acordo nisso.
—Naturalmente — disse, e reclinou sua cabeça na almofada e fechou os olhos.

Foi tão longo


assustei seufalou.
quando silêncio
—Umaque mudança
pensei que tivesse dormido,
verdadeira e por
não inclui conseguinte
mudança me
de ânimo,
atitude ou ponto de vista, e sim uma transformação total do ser — e ao ver que eu
estava a ponto de interrompê‐la, tapou meus lábios com seus dedos e acrescentou: —
O tipo de mudança ao qual aludo não se consegue em três meses, um ano ou dez.
Toma toda a vida — e terminou dizendo que era sumamente difícil converter‐se em
algo diferente ao que alguém havia sido destinado a ser. —O mundo dos feiticeiros é
um ensonho, um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos os dias —
prosseguiu.
“Para perceber e funcionar nesse mundo devemos nos despojarmos da
máscara cotidiana que levamos aderida aos nossos rostos desde o dia em que
nascemos, e colocarmos a segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso
entorno como realmente
vez, adquirem são: acontecimentos
existência transitória e nunca seextraordinários
repetem. Essa que florescem
máscara você só uma
mesma
terá que confeccionar.”
—Como a faço?

124
—Ensonhando seu outro ser — murmurou. —Certamente não adquirindo
novas roupas, novos livros e uma nova direção e, — acrescentou sarcasticamente —
por certo não acreditando que tem um novo homem.
Antes que eu pudesse desmentir sua brutal acusação disse que externamente
eu era uma pessoa fluida, capaz de mover‐me a grande velocidade, mas por dentro era
rígida e dura. Como já o havia assinalado Isidoro Baltazar, ela também sustentava que
era enganoso acreditar que adquirir um apartamento novo e dar de presente tudo o
que possuía era uma mudança.
Curvei a cabeça em sinal de que aceitava sua crítica. Sempre senti uma
inclinação a despojar‐me de coisas e, tal como ela o apontou, isso representava
basicamente uma compulsão. Para incômodo de meus pais, e desde que era muito
nova, eu periodicamente me desfazia de minhas roupas e meus brinquedos, e a
felicidade de ver meu quarto e meus armários ordenados e quase vazios ultrapassava a
de adquirir posses.
Às vezes minha compulsão se fazia tão intensa que também dizimava os
armários de meus pais e de meus irmãos, fato que costumava passar inadvertido, pois
tomava o cuidado de se desfazer de roupas que haviam caído em desuso. Contudo, de
tarde em tarde, a casa explodia quando meu pai percorria os cômodos abrindo guarda‐
roupas e vociferando, em busca de uma determinada camisa ou calça.
A Florinda isto lhe causou graça e, de pé junto à janela que dava a uma viela,
fixou sua vista na grossa cortina negra que servia para se ter escuridão total, como se
pudesse ver através dela, e opinou que era muito mais fácil para uma mulher que para
um homem cortar amarras com a família e o passado.
—As mulheres — manteve — não são responsáveis, e esta falta de
responsabilidade lhes dá uma grande medida de fluidez que, lamentavelmente, raras
vezes aproveitam — e enquanto falava percorreu o aposento acariciando a mobília. —
O mais difícil de compreender a respeito do mundo dos feiticeiros é que ele oferece a
liberdade, mas… — e ao dizer isto se virou para ficar de frente a mim — a liberdade
não se obtém gratuitamente.
—O que custa essa liberdade? — perguntei.

—Anão
descartar, liberdade
por serlhe custarámas
cômoda, a máscara que leva
sim porque posta:
a tem essa
estado tão cômoda
usando e difícil de
tanto tempo… —
com isto deixou de percorrer o quarto e veio a instalar‐se frente à mesa. —Sabe o que
é a liberdade? É a total ausência de preocupação acerca de si mesma — disse,
sentando‐se junto a mim sobre a cama — e a melhor maneira de deixar de preocupar‐
se com sua pessoa é preocupando‐se por outros.
—Eu me preocupo — assegurei‐lhe. —Penso constantemente em Isidoro
Baltazar e suas mulheres.
—Não me cabe dúvida — concordou, sacudindo a cabeça e bocejando. —Já é
hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém mais
que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em você,
e haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente,
muito fria… — eem
Caímos prosseguiu
um longoenumerando uma série
silêncio, depois de insólitas
do qual, com a incomodidades.
mesma voz sonolenta,
Florinda prosseguiu seu discurso:

125
—Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve
agir nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Tem ensonhado desperta desde seu
regresso?
Precisei admitir que não o havia feito.
—Então ainda não se decidiu — observou com severidade. —Não está talhando
sua máscara. Não está ensonhando seu outro ser. Os feiticeiros estão comprometidos
com seu mundo somente através de sua impecabilidade — e os olhos de Florinda
brilharam ao completar: —Os feiticeiros não têm interesse em converter a outros às
suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por
saber mais, ou ser melhores feiticeiros que os outros, e sim por simplesmente possuir
mais energia, e não me refiro necessariamente à força física, e sim a certa
configuração de seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da
percepção.
—Se aos feiticeiros não lhes interessa converter ao próximo, por que Isidoro
Baltazar é aprendiz do nagual velho?
—Isidoro Baltazar apareceu no mundo dos feiticeiros do mesmo modo em que
você apareceu. Não importa o que o trouxe, o certo é que não pôde ser ignorado por
Mariano Aureliano, e ensinar‐lhe tudo o referente ao mundo feiticeiro se converteu
em obrigação para ele. — Depois explicou que ninguém nos andou buscando, nem a
Isidoro Baltazar e a mim. Nosso ingresso nesse mundo não foi obra nem desejo de
ninguém. —Nenhum de nós faria nada por mantê‐los neste mundo mágico contra sua
vontade — acrescentou sorrindo — mas sim faríamos o possível e o impossível para
ajudá‐los a permanecer nele.
Florinda se virou como se desejasse esconder seu rosto de mim, e um instante
depois me olhou por cima de seu ombro. Havia em seu olhar algo frio e remoto, e a
mudança de expressão era tal que me inspirou temor. Instintivamente me afastei dela.
—A única coisa que nem eu nem Isidoro Baltazar faríamos nem quiséramos
fazer é ajudar‐lhe a que continue com sua existência disforme, voraz e complacente.
Isso seria uma fraude — e como para suavizar o insulto me abraçou.
—Te direi o que necessita… — e esteve calada por tão longo tempo que pensei

que havia
precisa esquecido
é de uma boa onoite
que de
estava
sono.por me dizer. Finalmente murmurou: —O que você
—Não estou nada cansada — respondi, resposta automática como todas as
minhas, sempre contrárias ao que se estava dizendo. Para mim ter a razão era uma
questão de princípios.
Florinda riu e me abraçou de novo.
—Não seja tão alemã, e não espere a que tudo seja soletrado com precisão
para seu benefício. — acrescentou que nada no mundo deles era tão claro e preciso.
As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta. —Isidoro Baltazar te ajudará — me
assegurou — mas é necessário que lembre que não te ajudará do modo que você
espera que o faça.
—O que quer dizer com isso? — perguntei, livrando‐me de seu abraço para
poder olhá‐la. lhe dirá as coisas que deseja ouvir, nem te dirá como deve se comportar
—Não
pois, como sabe, em nosso mundo não existem regras nem regulamentos. — Pelo visto
minha crescente frustração lhe causava graça, pois riu com vontade.

126
—Lembre‐se sempre que só existem improvisações… — e com isso e um grande
bocejo, se estendeu na cama, depois de pegar uma das mantas empilhadas no piso.
Mas antes de cobrir‐se se ergueu sobre um de seus cotovelos para dirigir‐me um olhar
penetrante, e numa voz sonolenta e levemente hipnótica, me aconselhou a ter sempre
presente que a minha era a mesma senda guerreira que a de Isidoro Baltazar. Com os
olhos fechados, e num tom apenas audível, completou:
—Nunca o perca de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que você
nem sequer se perceberá disso. Isidoro Baltazar é um guerreiro impecável e
incomparável.
Sacudi seu braço, temendo que dormisse antes de terminar com o que tinha
que dizer‐me, e sem abrir os olhos continuou seu discurso.
—Se o observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação.
Verá que permanece impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está
disposto a dar tudo de si mesmo. Aguarda permanentemente um sinal do espírito, na
forma de uma palavra amável ou um gesto apropriado, e quando o recebe, expressa
seu agradecimento redobrando seus esforços.
Continuou dizendo que Isidoro Baltazar não julgava.
—Se reduziu ele mesmo a nada para escutar e observar, para assim poder
conquistar e ser humilhado na conquista, ou ser derrotado e enaltecido na derrota. Se
observar com cuidado verá que Isidoro Baltazar não se rende. Podem vencê‐lo, mas
não se renderá e, acima de tudo, Isidoro Baltazar é livre.
Eu me morria por interrompê‐la, por dizer‐lhe que tudo isso já o havia me
contado, mas antes que pudesse falar Florinda já havia adormecido, e temendo não
dar com ela de manhã, caso voltasse ao meu apartamento, sentei‐me sobre a outra
cama.
Estranhos pensamentos me invadiram. Me relaxei e me deixei ir, ao
compreender que estavam desconectados do resto de meus pensamentos normais,
vistos como raios de luz e relâmpagos de intuição. Seguindo um destes relâmpagos
intuitivos decidi sentir a cama com minhas nádegas, e para minha grande surpresa foi
como se minhas nádegas se tivessem fundido na própria cama. Por uns momentos eu

era asituação.
esta cama que se esforçava
Sabia por tocar
que ensonhava, minhas nádegas.
e compreendi Durante claridade
com absoluta um bom tempo gozei
que acabara
de experimentar o que Esperanza havia descrito como “minha sensação sendo
devolvida como um eco”. Depois todo meu ser se derreteu ou, melhor dizendo,
explodiu.
Teria querido rir de felicidade, mas não desejei despertar a Florinda. Eu me
lembrava de tudo! E não tive dificuldade alguma em lembrar o que havia feito na casa
das feiticeiras durante aqueles dez dias perdidos. Havia ensonhado! Sob o olhar
vigilante de Esperanza eu ensonhei sem deter‐me, despertando na casa das bruxas, na
de Esperanza, ou em outros lugares irreconhecíveis no momento.
Clara havia insistido que antes que um fato particular pudesse se fixar na
memória de modo permanente, era necessário tê‐lo visto um par de vezes, e sentada
ali na cama,com
feiticeiros, observando a Florinda
quem havia dormir,
convivido lembrei durante
em ensonhos às outrasesses
mulheres do grupo dos
dias esquecidos. Eu
as vi com claridade, como se tivessem se materializado diante de mim, ou melhor,
como se eu houvesse sido fisicamente transportada de volta a essas circunstâncias.

127
Para mim a mais chamativa era Nélida, que se parecia tanto a Florinda que a
princípio pensei que fossem gêmeas. Não só era alta e delicada como Florinda, como
tinha a mesma cor de olhos, cabelo e pele. Até suas expressões eram idênticas.
Também se pareciam no temperamento, apesar de que se poderia dizer que Nélida
que era mais suave, menos dominante. Dava a impressão de não possuir a sabedoria e
a força energética de Florinda, mas sim uma energia paciente e silenciosa, muito
reconfortante.
Quanto à Hermelinda, com muita facilidade poderia ter passado por irmã
menor de Carmela. Seu corpo pequeno e delicado, de apenas um metro e cinquenta e
sete centímetros, era delicadamente arredondado, e seus modos esquisitos. Dava a
impressão de possuir menos autoconfiança que Carmela. Sua fala era doce, e se movia
com meneios rápidos e bruscos, não livre de graça. Suas companheiras me confiaram
que sua timidez e sossego faziam com que aqueles que lidavam com ela tendessem a
se mostrar sob suas melhores luzes, e também que não poderia manejar a um grupo,
nem sequer a duas pessoas por vez.
Clara e Delia formavam um estupendo par de travessas. A princípio pareciam
ser de grande tamanho, mas era sua robustez, vigor e energia o que se fazia pensar
nelas como em mulheres gigantescas e indestrutíveis. Dedicavam‐se a jogos
deliciosamente competitivos, e com o menor pretexto exibiam vestimentas
excêntricas. Ambas tocavam muito bem o violão, possuíam lindas vozes, e rivalizavam
cantando não só em espanhol como em inglês, alemão, francês e italiano. Seu
repertório incluía baladas, canções folclóricas e todo tipo de canção popular, inclusive
os mais recentes sucessos pop. Não era necessário mais que cantarolar a primeira linha
de uma canção, e já Clara e Delia a completavam. Também organizavam competições
poéticas, escrevendo versos para as ocasiões em que se apresentavam.
A mim me haviam dedicado poemas que depois atiravam embaixo da minha
porta sem assinar, devendo eu adivinhar quem o havia escrito, e ambas sustentavam
que se a amava como ela a mim, a intuição se encarregaria de revelar‐me o nome da
autora. O atraente destas competições era a ausência de segundas intenções. Seu
objetivo era entreter, não o de vencer o oponente, e desnecessário dizer que Clara e

Delia se ter
parecia divertiam junto eu,
‐lhes caído comseu
quem as assistia.
afeto Se alguém
e lealdade lhes caíalimite.
não tinham nas graças,
Ambascomo
me
defenderam com assombrosa perseverança, ainda que eu estivesse errada, pois para
elas eu era perfeita e incapaz de errar. Elas me ensinaram que manter essa confiança
significava para mim uma dupla responsabilidade, e não foi propriamente o meu temor
em decepcioná‐las e sim que, para mim, acabou sendo natural acreditar‐me perfeita, o
que fez com que me comportasse com elas de maneira impecável.
A mais estranha das mulheres feiticeiras era minha suposta professora na arte
de ensonhar, Zuleica, que nunca me ensinou nada. Jamais me dirigiu a palavra, e talvez
nem sequer chegou a reparar em minha existência. Zuleica, assim como Florinda, era
muito bonita, talvez não tão chamativa mas sim bela, num sentido mais etéreo. Era
pequena, e seus olhos escuros com suas sobrancelhas aladas, e sua boca e nariz,
perfeitos, estavam
grisalho, que emoldurados
acentuavam sua aura por cabelos
de ser escuros
de outro e Não
mundo. ondulados,
era a suapróximos do
uma beleza
normal, e sim sublime, moderada por seu implacável autocontrole. Possuía plena
consciência do cômico que era ser linda e atraente aos olhos de terceiros. Havia

128
aprendido a admiti‐lo, e o usava como se fosse um prêmio que havia ganhado, tudo o
qual a fazia “não‐igual” a todos e a tudo.
Zuleica havia aprendido a arte do ventriloquismo, levando‐o a níveis excelsos, e
sustentava que as palavras enunciadas pelo movimento dos lábios se tornavam mais
confusas do que na realidade eram. A mim me encantava o modo em que Zuleica
como ventríloqua fazia falar as paredes, as mesas, os pratos ou qualquer objeto que
tivesse diante de si, e eu havia pego o costume de segui‐la pela casa. Mais que
caminhar Zuleica parecia flutuar sem tocar o solo e sem mover o ar, e quando
perguntei às outras feiticeiras se isto representava uma ilusão, me responderam que
era porque Zuleica detestava deixar suas pegadas no chão.
Depois de conhecer e lidar com todas, as mulheres me explicaram a diferença
entre ensonhadoras e espreitadoras. Chamavam a esta diferença “os dois planetas”.
Florinda, Carmela, Zoila e Delia eram espreitadoras: seres fortes dotados de grande
energia física; agressivas, trabalhadoras incansáveis, e especialistas nesse extravagante
estado de consciência que chamavam ensonhar desperto.
O outro planeta, as ensonhadoras, era composto pelas outras quatro mulheres:
Zuleica, Nélida, Hermelinda e Clara. Sua qualidade era mais etérea, não por ser menos
forte ou enérgica, mas simplesmente porque sua energia era menos aparente.
Projetavam uma imagem de não ser deste mundo, ainda quando ocupadas com
tarefas mundanas, e eram especialistas em outro estado especial de consciência, que
chamavam “ensonhar em mundos outros que este mundo”. Me informaram que este
era o estado de consciência mais complexo que uma mulher podia alcançar.
Quando todas elas trabalhavam juntas, as espreitadoras representavam uma
cortiça exterior, dura e protetora, que ocultava um núcleo profundo: as ensonhadoras.
Elas eram a matriz suave que acolchoava a dura cortiça exterior.
Durante esses dias na casa das feiticeiras elas cuidaram de mim como se eu
fosse algo precioso. Fui adulada e mimada, cozinharam para mim seus pratos favoritos,
e me fizeram a roupa mais elegante que jamais tive. Me atordoaram com presentes,
coisas bobas e jóias preciosas que guardaram, segundo disseram, para o dia do meu
despertar.

Havia outras
ambas gordas, duas Marta
e de nome mulheres no mundo
e Teresa. doseram
As duas feiticeiros,
bonitas ambas espreitadoras,
e possuíam fabulosos
apetites. No armário tinham escondido um sortido de biscoitos, chocolates e doces,
muito convencidas de que somente elas conheciam sua localização, e me agradou e
alegrou sobremaneira que desde a primeira hora me fizeram partícipe deste tesouro,
habilitando‐me para fazer uso dele ao meu prazer, o qual, é claro, não deixei de fazer.
Das duas, Marta era a maior, uma exótica mistura de índia e alemã de vinte e
tantos anos. Sua tez, se bem não de todo branca, era pálida; seu magnífico cabelo
negro era suave e ondulado, e emoldurava um rosto cheio com maçãs do rosto altas.
Os olhos amendoados eram de um verde azulado, e suas pequenas e delicadas orelhas
pareciam, por ser de um rosado quase transparente, as de um gato. Marta era muito
dada a emitir longos e tristes suspiros, segundo ela devido a sua srcem alemã, e a
melancólicos
começado a tomar silêncios,
liçõesherança dee sua
de violino, almaa indígena.
praticava Há pouco
qualquer hora do dia, tempo havia
mas longe de
criticá‐la ou irritarem‐se com ela, a reação unânime era que Marta tinha um fabuloso
ouvido musical.

129
Teresa media apenas um metro e cinquenta, mas sua robustez a fazia parecer
mais alta. Mais que mexicana, parecia uma índia da Índia. Sua pele perfeita era de uma
cremosa cor cobre claro, seus olhos puxados, escuros e líquidos, tinham por
complemento cílios enrolados de tal peso que mantinham baixas as pálpebras, dando‐
lhe uma expressão distante e sonhadora. Seu caráter doce e gentil nos convidava a
protegê‐la.
Também em Teresa jazia um temperamento artístico. Pintava aquarelas ao cair
da tarde. Diante de seu cavalete, com todos seus elementos prontos, sentava‐se
durante horas no pátio à espera de que a luz e as sombras alcançassem seu ponto
ideal, e então, com um controle e uma fluidez que pareciam ditados pela filosofia Zen,
fazia entrar em ação seus pincéis, e dava vida às suas telas.
O grosso de minhas memórias ocultas havia alcançado a superfície. Estava
exausta. O ritmo dos leves roncos de Florinda, crescendo e diminuindo como um eco
distante, tinha um poder hipnotizante. Quando abri os olhos meu primeiro ato foi
pronunciar seu nome. Não recebi resposta. A cama estava vazia. Os lençóis
cuidadosamente esticados não mostravam sinais de que alguém tivesse sentado sobre
eles, e muito menos dormido. Os dois travesseiros se encontravam em sua posição
srcinal, contra a parede, e a manta que ela usou, dobrada junto com as outras,
empilhadas sobre o piso. Ansiosa, revistei o apartamento em busca de algum indício
de sua presença. Não encontrei nada, nem sequer um cabelo grisalho no banheiro.

130
CAPÍTULO TREZE

Nos momentos em que me encontrava totalmente desperta, não recordava


muito bem esses dias perdidos, apesar de saber sem espaço a dúvidas, que não eram
dias perdidos. Algo me havia acontecido nesse tempo, algo com um significado interior
que me escapava. Não realizei nenhum esforço consciente para recapturar todas essas
memórias vagas: sabia que estavam ali, semi‐ocultas, como essas pessoas a quem
alguém conhece apenas, e cujos nomes não se consegue lembrar.
Nunca fui de dormir bem, mas dessa noite em diante, desde a aparição de
Florinda no estúdio de Isidoro Baltazar, eu dormia a toda hora com o exclusivo
propósito de ensonhar. Adormecia com inteira naturalidade cada vez que me
encostava, e por longos períodos. Inclusive engordei, por desgraça não nos lugares
apropriados. No entanto jamais ensonhei com os feiticeiros.
Uma tarde um forte ruído de lata me despertou. Isidoro Baltazar havia deixado
cair a chaleira na pia da cozinha. Doía‐me a cabeça, suava copiosamente e tinha a vista
nublada. Restou‐me a lembrança de um sonho terrível, que se desvaneceu muito
rápido.
—É culpa sua! — gritei‐lhe. —Se apenas me ajudasse não desperdiçaria minha
vida dormindo. — Desejava ceder à minha frustração e à minha impaciência mediante
um protesto retumbante, mas rapidamente me dei conta de que isso era impossível,
pois já não desfrutava protestando como antes.
O rosto de Isidoro Baltazar exteriorizava sua satisfação, como se eu tivesse
expressado meus pensamentos em voz alta. Pegou uma cadeira e, cavalgando‐a, disse:
—Sabe que não posso lhe ajudar. As mulheres possuem uma rota diferente
para seus ensonhos. Nem sequer posso conceber o que fazem as mulheres para
ensonhar.
—Deveria saber — retruquei de mau modo —, com tantas mulheres em sua
vida…
Minha réplica provocou sua risada. Nada parecia perturbar seu bom ânimo.
—Não posso conceber o que fazem as mulheres para ensonhar — repetiu. —Os

homens precisam
mulheres lutar
não lutam, masincessantemente para
precisam adquirir enfocarinterna.
disciplina sua atenção
Há algonos sonhos.
que As
pode lhe
ajudar — agregou sorrindo —, trate de não ensonhar com sua acostumada atitude
compulsiva. Deixe que o ensonho venha a ti.
Abri e fechei a boca, e rapidamente meu assombro se trocou por fúria.
Esquecida minha recente lucidez, calcei meus sapatos e abandonei a casa, batendo a
porta ao sair. Sua risada me seguiu até onde se encontrava estacionado meu carro.
Deprimida, sentindo que não me amavam, sozinha e, acima de tudo, com pena de mim
mesma, me dirigi à praia. Estava deserta, e chovia mansamente. A ausência de vento
era total. O som das ondas lambendo a praia, e o da chuva golpeando as águas,
atuaram sobre mim como um calmante. Tirei os sapatos, arregacei minhas calças, e
caminhei até ficar limpa de meus caprichosos arranques. Reconheci estar limpa, pois o
sussurro das ondas
senti ameaçada, me trouxe asaceitei
simplesmente palavras de Florinda:
minha solidão, e“Éfoi
uma luta
esta solitária”.
aceitação o Não
que me
me
deu a convicção do que precisava fazer; e posto que não sou dada às postergações, agi
de imediato.

131
Deixei um bilhete sob a porta de Isidoro Baltazar (não queria que ele me
dissuadisse) e tomei rumo à casa das feiticeiras. Dirigi toda a noite. Em Tucson me
registrei num motel, dormi a maior parte do dia, e retomei minha viagem ao cair da
tarde, seguindo a mesma rota que tomou Isidoro Baltazar em nossa viagem de
regresso.
Meu sentido de direção é pobre, mas tinha bem gravada essa rota. Com
segurança assombrosa soube quais caminhos tomar, onde virar, e em escasso tempo
cheguei ao destino. Não me incomodei em consultar meu relógio, pois não queria
perder a sensação de que o tempo não se havia movido entre minha partida de Tucson
e minha chegada à casa das feiticeiras.
Não me incomodou não encontrar a ninguém na casa, pois tinha bem presente
que não me havia se estendido nenhum convite formal, mas lembrava muito bem que
Nélida, ao esconder numa gaveta uma pequena cesta contendo os presentes que me
fizeram, me disse que devia voltar todas as vezes que quisesse. Suas palavras soavam
em meus ouvidos: “De dia ou de noite esta cesta te ajudará a que chegue bem.”
Com uma segurança à qual normalmente se chega com a prática, fui
diretamente ao quarto que Esperanza me designara, onde a rede branca com franjas
parecia estar me esperando. Finalmente me invadiu uma vaga inquietude, mas não o
medo que deveria ter sentido. Um pouco inquieta, instalei‐me na rede, deixando uma
perna para fora, com a qual balançar‐me.
—Ao diabo com meus temores — gritei, e em seguida recolhi a perna, e
totalmente instalada na rede me estirei com a voluptuosidade de um gato, fazendo
estalar todas as minhas articulações.
Uma voz me saudou vinda do corredor:
—Vejo que chegou sã e salva.
Não precisei vê‐la para reconhecer a voz. Sabia que era Nélida, e esperei em
vão a que entrasse no quarto. Eu a ouvi dizer “sua comida está na cozinha”, e depois
seus passos se afastaram pelo corredor. Abandonei a rede e corri atrás dela, mas não
havia ninguém no corredor nem nos quartos que passei a caminho da cozinha. Na
verdade não havia ninguém em toda a casa. Contudo, eu tinha a certeza de que se

encontravam ali. Escutei


Meus dias suastranscorreram
seguintes vozes, suas risadas e o ruído deestado
em permanente pratosde
e panelas.
antecipação, em
esperar a que algo importante ocorresse. Não imaginava o quê, mas tinha a certeza de
que esse algo estava ligado às mulheres. Por alguma razão insondável as mulheres não
desejavam ser vistas, e esse insólito comportamento furtivo me manteve nos
corredores a toda hora, espreitando silenciosa como uma sombra, mas apesar de
meus engenhosos estratagemas me foi impossível surpreendê‐las, ou obter sequer
uma fugaz visão de seus corpos. Se deslizavam invisíveis por toda a casa, entravam e
saíam de seus quartos como se fosse entre diferentes mundos, deixando o rastro de
suas vozes e seus risos.
Houve momentos em que duvidei de sua presença na casa, e até cheguei a
suspeitar que os ruídos de passos, murmúrios e risos não passavam de ser fruto de
minha imaginação;
suspeita, escutava a ealguma
quando mefazendo
delas encontrava a ponto
algo no pátio, edeentão,
aceitar como
plena válida esta
de expectativa
e de fervor renovado, corria até a parte posterior da casa para topar‐me com a
realidade de ter sido enganada mais uma vez. Nesses momentos me convencia de que

132
elas, sendo como eram, verdadeiras bruxas, possuíam algum tipo de sistema de eco
interno, parecido ao dos morcegos, que as alertava a respeito de minha aproximação.
Meu desencanto ao não poder surpreendê‐las junto ao fogão sempre
desaparecia ante as exóticas comidas que me deixavam, e cujo delicioso sabor
compensava a mesquinhez das porções. Com enorme prazer comia sua magnífica
comida, apesar do qual sempre sentia fome.
Certo dia, um pouco antes do crepúsculo, escutei a voz de um homem,
pronunciando meu nome com suavidade, vinda dos fundos da casa. Saltei da rede e
corri até lá, e me produziu tal felicidade encontrar ao cuidador que saltei sobre ele
como salta um cachorro. Incapaz de conter minha alegria o beijei em ambas as
bochechas.
—Cuidado, Nibelunga — disse com a mesma voz e modo de Isidoro Baltazar.
Minha surpresa me fez dar um salto e abrir os olhos surpreendida. Com uma piscada
me formulou uma maliciosa advertência:
—Controle‐se, pois se não me cuido é capaz de se aproveitar de mim.
Por um momento não soube como interpretar suas palavras, mas ao ver que
ria, e sentir que me espalmava as costas para me animar, relaxei por completo.
—Me alegra muito ver você — disse‐me com suavidade.
—E eu — respondi alegremente — me alegro muitíssimo de ver você! — depois
lhe perguntei onde estavam os demais.
—Oh, andam por aí — respondeu de maneira ambígua. —Neste momento,
misteriosamente inacessíveis, mas sempre presentes — e percebendo minha
desilusão, acrescentou: —Tenha paciência.
—Sei que andam por aí, pois me deixam comida — confessei —, mas sempre
tenho fome, já que as porções são muito pequenas.
Em sua opinião essa era a condição natural das iguarias que conferiam poder:
nunca se recebia o suficiente. Disse que cozinhava sua própria comida, arroz e feijões
com pedaços de porco, vaca ou frango uma vez ao dia, mas nunca à mesma hora.
Depois me levou a seu aposento. Vivia num quarto grande e desordenado atrás da
cozinha, entre as estranhas esculturas de ferro e de madeira, onde o ar impregnado de

jasmimportátil,
cama e eucalipto pairava imóvel
que mantinha ao redor
dobrada das
dentro decortinas fechadas.
um armário Dormia
quando não sobre
estavauma
em
uso, e comia sobre uma pequena mesa Chippendale de pernas frágeis.
Confessou‐me que assim como as misteriosas mulheres, detestava a rotina.
Para ele tanto importava o dia como a noite, a manhã como a tarde. Mantinha limpos
os pátios e se ocupava de varrer quando sentia vontade de fazer, indiferente a se o
que jazia no chão eram folhas ou flores.
Nos dias subseqüentes tive grandes problemas para ajustar‐me a este tipo de
vida desarticulada. Mais por compulsão que por desejo de ser útil, ajudei ao cuidador
em suas tarefas, e também aceitei seus convites de compartilhar suas comidas, que se
mostraram ser tão deliciosas como sua companhia. Convencida de que ele era algo
mais que um cuidador, tentei, com perguntas manhosas, surpreendê‐lo desprevenido;
técnica—De
inútil, onde
que não produziu
você é? —respostas
pergunteisatisfatórias.
‐lhe a queima‐roupa certo dia enquanto
comíamos.
Levantou a vista do prato e apontou com o dedo em direção às montanhas, que
a janela aberta emoldurava como se fosse um quadro.

133
—El Bacatete? — perguntei, revelando no tom de voz minha incredulidade. —
Mas você não é índio — murmurei desconcertada. —De acordo com como eu vejo tais
coisas, somente o nagual Mariano Aureliano, Delia e Genaro Flores são índios — e
encorajada pela expressão de surpresa e expectativa refletida em seu rosto
acrescentei que, sempre em minha opinião, Esperanza transcendia as categorias
raciais. Aproximando‐me, e baixando a voz a um nível de conspirador, confessei‐lhe o
que já havia confiado a Florinda. —Esperanza não nasceu como ser humano. Foi
estabelecida por um ato de bruxaria. É o diabo em pessoa.
Afastando sua cadeira para trás, o cuidador extravasou sua alegria.
—E o que me diz de Florinda? Sabia que é francesa? Ou melhor, que seus pais
eram franceses, das famílias que vieram ao México com Maximiliano e Carlota.
—É muito bonita — murmurei, tratando de lembrar em que momento exato do
século passado Napoleão havia enviado o príncipe austríaco ao México.
—Não a viu quando se enfeita toda… — acrescentou o cuidador. —É outra
pessoa, para quem a idade não conta.
—Carmela me disse que eu sou como Florinda — me aventurei a dizer, num
ataque de vaidade e anseio ilusório.
Impulsionado pelo riso que fervia em seu interior, o cuidador saltou de sua
cadeira.
—Bem que você gostaria que fosse… — comentou sem maior ênfase, como se
não lhe interessasse a repercussão que teriam em mim suas palavras.
Irritada por seu comentário e sua falta de sensibilidade olhei‐o com um
aborrecimento mal disfarçado. Depois, ansiosa por mudar de assunto, lhe fiz uma
pergunta relacionada com o nagual Mariano Aureliano:
—E ele, exatamente de onde provém?
—Quem sabe de onde provém os naguais — contrapôs, e aproximando‐se da
janela fixou sua vista durante um longo período nas montanhas distantes. Depois
completou: —Há quem diga que os naguais vêm do próprio inferno. Eu acredito.
Alguns dizem que nem sequer são humanos… — houve uma nova pausa que me fez
perguntar‐me se o longo silêncio seria repetido, ao fim do qual, como se tivesse

intuído
mim eu minha impaciência,
diria que os naguais sentou se‐humanos.
são super a meu lado
Pore essa
continuou: —Se perguntassem
razão conhecem a
tudo acerca
da natureza humana. Não se pode mentir a um nagual. Vêem através de ti. Até vêem
através do espaço os outros mundos além deste, e outras eras deste mundo.
Me senti incômoda, e essa incomodidade me pôs inquieta. Desejava que
deixasse de falar, e lamentei tê‐lo levado a essa conversa. Tinha a certeza de que o
homem estava louco.
—Não, não estou louco — assegurou, e ao escutar essas palavras soltei um
grito. —Simplesmente estou falando de coisas que você nunca escutou antes.
Colocada na defensiva, meus olhos piscaram repetidas vezes, mas essa
inquietação me proporcionou a coragem necessária para perguntar‐lhe sem
preâmbulo algum:
—Por que se
—É óbvio —escondem
respondeu.de Depois,
mim? ao ver que para mim não era tão óbvio,
acrescentou: —Deveria saber. Você, e os que são como você, constituem a tripulação,
não eu. Não sou um deles, sou apenas o cuidador, o que azeita a máquina.

134
—Está me confundindo cada vez mais — respondi irritada. Depois tive um
momento de intuição. —Quem são os da tripulação à qual se referiu?
—Todas as mulheres que conheceu da última vez que esteve aqui. As
espreitadoras e as ensonhadoras. Me disseram que você pertence às espreitadoras.
Após servir‐se de um copo de água se dirigiu à janela, levando consigo o copo.
Bebeu uns goles antes de me informar que o nagual Mariano Aureliano havia posto à
prova minhas condições de espreitadora em Tucson, quando me fez entrar na cafeteria
para por uma barata na comida. Depois, encarando‐me, anunciou:
—Você falhou.
Eu o interrompi, pois não desejava escutar o resto dessa estória.
—Não quero escutar essa bobagem.
Enrugou o rosto, prelúdio nele de alguma travessura.
—Mas depois do fracasso você se reabilitou, gritando e chutando ao nagual
Mariano Aureliano sem vergonha nem consideração alguma — e ressaltou que as
espreitadoras são pessoas que possuem a habilidade de lidar com outras pessoas.
Abri a boca, a ponto de dizer‐lhe que não entendera uma só palavra, mas a
fechei de novo.
—O desconcertante é que também é uma grande ensonhadora. Se não fosse
por isso seria como Florinda, naturalmente sem sua estatura e sua beleza.
Sorrindo venenosamente, maldisse em silêncio ao velho debochado. De
repente me disparou uma pergunta.
—Lembra quantas mulheres havia no piquenique?
Fechei os olhos para visualizar melhor o acontecimento. Vi com clareza a seis
mulheres sentadas em torno da lona estendida sob os eucaliptos. Esperanza não
estava presente, mas sim Carmela, Zoila, Delia e Florinda.
—Quem eram as outras duas? — perguntei, mais confusa que nunca.
—Ah — murmurou, apreciando minha pergunta, a julgar pelo brilhante sorriso
que enrugou seu rosto. —Essas eram duas ensonhadoras de outro mundo. Você as viu
claramente, mas logo desapareceram, e sua mente não as registrou, pois lhe pareceu
completamente inconcebível.

Aceiteivisto
como havia sua explicação sem lhemulheres,
somente quatro prestar demasiada atenção,
quando sabia queincapaz
eram de conceber
seis. Minha
dúvida deve de ter‐se transparecido a ele, pois explicou que era muito natural que eu
tivesse me concentrado somente em quatro.
—As outras duas são sua fonte de energia. São incorpóreas, e não pertencem a
este mundo.
Perdida e desconcertada, não pude atinar, senão olhá‐lo fixo. Se me haviam
esgotado as perguntas.
—Dado que você não está no planeta das ensonhadoras, seus sonhos são
pesadelos, e suas transições entre ensonhos e realidade lhe acabam sendo muito
instáveis e perigosas, a você e às demais ensonhadoras. Por conseguinte, Florinda
assumiu a tarefa de apoiar‐lhe e proteger‐lhe.
Fiquei
—Não de pé com
quero talmais!
saber ímpeto—que minha
gritei, cadeira
e justo foi aome
a tempo chão.
abstive de acrescentar
que estava melhor assim, sem conhecer seus loucos costumes e explicações.
O cuidador me pegou pela mão e me conduziu para fora, através do pátio e do
chaparral, até a parte traseira da casa pequena.

135
—Preciso da sua ajuda com o gerador — pediu. —Tem que repará‐lo.
Seu pedido me causou graça. Respondi que ignorava tudo a respeito de
geradores, e assim que abriu a portinhola de uma pequena casinha de cimento, me dei
conta de que a corrente elétrica para as luzes da casa se gerava ali. Até então presumi
que as luzes e eletrodomésticos do México rural eram os mesmos que na cidade.
Deste dia em diante procurei não fazer‐lhe demasiadas perguntas, pois não me
sentia preparada para suas respostas. Então nossa relação adquiriu contornos de
ritual, onde eu me esmerava por igualar o esquisito domínio que o velho possuía do
idioma espanhol. Dediquei horas à consulta de vários dicionários, buscando palavras
novas e quase sempre arcaicas, com as quais impressioná‐lo.
Certa tarde em que esperava que o cuidador trouxesse a comida, (era a
primeira vez desde que conheci seu quarto que me encontrava sozinha nele) lembrei
do velho e estranho espelho, e me dediquei a examinar sua superfície brumosa e
manchada.
—Cuidado. Esse espelho te prenderá se você se contemplar muito nele —
aconselhou uma voz em minhas costas.
Minhas esperanças de ver ao cuidador se frustraram pois, ao virar‐me, o quarto
estava deserto de presença humana, e em meu precipitado afã por alcançar a porta
esbarrei numa das esculturas. Automaticamente estirei a mão para estabilizá‐la, mas
antes sequer de que pudesse aproximar‐me, a figura pareceu afastar‐se com um
estranho movimento rotativo, para depois retomar sua posição srcinal após emitir um
suspiro quase humano.
—O que acontece? — perguntou o cuidador, entrando no quarto. Colocou uma
grande bandeja sobre a mesinha frágil e, reparando em meu rosto, que devia de estar
verde, insistiu em sua questão.
Respondi assinalando a escultura.
—Há momentos em que sinto que essas monstruosidades têm vida própria e
me espiam — disse, e ao observar a expressão séria e chateada de seu rosto me
apressei em assegurar‐lhe que por “monstruosidade” não me referia à feiúra e sim ao
tamanho das peças. Após respirar profundamente repeti minha impressão de que

estavam
fio de voz,vivas, o qual,confirmou
o cuidador depois decom
olharseu
furtivamente
“Têm vida”.em torno dele, e com apenas um
Me senti tão incômoda que comecei a tagarelar acerca da tarde em que
descobri seu quarto, de como me senti atraída a ele por um inquietante murmúrio que
no fim era obra do vento empurrando a cortina através de uma janela quebrada.
—Sem dúvida nesse momento achei que se tratava de um monstro — confessei
entre risinhos nervosos —, uma presença estranha alimentada pelas sombras do
crepúsculo.
Fui objeto do olhar penetrante do cuidador, que mordeu seu lábio inferior e
depois deixou que esse olhar vagasse em torno do aposento antes de chegar a uma
decisão.
—É melhor que nos sentemos à mesa antes que a comida se esfrie. —
ofereceu‐me em
muita razão umachamá
cadeira,
‐lasepresenças,
assim que me
poissentei acrescentou
não são emsão
esculturas, tominvenções.
vibrante: —Tem
Foram
concebidas segundo modelos vistos em outro mundo por um grande nagual.
—Por Mariano Aureliano?
—Não, por um nagual muito mais velho, chamado Elías.

136
—E por que estão estas invenções em seu quarto? Esse grande nagual as fez
para você?
—Não — respondeu —, eu só cuido delas — e pondo‐se de pé, tirou um lenço
branco de um bolso e começou a limpar com ele a invenção mais próxima. —Dado que
sou o cuidador, me corresponde cuidar delas. Algum dia, com a ajuda dos feiticeiros
que você conheceu, entregarei estas invenções ao lugar onde lhes corresponde.
—E onde é isso?
—O infinito, o cosmos, o vazio.
—E como pretende levá‐las até lá?
—Mediante o mesmo poder que as trouxe: o poder de ensonhar desperto.
—Se você ensonha como ensonham estes feiticeiros — disse com cautela,
procurando evitar que minha voz adquirisse um tom triunfalista —, então você
também há de ser um feiticeiro.
—Eu sou, mas não sou como eles.
Sua ingênua admissão me confundiu.
—Qual é a diferença?
—Ah! — exclamou com ar sabichão. —Existe uma enorme diferença, que não
posso lhe explicar agora. Se o fizesse, te afetaria muito, e te poria mais triste que
nunca. No entanto chegará o dia em que o saberá sozinha, sem necessidade de que
alguém o revele a você.
Senti em minha mente girar as rodas do esforço enquanto buscava algo novo
para dizer, alguma outra pergunta para fazer.
—Pode me dizer como chegaram essas invenções ao poder do nagual Elías?
—Ele as viu em seus ensonhos e as capturou. Algumas são cópias feitas por ele,
cópias de invenções que não pôde transportar. Outras são o produto verdadeiro;
invenções que o nagual trouxe até aqui.
Não lhe acreditei nem em uma só palavra, contudo não pude evitar outra
pergunta.
—Por que o nagual Elías as trouxe?
—Porque as próprias invenções lhe pediram.

—E
O por quê?
cuidador me silenciou com um gesto de sua mão, e me instou a comer, e essa
renúncia a satisfazer minha curiosidade serviu como incentivo para meu interesse. Não
podia imaginar os motivos que lhe impediam de falar dos artefatos, quando era tão
hábil em matéria de respostas evasivas. Poderia ter me respondido a primeira coisa
que lhe ocorresse.
Nem bem terminamos nossa refeição me pediu que tirasse sua cama do
armário, e conhecendo suas preferências, eu a armei em frente à porta francesa que
tinha uma cortina. Com um suspiro que demonstrava seu bem‐estar estendeu‐se nela,
descansando a cabeça sobre uma pequena almofada presa num dos extremos. A
almofada havia sido recoberta com feijões secos e grãos de milho e, segundo ele,
garantia‐lhe sonhos felizes.
—Jásua
afrouxava estou pronto para minha siesta (cochilo da tarde) — anunciou, enquanto
cinta.
Era sua maneira discreta de pedir‐me que me retirasse. Aborrecida por sua
negativa de falar das invenções, empilhei os pratos sobre a bandeja e abandonei o
quarto, escoltada por seus roncos, que me seguiram até a própria cozinha.

137
Essa noite me despertou os acordes de um violão. Automaticamente busquei a
lanterna que guardava junto à minha rede e consultei meu relógio: apenas passava da
meia‐noite. Enrolei‐me numa coberta e, na ponta dos pés, saí ao corredor que
conduzia ao pátio interior. Ali, sentado sobre uma cadeira de junco, um homem tocava
o violão. Apesar de não poder ver seu rosto sabia que era o mesmo que Isidoro
Baltazar e eu havíamos visto e escutado na ocasião de minha primeira visita. Como
naquela oportunidade, parou de tocar assim que me viu, ficou de pé e entrou na casa.
Assim que cheguei de volta ao meu quarto a música recomeçou, e estava a
ponto de dormir quando o escutei cantar com voz clara e firme. A melodia era uma
invocação ao vento, um convite a cruzar milhas e milhas de silêncio e de vazio, e como
se fosse em resposta a essa convocação, o vento ganhou força, silvou através do
chaparral, arrancou as folhas secas das árvores e as depositou em montões contra as
paredes da casa.
Num impulso abri a porta que dava ao pátio, e o vento se introduziu e encheu o
quarto de profunda tristeza; não a tristeza das lágrimas, e sim a da melancólica solidão
do deserto, a poeira e as sombras velhas. O vento percorreu o quarto como se fosse
uma fumaça. Eu o aspirei com cada inalação, e o senti pesado nos pulmões, apesar do
qual cada profunda aspiração me fez sentir mais aliviada.
Fui para fora, e deslizando‐me por entre os altos arbustos, cheguei à parte de
trás da casa cujas paredes caiadas captavam o brilho da lua, para refletí‐lo sobre o
descampado, varrido pelo vento. Temendo ser vista corri de árvore em árvore,
aproveitando as sombras para ocultar‐me, até chegar aos dois pés‐de‐laranja
guardiões do caminho que levava à casa pequena. O vento me trouxe o rumor de
risinhos e vagas murmurações, e em sua procura, numa atitude decidida, me lancei
pela trilha para só me acovardar ao chegar à porta da casinha escura. Tremendo, me
aproximei pouco a pouco da janela aberta. Reconheci as vozes de Delia e Florinda, mas
a altura da janela me impediu de ver o que faziam.
Escutei, à espera de algo profundo, de ser transportada a alguma revelação
transcendente capaz de me ajudar a resolver o porquê de minha presença ali, minha
inabilidade para ensonhar, mas unicamente escutei fofocas, e me prendi de tal

maneira a suas maliciosas insinuações que ri forte várias vezes, esquecendo de minha
situação.
Inicialmente achei que falavam de terceiros, mas depois compreendi que
falavam das ensonhadoras, e que seus comentários mais insidiosos eram dirigidos a
Nélida. Disseram que até o momento, apesar dos anos transcorridos, não havia
conseguido desprender‐se da atração do mundo. Não só era vaidosa, pois segundo
elas passava o dia inteiro em frente ao espelho, como também era impudica, já que
fazia todo o possível para ser sexualmente atrativa a fim de agarrar ao nagual Mariano
Aureliano, e uma vez até chegou a contar que era a única capaz de acomodar seu
enorme e intoxicante órgão.
Depois foi a vez de Clara. A apelidaram de elefante pomposo, que se achava
encarregada de distribuir bênçãos a todos. O receptor de sua atenção era nesse
momento o nagual
nagual podia Isidoromas
contemplar Baltazar, e o prêmio,
não possuir. seu corpo
Uma vez, desnudo,
de manhã e de prêmio
novo à que o
noite,
presenteava‐lhe o espetáculo de sua nudez, convencida de que ao fazê‐lo se
assegurava a potência sexual do novo nagual.

138
A terceira mulher de quem falaram foi Zuleica. Disseram que tinha aspirações
de santa, de ser a Virgem Maria, e que sua assim chamada espiritualidade não passava
de ser loucura. Periodicamente perdia o rumo, e em seus ataques de insânia lhe
ocorria por limpar a casa de ponta a ponta, as rochas do pátio e inclusive as dos
terrenos vizinhos.
Depois Hermelinda, a quem descreveram como muito sensata e decorosa, um
perfeito modelo dos valores da classe média. Assim como Nélida, era incapaz de cessar
de ambicionar ser a mulher perfeita, a perfeita dona de casa. Apesar de não saber
cozinhar, costurar, bordar ou tocar piano para entreter aos hóspedes, Hermelinda
desejava ser conhecida — e isto o disseram entre acessos de risinhos debochados —
como o modelo de perfeição da casta feminina, assim como Nélida aspirava a ser o
paradigma da mulher libidinosa.
Escutei uma voz lamentar‐se do fato de que ambas não combinassem seus
talentos, pois se o fizessem chegariam a constituir a mulher perfeita, capaz de agradar
ao amo: perfeita na cozinha e na sala, quer seja vestindo avental ou traje de noite, e
perfeita na cama, com as pernas abertas quando assim o desejasse seu amo.
Quando se calaram voltei à casa, ao meu quarto e à minha rede, onde apesar
de meus esforços não pude recuperar o sono. Sentia que algum tipo de cápsula
protetora havia se arrebentado, destruindo o encanto e a felicidade de encontrar‐me
na casa das feiticeiras. Somente podia pensar em que, desta vez por escolha própria,
me achava presa em Sonora com uma coleção de velhas loucas, cujo único
entretenimento era a fofoca, ao invés de estar me divertindo em Los Ângeles.
Vim em busca de conselhos, e ao invés de achá‐los fui ignorada e reduzida à
companhia de um velho senil de quem suspeitava que fosse mulher, e quando chegou
a manhã e o momento de sentar‐me para comer com o velho cuidador, eu havia
levado meu sentido de legítima indignação a tal ponto que não pude comer nada.
—O que se passa? — perguntou o velho, olhando‐me nos olhos, quando
normalmente evitava este tipo de contato direto. —Está sem apetite?
Eu lhe devolvi um olhar venenoso, e abandonando todo intento de controlar‐
me, descarreguei minha raiva e frustração acumuladas. Enquanto o fazia prevaleceu

por umque
velho, momento
me haviameu sentido
tratado com de moderação:
todo disselhe
carinho. Devia meestar
queagradecida,
era injustomas
culpar ao
já não
podia me conter. Minhas pequenas queixas haviam adquirido vida própria, e minha
voz se fazia cada vez mais aguda à medida que exaltava e distorcia os fatos dos últimos
dias. Com maliciosa satisfação, confessei ter escutado a conversa das mulheres.
—Elas não têm nenhuma intenção de ajudar‐me — assegurei. —Não fazem
outra coisa que falar mal das ensonhadoras, de quem disseram coisas horríveis.
—O que as escutou dizer?
Com gosto lhe relatei tudo, surpreendendo a mim mesma pela fidelidade com
que lembrei de cada um dos maliciosos comentários.
—Obviamente falavam de você — declarou, nem bem havia finalizado minha
exposição. —Logicamente que em sentido figurado. — esperou que suas palavras
ganhassem peso
inocentemente: emé você
—Não mim,muitissimamente
e antes que assim?
eu pudesse protestar, perguntou
—Como se atreve! — explodi —, e não me venha com essa merda psicológica.
Não a aceito de um homem educado, menos ainda de você, peão de merda.

139
Meu ataque súbito o pegou de surpresa. Abriu bem os olhos, e seus frágeis
ombros se encolheram. Não senti nenhuma pena por ele, só lástima de mim mesma.
Comunicar‐lhe o que ouvi havia sido uma perda de tempo. Estava a ponto de lhe dizer
que ter feito essa longa e árdua viagem havia sido um erro da minha parte, quando me
olhou com tal desprezo que senti vergonha de minha explosão.
—Se controlar seu gênio se dará conta de que nada do que fazem estes
feiticeiros é para entreter‐se ou para impressionar a alguém, ou dar livre vazão às suas
compulsões. Tudo o que fazem ou dizem tem uma razão, um propósito — e me olhou
com tal frieza que senti vontade de me afastar. —Não vá pensando que está aqui de
férias — insistiu. —Para estes feiticeiros as férias não existem.
—Por que me disse isto? — perguntei irritada. —E não fique dando voltas. Diga.
—Não vejo como posso dizê‐lo mais claramente — respondeu. Sua voz era
enganosamente suave, carregada de uma intenção cujo alcance eu não conseguia
decifrar. —As bruxas já te disseram de noite o que você é. Usaram as quatro mulheres
do planeta das ensonhadoras como fachada para descrever você, para fazer saber, a
quem estava escondida atrás da janela, o que é: uma puta com delírios de grandeza.
Foi tal o impacto que fiquei momentaneamente aturdida. Depois a fúria,
quente como lava, tomou posse de meu corpo.
—Miserável, insignificante pedaço de merda — gritei‐lhe, chutando‐o na virilha.
Não havia chegado meu chute ao alvo e já me deparava com a imagem do pequeno
bastardo retorcendo‐se no chão de dor, e contudo o destino de meu chute acabou
sendo o ar. Com a velocidade de um boxeador ele o havia evitado.
Sorriu com a boca, mas não com os olhos, que, frios e inexpressivos,
contemplaram minhas investidas e lamentos.
—Está fazendo ao nagual Isidoro Baltazar vítima de tudo o que disseram as
bruxas. Treinaram você para isso. Pense nisso, e não se limite apenas em irritar‐se.
Abri a boca para dizer algo, mas não emiti som. Não eram tanto suas palavras
que me deixaram sem fala, e sim seu tom indiferente, gelado e demolidor. Teria
preferido que me gritasse, já que assim saberia como reagir: teria gritado mais forte.
Não tinha sentido enfrentá‐lo, disse a mim mesma. Não tinha razão. Era

simplesmente
irritaria um
com ele, velhinho
mas tampoucosenil com uma
o levaria língua de víbora. Não, decidi, não me
a sério.
—Espero que não vá começar a chorar — me advertiu, ainda antes que me
recobrasse.
Decidi não exteriorizar minha raiva, contudo não pude evitar que enrubescesse
o rosto quando mencionei que nem pensava fazê‐lo, e que dada sua condição de
pobre servente, merecia ser açoitado por sua impertinência; mas seu olhar duro me
aplacou, e finalmente, persistindo em seu trato cortês mas inexpressivo, conseguiu me
convencer de que devia desculpar‐me.
—Eu sinto muito — e na verdade o sentia —, meu mau gênio e maus modos
sempre terminam por vencer‐me.
—Eu sei, todos me advertiram a seu respeito — disse muito sério, mas em
seguidaSentia
seu sorriso reapareceudurante
‐me incomodada quando ame convidou
refeição. a comer. com lentidão o observei
Mastigando
sub‐repticiamente, e constatei que apesar de não se esforçar por mostrar‐se amável
sua raiva havia desaparecido. Tentei sem êxito consolar‐me com esse pensamento, e
percebi que sua falta de interesse em mim não era algo deliberado nem estudado. Não

140
me castigava, pois nada do que foi dito ou feito por mim podia afetá‐lo. Terminei
minha comida, e disse a primeira coisa que me ocorreu com uma segurança que não
deixou de me assombrar.
—Você não é o cuidador.
Reapareceu seu sorriso quando perguntou:
—E quem acha que sou?
Esse sorriso me fez abandonar toda precaução, e com um tremendo descaro e,
naturalmente com intenção de insulto, disse‐lhe que era uma mulher: Esperanza. O
fato de ter‐me descarregado dessa suspeita me trouxe alívio. Suspirei e completei:
—Por isso somente você tem espelho. Quer seja como mulher ou como
homem, precisa soar convincente.
—O ar de Sonora deve ter lhe afetado. É bem sabido que o ar rarefeito do
deserto afeta às pessoas de maneira peculiar — e agarrou meu pulso quando
acrescentou: —Ou talvez seja normal em você ser mesquinha e chata, e dizer o que lhe
convém com ar de absoluta autoridade.
Em seguida mudou de atitude, e rindo me propôs compartilhar sua siesta.
—Nos fará muito bem. Ambos somos chatos.
—De modo que assim são as coisas — acusei, não muito segura de se devia me
ofender ou rir. —Quer dormir comigo, é? Esperanza já me havia advertido disto.
—E por que razão se opõe a sestear comigo se acha que sou Esperanza? —
perguntou, acariciando minha nuca com uma mão tíbia e apaziguante.
Minha defesa foi frágil.
—Não me oponho. Acontece que odeio as siestas. Nunca durmo a siesta, e me
disseram que até quando era criança as odiava. — me defendi falando com rapidez,
gaguejando, repetindo palavras. Desejava abandonar o quarto, mas a leve pressão de
sua mão sobre minha nuca me impedia disso. —Sei que é Esperanza — repeti. —
Reconheço esse tato. Possui o mesmo efeito sedante que o seu. — senti que minha
cabeça se bamboleava e que meus olhos se fechavam contra minha vontade.
—Assim é — concordou. —Te fará bem recostar‐se mesmo que não seja mais
que por uns minutos — e interpretando meu silêncio como sinal de aceitação, tirou do

armárioContinuaram
sua cama dobrável e um par
as surpresas. de mantas,
Sem uma
saber por dasequais
que, sem me cedeu. me deitei, e
protestar,
através das pálpebras entreabertas o observei estirar‐se até fazer estalar cada uma de
suas articulações, tirar as botas, desajustar a cinta e encostar‐se ao meu lado. Já
coberto pela manta se desfez de suas calças, que depositou no chão junto às suas
botas, depois do qual levantou a manta e se mostrou. Roxa de vergonha, comprovei
que seu corpo desnudo, igual ao de Esperanza, era a antítese do imaginado. Era um
corpo flexível, imberbe e limpo; delicado como um junco, mas por sua vez musculoso
e, definitivamente masculino e jovem! Não me parei para pensar. Prendendo a
respiração levantei cautelosamente minha própria manta.
Um risinho feminino me fez fechar os olhos e fazer de conta que dormia, mas
me aquietou o saber que quem se ria não entraria no quarto. Apoiei a cabeça em meus
braços, e meumabsorveu
restabelecido equilíbrio,a e sensação detorno
recriado em que de
o mim
cuidador e os mágica.
a borbulha risinhosNão
haviam
sabia
com exatidão qual significado lhe dava a isto, mas sim que quanto mais meu corpo se
relaxava mais me aproximava a uma resposta.

141
CAPÍTULO CATORZE

Do meu regresso da casa das feiticeiras já não necessitei ser persuadida ou


animada. As mulheres haviam conseguido infundir‐me uma estranha coerência, uma
certa estabilidade emocional como nunca antes possuí. Não me converti da noite para
o dia em outra pessoa, mas minha existência adquiriu um propósito definitivo, meu
destino estava traçado: devia lutar para livrar minha energia. Simples assim.
Porém não podia recordar, quer fosse clara ou mesmo vagamente, tudo o que
aconteceu nos três meses transcorridos nessa casa. Tal tarefa me demandou anos de
esforço e determinação. Contudo, o nagual Isidoro Baltazar me advertiu acerca da
falácia das metas definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que
careciam de valor, pois o verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as
motivações conscientes superficiais não aguentam as pressões.
As feiticeiras haviam expressado mais ou menos o mesmo, só que de um modo
mais harmonioso. Explicaram que dado que as mulheres estão habituadas a serem
manipuladas, elas acediam com facilidade, e que suas conformidades eram
simplesmente ocas adaptações à pressão. Mas de ser na verdade factível convencer à
mulher da necessidade de mudar seus hábitos, então metade da batalha estava ganha;
ainda sem sua conformidade, seu êxito é infinitamente mais durável que o dos
homens.
Podia optar entre as duas opiniões, ambas a meu ver acertadas. De tanto em
tanto, todas as razões fundamentais da feitiçaria que eu havia aprendido sucumbiam
sob a pressão do mundo diário, mas minha entrega ao mundo dos feiticeiros nunca foi
posta no tapete da dúvida.
Pouco a pouco comecei a adquirir a energia necessária para ensonhar, o que
significava que por fim havia compreendido o que me disseram as mulheres: Isidoro
Baltazar era o novo nagual, e havia deixado de ser um homem. Compreender isto me
deu suficiente energia para regressar periodicamente à casa das feiticeiras.
Essa casa era propriedade de todos os pertencentes ao grupo de Mariano
Aureliano, grande e encorpada vista de fora, mas indistinguível de outras; apenas

visível, apesar
circundava da exuberante
a propriedade. primavera
A razão pela qual florida quepassavam
as pessoas pendia sobre
sem vêo‐la,muro
diziamque
os
feiticeiros, residia na tênue névoa que a cobria, delicada como um véu, visível ao olho,
porém impossível de perceber para a mente.
Não obstante, uma vez dentro da casa, tinha‐se a aguda sensação de ter
ingressado em outro mundo. Os três pátios, sombreados por árvores frutíferas,
conferiam uma luz de ensonho aos escuros corredores e aos muitos aposentos que se
abriam sobre eles, e impressionavam os pisos de tijolos e lajotas, com seus intrincados
desenhos.
Não era um lugar cálido, mas sim acolhedor, e de nenhuma maneira um lar,
dada sua onipresente personalidade e sua implacável austeridade. Era o lugar onde o
velho nagual Mariano Aureliano e seus feiticeiros concebiam seus ensonhos e
realizavam seus propósitos,
mundo cotidiano, essa casaeera
dado que suasdeinquietudes
o reflexo nada tinham
suas preocupações não ahumanas,
ver com oe
refletia a autêntica medida de sua individualidade, não como pessoas, mas como
feiticeiros.

142
Nessa casa me relacionei e lidei com todas as feiticeiras do grupo do nagual
Mariano Aureliano, que não me ensinaram feitiçaria, nem sequer a ensonhar. Segundo
elas, não havia nada para ensinar. Disseram que minha tarefa era recordar de tudo o
que aconteceu entre elas e eu durante esses momentos iniciais de nossa convivência,
em especial tudo o que Zuleica e Florinda me fizeram ou disseram, mas Zuleica nunca
me havia dirigido a palavra.
Quando tentava pedir‐lhes ajuda recusavam fazê‐lo. Seu argumento era que
sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham
de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas
depois de um tempo abandonei toda tentativa de indagá‐las, e me dediquei a
desfrutar de sua presença e de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para
não querer jogar nosso jogo intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas
assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela
verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta
que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.
Não obstante, graças a essa diária inter‐relação, cheguei a compreender muitas
coisas acerca de seu mundo. As ensonhadoras e as espreitadoras representavam duas
formas de comportamento entre mulheres, muito distintas entre si. Inicialmente me
perguntei se o grupo que me havia sido descrito como ensonhadoras: Nélida,
Hermelinda e Clara, eram na realidade as espreitadoras pois, até onde eu podia
determinar, minha relação com elas era sobre uma base estritamente mundana e
superficial. Somente mais tarde pude dar‐me conta de que sua mera presença
provocava em mim uma nova maneira de comportamento. Com elas não necessitava
reafirmar‐me. De minha parte não existiam dúvidas nem perguntas. Possuíam a
singular habilidade de fazer‐me ver, sem necessidade de verbalizá‐lo, o absurdo de
minha existência, apesar do qual não achava necessário defender‐me.
Talvez fosse esta ausência de esforço o que me levou a aceitá‐las sem
resistência, e não levei muito tempo para dar‐me conta de que as ensonhadoras, ao
tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o modelo necessário para
recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse minha maneira de enfocar

assuntos
que cotidianos
essas tarefas tais como fazer
deviam cozinhar, limpar,
‐se com estudar auspícios,
distintos ou ganhar anão
vida.como
Disseram me
tarefas
mundanas, e sim como esforços artísticos, todos de igual importância.
Sobretudo foi sua mutua inter‐relação, e sua relação com as espreitadoras, o
que me deu a pauta do quão especial eram. Em seu trato habitual careciam de falhas
humanas. Seu sentido de dever coexistia facilmente com suas características
individuais, fossem estas o mau gênio, a irritabilidade, grosseria, loucura ou doçura
excessiva. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu experimentava a
rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas
viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia do “eu”.
Na casa delas conheci a Vicente e Silvio Manuel, os outros dois feiticeiros do
grupo de Mariano Aureliano. Vicente era obviamente de srcem espanhola, e soube
que
mãosseus paisque
e pés eram oriundos
davam uma da Catalunha.
errônea Era magro,
impressão de aspecto
de fragilidade. aristocrático,
Andava semprecom
em
alpargatas, e preferia blusas de pijamas (pendiam abertas sobre suas calças caqui) a
camisas. Suas bochechas eram rosadas apesar de sua palidez. Ostentava uma barbinha

143
que cuidava com esmero, a qual lhe conferia um toque de distinção a seu porte
abstraído.
Não só parecia, como era de fato um erudito; os livros no quarto que eu
ocupava eram seus, ou melhor, era ele quem os colecionava, lia e cuidava. O atraente
de sua erudição (sabia de tudo) era que se portava como se fosse um perpétuo
aprendiz. Eu tinha a certeza de que não era assim, pois era óbvio que sabia mais que os
outros, e seu espírito generoso o levava a compartilhar seus conhecimentos com
magnífica naturalidade e humildade, já que jamais envergonhava a terceiros por saber
menos que ele.
Silvio Manuel era de média estatura, corpulento, sem pelos e moreno. Um
índio sinistro e misterioso, perfeito exemplo da imagem que eu me havia formado do
que deveria ser um bruxo. Sua aparente taciturnidade me assustava, e suas lacônicas
respostas revelavam o que eu suspeitava ser uma natureza violenta. Somente ao
conhecê‐lo melhor compreendi o muito que gozava cultivando essa imagem. Acabou
se mostrando ser o mais aberto e, para mim, o mais encantador de todos os feiticeiros.
As intrigas e os segredos eram sua paixão, fossem ou não autênticos, e era a maneira
em que os contava o que, para mim e para todos, não tinha preço. Além disso, possuía
um inextinguível repertório de piadas, a maioria delas pesadas, sujas. Era o único que
se divertia vendo TV, e portanto sempre estava em dia com as notícias do mundo, as
quais transmitia aos outros, grosseiramente exageradas e temperadas com uma
grande dose de malícia.
Silvio Manuel era um excelente bailarino, e era legendária sua habilidade e seus
conhecimentos das várias danças sagradas indígenas. Se movia com extático
abandono, e com frequência me pedia que dançasse com ele. Fosse a dança um joropo
venezuelano, uma cumbia, um samba, um tango, o twist, rock and roll ou um bolero
dos que se dançam de rosto colado, conhecia a todas.
Também interagi com John, o índio que me apresentou o nagual Mariano
Aureliano em Tucson, Arizona. Seu aspecto rotundo, inalterável e jovial não era outra
coisa que uma fachada, pois era o menos abordável dos feiticeiros. Conduzindo sua
camionete se encarregava dos recados de todos, e também reparava o que precisava

ser consertado
Se me dentro e ao redor
mantinha da casa. não o incomodando com perguntas e
em silêncio,
comentários, John me permitia acompanhá‐lo em suas viagens, e me ensinava a
consertar coisas: banheiros, torneiras e máquinas de lavar roupas, e também como
reparar uma placa, comutadores elétricos, e lubrificar e mudar as velas de meu
automóvel. Ensinada por ele, o uso de martelos, chaves‐de‐fenda e serras se converteu
em tarefa fácil para mim.
A única coisa em que não me ajudaram foi em responder às minhas perguntas e
averiguações acerca de seu mundo, e quando intentava comprometê‐los se referiam
ao nagual Isidoro Baltazar. Sua recusa usual era: “Ele é o novo nagual, e é missão dele
lidar com você. Nós somos meramente seus tios e tias”.
Inicialmente o nagual Isidoro Baltazar representava para mim algo mais que um
mistério.
aparecia eNão tinha bem
desaparecia do claro onde
estúdio residia,
a toda hora.pois
O diaindiferente a horários
e a noite lhe e rotinas,
eram indiferentes.
Dormia quando estava cansado, quase nunca, e comia quando tinha fome, quase
sempre. Em meio às suas frenéticas idas e vindas trabalhava com uma concentração na
verdade assombrosa, sendo sua capacidade para esticar ou comprimir o tempo

144
incompreensível para mim. Tinha a certeza de ter passado horas, e até dias inteiros
com ele, quando na realidade poderiam ter sido só momentos, furtados aqui e ali, seja
lá durante o dia ou a noite, ou a outras de suas desconhecidas atividades.
Sempre me considerei uma pessoa ativa, cheia de energia, mas descobri que
me era impossível manter‐me a par de seu ritmo. Vivia em permanente movimento —
ou assim parecia —, ágil e ativo, sempre pronto para encarar algum projeto. Seu vigor
era permanente e francamente incrível.
Muito tempo depois cheguei a compreender que a fonte da inesgotável energia
de Isidoro Baltazar residia em sua falta de preocupação por si mesmo, e foi seu
permanente apoio, suas imperceptíveis e por sua vez hábeis maquinações, as que me
mantiveram na senda correta. Residia nele uma alegria, um gozo em sua sutil e
contudo poderosa influência, que me levou a mudar sem que eu notasse que estava
sendo conduzida por um novo caminho, um caminho em que já não valiam os jogos, os
pretextos ou o uso de minhas argúcias femininas para conseguir meus propósitos.
O que tornou tão urgente sua guia e conselhos era o fato de que não o
abrigavam motivos ulteriores. Não era possessivo, e sua diretiva não se via adulterada
por promessas ou atos de sentimentalismo. Não me empurrou em nenhuma direção
precisa, ou seja, não me aconselhou a respeito do rumo a se tomar ou aos livros que
devia ler. Nisso tive caminho livre.
Somente impôs uma condição: eu devia trabalhar exclusivamente em favor do
edificante e agradável processo de pensamento. Uma proposta estremecedora! Eu
nunca havia entrevisto o pensar nesses ou em outros termos, e apesar de que não me
desagradava estudar, jamais havia considerado as tarefas escolares como algo
prazeroso, e sim como algo que eu era obrigada a fazer, no geral às pressas e
empregando nele um mínimo de esforço.
Não pude evitar o estar de acordo com o que Florinda e seus companheiros,
tão sem delicadeza, me haviam dito na ocasião de nosso primeiro encontro: que eu
havia ido ao colégio não para aprender, e sim para divertir‐me, e o fato de ter‐me
distinguido obedecia mais a uma questão de sorte e loquacidade do que por ter
estudado. Eu possuía uma memória bastante boa, sabia falar, e sabia convencer a

terceiros.
Uma vez superada a vergonha inicial de ver‐me forçada a aceitar e admitir
minhas limitações intelectuais, e que só sabia pensar de maneira superficial, me senti
aliviada, pronta para colocar‐me sob a tutela dos feiticeiros e seguir o plano de estudos
de Isidoro Baltazar. Me desiludiu descobrir que tal plano não existia, e que sua única
insistência era que eu deixasse de estudar e ler ao ar livre, como era meu costume.
Isidoro Baltazar sustentava que o processo de pensar era um rito privado, quase
secreto, que não podia realizar‐se em público. Comparou esse processo ao da
levedura, que só fermenta dentro de um recinto fechado.
“O melhor lugar para compreender algo é naturalmente a cama”, me disse
certa vez. Se estirou na sua, reclinou a cabeça contra várias almofadas, e cruzou sua
perna direita sobre a esquerda, descansando o tornozelo sobre o joelho elevado de
sua perna sempre
pratiquei esquerda. Não
que me impressionou
estava só. Me faziaessa
cair absurda posição sono,
num profundo para aeleitura, mas a
dada minha
sensibilidade e até minhas tendências à insônia, gozava mais com o sono que com o
conhecimento.

145
Às vezes, no entanto, sentia como se umas mãos se enroscassem ao redor de
minha cabeça, pressionando suavemente minhas têmporas. Então automaticamente
olhava a página aberta ainda antes de ter consciência do que estava fazendo, e
captava parágrafos inteiros do papel, cujas palavras bailavam ante meus olhos até
fazer que conjuntos de conhecimento explodissem dentro de meu cérebro
semelhantes a revelações.
Ansiosa por desenterrar esta nova possibilidade que se abria diante de mim,
insisti nela como se me impulsionasse um professor desapiedado, e houve momentos
em que este esforço me esgotou tanto física como mentalmente. Nesses momentos
perguntava a Isidoro Baltazar acerca do conhecimento intuitivo, esse brilho de
percepção interior e de compreensão que se supõe cultivam os feiticeiros com
preferência a todos os demais.
Nesses momentos costumava dizer‐me que conhecer algo somente de maneira
intuitiva não tem valor algum. Essas centelhas de percepção interna, que comparava
com visões de fenômenos inexplicáveis, precisam ser transformadas em pensamentos
coerentes. Tanto um como outro se desfazem tão rápido como surgem, e se não são
reforçados continuamente sobrevêm à dúvida e o esquecimento, pois a mente é
condicionada para ser prática e aceitar unicamente o verificável e factível.
Explicou que os feiticeiros são homens de conhecimento antes que homens de
razão, e como tal estão adiantados em relação aos intelectuais do Ocidente, que
assumem que a realidade (frequentemente equiparada com a verdade) se conhece
através da razão. Um feiticeiro mantém que a única coisa que se pode conhecer
mediante a razão são nossos processos de pensamento, mas que é só mediante o ato
de compreender nosso ser total, em seu nível mais sofisticado e intrincado, que
poderemos apagar os limites com os quais a razão define a realidade.
Isidoro Baltazar me explicou que os feiticeiros cultivam a totalidade de seu ser,
ou seja, que não necessariamente fazem uma distinção entre os aspectos racionais e
intuitivos do homem. Utilizam ambos para chegar ao reino da consciência, que
chamam de “conhecimento silencioso”, o qual existe mais além da linguagem e mais
além do pensamento.

Uma
seu lado e outraprimeiro
racional, vez, Isidoro
deveBaltazar ressaltou
compreender osque para que
processos doalguém possa silenciar
pensamento em seu
nível mais sofisticado e complexo. Acreditava que a filosofia, começando com o
pensamento clássico grego, forneceu a melhor maneira de iluminar este processo.
Nunca se cansava de repetir que, seja como eruditos ou como leigos, somos membros
e herdeiros da tradição cultural do Ocidente, significando que, independente de nosso
nível de educação e sofisticação, somos prisioneiros dessa tradição e de sua maneira
de interpretar a realidade.
Isidoro Baltazar sustentava que somente de maneira superficial estamos
dispostos a aceitar que aquilo que chamamos de realidade é algo culturalmente
determinado, e o que precisamos é aceitar, ao nível mais profundo possível, que a
cultura é o produto de um processo longo, cooperativo, altamente seletivo e
desenvolvido,
que culmina nume poracordo
último,que
masnos
paradesvia
ele não
e menos importante,
nos afasta altamente
de outras coercitivo,
possibilidades. Os
feiticeiros procuram, de forma ativa, desmascarar o fato de que a realidade é ditada e
mantida por nossa razão: que as idéias e os pensamentos surgidos da razão se
convertem em regimes de conhecimento que ordenam a forma como vemos e

146
atuamos no mundo; e que todos estamos sujeitos à uma incrível pressão para
assegurar que certas ideologias nos sejam aceitáveis.
Ressaltou que os feiticeiros estão interessados em perceber o mundo de
maneira diferente ao culturalmente definido, e o culturalmente definido é que nossa
experiência pessoal, mais um acordo social compartilhado acerca do que nossos
sentidos são capazes de perceber, determinam o que percebemos. Qualquer coisa fora
deste reino perceptual, sensorialmente convencionado, é automaticamente
encapsulado e posto de lado pela mente racional, e desta maneira nunca se danifica o
frágil manto das presunções humanas.
Os feiticeiros ensinam que a percepção ocorre em um lugar fora do reino
sensorial; sabem que existe algo mais vasto que o que nossos sentidos podem captar.
Dizem que a percepção tem lugar em um ponto fora de nosso corpo, fora dos sentidos,
mas não é suficiente acreditar meramente nesta premissa. Não é apenas questão de
ler acerca disso, ou escutá‐lo da boca de terceiros. Para transformá‐lo em algo
corpóreo, a pessoa precisa tê‐lo experimentado.
Isidoro Baltazar disse que os feiticeiros lutam ativamente durante todas suas
vidas para quebrar esse débil manto das presunções humanas. Contudo, não
mergulham cegamente na escuridão. Estão preparados; sabem que quando se lançam
ao desconhecido necessitam dispor de uma bagagem racional bem desenvolvida.
Somente então poderão explicar e dar sentido ao que trouxerem de volta de suas
viagens ao ignoto.
Acrescentou que eu não devia entender a feitiçaria através da leitura dos
filósofos, e sim compreender que tanto a filosofia como a feitiçaria são formas
altamente sofisticadas de conhecimento abstrato. Tanto para o feiticeiro como para o
filósofo a verdade de nosso ser‐no‐mundo não permanece impensada. Não obstante, o
feiticeiro vai um passo além: atua à base de seus achados que já estão, por definição,
fora de nossas possibilidades culturalmente aceitadas.
Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar
disso, suas buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos
somente podem atuar no mundo que tão bem entendem e explicam da maneira

cultural já concordada.
Interpretam Eles se somam
e reinterpretam a um já existente
textos filosóficos. Novos corpo de conhecimento.
pensamentos e idéias
resultantes deste intenso estudo não os mudam exceto, talvez, num sentido
psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou
talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam filosoficamente mudará sua
percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de dentro da ordem social,
à qual apóiam, ainda que intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os
filósofos são feiticeiros frustrados.
Os feiticeiros também constroem sobre um já existente conjunto de
conhecimento. Contudo, não o fazem aceitando o já provado e estabelecido por
outros feiticeiros. Devem provar de novo a si mesmos que aquilo que já se dá por
aceitado na verdade existe, e se submete à percepção. Para conseguir cumprir esta
tarefa
obtêm monumental, precisam
apartando‐se da ordem de uma
social extraordinária
sem retirar‐se do capacidade de energia,rompem
mundo. Os feiticeiros a qual
a convenção que tem definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo.

147
CAPÍTULO QUINZE

A incerteza se apoderou de mim pouco antes de cruzar a fronteira em Mexicali.


Minha justificativa para ir ao México com Isidoro Baltazar, que a princípio se me
pareceu brilhante, agora só parecia uma pálida desculpa para forçá‐lo a levar‐me. Já
abrigava dúvidas sobre se poderia ler teorias sociológicas na casa das feiticeiras, tal
como disse que faria. Sabia que lá me dedicaria a fazer exatamente o mesmo que em
todas as ocasiões anteriores: dormir muito, ensonhar ensonhos estranhos, e tentar
desesperadamente decifrar o que as pessoas desse mundo pretendiam que eu fizesse.
—Algum remorso? — perguntou Isidoro Baltazar, surpreendendo e fazendo‐me
saltar. Olhava‐me de soslaio, e provavelmente havia me estado observando por um
longo período.
—Mas é claro que não — respondi de maneira apressada, na dúvida de se ele
se referia a meu estado geral ou a meu silêncio. Murmurei algumas tolices acerca do
calor, para depois dedicar‐me a olhar pela janela.
Não voltei a abrir a boca, principalmente porque sentia medo e me encontrava
triste, e porque a ansiedade me eriçava a pele como se um punhado de formigas
estivesse caminhando em mim. Isidoro Baltazar, por sua parte, se encontrava de muito
bom humor; cantou e contou piadas bobas, recitou poemas em inglês, castelhano e
português, mas nem isso nem seus suculentos comentários acerca de pessoas que
ambos conhecíamos na universidade conseguiram dissipar minha melancolia. O fato
de não constituir eu um público apreciativo não influiu nele, e nem sequer meus gritos
exigindo que me deixasse em paz conseguiram aplacar sua euforia.
—Se alguém estivesse nos observando, juraria que estamos casados há anos —
comentou em meio às suas gargalhadas, enquanto eu pensava que se fossem
feiticeiros que nos observavam, diriam que algo não andava bem. Saberiam que
Isidoro Baltazar e eu não estávamos em plano de igualdade. Eu sou precisa e
categórica a respeito de meus atos e decisões, enquanto que para ele atos e decisões
são coisas fluidas, seja qual for seu resultado, e sua finalidade está medida pela plena
responsabilidade que assume por eles, quer sejam triviais ou significativos.

Viajamosfazer
costumávamos rumopara
ao chegar
sul e ànão
casanos
dasdistraímos
feiticeiras.em inúteis
Quando meandros
deixamos como
Guaymas
para trás — nunca havíamos estado tão ao sul — perguntei‐lhe para onde me levava.
Respondeu como ao acaso.
—Estamos seguindo o caminho longo. Não se preocupe. — A mesma resposta
me deu quando repeti minha pergunta enquanto comíamos em Navojoa.
Deixamos para trás Navojoa e seguimos em direção ao sul, rumo a Mazatlán.
Minha preocupação era crescente. Cerca de meia‐noite Isidoro Baltazar abandonou a
estrada internacional para enfiar‐se num estreito caminho de terra, cujos buracos e
pedras fizeram que a perua se bamboleasse e rangesse sua carroceria. Às nossas
costas a estrada principal, visível uns instantes graças ao débil reflexo das luzes
traseiras, desapareceu tragada pelos arbustos que a flanqueavam. Depois de uma
longuíssima e incômoda viagem fizemos uma parada repentina, e Isidoro Baltazar
apagou os faróis.
—Onde estamos? — perguntei, olhando em torno sem distinguir nada.
Logo meus olhos se habituaram à escuridão, e vi pequenos pontos brancos em
frente a nós e a curta distância. Pareciam pequenas estrelas caídas do céu. A

148
exuberante fragrância das matas de jasmim, que trepavam ao alto e caíam sobre a
ramada, se havia apagado a tal ponto de minha mente, que quando a reconheci senti
como se tivesse inalado esse ar perfumado só em um sonho anterior. Comecei a rir,
pois tudo me brindava uma alegria quase infantil. Estávamos na casa de Esperanza. “É
aqui onde vim pela primeira vez com Delia Flores”, disse a mim mesma, e de imediato
busquei a mão de Isidoro Baltazar a quem perguntei, dominada pela ansiedade:
—Mas, como pode ser possível…?
Sua resposta revelava um estado de confusão e agitação, e sua mão, sempre
cálida, estava fria.
—O que?
—Esta casa estava nos arredores de Ciudad Obregón, há mais de cem milhas ao
norte — gritei. —Eu mesma conduzi meu carro até aqui, e nunca abandonei o caminho
asfaltado. — Olhei em torno e recordei que também havia viajado desde lá até Tucson,
e jamais havia estado perto de Navojoa em minha vida.
Isidoro Baltazar guardou silêncio durante uns minutos: parecia estar buscando
uma resposta. Eu sabia que nenhuma me seria satisfatória. Encolhendo‐se de ombros
virou‐se para mim, e com uma energia semelhante à do nagual Mariano Aureliano
opinou que sem dúvida alguma eu ensonhava desperta quando, junto com Delia,
deixamos Hermosillo rumo à casa da curandeira.
—Sugiro que o deixe assim — foi seu conselho. —Sei por experiência pessoal
como pode chegar a confundir‐se a mente quando busca explicar o inexplicável.
Eu estava a ponto de protestar quando ele me cortou, assinalando uma luz que
se aproximava, e sorriu como se soubesse de antemão a quem pertencia a enorme
sombra que se aproximava bamboleando‐se.
—É o cuidador — murmurei surpreendida, e quando o tive ante mim lhe rodeei
o pescoço com os braços e o beijei em ambas as bochechas. —Não esperava encontrar
você aqui.
Sorriu envergonhado, sem responder. Abraçou a Isidoro Baltazar, palmeando‐
lhe repetidas vezes as costas como fazem os homens latinos ao saudarem‐se,
murmurando algo que apesar de meus esforços não consegui entender. Depois nos

conduziu até a casa. a imponente porta principal fechada, assim como as janelas
Encontramos
entreliçadas. Nenhuma luz, nenhum som escapava das grossas paredes. Rodeamos a
casa até alcançar o pátio traseiro, cercado por uma alta grade, e à porta que conduzia
a um quarto retangular, o mesmo ao qual me havia levado Delia Flores, tão
espartanamente mobiliado como então: cama estreita, mesa e várias cadeiras.
Tranquilizou‐me reconhecer suas quatro portas.
O cuidador colocou a lamparina sobre a mesa e me convidou a tomar assento:
virando‐se até Isidoro Baltazar lhe rodeou os ombros com seu braço e o conduziu ao
escuro corredor. A repentina partida me aturdiu, mas antes que conseguisse me repor
da surpresa o cuidador reapareceu, trazendo uma manta, uma almofada, uma lanterna
e um pinico (urinol).
—Prefiro usardeoombros
Se encolheu toalete — anunciei. o pinico sob a cama.
e empurrou
—Para se precisar dele durante a noite — e com esse olhar travesso que eu
bem conhecia, acrescentou que lá fora montava guarda o cachorrão negro de

149
Esperanza. —Ele não gosta que gente desconhecida ande por aí de noite — e como por
combinação se ouviu um forte latido.
—Não sou uma desconhecida, conheço o cão — retruquei, ao que o cuidador
por sua vez respondeu com outra pergunta.
—E o cachorro, conhece você?
Lancei‐lhe um de meus piores olhares, e o cuidador, emitindo um suspiro,
recolheu a lamparina e se dirigiu para a porta.
—Não leve a luz — ordenei, bloqueando sua passagem. Tentei sorrir, mas meus
lábios ficaram grudados em meus dentes. Finalmente pude perguntar: —Onde estão
todos? Onde estão Esperanza e Florinda?
—Neste momento sou o único que se encontra aqui.
—Onde está Isidoro Baltazar? — insisti alarmadíssima. —Prometeu levar‐me à
casa das feiticeiras. Tenho que trabalhar em um ensaio — e confundida quanto a meus
pensamentos e minhas palavras, próxima das lágrimas, revelei a ele minhas razões
para acompanhar a Isidoro Baltazar em sua viagem ao México, e o importante que era
para mim terminar meu trabalho.
O cuidador palmeou minhas costas e fez ruídos semelhantes aos usados para se
acalmar a um bebê.
—Isidoro Baltazar está dormindo. Você sabe como é: assim que sua cabeça toca
o travesseiro ele está roncando — e completou —, deixarei minha porta aberta para se
precisar de mim, para se tiver pesadelos ou algo parecido. Chame‐me e virei de
imediato. — e antes que eu pudesse dizer‐lhe que desde minha chegada à Sonora os
pesadelos eram coisas do passado, a escuridão do corredor o engoliu.
A lamparina de azeite sobre a mesa começou a falhar e logo se apagou,
deixando o quarto às escuras. Deitei‐me totalmente vestida, e fechei os olhos. Tudo
ficou em silêncio, salvo um respirar suave e entrecortado que vinha de muito longe, e
devido a esse ruído e à dureza de minha cama, logo abandonei todo intento de dormir.
Com a lanterna na mão me arrastei em silêncio pelo corredor, esperando
encontrar o cuidador ou Isidoro Baltazar. Com toques suaves bati em cada uma das
portas. Ninguém respondeu. Silêncio absoluto em cada um dos aposentos. Essa

mesma quietude,
sussurros e gorjeiosquase opressiva, dominava o resto da casa, e até cessaram os
do exterior.
Tal como suspeitava, tinha ficado outra vez sozinha, mas em lugar de
preocupar‐me por isso, decidi inspecionar os diferentes quartos. Eram oito os
dormitórios, do mesmo tamanho e disposição: retangulares, de médio a pequenos, e
mobiliados somente com uma cama e uma mesa de noite. As paredes e as duas janelas
das quais cada quarto dispunha estavam pintadas de branco, e as lajotas do piso
ostentavam um intrincado desenho. Abri as portas corrediças dos painéis empurrando
com suavidade sua parte inferior esquerda com o pé, sabendo, sabe‐se lá como, que
um toque ou um suave chute nesse lugar liberava um mecanismo que abria as portas.
Movi umas cobertas empilhadas sobre o piso de um deles, e descobri uma
pequena porta secreta. Liberei a trava que simulava ser um interruptor de luz e, já
mais além de toda
conhecimento possibilidade
logicamente de surpresa,
inadmissível aceitei
à minha a existência
consciência. Abri adapequena
porta secreta,
porta,
me deslizei através da estreita abertura, e me encontrei no painel do aposento
contíguo e, sem maravilhar‐me por isso, descobri que me escorrendo por esses
corredores secretos poderia ir de um a outro dos oito cômodos.

150
Praguejei quando a lanterna se apagou, e na esperança de reavivar as baterias,
as tirei e logo as recoloquei. Trabalho inútil: estavam esgotadas. A escuridão desses
quartos era tão intensa que não conseguia ver minhas próprias mãos, e então,
tateando, tratei de voltar sobre meus passos, em busca do corredor. O esforço foi tal
que acabei tremendo e ofegando. Recostada contra uma parede, permaneci ali um
longo período, tratando de decidir a direção em que ficava meu quarto.
De longe chegavam fragmentos de vozes, e ao não poder precisar se provinham
do interior da casa ou do exterior, segui o som até chegar ao pátio, que eu lembrava
vivamente como algo verde e quase tropical, cheio de brotos e folhagem densa, e
perfumado pela fragrância de jasmins e madressilvas.
Apenas havia ensaiado uns passos quando vi a enorme silhueta de um
cachorro, recortada contra a parede. Depois vieram um grunhido e a luz queimante de
seus olhos, para fazer que um calafrio percorresse minha coluna vertebral. Em lugar de
sucumbir ao temor, ou talvez por causa dele, senti que acontecia algo muito estranho.
Era como se sempre tivesse estado dobrada como um leque japonês ou uma figurinha
de cartolina, e de repente me abrisse. A sensação física era quase dolorosa.
O cachorro me observou, confuso. Começou a chorar como um cachorro faz,
moveu as orelhas e se agachou no piso. Eu, tensa em meu lugar. Não sentia medo;
simplesmente não podia mover‐me. Depois, como se fosse o mais natural do mundo,
voltei a me juntar, dei as costas ao cão e me retirei. Desta vez não tive dificuldade em
achar meu quarto.
Despertei com uma dor de cabeça e a sensação de não ter dormido em
absoluto, sensação que como insone conhecia muito bem. Sentia os músculos de meu
corpo como desconectados: soltei um gemido, e senti abrir‐se a porta do quarto e meu
rosto ser inundado pela luz. Tentei inverter minha posição sem cair da cama.
—Bom dia! — exclamou Esperanza, ingressando com um frufru de saias e
anáguas — ou melhor dizendo, boa tarde — se corrigiu, assinalando o sol visível
através da porta aberta. Transbordava de alegria, e uma força deliciosa dominava sua
voz ao dizer‐me que foi ela quem resgatou meus livros e papéis da perua antes que
Isidoro Baltazar partisse com o velho nagual.

Levantei
—Por queme abruptamente,
não desperta
veio saudar‐me de tudo.
o nagual Mariano Aureliano, e por que Isidoro
Baltazar não me avisou de sua partida? — e acrescentei que agora não poderia
terminar meu trabalho e ingressar num curso superior.
Esperanza me observou com uma expressão de curiosidade, e comentou que se
escrever meu ensaio era um ato tão mercenário, nunca chegaria a completá‐lo, e antes
que eu pudesse dizer‐lhe que pessoalmente não me interessava se nunca completasse
meus estudos, acrescentou:
—Você não escreve esse trabalho para ingressar nesse curso superior, e sim
porque te encanta fazê‐lo, porque não há nada que neste momento preferiria fazer.
—Há muitas coisas que preferiria fazer.
—Como o que? — desafiou‐me.
Pensei,que
mim mesma, masnunca
não pude rebater nada
um trabalho desteespecífico. Precisei
tipo me havia admitir,
brindado se bem
tanto queUma
prazer. só a
vez na vida havia começado com as leituras e as investigações a começos do ano letivo,
em lugar de esperar, como costumava fazer, a que faltassem apenas uns dias para a

151
entrega do trabalho. Mas foi só saber que representava minha passagem ao curso de
pós‐graduação, e se arruinou o prazer.
Esperanza, como sempre confidente de meus pensamentos, opinou que eu
deveria esquecer‐me do curso de pós‐graduação e pensar somente em fazer um bom
trabalho.
—Uma vez que fizer parte do mundo dos bruxos e comece a entender a
natureza dos ensonhos, já estará a caminho de entender o que é a feitiçaria. Além do
mais, esse entendimento vai te liberar.
Olhei‐a, intrigada. Não conseguia entender o que queria me dizer.
—Isso te libera de desejar algo — e Esperanza enunciou a frase com muito
cuidado, como se eu fosse surda. Depois emendou: —Cobiça é seu segundo nome,
apesar de você não precisar nem desejar nada… — e sua voz se apagou ao dedicar‐se a
pôr ordem em meus livros, papéis e pilhas de anotações sobre a mesa. Parecia
radiante quando se virou para mostrar‐me vários lápis. —Apontei‐os com uma lâmina
de barbear — disse —, e o farei cada vez que se gastem as pontas. — Colocou os lápis
junto a um de meus cadernos, e depois abriu bem os braços como para abarcar a
totalidade do quarto e disse: —Este é um lugar maravilhoso para trabalhar. Aqui
ninguém lhe incomodará.
—Estou certa disso — concordei, e ao observar que estava a ponto de retirar‐
se, perguntei‐lhe onde havia dormido Isidoro Baltazar na noite anterior.
—Em sua cama de armar. Em onde mais? — respondeu, e entre risos recolheu
suas saias e anáguas e saiu ao pátio. Eu a segui com o olhar até vê‐la desaparecer atrás
do arco de pedra. Fiquei com os olhos doloridos por causa da intensa luz.
Momentos depois houve uma forte batida sobre uma das portas que se abriam
ao corredor.
—Está decente? — perguntou o cuidador, empurrando a porta antes que eu
tivesse oportunidade de dizer que estava. —Alimento para seu cérebro — anunciou,
colocando uma bandeja de bambu sobre a mesa. Me serviu uma tigela de caldo, e
depois recomendou comer a niachaca sonorense, feita por ele. Essa mistura de ovos
mexidos, carne picada, cebola e chilis calientes era deliciosa.

—Quando terminar
—Quando terminareudea comer?
levarei ao
—cinema.
perguntei excitada, metendo uma tortilha
inteira em minha boca.
—Quando terminar com seu trabalho — esclareceu.
Ao terminar a comida o cuidador opinou que eu deveria fazer amizade com o
cachorro.
—Se não o fizer, não poderá sair da casa. Nem sequer para ir ao toalete.
Estava a ponto de lhe confessar que já me havia encontrado com o cão, e que
havia visitado o toalete na noite anterior, quando um ligeiro gesto de sua testa me
convidou a acompanhá‐lo ao pátio. O enorme cachorro estava deitado à sombra de um
alto cercado de varas. O cuidador foi até ele para ajoelhar‐se a seu lado, coçá‐lo atrás
das orelhas e lhe sussurrar algo.
Abruptamente
sentada. o cuidador
O cachorro soltou ficou edeo cuidador,
um gemido, pé. Surpreendida, eu dei
com um salto um passo
incrível, e cai
passou ao
outro lado do cercado. Eu me levantei, disposta a correr, mas o cão esticou suas patas
dianteiras e as colocou sobre meus pés, fazendo‐me sentir a pressão de suas garras.

152
Olhou‐me e abriu a boca num monumental bocejo, revelando suas gengivas negras e
língua de igual cor.
—Isso é sinal de um pedigree muito bom.
Me surpreendeu essa voz às minhas costas, e me virei para ela. Ao fazê‐lo perdi
de novo o equilíbrio e cai sobre o animal. Permaneci quieta, sem animar‐me a tentar
um movimento, e depois afastei minha cabeça. Os olhos cor de âmbar do cachorro
estavam fixos em mim, e mostrou seus dentes, mas não para grunhir, e sim para dar‐
me um amistoso sorriso canino.
—Agora são amigos — disse o cuidador, ajudando‐me a se levantar —, e é hora
de que comece a trabalhar.
Os três dias seguintes foram inteiramente dominados pelo desejo de terminar
com minha tarefa. Trabalhei longas horas sem notar a passagem do tempo, mas não
devido à concentração em meu trabalho, e sim ao fato de que o tempo parecia ter se
transformado em uma questão de espaço. Comecei a considerar o tempo como
interlúdios entre minhas visões de Esperanza.
Todos os dias, por volta do meio‐dia, enquanto eu desjejuava o que ela me
havia deixado na cozinha, Esperanza fazia sua aparição. Sem ruído, parecia emergir do
permanente fumo azulado que impregnava a cozinha, e invariavelmente penteava
meus cabelos com um tosco pente de madeira, sem pronunciar uma só palavra. Eu
tampouco.
Eu a via de novo nas horas da tarde. Tão silenciosa como quando aparecia na
cozinha, se materializava no pátio para sentar‐se em sua cadeira de balanço, sob um
arco de pedra. Durante horas sua vista se perdia no espaço, como se seus olhos
transcendessem os limites da visão humana, mas fora um movimento de cabeça ou um
sorriso, nada se passava entre nós. No entanto me sentia protegida por seu silêncio.
Se diria que o cachorro obedecia ordens do cuidador, pois jamais se separava
de mim. Me seguia de dia e de noite, inclusive até ao toalete. Eu aguardava impaciente
nossos passeios, feitos ao cair da tarde, quando ambos atravessávamos correndo os
campos, em busca de uma fileira de árvores que dividia os lotes de terreno. Ali
buscávamos uma sombra e permanecíamos horas olhando o vazio, tal qual fazia

Esperanza.
tocar Às vezesdistantes.
as montanhas dava a impressão
Escutava de que com
o rumor só um
da brisa esticar
entre de mão
as folhas, se poderia
aguardando o
momento em que a luz amarela do sol poente convertia essas folhas em ouro, folhas
que logo se tornavam azuis e finalmente negras. Chegado este momento, o cão e eu
corríamos de volta à casa para escapar da débil voz do vento, que falava da solidão
destas terras áridas.
Ao quarto dia despertei sobressaltada. Alguém gritava:
—É hora de levantar‐se, preguiçosa — era a voz do cuidador.
—Por que não entra? — perguntei. —Onde esteve todo este tempo?
Não recebi resposta.
Permaneci sentada na cama, envolta numa coberta, demasiado tensa e
adormecida para sair ao pátio e averiguar por que o cuidador se escondia. Depois,
quando me decidijoguei
minha sonolência a deixar
emamim
cama, encontrei
balde atrás deo balde
pátio vazio,
de águae num esforço
fria na por afastar
cabeça.
Nesta manhã variou meu desjejum. Esperanza não apareceu, e quando acabei
de me sentar para trabalhar, notei o desaparecimento do cachorro. Encarei minha
tarefa com ânimo escasso. Tinha pouca energia, e ainda menos desejo de trabalhar, e

153
o resultado foi que permaneci horas sentada, contemplando as montanhas distantes
através da porta aberta.
O silêncio transparente da tarde era quebrado de tanto em tanto pelo cacarejar
das galinhas, que siscavam a terra em busca de sementes, e pelo grito penetrante das
cigarras vibrando na clara luz azul como se ainda fosse meio‐dia. Estava a ponto de
dormir quando escutei um barulho. De imediato prestei atenção e vi o cuidador e o
cachorro estendidos sobre uma esteira à sombra do cercado. Me chamou a atenção
sua total quietude; davam a impressão de estar mortos.
Preocupada e curiosa me aproximei na ponta dos pés. O cuidador se deu conta
de minha presença antes que o cão. Abriu bem os olhos num gesto exagerado, e com
um rápido movimento se levantou para sentar‐se com as pernas cruzadas e perguntar:
—Sentiu minha falta?
Pareceu‐me uma pergunta estranha, e ri nervosa, após admitir que sim.
—Por que não entrou em meu quarto esta manhã? — emendei, e ao observar a
falta de expressão em seu rosto, insisti: —Por onde tem estado nestes últimos três
dias?
Em lugar de responder me fez uma nova pergunta, desta vez em tom áspero:
—Como andam seus estudos?
Foi tal minha surpresa que não soube o que responder. Não sabia se lhe dizia
que a marcha de meus estudos não era assunto de sua incumbência, ou confessar que
me encontrava obstruída.
—Não se incomode em tratar de pensar numa resposta — disse. —Diga‐me a
verdade. Admita que precisa de minha opinião de expert sobre seu trabalho.
Temendo não poder dominar minha vontade de rir, me ajoelhei junto ao
cachorro para acariciar sua cabeça.
—E então? — exigiu. —Não vai admitir que sem mim está perdida?
Indecisa sobre sua saúde mental, decidi que era melhor agradá‐lo que
contradizê‐lo, e admiti não ter escrito uma só linha em todo o dia. Disse‐lhe que o
havia estado esperando, pois somente ele podia salvar‐me, e lhe assegurei que a ele, e
não a meus professores, competia decidir minha sorte como aspirante a graduar‐se.

Visivelmente
—Está satisfeito,
em inglês pediucom
— adverti meutoda
trabalho para —Não
a malícia. “dar lhe uma olhada”.
poderá entendê‐lo — e
engoli meu desejo de agregar que, ainda estando em castelhano, superaria sua
capacidade.
Insistiu em sua solicitação e eu cumpri. Esparramou as folhas em torno dele,
algumas sobre a esteira, outras sobre o chão empoeirado, e tirou do bolso de sua
camisa uns óculos de armação de metal, e então os colocou.
—É importante parecer educado — disse em voz baixa, dirigindo‐se ao cão, que
levantou uma orelha e grunhiu como para manifestar seu acordo. Em seguida o cão
mudou de lugar e o cuidador me convidou com um gesto a sentar‐me entre ele e o
animal.
Parecia uma coruja, austera e doutoral, olhando as folhas dispersas. Emitiu
sons
vezesde
asdesaprovação, estalando
folhas, ao parecer comde
em busca a língua, coçouque
certa ordem a cabeça e embaralhou
parecia escapar‐lhe.repetidas
Ao fim de um bom período de estar sentada nessa postura, começaram a me
doer os músculos de meu pescoço e de meus ombros. Suspirei, impaciente, e me
reclinei contra o cercado, fechei os olhos, e apesar de minha crescente irritação, devo

154
ter dormido, pois me sobressaltou um suave porém insistente zumbido. Abri os olhos,
e sentada ante mim descobri uma mulher alta e linda, esplendidamente vestida, que
me disse algo que não entendi. Aumentou o zumbido em meus ouvidos.
A mulher se aproximou de mim, e em voz alta e clara perguntou:
—Não vai me cumprimentar?
—Nélida! — gritei. —Quando chegou? Estou tentando me desfazer de um
zumbido em meus ouvidos.
Recolheu suas longas e bem torneadas pernas sob a saia e me abraçou.
—Que bom lhe ver.
Entretanto o cuidador franziu o cenho, e murmurou seus comentários:
—Seus garranchos não só são difíceis de entender como além do que, ainda por
cima, não têm muito sentido.
Os olhos de Nélida pareciam incitar‐me a contradizê‐lo. Eu, ansiosa por escapar
da intensidade de seu olhar, me remexia, incomodada, até que ela cutucou meu braço
com firmeza.
O cuidador começou a ler o conteúdo das páginas com uma lentidão
exasperante, e se bem o que dizia soava familiar, eu não captava se na verdade seguia
o texto, pois me era impossível concentrar‐me. Me irritava sua maneira caprichosa de
mutilar as frases, e as vezes até as palavras.
—Em suma — sentenciou ao terminar a última página —, trata‐se de um mau
trabalho. — Ordenou os papéis, formando com eles uma pilha, e se recostou contra o
cercado, adotando a mesma posição que me ensinou Isidoro Baltazar: a perna direita
cruzada sobre a outra, com o tornozelo apoiado sobre a coxa esquerda e os olhos
fechados.
Manteve silêncio por tão longo tempo que achei que havia dormido, e portanto
me assustou quando, com voz lenta e moderada, começou a falar de antropologia,
história e filosofia. Seus pensamentos pareciam formar‐se à medida que falava, e as
palavras fluíam de maneira clara e precisa, com uma simplicidade fácil de seguir e
compreender.
Escutei‐o com atenção, mas ao mesmo tempo não deixava de intrigar‐me o fato

de que soubesse
educação possuía?tanto
Quemacerca das tendências
na verdade era ele? intelectuais de Ocidente. Que grau de
—Poderia repetir tudo de novo? — perguntei nem bem ele havia terminado. —
Gostaria de tomar algumas notas.
—Tudo o que disse está em seus papéis — assegurou‐me. —Enterrado sob
excessivas citações, anotações ao pé da página e idéias mal desenvolvidas. —
Aproximou‐se até que nossas cabeças quase se tocaram. —Não basta citar obras
alheias para dar a seu trabalho a veracidade que lhe falta.
—Me ajudaria a refazê‐lo? — perguntei desorientada.
—Não, não posso fazer isso. Precisa fazê‐lo você mesma.
—Mas é que não posso — objetei. —Você mesmo acaba de assinalar o mal que
está meu trabalho que, acredite‐me, é o melhor que pude fazer.

me com—Não é verdade!que
uma expressão — contradisse ‐me de maneira
misturava surpresa veemente,
e ternura. para depois
—Não duvido seus‐
de queolhar
professores aceitariam seu trabalho, uma vez que o tenha passado a limpo, mas eu
não o faria. Carece de srcinalidade. A única coisa que faz é parafrasear o que já leu, e

155
eu exijo que você dependa mais de suas próprias opiniões, ainda que contradigam o
que se espera de você.
—Trata‐se apenas de um trabalho de composição — disse para defender‐me.
—Sei que pode ser melhorado, só que também preciso agradar a meus professores,
independente de se estou ou não de acordo com o expressado. Preciso ser aceita no
curso de pós‐graduação, e isso, de certo modo, requer satisfazer a meus professores.
Em contestação recebi uma rajada de críticas, advertências e sugestões da
parte do cuidador.
—Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros já não pode trabalhar com
essas premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se
quer graduar‐se, deve se comportar como um guerreiro, não como uma mulher
treinada para agradar, pois você, ainda quando se põe bestialmente desagradável,
procura agradar. Agora, no que se refere a escrever, já que não foi treinada para isso,
quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro.
—O que quer dizer com isso de a modalidade do guerreiro? Devo lutar com
meus professores?
—Não com seus professores, e sim consigo mesma, a cada centímetro do
caminho, e precisa fazê‐lo com tal arte e inteligência que ninguém notará sua luta.
Não estava muito segura do que queria dizer com tudo isso, e tampouco me
interessava, de modo que antes que pudesse acrescentar algo perguntei‐lhe como era
que sabia tanto acerca de antropologia, história e filosofia. Sorriu e sacudiu a cabeça.
—Não se deu conta de como o fiz? — e logo passou a responder à sua própria
pergunta. —Apanhei os pensamentos no ar. Estendi minhas fibras energéticas e
pesquei esses pensamentos, tal como se pesca um peixe com uma vara, num imenso
oceano de pensamentos e idéias que há ali — e traçou um amplo gesto com os braços,
como para captar o ar que o rodeava.
—Para apanhar pensamentos Isidoro Baltazar me disse que a pessoa precisa
saber quais deles podem ser úteis —argumentei —, de modo que você deve ter
estudado história, filosofia e antropologia.
—Talvez o fiz alguma vez — respondeu, não muito decidido, coçando a cabeça,

perplexo. —Sim,
—Tem quedevo
tê‐lodefeito!
tê lo—
feito.
insisti, como se tivesse feito uma grande descoberta.
Suspirando de maneira audível, o cuidador se recostou contra o cercado e
fechou os olhos.
—Por que insiste em ter sempre a razão? — perguntou Nélida.
Surpreendida, olhei boquiaberta como os cantos de seus lábios se curvavam
num provocante e misterioso sorriso. Em seguida, com um gesto, me ordenou fechar a
boca. Eu havia estado tão pendente dos comentários do cuidador a respeito de meu
trabalho que a havia esquecido, apesar de tê‐la em frente a mim. Ou talvez não fosse
assim. Quem sabe não estivera ali, e a idéia de que podia ter se ausentado e
regressado, sem que eu o percebesse, me provocou ansiedade.
—Não deixe que isso te preocupe — consolou‐me Nélida, como se eu tivesse
exteriorizado meu pensamento. —Nós estamos habituados a ir e vir sem que as
pessoas o notem.
O tom de sua voz teve o efeito de suavizar a contundência da revelação, e
olhando a um e logo ao outro, me perguntei se de fato seriam capazes de desaparecer
diante de meus olhos sem que esse ato fosse notado. Tratei de segurá‐los para que

156
isso não acontecesse. Me estendi sobre a esteira, e esticando‐me em atitude gatuna,
avancei meu pé até a roda do vestido de Nélida, que roçava o chão, e movi a mão em
busca do casaco do cuidador, que deve ter sentido o puxão na manga, pois se levantou
abruptamente e me olhou. Eu fechei os olhos, mas continuei observando‐os através
das pálpebras entreabertas. Não se moveram. Suas posturas sacerdotais não
revelavam fadiga, no entanto eu precisei lutar para manter os olhos abertos.
Uma brisa fresca, com fragrância de eucaliptos, começou a soprar; pedaços de
nuvens coloridas sulcaram o céu, e o profundo e transparente azul se fez mais difuso,
dissolvendo‐se de maneira tão lânguida que se tornou impossível distinguir entre céu e
nuvem, entre dia e noite.
Adormeci com o pé na roda do vestido de Nélida e aferrada ao casaco do
cuidador, como se minha vida dependesse disso, e quando alguém tocou meu rosto
tive a impressão de que havia transcorrido apenas uns momentos.
—Florinda? — perguntei, sabendo instintivamente que a mulher sentada a meu
lado era outra. Murmurava algo, e tive a sensação de que levava um bom tempo
fazendo‐o, e eu acabara de acordar para escutá‐la.
Quis sentar‐me, mas com uma suave pressão sobre meu ombro a mulher o
impediu. Em algum lugar, na escuridão, uma pequena chama tremulava insegura,
iluminando a palidez de seu rosto, conferindo‐lhe um aspecto fantasmal. À medida que
ela se aproximava parecia agigantar‐se, e também seus olhos se aumentaram quando
se fixaram nos meus. O arco de suas sobrancelhas, como um arco traçado por um
marcador negro, se via concentrado num gesto de preocupação.
Suspirei aliviada quando pronunciei seu nome.
—Nélida!
Ela aceitou meu reconhecimento com um leve sorriso e um gesto da cabeça.
Queria fazer‐lhe perguntas acerca do cuidador e meus escritos, mas ela me silenciou
colocando um dedo sobre meus lábios, e continuou com suas murmurações, que se
foram fazendo mais e mais distantes até cessar por completo. Depois ficou de pé e me
indicou fazer o mesmo. Obedeci, e notei que já não estávamos no pátio e sim num dos
dormitórios vazios sobre o corredor.

o vento—Onde está
pudesse termeu trabalho?as
esparramado — páginas.
perguntei, alarmada
A idéia ante
de ter quea recomeçá
possibilidade de zero
‐lo do que
me aterrorizava.
Com um gesto imperioso de sua testa Nélida indicou que devia segui‐la. Era
muito mais alta que eu, idêntica a Florinda, e a não ser por sua especial delicadeza,
não teria podido diferenciá‐las. Nesse momento, parecia uma versão inacabada de
Florinda, uma Florinda jovem. Havia nela algo tão delicado, etéreo, e por sua vez
atraente, que eu costumava brincar com Isidoro Baltazar dizendo que, se eu fosse
homem, ficaria louco por ela, ao qual ele respondia que talvez fosse essa a razão pela
qual ela raramente me dirigia a palavra.
Nos dirigimos a meu quarto. Escutava passos, passos que vinham de todas as
direções, que não podiam ser obra de Nélida, pois ela caminhava com tal delicadeza
que nãocaminhar
me fez parecia tocar
com ao suavidade
chão. A absurda
de umnoção
gato, de que do
apesar escutava
qual omeus
ruído próprios passos
não cessou. Os
passos de alguém se moviam em uníssono com os meus, o mesmo ritmo repicava
sobre o piso enlajotado. Várias vezes olhei para trás mas, é claro, sem encontrar a
ninguém. Finalmente, na esperança de poder afugentar meu temor, ri forte.

157
A maneira abrupta em que Nélida se virou me fez temer uma reprimenda, mas
ao invés disso, abraçando‐me, soltou o riso, e não dei importância ao fato de que sua
carícia não fosse quente nem suave. Eu gostava de Nélida, e o toque de suas mãos me
reconfortava. Rindo, e acompanhadas pelo ruído dos passos, entramos em meu
quarto.
Um estranho brilho se aderia às paredes, semelhante a uma névoa que se
tivesse introduzido através das quatro portas, agora invisíveis. Além disso havia
modificado o formato do quarto, conferindo‐lhe um aspecto quase quadrado. Apesar
de minhas repetidas piscadas não podia ver outro objeto além da mesa, sobre a qual
havia trabalhado nos últimos três dias. Me aproximei, e me aliviou ver meus papéis
ordenados e, junto a eles, meus lápis, todos apontados.
—Nélida! — exclamei excitada, mas ela já não estava ali.
A névoa se havia feito mais espessa, se aproximava com cada inalação de meus
pulmões e se infiltrou dentro de mim, enchendo‐me de uma sensação agradável de
lucidez e frivolidade. Guiada por alguma força invisível me sentei à mesa, esparramei
os papéis, e sob meus olhos vigilantes surgiu a estrutura total de meu trabalho,
sobrepondo‐se ao srcinal, como a dupla exposição de uma película. Me perdi
admirando o hábil desdobramento dos temas, e como se tivessem sido manipulados
por alguma mão invisível, pensante e escritora, os parágrafos se recolocaram impondo
uma nova ordem. Tudo era tão maravilhosamente claro e simples que ri de puro gozo.
—Escreve‐o.
As palavras repercutiram suavemente no aposento. Olhei ao redor sem ver
ninguém, e sabendo que isso que agora vivia era definitivamente mais que um sonho,
lancei mão de meu caderno e a um lápis, e comecei a escrever a toda velocidade. As
idéias me chegavam com incrível claridade e facilidade, e inundavam minha cabeça e
meu corpo como ondas de som. Simultaneamente via e escutava as palavras, mas não
eram meus olhos e meus ouvidos os que as percebiam, e sim, melhor dizendo,
filamentos internos que se estendiam e, como um silencioso aspirador, chupavam as
palavras que brilhavam ante mim como partículas de poeira.
Depois de um tempo, a ordem sobreposta começou a opacar‐se. Uma a uma, as

linhas empalideceram.
estrutura, ainda sabendoComque desespero procurei sem
tudo desapareceria aferrar me rastro.
deixar a esta Sóesplêndida
restou a
memória dessa magnífica lucidez, e depois também isso se extinguiu, como uma
lâmpada que alguém tivesse apagado. Um resto de névoa, delicada como um
filamento, permaneceu flutuando no quarto para depois desaparecer em pequenas
ondas, e deixar uma escuridão opressiva que se fechava sobre mim. Senti‐me tão
extenuada que soube que ia desmaiar.
—Deite‐se!
Não me incomodei em olhar. Sabia que não veria a ninguém. Com um grande
esforço, abandonei a cadeia e me arrastei até minha cama.

158
CAPÍTULO DEZESSEIS

Por um momento permaneci na cama, recordando vagamente meu


assombroso ensonho, tão diferente de qualquer outro. Pela primeira vez tinha
pleno conhecimento de tudo o que havia feito.
—Nélida? — perguntei, ao escutar um suave murmúrio que chegava do
outro extremo do quarto. Tentei levantar ‐me, mas caí de novo sobre a cama. O
quarto girava. Minutos depois o tentei de novo. Fiquei de pé e ensaiei uns passos
vacilantes, que terminaram quando caí ao chão e dei com a cabeça contra a
parede.
—Merda! — gritei. —Estou desmaiando.
—Não seja tão dramática — foi Florinda quem disse isso, e riu ao ver ‐me
tão desconcertada. Tocou primeiro minha testa, depois meu pescoço, e ao
comprovar que não tinha febre pronunciou sua sentença: —Não está
desmaiando. O que precisa é repor sua energia.
Perguntei por Nélida, e enquanto me ajudava a voltar para a cama,
Florinda quis saber se havia estranhado a ela.
—Está fraca porque está com fome — disse.
—Não tenho fome — a contradisse, mais por hábito que por convicção,
sem duvidar de que minha tontura se devia a não ter comido nada o dia todo,
salvo o desjejum.
—Nos perguntamos por que não comeu — confessou Florinda,
respondendo a meus inexpressados pensamentos. —Havíamos lhe preparado um
guisado tão delicioso.
—Quando chegou? — quis saber. —Tenho estado lhe chamando em
silêncio durante dias.
Florinda semicerrou os olhos, e emitindo um som sussurrante, ao que
parecia destinado a ajudá ‐la a recordar, respondeu que acreditava estar a vários
dias na casa.
—Acredita? — perguntei impaciente, perto de uma exteriorização de mau

gênio que
mais queofendida
consegui me
controlar.
intrigava—Por quenotado
não ter não mesuafezpresença.
saber que estava pude
—Como aqui?não

me dar conta? — murmurei, mais para mim que para seus ouvidos.
A curiosa expressão de seus olhos denotava que a Florinda lhe surpreendia
meu desconcerto, e sua sagaz resposta foi que, se tivessem me revelado sua
presença, eu não teria podido me concentrar em minha tarefa.
—Como bem sabe, em lugar de ocupar ‐se de seu ensaio, estaria pendente
de nossas idas e vindas. Toda sua energia estaria concentrada em averiguar o que
nós fazíamos, não é assim? Deliberadamente decidimos que você deveria
trabalhar sem distrações — explicou, para depois agregar que o cuidador me
havia ajudado somente depois de ter comprovado que o feito por mim até aquele
momento era satisfatório, e que em ensonhos ele havia encontrado a ordem
inerente de também
—Eu minhas anotações.
os achei em ensonho — confessei.
—Naturalmente — concordou Florinda. — Nós te fizemos ensonhar para
que pudesse trabalhar.
—Vocês me fizeram ensonhar? — repeti.

159
Sem dúvida sua declaração era chamativamente normal, mas não deixava
de causar ‐me apreensão. Me dominou a misteriosa sensação de estar por fim a
ponto de compreender o que significava o ensonhar desperto, embora sem
conseguir captá ‐lo por completo, e esforçando ‐me por ser clara, revelei a Florinda
tudo o que aconteceu desde o momento em que vi ao cuidador e ao cachorro no
pátio.
Não me foi fácil ser coerente, pois eu mesma não conseguia decidir
quando estive desperta e quando adormecida, e aumentava minha confusão o
fato de poder recordar o exato contorno de meu trabalho tal como o vi,
sobreposto ao texto srcinal.
—Minha concentração era demasiado intensa para pensar que pudesse
estar ensonhando — resumi.
—É disso, precisamente, que se trata o ensonhar desperto. Por isso o
lembra tão bem — e o modo em que Florinda disse isto me lembrou uma
professora impaciente, explicando algo simples a uma criança retardada. —Já te
disse que o ensonhar desperto não tem nada a ver com dormir e sonhar.
—Tomei notas — acrescentei, como se isso pudesse invalidar o que ela
acabara de dizer, e ao ver que concordava com um movimento de cabeça,
perguntei ‐lhe se encontraria algo sobre a matéria, escrito de meu punho e letra,
entre minhas notas.
—Sim — me assegurou —, mas antes terá que comer. — Ficando de pé,
estendeu ‐me a mão e me ajudou a se levantar.
Para ajeitar ‐me um pouco acomodou a camisa dentro de meus jeans e
tirou os pedaços de palha aderidos a meu suéter. Depois me afastou um pouco
para inspecionar sua obra. Não satisfeita, encarou o aspecto de meu cabelo,
acomodando os fios esticados e rebeldes.
—Você fica horrível com o cabelo desgrenhado.
—Estou acostumada a uma ducha quente ao levantar ‐me — e saí atrás dela
ao corredor. Ao ver que se dirigia à cozinha lhe informei que antes precisava ir ao
toalete.

que só —Te acompanho


desejava assegurar—‐seofereceu,
de que eue não
ao notar meu gesto
me desmaiaria de recusa,
e cairia explicou
pelo buraco.
Aceitei agradecida o apoio de seu braço, e quase cai de bruços ao sair ao
pátio, não tanto por causa de minha debilidade e sim pela surpresa que me
causou comprovar o tarde que era.
—O que acontece? — perguntou Florinda. —Se sente fraca?
Apontei o céu. Apenas sobrava um resto de luz.
—Não é possível que tenha perdido um dia — disse com voz apagada. Lutei
por assimilar a idéia de que haviam transcorrido toda uma noite e todo um dia,
mas minha mente não o aceitou. O fato de não poder calcular o tempo de acordo
com os cânones normais me desorientava.
—Os feiticeiros quebram o fluir do tempo — explicou Florinda,
interpretando
existe quando meus pensamentos.
se ensonha como o—O tempo,
fazem tal como nós
os feiticeiros. Eles oo medimos,
estendem não
ou
condensam à vontade, e não o consideram em termos de horas ou minutos. Ao
ensonhar despertos, aumentam suas faculdades perceptuais — prosseguiu em
tom paciente e medido. —Não obstante, com o tempo acontece algo por intero

160
distinto. A percepção do tempo não aumenta, e sim que fica totalmente
cancelada. — Acrescentou que o tempo é sempre um fator de consciência, ou
seja, que sua percepção é um estado psicológico, automaticamente transformado
por nós em medidas físicas. É algo que levamos tão gravado que, ainda quando
não o percebamos, um relógio soa em nosso interior, marcando subliminarmente
o tempo.
—No ensonhar desperto — enfatizou — essa capacidade está ausente.
Uma estrutura por completo nova e nada familiar assume o controle; uma
estrutura que de alguma maneira não é para ser interpretada ou entendida como
normalmente fazemos com o tempo.
—Ou seja, que tudo o que saberei conscientemente acerca do ensonhar
desperto é que, com relação ao tempo, ele poderá ter sido estendido ou
comprimido — disse, procurando entender à explanação.
—Compreenderá muito mais que isso — me assegurou com ênfase. —
Quando for expert em penetrar na consciência intensificada, como a chama
Mariano Aureliano, terá consciência de tudo o que deseje, pois os feiticeiros não
estão envolvidos com medir o tempo e sim em usá ‐lo, em estendê ‐lo ou
comprimi ‐lo à vontade.
—A pouco você disse que todos me ajudaram a ensonhar — afirmei. —
Neste caso, alguém deve saber o quanto durou meu ensonho.
Florinda respondeu que ela e seus companheiros viviam permanentemente
num estado de ensonhar desperto, e que era precisamente seu esforço conjunto
o que me fez ensonhar, mas que jamais levavam conta de sua duração.
—Quer inferir que posso estar ensonhando desperta agora? — perguntei,
sabendo de antemão o que responderia. —Se é assim, o que fiz para alcançar este
estado? Quais passos tomei?
—Os mais simples imagináveis — respondeu Florinda. —Não se permitiu
ser seu ser usual. Esta é a chave que abre portas. Muitas vezes, e de diferentes
maneiras, temos lhe dito que a feitiçaria não é o que pensa que é. Dizer que não
permitir ‐se ser seu ser usual é o segredo mais complexo da feitiçaria; soa bobo

mas não
não o é. É anão
obstante, chave ao poder,
é algo e portanto
complexo, o maisdedifícil
impossível que fazNão
entender. um confunde
feiticeiro; ea
mente, e por tal razão ninguém pode sequer suspeitar sua importância ou tomá ‐
lo a sério. A julgar pelo resultado de sua última sessão de ensonhar desperta,
posso dizer que você acumulou suficiente energia mediante o ato de impedir ‐se
ser seu ser usual.
Deu um tapinha em meu ombro e sussurrou.
—Te verei na cozinha.
A porta da cozinha estava entreaberta, mas nenhum som provinha do
interior.
—Florinda? — perguntei em voz baixa.
Me respondeu um riso suave, mas não vi ninguém. Quando meus olhos se
acostumaram à penumbra
rostos estranhamente divisei
vívidos a Florinda
nessa e a Nélida
tênue luz, assim sentadas a uma
como seus mesa,
olhos, seus
cabelos,
nariz e bocas. Diria ‐se que as iluminava uma luz interior, e me impressionou
comprovar o quanto eram exatas eram entre si.
—Vocês duas são tão lindas que assusta — disse, aproximando ‐me.

161
Olharam ‐se uma à outra e soltaram um riso, francamente perturbador.
Senti que um calafrio percorria minha coluna, e antes que eu pudesse ensaiar
comentário algum, ambas se calaram, e Nélida me convidou a ocupar a cadeira
vazia junto a ela.
Respirei fundo. “Precisa manter a calma”, me disse ao ocupar o assento.
Havia em Nélida uma secura e um tensionamento que me enervava. Da sopeira
no meio da mesa me serviu um prato de espessa sopa.
—Quero que coma tudo — disse, aproximando de mim uma cesta com
tortilhas quentes, e também a manteiga.
Eu estava morta de fome, e ataquei o que me deram como se não tivesse
comido um só bocado em muitos dias. Esgotei o conteúdo da sopeira, e
acompanhei as tortilhas com três canecas de chocolate quente. Saciada, me
acomodei em minha cadeira. A porta que conduzia ao pátio estava aberta de par
em par, e uma brisa fresca reacomodou as sombras que invadiam a cozinha. O
crepúsculo parecia eterno, e no céu languideciam grossas capas de cor:
vermelhão, azul escuro, ouro e violeta, e tanto o ar, dotado de uma qualidade
transparente, parecia aproximar as montanhas distantes. Como impulsionada por
uma força interior a noite dava a impressão de surgir do chão, e o ensombrecido
movimento das árvores frutíferas, impulsionado pelo vento rítmico e cheio de
graça, arrebatava a escuridão e a elevava até o céu.
Esperanza entrou na cozinha portando uma lamparina de azeite que
colocou sobre a mesa, olhando ‐me sem piscar, como se tivesse problemas para
enfocar a vista. Dava a impressão de continuar preocupada por algum mistério de
outro mundo, mas aos poucos seus olhos se descongelaram, e sorriu, como
sabendo que havia regressado de algum lugar muito distante.
—Meu ensaio! — gritei, ao ver as folhas soltas e meu caderno sob seu
braço. Com um grande sorriso os entregou a mim.
Sem dissimular minha impaciência, examinei as folhas, rindo feliz ao poder
constatar as páginas do caderno cobertas de precisas e detalhadas instruções, a
metade em espanhol e a outra metade em inglês, sobre como proceder com meu

trabalho, sendotudo
—Está a caligrafia
aqui! — indiscutivelmente
exclamei muitominha.
excitada. —Assim o vi em meu
ensonho — e de pensar que poderia me livrar do curso de pós ‐graduação sem ter
que esforçar ‐me em excesso, esqueci toda minha ansiedade anterior.
—Não se escrevem bons ensaios recorrendo a atalhos — advertiu
Esperanza. —Nem sequer com a ajuda da feitiçaria. Deveria saber que sem as
leituras prévias e a coleta de notas, o fato de escrever e de revisar o escrito,
nunca teria conseguido reconhecer a estrutura e a ordem de seu trabalho em
seus ensonhos.
Assenti sem falar. Ela havia dito isso com autoridade incontestável,
deixando ‐me sem palavras.
—E o que acontece com o cuidador? Foi professor em sua juventude?
Nélida
coubesse e Florinda se viraram na direção de Esperanza, como se a ela
responder.
—Isso não o saberia dizer — respondeu, de maneira evasiva. —Não te
disse que era um feiticeiro enamorado das idéias?
Manteve silêncio por um momento, para depois completar:

162
—Quando não cuida de nosso mundo mágico, como cabe a um cuidador,
ele lê.
—Além de livros — ampliou Nélida — lê uma extraordinária quantidade de
revistas culturais. Fala vários idiomas, de modo que está atualizado com o último
em tudo. Delia e Clara são suas ajudantes. Ele as ensinou a falar inglês e alemão.
Perguntei se a biblioteca da casa pertencia a ele.
—É de todos — respondeu Nélida. —Contudo estou segura de que, tirando
Vicente, ele é o único que leu todos os livros que contêm as estantes — e ao
observar minha expressão incrédula me advertiu que o aspecto das pessoas desse
mundo não deveria enganar ‐me. —Para alcançar um certo nível de
conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do que o fazem outros. Os
feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo cotidiano como ao
mágico. Para conseguir isso devem ser muito preparados e sofisticados, tanto
mental como fisicamente.
—Durante três dias trabalhou em seu ensaio. Trabalhou duro, não é
verdade? — aguardou a que eu me manifestasse de acordo, e depois acrescentou
que, enquanto ensonhava desperta, lhe dediquei ainda maior esforço que
estando desperta.
—Não estou de acordo — contradisse. —Tudo foi muito simples e carente
de esforço — e expliquei que a única coisa que fiz foi ver uma nova versão de meu
trabalho sobreposta à antiga, a qual copiei.
—Fazer isso demandou toda a força que você possuía — sustentou Nélida.
—Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só
propósito. Toda sua preocupação e esforço se destinaram a terminar seu
trabalho. Nada mais importava. Nenhum outro pensamento interferiu com sua
meta.
—O cuidador ensonhava desperto quando leu meu ensaio? Viu o que eu
vi?
Nélida ficou de pé e caminhou lentamente até a porta. Durante um longo
tempo olhou para fora, em direção à escuridão. Depois voltou à mesa, segredou

algo ocom
que Esperanza,
cuidador e tornou
viu em a sentarera
meu trabalho se.diferente
Esperanzaaoriu
quequando mee disse
foi visto que
escrito poro
mim.
—E é natural que assim fosse, pois o conhecimento dele é muito mais
vasto que o seu. Você, guiada por suas sugestões, e de acordo com sua
capacidade, captou como devia parecer seu trabalho, e isso foi o que você
escreveu.
Por sua vez Nélida explicou que enquanto ensonhamos despertos temos
acesso a recursos ocultos que de ordinário não empregamos. Disse que nem bem
eu vi meu trabalho lembrei dos pontos ‐chave que me havia fornecido o cuidador.
Ao notar que minha expressão incrédula persistia, lembrou o que foi dito
pelo cuidador sobre meu ensaio. “Demasiadas notas ao pé da página, citações
demais e idéias desenvolvidas
um ar divertido ao acrescentarcom descuido.”
que, dado queSeus
euolhos irradiavam
ensonhava simpatia
e não era tãoe
estúpida como alegava ser, de imediato percebi toda sorte de enlaces e conexões
não notados antes. Depois se aproximou sorridente à espera de minha reação.

163
—É hora de que saiba o que te fez ver uma melhor versão de seu trabalho
srcinal. — Esperanza me piscou um olho como para enfatizar que estava por
revelar ‐me um segredo retumbante.
—Quando ensonhamos despertas, nós temos acesso ao conhecimento
direto.
Observou ‐ me um longo período, e havia desencanto em seus olhos.
—Não seja tão densa! — Nélida me cutucou impaciente. —Ensonhar
desperta deveria ter lhe demonstrado que possui, como todas as mulheres, uma
capacidade sem igual para receber conhecimentos diretos.
Com um gesto Esperanza me indicou guardar silêncio e disse: —Sabia que
uma das diferenças básicas entre homens e mulheres é a maneira em que
encaram o conhecimento?
Eu não tinha idéia do que queria dizer. De maneira lenta e deliberada
arrancou uma folha em branco de meu caderno e desenhou duas figuras
humanas, uma das quais coroou com um cone e disse que era um homem. Sobre
a outra cabeça desenhou o mesmo cone, só que invertido, e o declarou ser a
mulher.
—Os homens constroem seu conhecimento passo a passo — explicou com
o lápis apontando à cabeça coroada pelo cone. —Tendem para cima, trepam em
direção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram como
um cone em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita
até onde podem chegar — repassou com o lápis as linhas do cone da primeira
figura. —Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa altura, e seu
caminho termina no ápice do cone.
—Preste atenção — advertiu, apontando com o lápis à segunda figura. —
Como poderá ver o cone está invertido, aberto como um funil. As mulheres
possuem a faculdade de abrir ‐se diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte
lhes chega de maneira direta, na base larga do cone. Os feiticeiros dizem que a
conexão das mulheres com o conhecimento é expansiva, enquanto a dos homens
é bastante restritiva.

“Os As
abstrato. homens se conectam
mulheres com o com
se conectam concreto — prosseguiu
o abstrato, —, e apontam
e contudo ao
tratam de
entregar ‐se ao concreto”.
—Por quê? — perguntei —, sendo as mulheres tão abertas ao
conhecimento ou ao abstrato, são consideradas como inferiores?
Esperanza me contemplou fascinada. Ficou de pé, esticou ‐se como um
gato, fazendo estalar todas suas articulações, e recuperou seu assento.
—Que sejam consideradas inferiores ou, no melhor dos casos, que suas
características femininas sejam consideradas complementares às dos homens,
têm a ver com a maneira em que uns e outros se aproximam do conhecimento.
Em geral à mulher lhe interessa mais dominar ‐se a si mesma que a outros, um
tipo de domínio claramente ambicionado pelo homem.
—Inclusive entre os feiticeiros — acrescentou Nélida para satisfação das
mulheres.
Esperanza expressou sua crença em que srcinalmente as mulheres não
consideravam necessário explorar essa facilidade para unir ‐se direta e

164
amplamente ao espírito. Não achavam necessário falar ou intelectualizar acerca
desta sua capacidade, pois lhes bastava acioná ‐la para saber que a possuíam.
—A incapacidade do homem para unir ‐se diretamente ao espírito é o que
os impulsionou a falar do processo de alcançar o conhecimento — explicou. —
Não pararam mais de falar disso, e é precisamente essa insistência em saber
como se esforçam por alcançar o espírito, esta insistência por analisar o processo,
o que lhes deu a certeza de que o ser racional é uma conquista tipicamente
masculina.
Esperanza explicou que a conceitualização da razão tem sido obtida
exclusivamente pelos homens, e isto lhes têm permitido minimizar os dons e as
conquistas da mulher e, pior ainda, excluir as características femininas da
formulação dos ideais da razão.
—É claro que na atualidade a mulher acredita no que lhe tem sido fixado
— enfatizou. —A mulher tem sido criada para crer que só o homem pode ser
racional e coerente, e agora o homem é portador de um capital que o torna
automaticamente superior, seja qual for sua preparação ou capacidade.
—Como foi que as mulheres perderam sua conexão direta com o
conhecimento? — perguntei.
—Não a perderam — corrigiu Esperanza. —Ainda têm uma conexão direta
com o espírito, só que esqueceram como usá ‐la, ou melhor, copiaram a condição
masculina de não possuí ‐la. Durante milhares de anos o homem tem se ocupado
de que a mulher o esqueça. Pegue a Santa Inquisição, por exemplo: esse foi um
expurgo sistemático para erradicar a crença de que a mulher tem uma conexão
direta com o espírito. Toda religião organizada não é outra coisa que uma
manobra muito exitosa para colocar à mulher no nível mais baixo. As religiões
invocam uma lei divina que mantém que as mulheres são inferiores.
Olhei ‐a assombrada, perguntando ‐me como podia ser tão erudita.
—Os homens necessitam dominar a outros, e a falta de interesse das
mulheres por expressar ou formular o que conhecem, e como o conhecem, tem
constituído uma nefasta aliança — continuou Esperanza. —Tem tornado possível

que a mulher
encontra ‐se no seja forçada,
lar, no desde
amor, no seu nascimento,
casamento, a aceitar
em parir filhos que
e negar ‐se aa siplenitude
mesma.
A mulher tem sido excluída das formas dominantes de pensamento abstrato e
educada para a dependência. Têm sido tão bem treinadas para aceitar que os
homens devem pensar por elas que terminaram por não pensar.
—A mulher é perfeitamente capaz de pensar — disse.
Esperanza me corrigiu.
—A mulher é capaz de formular o que aprendeu, e o que tem aprendido
tem sido definido pelo homem. O homem define a natureza intrínseca do
conhecimento, e dele tem excluído tudo aquilo que pertence ao feminino ou, se o
há incluído, é sempre de maneira negativa. E a mulher o tem aceitado.
—Está atrasada em anos — objetei. —Hoje em dia a mulher pode fazer o
que deseja. Em
os trabalhos quegeral têm aceso
desempenha a todo centro de aprendizagem, e a quase todos
o homem.
—Mas isso não tem sentido, a menos que possuam um sistema de apoio,
uma base — argumentou Esperanza. —De que serve ter aceso ao que possuem os
homens, quando ainda se as consideram seres inferiores, obrigadas a adotar

165
atitudes e comportamentos masculinos para conseguir o êxito? As que na
verdade conseguem alcançar o êxito são as perfeitas convertidas, e elas também
depreciam às mulheres.
—De acordo com os homens o útero limita à mulher tanto mental como
fisicamente. Esta é a razão pela qual às mulheres, apesar de seu acesso ao
conhecimento, não lhes tem sido permitido determinar o que é este
conhecimento. Pegue, por exemplo, aos filósofos — propôs Esperanza. —Os
pensadores puros. Alguns deles são encarniçadamente contra a mulher. Outros
são mais sutis, no sentido de que estão dispostos a admitir que a mulher poderia
ser tão capaz como o homem, se não fosse porque não lhe interessam as
investigações racionais, e no caso de estar interessadas, não deveriam estar. Pois
lhe cai melhor à mulher ser fiel à sua natureza: uma companheira nutriente e
dependente do macho.
Esperanza expressou tudo isto com inquestionável autoridade. No entanto,
em poucos minutos, a mim já me assaltavam as dúvidas. —Se o conhecimento
não é outra coisa que um domínio masculino, a quê se deve então sua insistência
em que eu vá à universidade? — perguntei.
—Porque você é uma bruxa, e como tal precisa saber o que te afeta, e
como te afeta — respondeu. —Antes de recusar algo deve saber por que o recusa.
“Sabe, o problema é que o conhecimento em nossos dias se deriva
simplesmente de pensar nas coisas, mas as mulheres têm um caminho distinto,
nunca antes levado em consideração. Esse caminho pode contribuir ao
conhecimento, mas teria que ser uma contribuição que nada tem a ver com
pensar nas coisas”.
—Com o que teria que ver então?
—Isso é para que você o decida, depois de ter dominado as ferramentas do
raciocínio e da compreensão.
Minha confusão era muito grande.
—O que propõem os feiticeiros — continuou Esperanza — é que os
homens não podem possuir o direito exclusivo ao raciocínio. Parecem possuí ‐lo

agora porque
masculino. o terrenoentão
Apliquemos sobrea orazão
qual ao um
aplicam é um
terreno terreno
onde ondeo prevalece
prevalece feminino, oe
esse é, naturalmente, o cone invertido que te descrevi: a conexão feminina com o
próprio espírito.
Desviou apenas a cabeça, como decidindo o que estava por dizer.
—Essa conexão deve enfrentar ‐se com outro tipo de raciocínio, algo nunca
antes empregado: o lado feminino do raciocínio.
—E qual é o lado feminino do raciocínio, Esperanza?
—Muitas coisas; uma delas é definitivamente ensonhar. — olhou ‐me de
maneira questionante, mas eu nada tinha a dizer.
Sua profunda gargalhada me pegou de surpresa.
—Eu sei o que espera você dos feiticeiros: rituais e encantamentos, cultos
raros, misteriosos.
comunhão com os Quer que da
espíritos cantemos.
água; quer fundir ‐se com
Querpaganismo, umaa visão
natureza; estar em
romântica do
que fazemos. Muito germânico.
“Para submergir ‐se no desconhecido precisam de coragem e mente.
Somente com isso poderá explicar a você mesma e a outros os tesouros que

166
poderá encontrar.” — Esperanza chegou perto de mim, ansiosa ao que parecia,
por confiar ‐me algo. Coçou a cabeça e bufou repetidas vezes, cinco vezes como o
fazia o cuidador. —Precisa agir a partir de seu lado mágico — disse.
—E isso o que é?
—O útero — e o disse com tanta calma, e em tom tão baixo, como se não
lhe interessasse minha reação, que quase não lhe ouvi. Depois, ao dar ‐me conta
do absurdo de suas palavras, me endireitei e olhei para as outras mulheres.
—O útero — repetiu Esperanza — é o órgão feminino fundamental, o que
dá às mulheres esse poder, essa força extra para canalizar sua energia.
Explicou que o homem, em sua busca pela supremacia, tem conseguido
reduzir esse misterioso poder, o útero, ao nível estrito de um órgão biológico cuja
única função é reproduzir, abrigar a semente do homem.
Como se obedecesse a um chamado, Nélida ficou de pé, rodeou a mesa e
veio parar ‐se atrás de mim.
—Conhece a estória da Anunciação? — murmurou quase pegado a meu
ouvido.
—Não — respondi, rindo.
Com esse mesmo sussurro confidencial me disse que na tradição judaico‐
cristã os homens são os únicos que escutam a voz de Deus. As mulheres, salvo a
Virgem Maria, foram excluídas deste privilégio. Nélida disse que um anjo
sussurrando à Maria era, logicamente, algo natural. Não o era em troca de que a
Única coisa que pôde dizer ‐lhe foi que daria a luz ao filho de Deus. O útero não
recebeu conhecimento e sim, melhor dizendo, a promessa da semente de Deus.
Um deus masculino, que por sua vez gerava outro deus masculino.
Eu queria pensar, refletir acerca de tudo o que se havia dito, mas minha
mente estava em total confusão.
—E o que acontece com os feiticeiros homens? — perguntei. —Eles não
têm útero e, contudo, estão claramente conectados com o espírito.
Esperanza me olhou com uma satisfação que não tentou dissimular; depois
olhou por cima de seu ombro como temerosa de que alguém a escutasse. Num

murmúrio,
—Osapenas disse:podem alinhar ‐se com o espírito pois abandonam o que
feiticeiros
especificamente define sua masculinidade. Já não são homens.

167
CAPÍTULO DEZESSETE

A maneira em que Isidoro Baltazar percorria o aposento diferia da que


usualmente empregava para cobrir o espaço de seu estúdio retangular. Antes sempre
me acalmava seu andar, mas desta vez possuía uma qualidade incômoda e
ameaçadora, trazendo à minha mente a imagem de um tigre que espreita entre o
mato, ainda não preparado para saltar sobre sua vítima, mas consciente de que algo
anda mal.
Deixei de lado o que estava lendo, a fim de averiguar a natureza de sua
preocupação, quando ele disse:
—Nós vamos ao México.
O modo em que o disse me causou graça, e o tom sombrio e sério justificou
minha risonha pergunta:
—Vai se casar comigo lá?
Deteve‐se de imediato.
—Este não é um gracejo — disse irritado. —Isto é coisa séria — e nem acabou
de dizê‐lo e sorriu, e com um gesto desvaído perguntou a si mesmo: —O que estou
fazendo? Estou me irritando com você, como se dispusesse de tempo para isso. Que
vergonha! O nagual Juan Matus já me havia advertido que somos uma merda até o
momento final.
Abraçou‐me com força, como se voltasse de uma longa ausência.
—Não creio que seja uma boa idéia que eu vá ao México.
Sua resposta foi como a de um militar dando ordens.
—Cancele tudo. Já não resta tempo.
Eu, feliz, respondi:
—Jawoh! Mein Gruppenführer!
Distendido, ele riu.
Enquanto viajávamos pelo Arizona me assaltou uma estranha sensação, uma
sensação física parecida a um calafrio, que se estendia desde o útero a todo o corpo,
eriçando a pele; a sensação de que algo andava mal, misturada com um elemento

totalmente novo:decerteza
—Acabo absoluta.
ter uma intuição. Algo está mal! — disse, e minha voz se tornou
aguda contra minha vontade.
Como se fosse o mais natural do mundo, e depois de assentir com um
movimento de cabeça, Isidoro Baltazar me informou que os feiticeiros estavam de
partida do mundo.
—Quando?! — perguntei, deixando escapar um grito involuntário.
—Talvez amanhã, ou passado ou dentro de um mês, mas sua partida é
iminente.
Com um suspiro de alívio me acomodei no assento e me relaxei
conscientemente.
—Estão dizendo que vão partir desde o dia em que os conheci, já faz mais de
três anos — murmurei,
Isidoro Baltazar com a sensação
se virou de que
para olhar nãoseu
‐me, rostotê‐tinha
deveria lo dito.
por um lado uma
expressão de desprezo, e por outro de empenho em se livrar dessa expressão. Sorriu,
bateu em meu joelho e disse com suavidade que no mundo dos feiticeiros não se
deveria tomar as coisas tão ao pé da letra.

168
—Se os feiticeiros lhe repetem algo até te fartar é porque desejam preparar‐te
para isso — e acrescentou, com um olhar sério: —Não confunda seus procedimentos
mágicos com suas bobagens.
Suas palavras não provocaram raiva em mim. Meu medo era demasiado
intenso para permitir‐me esse luxo. Aceitei‐as em silêncio.
A viagem foi muito rápida, ou ao menos assim me pareceu. Nós revezamos na
direção e no descanso, e ao meio‐dia do dia seguinte chegamos à casa das bruxas. Não
perdemos tempo. Nem bem desligou‐se o motor do carro o abandonamos para correr
até a casa.
—O que aconteceu? — perguntou o cuidador, surpreendido por nossa abrupta
e ruidosa chegada. —O que fazem vocês, estão brigando ou estão se perseguindo um
ao outro?
—Quando se vão? Quando se vão? — repeti mecanicamente, incapaz de conter
minha ansiedade e temor.
Rindo, o cuidador espalmou minhas costas e pronunciou palavras de ânimo.
—Não vou a nenhum lado. Não vai se livrar de mim tão facilmente. — Apesar
de soar genuínas, suas palavras não eliminaram minha ansiedade.
Examinei seu rosto e seus olhos, procurando descobrir algum indício de
mentira, mas só vi sinceridade e bondade. Quando notei que Isidoro Baltazar já não
estava ao meu lado me dominou de novo a tensão. Havia desaparecido veloz e
silencioso como uma sombra. O cuidador percebeu essa agitação, e com um gesto
assinalou a casa. Ouvi a voz de Isidoro Baltazar, ao que parecia em tom de protesto, e
logo sua risada.
—Estão todos aqui? — perguntei, tentando abrir passagem.
—Estão lá dentro — respondeu o cuidador, e abriu os braços para deter‐me. —
Não podem receber você neste momento. Não te esperavam — incrementou, ao ver
que eu estava por protestar. —Querem que eu te fale antes de receber‐te. — Pegou
minha mão e me afastou da porta. —Vamos aos fundos para recolher folhas — propôs.
—Nós as queimaremos e deixaremos as cinzas às fadas aquáticas. Talvez as
transformem em ouro.

Não mas
de folhas, pronunciamos umafísica
a atividade só palavra
e o somenquanto recolhíamos
do rastelo monte após
que raspava monte
a terra me
tranquilizaram. Me pareceu que leváramos horas recolhendo folhas, quando de
repente soube que não estávamos sozinhos no pátio, e ao dar uma volta vi a Florinda.
Vestida de camisa e calças brancas, parecia uma aparição. Um chapéu de palha
protegia seu rosto, de aba muito larga, na mão levava um leque de renda, e sua
atitude era tão remota que parecia não ser de todo humana. Eu, imóvel, observei‐a
fascinada.
Perguntando‐me se repararia em minha presença, e com passos vacilantes, me
aproximei a ela, e ao perceber que, de nenhuma maneira, registrava minha
proximidade, me detive indecisa. Não se tratava de um intento de proteger‐me contra
uma rejeição, nem de temor em ser desdenhada. Uma indeterminada e contudo
aceitada
quando onorma queseimpediu
cuidador que lhe
sentou junto a elaexigisse prestar
no banco, ‐me oatenção.
peguei Não obstante,
rastelo apoiado contra
uma árvore e aos poucos fui me aproximando. O cuidador, atento às palavras de
Florinda, apenas acusou meu propósito com um distraído sorriso.

169
Falavam um idioma desconhecido para mim, apesar do qual os escutei
fascinada, sem poder determinar se era essa língua ou o afeto de Florinda pelo velho o
que conferia à sua voz rouca uma qualidade por sua vez terna, suave e estranha.
De repente Florinda ficou de pé, e como se a impulsionasse alguma mola
invisível, percorreu o terreno com os movimentos ziguezagueantes de um beija‐flor,
fazendo uma parada junto a cada árvore, tocando aqui uma folha e ali uma flor.
Levantei minha mão para atrair sua atenção, mas me distraiu uma mariposa,
que tecia sombras azuis no ar, e que pousou depois sobre minha mão para projetar
sua sombra escura sobre meus dedos. Depois esfregou a cabeça contra as patas, abriu
e fechou várias vezes as asas, e retomou seu vôo, deixando sobre meu dedo médio um
anel em forma de mariposa triangular. Segura de que se tratava de uma ilusão de
óptica, sacudi repetidas vezes minha mão.
—É um truque, não é? — perguntei ao cuidador. —Uma ilusão de óptica?
Negou com a cabeça, seu rosto se enrugou num radiante sorriso, e tomando
minha mão comentou:
—É um lindo anel; um esplêndido presente.
Repeti suas palavras: “um presente”. Tive um breve lampejo de intuição, que
desapareceu para deixar‐me desorientada.
—Quem colocou esse anel em meu dedo? — perguntei, observando a jóia. As
antenas e o delicado corpo que dividiam o triângulo eram de filigrana de ouro branco,
e eram encravados com pequenos diamantes.
—Não havia percebido antes esse anel? — perguntou o cuidador.
—Antes? — repeti desconcertada. —Antes de quê?
—Tem estado usando esse anel desde que Florinda o deu de presente a você.
—Mas, quando? — perguntei, tapando minha boca com a mão para aplacar
minha sensação de choque. —Não lembro que Florinda tenha me dado de presente
um anel — sussurrei —, e por que não o notei antes?
O cuidador deu de ombros, e ao não poder explicar‐se minha confusão, sugeriu
que talvez eu não havia reparado no anel devido a ele se encaixar tão bem em meu
dedo. Pareceu a ponto de acrescentar algo, desistiu, e em troca me sugeriu continuar

com o recolhimento
—Não posso —dedisse.
folhas.—Preciso falar com Florinda.
—Precisa falar com ela? — perguntou, como se eu tivesse enunciado algo
ridículo e insano. —Ela saiu para dar um passeio — explicou, e apontou com o dedo à
trilha que conduzia aos montes.
Consegui distinguir sua figura branca, que por momentos aparecia e logo
tornava a submergir‐se no chaparral.
—Eu a alcançarei — disse.
—Ela já está longe… — advertiu o cuidador.
—Isso não é problema.
Corri atrás de Florinda, e antes de alcançá‐la diminui meu passo para admirar a
elegância de seu andar, seus movimentos vigorosos, atléticos, realizados sem esforço,
com as costas
abruptamente e seretas.
virou, Quando percebeu
estendendo minha presença, Florinda se deteve
‐me as mãos.
—Como está, querida? — perguntou, sua voz clara, alegre e muito suave.

170
Em minha ansiedade por averiguar o referente ao anel, omiti saudá‐la como é
devido, e com palavras confusas perguntei‐lhe se havia sido ela quem colocou a jóia
em meu dedo.
—É minha agora? — perguntei.
—Sim, é sua por direito — respondeu, e havia algo em seu tom, uma
segurança, que por sua vez me emocionou e aterrorizou. E no entanto nem me
ocorreu recusar esse presente, sem dúvida valioso.
—Possui poderes mágicos? — perguntei, deixando que a luz realçasse o brilho
de cada pedra.
—Não — respondeu rindo. —Não possui nenhum tipo de poder, apesar de ser
um anel muito especial. Não por seu valor, ou porque tenha pertencido a mim, e sim
porque a pessoa que o fez era alguém muito especial.
—Era joalheiro? A mesma pessoa que fez essas estranhas figuras que estão no
quarto do cuidador?
—A mesma, mas não era joalheiro, e tampouco escultor, e teria rído se alguém
o chamasse de artista. Sem dúvida, quem via sua obra não podia deixar de proclamá‐lo
como tal, pois unicamente um artista podia ter produzido as maravilhas que ele
produziu.
Florinda se afastou uns passos e deixou vagar seu olhar pelos montes, como se
a distância contivesse memórias que ela necessitava. Depois, devolvendo‐me sua
atenção, e numa voz apenas audível, revelou que tudo o que fazia esse nagual, fosse
um anel, uma parede de tijolos, lajotas para o piso, as invenções maravilhosas ou uma
simples caixa de papelão, se convertia em uma peça esquisita, não só em termos de
maravilhoso artesanato, e sim pela marca inefável com a qual os imbuía. Insisti que se
o anel havia sido confeccionado por um indivíduo tão extraordinário, devia possuir
algum tipo de poder.
—O anel em si não possui poder algum — assegurou Florinda — independente
de quem o fez. O poder participou de sua gestação. O nagual estava tão intimamente
compenetrado com o que os feiticeiros chamam de intento, que pôde confeccionar
este lindo anel sem ser joalheiro. O anel representa um ato de puro intento.

a menor Resistindo
idéia doaque
mostrar me como
ela queria estúpida,
significar não
com me animei
intento, a admitir
de modo queque
menão tinhaa
limitei
perguntar‐lhe o que a havia movido a fazer‐me tão maravilhoso presente.
—Não creio merecê‐lo — acrescentei.
—Usará o anel para alinhar‐se com o intento — foram suas instruções,
acompanhadas por um sorriso perverso —, mas naturalmente você já sabe como fazer
esse alinhamento.
—Não sei nada desse assunto — respondi defensivamente, e em seguida
confessei minha ignorância sobre o tema.
—Talvez não conheça o significado da palavra, mas sua intuição sabe como
fazer uma conexão com essa força. — Aproximou sua cabeça à minha, e me fez saber
que eu sempre havia usado do intento para mover‐me dos ensonhos à realidade, ou
para fazer realidade
sem dúvida meu
esperando ensonho,
que fosse qual
eu chegasse fosse. Olhou
a conclusões ‐me edeao
óbvias, forma expectativa,
constatar minha
expressão desorientada, acrescentou:
—Tanto as invenções que viu no quarto do cuidador como o anel foram feitos
em ensonhos.

171
—Continuo sem compreender — lamentei‐me.
—As invenções te assustam, e o anel te encanta, e dado que ambos são
ensonhos poderia ser o oposto…
—Você me assusta, Florinda. O que quer dizer com isso?
—Este, querida, é um mundo de ensonhos. Te estamos ensinando a consegui‐
los por sua conta — manteve seus olhos escuros e brilhantes fixos nos meus por uns
instantes, e depois prosseguiu: —Neste momento todos os feiticeiros do grupo de
Mariano Aureliano te ajudam a entrar neste mundo, e também a permanecer nele… —
guardou silêncio uns momentos e depois concedeu que minha energia era agora maior
que antigamente. —Energia que vem de suas economias, e do empréstimo que todos
te fizemos. — Sua metáfora bancária era bem clara, mas ainda não compreendia sua
referência ao anel e ao quarto do cuidador.
—Olhe ao seu redor! — exclamou, estendendo os braços. —Este não é o
mundo cotidiano! — de novo observou um silêncio, desta vez longo, e depois
perguntou em voz baixa se no mundo dos afazeres diários era factível que as
mariposas se transformassem em anéis. —Um mundo — disse — seguro e
rigorosamente estruturado pelas regras que nos foram designadas não permite esses
prodígios.
Eu carecia de resposta. Olhei em volta: as árvores, os arbustos, as montanhas
distantes. Continuava me escapando sua dedução. O que ela queria indicar, concluí,
teria que ser algo puramente subjetivo.
—Não o é! — insistiu Florinda, lendo meus pensamentos. —Este é o ensonho
de um feiticeiro. É algo real. Você entrou nele pois possui a energia necessária.
Me observou resignada e disse:
—Não existem maneiras para ensinar à mulher a ensonhar. O único que se
pode fazer é apoiá‐las para que recebam o tremendo potencial de que dispõe seu
organismo.
“Posto que para uma mulher o ensonhar é questão de dispor de energia, o
importante é convencê‐la da necessidade de modificar sua profunda socialização a fim
de adquirir essa energia. O ato de fazer uso dela é automático; as mulheres ensonham

ensonhos de feiticeiros
Confessou que no instante
uma que têm
questão sériaà sua disposição
acerca essa energia.”
dos ensonhos dos feiticeiros,
verificada em suas próprias experiências, era a dificuldade de imbuir às mulheres de
valor necessário para abrir novos caminhos. A maioria delas — e confessou ser uma
delas — prefere suas cadeias conhecidas ao terror do novo.
—O ensonhar é unicamente para mulheres valentes — me sussurrou ao ouvido.
Depois riu forte e agregou: —Ou para aquelas que não têm outra opção, pois suas
circunstâncias são intoleráveis, uma categoria à qual pertence a maioria do sexo
feminino, sem sabê‐lo.
O som de sua risada rouca teve um raro efeito em mim, algo assim como se
tivesse despertado de um longo sono e recordado algo esquecido enquanto dormia.
—Isidoro Baltazar me falou da iminente partida. Quando é que partem?

infinita —Ainda
tristeza. não
—Suavou a parte
mestra de alguma —edisse
ensonhos com voz firme,
eu ficaremos. O restomas tingida por uma
se dissipa.
Não compreendi o significado de sua explicação, e visando ocultar minha
confusão recorri a um comentário jocoso.

172
—Em três anos minha mestra de ensonhos, Zuleica, não me dirigiu a palavra.
Você e Esperanza são as únicas que me têm guiado e ensinado.
As gargalhadas de Florinda reverberaram em torno de nós, um som alegre que
por sua vez me produziu um intenso alívio e desconcerto.
—Explique‐me algo, Florinda. Quando me deu este anel? Como é que passei de
recolher folhas a possuir esta beleza?
O rosto de Florinda resplandecia de contentamento ao explicar que o
recolhimento de folhas pode muito bem ser tomado como um dos acessos ao ensonho
dos feiticeiros, sempre e quando se dispunha da suficiente energia como para cruzar o
umbral.
Tomando minha mão acrescentou:
—Eu te dei o anel enquanto estava cruzando, e no entanto sua mente não
registrou o feito. De repente, quando já estava dentro do ensonho, o descobriu em seu
dedo.
Olhei‐a com curiosidade. Havia algo incompreensível em sua explicação, algo
vago e confuso.
—Regressemos à casa — sugeriu — e cruzemos de novo esse umbral. Talvez
agora o reconheça.
Voltamos sem pressa pelo mesmo caminho, aproximando‐nos da casa por trás.
Eu tomei a dianteira para ter a perfeita noção de tudo, e com olhos bem alertas,
inspecionei as árvores, as lajotas e as paredes em busca de algum indício de mudança,
ou algo que me permitisse interpretar a transição. O único ponto destacável acabou
sendo a ausência do cuidador, e quando me virei para informar a Florinda que nada
havia percebido a respeito da transição, ela já não estava ali. Havia desaparecido,
deixando‐me sozinha.
Entrei na casa, e mais uma vez a encontrei vazia, mas esta sensação de solidão
já não me assustava. O temor do abandono havia perdido sua validade.
Automaticamente me encaminhei à cozinha e comi os tamales de frango que haviam
sobrado dentro de um cesto. Depois busquei minha rede e tentei por ordem em meus
pensamentos.

Olhei aoAo redor,
despertar encontrei me
desesperada, em sobre
busca uma camaexplicação,
de uma num quartoe pequeno e escuro.
ao detectar umas
sombras grandes que se agitavam perto da porta, me levantei. Em meu afã entre
descobrir se a porta estava aberta, e com as sombras dentro do quarto, busquei o
pinico sob a cama que, de alguma maneira, sabia que se encontrava ali, e o joguei. O
pinico caiu do lado de fora, rasgando o silêncio com seu ruído.
As sombras desapareceram, e para assegurar‐me de que não foram simples
produto de minha imaginação, abandonei o recinto. Desorientada, fixei a vista no alto
cercado de algarobo, e de repente reconheci estar na parte posterior da casa pequena.
Tudo isto ocupava minha mente enquanto buscava o pinico, que havia rodado até
alcançar o cercado de algarobo.
Quando me inclinei para recuperá‐lo, um coiote se aproveitou para escapulir, e
num gesto
animal, automático
indiferente ao eu o joguei.
ruído O pinico
e à minha errou oprosseguiu
presença, alvo e repicou
seu numa pedra,
caminho, mas oa
e teve
audácia de virar várias vezes a cabeça para olhar‐me. Sua pele tinha o brilho prateado,
e sua espessa cauda, convertida em varinha mágica, despertava cada pedra ao tocá‐la,

173
e estas, ao adquirir vida, lábios falantes e olhos que brilhavam, formulavam estranhas
perguntas em vozes demasiado frágeis para ser escutadas.
Meu alarme se fez grito, enquanto as pedras se aproximavam velozes. De
imediato soube que estava ensonhando.
—Este é um de meus costumeiros pesadelos — murmurei. —Com seus
monstros, seus medos e todos os demais.
Convencida de que uma vez reconhecido e enunciado o problema seus efeitos
eram neutralizados, me resignei a viver o terror do pesadelo, quando ouvi a uma voz
dizer: —Tente o caminho dos ensonhos.
Ao virar‐me encontrei a Esperanza parada sob a ramada, cuidando de um fogo
acendido sobre uma plataforma elevada, feita de varas e revestida de barro, e sob cuja
luz ela se mostrava estranha e distante, separada de mim por uma distância em nada
relacionada com o espaço.
—Não tenha medo — ordenou, e depois em voz mais baixa —, todos
compartilhamos nossos ensonhos, mas agora não está ensonhando — declaração que
precisou repetir ao ver a dúvida estampada em meu rosto.
Cheguei mais perto dela. Não só sua voz havia perdido seu toque familiar, assim
como ela mesma parecia diferente. De onde eu me encontrava era Esperanza, apesar
do qual se parecia com Zuleica. Ao me aproximar mais comprovei que era Zuleica,
jovem, forte e linda, com não mais de quarenta anos. Seu rosto ovalado tinha por
marco cabelos negros e ondulados, que começavam a ficar grisalhos, com um
semblante pálido e coroado por olhos escuros e úmidos, bem separados um do outro,
e seu olhar abstraído, enigmático e muito puro. Seu lábio superior, muito fino,
insinuava severidade, enquanto o inferior, quase voluptuoso, falava de doçura e
também de paixão.
Fascinada pela mudança operada nela não pude tirar os olhos de cima dela, e
concluí que, sem dúvida, ensonhava. Seu riso revelou que havia lido meus
pensamentos. Pegou minha mão e me falou com doçura:
—Não está ensonhando, querida. Este é meu verdadeiro eu. Sou sua mestra de
ensonhos, sou Zuleica. Esperanza é meu outro eu. Os feiticeiros o chamam “o corpo

energético
Meuou o corpobatia
coração de ensonhos”.
com uma violência tal que me doía o peito, e a ansiedade e
a agitação por pouco me afogaram. Tentei retirar minha mão, que ela retinha com tal
firmeza que não pude quebrar. Fechei os olhos com força, pois mais que nada não
desejava vê‐la ao abri‐los novamente mas, é claro, ali estava, com os lábios abertos
num radiante sorriso. Fechei de novo os olhos e saltei socando o ar como se tivesse
ficado louca, e com minha mão livre me esbofeteei repetidas vezes até causar‐me
intensa dor. De nada serviu; não conseguia despertar. Cada vez que abria os olhos foi
para me ver de frente a ela.
—Me parece que já teve o bastante — disse rindo, quando lhe ordenei que me
golpeasse, e apesar disso me obedeceu, administrando‐me dois fortes golpes na parte
superior de meus braços com seu bastão.

fundo e—De nada


soltou serve,
minha querida
mão. —Não — está
disseensonhando,
com uma voze que soava
eu sou cansada;
Zuleica, massuspirou
quando
ensonho sou Esperanza e algo mais também, mas melhor deixarmos isso para outra
oportunidade.

174
Eu queria dizer algo, não importava o que, mas não podia falar. Minha língua
estava paralisada, e só emiti um lamento mirrado. Procurei relaxar‐me mediante certo
modo de respirar aprendido numa aula de yoga. Meus esforços lhe causaram graça, e
sua risada surtiu o efeito de acalmar‐me, tal era seu calor e a confiança que irradiava.
Instantaneamente meu corpo se relaxou.
—Você é uma espreitadora, e por direito pertence à Florinda — disse, e sua voz
não admitia discussão ou contradição. —Também é sonâmbula e uma grande
ensonhadora natural, e em virtude disso também pertence a mim.
Gostaria de ter rido e dizer‐lhe que estava completamente louca, porém outro
aspecto meu estava em completo acordo com sua declaração.
—Como quer que eu lhe chame? — perguntei.
—Como quero que me chame? — repetiu, olhando‐me como se a pergunta
fosse absurda. —Eu sou Zuleica. O que acha que é isto? Um jogo? Aqui não nos
dedicamos aos jogos.
Surpreendida por sua veemência, apenas me ocorreu murmurar que não havia
pensado que fosse um jogo.
—Quando ensonho sou Esperanza — continuou. Ela parecia séria, mas ao
mesmo tempo radiante, a voz incisiva e intensa. —Quando não ensonho sou Zuleica,
mas ser Esperanza, Zuleica ou qualquer outra não diz respeito a você. Sigo sendo sua
mestra de ensonhos.
Só pude assentir com um desvaído movimento de cabeça. Ainda se tivesse tido
algo para dizer não teria podido fazê‐lo. Senti que um suor frio me escorria pelo corpo,
minhas entranhas se afrouxaram e minha bexiga estava a ponto de estourar. Queria ir
ao banheiro para aliviar‐me e vomitar. Não pude resistir; era questão de me
emporcalhar ali mesmo ou correr ao toalete. Por sorte reuni a suficiente energia para
optar pelo último. A risada juvenil de Zuleica me acompanhou por todo o trajeto.
Quando voltei me convidou a sentar‐me junto a ela em um banco de madeira.
Obedeci automaticamente, sentando‐me na borda e pregando minhas mãos nervosas
sobre os joelhos.
Em seus olhos se refletia uma dureza que, mitigada pela bondade, me levou à

certeza de que
autocontrole era, estampado
havia antes de tudo,
todoumseuexpoente
ser comde
umdisciplina
atrativo interna.
selo ao Seu implacável
mesmo tempo
fugidio e esotérico, mas não o esoterismo de comportamento oculto e furtivo, mas sim
o do misterioso e desconhecido, e por tal razão, cada vez que a via, a seguia como um
cachorro segue a seu dono.
—Hoje você experimentou duas transições — explicou. —Uma, do estado de
estar normalmente desperta ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta
a estar normalmente desperta. A primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda
um pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira.
Consegui dar um sorriso forçado.
—Mas ainda não sei o que foi que fiz. Não guardo memória de meus passos. As
coisas me acontecem, e me encontro em meio de um ensonho sem saber como
cheguei—Oali. normal é começar a ensonhar dormindo numa rede ou algum utensílio
similar, pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos
contato com o chão. O sólo nos captura, não esqueça disso. Suspendido assim, um
ensonhador novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de

175
ensonhar um ensonho a ensonhar desperto. Tudo isto, como já lhe disse Florinda, é
questão de energia. Assim que a tem, você voa.
“Agora seu problema será se conseguirá armazenar suficiente energia por você
mesma, pois os feiticeiros já não poderão emprestá‐la — e Zuleica elevou suas
sobrancelhas exageradamente antes de agregar: —Veremos. Eu tratarei de relembrar‐
lhe isso na próxima vez em que nós compartilharmos nossos ensonhos — e riu como
uma criança ao observar o desconcerto que refletia meu rosto.
—Como fazemos para compartilhar nossos ensonhos? — perguntei, buscando a
resposta nesses olhos incomparáveis, escuros e brilhantes, cujas pupilas irradiavam
uma intensa luz.
Em lugar de responder Zuleica adicionou um par de lenhas ao fogo que, ao
reavivar‐se, intensificou a luz circundante. Por um instante permaneceu imóvel, com
os olhos fixos nas chamas, como recolhendo a luz, e depois de dirigir‐me um breve e
pungente olhar, sentou‐se em cócoras e envolveu seus joelhos com seus fortes e
musculosos braços, e contemplando a escuridão, atenta ao crepitar do fogo, começou
a balançar‐se de lado a lado.
—Como compartilhamos nossos ensonhos? — repeti.
Zuleica deteve seu movimento oscilante, sacudiu a cabeça, e depois levantou a
vista, surpreendida, como se acabasse de acordar.
—Por agora me é impossível explicar isso. O ensonhar é incompreensível. Tem
que vivê‐lo, não discuti‐lo, assim como no mundo diário, onde antes de explicar ou
analisar algo tem que tê‐lo experimentado. — disse isto de maneira lenta e deliberada,
admitindo a importância de explicar os passos à medida que se davam. —Contudo, as
explicações são às vezes prematuras, e este é um desses casos. Algum dia verá o
sentido de tudo isto — concluiu, ao notar o desencanto que transmitia meu rosto.
Com um movimento rápido ficou de pé e voltou à contemplação do fogo, como
se seus olhos necessitassem nutrir‐se de sua luz. Sua sombra projetada pelas chamas
se fez enorme contra o teto e a parede da ramada, e sem sequer se despedir, recolheu
suas amplas saias e buscou o refúgio da casa.
Incapaz de mover‐me, fiquei pregada ao chão, apenas respirando à medida que

o ressoar de suas
—Não me sandálias se afastava.
deixe! — gritei aterrada —, há coisas que preciso saber.
Zuleica reapareceu de imediato.
—O que precisa saber? — perguntou em tom distraído.
—Sinto muito — me desculpei —, não foi minha intenção gritar. Achei que
havia entrado em um dos quartos — e meu olhar implorante esperou conseguir dela a
almejada explicação.
Não explicou nada, limitando‐se a repetir sua pergunta. Perguntei a primeira
coisa que me ocorreu:
—Falará de novo comigo quando eu voltar a lhe ver? — temerosa de que se
não falasse ela tornaria a desaparecer.
—Quando te ver de novo não estaremos no mesmo mundo de antes —
respondeu.
—Mas —Quem sabe
a pouco — oinsisti
que faremos
— vocêlá?
me disse que é minha mestra de ensonhos.
Não me deixe no escuro. Explique‐me as coisas. Não aguento mais este tormento;
estou partida em dois.

176
—Assim é — concordou. —Por certo está dividida — e me olhou com infinita
bondade —, mas isso se deve a que não abandona seus velhos hábitos. É uma boa
ensonhadora. O cérebro dos sonâmbulos possui um potencial formidável; isso é… se
você se decide a cultivar seu caráter.
Apenas escutei o que dizia. Tentei em vão por em ordem meus pensamentos.
Uma sucessão de imagens de acontecimentos não bem recordados desfilou por minha
mente com incrível rapidez, mas minha vontade não conseguia controlar sua ordem
nem sua natureza. Depois estas imagens se transformaram em sensações, as quais,
não obstante sua precisão, recusavam definir‐se, recusavam transformar‐se em
palavras ou nem sequer em pensamentos.
Obviamente consciente de minha incapacidade, o rosto de Zuleica se iluminou
com um sorriso.
—Todos, e a todo o momento, temos ajudado ao nagual Mariano Aureliano a
empurrar você à segunda atenção. Ali encontramos continuidade e fluidez, assim
como na vida diária. Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente
neles. No entanto, o que não podemos conseguir na segunda atenção é esmiuçar
nossa experiência para manejá‐la, nos sentirmos seguros e entendê‐la.
Enquanto falava eu pensava comigo: “Está perdendo seu tempo dizendo‐me
tudo isto… Não sabe por acaso que sou por demais estúpida para entender suas
explicações?”, mas ela continuou falando, sorrindo, obviamente sabendo que se eu
admitisse não ser muito esperta, isso equivaleria a também admitir que em algo eu
havia mudado; caso contrário, não me concederia tal fato nem a mim mesma.
—Na segunda atenção — continuou — ou como eu prefiro chamá‐la, quando
ensonhamos despertos, a pessoa deve crer que o ensonho é tão verdadeiro como no
mundo real. Em outras palavras, devemos aceder. Para os feiticeiros todo negócio
mundano ou extramundano está regido por seus atos irretocáveis, e detrás de todo
ato irretocável está o aceder, que não é aceitação passiva. O aceder inclui um
elemento dinâmico: inclui ação — e sua voz se fez suave, e havia em seus olhos um
brilho febril quando terminou dizendo: —No momento em que começamos a
ensonhar desperto se nos abre um mundo de incitantes e inexploradas possibilidades,

onde a última
momento em audácia se converte
que começa em realidade,
a aventura definitiva onde se espera
do homem, e oouniverso
inesperado. Esse é o
se converte
em um lugar de possibilidades e maravilhas ilimitadas.
Seguiu‐se a isto um longo silêncio, durante o qual Zuleica pareceu estar
ponderando suas próximas palavras.
—Com a ajuda do nagual Mariano Aureliano você chegou a contemplar o
resplendor dos surem — começou, com voz suave e séria —, essas criaturas mágicas,
que existem somente nas lendas dos índios, e que os feiticeiros podem ver unicamente
quando ensonham despertos ao nível mais profundo. São seres de outro mundo, que
brilham como seres humanos fosforescentes.
Em continuação me deu um boa‐noite e entrou na casa, e após um momento
de desconcerto corri atrás dela, mas antes de alcançar o umbral ouvi a voz de Florinda
dizendo:
—Não a siga!
A presença de Florinda me foi tão inesperada que precisei apoiar‐me contra a
parede até que as batidas de meu coração se normalizassem.
—Vem, faça‐me companhia — sugeriu.

177
Estava sentada no banco, alimentando o fogo, e a luz esquiva de seus olhos e a
brancura fantasmal de seus cabelos eram mais uma memória que uma visão. Deitei‐
me sobre o banco como se fosse o mais natural, e coloquei minha cabeça em sua saia.
—Nunca siga a Zuleica ou a nenhum de nós, a menos que se te peça que o faça
— advertiu Florinda, penteando meus cabelos com seus dedos. —Como você sabe
muito bem, Zuleica não é o que parece ser. Sempre é mais, muito mais que isso. Nunca
trate de defini‐la, pois quando achar ter esgotado todas as possibilidades, te fará em
pedaços ao ser mais do que você pode imaginar em suas mais delirantes fantasias.
—Eu sei — respondi, acompanhando minhas palavras com um suspiro de alívio.
Sentia que a tensão abandonava meu rosto e também meu corpo. —Zuleica é um
surem das montanhas do Bacatete — disse com absoluta convicção —, faz tempo que
conheço a existência dessas criaturas — e ao notar a surpresa no rosto de Florinda me
encorajei. —Zuleica não nasceu como qualquer ser humano. Ela foi estabelecida, foi
criada. É a própria encarnação da feitiçaria.
—Não… — e a contradição de Florinda foi enfática. —Zuleica nasceu, mas
Esperanza não. Pense neste enigma.
—Creio compreender — murmurei —, mas sou muito insensível e não posso
formular o que entendo.
—Vai indo por um bom caminho — comentou risonha. —Sendo como é,
normalmente insensível, deve esperar a estar bem desperta, cem por cento desperta,
para poder entender. Neste momento só alcança os cinquenta por cento. O segredo
está em permanecer em estado de consciência acrescentada, onde nada nos é
impossível compreender — e ao adivinhar minha intenção de interrompê‐la, cobriu
minha boca com sua mão. —Não pense nisso agora. Lembre‐se sempre que é
compulsiva, ainda que em estado de consciência acrescentada, e que seus
pensamentos não são profundos.
Ouvi que algo se movia nas sombras que os arbustos projetavam, e levantando‐
me exigi que, quem quer que fosse, se identificasse. Me responderam risos femininos.
—Não pode vê‐las — anunciou Florinda.
—E por que se escondem de mim?

—Não
não pode sesem
vê‐las escondem
a ajudade
dotinagual
— explicou Florinda
Mariano com um sorriso. —É só que você
Aureliano.
Não soube o que dizer. Por um lado, as palavras de Florinda tinham sentido,
apesar ao qual me encontrei meneando a cabeça num gesto negativo.
—Pode me ajudar a vê‐las?
—Mas seus olhos estão cansados — objetou Florinda —, cansados de ver em
excesso. Precisa dormir.
Deliberadamente mantive os olhos bem abertos, temerosa de perder o que
emergisse dos arbustos assim que eu diminuísse minha atenção, e fiquei olhando as
sombras e os arbustos sem poder determinar qual era qual, até cair num sono
profundo.

178
CAPÍTULO DEZOITO

O cuidador se encontrava cochilando sobre seu banco favorito à sombra do


sapoti. Sua atividade se havia reduzido a isso nos últimos dois dias. Já não varria os
pátios nem recolhia as folhas; em troca dedicava horas a dormitar ou contemplar os
arredores, como se tivesse um secreto entendimento com algo que só ele podia ver.
Tudo havia mudado na casa, e de maneira incessante me perguntava se não
tinha sido um erro de minha parte ter vindo visitá‐los. Como de costume me sentia
culpada e na defensiva, e dedicava meu tempo a dormir durante horas. Não obstante,
quando estava desperta, me perturbava comprovar que já nada era igual, e percorria a
casa sem um propósito fixo. Mas tudo era inútil. Algo parecia ter fugido dessa casa.
Um prolongado e sonoro suspiro do cuidador interrompeu minhas reflexões, e
já incapaz de conter durante mais tempo minha ansiedade, deixei o livro que lia, fiquei
de pé e, aproximando‐me, o convidei a recolher e queimar folhas. Minha pergunta
pareceu sobressaltá‐lo, mas não respondeu a ela. Era impossível captar a expressão de
seus olhos devido aos óculos escuros que usava, e não soube se permanecia ali à
espera de sua resposta ou se me afastava, e temendo que tornasse a dormir, liberei
minha impaciência para perguntar‐lhe se existia uma razão para ter abandonado a
coleta e a queima das folhas.
Desviou minha pergunta com uma própria.
—Tem visto ou escutado cair uma folha nestes últimos dois dias? — e tirando
as lentes escuras me perfurou com o olhar.
Seu porte e a severidade com que me falou, antes que as palavras em si, que
considerei ridículas, me moveram a dar‐lhe uma resposta negativa. Convidou‐me a
compartilhar seu banco, e aproximando‐se me sussurrou no ouvido:
—Estas árvores sabem exatamente quando devem desprender‐se de suas
folhas… — olhou ao redor como se temesse ser escutado, e em seguida acrescentou:
—E sabem que agora não é necessário.
—As folhas secam e caem, apesar de tudo — anunciei pomposamente. —É uma
lei da natureza.

própria,—Estas árvores as
não respeitam são
leismuito caprichosas — manteve, teimoso —, têm mente
da natureza.
—E o que é que as levou a não descartar suas folhas?
—Essa é uma boa pergunta — sussurrou, coçando sua barbinha em atitude
pensativa. —Lamento ainda não conhecer a resposta; as árvores não me disseram
pois, como já te falei, estas são árvores temperamentais — e antes que eu pudesse
responder me surpreendeu com algo totalmente inesperado: —Já preparou sua
comida?
A abrupta mudança de tema me desorientou. Admiti ter‐me preparado o
almoço, depois do qual se apoderou de mim um humor quase desafiante, que me fez
dizer:
—Não é que a comida me interesse tanto. Estou acostumada a comer o
mesmo,
espinhas dia
na após
cara, dia, e sesempre
viveria não fosse que —
disso… o chocolate e as nozes
depois abandonei me precaução,
toda produzissem
e
comecei a queixar‐me. Disse ao cuidador que desejava que as mulheres me falassem.

179
—Apreciaria de que me mantivessem a par do que está acontecendo, pois a
ansiedade está me matando — e ao descarregar‐me me senti melhor, muito aliviada.
—É verdade que se vão para sempre?
—Já partiram para sempre — informou o cuidador, que ao ver minha expressão
desconcertada, acrescentou: — Mas você já sabia, não é? Está falando só para puxar
conversa, não é verdade?
Antes que eu conseguisse me refazer do choque, perguntou num tom de
autêntica perplexidade:
—Por que isso te afeta? — e respondeu a si mesmo após uma pausa: —Já sei!
Já o tenho! Está furiosa porque levaram a Isidoro Baltazar com eles. — Deu‐me um
tapa nas costas como para enfatizar cada palavra, seu olhar me dizia que pouco lhe
importava que eu desembocasse em lágrimas ou em um de meus ataques de raiva.
Saber que carecia de público me serenou de imediato o ânimo.
—Isso eu não sabia — murmurei —, juro que não o sabia. — Senti meu rosto
exausto, dor nos joelhos e uma tremenda opressão no peito, e sentindo‐me próxima
de desmaiar, aferrei ambas as mãos ao banco.
As palavras do cuidador me chegaram de muito longe: —Ninguém sabe se
regressará, nem sequer eu. Minha impressão pessoal é que se foi com eles
temporariamente, mas voltará, se não logo, então algum dia. Essa é minha opinião.
Tentei descobrir em seus olhos algum sinal de fingimento, mas seu rosto
irradiava bondade e honestidade, e seus olhos brilhavam sinceros como os de uma
criança.
—Não obstante — advertiu o cuidador —, quando regressar, já não será Isidoro
Baltazar, o Isidoro Baltazar que você conheceu. Esse se foi, e sabe o que é o mais
triste? — e de novo, após uma pausa, respondeu sua própria pergunta. —Você o
aceitou como algo tão natural que nem sequer lhe agradeceu por seus cuidados, sua
ajuda e seu afeto por você. Nossa grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a
tudo salvo nossa bufonaria.
Eu me sentia oprimida demais até para emitir palavra. Com um de seus usuais
movimentos abruptos, o cuidador ficou de pé e caminhou em direção ao caminho que

conduzia à outra
permanecer casa. Diria se que era como se estivesse envergonhado demais para
comigo.
—Não pode me deixar aqui, sozinha! — gritei‐lhe.
Virou‐se para me fazer sinais com a mão, e depois começou a rir, com uma
risada alegre que ressoava no chaparral. Agitou sua mão pela última vez, e depois
desapareceu como se os arbustos o tivessem tragado.
Incapaz de segui‐lo, aguardei seu regresso, ou uma de suas súbitas aparições
para assustar‐me. Já estava me preparando para tal susto, intuído em meu corpo, mais
que antecipado mentalmente. Como já havia acontecido anteriormente, não vi nem
escutei a Esperanza aproximar‐se, ainda que tenha percebido sua presença. Eu me
virei, e ali estava, sentada no banco sob o sapoti, e o simples fato de vê‐la me encheu
de alegria.
—Pensei
isso. Pensei que nunca
que havia te veria de novo — suspirei. —Quase me havia resignado a
partido.
—Santo Deus! — comentou com um toque jocoso.
—Você é na verdade Zuleica?

180
—Nem sonhe isso. Sou Esperanza. E você, o que faz? Está se pondo maluca,
fazendo perguntas às quais ninguém pode responder?
Jamais em minha vida estive tão perto de um colapso total como nesse
momento. Senti que minha mente não aguentaria tanta pressão, e que minha angústia
e minha inquietação me destruiriam.
—Força, garota — ordenou Esperanza com dureza —, ainda falta o pior, mas
não podemos ter piedade contigo. Parar a pressão porque está por vir abaixo não é
coisa de feiticeiros. Seu desafio é o de ser posta à prova hoje. Ou vive ou morre, e não
o digo metaforicamente.
—Já não verei mais a Isidoro Baltazar? — perguntei através das lágrimas que
me tornavam difícil o falar.
—Não posso mentir para lhe evitar a dor. Não, nunca regressará. Isidoro
Baltazar é só um momento de feitiçaria. Um ensonho que passou depois de ser
ensonhado. Isidoro Baltazar, assim como o ensonho, já se dissipou.
Um leve sorriso, quase nostálgico, curvou seus lábios.
—O que ainda não sei é se este homem, o novo nagual, também se foi
definitivamente. Logicamente você entende que, mesmo se ele voltar, não será Isidoro
Baltazar. Será outra pessoa, que você terá que conhecer de novo.
—Será um desconhecido para mim? — perguntei não muito segura de querer
sabê‐lo.
—Não o sei, filha — respondeu com o desânimo próprio da incerteza. —
Sinceramente não o sei. Eu mesma sou um ensonho, como também o é o novo nagual.
Ensonhos como nós têm a marca de não ser permanentes, pois é nossa
impermanência o que nos permite existir. Nada nos retém exceto o ensonho.
Cegada por minhas lágrimas me era quase impossível vê‐la.
—Para aliviar sua pena afunde‐se em si mesma — aconselhou. —Sente‐se com
os joelhos elevados, tomando seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo
direito com a mão esquerda. Descansa sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena
se vá. Deixe que a terra te acalme, que sua força curativa venha a ti.
Sentei‐me no chão da maneira aconselhada, e num curto tempo minha tristeza

havia
de mimse mesma,
dissipado, substituída
salvo porcom
em relação umaosensação
momento corporal de bem
que estava estar.Desprovida
vivendo. Perdi a noção
de
minha memória subjetiva a dor não existia.
Com a mão, Esperanza assinalou o lugar junto a ela no banco, e assim que o
ocupei, ela pegou minha mão para esfregá‐la um momento, como se a estivesse
massageando. Depois comentou que por ser uma mão tão ossuda até que tinha
bastante carne. Virou a palma para cima e a estudou com detenção, para terminar,
sem dizer uma palavra, fechando‐a num punho. Permanecemos um longo período em
silêncio. Caía a tarde, e nada se escutava, além do rítmico som das folhas agitadas pelo
vento. Observando‐a, se apoderou de mim uma estranha certeza: sabia que Esperanza
e eu havíamos falado muito a respeito de minha vinda à casa e da partida dos
feiticeiros.
—O
—Bom…que está acontecendo
— rebateu, comigo,
e com olhosEsperanza?
chispantesEstou
me ensonhando?
recomendou submeter o
ensonho a uma prova. —Sente‐se no chão e comprove‐o.
Assim fiz, mas a única coisa que senti foi o frio da rocha sobre a qual me sentei.

181
—Não estou ensonhando — assegurei — em tal caso, por que sinto que já
falamos disso? — e estudei seu rosto a procura de algum indício que resolvesse meu
dilema. —Esta é a primeira vez que te vejo desde minha chegada, mas sinto que temos
estado juntas todos os dias — disse, mais para consumo próprio que para ser escutada
por Esperanza. —Já são sete dias.
—Muito mais que isso — respondeu —, mas é algo que precisa resolver
sozinha, com um mínimo de ajuda.
Manifestei meu acordo. Era muito o quê queria perguntar, mas sabia e aceitava
que falar seria inútil. Sabia, sem saber como o sabia, que já havíamos tocado em todos
esses temas, e que me encontrava saturada de respostas. Esperanza me observou
pensativa e duvidosa. Depois, muito lentamente, enunciando suas palavras com
cuidado, disse:
—Devo advertir‐lhe que a consciência que tenha adquirido, não importa quão
profunda e permanente te possa parecer a ti, é só temporária, e logo regressará às
suas bobagens. Essa é a sina de nós, mulheres: ser singularmente difíceis.
—Acho que está equivocada — protestei. —Não me conhece em absoluto.
—É precisamente porque te conheço que digo isto — e após uma pausa
acrescentou com voz áspera e séria: —As mulheres são muito astutas. Lembre‐se que,
ao ser criadas para ser serventes, elas se tornam extremamente furtivas e astutas — e
seu riso explosivo apagou qualquer desejo meu de protestar.
“O melhor que pode fazer é não dizer nada…” — disse, e tomando minha mão
me ajudou a pôr de pé, e sugeriu entrar na casa pequena para termos uma longa e
muito necessária conversa.
Não entramos na casa, e sim nos sentamos em um banco junto à porta
principal. Ficamos ali em silêncio quase uma hora, depois do qual Esperanza virou‐se
para mim. Parecia não ver‐me, e cheguei a perguntar‐me se não haveria esquecido que
eu tinha vindo com ela, e que me encontrava sentada ao seu lado. Sem reparar em
minha existência, ficou de pé para afastar‐se uns passos, olhar a outra casa, e depois
de um longo período dizer:
—Vou te levar longe.

provocouNãouma
poderia dizersensação
estranha se foi adesagradável
esperança, na
a excitação ou o temor
boca do estômago. o que
Sabia que me
ela
não se referia à distância em termos de milhas, e sim aludindo a outros mundos.
—Não me importa se é longe onde vamos — disse, bravata que estava longe de
sentir. Desesperadamente desejava saber, mas não me animava a perguntar qual seria
o destino final de nossa viagem.
Esperanza sorriu e abriu bem os braços, como para abraçar o sol poente que
morria num declínio em meio a um incêndio. As montanhas distantes eram de um
púrpura escuro, e uma leve brisa se infiltrava por entre as árvores fazendo mexer as
folhas. Seguiu uma hora silenciosa e depois tudo se deteve quando o encanto do
crepúsculo imobilizou o mundo ao redor. Cessaram todos os sons e cada movimento, e
os contornos dos arbustos, das árvores e das serras se viam definidos de maneira tão
precisaMe
queaproximei
se diria que
dehaviam sidoarecortados
Esperanza medida quecontra o céu. nos rodeavam, e o céu se
as sombras
desvanecia. A visão da outra casa, silenciosa, com suas luzes brilhando como vaga‐
lumes na escuridão, evocou em mim uma profunda emoção sepultada em meu

182
interior, e não ligada a nenhuma vivência de momento, e sim a uma vaga, triste e
nostálgica lembrança juvenil.
Devo ter estado profundamente imersa em meus pensamentos, pois de
repente me encontrei caminhando junto a Esperanza. Meu cansaço e anterior
ansiedade haviam desaparecido, e cheia de uma nebulosa sensação de vigor,
marchava em uma espécie de êxtase e de felicidade silenciosa, meus pés
impulsionados por algo superior à minha vontade.
Nosso caminho terminou abruptamente. O terreno era uma ladeira, e as
árvores se estendiam bem alto sobre nossas cabeças. Grandes rochas estavam
esparramadas aqui e ali, e de longe chegava o som de águas que corriam, som
parecido a um suave e reconfortante canto. Com um suspiro, repentinamente
fatigada, recostei‐me contra uma das rochas e desejei que este fosse o final de nossa
viagem.
—Não chegamos ainda ao nosso destino! — gritou Esperanza, que já,
movendo‐se com a agilidade de uma cabra, havia escalado a metade de um trajeto
rochoso. Não me esperou, nem sequer voltou seu olhar para constatar se eu a seguia.
Meu curto descanso me havia despojado de minha última fortaleza, e apenas
pude segui‐la com dificuldade, a respiração entrecortada, resvalando entre as pedras.
Na metade do caminho a trilha continuava contornando uma pedra enorme, e a
vegetação seca e quebradiça cedeu lugar a plantas frondosas, escuras na prematura
luz crepuscular. Também mudou o ar, agora úmido e para mim mais respirável.
Esperanza se movia com segurança pela estreita trilha cheia de sombras, silêncios e
sussurros. Conhecia os sons misteriosos da noite, e identificou em voz forte cada um
de seus gritos, chamados, coaxares e assobios. Uns degraus cortados na rocha, que
conduziam a um oculto montículo de pedras, interromperam nosso caminho.
—Recolha uma e guarde‐a em seu bolso — ordenou.
À primeira vista todas as pedras pareciam iguais, lisas como as de um córrego,
porém uma inspeção mais detalhada revelava suas diferenças. Algumas eram tão lisas
e brilhantes que pareciam ter sido lustradas. Me tomou tempo escolher uma de meu
gosto; pesada, mas que encaixava com perfeição na palma de minha mão; de uma cor

marrom
Um ruídoclaro, forma de cunha
me sobressaltou e entrecruzada
e quase soltei a pedra.por veias leitosas quase translúcidas.
—Alguém nos segue — adverti em voz baixa.
—Ninguém está nos seguindo! — respondeu Esperanza, entre incrédula e
divertida, e riu ao ver que me refugiava atrás de uma árvore. —Possivelmente seja um
sapo saltando entre o matagal.
Teria querido dizer‐lhe que os sapos não saltam na escuridão, mas não estava
muito certa disso, e me surpreendeu não tê‐lo dito espontaneamente, e com absoluta
certeza, como era habitual em mim.
—Algo anda mal em mim, Esperanza — disse, alarmada. —Não sou a de
sempre.
—Nada anda mal, querida — me assegurou. —Na verdade é mais você mesma
que nunca.
—Me sinto estranha… — e minha voz se perdeu. Pela primeira vez desde minha
chegada à casa das bruxas começava a perceber uma configuração reconhecível no
que estava me acontecendo.

183
—É muito difícil ensinar algo tão insubstancial como ensonhar — disse
Esperanza. —Especialmente às mulheres, que somos tão preparadas e esquivas. Além
do mais, temos sido escravas toda a vida, e sabemos manipular muito bem as coisas
quando não queremos que nada transtorne aquilo pelo qual tanto temos trabalhado:
nosso status quo.
—Quer dizer que os homens não fazem o mesmo?
—Eles o fazem, contudo são mais abertos. As mulheres lutam com
subterfúgios. Sua técnica preferida é a manobra do escravo: desconectar a mente.
Escutam sem prestar atenção, e olham sem ver. — Acrescentou que ensinar à mulher
era tarefa digna de elogios.
—Nós gostamos da franqueza de sua forma de lutar, e temos muitas
esperanças em ti. O que mais tememos é à mulher agradável, que não se opõe ao novo
e faz tudo o que lhe pedem, para depois se recriminar assim que se aborrece da
novidade.
—Acho que começo a compreender — respondi, um tanto insegura.
—Mas é claro que começou a compreender! — e sua segurança era tão
comicamente triunfalista que provocou risos em mim. —Inclusive começou a entender
o que é o intento.
—Quer dizer que começo a ser uma feiticeira? — perguntei, e todo meu corpo
se sacudiu quando tratei de evitar o riso.
—Desde sua chegada tem estado, por momentos, ensonhando desperta. É por
isso que você dorme com tanta facilidade — e apesar de sorrir não havia em seu rosto
sinal algum de ironia ou condescendência.
Caminhamos um tempo em silêncio, e depois ela disse que a diferença entre
um feiticeiro e uma pessoa comum era que o feiticeiro podia voluntariamente entrar
num estado de ensonhar desperto. Tocou meu braço repetidas vezes, como para
enfatizar suas palavras, e então acrescentou num tom confidencial:
—E ensonha desperta porque, para ajudar‐lhe a aguçar sua energia, criamos
uma bolha em torno de ti desde a primeira noite que chegou aqui.
Acrescentou que desde que me conheceram me haviam dado o sobrenome de

fosforita.
me ordenou—Você se queima
tranquilizar‐me,rápido demais
e opinou e de
que eu forma
não sabiadesnecessária.
enfocar minha—energia.
Com um gesto
—Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti mesma. — de novo seu
gesto ordenou silêncio, e disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na
realidade só uma idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia
defendendo essa idéia.
As sobrancelhas de Esperanza se elevaram um pouco quando sorriu e disse:
—O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que
pode ser mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos.
Quando se afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar‐se com o
intento, e ser mais do que acreditamos constituir o normal.
—As mulheres, por possuir um útero, podem enfocar sua atenção com grande
facilidade em algo
que você vem fora todo
fazendo de seus
esteensonhos enquanto
tempo sem sabê‐lo.ensonham.
Esse objetoIsso é precisamente
se converte em umao
ponte que te conecta com o intento.
—E qual objeto eu uso?

184
Captei um toque de impaciência em seus olhos. Depois disse que usualmente
era uma janela, uma luz ou ainda uma cama.
—É tão destra nisso que o consegue naturalmente — assegurou. —Por isso tem
pesadelos. Tudo isso eu lhe disse estando você num profundo estado de ensonhar
desperta, e você entendeu que, sempre e quando recuse enfocar sua atenção em
qualquer objeto antes de adormecer, conseguirá evitar os pesadelos. Está curada, não
é mesmo?
É claro que minha reação inicial foi contradizê‐la, mas depois de pensar um
segundo não pude fazer menos que estar de acordo. Após conhecer a esta gente em
Sonora havia ficado relativamente livre de pesadelos.
—Nunca estará verdadeiramente livre se persistir em ser a mesma de sempre
— declarou. —É óbvio que o que deveria fazer é explorar seus talentos para ensonhar
de maneira deliberada e inteligente. Para isso está aqui, e a primeira lição é que a
mulher deve, através de seu útero, enfocar sua atenção sobre um objeto. Não um
objeto de ensonho em si, e sim um objeto independente, pertencente ao mundo
anterior ao ensonho.
—Contudo — complementou —, não é o objeto o que importa, e sim o ato
deliberado de enfocá‐lo à vontade, antes e durante o ensonho. — Advertiu‐me que
apesar de parecer simples, tratava‐se de uma tarefa formidável, que poderia levar‐me
anos para dominá‐la. —O que normalmente acontece é que a pessoa desperta no
instante em que enfoca sua atenção num objeto externo.
—O que significa usar o útero? — perguntei. —E como se consegue?
—Você é mulher, e sabe sentir com o seu.
Desejava contradizê‐la, dizer‐lhe que não tinha a mais remota idéia, mas antes
que pudesse fazê‐lo, ela explicou que na mulher o sentir emana do útero.
—No homem se srcina no cérebro — e depois de dar‐me um suave golpe no
estômago me recomendou pensar sobre isto. —A mulher é desapiedada exceto com
sua prole, pois seus sentimentos vêm do útero. Para enfocar sua atenção através do
útero coloque um objeto sobre seu estômago, ou esfregue‐o com seu órgão oco — e
riu com gosto ao observar a expressão de meu rosto. Então, entre risos, me

repreendeu:
objeto —E secreções,
com suas olha que não
masfui tão
não má.Uma
o fiz. Podia
vezdizer lhe que era
estabelecida umanecessário untar o
estreita afinidade
com o objeto — continuou, agora séria —, sempre estará presente para servir‐lhe
como ponte.
Caminhamos um trecho em silêncio, ela parecendo profundamente imersa em
seus pensamentos. Eu fervia por dizer algo, apesar de saber que nada tinha para dizer.
Quando Esperanza finalmente falou, seu tom era sério.
—Já não lhe sobra tempo para desperdiçar. É muito natural que devido à nossa
estupidez nós fodemos com as coisas, e isto os feiticeiros o sabem melhor que
ninguém. Mas igualmente sabem que não existem segundas oportunidades. Deve
aprender controle e disciplina, pois já não há margem para erros.
—Você fodeu a si mesma, sabia? — disse ela. —Nem sequer sabia que Isidoro
BaltazarOhavia
diquepartido.
etéreo que continha a avalanche de sentimentos se desmoronou.
Reapareceu minha memória, e de novo me dominou a tristeza, fazendo‐se tão intensa
que nem me dei conta de ter‐me sentado e estar afundando‐me no chão como se este
fosse de esponja. Em última instância o sólo me tragou. Não resultou ser uma

185
experiência sufocante ou claustrofóbica, pois a sensação de estar sentada na superfície
coexistiu com a de ser tragada pela terra, uma sensação dual que me fez gritar: “Estou
ensonhando!”, e este anúncio em voz alta desatou algo dentro de mim, uma nova
avalanche de memórias diferentes me invadiu.
Cada noite, desde minha chegada, havia ensonhado o mesmo ensonho, o qual
até esse momento havia esquecido. Ensonhei que todas as feiticeiras vinham ao meu
quarto para instruir‐me, e me diziam uma e outra vez que ensonhar era a função
secundária do útero, sendo a primeira a reprodução e tudo o relativo a ela. Me
disseram que ensonhar era nas mulheres uma função natural, um puro corolário de
energia. Dotado de suficiente energia o corpo da mulher, por si só, desperta as funções
secundárias do útero, e a mulher ensonha ensonhos inconcebíveis.
Não obstante, essa energia necessária se assemelha à ajuda a países
subdesenvolvidos: nunca chega. Algo na ordem geral de nossa estrutura social impede
que essa energia se libere para que as mulheres possam ensonhar. Segundo as
feiticeiras, se essa energia fosse liberada de uma forma clara e tangível, derrubaria a
ordem “civilizada” das coisas. A grande tragédia da mulher é que sua consciência social
domina por completo a individual. A mulher teme ser diferente, e não gosta de
afastar‐se por demais da comodidade do conhecido. As pressões sociais às quais se
vêem submetidas para não se afastar são simplesmente fortes demais, e ao invés de
mudar se rendem ao estabelecido: a mulher existe para estar a serviço do homem, e
portanto não pode ensonhar ensonhos de feiticeiros, apesar de possuir a disposição
orgânica para isso.
O feminismo tem destruído as oportunidades da mulher, e quer seja por seu
apego religioso ou científico, marca‐as por igual com o mesmo selo: sua principal
função é reproduzir, e em última análise, pouco importa se a mulher tenha alcançado
um nível de igualdade política, social ou econômica.
As mulheres me repetiam isto cada noite, e quanto mais recordava e entendia
suas palavras, maior era minha tristeza; não só a título pessoal como por todas nós,
uma raça de seres esquizofrênicos aprisionada em uma ordem social que nos amarra
às nossas próprias incapacidades. Se conseguimos nos libertar, é somente por

momentos,
ou uma claridade
deliberadamente, em umefêmera
poço devivida antes de cair de novo, de forma involuntária
obscuridade.
Escutei uma voz que dizia “basta com essa faxina sentimental”, uma voz de
homem que percebi ser a do cuidador, que me olhava.
—Como chegou aqui? — perguntei, perplexa e um pouco confusa. —Você
estava me seguindo? — a qual, mais que uma pergunta, era uma acusação.
—Sim, eu venho seguindo a você em especial — e me presenteou com um de
seus olhares maliciosos.
Estudei seu rosto. Não acreditava nele; sabia que estava brincando, apesar do
qual não me aborrecia ou assustava essa intensa luz que irradiavam seus olhos.
—Onde está Esperanza? — perguntei ao comprovar que havia desaparecido. —
Onde…? — não pude superar o gaguejo. As palavras se recusavam a sair.
—Anda
seu mestre. Estápor
emaíboas
— respondeu
mãos. com um sorriso. —Não fique aflita. Eu também sou
Vacilante lhe estendi uma mão, e sem esforço algum ele me ajudou a trepar
numa rocha plana, situada sobre uma pequena lagoa ovalada, que era alimentada por
um riacho de sons relaxantes, vindo de algum ponto entre as trevas.

186
—E agora tire suas roupas — ordenou. —É hora de seu banho cósmico!
—Meu quê? — e certa de que se tratava de uma piada comecei a rir.
Não era piada. Me deu uma série de golpezinhos no braço, tal qual fazia
Esperanza, e repetiu a ordem. Antes que eu me desse conta de seus atos ele já havia
desatado os cordões de meu calçado.
—Não temos muito tempo — me admoestou, fixando‐me com seu olhar frio,
clínico e impessoal, como se eu fosse o sapo ao qual havia aludido Esperanza.
A simples idéia de introduzir‐me nessas águas frias e escuras, sem dúvida
infestadas por todo tipo de pestes viscosas, me horrorizava, e com ânimo de por fim a
tão ridícula situação me deslizei pela pedra e meti os dedos na água. —Não sinto nada!
— gritei, retrocedendo atemorizada. —O que acontece? Isto não é água!
—Não seja infantil. Naturalmente que é água, só que você não a sente.
Abri a boca para lançar um insulto, mas consegui me frear a tempo. Meu horror
havia desaparecido.
—Por que não sinto a água? — perguntei numa tentativa de ganhar tempo,
apesar de saber que esse era um truque inútil, e que terminaria metendo‐me nessas
águas, quer eu as sentisse ou não. Contudo, não era minha intenção ceder com tanta
facilidade. —É este algum tipo de fluido purificador? — perguntei.
Após um longo silêncio, carregado de possibilidades ameaçantes, admitiu que
poderia chegar a dizer‐se que se tratava de um líquido purificante.
—Não obstante — disse —, devo advertir‐lhe que não existe ritual capaz de
purificar a ninguém. A purificação deve vir de dentro; é uma luta privada e solitária.
—Então por que quer que me meta nesta água que é viscosa, ainda que não a
sinta? — perguntei do modo mais irado possível.
Seus lábios se moveram num indício de riso, mas manteve a seriedade.
Anunciou que mergulharia comigo, e sem mais trâmites se desnudou por completo.
Parou frente a mim, a pouca distância, totalmente nu, e nessa estranha e indefinida luz
pude reconhecer cada centímetro desse corpo, cuja nudez não tentou dissimular. Ao
contrário, parecia orgulhoso ao extremo de sua masculinidade, a qual exibia com
desafiante insolência.

—Apresse
—Não fareiseisso.
e tire as roupas.
É coisa Não temos muito tempo — insistiu.
de louco!
—Você fará. É uma decisão que você mesma tomará — e se bem que o disse
com veemência, não demonstrou raiva. —Esta noite, neste mundo estranho,
entenderá que só lhe enquadra um tipo de comportamento: o dos feiticeiros.
Com um sorriso destinado a trazer‐me tranquilidade, porém sem sucesso, me
disse que o mergulho me sacudiria, modificando algo dentro de mim.
—Esta mudança lhe servirá mais adiante, para entender o que somos e o que
fazemos.
Um sorriso passageiro iluminou seu rosto quando se apressou a esclarecer‐me
que o mergulhar nessas águas não me proporcionaria energia para ensonhar desperta
por minha conta. Preveniu‐me que transcorreria muito tempo até que eu acumulasse
egarantias
aguçassenominha
mundoenergia, e que talvez
dos feiticeiros nunca
— disse, chegaria
e depois a consegui
concedeu ‐lo.talvez
que —Não existem
a imersão
desviasse minha atenção das preocupações diárias, as esperadas de uma mulher de
minha idade e de meu tempo.
—É este um lago sagrado? — perguntei.

187
Arqueou as sobrancelhas, revelando surpresa.
—É um lago de feiticeiros — explicou, olhando‐me fixo. Ele deve ter percebido
que minha decisão já estava tomada, pois passou a desatar meu relógio de pulso para
então colocá‐lo no seu. —Não é sagrado e nem o oposto — disse. —Agora olhe seu
relógio. Tem sido seu durante muitos anos. Sinta‐o em meu pulso… — soltou uma
gargalhada contida, ameaçou dizer algo e preferiu se calar. —Bom, vamos, tire a
roupa.
—Acho que vou entrar com roupa — murmurei.
Apesar de não ser nenhuma puritana, resistia à idéia de exibir‐me desnuda ante
ele. Assinalou que eu precisaria de roupas secas para quando saísse da água.
—Não quero que pegue uma pneumonia — disse enquanto um sorriso malvado
assomava em seus olhos. —Isto é água de verdade, apesar a que não a sinta assim.
De má vontade tirei a camisa e os jeans.
—Suas calcinhas também — ordenou.
Caminhei pela borda do lago perguntando‐me o que seria melhor, se atirar‐me
e acabar de uma vez por todas com a questão, ou molhar‐me aos poucos, recolhendo
a água em minhas mãos para deixar que se escorresse por meus braços, pernas e
estômago, e por último sobre o coração, tal qual havia visto fazer as velhas na
Venezuela antes de meter‐se ao mar.
—Aqui vou eu! — gritei, mas antes de saltar me virei para olhar ao cuidador.
Sua imobilidade me assustou. Parecia ter se convertido em pedra, tão quieto e
ereto sobre o penhasco. Apenas seus olhos pareciam ter vida, brilhando de maneira
estranha sem haver uma luz que o justificasse, e me surpreendeu, antes que
entristeceu, ao ver lágrimas rolarem por suas bochechas. Sem saber por que, eu
também comecei a chorar em silêncio. Pensei que suas lágrimas chegavam e se
introduziam em meu relógio colocado em seu pulso. Senti o atemorizante peso de sua
convicção, e de repente, vencidos meu temor e minha indecisão, me joguei na água.
Não era espessa, e sim transparente como a seda. Não senti frio, e tal qual
aduziu o cuidador, tampouco senti a água. Na verdade não senti nada. Era como se eu
fosse uma consciência incorpórea, que nadava no centro de um espelho aquático ao

qualimpulsionei
me sentia ser líquido mascomo
para cima, não molhado.
um peixe Percebi umaímpeto,
procurando luz quepara
emanava
depoisdomergulhar
fundo, e
em busca dessa luz. Quando ressurgi necessitada de ar, perguntei:
—Que profundidade tem este poço?
—A mesma que ao centro da Terra — respondeu a voz clara e potente de
Esperanza, com tal segurança que, somente para ser fiel a mim mesma, a quis
contradizer. Contudo, certa inquietude que flutuava no ar me impediu: uma calma
artificial, uma tensão de súbito quebrada por um som raspante, um sussurro que
advertia que algo estava errado.
De pé no exato lugar antes ocupado pelo cuidador se encontrava Esperanza,
totalmente nua.
—Onde está o cuidador? — perguntei alarmada.
—Eu sou o cuidador
Convencida de que —ambos
respondeu.
me faziam vítima de uma horrenda piada, me
aproximei, graças a fortes braçadas, à rocha sobre a qual se encontrava Esperanza.
—O que está acontecendo? — perguntei, minha voz ainda frágil por causa do
esforço realizado.

188
Tranquilizando‐me com um gesto, aproximou‐se com esse andar
desengonçado, tão característico nela, e depois exibiu meu relógio.
—Sou o cuidador — repetiu.
Aquiesci automaticamente, mas em seguida, frente a mim, em lugar de
Esperanza surgiu o cuidador, despido como antes, assinalando meu relógio. Não olhei
o relógio; minha atenção se centrou em seus órgãos sexuais. Estendi minha mão para
tocá‐los, para descobrir se era hermafrodita. Não o era. Segui tentando, e senti, mais
que vi, como seu corpo se dobrou dentro de si, e que o que eu tocava era uma vagina.
Separei os lábios vaginais para assegurar‐me que dentro dela não estivesse oculto um
pênis.
—Esperanza… — consegui dizer, e minha voz se desvaneceu quando algo se
prendeu à minha garganta.
Tive consciência de que as águas se abriam e que algo me atraía em direção às
profundezas da lagoa. Senti frio, não um frio físico, e sim algo mais como a sensação
de falta de calor, de luz e de som, nesse mundo misterioso do lago.
Me despertou um suave ronco; Zuleica dormia ao meu lado sobre uma esteira
desdobrada no chão. Estava bonita como sempre, jovem, forte, e ao mesmo tempo
vulnerável, apesar da harmonia e do poder que exalava, diferente das outras
feiticeiras. A observei um momento para depois levantar‐me, quando os
acontecimentos da noite me aturdiram. Queria sacudi‐la, despertá‐la e exigir que
explicasse o acontecido, quando notei que já não estávamos junto à lagoa na
montanha, e sim no lugar exato onde estivemos sentadas anteriormente, junto à porta
principal da casa das bruxas. Perguntando‐me se tudo não havia sido mais que um
sonho, sacudi com suavidade seu ombro.
—Ah, já despertou… — murmurou.
—O que aconteceu? Tem que me contar tudo.
—Tudo? — repetiu, com um bocejo.
—Tudo o que aconteceu junto ao lago — rebati impaciente.
Bocejou de novo, riu, e estudando meu relógio (que continuava em seu pulso),
disse que algo em mim havia mudado mais além do antecipado.

—O mundo
almas tímidas dos feiticeiros
— explicou. dispõe de
—Os feiticeiros uma barreira
necessitam natural
de uma forçaque dissuade
tremenda as
para
poder manejá‐lo. Está povoado por monstros, dragões voadores e seres demoníacos,
que naturalmente não são outra coisa que energia impessoal. Nós, impelidos por
nosso medo, convertemos essa energia em seres infernais.
—Mas o que houve com Esperanza e o cuidador? — interrompi. —Ensonhei
que ambos eram na verdade você.
—Eles são — respondeu, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. —
Acabei de lhe dizer. Você mudou mais do que eu antecipei, e entrou no que os
ensonhadores chamam ensonhar em mundos que não são este.
—Você e eu ensonhávamos em um mundo diferente, e por isso não sentia a
água. Aquele é o mundo onde o nagual Elías encontrou todas suas invenções. Nesse
mundo se apode
invenções esteser homem
mundo, eu ou mulher,
trago e assimou
a Esperanza como o nagualou
o cuidador, Elías trouxeminha
melhor, suas
energia impessoal o faz.
Eu não conseguia traduzir meus sentimentos ou pensamentos em palavras: me
dominava uma incrível necessidade de fugir aos gritos, que não podia transformar em

189
ação. Meu controle motriz já não era voluntário, e em meu intento de pôr de pé e
gritar, desabei.
A Zuleica não lhe comoveu nem preocupou minha condição. Seguiu falando
como se meus joelhos não tivessem cedido, como se eu não estivesse esparramada
pelo chão igual a uma boneca de trapo.
—É uma boa ensonhadora. Afinal de contas, passou a vida sonhando com
monstros. Agora é chegado o momento de adquirir a energia para ensonhar como o
fazem os feiticeiros, ensonhar com energia impessoal.
Desejava interrompê‐la, dizer‐lhe que não havia nada impessoal em meu
ensonho de Esperanza e o cuidador, e que na verdade aquilo havia sido pior que os
monstros de meus pesadelos, porém não podia falar.
—Esta noite seu relógio te trouxe de volta do ensonho mais profundo que já
teve — continuou Zuleica, indiferente aos sons raros que surgiam de minha garganta.
—E tem a rocha para prová‐lo.
Chegou aonde eu me encontrava prostrada, observando‐a boquiaberta, e
procurou em meu bolso. Estava certa, ali encontrou a rocha que peguei da pilha de
pedras.

190
CAPÍTULO DEZENOVE

Levantei‐me quando um forte ruído me despertou, e esquadrinhando as


sombras constatei que as persianas de madeira se encontravam abaixadas. Um vento
frio me envolveu, o mesmo que perseguia folhas no pátio, e uma tímida luz penetrou
no aposento, aderindo‐se às paredes desnudas como se fosse névoa.
—Nagual! — gritei, e como se o tivesse conjurado, ali estava Isidoro Baltazar,
de pé junto à minha rede.
Parecia um ser real, apesar desse algo indefinido que fazia que se lhe visse
como a uma imagem submergida. Limpei a garganta para falar, e só consegui emitir
um débil coaxar. Depois se dissolveram: a imagem e em seguida a névoa.
Tensa demais para conseguir dormir, permaneci sentada, envolta num
cobertor, pensando se havia sido acertada minha decisão de buscar aqui a Isidoro
Baltazar. Não sabia de outro lugar. Havia esperado pacientemente durante três meses,
depois do qual minha ansiedade se fez tão aguda que me vi obrigada a agir.
Uma manhã, sete dias atrás, havia viajado sem paradas até a casa das
feiticeiras, e naquele momento não abrigava dúvidas sobre se minha decisão era ou
não a correta: nem sequer depois de ver‐me obrigada a escalar o muro dos fundos da
casa, e entrar por uma janela entreaberta; mas ao fim de sete dias essa minha certeza
havia começado a fraquejar.
Saltei da rede ao piso enlajotado, batendo fortemente no chão com meus
calcanhares descalços. Sacudir‐me desse modo sempre me ajudou a afastar as dúvidas,
mas desta vez não surtiu efeito, de modo que me deitei de novo. Se havia aprendido
algo nesses três anos de convivência com os feiticeiros, era que suas decisões são
finais, e minha decisão havia sido a de viver e morrer sob seu credo. Havia chegado o
momento de colocá‐lo à prova.
Um riso nada comum interrompeu meus pensamentos, retumbou através da
casa e subitamente se extinguiu. Aguardei, tensa, mas só me chegava o ruído das
folhas no corredor, movidas pelo vento. Esse som não só me adormeceu como que me
introduziu no ensonho que estava a sete noites ensonhando.

Estou no deserto
quase indistinguível, estádeparado
Sonora.no
Meio
meiodia.
doOcéu.
sol, um
Nãodisco que deum
se escuta tãosó
brilhante era
som, nem
existe movimento ao redor. Os altos saguaros de braços espinhosos (cactos), elevados
em direção a esse sol imóvel, são as sentinelas que guardam o silêncio e a quietude. O
vento, como se me tivesse seguido através do ensonho, começa a soprar com força
tremenda. Assovia entre os galhos dos algarobeiros, e os sacode com fúria sistemática.
Redemoinhos de poeira roxos surgem em torno de nós. Há um bando de corvos, que
pareciam pontos no céu; depois caem por terra um pouco mais além, como pedaços
de um véu negro.
Tão abruptamente como surgiu, o vento se acalma. Dirijo‐me em direção às
montanhas distantes, e parecia‐me que tinha caminhado horas antes de discernir uma
enorme sombra negra no chão. Levanto o olhar. Um gigantesco pássaro negro pende
no ar com
reparo as asas
em sua abertas,
sombra imóvel,
escura sobrecomo
o chãosedescubro
estivesseque
cravado ao céu,
o pássaro e só quando
se move. Lenta,
imperceptivelmente, sua sombra se desliza diante de mim. Impelida por uma força
inexplicável, tento alcançar a sombra, mas independente da velocidade em que corro,

191
a sombra se afasta mais e mais. Atordoada por causa de meu esgotamento, tropeço
em meus próprios pés e caio ao chão.
Enquanto procuro tirar a poeira de minhas roupas descubro ao pássaro parado
sobre um penhasco próximo, sua cabeça ligeiramente desviada para mim em aparente
atitude convidativa. Me aproximo com cautela. É enorme e escuro, e suas plumas
brilham como cobre polido. Seus olhos cor âmbar são duros e implacáveis,
determinantes como a própria morte. Retrocedo quando o pássaro abre bem suas asas
e decola. Remonta vôo até converter‐se num ponto no céu, apesar do qual sua sombra
sobre a terra é uma linha negra e reta, que se estende até o infinito, unindo o céu e a
terra.
Confiante de que, se convoco ao vento, poderei alcançar ao pássaro, invoco
uma encantação, mas que carece de força e de poder. Minha voz se quebra em mil
sussurros, absorvidos de imediato pelo silêncio. O deserto recupera sua estranha
calma.
Começa a desmoronar‐se nas bordas; depois se desvanece lentamente ao
redor…
De maneira gradual adquiri consciência de meu corpo encostado na rede, e
através da inconstante neblina adivinhei as paredes do quarto, revestidas de livros.
Logo despertei totalmente e me impactou, como acontecera toda a semana, a certeza
de que este foi um ensonho, e que sei o que significa.
O nagual Mariano Aureliano me havia dito certa vez que os feiticeiros, quando
falam de feitiçaria, se referem a ela como a um pássaro, e o chamam o pássaro da
liberdade, pássaro que só voa em linha reta e nunca faz uma segunda visita. Também
dizem que é o nagual quem o atrai e o induz a lançar sua sombra sobre a trilha do
guerreiro. Sem essa sombra não existe direção.
O significado de meu ensonho era que eu havia perdido ao pássaro da
liberdade. Havia perdido ao nagual, e com ele toda esperança e sensação de propósito,
e o que mais penalizava meu coração era que o pássaro da liberdade se havia afastado
tão velozmente que nem tempo tive para expressar meu agradecimento a todos, além
de minha infinita admiração.

tomado,A todo
nem momento
a eles nem eu ahavia
seu assegurado
mundo, poraosdados,
feiticeiros
mas que
sim, nunca os havia
o havia feito,
especialmente a Isidoro Baltazar. Ele sem dúvida permaneceria comigo para sempre,
pensei, e de repente se haviam ido todos, como estrelas fugazes ou sopros de vento,
levando a Isidoro Baltazar.
Durante semanas permaneci sentada em meu quarto, fazendo‐me a mesma
pergunta: “Como era possível que desaparecessem desse modo?”, uma pergunta
supérflua e carente de sentido, dado o que eu havia visto e experimentado nesse
mundo, e que a única coisa que revelava agindo assim era minha verdadeira natureza:
submissa e insegura.
Os feiticeiros me haviam dito durante anos que sua meta final era arder,
desaparecer tragados pela força da consciência. O velho nagual e seu grupo estavam
preparados,
audácia final:mas eu não sabia.
ensonhar Vinham
despertos. se preparando
A audácia quase
de burlar todas suas
a morte vidas para
(tal como nós aa
conhecemos) para internar‐se no desconhecido, aumentando, sem quebrá‐la, a
unidade de sua energia total.

192
Meu pesar se fez mais intenso quando recordei que minha natureza incrédula
reapareceria no momento menos pensado. Não era questão de não crer em sua
estupenda meta, em seus propósitos extraterrenos, mas por sua vez práticos. Melhor
preferia interpretá‐los e, de alguma maneira, integrá‐los ao mundo do sentido comum,
não sempre, claro, de tudo, mas coexistindo com o que para mim era normal e
familiar.
Os feiticeiros intentaram preparar‐me para presenciar sua viagem definitiva:
que num certo dia desapareceriam era algo quase aceitado por mim. Contudo, nada
poderia ter‐me preparado para a angústia e a desesperança resultantes. Caí em um
poço de tristeza do qual sabia muito bem nunca sairia, mas esse era um problema que
devia ser resolvido por conta própria.
Temendo aumentar meu desespero se permanecesse estendida na rede,
levantei‐me para preparar o desjejum ou, melhor dizendo, a esquentar as sobras da
noite anterior: arroz, tortilhas e feijões, minha comida típica dos últimos sete dias,
exceção feita no almoço ao qual juntara uma lata de sardinhas norueguesas
compradas no armazém de um povoado vizinho.
Lavei a louça e conferi o piso, depois do qual, armada com a escova, percorri
todos os quartos em busca de novas sujeiras, ou alguma teia de aranha esquecida num
canto. Desde minha chegada parecia não ter feito outra coisa que esfregar pisos, lavar
paredes, janelas, e varrer pátios e corredores. As tarefas de limpeza sempre me
haviam trazido paz e me afastado de meus problemas, mas desta vez não foi assim.
Apesar do interesse com que encarava a estes trabalhos, não conseguia acalmar com
eles minha angústia, nem encher o doloroso e opressivo vazio.
Um barulho de folhas varridas pelo vento interrompeu minha atividade,
obrigando‐me a sair para investigar. Um vendaval, cuja força me sobressaltou, soprava
entre as árvores, e estava eu a ponto de fechar as janelas da casa quando
abruptamente cessou. Uma profunda melancolia descendeu sobre tudo, pátio,
árvores, flores e quintal, e até a primavera que ali morava se associou ao desassossego
geral.
Acalmado o vento, caminhei até a fonte colonial no meio do pátio, me ajoelhei

sobre a na
caídas larga bordaDepois
água. de pedra,
me eaproximei
quase sem para
pensarbuscar
me dediquei
minha aimagem
tirar as folhas e flores
na tranquila
superfície, e descobri o belo e anguloso rosto de Florinda junto ao meu. Hipnotizada
por seus grandes olhos escuros, que contrastavam com sua branca cabeleira,
contemplei seu reflexo na água, e em nossos rostos nasceu um sorriso.
—Não te ouvi chegar — disse em voz baixa, temerosa de que desaparecesse
sua imagem, de que tudo não fosse mais que um sonho.
Pousou sua mão sobre meu ombro, e depois se sentou junto a mim sobre a
borda de pedra.
—Estarei contigo apenas um momento — advertiu —, porém mais tarde
regressarei.
Não pude conter‐me e dei vazão a toda a angústia e desespero acumulados.
Florinda mepara
seus olhos, olhou, e seu rosto
desaparecer comrefletia
a mesmaumaceleridade
profunda com
tristeza.
que Lágrimas
surgiram.assomaram a
—Onde está Isidoro Baltazar? — perguntei.
Sem olhá‐la no rosto descarreguei minhas lágrimas, não provocadas por sentir
pena de mim mesma, nem sequer pela tristeza, e sim por uma sensação de fracasso,

193
culpa e perda que me afogava. Tempos atrás Florinda já me havia advertido acerca
destes rompantes.
—Para os feiticeiros as lágrimas carecem de sentido — disse. —Quando você se
uniu ao mundo dos feiticeiros lhe foi feito entender que os desígnios do destino, sejam
quais forem, são meros desafios que um feiticeiro deve enfrentar, sem ressentimento
nem pena de si mesmo — fez uma pausa para repetir que já em outras ocasiões me
havia dito que Isidoro Baltazar já não era um homem, e sim um nagual. —Talvez ele
tenha acompanhado ao velho nagual, e neste caso nunca regressará, mas também
pode ser que não o tenha feito.
—Mas, por que…? — não cheguei a completar a pergunta.
—Desta vez realmente não sei — anunciou Florinda, levantando uma mão para
antecipar‐se ao meu protesto. —Se trata de um desafio que precisa vencer e, como
sabe, os desafios não são discutidos nem ressentidos, e sim enfrentados ativamente.
Nisso os feiticeiros podem triunfar ou fracassar, e o resultado não interessa em
especial, sempre e quando dominem a situação.
—Como espera que a domine, quando a tristeza me mata? Isidoro Baltazar se
foi para sempre — e em minha queixa ficou refletido meu ressentimento e minha raiva
ante a trivialidade de sua atitude.
—Por que não escuta minhas sugestões, e se comporta impecavelmente
deixando de lado seus sentimentos? — disse em som de reprovação. Seu gênio era tão
mutável como seu brilhante sorriso.
—Como posso chegar a fazer isso? Sei que quando se ausenta o nagual o jogo
se acabou.
—Não necessita do nagual para ser uma feiticeira impecável. Sua
impecabilidade deve conduzir‐lhe a ele, ainda se já não estiver no mundo. Seu desafio
é viver impecavelmente dentro de suas circunstâncias, e não mudará absolutamente
nada se ver a Isidoro Baltazar o ano que vem ou ao final de sua vida.
Florinda me deu as costas e manteve um longo silêncio. Quando me encarou de
novo seu rosto mostrava‐se como uma máscara, como se estivesse fazendo um grande
esforço para controlar suas emoções, e havia tal tristeza em seus olhos que esqueci

minha própria
—Deixeangústia.
‐me lhe contar um conto — disse, e a dureza de seu tom talvez
estivesse destinada a apagar a dor refletida em seus olhos. —Eu não viajei com o
nagual Mariano Aureliano e seu grupo, e tampouco o fez Zuleica. Sabe por quê?
Boquiaberta, paralisada pelo temor, levei um tempo antes de poder dizer‐lhe
que não o sabia.
—Estamos aqui porque não pertencemos a esse grupo de feiticeiros.
Pertencemos, mas não pertencemos. Nossos sentimentos estão com outro nagual, o
nagual Julián, nosso mestre. O nagual Mariano Aureliano é nosso igual, e o nagual
Isidoro Baltazar, nosso aluno. Como a ti, nos deixaram para trás. A ti, porque não
estava pronta para viajar com eles. A nós, porque necessitamos de mais energia para
dar um grande salto, e talvez nos unirmos a um outro grupo de guerreiros, um grupo
mais antigo,
Podiaosentir
do nagual Julián.
a solidão de Florinda como uma névoa fina que descia sobre mim,
e quase não tinha coragem de respirar por temor que ela emudecesse.
Explanou‐se acerca de seu mestre, o nagual Julián, homem de grande fama.
Suas descrições eram breves, e ao mesmo tempo tão evocativas, que pude vê‐lo ante

194
meus olhos, o homem mais charmoso que jamais existiu. Gracioso, de rápida
capacidade para criar e agir, um piadista incorrigível. Narrador e mago, capaz de
manejar a percepção como um mestre‐padeiro maneja a massa, modelando‐a sem
perdê‐la de vista. Estar com o nagual Julián, assegurou Florinda, era uma experiência
inesquecível. Confessou amá‐lo mais além das palavras, dos sentimentos, assim como
também o amava Zuleica.
Florinda caiu num novo e longo silêncio, a vista fixa nas montanhas distantes,
como se com esse ato conseguisse extrair energias dos afilados picos. Quando falou de
novo sua voz era apenas um sussurro:
—O mundo dos feiticeiros é um mundo de solidões, porém nele aninha‐se
eterno o amor. Como o meu pelo nagual Julián. Sozinhas, nos movemos neste mundo,
contando somente com nossos atos e sentimentos, e com nossa impecabilidade —
disse, e moveu a cabeça como para enfatizar suas palavras. —Eu já não tenho
sentimentos. Os que tive foram levados pelo nagual Julián. Tudo o que me resta é meu
sentido de vontade, de propósito e de dever. Quem sabe você e eu tenhamos o
mesmo problema — e disse isto com tal doçura que se desfez antes que eu entendesse
o que ela dizia.
Fiquei observando‐a. Como sempre, sua esplêndida beleza chamava a atenção,
junto com essa mágica juventude, que os anos deixaram intacta.
—Eu não, Florinda — rebati. —Você teve ao nagual Isidoro Baltazar e a mim, e
todos os outros discípulos dos quais me falaram. Eu não tenho nada, nem sequer meu
antigo mundo — não me estava lamentando; falava através da certeza de que a vida,
tal como a havia conhecido até agora, era hoje coisa do passado. —O nagual Isidoro
Baltazar é meu pelo direito que me dá meu poder. Esperarei um tempo mais, como é
minha obrigação fazê‐lo, mas se já não está neste mundo, tampouco o estarei eu. Sei o
que tenho que fazer! — e minha voz foi se perdendo ao dar‐me conta de que Florinda
já não me prestava atenção. Encontrava‐se absorta com um pequeno corvo que se
aproximava de nós pela borda da fonte.
—Esse é Dionísio — anunciei, buscando em meus bolsos os pedaços de tortilha
que lhe guardava. Não os encontrei.

Tãoo absorta
meio‐dia, pequenoestive em
animal meus
vinha porpesares que esqueci que, a essa hora, passado o
sua comida.
—Está irritado o senhor! — observou Florinda, rindo dos furiosos reclamos do
pássaro. —Você e o corvo se parecem bastante. Ambos se irritam com facilidade, e o
proclamam de maneira muito sonora.
Consegui apenas conter meu desejo de dizer‐lhe que o mesmo se podia dizer
dela, e ela riu como se soubesse do esforço que eu fazia para não chorar. O corvo
havia pousado sobre minha mão, e me olhava de canto com olhos brilhantes, que
pareciam seixos. Abriu suas asas, e seu reflexo azul cintilou à luz do sol.
Com toda a calma disse à Florinda que as pressões do mundo dos feiticeiros
eram intoleráveis.
—Bobagem! — respondeu, como se provocasse a uma criança malcriada. —
Olha só, nós
afastava, paraassustamos o Dionísio
depois centrar — e fascinada,
sua atenção em minhaobservou
pessoa.o Desviei
vôo do pássaro
o rosto,que se
e não
saberia dizer o porquê, pois não havia hostilidade nesses olhos escuros e brilhantes
que mostravam‐se calmos e indiferentes.

195
—Se não conseguir alcançar a Isidoro Baltazar, então eu e os demais feiticeiros
que te servimos de mestres teremos fracassado em nosso intento de impressionar‐lhe,
e também de desafiar‐lhe. Não será uma perda decisiva para nós, mas sim o será para
você — e vendo que minhas lágrimas ameaçavam voltar a cair me desafiou de novo. —
Onde está seu propósito impecável? O que aconteceu com tudo o que aprendeu de
nós?
—O que acontecerá se eu nunca alcançar a Isidoro Baltazar?
—Pode seguir vivendo no mundo dos feiticeiros se não se esforça por averiguá‐
lo? — perguntou com severidade.
—Este é um momento no qual necessito bondade — murmurei, fechando os
olhos para evitar que se derramassem minhas lágrimas. —Preciso da minha mãe. Oh,
se pudesse estar com ela!
Minhas próprias palavras me surpreenderam, pronunciadas com inteira
sinceridade, e já incapaz de reter as lágrimas, rompi a chorar. Florinda riu. Porém não
zombando, pois havia bondade em seus olhos.
—Está tão longe de sua mãe que nunca voltará a encontrá‐la — disse
carinhosamente, e sua voz perdeu volume quando acrescentou que a vida do feiticeiro
constrói barreiras intransponíveis ao seu redor. —Os feiticeiros — recordou — não
encontram consolo na simpatia de outros, nem sentindo pena de si mesmos.
—Você acha que todos meus tormentos se devem a que sinto pena de mim
mesma, não é verdade, Florinda?
—Não. Não só isso, como também à morbidez — e rodeando‐me com os braços
me abraçou como se eu fosse uma criança. —A maioria das mulheres são mórbidas,
estando você e eu entre elas.
Não estava de acordo, mas não desejava contradizê‐la. Seu abraço me enchia
de felicidade, e apesar de estar com ânimo decaído, consegui sorrir. Florinda, como
todas as mulheres desse mundo, careciam da capacidade para expressar sentimentos
maternais, e apesar a que eu gostava de abraçar e beijar as pessoas que amava, não
tolerava estar nos braços de alguém por muito tempo. O abraço de Florinda não era
morno e tranquilizador como o de minha mãe, mas era o único a que podia aspirar.

Desfazendo o abraço
Despertei Florinda eentrou
de repente, por umnamomento
casa. permaneci no chão aos pés da fonte,
intentando recordar algo dito por Florinda antes que eu dormisse. Obviamente havia
dormido horas, pois apesar da claridade do céu as sombras do entardecer já
começavam a invadir o pátio.
Estava a ponto de buscar a Florinda quando um riso incomum me chegou
através do pátio, o mesmo que escutei durante a noite. Esperei e agucei o ouvido, em
meio a um silêncio estranho: nada se movia, nada zumbia, nenhum pássaro piava,
apesar do qual intuía o movimento de passos silenciosos às minhas costas. Virei‐me, e
no extremo do pátio, quase oculta pela primavera florida, vi alguém sentado num
banco de madeira, e que reconheci apesar de dar‐me as costas.
—Zuleica? — sussurrei, temendo que meus passos a afugentasse.
—Que
para que feliz mejunto
me sentasse ela. de ver‐lhe de novo — respondeu, fazendo‐me sinais
faz oafato
Sua voz clara, vibrante por causa do ar do deserto, parecia não provir de seu
corpo, e sim de muito longe. Desejei abraçá‐la, mas algo me aconselhou a não fazê‐lo.
A Zuleica não lhe gostava que a tocassem, de modo que tomei assento junto a ela, e

196
manifestei por minha vez minha alegria por vê‐la. Mas ela me surpreendeu, tomando
minha mão na sua, uma mão pequena e delicada. Seu lindo rosto rosa bronzeado
carecia de expressão, e toda sua vida se concentrava nos olhos incríveis, nem negros
nem marrons, e chamativamente claros, que se fixaram nos meus num longo olhar.
—Quando você chegou? — perguntei.
—Neste exato momento — respondeu, curvando os lábios num sorriso
angelical.
—Como chegou? Florinda veio contigo?
—Oh, você sabe, as feiticeiras vão e vêm sem que se o note. Ninguém se fixa
numa mulher, em especial se é velha. Não obstante, uma mulher jovem e bonita
chama a atenção, e é por isso que as feiticeiras, se são bonitas, precisam adotar algum
tipo de disfarce. Se são meio feínhas não terão problemas.
Um repentino golpezinho no ombro me sobressaltou. Zuleica pegou de novo
minha mão, como para dissipar minhas dúvidas, e disse:
—Para viver no mundo dos feiticeiros deve‐se ensonhar livremente — e
desviou seu olhar para a lua quase cheia, que parecia pender sobre as montanhas
distantes. —A maioria das pessoas não possui a engenhosidade nem a estatura
espiritual necessária para ensonhar. Não podem evitar ver o mundo como algo
ordinário. E sabe por quê? Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade
ordinário. A maioria das pessoas vive tão preocupada consigo mesmas que se
idiotizaram, e os idiotas não desejam lutar para evitar a ordinariedade.
Zuleica ficou de pé e calçou suas sandálias, atou seu chale em torno da cintura
para impedir que suas saias longas tocassem o chão, e caminhou em direção ao centro
do pátio. Soube o que faria antes mesmo que ela começasse. Ia girar; dançar para
acumular energia cósmica. As feiticeiras acreditam que movendo seus corpos obtêm a
força necessária para ensonhar.
Com um gesto apenas perceptível de sua testa me convidou a segui‐la e imitar
seus movimentos. Se deslizou sobre as lajotas e os tijolos escuros do chão, que
obedeciam a um velho desenho tolteca, colocado pelo próprio Isidoro Baltazar;
desenho que unia a gerações de feiticeiros e ensonhadores através das eras num

emaranhado
sua força, suade segredos
intenção e façanhas
e sua entrega de poder,
para tornáàs quais
‐los ele havia contribuído com toda
realidade.
Zuleica se movia com a competência e a agilidade de uma bailarina jovem, com
movimentos simples que no entanto requeriam tanta velocidade, equilíbrio e
concentração que me deixaram exausta. Com uma notável agilidade e presteza ela
girava, afastando‐se de mim, retendo‐se na sombra das árvores como para assegurar‐
se de que eu a seguia, e depois se dirigiu até o arco assentado sobre a parede que
rodeava as terras detrás da casa, e se deteve momentaneamente junto aos dois pés‐
de‐laranja que cresciam do outro lado do muro, aqueles que pareciam sentinelas
postadas de cada lado do caminho que levava à casa pequena além do chaparral.
Temendo perdê‐la de vista corri pelo escuro e estreito caminho, e depois entrei
na casa para segui‐la até o quarto dos fundos onde, em lugar de acender a luz, Zuleica
pegou uma lamparina
a lamparina emitiu umde azeite
fulgor que estava
vacilante pendurada
que deixou numado
os cantos dasaposento
vigas. Aoem
acender‐se,
sombras.
Do único móvel, uma arca sob a janela, tirou uma esteira e um cobertor.
—Deite‐se de barriga para baixo — ordenou, estendendo a coberta sobre as
lajotas.

197
Suspirei fundo e me afundei na prazerosa sensação de abandono que me
oferecia o fato de estar prostrada de bruços sobre a esteira. Uma impressão de paz e
bem‐estar impregnou todo meu corpo, e senti suas mãos sobre minhas costas, não me
massageando, mas sim dando ligeiros golpes.
Apesar de ter estado muitas vezes na casa pequena, ainda não conhecia sua
disposição. Não sabia quantos cômodos tinha, nem como estava mobiliada. Em certa
oportunidade Florinda havia dito que essa casa constituía o centro de suas aventuras.
Era ali, segundo ela, onde o velho nagual e seus companheiros teciam sua trama
mágica, a qual, como uma teia de aranha invisível e resistente, os unia quando se
submergiam no desconhecido, na escuridão e na luz, atividade rotineira para os
feiticeiros.
Também havia dito que a casa era um símbolo, e que os feiticeiros de seu
grupo não necessitavam estar dentro dela, nem sequer em suas vizinhanças, para
submergir‐se no desconhecido graças ao ensonhar. Aonde quer que fossem levavam o
sentido e o humor da casa em seus corações, e isso, significasse o que significasse para
cada um deles, lhes dava a força para enfrentar devidamente o mundo cotidiano.
Outro golpe em meu ombro por parte de Zuleica me sobressaltou:
—Deite‐se de costas — ordenou.
Obedeci. Seu rosto, ao aproximar‐se ao meu, irradiava energia e resolução.
—Os mitos são ensonhos de grandes ensonhadores — disse. —É necessário
muito valor e concentração para mantê‐los e, acima de tudo, muita imaginação. Você é
um mito vivente, um mito que lhe foi encomendado para salvaguardar, para preservar.
Falava num tom quase reverente:
—Não pode receber esse mito a menos que seja irretocável. Se não o é, o mito
verdadeiramente se afastará de você.
Abri a boca para responder, para dizer‐lhe que havia compreendido tudo, mas a
dureza de seu olhar me deteve. Era evidente que não tinha intenção de dialogar
comigo.
O ruído de galhos raspando a parede exterior da casa parou, e foi substituído
por um tipo de pulsação no ar, sentida antes que escutada. Estava por cair dormida

quando Zuleica disse que eu devia seguir as ordens recebidas em meu ensonho
repetitivo.
—Como sabe que tenho tido esse ensonho? — perguntei alarmada, tentando
levantar‐me.
—Você se esqueceu que compartilhamos nossos ensonhos? — respondeu,
obrigando‐me a recostar de novo. —Eu sou a que traz os ensonhos.
—Não foi mais que um ensonho sem importância, Zuleica — e minha voz
tremeu, pois me assaltou um tremendo desejo de chorar. Sabia que não se tratava de
um mero ensonho, mas queria que ela me mentisse. Zuleica sacudiu sua cabeça.
—Não, não era um simples ensonho, era um poderoso ensonho de feiticeiros,
uma visão.
—O que devo fazer?
—Não te—oobservou
disse Florinda? disse o ensonho? — perguntou
‐me sem que em revelasse
sua expressão tom desafiante.
indício —Não
algum. lhe o
Logo
sorriu, um sorriso tímido e infantil. —Precisa entender que não pode correr atrás de
Isidoro Baltazar. Ele já não está no mundo. Já não há nada que possa dar‐lhe nem fazer
por ele. Não pode estar ligada ao nagual como pessoa, somente como um ser mítico.

198
— Com voz suave mais autoritária, repetiu que eu estava vivendo um mito. —O mundo
dos feiticeiros é um mundo mítico separado do mundo diário por uma barreira
misteriosa feita de ensonhos e obrigações.
“Somente se o nagual é apoiado por seus companheiros de ensonhos pode ele
conduzi‐los a outros mundos viáveis nos quais pode atrair ao pássaro da liberdade — e
suas palavras se fundiram com as sombras do quarto quando acrescentou que o apoio
que Isidoro Baltazar necessitava era energia para ensonhar, não sentimentos e ações
mundanas.”
Após um longo silêncio falou de novo.
—Você viu como o velho nagual, assim como também Isidoro Baltazar,
mediante sua mera presença, afetam a tudo o que os rodeia, sejam estes seus
companheiros feiticeiros ou gente comum e normal, deixando‐lhes claro que o mundo
é um mistério onde nada, sob nenhuma circunstância, pode ser dado como acabado
ou final.
Concordei com um movimento de cabeça.
Durante um longo tempo me foi difícil compreender como os naguais, por obra
de sua simples presença, influíam de maneira tão poderosa, e após observar
cuidadosamente, trocar opiniões com outros e questionar‐me sem tréguas, cheguei à
conclusão de que sua influência era o resultado de sua renúncia às inquietações
humanas.
Em nosso mundo ordinário também temos exemplos de semelhante renúncia
por parte de homens e mulheres aos quais damos o nome de santos, místicos e
religiosos, mas os naguais não são santos, e por certo não são religiosos. Os naguais
são homens do mundo, sem sinais de preocupação mundana.
Num nível subconsciente esta contradição tem enorme efeito sobre aqueles
que o rodeiam. A mente daqueles que rodeiam a um nagual não pode compreender o
que os está afetando, apesar do qual seus corpos sentem o impacto como uma
estranha ansiedade, uma urgência por libertar‐se, ou um sentido de imperfeição, como
se algo transcendental estivesse acontecendo em alguma parte, e do qual eles estão
excluídos. Mas a capacidade intrínseca de um nagual para afetar a terceiros não

depende,
força de maneira
de suas exclusiva,e de
personalidades, simsua
na ausência
força de de
seupreocupações mundanas,
comportamento ou Os
impecável. na
naguais são irretocáveis em seus atos e sentimentos, independente das emboscadas —
mundanas ou não — que encontrem em sua senda interminável. E tampouco é
questão de que os naguais sigam um determinado conjunto de leis e regulamentos
para alcançar esse comportamento irrepreensível, pois estes não existem. Melhor
dizendo, usam sua imaginação para adotar ou adaptar‐se ao que seja necessário para
fazer que seus atos sejam fluidos.
Os naguais, contrariamente ao comum dos mortais, não buscam aprovação,
respeito, elogio ou qualquer outro tipo de reconhecimento de ninguém, e isto inclui a
seus semelhantes. O único que ambicionam é seu próprio sentido de integridade e
inocência. É isto o que torna viciante a companhia de um nagual. A pessoa chega a
depender da liberdade
mundo é sempre de um nagual
inteiramente novo, ecomo o faria
em sua de umaa droga.
companhia pessoaPara um anagual
começa olhar o
o
mundo como se antes não houvesse existido.
—Isso é porque os naguais quebram o espelho da auto‐reflexão — informou
Zuleica, como se tivesse seguido o curso de meus pensamentos. —Os naguais podem

199
ver‐se num espelho de névoa que reflete só o desconhecido, um espelho que já não
reflete nossa humanidade normal — expressada pela repetição — e sim que revela a
face do infinito.
—Os feiticeiros acreditam que quando a face da auto‐reflexão se funde com a
face do infinito, um nagual está totalmente preparado para romper as fronteiras da
realidade e desaparecer como se não estivesse constituído por matéria sólida. Isidoro
Baltazar já está há muito tempo preparado.
—Não pode me deixar para trás! — gritei. —Isso seria injusto demais.
—É bobo pensar em termos de justiça e injustiça — replicou Zuleica. —No
mundo dos feiticeiros só existe o poder. Por acaso cada uma de nós não lhe ensinamos
isso?
—Aprendi muitas coisas — admiti com pesar, e após uns minutos murmurei
entre os dentes —, mas nestes momentos nada disso tem valor.
—Agora valem mais do que nunca — me contradisse. —Se há algo que você
aprendeu é que nos piores momentos os guerreiros revivem suas forças para seguir
adiante. Um guerreiro não sucumbe ao desespero.
—Nada do que foi aprendido e experimentado pode aliviar minha tristeza e
desespero. Cheguei a tentar até os cânticos espirituais que aprendi de minha ama‐de‐
leite. Florinda se ri de mim. Acha que sou uma idiota.
—Florinda tem razão. Nosso mundo mágico não tem nada a ver com cânticos e
conjuros, com rituais e comportamentos estranhos. Nosso mundo mágico, que é um
ensonho, é feito realidade mediante o desejo concentrado daqueles que participam
dele. A todo momento o mantêm intacto a vontade tenaz dos feiticeiros, do mesmo
modo como o é o mundo diário pela vontade de todos.
Se deteve abruptamente. Parecia ter surpreendido a si mesma em meio de um
pensamento que não desejava expressar. Depois sorriu, e com um cômico gesto de
impotência completou:
—Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta.
—Quer dizer com isso que me tenho que cair morta aqui mesmo, e neste
instante? — perguntei numa voz que começava a enrouquecer. —Sabe que para isso

estou completamente pronta.


O rosto de Zuleica se iluminou, e riu como se eu tivesse contado a melhor das
piadas, mas ao notar que eu falava muito a sério se apressou a esclarecer.
—Não, não. Morrer significa que cortamos todas as amarras, abandonamos
tudo o que temos, tudo o que somos.
—Isso não tem nada de novo — respondi. —Eu o fiz no momento mesmo em
que me incorporei ao mundo de vocês.
—Obviamente não o fez, pois de ser certo não estaria no estado em que está.
Se tivesse morrido como o exige a feitiçaria agora não sentiria angústia.
—O que sentiria, então?
—Dever! Propósito!
—Minha angustia nada tem a ver com meu sentido de propósito — gritei. —É

los? separado, independente. Estou viva e sinto tristeza e amor. Como posso impedi‐
algo
—Não se espera que os evite — explicou Zuleica —, e sim que se sobreponha a
eles. Se os guerreiros não possuem nada, nada sentem.
—E que tipo de mundo vazio é esse? — perguntei desafiante.

200
—Vazio é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos — e
me olhou de maneira ansiosa, como esperando que eu manifestasse meu acordo. —De
modo que temos um mundo desleixado, enfadonho, repetido. Para os feiticeiros o
antídoto é a morte, e não só pensam nela, e sim que morrem.
Um calafrio percorreu minhas costas. Engoli a seco e permaneci em silêncio,
admirando a esplêndida lua que brilhava através da janela.
—Na realidade não entendo o que me diz, Zuleica.
—Me entende perfeitamente bem. Seu ensonho começou quando me
conheceu. Agora chegou o momento de outro ensonho, mas desta vez ensonhe morta.
Seu erro foi ensonhar viva.
—O que significa isso? — perguntei incômoda. —Não me atormente com
adivinhações. Você mesma me disse que somente os feiticeiros se atormentam com
adivinhações, e que as feiticeiras não, e agora está fazendo isso a mim.
A risada de Zuleica rebateu de uma parede a outra, soando como as folhas
secas impulsionadas pelo vento.
—Ensonhar viva significa ter esperanças, que se aferra a seu ensonho para
manter‐se viva. Ensonhar morta significa que abandonou a esperança, que não se
agarra a seu ensonho.
Temendo não poder controlar minha voz ao responder, me limitei a mover
afirmativamente a cabeça. Florinda me havia dito que a liberdade é uma total ausência
de preocupação por si mesmo, algo obtido quando a massa de energia aprisionada
dentro de nós é liberada. Havia dito que esta energia somente podia liberar‐se quando
podemos reprimir o exaltado conceito que temos de nós mesmos, de nossa
importância, essa importância que consideramos inviolável e livre de enganos.
A voz de Zuleica era clara, mas parecia vir de muito longe.
—O preço da liberdade é muito alto — disse. —A liberdade unicamente se
consegue ensonhando sem esperança, estando dispostos a perder tudo, inclusive o
próprio ensonho. Para alguns de nós ensonhar sem esperança, lutar sem meta, é a
única maneira de não ficar para trás do pássaro da liberdade.

FIM

Este livro foi digitalizado para distribuição livre e gratuita através da rede.
Revisão e Edição Eletrônica de Hernán. / Rosário – Argentina. / 05 de Março de 2003
– 02:54
Tradução direta do espanhol, mantendo‐se ao mais próximo do texto srcinal.
(Outubro/2008)

201
NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO

‐ A palavra “cuidador” foi mantida, ao invés de zelador (ou vigilante, sentinela,


guardião, tutor), por ser de fácil entendimento, e por diferenciação, como um nome
em si, sem contudo se utilizar letra maiúscula, por também designar sua função.
‐ Ponto de encaixe = ponto de aglutinação.
‐ Consciência acrescentada = consciência intensificada = ensonhar desperto.
‐ Irreprochable: impecável, irretocável, imaculável, irrepreensível.

‐ Buganvilla: conhecida também como primavera, um tipo de trepadeira florida.


‐ Azahar: tipo de laranjeira (Citrus Auratium): laranja‐amarga, laranja‐azeda, laranja‐
cavalo, morgote.
‐ Arvejilla: Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce.
‐ Mezquite: mesquite (do Nahuatl: mizquitl), gênero Prosopis. Algarobeira.

‐ Zapote: Sapoti, árvore frutífera, de cuja seiva se pode tirar o chiclé.

‐ Furgoneta (furgão, perua, van, camionete).

* Existem algumas referências no livro sobre o conceito de aceder. Os principais


sinônimos ou contrapartes da palavra são: aceitar, concordar, (ter acesso), consentir,
acatar, submeter‐se, condescender, aderir, anuir, aquiescer, assentir, compactuar.
Neste caso, as condições sobre aceder referem‐se a aceitar um fato ou circunstância,
por concordância, e não por simples aceitação. É como se referir ao fato de que o fogo
queima. Não se trata de aceitar ou não esse fato, e sim de saber por si próprio sobre
esse fato, e se alguém se refere a ele, a nós só nos cabe aceder, concordar com o fato

por saber que é assim que funciona.

Anexo de reflexões informais sobre o livro, obtidas ao longo da tradução

“Conseguir ler os sinais do espírito é conseguir ler o funcionamento do próprio enredo.


É habilitar a capacidade de ver as engrenagens, e ver onde ela está atuando, e o que
ela está fazendo. E receber como eco nossa própria função no momento. O
funcionamento de todo o sistema não é velado, basta ter a atenção necessária para
afastar a névoa, e ele aparece sozinho.”

“A referência ao mundo dos feiticeiros não é metafórica, já que ele existe numa
posição do ponto de encaixe. Ele existe junto ao mundo das pessoas, no mesmo lugar
onde todos estão e vivem, e só difere com relação às possibilidades de ação e
percepção. No mundo comum, a única referência a esse mundo está nas histórias em
quadrinhos, e se fosse levado em consideração estaria, ao invés disso, em livros de

202
estudo. Quando se diz que um feiticeiro vive neste mundo sem fazer parte dele é
porque seu ponto de encaixe está alinhado ao mundo dos feiticeiros, e não ao do
mundo comum. Nessa posição de alinhamento, ele pode agir como um bruxo, mas
também lhe é exigido comportar‐se de acordo, além de ser capaz de lidar com os
componentes próprios dessa posição, como a interação com seres inorgânicos, uma
percepção diferente de tempo e espaço, e suportar pressões diferentes das do mundo
comum. As pressões do mundo cotidiano são relativas a empregos, a relacionamentos
pessoais, e a auto‐imagem. Para se aproximar de um desses mundos, a pessoa precisa
se afastar do outro, e é por isso que precisa escolher. Se está apegada aos elementos
de um, não vai conseguir se afastar para alcançar e viver no outro. O mundo dos
feiticeiros é uma posição de ensonho, e para se viver nele se precisa viver numa
posição permanente de consciência intensificada, de ensonho desperto.”

“Todos os medos em se fazer qualquer coisa se resumem no medo de perder nossa


importância, seja ela qual for. Seja aos nossos próprios olhos, ou a importância que
pensamos ter para os outros, e até mesmo para o mundo, achando que se morrermos,
tudo vai parar, e ninguém mais vai fazer nada só porque não estamos mais ali. Talvez
tenhamos medo de perceber que não é nada assim, que não temos importância, e não
queremos fazer nada para não correr o risco de perceber o que no fundo nós já
sabemos. O medo que temos é o de encarar esse fato. Achamos que se de alguma
forma não formos importantes, então nossa existência também não será importante, e
que por isso poderemos ser descartados. Se não somos importantes, então porque
continuaríamos existindo? Temos medo de ser descartados pela própria vida, e então
passamos a vida inteira tentando enganar a vida, buscando e acumulando valores que
nos tornem tão importantes a ponto da vida não poder abrir mão de nós. E neste
ponto caímos no medo de morrer, de não ser nada, e por isso ser jogado no nada, em
dissolver‐se no nada. Precisamos urgente e terrivelmente sermos importantes de
alguma maneira. Esse é o medo infundido em nós, que nos leva a ter essa linha de
raciocínio e de ação. E o medo vem justamente por sabermos que não somos nada,
não importa o que a gente faça ou pense. Somos nada, mas queremos fechar os olhos

para isso,
como poisE constatar
à vida. é confirmar,
no entanto, a liberdadee está
o queaqui,
se busca
neste éponto,
enganar tantoconstatamos
quando a si mesmo
que não somos nada, e ainda assim podemos fazer tanto.”

“A energia que se consegue é sentida como poder. Pode‐se conseguir poder fazendo
coisas no mundo ou nos ensonhos. Quando se faz algo, e o fato de ter feito esse algo
nos dá confiança ou ímpeto para fazer outras coisas, então isso significa que
conseguimos poder pelo simples fato de ter feito esse algo. O simples fato de viver
certas experiências nos confere poder.”

“Só somos Superman quando estamos completamente limpos, livres de desejos, de


ganas, limpos de consciência, quando nossa energia não está fugindo, se projetando
em buscauma
de fazer de ‘quereres’,
travessurae admirável
quando temos apenas a alegria
e completamente de um menino,
inesperada que é capaz
pelos outros, sem
esperar nada por fazer isso, a não ser a alegria de ser livre e de poder estar fazendo
isso.”

203
“Por que é que nós temos que querer sempre as coisas do nosso jeito? Por que é que
não nos contentamos simplesmente com as coisas do jeito que elas se apresentarem,
ou conforme aconteçam? Por que é que nos permitimos ser tão mimados, a ponto de
se irritar e não querer viver ou desfrutar de momentos, quando eles não são
exatamente do jeito que imaginamos que deveriam ser?
“Existem muitos conceitos a serem assimilados, e muitos levam anos até serem
processados e chegar a nos fazer sentido, na forma de uma sensação direta que já não
precisa de ser acompanhada de uma explicação para que possamos entendê‐lo e senti‐
lo de forma clara em nós mesmos, em todo o nosso ser.”
“Quantos bombons precisamos comer até chegar a realmente reconhecer seu sabor?
Teríamos que não só saber, mas sentir que a vida é rara, que é curta, e que cada coisa
que fazemos nela também é rara, para que bastasse um único bombom? Ou antes
teríamos que comer muitos, de muitos tipos, para poder comparar, ou também
teríamos que passar um tempo sem sequer poder sentir o cheiro de um, para que
quando se voltasse a provar um, saber o quanto é raro tanto a sua própria existência
como um ser, como a existência do bombom, e o fato de que os dois pudessem existir
juntos num mesmo lugar e tempo, a ponto de poderem entrar em contato? Uma vez
que se saiba de tudo isso, bastará um bombom, e não dez, para se conseguir apreciar o
bombom e se sentir saciado em seu desejo de querer mais, e satisfeito com o próprio
fato, por saber quantas coisas precisaram estar envolvidas para que esse fato
acontecesse.”

‐ No filme Indiana Jones e a Última Cruzada, no final do filme, todos estão num templo,
e uma fenda se abre no chão, formando um abismo. O cálice (Graal) cai no buraco e
fica numa beirada. Uma mulher tenta pegá‐lo, cai, e Indiana a segura pela mão, mas
ela, na ambição de tentar alcançar o cálice, se solta e cai no abismo. O mesmo
acontece com Indiana, que então é seguro por seu pai. Ele também tenta alcançar o
cálice. No ápice da situação, quando sua mão também está por se soltar, seu pai, que
dedicou sua vida inteira na busca desse cálice, olha para ele e diz calmamente:
“Deixa”. Mesmo um cálice mágico e único não valia tanta ganância.

Toda perder
deixar a ganapara
de possuir
sempreumumobjeto
objetosagrado, com poderes
tão importante, precisamágicos, e o de
ser deixada medo
ladode se
num
instante de desapego. Para a mulher que caiu, a aflição e loucura em se ter algo tão
valioso foi maior até que seu instinto de sobrevivência. E não é o mesmo que acontece
conosco? Algumas coisas brilham mais que o ouro aos nossos olhos, e nos agarramos
com tanta força à idéia de possuir tal coisa de deixamos todo o resto de lado.
Deixamos de lado o bom senso, a sobriedade, passando por cima de tudo e de todos
para tentar conseguir nosso objeto sagrado. Quase nunca ouvimos, ou damos atenção,
à voz interior que nos diz: “Deixa”.
‐ É característica do ego possuir uma insatisfação sem fim. Ele é como um rei que, não
importa o que ou o tanto se faça por ele, ou quais presentes se possa lhe dar, ele
nunca se dará por satisfeito. O universo inteiro não seria suficiente. Ele é personificado
no mito
como dos Vaider,
Darth vilões, que
todoquerem conquistar primeiro seu país, depois o mundo, ou até
o Universo.
‐ Quando nos referimos ao espírito, sempre parece ser algo externo, mas o espírito é
uma coisa só. Ele é a soma total das energias. A porção de energia que está em nós,
concentrada em nosso ser, que nós chamamos de nosso espírito ou alma, não deixa de

204
ser parte do espírito total. Ouvir o espírito não é necessariamente ouvi‐lo de fora. A
porção de espírito que está em nós é o que nos permite estar em contato com todo o
resto. Os anseios do espírito, diferentes dos do ego, se dão por satisfeitos quando são
alcançados. Quando se fala sobre as exigências ou requisitos do espírito, fica
parecendo que temos que fazer coisas para agradar algo fora de nós, a uma entidade
que só nos permite continuar quando cumprimos suas solicitações. Mas essas
necessidades brotam diretamente em nós. É o que chamamos de consciência. São
aquelas necessidades de espírito que precisamos fazer ou cumprir para estarmos em
paz e satisfeitos conosco mesmos. E esta é a única satisfação real e possível.
Trechos Compilados

(15) ‐ “Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm. O ensonho sempre
tem um propósito prático, e serve ao ensonhador de maneira simples ou intrincada.
Ele serviu a você para superar seus pesadelos, serviu às bruxas que lhe fizeram a
comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para fazer com que o guarda da
fronteira, que lhe pediu seu visto de turista, não estivesse consciente de mim. Você
mesma, com pouco esforço, pode entrar no que você chama de um estado hipnótico.
Nós o chamamos ensonhar um sonho que não é um sonho, mas um ensonho no qual
podemos fazer quase tudo o que alguém deseje.”
‐ “Não é uma mulher alta, mas tampouco é tão pequena como você a viu. Em seu
ensonho curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e, ao fazê‐lo,
apareceu pequena. Essa é a natureza da magia. Deve ser aquilo cuja impressão deseja
dar.”

(18) ‐ “Para mim, entender a filosofia dos feiticeiros (que a liberdade não significava
ser o eu que era meu ser) foi quase a morte. Ser eu mesma significava afirmar minha
feminilidade, e consegui‐lo consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao
contrário, os feiticeiros entendem a liberdade como a capacidade para fazer o
impossível, o inesperado; ensonhar um ensonho que carece de base e de realidade na
vida cotidiana. O excitante e novo é o conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o

que a mulher necessita para mudar seu ser e converter se numa ensonhadora.”
(23) ‐ “Os ensonhadores se ocupam de ensonhos. Obtêm seu poder e sua sabedoria
dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com o mundo
cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus
semelhantes.”

(29) ‐ “Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o fez
porque não o sabia. Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença
que não é força, entidade nem presença. Os feiticeiros chamam‐no o espírito, nosso
observador pessoal, nossa testemunha permanente. Essa força não é Deus, nem tem
nada a ver com a religião ou a moral, e sim é uma força impessoal, um poder à nossa
disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada.”
(38) ‐ “Seja você mesma, mas você mesma sob controle. O que não se deve fazer é
fazer algo e depois se arrepender.”

205
(43) ‐ “Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos muita
prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos
lutar muito para recuperá‐los, simplesmente porque o corpo os armazena em
diferentes lugares. Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula, as
instruções para ensonhar começam por fazer com que desenhem um mapa de seus
corpos, um trabalho cuidadoso que revela onde as visões dos ensonhos são
armazenadas. Esse mapa é traçado percorrendo e investigando cada polegada do
corpo. Recomenda‐se um martelinho de madeira para golpear o corpo e tatear
somente as pernas e os quadris, pois muito raramente o corpo armazena estas
memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre são as
lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A única coisa que diz respeito a
você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a pressão física sobre o ponto
específico onde está armazenada essa visão.”

(52) ‐ “Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não pode
voltar à sua antiga vida. Regressará ao mundo, mas não ao seu mundo, à sua antiga
vida. É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o é mais, se você se
decide a fazer algo sem saber qual será o resultado.”
‐ “A liberdade causa muito temor. A liberdade requer atos espontâneos. Não tem idéia
do que significa o abandonar‐se espontaneamente... seus atos de espontaneidade se
devem mais à sua falta de avaliação que a um ato de abandono. Um ato
verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas
só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram
devidamente levados em conta e descartados, pois nem se espera nada nem se
lamenta nada. Com atos dessa natureza os bruxos convocam a liberdade.”

(59) ‐ “Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a porta
atrás de você, a que você mantém aberta, a que te permitirá escapar se as coisas não
são de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. Deserdar desse mundo
fica entre o espírito e você. Entrou neste mundo da mesma maneira que todos os

outros.decide
outro Ninguém teve nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou qualquer
se retirar.”
‐ “Sua decisão carecerá de poder se precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou
duvidar. Um guerreiro não é um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos
não tomam decisões, os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente. Esta é a
premissa básica desse mundo: nada se faz que possa ser catalogado como útil. Só se
permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como
vivo. O feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas.
Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.”

(61) ‐ “Uma mudança verdadeira não envolve mudança de ânimo, atitude ou ponto de
vista, e sim uma transformação total do ser. O tipo de mudança ao qual aludo não se
consegue emem
converter‐se trêsalgo
meses, um ano
diferente ou dez.
ao que Toma
alguém toda
havia sidoa destinado
vida. É sumamente difícil
a ser. O mundo
dos feiticeiros é um ensonho, um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos
os dias.”

206
‐ “Para perceber e funcionar nesse mundo devemos nos despojarmos da máscara
cotidiana que levamos aderida aos nossos rostos desde o dia em que nascemos, e
colocarmos a segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso entorno
como realmente são: acontecimentos extraordinários que florescem só uma vez,
adquirem existência transitória e nunca se repetem. Essa máscara você mesma terá
que fazê‐la. Isso se faz ensonhando seu outro ser.”
‐ “A liberdade não se obtém gratuitamente; ela lhe custará a máscara que leva posta:
essa tão cômoda e difícil de descartar, não por ser cômoda, mas sim porque a tem
estado usando tanto tempo. Sabe o que é a liberdade? É a total ausência de
preocupação acerca de si mesma, e a melhor maneira de deixar de preocupar‐se com
sua pessoa é preocupando‐se por outros.”
‐ “Já é hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém
mais que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em
você, e haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente,
muito fria…”

‐ “Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve agir
nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Se não está ensonhando, então ainda não
se decidiu. Não está talhando sua máscara. Não está ensonhando seu outro ser. Os
feiticeiros estão comprometidos com seu mundo somente através de sua
impecabilidade. Os feiticeiros não têm interesse em converter a outros às suas idéias.
Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por saber mais,
ou ser melhores feiticeiros que os outros, e sim por simplesmente possuir mais
energia, e não me refiro necessariamente a força física, e sim a certa configuração de
seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da percepção.”

(62) ‐ “Não espere que tudo seja soletrado com precisão para seu benefício. Nada no
mundo dos feiticeiros era tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira
vaga e lenta. Nesse mundo não existem regras nem regulamentos. Lembre‐se sempre
que só existem improvisações.”

‐ “Nunca perca Isidoro Baltazar de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que
nem sequer se dará conta disso. Ele é um guerreiro impecável e incomparável. Se o
observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação. Verá que
permanece impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está disposto a dar
tudo de si mesmo. Aguarda permanentemente um sinal do espírito, na forma de uma
palavra amável ou um gesto apropriado, e quando o recebe, expressa seu
agradecimento redobrando seus esforços. Ele não julga. Se reduziu ele mesmo à nada
para escutar e observar, para assim poder conquistar e ser humilhado na conquista, ou
ser derrotado e enaltecido na derrota. Se observar com cuidado verá que Isidoro
Baltazar não se rende. Podem vencê‐lo, mas não se renderá e, acima de tudo, Isidoro
Baltazar é livre.”

(69) ‐ “O nagual Isidoro Baltazar havia me advertido acerca da falácia das metas
definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que careciam de valor,
pois o verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as motivações
conscientes superficiais não aguentam as pressões.”

207
(70) ‐ “Quando tentava pedir‐lhes ajuda recusavam fazê‐lo. Seu argumento era que
sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham
de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas
depois de um tempo abandonei toda tentativa de indagá‐las, e me dediquei a
desfrutar de sua presença e de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para
não querer jogar nosso jogo intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas
assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela
verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta
que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.”

‐ “As ensonhadoras, ao tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o


modelo necessário para recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse
minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou
ganhar a vida. Disseram‐me que essas tarefas deviam fazer‐se com distintos auspícios,
não como tarefas mundanas, e sim como esforços artísticos, todos de igual
importância. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu
experimentava a rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma
miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia
do eu.”

(72) ‐ “Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar
disso, suas buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos
somente podem atuar no mundo que tão bem entendem e explicam da maneira
cultural já concordada. Eles se somam a um já existente corpo de conhecimento.
Interpretam e reinterpretam textos filosóficos. Novos pensamentos e idéias
resultantes deste intenso estudo não os mudam exceto, talvez, num sentido
psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou
talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam filosoficamente mudará sua
percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de dentro da ordem social,

à qual apoiam,
filósofos ainda que
são feiticeiros intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os
frustrados.”

‐ “Os feiticeiros também constroem sobre um já existente conjunto de conhecimento.


Contudo, não o fazem aceitando o já provado e estabelecido por outros feiticeiros.
Devem provar de novo a si mesmos que aquilo que já se dá por aceitado na verdade
existe, e se submete à percepção. Para conseguir cumprir esta tarefa monumental,
precisam de uma extraordinária capacidade de energia, a qual obtêm apartando‐se da
ordem social sem retirar‐se do mundo. Os feiticeiros rompem a convenção que tem
definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo.”

(76) ‐ “Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros já não pode trabalhar com
essas premissas.
quer graduar ‐se,Em nosso
deve se mundo mágico
comportar os motivos
como ulteriores
um guerreiro, nãonão são aceitáveis.
como uma mulher Se
treinada para agradar, pois você, ainda quando se põe bestialmente desagradável,
procura agradar. Agora, no que se refere a escrever, já que não foi treinada para isso,
quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro. Deve

208
lutar consigo mesma, a cada centímetro do caminho, e precisa fazê‐lo com tal arte e
inteligência que ninguém notará sua luta.”

(79) ‐ “Para alcançar certo nível de conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do


que o fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo
cotidiano como ao mágico. Para conseguir isso devem ser muito preparados e
sofisticados, tanto mental como fisicamente.”
‐ “Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só propósito.
Toda sua preocupação e esforço se destinaram a terminar seu trabalho. Nada mais
importava. Nenhum outro pensamento interferiu com sua meta.”
(80) ‐ “Os homens constroem seu conhecimento passo a passo. Tendem para cima,
trepam em direção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram
como um cone em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento
limita até onde podem chegar. Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa
altura, e seu caminho termina no ápice do cone. No caso das mulheres o cone está
invertido, aberto como um funil. As mulheres possuem a faculdade de abrir‐se
diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte lhes chega de maneira direta, na base
larga do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das mulheres com o conhecimento é
expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva”. “Os homens se conectam
com o concreto, e apontam ao abstrato. As mulheres se conectam com o abstrato, e
contudo tratam de entregar‐se ao concreto”

(82) ‐ “Por você ser uma bruxa, precisa saber o que te afeta, e como te afeta. Antes de
recusar algo deve saber por que o recusa.”

(85) ‐ “Você experimentou duas transições: uma, do estado de estar normalmente


desperta ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta a estar
normalmente desperta. A primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda um
pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira.”
‐ “O normal é começar a ensonhar dormindo numa rede ou algum utensílio similar,

pendurado
com o chão.em alguma
O sólo nos viga, ou em
captura, nãouma árvore.
esqueça Assim
disso. suspendidos
Suspendido nãoum
assim, temos contato
ensonhador
novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de ensonhar
um ensonho a ensonhar desperto. Tudo isto, como já lhe disse Florinda, é questão de
energia. Assim que a tem, você voa.”

(86) ‐ “Na segunda atenção encontramos continuidade e fluidez, assim como na vida
diária. Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente neles. No
entanto, o que não podemos conseguir na segunda atenção é esmiuçar nossa
experiência para manejá‐la, e com isso nos sentirmos seguros para então tentar
entendê‐la.”

‐a “Na segunda
pessoa deve atenção,
crer que ou como euéprefiro
o ensonho chamá‐la,como
tão verdadeiro quandono ensonhamos
mundo real. despertos,
Em outras
palavras, devemos aquiescer. Para os feiticeiros todo negócio mundano ou extra‐
mundano está regido por seus atos irretocáveis, e detrás de todo ato irretocável está o
aceder, que não é aceitação. O assentir inclui um elemento dinâmico: inclui ação. No

209
momento em que começamos a ensonhar desperto se nos abre um mundo de
incitantes e inexploradas possibilidades, onde a última audácia se converte em
realidade, onde se espera o inesperado. Esse é o momento em que começa a aventura
definitiva do homem, e o universo se converte em um lugar de possibilidades e
maravilhas ilimitadas.” (aceder: aceitar, aderir, anuir, aquiescer, assentir, concordar,
acatar, consentir, condescender, compactuar).

(88) ‐ “Nossa grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a tudo salvo nossa
bufonaria.”
‐ “Para aliviar sua pena afunde‐se em si mesma. Sente‐se com os joelhos elevados,
tomando seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo direito com a mão
esquerda. Descansa sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a
terra te acalme, que sua força curativa venha a ti.”

(90) ‐ “Você se queima rápido demais e de forma desnecessária”. Disse que eu não
sabia enfocar minha energia. “Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti
mesma”. “Disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na realidade só uma idéia,
e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia defendendo essa idéia.”
‐ “O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que pode ser
mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando
se afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar‐se com o intento, e ser
mais do que acreditamos constituir o normal.”

(96) ‐ “Para viver no mundo dos feiticeiros deve‐se ensonhar amplamente. A maioria
das pessoas não possui a engenhosidade nem a estatura espiritual necessária para
ensonhar. Não podem evitar ver o mundo como algo ordinário. E sabe por quê?
Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade ordinário. A maioria das
pessoas vive tão preocupada consigo mesmas que se idiotizaram, e os idiotas não
desejam lutar para evitar a ordinariedade.”

‐ ‐
(97 98)o poder.
existe “É boboNos
pensar emmomentos
piores termos de os
justiça e injustiça.
guerreiros No mundo
revivem dos feiticeiros
suas forças para seguirsó
adiante. Um guerreiro não sucumbe ao desespero.”
‐ “Nosso mundo mágico, que é um ensonho, é feito realidade mediante o desejo
concentrado daqueles que participam dele. A todo momento o mantêm intacto a
vontade tenaz dos feiticeiros, do mesmo modo como o é o mundo diário pela vontade
de todos. Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta.
‐ “Morrer significa que cortamos todas as amarras, abandonamos tudo o que temos,
tudo o que somos. Se tivesse morrido como o exige a feitiçaria agora não sentiria
angústia. Sentiria dever, propósito! Não se espera que se evite a tristeza ou o amor, e
sim que se sobreponha a eles. Se os guerreiros não possuem nada, nada sentem. Vazio
é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos. De modo que temos
um mundo
a morte, esfarrapado,
e não só pensamsurrado, aborrecido,
nela, e sim repetido. Para os feiticeiros o antídoto é
que morrem.”
‐ “Ensonhar viva significa ter esperanças, que se aferra a seu ensonho para manter‐se
viva. Ensonhar morta significa que abandonou a esperança, que não se agarra a seu
ensonho. Florinda havia dito que a liberdade é uma total ausência de preocupação por

210
si mesmo, algo obtido quando a massa de energia aprisionada dentro de nós é
liberada. Havia dito que esta energia somente podia liberar‐se quando podemos
reprimir o exaltado conceito que temos de nós mesmos, de nossa importância, essa
importância que consideramos inviolável e livre de enganos.”

“O preço da liberdade é muito alto. A liberdade unicamente se consegue ensonhando


sem esperança, estando dispostos a perder tudo, inclusive o próprio ensonho. Para
alguns de nós ensonhar sem esperança, lutar sem meta, é a única maneira de não ficar
para trás do pássaro da liberdade.”
DICIONÁRIO (ESP‐PORT) EM ORDEM ALFABÉTICA

Abrumar: atordoar, enevoar, obscurecer Comisuras: cantos


Acertijo: charada, enigma, adivinhação Contestó: respondeu
Acceder: concordar, aceder (ter acesso), Contrarrestado: balanceado,
aceitar, consentir, acatar, submeter‐se, neutralizado, compensado,
condescender contrabalançado, agir contra
Además: além Conque: então (so then)
Adictiva: viciante Cornisa: beira, borda

Afición: afeição
Agazapada: escondida, encoberta, oculta Crobizo: avermelhado,
Crujir: ranger, estalar acobreado
Agujero: buraco, rombo, perfuração, vazar, Cuchara: colher
fenda Cuchillo: faca
Ahorrar: conservar, conter, manter. Ahorro: Cuello: garganta
poupança, economia
Alacena: armário, buffet Defraudar: decepcionar, desapontar,
Alfombra: tapete, carpete fraudar
Alimañas: animália, feras, pragas, pestes, Dejo: toque, dica, pitada
pequenos predadores Derriban: derrubam, demolem,
Almendra: amêndoa (almendrado) destrõem.
Amago: demonstrar a intenção de (sinal), Derrotero: curso, caminho, direção,

indício, ameaçar
Amanerado: fazer
cortês, boas maneiras, fresco plano de ação
Desayunaba: pequeno almoço,
Ancha: longa, ampla, larga, extensa desjejum
Anhelante: ávido, ansioso, interessadíssimo Desconchinflar: desmontar, descompor
Anhelos: anseios, desejos, vontades, Desenfado: naturalidade, simplicidade,
pretensão singeleza, despreocupação,
Añadir: (add, anex, increment) completar impulsividade, desebinição, desprezo
Añicos: fragmentos, pedacinhos Desgano: tédio, falta de gana, de
Anidaba: aconchegava, aninhar, acomodar vontade, repúdio
Antojó: sentir o gosto, agradar, parecer Desmandarme: ir longe demais,
Apantallar: impressionar, surpreender exagero, descontrolar‐se
Aplastar: comprimir, abrir, esmagar, Desmenuzar: esmiuçar, especificar,
pressionar, apertar esmigalhar
Apuesto: charmoso Desparpajo: atrevimento, dispersão
Arpillera: estopa, aniagem, tecido rústico Desplegar: dispersar, empregar
Arreglar: remediar, reparar, arranjar, (esforços), desdobrar
dispor, organizar, arrumar; saldar, ajustar Despliegue: revelação, demonstração,

211
contas; acalmar. amostra, exibição
Arrojar: jogar, lançar, atirar Desplomaba: desmoronava,
Asidero: pretexto (para fazer algo), ponto despencava
de apoio, suporte, aderência, maçaneta, Destartalado: esfarrapado, decrépito,
aperto de mão, sacada (entender), deselegante, surrado, desleixado,
anteparo desmantelado
Asignado: atribuído, designado Desvaído: esvaído, desbotado,
Asomo: aparecer, mostras, sinal (marcas) desanimado, apagado
Atañe: concerne, diz respeito, ter relação
Atemperado: moderado (ânimo), Echar: jogar, atirar, expulsar, rejeitar,
aclimatado lançar
Atrapar: prender, apanhar, capturar Eludir: evitar, escapar, evadir
Atrapada: pêga, capturada, aprisionada Encomio: elogio, aplauso, louvor,
Aunar: juntar, unir, ligar, atar, prender; parabenizar
acrescentar; combinar, concordar Empiece: começar, iniciar, principiar,
Aunque: embora lançar
Empecinada: obstinada, persistente
Basura: varredura, limpeza, rápido, faxina Emplear: empregar, ativar, utilizar,

Borrar:
Brindó: apagar, desvanecer
trouxe, ofereceu empenhar
Empotrado: encaixado, integrado,
Broma: piada, gracejo, anedota alojado, assentado
Burla: iludir, fingir, simular, enganar, Enano: anão
trapacear, tapear Enfado: tédio, raiva, zanga, irritação,
Burlona: jocosa, irônica, pilhéria,
aborrecimento, indignação, importuno.
espirituosa, mordaz, satírica, picante, Enfurruñada: furiosa, raivosa
irreverente, cáustica, sarcástica, pungente,
Enojo: raiva, irritação
cínica, ferina. Ensanchar: alargar, ampliar, dilatar,
expandir
Cacerola: caçarola, panela grande Ensayé: testar, tentar, experimentar
Calidez: entusiasmo, cordialidade, quente, Enrejado: grade, treliça

calor humano,
Calzones: ternura
calcinha Escenas:
Estancia: cenas,
estadavisões
Cantarín: melodioso, suave e agradável de Estallido: explosão, estouro, rompante
ouvir Escurrir: deslizar, passar entre
Cargoso: chato, aborrecido / teimoso, Espeté: espetar, mencionar, cutucar
persistente Esquizoide: dividido, esquizofrênico
Celos: ciúmes Estallé, estallido: explodir, rompante
Chaqueta: casaco, blusa, paletó, camisa Exangüe: débil, exausto, esgotado,
Chillona: chorosa pálido
Chisme: boato, fofoca, intriga, rumor; Exhumé: desenterrei
invento, engenhoca, artefato
Cholos: mestiços Factótum: faz‐tudo
Codicia: cobiça,
desejo,avareza,
mesquinharia, Falda: saialadear
voracidade, ansiar Flanquar:
Colgar: pendurar, trepar, pender, suspenso Frazada: cobertor, manta
Colmado: coberto, forrado, cheio, oprimido
Hallar: encontrar, achar, buscar,

212
averiguar, localizar
Hallazgos: achados, descobertas.
Serendipity: capacidade de fazer
descobertas importantes por acaso,
sorte.

Halagó: lisonjeou, agradar, adular Peatonal: de pedestres


Haragán: preguiçoso, pessoa suja (slob) Percatar: estar ciente
Hecho: evento, fato, feito, realização Pícaro: atrevido, imoral, travesso,
Helecho: samambaia debochado, provocante, malicioso,
Hembra: (relativo ao sexo) feminino maldoso
Honda: profunda, intensa Picardia: malandragem, baixaria,
Huella: pegada, pista, marca deixada, desonestidade, travessura
rastro Plañidera: trêmula
Huidizo: fugidio (huir), ou breve, fugaz Plegadiza: dobradiço, dobrável
Hundir: afundar algo, cravar, desabar, Pómulos: maçãs do rosto, pômulos
submergir Por lo bajo: em segredo, silenciosamente
Hurtadillas: furtivamente, secretamente Posadera: nádegas

Infructuosamente: sem efeito, em vão Reanudar: recomeçar, renovar, retomar,


Ingenio: brilhantismo, engenhosidade, reiniciar
capacidade Recelosa: desconfiada, receosa
Ingle: virilha (distrustful)
Involucra: envolve, implica, inclui Rechazo: rejeição, recusa, repúdio
Irreprochable: irrepreensível Regaño: repreender, censurar
Remilgué, remilgado: esmerado,
Jadear: ofegar, arquejar, engasgar, dengoso, melindroso, delicado em
inspirar fundo excesso, recatado.
Jarras: xícaras, canecas Reñir: brigar, argumentar, alegar,
Jerigonza: linguajar complicado, confuso defender
(galimatías)
Joder: foder, ferrar, irritar. No me jodas! Resultó:
Rezagada:eraretardado, retardatário, lerdo,
(Está de sacanagem?). Hay que joderse atrasado, preguiçoso
(Tem que ter saco). Rienda suelta: livre fluxo, vazão, liberar
Juguetón: divertido Roto: quebrado

Lacio: em linha reta, retilíneo Quedar: restar, sobra, fica, cair, manter
Ladrillo: tijolo
Lampiño: careca; audacioso, cara‐de‐pau, Sencillamente: verdadeiramente,
descarado sinceramente
Lechuga: alface, salada, folhas Sendero: caminho, trilha, pista
Lechuza: coruja, pessoa não sociável, Sienes: têmporas
heremita Sin alento: sem fôlego, ofegante
Liviana: leviano, superficial, leve, ligeiro Sin tacha: impecável, completo, sem
Lóbregas: obscuras, sombrias defeito (flawless)
Lucir: parecer, exibir‐se, mostrar‐se Sortija: anel (mais os com algum adorno
ou pedra preciosa)

213
Majadería: estupidez, bobagem, idiotice, Sostuvo: manteve, sustentou, conservou
tolice, burrice Suministrado: fornecido, suprido, fonte,
Manchón: manto, capa supply
Manojo: feixe, punhado, porção Sueles: acostumado a
Marchitar: degenerar, murchar, Suspicaz: desconfiado, duvidoso, receoso
desaparecer, desvanecer, esvair, dissipar‐
se, fenecer, esmorecer, desfazer‐se, Tacón: salto (de sapatos)
definhar, enfraquecer, debilitar; Taladró: perfurou, broca; ferir, magoar
encolher‐se; prejudicar Tararear: cantarolar
Me echaste de menos? ‐ Sentiu minha Taza: cálice, taça, copo, tigela, xícara
falta? Temprana: cedo
Menudo: ligeiro, breve, ágil, destreza, Teñida: tingida, pintada
leve, portátil Terminante: categórico, preciso,
(a menudo: constantemente, definitivo, inquestionável
frequentemente) Testarudo: tenaz, perseverante, teimoso
Mitigar: abrandar, serenar, suavizar, Tetera: bule de chá, chaleira
aplacar, aliviar, saciar Tibio: morno
Mofar: zombar, judiar, brincar, gracejo, Tirón: puxão súbito, tranco

escarnecer
Mojigata: puritana (ou modos femininos) Tobillo:
Todavía:tornozelo
ainda
Mohín: careta, trejeito Trampa: armadilha; alçapão; engano,
Muchacha: garota, menina trapaça, subterfúgio
Musitó: sussurrou, cochichou Trasfondo: conotação, matiz, base,
Muslo: coxa formação, antecedentes
Trinchante: faca de carne, cinzel
Nalgas: nádegas, bunda Trizas: pedaços, cacos
Necedades: tolices, burrices Trozos: peças, pedaços, partes
Nudillos: nós dos dedos, juntas
Ubicada: localizada, situada
Ocaso: declínio Uno: pessoa, aquele que

Ominoso:
Oquedad: agourento, mau presságio
buraco, cavidade, oco, vazio Valedero: válido, legitimado, executável,
forçado
Paladeándola (paladear): saborear, Viandas: comidas, iguarias, petiscos
aprecisar, desfrutar, gozar Vindicada: justiçada, vingada, desforra
Parejo: uniforme, paralelo, alinhado
Parroquianos: clientes, fregueses Zambullir: mergulhar
Pasillo: corredor Zanjó: escavou
Patada: chute, pontapé
Patraña: estórias (manjadas, pra boi
dormir), contos
Patane: grosseria, deselegante, rústico,
desajeitado
Consultas para a Tradução e Guias de Referência

“Así habla el mexicano: Dicionário Básico de Mexicanismos” ‐ Jorge Mejía

214
http://www.babylon.com/definition
http://www.diccionarioweb.org/p/ES/desco
http://www.wordreference.com
http://www.woxikon.com.br/espanhol/
http://pt.wiktionary.org/wiki/

http://www.plantamed.com.br/glossario/index.html
(Plantas medicinais, descrição de doenças e usos de cada planta para tratamento)
http://www.jardineiro.net

Al fin y al cabo: (quando tudo é dito e pronto) afinal; no fim das contas.
A la par de: junto com, assim como, ao mesmo tempo que.
Tirando a: tendendo a, viés (tirando a pequeños ‐ de médio a pequenos).
Fade: desbotar, fazer desaparecer a cor e o brilho; esvair‐se; murchar; encarquilhar;
desaparecer; amortecer; perder a força.
Sanseacabó: ponto final, fim de papo, assunto encerrado (expressão coloquial).
Brinco: salto, pirueta, pulo.

A sus anchas (locução adverbial ‐ coloquial). (Pág. 24) Me puso tan a mis anchas:
deixou‐me tão à vontade, tão cheia de si.
‐ Con entera liberdad. Se usa com: estar, quedarse, sentirse y vivir. “Cuando ao fin
todos se fueron, ella se quedó a sus anchas.”
‐ Orgulloso, ufano. Se usa mais com: estar, ponerse y quedarse. “Le insultó y se quedó
tan ancho.”

Antojar: desejo intenso e passageiro (mulher grávida), capricho; suposição, “a mim me


parece”.
‐Fazer‐se objeto de veemente desejo, ainda mais se só por capricho. “No hace mas que
lo que se le antoja”.

Fazer uma
antoja consideração
que aquí como
sucede algo algo provável. “Se me antoja que va a llover”. “Se me
raro”.

Santurronería (nome feminino) despectivo. Atitude ou comportamento que se


caracteriza por dar grandes mostras de devoção religiosa, geralmente de maneira
exagerada e hipócrita. Fanatismo, extremismo, intransigência, religiosismo, beato.
(pág. 5)

Panocha (nome feminino) ‐ pág. 38


1. Espiga grande, formada por grãos grossos e apertados, assim como o milho.
2. Palavrão (xulo) Méx. ‐ Parte externa do aparelho genital feminino (boceta,
perereca).
3.
deColomb
panochas‐ Tipo de pan grande, hecho con maíz tierno: crió a sus dos hijos con la venta
y tamales.
4. Méx ‐ Raspadura de azúcar que se prepara sólida en trozos (rapadura).

Arvejilla, Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce.

215
É uma trepadeira anual de inverno. Apresenta caule herbáceo, áspero e ascendente
por meio de gavinhas que se desenvolvem nas pontas das folhas compostas. Suas
flores são muito vistosas, perfumadas, solitárias e podem ser de cores e matizes
variados, com degradés e combinações entre o azul, branco, amarelo, laranja, rosa e
vermelho. Após a polinização formam‐se vagens curtas, com sementes semelhantes a
ervilhas, porém venenosas. A ervilha‐de‐cheiro é uma excelente trepadeira para
pequenos suportes, como treliças e até mesmo cercas. Sua altura não ultrapassa os
dois metros. A floração ocorre na primavera e verão.

“Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve agir
nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar.”
‐ Quais são as atividades do mundo dos feiticeiros? As Cinco Preocupações. Juntar‐se a
esse mundo é fazer suas coisas.

“Uma pessoa pode não se dedicar a ler os indícios do espírito, temendo que eles
mostrem um caminho pelo qual não se gostaria de seguir, temendo que eles mostrem
aquilo que não se quer ver, por diferir de suas metas e desejos pessoais.”

216

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