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A família escrava
É evidente que a vida sob cativeiro criava sérios entraves à forma-
ção de famílias. A tendência do tráfico de importar mais homens do
que mulheres dificultou a formação de casais. Ou seja, havia muito
homem para pouca mulher nas senzalas. A condição escrava difi-
cultou também a consolidação de famílias e comunidades, já que
amigos e parentes podiam ser separados pela venda ou decisão dos
senhores de alocá-los em propriedades diferentes e distantes.
A despeito dos obstáculos criados pela escravidão, os cati-
vos buscavam manter relações conjugais estáveis, além de cons-
truir redes de parentesco extensas para além dos laços consangü-
íneos. Os estudos mais recentes sobre família escrava no Brasil
têm demonstrado que, nas grandes plantações de café e cana, par-
te considerável dos cativos conseguiu criar e manter relações fa-
miliares ao longo do tempo.
No interesse de garantir condições mínimas de segurança para
si e para sua propriedade, houve senhores que preferiam garantir
alguma estabilidade familiar aos seus cativos. Na visão desses se-
nhores, o escravo preso às responsabilidades familiares tinha me-
nos predisposição para fugir ou rebelar-se. Essa estabilidade, po-
rém, podia ser abalada por motivo de venda, morte do senhor, do-
ação e transferência de algum membro da família para outra propri-
edade. Ou seja, o escravo podia se rebelar em protesto contra a
separação de parentes, ou fugir em família para evitar a venda, ou
ainda fugir para se reunir a parentes já vendidos. Podiam se rebelar,
sobretudo, contra os que abusavam dos seus filhos e filhas.
Sem dúvida, constituir família era um projeto de vida do
escravo. Para o africano desenraizado pelo tráfico, a recriação de
Terreiros e irmandades
No Brasil coexistiram tradições religiosas africanas diversas. Isto
porque o tráfico vitimou povos de origens e culturas religiosas
diversas. Em todo o Brasil, no período colonial (até o século XVIII),
o termo mais comum para nomear as práticas religiosas de origem
africana parece ter sido calundu, uma expressão angolana que vem
da palavra kilundu, que significa divindade em língua umbundo. A
mais antiga referência escrita ao termo candomblé é do início do
século XIX, na Bahia. E candomblé vem também de um termo
oriundo da região de Angola, que significa culto ou oração. Sabe-
se que tanto nas cidades como nas áreas rurais, as religiões africa-
nas (ou afro-brasileiras) foram importante fator de agregação dos
escravos e libertos.
Antes de 1850, as tradições religiosas africanas mais impor-
tantes do sudeste brasileiro, especialmente do Rio de Janeiro e de
São Paulo, eram originárias da região centro-ocidental da África,
sobretudo o território da atual Angola. A grande importação de
escravos originários daquela região marcou profundamente a cul-
tura religiosa desta parte do país. Na religião angolana o culto dos
ancestrais era fundamental, mas também importante era a devo-
ção a entidades espirituais chamadas inquices.
Da mesma forma, o grande fluxo de africanos da África
Ocidental influenciou fortemente o culto de origem africana na
Bahia e no Maranhão. Os povos reunidos no antigo reino do
Daomé (atual República do Benim), conhecidos como jejes na
Bibliografia:
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