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Cezar Karpinski
Resumo: Neste artigo apresento algumas leituras Abstract: This article presents some reading on
sobre paisagem e suas interconexões com a história. landscape and its interconnections with the history.
O objetivo principal é perceber como os fatores The main objective is to understand how social
sociais interferem nas construções da paisagem, factors affect the constructions of the landscape,
pois na elaboração cultural da categoria “Paisagem” because on the cultural elaboration of the category
estão os anseios, sentimentos e relações de interesse "Landscape" are the desires, feelings and
na delimitação dos espaços. As discussões em torno relationships of interest in the delimitation of spaces.
da paisagem colaboram também para a história das The discussions around the landscape also
relações sociais e culturais estabelecidas com o collaborating with the history of social and cultural
meio ambiente. relations established with the environment.
Considerações iniciais tempo. Por ter essa dimensão, a paisagem pode ser
considerada um espaço de conflitos e um lugar de
O objetivo deste texto é oferecer uma breve disputa, e isto confere um caráter político à
discussão acerca dos estudos históricos sobre paisagem. Em algum momento se quis afirmar as
paisagens. Diante das várias possibilidades de dicotomias e as diferenças entre as paisagens do
abordagens a esse assunto, se objetiva traçar um campo e da cidade. Da mesma forma, o gosto pelo
diálogo entre O campo e a cidade de Raymond mar, pela vista do mar e, consequentemente, o
Williams e Território do vazio de Alain Corbin. gosto de morar à beira-mar não surgiu por acaso.
Nestas duas obras se percebe como as construções
das paisagens refletem os aspectos culturais de um
tempo. No caso de Williams, a preocupação em 1. Raymond Williams e a Paisagem Social
demonstrar como a descrição das paisagens
campesinas e urbanas foi se constituindo dentro da É possível e interessante levantar a história
literatura como o reflexo de uma cultura social e da paisagem na pintura, da paisagem na
econômica. Em Corbin, verificam-se as maneiras literatura, do paisagismo e da arquitetura
pelas quais os ocidentais passaram a olhar para a paisagística, mas na análise final devemos
relacionar estas histórias à história comum
praia e como essas mudanças de gosto, com relação
de uma terra e da sociedade nela
ao mar, estão inscritas nas pinturas dos artistas de existente.2
cada época.
As representações dos modos de ver as Podemos perfeitamente iniciar dizendo que
paisagens inscritas tanto na literatura quanto na o livro O campo e a cidade de Raymond Williams é
pintura orientam à compreensão da sociedade. uma obra que relaciona paisagem e memória. Por
Além disso, podem estabelecer ricos diálogos sobre mais que o objetivo central do livro seja questionar
as construções dos espaços, dos lugares, dos as construções dicotômicas entre estes dois espaços
territórios e, principalmente, da cultura de cada numa perspectiva crítica à sociedade capitalista, o
1
Doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana- UNILA. Endereço para correspondência: cezark@hotmail.com
2
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.167.
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autor não se furta de suas motivações e memórias transformadoras, as atitudes inglesas em relação ao
pessoais sobre o assunto. A impressão que temos, ao campo persistiram e refletiram na literatura ainda
iniciar a leitura do livro, é a de que os significados da do século XX.
vida campestre, suas paisagens e representações, Raymond Williams está preocupado com as
estão presentes nas memórias do autor. Em alguns mudanças de perspectivas das imagens sobre
momentos, parece que Williams vai se campo e cidade. Procurar a origem das distinções
autobiografando na escrita sobre o campo. A essa entre campo e cidade ou a origem das atribuições
experiência pessoal que o levou ao assunto se integra esteriotipadas destes dois conceitos é também uma
também sua postura crítica e política à sociedade. forma de encontrar o início das “tradições”
Neste sentido, Williams deixa claro seu intuído de campesinas e urbanas. Contudo, Williams não está
escrever uma história do campo e da cidade “numa à procura das verdades dessas explicações, mas
abordagem de história social, literária e intelectual”3. como foram inventadas ou selecionadas. Sua
As imagens presentes em suas memórias vão preocupação está em estabelecer como ocorreram
se misturando à história do campo e da cidade: sua as mudanças das formas de abordagens e como isso
família, a experiência de nascer em Gales e migrar influenciou as experiências dos indivíduos do
para Londres, depois voltar novamente para o campo e da cidade.
campo. Suas emoções fornecem um colorido à Ao afirmar que “todas as tradições são
parte ao texto, o tornando extremamente agradável seletivas”6 Williams está dizendo que esta “seleção”
e compreensível apesar de toda a densidade da importa a alguém, e, principalmente, que serve para
obra. “Assim, ainda que o campo e a cidade algum tipo de relação social. Com este teor crítico é
guardem esta importância profunda, cada um a seu que ele inicia suas análises sobre a tradição Bucólica
modo, meus sentimentos já estão comprometidos que, segundo ele, desde a Grécia Clássica,
antes mesmo que tenha início qualquer influencia a literatura rural com a introdução de tons
4
argumentação” . e imagens de um tipo ideal, contudo, com algumas
Dentro da literatura inglesa, Williams tensões entre outros tipos de experiência. Já a
percebe a existência de imagens relacionadas ao adaptação deste bucolismo feita pelos
campo e a cidade que persistem através dos renascentistas consiste em retirar e eliminar estas
tempos. Afirma que essas imagens configuram-se tensões até nada restar de adversidade, afasta-se do
em atitudes emocionais que agregam esteriótipos mundo vivo e cria-se um mundo edulcorado.
positivos e negativos a ambos. Ao campo, por Williams vai buscar na literatura, poesia e cantos os
exemplo, se adaptou como imagens positivas o exemplos dessa evolução do bucólico na sociedade.
natural, a paz, a inocência e as virtudes simples. Como vão se cantando os ideais do campo, ideais
Como negativo no campo aparecem os esteriótipos de natureza, fartura. Segundo ele, essa visão segue
de atraso, ignorância e limitação. Já para a cidade, as idealizada até fins da idade média e perpetua-se.
imagens positivas são o saber, o lugar das Nas análises de Williams, a literatura sempre
realizações, a comunicação, a luz. O barulho, a acompanha as transformações sociais. A partir de
mundanidade e a ambição se integram às imagens fins do século XVII e, principalmente, início do
negativas da urbe. Contudo, “apesar de todas as XVIII, os poemas e os romances vão diagnosticar um
diferenças, persistem certas imagens e associações, e o ideal de evolução nas transações temporais.
objetivo deste livro é descrevê-las e analisá-las, vê-las Williams não nega essa nivelação histórica por que
5
conectadas à experiência historicamente variada” . conclui que, em nome de uma ideologia do
O tema centra-se na Inglaterra porque o melhoramento, uma cultura foi mesmo se
autor acha que ali as transformações foram decisivas sobrepondo à outra. “As relações sociais que
e aconteceram bem mais cedo, por conta da constituíam obstáculos a essa forma de
revolução industrial. Para Williams, é fundamental modernização começaram a ser gradualmente
perceber que, mesmo com todas as experiências destruídas, por vezes de forma impiedosa”.7
3
Ibidem, p.13.
4
Ibidem, p.17.
5
Ibidem, p.12.
6
Ibidem, p.34.
7
Ibidem, p.89.
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8
GOLDSMITH,Oliver (1728-1774). The deserted village, 1770.Apud. WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.97.
9
THOMSOM, James (1700-1748). The Season, 1730.Apud. WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.98.
10
WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.102.
11
CRABBE,George (1754-1832)The village, 1783.Apud. WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.124.
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alterações técnicas no processo de trabalho e seus em que crescia, a classe dominante queria segurar
12
reflexos, desejados ou não, sobre a paisagem”. esse crescimento que pululava de pobres. “Como
Entendemos que essa seja uma das características acontece tantas vezes, a classe dominante queria
presentes no trabalho de Williams. desfrutar as vantagens de um processo de
Além disso, percebemos na leitura de O transformação [...] e ao mesmo tempo suprimir suas
13
campo e a cidade, que a invenção de uma conseqüências indesejáveis, porém, inevitáveis.”
paisagem campestre obedeceu a um gosto peculiar: Para esta abordagem, Williams vai utilizar a
o gosto de uma classe que destaca o campo sempre visão de um literato que veio do campo para a
em contradição com a cidade. Neste sentido, a cidade para demonstrar o “deslumbramento e a
paisagem campestre reconstruída nas narrativas estranha delícia” que a história da cidade
literárias é vista a partir do olhar do habitante da despertava em tal poeta – William Wordsworth
cidade. Até mesmo as odes de choro e saudades de (1770-1850). Além disso, Williams percebe as
um campo bucólico e romântico desaparecido, angústias de tal experiência como a perda de
representam um sonho ou uma utopia de uma classe conexões e identidade na multidão.
distinta, a da burguesia urbana inglesa. A própria
inscrição do trabalhador dentro das paisagens, como Como podia um homem, viver sem
um homem sofrido e sempre saudoso de um passado conhecer sequer o nome dos vizinhos que
áureo passa a ideia de que o campo é algo do moram a seu lado.14
passado, de memórias. A cidade é o futuro, ela é o
progresso, o presente, o modelo, o moderno. Um literato do campo escrevendo sobre a
É importante notar também que o estético cidade: não é à toa que Williams o escolheu. O que
está sempre presente nas definições de paisagens poderia um campesino dizer sobre esse mundo tão
campestres analisadas por Williams. A paisagem é, distinto, porém, tão sedutor? A figura de
em suas representações literárias, algo belo. Quer se Wordsworth na obra de Williams quer representar a
cantar, quer se escrever sobre algo que obedeça a postura de milhares de camponeses que
um padrão estético dominante nestes períodos pós- abandonaram suas terras para trabalhar nas cidades.
revolução industrial. A cultura dominante impede Com ele, pode-se representar a sedução da cidade
que os quadros desenhados pelos romances e como esta inserção do exógeno no espaço urbano
delineiem camponeses com pés sujos ou têm de se integrar a toda uma estrutura de
trabalhando nos lamaçais dos currais. Essa figura, sentimentos presente na cidade. Há de se lembrar
segundo uma lógica do claro, do limpo e do que esse percurso também foi feito por Williams
produtivo não seria uma paisagem adequada ao que, nascido no campo, migra para a cidade. As
conteúdo que deveriam representar. experiências de Wordsworth podem representar as
Isto posto, Williams passa a problematizar as imagens que muitos faziam da cidade, quem sabe
transformações na cidade também. Partindo do até as de Williams.
século XVIII, ele percebe uma modificação radical Além de William Wordsworth, outro autor
também na paisagem da cidade, pois o rápido que também é bastante citado por Williams em suas
processo de expansão vai desencadear uma série de análises sobre as transformações da cidade é
questões sociais. Nas poesias deste período, Charles Dickens (1812-1870). Segundo Williams, as
Williams vai destacar a ausência de imagens obras deste literato refletem bem as mudanças
bucólicas. Os contextos pelos quais os observadores ocorridas na Londres do século XIX. Novelista e
setecentistas vão olhar para a cidade é o da escritor de histórias curtas, Dickens mostrou,
superestrutura do comércio. Londres passa a ser o segundo Williams, uma cidade que aparece ao
centro do mundo, a cidade das luzes e do progresso. mesmo tempo como fato social e como paisagem
Neste período, também começam as humana. O que se dramatiza na cidade é uma
grandes contradições da cidade: ao mesmo tempo estrutura de sentimentos muito complexa.15
12
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. História das paisagens. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.214.
13
WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.204.
14
WORDSWORTH, William (1770-1850).The London, 1803. Apud. WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.209.
15
WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.220.
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Paisagem e História: Notas de Leitura
Segundo Williams, Dickens caminhava nas ruas e personagens imagens que refletiam a solidão, o
descrevia/exibia a reação emocional das pessoas pessimismo e a fantasia presentes na nova paisagem
que passavam ou viviam em Londres: viajantes, da cidade moderna.
imigrantes, comerciantes. No final do século XIX e início do XX, o
O que caracteriza essa estrutura de caráter social da cidade – no que tem de transitório,
sentimentos presente na obra de Dickens é, inesperado, na procissão de homens e eventos e no
segundo Williams, a mistura das paisagens materiais isolamento essencial e inebriante – era visto como
às pessoas. Fica nítida em tais romances a ascensão realidade de toda a existência humana.
de uma cultura material onde as características dos
lugares e personagens sempre se misturam. Ainda havia um contraste entre a cidade e o
campo, baseado nas concepções mais
Porões, que enfrentavam a desaprovação antigas de estabilidade e inocência rurais.
das carrancudas janelas trancadas e o olhar Porém, o contraste se daria em um sentido
debochado de portas vesgas.16 oposto: entre consciência e ignorância,
vitalidade e rotina, entre o que é presente e
É essa mistura de fatores materiais e concreto e o que é passado ou
desaparecido [...] qualquer outra forma de
humanos que coloca Dickens como um literato
vida fora da cidade parecia irreal.18
capaz de demonstrar as figuras humanas se
esvaindo nas paisagens da cidade. São várias as
Com estas reflexões, Williams procura
citações que Williams faz da obra de Dickens, o que
pensar como seria o homem do campo de sua
não vem ao caso repeti-las. Porém, seus romances
época. Segundo ele, o passado rural, seus
mostram os indivíduos subsumindo-se na cidade. A
sentimentos e sua literatura estavam ligados à
cidade transcende o humano e personifica “a
experiênciarural, e tantas das suas concepções a
alteração crucial sofrida pelo relacionamento entre
respeito da vida rural. Neste sentido, ele vai
homens e coisas”.17 Para Williams, a importância
perceber a persistência e o fortalecimento da
dada por Dickens a essa dicotomia de paisagens
importância cultural das idéias rurais na literatura
humanas e materiais foi o que o fez descrever
inglesa. Sob este prisma ele destaca três linhas: 1) o
perfeitamente a dinâmica da experiência social em
romance regionalista; 2) a literatura que expõe os
transformação na cidade.
sentimentos humanos relacionados ao respeito pela
Desta concepção de cidade, Williams
terra, vegetação, paisagens e que engloba também
percebe o campo sendo relegado a um segundo
uma imagística dos relacionamentos humanos; 3) as
plano. Segundo ele, quis se estabelecer que a crise
expressões literárias de uma tendência
social da Inglaterra do século XIX tinha seus aspectos
representada por memórias e descrições da vida
específicos no meio rural. Contudo, para Williams,
rural (coleções, retratos tradicionais, folclore).
se tratava de uma crise geral devido às intrincadas
Além disso, Williams está preocupado
interconexões entre propriedade rural e
também com o futuro da cidade. Para ele, as
propriedade urbana. Pode-se afirmar com isso, que
poderosas imagens que temos tanto da cidade
a causa da crise estava relacionada à questão da
quanto do campo constituem maneiras de nos
propriedade e não de um ou outro aspecto urbano
colocarmos diante de todo um desenvolvimento
ou rural em particular.
social. Sua sugestão é o exame de suas inter-
Em meados do século XIX a população
relações e não o dos contrastes. Alerta para a
urbana excedeu a rural pela primeira vez na história
presença de uma estrutura de sentimentos que
da Inglaterra. Este fato, para Williams, representa
sempre procura reviver o passado. Assim como os
uma marca divisória importante de um novo tipo de
camponeses faziam, nos dias atuais os habitantes da
civilização, a urbana. Essa nova cidade propicia
cidade é que vêm buscando essas imagens de
novas perspectivas e novas paisagens. Os
retrospecção das histórias e memórias da infância e
romancistas urbanos passaram a recriar em seus
de outra cidade que ficou no passado. Williams não
16
DICKENS,Charles (1812-1870). Dombey and Son, cap. xiii, 1848. Apud WILLIAMS, Raymond.Op.cit. p.221.
17
WILLIAMS, Raymond. Op.cit. p.227.
18
Ibidem, p.316.
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vê nisso uma busca de idealizações, mas com estas As paisagens marítimas presentes nas obras
representações procura questionar as ações do de arte forneceram algumas imagens que a
presente na vida da classe proletária, sociedade tinha do mar em determinado período.
principalmente. Para Williams, o que é necessário Além disso, possibilitaram a observação do jogo de
examinar não são as imagens do campo e da cidade, forças presentes na sensibilidade do artista. Seus
mas as experiências dos processos sociais concretos sentimentos inscritos na paisagem da tela poderiam
de alienação, separação, exterioridade e abstração representar como as pessoas viam e queriam
19
presente em ambos. representar o litoral. Para isso, Corbin entrecruza
Através das formas de descrição das estas paisagens ao contexto médico, científico e
paisagens campestres e urbanas inscritas na intelectual do momento estudado. Esta
literatura inglesa dos três últimos séculos, Williams contextualização é, por vezes, a busca de um
elabora toda sua problemática e crítica às formas começo para essas mudanças. Por mais que
dicotômicas de se perceber o campo e a cidade. A delimite seu tempo de estudo entre os anos de 1750
densa elaboração de Williams demonstra como as a 1840, Corbin ainda busca certas origens,
paisagens são construtos do tempo social e das momentos cruciais que se mostram como marcos
experiências humanas. Sendo assim, sua de mudanças neste gosto. Entretanto, o intuito aqui
abordagem às paisagens como instrumento para não é uma análise historiográfica sobre este livro,
trabalho historiográfico tem como centro a mas um modo de ver como Corbin percebe as
sociedade e, indiretamente, as lutas de classe de paisagens. Nesta obra em particular, os quadros
quem realça qual paisagem deve prevalecer em com paisagens marinhas são uma das fontes para o
determinado espaço. estabelecimento das teses do autor.
O importante para Alain Corbin é a
afirmação de que o gosto pela praia tem uma
2. Alain Corbin e a Paisagem como expressão das história e que esse sentimento foi construído através
Sensibilidades de inúmeras representações que nem sempre
tiveram a paisagem marítima como lugar de prazer.
Na obra de Corbin, percebe-se que as Segundo ele, a época clássica, por exemplo, “ignora
paisagens estão intimamente ligadas a um o encanto das praias de mar, a emoção do banhista
imaginário social. Através de obras de arte dos que enfrenta as ondas, os prazeres da vilegiatura
séculos XVIII e XIX ele procura mostrar em marítima”.21 Por isso o autor vai procurar as
Território do vazio: a praia e o imaginário representações que fundam a repulsa pelo mar e as
ocidental as várias imagens do mar e da praia. transformações destes sentimentos. Seu objeto de
Para Corbin, essas pinturas não representam estudo se refere às mudanças de gosto, ou
fatos, causas ou conseqüências20, mas o sentido que sensibilidades, relacionadas à praia. Desde as
a sociedade deu a esse ambiente litorâneo. São causas da repulsa até o início da vilegiatura
indícios de como as emoções dos homens foram marítima.
mudando ao longo do tempo diante da beira-mar. Na primeira parte do livro, Corbin se ocupa
Neste caso específico, as telas de pinturas que com “as raízes do medo e da repulsa” que vai desde
retrataram o mar se tornaram o texto sobre o qual a representação do mar como recipiente dos restos
Corbin procurou os sentidos, os modos, os gestos e do dilúvio até a antiga codificação das cóleras do
os sentimentos que ali poderiam estar contidos. mar suscitadas pelas obras de Homero (Ilíada e
19
Ibidem, 398-399.
20
Sobre esse ponto de vista de Corbin de que o fazer historiográfico não deve buscar causas e conseqüências e sim sentidos, ver a
entrevista concedida à Laurent Vidal e publicada na Revista Brasileira de História sob a tradução de Christiam Pierre Kasper: “A
causalidade é tão complexa nos fenômenos históricos que eu não acredito mais no velho plano: 'as causas, os fatos, as
conseqüências'.[...] Em vez de procurar pelas causas, buscar colocar-se na pele dos atores, e reconstituir a lógica de cada um deles, ou
de cada um dos grupos envolvidos, para melhor entender, em seguida, o enfrentamento e os resultados. Tudo isso funda-se sobre a
análise dos sistemas de representação do mundo, de representação do além, do outro, do animal, do vegetal, do humano etc., para
entender como o texto que se tem debaixo dos olhos pôde se formar.” Cf. VIDAL, Laurent. Alain Corbin: o prazer do
historiador.Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 25, n. 49, 2005, p.15-16.
21
CORBIN, Alain. Território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p.11.
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Paisagem e História: Notas de Leitura
Odisséia) e Virgílio (Eneida).22 As imagens que se força a serviço dos projetos mercantis. É a luta de um
relacionavam ao mar nestas duas perspectivas povo contra o mar e os viajantes começam a
inspiravam repulsa e medo, respectivamente. perceber uma paisagem diferente resultante desta
Segundo Corbin, esse rápido catálogo de luta. Rotterdan, na literatura do século XVII aparece
imagens repulsivas do mar se enraíza num sistema como uma paisagem inédita: mar, cidade e campo.
de representações anterior à emergência do desejo A partir de 1623, as obras de arte começam
da beira mar. Desde o século XVII, porém, opera-se a representar a beira mar como uma cena de
uma mudança que viria possibilitar um novo olhar. costumes e esteriótipos logo definidos. Aparecem os
Entre 1660 e 1675 os mistérios do oceano dissipam- pescadores, comerciantes e não mais temas
se graças aos progressos realizados, na Inglaterra, mitológicos e nem de erotismo de banho, mas a
pela oceanografia. São esses novos olhares que labuta dos homens que vivem lá. Isto está na tela
fazem parte das análises de Corbin: como os abaixo pintada por Jan Van Goyen em 1646 “A Praia
sentimentos dos homens foram sendo de Scheveningen”.
transformados pela emergência de outros dados
relativos ao oceano. Dados trazidos pela medicina,
pelas técnicas navais, pela construção de portos,
pela navegação. Essas questões, na opinião de
Corbin, foram construindo novos olhares e,
consequentemente, foram afetando os desejos, os
gostos, as sensibilidades a esse “misterioso” mar. A
partir das descobertas do mar o olhar humano vai
sendo direcionado e nutrido por outros sentimentos
que vão aparecendo nas fontes escolhidas por
Corbin que são obras de arte (pinturas e romances),
relatos de viagens e tratados médicos. Figura 01. A Praia de Scheveningen
Fonte: Goyen (1646)24
No início do século XVII, segundo Corbin,
começam aparecer alguns sintomas de admiração
Para Corbin, as telas que retratam as cenas
pelo mar. Isto se deve ao fato de que alguns poetas
de praia, difundiram um modelo social de utilização
barrocos franceses descrevem a alegria que a
da beira mar, primeiro como lugar de trabalho dos
presença à beira mar desperta: a agitação perpétua
pescadores e depois passou a representar também a
da água e o espelhamento da luz solar lhe são
culminação do ritual do passeio urbano. Neste
motivos de perpétua criação imaginária. Assim, o
sentido, outra representação de Scheveningem,
ambiente de praia passa a ser um local propício para
agora do pintor Adriaen Van de Velde de 1658 é
retiros e prática de meditação e devaneios. Entre
bem sugestiva.
1690 e 1730 surgem a Teologia Natural e a Físico-
Teologia na França e Inglaterra respectivamente.
Inicia-se uma correspondência entre o mundo físico
e o mundo espiritual, humano e divino, homem e
natureza. Exalta-se o oceano e as praias como
“harmonias inexprimíveis que a Natureza espalhou
pelas praias de mar”23. O homem passa a interpretar
a natureza através de visões antropocêntricas.
As viagens à Holanda prepararam o
ocidente ao surgimento do espetáculo do oceano e
o desejo de passear por suas praias: o holandês
dominou a fúria dos oceanos, soube colocar sua Figura 02. A Praia de Scheveningen
Fonte: Velde (1658)25
22
Ibidem, p.12
23
SAINT PIERRE. Apud. Corbin, Alain. Op.cit. p.44).
24
GOYEN, Jan Von. A Praia de Scheveningen (1646). Óleo sobre tela. Madrid: Museu Thyssen-Bornemisza.
25
VELDE, Adrian Van. A Praia de Scheveningen (1658). Óleo sobre tela. Berlim: Staatliche Museen.
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26
Corbin, Alain. Op.cit., p.73.
27
Ibidem, p.108.
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Paisagem e História: Notas de Leitura
XVIII, exercer um fascínio crescente e tornar-se, por Além disso, o mar passa a ser, a partir de
28
sua vez, palco de buscas constantes”. 1754 o lugar do pitoresco. As viagens passam a ser
descritas em diários e o êxito desta escrita requeria a
concordância entre o texto e a imagem. Isso impôs
2.3. Mar e maravilhamento também, segundo Corbin, um modelo de
apreciação do lugar. Neste sentido, a beira mar vê-
Depois da separação da cumplicidade do se capturada nessa pitoresca tela e cada vez mais
homem e do dedo divino, o olhar dos homens constitui os elementos que introduzem a
letrados se voltará para o horizonte a fim de avaliar o indispensável variedade. Esse conteúdo abre
incomensurável. Inaugura-se um modelo de espaço para as formas românticas de interpretar e
apreciação que constitui um fato histórico. Tem reformular o mar.
início a evolução que conduzirá ao modelo Segundo Corbin, não foram os românticos
romântico de contemplação. Difunde-se uma que descobriram o mar. Desde o final dos anos
estética do infinito de modo que, no final do século 1750 multidões gozavam do banho de mar. No
XVIII, o oceano evocará a imagem de uma “imensa entanto, os românticos foram os primeiros a
extensão” indiferente ao tempo humano, um lugar formular um discurso coerente sobre o mar. Eles
do sublime, da vacuidade, de poder e energia. renovaram o sentido, ampliaram o alcance de
práticas já consolidadas, forneceram modelos de
Estética, moral e terapêutica formam um contemplação ou confrontação, propuseram novas
todo coerente. Viagem, exercício, maneiras de passear, de errar pela praia, e
maravilhamento nascido da percepção do principalmente, souberam descrever as emoções
objeto sublime constituem táticas de uma do banho e as delicadas impressões da beira mar.
mesma estratégia. É essa coerência que
Para os românticos, o mar encantava por ser
explica a ascensão do desejo da beira-mar.
O que define a estética do sublime é a
eternamente imparcial e indiferente às mudanças
tranqüilidade misturada com o terror, neste históricas. Dentre os temas que vão fazendo parte
sentido, a beira-mar permite cumular das pinturas e romances românticos estão a
emoções.29 vacuidade, energia, virilidade, angústia metafísica
das praias e o mar como túmulo. Com isto,
O oceano passa a ser o personagem central das aprofunda-se pouco a pouco a fascinação das
telas, pois a força do mar aguça a coragem do homem margens.
tendo em vista sua vulnerabilidade sobre as ondas. Nesta perspectiva romântica, “não é a
Neste sentido, as representações de força e fúria superfície do oceano que se revela fascinante e sim o
marinha constituem um paralelo importante nas lugar onde se impõe a música das marés. Esse local
31
paisagens registradas por vários artistas da época em não é o alto mar, mas a praia”. A contemplação, a
questão como na tela abaixo de Claude Joseph Vernet. sensibilidade do ouvir as ondas, colocar os pés nus
na praia e a prática do banho de mar refletem nas
obras românticas do século XVIII. No início as praias
eram buscadas pelos viajantes por serem um lugar
insólito. Com o decorrer das décadas, essa imagem
transforma-se: a figura do habitante das praias
perde a sua solidez e invisibilidade. Em breve, as
classes dominantes virão deliberadamente se
oferecer como espetáculo a essa gente das praias
obrigadas e ceder este espaço a um novo teatro
social.
Figura 03. O Naufrágio
Fonte: Vernet (1772)30
28
Ibidem, p.130.
29
Ibidem, p.140.
30
VERNET, Claude Joseph. O Naufrágio (1772). Óleo sobre tela. Washington: Museu Nacional de Artes dos EUA.
31
CORBIN, Alain. Op.cit., p.182.
34 Espaço Plural . Ano XII . Nº 25 . 2º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196
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32
TURNER, Joseph Mallord William. O Naufrágio (1805). Londres: Tate Galery.
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Paisagem e História: Notas de Leitura
humanos passaram a ter com este espaço e nas uma leitura crítica da sociedade de cada tempo
transformações ocorridas na formação deste delimitado para cada estudo em particular.
território. Se hoje o hábito da vilegiatura marítima é Além das paisagens, os autores retrataram
constante na sociedade ocidental é porque houve sentimentos. A obediência a certa “estrutura de
um começo, pois as coisas nem sempre foram sentimentos”, nas palavras de Williams, formulou
assim. O importante para este momento é perceber uma paisagem campestre e urbana dentro de
que as paisagens forneceram possibilidades de padrões típicos da sociedade burguesa e capitalista.
análises sobre um dado histórico e, nesta obra, Já a proposta de estudar as mudanças de gosto ou de
mesmo não estando no centro das discussões do “sensibilidades”, trouxeram para o texto de Corbin
autor, deram condição ao estudo. um amalgama de emoções humanas diante da
beira-mar. Sendo assim, paisagens retratadas sejam
de campo e cidade, sejam de mar e praias, são mais
Considerações Finais uma forma de como determinada sociedade
buscou compreender o mundo a partir de seus
Durante a leitura das duas obras sentimentos e interesses temporalmente
brevemente analisadas e discutidas neste artigo, demarcados.
procuramos verificar qual o sentido que os Consideramos que a busca pela história das
historiadores Williams e Corbin atribuíram às paisagens é uma busca por uma história das imagens
paisagens. Apesar das formas distintas em que um e que cada civilização faz de sua existência. Porém,
outro realizaram seus trabalhos historiográficos há sempre que levar em conta as diversas inter-
ficou nítido em ambos, que a paisagem ganha a relações e interconexões nas lutas pela designação
forma que determinada sociedade atribui a ela. Não do que se quer mostrar e do que se deve ver. Neste
percebemos nestas duas obras a paisagem apenas sentido, entendemos que a atenção do historiador
como um cenário natural ou como uma simples das paisagens deve estar voltada a essa política que
representação de um dado espaço. Ao contrário, ela procura estabelecer imagens e representações.
aparece como o fruto de intensas relações do
homem com o meio que o circunda (meio
geográfico, social, econômico, cultural). Artigo recebido em 26.05.2011.
Em Williams, o aspecto natural atribuído às Artigo aprovado em 12.09.2011.
paisagens campestres é uma construção cultural
que obedece a várias matrizes sócio-culturais e
econômicas. Da mesma forma, Corbin demonstrou
que o que foi pintado sobre o mar e suas praias
também estava ligado a certos sentimentos que em
momento algum nasceram com os ocidentais, mas
foram construídos culturalmente. Ou seja, o fator
cultural é que atribui à paisagem signos e
representações que obedecem aos contextos
temporais das várias relações estabelecidas em uma
sociedade.
Em Corbin vimos o papel da ciência médica,
dos anseios por saúde, das desmistificações
religiosas, das mudanças literárias e intelectuais, da
busca pelo belo e pelo sublime na constituição das
mudanças do gosto pelo mar e seu entorno. Para
Williams as atribuições esteriotipadas de campo e
cidade também possuem raízes literárias, míticas,
mas, principalmente, econômicas. O surgimento de
um determinado sistema econômico pode
modificar tradições e criar outras. Desta forma, o
estudo das paisagens em ambas as obras requereu
36 Espaço Plural . Ano XII . Nº 25 . 2º Semestre 2011 . ISSN 1518-4196