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A língua que falamos - A criação do dicionário de neologismos da turma 104

Introdução: 2

O presente relato apresenta uma experiência em docência de Língua Portuguesa


realizada no primeiro semestre de 2017 referente à disciplina curricular de Estágio de
Docência em Português II do curso de Letras da UFRGS. Tal experiência foi realizada
em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pública estadual
localizada no centro da cidade de Viamão. A turma continha cerca de trinta e seis
alunos, de quinze a dezenove anos de idade, e o tempo de realização das atividades foi
de 20 horas/aula. Durante as observações de sala de aula pude perceber que os alunos
eram participativos e dedicados, gostavam de apresentar as suas opiniões, apesar de nem
todos os professores permitirem essa abertura. Além disso, os alunos eram curiosos,
gostavam de aprender palavras novas (alguns até mesmo liam o dicionário em sala de
aula como forma de brincadeira de adivinhação de significados), porém, tinham certo
receio na escrita, na sua própria escrita, por acreditarem não ser capazes de escrever e
de não ser criativos.
Assim, o projeto intitulado “A língua que falamos” buscou além de mudar essa
concepção dos alunos sobre escrita, também fomentar reflexões sobre língua e
linguagem, principalmente sobre a língua portuguesa. O objetivo principal do projeto
era mostrar aos alunos que a língua portuguesa está viva, que ela está em transição a
todo o momento, evoluindo conforme os falantes vão a utilizando em suas interações
diárias; apresentar aos alunos como a língua está relacionada com o nosso cotidiano,
como ela tem uma relação quase que afetiva com seus falantes quando estes “brincam”
com as palavras ao expressar suas perspectivas e seus sentimentos. Ou seja, com esse
projeto tive como meta mostrar aos alunos que a língua portuguesa lhes pertence, que
eles são também responsáveis por sua evolução, possibilitando que esses alunos se
identificassem mais com a disciplina português, afinal, este é o momento de estudo da
língua que eles falam.
Como recursos linguísticos a serem estudados e, de certa forma, como parte da
temática a ser trabalhada, estudamos as estruturas das palavras, assim como os
principais processos de formação de palavras, para que dessa forma os alunos pudessem
criar palavras novas, construindo, então, o que chamamos de dicionário de neologismos
da turma 104.

Fundamentação teórica

Desta maneira, minha ideia com este projeto era criar o que Simões (2015, p. 75)
chama de “uma cultura reflexiva sobre língua na aula de Português”, em que os alunos
leem e refletem sobre a relação língua e vida. Por ser uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio, foi ainda mais importante esse trabalho de reflexão sobre a língua para
que eles pudessem se identificar com a aula de língua portuguesa. A não identificação
com a aula de português é bem comum nas escolas, frequentemente ouvimos os alunos
falarem que “não sabem português” – o que não foi diferente na turma 104. Essa ideia é
disseminada quando os professores trabalham somente com conteúdos gramaticais
descontextualizados e com a ideia de “certo” e “errado”, sem focar no real sentido de

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uma língua: a comunicação. Através desse projeto, consegui, em partes, mudar essa
ideia, trazendo meus alunos novamente à condição de falantes nativos de português.
Além de Simões, como base teórica de minha prática, segui a ideia de ensino de 3
gramática sugerida por Travaglia (2000, p. 107) ao dizer que

“aprender a língua, seja de forma natural no convívio social, seja


de forma sistemática em uma sala de aula, implica sempre
reflexão sobre a linguagem, formulação de hipóteses e
verificação do acerto ou não dessas hipóteses sobre a
constituição funcionamento da língua. (...) Impossível, pois, usar
a língua e aprender a língua sem reflexão sobre ela.” (grifos
meus).

As ideias de Timm (2011) sobre o ensino de afixos gregos e latinos em sala de


aula também auxiliaram em minha prática docente, pois através de um estudo básico da
etimologia das palavras, ou pelo menos dos prefixos e sufixos, foi possível ampliar o
léxico dos alunos, o que os ajudou nas produções escritas. Além disso, o estudo das
estruturas das palavras auxiliou os alunos a pensar na formação da língua portuguesa,
entendendo a sua riqueza e o seu poder de transformação.

Aplicação do projeto

Na primeira aula, após a realização de uma dinâmica de maneira a conhecer


melhor os alunos, propus uma tarefa de escrita em que os alunos tinham que pensar em
sua relação afetiva com as palavras da língua portuguesa, tendo como norte as duas
perguntas a seguir: a) de qual palavra da língua portuguesa você mais gosta?; e b) de
qual palavra da língua portuguesa você menos gosta? Orientei os alunos a pensarem não
somente na grafia da palavra, mas também em sua pronúncia e em seus significados.
Através dessa atividade, pudemos discutir no grande grupo sobre o que seria uma
palavra, assim podendo pensar sobre a palavra através de várias perspectivas, sonora,
gráfica, significativa, etc. Começamos então a estudar a estrutura das palavras,
lembrando que tais estruturas são estruturas significativas que vão moldando a palavra e
o seu significado (ou seja, tratam-se de morfemas).
A segunda aula foi dedicada a um projeto que estava acontecendo na escola, em
que os alunos tinham que preparar um teatro que seria apresentado em agosto para a
comunidade. A temática escolhida para a turma era o grupo LGBT. Quando os alunos
estavam conversando sobre a organização do teatro, percebi que muitos não conheciam
a sigla ou não estavam muito satisfeitos com a temática, o que me levou a concluir que
os professores não haviam trabalhado sobre essa temática com a turma. Por isso, decidi
levar um texto para a turma sobre o tema e abrir um espaço de conversa para o
compartilhamento de ideias. O texto escolhido foi uma reportagem sobre a cantora
Pabllo Vitar 1. Quando alguns alunos começaram a fazer gracinhas pelo fato de o texto
estar chamando Pabllo Vitar de “ela”, adentramos uma conversa sobre gênero e sobre

1
http://revistatrip.uol.com.br/trip-tv/pabllo-vittar-drag-queen-genero-musica-vai-passar-
mal-lgbt-lgbtfobia-carnaval-amor-e-sexo acessado dia 22/06/2017.

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flexão de gênero nas palavras e, por conseguinte, sobre as desinências. Nesse momento,
eu trouxe ao debate o que chamei de “teorias modernas”, tais como a flexão com X e
com E (ex: alunxs, alunes). Além disso, conversamos sobre a evolução da língua junto 4
com a evolução no pensamento da sociedade e passamos um tempo nos questionando se
seria adequado falarmos “presidenta”, ao invés de “a presidente”. Os alunos, no início,
se mostraram bastante relutantes, mas, ao final, pude perceber que eles já estavam se
autoquestionando sobre diferentes paradigmas.
Na terceira aula lemos o texto “A linguagem que nos faz ver o mundo”2,
publicado na Revista Capitolina, uma revista online adolescente. Tal texto fala sobre
como a linguagem molda a nossa maneira de ver o mundo e como a nossa maneira de
ver o mundo molda a linguagem. Os alunos leram o texto e ficaram muito empolgados
conversando sobre ele. Adoraram as curiosidades trazidas no texto sobre diferentes
línguas e sobre a origem de certas expressões, como “blábláblá”. Um aluno ficou por
um tempo relutante dizendo que todo mundo vê o mundo da mesma forma. Os colegas
então o questionaram e explicaram que, vermos, nós vemos da mesma forma, mas que
cada um foca em aspectos diferentes. Nesse momento, apresentei a eles a frase famosa
de Saussure: “a perspectiva é que faz o objeto”. Também nessa mesma aula, meu
professor orientador estava presente e pode conversar com a turma sobre o texto. Foi
uma intervenção bem emocionante, pois o professor trouxe outras ideias para os alunos
pensarem: por exemplo, o fato de na Bíblia dizer que no início só existia a palavra e que
é a palavra que organiza o caos; além disso, o professor também disse que é a palavra
que organiza os nossos sentimentos quando vamos ao terapeuta “somente para
conversar”. Resumindo, foi uma aula muito produtiva em que os alunos se divertiram
bastante falando sobre linguagem!
Na aula seguinte, o foco principal era a língua portuguesa e suas origens.
Conversamos sobre a evolução da língua portuguesa, sobre suas origens e as
transformações ocorridas, para assim poder falar sobre os afixos de origem latina e
grega. A atividade crucial dessa aula foi quando a turma foi dividida em sete grupos
tendo cada grupo seis grupinhos de palavras com sufixos e prefixos diferentes marcados
em negrito nas palavras. Os alunos tinham que comparar as palavras e tentar adivinhar
quais eram os significados dos afixos – atividade inspirada na monografia de Timm
(2011). Os alunos acharam a atividade um pouco difícil, mas ao conversarmos sobre os
significados dos afixos no grande grupo, eles entenderam e acharam importante esse
estudo. Tal atividade foi selecionada para que os alunos pudessem ver os afixos em
contexto, não somente nas famosas tabelas de prefixos e sufixos.

2
http://www.revistacapitolina.com.br/a-linguagem-que-nos-faz-ver-o-mundo/ acessado
dia 11/06/17.

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Exemplo de atividade sobre os afixos de origem grega e latina

Antes de passarmos para os diversos processos de formação de palavras, lemos


um texto de Mia Couto (“Perguntas à língua portuguesa”3) em que o autor defende que
a língua é do falante e é esse que deve moldá-la através de seus propósitos. Os alunos
acharam divertidas as palavras inventadas pelo autor, mas disseram que elas pareciam
“piadas de tiozão”. O texto inclusive nos levou a uma conversa sobre os países que
falam a língua portuguesa, já que o autor é moçambicano. Utilizando esse texto
estudamos também o gênero textual crônica e seus elementos constitutivos, sobre como
construir uma crônica, onde podemos encontrar crônicas e quais são outros cronistas
famosos.
Após essa atividade com a crônica, estudamos os diferentes processos de
formação de palavras, já levando em conta que os alunos teriam que produzir suas
próprias palavras. Nesse estudo, acrescentei um debate sobre a utilização de
estrangeirismos na língua portuguesa, afinal, essa também é uma maneira de criação de
novas palavras. Os alunos leram em casa uma reportagem4 sobre uma lei que pretendia
proibir os estrangeirismos e foram divididos em dois grupos para assim defender ou
argumentar contra a lei. A argumentação foi um estudo constante nas aulas já que a
professora titular trabalha bastante com eles as redações para vestibular. Os alunos se
empolgaram no debate e a maioria participou trazendo ideias diversas.
A última tarefa realizada pela turma foi a criação de um neologismo utilizando-se
de todo o conhecimento construído durante o projeto. Os alunos foram orientados a
criar uma palavra, podendo utilizar os processos de formação de palavra estudados, e
dar um significado especial para ela. Além disso, para dar um exemplo da palavra em
contexto, os alunos foram instigados a escrever uma pequena crônica em que a palavra
estaria presente, seja como tema principal da crônica ou não. As criações dos alunos
ficaram muito legais, foi possível ver o seu empenho para realizar a atividade. Alguns
alunos que pouco participaram nas tarefas anteriores se empolgaram nesta produção.

3 3
COUTO, Mia. Perguntas à língua portuguesa. 1997. Em: https://ciberduvidas.iscte-
iul.pt/outros/antologia/perguntas-a-lingua-portuguesa/118 acessado 14/05/2017
4
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/04/assembleia-legislativa-do-rs-aprova-lei-que-proibe-
uso-de-estrangeirismo.html acessado dia 28/06/17.

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Surgiram palavras diversas, tais como “bolotinho” (pão “cacetinho” só que doce
contendo diferentes sementes), “polvodátil” (polvo pré-histórico), “amícomaz” (melhor
amigo), “coúcho” (paixão recente), “experança” (perder as esperanças), “desbonito” 6
(alguém que quando você vê por fotos você acha bonito, mas que pessoalmente não o
é), entre outros.
No último dia de aula os alunos apresentaram pra turma em uma roda de conversa
as suas criações individuais, o que gerou muita rizada, mas principalmente causou a
percepção de que todos ali eram capazes de produzir textos criativos. Ao final foi
realizada uma autoavaliação e uma avaliação do projeto por parte dos alunos, sendo que
os resultados só me mostraram o quanto o projeto foi importante para esses alunos e o
quanto ele os instigou a acreditar em si mesmos e buscar mais informações. De maneira
geral, consigo ver o quanto a turma 104 evoluiu, mas também o quanto a turma se
engajou para que o projeto pudesse dar certo. Hoje posso dizer que é possível sim
conversar sobre língua e linguagem com alunos de escolas públicas.

Referências

SIMÕES, L. J. . Uma conversa sobre aula de português. In: RIGATTI, Pietra Cassol;
VUADEN, Filipe Róger; SILVA, M.I.L.. (Org.). Livros que seu aluno pode ler:
formação do leitor na educação básica. 1 ed. Porto Alegre: Sci Books, 2015, v. 2, p. 73-
88.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino da
Gramática no 1o e 2o Graus. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2000, 245 p.
TIMM, Camila. Prefixos e sufixos gregos e latinos: uma proposta de ensino. 2011.
Monografia. (Aperfeiçoamento/Especialização em Gramática e Ensino da Língua
Portuguesa) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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