Professional Documents
Culture Documents
de Marx, o que tende a gerar oscilações semânticas e diferentes tipos de aplicação conceitual.
De fato, é a própria ambiguidade no conceito de ideologia no trabalho de Marx que é,
parcialmente, responsável pelos debates contínuos a respeito do legado de seus escritos
(THOMPSON, 2011, p.49). A princípio voltado contra os jovens hegelianos, o termo adquire
sentido polêmico, pois seus oponentes estavam trabalhando sob a ilusão de que a batalha real
que deveria ser travada era a batalha das ideias (Idem, pg. 50), concebida como suficiente
para a transformação da realidade histórica. Neste sentido, ideologia conotaria “algo
errôneo”, valorizando demasiadamente o papel das ideias na vida social na medida em que
até agora os homens tiveram ideias falsas a respeito de si mesmos, daquilo que são ou
deveriam ser (MARX, 2001, pg. 3). O termo, de acordo com Thompson, se referiria a uma
doutrina que observa erroneamente as ideias como autônomas e eficazes, sem apreender o
liame que as une à realidade histórica. A despeito de sua dimensão polêmica – o autor a
caracteriza como o conceito polêmico de ideologia -, esta primeira concepção remete a
premissas concernentes à determinação social da consciência, à divisão do trabalho e ao
estudo científico do mundo sócio-histórico (Idem, pg.51).
Quanto à primeira premissa, pode-se afirmar que a produção das ideias, das
representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade
material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real (MARX, 2001,
pg. 18). O que implica que a condição material da vida humana seria, para o autor,
determinante de todo seu sistema de representações, daí a precedência ontológica do real
sobre a consciência do ser -, consciência reduzida a mero reflexo das condições da “vida
real”. Se a condições reais determinam as representações de forma que “as ideias da classe
dominante são, em cada época, as ideias dominantes”, o desenvolvimento das doutrinas
teóricas e das atividades teóricas que veem as ideias como autônomas e eficazes se torna
possível pela divisão, historicamente emergente, entre trabalho material e trabalho mental
(THOMPSON, 2011, pg. 52). Por fim, o último pressuposto se refere à possibilidade de que,
uma vez desvendadas, analiticamente, as condições materiais de elaboração das ideologias,
tais ideias explicitariam seu caráter ilusório.
Por fim, a terceira concepção apreende uma nova dimensão da realidade, matizada por
mais complexidade e múltiplos determinantes que, articulados, superam a visão dicotômica e
simplista do jogo de oposições entre classes e seus reflexos ideológicos. A despeito de
manter, como as anteriores, o caráter negativo, esta nova concepção enfatiza o modo como o
sistema simbólico pode desempenhar relações de sustentação da ordem dominante por meio
de imagens e ideais que atuam para esconder relações de classe. Neste sentido, esta
concepção – chamada de latente -, aponta para as ideias como construções simbólicas que
tem certo grau de autonomia e eficácia (Ibid, pg. 58). De acordo com o autor, os termos
usados por Marx nestes momentos – “ilusões”, “ideias fixas”, “espíritos”, “fantasmas”,
“tradição”, “passado” - somente podem ser entendidos como ideologia sob a condição que
estamos estendendo o termo para se referir a um conjunto de fenômenos sociais a que Marx
se referiu sem nomeá-los (Ibid, pg. 59). São fenômenos que, a despeito de terem sido
relatados na análise concreta marxista, não foram integrados dentro de um quadro conceitual
claro.
Se, por um lado, Marx subestimou o papel da dimensão simbólica na vida social –
concepções polêmica e epifenomênica -, ele entreviu, por outro, a importância da “tradição”,
do “passado”, enfim deste sistema de símbolos nos desdobramentos dos processos históricos
na França de meados do século XIX. Ao realçar o papel da “tradição” para sustentar uma
ordem social opressiva e impedir caminho para mudança social, Marx abriu espaço teórico
para nova concepção de ideologia (THOMPSON, 2011, pg. 61) que se desenha pela maneira
como as formas simbólicas se articulam com as relações de poder, mobilizando a força do
sentido para criar e manter relações de dominação. No seu trabalho de reelaboração do
conceito de ideologia, o pensador inglês observa que o caráter ideológico está inscrito não na
“ilusão” das ideias, mas no seu papel de “manter relações de poder”. Neste aspecto, ele
argumenta que o ideológico não deve se restringir, como prescrevera Marx, apenas às
relações de classe, atingindo outras dimensões sociais – perpassadas por clivagens étnicas e
de gênero, por exemplo. Ao enfatizar esta terceira concepção, o autor pretende resgatar a
ideologia de sua mera dimensão de reflexo direto das condições de existência, apreendendo
as relações entre o sentido e as formas simbólicas como elementos constituintes da realidade
social. Pode-se, por fim, definir este novo conceito de ideologia como sendo o conjunto das
maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e
sustentar relações de dominação (Ibid, pg. 79).
@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@
@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@
Podemos destacar, segundo a taxa dos atos infracionais, que os índices em 2011 e
2012 mantiveram-se equivalentes em relação ao ato infracional correspondente a roubo e
tráfico (SINASE, 2012, pg. 17). Os roubos, em 2011, responderam por 8.415 (38,1%) ao
passo que, em 2012, tais números corresponderam a 8.409 (38,6%). No caso do tráfico,
segunda maior ocorrência, em 2011, se registraram 5.863 (26,6%) e, no ano seguinte, 5.883
(27%), “mantendo praticamente a mesma faixa”. Na verdade, contrariando a percepção
comum da juventude brasileira com a violência contra as pessoas, os jovens envolvidos em
episódios desta natureza figuram como as principais vítimas e não como autores desse tipo de
crime (RODRIGUES & FERRAZ, 2015, s/pg.). Os autores observam que, de acordo com o
Mapa da Violência: a cor dos homicídios no Brasil, o número de assassinatos de jovens com
até 19 anos no Brasil subiu 346% nos últimos 30 anos, sendo os índices de negros mortos
muito superiores ao de brancos (Ibid., s/pg.).
Dados do último SINASE (2013) apontam que, do total de atos infracionais, 43%
(10.051) corresponderam a roubo ao passo que 24,8% (5.933) figuraram como tráfico. A taxa
de homicídios, por sua vez, foi de 9, 23%. Especificamente no que se refere a atos
infracionais análogos a crimes contra a pessoa (homicídio, latrocínio, estupro e lesão
corporal), os dados mostram uma leve oscilação que não define tendência na série histórica
desde 2011 (SINASE, 2013, pg. 27). No entanto, o suposto crescimento da participação de
adolescentes na criminalidade violenta enseja uma das maiores polêmicas na sociedade
brasileira atual, propiciando demandas por mais rigor punitivo, pelo aumento das apreensões
policiais e por revisão na legislação de modo a torná-la mais dura (RODRIGUES &
FERRAZ, 2015, s/pg). Quando, ao contrário, prisões são o último recurso do Estado e não
solução para coisa alguma ou um método para ressocializar alguém (SOARES, 2006, pg. 62)
na medida em que são testemunha de fracasso civilizatório e prova de nosso atraso em
matéria de procedimentos judiciais (Ibid., pg. 62).
@@@@@@@@@@@@@@@@@@@
A reportagem do dia 13/06, “Com 18 BOs em um ano, garoto suspeito usa droga
desde os 8”, reproduz a operação ideológica expurgo do outro na medida em que, por meio
de narrativização, a história de vida do adolescente é contada como uma intensificação de
crimes desde “furtos” a “assaltos” até “estupro coletivo”. A introdução de representantes do
aparelho punitivo do Estado – policial, delegado e promotor – adensa o processo de
estigmatização do jovem, que teria “mais de 100” passagens pela delegacia. A operação
linguística de construção do estigma introduz, por sua vez, o próprio pai do adolescente, a
partir do recorte semântico “ele não é coisa boa”. Ao mesmo tempo, as construções textuais
tendem a naturalizar as condições de “miséria” e “transtornos mentais” do jovem, ocultando
por dissimulação seu caráter sócio-histórico. Como resultado desta construção, observa-se
que o expurgo do outro levou ao processo de fragmentação com ênfase na diferenciação,
pois o adolescente é contraposto à toda sociedade. Em efeito espelho, na outra página, o
jornal traz reportagem intitulada “Meninas do Piauí”, referente a estupro coletivo de quatro
garotas que teria contado com a participação do jovem.
O texto replica, por unificação, o juízo público punitivo, pois nada ainda teria sido
feito contra os acusados,“embora policiais e moradores já tenham anunciado os culpados”.
Existe, todavia, uma dimensão mais grave na retórica textual, pois ao universalizar como
correta e justa a opinião pública – de punição aos acusados sem provas materiais – as figuras
linguísticas do texto contribuem para minar simbolicamente por dissimulação/ocultação os
fundamentos do Estado de Direito, fundado na exigência de provas cabais e incontestes como
base a qualquer condenação. A reportagem do dia 22/06, “Nove em cada 10 apóiam
maioridade penal aos 16”, cria dispositivos simbólicos de unificação – a pesquisa de opinião
pública –, consolidado simbolicamente a ideia de uma suposta maioria. Ao mesmo tempo, a
pesquisa aponta aumento do número dos que apoiam redução da maioridade para crimes
hediondos – após uma sequência de matérias sobre o estupro coletivo, no Piauí (27/05). Por
opor uma suposta maioria de apoiadores a uma minoria social contrário à redução, o material
atua por fragmentação com ênfase na diferenciação. Por outro lado, as reflexões sobre a
natureza e impacto das propostas foram substituídas por uma tabela estruturada de forma
esquemática e binária entre apoiadores e contrários à redução, subtraindo por dissimulação o
caráter complexo e histórico do tema.
Com uma única exceção, no período coberto pela pesquisa, não houve discussão
textual explícita sobre a natureza dos debates e seus impactos sociais. Apenas a reportagem
do dia 17/6, “Após acordo, redução da idade penal deve avançar”, é que posição mais crítica
do governo foi introduzida por meio do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, ao
afirmar que os adolescentes, uma vez postos em presídios, seriam “capturados por
organizações criminosas” na medida em que as cadeias são “verdadeiras escolas de crimes” e
que o sistema penal brasileiro é “medieval”. O dado fundamental, divulgado pelo Ipea, de
que 12,7% do total das infrações são graves é apenas mencionado, sem ser objeto de reflexão
– o que pode ser considerado outra estratégia de dissimulação na medida em que o dado, uma
vez apresentado, é negado como fato complexo, sem sofrer indagações do autor do texto. As
estratégias ideológicas de dissimulação permitiram com que, ao longo de julho, fossem
conhecidas apenas as propostas conservadoras em relação à questão do adolescente infrator,
fechando o campo discursivo do debate e impedindo, por desvio e ocultação, a percepção
de outras possibilidades de solução da violência social.