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Belo Horizonte
2013
Nayara Lima Agostini
Belo Horizonte
2013
Nayara Lima Agostini
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Myriam Martins Alvares (Orientadora) – PUC Minas
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Rita de Cássia Fazzi
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Joana D’Arca
Aos meus pais, por terem me apoiado a todo o momento, por terem investido no meu
desenvolvimento pessoal e profissional, por todo carinho e incentivo sempre presente nessa
caminhada.
Às minhas queridas amigas Leide Mara e Rachel Stier por todo o apoio, pela torcida
incondicional, pelo companheirismo e compreensão.
À Professora Maria José da Trindade, que foi essencial para dar impulso ao começo
dessa jornada.
À Professora Regina Medeiros, que me ensinou que pesquisa só se aprende fazendo; e
embora meus passos ainda sejam cambaleantes, eis o mais importante: metodologia não é
uma disciplina da faculdade, é um caminho.
A todos os professores do curso, que com certeza fazem parte de todo o processo
percorrido até aqui, e que por certo constituem a conjuntura do que hoje perpassa meu olhar,
saberes e práticas.
A toda a equipe que trabalha na escola JOCUM: em especial à Sibele (Diretora da
Escola) por ter me concedido espaço e liberdade para realizar essa pesquisa na escola, às
Professoras Fabiane, Núbia e Jennifer por me receberem em sua turma no início da pesquisa,
à Socorro pela paciência de abrir o portão tantas vezes e por fazer tudo o que faz com tanto
carinho, à Professora e Assistente de Coordenação Rita que me apoiou generosamente sempre
que preciso.E meus agradecimentos especiais à professora Paula que me apoiou e contribuiu
de maneira singular para a realização deste estudo, fazendo parte da minha caminhada no meu
trabalho de campo.
Eu não poderia deixar de agradecer às crianças da escola, sem a qual essa pesquisa não
teria acontecido, por todo o carinho sempre presente, pelos deliciosos momentos
compartilhados, por todas as risadas e brincadeiras, e por se disporem com tamanha prontidão
e abertura a participarem desse trabalho.
E não haveria palavras para agradecer à Professora Myriam Martins Alvares, que me
orientou de forma tão generosa em cada momento desse trabalho, me apresentando às
diversas obras que dariam início ao aprofundamento do meu tema, pelas deliciosas conversas
em cada encontro, e por compartilhar seu conhecimento com tanta serenidade e dedicação.
RESUMO
This article is the result of a case study about the existing conflicts in the relationship adult-
child and child-child. It took place in a private basic education institution in Contagem-M.G.
It intends reflect about the possible causes that underlie these conflicts and the kind of
mechanisms that are used by the children to cope with them. The theoretical references used
are based on anthropology and sociology of childhood, which refers to a child as an active
individual in the construction and transformation of their social and cultural aspects of their
lives. In this sense, the present article seeks to comprehend what kinds of conflicts emerge in
the intra and intergenerational in the school setting. This article seeks to answer what
strategies the children create to deal with the tensions t hat exist between pairs. This article
also intends to listen to the demands that are present in the children's speech and thoughts
with the intention of thinking new strategies to manage these conflicts considering the active
participation of the children in this process.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15
REFERENCIAS ..................................................................................................................... 74
15
1 INTRODUÇÃO
1
Por segunda modernidade, compreendemos as mudanças sociais e culturais decorrentes das mudanças
referentes aos pilares constitutivos da primeira modernidade (a soberania do Estado-Nação; a crença na razão e
no sentido do progresso; a idéia do trabalho como base social; a hegemonia dos valores ocidentais) e a
emergência da chamada “sociedade de risco”. (mais detalhes a respeito podem ser encontrados em Sarmento,
2012).
2
Relativamente autônomo porque as crianças enquanto atores sociais não devem ser vistas separadas de suas
relações com a cultura dos adultos e com o contexto social e cultural no qual estão inseridas. Trata-se de um
processo de interação, em que as crianças tanto participam ativamente do seu processo de socialização e da
construção de sua cultura e sociedade como por eles são também constituídas.
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infância é uma categoria que vem sendo construída socialmente a partir de um longo processo
através da história, tendo o seu marco institucional delineado nos pilares constitutivos da
modernidade, e que tem sido continuamente atualizada nas mudanças decorrentes da segunda
modernidade (SARMENTO, 2013). A representação sobre a criança/infância – como bem
lembra Sarmento (2005) – até pouco mais de um século era reduzida às perspectivas
biologistas que concebiam a criança como um ser incompleto em processo de formação e a
infância enquanto um estado intermediário do desenvolvimento humano, e que, portanto, não
estava pronta para exercer sua cidadania.
Müller e Hassen (2012) e Nascimento, Brancher e Oliveira (2013) a partir da obra de
Áries (1978) – sobre as representações e imagens construídas através da história sobre as
crianças na Europa entre os séculos XII e XVIII, e suas repercussões na atribuição de um
estatuto social à infância – mostram que embora sempre tenham existido crianças, o
surgimento da concepção de infância começa a emergir na Europa a partir da Idade Média,
seguida da formação das escolas de massas e da mudança do significado da família na
sociedade. É só a partir do século XIX, que a infância começa a emergir enquanto um
problema social no Brasil e em outros lugares do mundo, vindo a se tornar um problema de
investigação científica somente depois da década de sessenta, enquanto que as produções, no
Brasil na área, datam de meados dos anos 90.
As produções na área se ancoram em três linhas: relacionadas às perspectivas
macrossociológicas com foco na questão estrutural da infância, às correntes interpretativas e
interacionistas e às perspectivas críticas. Em um trabalho de revisão bibliográfica que
pretende analisar o lugar da criança em diferentes campos das ciências humanas e das ciências
sociais e cuja proposta é a de apontar os caminhos pelo qual a criança passa a ser concebida
como produtora de cultura e de significados, Müller e Hassen (2012) afirmam que a criança
foi silenciada na Sociologia até o início dos anos 1980, quando então se inicia o
reconhecimento da criança como integrante da categoria geracional infância (QVORTRUP,
2013), Posteriormente, o desenvolvimento da Sociologia Interpretativa irá focar a questão da
ação social da criança (CORSARO, 2013). No campo da Antropologia as produções que tem
a infância como questão central datam de 1960, alguns de seus conceitos e pressupostos são
revistos – tais como os de cultura e de sociedade, além de abordar novas concepções, como a
idéia de agência do sujeito ou ação social, a partir de uma releitura crítica das definições
3
Sarmento (2013) aponta que essa apropriação do conceito “geração” enquanto categoria social estruturante da
infância emerge a partir da Sociologia Estruturalista em meados dos anos 80. Concepção decisiva para a
aceitação da infância como parte permanente da estrutura social e em interação com outras partes dessa estrutura,
tais como as questões econômicas e políticas, como destacado em Canavieira (2013).
17
funcionalista da socialização (COHN, 2005; NUNES, 1999). Por fim têm sido desenvolvidas
pesquisas antropológicas e sociológicas ancoradas na perspectiva crítica da infância, com
autores como Vilarinho (2013) e Sarmento e Marchi (2013), que ressalvam a importância de
se levar em conta as diferentes infâncias e os seus diferentes contextos sociais e históricos, e
de pensar não apenas sobre as crianças, mas também com as crianças, como sujeitos capazes
de participar com singularidade da sociedade, de partilhar e produzir sentidos, ao contrário do
papel que por vezes ainda lhe é atribuído de um “sujeito assujeitado”4.
Segundo Delgado e Müller (2005, p.353-354), há desafios que devem ser superados ao
se realizar pesquisas com crianças: é importante compreender as crianças pela lógica de suas
interações com seus pares, e não pela lógica adultocêntrica; a entrada no campo implica em
conseguir abertura (confiança) e em desenvolver uma pesquisa com a criança e não apenas
sobre ela; e deve-se respeitar a questão da ética e negociar com as crianças sobre quem quer
participar da pesquisa e contribuir com a produção dos dados, consentindo-lhe o direito de
não participar.Simão e Rocha (2012) pontuam ainda o cuidado de não universalizar e nem
padronizar os comportamentos e as culturas infantis, “considerando aspectos de
homogeneidade e heterogeneidade como constituintes das crianças e das diferentes infâncias,
atribuindo-lhes representatividade e legitimidade” (SIMÃO; ROCHA, 2012, p.7).
Sendo as crianças, objetos de pesquisa por direito próprio (SARMENTO, 2005), se
faz necessário “pensar em metodologias que realmente tenham como foco suas vozes, olhares
e pontos de vista” (DELGADO; MÜLLER, 2005, p.353). Por isso, como metodologia
investigativa orientada para a natureza do meu objeto de investigação, essa pesquisa apresenta
uma abordagem qualitativa, por compreender que esta valoriza os significados sociais,
tornando possível apreender valores de um dado grupo social e utilizar ainda uma
metodologia de investigação interpretativa. Uma abordagem qualitativa se caracteriza por
trabalhar "[...] com o universo de significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos
valores e das atitudes” (MINAYO, 2007, p.21).Dessa forma, essa pesquisa constitui um
estudo de caso de caráter etnográfico com abordagem qualitativa, caracterizada por partir de
uma estratégia indutiva e compreensiva, e por tentar “explorar a realidade sem hipóteses
iniciais imponentes, mas apenas com um tema de pesquisa, e sem pressupostos sobre os
resultados” (ALAMI, DESJEUX E GARABUAU-MOUSSAOUI, 2010, p.31).
Como recorte de campo escolhi o contexto escolar da Escola Jovens Com Uma Missão
4
Conceito usado por Orionte e Sousa (2012) referente a um sujeito que é desconsiderado enquanto participante
ativo de sua realidade.
18
(Escola da JOCUM5) por eu já ter tido contato com as crianças nesse contexto como
professora substituta no ensino de artes e inglês básico em 2009 e em 2013.Trata-se de uma
instituição privada que se localiza na cidade de Contagem, no bairro Granja Vista Alegre e
que trabalha com o ensino básico atendendo as crianças do primeiro período ao quarto ano do
ensino fundamental, recebendo crianças dos três aos noves anos de idade. Essa é a única
escola de educação básica presente no bairro. O custo da mensalidade é relativamente baixo,
apenas o necessário para arcar com os custos escolares, numa média de duzentos reais por
criança. A grande maioria das crianças que freqüentam a escola são moradoras do próprio
bairro e dos bairros vizinhos (como o Bairro Europa), sendo oriundas de famílias da classe
média-baixa.
A escola é constituída por duas construções, uma com um pavimento único – onde se
encontram duas salas de aula, a secretaria, a diretoria, a cozinha, o refeitório e os banheiros –
e outra construção com dois pavimentos, um térreo e um subsolo – no térreo se encontram
duas das salas de aula e no subsolo uma sala de aula e um espaço que está interditado no
momento, mas é destinado aos brinquedos pedagógicos e à biblioteca. No pátio da escola se
encontram a quadra esportiva, o parquinho recreativo e um espaço gramado com algumas
mesas e cadeiras. O parquinho recreativo é constituído dos seguintes brinquedos: três
escorregadores, um trepa-trepa, um balanço lambretinha, um balanço duplo, um gira-gira,
uma escada horizontal e um pequeno playground com um tubo e uma piscina de bolinhas que
as crianças chamam de “brinquedão”.
Observei e participei das atividades da turma do primeiro ano, correspondente às
crianças com idade entre seis e sete anos. A escolha pela turma do primeiro justifica-se por
esta ser considerada a turma mais agitada da escola, aspecto significativo para o problema a
ser investigado, tanto no que tange os aspectos lúdicos e interacionais das culturas infantis,
como para a observação dos conflitos nas relações escolares.
Na sala há uma professora responsável por ensinar as matérias de Geografia,
Matemática, História, Português, Ciências e Artes. Durante as quartas-feiras as crianças têm
uma aula de inglês com outra professora, e durante as terças e quintas têm aulas de Educação-
Física com outro professor. As aulas do primeiro ano começam às 13:00 da tarde e terminam
às 17:30, com exceção das sextas-feiras, quando as aulas terminam às 16:40. Nesse dia,após o
recreio as crianças organizam seus materiais e brincam até o final das aulas.
A turma é constituída por 21 crianças, sendo treze do sexo feminino e oito do sexo
5
JOCUM é uma ONG missionária internacional de orientação cristã com centros de atividades em 171 países;
foi iniciada no Brasil em 1975 com sua primeira sede em Contagem-MG, também no bairro Granja Vista Alegre.
19
masculino. Algumas crianças se destacam mais do que outras, no sentido ou de uma devoção
afetiva por parte das outras crianças ou por expressarem de forma mais dinâmica suas
opiniões e vontades. Essas crianças com freqüência aparecem regrando boa parte das
brincadeiras e atividades entre pares. De forma que durante a realização desse
trabalho,algumas crianças participaram mais do que outras, devido á própria dinâmica da
turma e às características de cada criança. Através das fichas de matrícula6 das crianças foram
encontrados os seguintes dados referentes à escolaridade de seus pais:
6
Consultei 20 fichas, sendo que em oito constavam as informações de ambos os pais, em onze constava a
informação de apenas um dos pais, e em uma não constava informações a respeito.
20
questão da criação de estratégias das crianças para transgredir regras e solucionar conflitos; 3)
e no mês de novembro, em que continuei aprofundando o tema observado na segunda etapa, e
realizei duas entrevistas focalizadas de grupo, associadas ao uso da entrevista projetiva, com o
objetivo de apreender a percepção das crianças sobre os conflitos entre pares.
Na minha primeira inserção no campo, conversei com a diretora da escola e com a
secretária, explicitando as minhas intenções e propostas de investigação, e recebi a abertura de
ir à escola sempre que eu precisasse. Durante a pesquisa procurei esclarecer que os adultos
presentes não seriam o foco da minha observação, e sim as crianças e os seus modos de fazer
e significar as atividades e os aspectos relativos às suas interações no contexto escolar. Mas
durante a pesquisa percebi a importância da colaboração da professora para a construção do
meu trabalho, e a relevância de considerar, que, embora seja central pesquisar com as
crianças, e não meramente sobre elas, as relações sociais se caracterizam por serem
interdependentes e contextualizadas.
O meu interesse pela temática da infância é recente, e embora eu sempre tenha me
interessado pela vivência das crianças a partir de concepções do senso-comum, foi só a partir
de um estudo mais aprofundado sobre a cultura infantil, que eu comecei a me interessar pela
criança enquanto ator social pleno7; o que despertou em mim o interesse de conhecer mais
profundamente o que as crianças têm a dizer sobre as instituições e relações que fazem parte
do seu processo de socialização, e de compreender como a atribuição de valor ao discurso da
criança nesse processo pode contribuir para a dinâmica das instâncias responsáveis por sua
socialização e pela efetivação de seus direitos sociais.
Ao longo da minha experiência com a Educação Básica, pude observar que há
inúmeras tensões e negociações nas relações criança-criança e crianças-adulto no contexto
escolar. Pude perceber que diante de certas restrições e tensões as crianças sempre encontram
estratégias para transgredir as regras e negociar diferenças. A minha experiência me fez
refletir sobre a linha tênue que existe entre manter a ordem em sala de aula e não privar as
crianças de uma participação autônoma respeitando suas necessidades referentes à ludicidade
e ao movimento. Essa experiência me despertou o interesse de estudar o assunto e conhecer
mais profundamente como as crianças se organizam na transgressão das regras escolares e na
negociação de valores conflitantes em suas relações inter e intrageracionais.
Onde quer que existam relações humanas, há a presença de conflitos, e a escola
aparece nesse sentido como ambiente privilegiado das relações entre as crianças, um palco
7
Conceito discutido em Sarmento (2013) que significa a capacidade da criança de participar de seu processo
socialização de forma criativa e interpretativa própria às culturas infantis.
21
Nesse sentido Galvão (2004, p.222), afirma que embora o conflito represente uma
interação em desequilíbrio, ele também representa movimento e oportunidade, sendo
potencialmente construtivo desde que tomado como objeto de reflexão. A autora pontua que o
problema não é o conflito, o problema pode ser a forma como lidamos com eles. Nesse
sentido, a autora (Galvão, 2004, p.222,223) propõe que superemos algumas tendências da
escola de lidar com os conflitos: a negação, que implica no não reconhecimento do conflito; e
a culpabilização, que é quando o adulto identifica o conflito, mas tende a atribuir a culpa a
22
alguém pelo mesmo; quando a culpa recai sobre o aluno pode vir a reforçar estereótipos
negativos, tais como “aluno problemático”; e quando recai sobre o educador ou sobre a escola
pode ser visto como um indicador de fracasso da ação educacional ou resultado de uma
incompetência pessoal, como do professor, por exemplo. A autora afirma ainda que tomar o
conflito como reflexão “não significa necessariamente resolvê-lo, nem tampouco ter uma ação
concreta para sua resolução. Muitos conflitos não se resolvem, mas podem ser mais bem
geridos se forem reconhecidos e compreendidos” (GALVÃO, 2004, p.223). A autora nos
convida a uma diferente abordagem do conflito, e à possibilidade de encontrar caminhos que
promovam melhores gestões.
Nesse sentido, esse trabalho tem por questão central compreender quais são os tipos de
conflitos emergentes nas relações inter e intrageracional das crianças no contexto escolar,
quais são as estratégias criadas pelas crianças para lidar com essas situações e quais são as
demandas presentes e, por conseguinte os possíveis caminhos para se equilibrar as relações
escolares atribuindo à criança autonomia como participante ativa desse processo.
Com esse objetivo esse trabalho se encontra organizado nos seguintes capítulos:
O primeiro capítulo aborda a tensão existente na relação adulto-criança e sua
reconfiguração na criação de estratégias de resistências às regras, em que são exploradas as
tensões presentes na relação intergeracional da criança, suas causas e os mecanismos de
resoluções adotados pelas crianças a partir dos elementos próprios da cultura infantil. Nesse
capítulo é valorizado o processo de socialização entre pares no compartilhamento de
estratégias para transgredir regras e impor vontades.
O segundo capítulo aborda astensões existentes na relação criança-criança e a criação
de estratégias de poder no grupo de pares, capítulo dedicado a investigar as categorias
emergentes como pontos de tensão e os mecanismos utilizados pelas crianças para lidar com
esses conflitos de cunho intrageracional.
O terceiro capítulo é dedicado a escutar o que as crianças falam sobre os seus próprios
conflitos escolares entre pares, procurando compreender a partir de suas falas as demandas
presentes para um possível reequilíbrio de suas relações e negociações interpessoais, e sua
compreensão sobre a resolução do conflito.
E por fim, apresento as considerações finais, momento em que realizo um diálogo
entre as minhas conclusões de campo e alguns dos diversos autores que me foram referencial
teórico para a construção desse trabalho.
23
As relações nas escolas são caracterizadas tanto pela relação entre adulto-criança,
como pela relação criança-criança. Nesse trabalho, pude perceber alguns aspectos
característicos dessas relações, dos quais destaco quatro: a apropriação de elementos da
cultura adulta pela criança para lidar com questões da cultura de pares; a socialização entre
pares no contexto das brincadeiras e no contexto da sala de aula; a tensão existente na relação
adulto-criança e sua reconfiguração na criação de estratégias de resistências às regras; e as
tensões existentes na relação criança-criança e suas estratégias de poder no grupo de pares;
A apropriação por parte das crianças de elementos da cultura adulta para lidar com as
questões das culturas de pares foi estudada por Corsaro (2013) que afirma que a produção da
cultura de pares não se reduz a uma “simples imitação nem por uma apropriação directa do
mundo adulto. As crianças apropriam-se criativamente da informação do mundo adulto para
produzir a sua própria cultura de pares” (CORSARO, 2013, p.2), transformando essa
informação de acordo com as preocupações dos mundos dos pares e ao mesmo tempo
contribuindo para a reprodução da cultura adulta, fenômeno que o autor vai chamar de
“reprodução interpretativa”.Corsarodefine a “cultura de pares” como “um conjunto estável de
atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham
na interação com seus pares” (COSARO apud SARMENTO, 2013, p. 14). Parao autor através
de suas interações com seus pares o conhecimento infantil e a prática são transformados
gradualmente “em conhecimento e competências necessárias para participar no mundo
adulto” (CORSARO, 2013, p.2).
Em se tratando da apropriação de elementos da cultura adulta por parte das crianças
Berger e Luckmann (1985, pg.180) afirmam que durante a socialização primária8a criança não
pode escolher seus outros significativos9 ou seja, ela não escolhe as pessoas presentes na sua
infância e que são protagonistas da sua socialização. Da mesma forma, ela não pode optar por
uma condição social diferente da qual está inserida. No contexto escolar, isso significa que ela
não pode escolher as matérias que vai ter que aprender, aos professores que vão lhes dar aula
e tampouco pode optar por outra rotina escolar. Essa condição social fica clara no quadro
8
Por socialização primária os autores definem toda a primeira socialização que o indivíduo experimenta na
infância, tudo o que aprende e armazena nessa experiência e que é fundamental para sua inserção na sociedade
enquanto membro (mais detalhes em BERGER; LUCKMANN, 1985).
9
Os outros significativos aqui se refere às pessoas presentes na infância da criança e que são protagonistas da
sua socialização (mais detalhes em BERGER; LUCKMANN, 1985)
24
abaixo, que mostra o cronograma diário da escola, através do qual as atividades são pautadas
em uma série de horários e normas, e predefinidas antes mesmo do início da matrícula
escolar.
Entretanto, embora os autores afirmem que a criança não possa optar por outro arranjo
de outros significativos e por outras regras do jogo, reconhecem que a criança não é
simplesmente passiva no processo de sua socialização, e que embora não haja outro jogo à
vista “a criança pode participar do jogo com entusiasmo ou com mal-humorada resistência”
(BERGER; LUCKMANN, 1985, p.180). Corsaro (2013) ao introduzir o conceito de
reprodução interpretativa e Sarmento (2013) ao discorrer sobre as culturas da infância
acrescentam que a criança pode não apenas participar do jogo de bom-grado ou com mal-
humorada resistência como também interpretam o que recebem das culturas externas – como,
por exemplo, da cultura adulta e da cultura escolar – de uma forma própria, peculiar à
construção simbólica das culturas infantis, participando ativamente de seu processo de
socialização.Essa idéiaé partilhada por Delgado (2003) que afirma que as “brincadeiras e os
jogos de faz-de-conta traduzem algo específico dos grupos infantis, que é o ato de brincar” em
que os fatos da vida real aparecem com uma forma bem característica dos grupos infantis, ou
seja, “as crianças não reproduzem inteiramente os fatos da realidade. O simbólico, o lúdico e
a criação caracterizam as culturas infantis” (DELGADO, 2003, p.106).
25
Por se tratar de uma instituição que tem por objetivo a transmissão de conteúdos
relativos ao desenvolvimento escolar e por extensão a transmissão de regras e
comportamentos morais, as crianças estão sempre recebendo orientações sobre o que
fazer/não fazer, como e onde. Nesse contexto as crianças estão o tempo todo interagindo e
desempenhando comportamentos que ora complementam e ora transgridem o que lhes foi
solicitado por seus professores. Dessa forma, se tanto a relação ‘adulto-criança’ como a
relação ‘criança-criança’ é caracterizada por interesses e desinteresses, concordâncias e
discordâncias, exclusões e inclusões, negociações e transgressões, em ambas as relações as
crianças criam estratégias para concretizar suas vontades e sustentar, ou ao menos negociar,
suas vontades; no âmbito da relação ‘adulto-criança’, a capacidade criativa das crianças
destacada pelos autores estudados – entre eles Sarmento, 2013; Cohn, 2005; Müller e Hassen,
2012; Toren, 1993; Corsaro, 2013 –pode ser observada aqui a partir das estratégias que elas
criam para transgredir as ordens dos adultos e as regras institucionais.
Nas pesquisas que abordam questão dos conflitos entre crianças e adultos no âmbito
educacional – a citar Martins Filho (2013), Licciardi (2013) e Seabra (2013) – tem sido
criticada a questão de um imperativo adultocêntrico nas relações entre professores e alunos,
imperativo que desconsidera as crianças enquanto participantes de seu processo de
socialização e enquanto produtoras de cultura, chamando a atenção para a relevância de
outorgar à criança as condições necessárias para a concretização de seu direito pleno a tal
participação. A partir dessa perspectiva, a transgressão das regras é concebida como uma
estratégia de poder criada pelas crianças como meio de atuação intencional em uma realidade
na qual a criança é controlada e reprimida. Martins Filho (2013) em sua pesquisa sobre a
socialização entre adultos e crianças e entre as próprias crianças no interior da creche, afirma
que
nesse contexto de relações, percebemos que nos momentos de tensão é visível que,
27
Ou ainda fazendo uso de diferentes estratégias para não realizar e o que lhes é
solicitado ou proibido, o que significa que embora as regras tenham sido desenvolvidas em
conjunto com as crianças são quase sempre quebradas. O processo da construção das regras
emergiu a partir das reclamações das crianças, de que a sala estava ficando muito bagunçada e
suja, e de que havia muito barulho; sendo do interesse da professora e das crianças que
28
ocorressem mudanças na sala de aula, a professora explicou a importância das regras para se
ter uma boa convivência e sugeriu que a partir das reclamações que estavam sendo feitas
fossem criadas regras com o objetivo de melhorar essa convivência em sala; por exemplo, as
crianças estavam reclamando da gritaria em sala de aula, então a professora perguntou que
regra poderia ser feita para melhorar a situação, então foram criadas as regras “levantar a mão
para falar” e “não gritar na sala”.
As regras estão ali para serem lembradas na medida em que são esquecidas. Algumas
vezes, é a professora quem as traz novamente ao discurso, por exemplo, a primeira regra
“levantar a mão para falar” é sempre retomada pela professora durante as aulas quando um
tema está sendo discutido e as crianças querem falar todas ao mesmo tempo impulsionadas
pela vontade de compartilhar suas experiências e perspectivas, e então não esperam a vez do
colega falar, momento em que a professora pede para que cada um espere o colega terminar
sua fala e levante a mão para anunciar que será o próximo.Em outros casos são as próprias
crianças quem lembram as regras aos seus pares, como, por exemplo, a quinta regra sobre
“não gritar na sala” e a décima sobre “não conversar na hora das atividades” são relembradas
pelas crianças em forma de disciplina e delação - (temas que serão abordados na parte desse
trabalho que estuda os conflitos entre pares) - quando crianças que estão fazendo as atividades
se sentem incomodadas pelas crianças que estão conversando e fazendo barulho.
Vinha (apud LICCIARDI et al, 2013), aponta que às vezes a indisciplina do aluno
pode ser decorrente de um ensino desinteressante ou com propostas pouco desafiadoras.
Durante cada aula que observei, ficou bem explícita a expressão das crianças de aceitação ou
resistência diante das atividades propostas em aula. Entretanto, percebi também, que mesmo
quando as aulas são desafiadoras e os alunos as consideram interessantes, e ainda mesmo
29
quando participam de sua formulação, há casos de quebra de regras. Que as crianças são
indisciplinadas quando a aula não é interessante pode ser meio óbvio, e mais ainda o é a
necessidade de se repensar as aulas e atividades propostas nesses casos, mas as crianças
também quebram as regras mesmo quando gostam das atividades, e isso pode se constituir um
ponto de tensão em sala de aula. No caso específico dessa turma do primeiro ano, pude
observar que algumas crianças não participam completamente das atividades, mesmo quando
gostam das mesmas, porque inventam brincadeiras e conversas múltiplas durante as aulas. Por
exemplo, nas aulas de educação física, ora presenciei as crianças entusiasmadas e envolvidas
nas atividades e ora as presenciei criando mecanismos para evitar participarem ou para
participarem a seu próprio modo. Como pode ser observado no exemplo abaixo:
O professor pediu pra que as crianças corressem em volta da quadra, elas deram uma
volta no sentido horário, e uma volta no sentido anti-horário. O professor pediu pra
que os alunos corressem em fila, sem passar na frente do coleguinha. Eu estava
sentada na escada em frente à quadra, o Bruno passou por mim, parou e disse no
meu ouvido “eu gosto de furar porque eles são muito tartaruga” [...] Então o
professor de Educação Física o chamou pelo nome umas duas vezes. E eu disse “oh,
seu professor ta te chamando”, e ele disse “eu gosto dessa atividade não [...] Depois
o professor pediu para que eles ficassem em fila ao lado da quadra, e colocou alguns
obstáculos no chão dos quais eles deveriam pular e desviar. A maioria das crianças
participou da atividade, embora muitas fossem mais rápido do que deveriam. Quatro
meninas ficaram conversando no fim da fila sem participar da atividade. Então o
professor chegou perto delas e disse “ta tendo reunião aqui é!?”, e elas disseram
“é...”, e ele disse “e ninguém me chamou?”, ao que elas disseram “é só de
meninas!”. Algumas delas me “usou” para não participar das atividades, ficavam se
escondendo atrás de mim, ou conversando do meu lado como se eu como adulta
fosse a permissão para sair da atividade [...] Depois o professor pediu para que as
crianças fizessem uma roda, mas algumas crianças estavam conversando muito e
não foram fazer a roda, então ele as levou para sala. E a Vitória disse pro grupo que
estava conversando “viu, por culpa de vocês a gente vai ter que ir pra sala!”. (Diário
de campo, 20/08/2013).
Outro exemplo pode ser observado na figura 2, que é uma sequência da figura 1. Na
primeira figura as crianças estavam realizando uma atividade de Educação Física, em que
duas crianças vão ao centro da roda e seguram um cabo de madeira em pé no chão o apoiando
na palma da mão. O objetivo da brincadeira é que elas troquem de lugar e segurem o cabo de
madeira do colega antes que o cabo caia no chão. Na segunda figura a Carol aparece
brincando de pular se apoiando no cabo de madeira enquanto participa da atividade. Esse
comportamento da Carol ressalta a questão da cultura lúdica que compõe as culturas da
infância, e o imaginário infantil que não apenas transcende o real, como também transcende
os objetos em si, como nesse caso, em que um cabo de vassoura recebe valor de brinquedo
(SARMENTO, 2013; ALMEIDA, 2006) ressaltando o que tantos autores afirmam ao estudar
as culturas infantis: a criança aprende brincando.
30
No intervalo entre uma atividade e outra, o Josué ficou desenhando, e o Don ficou
jogando no tablet da Duda. Então a Paula [professora] começou a distribuir folhas
coloridas (verde, amarela, rosa e laranja). As crianças pediam pra ela dar a cor que
queriam. Depois de entregar as folhas a Paula disse que ia escrever no quadro uma
frase maluca e que as crianças teriam que copiar igualzinho e depois recortar e tentar
montar a frase.
O Don disse: “ah, não! Que saco!”.
Já o Caio disse: “a frase maluca é doida!”.
A primeira frase que a professora escreveu foi: “Menina doce a comeu”. E o Caio
disse: “ela fez assim, recortou a boca dela e comeu”, e os meninos que estavam perto
começaram a rir. (Diário de campo, 23/08/2013).
Quando acabou o recreio, as crianças voltaram pra sala. A Paula explicou que cada
criança podia pegar uma revistinha e que todos iriam pro pátio para ler as revistinhas
lá. As crianças ficaram eufóricas. Chegaram no pátio e se dividiram em grupos. Só o
Sidimar que quis ler sozinho. Havia dois grupos mistos de meninos e meninas, e um
grupo só de meninos. As crianças estavam o tempo todo interagindo, algumas
pegavam a revistinha das outras e saíam correndo, algumas ficavam colorindo a
revista, outras a liam. Não são todas as crianças que já conseguem ler. As que não
sabem ler ora vêem as figuras ora desenham nas atividades que vem nos gibis
grandes. O Bruno não queria ler, queria desenhar no meu caderno. Então eu falei
para ele: “Mas Bruno, agora é a hora de ler a revistinha, não é!?”, e ele disse “eu não
sei ler”. E eu disse: “mas você não tem curiosidade de saber o que ta acontecendo
nas imagens?”. E ele disse: “não, só gosto quando tem briga e luta. E esse aqui é
chato”. (Diário de campo, 21/08/2013).
Outro ponto interessante é a forma criativa como as crianças quebram as regras como
se as estivessem obedecendo-as, como pode ser observado no exemplo abaixo.
Diante dessas questões, me questiono qual seria a melhor forma de lidar com os
conflitos de interesses em sala de aula. No que tange a relação criança-adulto os conflitos
mais característicos no período das aulas são relacionados à resistência das crianças em
permanecer sentada por um determinado período de tempo ou em parar para escutar a
professora e os colegas, o que também pode ser constituir em um conflito na relação entre as
próprias crianças.
Os conflitos no período do recreio são balizados por dois aspectos principais: há uma
relação de gênero que perpassa as brincadeiras permitidas e proibidas, bem como há uma
questão de segurança que perpassa os tipos de brincadeiras que se pode ou não fazer no
parque, além dos imprevistos, como, por exemplo, quando um brinquedo fica interditado
porque quebrou ou porque está em processo de manutenção (limpeza, pintura, etc). Esses
fatores são negociados por e entre as crianças, que não apenas criam estratégias de quebrar as
regras, como também compartilham essas estratégias entre si.
Dessa forma, o maior ponto de tensão entre adultos e crianças durante o recreio está
justamente relacionado a aspectos da brincadeira infantil, pois se de um lado os adultos da
escola são responsáveis pela segurança e proteção das crianças, de outro lado as crianças são
cheias de imaginação na hora de brincar, desafiando não apenas a predefinição do brinquedo
sobre o tipo da brincadeira a ser realizada como também desafiando os seus próprios corpos,
desejosos por descobrir as suas potencialidades e limitações, até onde podem e conseguem ir.
O exemplo mais freqüente dessa situação acontece nas brincadeiras das crianças no
escorregador e na escada horizontal, como segue nos exemplos do diário de campoe na figura
abaixo respectivamente.
No pátio a Nathi e outras crianças brincavam no escorregador. A Nathi disse que faz
aula de balé e de circo. Ela descia no escorregador de lado, fazendo abertura zero10.
Depois desceu deitada de costas e sentada de costas. A Eloah, a Tatá e a Júlia que
estavam perto começaram a descer deitadas também no escorregador, algumas
tentaram descer fazendo abertura zero, mas não tinham abertura suficiente e
acabavam sentando pra não cair. Elas começaram a descer e subir o escorregador em
pé correndo. (Diário de campo, 21/08/2013).
10
Abertura zero é o ato de sentar no chão com as pernas abertas ao máximo em direção opostas e esticadas
planas ao chão.
33
Depois do lanche as crianças saíram para brincar. E a Paula falou que ainda não
podia ir nobrinquedão, porque as tias não terminaram de limpar, e ainda estava sem
as bolinhas.Então as crianças falaram: “aahhh”, e mesmo assim foram até o
brinquedão. Embora não entrassem ficaram na escada e no braço do brinquedão
como se fosse um cavalinho. Estavam lá a Járede, o Gui, a Eloah e o Donaldo. Então
a Carol chegou, olhou para os lados, viu que não tinha nenhum adulto por perto
(além de mim) e entrou no brinquedão. (Diário de campo, 21/08/2013).
brincar, eu tinha começado a ler um gibi para a Carol no intervalo das aulas, que foi a
primeira a terminar o lanche e me chamou para ir lá fora continuar lendo o gibi:
Quando a gente chegou lá fora tinha uma fileira de cadeiras que estava isolando [...]
a escada horizontal, o balanço de dois lugares [...] e o “brinquedão” [...] Eu não
havia percebido que era uma linha de isolamento então sentei com a Carol na mesa
que estava logo depois da fileira de cadeiras e começamos a ler o gibi. De repente
chegaram outras crianças que terminaram o lanche, furaram a barreira das cadeiras e
começaram a brincar nos brinquedos isolados e a mexer no “brinquedão”. Então a
diretora disse que não era pra brincar lá e me pediu para ficar de olho e não deixar as
crianças furarem a barreira de cadeiras. Então eu e Carol sentamos nas
cadeirasenfileiradas pra continuar lendo. Chegaram outras crianças, [...] elas iam
furar a barreira da cadeira e eu expliquei pra ela que a tia Sibele tinha pedido para
não ir para o outro lado. Então a Yasmin falou: “ah não, só brinquedo ruim, os
melhores tão ali”. [...] (um tempo depois) aHevylyeny e o Donaldo furaram a
barreira das cadeiras. Eu expliquei o que a Sibele tinha falado, mas eles continuaram
lá dentro. (Diário de campo, 22/08/2013).
Quando eu entrei na sala o Don ‘tava’ falando: “olha o que as meninas fazem, olha o
que as meninas fazem!”, e começou a rebolar, então quando ele me viu parou. E eu
perguntei: “o que as meninas fazem, Don?”, mas ele disse: “naaada!”. (Diário de
campo, 20/09/2013).
11
Vídeo gravado por meio de uma máquina fotográfica por uma das crianças durante a minha estadia em
campo.
36
Em outra situação a mesma criança mencionada no exemplo acima falou para uma das
meninas que iria “chupar o peito” dela quando ela crescesse. Em seguida ela veio me contar
como que denunciando o colega, mas depois começou a fazer piada com o assunto com uma
de suas colegas, e quando eu perguntei sobre o que elas estavam falando ela ficou tentando
desconversar para não deixar sua colega me contar qual era o assunto.
Há, entretanto, outra questão no extremo oposto que emerge da necessidade de se
abordar a temática da sexualidade com as crianças, trata-se da introdução de conteúdos ou
temáticas inadequadas para a demanda infantil do momento, como, por exemplo, o caso da
polêmica em relação à cartilha acadêmica sobre educação sexual que foi produzida em 2004
com o intuito de ser distribuído para crianças entre 10 e 11 anos, sendo utilizada sete anos
depois em sala de aula. A Secretária da Educação de Embu das Artes (no Estado de São
12
Vídeo gravado por meio de uma máquina fotográfica por uma das crianças durante a minha estadia em
campo.
37
Paulo), Rosimary Mendes Matos, afirmou em uma entrevista concedida ao jornal SPTV
(CARTILHA..., 2011) que ficou “chocada” com o fato de o material ter sido distribuído para
as crianças, e que havia orientação expressa de que o material era para ser utilizado em
família. Na mesma entrevista, Carmita Abdo, Coordenadora do Programa de Estudos em
Sexualidade da USP considerou ótima a idéia da cartilha, mas afirma que faltou um passo
anterior que seria a preparação dos pais para receber a apostila. A mesma crítica aconteceu em
Porto Velho (no Estado de Rondônia), com cartilhas também voltadas para crianças e
adolescentes; a Prefeitura em parceria com a ONG Tucuxi investiu em uma cartilha de
orientação sexual destinada às escolas da rede pública municipal, mas o Ministério Público
recomendou a suspensão da distribuição nas escolas devido à procura de alguns pais e
lideranças evangélicas. Denise Limeira, presidente da ONG Tucuxi e organizadora da
cartilha, afirma nessa entrevista que o conteúdo é adequado aos “jovens” e que não existe
outra forma de se falar se não diretamente. O material foi suspenso e o Ministério Público
considerou necessária a readequação do conteúdo pela Secretaria de Saúde de Rondônia
(CARTILHAS..., 2009).
Se por um lado há o reconhecimento da necessidade de orientações sexuais nas
escolas, há por outro a necessidade de um material que apresente a extensão adequada para as
crianças. Deste modo, temos aqui um dilema entre a necessidade emergente de orientação
sexual nas escolas para o público infantil e a necessidade de se produzir um material que
considere o contexto social e cultural mais amplo no qual a temática da sexualidade é
apresentada e vivenciada. Essa temática é um ponto importante para ser trabalhado na
educação básica, tanto porque as crianças trazem esse tema em suas falas e brincadeiras,
quanto porque há muito mais das questões sexuais na vida das crianças do que os adultos
gostariam de acreditar. Muitas crianças trazem essas questões de casa, e com certeza há em
todas as escolas casos de crianças molestadas sexualmente ou que apresentem inúmeras
questões que poderiam ser trabalhadas em grupo na escola ou em acompanhamento
psicológico específico para tais situações.
interesses. Em sala de aula eu pude identificar seis tipos de conflitos mais comuns:
relacionados à partilha dos materiais escolares; relacionados aos diferentes interesses das
crianças que querem brincar/bagunçar e as crianças que não gostam de barulho enquanto
fazem suas atividades; relacionados à delação; relacionados à tentativas mal-sucedida de
aproximação entre pares por meio da agressividade lúdica; relacionados à agressividade física
e verbal intencional ou não intencional; e a questões de exclusão entre pares durante as
brincadeiras ou atividades pedagógicas.
Quanto ao primeiro tipo de conflito se faz importante ressaltar que na escola os alunos
são proibidos de emprestar seus materiais pessoais uns para os outros porque muitas crianças
perdem seu material emprestando, para tanto existe um armário com vários objetos
disponíveis – tais como tesoura, cola, lápis, borracha – para que os alunos que não trouxeram
o seu material possam pegar emprestados da própria escola. Entretanto no decorrer de grande
parte das atividades as crianças pedem aos seus colegas que lhes emprestem seu material, e
quando o colega nega, ou quando o que pede simplesmente toma antes que o dono do material
lhe entregue, então uma possível situação-conflito emerge. Abaixo cito dois exemplos
observados durante duas atividades diferentes, a primeira foi quando as crianças estavam
fazendo uso de tesoura, cola, canetinha e lápis para recortar uma flor e escrever uma
mensagem para suas mães em lembrança à primavera; e a segunda foi quando a professora
estava ensinando aos alunos sobre material reciclável, situação em que as crianças estavam
sentadas em pequenos círculos no chão.
A Carol está colocando a folhinha no cabo de sua flor, enquanto pressiona a folhinha
com os dedos contra o cabinho, a Tatá, que está na mesa ao lado, vai à mesa da
Carol e fala: “me dá a cola”, antes que a Carol responda, ela já está em sua mesa
usando a cola. Então a Carol vai até a mesa da colega e fala chamando a atenção:
“nem pediu, nem sabe falar”. Então eu perguntei: “como que fala Carol?”, e ela me
responde: “me dá a cola, por favor?”. (Diário de campo, 26/09/2013).
Cada criança recebe uma figura, e elas recebem a ordem de compartilhar a figura
com os colegas [...] A Paula está atendendo a um grupo no outro canto da sala, a
Eloah e o Gui reclamam que a Geovanna não quer compartilhar o desenho, mas a
Paula não escuta, então não demora muito para que a Eloah puxe o desenho da mão
da colega, que fica injuriada, e então elas começam a brigar pela figura. A Paula
chega e chama a atenção, e diz que é para compartilhar a figura com os amigos.
Então a Geovanna fala que a Eloah queria pegar dela e que não pediu, e a Paula diz
que ela tinha que ter compartilhado, enquanto a Geovanna, virando os olhos, diz
“ah, desisto!”. Então ela encosta na parede e começa a chorar. E eu pergunto: “o que
foi Geovanna?”, e ela olha pra mim e diz: “caiu um bicho no meu olho (mostra
abrindo o olho com o dedo), e tá doendo muito”. (Diário de campo, 12/09/2013).
Em outra situação ocorrida em sala de aula a professora precisou sair para entregar um
material em outra sala e me pediu para ficar olhando a turma. A professora pediu para os
39
alunos se comportarem e todos concordaram, mas logo depois que ela saiu da sala algumas
das crianças começaram a conversar e brincar dentro da sala, e poucos continuaram fazendo
suas atividades. Os que estavam bagunçando usaram uma estratégia de ficar indo com
freqüência à porta para ver ser a professora estava voltando e sinalizar para as outras crianças.
Foi uma relação interessante, que demonstrou outros aspectos além da criação de estratégias
na transgressão das regras. A bagunça não era do interesse de todos, mostrando um conflito de
interesse entre pares, e na resolução desse conflito algumas das crianças se apropriaram de um
dos elementos de disciplina da cultura adulta, que é escrever a letra do nome de quem está
bagunçando no canto do quadro, e se a pessoa não parar de bagunçar se aumentam as letras
até um ponto em que ela recebe algum tipo de disciplina. Na imagem abaixo podemos ver o
Caio mostrando a primeira letra do nome dele no canto quadro, e abaixo vemos um “B” de
Bruno que foi escrito por uma das crianças.
Nessa situação de conflito de interesse entre pares havia pelo menos dois grupos se
40
organizando em prol de seus interesses, recorrendo às estratégias que achavam viável para
lidar com as questões do momento, como pode ser observado abaixo.
[...] a Paula me pediu para ficar na sala com as crianças por alguns minutos, pediu
para as crianças continuarem fazendo as atividades e não fazer bagunça, e as
crianças concordaram com ela. As aulas do primeiro período já tinham acabado,
então dois dos pequenos [primeiro período] começaram a aparecer na porta, e o
Bruno levantou e começou a provocar eles, fechando a porta e os chamando de
bobos. Um dos pequenos era o Calebe, irmão do Josué que estuda na sala, que ficou
bravo e levantou para ir defender o irmão. Eu pedi algumas vezes para o Bruno
voltar para o lugar e terminar a atividade, mas ele não deu bola, então não demorou
muito para que todos se agitassem e começassem a conversar aleatoriamente e fazer
brincadeiras, subir nas cadeiras, etc... A Júlia, a Yasmin e a Eloah vieram reclamar
para mim que o barulho estava muito alto e que elas não estavam conseguindo fazer
a atividade. Todo mundo estava achando ruim a bagunça do Bruno, e as crianças
começaram a escrever o nome do Bruno no cantinho do quadro onde ficam os
nomes dos que aprontam; então o Bruno vinha e apagava o seu nome e brigava com
as outras crianças. Então elas começaram a me pedir para escrever o nome dele no
alto do quadro, e me disseram que quando a Paula chegasse era para eu contar tudo
para ela. Já as crianças que estavam bagunçando ficavam cuidando a porta para ver
se a professora estava voltando, para poder sinalizar para os outros e evitar uma
chamada de atenção ou uma disciplina, assim, quando a Paula estava voltando, eles
começaram a gritar: “a professora, a professora...”, e os que estavam em pé voltaram
correndo aos seus lugares. (Diário de campo, 05/09/2013).
“A Paula precisou sair da sala por alguns instantes e pediu para duas das crianças
olharem a sala: “eu vou lá guardar isso aqui.Gui você olha os meninos, e Járede
você olha as meninas”. Quando ela saiu da sala as crianças continuaram suas
atividades, sem levantar ou mudar de comportamento. Ao contrário do que
aconteceu quando eu tive que olhar a sala no dia anterior. A Járede ficou levantada
apoiada com os braços em sua mesa olhando para toda sala para ver se alguém
estava bagunçando e contar para professora, e o Gui continuou fazendo sua atividade
sem parecer muito preocupado com o que estava acontecendo ao seu redor. A Paula
voltou para sala, e a aula continuou no mesmo ritmo”. (Diário de campo,
06/09/2013).
As crianças já ficaram outras vezes comigo em sala de aula, e eu não tenho muita
habilidade para fazer com que elas permaneçam em suas atividades por muito tempo ou que
41
não se dispersem completamente. Eles me chamam de “tia” e me vêem como adulta na hora
de delatar um colega que lhes bateu, excluiu ou que fez com que se sentisse prejudicados de
alguma forma, mas também me chamam para brincar e compartilham segredos, e nessa
condição de pesquisa eu acabei me constituindo como que em um “entre-lugar” nessa minha
relação com as crianças, sendo conivente demais para não participar das brincadeiras e grande
demais para ser criança. Mas quando a Járede e o Guilherme ficaram responsáveis por cuidar
da turma, a turma não bagunçou porque a Járede contaria para professora se alguém
bagunçasse. Essa relação mostrou uma estratégia de poder, em que a professora que
representa autoridade em sala de aula delegou temporariamente sua autoridade para outra
criança, que assume então o papel de vigiar, com o intuito de disciplinar.
Esses exemplos trazem duas outras questões que representam o conflito entre as
crianças. Uma é o tempo diferenciado com que as crianças acabam as suas atividades em sala
de aula, ou seja, umas acabam antes que outras e se ocupam imediatamente de outra atividade,
sejam elas relativas ao livro didático ou às brincadeiras, desenhos em folhas avulsas ou
conversas paralelas, e por vezes acabam incomodando os colegas. E a outra é a questão da
delação, no sentido de uma criança ir contar para um adulto algo que seu colega fez, e que,
supostamente, não era pra contar, como pode ser observado no exemplo abaixo retirado do
meu diário de campo.
A Carol [que já tinha terminado sua atividade] me pediu pra ler uma historinha pra
ela, da Turma da Mônica, eu comecei a ler a história, e pouco tempo depois
terminou o tempo da primeira atividade, e a professora pediu que as crianças
guardassem as revistinhas para o início de uma nova atividade. A Carol ficou com o
gibi na mão, sentada na carteira, tentando esconder o gibi e pedindo pra eu continuar
lendo. Eu disse que continuaria no intervalo. O Bruno percebeu que ela estava com a
revistinha e contou pra professora: “Ow, tia Paula, a Carol ta com a revistinha.
(Diário de campo, 22/08/2013).
A Tatá veio me mostrar uma revistinha (das que eles lêem durante os intervalos das
atividades) e o Bruno tomou da mão dela e disse para professora: “olha aqui tia,
Tainá com revistinha de novo”. E a Paula disse: de novo Tatá? É só depois do
recreio. (Diário de campo, 21/08/2013).
Essas duas situações descritas acima aconteceram durante as aulas, quando as crianças
recebem a permissão de pegar revistinhas para ler se terminaram suas atividades antes dos
colegas. Assim que as atividades se encerram as crianças devem devolver as revistinhas de
volta no cesto onde ficam. A delação emerge em várias situações de disputas de interesses, e é
usada como ameaça para se conseguir o que se quer ou evitar o que não se quer; nesse sentido
a frase mais comum entre as crianças se torna: “Eu vou contar pra tia”, ou por vezes,
42
especificamente “eu vou contar pra tia Rita”13, ou ainda “vou contar pra tia Sibele”14, que
representam para as crianças autoridade máxima na escola.
Outro exemplo nos permite observar uma situação em que aparece não apenas uma
situação de delação, como também uma situação de agressividade lúdica, nem sempre bem-
sucedida.
[...] a Eloah chega perto de mim dizendo: “o tia, a Carol me beliscou”. Então a
Carol chega e me belisca brincando, mas dói, eu falo que doeu, mas ela sai
repetindo com os outros coleguinhas. Em seguida o Caio e o Wevertoncomeçam a
brincar de lutinha em meio às arrumações. (Diário de campo, 12/09/2013).
13
Professora e Assistente da Coordenação.
14
Diretora da Escola.
43
Nesse exemplo nós temos uma situação de delação por parte da Eloah, que fica
incomodada com a agressão lúdica por parte da Carol, agressão que também é recebida pelos
outros colegas como ofensa; em seguida temos uma situação de agressão lúdica por parte do
Caio que finge bater no Weverton, mas que por sua vez entra na brincadeira. Essa existência
de agressão física e verbal entre os colegas que pode ora representar ofensa e ora representar
brincadeira, muitas vezes é característica de uma tentativa de aproximação entre pares, outras
vezes, porém é uma provocação intencional. Nos casos de agressões físicas ofensivas
intencionais o mais comum são os empurrões, chutes (pelos meninos), puxada de cabelo
(pelas meninas), e depredação do material escolar do outro, como vemos abaixo:
Tatá: tia, aconteceu uma coisa séria! O Bruno rasgou sua pesquisa
P.: ‘xô’ ver... ê Bruno!
Don: ele pegou assim ó, pegou assim e pow... rasgou sua pesquisa.
P.: por que Bruno?
Bruno: porque eu pensei que era da Nathi
P.: e mesmo se fosse da Nathi... pode desenhar Nathi
Don: tia, eu vi, não foi sem querer não, ele assim oh, e puw! (Diário de campo,
12/09/2013).
Enquanto os meninos conversam sobre o jogo o Bruno grita: “o gente, vai começar o
futebol, ou não vai!?” O jogo começa, depois de um tempo chutando a bola entre si
e tentando tomar a bola do adversário, o Gui faz gol contra, os meninos do mesmo
time chamam a atenção, os meninos do time oposto comemoram, e o Gui se
justifica: “eu pensei que o nosso gol era lá”, apontando para onde fez o gol.
Então o jogo começa de novo, a bola sai para fora da linha permitida, o Gui continua
com a bola, o Don e o Sid começam a gritar “foi fora! Foi fora!”, o Gui continua,
então o Don chega em cima e dá uma rasteira no Gui que fala “ai”, e o Caio diz
justificando a rasteira: “Guilherme, foi fora!!!!”. (Diário de campo, 12/09/2013).
Nos casos de agressões verbais, o mais comum são os insultos (tais como “filho da
puta”, “chato”), difamação (quando uma criança fala mal de outra criança para seus colegas) e
exposição ao ridículo (com adjetivos pejorativos, tais como “panelão”, “descabelado”,
“feio”):
O Don está filmando a sala, quando começa a filmar o Josué que pegou um pedaço
do papel usado para fazer a flor, e colou na orelha como se fosse um brinco. Nesse
instante o Gui chega e os dois começam a cantar e a dançar na frente da câmara.
[...] o Gui e o Josué começam a brincar de correr em câmera lenta. Então o Gui
começa a vir em direção à câmera, e enquanto vem um colega passa por ele, então
ele movimenta a mão como se fosse acertar a cabeça do colega. O Gui vai se
aproximando da câmera até colocar a boca na lente da minha máquina, e então o
Don faz um movimento contrário e machuca a boca do Gui sem querer. Então o Don
fala: “desculpa aí, Gui!?”, que fica com a mão na boca e com a cara fechada. (Diário
de campo, 26/09/2013).
Na figura acima os participantes do jogo somam cinco crianças, contando a Nathi que
estava no gol. Segundo a Nathi os meninos querem jogar com ela porque ela é legal e ‘boa no
futebol’, e foi o Sid quem a chamou para jogar. É interessante observar que a Nathi e o Sid
46
As formas de aproximação entre meninos e meninas foi o que mais se destacou como
possível fator de conflito nas relações de gênero. A relação de gênero entre pares
freqüentemente acontece em uma combinação de agressividade e ludicidade por parte das
meninas em tentativas de aproximação dos meninos, nesse sentido o conflito aparece como
forma de sociabilidade. Entretanto essa forma de aproximação às vezes é recebida pelos
meninos como ofensiva, e acaba afastando meninos e meninas. As meninas fazem mais
questão de brincar com os meninos do que o contrário, e enquanto as meninas disputam por
saber de quem os meninos mais gostam e de quais meninas serão amigas, os meninos estão
47
mais ocupados disputando para ver quem é o mais habilidoso. Normalmente os meninos
estão jogando futebol durante o recreio ou brincando no “brinquedão”, enquanto as meninas
estão brincando de casinha ou também no “brinquedão”. Antes meninos e meninas
brincavam juntos no “brinquedão”, mas agora ficou estipulado pela escola que cada grupo
deve ir à sua vez. Mas com freqüência meninos e meninas brincam juntos nos brinquedos do
parquinho. Nos últimos dias em campo observei as crianças em um grupo misto brincando de
“caça tatu”, que é quando as crianças se esgueiram nos jardins procurando por tatu-bolinha
dentro da terra:
No exemplo abaixo pode ser observada uma, das muitas situações em que as meninas
querem trazer os meninos para brincar de casinha com elas, mas eles estão mais interessados
em jogar futebol.
O “namoro” pode ser forma de provocação verbal entre as meninas, que – como já dito
– ficam disputando “o amor” dos meninos.
Depois do recreio, eu fiquei na sala de aula sentada no canto. E uma das meninas se
aproximou de mim e disse:
Járede: sabia que o Donaldo não gosta mais da Carol?
P.: é!?
Járede: ô Carol, sabia que eu falei que aquele era meu namorado e o Donaldo falou
que queria ser ele? (ela disse apontando para uma figura de um menino em PVC
colada no mural da sala).
49
O Sid grita enquanto dribla o Caio “Ronimar, Ronimar!!!”, e enquanto tenta pegar a
bola o Caio cai no chão e o Bruno passa rindo da cara dele, então o Caio grita “filho
da mãe!”. É pênalti, o Caio pega a bola, o Sid vai para o golzinho, o Caio chuta, o
Sid defende, abre os braços e sai gritando e comemorando . A nova partida começa,
o Sid diz “O Matheus vai brincar mais não, pára!”, “ele fica atrapalhando a partida,
depois faz gol contra” e diz que é pra ele sair do jogo. O Matheus volta, e o Caio
fala: “Matheus, cê saiu Matheus” (Diário de campo, 12/09/2013).
retrucou “ta sim”. Então a Járede concordou que o Matheus participasse do chá.
Outro fator determinante para a questão de inclusão e exclusão entre pares é a disputa
pelo poder durante o brincar, quando algumas crianças querem comandar as brincadeiras e os
interesses se dividem.
Essa disputa pelo poder também acontece durante o processo de reinvenção dos
objetos e dos brinquedos, temática que será explorada a seguir.
[...] a Nathi chegou perto de mim e disse: “olha, vem cá!”. E me levou até a escada
horizontal que estava ali do lado. O Donaldo estava lá pendurado, desceu e me disse
“tia, antes eu tinha medo de ‘vim’ aqui”. E eu falei: “sério!? como você perdeu o
medo?”, e ele respondeu: “os meninos me ensinaram”. Isso me fez pensar na
socialização entre pares. Então a Nathi subiu também e me mostrou o que ela
conseguia fazer lá.
O Bruno chegou e falou: “quem quer ver um giro-pirueta?”. E a Nathi respondeu
que queria. Então o Bruno subiu no trepa-trepa e esticou a cabeça pra trás. E a Nathi
disse: “nem é giro. Giro é quando faz assim”. E então ela girou em pé. (Diário de
campo, 21/08/2013).
No final da aula o Donaldo estava com um cadarço branco na mão fingindo que era
o homem-aranha e atirando o cadarço como se fosse a teia saindo de sua mão. Então
eu perguntei: “quem te ensinou, Don?”, e ele disse “meu vizinho”. Eu perguntei
quantos anos tem o vizinho dele, e ele respondeu “dez”. O Guilherme e o Josué
viram e pediram o cadarço do Donaldo emprestado para fazer a teia de aranha
também. (Diário de campo, 22/08/2013).
Eu saio lá pra fora pra ver as crianças brincando, e a Duda, a Tatá e a Emily me
chamam pra sentar perto dela. Elas estão brincando em uma parte da escola que tem
algumas mesas e cadeiras. Eu pergunto do que elas estão brincando, a Tatá diz que
estão brincando de ‘arrumação’, a Duda diz que de “casinha”. A Tatá fala: “eu sou a
neném”. E a Giovanna explica: “a gente ta arrumando por causa da bagunça dos
53
meninos ‘menor’”, e em seguida ela fala para as outras meninas “eu sou a dona da
brincadeira da nossa casa. E elas começam a conversar entre si:
- Carol (para Geovanna): “eu posso ser sua filha, só que princesa?”.
[A Geovanna diz que sim e a Carol comemora].
[A Vitória pega as cadeiras para levar perto das outras cadeiras]
Duda: “ow, Vitória deixa que eu arrumo as cadeiras, a mamãe falou!”.
Bia: “ow Vitória, você não vai fazer comida, não!?”
Vitória: “vou, a mamãe falou que é pra eu arrumar as cadeiras e o chão”.
(Diário de campo, 28/08/2013).
15
Expressão utilizada por Martins Filho (2013).
55
pudesse realizar a atividade. Então nós dividimos a sala em dois grupos e as entrevistas foram
realizadas em dois dias, com aproximadamente dez crianças em cada grupo; eu e as crianças
fizemos uma rodinha no chão, assistimos aos vídeos e conversamos a respeito.
As cenas selecionadas registram as seguintes situações de conflito: a primeira retrata o
Sidimar e o Bruno brigando, cena em que aparece a incidência de provocação intencional
caracterizada pela agressão física e por mexer no material do colega sem permissão; a
segunda cena retrata outra provocação intencional, em que aparece a Járede chamando a
Tainá de “descabelada” seguida pela ação da Tainá de recorrer a um adulto para intervir na
situação; e a terceira cena mostra uma situação de agressão verbal, quando as crianças estão
realizando uma atividade em homenagem à primavera e a Carol se aproxima da mesa do
Donaldo que grita várias vezes para ela sair.
Após mostrar os vídeos perguntei para as crianças o que elas percebiam acontecendo
nas cenas exibidas, e a maioria delas respondeu quase que imediatamente “briga”. Após
conversarmos sobre o que acontecia nas cenas, abrimos a conversa para falar sobre situações
de conflitos entre pares na escola. A partir das falas das crianças foi possível levantar algumas
categorias sobre o que as crianças definem como fatores de conflitos, sobre questões que as
deixam tristes, bravas ou que consideram ruim em sua convivência entre pares no contexto
escolar. As categorias que emergiram dessa conversa são:
Como se pode observar nos relatos feitos pelas crianças e descritos abaixo, essas
categorias aparecem associadas e de certa forma interligadas umas às outras. Nos primeiros
dois casos, nós encontramos a categoria “provocação intencional” associada à categoria
“agressão física”. No primeiro o Bruno escreve a primeira letra do nome do Sidimar no
quadro com a intenção de irritar o colega. Como já exposto anteriormente, escrever a primeira
letra do nome no canto do quadro é uma atividade que compete à professora como forma de
advertência, de modo que quando certo número de letras é preenchido a criança recebe algum
tipo de disciplina; e o Bruno se apropria dessa atividade correspondente à cultura adulta com
o intuito de irritar o colega. No caso que segue abaixo deste, o Donaldo e o Guilherme contam
como reagem às provocações do Bruno, em que emergem as categorias “agressão física” e
“agressão verbal” como comportamentos reativos às provocações do colega.
Sid: Quando o Bruno caça comigo, aí vai lá, tia, e põe meu ‘S’ no quadro, aí vai lá e
eu fico bravo, aí eu vou lá e dou um soco nele
P.: por que você acha que o Bruno faz isso?
Sid: não sei16
Don: o Bruno que ele tava mexendo comigo. Muito, ele é muito chato, por isso que
eu fico batendo nele
P.: O que ‘que’ ele fez que te deixou bravo?
Don: tem dias que ele mexe comigo, aí a tia Paula fala pra ele parar, depois ele
continua, depois eu bato nele, se ele não parar de me mexer comigo.
Gui: e eu também
P.: Bruno, o que você faz com o Don que você acha que deixa ele bravo?
Bruno: é que... ele que começa.
Don: a ta, começo!
Josué: ele disse a verdade ta, gente, o Donaldo contou a verdade.
Gui: é mentira dele [falando do Bruno]
Bruno: ééé... pode falar outra coisa?
P.: então me conta o que te deixa bravo...
Bruno: o dia que o Guilherme me empurrou da cadeira, eu tava bem sentado assim
ó, daí eu caí e “ploft”, machucou o pé da Tainá.
Gui: e a Tainá ficou brava comigo
Yasmin: ô tia, deixa eu falar. Aqui, a Geovanna também, ela... quer dizer, a
16
Dados da entrevista gravada na escola nos dias 31 de outubro e 01 de novembro de 2013.
58
Geovanna, hoje mesmo, ela falou pra Jàrede que eu sou a pessoa mais feia do
mundo... Outra coisa também, aí a Tainá, a Tainá e a Beatriz e a Eloah, a primeira
coisa que vou falar, a Beatriz, a Eloah, ela sempre mostra língua pra mim, quando
a gente vai pedir alguma coisa pra ela, ela faz assim “não! [e mostra a língua]”
[...]
Yasmin: ô tia, a Geovanna... hoje a Járede disse assim comigo, que a Geovanna
falou que eu sou feia.
Geovanna: mentira
Járede: verdade, ‘cê’ disse Geovanna!
Geovanna: foi mentira dela
Járede: verdade, você disse!
Járede: todo dia, você fica falando assim ó “ô, Járede...”, a Yasmin fica triste por
causa de mim, né!?daGeovanna e da Maria Eduarda
Yasmin: porque todo mundo nessa sala não gosta de mim. AJárede falou assim
que quando teve filme aquele dia você falou que me odeia
Bia: não falei, não! É mentira da Járede. Eu nunca falo isso dos outros.
Járede: que a Yasmin um dia... porque a Beatriz um dia, ela...a gente tava
brincando, aí eu fui embora, ela disse coisa no meu ouvido né, aí, ela falou um
troço no meu ouvido, aí eu disse... o que você disse no meu ouvido? [ela pergunta
pra Bia].
Bia: nem lembro. Agora danou-se
Járede: ela falou alguma coisa no meu ouvido sobre a Yasmin, sei lá...
Bia: eu falei que o cabelo dela é cumprido e bonito. É sério...
Emily: um dia, uma dia... a Duda também começou a me xingar. Tia a Duda me
xingou.
P.: do quê?
Emily: por causa que sem querer eu caí no chão, porque eu caí sem querer em cima
dela. Um dia eu machuquei um ‘tantão’ aqui no joelho, até aqui em cima.
P.: e você ficou triste?
Emily: fiquei.
P.: e ela, como você acha que ela ficou?
Emily: triste.
durante as brincadeiras quando fazem algum movimento brusco acertando o colega, ou ainda
quando estragam a atividade do colega sem querer, derrubando cola, pisando em cima de uma
atividade que caiu no chão. Em alguns casos as crianças entendem que foi sem querer e
relevam, em outros elas enfatizam que o colega fez propositadamente embora o colega insista
no contrário, e em casos de muita dor embora considerem a real intenção do colega reagem
com agressões verbais ou físicas.
No relato abaixo temos um caso que começou com uma ação de “provocação
intencional”, resultando em uma situação de “disputa”, “ofensa não intencional” e “agressão
física”. Nessa situação, a Hevylyeny pega a cola da Geovanna sem ter permissão, então os
colegas [Geovanna, Donaldo e Hevylyeny] começam a disputar a cola, e nesse processo a
cola abre e entorna em cima da atividade da Beatriz, que se sente extremamente ofendida e
insiste que a ação da Hevylyeny foi proposital.
Outro caso muito comum nas falas das crianças e nas situações presenciadas na sua
relação entre pare são as questões relacionadas à categoria “exclusão”, que em grande parte
61
das vezes vem caracterizada pela frase “ela(a) não quer mais ser mais meu amigo”.
Geovanna: quando a Yasmin, ela ficou brigando comigo, ela só falava que, ela
queria sair dessa escola, e ela falou que não queria ser mais amiga de ninguém, e ela
falou mentira, é... a gente tava brincando, quando o Caio apareceu e falou pra
gente... pra Duda lutar com ele, aí a Járede tentou tirar a Duda da briga, aí ela
acabou dando um soco no Caio, aí ele caiu e machucou a orelha dele. Aí a Yasmin
ficou chorando, porque a Járede ficou acusando nós duas de também ter ajudado,
mas a gente não ajudou, e ela contou pra tia Rita.
P: por que você acha que a Yasmin fez isso?
Geovanna: porque a Járede brigou
Nathi: é... o Donaldo não quer mais ser meu amigo. Aí, aí foi, aí a Duda também não
quer.
P.: por que?
Nathi: quando era o outro dia que era dia do brinquedo, aí todo mundo queria, aí
tinha muita pessoa, aí quando foi na hora do lanche, aí ficou assim, aí, aí, todo
mundo sentou no seu lugar, aí a Duda ficou falando.
P.: e por que você acha que eles não querem mais serem seus amigos?
Nathi: não sei.
Tatá: o Caio disse que não era mais meu amigo, e ele disse que ele nunca mais ia ser
meu amigo, e ele me assustou.
P.: como que ele te assustou?
Tatá: ele pegou a dentadura e fez “grrrr”.
Yasmin: ô tia, um dia a Járede, ela tava brigando comigo... eu disse assim “Járede,
posso brincar com você?”, ela “não, porque eu to brincando, eu to brincando de
outra coisa, você nem sabe brincar”, aí depois, aí depois, aí depois a Maria Eduarda,
aí depois, aí depois... ô tia, também a Júlia, ela, ela nunca brigou comigo, ela é muito
legal
[...]
Járede: um dia a Yasmin também, ela, ela, ela só fica mandando, ela fica...
aGeovanna e a Yasmin. Mas antes era a Geovanna que ficava mandando na
brincadeira, não é Yasmin? Agora ela parou um pouco. A Yasmin também ficava
assim, aí ela parou. Aí né, as meninas só ficava enchendo o saco dela, da Geovanna,
porque ela não deixava a gente brincar, só porque a gente também não era amiga das
outras pessoas ela ficava fazendo isso, porque... como chama?... é porque a gente
não queria ser amiga das outras pessoas que ela é.
Yasmin: tia, eu tenho outra coisa pra falar, aqui, “xo” te falar. A Geovanna, a gente
tem que ser amiga de quem que ela é, se não a gente não pode, se não a gente não
pode brincar com ela. Eu tenho que ser amiga “eu sou amiga da Vitória, eu sou
amiga do Donaldo, cê é?”, às vezes eu falo assim “não, o Donaldo não é meu
amigo”, aí ela vai e fala assim “então não pode brincar!”, aí depois outro dia eu falei
assim: “o Járede posso brincar com você?”, ela falou assim “pode”, a Járede não liga
com esse trem , nem a Duda. A Geovanna também tia, ela brinca de rainha e a gente
tem que fazer tudo o que ela mandar se não a gente tem que sair fora da brincadeira.
Duda: eu também tenho uma coisa pra falar.
P.: fala Duda
62
Duda: Aqui, teve um vez que... que a Geovanna ficou brincando de rei, rainha e
sultão, aí tudo, toda hora ela me expulsava da brincadeira... muito triste.
Bia: é porque aHevylyeny toda dia ela toma o brinquedo de uma pessoa
Geovanna: ela só fica falando mal das pessoas, quando eu to sentada lá ela olha pra
trás e me atrapalha.
Yasmin: tudo o que a gente faz a gente não deixa ela brincar com a gente, a
Hevylyeny é a pior amiga do mundo, pior amiga do mundo mesmo.
P.: como vocês acham que a Hevylyeny se sente?
Bia: triste, mas ela é muito chata.
Podem ser observadas algumas predominância categóricas nas relações por gênero:
entre os meninos se destacaram as categorias “agressão física”e “agressão verbal”
normalmente advindos ou como reação á um ofensa não-intencional, tais como esbarrar no
colega ou atrapalhar o jogo, e advindos de reações ás provocações intencionais de seus
colegas, caracterizados respectivamente por empurrões e chutese por atos verbais com a
intenção de ofender. No caso das meninas, se destacam as categorias “exclusão”, “provocação
intencional”e “disputa”, caracterizadas respectivamente pela não permissão de uma colega
participar da brincadeira, por mexer no material ou na atividade do outro sem permissão, e
pela disputa por papéis na brincadeira quando uma das meninas quer mandar nas outras. E
entre meninos e meninas destaca a categorias provocação intencional caracterizada
principalmente por acontecer durante as aulas, representando a ação de mexer no material do
outro sem pedir ou atrapalhar a atividade do colega.
P.: Caio,o que ‘que’ um coleguinha fez com você que te deixou muito bravo ou
muito triste, aqui na escolinha?
Caio: ah, não lembro não
[enquanto eu filmo duas meninas ficam atrás do Caio fazendo “chifrinhos” com as
mãos, então ele olha pra trás e sai andando e falando bravo]
Caio: ah, não! Agora eu vou falar pra tia Sibele
P.: por que Caio? Vem aqui...
63
[ele volta]
P.: ficou bravo?
Caio: uhum
P.: por que?
Caio: isso daí... agora que eu vi, isso daí é ‘bravice’, isso me deixa irritado.
P.: como você se sentiu Caio?
Caio: IRRITADO!
A primeira reação do Caio foi procurar um adulto para intervir na situação, o que
representa uma atitude muito comum por parte das crianças. Essa é uma situação interessante,
pois essa procura por um adulto não diz respeito a uma tentativa de conciliação entre as partes
envolvidas no conflito, mas a uma ação de delação em que uma das crianças aparece como
vítima e a outra como transgressor. Não conseguir negociações bem-sucedidas em conflitos
entre pares não é o único motivo que leva as crianças a procurarem a intervenção dos adultos,
por vezes essa postura é tomada antes mesmo de se iniciar uma tentativa de negociação, como
demonstrado no exemplo acima. A categoria “pedir perdão”, acompanha estratégias criadas
pelas crianças para convencer o outro de que o ato foi sem querer e que não se repetirá,
mesmo quando o atofoi intencional.O que pode ser percebido é uma vontade imperativa de se
esquivar da resolução do conflito, e não uma negociação interpessoal que considera tanto as
próprias perspectivas quanto as perspectivas das outras pessoas envolvidas na situação, como
se pode observar mais a frente.
Como meios de se evitar os conflitos predominaram as categorias: “não sei”, “o outro
parar de fazer isso”, e “nunca mais fazer isso”. Na maioria das vezes em que eu perguntava
para as crianças: “e o que você pode fazer para melhorar isso?”, a maioria atribuía ao outro a
responsabilidade por evitar o conflito.
Bia: tenho uma outra coisa pra falar... A Geovanna, antes, ela era muito metida e
gostava de mandar nos outros.
P.: ela mudou?
Bia: aham... um pouquinho.
Geovanna: eu já pedi desculpas pra elas.
P.: e pra Hevylyeny? A Hevylyenyta falando que você trata ela mal
Geovanna: ela também fazia isso comigo, quando eu deixava minha bolsinha na
frente aHevylyeny pegava tudo sem pedir.
Bia: ô tia, e a Hevylyeny ficou olhando também a atividade dela.
P.: Ó, a Geovanna ‘ta’ falando que você pega as coisas dela sem pedir, é verdade?
Hevylyeny: não!!!
Geovanna: é verdade sim!
Hevylyeny: é porque eu achei um lápis dela aqui ó [na cestinha de lápis], aí eu achei
que não era dela não, virei assim, aí eu vi que era dela [por causa dos nomes escritos
nos lápis], aí eu fui lá e não devolvi porque... porque, porque, porque...
P.: E a Geovanna, ela falou que não gosta disso, não é!?
Hevylyeny: não.
P.: se você fizer isso o que vai acontecer?
Hevylyeny: vou pedir desculpas.
P.: como ela vai ficar?
Hevylyeny: triste.
P.: Geovanna você falou que não gosta que ela pegue suas coisas sem pedir, e ela
falou que não gosta que você trata mal ela. Então o que você pode fazer pra ela
também não ficar triste?
Geovanna: ela fica demais pegando as minhas coisas, aí não dá [...] e ela também faz
muita maldade comigo.
P.: que maldade?
Geovanna: ela pega as coisas dos outros
Bia: depois ela fica babando.
Geovanna: ela fica gritando com a gente toda hora, eu e a Duda e Bia, nós não
fizemos nada, ela ta lá gritando com a gente, como o Caio também, ela faz muita
coisa com o Caio, ela pega as coisas do Caio, grita na minha cara.
P.: ó, então me fala uma coisa, a tia quer saber o que a gente pode fazer pra tratar
melhor a Hevylyeny . O que pode fazer?
Geovanna: ela também parar de fazer essas coisas que ela faz com as pessoas.
P.: mas o que você pode fazer?
Geovanna: não sei
Bia: ô, tia, e aHevylyeny um dia ela falou com voz grossa e jogou cola no meu lápis,
e falou com voz grossa comigo, falando que eu era chata, e me chamou de nariguda.
65
P.: a tia quer saber o que você pode fazer pra não deixar a Hevylyeny triste
Bia: eu posso fazer que ela ‘pára’ de fazer isso com as pessoas, fazer as pessoas
parar de ficar triste, parar das pessoas fazer isso com ela, que aí, porque as pessoas
‘fica’ triste também e faz com ela.
P.: como você pode tratar ela pra ela não ficar triste?
Bia: bem
P.: e você Hevylyeny, o que você pode fazer pra...
Hevylyeny: pedir desculpa
P.: a gente pede desculpa depois que a gente errou. O que você pode fazer pra não
deixar a Bia ou a Geovanna triste.
Hevylyeny: respeitar elas
P.: como?
Hevylyeny: não incomodar...
P.: o que é incomodar elas?
Hevylyeny: incomodar é pegar o lápis da Geovanna sem pedir.
P.: Járede, como você se sentiria se fosse você no lugar da Hevylyeny e todo mundo
‘tivesse’ falando isso de você?
Járede: é, eu ia ficar triste, porque a Hevylyeny... aHevylyeny é a única que manda
mais na brincadeira. Ela fala assim “você vai fazer o que eu mandar, eu mandar, se
não você não brinca”, a Geovanna e eu sai da brincadeira, ela é chata
P.: o que você acha que pode fazer pra mudar“isso?
Járede: não sei
P.: pra ficar bom...
Járede: pra ela me pedir perdão, eu pedir perdão pra ela, pedir perdão e nunca mais
repetir isto
P.: o que deixa a convivência escolar ruim?
Geovanna: quando a Hevylyeny briga com a gente, ela só faz coisa de ruim pra
gente, ela só ficacontando mentira pra professora.
P.: O que pode ser feito pra ficar bom?
Geovanna: ela parar de fazer isso e pedir perdão.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando eu comecei esse trabalho minha concepção de conflito era exatamente o que
autora critica em sua obra, e que é tão claramente refletido por Licciardi, “conflitos eram
negativos, antinaturais e deveriam ser evitados rapidamente. Não eram compreendidos como
oportunidades para favorecer o desenvolvimento e aprendizagem [...]”. (LICCIARDI, 2013,
p.142). Rever essa concepção de conflito é fundamental, pois a forma que o concebemos
influencia diretamente a forma como lidamos com ele.
A exploração dessa temática no contexto escolar abre uma gama de causas que
perpassam os conflitos dentro da escola, e que correspondem a contextos sociais, culturais e
econômicos plurais e heterogêneos. Durante essa pesquisa diversas questões foram sendo
levantadas em relação à questão dos conflitos nas relações intra e intergeracionais nesse
contexto, dos quais se destacam as seguintes: a importância de se privilegiar a comparação
com modelos educacionais distintos; a importância de se ampliar os debates nas escolas em
torno do tema sexualidade; a necessidade de parcerias com as instituições escolares com
objetivo de organizar ações dentro das escolas relacionadas a um programa de mediação de
conflitos.
Quanto à primeira questão – a importância de se privilegiar a comparação com
modelos educacionais distintos – ao compararmos o modelo de educação indígena com o
nosso característico modelo educacional, encontramos diferenças significativas que levam a
uma série de reflexões. Em um vídeo gravado com a Aldeia Kumarumã, na terra indígena
Uaça (Oiapoque-AP), dois membros do Povo Galibi-Marworno fizeram, respectivamente, os
seguintes comentários:
a diferença do menino pra criança não índia, para o indígena, é que o indígena, os
pais, eles soltam o indinho, solta pra andar, pra correr no chão, pra tentar nada por
eles mesmo, né!? Eles mandam eles pescar em pequenas canoas lá no rio [...] desde
pequenino ele saber acender um fogo, assar um peixe, se virar pra comer [...].
(TASSINARI, 2013).
as crianças indígenas de modo geral elas aprendem [...] sempre eles já crescem
aprendendo as coisas, na convivência com a comunidade [...] por exemplo, aqui no
68
Kumarumã os indígenas, nós, a gente tem como trabalho, roça, pescaria, cada pai de
família leva seus filhos pra esse trabalho né!? [...] só que o trabalho é brincar na
beira e correr, pra desenvolvero corpo dele [...]. (TASSINARI, 2013).
17
Dado obtido em conversa com Myriam Martins Alvares.
69
trabalho social na nossa sociedade. Dessa forma, reconheço que a escola em seu modelo atual
representa uma oportunidade para cada indivíduo seguir uma formação diferente dos seus pais
se assim o quiser, o que é um avanço em termos de possibilidade de mobilidade social, se
pensarmos o Brasil colonial, por exemplo. Entretanto, a crítica que permanece é que em um
modelo de ensino-aprendizagem em que a educação é “relegada” à escola e não há um
modelo de aprendizagem por meio da participação periférica legitimada, acontecem duas
situações a se repensar.
A primeira é que uma educação que é “relegada” à escola deixa os professores e
outros funcionários da escola em uma posição delicada em que, em que para a família a
educação passa a representar a aquisição de conteúdos específicos para a próxima série, o que
os pais cobram demasiadamente das escolas. De forma que a educação deixa de ser um fim
em si e se torna apenas um “lugar de passagem”, pois embora as crianças não sejam
reprovadas até uma dada série, é necessário que a educação não seja reduzida ao aprendizado
de conteúdos específicos para ingressar com sucesso no próximo ano, e possa representar uma
educação para a cidadania em um papel que para ser efetivamente desempenhado deve
interligar escola, família e comunidade.
A segunda situação diz respeito ao material didático desenvolvido para as escolas
infantis, que se encontra quase sempre dividido em inúmeras disciplinas não correlacionadas
entre si, de forma que não há uma proposta de conexão entre as disciplinas que permitam ao
aluno concebê-las enquanto a soma do que reflete suas vivências, e se não há uma conexão
com as vivências – se não é possível à criança associar o que aprende em sala de aula com o
que vive – então o ensino se torna um tanto quanto desgastante para o aluno que precisa se
esforçar muito para prestar atenção, e para o professor que precisa se esforçar muito para
conseguir essa atenção.
Nesse sentido, observando em sala de aula o empenho da professora em trazer para a
escola temas, brincadeiras e atividades que fizessem as crianças entrarem em contato de
forma vívida com a disciplina, me foi possível perceber que as crianças não são dispersas e
desatentas como muitos pensam, mas que esse é o jeito próprio da cultura infantil de realizar
suas atividades, caracterizado pelos quatro eixos estruturadores da cultura da infância
destacados por Sarmento (2013): a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a
reiteração. Embora se ouça na sala algo que parece um mero barulho desordenado, enquanto
eu passeava pela sala observei que as crianças realizavam suas atividades e cumpriam o que
era sugerido pela professora; pois como destacado por Sarmento o afeto, a sexualidade, o
brincar, o movimento, o imaginário, a fantasia constituem a criança de forma distinta dos
70
abrir o debate sobre o tema racial nas escolas. Minha ressalva para esse trabalho é sobre a
questão da sexualidade devido às demandas que emergiram no meu campo de pesquisa,
destacando que o foco da questão não é sobre abrir espaços de debates para todos os temas
dentro das escolas, e sim estarmos sensíveis para abrirmos debates em torno de temas que
correspondam às demandas emergentes em cada situação específica. No meu campo de
estudo, me defrontei com o seguinte dilema: a necessidade de um ponto de equilíbrio entra a
necessidade de orientação sexual nas escolas para as crianças e a necessidade de se produzir
um material com conteúdos e temáticas adequadas à demanda infantil do momento,
considerando o contexto social e cultural mais amplo no qual a temática é apresentada e
vivenciada, que é um ponto que vale a pena ser explorado em outras pesquisas, pois se por um
lado há uma tendência na cultura do adulto de conceber a criança como um ser assexuado, por
outro lado as crianças vivenciam sua sexualidade entre pares, recebem inúmeras informações
midiáticas sobre o assunto e apresentam uma curiosidade que lhes é natural sobre o assunto;
isso sem deixar de mencionar a questão de abusos sexuais praticados contra as crianças. Esse
é um outro ponto relevante para se pesquisar, na medida em que crianças que são abusadas
sexualmente tendem a compartilhar com seus pares suas vivência na busca de compreender e
interpretar os fatos que constituem sua realidade empírica, configurando uma situação de
abuso entre pares. Todas essas questões configuram uma necessidade imperativa de abrir
espaços de debates sobre a temática na escola, de ampliar as pesquisas sobre o assunto e de
uma maior implementação de parcerias com as escolas que promovam acompanhamentos
específicos para intervenções em incidentes mais graves, como os casos de abusos sexuais
praticados contra as crianças.
Quanto à necessidade de se organizar ações dentro das escolas relacionadas a um
programa de mediação de conflitos, temos a seguinte questão: da mesma forma que é um erro
considerar que os adultos nada têm a aprender com as crianças, seria um erro considerar que
as crianças não precisam da mediação dos adultos, A ressalva para esse trabalho é para o fato
de este, e tantos outros processos, se tratarem de uma relação dialógica. Não se pretende aqui
inverter a hierarquia, e sim horizontalizar as relações.
Se por um lado a idéia é a de que o conflito é um meio pelo qual as crianças
constituem sua identidade por meio da afirmação e preservação do eu (WALLON apud por
CORSI, 2013), por outro lado um conflito mal-resolvido pode provocar rupturas nas relações
e tensões do tipo intrapessoal, como, por exemplo, quando as crianças se reconhecem nas
categorias “ninguém gosta de mim” e “você não é mais meu amigo”. Os conflitos entre as
crianças em grande parte resultam em atos de violência simbólica, representados por
72
exclusões das brincadeiras, agressões físicas e verbais. Licciardi (2013) destaca a importância
de se planejar a intervenção pedagógica em situações de conflito com base no conhecimento
científico, ou seja, enfatiza a necessidade de haja “intervenções específicas para o trabalho
com conflitos na escola” (LICCIARDI, 2013, p.177); a autora busca compreender em sua
pesquisa quais são “as causas, estratégias empregadas e resultados dos conflitos vividos entre
criança de três a seis anos” (LICCIARDI, 2013, p.173). Para a autora, assim como para
Galvão (2004), os conflitos são “uma excelente oportunidade para se trabalhar a construção
de regras, valores, a tomada e coordenação de perspectivas” (LICCIARDI, 2013, p.177), em
que o papel do educador nesse caso deve ser o de mediador, e não o de solucionador. A autora
enfatiza a importância de que a escola seja um ambiente sociomoral cooperativo, que ela
define como o ambiente
no qual o professor favorece as relações de respeito mútuo e que atribui aos alunos
certo grau de liberdade para a tomada de algumas decisões, para a realização de
algumas escolhas, para o debate sobre os temas interpessoais e valores humanos, a
troca de idéias sobre os conteúdos curriculares, bem como minimiza o poder de sua
autoridade em prol das trocas recíprocas. (LICCIARDI, 2013, p.177).
Entre os motivos destacados por Galvão (2004) que torna exaustiva a administração
dos conflitos no contexto escolar é o fato do educador assumir a responsabilidade do aluno
para resolver seus conflitos. O que eu pude observar é que embora haja uma preocupação por
parte da professora em envolver os alunos na resolução direta de seus conflitos, essa
administração se torna exaustiva pelo tempo que demanda; há dias em que as aulas são
interrompidas a todo o momento por causa de desentendimentos e brigas entre as crianças – e
mesmo quea professora delegue às crianças responsabilidade para gerenciar seus conflitos e
conversa com elas esperando que exponham sua opinião sobre o que está acontecendo e sobre
o melhor caminho para se resolver a questão, nem sempre as crianças estão dispostas a
resolverem suas disparidades, usam palavras como “perdão” e “desculpa” apenas para se
livrarem o mais rápido possível de uma discussão na qual não estão interessadas. A questão é
como conciliar a necessidade de um objetivo pedagógico que considere a mediação dos
conflitos entre as crianças no intuito de aparelhá-las para gerenciarem seus conflitos em
consonância aos princípios éticos com a questão da administração do tempo disponível para
se concluir uma aula. Dessa forma – embora reconheça o conflito como natural e uma
oportunidade para as crianças se desenvolverem – em um contexto marcado por uma
freqüência considerável de conflitos entre pares, se torna quase que uma escolha inconciliável
ministrar a aula e mediar os conflitos. Assim, se por um lado há a necessidade inegociável de
73
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