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Público • Sexta-feira 24 Setembro 2010 • 47

Quarenta anos depois, os defeitos portugueses que autorizaram o salazarismo continuam a apoquentar-nos

Tolerámos 40 anos de Salazar. E não mudámos assim tanto

Q
ADRIANO MIRANDA
uando Salazar foi eleito o “maior portu-
guês de sempre” muitos encolheram os
ombros: a votação tinha pouco signifi-
cado e era tudo menos representativa.
Mas quando, 40 anos passados sobre a
morte do ditador, entramos em qual-
quer livraria e encontramos resmas de novidades
José que chegam a encabeçar as listas dos livros mais
Manuel vendidos, interrogamo-nos: porquê este fascínio
Fernandes por Salazar?
Há uma resposta simples, talvez demasiado sim-
Extremo ples: a maioria dos portugueses já não viveu como
ocidental adulto sob o seu regime e, face ao desencanto com
os políticos de hoje, acaba a olhar ou para um Sa-
lazar mitológico ou para um desconhecido que lhe
suscita curiosidade. Esta atracção também é deve-
dora do registo maniqueísta que tem dominado o
discurso público sobre o ditador, um registo que não
autoriza nuances e alimenta estereótipos.
Mas há outra questão, mais profunda e inquietan-
te: a de saber como foi possível Salazar manter-se
no poder durante 40 anos.
Na mais importante obra saída nos últimos me-
ses, Salazar, Uma Biografia Política, Filipe Ribeiro
de Menezes prefere, contudo, olhar para o porquê
de Salazar se ter querido manter no poder. O his- criavam galinhas para consumo da sua intrínseca fraqueza e do seu isolamento na
toriador propõe duas razões: “A primeira, e mais
Em Portugal, a debilidade doméstico. sociedade portuguesa, viveu até muito tarde sob a
importante, era uma crença em si próprio como de uma cultura de Contudo, esta condição de “país tutela do Exército” e “continuou também as tradi-
agente providencial; a segunda era a percepção de pobre” não tinha de ser uma fatali- ções do ‘antigo regime’”, como um Estado “centra-
que, sem ele no centro, o regime, assente numa liberdade, se teve raízes dade – era apenas a fatalidade que lizado, despótico e intrusivo” que sustentava “com
aliança tecida de um delicado equilíbrio entre forças sociais e históricas, Salazar herdara após quase um sé- dinheiro público uma classe média burocrática e
conservadoras, desabaria”. Contudo, se “durante a culo de Governos liberais ou aber- ‘parasitária’” e intervinha de forma constante na
maior parte das quatro décadas [em que governou] também foi e é cultural e tamente jacobinos. Durante todo economia. Não mudámos assim tanto.
a sua principal prioridade foi manter-se no poder”, o século XIX e no início do século Há ainda a sublinhar a hegemonia do pensamento
essa vontade, mesmo que muito forte, mesmo que
política XX, Portugal divergiu da Europa e “francês” entre as elites – uma hegemonia que justi-
servida por uma enorme capacidade para gerir os do mundo desenvolvido, só conse- fica o carácter profundamente jacobino e dirigista
equilíbrios no interior do regime, não explicam só guindo começar a reaproximar-se a partir da esta- do pensamento republicano, que se prolonga na
por si a sua longevidade. Também não a explica o bilização financeira promovida por Salazar. É duro, influência de Maurras no pensamento autoritário de
aparelho repressivo do regime. Não há dúvidas de mas é verdade, pois significa que, mesmo ofere- Salazar e que só recentemente começou a perder,
que o Estado Novo era uma ditadura que utilizava cendo ritmos de crescimento pouco ambiciosos, o em alguns meios, para a tradição anglo-saxónica
sem estados de alma instrumentos como a censura, salazarismo proporcionou a Portugal mais do que da liberdade.

S
a discriminação e a perseguição dos opositores, a lhe tinham oferecido os regimes anteriores. Não
tortura nas prisões e a discricionariedade na apli- surpreende, por isso, que muitos tivessem aceitado alazar, para se manter no poder, não teve
cação de penas indefinidas, só que a contabilidade a falta de liberdade – para mais, apresentada e vista mais do que interpretar esta maneira de
da repressão é, por comparação com outros regi- como necessária a uma “paz interna” que contras- ser do povo português. Ao contrário dos
mes, modesta. Mais: Portugal nunca foi um Estado tava com a turbulência, instabilidade e ambiente de seus antecessores, nem sequer promoveu
totalitário, apenas (o que não é pouco) autoritário. guerra civil larvar que marcara a I República. uma revolução, não teve de substituir as
Salazar não se preocupava muito com a sua popula- A debilidade de uma cultura de liberdade, se tinha hierarquias nem de gerar novas obediências: teve
ridade, mas o regime contou ora com o apoio tácito raízes sociais e históricas, era também cultural e po- apenas de promover o que podemos designar como
da população, ora com a sua indiferença, nunca lítica. Primeiro, porque Salazar não mentia quando uma “acalmação”, baixando a “febre política” para
teve de enfrentar uma hostilidade generalizada. Só disse, em 1945, que “antes de nós e por dezenas de permitir aos portugueses “viver habitualmente”. Por
a organização clandestina do PCP manteve uma anos – reconhecemo-lo com tristeza –, as ditaduras isso até aos anos 60, quando as coisas começaram
espécie de guerra civil com a PIDE, a que a maioria foram a forma corrente da vida política e vimo-las a mudar, os poucos sobressaltos sentidos pelo regi-
de população foi quase sempre indiferente. Infeliz- alternar-se ou suceder-se quase ininterruptamente, me – como aquando do comício da Fonte da Moura,
mente, o pouco que os portugueses se mobilizaram sob formas diversas”. Na verdade, como assinalou no Porto, na campanha de Norton de Matos, ou
para terem as suas liberdades de volta é um dado o historiador Rui Ramos, “nunca, antes de 1926, as sobretudo durante a campanha de Humberto Del-
histórico de que não nos podemos orgulhar. eleições, envolvendo apenas eleitorados restritos gado – nunca foram suficientes para que se sentisse

E
e tutelados, haviam sido consideradas genuínas ou a aproximação do fim do regime.
aqui voltamos ao ponto central: como foi livres”. Houvera partidos na Monarquia Constitu- Não deve, pois, surpreender-nos que a mesma
isso possível? cional, tal como houvera partidos na I República, mistura de apatia, dependência do Estado e ilibera-
A resposta mais comum, e nem por isso mas ou as eleições eram tuteladas, ou o colégio elei- lismo continuem a marcar a paisagem política por-
falsa, é que a prolongada indiferença face toral artificialmente restrito, ou o ambiente político tuguesa. Facilmente é possível encontrarmos quem
aos métodos da ditadura foi fruto da nos- marcado pela coacção. Os portugueses não tinham feche os olhos ao autoritarismo ou ao desrespeito do
sa condição de país pobre, rural e semianalfabeto. perdido com o advento de Salazar um regime aberto Estado de Direito desde que lhe falem em “desenvol-
Um país sem classe média, ou onde a classe média e plural como o que hoje temos, pois apenas tinham vimento”. Tal como é fácil assustar os portugueses
é muito pequena, é por norma um país menos exi- conhecido oligarquias dilaceradas por querelas in- com a mínima perspectiva de abalo da babysitter
gente politicamente, e Portugal não escapou à regra: ternas. estatal. Ou tal como é popular, tanto à esquerda
quando, a partir do final dos anos 50, a economia Depois, porque nunca se consolidou em Portu- como à direita, criticar qualquer actividade que dê
acelerou, as cidades se encheram e começou a au- gal uma elite liberal. Como explicou Vasco Pulido lucro e fugir de tudo o que implique riscos.
mentar o número de estudantes nos cursos médios Valente, o fim do Antigo Regime e o advento do “li- Quarenta anos depois da morte de Salazar, o pa-
e universitários, de imediato aumentaram as difi- beralismo” não foram produtos de um sobressalto ís que o aturou pacatamente mudou muito – mas
culdades do regime. Não por acaso Salazar preferia interno, antes subprodutos das Invasões Francesas: sobretudo à superfície. Salazar já pertence à histó-
o Portugal rural, não por acaso desencorajou ou “A invasão e a guerra, por assim dizer, ‘provocaram’ ria, mas os defeitos portugueses que autorizaram
desautorizou os muitos ministros “desenvolvimen- o ‘liberalismo’ em Portugal. Um produto exógeno, o salazarismo continuam a apoquentar-nos. Todos
tistas” com quem trabalhou, não por acaso vivia que não podia ser aceite pacificamente”, notou o os dias.
como um recluso numa residência oficial onde se historiador. Mas não só: o “liberalismo”, “por causa Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

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