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A subjetividade na sociedade de consumo e suas mediações

pela experiência virtual: múltiplos olhares


JARBAS DAMETTO*

Resumo
Este artigo propõe um debate acerca das experiências subjetivas desenroladas
na sociedade contemporânea, pautadas pelo imperativo do consumo e pela
possibilidade de experiências virtuais amparadas pela mediação técnica
amplamente difundida. Empreende-se esta análise através de autores dos
campos sociológico e psicanalítico, visando traçar um panorama acerca das
angústias e impasses típicos da experiência cotidiana da atualidade. Como
ponto de conjunção entre a cultura consumista e a virtualização, evidencia-se o
olhar, enquanto experiência ativa e passiva perpassada pelo desejo, que serve
de veículo primordial para uma forma peculiar de troca subjetiva, que hoje vem
ganhando tons mercantis.
Palavras-chave: Subjetividade; virtualização; consumo; olhar.

Subjectivity in consumer society and its mediation by the virtual


experience: multiple looks.
Abstract
This article proposes a discussion about subjective experiences rolled out in
contemporary society, ruled by the imperative of consumption and the
possibility of virtual experiences supported by the mediation technique widely
diffused. This analysis through sociological and psychoanalytic fields authors
is in order to trace an overview about the anguish and typical of gridlock
everyday experience. As a point of conjunction between the consumerist
culture and virtualization, shows the look, while active and passive experience
seen by desire, that serves as the primary vehicle for a unique subjective
exchange, which today is gaining market tones.
Key words: Subjectivity; virtualization; consumption; look.

*
JARBAS DAMETTO é Psicólogo, Mestre e doutorando em Educação pela Universidade de
Passo Fundo . Professor da Universidade de Passo Fundo e da Faculdade Anglicana de Tapejara-RS.

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Introdução: sociológico e
psicanalítico, visando
A experiência social
abordar angústias,
e subjetiva
impasses e
contemporânea se
potencialidades
enreda em dois
típicas da experiência
fenômenos marcantes
cotidiana da
que se intensificam
atualidade. Dentro
nas últimas décadas:
deste enfoque,
a ampla virtualização
trabalha-se com a
das experiências,
hipótese de que o
possibilitada pelo
olhar, enquanto processo ativo-passivo,
avanço tecnológico das
inter-relaciona a experiência virtual à
telecomunicações e da informática, e a
ascensão do consumismo, que dá origem consumista, e serve de veículo
primordial para uma forma de troca
a um novo ethos, que implica em
intersubjetiva, que hoje é tecnicamente
formas inéditas de construção das
intensificada e que vem ganhando tons
relações sociais, mediadas pelo
mercantis.
consumo. Para além de suas faces
sociais, tecnológicas, políticas e A sociedade de consumo
econômicas, este novo contexto social,
inevitavelmente, traz implicações para A atualidade assiste ao predomínio, não
os sujeitos, em sua existência individual do consumo, visto como um processo
e coletiva, sendo sobre esta intrínseco da existência humana, mas do
problemática que aqui se pretende consumismo, tomado como um
debater. fenômeno de ordem social, que envolve
a dinâmica econômica e produtiva, além
Frente à emergência e intensificação de uma postura ética frente à inserção
desses fenômenos, cabe explorar as do sujeito no entorno coletivo, e frente à
consequências pessoais resultantes própria existência (BAUMAN, 2008).
desses processos, analisando como os
Erich Fromm (1900-1980) foi um dos
sujeitos se integram, vivenciam ou
primeiros autores a se debruçar sobre as
resistem a eles. Diante deste contexto,
consequências psíquicas do
propõe-se alguns questionamentos: Que
consumismo, analisando-o no contexto
formas de subjetivação se desenrolam
próprio de sua emergência. Em The art
nas experiências individuais e coletivas
of loving, um dos primeiros trabalhos do
virtualmente mediadas? Em que
autor, publicado pela primeira vez em
medida, elas permanecem “virtuais” em
1956, o psicanalista já apontava
sua materialidade e em suas intensões?
algumas das problemáticas que iriam se
Como o sujeito se inscreve nas
salientar nas décadas precedentes em
experiências pautadas pelo
função de um modelo econômico
consumismo? Há relações possíveis
pautado pelo consumo, que viria a
entre a experiência virtual e os
invadir também o mundo intrapsíquico
imperativos da sociedade de consumo?
do sujeito:
Como um fenômeno ampara ou
intensifica o outro, principalmente no O mundo é um grande objeto de
que se refere às relações interpessoais? nosso apetite, uma grande maça,
uma grande garrafa, um grande
Diante de tais indagações, buscou-se seio; somos os sugadores, os
trabalhar com autores dos campos eternamente em expectativa, os

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esperançosos – e os eternamente consumista, pautado por um hedonismo
decepcionados. Nosso caráter é radical, alinhado com o sistema
engrenado para trocar e receber, produtivo. Denuncia-se a falsa ideia de
para transacionar e consumir: tudo, que a satisfação dos desejos, então
os objetos espirituais como os mediado pela indústria, necessariamente
materiais, torna-se objeto de troca e
levaria à felicidade; bem como, a
de consumo. (FROMM,
1995,p.105-6). possibilidade de o desenvolvimento
tecnológico e industrial, gerariam
Ainda em The art of loving, Fromm necessariamente maior bem-estar e
observa o modo como os distribuição equitativa de elementos
relacionamentos, em consonância com o necessários à vida (a universalização da
contexto social vigente na época, classe burguesa). É inegável que a
estavam sendo tomados como um grande oferta de bens e serviços
“trabalho em equipe”, aos moldes das acarretou também uma rotina de
relações laborais empreendidas pela trabalho intensa, e em muitos casos,
indústria e pela burocracia, algo distinto desumanizante, assim como salientou as
de uma legítima relação afetiva. disparidades entre classes e nações, para
Sustenta o autor, que modos de além atentar contra uma suposta
produzir, trabalhar e consumir, acabam liberdade oferecida pelo sistema, ao ter
por permear o contato entre as pessoas, tornado passivo o próprio processo de
bem como o modo como o sujeito se realização dos desejos, já que
relaciona com o próprio desejo. Em vinculados a produtos projetados de
meio a uma sociedade ostensivamente antemão (FROMM, 1980).
individualista, que faz do egoísmo um
modo de vida, nota-se que: De modo resumido, Fromm assim
descreveu a experiência consumista que
Nossa civilização oferece muitos assistia na década de 1970:
paliativos que ajudam as pessoas a
se tornarem conscientemente (...) consumir é uma forma de ter, e
inconscientes dessa solidão: antes talvez a mais importante da atual
de tudo, a estreita rotina do trabalho sociedade abastada industrial.
mecânico, burocratizado, que as Consumir apresenta qualidades
auxilia a permanecerem sem ambíguas: alivia ansiedade, porque
conhecimento de seus desejos o que se tem não pode ser tirado;
humanos mais fundamentais, da mas exige que se consuma cada vez
aspiração de transcendência e mais, porque o consumo anterior
unidade. Como a rotina, por si só, logo perde a sua característica de
não o consegue, o homem supera o satisfazer. Os consumidores
seu desespero inconsciente através modernos podem identificar-se pela
da rotina da diversão, do consumo fórmula: eu sou = o que tenho e o
passivo de sons e visões oferecidos que consumo. (FROMM, 1980,
pela indústria do divertimento; e, p.45. Grifos do autor).
além disso, pela satisfação de
Em uma franca ampliação do quadro
comprar sempre coisas novas e de
logo trocá-las por outras.
observado por Fromm, nota-se que a
(FROMM, 1995, p.104-5). prática consumista, quando inscrita na
experiência subjetiva dos consumidores,
Em outro momento (To have or to be?, pode ser entendida como o ato de
de 1976), Fromm debate as premissas “comprar e vender os símbolos
que sustentam ideologicamente o empregados na construção da
capitalismo em seu momento identidade” (BAUMAN, 2008, p.23),

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constituindo-se um ávido consumidor o futuro, ou seja, como ele busca traçar
de características e experiências os caminhos para sua vida (SENNETT,
socialmente valorizadas, e 2009). Vínculos duradouros, sejam eles
concomitantemente, um sujeito laborais ou afetivos, com coisas,
consumível, por ostentar os adereços funções, lugares, empresas, pessoas,
necessários a sua inserção na lógica do etc., são vistos com reservas, como
consumo. O sujeito extrapola o representantes de uma perigosa e
consumo desenfreado de coisas sempre difamada “estagnação”,
supostamente desejáveis, pondo-se na francamente dissonante com o ritmo
condição de coisa consumível, passível vertiginoso de mudanças impostas
de atrair o desejo do outro. cotidianamente.
Neste panorama, a radical divisão Sólidas carreiras profissionais dão lugar
cartesiana entre sujeito e objeto é a uma miscelânea de experiências que
subvertida na sociedade de consumo: o atestam a “versatilidade” do sujeito; do
sujeito se converte em objeto a ser mesmo modo que se transita da
consumido (BAUMAN, 2008). Como ostentação de bens duráveis, grandiosos,
observa Sennett (2009), tal condição se visivelmente sólidos, típico de um
materializa de modo gritante nas período anterior ao atual (denominado
relações de trabalho vivenciadas nas por Bauman (2008) como “sociedade de
últimas décadas: vínculos de trabalho produtores” ou sociedade sólido-
voláteis, rotinas em constante moderna), para a possibilidade de
reorganização, relações trabalhistas consumo ágil, fugaz, de bens
fugazes, desregulamentadas ou previamente pensados para seu rápido
legalmente inexistentes, formações descarte. Sustenta-se que tal busca por
generalistas, carreiras povoadas por experiências dinâmicas, de prazer e
diversas ocupações em diversos locais e livres de contradições, invade o campo
organizações, temor em “acomodar-se” das relações interpessoais, em âmbito
tempo demais em uma atividade ou afetivo, familiar e amoroso, gerando
empresa, e com isso “envelhecer e formas peculiares de contato com o
entrar em desuso” aos olhos do exigente outro e de construção da identidade.
mercado de trabalho, dentre outros Afirma Bauman (2004), que “os
fenômenos, reafirmam a entrada do relacionamentos são bênçãos ambíguas”
trabalho no rol das mercadorias (p.8), dado que em nenhuma outra
consumíveis, e, para além disso, a experiência humana, sente-se a
inserção do próprio trabalhador nesta ambivalência de modo tão acentuado:
categoria. envolve prazer, mas também renúncia,
Tal realidade não deixa de incidir, senão responsabilidade, sofrimento. Frente a
de se instalar, na vida pessoal do sujeito esta questão, vive-se uma época de
envolvido nesta condição. Considerando apologia aos relacionamentos voláteis,
que o sentido do trabalho vai além do “de bolso”, passíveis de uso e descarte
meio para obtenção de recursos conforme a intensão do sujeito, sendo
financeiros à subsistência, participando esta, via de regra, orientada pela fuga do
também da construção do caráter inevitável mal-estar que perpassa o
pessoal e da formação de relações contato interpessoal. Esta ambivalência
humanas extra-laborais, nota-se a pode ser tomada como uma ojeriza da
incidência das atuais configurações do era moderna, sendo negada através de
trabalho no modo como o sujeito diversos mecanismos, sendo o mais
vivencia seu presente e organiza-se para contundente e desastroso, a própria

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negação do outro enquanto sujeito De acordo com Lévy (1996), a
(BAUMAN, 1999). virtualização deve ser compreendida
como um fenômeno que acompanha o
Neste cenário consumista/hedonista, humano desde a formação da
qualquer compromisso demasiadamente linguagem, das ferramentas e das
duradouro ou insolúvel apresenta-se relações contratuais, tendo nos avanços
como um risco a uma suposta tecnológicos das últimas décadas apenas
“individualidade” na medida em que a mais um desdobre, uma ampliação de
ela se interpõe um “outro” cuja possibilidades. O virtual se inscreve no
existência efetiva provoca um temido âmbito das potencialidades, como um
desencanto. Na busca por relações “vir a ser”, em oposição ao atual, ao “já
íntimas, vê-se a repetição de uma busca dado”. Para o autor, não há uma
por um bem consumível, de pleno oposição intransponível entre o virtual e
prazer, até que o descarte os separe. A o real.
“rede”, como matriz de contato entre
sujeitos e campo de oferta de relações, A virtualização acentua a possibilidade
passa a ser um parâmetro viável, dado de um consumo sem a destruição da
que a conexão supõe sempre a coisa consumida, e de uma posse não
possibilidade de desconexão, como exclusiva, realidade que incide sobre o
adiante será debatido (BAUMAN, conhecimento e a informação, cujo
2004). trânsito se intensificou imensamente
com a tecnologia da comunicação
A virtualização da experiência (LÉVY, 1996). A realidade atual é
marcada pela abundância de produtos,
O processo de virtualização de grande esses ofertados e produzidos de modo
parte da experiência humana pode ser muito mais disperso do que nos
analisado de formas distintas: tradicionais processos de
assumindo-o como um momento de industrialização e distribuição de bens.
grandes potencialidades de troca e de
contato interpessoal nas diversas esferas Outra face da virtualização é a “não
da vida, bem como de atualização de presença”, uma existência que prescinde
problemas relacionais já conhecidos, e de um referencial geográfico preciso,
agora, amplificados. Parafraseando uma desterritorialização. Em
Umberto Eco, ocorre diante da consonância com este processo, a
virtualização a possibilidade velocidade proporcionada por recursos
posicionamentos extremados, tecnológicos, promove uma diversidade
apocalípticos praguejam frente a seu temporal ampliada, uma potencialização
potencial destrutivo da cultura antes de fenômenos já percebidos com os
vivenciada, e integrados entusiasmam- tradicionais meios de transporte de
se vendo neste fenômeno, a solução de pessoas, de coisas ou de informações.
diversos males que há tempos assolam a Outro fenômeno pertinente a esta
humanidade. Cabe aqui uma rápida análise é o “efeito Moebius”, que pode
análise, não sobre essas duas possíveis ser pensado como uma indistinção entre
interpretações típicas de algo na interioridade e exterioridade, público e
condição de “novidade”, mas sobre a privado, autor e leitor, etc.. Como
condição presente, ou seja, sobre os reafirma Lévy (1996): “As coisas só
efeitos já percebidos, resultantes da tem limites claros no real.” (p.25).
marcante integração da experiência Sob um olhar crítico, vinculando a
virtual no cotidiano das pessoas. virtualização à sociedade de consumo,

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Bauman (2008) propõe que um dos afirmação da cidadania, dado que tais
grandes atrativos da virtualização das contextos se consolidam como novos
relações humanas é a possibilidade de espaços identitários e de subjetivação.
“desconexão instantânea” que o
afastamento entre os sujeitos e a O predomínio do olhar no âmbito
mediação eletrônica permite. Tal virtual
condição geraria uma sensação de
segurança, de possibilidade de manejo A comunicação e o contato interpessoal
tranquilo de qualquer contradição (nota- na experiência virtual trouxeram, não
se aí, a saliente identidade entre o somente um novo meio no qual
consumo de bens e o de relações, circulam informações, mas efetivamente
pautadas pela possibilidade e pela novas formas de expressão de ideias e
previsão do descarte). O autor propõe afetos, outra linguagem, sendo esta
também, que tal movimento invade a predominantemente visual, perpassada
esfera política das sociedades, gerando por uma imensidão de imagens, sejam
formas de manifestação que elas fotografias, vídeos, ícones,
desacreditam e se excluem das montagens, dentre tantas outras
estruturas políticas já consolidadas, possibilidades. A própria escrita,
criando mobilizações fugazes e estéreis. elemento básico das primeiras
Grosso modo, provoca Bauman (2008), ferramentas da Internet, vem dando
a virtualização da política estaria “(...) espaço a ascensão da imagem como
substituindo o confronto e a elemento básico desta forma de
argumentação por frases interação comunicativa.
descontextualizadas e oportunidades
para fotos” (p. 139). Guy Debord (1997), já na década de
1960, anunciava o surgimento de uma
Caberia avaliar a possibilidade de “Sociedade do Espetáculo”, na qual o
contestar esta posição do autor frente a show seria o produto mais refinado de
recentes mobilizações populares, como, seu sistema produtivo. Produzir
por exemplo, as ocorridas no Oriente imagens espetaculares e grandes
Médio, e em junho de 2013, no Brasil, performances passou a ser uma
que tiveram nas redes sociais virtuais condição de existência, de afirmação de
um catalizador e uma ferramenta de autoridade, de status e poder, processo
organização, mas cujos efeitos práticos organicamente vinculado as demais
adentraram a política institucionalizada. formas de dominação presentes nas
Talvez tais meios, efetivamente, sociedades modernas. Ao mesmo tempo
constituam um modo real de exercer a em que esta sociedade “tudo mostra”,
política nos dias atuais, que se agregará ela faz deste movimento uma forma de
aos já concebidos. Como propõe Lévy “não ver”, ela oculta suas contradições
(1996), “nossa espécie lançou-se sem saturando espetacularmente a vida.
retorno nesse novo espaço
informacional. A questão portanto não é A alienação do espectador em favor
avaliar a sua ‘utilidade’ mas determinar do objeto contemplado (o que
resulta de sua própria atividade
em que direção prosseguir um processo
inconsciente) se expressa assim:
de criação cultural irreversível.”(p.86). quanto mais ele contempla, menos
Deste modo, seria um contrassenso vive; quanto mais aceita
negar a legitimidade das manifestações reconhecer-se nas imagens
políticas virtualmente mediadas ou não dominantes da necessidade, menos
aceitar o nascimento de novos locais de compreende sua própria existência

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e seu próprio desejo. (DEBORD, sua leitura acerca do panoptismo,
1997, p.24). tomando-o como mecanismo de poder
no qual “uma sujeição real nasce
Essas considerações emergiram frente
mecanicamente de uma relação fictícia”
ao impacto dos meios de comunicação
(p.167), sendo o olhar, observável ou
de massa e das transformações sociais e
suposto, um disseminador de efeitos
subjetivas daí resultantes. Décadas
homogêneos de poder. Em âmbito
depois, surge um novo momento desta
propriamente psíquico, esse mesmo
sociedade: tecnologicamente amparada,
olhar age como um amparo ou uma
não somente o consumo, mas a própria
incitação ao superego, além de um
produção da imagem ganha o grande
notável campo para o desenrolar dos
público, gerando a possibilidade inédita
sintomas paranoides – os delírios de
de produção de uma experiência
observação e as sensações
espetacular pessoal e cotidiana. Caberia
persecutórias.
ponderar frente a isso, até que ponto os
recursos atuais, mais interativos, O olhar também inquieta, atrai e excita,
rompem esta lógica atrelada ao sistema em sentido sexual ou não. Como
produtivo, ou se ela a intensifica, propõe Quinet (2002), a pulsão escópica
fazendo com que o sujeito, (Schautrieb) pode ser tomada como
“voluntariamente”, se torne a uma “pulsão despertador”, com a qual o
mercadoria desta economia do olhar opera como objeto causa do
espetáculo. desejo.
Agregando a esta leitura uma Como consequência deste contexto
abordagem psicanalítica, pode-se visualmente saturado, no qual é
ponderar acerca das implicações permanente a incitação ao ver e ao
subjetivas de uma tecnologia de mostrar-se, aponta Birman (2000), “os
comunicação com tal potencial de destinos do desejo assumem, pois, uma
veiculação de imagens. Freud (1996), direção marcadamente exibicionista e
em Três ensaios sobre a teoria da autocentrada, na qual o horizonte
sexualidade, cujo original data de 1905, intersubjetivo se encontra esvaziado e
propõe que “(...) a impressão visual desinvestido das trocas inter-
continua a ser o caminho mais frequente humanas.”(p.24). O campo imagético se
pelo qual se desperta a excitação torna o alvo primordial das relações,
libidinosa” (p.148). O autor vincula a cabendo ponderar se o encontro real ou
experiência visual ao ato de tocar. o contato físico permanecem como uma
Psiquicamente, ver seria uma meta nas relações interpessoais, ou se
experiência correlata ao contato físico: tal dimensão se inscreve como um
“toca-se com os olhos”, do mesmo adendo, por vezes dispensável, frente à
modo que “olha-se com as mãos”, primazia do espetacular.
sendo que as experiências mediadas
pelo olhar comportam um potencial de O sujeito consumível: interfaces com
erotização e de mobilização afetiva a virtualização?
ímpar.
Para não enviesar a leitura do fenômeno
O olhar provoca, em sentido amplo. O sob a ótica da virtualização como um
olhar do outro, ou dirigido ao outro, faz simulacro, uma “não realidade”, cabe
eclodir uma gama de sensações: ele considerar que os sujeitos envolvidos
pode repreender, disciplinar e controlar, são reais em suas existências, e as
como bem descreve Foucault (2007) em relações interpessoais virtualmente

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mediadas são “reais em sua tornar-se interessante ao outro. Trata-se
virtualidade”, ou seja, elas existem de um arranjo narcísico ancorado em
enquanto experiência social, emocional uma frágil, e por vezes fugaz, relação
e subjetiva, mas com uma dinâmica com o desejo do outro.
própria, perpassada por novas
(...) a subjetividade construída nos
possibilidades, mas também por primórdios da modernidade tinha
acentuadas limitações e novos seus eixos constitutivos nas noções
problemas. Como propõe Lévy (1996), de interioridade e reflexão sobre si
“apesar de não presente, esta mesma. Em contrapartida, o que
comunidade está repleta de paixões e de agora está em pauta é uma leitura
projetos, de conflitos e de amizades. Ela da subjetividade em que o
vive sem lugar de referência estável: em autocentramento se conjuga de
toda parte onde se encontrem seus maneira paradoxal com o valor da
membros móveis... ou em parte alguma” exterioridade. Com isso, a
(p.20-1). subjetividade assume uma
configuração decididamente
As diversas formas de contato, e em estetizante, em que o olhar do outro
especial redes sociais virtualmente no campo social e mediático passa a
mediadas, inseriram-se na vida ocupar uma posição estratégica em
sua economia psíquica. (BIRMAN,
cotidiana de grande parcela da 2000, p.23).
população de modo vertiginoso,
construindo novos e significativos Quinet (2002) afirma que produzir
espaços de interação. Considera-se que imagens e se fazer vivível são pré-
condições para a existência nas
Tais ferramentas comunicativas experiências sociais atuais. O cogito
inauguram novas formas de cartesiano, “penso, logo existo”,
manifestação de si e se acesso ao
transmuta-se frente à inversão de
outro, com uma marcante
compressão da palavra e perspectiva apontada acima (BIRMAN,
proporcional expansão da imagem, 2000), em que se desloca a atenção e o
o que confere a tais meios um investimento da interioridade para a
potencial de atração fortemente exterioridade: ele converte-se em “sou
ampliado. Também, promove-se a visto, logo existo”, sendo este um
ideia de um contato contínuo, de movimento necessário para a
um vínculo que pode ser acessado a sustentação de um precário equilíbrio
qualquer hora e de qualquer lugar. pulsional, bem como da integridade
Insinua-se assim, uma “sociedade identitária e da autoestima em um
sem saudades”, mas contexto repleto de apelos visuais.
paradoxalmente, pautada por uma
presença fisicamente distante. Considerações finais
(DAMETTO, 2013, p.6-7).
Quinet (2000), afirma que “nossa
Embora relações efetivas, empreendidas sociedade atual pode denominar-se
por “pessoas de verdade”, há uma sociedade escópica, por ser comandada
reviravolta nos modos como a pelo olhar que conjuga a sociedade do
subjetividade se constitui nas espetáculo descrita por Guy Debord e a
experiências interpessoais da atualidade. sociedade disciplinar descrita por
A ênfase na imagem e no consumo, Michel Foucault.” (p.280). Uma
promove um autocentramento diverso sociedade que faz do binômio olhar/ser
daquele voltado à interioridade: o olhado sua forma de existência
sujeito investe a si mesmo, na ânsia de enquanto sujeito desejante e alvo do

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desejo alheio, bem como faz da Referências
visibilidade, ou da “transparência”, um BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e
atestado de inocência e dignidade. ambivalência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.

Desenha-se uma sociedade ____. Amor líquido: sobre a fragilidade dos


laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
exibicionista-voyeurista, mas não
necessariamente perversa e em função ____. Vida para consumo. Rio de Janeiro:
disso. Encontrara-se na tecnologia um Zahar, 2008.
modo de dar asas as fantasias perversas. BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. 2.ed.
O “sujeito normal” pode hoje fantasiar a Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
perversão no conforto e na segurança de DAMETTO, Jarbas. A aparição clínica da
sua tela, jogando o jogo do mútuo experiência virtual: redes sociais e vivências
consumo imagético. Como aponta (inter)subjetivas do adulto jovem. Seminário
Nacional de Inclusão Digital – SENID. 2.
Nasio (1993), “(...) todos os neuróticos Anais... Passo Fundo. Universidade de Passo
sonham e fantasiam ser perversos, sem Fundo, 2013. (p.01-07). Disponível em ,
jamais chegar a sê-lo.” (p.134). http://senid.upf.br/download/senid2013/Artigo
Hodiernamente, formas de contato ou _Completo/111019.pdf>, Acesso em 20 jun.
veiculação de imagens se põem como 2013.
um “entretenimento perverso”, um gozo DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo.
voyeur “pasteurizado”, desarmado do Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
terror que lhe é típico. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36.ed.
Petrópolis: Vozes, 2007.
Nesta rápida análise acerca das relações
entre a virtualização, a sociedade de FREUD, Sigmund. “Três ensaios sobre a teoria
consumo e as experiências subjetivas da sexualidade”. In Obras Psicológicas
completas. v.7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
emergentes deste encontro, evidencia-se p.119-231.
o olhar como uma nova “moeda de
FROMM, Erich. Ter ou ser? 3.ed. Rio de
troca”. Nota-se que é pelo “número de Janeiro, Zahar, 1980.
visualizações” ou de “pessoas que
curtiram” que se atribui valor aos _____. A arte de amar. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1995.
pequenos espetáculos cotidianos
empreendidos por pessoas comuns. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo:
34, 1996.
Teria o acesso à celebridade se
democratizado, ou quem sabe, este NASIO, J.-D. Cinco lições sobre a teoria de
fenômeno colonizou a vida de muito Jacques Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.
mais gente do que há alguns anos atrás? QUINET, Antônio. Um olhar a mais: ver e ser
Reafirmando Bauman (2008), consumir visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
e fazer-se consumível são a ordem do 2000.
dia. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter:
consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. 14.ed. Record: Rio de Janeiro,
2009.

Recebido em 2013-07-07
Publicado em 2013-11-11

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