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Crianças atingidas pela

Ditadura Militar no Brasil

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Assembleia Legistativa do Estado de São Paulo
17ª Legislatura
Samuel Moreira – Presidente
Enio Tatto – 1° Secretário
Edmir Chedid – 2° Secretário

Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”


Membros efetivos
Adriano Diogo (PT) - Presidente
Marcos Zerbini (PSDB)
André Soares (DEM)
Ed Thomas (PSB)
Ulysses Tassinari (PV)
Suplentes
João Paulo Rillo (PT)
Mauro Bragato (PSDB)
Estevam Galvão (DEM)
Orlando Bolçone (PSB)
Regina Gonçalves (PV)
Assessoria
Amelinha Teles
Ivan Seixas
Renan Quinalha
Ricardo Kobayaski
Thaís Barreto
Tatiana Merlino
Vivian Mendes

Coordenação e produção editorial: Tatiana Merlino


Preparação: Ricardo Kobayaski
Produção: Vivian Mendes e Tatiana Merlino
Pós-Produção: Renan Quinalha e Vivian Mendes
Edição de arte e diagramação: Camila Sipahi Pires
Pesquisa iconográfica: Camila Sipahi Pires e Tatiana Merlino
Tratamento de Imagens: Camila Sipahi Pires e Thais Cechini
Revisão: Pádua Fernandes e Ricardo Kobayaski
Foto de capa: Sheila Oliveira
Imagens: Arquivo Público do Estado de São Paulo, acervo pessoal,
Douglas Mansur, Revista Brasileiros

São Paulo (Estado). Assembleia Legislativa. Comissão da Verdade


do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"
Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil.
/ Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo. – São Paulo : ALESP, 2014.
316 p.

ISBN

1. Ditadura militar

CDU 321.86(81)

1ª edição
São Paulo, 2014

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Infância
Crianças atingidas pela
Ditadura Militar no Brasil

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Sumário
Prefácio Apresentação Introdução Identidade, nome
Samuel Moreira Adriano Diogo Amelinha Teles Filho do Zorro
Andre Almeida Cunha Arantes 22 e o paradoxo
da liberdade 26
9 11 13 Priscila Almeida Cunha Arantes

A felicidade “Por que você é tão “Vivi intensamente


interrompida
da “menina ruim”
Rita de Cássia Resende
36 tristinha?”
Marta Nehring 42 o exílio...”
Carlos Eduardo Ibrahin 50

“O exílio do meu pai Adotados pela


56 62 74
“Faria tudo igual a ele” Revolução Cubana
foi a nossa despedida”
Célia Coqueiro
Suely Coqueiro Virgílio Gomes da Silva Filh0

Infância Condenado
A inocência perdida
Ângela Telma Oliveira Lucena 82 resgatada
Adilson Lucena 86 Palavras presas
Denise Oliveira Lucena 89 à morte
Ariston Oliveira Lucena
90

Duas pátrias, O novo arrimo Adolescência Amor


duas mães
Ñasaindy Barrett de Araújo 100 de família
Jaime M. Sobrinho 104 perdida
Edson L. Martinelli 107 silenciado
Rosa M. Martinelli
109
“Que um dia “Até hoje sou uma “Fomos levados

120 128 134


ninguém mais pessoa completamente para o DOPS. Até
pense assim” sem identidade” hoje é doloroso”
Dora A. Rodrigues Mukudai Zuleide Aparecida do Nascimento Luis Carlos Max do Nascimento

“Los niños nacen O testemunho


138 152 160
A lua de Leta
para ser felices” do que eu sei, li, vi...
Leta Vieira de Sousa
Ernesto C. Dias do Nascimento Maria Eliana Facciolla Paiva

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“Sou Ernesto “A ditadura Saudade é ser
O ídolo que não
Guevara, sou filho
de guerrilheiro”
Ernesto José Carvalho
170 tinha rosto
Irineu A. de Seixas
178 nos forçou a
virar soldados”
Ivan A. de Seixas
182 depois de ter
Iara e Isabel Lobo 192
“Tive muita dificuldade “Ainda hoje não
“O sequestro da
com a expressão dos
meus sentimentos”
Paulo de Miranda Sipahi Pires
196 minha memória”
Camila Sipahi Pires 200 se dão conta do
que significou...”
Aritanã Dantas
212

“Filho dessa raça Crime: ser filho O bêbe que


não deve nascer”
Paulo Fonteles Filho 216 de resistente
André de Santa Cruz Leite
222 a ditadura
separou da mãe
José Paulo De Luca Ramos
228

“Seu pai não era um Três gerações “Cuide da mãe que


ladrão, era um herói”
Grenaldo Edmundo Mesut 234 de militância
Cecília Capistrano Bacha
242 um dia eu volto
para te buscar”
Clóvis Petit
248
“Quem é essa pessoa “Dói gostar dos A história que o
que tem a voz da
minha mãe?”
Edson Teles
256 outros”
Janaína Teles 260 menino não queria
ouvir a mãe contar
João Carlos Grabois
270

Reconstruindo “Não tem luto.


A bêbe sequestrada
Carmen S. Nakasu de Souza 278 Gildo
Tessa Moura Lacerda
284 São vazios”
Igor Grabois Olímpio
292

“Sou a prova de
“Ele lutou muito...”
Carlos Alexandre Azevedo 300 que mesmo na
guerra...”
Lia Cecília da Silva Martins
304 Lembranças
Valter Pomar 308

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Prefácio
Este livro representa o cumprimento de um compromisso da Democracia Brasileira com uma geração
pouco conhecida, formada por crianças e adolescentes filhos de perseguidos políticos e desaparecidos
durante o período autoritário, de 1964 a 1985. Seus pais sumiram de uma hora para outra. A espera durou
uma noite, duas, um mês, um ano ou mais. Ninguém sabia quando, e se, voltariam. Mesmo com tantas
dúvidas, não deveriam comentar nada com ninguém.
Cresceram à sombra do medo, angustiados pela incerteza e expectativa de reaparecimento do pai ou da
mãe ou de ambos. Viveram dias, meses, e depois, anos à espera deles. Privados de brincar com os pais,
passear, ter um almoço em família ou receber ajuda numa lição. Muitos tiveram a vida consumida por esta
dúvida, sem que afinal tivessem direito sequer a um esclarecimento oficial sobre o destino de seus pais,
um processo que deixaria marcas indeléveis.
O livro traz um olhar diferenciado sobre o período ditatorial no Brasil. É o olhar das crianças que tiveram
sua Infância Roubada. Como uma geração de brasileiros, eles cresceram em um período de graves vio-
lações de direitos humanos e agressões ao direito da cidadania. Mas receberam marcas profundas e par-
ticulares. Não tinham responsabilidade pelas opções políticas dos pais nem pela situação do país. Seus
relatos, sempre emocionados, traduzem o que conseguiam compreender daqueles dias tão difíceis para o
país e para suas vidas.
Os depoimentos foram colhidos pela Comissão da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo, num trabalho marcado por desafios incomuns. A começar pela sensibilização dos
depoentes a falar, em sessões públicas, de momentos dolorosos, que muitos preferiam esquecer. Deixá-
-los à vontade para “abrir o baú de lembranças” foi, com toda certeza, um exercício de sensibilidade e
paciência, importante não só pelo respeito a eles devido por todos, mas também para que os depoimentos
pudessem ser compartilhados com outras pessoas e gerações.
Este livro tem exatamente esta aspiração: oferecer uma nova fonte de consulta, reflexão, divulgação e
conhecimento sobre o período autoritário. Com este trabalho, o Poder Legislativo Paulista espera con-
tribuir para aprofundar a compreensão tanto do cidadão comum, como da sociedade civil, governos, insti-
tuições, organizações sociais, academia, historiadores e estudiosos em geral.
A construção da Democracia Brasileira é um processo permanente e vivo, que precisa ser continuamente
semeado. Para que as liberdades duramente conquistadas sejam apropriadas por toda a população.
O conhecimento sobre o passado é capaz de iluminar o presente e abrir caminho para um futuro em
que os direitos sejam respeitados e os deveres cumpridos por todos. O olhar daquelas crianças aponta
na direção do fortalecimento do Estado de Direito Democrático e da construção de uma cultura de total
respeito aos Direitos Humanos.

Deputado Estadual Samuel Moreira


Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

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Apresentação
Esta obra é resultado do ciclo de audiências “Verdade e Infância Roubada”, realizada pela Comissão da Ver-
dade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” entre 6 e 20 de maio de 2013. Na ocasião, foram ouvidos cerca
de 40 testemunhos de filhos de presos políticos, perseguidos e desaparecidos da ditadura. Hoje, adultos na
faixa de 40, 50 anos, cujas histórias ainda não haviam sido contadas. Os depoimentos foram marcados por
lembranças da prisão, do exílio, do desamparo, de questionamentos em relação às suas identidades, de medo,
insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são traumas não superados.
Eles foram sequestrados e escondidos em centros clandestinos de repressão política da ditadura militar bra-
sileira (1964 – 1985). Afastados de seus pais e suas famílias ainda crianças, foram enquadrados como “elemen-
tos” subversivos pelos órgãos repressivos e banidos do país. Foram obrigados a morar com parentes distantes,
a viver com nomes e sobrenomes falsos, impedidos de conviver, crescer e conhecer os nomes verdadeiros de
seus pais. Foram, enfim, privados do cuidado paterno e materno no momento mais decisivo e de maior necessi-
dade, que é justamente a infância.
Levados aos cárceres da ditadura militar, foram confrontados com seus pais, nus, machucados, recém-saídos
do pau de arara ou da cadeira do dragão. Foram encapuzados, intimidados, torturados antes mesmo de nascer.
Filhos de guerrilheiros que hoje estão desaparecidos nasceram em prisões e cativeiros. Sofreram torturas físi-
cas e psicológicas, como Carlos Alexandre Azevedo, que com 1 ano e 8 meses apanhou e foi levado ao Dops.
Anos depois, em fevereiro de 2013, aos 39 anos, não aguentou mais as dores da vida e se suicidou.
Passados quase 30 anos do fim da ditadura, num país onde a transição para a democracia segue inconclusa,
onde ainda há corpos insepultos, arquivos não abertos, histórias não contadas e uma Comissão da Verdade
tardia, o acolhimento de testemunhos de filhos de ex-presos políticos é fundamental para se ter um panorama
da perversidade do aparato implantado pelo Estado de exceção.
A obra nasce dessa necessidade que a Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva” sente em colocar
luz sobre a dimensão da violência cometida pela ditadura. Se o inventário de violações de direitos humanos
que nos foi legado do regime de 1964 é extenso e profundo, fato é que esse capítulo das violências contra cri-
anças e adolescentes é uma das faces mais perversas desse poder repressor. São crimes contra a humanidade
que devem ser apurados com a devida punição dos responsáveis.
Durante esse ciclo de audiências públicas, nem todos os convidados conseguiram comparecer. Às vezes, che-
garam a confirmar, mas não apareceram. Alguns vieram, mas tiveram dificuldade de falar sobre o assunto. As-
sim, na obra, há, também, outros testemunhos, colhidos por escrito ou por meio de entrevistas. O livro conta
também com dezenas de fotografias da época que ilustram todos os testemunhos. São imagens obtidas por
meio de extensa pesquisa iconográfica em arquivos pessoais, familiares, internet e acervos públicos.
Esperamos que esta publicação, que o leitor tem em suas mãos, contribua para o momento privilegiado de
nossa história, no qual a busca pela verdade, memória e justiça em relação ao período da ditadura se torna
fundamental para o fortalecimento de nossa incipiente democracia. Só assim poderemos garantir um futuro
melhor às novas gerações de crianças e adolescentes de nosso país.

Deputado Estadual Adriano Diogo


Presidente da Comissão da Verdade do Estado
de São Paulo “Rubens Paiva”

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Introdução
por Amelinha Teles

1. Mulheres e crianças inimigas do Estado

... Talvez uns cinco homens me torturaram. da verdade e da justiça. No entanto, como falar os homens e, principalmente, para as crianças.
Eu nunca mais voltei a ser a mesma... [...] Não há das crianças sequestradas, abandonadas, tortura- Quando as crianças foram abruptamente arran-
palavras para explicar [...] Estou tentando agora das ou nascidas nos centros clandestinos da re- cadas de suas mães, como ocorreu com o empre-
superar [...] Quando me sequestraram, meu filho pressão sem considerar a questão das mulheres, go deliberado da truculência dos DOI-Codis que
tinha 10 meses. Fazia pouco tempo que tinha militantes mães e das mães não militantes, que usaram de violência inclusive contra as crian-
deixado de amamentar. Quando sai da prisão, por sua vez eram companheiras de militantes ças, elas perderam tudo isso de uma vez só: a
meu filho tinha 2 anos. No momento em que políticos. Isso porque não houve crianças atingi- segurança afetiva e os cuidados mínimos, o que
se pôs de pé, perdeu os pais: eu fui sequestrada das pelo aparato repressivo que não estivessem as marcou profundamente por toda a vida. Cada
e o pai foi assassinado... vivendo com suas mães militantes e, via de re- uma teve ou tem ainda que lidar com essa ferida,
gra, tinham um forte vínculo com as suas mães, que muitas vezes sangra, incomoda. Todo esse
Teresa Meschiatti, “Tina”, sofrimento das crianças foi também usado como
sejam militantes ou não. Suas mães de alguma
guerrilheira da Argentina forma de torturar as mães militantes ou mães
forma foram perseguidas, presas, sequestradas,
assassinadas/desaparecidas pela ditadura e seus não militantes. Assim, neste capítulo devemos
agentes. Ora, as crianças dependem dos adul- ressaltar que é impossível falar das crianças
tos para serem cuidadas, limpas, alimentadas sem tratar do quanto as mães, militantes ou não,
e precisam de atenção, de amor e devem ser so- foram afetadas por tudo isso que aconteceu no
A Comissão Estadual da Verdade “Rubens cialmente introduzidas junto a outras crianças Brasil, durante a ditadura.
Paiva” da Assembleia Legislativa do Estado de e outros adultos para crescerem em afetividade, A ditadura militar (1964–1985) acarretou radi-
São Paulo realizou uma série de audiências em dignidade e cidadania. Essas atividades têm sido cal mudança na política brasileira e nos países
que crianças, que sofreram nas mãos da repres- historicamente de responsabilidade das mulhe- da região que acabaram também por implan-
são política da ditadura, direta ou indiretamente, res embora estas tenham convocado os homens tar ditaduras similares. A repressão atingiu as
puderam relatar suas experiências e como con- para assumirem também essas tarefas, dividin- forças populares organizadas, sobretudo sindi-
seguiram enfrentar e superar tamanha trucu- do-as igualitariamente, tanto no âmbito domés- calistas, camponeses, estudantes, professores,
lência. Assim, o trabalho que ora apresentamos tico como em relação aos cuidados. Tais fatos, intelectuais e artistas. Um número incalculável
visa dar conta dos relatos dessas pessoas que ainda que falte muito da presença dos homens, foi preso, exilado ou passou a viver na clandes-
eram crianças à época da ditadura e da impor- vêm concorrendo para fortalecer e melhorar a tinidade. A Editora Vozes publicou2 , em 1988, o
tância desses depoimentos para a construção vida em sociedade, seja para as mulheres, para livro Perfil dos Atingidos, organizado a partir de

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estudos baseados nos processos da Justiça Mi- tica – Soledad Viedma Barret (1945 – 1973)3 foi caso de Ieda Reis, guerrilheira da VAR-Palma-
litar, movidos contra presos políticos. Das 7.367 assassinada durante o episódio conhecido como res. Ela ficou exilada durante dez anos logo após
pessoas processadas, 88% eram homens e 12% Massacre da Chácara São Bento, em Recife (PE). ter seu filho, que só veio conhecer quando ele já
mulheres. Estudo feito em 1970, pelo Estado Suspeita-se de que estivesse grávida na ocasião estava com 10 anos de idade, no momento em
Maior do Exército, a partir de um levantamen- de sua morte. Mas ela teve uma filha antes, Ña- que ela retornou ao Brasil. Ambos tiveram que
to dos presos que se encontravam à disposição saindy, que na época estava com um ano e oito passar por um doloroso e inconcluso processo
do Exército em todo o território nacional, che- meses. A filha de Soledad não conheceu a mãe de reconhecimento e convivência. Por um longo
gou a um total de mais de quinhentas pesso- ou não se lembra, por conta da tenra idade. Mais, tempo, um olhava para o outro e não sabia o que
as: 56% eram estudantes ou haviam deixado igualmente não conheceu o pai, José Maria Fer- dizer, o que fazer.
recentemente a atividade estudantil. A idade, reira de Araujo, assassinado (e desaparecido) no
Outras crianças nunca conheceram os pais,
em média, era de 23 anos. Do total de presos, DOI-CODI/SP, em 23 de setembro de 1970. De
por exemplo, Vanúsia, nascida na clandestini-
20% eram mulheres, sendo que no Rio de Janei- acordo com Elio Gaspari, no livro A Ditadura
dade, em 27 de agosto de 1969, filha de Ranúsia
ro a porcentagem de mulheres atingia 26%, no Escancarada4 , “[...] a mitológica Dina (Dinal-
Alves Rodrigues (1945–1973) , guerrilheira, pre-
Nordeste 11% e no Sul não era mais do que 2%. va Oliveira Teixeira: 1945–1974) foi assassina-
sa, torturada e assassinada, cujos restos mortais
O Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos da grávida. Ela estava sob o controle do major
nunca foram entregues a seus parentes. Vanú-
apresenta um total de 437 militantes mortos Curió [do Exército]”. Esses são exemplos, outros
sia foi criada por duas mulheres que moravam
e desaparecidos, sendo que 11% são mulheres. apresentamos mais à frente, cujos números são
na comunidade da Mangueira, na cidade de
Na região do Araguaia existiram pelo menos incalculáveis, que mostram como a infâmia da
Recife (PE). Somente aos 23 anos viu uma foto
setenta guerrilheiros desaparecidos, dos quais ditadura atingiu crianças, roubando-lhes a in-
da mãe, publicada no Dossiê dos Mortos e De-
doze são mulheres, ou seja, 17%. fância inclusive ao se abater sobre suas mães.
saparecidos Políticos. Igualmente as meninas
De qualquer forma, a participação de mulhe- Muitas das crianças que aqui tratamos, filhas Isabel e Iara não souberam de seus pais quando
res não pode ser considerada desprezível nem de militantes políticas(os) sequestradas(os), fo- vivos; à época do assassinato do pai, Raimundo
na época, e muito menos se comparada aos dias ram mantidas em cárceres clandestinos, nascidas Gonçalves Figueiredo (1939–1971), em 28 abril de
atuais. Ainda hoje, com os resultados eleitorais em cativeiros, torturadas ou ameaçadas de serem 1971, tinham respectivamente 2 anos e 1 ano de
de 2012, as mulheres estão sub-representadas submetidas a torturas, algumas foram arrancadas idade. Um ano depois foi assassinada a mãe delas,
na política. Na Câmara de Deputados são ape- dos braços de suas mães, impedidas de serem Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo (1938–
nas 9%, no Senado 10% e nas cidades do Rio de amamentadas e afagadas, outras chegaram a ser 1972), em 29 de março de 1972. Elas não têm
Janeiro e São Paulo as vereadoras somam 15% torturadas mesmo antes de nascer, ou assistiram lembranças concretas de seus pais, procuram
e 10% respectivamente. No Brasil ainda preva- às torturas em seus pais ou, então, viram os pais preencher as lacunas das memórias afetivas ou-
lece uma mentalidade de que política é coisa serem assassinados. Quase todas eram filhas e fi- vindo relatos de parentes e militantes da época.
de homem. Nesse diapasão, imagine como era lhos de mulheres militantes políticas.
O absurdo da ditadura produziu, ainda, o ab-
tratada a participação de mulheres nos subter- Crianças também nasceram em cativeiro. Lia surdo de prender e banir crianças, fichando-as
râneos clandestinos da política, nas décadas Cecília foi uma delas. Hoje com 39 anos, nasci- como subversivas, considerado-as “perigosas
de 1960/1970. Segundo o relatório da Inter- da em 1974, na região da guerrilha do Araguaia, à segurança nacional’. Elas cresceram e se
Parliamentary Union – organização que reúne filha de um guerrilheiro do Araguaia, desapa- formaram fora do país. É o caso dos meninos
os parlamentos de 162 países, o Brasil ocupa, recido, Antonio Teodoro de Castro (1945–1974), criados pela “tia” Tercina Dias de Oliveira,
no ranking de 190 países, o 119º posto em re- que era conhecido na área da guerrilha como militante do movimento guerrilheiro na área
lação à participação das mulheres na política. Raul. Sobre sua mãe, não há nenhuma informa- do Vale da Ribeira (SP): Ernesto Carlos Nasci-
O Brasil tem partidos políticos sexistas que ção, mas encontra-se desaparecida desde aquela mento (nascido em 1968), aos 2 anos de idade
não oferecem condições mínimas para a parti- época. Teria Lia nascido no cativeiro e seus pais foi preso, em 1970, pelos agentes do DOPS, em
cipação das mulheres, embora tenhamos uma mortos em seguida? Haveria outras crianças da São Paulo; Zuleide Aparecida do Nascimento
mulher de esquerda, militante na luta de resis- região do Araguaia com história semelhante à (nascida em 1965) estava com 4 anos e 10 me-
tência à ditadura, na Presidência da República, de Lia? Haveria outras crianças nascidas nos ses; Luis Carlos Max do Nascimento, irmão de
Dilma Rousseff. campos de concentração, criados pelos milita- Zuleide, nascido em 1963, com 6 anos e 7 me-
Quando se olha para o movimento de resis- res, na região da guerrilha? São perguntas para ses de idade; e Samuel Dias de Oliveira tinha
tência à ditadura, não existe uma estimativa de as quais até hoje não há respostas. São situações quase 9 anos. Todos foram banidos do Brasil
quantas militantes eram mães ou foram seques- que não foram devidamente esclarecidas. Cabe sob alegação de que eram elementos perigosos
tradas grávidas. Mas houve militantes políticas, ao Estado brasileiro esclarecer esses fatos. e inimigos do Estado.
mães e/ou grávidas que foram sequestradas, Algumas crianças puderam ir com suas mães Não apenas adultos, mas também crianças
torturadas, bem como crianças que também para o exílio, mas houve aquelas cujas mães par- foram sequestradas e ficaram nas dependências
sofreram os efeitos perversos da atuação dos tiram sozinhas sem que seus filhos pudessem ir dos centros de tortura onde seus pais e outros
órgãos públicos voltados para a repressão polí- por questões econômicas ou de segurança. É o presos eram torturados e seviciados. Como, por

1
Marta Diana. Mujeres Guerrilleras: Sus Testimonios en la militancia de los setenta, Editora Booket, Buenos Aires, 2007, p.44. Tradução livre.
2
Maria Amélia de Almeida Teles, Breve História do Feminismo no Brasil, Editora Brasiliense, São Paulo, 1993, p.64.
3
Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos (1964-1985), Imprensa Oficial, São Paulo, 2009, p. 413.
4
Idem, p. 583.

14 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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exemplo, os irmãos Janaína e Edson Teles, de 5 sinado sob torturas pelo DOI-CODI/SP, sendo da humilhação de ser uma mulher estuprada e
e 4 anos de idade, que estiveram por vários dias Virgílio um desaparecido político, pois seus ainda mãe de uma criança filha de um estupro
no DOI-CODI/SP e num centro clandestino da restos mortais até hoje não foram entregues a cometido por torturadores. E a questão perma-
repressão, em São Paulo, onde ouviam os gritos seus familiares para um sepultamento digno. nece interdita. Se ainda prevalece a ideia de que
de tortura de seus pais e de outros presos que ali Os filhos de Virgílio eram crianças e foram a palavra das mulheres não é crível nos dias de
se encontravam. presos com a mãe, que não era militante, Ilda hoje, o que dizer naqueles anos de chumbo quan-
Martins da Silva. Ilda foi interrogada, tortura- do mulher era assunto proibido e considerado
Houve crianças que foram torturadas para
da e separada dos filhos: “subversivo”. A revista Realidade, de janeiro de
forçar seus pais a denunciarem outros compa-
1967, n. 10, teve sua edição especial dedicada à
nheiros. Gino Ghilardini, à época, com 8 anos “Eu não queria me separar deles de jeito
situação das mulheres apreendida pela censura.
de idade, filho de Luis Ghilardini (1920–1973), nenhum, veio uma freira, pegou-os e os levou
O jornal Movimento, n. 45, foi totalmente censu-
comunista assassinado sob torturas no DOI-CO- para o DOPS/SP. Eles ficaram dois dias lá e
rado, por realizar uma edição voltada para “O
DI/RJ, foi preso juntamente com a mãe, Oran- depois foram levados para o Juizado de Meno-
Trabalho da Mulher no Brasil”. São exemplos
dina. Ambos foram torturados. O menino Gino res, onde permaneceram por dois meses. Isa-
mostrando que o fato de falar sobre as mulheres,
conta que era violentado para o pai falar o que bel, a mais nova, era um bebê de 4 meses, foi
revelando dados de sua realidade na família, no
sabia: “Eu ouvia meu pai ali perto gemendo, eu hospitalizada e quase morreu. Eu fiquei presa
trabalho, na educação e na sociedade causava
escutava, mas não podia fazer nada”. Passados por nove meses e estive incomunicável, não
muita preocupação às autoridades militares que
uns dias, Gino foi encaminhado e ficou durante podia ver meus filhos ou saber deles. E eu não
eram extremamente misóginas. Tanto é que é
vários meses na Fundação Nacional do Menor tinha participação política em nada”.
um dos ditadores (General Figueiredo, 1978-
no Rio de Janeiro.
Muitas das crianças aqui tratadas se tornaram 1985) chegou a dizer em público que: “... mulher
Pais foram assassinados diante de suas crian- adultos atormentados, vítimas de um sofrimen- e cavalo a gente só conhece quando monta”.
ças, tal qual ocorreu com a família Lucena. An- to mental permanente, devido à tamanha vio- Deve-se ressaltar, também, que a violência
tonio Raimundo Lucena (1922 – 1970) foi assas- lência cometida contra eles. Não suportaram e sexual acarreta consequências de longo prazo
sinado em 20 de fevereiro de 1970 na frente de acabaram morrendo. É o caso de Carlos Alexan- não só às vítimas como para todo o grupo so-
seus filhos de 3 e 6 anos, respectivamente. O fi- dre Azevedo (Cacá) que se matou aos 39 anos cial a que elas pertencem, inclusive pode levar
lho mais velho, de 18 anos, estava sequestrado de idade. Filho de pai e mãe, militantes, Cacá, à infertilidade.
e sofria torturas no DOI-CODI/SP. Sua esposa, quando tinha 1 ano e 8 meses, teve sua casa in-
Damaris Lucena, foi presa, torturada e banida vadida por policiais do DOPS/SP, no dia 15 de Ainda nos dias atuais, as militantes que so-
do país juntamente com os filhos pequenos. janeiro de 1974. Como começou a chorar, os po- breviveram não se sentem fortalecidas e com
liciais deram-lhe um soco na boca que começou garantias para denunciar os torturadores/es-
Houve crianças cujas mães foram sequestra- tupradores e ver a apuração de tais crimes. Há
a sangrar. Com o corte nos lábios, sangrando,
das por serem esposas de militantes comunis- uma ausência de ações políticas no sentido de
foi levado para o DOPS/SP e passou por mais
tas. Assim aconteceu com Marilda, esposa do oferecer oportunidade para uma narrativa pú-
de 15 horas em poder dos homens da repressão.
militante comunista Carlos Nicolau Danielli blica sobre o estupro cometido dentro de ór-
No DOPS/SP, os pais ouviram relatos de outros
(1929 – 1972), assassinado sob torturas no DOI- gãos policiais. Não vamos aqui descrever os
presos de que ele teria levado também choques
-CODI/SP. Ela foi sequestrada e seus filhos, casos, mas não podemos deixar de reconhecer
elétricos. Mais tarde, o bebê foi entregue aos
Vladimir, Valdenir e Vladir, com 9, 7 e 6 anos sua existência. Registrar que houve o estupro
avós maternos, em São Bernardo do Campo
de idade, sofreram muito por se sentirem sozi- como prática de tortura nos órgãos de repressão
(SP). Como disse o pai anos depois:
nhos e abandonados. O mesmo aconteceu com durante a ditadura militar é o começo para des-
a esposa de Rafael Martinelli, dirigente do mo- “Na verdade, em vez de entregue, ele foi jo- velar os horrores cometidos contra as mulheres
vimento sindical. Enquanto ele foi perseguido gado ao chão. Acabou com um machucado a durante a ditadura.
e sequestrado pelos agentes da repressão, ela mais na cabeça. Isso me foi contado. O certo
foi levada para as dependências do DOI-CO- é que ele ficou apavorado. E esse pavor tomou Embora desde o século XV, possam ser encon-
DI, do jeito como costumava ficar em sua casa, conta dele. Entendo que a morte dele foi o limi- tradas referências ao estupro como violação das
descalça. A esposa de Martinelli não tinha ne- te da angústia”7. normas relativas à guerra e passível de punição,
nhuma participação política. Mas seus três fi- o que ainda se constata são os grandes entra-
A ignomínia de crianças nascidas de estupros ves para se fazer a denúncia desses crimes. Não
lhos ficaram sós e abandonados enquanto ela
praticados por agentes do Estado existiu, ainda há nenhuma política reparatória nesse sentido
estava submetida aos interrogatórios e torturas
que não se toque nesse assunto, presas políticas no Brasil8.
naquele órgão.
foram insultadas em sua dignidade e violenta-
Outro caso emblemático da violência da das nos chamados DOI-CODIs e outros centros
ditadura sobre as crianças é o dos filhos de de tortura. O silencio é permanente em torno da
Virgilio Gomes da Silva (1933 – 1969), militante questão. As razões para o silêncio permanente
da ALN – Ação Libertadora Nacional –, assas- que paira sobre o assunto são muitas: a profun-

5
Idem, p.411.
6
Revista Brasileiros, nº.68, março de 2013: “Subversivos: Acredite”. “Estas crianças foram presas e banidas do Brasil. Mais de quarenta anos
depois elas contam como sobreviveram. Há quem não tenha conseguido, quando meninos são fichados como terroristas”, Luiza Villaméa, p.54.
7
Idem, p.64, matéria de Luiza Villaméa.
8
Adriana Sader Tescari, Violência Sexual contra a Mulher em Situação de Conflito Armado, Editora Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2005, p.38.

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2. Denúncias de mulheres grávidas publicadas
pelo projeto “Brasil Nunca Mais”

Muitas mulheres que, nas prisões brasileiras gestação e permaneceu detida como elemento de Luíz Andréa Favero, 26 anos, professor, pre-
tiveram sua sexualidade conspurcada coação moral sobre o interrogando; (...)”. so em Foz do Iguaçu, declarou na Auditoria
e os frutos do ventre arrancados, certamente Militar de Curitiba, em 1970, o que ocorrera a
Helena Moreira Serra Azul, 22 anos, estudante,
preferiram calar-se, para que a vergonha sua esposa: “(...) o interrogando ouviu os gritos
no Conselho de Justiça, em Recife (PE) , ao ser
suportada não caísse em domínio público. de sua esposa e, ao pedir aos policiais que não
interrogada, relatou: “(...) que o marido da interro-
Hoje, no anonimato de um passado marcante, a maltratassem, uma vez que a mesma se en-
ganda ficou na sala já referida e ela ouviu, do lado
elas guardam em sigilo os vexames e as contrava grávida, obteve como resposta uma
de fora, barulho de pancadas; que, posteriormente,
violações sofridas. No entanto, outras risada; (...) que ainda neste mesmo dia, teve o in-
foi reconduzida à sala onde estava o seu marido,
optaram por denunciar na Justiça Militar terrogando noticia de que sua esposa sofrera uma
que se apresentava com as mãos inchadas, a face
o que padeceram, ou tiveram seus casos hemorragia, constatando-se posteriormente, que
avermelhada, a coxa tremendo e com as costas
relatados por maridos e companheiros.9 a mesma sofrera um aborto; (...)”.
sem poder encostar na cadeira; que o Dr. Moacir
Sales, dirigindo-se à interroganda, disse que, se ela Regina Maria Toscano Farah, estudante, 23
não falasse, ia acontecer o mesmo com ela; (...) na anos, ao depor, no Rio, declarou: “(...) que molha-
Delegacia, todos já sabiam que a interroganda es- ram o seu corpo, aplicando consequentemente
O projeto Brasil Nunca Mais consistiu na pri-
tava em estado de gestação; (...)”. choques elétricos em todo o seu corpo, inclusive
meira pesquisa realizada a partir dos processos
contra presos políticos transitados no Superior Helena Mota Quintela, vendedora, 28 anos, em na vagina; que a declarante se achava operada
Tribunal Militar (STM) no período de abril de 1972, em Recife, denunciou: “(...) que foi ameaçada de fissura anal, que provocou hemorragia; que se
1964 a 1979, sob a responsabilidade da Comissão de ter o seu filho ‘arrancado à ponta de faca’; (...)”. achava grávida, semelhantes sevícias lhe provo-
de Justiça e Paz. O conteúdo do Projeto reuniu caram aborto; (...)”.
Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima, 25 anos,
707 processos completos e dezenas de outros in- estudante, ao depor, relatou como se deu o nasci-
completos num total de um milhão de documen- As marcas da tortura permanecem, como mos-
mento de seu filho: “(...) ao saber que a interrogan- tra o testemunho de Isabel Fávero, ex-militante
tos. O estudo desses processos e a sistematização da estava grávida, disse que o filho dessa raça não
das informações foram realizados de 1979 a 1985. da VAR-Palmares, presa em 5 maio de 1970, em
devia nascer; (...) que a 17.10 foi levada para prestar Nova Aurora, cuja denúncia foi feita, quarenta
No final dos trabalhos, foi publicado um livro com outro depoimento no CODI, mas foi suspenso e, no
o nome Brasil: Nunca Mais, que reúne denúncias anos antes, pelo seu marido, Luiz Fávero11. Ela
dia seguinte, por estar passando mal, foi transpor- relata com detalhes o abortamento sofrido e de-
contidas nos autos dos processos de militantes tada para o Hospital de Brasília; que chegou a ler
políticos, mulheres e homens, nas auditorias mi- nunciado pelo seu marido na época: “Eu ficava
o prontuário, por distração da enfermeira, cons- horas numa sala, entre perguntas e tortura física.
litares, na época da ditadura militar. tando do mesmo que foi internada em estado de Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e
Militantes ou esposas de militantes, grávidas, profunda angústia e ameaça de parto prematuro; eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de
foram vitimas do aborto forçado, praticado por que a 20/2/1972 deu à luz e 24 horas após o parto, muito choque, pau de arara, ameaça de estupro
agentes policiais dos DOI-CODIs. Muitos desses disseram-lhe que ia voltar para o PIC (Policia de e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram
abortamentos foram denunciados nas audiências Investigações Criminais); (...).” num quarto fechado, fiquei incomunicável”.
da Justiça Militar. Eis o relato de alguns desses Maria José da Conceição Doyle, estudante de
casos: Medicina, em 1971, em Brasília: “(...) que a inter- Outra mulher e militante política, Nádia Lu-
roganda estava grávida de 2 meses e perdeu a cia do Nascimento, integrante do MR-8, presa
O auxiliar administrativo José Ayres Lo- em São Paulo, em 1974, grávida de seis meses,
criança na prisão, embora não tenha sido tortura-
pes, 27 anos, preso no Rio, declarou em 197210: no DOI-CODI/SP, foi colocada na “cadeira
da, mas sofreu ameaças; (...)”.
“(...) que, por vezes, foram feitas chantagem com de dragão” pelo torturador conhecido por Ca-
o depoente em relação à gravidez de sua esposa, Maria Cristina Uslenghi Rizzi, 27 anos, secretária, pitão Ubirajara (delegado da polícia civil de
para que o depoente admitisse as declarações, denunciou à Justiça Militar de São Paulo: “(...) so- São Paulo, que integrava as equipes de tortu-
sob pena de colocar sua esposa em risco de abor- freu sevícias, tendo, inclusive, um aborto provoca- radores do DOI-CODI/SP, cujo nome oficial é
to e, consequentemente, de vida; (...)”. do que lhe causou grande hemorragia, (...)”. Aparecido Laerte Calandra). Depois de arranca-
O estudante José Luiz de Araújo Saboya, de Olga D´Arc Pimentel, 22 anos, professora, em da a roupa, ela levou choque elétrico por todo o
23 anos, no Rio, denunciou: “(...) que durante o 1970, no Rio: “(...) sevícias, as quais tiveram, como corpo, o que fez com que abortasse. Ficou duran-
período em que esteve no DOPS, em seguida no resultado, um aborto provocado que lhe causou te dias com fortes hemorragias e dores, sem se-
CODI, a sua esposa se encontrava em estado de grande hemorragia, (...)”. quer um atendimento médico12.

9
Brasil: Nunca Mais, Editora Vozes, 1986, Petrópolis, p.43.
10
Idem, pp.48-50.
11
Idem, p 50.
12
Testemunho dado à Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo

16 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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3. Maternidade, infância, clandestinidade
e terror de Estado

... me espanta a capacidade que se crianças pequenas das tarefas políticas e/ou mi- vidade da época. De qualquer forma, as ativida-
tem de sobreviver ao horror.13 litares, no sentido de impedir que acontecesse des domésticas recaíam mais sobre as mulheres.
... à ameaça de morte, podemos responder
o pior: a mãe ter sua criança torturada e/ou se- O comando era sempre dos homens, mesmo que
com uma nova vida.14
questrada, usada como refém pelos agentes da as mulheres tivessem desempenho igual ao dos
repressão, assim como as crianças assistirem homens. Eram eles que estavam nas direções das
suas mães ou seus pais sendo torturadas (os). A organizações, com raríssimas exceções, mas as
A maternidade foi usada, das mais diversas relutância em aceitar as mães como militantes mulheres agiram com coragem e criatividade.
formas, pela repressão política como meio de não era sem razão. A repressão política não pou-
tortura, para enlouquecer e aniquilar militantes, Dessa vez as mulheres não precisavam vestir-se
pou nem crianças nem mulheres grávidas. Mui-
o que acarretou uma sobrecarga pesada do pon- de homem para ir à guerra como fez Maria Qui-
tas mulheres abortaram nas dependências dos
to de vista emocional e físico, de forma especial, téria em outros tempos. Embora muitos coman-
DOI-CODIs de tanto apanharem e levarem cho-
às crianças e às mulheres, que, ao serem violen- dantes esperassem que as mulheres se compor-
que na barriga, vagina e demais partes do corpo.
tamente reprimidas por sua militância de con- tassem como homens. Segundo a ex-guerrilheira
testação à ditadura, ou por serem filhas de mi- Assim como existiram mulheres que tiveram Crimeia, muitas mulheres que optaram pela luta
litantes, eram submetidas às mais vis torturas, seus partos, na mais ferrenha clandestinidade, ou- política aprenderam a afirmar a diferença e bus-
sejam psicológicas ou físicas, por serem mães tras tiveram seus filhos na cadeia, como Hecilda, car novas formas de fazer política. Afinal, dessa
e terem seus filhos pequenos, ou simplesmente Crimeia Schmidt, Linda Tayah. Todas foram pre- vez as mulheres foram à luta por conta própria,
porque eram crianças, filhas de “comunistas”. sas grávidas e, mesmo sendo muito torturadas, por sua própria decisão e ali entraram para valer.
permaneceram grávidas e seus filhos nasceram Suzana Lisboa, militante da ALN na década de
As militantes na luta contra a ditadura militar, sob a ameaça de torturas sendo que algumas des- 1970, considera que “(...) era vantajosa, do ponto
de um modo geral, pertenciam a organizações sas crianças sofreram a tortura ainda na barriga de vista do desempenho da organização, a inte-
políticas clandestinas, pois era taxativamente de suas mães. Nessa seara, temos o caso do Joca, gração de mulheres na luta armada (...)”.
proibido se organizar e se expressar de maneira João Carlos Schmidt de Almeida Grabois. Sua
pública sob a vigência dos governos militares. mãe, Criméia, foi presa com sete para oito meses Ela afirma que numa sociedade machista em
Portanto, as normas dessas organizações eram de gravidez. Levou choques elétricos, foi espanca- que a mulher não era reconhecida e considerada,
bastante rígidas devido às questões de seguran- da em diversas partes do corpo e sofreu socos no uma guerrilheira teria mais facilidade de sair de
ça. A militância clandestina precisava de escon- rosto. Quando os carcereiros pegavam as chaves uma ação militar e se confundir na multidão. As
derijos para se encontrar, planejar atividades para abrir a porta da cela e levá-la à sala de tortura, mulheres tinham mais facilidades de obter do-
cotidianas. Eram casas/residências, conhecidas o seu bebê ainda na barriga começava a soluçar. cumentos falsos. Não precisavam de atestado de
como “aparelhos”. Para manter uma fachada le- Nasceu na prisão e, mesmo anos depois, quando reservista. E com isso tornava-se mais fácil con-
gal era conveniente destacar um casal de mili- ouvia o barulho de chaves, voltava a ter soluços. seguir um emprego e manter uma fachada legal.
tantes jovens para cuidar do “aparelho”. Diante Muitas chegaram a ser citadas pelos agentes da
As crianças que viviam na clandestinidade, de repressão, que eram pegos de surpresa ao se de-
de um casal com essas características as suspei-
um modo geral, moravam nos “aparelhos” que frontarem com mulheres dispostas a enfrentar o
tas junto à vizinhança eram bem menores.
poderiam ser invadidos, vasculhados e seques- inimigo com tanta ousadia e destreza. Eles se as-
As mulheres militantes, ao decidirem pela trados os que ali se encontravam, pelos agentes sustavam com o fato de que essas mulheres rom-
maternidade, eram advertidas de forma sistemá- dos órgãos de repressão. A perseguição policial, piam, sistematicamente, com os papéis sociais
tica sobre o que poderia lhes advir caso caíssem ora velada, ora aberta, era constante na vida da que lhes eram e ainda são impostos de submis-
nas garras da repressão. Havia reações negati- militância. O risco era permanente. As crianças, são, dependência, falta de decisão e coragem.
vas em relação à escolha pela maternidade. As na sua maioria, precisavam ter nomes falsos. Não
organizações, de um modo geral, não adotavam sabiam o verdadeiro nome de seus pais por ques- A vida política realizada às escondidas da
nos seus planos de ação o enfrentamento dos tão de segurança. As distintas tarefas partidárias ditadura e da repressão política aproximava os
problemas do cotidiano, considerados menores que compunham uma ação política ou armada militantes e era comum entre eles uma conversa
e que deveriam ser postergados para quando de maior envergadura se faziam de forma com- sobre assuntos mais íntimos. A clandestinida-
houvesse o triunfo da revolução. Por outro lado, partimentada e, muitas vezes, era pouco o tempo de e a perseguição constante os tornavam mais
existia o compromisso, nas mais diversas cir- para se preparar e tomar conhecimento do perigo afetivos e mais próximos. A igualdade entre os
cunstâncias, de proteger mulheres e crianças iminente. As mulheres militantes participavam sexos era, como ainda é hoje, uma proposta a ser
das garras perversas da repressão. Algumas igualmente da concretização das tarefas políticas alcançada. Cada minuto vivido era intenso, por-
organizações excluíam as grávidas ou mães de e militares, o que talvez tenha sido a grande no- que o perigo e a morte rondavam por perto.

13 Susel Oliveira da Rosa, Mulheres: Ditaduras e Memórias, Editora Intermeios, São Paulo, 2013, Carta de Danda Prado, p.180. (Coleção Entregêneros).
14 Fala de Crimeia Alice Schmidt de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia, publicada no livro já citado: Breve História do Feminismo no Brasil, p.72.

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4. Mudanças profundas na vida das mulheres
sob a égide do autoritarismo

... A inserção do feminismo no movimento pela Nos anos de 1970, no mundo ocidental, vivia-se tiva. As mulheres mães, por sua vez, enfrenta-
recuperação da democracia passava por uma o auge da segunda onda feminista, na qual as mu- ram a dupla ou talvez tripla opressão (enquanto
critica ao autoritarismo não apenas como lheres conduziram bandeiras que reivindicavam pertencentes ao sexo feminino, como parte do
o sistema político-militar que governava a o direito de decidir sobre o próprio corpo, que as povo em luta e como mães) sem deixarem de ser
maioria dos países latino-americanos, mas questões do plano pessoal deveriam ser tratadas “sujeitos políticos”, conscientes de suas ações e
ampliava essa crítica identificando o também no campo político. Tratavam de temas seus significados.
autoritarismo como sistema de relações de como corpo, sexualidade, prazer sexual, aborto e O corpo, a sexualidade e a maternidade ocu-
disciplinamento e de dominação que a maternidade. Queriam desfazer a ideia de que pam lugares centrais no processo histórico de
aprofundava a situação de subordinação tinham um único destino selado, o de serem mães. discriminação contra as mulheres. A subordi-
e opressão das mulheres no continente...
Tais ideias circulavam junto às militantes, ain- nação e opressão das mulheres se dá, em gran-
Lilian Letelier 15
da que com mais dificuldade, devido à falta de de medida, pelo controle do corpo feminino. A
liberdade e a perseguição constante que as im- expressão maior deste controle é a violência
pediam, muitas vezes, de discutir questões do contra as mulheres – prática tão antiga e natu-
cotidiano. Acreditava-se que somente após a ralizada que, naqueles anos de ditadura, preva-
Entretanto, surgiam fatores que aceleravam revolução socialista haveria oportunidade para lecia o ditado popular: “Em briga de marido e
mudanças de hábitos e costumes na sociedade cuidar de assuntos do campo pessoal, cultural. mulher não se mete a colher”, “embora fossem”
brasileira. O capitalismo se desenvolvia rapida- Portanto, a questão das mulheres ficaria para violentadas/espancadas e assassinadas as mu-
mente com o aumento excessivo da exploração depois. Paradoxalmente, as mulheres que deci- lheres. Assim como também se entendia que
da mão de obra, o achatamento salarial, o incen- diram pela militância de oposição à ditadura, os homens tinham uma necessidade irrefreável
tivo e os subsídios estatais para a instalação de eram, de um modo geral, pessoas que tinham e incontrolável de sexo. Daí a justificativa da
multinacionais. A partir da expulsão da popula- maior independência e autonomia. Tiveram que prática da violência sexual contra as mulheres.
ção do campo, há uma transferência abrupta de enfrentar muitas barreiras de ordem pessoal, A culpa de serem estupradas recaía sobre as
um grande contingente da população da área ru- familiar, profissional, para assumir a posição próprias mulheres vítimas. Daí a dificuldade de
ral para as áreas urbanas em busca de trabalho e política de enfrentamento ao autoritarismo. As- se denunciar os estupros. A desigualdade entre
sobrevivência. As mulheres, em geral, passaram sumiram o papel histórico de protagonistas de os sexos tem sido estruturalmente estabelecida
a ter novas atribuições, seja na chefia da família ações libertárias, tornando-se sujeitos políticos, ainda nos dias de hoje. O que dizer de quase
ou na competição para o mercado de trabalho, atuantes na construção de uma sociedade justa meio século atrás? Quando nem mesmo havia
fazendo crescer a participação da mão de obra e democrática. A maioria delas exerceu de forma sido conquistada a igualdade jurídica e formal.
feminina. Elas passaram a ter mais possibilida- destemida o direito de escolha nos mais diver- No Código Civil daquela época, o homem podia
des de controlar o número de filhos que queriam sos campos da vida inclusive em relação a ser ou pedir a anulação do casamento se a mulher não
ter. A pílula anticoncepcional, descoberta em não mães. Mas insistiram em tratar as questões fosse virgem e não tivesse avisado a ele com a
1960, começou a ser popularizada. As mulheres pessoais no plano político das organizações. Fo- devida antecedência e precaução. O pai podia
começaram a exercer o direito ao prazer sexual ram, ainda que nem todas estivessem conscien- deserdar a filha “desonesta”. A honestidade das
sem necessariamente ficarem grávidas. As mu- tes disso, as pioneiras do feminismo dos anos de mulheres significava uma sexualidade reprimi-
lheres, então, travaram um movimento de rup- 1970 no Brasil e região. da. Tanta tirania atingia as mulheres como um
tura do tabu da virgindade. Passaram a exercer todo, reforçava e justificava as ações repressivas
uma maior liberdade sexual subvertendo a or- As militantes tiveram que romper com os este-
nos espaços públicos como privados.
dem dada pelo acirramento da repressão política reótipos femininos e se empenharam em ações
e moral. Desse modo, a maternidade começa a ser que eram restritas a homens, como o manejo de Some-se a isso o fato de que havia uma campa-
exercida como um direito de escolha. A média de armas, a elaboração de estratégias de resistên- nha de controle da natalidade incentivada pelos
filhos por mulher era em torno de seis em 1960 cia para driblar o inimigo, entre outras. Não se Estados Unidos – baseada na ideologia imperia-
e caiu para cerca de dois, no final do século 20. deixaram intimidar, de ter desejos e manifestá- lista – contra o nascimento de filhos de pobres no
Assim, as mulheres lograram por se tornar mais -los, não recusaram tarefas por causa da mens- Brasil e em diversos países, denominados à época
independentes, a assumir mais atividades nos es- truação, de um abortamento, da gravidez ou como países do Terceiro Mundo17.
paços públicos, seja nas escolas ou no mercado de aleitamento. E aquelas que caíram nas garras O estado ditatorial patrocinava iniciativas de
trabalho. Aproximavam-se, mesmo sem ter cons- do inimigo, grávidas ou não, de um modo geral, controle da natalidade promovidas pela Bemfam
ciência plena, das incipientes ideias feministas. enfrentaram seus algozes de maneira firme e al- – Sociedade Civil de Bem Estar Familiar –, criada

15
In Maria Betânia Ávila (org.), Textos e Imagens do Feminismo: Mulheres Construindo a Igualdade, SOS-Corpo, Recife, 2001, p.198. Revista Brasileiros, nº.68, março de 2013.
16
Hoje creche é um direito constitucional da criança pequena à educação. Mas há mais de dez milhões de crianças brasileiras que vivem no Brasil, sem poder usufruir deste direito
por falta da construção de creches. (N. da A.)
17
Países do Terceiro Mundo eram os países pobres ou subdesenvolvidos. Segundo a teoria terceiro mundista, o mundo era dividido em países capitalistas (Primeiro Mundo),
socialistas (Segundo Mundo) e os demais eram do Terceiro Mundo. (N. da A.)

18 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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durante a ditadura militar, em 1965, e reconhecida doenças gravíssimas de hipertensão. Os índices Nesse contexto, as militantes políticas que
como órgão de utilidade pública. O governo mili- apresentados naquela época já eram altíssimos: decidiram ser mães, o fizeram em condições de-
tar assumiu um caráter ambíguo: mantinha uma em Pernambuco, 18,9% das mulheres de 15 a 44 safiadoras tanto por lutarem contra a ditadura
postura oficial de não intervencionismo na vida anos se encontravam esterilizadas (trompas liga- militar como ainda pela ousadia de se engravi-
das pessoas quanto à decisão de ter ou não ter fi- das) enquanto 12,5% usavam pílulas; em Manaus, darem. Tomaram o caminho da descoberta do
lhos. Mas na prática abria caminhos, com subsí- 33% das mulheres estavam com as trompas liga- corpo, se apropriaram dele, de sua sexualidade
dios e facilidades substanciais para ações antina- das; 17% no Piauí; e 15% das paulistas. Estavam ex- e das próprias decisões tanto em relação à re-
talistas, com acordos entre as secretarias de saúde cluídas desses cálculos as mulheres esterilizadas produção como ao exercício da sexualidade e da
e a Bemfam nos diversos estados brasileiros, prio- por outros motivos, como abortos mal feitos ou atividade política. Assim também como aquelas
rizando os mais pobres, impondo, de forma crimi- pelo uso inadequado de pílulas ou do DIU (Folha que decidiram o aborto e o realizaram em condi-
nosa e irresponsável, a esterilização em massa. de São Paulo, edição de 17 jul. 1983). A ação da ções de clandestinidade: sem lei e sem recursos
Por outro lado, os serviços públicos de saúde Bemfam e de outras entidades congêneres, com materiais. Foram mulheres que ousaram exercer
não ofereciam sequer informação e muito menos o suporte do Estado brasileiro, reduziu drastica- o direito de escolha até as últimas consequências.
orientação quanto ao uso dos meios contracepti- mente os índices de fertilidade no Brasil, inclu-
vos. Essa postura contribuiu enormemente para sive em áreas com baixa densidade demográfica
a expansão das esterilizações femininas e de como na Amazônia.

5. Mas afinal, o que é gênero?

Não se nasce mulher, torna-se. par o seu lugar no mercado de trabalho e bus- desigualdades sociais, econômicas e políticas.
Simone de Beauvoir, em 1949 car formação profissional e política tiveram que As desigualdades são fruto da arbitrariedade e
arcar com o ônus de exercer, ao mesmo tempo, das injustiças sociais, o que cria condições de
as atividades do mundo privado e do público, o inferioridade para alguns segmentos e classes
que lhes têm ocasionado uma enorme sobrecar- sociais. Enquanto as diferenças são biológicas e
Hoje, com o avanço das ciências sociais e da ga de trabalho e de responsabilidade. Ocorre a devem ser respeitadas, as desigualdades devem
ciência, em geral, pode-se contar com recursos chamada dupla jornada de trabalho (o trabalho ser erradicadas.
teóricos e políticos valiosos para enfrentar a dis- na produção e na reprodução), o que traz difi- O conceito de gênero, articulado às demais
criminação histórica contra as mulheres. A cate- culdades para sua participação na sociedade. categorias, clássicas ou não, como raça, etnia,
goria gênero, entendida aqui como instrumento Assim podemos perceber que a divisão sexual geração, orientação sexual, classes sociais, apro-
de análise da construção social e das relações do trabalho impõe uma divisão dos papéis so- funda a compreensão da realidade e desconstrói
entre os sexos, ao ser usada para dimensionar ciais masculinos e femininos, que são construí- a ideia de que o homem é o paradigma da huma-
as causas estruturais e sociais das desigualda- dos culturalmente e que determinam uma maior nidade. Inscrevem-se, portanto, nos paradigmas
des entre mulheres e homens, desconstrói como valorização dos homens em detrimento das mu- da humanidade, mulheres e homens porque am-
naturais e/ou próprias da natureza humana, a lheres. As mulheres têm sido, assim, impedidas bos são humanos. Desse modo são constituídos
subjugação, discriminação e opressão das mu- de exercerem o poder de decisão. Por exemplo, novos atores e novos sujeitos políticos, revelam-
lheres. É necessário que no uso da categoria tanto a mulher quanto o homem podem dar ba- -se métodos transformadores que devem nos le-
gênero deva ser incorporado o conceito de divi- nho no bebê ou trocar sua fralda. Não se trata de var a mudanças profundas e compatíveis com a
são sexual do trabalho, pois esta se encontra no um problema físico ou hormonal. Se as mulheres diversidade e as necessidades humanas. A sub-
centro do poder que os homens exercem sobre têm sido mais eficientes nesse trabalho é porque missão das mulheres ao poder dos homens, vista
as mulheres. Observa-se que a divisão sexual do se capacitaram para isso por muito mais tempo. até então como processos naturalizados, passa a
trabalho é uma realidade em todas as socieda- Com isso queremos mostrar que as desigualda- ser questionada e ressignificada.
des humanas e é a base da desigualdade social des entre homens e mulheres não são naturais.
entre os sexos. Os homens têm ocupado por um Foram historicamente construídas. A categoria Hoje, graças às lutas feministas de mulheres,
longo período histórico os espaços públicos, vin- gênero vem justamente mostrar que as desigual- há nos diversos níveis do Estado brasileiro (fe-
culados à produção e adquirindo o poder econô- dades podem ser desnaturalizadas e descons- deral, estadual e municipal) ações e políticas pú-
mico e político enquanto as mulheres ficaram truídas. Empregar a categoria gênero na análise blicas para efetiva equidade de gênero e igual-
por muito tempo restritas aos espaços privados, da realidade aprofunda o conhecimento e leva dade de direitos. Na ditadura, a situação era o
incumbidas de realizar as tarefas domésticas e a rejeitar o determinismo biológico. Não são oposto.
de cuidados. As mulheres, ao saírem para ocu- os aspectos biológicos e sexuais que criam as

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6. A construção da verdade sob a perspectiva de gênero

Os danos e violações de direitos humanos co- aram nem deixaram de defender as liberdades Angel que denunciou insistentemente o desapa-
metidos contra as mulheres pela ditadura militar sejam de ordem pessoal ou de ordem política. recimento do seu filho. Outras enlouqueceram
devem ser dimensionados sob a ótica de gênero, As desigualdades históricas entre homens e com tamanha dor e perseguição policial.
para que se alcance com profundidade a verdade mulheres foram reelaboradas e aprofundadas
dos fatos, registrando-se que as militantes políti- Houve muitas e muitas que lutaram no anoni-
pela ditadura, que não admitia, em nenhuma mato e que a história terá de trazer à tona a par-
cas, ou não, se recusaram a reproduzir o papel so- hipótese, que mulheres desenvolvessem ações
cial de submissão e de dependência dos homens, ticipação para que se alcance a verdade. Junto a
não condizentes com os estereótipos femininos elas, muitas crianças também sofreram e não ti-
contribuindo de maneira fundamental para a de submissão, dependência e falta de iniciati-
construção de uma democracia de fato, e isso num veram suas histórias inscritas na história política
va. As mulheres, militantes políticas da época, do país, não tiveram o reconhecimento nem re-
período em que tudo o que faltava era democra- subverteram a ordem patriarcal tão solidamente
cia. Desse modo, nossa frágil democracia não se paração. Gostaríamos que sua dor e sua tenacida-
acomodada na ideologia ditatorial. Ao ingressa- de para resistir se espalhassem na cultura e nas
consolidará, dentre outras coisas, sem que se faça rem para as lutas da oposição política, das mais
justiça às mulheres e às crianças que lutaram e/ou ações do povo de modo a não mais autorizarem
diversas maneiras, as mulheres pegaram em que tais fatos se repitam.
foram atingidas pela ditadura. armas ou apoiaram ações políticas de protesto,
Nessa seara, constatamos que na atividade sejam armadas ou não, mantiveram a segurança Ao buscar a verdade, a Comissão deve anali-
política clandestina, houve também avanços de “aparelhos” que escondiam a militância e o sar os fatos e suas circunstâncias, numa pers-
nas relações de gênero. Existiram ocasiões em material de luta, participaram da imprensa clan- pectiva de gênero, ou seja, considerando que as
que se quebrou a lógica até então aceita como destina, escreveram, fizeram funcionar as gráfi- desigualdades entre os sexos levaram a conse-
natural, dito noutras palavras, ao homem o espa- cas e distribuíram as publicações produzidas de quências e sequelas distintas entre mulheres e
ço público e à mulher o espaço privado. Muitas forma artesanal e em condições muito precárias. homens, em decorrência das brutalidades co-
vezes, os homens foram obrigados a ficarem es- Cuidaram da saúde e da segurança de militan- metidas pela ditadura militar. As mulheres e
condidos em aparelhos, devido à intensa perse- tes e familiares. Tiveram suas crianças na clan- as crianças serão não apenas lembradas como
guição enquanto as mulheres, devido a levanta- destinidade, nas prisões. Viram suas crianças reconhecidas como pessoas com direitos inalie-
rem menos suspeição, foram às ruas no preparo expostas às sessões de tortura, ameaçadas ou náveis à dignidade, às manifestações afetivas, à
e no desencadeamento de ações políticas e mili- mesmo torturadas. Sofreram abortos dolorosos liberdade e à justiça.
tares. Por consequência disso, existiram homens devido aos espancamentos e chutes dos tortura-
que aprenderam a lavar suas roupas, a fazer sua dores. Foram impedidas de amamentar seus be-
própria comida, tomando à frente das atividades bês nos cárceres, menstruaram de forma exces-
domésticas. Mas foram exceção, infelizmente: siva ou escassa conforme as sessões de torturas.
“A participação feminina nas organizações mili- Foram estupradas e sofreram violência sexual.
tantes pode vir a ser tomada como um indicador Tiveram seus corpos nus expostos para os tortu-
das rupturas iniciais que estavam ocorrendo nos radores espancá-los, queimá-los com pontas de
papéis tradicionais de gênero18 ”. cigarro ou com choques elétricos, enfiarem fios
elétricos em suas vaginas e ânus, arrebentarem
De inicio a ditadura, ao considerar que o ini- seus mamilos e cometerem estupros.
migo se encontrava no seio do povo e ao estabe-
lecer que qualquer pessoa estava sob suspeição, Houve militantes assassinadas cujos cadáve-
teve, como alvo principal, os homens guerri- res, em muitos casos, encontram-se desapareci-
lheiros. Com o desenvolvimento da luta contra dos até os dias atuais. Muitas dessas mulheres
a ditadura, a participação das mulheres tornou- foram levadas à morte, por meio de um assassi-
-se mais incômoda para a repressão que usou de nato friamente calculado, com atos de estupro,
métodos os mais perversos, reforçando o mora- mutilação inclusive genital. Outras foram assas-
lismo e preconceito machistas para desmorali- sinadas com o uso da coroa de cristo, como era
zar a participação das mulheres. Na tortura, as chamado um método de tortura, que, por meio
militantes eram tratadas pelos policiais, de um do emprego de uma cinta de aço, apertava-se o
modo geral, como putas, amantes, amasiadas e crânio até esmagá-lo.
justificavam assim os estupros nas dependên- Outras foram mortas em acidentes estrategi-
cias dos DOI-CODIs. Mesmo assim, não recu- camente planejados, como foi o caso de Zuzu

18
Ingrid Gianordoli-Nascimento, Zeidi Araujo Trindade e Maria de Fátima de Souza Santos, Mulheres e Militância, Editora UGMG, Belo Horizonte, 2012, p.44.

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Depoimentos
44 testemunhos colhidos pela
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo
“Rubens Paiva”, no mês de maio de 2013,
durante o “Seminário Verdade
e Infância Roubada”

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Filho do Zorro
por Andre Almeida Cunha Arantes

Era 1965, meus pais Aldo e Maria Auxiliadora de manhã perceberia que o castelo era legal. Eu, minha mãe e minha irmã ficamos quatro
estavam curtindo o frio do inverno Sul-Ameri- Quando despertei no outro dia, estava em meses presos. Meu pai, que foi preso dias de-
cano na praia de Punta Gorda, em Montevidéu. um quarto pequeno e cinza, cheio de grades. pois, ficou seis meses na prisão. No final desse
Não foi uma escolha voluntária, até porque a período meus pais foram levados a julgamen-
melhor época para aproveitar as praias uru- Mudamos algumas vezes de “endereço”. to, em Recife. Durante a sessão, eu e minha
guaias é no verão, entre os meses de janeiro Depois do “castelo” fomos para Escola de irmã, que nessa época tinha 2 anos, ficamos
e fevereiro. Por outro lado, o melhor mesmo Aprendizes de Marinheiro de Alagoas. Uma correndo por toda sala e fazendo uma bagun-
seria ter ido para Punta del Este que é a praia vez por dia descíamos para brincar em um ça danada. Vendo essa confusão, um militar do
mais bonita e mais procurada desse pequeno pátio, cheio de lixo e ratos, que minha mãe Conselho de Sentença procurou saber o que
país. Mas o motivo não era passar férias e sim apelidou carinhosamente de Jerry. O Jerry estávamos fazendo ali. O escrivão que já estava
uma imposição do momento político no Brasil, era o ratinho esperto de um desenho anima- sensibilizado com a nossa situação disse que
que acabava de mergulhar em um período de do da época que vivia fugindo de seu algoz, estávamos presos com nossos pais. Durante o
ditadura militar que duraria aproximadamente o gato Tom. Como era pequeno, não percebi, julgamento não se tocou em nossa presença.
duas décadas. mas o “Tom” tinha nos pegado. Estávamos Todavia, o mesmo militar questionou um co-
detidos em uma prisão da marinha. Comia no ronel da PM de Alagoas por que minha mãe
Em 13 de junho de 1965, durante esse perío- restaurante dos oficiais até o dia em que um estava presa. Ele respondeu que em Alagoas
do de férias forçadas, no Sanatório Americano, oficial pediu que a minha mãe me deixasse quando não encontravam o marido prendiam
minha mãe ficaria feliz de me ver chorar pela com ele e a esposa, já que ela não tinha futu- a mulher. Com isso nossa advogada pediu a
primeira vez. Moramos no Uruguai quase um ro pra me oferecer. O que o oficial não sabia é libertação de nossa mãe. Acatado o pedido,
ano. Depois voltamos para o Brasil e fomos que o mundo dá voltas. Mais do que depres- fomos os três libertados. Meu pai ficou preso
morar em São Paulo. Mais tarde, dentro da po- sa, minha mãe me pegou pela mão e saiu dali. mais algum tempo e depois fugiu da prisão du-
lítica de integração na produção, fomos morar No dia seguinte, já estávamos comendo no rante um jogo de futebol entre os dois princi-
no Nordeste. restaurante dos soldados e dias mais tarde fo- pais times de Alagoas.
mos transferidos para outra prisão.
Tinha 3 anos e lá estávamos em mais uma
situação estranha. Durante a noite, uns “ami- Depois dessa aventura ficamos algum tempo
gos” de meus pais vieram nos buscar em nossa em Goiás, na casa de meus avós paternos. As-
pequena casa que ficava no interior de Alago-
“Uma vez por dia sim que as coisas esfriaram fomos para São Pau-
as, mais precisamente em Pariconha, distrito descíamos para brincar lo, onde um novo capítulo começava. Durante
esses anos de ditadura, o contato com nossa
de Água Branca no alto sertão. Nos levaram
de jipe para um castelo (Policlínica da PM de em um pátio, cheio família foi muito pequeno. Era uma questão de
Alagoas), em Maceió. Lembro que achei aqui- de lixo e ratos, que segurança. Conhecia apenas alguns poucos tios
e um casal de primos que moravam em São Pau-
lo estranho. Como era noite, o castelo pareceu
meio sombrio. Acreditei que quando acordasse minha mãe apelidou lo, sendo que o contato era esporádico. Sempre
passávamos as festas – aniversários, Natal e Ré-
carinhosamente veillon – sozinhos, sem contato com outros fa-
de Jerry”
À esquerda, Andre aos 5 anos
e Priscila aos 4 anos miliares. Mesmo assim, o Natal era uma gran-
no Parque do Ibirapuera
em São Paulo, 1970 de festa cercada de expectativas.

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Lembro que recebia muitos presentes, mas Eu me sentia o próprio “Zico”. Esses coelhos “Você não tem cara de Aldo e sim de Roberto”.
nunca sabíamos direito quem os havia dado. eram meus heróis. Então, em um determinado Este era o nome frio do meu pai.
Eram dos tios e tias, vários que não fazia a me- dia, meu pai insistiu que eu não deveria con-
nor ideia que existiam. Mas não parava para tar aos primos onde morávamos. Aí eu disse: Entre 6 e 11 anos, moramos na Zona Leste de
pensar nisso, só queria curtir os presentes, era “Pai, você ensina para a gente que não é para São Paulo. Vila Formosa, rua Itaquera, Mooca,
um momento mágico. mentir e agora está me pedindo para mentir”. Vila Manchester eram os lugares que frequen-
Meu pai arregalou os olhos, pensou um pouco távamos. Nesse período, fiz natação no Clube
O tempo foi passando, fui crescendo e per- e disse: “Olha, filho, você vê o seriado do Zor- da Vila Manchester. Era um clube da prefeitu-
cebia que a gente mudava bastante de casa. ro, não vê? Você acha que o Zorro pode sair ra de São Paulo, bem equipado com pista de
Basicamente, por vários bairros da periferia contando para todo mundo qual é a identida- atletismo, campo de futebol, quadras cobertas
na Grande São Paulo. Aquilo parecia normal, de verdadeira dele?”. E eu, “Lógico que não, sala de ginástica e a piscina. Passava a tarde
tinha uma família, estava na escola, fazia na- pai, só o Mudinho sabe disso. Se o Sargento nadando. Fiz muitos amigos, treinei bastante
tação em um clube da prefeitura de São Pau- Garcia souber a identidade do Zorro, vai pren- e, como todos, tinha um sonho : treinar nata-
lo... Tudo fluía bem até que dois acontecimen- der ele”. “Pois é, filho, esta é nossa situação”, ção no melhor clube da cidade, o Corinthians.
tos me chamaram atenção. disse meu pai. “Já entendi, pai, pode deixar Sonho que não durou muito... explico.
O primeiro foi quando meus pais resolveram que eu vou guardar segredo”, disse. Acompa-
nhado desse diálogo, veio a seguinte explica- Com essa história de ser “filho do Zorro” e
que eu e minha irmã tínhamos que conhecer
ção: existiam os barrigudões (tipo Sargento ter que manter a identidade secreta da famí-
os nossos primos e tios de Belo Horizonte.
Garcia) e o povo. Havia uma briga entre estes lia, eu “entendi” que não poderia aparecer. Isto
Anualmente, todo esse pessoal ia de trem para
dois grupos, assim como no filme do Zorro, significava que se ficasse bom e fosse para o
uma casa em Angra dos Reis. Era muita gente.
nós estávamos lutando do lado do povo contra Corinthians, ia acabar entregando minha fa-
Só de primos de primeiro grau devia ter mais
os barrigudões. Bom, para mim a explicação mília. Então desenvolvi um certo sentimento
de quinze na casa. Durante uma brincadeira
estava mais do que boa. Vi que tinha desven- de ir me distanciando deste desejo de melho-
em que cada um tinha de fazer sua apresenta-
dado o segredo da família e ainda por cima rar e ir nadar no Corinthians.
ção, ocorreu um problema. Cada primo reuni-
do ali na sala levantava e dizia o nome e o que descobri que era “filho do Zorro”.
No final do ano de 1976, bem perto do Na-
gostava de fazer. Quando chegou a minha tal, meu pai foi preso em um episódio chama-
vez, falei meu nome “frio”. Na verdade, o nome
era Andre mesmo, mas o sobrenome era “frio”
“Um dia no quarto/ do “Chacina da Lapa”. Fomos acordados bem
cedo pela minha mãe, pegamos algumas coi-
e bem diferente do dos primos. Quando eu escritório do meu pai, sas, colocamos na mochila e nos mandamos
acabei, um dos primos levantou e disse que eu
falara meu sobrenome errado, pois não guar-
achei caneta e li o de táxi para casa de meu tio em Santo Amaro,
um bairro de São Paulo. Era um tio que eu já
dava relação com sobrenome de nossa família. sobrenome do meu avô. conhecia, irmão da minha mãe. Ele e minha
Como sempre, onde há muitas crianças juntas,
a história acabou em briga, pois me senti ofen-
Percebi que o sobrenome tia Tei, também irmã de minha mãe, eram pra-
ticamente os únicos parentes que víamos de
dido pelo fato de alguém dizer que eu mentia dele não era parecido vez em quando. Minha mãe não contou nada
com relação ao meu sobrenome. Já de volta a
São Paulo, relatei o ocorrido em casa. Meus com o nosso” para a gente a respeito do ocorrido com meu
pai. Ficamos alguns dias nessa casa imaginan-
pais não falaram nada, mas também nunca do que já estávamos saindo de “férias”. Certa
mais pusemos os pés em Angra dos Reis. O segundo momento “estranho” foi quando manhã, minha mãe me chamou com uma re-
Já tinha em torno de 8 anos. Não queria meu avô paterno faleceu. Eu tinha quase 10 vista na mão e pediu que eu lesse a matéria.
pressionar meus pais, pois tinha muito cari- anos. Foi enviado para meu pai a caneta do Era uma matéria que trazia fotos de meu pai
nho por eles, mas a certeza de que aquilo que meu avô que tinha seu nome inscrito na lateral. e alguns amigos que foram presos na mesma
meus primos falaram em Angra dos Reis a res- Um dia no quarto/escritório do meu pai, achei reunião. Ele estava com o rosto tão machuca-
peito do nome da nossa família fosse verdade a caneta e li o sobrenome do meu avô. Percebi do que nem o estava reconhecendo.
foi aumentando. que o sobrenome dele não era parecido com o
nosso. Aí disse: “Descobri, descobri que o so- A partir daí, tudo foi devidamente esclare-
Mais ou menos nesse período, tive uma con- brenome do vovô Galileu é Arantes. O nome cido. Dias depois, eu e minha irmã fomos le-
versa franca com meu pai. No caminho da es- de nossa família é Arantes”. Diante disso, meus vados pelo meu tio para Belo Horizonte, onde
cola, ele sempre ia contando histórias sobre pais contaram a razão de nosso sobrenome tro- moraríamos por um ano com minha avó ma-
os três irmãos coelhos: Zico, Zeca e o Zoca. cado. Naquele dia, fiquei sabendo que o nome terna, enquanto meu pai seguia sendo tortu-
Eram três coelhinhos espertos e de muito bom de meu pai era Aldo e o de minha mãe era Ma- rado e minha mãe foragida da repressão, em
caráter. Eram corajosos e nunca mentiam. ria Auxiliadora. Virei para o meu pai e disse: algum lugar que não sabíamos.

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O período em Belo Horizonte foi um mo- Estávamos em meados de 1986. Meu pai conferências mundiais nos Estados Unidos.
mento de “transição”. Sem meus pais, mas fora reeleito deputado federal e morávamos Em 2003 fui convidado, pelo então Ministro
conhecendo uma infinidade de tios e primos, em uma quadra só para deputados federais na de Esporte do Governo Lula, Agnelo Quei-
que eu nunca soubera que existiam. Estranhei Asa Norte. Isso tudo deixou bem claro que a roz, para ser Secretário Nacional de Esportes
um pouco, pois além de estar sem meus pais, situação mudara e havia se consolidado. Nós de Alto Rendimento. Nesta função, estive em
era tudo muito diferente. já não éramos do time dos perdedores. Esta- missão oficial nos Jogos Pan-Americanos de
va liberado para vencer. Essa foi a senha para Santo Domingos na República Dominicana
Depois de um ano, as coisas se acalmaram e voltar para o esporte e tentar vencer. Já não e nas Olimpíadas de Athenas, Grécia. Como
voltamos a nos encontrar com minha mãe. Re- tinha mais amarras, já não precisava mais me Diretor da SNEAR, participei dos Jogos Pan-
tornamos todos para São Paulo. Mas agora o esconder, eu queria agora era aparecer. Foi um -Americanos do Rio de Janeiro em 2007. Hoje,
endereço era outro, já estávamos na Bela Cin- momento de mudança radical em minha vida. sou Diretor da Secretaria Nacional de Esporte
tra, uma das boas ruas da capital paulistana. Sentia-me integrado, em casa. Tinha desco- de Alto Rendimento do Ministério do Esporte
berto o que eu queria. Queria vencer. e dou aulas de Educação Física no Centro Uni-
A rotina era estudar, treinar no Paulistano versitário UniCEUB.
ou Pinheiros, sair com os amigos e no final de
semana visitar meu pai na prisão. Percebi que “Olhando para trás, vejo Olhando para trás, vejo como esporte e po-
apesar de estar em clubes bons, não tinha mui-
to desejo de competir e vencer. Aos poucos, fui
como esporte e política lítica estiveram entrelaçados em minha vida.
Quando criança, minha leitura das questões
percebendo que me sentia fazendo parte do estiveram entrelaçados sempre passou pelo corpo: alguém falava em
superar obstáculos e eu me imaginava saltan-
time dos que estavam sendo oprimidos, que
perdiam. Os opressores eram os vencedores,
em minha vida. Quando do barreiras em uma pista de atletismo. Diziam
aqueles que tinham torturado meu pai, nos criança, minha leitura que era preciso ser forte, e eu me imaginava
prendido, separado a família. Tinha este sen- levantando um grande peso; que era necessá-
timento dentro de mim. O desejo de vencer es- das questões sempre rio ser resistente, e eu me imaginava em uma
tava cada vez mais longe, como algo proibido. passou pelo corpo” maratona. Enfim, era um jeito muito particular
de sentir as coisas, como foi também relacio-
Em agosto de 1979, foi aprovada e sanciona- nar a vitória à opressão e o perdedor aos opri-
da a Lei da Anistia. No mesmo dia da sua pu- Resolvi fazer triathlon (natação, ciclismo e midos. Decidir não “aparecer” por medo que
blicação, meu pai foi libertado do presídio de corrida). Treinei muito, consegui ganhar provas minha família fosse descoberta. Enfim, cabeça
presos políticos em São Paulo, o Barro Branco. em Brasília, Goiás e Espírito Santo. Participei de criança fantasia muito e estas coisas ecoam
A família se encontrou novamente e passou a de campeonatos brasileiros, fui selecionado na adolescência. Esta foi a minha história, com
viver junto. Esse foi um momento muito bom. para fazer parte da Seleção Brasileira em cam- cicatrizes geradas pela ditadura e com oportu-
Meu pai foi eleito deputado federal por Goiás peonatos Sul-Americanos, Pan-Americanos e nidades criadas pela democracia.
em 1982 e fomos todos morar em Brasília. Tudo Mundiais. Estive na Argentina, Estados Unidos,
diferente. Uma situação bem diferente. Acredito que no peito da minha mãe, lá no
Canadá, República Dominicana, México, Cuba,
fundinho, ela tem vontade de encontrar com
Ilhas Virgens, Espanha e Austrália competin-
Estava com 18 anos e já tinha parado de trei- aquele oficial da marinha que disse que ela
do e representado nosso país. Sabia que podia,
nar natação e outros esportes também. Como não teria futuro para me dar e dizer : “Tá ven-
sempre soube, mas tinha que ser no momento
todo adolescente nesta idade, não sabia muito do, eu tinha certeza que o futuro do meu filho
em que não pusesse minha família em “perigo”.
bem o que queria. Sentia que as coisas tinham seria melhor comigo...”
mudado, mas ainda não tinha entendido o que Acabei entrando no curso de Educação Fí-
havia dentro de mim. Entrei na faculdade, pri- sica em 1988 (D. Bosco), fiz especialização
meiro em Economia, depois em História, mas em Treinamento Esportivo em 2001, na Uni- ANDRE ALMEIDA CUNHA ARANTES nasceu em 13
de junho de 1965. É filho de Maria Auxiliadora de
nada me agradava. Revolvi mudar para São versidade de Brasília, Mestrado em Educação Almeida Cunha Arantes e Aldo Arantes. Ex-triatleta,
Paulo. De São Paulo, fui de bicicleta para o Rio Física pela Universidade Católica de Brasília, doutorando em ciências do desporto, professor uni-
de Janeiro pela recém-inaugurada Rio-Santos. em 2005, e hoje em dia faço Doutorado em versitário e diretor de Esporte de Alto Rendimento do
Nessa viagem, senti gostos que já tinha esque- Ciências do Desporto na Universidade do Ministério do Esporte.

cido. O gosto da liberdade, do esforço físico, Porto em Portugal. De 2000 a 2005 fiz parte
do contato com a natureza. Acabei ficando no do JGSPINNING, maior programa em ciclis-
Rio de Janeiro e fui trabalhar com cinema, mo de academia no mundo, convidado pelo
que era uma das paixões que eu tinha. Fiquei próprio fundador do programa Johnny Gol-
um ano no Rio de Janeiro e acabei voltando dberg. Estive representando o programa em
para Brasília. vários países da América do Sul e em duas

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Identidade, nome e o paradoxo
da liberdade: carta aos meus pais
por Priscila Almeida Cunha Arantes

Antes de iniciar meu depoimento, gostaria e meu irmão quando tinha 3 anos de idade, o resto da vida. Escolher, dar um nome a uma
de recorrer a um mito antigo que versa sobre no sertão de Alagoas, apesar de não ter lem- criança é fazer uma espécie de doação de uma
a história de um sobrevivente. Refiro-me ao brança desse episódio – deixo aqui meu depoi- história simbólica familiar. Doação que a inse-
poeta Simônides, considerado o inventor da mento na esperança que possa contribuir não re na continuidade de uma filiação, a inscreve
arte da memória na Grécia antiga. Diz o mito somente para a construção de uma memória nas linhagens maternas e paternas: uma espé-
que o poeta teria estabelecido as bases da mne- coletiva mas que, de alguma forma, ele possa cie de fio de Ariadne que lhe indica um cami-
motécnica – a arte da memória – em função de servir de dispositivo para que essa história nho, sem traçá-lo de antemão.
um acidente vivido por ele próprio. Simônides não se repita nunca mais no nosso país.
foi o único sobrevivente do desabamento do Priscila Almeida Cunha Arantes. Foi este
o nome que os meus pais me deram em 1º de
teto do salão de um banquete onde se come-
morava a vitória do pugilista grego Skopas.
“Muitas vezes quando maio de 1966 quando nasci, mas não foi este

O que importa nessa história é o que aconte-


ouvia meu pai escutar o nome que utilizei até meus 11 anos de idade,
quando, então, meu pai foi preso e minha mãe
ceu após tal tragédia. Os parentes das vítimas, a Internacional em seu ficou foragida, na época da ditadura militar
que queriam enterrar seus familiares, não con-
seguiam reconhecer os mortos que se encon-
rádio pequeno, em seu em nosso país.

travam totalmente desfigurados pelas ruínas. quarto, bem baixinho, Até os meus 11 anos, sempre fui Priscila
Guimarães Silva; uma criança feliz que vivia
Recorreram, então, a Simônides, o único sobre-
vivente, que graças à sua memória conseguiu
ficava uma pergunta no como muitas outras de minha idade na perife-
se recordar dos participantes do banquete, na ar: por que ele tem de ria de São Paulo com a família.
medida em que se lembrou do local ocupado
por cada um deles durante a comemoração.
escutar o som tão baixo?” Existia, por vezes, uma sensação velada que
talvez, pela minha idade na época, não conse-
Se a história de Simônides está muito distan- guia entender. As janelas da casa na avenida
Recentemente meu pai me pediu um depoi-
te do nosso tempo, por outro lado, ilustra bem Itaquera eram forradas de papel e sempre me
mento sobre as memórias da minha infância.
o embate contra o esquecimento da história. davam a impressão que estávamos esconden-
Gostaria então de compartilhar aqui alguns
do algo que eu não tinha muito claro o que era.
trechos desta carta que recebeu o título de
Aquele que testemunha, de certa forma so- Muitas vezes quando ouvia meu pai escutar a
Identidade, Nome e o Paradoxo da Liberdade:
breviveu a uma situação limite, traumática, Internacional em seu rádio pequeno, em seu
Carta aos meus Pais.
no meu caso e de meus familiares: à época da quarto, bem baixinho, ficava sempre uma per-
ditadura militar no Brasil. Como filha de pais Talvez um dos dispositivos mais antigos gunta no ar: por que ele tem de escutar o som
que foram presos, torturados, foragidos e clan- da humanidade seja o de dar nome às coisas. tão baixo? Mas os natais eram sempre muito
destinos – e eu mesma presa com minha mãe Dar nome às coisas significa dar a elas vida, gordos ao meu olhar. Recebia sempre várias
À esquerda, Priscila com 4 anos no Parque do Ibirapuera história, identidade. É assim que uma criança roupas que, apesar de serem usadas, vinham
em São Paulo, 1970 recebe um nome ao nascer, carregando-o para sempre envoltas em um lindo papel celofane

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“Fui acometida por vermelho, que somente a minha mãe sabia fa- avenida Itaquera, tinha comentado comigo
zer. A casa da avenida Itaquera tinha um quintal e meu irmão que nosso sobrenome não era
uma série de desmaios, grande que, apesar de receber, às vezes, a visita Guimarães Silva. Naquela época, apesar da
pequenos lapsos de de alguns amigos indesejáveis, enormes ratos – surpresa, o comentário não teve significado
só recentemente vim a saber que vivíamos nos nenhum para mim. Eu continuava sendo Pris-
consciência, talvez um fundos de um açougue –, brincava com minhas cila Guimarães Silva, vivendo com meus pais
desejo real de esquecer, bonecas e com meu exército de formigas, mi- na avenida Itaquera.
nhas companheiras inseparáveis.
por um pequeno espaço Também foi em Belo Horizonte que uma
Certo dia, fomos tirados às pressas da ave- nova realidade se abriu para mim. Talvez hoje,
de tempo, algo que nida Itaquera e levados por meu tio Bruno, mais madura, eu possa reconhecer o paradoxo
me incomodava em irmão da minha mãe, de carro, até Belo Hori- daquela sensação. Por um lado pude descobrir
zonte para a casa de minha avó materna. Não que tinha um nome de fato real, outro, este sim
profundidade” entendia ao certo porque estávamos indo para verdadeiro, que trazia consigo uma família, uma
Belo Horizonte e muito menos o que de fato história; uma outra identidade. Era um mundo
acontecera. Mas sabia que era algo muito gra- completamente novo que se abria para mim.
ve, e alguma coisa acontecera ao meu pai. Ele
e minha mãe tinham combinado de que se o Mas ao mesmo tempo, e talvez este fosse o
meu pai não voltasse de uma viagem em uma fator que mais me assustou, assumir a minha
determinada época é porque alguma coisa ti- verdadeira identidade e meu nome trouxe a
nha ocorrido. E de fato ocorreu. Meu pai fora perda da convivência com meus pais. E mais
capturado em plena estação Paraíso, do Metrô do que isto: a consciência de que eles estavam
– nome engraçado! – pelos militares, em de- em uma situação de perigo iminente. É exata-
zembro de 1976. mente no momento que nossos nomes podiam
ser utilizados, que meu pai foi preso e minha
Não me lembro desse dia com detalhes. Mas mãe ficou foragida.
me recordo do desespero de minha mãe, levan-
Obviamente este paradoxo de identidade se
do-nos às pressas, eu e Andre, à casa de tio Bru-
tornou mais acentuado em um momento de
no. Na viagem a Belo Horizonte fomos parados
adolescência quando essas questões já são co-
por um policial. Acho que o tio Bruno dirigia
locadas à mesa. Para além de uma mera crise
muito rápido e senti um nervosismo grande no
de identidade era uma real crise de identidade:
ar. Chegamos à casa da minha avó. A casa era
seria melhor continuar sendo Priscila Guima-
muito grande, tinha quase quarenta cômodos, e
rães Silva e poder viver clandestina com meus
fomos acolhidos em clima de festa e com muito
pais em liberdade? Ou seria melhor ser Pris-
carinho pela família de minha mãe, uma família
cila Almeida Cunha Arantes e poder viver em
que, no entanto, eu nunca tinha visto (a única
liberdade com os meus pais presos? Pois, para
exceção era a querida Tia Tei, que nos acompa-
mim, os dois estavam presos. Só depois soube
nhou por diversas vezes na época da clandesti-
que minha mãe estava escondida no Rio de Ja-
nidade). Eu e Andre moramos por lá até minha
neiro. Independentemente da minha opção na
mãe poder viver em liberdade.
época, eu não tinha escolha real a fazer.
Encontramo-nos, acho, somente um ano
Essa sensação paradoxal veio acompanhada
depois, na casa da tia Diva. Minha mãe esta-
por outra experiência que foi muito marcante
va magra, pálida, fruto da dieta forçada em
na minha adolescência. Estávamos em Belo
macrobiótica que teve de passar quando ficou
Horizonte quando dois ou três homens entra-
escondida na casa de conhecidos no Rio de
Janeiro. Seu corpo enfraquecido me chamou a ram na casa da vovó Isa dizendo que eram ami-
atenção naquela época. Uma imagem que eu gos de meus pais. Não me lembro exatamente
jamais esquecerei. quem foi me avisar das supostas visitas. Olhei
à espreita por uma das portas da sala e tendo
Foi em Belo Horizonte que pude de fato me a nítida sensação de que aquela visita vinha
tornar Priscila Almeida Cunha Arantes. Anos carregada de alguma ameaça, me escondi de-
antes, meu pai, quando ainda morávamos na baixo de uma das mesas redondas que havia

28 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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na sala de minha avó. Foi exatamente em volta Mas, talvez, um dos dias mais marcantes de
dessa mesma mesa que minha avó, minha tia e minha vida, foi o dia em que meu pai foi solto,
os dois visitantes sentaram-se para conversar. o mesmo da aprovação da Lei da Anistia. Ele
Fiquei ali um bom tempo a escutar a conversa descia a rampa do presídio, com uma peque-
que não vou esquecer nunca mais: a conversa, na mala na mão. Estávamos ali, novamente, a
em tom de ameaça – pois o que eles queriam família reunida, fora do espaço confinado das
saber era onde a mamãe estava – descrevia quatro paredes da prisão.
com minúcias e detalhes a tortura recebida
pelo meu pai: espancamento, pau de arara, cor- Hoje, tenho 47 anos e com muito orgulho me
po inchado... quase morte. Anos depois vim sa- chamo Priscila Almeida Cunha Arantes, filha
ber que esses visitantes faziam parte da equipe do Aldo e da Dodora, irmã de Andre, casada
de torturadores de meu pai. com Wagner e mãe de Tiago e Carolina.

Nessa época fui acometida por uma série de Para muitos, o nome é um bem. A continui-
desmaios, pequenos lapsos de consciência, tal- dade do nome como referente da pessoa pode,
vez um desejo real de esquecer, por um peque- em alguns casos, não se interromper com sua
no espaço de tempo, algo que me incomodava morte necessariamente. Alguns nomes perma-
em profundidade. necem vivos na memória de outros homens,
principalmente quando se referem a nomes
que contribuíram para a construção de uma
“Trago comigo esta história coletiva.

história marcada por Trago comigo esta história marcada por um


um duplo nome: um duplo nome: um nome clandestino e um nome
verdadeiro. Sinto orgulho dos meus pais: pes-
nome clandestino soas, nomes, que lutaram e contribuíram para
e um nome verdadeiro” a construção de um mundo melhor e que pos-
sibilitaram a mim, Priscila Almeida Cunha
Arantes, desfrutar da vida em liberdade! Andre aos 5 anos e Priscila aos 4 anos
no Parque do Ibirapuera em São Paulo, 1970
Meu grande refúgio, no entanto, eram as au- Priscila Guimarães Silva: presente!
las de pintura. Certa vez fomos à casa da tia
Leda. Em uma das salas de sua casa, vislum-
brei uma tela em branco presa num cavalete. PRISCILA ARANTES, formada em Filosofia pela Univer-
Ao seu lado, um pequeno livro que continha, sidade de São Paulo, é pós-doutora em Arte Contempo-
na sua capa, a imagem do carteiro de Van rânea pela Penn State University (EUA). É professora
universitária em cursos de graduação e pós-graduação
Gogh. Não tive dúvida: peguei um carvão e de-
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e dire-
senhei na tela em branco a imagem do pintor tora e curadora do Paço das Artes, Museu da Secretaria
impressionista. A partir desse dia Tia Leda me de Estado da Cultura de São Paulo. Entre suas publica-
matriculou em um curso de pintura. Esse con- ções destaca-se Arte @ Mídia: perspectivas da Estética
Digital, finalista do 48 prêmio Jabuti, Arte: História, Crí-
tato com o mundo das artes, nessa época, tal-
tica e Curadoria (org.). e Re/escrituras da Arte Contem-
vez tenha sido uma das molas propulsoras de porânea: História, Arquivo e Mídia (prelo).
minha profissão atual e de meu interesse pelo
mundo das artes.

Assim que voltamos de Belo Horizonte fomos


morar na Bela Cintra. Nessa época eu, minha
mãe e meu irmão íamos, com frequência, visitar
o meu pai no presídio Barro Branco. Lembro-me
da ambrosia, dos desenhos em pirogravura, das
conversas com o Ariston, das pinturas do Guer-
ra, da revista da polícia, da greve de fome vivida
pelo meu pai.

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Aldo Silva Arantes nasceu no dia 20 de de-
zembro de 1938, em Anápolis (GO). Iniciou suas ativida-
des políticas no movimento estudantil secundarista. Família Arantes
Estudante de direito da Pontifícia Universidade Cató- 1. Aldo, 25 anos, e Dodora, 24 anos,
lica, do Rio de Janeiro, foi eleito presidente da União em lua de mel, Poços de Caldas (MG), 1963
Nacional dos Estudantes (UNE) em julho de 1961. 2. Dodora grávida de Priscila com Andre no
colo em São Paulo, 1966
Em dezembro de 1963 casou-se com Maria Auxiliadora
de Almeida Cunha Arantes. Após o golpe militar de 31 3. Aldo com Andre recém nascido,
São Paulo, 1965
de março de 1964, que derrubou o presidente Goulart,
exilou-se em Montevidéu.
De volta ao Brasil em 1965, passou a viver na clandes- 2 3

tinidade. Em 1968, quando realizava trabalho político


junto aos camponeses no sertão de Alagoas, foi preso.
Após cinco meses e meio fugiu da prisão.
Em 1972, juntamente com a maior parte dos militan-
tes da AP, ingressou no Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), cujo comitê central passou a integrar.
Em dezembro de 1976 foi novamente preso quando par-
ticipava de uma Reunião do Comitê Central do PCdoB,
no bairro da Lapa, em São Paulo, episódio conhecido
como Chacina da Lapa.
Em julho de 1977, foi condenado a cinco anos de prisão.
Permaneceu preso até agosto de 1979, quando foi bene-
ficiado pela anistia aprovada pelo Congresso.
1
Em 1979, filiou-se ao partido do Movimento Democrá-
tico Brasileiro (MDB). Exerceu o mandato de deputado
federal por quatro vezes e foi constituinte em 1988.
Autor dos livros : História de Ação Popular – da JUC ao
PCdoB, co-autor, com Haroldo Lima (1984) ; O FMI e a
Nova Dependência (2002); Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento - em busca de um compromisso (2010); Alma em
Fogo – memórias de um militante político (2013).
[Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha


Arantes, a Dodora, nasceu em 5 de novembro de
1940, em Belo Horizonte (MG). Foi uma das fundadoras
da organização Ação Popular (AP), na década de 1960.
Em 1968 foi presa em Alagoas junto com seus filhos
Priscila e Andre. Após sair da prisão seguiu com a mili-
tância clandestina de combate à ditadura militar.
4 5 6
Foi uma ativa e importante militante da luta pela anis-
tia no Brasil. Participou da fundação do Comitê Brasi-
leiro pela Anistia de São Paulo (CBA/SP) e foi dirigente 4.Dodora e Andre com 2 anos
dos Movimentos Nacionais pela Anistia (1978-1982). Guarujá (SP), 1966
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em 5.Dodora e Priscila com 1 ano,
Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica Guarujá (SP), 1966
de São Paulo (PUC-SP). Psicanalista membro do Depar- 6. Andre com 2 anos, Guarujá
(SP), 1966
tamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
7. Andre com 3 anos e Priscila
Foi coordenadora Geral de Combate à Tortura da Secre-
com 2 anos, São Paulo, 1968
taria de Direitos Humanos da Presidência da Repúbli-
ca (2009-2010). Foi membro das Comissões de Direitos
Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São
Paulo e do Conselho Federal de Psicologia ( 2004-2008
e 2011-2013).
Autora dos livros: Pacto Re-Velado: Psicanálise e Clan-
destinidade Política (1994) e Tortura (2013)

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11

11, 12 e 13. Publicação na imprensa sobre a Queda


da Lapa, dezembro de 1976; histórico político
produzido pelos orgãos de repressão; foto
de Aldo, com sua mãe Maria de Lourdes Silva
Arantes (D. Quita) – documentos encontrados
nos prontuários de Aldo do DOPS no Arquivo do
Estado de São Paulo

12

8. Andre com 4 anos, Priscila


com 3, a priminha Ana e os 13
avós paternos, D. Quita e Sr.
Galileu em Anápolis (GO) dias
após a libertação da prisão em
Alagoas, 1969
9. Andre e Priscila na mesma
data acima
10. Históricos escolares com
os nomes frios: Andre e Priscila
Guimarães Silva

10

Solorio tem fugianis


accum, iscil ipient ut adi-
tatium aut aut unt, que
rest parcilitest pliquis
volupienis sim conse
velitiis dolut officillant
endit pos exererspedi
nis ni oditas ut et fugitat
la dolutem quidus
volore auditaq uodigent
od exceatur?

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À direita, Ato Político pela Anistia organizado, entre
outras pessoas, por Dodora, em 22 de agosto de 1979
Foto: Ricardo Malta
Abaixo, fichas do DOPS que retratam a vigilância
sobre os parentes de presos políticos mesmo após
a Anistia

Ao lado, portão de saída do Presídio do


Barro Branco em São Paulo. Aldo foi
beneficiado pela Anistia – foto
publicada no dia 30 de agosto de 1979 na
Capa da Folha de São Paulo

32 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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Uma conversa escrita
por Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

No início dos anos 1960 participei da fundação


da organização política Ação Popular, de matriz
católica, que ampliou suas posições no campo
marxista-leninista e passou a ser denominada
APML (Ação Popular Marxista-Leninista). Mais à
frente, a Organização abraçou concepções maoís-
tas que influenciaram política e ideologicamente
seus militantes e suas práticas. Casei-me com Aldo
Arantes, também fundador de AP, em dezembro
de 1963 e recebemos convite para integrar o go-
verno de João Goulart em Brasília.
Chegamos a Brasília em janeiro de 1964. No
dia 1º de abril de 1964 ocorreu o golpe militar. Eu
estava dentro da nossa casa em Brasília e, de re-
pente, a casa começou a tremer, o chão do quintal
tremia, vi ratos correndo na rua, para lá e para cá.
Um barulho diferente e trepidante provocado por
um desfile de tanques de guerra que seguia para
a Esplanada dos Ministérios. A partir de então co-
meçaram a ser editados os primeiros Atos Institu-
cionais. Aldo poderia ser cassado e preso. Saímos
de Brasília imediatamente, deixei tudo na casa.
Saímos de Brasília para uma longa noite que foi
terminar somente quinze anos depois. De 1964
até 1979, vivi entre o exílio, a prisão e a militância
clandestina severa. Passei a usar nomes frios com
identidades falsas. Nesse momento não tínhamos
filhos e nossa primeira decisão foi ir para o exílio.
Os exilados de primeira hora que tinham inten-
ção de voltar imediatamente ao Brasil seguiram
para o Uruguai, que era mais perto. Fiquei grávi-
da do meu primeiro filho, o Andre, que nasceu em
Montevidéu. Foi um dos primeiros filhos de exila-
dos políticos brasileiros, nasceu em 13 de junho
de 1965. Decidimos voltar logo para continuar no
país, a luta de resistência. Já no Brasil, na cidade
de São Paulo, em 1º de maio de 1966, nasceu nossa
Andre com 3 anos, Dodora com 28 e Priscila com 2, São Paulo, meses antes de
serem presos em Alagoas, 1968 filha Priscila.

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A situação política foi recrudescendo rapida- der. Vocês são professoras, seus maridos, gente de jaram-nos na ala dos oficiais. Na primeira noite
mente e houve uma decisão da APML: os militan- São Paulo. Vamos levar todo mundo. Resolveram almoçamos na sala dos oficiais, a contragosto.
tes e os dirigentes deveriam partir, como militan- que tínhamos que ir presas. Argumentamos sobre Em um desses dias, ao final da refeição, o oficial
tes clandestinos, para a integração na produção. as crianças, que queriam que deixássemos para do dia aproximou-se de mim e disse: “Estive con-
Aldo e eu seguimos para a integração na produ- trás. Afinal, depois de muita conversa, decidiram versando com minha esposa e como não temos
ção no campo. Tomamos um ônibus na rodoviá- que eu iria só com eles. Rosa ficaria com as três filhos, resolvi pedir que a senhora me dê seu fi-
ria em São Paulo e partimos para o interior do es- crianças. lho. Podemos criá-lo muito bem. Olhe bem para a
tado de Alagoas. O Andre tinha 3 anos, a Priscila senhora. Que futuro a senhora tem? Seu marido
tinha 2. Fomos para Água Branca. E de lá, para Partimos para uma viagem que me parecia está preso, a senhora está presa, ninguém da sua
um subdistrito de Água Branca, Pariconha. Era interminável. O tempo todo ouvi gracejos e família apareceu, não vai ter condição nenhuma
uma região de camponeses pobres e meeiros que perguntas. Não disse uma palavra. Chegamos a de educar esta criança”. Emudeci, não consegui
plantavam feijão. Maceió. Era dia 14 de dezembro de 1968. Fiquei responder, não gritei, não chorei, fiquei petrifi-
dormindo no quarto dos investigadores. Estava cada. Fui andando para trás, segurando o Andre,
Fomos morar com Gilberto, Rosa e a filha Rita, exausta. Entravam e saiam o tempo todo, falavam até sair da sala. Não voltamos a ver esse oficial,
de 7 anos, que nos antecederam na integração alto, faziam comentários. Perguntavam por Aldo, nunca mais entramos nessa sala. Pedimos para
nessa região. Tínhamos diferentes funções. Eu quando voltaria de São Paulo. Fiquei quatro ou almoçar na cozinha com os marinheiros. O resto
fui designada para ser professora de alfabetiza- cinco dias em Maceió. Fui levada de volta para do dia ficávamos no quarto. Depois conseguimos
ção de adultos na região. Era o ano de 1967. Atra- Pariconha. Um ou dois dias depois, Aldo chegou circular pela escola quando já havia terminado o
vessamos o ano e entramos em 1968. Tínhamos tarde da noite. Soube na estrada o que acontecera. expediente. Estávamos profundamente debilita-
o hábito de ouvir, todas as noites a Hora do Bra-
Nesta mesma noite, 22 de dezembro, fomos to- dos. Nessa época, estávamos novamente com a
sil. Anoitece cedo no campo, às 21 horas, já era
dos presos: Aldo, eu, Andre e Priscila, Gilberto, Rosa e a Rita, duas mulheres e três crianças. Du-
noite alta no dia 13 de dezembro de 1968. Ouvi-
Rosa e Rita. Prenderam também toda a liderança rou pouco a estadia aí. A Marinha não queria se
mos passos no jardim e no quintal. Na varanda,
camponesa militante. Passamos o Natal entre as envolver mais.
vozes de homens. Rosa e eu nos levantamos. As
três crianças dormiam. A porta da frente foi sa- cadeias de Água Branca e de Maceió. Começou Resolveram então nos levar para o hospital
cudida com violência. Abram a porta. Aqui é o uma noite longa, para nós, especialmente para os da Polícia Militar, no centro de Maceió. Era um
Coronel. Tínhamos acabado de ouvir no rádio, o pequeninos presos. Ficamos todos, nos primeiros hospital antiquíssimo, cheio de torres, perto da
decreto do A1-5 e mal havíamos assimilado suas dias no DOPS de Maceió, as crianças e eu na mes- cadeia pública conhecida como Presídio da Mor-
implicações, ao anotar apressadamente seus ar- ma cama e no mesmo quarto dos investigadores. te onde Aldo ficou preso com os demais compa-
tigos. Não houve tempo. Conhecemos na prática Depois do Ano Novo, Andre, Priscila e eu, fo- nheiros. Fomos confinados num quarto, sobre o
seu significado. Não abriremos a porta, responde- mos deslocados para uma delegacia de bairro. qual havia uma porção de histórias, era o quarto
mos. Estamos sós com as crianças. Com os gritos Apesar de a cela ter uma das paredes totalmente onde ficavam os desenganados. Um quarto gran-
e as violentas pancadas, na porta da frente, dos de grade, ficávamos sufocados, trancados o dia de, muito abafado, ao lado de um outro quarto
fundos e nas janelas, as crianças acordaram. A todo, sem que qualquer brisa ou vento amenizas- menor, sem iluminação, sem janela, cuja porta
gritaria aumentou, e com nossos filhos nos bra- se o calor. Tivemos problemas gravíssimos de dava para o quarto do capitão Fontes, que saía
ços, vimos a porta ser violentamente sacudida saúde. Todos os três desidratados tivemos esto- cedinho, voltava à noite.
e finalmente arrombada, a pontapés e golpes de matite e Priscila teve uma crise aguda de difteria.
fuzis. Entraram vários homens, não sabíamos a Os dias pareciam intermináveis. Não sabíamos
Quase não conseguimos nos alimentar. Priscila
princípio quantos. As lamparinas de querosene o que fazer com as crianças. Só podíamos sair
ficou magrinha, só aceitava leite em pó, às colhe-
estavam apagadas. Percebemos que eram muitos. do quarto por quinze minutos para as refeições.
radas. Os dois tiveram furunculose. Andre chegou
Nossa casa foi revirada. Colchões, armários pra- Conseguimos licença para um banho de sol, de-
a ter vinte furúnculos enormes e Priscila, outros
teleiras, tudo vasculhado. Perceberam que havia pois das 16 horas. Nesta hora, o pátio de descarte
tantos. Não tínhamos qualquer espécie de atendi-
apenas roupas, mantimentos e brinquedos. Onde do hospital não recebia mais o sol, apenas um fa-
mento médico ou de saúde. Ficamos, literalmente
estão as armas? perguntavam aos berros. Disse- cho fugidio que caía sobre os degraus da escada,
depositados, sequestrados até o final de janeiro.
ram que iam nos levar para Água Branca e depois onde as crianças ficavam sentadinhas, vendo ra-
Maceió. Temos ordens. Agora tudo é permitido. Depois fomos levados para a Escola de Apren- tos enormes brincarem de entrar e sair pelos res-
Foi feito um decreto e tudo o que achamos suspei- dizes de Marinheiros nos arredores da cidade. tos de pernas e braços de gesso, entre curativos
tos, vamos investigar. Gente suspeita, vamos pren- Um lugar cheio de coqueiros à beira-mar. Alo- usados, caixas vazias, bandagens, cacos de vidro,

34 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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tudo jogado no meio de um mato que crescia. A gente anos. As crianças foram para um parquinho da
dizia para as crianças que os ratos eram os primos do prefeitura e depois foram alfabetizadas em esco-
Jerry dos desenhos animados. Mesmo assim, com as la do estado e da prefeitura. Fizeram toda a esco-
energias recuperadas, não conseguimos cansá-los. la com nomes frios: Andre e Priscila Guimarães
Silva. Esse tempo teve fortíssimo impacto sobre
Dentro do quarto-cela, inventamos uma programa-
eles, pois já estavam maiores e percebiam que
ção rígida de ginástica, brincar de roda, joguinhos. De-
havia muito segredo e muito não dito sobre as
pois vinham as atividades de contar as tampas de bor-
coisas e as situações que vivíamos. Somente saí-
racha coloridas dos vidros de antibióticos, empilhar
mos da clandestinidade quando o Aldo foi nova-
caixas de remédio vazias, formar uma carreira com as
mente preso no episódio conhecido como Chaci-
serrinhas de seringas. Depois do almoço as crianças
na da Lapa que massacrou dirigentes do PCdoB
dormiam, e o que sobrava de tempo passavam dentro
então reunidos.
de uma banheirinha de plástico debaixo do chuveiro.
Às quintas-feiras visitávamos o Aldo na cadeia. De- Sobre a vida clandestina, posso afirmar que foi
pois de algum tempo apareceu uma advogada contra- uma experiência que até hoje reverbera na alma.
tada pelos nossos companheiros. Hoje percebo com mais clareza o quanto marcou
o Andre e a Priscila e a mim mesma. Tanto é que,
Quando finalmente conseguimos ir à primeira au-
quando retornei à universidade, após a anistia
diência da Auditoria Militar de Recife, Andre e Pris-
de 1979, fiz minha dissertação sobre a experiên-
cila fizeram tanta bagunça na Audiência que o juiz,
cia da clandestinidade política, através de uma
irritado, mandou que se retirassem da sala os três
abordagem psicanalítica. A incidência que teve
menores. Dra. Lygia lhes comunicou: “Excelência, es-
sobre a vida dos meus filhos, somente agora, pas-
tas crianças são presas. Foram presas em dezembro
sados quase quarenta anos é que posso perceber
juntamente com suas mães”. Fomos dispensadas, os
melhor, a partir do que eles mesmos contam em
homens continuaram presos. Saímos da Auditoria,
seus testemunhos. Sempre nos surpreendemos
voltamos para Maceió e de lá para São Paulo. Aldo
negativamente com as reverberações que a dita-
ficou preso ainda na delegacia de Maceió de onde
dura civil-militar impôs a todos nós e que ainda
fugiu juntamente com o Gilberto, em uma operação
continuam pulsantes.
montada por APML.
Exatamente dez anos depois, em dezembro de
1976, Aldo foi preso na Lapa, em São Paulo, no epi-
sódio conhecido como Chacina da Lapa. Andre e
Priscila, com 12 e 13 anos, passaram a frequentar no-
vamente os presídios, agora como visitantes de seu
pai, durante dois anos e seis meses até a Anistia de
1979. Eu me integrei de corpo e alma à construção da
campanha pela Anistia ampla, geral e irrestrita.
Sobre minha prisão com meus dois filhos tenho
hoje a clareza de que fomos sequestrados, não há
qualquer notícia da prisão das crianças, não consta
de nenhum documento. Consta meu julgamento e a
absolvição. Sobre eles, nada. Poderiam ter sido su-
mariamente sequestrados sem papéis que comprovas-
sem sua presença no cativeiro. Depois que saímos da
prisão e do Nordeste, voltamos para São Paulo, con-
tinuamos a militância clandestina, fomos morar nos
bairros mais periféricos, no Morro Grande, Itaquera,
Vila Formosa, e permanecemos clandestinos mais oito

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36 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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A felicidade interrompida
da “menina ruim”
por Rita de Cássia Resende

Em 1968, aos 5 anos de idade, fui morar


com meus pais Gilberto e Rosemary em um
do pelas calhas do prédio velho. Havia muita “Mães e crianças
sujeira e hoje sei que era lixo hospitalar jo-
povoado camponês chamado Pariconha, no gado a céu aberto no pátio do Hospital do ficamos mais de cinco
interior de Alagoas. Ali, eles eram chamados 20º Batalhão da Polícia Militar de Alagoas. meses presas. Para
de “Juarez” e “Rosa”.
Mães e crianças ficamos mais de cinco me- mim, representou uma
Minha mãe me explicou que eles deveriam
ser chamados por esses nomes para a nos-
ses presas. Para mim, representou uma eter-
nidade. Sei que sofri muitas perdas, mas sem-
eternidade. Sei que sofri
sa segurança e que isso seria nosso segredo. pre me recusei a aprofundar nesta questão, muitasp erdas,
Pelo que me lembro, apesar da pobreza do
lugar, as pessoas eram boas e eu brincava
talvez por fuga, medo... Apesar dos esforços mas sempre me
de meus pais, depois que saímos dali só con-
com a meninada como uma criança normal. segui me alfabetizar aos 9 anos de idade. recusei a aprofundar
Fui feliz ali até o dia que aconteceu algo que
uma criança não pode entender, nem su- Durante anos me fechei e não suportava po-
nesta questão...”
portar sem sentir pavor e insegurança. Foi lítica e polícia. Depois, entendi que a causa de
uma noite de pesadelo. Acordei com batidas meus pais era nobre. Lutaram por um ideal de
fortes na porta, gritos, depois porta caindo, justiça e igualdade social. Quando criança e
a casa sendo invadida por soldados forte- mesmo adolescente sentia que me tiravam o
mente armados. Hoje eu diria que foi um direito à vida. A advogada que nos defendeu
filme de terror. Depois, a prisão. E a falta de falou aos militares no julgamento que nós,
tudo: acabou o sol, as brincadeiras, comida crianças presas, éramos uma ameaça à segu-
pouca e ruim. rança nacional.

Eu gostava de correr, mas tinha que ficar O tempo passou e apesar de tudo que me
parada. Tínhamos quinze minutos para al- foi tirado, hoje sou uma pessoa feliz dentro
moçar em um refeitório que saía para um do possível. Tenho uma filha, Maria Tereza,
pequeno pátio. Corríamos para lá, a Priscila, e um neto de 2 anos, Joaquim, que propor-
o André e eu, crianças presas políticas, que- cionam muitas alegrias e completam minha
rendo brincar. Víamos ratos enormes subin- vida. Penso que hoje eles vivem em uma so-
ciedade melhor e que eu inconscientemente
À esquerda, Rita quando criança contribuí para isso.

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Fragmentos de memória
Em Pariconha lembro que brincava de fa- Ela falou que eu precisava ir ao banheiro No cômodo que ficamos tinha pouco es-
zer carro de boi com cacto e palito de dente, então leu as cartas e jogou fora. paço. E ainda pisei em um prego enferruja-
fazia guerra de mamona. Ganhei um pote do. Nessa mesma prisão, um agente carce-
de barro para carregar água na cabeça, mas No mesmo lugar, andando no pátio da rário deu para mim, para o André e para a
quebrou. Brincava com coisas simples da prisão, vi várias celas pequenas e em uma Priscila os presentes que ele tinha ganhado
região, pois não tinha brinquedo. delas estava meu pai deitado em um ban- de Natal para seus filhos na Campanha de
co de madeira. Tentei a todo custo abrir a Natal. O que eu escolhi foi um barco azul
Na primeira prisão, lembro que chegou grade da cela, então no tanque ao lado ti- e branco. Isso significou muito para mim.
uma mala cheia de coisas. Fiquei desespe- nha uma faca enorme. Peguei a faca e falei Era como se eu visse o brilho de uma jóia
rada para ver o que tinha dentro. Por sorte, para o agente que eu ia matar todo mundo. na lama.
me deixaram pegar alguns brinquedos: um Ele olhou pra mim e disse “menina ruim”.
boneco chamado “Bonitão”, que vestia uma Fiquei muito brava aquele dia. Nesse dia,
roupinha azul e era de plástico, fogãozinho meu pai escreveu uma carta para mim por-
e panelinhas. Foi onde minha mãe achou que era meu aniversário. Até hoje tenho RITA DE CÁSSIA RESENDE nasceu em 1 de abril de
1962. É filha adotiva de Rosemary Reis Teixeira e
cartas de Goiânia com a verdadeira identi- uma cópia da carta. (Porque a original se Gilberto Franco Teixeira. É funcionária pública esta-
dade de meus pais biológiocos e escondeu. perdeu com o tempo). dual em Goiás.

Carta que Gilberto escreveu à filha no seu aniversário de 7 anos.


Pai e filha estavam presos

“A Ritinha tem apenas 7 anos de idade e está presa, juntamente


com sua mãe e seu padrinho, pelo governo. É uma ameaça
à segurança nacional. Hoje, 1o de abril (seu 7o aniversário),
decorridos mais de três meses, você vem me visitar no
“presídio da morte”, para onde fomos transferidos. Apesar de
sua proximidade, pois você se encontra numa outra prisão, a
enfermaria da polícia militar de Alagoas, a uma quadra de onde
me encontro, todas as dificuldades são encontradas para que
você não venha ver-me”

38 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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Álbum de família
1 e 2. Rita com 1 ano de idade,
em Goiânia (GO), 1963
3. Aos 9 anos, em Goiânia (GO)
4. Em Goiânia (GO), 1974
5. Rita e sua irmã Uliana,
em Brasília (DF), 1974
6. Rita (ao centro), no dia de seu
casamento, em fevereiro de 1981,
junto com a família
7. Rita (ao centro), com a família:
a irmã Uliana (primeira à esquerda), sua
filha Maria Tereza e seu irmão Juarez, em
Goiânia (GO), 1990
1 2

3 4 5

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2
1

Rosemary
osemary Reis Teixeira
nasceu em 26 de março de 1944, em
Goiânia (GO). Filha de Maria Reis
Resende e Joaquim Resende Barros.
Em agosto de 1962, conhece Gilberto
Franco Teixeira, com quem começa
a se relacionar (o casal segue junto
até os dias atuais). Influenciada pela
militância do avô, Pedro Doca, que foi
do Partido Comunista, iniciou sua mi-
litância na Juventude Estudantil Cató-
lica (JEC), em 1963.
Depois, passou a militar na organização
Ação Popular. Em 1965, ingressa no curso de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goias (UFG). Em
março de 1967, com o acirramento da repressão, Rose-
mary e Gilberto casam às escondidas e entram para a
clandestinidade. Em abril do mesmo ano, o casal e a fi-
lha adotiva Rita vão viver em Pariconha, interior de Ala-
goas. Lá, Rosemary passa a usar o codinome de Rosa e
Gilberto assume o codinome de Juarez Echeverria. Em
Pariconha fazem trabalho de base com os camponeses
do sertão alagoano. Rosemary atua na alfabetização
de camponeses por meio do método Paulo Freire e na
politização das mulheres da região. Em dezembro de
1968, é presa junto com sua filha e com Dodora Arantes
e seus dois filhos. Seu marido também é preso. Após
cinco meses de prisão, voltam para Goiás e seguem na
vida na clandestinidade.
Em maio de 1971, nasce a segunda filha do casal, Ulia-
na Reis Teixeira. Nessa época, Rita estava com 11 anos.
No mesmo ano Rosemary retorna à faculdade, onde é
impedida de colar grau com a turma sob o argumento
de que o histórico escolar dos dois primeiros anos não
foi encontrado. A colação de grau ocorreu somente
em 1988 quando, depois de anos de busca, um amigo
professor encontrou os referidos documentos “esque-
cidos” em uma gaveta da universidade. Em 1982 nasce
o terceiro e único filho homem do casal, Juarez (nome
escolhido em homenagem ao pai Gilberto por sua atua- 3
ção política com esse nome na clandestinidade). Juarez
viveu 10 anos e faleceu em em 1992. Hoje, Rosemary é
servidora pública estadual aposentada.
4

Gilberto Franco Teixeira nasceu em 18 de 1 e 2. Fichas e fotos de Rosemary e Gilberto


nos órgãos de repressão
junho de 1941, em Goiânia (GO). Filho de Anita Lombar-
di Teixeira e Adolpho Sindulpho Teixeira. Militante do 3. Reportagem sobre a militância do casal
em Pariconha (AL)
movimento estudantil secundarista do Liceu de Goi-
4. “Esta foto foi tirada em meados de 1984
ânia. Em 1963 inicia a militância na JEC junto com sua portanto 16 anos após termos sido arrancados
companheira Rosemary. No ano seguinte, ingressa na daquele lugar pela repressão. Quando
Faculdade de Direito da UFG. É eleito presidente do resgatamos o nosso direito de ‘ir e vir’
centro acadêmico XI de Maio, onde atua intensamente. voltamos à Pariconha para rever o povo
e o lugar. É difícil expressar em palavras a
Com o golpe militar de 1964, participa da luta do mo- emoção sentida. Foram três dias de intensa
vimento estudantil contra a intervenção Federal em movimentação. A mulher que está na foto
abraçada comigo é a Maria Rosa do
Goiás e a destituição do Governador. Em 1965, é preso
Nascimento conhecida como ‘Maria do Antônio
em São Paulo com mais 13 militantes da Ação Popular Agostinho’ que eu vi sair da obscuridade,
e levado ao DOPS. Em 1966, é decretada a prisão de Gil- se alfabetizar em nossas aulas noturnas e
berto em função de sua atuação no XI de Maio da Facul- se transformar em líder das mulheres de
dade de Direito. Assim, interrompe o curso e entra para Pariconha, juntamente com ‘Helena de Moça’
(que está na foto, na porta do Clube de Mães,
a clandestinidade para evitar a prisão. de blusa vermelha). Elas levaram em frente
Depois do período de trabalho de base junto aos campo- o trabalho iniciado naquele tempo, com
a garra que somente mulheres forjadas
neses de Pariconha e da prisão, já de volta a Goiás, Gil- na adversidade são capazes de ter”, diz
berto volta à universidade e termina o curso de direito. Rosemary Reis

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“Vivi as dificuldades da minha filha
como se fossem minhas”
por Rosemary Reis Teixeira

O ideal de uma pessoa jovem é muito forte. Eu tuações que foram frutos da minha escolha. Eu tilhei com ela na mesma intensidade. Em tempos
era jovem e possuía essa força. Desejava mudar, escolhi lutar por uma sociedade mais justa e sa- difíceis, vivemos momentos muito marcantes.
corrigir erros, fazer justiça. Lutar por um mundo bia que isso envolvia risco, mas o ideal nos mo- Devo registrar aqui um desses momentos. Faço
melhor, eliminar as diferenças. Ver pessoas des- via para a frente e o filho é parte de nós, não tem uma homenagem à solidariedade humana.
protegidas doía na minha consciência de jovem como separar a vida de pais e filhos.
A solidariedade é um sentimento que penetra
idealista, que acreditava ser possível transformar
O instinto de proteção de uma mãe não tem fundo na alma e que vive para sempre em quem
a sociedade e viver em um mundo mais justo.
limites e eu me via impedida de exercê-lo, impo- foi beneficiário dela. Eu vivi essa experiência.
Em função da repressão advinda da ditadura tente numa prisão com a minha filha sem saber o
militar, eu e Gilberto [Gilberto Franco Teixeira] Ao sair da prisão fui orientada a seguir para
que poderia acontecer no dia seguinte. A solução
tivemos de optar por deixar a vida normal e viver São Paulo com minha filha e encontrar, nessa ci-
foi viver um dia após o outro tentando minimi-
na clandestinidade. Isso naturalmente acarretou dade, em uma determinada praça, a pessoa que
zar o sofrimento da criança com um suprimento
mudanças radicais para nós e para nossa filha. me ajudaria naquele momento. Eu estava frágil e
muito grande de carinho, paciência, dedicação.
desorientada após cinco meses de prisão e tinha
Nessa época, Rita era uma menina de 5 anos, Foi uma experiência muito difícil. Quando a Rita
pouquíssimo dinheiro. São Paulo, em 1969, vivia
saudável, alegre, vivia em Goiânia, em um porto dormia, eu podia extravasar os meu próprios sen-
seus piores momentos de repressão.
seguro. Rodeada por uma família grande, muitos timentos: medo, angústia, ressentimentos, impo-
primos da sua idade, amigos. tência, receios. Apareceria uma doença amanhã? Sentada em um banco da praça com minha
O dente doeria? E se os militares tirassem a me- filha, vi se aproximar de nós e se apresentar,
Com a ditadura, para sobreviver à repressão, nina de mim? Ou me levassem para longe dela? aquele homem alto, de olhar bondoso que me
nós, Gilberto e eu tivemos que adotar outra iden- Nossa família em Goiânia não sabia da nossa pri- inspirou confiança. Seu nome era João. Tem-
tidade: “Juarez e Rosa”, e nos mudamos para o são porque fomos presos com outra identidade. pos depois soube que se tratava do Paulo Stuart
sertão alagoano. Não havia como esperar ajuda. O que restava era Wright, ex-Deputado Federal pelo Paraná, tor-
Essa mudança de vida, o convívio com pessoas apreensão e temor, dia após dia. Se os militares neiro mecânico e líder operário que estava sen-
muito pobres (camponeses sem terra e sem o mí- descobrissem nossa verdadeira identidade tudo do caçado por toda a cidade. Andamos a pé por
nimo necessário à sobrevivência) foi o lado bom, poderia piorar ainda mais. um longo tempo e nos lugares onde o clima de
o lado benéfico de toda essa história. Aprendi O pai da Rita, Juarez (Gilberto) também pre- guerra se acalmava ele carregava a Rita no colo e
muito nessa época, principalmente em termos de so em outra unidade carcerária, conquistou a demonstrava a ela todo o seu carinho. Em outros
relacionamento humano. Por incrível que pareça, confiança de um agente e através dele conse- momentos, ele caminhava à frente e nos orienta-
aprendi com a Rita, a criança que imediatamente guiu uma advogada para nos defender. Essa foi va a segui-lo à distancia até chegarmos à casa de
se integrou com todos, com a criançada do lugar, a fagulha de luz diante daquele futuro incerto. sua irmã onde nos deixou em segurança.
com a pobreza, com a alimentação diferente e É com agradecimento e grande carinho que falo Essa lembrança me emociona muito, prin-
escassa. Aprendeu a brincar com as coisas que dessa jovem advogada, destemida, valente, que cipalmente por saber que pouco tempo depois
o lugar oferecia. Para crianças, não existem fron- sem obter qualquer vantagem financeira evitou ele foi preso e torturado até a morte. Deixo mi-
teiras ou obstáculos para se viver com as diferen- que o pior acontecesse. O nome dela é Maria nha homenagem ao grande homem Paulo Stuart
ças, seja de cor, religião, situação econômica e Ligia Januzzi Jablonca. Wright que muito lutou pelo povo brasileiro.
social. A relação social é profunda, pura, sincera.
Eu já me norteava por esses princípios, mas vi Após cinco meses de prisão, conquistamos a Hoje estamos aqui, vivas, minha filha Rita e eu,
através da Rita que a prática vai muito além da liberdade, mas não o direito à vida normal, pois para contar essa história. Quantos ficaram pelo
teoria, tudo é muito simples e verdadeiro. Se nós, tivemos que viver com várias restrições por mais caminho, quantos tiveram seus sonhos rompidos,
adultos, aprendêssemos mais com as crianças, alguns anos. Tive, como mãe, que lutar para ajudar quantas vidas perdidas.
certamente teríamos um mundo melhor. minha filha a vencer seus medos, inseguranças, li-
mitações, inclusive na aprendizagem escolar pois Dizem que o tempo cura todos os pesares.
Se eu pudesse, falaria somente do lado bom da Acredito que as feridas provocadas pelas atroci-
ela somente se alfabetizou aos 9 anos de idade.
história mas não seria a história verdadeira. O es- dades da repressão nos tempos da ditadura per-
trago foi muito grande. A repressão militar des- Muitas coisas ainda poderiam ser ditas, pois a manecerão abertas para sempre na lembrança
truiu sonhos e projetos de vida que previam uma missão de uma mãe é ver o filho se realizar como de todos aqueles que foram atingidos, seja pela
vida digna para todos. Causou muitas feridas e pessoa e o trabalho para alcançar esse objetivo perda da liberdade, pela infância roubada ou pela
deixou muitas cicatrizes. nos acompanha durante toda a vida. morte prematura de muitos cujos familiares não
Minha experiência de mãe nessa época foi Vivi as dificuldades enfrentadas pela minha fi- tiveram sequer a chance de enterrá-los com a
muito sofrida. Sofri por ver a Rita passar por si- lha como se fossem minhas. As conquistas eu par- dignidade que o ser humano merece.

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“Por que você é tão tristinha?”
por Marta Nehring

Eu nasci em janeiro de 1964, o ano do Gol- tória política dos meus pais e esta, por sua
pe. Minha mãe, à época, tinha 20 anos e es- vez, à trajetória da ALN – Ação Libertadora
tudava Ciências Sociais na USP, que nessa Nacional. Inclusive, se eu tenho algum avô
época ficava ainda na Maria Antônia. Meu paterno, é o Toledo, Joaquim Câmara Fer-
pai, também jovem, trabalhava na Pfizer, reira, que estava sempre em casa e a quem
como técnico industrial e fazia pós-gradua- reencontramos em 1969 em Havana, Cuba.
ção em Economia, na USP. Ambos eram de
esquerda e militavam juntos, porém apenas No que diz respeito à repressão política,
o meu pai partiria para a luta armada. não me lembro de nenhum evento especial-
mente traumático. Ainda assim, até hoje
Minha mãe teve uma criação liberal. Meu tenho pesadelos horríveis. Com frequência
avô era um livre pensador, foi dono de livra- acordo – anteontem mesmo aconteceu – com
ria. E a minha avó, que tivera um pai repres- a certeza de ter alguém
sor e violento, teve por no quarto. Depois fiquei
princípio jamais levan- “No que diz respeito sabendo que, numa das
tar a mão para os filhos.
Juntando os dois lados, à repressão política, vezes em que a polícia
esteve em casa, reviran-
resultou que eles cul- não me lembro de do tudo, entraram no
tivaram a irreverência quarto onde eu dormia,
como modo de ser. Tan- nenhum evento acho que devia ter uns
to, que o meu tio João, especialmente 4 anos. E me lembro, na
irmão mais velho da mi-
nha mãe, também entra- traumático. Ainda mesma época, de chegar
na vila onde a gente mo-
ria para a guerrilha. Já assim, até hoje rava, no Itaim, e as crian-
na família do meu pai
o espírito era outro. Mi-
tenho pesadelos ças virem correndo me
contar que a polícia tinha
nha avó vinha de uma horríveis” estado na minha casa.
história triste, perdera Teria sido quando meu
o marido cedo, quando pai foi preso? Não sei se
meu pai tinha apenas 3 anos de idade – ele tem a ver, mas o fato é que até hoje acordo
era o primogênito. Meu avô paterno morreu com essa sensação de ter alguém estranho
num desastre aéreo na Baía da Guanabara, no quarto.
deixando minha avó viúva e grávida do ter-
ceiro filho. Aliás, toda vez que eu pouso no No meu aniversário de 5 anos, meu pai con-
aeroporto Santos Dumont, morro de medo. seguiu sair da prisão – ele foi liberado, por al-
guma razão. Tinha uma festinha na casa da
Enfim, nasci e logo depois veio o Golpe. De minha avó e eu me lembro dela chamando
forma que minha infância foi ligada à traje- “Marta, tem uma surpresa para você”. Ela me
levou até o andar de cima e lá estava meu pai.
Marta e sua mãe Maria Lygia
Guardo a imagem dele ali, de camisa verme-
em Cuba, 1970 lha, sorrindo, pronto para me abraçar.

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Depois só fui revê-lo em Cuba, para onde adestrada a não me fazer de coitadinha, a se- finalmente o lado de lá atendia, tinha que fa-
partiu ao fugir do Brasil. Ele fazia treina- guir adiante e olhar para frente, hoje me de- lar rápido, porque era muito caro. De forma
mento militar e minha mãe e eu fomos para paro com um rombo enorme. Talvez o mais que ligar para o Brasil era ao mesmo tempo
lá, também. Mas mesmo em Cuba, nós de- terrível seja que nunca me permiti sequer uma glória e um tormento: só dava pra dizer
moramos para encontrá-lo, pois ele estava imaginar o que teria sido nossa vida se meu “Vovó, tô com saudade” e tinha que desligar.
nas montanhas e nós em Havana. Lembro pai não tivesse morrido. Esse é o legado mais Era um negócio de louco. Acho que o mais
de uma ou outra cena com ele e de sua preo- estranho: perdi o espaço do sonho. É certo excruciante, durante o exílio, foi a saudade
cupação em me passar valores éticos: o que que a morte do meu pai é uma questão de da família, que ficara no Brasil, e do meu pai.
é certo, o que é errado; cuide de suas coisas; Estado: foi morto porque combateu um regi- Foi horrível. Mas eu me adaptei e afinal fui
ajude a sua mãe; não dê trabalho; faça a sua me ditatorial. Mas mesmo assim, sem ele... A feliz, aprendi várias línguas, fiz amigos nas
ginástica; limpe os seus lápis de cor; não vida ficou mais árida. escolas que frequentei. Então veio o Golpe
misture as cores da aquarela. Aliás, a aqua- de 1973 e tivemos que fugir do Chile.
rela eu guardo até hoje e os lápis de cor tam- “Tenho pensado muito
bém. Acredite! Todos limpinhos. E assim o E assim voltamos para a França. Era adap-
que mais lembro dele é essa tentativa – hoje
sobre quem era meu tação o tempo todo: língua, escola, colega,
entendo – de ser pai. No meio daquela corre- pai e o tamanho da dor vizinhança. Mas eu também fui feliz nesse
ria toda, ele tentando me dar um norte. retorno à Europa. Primeiro, era ótima aluna e
de tê-lo perdido, sobre querida pelos meus colegas. Ademais, ser exi-
E teve aquele episódio no Malecón – para o que significou ter lado político era bem-visto, eu não precisava
quem não sabe, o passeio à beira-mar de Ha- mentir sobre minha identidade, podia dizer
vana. Como estava programado que meu pai crescido sem pai” que meu pai era um guerrilheiro que morreu
voltaria ao Brasil, para retomar a luta, ele de- na luta contra os fascistas. Os pais dos meus
veria mudar de identidade: “Teu pai vai apa- Tempos depois do meu pai voltar ao Brasil, coleguinhas achavam o máximo: “Oh, que
recer disfarçado”, me disseram. E toca minha clandestino, minha mãe e eu fomos para a legal! Ela é filha de guerrilheiro”. Mas eu aca-
mãe, eu e mais um cubano (cujo nome esque- França. Ele foi assassinado quando nós ain- lentava o sonho de voltar para o Brasil. Tinha
ci), esperando meu pai. E aí vinha vindo um da estávamos em Cuba, conforme falei, mas muita, muita saudade da minha família. E
negão de “dois metros e meio” e os adultos não soubemos. Foi enterrado pela repressão mesmo sendo bem quista, continuava sendo
brincavam: “Ah, esse é o teu pai”. Detalhe: o no cemitério da Vila Formosa, com nome estrangeira. Cheguei a brigar na escola com
meu pai era loiro de olho azul. Eles se diver- falso. A polícia só contou da sua morte me- uma menina xenófoba. Em suma, o exílio não
tindo à minha custa. Eu ficava olhando “Não. ses depois, quando já estávamos na França, era só glória, também havia aqueles que não
Não é o papai”. Aí vinha um anão, “Esse é o o reconhecimento foi feito por meio da arca- iam com a sua cara porque você era brasileira
teu pai”. Não foi só tragédia. Pensando bem, da dentária, não permitiram autópsia. Lem- e, pior ainda, filha de comunista.
até que podia ser muito engraçado. E, de re- bro da minha mãe e da minha avó chorando
pente, para minha surpresa, apareceu meu e eu, na verdade, acho que estava confusa, Voltamos para o Brasil em 1975, ainda
pai ali na calçada... A única diferença era o não entendia direito, pois chorávamos um durante a ditadura. Para minha enorme de-
cabelo pintado de preto. morto que já estava ausente há meses e sem cepção, foi quando a coisa realmente ficou
um corpo do qual eu pudesse me despedir . horrível. A começar, não podia dizer quem
Finalmente ele viajou e mandou cartas dos eu era. Tinha que mentir que meu pai havia
países por onde passou antes de aportar no Aí começou o exílio e... Sei lá, eu tinha que morrido num acidente de automóvel e que
Brasil, Checoslováquia e depois Itália. A gen- me adaptar, ponto. Tempos depois o socia- éramos uma família de diplomatas, daí mo-
te não sabe exatamente a data na qual ele de- lista Salvador Allende foi eleito presidente rarmos no exterior. Se alguém perguntasse
sembarcou no Rio, mas sabemos que, na noi- e lá fomos nós para o Chile, minha mãe, o mais alguma coisa, mudava de assunto.
te em que foi assassinado, eu tive uma febre segundo marido dela e eu. O Chile era per-
muito grande e fui parar no hospital, ainda tinho do Brasil, a família poderia nos visitar Pra completar, em 1974 teve a Revolução
em Havana. E essas coincidências marcam. e os telefonemas seriam bem mais baratos. de Abril, em Portugal, que acabou com a
Hoje parece ridículo, mas, na época, para ditadura do Salazar e libertou as colônias.
A bem da verdade, ultimamente tenho pen- fazer uma chamada internacional tinha que Um momento histórico maravilhoso, sem
sado muito sobre quem era meu pai e o ta- pedir para a telefonista e esperá-la comple- dúvida, porém que redundou na vinda a São
manho da dor de tê-lo perdido, sobre o que tar a ligação, o que podia demorar horas. Paulo de levas de direitistas egressos tanto
significou ter crescido sem pai. E apesar de Enquanto isso, ficava todo mundo de plan- de Portugal quanto da África. Ou seja, não
ter negado essa dor a vida inteira, porque fui tão ao redor do telefone de bakelite. Quando só eu não podia contar quem eu era, como

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tinha que aguentar na minha classe angola-
nos, moçambicanos e portugueses brancos
em português, eu respondia em espanhol. Na
época, tudo isso me parecia muito natural.
“A Aliança Anticomunista
de extrema direita, que eram vistos como Brasileira mandou
Mas voltando ao Brasil, o fato é que so-
“os coitadinhos obrigados a abandonar suas
casas por culpa dos comunistas”. E havia brevivi. Mas é difícil avaliar o quanto isso uma carta à minha mãe
aquele clima opressivo de ditadura, que é custou... Eu era menos alegre que os meus ameaçando a mim, caso
colegas, não conseguia ter aquela coisa
tão difícil de explicar para quem não viveu.
que brasileiro tem, de abraçar todo mundo. ela não parasse com
Esse “não poder dizer quem se é” fica terri-
velmente entranhado na gente. Sentia-me terrivelmente francesa. Primeiro, a militância”
Logo minha mãe passou a escrever no
Movimento e no Em Tempo, que eram jornais
de esquerda. A AAB (Aliança Anticomunista
Brasileira) mandou para ela cartas ameaçan-
do a mim, caso não parasse com a militân-
cia. Então ela achou por bem me botar numa
escola de rico, acreditando que ali eu estaria
protegida. E lá fui para o Nossa Senhora do
Morumbi – antigo Des Oiseaux – um colégio
de freiras onde o pesadelo bateu o auge, por-
que convivi com a juventude do milagre bra-
sileiro endinheirado, para quem a ditadura
era uma glória. Enfim, eu era a pessoa errada
no lugar errado.

No primeiro colegial me transferi para o


Colégio Palmares, que pelo menos era uma
escola de esquerda, onde os professores
sabiam mais ou menos quem eu era, o que
facilitou muito minha vida. Lá eu estudava
com os filhos da Dodora, o André e a Pris-
cila Arantes. Mas a gente sequer se cum-
primentou no intervalo ao longo dos dois
anos em que estudei lá! Eram tão sérias as
regras de segurança, era tanto o medo, que
nunca trocamos uma palavra. Inclusive, eu
evitava contato para não ser vista perto de-
les, e vice-versa, acho eu. Convém deixar
claro, eu não me sentia perseguida. Eu me
sinto, até hoje.

Mas as obrigações dessa quase clandesti-


nidade não eram uma imposição. Era uma
questão de sobrevivência. Em Cuba, por
exemplo, eu tive nome falso, Sofia, e passava
por portuguesa. De tal forma que – eu descre-
vo esse episódio no filme 15 Filhos – eu fui
capaz de encontrar meu pai no elevador do
hotel em que morávamos e fingir que não o
conhecia. Eu tinha apenas 5 anos de idade.
Carta enviada à mãe com
No hotel, quando as pessoas falavam comigo ameaça à Marta Nehring

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porque de fato tinha uma formação europeia, num regime de exceção. Logo depois de os Mas enfim, quando surgiu a necessidade
mais reservada fisicamente. Segundo, não integrantes serem nomeados, tornou-se ne- de organizar a mesa para debater a ques-
entendia da onde vinha aquela alegria toda. cessária uma pressão pública para que sua tão dos filhos, fui procurar a Maria porque
Para mim era inconcebível como as pessoas atividade fosse efetivada. Aliás, como está a gente “tinha aquela história em comum”
podiam estar risonhas, felizes, tão abertas acontecendo em relação à Comissão da Ver- e ela trabalhava efetivamente com cinema.
umas com as outras! E assim eu fui me sen- dade, com as devidas diferenças: a sociedade Decidimos gravar depoimentos de vários
tindo ainda mais excluída, porque não dava pressionando o governo por resultados. “filhos” e depois editar para, quem sabe, jun-
conta de ser tão feliz quanto eram as pessoas tando as memórias, que a gente conseguisse
ao meu redor. Eu era aquela que estava sem- Assim foi que a minha mãe organizou um passar para as pessoas da plateia algo que
pre de cara fechada. E isso me era cobrado: evento na UNICAMP, “A Revolução Possí- resultasse no retrato de uma experiência co-
“Por que você é tão tristinha?”. vel”, para acender o debate. Estavam lá or- mum – que nós mesmas não sabíamos qual
ganizações de direitos humanos, familiares era, pois cada uma vivera “aquele história”
E assim fui tocando a vida até que engravi- dos mortos e desaparecidos, ex-guerrilheiros no mais absoluto isolamento.
dei da minha primeira filha, a Cleo, em 1991. etc. Eu fiquei a cargo de montar uma mesa
Foi quando senti a urgência de recuperar a para debater a questão dos filhos. O que era Mas uma coisa era certa: todo mundo tinha
história do meu pai. Não foi a primeira vez um problemão, porque eu só dispunha das as suas memória de infância. Contudo, a me-
que fizemos essa tentativa, claro. Por volta de minhas memórias de infância. Quem tinha o mória é uma coisa tortuosa e nem eu, nem
1977, estimulada pelo exemplo da família de que dizer eram nossos pais, que haviam op- a Maria, íamos sentar diante da plateia para
Vladimir Herzog, que havia entrado com um tado pela luta e poderiam fazer um balanço falar das nossas pequenas lembranças. Era
processo contra o Estado, minha mãe procu- da situação. necessária uma síntese. O primeiro passo foi
rou um advogado para provar que meu pai fazer uma autoanálise: o que, das nossas in-
também fora assassinado. Mas este advogado “Por volta de 1977, fâncias, tinha a ver com a opção política dos
nos disse que pelas vias da justiça criminal estimulada pelo exemplo nossos pais? Ou seja, nós tentamos desco-
isso nunca seria possível, porque faltavam brir o que era específico da nossa experiên-
testemunhas. Ou seja, continuei com o ates- da família de Vladimir cia sendo a Maria filha de ex-presos políticos
tado de óbito de um suicida, no qual constava Herzog, que havia entrado e eu de um guerrilheiro assassinado, que vi-
que meu pai se enforcara com uma gravata vera o exílio.
fantasia no Hotel Pirajá. Continuei a carregar com um processo contra
O pessoal da Comissão dos Familiares de
comigo a mentira oficial, literalmente. o Estado, minha mãe Mortos e Desaparecidos Políticos, sobretudo
Quando fiquei grávida da minha Cleo, sur- procurou um advogado a Amelinha e a Crimeia, nos ajudou a con-
giu desejo de recuperar a história da famí- tatar outros “filhos”. Gravamos com quem
lia. Cheguei a conhecer o malfadado Hotel
para provar que meu pai pôde ir nos dois dias de estúdio que a Maria
Pirajá, que se tornara uma pensão. A pesqui- também fora assassinado” conseguiu emprestado. Optamos por fundo
sa resultou num projeto de filme, no qual con- neutro e exibir em preto e branco, para uni-
taria a história do meu pai: Procura-se uma Foi aí que entrei em contato com a Maria formizar ao máximo a imagem, aplainando
Testemunha era o título. Mostrei o roteiro Oliveira, filha de um casal de ex-presos po- as diferenças de tipo físico, cor da roupa,
para meu querido padrinho Juca Kfouri, que líticos, Eleonora Menicucci e Ricardo Pra- cenário de fundo etc. A proposta foi anular
deu a dica: o mais interessante seria contar a ta. Maria e eu éramos do mesmo grupo de as diferenças para destacar as falas e, assim,
história para os jovens, que ignoravam o que amigos, a gente já tinha até passado férias constituir um corpo de depoimentos capaz
acontecera durante a ditadura militar. Enga- na Bahia, na mesma pousada. Os amigos co- de reproduzir uma experiência comum. E aí
vetei o projeto, mas o roteiro acabou sendo mentavam em baixa voz, para mim, que ela saiu o 15 Filhos, o filme que não era pra ser
útil como o primeiro passo para a realização tinha uma história parecida com a minha. filme, que foi exibido em março de 1996 na
do dossiê sobre meu pai, que anos depois E eu sabia, pela minha mãe, que era filha UNICAMP, e depois percorreu o mundo e
encaminhamos para a Comissão Especial de presos políticos. Do lado da Maria, acho ganhou prêmios.
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. que foi a mesma coisa. Mas, entre nós, nun-
ca tocamos no assunto. O engraçado é que Eu comecei este depoimento falando sobre
A criação dessa Comissão Especial, em os amigos ficavam discretamente espiando a dor, o trauma, o buraco. O 15 Filhos foi o mo-
1995, no governo de Fernando Henrique Car- quando a gente conversava, para ver se saía mento no qual os “filhos” descobriram que
doso, marcou uma nova etapa da recupera- “aquele” assunto, e as duas mudas. Porque tinham uma experiência coletiva. Faziam par-
ção da verdade: ganháramos um foro para essas coisas de clandestinidade, de sigilo, te da mesma tribo. Para mim, foi o primeiro
avaliar os crimes cometidos pelo Estado, elas colam. Não tem como sair falando. passo em busca da minha identidade, porque

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ficava sempre a dúvida: eu era “tristinha” por- ra a religião africana, recusando-se a ser ba-
que nasci assim, ou como resultado da clan- tizada. Era uma revolucionária nata, aliou-se
destinidade, exílio etc.? É muito difícil sepa- à Revolta dos Malês e à Sabinada. Quando
rar o que é da índole e o que é da vida. Tem Luiz Gama tinha cerca de 10 anos de idade,
gente que é tímida. Tem gente que é bom alu- ela foi deportada para o Rio e, ao que pare-
no. Você não é tímido e bom aluno porque o ce, presa quando fazia um ritual de candom-
teu pai morreu na tortura, entendeu? blé. Desde então desapareceu, junto com os
demais participantes do ritual. A verdade é
Quer dizer, qual era a minha identidade? O que desaparecido político, nesse país, tem
que era meu e o que era da história? Realizar faz tempo. Mas Luiz Gama logrou superar a
o 15 Filhos ajudou muito. E acho que foi um dor e foi ser advogado, mesmo sendo negro
passo importante para entender que a gente, em tempos de escravidão. Se hoje não é fácil,
apesar de não ser ativa na história – a gente imagina naquele tempo?
era “filho” –, temos um legado difícil de admi-
nistrar, exatamente porque ele independeu da
nossa escolha. Na verdade, o 15 Filhos foi um
“O 15 Filhos foi o
tremendo alívio. Pelo menos para mim, toda momento no qual os
vez que assisto o filme fico alegre, é uma an-
gustia a menos: “Ok, eu não estou mais sozi-
‘filhos’ descobriram
nha. Eu faço parte desse grupo. Essa é a minha que tinham uma
turma”. Não sou o único ET. Têm vários etezi- experiência coletiva”
nhos espalhados por aí.

Mas é um processo. E se nem todo processo Mas porque estou falando da questão da
é lento, esse em todo caso o foi, e ainda está violência nestes termos? Porque a violência,
em curso. Após mais de trinta anos de terapia, para nossa sociedade, não é um detalhe. A
descobri que carrego em mim dor e violência cada geração somam-se os “desaparecidos”
que não consigo processar. Tendo a crer que da repressão gerada por um Estado que tem
ter vivido uma infância assombrada por uma por prática perpetrar o terror, de uma polí-
instância arbitrária a ponto de matar meu pai, cia que tortura e some com as pessoas, e o
me expôs a uma tremenda fragilidade e po- pior é que muitas vezes o policial também é
tencializou todos os medos. E talvez a pior se- negro, também é bisneto de escravo e carre-
quela dessa violência seja a própria violência ga dentro de si uma violência que ninguém,
que sinto em mim agora. A verdade é que eu no fundo, consegue engolir, quem dirá dige-
não aceitei o que foi feito à minha família. Se rir. E assim vamos, tentando ser felizes. Afi-
engoli, não digeri. nal, não é o samba filho da dor?
Essa é, acho eu, a natureza profunda da
Hoje, leio minha dor e minha tristeza no
violência que está aí a nos assombrar. E é
olhar das minhas filhas, toda vez que entro
por este motivo que eu acredito que vale a
em erupção. Tanto, que não precisou muito
pena falar disso para vocês. Porque se eu
para convencê-las a participar comigo das
não visse em mim o horror... Talvez não con-
Clínicas do Testemunho. E para mim é muito
seguisse entender as suas raízes em nossa
importante que elas ouçam os depoimentos
sociedade. E acredito que é algo que mere-
de outras pessoas do grupo de terapia como
ce ser olhado, a fundo, se pretendemos fazer
forma delas me entenderem, da mesma for-
do Brasil um país melhor para se viver.
ma como eu preciso do olhar delas para me
entender.
MARTA NEHRING nasceu em São Paulo, em janeiro de
Outro dia minha filha caçula, Sofia, me 1964, filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartim
mostrou a biografia do advogado e poeta de Moraes. Estudou literatura e cinema, trabalha como
Cenas do documentário 15 Filhos, de Maria de Oliveira
roteirista de cinema e televisão.
Luiz Gama, que estava lendo para a escola. e Marta Nehring, que retrata a época da ditadura
militar no Brasil por meio da memória dos filhos de
Ali consta que a mãe do Luiz Gama mantive- miltantes presos, mortos e desaparecidos

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1 2 3

Álbum de família
1. Norberto Nehring, morto em
24 de abril de 1970
2 e 5. Marta e a mãe Maria Lygia,
em São Paulo, 1964
3. Marta e o pai Norberto,
em São Paulo, 1964
4. Ficha de Norberto do DOPS
6. O casal Norberto e Maria Lygia
com Marta, em São Paulo, 1964

5
4

tasse trabalhar enquanto seguiria os es- (...) Especialmente dotado para matemática, Norberto
tudos universitários à noite. se distinguiu na faculdade recebendo várias ofertas para
ser instrutor (...)
Norberto foi meu primeiro namorado, aos
16 anos. Juntos começamos a participar Uma vez formado na USP (...), começou imediatamente a
da vida intelectual nos primeiros anos da década dos trabalhar em planejamento econômico, no Grupo de Pla-
sessenta (...) nejamento Integrado – GPI, um dos primeiros do gênero,
Norberto Nehring nasceu em 20 de setem- Em 1963, começa nossa vida adulta: Norberto já traba- formado por economistas e arquitetos competentes (...)
bro de 1940, em São Paulo (SP). Era o filho mais velho lhava, entramos ambos na USP (ele, Economia, e eu, Ao mesmo tempo, sua militância na ALN intensificava-
de Walter Nehring e Nice Monteiro Carneiro Nehring. Ciências Sociais) e nos casamos. Em janeiro de 1964 -se. Integrava o grupo da “casa de armas”, dado seus co-
Morto em 24 de abril de 1970. Militante da Ação Liber- nasceu Marta (...) nhecimentos de química e a enorme confiança pessoal
tadora Nacional (ALN). Mas 1964 também trouxe tristezas: o golpe militar de que nele depositava a coordenação da organização (...)
Era economista e professor da Universidade de São 1º de abril. (... ) Tínhamos ingressado no PCB assim que Na manhã do dia 7 de janeiro de 1969 uma cena insólita
Paulo. Maria Lygia Quartim de Moraes, sua esposa, entramos na faculdade. perturbou a tranquilidade da vila em que morávamos:
escreveu uma pequena biografia a seu respeito: Filiei-me primeiro, o que era fácil, na medida em que a nossa casa foi cercada por um grupo de policiais do
Norberto ficou órfão de pai muito cedo, mal chegara esmagadora maioria dos meus colegas já pertenciam DOPS, que levaram Norberto preso. Logo que foi solto,
aos 4 anos. Foi criado, assim como seus dois irmãos ao PCB. Na Faculdade de Economia as coisas eram bem após mais de dez dias na carceragem do DOPS, Norberto
menores, pela mãe e pelos avós maternos (...) mais complicadas: a esmagadora maioria do corpo do- “passou para a clandestinidade” sabendo que voltaria a
cente era de direita. (...) Foi através do marido de uma ser preso e torturado como aconteceu com todos os acu-
Uma pessoa marcante na sua adolescência foi um vi-
colega minha, que por coincidência era colega de Nor- sados do mesmo caso.
zinho, judeu-comunista e empresário, Simão, que lhe
berto, que o contato com o PCB concretizou-se (...)
revelou as atrocidades nazistas e o despertou para a Muitos dos acusados estavam sendo brutalmente
causa do socialismo. Norberto sempre foi interessado Norberto militou no PCB até a ruptura do grupo Mari- torturados e houve uma tentativa de suicídio numa tar-
e aplicado. Estudou nas boas escolas públicas da épo- ghella – passou, então, a fazer parte do grupo que tra- de em que fui visitá-lo. Além da equipe do DOPS, Nor-
ca. Terminando o ginásio, optou por um curso técnico balhava diretamente com Joaquim Câmara Ferreira, “To- berto foi interrogado por um “polícia federal”, que já
de química industrial no Mackenzie que lhe possibili- ledo” ou “Velho”, na coordenação da ALN em São Paulo. gozava de grande consideração entre os torturadores do

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7 8

7 e 8. Marta em
Itanhaém, litoral de
São Paulo, 1967
9. Marta e Maria Lygia,
Cuba, 1970
10. Marta e os pais,
Norberto e Maria Lygia,
interior de São Paulo,
1968

9 10

DOPS, e que veio a se tornar muito conhecido no país: tos, seu sogro foi até o hotel e lá soube que ali nin- dicalmente a vida do país e de seus pais. O casal inte-
Romeu Tuma. guém se suicidara. O próprio inquérito contribui para grava a Ação Libertadora Nacional (ALN) e, em janei-
desmentir a versão oficial. Na requisição de exame, ro de 1969, Norberto foi preso vindo posteriormente
Em abril de 1969, Norberto saiu do país com destino a consta que teria se afogado, e no laudo necroscópi- a fugir do país. Em julho do mesmo ano, Maria Lygia e
Cuba. Marta e eu fomos ao seu encontro alguns meses co ali citado, mas nunca localizado, consta a infor- Marta foram se encontrar com ele em Cuba onde per-
depois. Ele retornou ao Brasil em abril de 1970, depois mação de que a morte se dera por asfixia. Norberto maneceram por quase uma ano. Norberto foi preso e
de uma estada em Praga, desembarcando no aeropor- foi enterrado com nome falso no Cemitério de Vila morto ao regressar ao Brasil, em abril de 1970.
to do Galeão. As circunstâncias exatas de sua morte Formosa, em São Paulo, mas a família foi comunica-
nunca puderam ser estabelecidas (...) Marta e Maria Lygia viveram no Chile até o golpe de
da apenas três meses depois. Após a exumação do Estado que derrubou Salvador Allende e depois fo-
Ficamos sabendo da morte de Norberto na França, corpo, realizaram seu reconhecimento por meio da ram viver na França. Retornaram ao Brasil em julho
através de mensagem que recebi de Toledo, segundo a arcada dentária, comprovando sua identidade. Seus de 1975.
qual, no dia 24 de abril, um caixão teria saído da OBAN restos mortais foram transferidos, então, para o jazi-
A partir de então, Maria Lygia adotou o nome de
carregando Norberto, morto na tortura, nas mãos go da família.
Maria Moraes e ajudou a criar o jornal feminista
da equipe do delegado Fleury. Um dos documentos
Nós Mulheres. Também foi jornalista na publica-
encontrados nos arquivos do DOPS/SP é uma nota à
ção O Movimento e uma das fundadoras do jornal
imprensa, assinada por Romeu Tuma, confirmando a
versão oficial de suicídio (...) Maria Lygia Quartim de Moraes nasceu Em Tempo.
em São Paulo (SP), em 18 de maio de 1943. Aos 8 anos Doutorou-se em Ciência Política pela USP (1982) ini-
A versão oficial é de que se suicidou, enforcando-se de idade conheceu Norberto Nehring que foi seu ciando sua carreira como professora universitária na
com uma gravata no quarto que ocupava no hotel Pi- maior amigo e primeiro namorado. Em 1963 casaram- Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi professo-
rajá, então conhecido bordel de policiais no centro de -se e iniciaram suas vidas universitárias. Ela cursou ra da UNESP-Ar e ingressou na UNICAMP em 1993.
São Paulo. Não foram encontrados a perícia de local, Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) Publicou livros, capítulos de livros e artigos no país
o laudo necroscópico nem as fotos do corpo. (1963-66) e ingressou no Partido Comunista Brasilei- e no exterior. A partir de setembro de 2013, preside
A versão de suicídio consta no inquérito feito pelo ro (PCB) também em 1963. a Comissão da Verdade e Memória Octavio Ianni da
delegado Ary Casagrande, onde há um bilhete que Marta, única filha do casal, nasceu em janeiro de UNICAMP.
Norberto fizera à família. Buscando esclarecer os fa- 1964, antes do golpe de Estado que viria a mudar ra-

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50 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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por Carlos Eduardo Ibrahin

Meu nome é Carlos Eduardo Martins era diretor do sindicato. Com 20 anos, ele foi do todos os dias, pau de arara, choque e etc.
Ibrahin. Sou filho de José Ibrahin e Tereza eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgi- Foi trocado pelo embaixador americano. Foi
Cristina Denucci Martins. cos de Osasco. Nossa família começou a tra- para o México, foi para Cuba. A intenção de
balhar muito cedo. Aos 10 anos, sem precisar morar em Cuba era justamente se aprimorar
Meu pai foi líder sindical e minha mãe trabalhar, eu catava jornal na vizinhança para na luta armada, para voltar para o Brasil. De
atuou na luta armada no MR-8. Ela era do vender para o peixeiro embrulhar peixe na Cuba, foi para o Chile porque a ideia dele,
movimento estudantil, foi do grupo do Vla- feira. O Gabriel, meu irmão, também sempre depois de três anos em Cuba, era aprender
dimir Palmeira. Eu nasci no Panamá. Era teve essa consciência. Meu pai começou a luta como é que o Allende estava trabalhando lá.
para eu ser chileno, porque fui concebido política muito cedo. Com 20 anos de idade ele E aí aconteceu o que aconteceu. Conheceu
no Chile, mas como houve aquela fatalidade já era presidente do maior Sindicato de Me- minha mãe, tiveram que ir para o Panamá.
do golpe contra o [Salvador] Allende, meus talúrgicos daquela região, de maior liderança. Na Bélgica ele coordenou junto com pesso-
pais tiveram que invadir a Embaixada no as como [Leonel] Brizola e Cesar Maia, entre
Panamá. E então eu nasci no Panamá. outros, um processo político para pressionar
“Meu pai foi demitido por na redemocratização do Brasil. Desde o Chi-
Quando eu tinha quarenta dias de vida, fo-
mos expulsos do Panamá e deportados para justa causa, foi preso, ficou le ele já vinha fazendo isso.
a Bélgica, que foi o país que aceitou asilo sete meses no DOPS, Ele criou na Bélgica, junto com a Organiza-
político do meu pai, da minha mãe e o meu. ção das Nações Unidas, a Casa Latino Ame-
Vivemos ali por cinco anos, até a anistia. O torturado todos os dias, ricana, que tinha como objetivo abrigar, dar
primeiro marido da minha mãe foi morto na pau de arara, choque” suporte psicológico, social e financeiro para
ditadura militar. Meu pai é o segundo mari- os exilados políticos da América Latina. A
do dela, eles se conheceram no Chile. Minha partir desse trabalho, a Casa Latino Ameri-
A estratégia dele de greve era muito sin-
mãe fugiu e meu pai foi trocado pelo embai- cana pôde salvar muitas vidas, trazer muitos
gular. Ao invés dele estruturar o Sindicato,
xador americano. Todos vocês conhecem companheiros que estavam nas ditaduras,
trabalhar o Sindicato de cima para baixo,
essa história marcante. sofrendo com perigo de morte.
ele fez ao contrário. Procurou montar Co-
Meu pai começou a trabalhar com 5 anos de missões dentro das fábricas. Por isso que a Com a anistia, voltamos ao Brasil. Eu não
idade, foi engraxate. E com 14 anos foi traba- greve dele na verdade foi uma greve geral queria sair da Bélgica. Minha mãe trabalha-
lhar na Cobrasma. Fez o SENAI, e aos 16 já de metalúrgicos, porque não foi só Osasco va no Mercado Comum Europeu, meu pai
que parou, foi Guarulhos também e outras estava presidindo a Casa Latino Americana
regiões que pararam em solidariedade. Aí pela ONU, enfim, ganhando bem, com uma
meu pai foi demitido por justa causa, foi pre- estrutura. E a Bélgica é um estado de bem
À esquerda, a chegada da família
ao Brasil, após a Anistia de 1979 so, ficou preso sete meses no DOPS, tortura- estar social dos mais exemplares que existe

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na história do mundo. Então eu não queria, nasci no Panamá, Goiás. Só assim pude tirar eu vou escanear e mandar para vocês, ela
mas tive que voltar. Era pequeno, tinha 6 anos. o meu título de eleitor. Inclusive, por conta me dá a cidadania nata, mas está escrito as-
disso, por esse argumento eu entrei com um sim, “Por força do ato tal, folha tal, folha tal,
A minha infância foi muito difícil. Primei-
pedido de Anistia Política e indenização na folha tal...”. Quer dizer, isso foi forçado.
ro, eu só consegui minha cidadania nata aos
23 anos de idade porque entrei com uma Comissão de Anistia do Ministério da Justi-
Isso aconteceu não só comigo, muitos fi-
ação contra a República. Minha certidão era ça. Por conta de o Estado ter rasgado a Cons- lhos de exilados sofreram muito. Inclusive
provisória. Para eu tirar meu título de eleitor tituição, o direito Constitucional, o meu di- os nossos telefones eram grampeados pelo
tive que ser subversivo. Um amigo de Goi- reito de ser cidadão nato, eu tive que entrar SNI. Até o governo Collor, a vida do meu pai
ás me disse: “Aqui no Estado de Goiás tem com uma ação, gastei dinheiro com advoga- e da minha mãe e a minha eram controla-
uma cidade chamada Panamá”. Então, eu te- do, tudo para receber minha cidadania nata. das. Só depois do governo Collor que isso
nho uma carta de identidade que diz que eu Tanto é que minha certidão de nascimento, parou. Então, toda essa conjuntura teve um
impacto muito forte nos filhos dos exilados.
Quando voltamos ao Brasil, eu morei dois
anos em Osasco, com meu pai e minha mãe
e aí eles se separaram. Meu pai estava na-
quela de montar o PT e a CUT. Ele foi o Pri-
meiro Secretário Geral do PT, e se preparava
para ser candidato a Deputado Federal, nas
eleições de 1982. E logo depois das eleições
eu fui morar no Rio.
Meu avô [Dirceu Martins] também era
uma pessoa muito politizada. Durante a
ditadura militar ele foi tesoureiro chefe do
Banco Central. Era uma pessoa também en-
gajada politicamente, de um outro lado, mas
engajada. Ele fazia o desenho do passaporte
que vocês têm na mão hoje, porque foi pre-
sidente da Casa da Moeda, que fazia o pas-
saporte. O que ele fazia? Ele pegava vários
passaportes desmontados, levava para casa,
montava direitinho e dava para as pessoas
fugirem. Ele ajudou muita gente a sair do
Brasil pela fronteira.

Depois, eu mesmo tive minha vida polí-


tica. Fui presidente do meu Grêmio, diretor
secretário-geral do DCE da PUC por muito
tempo, vice-presidente nacional da juven-
tude do PSDB durante oito anos, trabalhei
muito tempo com Franco Montoro.

Minha mãe morreu em 2011. Eu resolvi


dar uma parada, cuidar da minha vida pes-
soal. Agora em 2013 meu pai falece. Então
no prazo de um ano e dez meses mais ou me-
nos eu perdi os dois.

À esquerda, a certidão de nascimento


de Carlos Eduardo

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Minha mãe morreu de uma maneira que da Comissão de Erradicação do Trabalho to amigo do meu pai. Enfim, com o próprio
ninguém gosta de morrer, sofrendo, e meu Infantil no Rio de Janeiro e consegui man- Lula, em especial também o José Dirceu,
pai morreu como um anjo, dormindo. Então, dar prender muita gente que fazia trabalho que até hoje é amigo da família, enfim, e de
duas mortes diferentes, completamente dife- escravo no Rio de Janeiro. muita gente do Movimento Sindical.
rentes. Mas o fato é o seguinte: eu estou dis-
posto, com meu irmão, a dar continuidade à Então essa questão do mundo do trabalho Estou disposto a trabalhar junto com a Co-
vida pública do meu pai, a imagem do meu foi também minha atuação. E eu quero con- missão para a verdade realmente aparecer.
pai, e eu, particularmente, tanto da imagem tinuar com isso. Eu e meu irmão queremos Muitas injustiças foram cometidas aqui nes-
do meu pai quanto da minha mãe. Dar conti- continuar com esse trabalho dele. Tanto é te país e a justiça tem que vir à tona para
nuidade ao trabalho que ele estava fazendo. que estamos criando um espaço vivo sobre todos nós.
a memória do José Ibrahin. E como pano de
Minha mãe, Tereza Cristina Denucci Mar- fundo, o mundo do trabalho e a democratiza- Ontem [5 de maio 2013] eu falei para três
tins, foi guerrilheira, sabia atirar como nin- ção do Brasil. Futuramente, será criado um mil pessoas no aniversário de 50 anos do
guém. O primeiro marido dela, Paulo Bastos, espaço do José Ibrahin no Museu da Cidade Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos,
foi morto na ditadura, jogado vivo na Baía de de Osasco e no Sindicato dos Metalúrgicos onde meu pai foi homenageado e fomos re-
Guanabara. Isso criou uma confusão muito de Osasco. ceber uma placa. E eu falei para os trabalha-
grande porque eu não consegui minha cer- dores que meu pai foi torturado fisicamen-
tidão de nascimento de primeira mão, que te, mas que a maior tortura psicológica que
era a provisória. Porque o primeiro marido “Estou disposto a fizeram foi na vida das famílias brasileiras.
da minha mãe era considerado vivo. Estava trabalhar junto com Os trabalhadores foram duramente repreen-
didos nessa época. Comentei que a ditadura
morto. E o meu pai era considerado morto e
estava vivo. Logo, eu seria filho do Espírito
a Comissão para a militar era um câncer, que até hoje a gente
Santo. Então eu só consegui a cidadania pro- verdade realmente não conseguiu curar porque para muita gen-
te não interessa que a verdade venha à tona.
visória depois que saiu o atestado de óbito do
primeiro marido da minha mãe. E até então
aparecer. Muitas
eu tinha já uns 10 anos de idade. Ou seja, até injustiças foram
os 10 anos de idade eu não existia, entendeu?
Hoje, eu tenho 39, mas eu não tenho 39, eu
cometidas aqui neste CARLOS EDUARDO IBRAHIN nasceu em 21 de novem-

tenho 39 menos 10, que só com 10 anos eu país e a justiça tem bro de 1973, filho de José Ibrahin e Tereza Cristina
Denucci Martins, formado em História (PUC RJ),
passei a existir. que vir à tona para Mestre em Engenharia de Produção com foco em Enge-
nharia de Financiamento Social (COPPE/URFJ) e Douto-
Estamos dispostos a continuar essa luta, todos nós” rando em Economia (Universidade de Coimbra – Portu-
gal), tem uma empresa de consultoria em projetos.
não só na Comissão da Verdade, mas no Mo-
vimento Sindical e no Movimento Partidário.
Meu pai atuou em três focos: Movimento da Eu vivi intensamente o exílio, intensamen-
Organização Social Civil, redemocratização te a redemocratização do Brasil. Fui subver-
e Partido Político. Ele foi filiado ao PT, PDT sivo e tirei meu título de eleitor para votar
e o último partido no qual ele militou foi o no Roberto Freire. Queria votar nele de qual-
PV. Foi fundador, por exemplo, junto comigo quer jeito. Depois eu me engajei como vice-
do CEAT, que é o Centro de Atendimento ao presidente nacional da juventude do PSDB,
Trabalhador. Durante muito tempo meu pai me engajei na eleição do Fernando Henri-
foi Secretário Geral do Conselho Consultivo que. Viajei o Brasil inteiro com essa bandei-
do CEAT. Tinha esse trabalho na área das ra. Fui assessor do senador Artur da Távola.
organizações não governamentais, e tem Fiz história na PUC e depois fiz mestrado
todo o trabalho internacional do meu pai. em Engenharia de Produção na UFRJ.
Até hoje ele é o sindicalista mais conhecido
no exterior. Eu tive a oportunidade, por ter a sorte de
ter nascido do José Ibrahin e da Tereza Cris-
Meu pai foi vice-presidente da Comissão tina, de conhecer não só meu pai e minha
de Educação para o Trabalho na OIT. Teve mãe, mas muita gente que fez, que faz parte
uma atuação grande na disseminação do da história política do nosso Brasil. Tive a
trabalho digno. Eu também tive a oportuni- oportunidade de ter um relacionamento ínti-
dade de contribuir nisso. Quando eu traba- mo com Mário Covas, com Franco Montoro,
lhei no governo Marcelo Alencar, fiz parte com Brizola, com Jacó Bittar, que era mui-

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1

1. Documento da PM de São Paulo que


relata a vigilância de José Ibrahin durante sua
estada no Chile
2. Fotos de Ibrahin retiradas do relatório do
CIE, Indivíduos Banidos do Território Nacional,
1970, distribuído aos orgãos de repressão, para
reconhecimento dos mesmos
3. Ficha de Ibrahin do DOPS
(Os documentos acima foram encontrados em
prontuários do DOPS, no Arquivo do Estado
de São Paulo)

4. José Ibrahin, Carlos Eduardo, Tereza Cristina e


um amigo do casal, em Bruxelas, Bélgica, 1977
5.Carlos Eduardo, aos 7 anos, com o pai,
durante fundação do PT em Osasco, 1980
6. Foto dos presos políticos libertados e
banidos, entre eles Ibrahin, na troca do
2 embaixador americano Charles Burke
Elbrick, 1969

José Ibrahin nasceu em 3 de setembro de 1947 São Paulo, onde trabalhou na organização sindical Integrou a luta armada, militando no Movimento Re-
em São Paulo (SP) e cresceu em Presidente Altino, hoje entre Osasco e São Paulo, até que em 1969 foi preso e volucionário 8 de Outubro (MR-8). Participou da orga-
município de Osasco. Aos 14 anos começou a trabalhar levado ao DOI-Codi, onde foi torturado. nização do sequestro do embaixador norte-america-
como operário na Companhia Brasileira de Materiais Em setembro de 1969, com o desfecho do sequestro no Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969.
Ferroviários (Cobrasma), ao mesmo tempo em que es- do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Foi casada com o mineiro Paulo Costa Ribeiro Bastos,
tudava no Ginásio Estadual de Presidente Altino. Aos Elbrick, foi um dos quinze presos políticos liberta- também militante do MR-8, desaparecido em julho de
17 anos, chegou ao posto de inspetor de qualidade. dos na troca, também foram libertados José Dirceu, 1972, após ser de preso por agentes da ditadura.
Aos 18 anos, em 1965, fundou ilegalmente a primeira Flávio Tavares, Vladimir Palmeira, Ricardo Zarattini, Exilada no Chile, Tereza passou a viver com José
comissão de fábrica, na Cobrasma, experiência que entre outros. Foi para o exílio, permanecendo por dez Ibrahin. Com a queda de Salvador Allende, em setem-
serviria de base para reorganização, dois anos depois, anos fora do país, vivendo no México, Cuba e Chile. bro de 1973, o casal invade a embaixada do Panamá
do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Osas- Em 1979, com a Anistia aos perseguidos políticos da e segue para o país andino, onde nasce o filho deles,
co (até então na ilegalidade). ditadura, Ibrahin retorna do exílio e foi um dos arti- Carlos. Com 40 dias de vida do bebê, a família é ex-
culadores da fundação do Partido dos Trabalhadores, pulsa do Panamá e consegue ser recebida na Bélgica,
Entre 16 e 21 de julho de 1968 liderou a primeira greve
em 1980 e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), onde ficaram até a Anistia.
de trabalhadores durante a ditadura militar no Bra-
sil, por melhores condições de trabalho e contra a em 1983. Em 1991, Ibrahin foi um dos principais arti- Na Bélgica, fez mestrado, doutorado e pós-doutora-
política de arrocho salarial, imposta pelos militares culadores da criação da Força Sindical. Posteriormen- do em ciência política e relações internacionais pela
desde 1964. Além dos trabalhadores da Cobrasma, te desentende-se com a cúpula da Força Sindical e Universidade Livre de Bruxelas.
operários das empresas Braseixos, Barreto Keller, filia-se a União Geral dos Trabalhadores (UGT), onde
No Brasil, trabalhou no Instituto de Pesquisas Tec-
Granada, Brown Boveri e Lanoflex aderiram ao movi- torna-se Secretário de Formação Política. Ibrahin fa-
nológicas (IPT) coordenando o setor de transferência
mento grevista. Ao todo, 22 mil trabalhadores aderi- leceu na madrugada do dia 1º para o dia 2 de maio de
de tecnologia. Criou e coordenou a coordenadoria de
ram à paralisação. 2013, aos 66 anos.
Ciência e Tecnologia da prefeitura do Rio de Janeiro,
Ibrahin tinha apenas 21 anos de idade na época em hoje Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia. É
que comandou a greve. Foi demitido e com os direitos Tereza Cristina Denucci Martins fundadora da Fundação BioRIO. Foi gestora de proje-
políticos cassados, caiu na clandestinidade e passou nasceu em 23 de outubro de 1947, em Araxá (MG). Es- tos no Sebrae-RJ e participou de diversos projetos com
para a militância armada, ingressando na Vanguarda tudou história na Faculdade Nacional, hoje Universi- foco na difusão de ciência e tecnologia e transferência
Popular Revolucionária (VPR). A VPR o destacou para dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). internacional. Trabalhou na área de qualificação.

54 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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4 5

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56 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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por Suely Coqueiro

Sou filha de Aderval Alves Coqueiro, assassi- meiras lembranças, apesar de vagas, são dos Nós moramos no Mato Grosso, na Bahia, vol-
nado pela ditadura em 1971 e o primeiro preso desaparecimentos, porque de vez em quando tamos para São Paulo. Mudávamos constan-
político banido – enviado à Argélia – a retor- ele sumia por uns dias, não havia muita expli- temente, não podíamos ficar em uma mesma
nar ao Brasil após o seu exílio. Ele foi um dos cação para isso. E, por vezes, havia algumas escola o tempo todo. Tínhamos muito medo,
quarenta presos políticos trocados pelo embai- reuniões lá em casa. E quando a situação foi muita insegurança. Depois comecei a enten-
xador alemão Von Holleben, em junho de 1970. ficando mais aguda e começaram as persegui- der que eu podia perder o meu pai. Eu acho que
ções mesmo, aí começaram a se dispersar. foi aí que comecei a sentir mais medo. Quando
Essa é a primeira vez que nós filhos somos ou- meu pai teve que ir para a clandestinidade, a
vidos. É a primeira vez que temos a oportunida- vida ficou complicada.
de de abrir o coração e falar sobre essas mazelas “Comecei a perceber o
e sobre um momento histórico que para nós, Quando tivemos que nos mudar de Diadema,
crianças naquela época, foi muito difícil. que estava acontecendo eu tinha 7 ou 8 anos. Nós fomos de Kombi para
Nós, como crianças, não tínhamos capacidade
quando tivemos que o Mato Grosso e ficamos na casa de um primo
da minha mãe ou meu pai, que tinha um sítio,
de compreender tudo. Isso é um pouco proble- fugir para valer pela onde moramos por um tempo. Meu pai ficou um
mático, e o momento histórico era aterrorizante.
primeira vez” período curto conosco, logo depois voltou para
A importância deste momento é conseguir- São Paulo. Eu acho que a maior preocupação
mos relembrar e falar pela primeira vez sobre dele naquele momento era garantir a segurança
os efeitos daqueles momentos difíceis nas nos- Foi nessa época que começamos a deixar um da minha mãe e das filhas.
sas vidas. Eu nasci em 1960, tinha 4 anos quan- pouco de viver a vida familiar, porque cada vez
No regresso a São Paulo, numa noite, foi alu-
do se deu o golpe. menos dava para vivermos juntos. E comecei a
gada uma casa, em Santo Amaro. Lá não tinha
ouvir que tínhamos que ter cuidado com o que
Na época, acho que ainda estávamos em Bra- fogão, camas, geladeira. Porque a gente sim-
falávamos na escola, não podíamos brincar com
sília, porque meu pai era baiano e migrou para plesmente mudava de um minuto para o outro.
a amiguinha da vizinha, não podíamos ficar fora
Brasília quando eu era muito pequena. Foi can- Alugamos a casa num dia, e na manhã seguinte,
do portão na rua brincando. Era uma série de
dango lá e viemos para São Paulo quando eu num posto de gasolina, os companheiros foram
coisas que não conseguíamos entender na épo-
ainda era muito pequena. Em São Paulo, come- avisar que meu pai tinha sido preso. Nós tive-
ca. Eu tinha 7 anos e não conseguia entender o
çou a trabalhar como operário, no ABC. mos que sair novamente da casa por questões
porquê daquela situação.
de segurança.
Lembro bem da nossa vida a partir do mo- Comecei a perceber o que estava acontecen- Quando meu pai ainda estava preso, me ma-
mento que moramos no ABCD, em Diadema. do quando tivemos que fugir para valer pela goou muito eu não poder vê-lo em todas as visi-
Ele já era integrado à luta, porque foi em Bra- primeira vez, porque o meu pai já estava sen- tas na cadeia porque tinha que estudar. Eu tinha
sília que entrou no movimento. Minhas pri- do procurado. E nós tínhamos que começar a que avançar no estudo porque estava atrasada.
viver nos chamados aparelhos, que eram casas
À esquerda, Suely e Isaura no Hotel
e apartamentos clandestinos, considerados Quando ele foi preso, passou-se um tempo
Havana Libre em Havana, Cuba, 1973 mais seguros. sem que ninguém soubesse dele. Minha mãe

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“Uma vez perguntei saía constantemente, de delegacia em delega- para nós ele ainda estava no exterior. Nós não
cia, porque ela sabia que ele tinha sido preso, sabíamos que ele tinha voltado. Ele foi banido
por que ele estava só que não sabia se estava vivo, morto, em que em 1970, e demorou coisa de um ano para voltar.
de óculos escuros. lugar ele estava. Lembro-me desta procura
Nós recebíamos cartas, não com frequência.
constante.
Ele me respondeu Eu tenho cópia de várias cartas que ele manda-
va para a minha mãe. Em todas, falava o tem-
que era porque tinha Foi um alívio quando ficamos sabendo que
estava preso, foi a confirmação de que ainda po todo que morria de saudades de nós. Ele era
jogado bola e a bola estava vivo. Mas ele estava na condição de in- uma pessoa muito ligada à família. E os compa-
comunicável, não podíamos ir visitá-lo. nheiros que encontramos aqui e em Cuba falam
tinha batido que ele falava muito em nós, constantemente.
no rosto” Logo que começamos visitar o meu pai, ele
Tenho certeza que essa volta rápida para o
tinha sido muito torturado.
Brasil ocorreu porque ele não conseguia viver
As visitas continuaram por um tempo, e de- longe de nós. Ele tinha uma dificuldade enor-
pois a troca dele pelo embaixador alemão, jun- me com isso. Quando ele foi assassinado, no
to com outros companheiros, que foram para Rio de Janeiro, nós ficamos literalmente per-
a Argélia. E veio o medo novamente, porque didos, perdemos o chão. A pessoa está no ex-
achávamos que como ele havia sido banido e terior e de repente você recebe a notícia que o
desterrado, não fôssemos vê-lo nunca mais. ser que você ama tanto está morto e está no teu
país e você sequer chegou a vê-lo novamente.
Além disso, naquela época, financeiramen-
te, ao menos para nós, uma viagem, era algo Meu avô, que na época não era perseguido,
inalcançável, não éramos de família rica ou de nos deu muita força. Ele falou para a minha
família de classe média, que tinha condições mãe: “Nós vamos enterrar o meu filho”. Aí fo-
de pagar uma passagem internacional para vi- mos para o Rio de Janeiro. Acho que por muitos
sitar o pai no exterior. anos fiz questão de não lembrar desta viagem.

Quando meu pai foi banido, a sensação foi Quando chegamos ao Rio, era Carnaval. Fica-
de mistura de um sentimento de felicidade, mos num hotel pequeno e barato, numa rua mo-
porque ele não ia mais ser torturado, não ia vimentada cujo nome também não lembro. Meu
ser mais magoado, não ia ser mais ferido, com avô foi ao IML para fazer o reconhecimento.
uma sensação de perda, porque eu achei que Tudo aconteceu de forma muito rápida, não ha-
não o veria nunca mais. Ou, talvez, que fos- via tempo para fazer o luto. Acho que nenhum
se vê-lo apenas quando fosse uma adulta e de nós teve tempo de viver o luto na época.
fosse visitá-lo, porque ele não poderia voltar
Meu avô reconheceu o corpo, e na hora do
nunca mais.
enterro, abriram o caixão, a minha mãe beijou-
Para mim, o exílio do meu pai foi uma perda lhe a mão, eu olhei, fecharam o caixão, levaram,
porque não havia possibilidade de vê-lo nunca enterraram e nós voltamos para São Paulo. Foi
mais. Como efetivamente não houve. Só tornei uma coisa super rápida, sem tempo de assi-
a vê-lo já no caixão para enterrar. milar, sem tempo de trabalhar na cabeça sem
tempo de pensar.
Então, para mim, o exílio do meu pai foi re-
almente a despedida. Porque a segunda des- Depois, em São Paulo, não demorou muito
pedida foi a mais cruel, já no caixão, pois ele para nós recebermos a informação de que es-
foi assassinado depois que retornou ao Brasil tavam procurando a minha mãe, pelo menos
em 1971. O momento do enterro do meu pai foi foi o que ouvimos na época. Nós não tínhamos
muito complicado, porque deu-se a notícia nos estrutura psicológica, não tínhamos condi-
meios de comunicação, com manchetes, como: ções de continuar morando na cidade. Aí veio
“Terrorista banido volta ao Brasil e morre”. o processo de organização para nos levar ao
Chile. Este processo também foi terrível. Não
Meu pai não era terrorista, para mim ele nun- tivemos tempo de luto, de nada. Nem tempo de
ca foi terrorista. O choque foi enorme, porque despedir da nossa família.

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Nós sempre tivemos uma dificuldade enor- boicotava. Nessa época, os grandes empresá- fomos entendendo que em Cuba a polícia real-
me de relacionamento com a minha própria fa- rios estavam junto com a direita, com o [Au- mente representava a proteção e não agressão,
mília biológica, como tias, tios, primas, primos gusto] Pinochet. E quando se percebeu que no não assassinato como acontecia no Brasil. Foi lá
porque não tivemos contato com eles. Chile estava havendo uma articulação de gol- que realmente eu comecei a ter infância porque
pe, fomos para Cuba. aqui não tinha, nós não tivemos infância.
Nossa viagem para o Chile foi de horror, parte
de Kombi e outra de ônibus. E os companheiros Um dia à noite chegaram em casa e disse- Lá, eu comecei a estudar, a ter círculos de
que nos levaram eram clandestinos também. ram: “Vocês vão para Cuba”. Com 11 anos, o amigos pela primeira vez na vida. Amigos da
Para chegar ao Chile, passamos pela Argentina. que significava ir para Cuba? Eu só sei que minha idade, amigos que podia marcar para se
Eu lembro do vento gelado das Cordilheiras dos tudo aconteceu muito rápido. Mais uma vez saí encontrar embaixo do prédio onde morava, fa-
Andes, até chegar em Santiago, isso tudo uma da escola. Nós morávamos em uma casa junto zer grupinho de teatro juntos. Os sobrinhos do
coisa atrás da outra. com outra família de exilados, com a tia Ilda Guevara inclusive moravam no mesmo prédio
Gomes da Silva e moramos também com a tia que a gente e faziam parte do mesmo grupinho
Quando chegamos ao Chile, eu tinha 10 anos. Dina (Pedrina Carvalho) Aí, um dia nós pega- de teatro. E onde morávamos tinha muitos exi-
Quando pensamos que teríamos um pouco de mos a Cubana de Aviación em Santiago e no lados da América Latina, os bolivianos, argen-
tranquilidade, veio a preparação do golpe mili- outro dia estávamos em Havana. tinos, tinha chilenos e mais os cubanos.
tar. Chegamos lá um ano e pouco antes do gol-
pe e ficamos por um ano. Também não tenho Começamos a ter uma vida normal, a apren-
boas lembranças de quando comecei a estudar, “Meu avô reconheceu der como é ter uma vida normal, a gente tinha
e nem do país, por diversas razões, como essa o corpo, e na hora do liberdade de ser criança. Os nossos anos em
vida de insegurança, ainda não tínhamos nem Cuba foram maravilhosos. Lá tínhamos vários
tempo de viver o luto e tivemos que chegar lá enterro, abriram o tios e primas, que a gente foi construindo com
e continuar tocando a vida. Esta situação cons- caixão, a minha mãe o tempo, porque eram pessoas que viviam as
tante de estar de um lado para o outro mais as mesmas experiências, as mesmas dores, vi-
inseguranças e os medos, refletiram para o res- beijou-lhe a mão, eu viam nos mesmos lugares e com quem a gente
to de minha vida. olhei, fecharam o caixão, tinha uma identificação muito grande, como
a tia Ilda, a tia Dina a tia Cida, tem a tia Cla-
Somos gratos ao Chile da época do presiden- levaram, enterraram ra, mulher do Marighella, tia Damaris, enfim
te [Salvador] Allende, que foi o único país que
naquele momento acolheu muitas pessoas, não e nós voltamos para construímos laços.

só brasileiros. Mas a nossa experiência anterior São Paulo. Foi uma Nós nunca tivemos antes oportunidade de
aqui no Brasil tinha sido muito amarga. conversar sobre isso ou colocar para fora esta
coisa super rápida” ferida que a gente carregou e estamos carregan-
Eu, na condição de criança, não estava pre- do há tantos anos. Porque foram momentos de
parada para nada naquele momento. Você A chegada em Cuba foi na condição de crian- terror e perda na vida da gente que nós carrega-
não tem infância e o fato de não ter infância, é ça que não sabe o que lhe espera, depois de mos a vida toda.
perder referências, não ter raízes verdadeiras. tanta coisa que aconteceu. Mas foi a melhor
Quando criança, a gente precisa de uma refe- coisa que aconteceu conosco. Lá nós fomos Nós não falamos sobre isso porque é um pro-
rência de pessoas com quem se conversa, que muito bem atendidos, recebidos, acolhidos. cesso, quando se é uma criança, primeiro você
vão guiar o teu caminho de certa forma. quer esquecer. Quando você já passou por tan-
Aí eu já estava com 11 para 12 anos. Acho que to terror, medo, perda, quando você chega num
E, como mudávamos muito, a gente não ti- minha irmã tinha 5, 6 anos. Em Cuba, tinha os lugar onde encontra paz, você quer esquecer
nha isso. Porque lugares são referências. Eu companheiros milicianos que usavam calça o que aconteceu, prefere não falar, prefere não
fui entender muito tempo depois porque pas- verde, camisa azul. Eu tinha medo de polícia tocar no assunto e quer desfrutar ao máximo
sei por isso, o quanto é importante para uma aqui no Brasil, no Chile eu tinha medo de po- esta paz e segurança que te é oferecida.
criança seguir o curso, ficar bastante tempo na lícia e claro, quando eu cheguei em Cuba, eu
mesma escola, com os mesmos amigos, com as tinha medo de polícia. E foi o que todos nós encontramos em Cuba.
mesmas relações. A cada mudança rápida na Aí eu retorno para o Brasil, veio a Anistia, aí já
vida são referências que você vai perdendo e Os companheiros brasileiros falavam, “Olha, não éramos mais crianças, já éramos todos jo-
não recupera mais. desta polícia aqui você não precisa ter medo. A vens. Todo mundo tinha 18, 19, 20 anos, maiores.
polícia aqui é amiga, eles não fazem nada, ao Aí vem a proposta do retorno ao Brasil.
Depois, a situação no Chile, a sobrevivência, contrário. Mas eu lembro que a gente, eu acho
foi ficando muito crítica, porque começaram a que não fui só eu, mas na época a gente queria A partir de 1979, 1980 começamos a voltar.
faltar coisas no supermercado, porque a direita manter distância de polícia”. Com o tempo, nós Se tivessem me dado a possibilidade de esco-

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“Com o tempo, nós lha, eu não teria voltado, porque as lembranças gostava. Acho que trazia à tona muitos trau-
de quando nós saímos daqui não eram boas. mas e lembranças amargas.
fomos entendendo Acho que foram as piores experiências da vida
que em Cuba a polícia de cada um de nós, e a volta sem perspectiva Aí depois a gente passa para uma etapa que
quer lembrar porque depois de adulto começo
nenhuma, em mim, provocou medo.
realmente representava a tentar entender o que tinha acontecido real-
a proteção e não Você volta sem família porque perdeu a sua
família biológica, criou novas famílias no ex-
mente comigo. Com alguns medos e insegu-
ranças que eu tenho até hoje, eu queria saber
agressão, não terior, que são os companheiros exilados. E as de onde eles tinham vindo. Aí você começa a
perceber que são daquela época. Mas isso nun-
assassinato como crianças dos exilados que estão lá que são os
teus primos, os adultos passam a ser seus tios, ca foi ouvido por ninguém também.
acontecia aqui passam a ser suas tias. Você é livre, estuda,
aprende, enfim, passa a ser gente, respeitado Primeiro, foi a sensação de insegurança. No
no Brasil” e de repente volta para o lugar que é teu país, início, eu não conseguia me adaptar de todo
mas é o lugar que te causou as maiores dores aqui no Brasil. Eu tive um problema sério de
de sua vida. E esse processo de retorno é muito adaptação. Mesmo depois que eu voltei de
difícil, para mim foi extremamente difícil. Cuba, eu morei muitos anos fora do Brasil. Fui
para a Nicarágua, como Brigadista de Solida-
Depois do nosso retorno ao Brasil, essa mo- riedade à Nicarágua. Voltei para o Brasil e re-
çada que foi criança para Cuba e voltaram cebi uma proposta de voltar para lá e trabalhar
jovens, parece que nos dispersamos de novo. com o Centro de Educación y Promoción Agrá-
Sempre digo que foi a segunda vez que perde- ria. Aí trabalhei lá por dois anos que foi quando
mos a família. Porque a família que nós tínha- eu conheci o meu ex-marido. Depois fui para
mos feito lá se dispersa novamente no retorno. a Alemanha, trabalhei, estudei, morei lá, en-
Aí é outra ruptura na sua vida. fim, vários anos. Voltei definitivamente para o
Brasil em 2006. Foi aí quando eu finalmente
Depois de alguns anos a gente começou a se percebi que não tinha uma boa relação com
procurar, porque cada um viveu as suas expe- o Brasil. Aí eu consegui entender isso, perce-
riências, se refez de certa forma, trabalhou, fez bi porque comecei sentir uma necessidade de
família. Cada um criou as suas famílias, casou, voltar para o Brasil.
separou. Mas todo mundo conseguiu, achou o
seu caminho, mesmo com dificuldades. Esta- Essa necessidade que eu senti de voltar para
mos querendo criar uma espécie de grupo dos o Brasil não é porque eu consegui resolver to-
Pátrias, da turma que esteve em Cuba. Porque dos os traumas do passado, porque eu acho
Cuba, sem dúvida, é o nosso país também. que jamais ninguém de nós vai conseguir re-
solver completamente tudo o que aquela situa-
Em Cuba, a última escola que eu estudei foi ção nos provocou, mas pelo menos você enten-
a Héroes de Varsovia. E, antes eu estudei lá na de “Eu sou assim por conta de tal situação... a
Orestes Gutierrez que era do primário a secun- minha vida ficou muito mal resolvida de tal a
dário. A Héroes de Varsovia era uma escola tal época, por isso... eu nunca consegui resolver
onde eu ficava a semana toda. Só aos finais de a minha vida naquela época por tal situação”.
semana eu ia para casa. E lá nós tínhamos tra- Ou seja, todas as experiências ruins que prefe-
balho voluntário, estudávamos, tinha atividades rimos esquecer por anos e anos refletem-se na
culturais, uma escola mesmo. Não era só tempo vida adulta, de alguma forma.
integral, mas era interna.
Eu acho que esse trabalho que está se fazen-
E aos finais de semana quando a gente ia do hoje de nos ouvir, para mim especialmente,
para casa de vez em quando tinha atividade, está sendo fundamental. Porque a gente con-
porque os companheiros brasileiros exilados segue falar pela primeira vez com o coração,
organizavam atividades. Eu não achava nem sobre isso... sobre aquela época.
muito agradável ir a essas atividades, ia mais
por uma questão de compromisso político em O meu avô foi um homem muito especial. Ele
relação aos companheiros, mas não porque eu era um operário e apesar de não entender direi-

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to o que acontecia, ele dava apoio incondicional pai por causa disso. Ele fez o que achou certo e “Eu não acho que
ao meu pai, ficamos muito tempo sem contato eu o respeito e admiro, mas logicamente se ele
com ele. No que precisamos dele, ele esteve pre- tivesse ficado no exterior e tivesse trabalhado o Brasil seja um país
sente. Cheguei a vê-lo vivo depois que voltamos um pouco mais este sentimento, talvez estivés- que proporciona
de Cuba. Ele ainda estava vivo e nós tivemos a semos juntos hoje.
felicidade de conviver um pouco com ele. segurança para
Eu não acho que o Brasil seja um país que
E como eu disse, foi uma pessoa muito proporciona segurança para ninguém. Eu nun- ninguém. Eu nunca
importante na minha vida, que sempre nos ca tive a sensação de acolhimento aqui. É uma tive a sensação de
apoiou muito. Inclusive, foram ele e uma pri- coisa que eu tento entender até hoje, não con-
ma minha que nos deram o maior apoio de- versei isso com o resto dos amigos, dos com- acolhimento aqui.
pois que nós voltamos de Cuba, porque nós panheiros da minha geração que voltamos do É uma coisa que eu
não tínhamos para onde ir, não tínhamos casa. exílio, mas tenho certeza de que cada um de
Você volta sem casa, sem família, sem raízes, é nós tem esta sensação. Apesar de ter volta- tento entender
um horror. Até hoje eu sinto a sensação e sem do, todos nós tivemos uma dificuldade muito até hoje”
dúvida nenhuma Cuba para mim representa o grande de readaptação.
meu porto seguro. E eu me propus ir a Cuba
todos os anos, se der. Primeira dificuldade que nós tivemos é que
você sabe da história da colonização da Amé-
Eu estive lá em novembro do ano passado e a rica Latina pelos espanhóis, aprende história
primeira coisa que fiz foi ir em frente ao prédio não com Pedro Álvares Cabral, mas com Cris-
que eu morava. Quando eu chego lá é assim: tóvão Colombo. Aprende literatura, mas estu-
grito o nome de um ou de outro e o pessoal da Rodolfo Becker, Cervantes (literatura es-
já sai dos apartamentos, vem, abraça, a gente panhola). Nós saímos daqui daquela maneira
morre de rir e relembra os velhos tempos. O como crianças, fomos exilados, de forma invo-
mais impressionante para mim é que mesmo luntária e quando você volta ao seu país, o seu
com os anos fora de Cuba, cada vez que a gen- próprio Estado, o Ministério da Educação olha
te chega lá é como se tivesse continuado lá. para você diz: “Não, o que você estudou não
Essa sensação é muito boa. serve, nós não vamos reconhecer”. Você se sen-
te novamente rejeitado, se sente novamente
Se hoje eu pudesse fazer a escolha, eu mora- não filho deste país. Se você se forma em Cuba,
ria em Cuba, sem dúvida. Tenho grandes ami- reconhecer o diploma aqui é uma dificuldade.
gas lá, amigos, e pessoas que são muito impor-
tantes para mim. Uma coisa para mim foi crucial: a emoção
que eu sinto cada vez que eu volto para o Bra-
Eu tenho uma filha, a Janaína, que está moran- sil. Comecei a entender de forma mais profun-
do na Alemanha. Ela nasceu aqui mas cresceu lá da porque Cuba para mim é muito mais pátria
e ficou difícil para ela voltar quando eu decidi que o Brasil. O meu sentimento com relação a
retornar. Agora moro em Brasília e minha mãe Cuba cada vez que eu desembarco lá e o meu
em Campinas, no interior de São Paulo. sentimento cada vez que eu desembarco no
Acho que sem dúvida nenhuma, um dos Brasil são diferentes, emoções diferentes. Por-
pontos fundamentais que levaram à volta do que lá eu fui acolhida, eu fui respeitada, aqui eu
meu pai ao Brasil foram as saudades que ele nunca fui realmente acolhida.
sentia. Há pouco tempo eu li um livro Seu Ami- Quero expressar a minha gratidão aos com-
go Esteve Aqui – A História do Desaparecido panheiros que ficaram no Brasil e continuaram
Político Carlos Alberto Soares de Freitas, de a luta de resistência contra a ditadura, presos ou
Cristina Chacel, em que um dos companhei- soltos e clandestinos, foram parte fundamental
ros que esteve com ele na época fala sobre para a redemocratização do nosso país.
isso. Ele conheceu bastante o meu pai e disse
que duas coisas que fizeram meu pai retornar
ao país foram: um era a saudade insuportável SUELY COQUEIRO nasceu em Prado (BA), em 29 de
da família e a outra coisa era a necessidade de novembro de 1960. Atualmente mora e trabalha em
continuar a luta. Eu jamais vou culpar o meu Brasília (DF).

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por Célia Coqueiro

Meu nome é Célia Silva Coqueiro, sou filha de to fuzilado em 6 de fevereiro, seis dias depois Eu tinha só 3 anos e meio, mas me lem-
Isaura Silva Coqueiro e Aderval Alves Coqueiro. de sua entrada no Brasil, em 30 de janeiro. Na bro de uma cena muito clara. Minha mãe me
Meu pai era militante. Primeiro ele foi do Parti- verdade, o aparelho onde ele estava no Rio de conta que isso realmente aconteceu. Está-
do Comunista, fez um trabalho de base com os Janeiro foi entregue por um dos companheiros vamos muito próximas do presídio, já quase
metalúrgicos do ABC, participou da Fundação com quem treinou em Cuba e que retornou an- entrando. Minha mãe me vestia com aquelas
do Sindicato dos Metalúrgicos e com o avanço tes ao Brasil. E, naquele momento, trabalhava calcinhas cheias de renda e ela enfiou os
do golpe ele acabou caindo na clandestinidade para a repressão. maços de cigarro na calcinha para poder dar
e participando das organizações armadas. En- ao meu pai.
tão foi para a Ala Vermelha do PCdoB, e depois, Quando eu nasci, em julho de 1965, meu pai
numa divergência, fundou com o Devanir de militava tanto no sindicalismo como na Ala Ver- Também me recordo que, enquanto meu
Carvalho o Movimento Revolucionário Tira- melha do PCdoB. Ele era muito ativo dentro das pai estava preso, minha mãe tinha pontos
dentes (MRT), que foi a última organização na atividades políticas e, portanto, muito visado com os companheiros de organização de meu
qual meu pai militou. Ele foi preso em maio de pelas forças de direita, pela polícia política. Lem- pai, como o Devanir. Ele pedia para a minha
1969, quando eu ainda não tinha 4 anos comple- bro-me muito pouco disso porque era muito pe- mãe passar informações para o meu pai. E,
tos. Foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos quena. Minha irmã, que é cinco anos mais velha, numa determinada época, ele passou um bi-
Fleury, levado ao DOPS/SP e torturado. Ficou deve se lembrar de muito mais coisas do que eu. lhete todo enroladinho. Minha mãe costurou
três meses incomunicável, sendo torturado, e esse bilhete na barra da saia dela para poder
depois foi levado para o presídio Tiradentes, “As pessoas me perguntam levar essa informação, que nem ela podia ler,
para o meu pai.
onde ficou mais uns sete meses. se me lembro do meu
No total, ele ficou preso um ano e só saiu tro- pai e o que eu posso dizer Eu não me recordo da fase em que meu pai
saiu banido, em junho de 1970, trocado pelo
cado pelo Embaixador alemão. O rapto do em-
baixador alemão ocorreu em junho de 1970, um é que me recordo de Embaixador alemão. Mas minha mãe conta
que nós não fomos ao aeroporto. As notícias
ano depois da prisão de meu pai. O nome dele uma visita que fiz a ele saíam no jornal, e meu pai escrevia muito
foi um dos que foi solicitado entre quarenta
presos políticos trocados pelo embaixador. Ba- quando foi preso” para nós da Argélia. Eu tenho todas as car-
nido, foi para a Argélia e de lá para Cuba, fazer tas, que anexei junto ao processo de Anistia
treinamento de guerrilha porque a ideia dele Acho que o nosso psicológico é muito estra- dele. Tem uma das cartas, inclusive, que ele
era retornar ao Brasil para continuar a luta. nho. Às vezes apagamos coisas que não quere- manda para os companheiros do presídio
mos lembrar e lembramos de coisas que que- Tiradentes. Eu as guardo com muito cuida-
Depois do treinamento em Cuba, ele retor- remos. As pessoas me perguntam muito se me do, já estão todas amarelinhas, se desfazendo.
nou ao Brasil num esquema da VAR-Palmares, lembro do meu pai e o que eu posso dizer é que Ele sentia muitas saudades, e as cartas eram
que foi comandado pelo James Allen. Foi mor- me recordo de uma visita que fiz a ele quando muito íntimas. Ele sabia que todas as cartas
foi preso. Eu fui ao presídio Tiradentes, onde seriam interceptadas, e por isso não falava
era proibido receber cigarros e o meu pai fu- além do que tinha que falar, de saudades da
À esquerda, Célia no Hotel Havana Libre
em Havana, Cuba, 1973 mava muito. família, das filhas.

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Num dos meus aniversários ele me man- dele. Você é a esposa dele”. E minha mãe fez
dou um cartão com um cachorrinho. Eu tive exatamente isso. Lembro-me que foi uma
um cachorrinho dado por ele e que se cha- Kombi que nos levou até a rodoviária para
mava Brinquedo, mas, sem querer, meu pai embarcarmos para o Rio de Janeiro. A única
acabou o matando atropelado. Tenho esse coisa que eu me recordo desse dia é a minha
cartão até hoje. Tenho todas as coisas, como mãe chorando. Quando a vizinha foi avisá-
uma caneta que ele fez para nós no Presídio -la, ela abaixou a cabeça e eu deitei no colo
Tiradentes. São coisas que a gente guarda dela para ver porque ela chorava. Eu não
com muito carinho. Na verdade, é um tesou- sabia que o meu pai estava morto, a minha
ro familiar. Papai sabia que as cartas esta- mãe não falou.
vam sendo interceptadas. Ele mandou uma
para os companheiros do presídio Tiraden- Minha mãe é uma pessoa muito forte, ra-
tes, principalmente direcionada aos Car- ramente chora. Então eu acho que essa mi-
valhos, com quem tínhamos uma relação nha reação de deitar no colo dela e olhar é
muito especial. Éramos como uma família, porque eu queria ter certeza que ela estava
da mesma organização política e tínhamos chorando. Só fiquei sabendo da morte quan-
um vínculo muito forte de amizade. Meu pai do chegamos no Rio. Foi uma viagem muito
mandou cartas para minha mãe mesmo sa- longa, nós fomos de ônibus, chegamos de
bendo que seriam interceptadas. Ele envia- madrugada. Logo cedo fomos procurar pelo
va as cartas de Cuba para Argélia e de lá um corpo do meu pai. Era semana de Carnaval,
companheiro mandava com endereço da dia seis, sete de fevereiro e me lembro que
Argélia para a minha mãe. Então ela acha- chegamos e tivemos de retornar para São
va que ele, de fato, estava na Argélia. Nós Paulo sem ver meu pai. Chegando lá, mi-
nunca imaginamos que eles estivessem nha mãe falou: “Mataram o pai de vocês. Ele
em Cuba treinando. Ele ficou pouco tempo Postal enviado por Aderval para Célia voltou [para o Brasil] e fuzilaram ele e nós
na Argélia. Foi para lá em julho e no final estamos aqui para poder enterrá-lo”. No Rio,
do mesmo mês, começo de agosto, já tem disseram para minha mãe e para o meu avô,
registro dele em Cuba, visitando a Damaris, pai do meu pai, que não poderiam entregar o
a tia Tercina. Ele ficou uns três, quatro meses “Uma vizinha foi até corpo, porque era Carnaval, feriado e eles esta-
vam fechados.
em treinamento em Cuba. Foi um treinamento a casa da minha mãe
meio relâmpago e então ele pediu para o James Primeiro minha mãe foi ao DOPS, onde fa-
fazer um esquema de retorno ao Brasil. e disse “Isaura, o seu laram: “Nós não sabemos, ele deve estar ali
Recebíamos essas cartas e realmente acháva- marido é Aderval Alves no IML em frente”. Ela foi ao IML e lá disse-
ram que não iriam atender. “E quando vocês
mos que meu pai estava na Argélia, até porque Coqueiro? Acabaram podem atender?”, minha mãe perguntou. “Nós
dizia que estava preparando a nossa ida para
lá: “Sinto muitas saudades, mas estou me esta- de matar ele no Rio de podemos atender quando passar o Carnaval”,
disseram. Retornamos a São Paulo, esperamos
bilizando para poder trazê-los, uma vez que es- Janeiro, num tiroteio” passar três, quatro dias e voltamos ao Rio no
tou banido”. Ele sabia que a repressão lia essas
cartas e as escrevia de propósito. primeiro dia útil com o meu avô. Lá, falaram
que era melhor o meu avó entrar para reco-
Minha mãe recebia cartas do meu pai sema- no aqui no Brasil, não sabia que meu pai estava nhecer o corpo, porque a minha mãe estava
nalmente e por isso estranhou quando ficou retornando. A Pedrina, viúva do Devanir, conta muito mal e o corpo estava muito machucado.
quinze, vinte dias sem notícias, nem carta, nem que quando ele soube a notícia no aparelho e Meu avô entrou. Acho que ele ficou com essa
cartão. Ela pensou que talvez ele estivesse via- ele levou um susto tão grande quanto a minha impressão na cabeça dele até os últimos dias
jando pelo interior da Argélia. E, então, ficou mãe. Ele ficou enlouquecido quando viu a no- de sua vida porque sempre que me via, falava:
sabendo da morte dele por uma vizinha, que viu tícia no jornal. Ele jogou o jornal em cima da “Minha filha, quando puxaram a gaveta onde
no noticiário, e foi até a casa da minha mãe e mesinha de centro e começou a chorar. Essa foi seu pai estava, tinha sangue embaixo, o san-
disse “Isaura, o seu marido é Aderval Alves Co- a reação que ele teve. gue estava coalhado”. Porque passaram muitos
queiro? Acabaram de matar ele no Rio de Janei- dias e o corpo dele parecia uma renda.
E a minha mãe leva um susto tal que a pri-
ro, num tiroteio”. O Vitor Papa Andreu, que foi a
meira reação dela foi ligar para a Dra. Nina, Meu avô comparava o corpo do meu pai
pessoa que entregou ele, sabia desse esquema.
advogada que dava apoio à Ala Vermelha, como uma renda. Foram mobilizados cinquen-
Inclusive o próprio companheiro de organi- MRT. Ela falou “Isaura, pegue as meninas, o ta homens para pegá-lo. Foi uma operação tão
zação, o Devanir que também estava clandesti- seu sogro, vá ao Rio de Janeiro e peça o corpo gigantesca, tão absurda para pegar um homem.

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E eles abriram fogo mesmo, como os vizinhos ela: “Isaura, esses documentos não me servem logo depois o meu pai corria de aparelho para
contam. Ano passado fui visitar o aparelho para mais nada, guarde que para você talvez aparelho, porque estava clandestino e a polícia
onde meu pai estava, e a companheira que le- algum dia sirvam”. podia chegar a qualquer momento, toda vez
vava alimentação no aparelho, contou que pro- que caía um companheiro preso, que sabia a
curou os vizinhos, que contaram que ele ten- Então os companheiros acharam melhor co- localização do aparelho, a gente saía correndo,
tou fugir, pulou o muro, correu e quando estava meçar a fazer a articulação da nossa saída para largava tudo, tinha que procurar outro espaço.
subindo, escalando o muro, que era muito alto, fora do Brasil. O viável seria o Chile, onde es- A sensação de insegurança me acompanhou
abriram um fogo assim sem tamanho e o fuzi- tava o Salvador Allende. O pessoal que corria por muitos anos, inclusive no Chile, que era
laram. Então ele estava muito furado mesmo. perigo aqui no Brasil acabava indo para lá, que um lugar em que estava o Salvador Allende, e
Imagino que foi por isso que o meu avô ficou era um governo democrático, muito aberto e tal. a gente podia se sentir segura. Mas só fui me
com essa impressão. Ele ficou falando isso até Acabamos indo para lá. Meu pai foi morto em sentir segura quando cheguei em Cuba, em
os últimos dias de vida. Toda vez que ia visitá- fevereiro de 1971 e nós saímos só em novembro 1973, por sorte cinco meses antes do golpe do
-lo no aniversário ou no Natal ele falava isso. desse mesmo ano, porque a minha mãe tinha Pinochet, e foram os cubanos, inclusive, que
Morreu há cinco anos. Meu pai era o filho ca- muita resistência a sair do Brasil, ela não que- providenciaram nossa ida para lá.
çula. Eram duas meninas e um menino e nós, ria. Na verdade, ela queria ficar com o meu avô,
mas os companheiros acharam que era melhor Meu pai morreu muito cedo, com 33 anos,
nem o meu avô, nem minha mãe, nunca mais
assim por uma questão de segurança. E fize- mas devo dizer que ele foi muito afortunado,
fomos os mesmos depois desse fato.
ram muito bem, afinal depois ficamos sabendo porque teve os melhores amigos e companhei-
Eu me lembro do meu pai no caixão e da mi- que muitas viúvas acabaram sendo presas e ros que um homem poderia ter. Nós fomos
nha mãe se debruçando, se jogando em cima e até torturadas. E tudo porque achavam, embo- muito, muito amparados pelos companheiros,
passando a mão na testa dele, onde havia um ra não soubessem, que as esposas sabiam coi- foram a minha família. Eu digo que cresci no
hematoma muito grande. Não sei se bateram sas. Tanto que a minha mãe conta que quando exílio, cresci em Cuba e as minhas tias são a
nele depois dos tiros ou se o machucado foi o meu pai foi preso, que ela ia ao DOPS pedir minha família da Revolução, dos companhei-
porque ele caiu. Inclusive o meu avô disse que o informações e falavam que ele não estava lá. E ros que foram presos com o meu pai, que fo-
corpo também estava muito machucado, tanto eles perguntavam para a minha mãe “Mas você ram torturados e que lutaram pela mesma cau-
que a gente tinha dúvidas se não tinham leva- sabia das ações do seu marido?” “Não sabia de sa, uma causa justa. Porque meu pai não era
do ele vivo e o torturado. Depois é que ficamos nada”, ela dizia. Aí eles chegaram a falar assim: terrorrista, só queria a justiça social, acabar
sabendo que não, realmente ele morreu na hora. “Ela não sabe de nada agora, mas na hora que com a exploração, queria que todos pudessem
Lembro-me dela se debruçando em cima do cai- ela cair aqui dentro, fala tudo”. ter uma vida digna, que, diga-se de passagem,
xão e me lembro muito claramente da cor dele, naquela época os operários não tinham a vida
que era violeta escura. que têm hoje, porque de lá para cá já tivemos
“Eu perdi o meu pai, muitas conquistas.
E aí nós o enterramos, eu me lembro da
caminhada dentro do cemitério, o caixão na
mas acho que não foi Eu perdi o meu pai, mas acho que não foi
frente. Retornamos naquela situação terrível. em vão ele ter lutado em vão ele ter lutado tanto. O preço foi alto,
Também havia um monitoramento em cima mas nós ganhamos a guerra moral. Perdemos
da casa do meu avô. Nós morávamos com ele tanto. O preço foi alto, a guerra bélica; mas ganhamos a guerra moral.
em Diadema e ele foi levado, inclusive, porque mas nós ganhamos a Estamos aqui denunciando os assassinos, fací-
achavam que a minha mãe e o meu avô sabiam noras, torturadores, que não respeitaram nem
do retorno do meu pai. Quando levaram o meu guerra moral. crianças, porque até as crianças dos compa-
avô para interrogatório, os companheiros co- Perdemos a guerra nheiros eram presas.
meçaram a ficar com medo de também leva-
rem a minha mãe, que estava em frangalhos. bélica; mas ganhamos Falamos da família da Revolução porque
crescemos juntos, foi essa família que eu co-
Todos estávamos, mas ela nunca se recu- a guerra moral” nheci. Só fui conhecer a minha família de san-
perou, nunca conseguiu recompor a vida gue com 14 anos, depois da Anistia. Eu não te-
amorosa, nunca mais se casou. Ela ficou com Então existia essa ameaça em cima das espo- nho vínculo muito forte com a minha própria
um trauma muito violento. Guardou por mui- sas dos militantes, até dos próprios filhos. Fi- família de sangue porque a ditadura me tirou
tos anos uma camisa do meu pai, a última cávamos muito vulneráveis, porque não sabía- isso. Claro que tenho o outro lado, a riqueza
camisa. Ela devia ter essa camisa guardada mos o que podia acontecer conosco, existia um dos companheiros, como eu falei, o meu pai foi
até pouco tempo. Temos também todos os medo muito grande. Eu só consegui me sentir afortunadíssimo, porque teve companheiros
documentos do meu pai (carteira de reservis- totalmente segura quando cheguei em Cuba. que arriscaram as suas vidas para nos tirar dos
ta, identidade, carteira de trabalho) até hoje Nem no Chile me sentia totalmente segura. aparelhos, quando o meu pai foi preso, como
guardados. Meu pai quando caiu na clandes- Sentia-me tão insegura nessa situação de ter foi o caso do Roberto, do James Alley, que nos
tinidade entregou para a minha mãe e disse à que correr, porque a minha vida foi essa: nasci, tirou do aparelho. E temos os companheiros

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que articularam a nossa saída do Brasil, os que ginásio no Colégio Equipe. Depois continuei dos (o meu pai, inclusive, porque as marcas das
nos receberam no Chile como o Rafael de Fal- fazendo colegial, fui prestar vestibular, fui torturas eram evidentes quando íamos visitá-
co Neto, figura fantástica. Ele até aconselhou a aprender o português, porque falava portu- -lo na prisão). Mas nunca se acostuma a escu-
minha mãe, que queria voltar do Chile para o guês com a minha mãe em casa, mas não sa- tar. Sempre que escutamos um novo relato é
Brasil: “Não, Isaura, vá para Cuba, lá as meninas bia escrever, não tinha gramática. Fui alfabe- muito doído, dói demais. E é uma sequela que
vão poder estudar, vocês vão ter tranquilidade”. tizada em espanhol. Então, a minha primeira se leva, mas também levamos essa experiên-
língua pode-se dizer que foi o espanhol. Dessa cia, essa bagagem toda.
Um ano, um ano e meio depois da morte do forma, cheguei no Brasil e fui aprender a es-
meu pai a minha mãe ainda estava totalmente crever o português, eu fui aprender geografia, Postei a foto do meu pai uma vez, tirada
desnorteada e ficou por muitos anos assim. Es- história brasileira. Até então eu sabia a his- no Presídio Tiradentes, e o Gregório, filho do
tou falando o nome de alguns companheiros, tória, geografia de Cuba, os heróis cubanos, Virgílio, que cresceu com a gente em Cuba,
mas evidentemente temos inúmeros, inclusive Antonio Maceo, José Marti, mas não sabia perguntou para mim “O que você diria para
os companheiros cubanos, que nos receberam quem era Tiradentes. Então, com 14 anos co- esse jovem, porque hoje você é mais velha do
com tanto amor e nos deram tudo. mecei a aprender o que era o meu país. Nos foi que ele?”. Porque meu pai era jovem, tinha 30
tirada muita coisa, sim. anos quando foi preso. Eu respondi: “Faria
Em agosto de 1979, retornei ao Brasil com a exatamente igual a ele, nem um milímetro
Anistia. Foi incrível, porque voltamos nos dia diferente, nada”. Acho que ele foi um grande
em que foi decretada a Anistia. O advogado “A ditadura nos guerreiro. Eu o perdi, mas tenho certeza que
Idibal Pivetta foi a Cuba justamente para po- até o momento do último suspiro ele não se
der formatar, estruturar o nosso retorno para tirou a infância, arrependeu, porque estava lutando por aqui-
o Brasil, porque como nós não tínhamos nem
passaporte, precisávamos retornar com o sal-
nos tirou metade lo que acreditava. Ele me deixou esse legado
“Lute toda a sua vida por aquilo que você acre-
vo conduto da ONU. A Anistia estava para sair da juventude, nos dita, por aquilo que você acha justo. Mesmo
e o Idibal sabia disso. Ele alertou a minha mãe,
mas ela não queria esperar, “Não, eu quero re-
deixou com sequelas. que isso signifique a sua morte, nunca deixe
de fazer isso”. É a entrega total de um ser hu-
tornar”, já retornaram outros companheiros, Nos tirou nossos mano para uma causa, isso não tem preço. É
faltavam cinco meses para a Anistia e a minha
mãe falou “Não, pode fazer o meu retorno” e aí
pais guerreiros, um orgulho total dele e dos companheiros
dele. Faria tudo igual a ele, acho que ele fez
o Idibal começou a trabalhar nisso. militantes, tios” tudo certinho.
Quando saímos de Cuba, ficamos uma se-
A ditadura nos tirou a infância, nos tirou me-
mana no Peru aguardando o salvo conduto da CÉLIA SILVA COQUEIRO nasceu em 25 de Julho de 1965
tade da juventude, nos deixou com sequelas.
ONU, as passagens e tudo. E aí chegaram as em São Bernardo do Campo (SP). Filha de Aderval Co-
Nos tirou nossos pais guerreiros, militantes, queiro e Isaura Silva Coqueiro, começou a estudar bal-
passagens e, no dia que íamos embarcar, fo-
tios. Paradoxalmente, nos deu uma bagagem let clássico em Cuba e continuou no Brasil. Trabalhou
mos ao centro de Lima, porque a minha mãe na ASTC (Asociación Sandinista de Trabajadores de La
de vida, que poucos têm, porque nós, hoje,
queria fazer umas compras. E quando retor- Cultura) em Manágua/Nicarágua durante o processo da
temos maturidade. Nós, essas crianças, aca-
namos, escutamos no rádio do táxi: “No Brasil Revolução Sandinista (1987 a 1990). Trabalhou no Brasil
bamos amadurecendo à força, a ferro e fogo. implantando projetos de formação de técnicos na área
acabou de ser decretada a Anistia ampla”. Ou
Com 13 anos, eu lia A Revolução dos Bichos e cultural focado na dança para crianças carentes no Para-
seja, nós embarcamos meia-noite, chegamos ná e em São Paulo. Hoje faz faculdade de Gestão de Polí-
1984. Porque o povo cubano é muito culto. Eles
cinco, seis horas da manhã e fomos os primei- ticas Públicas e trabalha no Poder Público de São Paulo.
podem não ser ricos financeiramente, mas é
ros a pisar no solo brasileiro, já com a Anistia
um povo muito culto, porque se promove mui-
decretada. E o meu pai foi o primeiro banido
to a leitura, o debate. Até nisso na escola, na
a retornar morto.
volta ao Brasil, eu era muito mais madura que
Aí fomos reestruturar toda a nossa vida no as minhas colegas. Foi muito difícil entender a
Brasil, que não foi fácil. No meu caso, conhecer linguagem, por exemplo, porque enquanto eu
a família de sangue, que eu não conhecia, por- falava de militância política, elas falavam de
que saí muito pequena do Brasil. A família que outras coisas que para mim eram totalmente
conhecia era a dos companheiros de luta dos alheias ao meu conhecimento.
meus pais. Tivemos infância perdida e meia ju-
ventude perdida também, porque a gente leva Isso é o que me lembro da minha infância.
sequelas, que não são poucas, são muitas. Foi uma infância dolorida. Tivemos uma perda
grande. Não só a do meu pai mas a de outros
Voltei de Cuba com 14 anos. Já estava termi- companheiros. Eu cresci escutando histórias
À direita, Célia se prepara para
nando o ginásio, cheguei aqui e fui concluir o de companheiros que foram mortos, tortura- apresentação de ballet clássico

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Aderval Alves Coqueiro nasceu em 18 de julho
de 1937, em Aracatu (BA). Filho de José Augusto Coqueiro
e Jovelina Alves Coqueiro. Morto em 6 de fevereiro de 1971,
no Rio de Janeiro. Militante do Movimento Revoluvioná-
rio Tiradentes (MRT). Casado com Isaura Silva Coqueiro,
com quem teve duas filhas, Suely e Célia.
Como candango, participou da construção de Brasília
(DF). Desde 1961, passou a viver em São Paulo, onde tra-
balhava como operário da construção civil. Iniciou cedo
sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Desligou-se desse partido e passou a integrar o Comitê
Regional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cen-
trando suas atividades na zona rural. Posteriormente, in-
gressou na Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB. Pas-
sou a viver em São Bernardo e Diadema, na grande São
Paulo, quando trabalhou como operador de máquinas e
vendedor autônomo.
Preso em 29 de maio de 1969, na 2ª Companhia da Polí-
cia do Exército (PE), em São Paulo, foi transferido para
o DOPS/SP e torturado pelo delegado Sérgio Paranhos
Fleury. Finalmente, permaneceu encarcerado no Presídio
Tiradentes. Em junho de 1970, foi banido do território bra-
sileiro, por ocasião do sequestro do embaixador da Ale- Família Coqueiro
manha no Brasil, Ehrenfried von Holleben, ocorrido em 11
1. Foto em família, Aderval
de junho de 1970, dirigindo-se para a Argélia com outros
em pé com a mão no ombro
39 presos políticos. Deslocou-se para Cuba, onde realizou de Isaura
treinamento de guerrilha, e retornou ao Brasil como inte- 2. Suely em Brasília (DF), 1961
grante do MRT. 3. Célia em Brasília (DF), 1961
Coqueiro foi o primeiro banido a retornar ao país. Regres- 4.Coqueiro tocando violão com
sou ao Brasil em 31 de janeiro de 1971, indo morar em um amigos, em Brasília (DF), 1963
apartamento no bairro Cosme Velho, Rio de Janeiro, onde
foi localizado e morto em 6 de fevereiro de 1971. 1
Segundo testemunhas, uma grande área do bairro foi cer-
cada pelos agentes policiais com o objetivo de evitar sua
fuga. Assim que os policiais do DOI-CODI/RJ invadiram o
apartamento, começaram a atirar. Coqueiro foi abatido
pelas costas no pátio interno do prédio.

Isaura Silva Coqueiro nasceu em Almenara,


pequena cidade de Minas Gerais, em 21 de abril de 1941.
Filha de José Américo Alves da Silva e Amélia Alves da Sil-
va. Ainda pequena mudou-se para o sul da Bahia com a
família, onde conheceu e casou-se com Aderval Alves Co-
queiro, sendo a cerimônia religiosa realizada quando ela
tinha 17 anos. No final de 1960 nasceu a primeira filha do
casal, Suely. Mudaram-se para Brasília em 1961, cidade na
qual se realizou a cerimônia civil de casamento em 17 de
julho de 1962.
Em 1963 a família decidiu se mudar para São Paulo em 2 3
busca de melhores oportunidades de trabalho. Em 1965,
em São Bernardo, região metropolitana paulista, nasceu
a segunda filha, Célia.
Quando Aderval foi preso, em 1969, e banido do país na
troca do embaixador alemão em 1970, Isaura permaneceu
no Brasil com as filhas.
Saíram do Brasil somente um ano após o assassinato de
seu marido, em 1971. Permaneceram durante um ano no
Chile e, após o golpe militar chileno, mudaram-se para
Cuba. Lá ficaram por 7 anos, retornando ao Brasil após a
da Lei da Anistia em 1979.

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6

5. Em Diadema, onde 7
Aderval fundou a
primeira Sociedade
de Amigos de Vila
Nogueira
6 e 7. Fotos de Aderval
Coqueiro tiradas no
5 DOPS, pouco antes do
banimento

Os documentos
8. Documentos de Aderval entregues à
Isaura antes de entrar na clandestini-
dade: “Isaura, esses documentos não
me servem para mais nada, guarde que
para você talvez algum dia sirvam”
9. Fichas de Aderval do DOPS

A manchete
10. Manchete de jornal onde a família tomou
conhecimento da volta cladestina de Aderval ao
Brasil e sua morte imediata – documento encontrado
em prontuário do DOPS, no Arquivo do Estado
de São Paulo

10

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(Transcrição da carta à direita)

Argel, 14 de julho de 1970.

Querida Isaura

Beijos com muito amor para você, Suely e Célia.


É com muitas saudades que passo a escrever-te
esta cartinha, para dar-te minhas notícias e ao
mesmo tempo desejando obter as tuas. Nós
estamos bem de saúde.
O tratamento aqui é ótimo, o povo é cem por
cento, mas temos o problema de não falar
a mesma língua, mas já começamos a nos
adaptar, o que mais prejudica é a saudade,
tenho saudades de tudo, tenho saudades até
das visitas, daqueles papos que nós batíamos,
não consigo esquecer um minuto de ti, das
meninas, de pai e dona Amélia. Lembro também
e sinto saudades dos companheiros que ficaram
presos, enfim sinto saudades de tudo, só não
sinto saudades desta maldita prisão, é lógico,
não posso sentir saudades de um ambiente tão
horrível, porque gosto muito da liberdade não só
para mim, mas para todos, todo ser humano tem
direito à liberdade e tem o direito de ser feliz.
Dê lembranças a todos os parentes e amigos,
abraços para o velho e dona Amélia, sempre com
esperança, despeço, beijos na Célia e Suely por
mim, e mais beijos de quem tanto te ama.
Aderval

(Transcrição da carta à esquerda)

Argel, 16 de julho de 1970.

Prezados companheiros do Presídio Tiradentes, Daniel José de Carvalho e mais todos,

Desejo que ao receber esta, estejam todos bem de saúde, pois isto para mim é motivo
de satisfação. Penso que a situação para vocês deve ter piorado, depois dos últimos
acontecimentos, mas mantenham calmos, com calma e coragem tudo se vence.
Companheiros, a nossa viagem foi boa, um pouco cansativa devido à distância, muitas
horas de viagem, mas aqui as coisas são diferentes, já estamos todos recuperados quem
estava rebentado foi submetido a tratamento, também estão bons. Agora depois das
festas da alegria e da emoção, vem a saudade, a preocupação com a situação de vocês e
de nossas famílias, ainda não recebi cartas de casa, já enviei duas cartas e um telegrama,
tudo isto deixa a gente preocupado, mas espero que tudo seja resolvido. Podem estar
certos de que não esqueço vocês, sofremos juntos um bom tempo e isto deixa na gente
um apego aos companheiros. Envio abraços a todos vocês, um abração a Pereira, Beto,
Takao, Manoel Cirilo, Fernando, Marujo e mais todos sem exceção. A Joel, Jairo, Ancelmo
e você. Aquele abraço de um companheiro que podem estar certos não esquece vocês.

Aderval Alves Coqueiro

Um abração aos dois Sérgios, Takaoka, Alípio,


Roque, enfim a todos.

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A vida em Cuba...
1. Célia com Domingos Leon, combatente venezuelano
e amigo da família
2. Suely aos 12 anos (fazendo 3 com os dedos), Isaura,
Isabel, filha de Virgílio e Ilda Gomes com 3 anos, e Célia
com 7 anos no Hotel Havana Libre onde viveram
ao chegar em Havana, Cuba, 1973
3. Na sequência, Suely e Isabel, 1973

1 2 3

4. Isaura no prédio onde moravam


em Havana, Cuba, 1973

5. Célia com a Maria Antonia, filha de


Antonio Benetazzo, falecida de choque
anafilático aos 3 anos e meio, em
Havana, Cuba
6. Festa de 15 anos de Suely e dos
gêmeos Denise e Ailton Lucena, em
Havana, Cuba, 1975
4 6

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“Minhas filhas
por Isaura Coqueiro

O impacto da ditadura na vida das minhas fi-


lhas foi muito grande, muito difícil. Vivíamos
clandestinos, mudando de um lugar para outro,
nunca parávamos. Foi difícil para a mais velha,
Suely, começar na escola. Ela foi estudar mesmo
só depois que o pai foi preso porque naquele tem-
po não podia usar o sobrenome dele na escola,
porque ele estava sendo procurado. A outra, Cé-
lia, era menor, mas mesmo assim sofreu porque
essas mudanças impactavam nosso sistema ner-
voso. O marido sendo procurado, a qualquer hora
podia ser preso, como foi mesmo. E gente não
sabia se ele estava vivo ou morto.
Embora minhas filhas não reclamassem, a gente
sentia que não era fácil, ir de um lugar para outro,
elas não tinham liberdade para brincar com ou-
tras crianças. Quando a gente alugava uma casa,
aparelho, elas não podiam fazer amizade com os
vizinhos, visitar os vizinhos nem receber visita.
Era assim em São Paulo e no Mato Grosso. Porque
fomos para o Mato Grosso por um ano, antes de
ele ser preso. Meu marido ficava em São Paulo e
nos mandou primeiro para a Bahia e depois para
o Mato Grosso. E ia nos ver a cada três meses. De-
pois, na época que ele estava muito procurado em
São Paulo, fomos de novo para o Mato Grosso. Fi-
camos lá os meses de fevereiro, março e abril de
1969. No dia 29 de maio de 1969 ele foi preso.
Eu não sabia se ele estava vivo ou morto, só
sabia que tinha tido um tiroteio. Comprei um jor-
nal, onde não se dizia se ele estava vivo ou mor-
to. Depois de muito tempo que eu fiquei sabendo
que ele estava preso, que o pai dele já estava fa-
zendo visitas.

Isaura e Suely em Brasília (DF), 1963

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ficaram numa espécie de prisão”

Voltamos para São Paulo. Fomos morar clandes- entrado em contato comigo ainda, ele estava no o povo cubano é muito solidário, muito alegre.
tinos e as meninas não podiam nem estudar nem Rio e eu em São Paulo. Lá era tranquilo, as meninas puderam estudar, a
brincar com os vizinhos. E elas se ressentiam de gente tinha tudo, os cubanos davam tudo, casa,
não poder brincar com as meninas da vizinha. Tivemos que ir para o Rio. Levei as crianças, moradia, escola das meninas. Foi a época que fi-
que viram o pai morto no caixão. A Célia, que ti- camos mais tranquilas.
Durante a clandestinidade elas ficaram numa nha 4 anos, fala: “Eu não lembro muito do meu
espécie de prisão. Não era em todo lugar que eu pai, não lembro muito da cadeia. A lembrança Eu não fui presa, mas não podia voltar para o
podia levá-las para passear. Isso afetava a gente e maior que eu tenho é dele no caixão”. Brasil, porque tinha a morte do meu marido e po-
afetava as crianças também. Sobre o pai estar dis- dia ser presa.
tante, eu explicava para as meninas que ele estava Foi muito difícil para mim, para as meninas, para
o meu sogro. Foi um susto muito grande, a gente Aí chegou a época da Anistia e foi quando vol-
trabalhando. Eu dizia “o pai foi para São Paulo”.
não esperava que ele estivesse no Brasil e de re- tei ao Brasil. Fui a segunda pessoa a voltar, pri-
A Suely começou a estudar com 8, 9 anos; quan- pente vimos na tevê que tinha sido assassinado. meiro veio uma amiga nossa, e depois nós. Che-
do o pai foi preso eu matriculei ela na escola. Meu Foi a vizinha que viu a notícia com o nome do meu gamos no dia da Anistia. Tinha um advogado, o
marido ficou preso por um ano. Eu levava elas para marido envolvido e foi em casa me chamar. Idibal Pivetta, aqui no Brasil que esteve em Cuba.
visitar o pai na prisão. A mais velha ia a cada quin- Conversamos com ele, que ficou preparado para
ze dias por conta da escola, para não faltar na aula Como podiam ficar perseguindo a mim e às receber pessoas que estavam voltando do exte-
todas as vezes que íamos visitá-lo. A pequena eu meninas, nós fomos embora do Brasil. Fomos rior, de Cuba. Ele nos recebeu, nos esperou no
levava toda vez que ia, às quartas-feiras. para o Chile, onde moramos um ano e pouco. aeroporto.
Depois decidimos ir para Cuba, que era o único
Elas se ressentiam muito de o pai estar preso. lugar onde eu sabia que estaríamos seguros, que Quando cheguei, houve uma pequena inves-
Não podíamos falar o motivo da prisão, tinha que as meninas poderiam estudar e ter tudo que o tigação no aeroporto. Me perguntavam o mo-
inventar uma desculpa, não podia mentir nem governo cubano dava. Mandaram um convite de tivo de eu ter ido à Cuba, aquelas provocações.
falar a verdade. Quando nós chegamos do Mato Cuba e eu fui com elas. Moramos sete anos lá e Falei que tinha sido muito bem tratada em Cuba.
Grosso, já fazia três meses que ele estava preso. Eu um ano e pouco no Chile. Foram, no total, oito E quando saí, a minha família estava no aeropor-
vi fotos dele no jornal com a cara toda inchada. anos fora do Brasil. Quando voltamos, a Célia es- to nos esperando. Na chegada, a gente leva um
tava com 14 anos. impacto, principalmente as meninas que ficaram
Quando alguém caía, volta e meia ele ia para
fora do país por tantos anos. Elas sentiam muita
a tortura. Mas quando nos encontramos, senti
Já tínhamos muitos amigos que estavam em falta de Cuba e depois, com o tempo, foram se
ele muito abatido, muito magro, estava com uma
Cuba, os Carvalho, a Dina, viúva do Devanir, os adaptando.
costela quebrada, com problema no ouvido.
filhos da Dina. No começo, as meninas sentiram,
De tudo que as meninas passaram, a prisão do
Ele ficou um ano na cadeia e quando foi para mas logo aprenderam o idioma, sentiram intimi-
pai marcou muito. Mas a morte foi o que mais
a Argélia, banido, conversávamos por cartas. dade com o espanhol, eu que demorei a aprender.
marcou, para mim também. Fiquei sabendo
Quando fez oito meses que ele estava fora do Lá elas brincavam com as meninas da vizinha.
como ele entrou no Brasil agora quarenta anos
Brasil, ele entrou clandestino no país. Eu não sa- Tinha aquela saudade da família e tal. Para mim
depois. Eu nem sabia como ele tinha entrado,
bia que ele estava vindo. foi difícil. Fui mais por causa delas, mas sincera-
qual era organização que ele estava, como ele
mente, eu senti muito.
Foi quando foi morto. Fiquei sabendo que ele tinha morrido.
estava no Brasil na hora da notícia da morte dele, Em Cuba aí sim me senti segura, com as me-
no Rio. A gente nem sabia, ele ainda não tinha ninas seguras. O clima de lá é igual ao da Bahia,

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74 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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Adotados pela Revolução Cubana
por Virgílio Gomes da Silva Filho

Eu sou Virgílio Gomes da Silva Filho, filho Fomos retirados às pressas da casa e levados meu pai. Eles não se dirigiam tanto a mim, mas
de Virgílio Gomes da Silva. Há minutos atrás para o carro da polícia. Quando passei por um ao meu irmão, perguntando onde estavam as
um companheiro me perguntava se notamos dos carros, vi uma outra imagem muito forte armas, onde estava o meu pai, quem eram os
que tínhamos ficado com alguma sequela por que ficou gravada na minha memória. Foi de companheiros do meu pai, quem visitava a mi-
conta do que aconteceu conosco. Eu falo que uma pessoa que eu não reconheci, que estava nha casa. E obviamente não tínhamos respos-
não. Porém, sempre que tocamos nesse tema sentada no banco de trás do carro, todo amorda- tas para essas perguntas. É totalmente absurdo
eu não consigo falar. Mas vou falar. O que sem- çado, ensanguentado. Estava sem camisa, com pessoas que se diziam profissionais da lei inter-
pre me vem à memória é a nossa relação fami- uma faixa no peito, olho todo roxo. Depois eu rogar crianças sobre uma coisa para as quais
liar. Assim como a vida de qualquer família da vim saber que esse era o meu tio Francisco Go- elas sabiam que não tínhamos resposta. Não sei
classe operária naquela época, nós tínhamos mes da Silva, o Chiquinho, irmão do meu pai. qual era o objetivo deles fazendo tais perguntas
poucas coisas, mas éramos felizes. O convívio Isso me marcou muito. Acho que me marcou em tom de interrogatório, de intimidação.
era bom e alegre. Foi assim até que comecei tanto porque eu percebi que a brutalidade que
a perceber que o meu pai não estava tão pre- eles cometeram entrando em casa iria resultar Eu tinha 6 anos, o Vlademir 7 e pouco, o Gre-
sente. Muitas vezes ele tinha que se ausentar e no que eu estava vendo dentro do carro. O que gório tinha 2 e a Isabel quatro meses. O curio-
hoje sabemos o porquê. A luta dele exigia isso fizeram lá dentro com o Manoel Cyrillo ia se tor- so é que nessa data em que fomos sequestra-
para a segurança da família. nar aquilo que eu estava vendo dentro do carro. dos pela polícia, o meu pai já tinha sido preso e
provavelmente já estava até sendo morto. Mas
Na época, eu tinha 6 anos de idade já com-
pletados. Estávamos em São Sebastião num dia
“Eles não se dirigiam eles continuavam perguntando pelo Virgílio.
Não dá para entender. Acho que era um negó-
chuvoso, ansiosos para ir à praia, mas a chuva tanto a mim, mas ao meu cio mórbido, doentio. Eu imagino que quando
não nos deixava. Na esperança de que o sol apa-
recesse, eu e meu irmão [Vlademir] estávamos
irmão, perguntando onde prenderam o Virgílio automaticamente todo
mundo ficou sabendo do troféu que eles ti-
sentados na varanda da casa quando vimos se estavam as armas, onde nham conseguido, mas ainda assim continu-
aproximar uma comitiva de três ou quatro car-
ros pretos. Eles desciam na frente de uma casa,
estava o meu pai, quem aram torturando as pessoas, perguntando por
alguém que já tinham matado. Então, da Ope-
todos entravam e saíam, entravam no carro de eram os companheiros ração Bandeirante fomos levados ao Juizado
novo, voltavam, andavam mais, desciam em ou-
tra casa e assim iam fazendo batidas em cada
do meu pai, quem visitava de Menores, uma casa com muitas crianças.

casa. Isso até chegar na frente da nossa, onde a minha casa” [Neste instante, Ilda Martins da Silva, mãe
entraram. Alguns pela janela, outro pelos fun- de Virgílio, interrompe e diz:] “Acho que antes
dos, outro pela frente. Foram empurrando tudo. Estava chovendo na estrada e a forma impru- vocês estiveram no DOPS por dois dias. O Vla-
Estavam todos armados com metralhadoras, re- dente como dirigiam ocasionou um acidente. demir diz isso”.
vólveres. O que eu mais lembro na época, o que O carro rodopiou e capotou. Minha mãe estava
mais me marcou foi o jeito que eles entraram com a Isabel nos braços e a preocupação com Na minha memória de 6 anos, tem coisas que
e pegaram o Manoel Cyrillo. Jogaram-no no ela era tão grande que minha mãe se esqueceu eu me perco. Lembro que a gente ficou num
chão, começaram a dar chutes nele. Eram cinco de se proteger. Ao final, ela acabou desmaian- lugar que dava para ver o Minhocão, mas não
ou seis em cima do Cyrillo e o resto tudo ba- do. Isso nos apavorou ainda mais, ver a minha sei se foi antes ou depois. Mas sempre acom-
gunçando a casa. Aquilo era um caos na minha mãe desacordada com a Isa nos braços e nós panhado por aquela mulher e outro cara. Mas,
cabeça. Não sabia o que estava acontecendo. Es- não sabíamos o que fazer. a partir daí, o que mais me marcou foi o Juiza-
távamos minha mãe, o Vlademir, a Isabel e eu. do de Menores, que era um lugar onde tinha
Não sei o quanto de tempo isso durou. Aí me lembro de nós já na Operação Bandei- muitas crianças. Dormíamos todos numa sala
rante. Estávamos sentados numa sala pequena, onde havia camas separadas. E em outro quar-
eu e o meu irmão Vlademir. Nesse momento, a to minha irmã ficava num berçário, onde tinha
À esquerda, Virgílio Filho, na casa
dos tios, durante a prisão de sua
Isabel já não estava mais conosco. E uma mu- outras crianças de berço também. Era numa
mãe, em São Paulo, 1969 lher insistia muito em perguntar onde estava casa, que não sei onde, não sei o endereço.

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Também nunca procurei saber onde foi isso, Eu ainda não tinha noção da morte do meu pai. voltei de Cuba o meu primo tinha ela guardada
mas era uma casa grande como se fosse uma E minha mãe ficou mais nove meses presa. Até num canto da sala da casa, envernizada. Aquilo
casa normal, com quintal nos fundos, onde as nossa saída do Juizado, não tínhamos visto a me emocionou muito.
crianças brincavam. Todos as crianças que minha mãe, não sabíamos dela. Tenho meio que
chegavam lá tinham a cabeça raspada, aque- um bloqueio mental com relação a isso, não sei Não tínhamos mais condições de morar no
la coisa para não proliferar piolho. Mas eu me em que momento foi, se transcorreu muito tem- Brasil com essa forma de sobrevivência. As-
revoltei e não deixei cortarem meu cabelo. Fui po para começarmos a ter contato com a minha sim, companheiros orientaram e falaram para
o único que ficou com o cabelo comprido ali. mãe. Nós éramos levados até uma esquina pró- a minha mãe que nos ajudariam a sair do país.
Lá, de dia, as atividades das crianças eram xima do presídio Tiradentes, de onde minha Isso foi em 1972. Saímos com destino ao Chile.
normais. O ruim mesmo era de noite. Eu não mãe conseguia nos ver desde uma torre do pre- Todo mundo com nome frio, documento fal-
queria que a noite chegasse, porque tínhamos sídio. Ela tirava a mão por uma frestinha, uma so. Moramos um ano no Chile no período do
que ser separados e tínhamos medo de não janelinha bem estreita e abanava um jornal. E Salvador Allende.
nos vermos mais. Além disso, era de noite que minha avó ficava ali com a gente naquela esqui-
batia a saudade da nossa mãe e da casa, sem- na. E quando aparecia o jornal a minha avó fa- Em março de 1973 fomos para Cuba. Lá foi
pre que escutávamos choros e soluços de lava: “Dá tchau que a sua mãe está vendo vocês onde conseguimos ter vida digna, infância
outras crianças. agora”. A gente dava tchau para a minha mãe, feliz. Mesmo com a ausência do pai, nós tive-
mas nós não a víamos. Nessa época, minha mãe mos todo apoio, todo suporte da Revolução
O pessoal que cuidava das crianças nos leva- estava incomunicável. Cubana, a solidariedade de todos os cubanos.
va para passear durante o dia, mostrando ca- Graças à Revolução Cubana hoje somos forma-
sas e perguntando se queríamos morar numa dos, profissionais. Sou engenheiro mecânico e
casa daquelas grandes, bonitas, com famílias
que podiam dar melhores condições para nós,
“O pessoal que cuidava engenheiro industrial. Tenho pós-graduação
em construção de maquinário. Meus irmãos
onde havia brinquedos mais bonitos. E nós, das crianças nos levava também são formados. Vlademir é engenheiro
na nossa relação, eu e o meu irmão Vlademir,
tínhamos um código natural onde eu sempre
para passear durante geólogo, hoje concursado da Petrobrás; Isabel
é engenheira geóloga também e Gregório en-
deixava a resposta para ele. Eu sempre optei o dia, mostrando casas genheiro civil. Ou seja, o que todo pai faz pelo
pelo silêncio. E o meu irmão sempre foi muito
maduro para a idade. Ele conseguia lidar com
e perguntando se seu filho, o que é dever de um pai, dar assistên-
cia econômica e garantir a educação do filho
essa situação melhor do que eu. queríamos morar para se tornar um homem de bem, um homem
Então, hoje, depois de muito tempo eu enten- numa casa daquelas produtivo, a Revolução Cubana fez com a gen-
te. Fomos literalmente adotados pela Revolu-
do por que de noite ele ia na minha cama, me
levantava e me levava para o berço da Isa. E a
grandes, bonitas” ção Cubana.
gente dormia debaixo do berço dela. Também Mesmo lá em Cuba, apesar da colônia de
lembro que, várias vezes, como eu era mais ágil O que me lembro de visitas ao presídio foi
exilados brasileiros, existia a vontade de vol-
que o meu irmão, ele me levava na cozinha da de um período mais à frente. Nós recebíamos
tar, de continuar a luta. Começamos a militar
casa e fazia pegar a lata de leite Ninho, prepa- presentes e lembranças dos presos políticos,
na juventude do Partido Comunista cubano.
rava a mamadeira da Isabel e dava de noite artesanatos que eram fabricados por eles mes-
Estudamos, nos prepararmos politicamen-
para ela. Ele tinha essa lucidez. mos lá dentro. Teve até uma bicicleta que ga-
te para poder continuar a obra daqueles que
nhamos, que foi presente dos companheiros do
tinham caído. O nosso sonho era poder fazer
Ficamos lá por uns três meses, até que os presídio. Aí sim me lembro que íamos visitar e
isso, poder ver realizada aqui no Brasil o que
meus tios conseguiram nos resgatar. E como fazer tipo um piquenique lá dentro, era como
estávamos vivendo em Cuba. Havia aulas de
éramos quatro irmãos não dava para ficar todo uma festa para mim lá.
português, geografia, história. O Takao Ama-
mundo com um parente só. Fomos distribuí-
Durante esse período de prisão da minha no, e vários outros eram nossos professores
dos, repartidos pelos meus tios. Eu fiquei com
mãe nós permanecemos com meus tios. E naquela época. Tínhamos a parte política e a
a minha tia Nair, irmã da minha mãe, o Vlade-
quando ela saiu da prisão nós fomos morar parte educacional também, aprendíamos por-
mir ficou com meus tios Nora e Miguel, tam-
em Poá, num terreno que um tio meu tinha tuguês, porque eu praticamente fui alfabetiza-
bém irmão da minha mãe. O Gregório com a
cedido. Começamos a construir uma casa ali. do em espanhol. Havia grupos culturais, sendo
minha tia Iraci e a Isabel com a minha tia Geni.
Minha mãe não conseguia emprego em lugar que um dos mais entusiastas era o Pedro Pres-
Comecei a estudar na escola Carlos Gomes,
nenhum e nós tínhamos que tentar sobreviver tes, filho de Luís Carlos Prestes. Também havia
em São Miguel Paulista. E começamos a ver
de algum jeito. Minha avó fazia paçoca, amen- um grupo musical e assim éramos introduzi-
a crua realidade da sociedade capitalista. Eu
doim doce para vendermos. Em São Miguel dos à cultura brasileira. Era muito forte e isso
vendia sorvete na rua, depois da escola. Mas às
Paulista, quando a minha mãe ainda estava alimentava todo dia a nossa vontade de voltar.
vezes comia mais do que vendia.
presa, uma das minhas atribuições foi ser en- E o retorno aconteceu em novembro de 1993,
Quando saímos do Juizado de Menores eu graxate. A gente tinha uma caixinha de engra- quando houve um choque cultural enorme.
já tinha completado 7 anos e o meu irmão 8. xate, que depois de vinte e tantos anos, quando Ainda hoje eu não me acostumo.

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Em Cuba, primeiro moramos num hotel du- 1 e 2. Vlademir e Virgílio
3. Vlademir, Gregório e Virgílio
rante três anos, sem pagar um centavo. Minha
4. Virgílio, em São Paulo, 1969
mãe tinha que brigar para trabalhar de volun-
Sequência de fotos feita por
tária no hotel para poder se sentir útil. Mas não Zilda, amiga da família, na casa
queriam deixar ela fazer nada. Davam escola, dos irmãos de Ilda no período
da sua prisão para que soubesse
habitação, e tudo no hotel era de graça. Nós que seus filhos estavam bem.
apenas tínhamos que assinar o que consumí-
amos. Depois de três anos, o governo cuba-
no nos ofereceu um apartamento com quatro A partir da aparição do laudo de necrópsia do
quartos, sala, cozinha, banheiro, totalmente meu pai em 2004, onde dizia que ele tinha sido
mobiliado com tudo, sem pagar um centavo. encaminhado do IML para o cemitério de Vila
Nesse apartamento, moramos durante dezoito Formosa, ficou demonstrado que ele realmen- 1
anos. Quando falo em choque cultural é por- te tinha sido encaminhado para lá. No livro de
que lá nunca passamos o trinco na porta, os entrada dos corpos na Vila Formosa dessa data
vizinhos não precisavam bater na porta nem há uma página arrancada. Então não se sabe em
anunciar visita, entravam como se fossem da que quadra ele foi sepultado e isso proposital-
família e o mesmo ocorria na casa deles. Se fal- mente, claro. Um dos funcionários do cemitério
tava açúcar numa casa, na outra tinha. Se falta- Vila Formosa relatou que há uns tempos atrás
va café numa casa, na outra tinha. Todo mundo havia sido feita uma remoção de ossos, quando
se pergunta como a Revolução consegue, como jogaram ácido para corroer os ossos e impedir
o povo cubano consegue sobreviver nesse blo- a identificação numa das quadras e que prova-
queio econômico tão feroz que tem sobre ele. E velmente poderia ter sido a quadra que tinham
um país que não tem nada de recursos naturais. sido sepultados os “terroristas” da época. E que
Eles conseguem sobreviver e estão felizes e é tinha sido feito um ossário debaixo. Mas lá há
isso, a solidariedade alimenta. Nós fomos tes- uma laje, uma escada e um monte de sacos
temunhas disso daí e chegando aqui no Brasil cheios de ossos, sem identificação nenhuma.
foi um choque enorme, tão grande, que até hoje Ali é um descaso total, é a coisa mais vergonho-
a gente não se acostuma. Em Cuba, tinha uma sa que pode existir. 2

rua e uma escola com o nome dele. O mais im-


pressionante era isso, o meu pai lá em Cuba era
um herói. “Impossível aceitar
Eu acho que o mais importante agora é dar
pessoas que mataram
continuidade nesse processo de resgate da ocupem cargos públicos,
verdade, memória, tomar o exemplo de países
como Argentina, Chile e Uruguai que conse-
sejam exemplos de
guiram colocar no banco dos acusados aqueles cidadania, para
que são responsáveis por tantas mortes, tantas
torturas. É algo que temos que exigir, é impos-
gerações e gerações”
sível aceitar pessoas que mataram ocupem
cargos públicos, sejam exemplos de cidadania, O pessoal acha que está lidando com sei lá
para gerações e gerações. Isso é ultrajante, hu- o quê, com qualquer objeto, menos com res-
milhante e inaceitável. E usando da mentira, tos mortais E o local é impressionante, por- 3
da amnésia que a história brasileira tem a res- que lembra até aqueles ossários da Segunda
peito desse período. Guerra Mundial, dos campos de concentração
nazista de tão desorganizados que era aquele
Outra coisa super importante é chegar ao negócio, tão assombroso... Aquilo me chocou
encontro dos restos mortais dos desapareci- muito, como pode ser que ainda exista hoje em
dos. Essa luta tem de continuar, não importa dia um negócio desses? Então, para mim foi
quanto tenha de escavar, alguém tem que sa- complicado.
ber onde estão. Não falo só do meu pai, falo de
outros vários que estão desaparecidos até hoje.
VIRGÍLIO GOMES DA SILVA FILHO nasceu em São Pau-
E eu ficaria feliz se nos livros de história, ama-
lo (SP) em 20 de novembro de 1962. Filho de Virgílio
nhã, eu visse que estão ensinando para as no- Gomes da Silva e Ilda Martins da Silva. Formado em En-
vas gerações que no período de 1964 até 1979 genharia Mecânica e Industrial trabalha numa Empresa
se matou muito aqui no Brasil. metalúrgica em Indaiatuba, interior de São Paulo.

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Virgílio Gomes da Silva nasceu em 15 de agosto Família de Virgílio
de 1933 em Sítio Novo, em Santa Cruz (RN), filho de Sebastião
Gomes da Silva e Izabel Gomes da Silva. Desaparecido em 29 de 1. Ilda e Virgílio namorando, em São Paulo, 1960
setembro de 1969, em São Paulo. Dirigente da Ação Libertadora 2. Virgílio aos 17 anos, no Rio Grande do Norte
Nacional (ALN). 3. Ilda, grávida do Virgílio e Vlademir no Zoológico
em São Paulo, 1962
Era metalúrgico e casado com Ilda Gomes da Silva, com quem teve
4. Virgílio e Vlademir no bairro de São Miguel
quatro filhos. De uma família pequena e humilde, Virgílio e seus
Paulista, São Paulo, 1962
parentes vagaram por várias partes do país depois de deixarem o
5. Vlademir, na casa onde viviam em Poá (SP), 1965
Rio Grande do Norte. No Pará, a família trabalhou em um grande
6. Vlademir e Virgílio, na mesma casa, 1963
seringal da companhia estadunidense Ford, em Fordlândia. Em
1945, Virgílio voltou ao seu estado natal com a mãe e dois irmãos.
A mãe passou a viver da agricultura de subsistência em um pedaço
de terra em Sítio Novo. Em 1951, sem perspectivas, Virgílio seguiu
para São Paulo. Na capital paulista, trabalhou como garçom bal-
conista, mensageiro e guarda. Comprou um bar com as economias
trazidas pela mãe, quando ela veio morar em São Paulo. Sua mãe
não se adaptou ao clima da cidade e retornou ao Nordeste, em
1957. Virgílio vendeu o bar e foi morar no bairro de São Miguel Pau-
lista com os irmãos, tornando-se operário da Nitroquímica.
Ainda em 1957, ingressou no PCB e passou a integrar o Sindicato
dos Químicos e Farmacêuticos de São Paulo, exercendo liderança
também entre os trabalhadores da Lutfalla. Em 1963, comandou
uma greve de três mil operários da Nitroquímica, durante a luta
pela conquista do 13° salário. Ao buscarem apoio dos empregados
da Lutfalla, forçaram a entrada, quando o dirigente da empresa
atirou em um operário e em Virgílio, ferindo-o gravemente. Assim
mesmo, os operários conseguiram entrar na fábrica e paralisar as 1 2
máquinas. Depois disso, Virgílio foi transferido para a sede do sin-
dicato, de onde só saiu após o golpe de 1964. Nessa época, foi preso
por quinze dias. Seis meses após sua prisão, percebeu que estava
sendo seguido e fugiu para o Uruguai. Lá permaneceu por pouco
tempo, pois, preocupado com sua atividade política no Brasil e
com seus familiares, retornou ao país. Em 1967, seguindo a orien-
tação de Carlos Marighella, integrou a Dissidência do PCB. Entre
outubro de 1967 e julho de 1968 fez treinamento de guerrilha em
Cuba como integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN).
No início de setembro de 1969, comandou a ação do sequestro
do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick,
obtendo a libertação de quinze prisioneiros políticos brasileiros.
Foi preso em 29 de setembro de 1969, na Avenida Duque de Caxias,
em São Paulo, por agentes da Operação Bandeirante (OBAN) em
setembro de 1970. Virgílio chegou à sede da OBAN encapuzado,
vindo a morrer 12 horas depois.

Ilda Martins da Silva nasceu em 30 de maio de 1931


em Lucianópolis (SP). Mudou-se para a cidade de São Paulo em
1941, e foi trabalhar na empresa Nitroquímica de São Miguel
Paulista. 3 4

Foi no movimento sindical que ela e Virgílio se conheceram. Ca-


sados, tiveram quatro filhos.
Em 29 de setembro de 1969, Virgílio foi preso, Ilda foi sequestra-
da em São Sebastião, no litoral de São Paulo, junto três de seus
quatro filhos: Vlademir, Virgílio e Maria Isabel, um bebê de qua-
tro meses. Gregório, então com dois anos, não foi levado por não
estar em casa. Ilda permaneceu presa por nove meses, ficando
incomunicável sem qualquer notícia dos filhos por quatro meses.
Na Operação Bandeirante, foi torturada. Depois, foi transferi-
da para o DOPS e, por último, esteve no Presídio Tiradentes. As
crianças foram enviadas ao Juizado de Menores e ameaçadas por
agentes da ditadura de serem entregues para adoção.
Perseguida após sair do Presídio Tiradentes, seguiu um ano de-
pois para o exílio, inicialmente no Chile, por um ano, e depois
em Cuba, de onde retornou após a formatura dos quatro filhos,
em Havana. Desde então, Ilda e seus filhos seguem lutando por
memória, verdade e justiça. Hoje, vive em São Paulo (SP).

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7. Capa do Jornal Última Hora, com manchete
que noticia a caça aos sequestradores do
embaixador norte-americano, 1969
8. Francisco, irmão de Virgílio, com sua mãe
Isabel durante visita na prisão
9. Virgílio em uma manifestação do
Sindicato dos Químicos de São Paulo
10. Francisco, irmão de Virgílio, na prisão

8 9

7 10

11. Isabel, 1969. Foto feita pelos tios Geni, irmã de


Ilda, e Dagoberto, que cuidaram dela durante a
prisão de sua mãe, em São Paulo
12. Ilda, Isabel, Vlademir, Virgílio e Gregório na rua
onde moravam durante o exílio no Chile, 1972

11 12

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A vida em exílios...
1. Gregório, Isabel e Virgílio na casa da Iara Xavier, no
aniversário do seu filho Arnaldo, em Cuba, 1976. Ao fundo foto
de Carlos Marighella coberta por bexigas verde e amarela
2. Ilda e Virgílio dançando, Cuba, 1985
3. Cédula de Identidade de Isabel Gomes, Chile, 1972
4. Gregório em Cuba, 1983
5. Vlademir em Cuba, 1982
6. Vlademir, Ilda, Teresa, esposa do Vlademir,
e Isabel em Cuba, 1984
7. Carteira de estudante de Virgílio, Cuba, 1978
8. Ilda e Isabel em Cuba, 1986
9. D. Isabel, mãe de Virgílio, em viagem à Cuba, com Isabel,
Gregório, Ilda, Virgílio, Niurkis e um amigo da família.
Foto tirada em frente ao prédio onde a família morava, 1985
10. Gregório, Isabel, Virgílio, Ilda e Vlademir no Brasil, 2010

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“Diziam que eu era muito perigosa”
por Ilda Martins da Silva

Acho que a minha história todo mundo já meses, embora eu ainda estivesse incomuni-
conhece bem, então só vou reforçar. Fui pre- cável, deixaram a Isa entrar no presídio. Ela
sa em São Sebastião, com três dos meus qua- era bebê, tinha uns oito meses, ainda não
tro filhos. O Gregório não foi preso porque andava. Eu fiquei louca com a minha filha lá.
estava com a minha sogra. Foram presos o Passeava com ela, mostrava para uma, para
Virgílio, com 6 anos, o Vlademir, com qua- outra. Até que caí na escada. Havia uma es-
se 8 e a Isabel, com quatro meses. No cami- cada da torre para outras celas e torci o pé e
nho de São Sebastião para São Paulo houve caí. Chamaram a polícia, que veio, me alge-
um acidente sobre o qual eu nunca falei. O mou, me colocou numa maca e levou para
carro capotou, eu desmaiei, os meus filhos o hospital. Na saída, entreguei a Isa para a
estavam junto comigo e viram o acidente minha irmã que estava lá esperando. Meus
também. Fui levada ao hospital para ver se filhos estavam lá também, mas acho que
tinha me machucado. Depois viemos para eles não me viram deitada na maca.
São Paulo e fomos diretamente para a Ope-
ração Bandeirante, onde começaram a me Tem também a história do álbum de fo-
interrogar, fazer perguntas sobre o Virgílio. tografias. Quando me entregaram as foto-
grafias no presídio para ver os meninos, as
Eu falei para eles que tinha as crianças carcereiras vieram na hora que terminou a
pequenas, que a Isabel precisava se ali- visita e queriam que eu entregasse as foto-
mentar e eu precisava de alimentação para grafias porque eu estava incomunicável. En-
eles. Então deram uma mamadeira para a tão as companheiras todas se revoltaram, fa-
Isa e depois fui separada dos meus filhos. laram: “Como que iam pegar a fotografias?”
Sei que eles sofreram. E eu sofri ainda mais, Disseram que fotografia não transmitia
porque não sabia nada e aquela situação nada, que eram apenas os meus filhos. Uma
era dura para mim, sozinha na Operação das carcereiras falou que não, que eu não po-
Bandeirante, sem ter notícias de ninguém e dia ficar com as fotos deles porque estava in-
perder o que era mais querido para mim, os comunicável. Mas as companheiras todas se
meus filhos. revoltaram e eu consegui ficar com as fotos.

Fiquei incomunicável por quatro meses São coisas que vão marcando, a gente vai
no presídio. Todo mundo tinha visita, mas lembrando aos poucos e aí cada coisa é uma
eu não. Diziam que eu era muito perigosa mais dura que a outra, mais triste, e cada coi-
e não podia ter visita. Meus filhos iam todo sa que a gente vai lembrando é como se desse
domingo me visitar, mas não deixavam eles uma punhalada. Eu peço desculpas. A gente
entrarem. Até que um dia, depois de quatro chora é porque é duro mesmo, quem passou
por isso sabe que é difícil a gente relembrar
Ilda, ainda solteira do passado sem chorar.

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A inocência perdida
por Ângela Telma Oliveira Lucena

Sempre que a gente fala desses assuntos, desapareçam. Porque se a polícia chegar a para mim”. Nós fomos formando uma fa-
as pessoas têm uma tendência a achar que gente tem que sair correndo”. Parece ma- mília. Não era uma família biológica, mas
filho de comunista é amargurado, mal-hu- luco dizer isso para crianças. Mas quem é foi mais importante e mais significativa do
morado, irritadiço. Somos seres humanos filho de nordestino entende. Nordestino fala que a nossa própria, com quem nós não
como todos os outros. Passamos por um claramente com os filhos. Nossos pais eram convivemos.
processo difícil, sem dúvida nenhuma, mas muito claros, muito objetivos quando con-
isso não nos tornou monstros e nem insen- versavam com a gente. Eu era perdidamente apaixonada pelo
síveis. Temos a nossa dor, claro. Todos nós Bacuri, porque ele tinha olhos lindos. Ele
temos. Até os filhos dos comunistas. Ao “Nós perdemos me pegava no colo e eu ficava olhando para
contrário do que dizem, que comunista a inocência muito aquele homem. Acho que meu sonho era ca-
sar com um homem de olho claro por conta
não tem sentimento.
cedo. Porém, perder a do Bacuri. Eu olhava para ele, aquele ho-
Sou Ângela Telma Oliveira Lucena. Sou mem tão bonito. E falava para minha mãe:
filha do Doutor, que era o apelido do meu
inocência não significa “Ele é tão bonito, não é?” Muitos anos de-
pai. Como ele era um cara de extrema in- que nós também não pois, casei com um homem de olhos azuis.
teligência, as pessoas o chamavam assim,
apesar de ele ser analfabeto. Minha mãe, fôssemos crianças Então, fomos tendo várias famílias, vários
Damaris Oliveira Lucena, era operária e a e tivéssemos irmãos, primos, tios. Para falar a verdade,
nossa casa sempre foi um ponto de reunião de muita gente eu vim a descobrir o nome
dos companheiros e de muito movimento. momentos felizes” recentemente. Eu não sabia como eles se
chamavam. Essa convivência com os com-
Assim, eu poderia dizer que nós perde- Então, no momento em que ficamos panheiros foi muito forte, muito marcante,
mos a inocência muito cedo. Porém, perder clandestinos, para lá e para cá, aconteceu porque eles faziam o papel dos pais que
a inocência não significa que nós também uma coisa muito curiosa. É uma lembrança não estavam ali. Ficávamos nos aparelhos,
não fôssemos crianças e tivéssemos mo- muito boa que eu tenho, porque, na verda- dormíamos aqui e acordávamos ali. Um
mentos felizes. O que tínhamos era muita de, eu tive muitos pais. E tem um pai em penteava o cabelo e o outro escovava os
clareza sobre a atividade dos nossos pais. especial que eu quero destacar aqui, que dentes. Você dormia com um companheiro
Sabíamos no que eles estavam envolvidos, me tratou com muito carinho, com muito de noite e quando acordava já era outro.
embora não imaginássemos a magnitude respeito, que era o Eduardo Leite Bacuri.
e os desdobramentos que poderiam trazer. Ele frequentava muito a nossa casa, tinha Tem algo que eu gostaria de destacar.
muita paciência, me pegava no colo, tro- As pessoas sempre colocam em dúvida
Mas a nossa mãe sempre dizia: “Olha, não cava minhas fraldas, me dava comida. Eu se eu realmente consigo lembrar da morte
se afastem muito de casa, brinquem aqui tive a possibilidade de contar isso para a do meu pai. Foi um fato para mim muito
perto, cuidado com o que vocês falam, não Duda [Eduarda, filha de Bacuri]. E ela falou marcante. Eu tinha 3 anos e meio e as pes-
que tinha uma dor muito grande. E disse: soas questionam e dizem: “Alguém com 3
À esquerda, Denise, Adilson e Ângela Telma, Cuba, 1970 “Eu queria que o meu pai tivesse feito isso anos e meio não pode lembrar disso”. Eu

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gostaria muito de poder apagar esse mo- braços dela. Eu lembro exatamente como
mento do assassinato do meu pai da minha aconteceu. Então, a nossa inocência, a mi-
vida. Mas eu não posso, eu não quero e eu nha, particularmente, foi perdida ali naque-
não consigo. E eu não vou. Porque a única le momento. Mas isso não me transformou
memória que tenho do meu pai é exatamen- em uma pessoa amargurada, nem frustrada,
te o momento da morte. Foi muito violento nem triste. Talvez uma pessoa mais intros-
para mim. Foi muito triste. Eu tive, daquele pectiva, talvez uma pessoa com excesso de
momento em diante, fortes crises de enxa- responsabilidade, talvez uma pessoa que,
queca. Eu sonhava todas as noites com uma às vezes, raciocina muito porque sabe qual
coisa que não sabia exatamente o que era. é o peso de levar o sobrenome Lucena. Não
Eu não conseguia ver filme de guerra, mas é fácil ser filha da Damaris e do Doutor. Não
não deixava que minha mãe percebesse. é fácil fazer parte de uma história de dois
Não queria que ela percebesse que a gente heróis da nação brasileira. De saber que
estava sofrendo. Porque sofrer também fa- para estar viva aqui, hoje, contando a nos-
zia parte da nossa história. Foi difícil? Foi. sa história, muita gente morreu. Quantas
Foi duro? Foi. Mas eu não quero apagar. Eu pessoas tiveram que dar a vida para que a
lembro perfeitamente. Eu lembro como ele gente tivesse esta democracia? Vivemos um
estava vestido. Eu lembro exatamente como conflito, mas é um conflito que tem um lado
tudo se desenrolou naquele dia. Eu estava muito positivo.
no colo da minha mãe, e quando fui cres-
cendo, durante muitos anos ficava pensan- Quando fomos presos, nos levaram para
do se tinha sonhado aquilo ou se era real- o juizado de menores e as pessoas falavam:
mente um fato que tinha ocorrido. “Poxa, mas ela é muito pequena, ela não
lembra”. É lógico que lembro. As nossas
Eu vivia um conflito entre apagar, riscar camas eram molhadas. A gente dormia na
aquilo da minha vida, mas, ao mesmo tem- cama molhada. Os filhos dos terroristas. En-
po, sabia que se fizesse isso, estaria riscan- tão a gente ficava ali, víamos que todas as
Ângela Telma, Cuba, 1970
do a história da minha família. E eu não crianças nos olhavam de uma forma estra-
queria isso. nha e nos sentíamos estranhos também. Eu
pensava: “Puxa vida, eu estou vivendo isso
Quando nós saímos do Brasil, a minha aqui, que não vai acabar nunca”. Eu não ti-
“Eu gostaria muito mãe teve uma oferta do governo cubano nha noção de tempo, mas tinha muito claro
de poder apagar esse para que fôssemos ao psicólogo. E minha
mãe disse: “Meus filhos não precisam de
que tinha muito a ver com a atividade dos
meus pais.
momento do assassinato psicólogo. Eles próprios vão administrar e
Eu não queria causar mais dor e sofrimen-
do meu pai da minha eu vou ajudar os meus filhos a administrar
a situação. Porque eu nunca menti para os to para minha mãe do que ela já tinha tido.
vida. Mas eu não posso, meus filhos. Eu sempre disse para os meus Então não conversava sobre esse assunto
com ela, que já tinha sua parcela de dor, de
eu não quero, e eu não filhos qual era a nossa atividade”. Isso não é
uma crítica a quem vai ao psicólogo. De jei- culpa, de responsabilidade. Por várias vezes
consigo. E eu não vou” to nenhum. Mas eu consegui administrar a ela disse para a gente que se sentia mal de
situação à minha maneira. Acho que meus ter colocado os filhos na luta. E um dia eu
irmãos também devem ter administrado da disse “Não se sinta mal. Nós somos produ-
maneira deles. tos do meio e da luta que vocês tiveram e
temos orgulho do que somos. Nós estamos
A morte do meu pai mudou completamen- com vocês. Nós temos orgulho do nome de
te a minha vida. A partir daquele momen- vocês. Nós queremos levar a luta de vocês
to sabia exatamente de quem eu era filha, adiante. Vocês foram capazes de pegar em
como meu pai tinha morrido. Eu vi minha armas para defender os ideais de vocês. Vo-
mãe muito torturada. Ela começou a apa- cês acreditaram naquilo. Isso para nós é a
nhar no momento em que meu pai foi mor- coisa mais importante. É o maior legado que
to, ali na nossa frente. Me arrancaram dos alguém pode transmitir para os filhos”.

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Quando ela diz que nunca disse para a mos disso. Eu acho que é a primeira vez que todas as famílias que não tiveram a possibi-
gente, “ah, vocês precisam ser comunistas, cada um de nós conta a sua experiência para lidade de enterrar os seus mortos. Inclusive
ou revolucionários ou de esquerda”, é verda- o outro. No entanto, o que é importante para meu pai, que é desaparecido. Eu não quero
de. Ela nunca disse. O comportamento que nós, primeiro, é a oportunidade de falar para mais que meu pai seja uma estatística como
ela tinha, a maneira como ela agia mostrava as pessoas o que é que nós vivenciamos para tantos outros pais que estão por aí. Nós que-
para a gente o que ela era, como ela acre- que isso nunca mais aconteça. Para que não remos a abertura dos arquivos. Queremos
ditava. A vida inteira ela foi coerente com se repita. Para que as pessoas saibam que saber de que forma, em que circunstâncias
o que defendia. Minha mãe sempre foi uma a única maneira da gente realmente modi- os nossos pais foram assassinados. Nós te-
pessoa que lutou, compartilhou, dividiu ficar uma sociedade, transformar, é pela mos esse direito. Qualquer nação séria vê
tudo o que ela tinha com as outras pessoas. educação. A gente precisa ter consciência. E dessa maneira. Então, quando nós dizemos
E ela não poderia ter caído em um lugar me- isso foi uma coisa que a Revolução Cubana aqui, viemos a público, todos os filhos, fa-
lhor do que Cuba. permitiu que a gente tivesse. Consciência lar, o que nós queremos é uma coisa muito
política. Nós temos muito claro o que nós simples. Nós queremos saber aonde foram
O meu pai, quando era vivo, viu o triunfo queremos para o nosso país. parar os nossos pais. É um direito que nós
da Revolução Cubana. E ele dizia para mi- temos como seres humanos. Em qualquer
nha mãe “O meu sonho é que os meus filhos
estudem em Cuba”. Mal sabia ele que ia ter
“Somos pessoas cultura as pessoas têm o direito não so-
mente de chorar pelos seus entes queridos,
que dar a própria vida para que aquilo fos- que pagamos um mas também a possibilidade de saber como
se possível. Então, para nós, é muito signi-
ficativo. Dizem que os desejos, às vezes, se preço pela escolha, aconteceu.
transformam em realidade. Eu acho que no pela ideologia dos Nós temos muitos desaparecidos neste
fundo eles dois sabiam que, de certa manei- país. Nós não queremos que eles continuem
ra, o que eles estavam dando para a gente nossos pais. Isso, desaparecidos. Então, por favor, eu faço um
era uma nova possibilidade de vida. de forma alguma apelo aqui, público, quem souber qualquer
informação, quem souber qualquer dado
Nós perdemos, de fato, a nossa inocên- é negativo” que possa ajudar os familiares a descobri-
cia, perdemos o nosso pai. Fomos parar em
rem as circunstâncias da morte dos seus en-
Cuba. Eu cheguei com 3 anos e meio, fui para
É evidente que temos alguns momentos de tes queridos, a gente pede, que mesmo de
creche. Aprendi a falar espanhol, e acho que
angústia, de dor. Todo mundo passa por isso. forma anônima, a pessoa mande esses da-
hoje falo melhor espanhol do que português
Isso é do ser humano. Mas eu queria deixar dos para a gente. Nós queremos. Nós preci-
porque fui alfabetizada em espanhol. Então a
presente uma mensagem em meu nome e dos samos. Enquanto nós não soubermos como
gente viu que aquele sonho de liberdade, de
meus irmãos também. Quem deu um golpe, tudo aconteceu, enquanto os arquivos não
uma sociedade mais justa, era possível. Tudo
rasgou a Constituição depois de um presiden- forem abertos, enquanto a gente viver com
o que o meu pai falava, “Existe um país que se
te democraticamente eleito não fomos nós. essa dúvida, não podemos ter tranquilida-
chama Cuba, que fez uma revolução”, e aqui-
Nós apenas nos defendemos. Em nenhum de. É um fantasma que nos atormenta.
lo era possível. E a gente via aquilo aconte-
momento nós provocamos uma situação que
cendo. Então foi muito representativo.
justificasse a violência da qual nós fomos ví-
A solidariedade do povo cubano, a im- timas. Uma violência de Estado. Agora, quan-
ÂNGELA TELMA OLIVEIRA LUCENA nasceu em 10
portância que eles davam para o estudo, do a gente fala de vítima, infelizmente é uma de outubro de 1966. Filha de Antônio Raymundo
a importância que eles davam para que a coisa que se repete. Quando a gente vitimiza de Lucena e de Damaris Oliveira Lucena. Mestre em
gente mantivesse a nossa cultura, a nossa o ser humano é quando a gente não deixa que Língua Portuguesa. Graduada em Letras com habi-
litação dupla Espanhol/Português pela Pontifícia
identidade. Nós nunca fomos tratados como ele se expresse.
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Estu-
coitadinhos, porque não somos. Somos pes- dante de Direito. Trabalha como Jornalista e Tradu-
O Brasil fala que é uma democracia, no en-
soas que pagamos um preço pela escolha, tora freelance.
tanto, pessoas continuam sendo torturadas,
pela ideologia dos nossos pais. Isso, de for-
os desaparecidos continuam desaparecidos,
ma alguma é negativo. Ao contrário, eu vejo
os arquivos continuam fechados. Nós não
de uma maneira muito positiva. É evidente
sabemos onde nossos familiares foram pa-
que, cada ser humano tem uma apreciação a
rar. Nós queremos, exigimos uma resposta
respeito das coisas.
para isso. Queremos enterrar os nossos mor-
Mas eu lutei muito, tive alguns conflitos tos. É um direito que temos, como seres hu-
internos, e nós, entre os irmãos não faláva- manos. Falo aqui, eu acho, que em nome de

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Infância resgatada
por Adilson Lucena

Eu acho que, de certa forma, esta infância Então, todos nós que passamos por lá nos que a gente foi parar em Atibaia. E como não
roubada que nós tivemos, por conta da dita- tornamos marxistas, porque Marx é uma ferra- conseguíamos mais frequentar a escola por
dura, nós começamos a recuperar em Cuba menta para a gente entender o que acontece conta dessa clandestinidade, a Damaris esta-
e, com a ajuda da Damaris, que foi esse muro nesta sociedade. Mas acho que, com certeza, va nos alfabetizando no dia em que a casa foi
poderoso, mesmo ela não estando muito bem nos tornamos martianos. cercada. Foi muito rápido. Muito nervosismo.
de saúde na época em que saiu da cadeia. Ela Todo mundo sabe o que acontecia com os mi-
nos ajudou muito a superar a nossa infância “Os cubanos sempre litantes quando caíam na mão da polícia. E o
roubada. E, principalmente, eu quero fazer um meu pai, de origem nordestina, dizia: “Nunca
agradecimento à Revolução Cubana, que foi a lutaram para que vou me deixar pegar vivo!”. E, de fato, foi o que
pátria de muitos brasileiros e a casa de muitos os nossos pais não aconteceu. Eles entraram e houve um tiroteio
brasileiros que lá estiveram. dentro de casa. Acho que eu fui o primeiro a
deixassem a gente sair quando cessou o tiroteio. E quando eu
A gente começa a relembrar das nossas fases
em Cuba, e me lembro também que lá, inclusi-
esquecer o nosso saí, ele estava sentado ao lado do tanque. Acho
que ele já estava praticamente morto. Estava
ve, nós chegamos a instituir, com a ajuda dos idioma pátrio” sem camisa. Tinha tomado muitos tiros. E eu
cubanos, uma escolinha onde a gente aprendia fiquei desesperado, enlouquecido.
Português, História do Brasil, Geografia. Acho Quem aqui não escutou a Guantaname-
que até conseguiram uns discos. A gente can- ra com os versos de Martí? Então, todos nós A minha mãe saiu com a Telma no colo e de-
tava o hino do Brasil e comemorávamos o 7 de saímos de lá amantes do Martí. E aprendemos pois atrás veio a Denise. Depois entramos de
Setembro no ICAP (Instituto Cubano de Amiza- esse sentido da dignidade em Cuba, de valo- novo e aí se gerou aquele impasse dentro de
de com os Povos). Os cubanos sempre lutaram rizar o ser humano em primeiro lugar. A res- casa porque eles nos encurralaram em um can-
para que os nossos pais não deixassem a gente peito da nossa vida, não guardo mágoas. Todos to da cama. Uns achavam que deviam matar
esquecer o nosso idioma pátrio. E nunca falta- nós somos pessoas muito alegres. Atualmente, a gente ali mesmo. Outros, diziam: “Não, va-
vam comemorações pátrias nossas, quando nos eu agradeço a Cuba porque sou professor de mos esperar, vamos aguardar”, e ficava aque-
reuníamos para cantar as nossas músicas. espanhol. Cuba também me deu um idioma, le impasse, aquela tortura em cima da gente
me deu a cultura. Agradecemos muito, apren- com as armas apontadas. Talvez, pelo fato
Lembro-me que o grande herói da Revolução demos muito da cultura cubana, aprendemos de quererem tirar informação do que estava
Cubana, das lutas pela independência, José muito do Brasil em Cuba. Os cubanos sempre acontecendo, naquele momento foi poupada a
Martí, dizia que ele queria colocar na Consti- tiveram essa preocupação. nossa vida.
tuição de Cuba, quando triunfasse a luta contra
o colonialismo espanhol, que a lei primeira da E a respeito da nossa vida na clandestinidade, Depois, quando nós saímos lá da casa, a
República fosse a dignidade do homem. E isso eu lembro das muitas mudanças de casa quan- região estava toda cercada de soldados do
nós encontramos em Cuba. O eixo principal da- do os meus pais entraram na clandestinidade. Exército. Eu nunca tinha visto tantos solda-
quela sociedade é a dignidade plena do homem. E sempre aquela agitação, muitas reuniões nas dos em minha vida. Inclusive, no caminho
casas por onde a gente passou. Estivemos em que nos levava até a estrada principal, eles
À esquerda, Adilson, Cuba, 1970 Santos, em Embu Guaçu e outros lugares, até postaram soldados a cada dez metros. De lá,

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nós fomos levados para a delegacia de Ati- nhou, nos vestiu uma roupa mais ou menos e moço que cuidava da gente, o comandante. Ele
baia. Parece-me que o fato se tornou público e, disse que a gente ia sair do país. E fomos em encheu uma sacola.
quando chegamos à delegacia, tinha milhares direção ao DOPS. Pela primeira vez em vinte e
de pessoas na porta para ver a gente, como se tantos dias de cativeiro, nós vimos a Damaris. [Neste momento, a mãe de Adilson, Damaris
fôssemos selenitas. Ficamos na delegacia até Estava magra, a coitada. E macabra. Acho que Lucena, o interrompe e complementa:]
a noite. Até que nos tiraram de lá (primeiro fo- a Telma nem a reconheceu de tão magra que Era o comandante do avião. Ele encheu uma
mos levados para o lar Mariquinha Lopes que ela estava. cesta de frutas, de doces e disse: “A senhora
era um orfanato em Atibaia). Posteriormente, leva porque não sabe onde vai parar com essas
ficamos sabendo que a Damaris começou a ser Entramos no ônibus. Havia uma escolta mui-
to grande. Estavam os companheiros que saí- crianças pequenas. Leva isso aqui para eles e
torturada ali mesmo na delegacia. E lá perma- a senhora comerem”. Não sei se ele era de es-
necemos uma etapa da nossa prisão. ram naquele sequestro e fomos em direção do
aeroporto. Acho que era Congonhas. Quando querda, sei que ele ficou muito penalizado. Ele
E de vez em quando, acho que umas duas ou nós subimos no avião, estava lá o Mario Japa ficou com a Telma no colo na hora de descer.
três vezes, a polícia veio me buscar para me le- sentado. Anos depois ficamos sabendo que Eu estava tão fraca que não aguentava segurar
var na casa novamente. Aquilo era massacran- entraram escondido com ele por trás do avião a menina. Aí ele pegou a menina no colo e me
te para mim. Eu tinha estado ali uma pequena porque ele não conseguia andar, tinha sido deu a cesta de lanche. Para mim, foi uma ação
parte da minha infância. Cheguei lá e vi toda muito torturado. E aí tinha outros companhei- muito humana.
a casa revirada. A poça de sangue do meu pai ros também – a Madre [Maurina Borges da E aí nós fomos para o hotel, onde estava toda
ainda estava ali. E eles queriam que eu desse Silveira], o Diógenes [Carvalho de Oliveira], o aquela movimentação. E, de repente, a minha
conta de um buraco de lixo que nós tínhamos Otávio Ângelo. mãe falou: “Bom, agora estão convidando a gen-
num canto da casa. Eles consideravam que tal- te para ir para Cuba”. Nós éramos pequenos,
vez tivessem armas ali e eles me bateram com “Pela primeira vez mas imagine o significado para ela, que lutou
a bainha de facão do meu pai para eu contar
o que tinha naquele buraco. Como eu não sa- em vinte e tantos toda uma vida, ser convidada para ir para Cuba!
bia, chorei e acho que, talvez, eles deixaram de dias de cativeiro, Eu acho importante a gente revelar a nossa
lado porque pensaram que de fato não sabia se dor às novas gerações, aos jovens, aos que não
havia alguma arma naquele local. nós vimos a Damaris. vivenciaram essa etapa a história do Brasil.
Posteriormente, nós fomos tirados desse or- Estava magra, Pobre do povo que deixa esquecer sua memó-
ria. Fiquei muito contente quando vi recente-
fanato e levados para São Paulo. Lembro que a coitada. E macabra” mente aquela juventude fazendo escrachos na
percorremos várias instituições religiosas e porta dos torturadores porque a gente pensou:
eu via que as irmãs acenavam negativamen- “A nossa causa está garantida, não vão deixar
te com a cabeça. Eles queriam nos deixar na- E eu lembro que, também, no avião, foram
dez policiais da Polícia Federal para o Méxi- morrer nossa memória”.
quelas instituições e as irmãs não queriam
aceitar. E eu escutava os comentários, que co. E eles queriam, inclusive, algemar Dama- O meu consolo é que a juventude está carre-
diziam que nós éramos filhos de terroristas. ris e ela fez o maior escarcéu. E aí ela já bri- gando essas bandeiras. E deixar aqui para as
Então, em vários lugares, realmente, não fo- gou com eles dentro do avião e até que eles novas gerações a memória histórica do país.
mos admitidos. acabaram não algemando. Nós chegamos ao Até agora nós tínhamos a versão dos tortura-
México. Lá, aquela movimentação da imprensa dores e estamos aqui para ter a versão do povo,
Até que nos levaram para um Juizado de internacional e houve uma briga dos policiais contar a sua história e vamos deixar esta me-
Menores, em São Paulo. Tive muita má im- brasileiros, inclusive uma pancadaria porque mória para as gerações futuras.
pressão porque quando chegamos lá de noi- a gente queria descer do avião para falar com
te, dormiam três crianças em cada cama. E a imprensa e a Polícia Federal não queria. Até
lá permanecemos durante toda a prisão, com que acabamos descendo e fomos falar com
castigos constantes. Às vezes, a gente ficava a imprensa. ADILSON LUCENA nasceu em São Paulo no dia 2 de ou-
na sala de tevê, mas tínhamos que ficar com tubro de 1960. É Graduado em Letras com Habilitação
a cabeça para baixo sem poder assistir à TV. A Damaris deu as primeiras declarações em Português e Espanhol pela PUC-SP (Pontifícia Uni-
Imagine uma criança que gosta de ver TV não que, aliás, foram muito importantes porque versidade Católica de São Paulo). Trabalha como pro-
poder ver as coisas que gosta. Foi realmente acabou salvando a vida da Eliana Rollemberg. fessor de espanhol. Dá aulas particulares e atua como
professor voluntário em vários movimentos sociais.
muito massacrante. Denunciou para a imprensa internacional que
a companheira estava sendo muito torturada.
Até que um belo dia, a Valquíria, que era a De lá do aeroporto, nós fomos para o hotel.
diretora da instituição, foi nos buscar, nos ba- Lembro-me também como foi solidário aquele

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Palavras presas
por Denise Oliveira Lucena

Meu nome é Denise Oliveira Lucena. Eu sou


gêmea de Adilson Oliveira Lucena. Minha mãe
engravidou de mim e um mês depois engravi-
dou dele. Nós nascemos no mesmo dia, na mes-
ma hora, mas ele é mais novo que eu um mês.

Acho que a maioria das coisas o meu irmão


já falou. Mas foi realmente muito duro para
nós sairmos daqui em 1970 da maneira que foi.
Meu pai foi morto na nossa frente. Eu fiquei
com muito medo. Na hora que eu saí de dentro
de casa, ele estava caído no chão. Fiquei com
muito medo. Foi uma situação muito difícil
para nós porque a gente só tinha 9 anos.
A gente foi para o juizado de menores em São
Paulo. Fomos muito maltratados. Sofremos mui-
to, mas, hoje as coisas mudaram. Então eu acho
que a gente tem que resgatar a história deste
país e a gente também faz parte da história des-
te país.

Então é um momento que já passou. E eu não


consigo falar mais.

DENISE OLIVEIRA LUCENA nasceu em São Paulo no dia


2 de outubro de 1960. É técnica de enfermagem e, no
momento, está impossibilitada de trabalhar por uma
questão de saúde.

Denise, Cuba, 1970

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Condenado à morte
por Ariston Oliveira Lucena

Meu nome é Ariston de Oliveira Lucena, nas- me torturar com choques elétricos por todo conhecido como “Tenente Ramiro”, que possuía
cido em 6 de outubro de 1951 em São Pau- o corpo. Eu estava pendurado no pau de ara- uma âncora tatuada no braço) Dalmo Lucio Mu-
lo. Sou filho de Damaris Oliveira Lucena e ra. Fui torturado por algum tempo, mas não niz Cirillo, entre muitos outros.
Antônio Raymundo de Lucena, ambos líderes sei precisar a quantidade de horas. Quando
sindicais desde a década de 1950 e ativistas me tiraram do pau de arara, não podia andar, Certo dia, apareceu um homem me inqui-
políticos da Vanguarda Popular Revolucioná- contudo, mesmo assim saíram comigo em dili- rindo. Disse-me que se fosse à auditoria para
ria (VPR). Damaris foi têxtil e Antônio, meta- gências por São Paulo, para cobrir pontos, com a audiência e se confessasse o que eu estava
lúrgico. Comecei a minha militância muito companheiros da minha organização. A polícia passando na Operação Bandeirante, pagaria
cedo, pois a minha casa era um local de reu- não conseguiu nada, pois eu já me encontrava as consequências. Eu disse que faria isso mes-
niões da organização. Decidi sair de casa aos preso fazia vários dias. Os meus companheiros mo. Ele me ameaçou dizendo que eu iria “ver
17 anos para me juntar aos companheiros da já sabiam da minha prisão. Quero esclarecer, o que é bom”. Qual não foi a minha surpresa,
VPR. Não sabia que o meu destino seria o Vale que, no dia em que fui preso, eu estava junto quando fui prestar depoimento na auditoria.
do Ribeira sob o comando do Capitão Lamar- com um companheiro que conseguiu fugir. O referido senhor que havia me insultado era
ca. Os meus pais disseram que eu era muito o procurador da Justiça Militar, Sr. Durval
jovem para assumir aquela luta. Respondi que Ayrton Moura Araújo que funcionou como
esse era o meu desejo e que a minha ideologia “Soube da morte do meu acusador dos militantes.
tinha sido forjada com o exemplo deles dentro
de casa. Fui para o Vale no dia 7 janeiro onde pai e da prisão da minha Em meados de outubro de 1970, fui levado de
permaneci até 31 de maio de 1970. mãe pelo rádio. Fiquei helicóptero para o Vale do Ribeira, pelo Coro-
nel Antônio Erasmo Dias, para fazer a recons-
Soube da morte do meu pai e da prisão da transtornado e quis vir tituição de nossa fuga. Lá chegando, Erasmo
minha mãe pelo rádio. Fiquei transtornado e
quis vir para São Paulo, mas Lamarca me con-
para São Paulo, mas ameaçou de me jogar do helicóptero se eu não
contasse fatos que possibilitassem a prisão de
teve. Fiquei no treinamento de guerrilha por Lamarca me conteve” outros companheiros meus. Colocou-me na
quatro meses no Vale. Escapamos de um cerco cova onde havia sido executado o tenente da
policial feito pelo coronel Erasmo Dias ao Vale Na quinta-feira, fui levado para a Opera- Polícia Militar Alberto Mendes Jr., em maio de
do Ribeira. Saímos dirigindo um caminhão do ção Bandeirante pelo capitão do Exército, 1970. Dias simulou um fuzilamento disparan-
Exército que nos trouxe para São Paulo onde Maurício Lopes Lima. Fui direto para a sala do rajadas de uma metralhadora Thompson ao
nos dispersamos. Cada um tomou um rumo di- de torturas e prontamente colocado na ca- redor do meu corpo para me intimidar. Aliás,
ferente e ignorado pelo outro. deira do dragão. Comecei a ser torturado o Coronel assumiu esse episódio em declara-
novamente pelo Capitão Benoni de Arruda ções feitas ao jornal Folha da Tarde.
Fui preso no dia 20 de agosto de 1970, em Albernaz e outros policiais da OBAN. Aos
uma batida policial de rua no bairro da Vila poucos, fui sendo destroçado pelas sevícias. Fui condenado a trinta anos de prisão, conde-
Mariana. Levado para uma delegacia no mes- Passei mais ou menos dois meses na Operação nado também à pena de morte (posteriormente,
mo bairro, fui espancado pelos policiais de Bandeirante. Fui massacrado por várias equipes transformada em prisão perpétua). Acumulei
serviço. Isso ocorreu em uma quinta-feira, per- de policiais da OBAN. O comandante desse ór- trinta anos e, por último, mais vinte pelas mi-
maneci na cela até segunda-feira pela manhã, gão era o Tenente-Coronel Valdir Coelho, que nhas atividades políticas. Saí em julho de 1979,
quando fui transferido para DOPS. Lá chegan- ordenava as torturas aos presos políticos. portanto fiquei nove anos encarcerado.
do, fui encaminhado para uma sala de torturas,
onde o escrivão Samuel Pereira Borba e outro Havia outros torturadores: o Capitão Homero Quero reafirmar que não me arrependo do
policial que não sei identificar, começaram a César Machado, Pedro Mira Grancieri (também que fiz. Sinto muito orgulho por ter pegado em

90 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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“Aos poucos, fui sendo
destroçado pelas
sevícias. Passei mais
ou menos dois
meses na Operação
Bandeirante”
armas para lutar contra a ditadura instaurada
no Brasil. Essa consciência foi adquirida no
convívio com meus pais Antônio Raymundo
de Lucena e Damaris Oliveira Lucena. Meus
velhos, apesar de terem baixo nível de esco-
larização, tinham uma profunda consciência
de classe. Conheciam muito bem as mazelas
dessa sociedade, onde pobres, negros, e des-
validos, são as maiores vítimas do capitalismo
nacional e internacional.

Minha família não possui riquezas mate-


riais, mas, é detentora de um excelente capital
intelectual que é a plena consciência dos pro-
blemas deste país. Fizemos a opção pelo povo
e sabemos da necessidade de educar e cons-
cientizar a massa para que possa lutar em prol
dos seus direitos.

São Paulo, 9 de maio de 2013

ARISTON DE OLIVEIRA LUCENA nasceu em São Paulo


no dia 6 de outubro de 1951. Seu último trabalho foi
técnico do INCRA. Aposentou-se por invalidez em 2012,
pois era diabético, hipertenso e tinha sido submetido
à uma angioplastia. Faleceu em 25 de maio de 2013 de
infarto agudo do miocárdio. Suas cinzas repousam no
assentamento onde residia, em Tremembé (SP).

Ao lado, Ariston preso, São Paulo, 1970

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3

1. Antônio no Maranhão, 1947


2. Antônio em São Paulo, 1957
3. Diretório do Partido Comunista durante visita de Luís Carlos Prestes em
São João Clímaco, São Paulo, 1958
4. Damaris e Joana, irmã de Antônio, em Caxias (MA), 1945
5. Retrato de Damaris aos 12 anos, em Caxias (MA), 1939
6. Damaris em encontro com Prestes, São Paulo, 1958
7. Greve por aumento de salário em São Paulo, Doutor e Damaris estão em
4 5
destaque na foto, 1963. Imagem cedida pelo Arquivo Última Hora/AESP

Antônio Raymundo de Lucena nas- casal participou da campanha “O Petróleo é Nosso”. militar estabelecido na área de treinamento de guer-
ceu em 11 de setembro de 1922, em Colina (MA), filho Nessa época, ele e sua esposa eram operários na Ja- rilha da VPR, no Vale do Ribeira (SP).
de José Lucena Sobrinho e Ângela Fernandes Lima fet, indústria têxtil localizada no bairro do Ipiranga. Em 20 de fevereiro de 1970, por volta das 15 horas,
Lucena. Morto em 20 de fevereiro de 1970. Militante Em 1954, ingressou no Partido Comunista. a porta do sítio onde a família morava em Atibaia
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). (SP) foi golpeada violentamente por militares. Lu-
Lucena aposentou-se em 1964 por invalidez. Como
Aos 12 anos de idade teve uma úlcera ocular que lhe era cego de um olho, teve o direito a uma banca na cena dormia. Começaram a atirar. Lucena tombou
ocasionou a perda da visão do olho direito. Nessa feira isenta de impostos. Damaris tirou carta de gravemente ferido e, logo em seguida, recebeu mais
época, começou a ocupar-se de atividades de ins- motorista e logo adquiriu uma perua, para facilitar tiros. Foi assassinado, na presença de sua família.
talações elétricas, serviços de pedreiro e mecânica. o transporte do material de trabalho. Lucena foi sepultado como indigente no Cemitério
Aos 17 anos, assumiu a função de mestre de oficina de Vila Formosa, em São Paulo.
mecânica. Apesar de não ter terminado os estudos, Em 1968, passaram a fazer parte da VPR, tendo Lu-
Antônio era uma pessoa bastante inteligente e habi- cena participado de diversas ações armadas. Em
lidosa. Por conta disso, recebeu dos conhecidos a al- 1969, o casal já vivia na clandestinidade com os fi- Damaris Oliveira Lucena nasceu em
cunha de “Doutor”. Ao casar-se com Damaris, Lucena lhos, em Atibaia (SP), e era responsável por guardar 22 de agosto de 1925 em Codó, (MA). De família po-
começou a trabalhar como mestre de serraria e ela os fuzis FAL subtraídos por Lamarca quando fugiu bre, começou a trabalhar aos 7 anos. O trabalho no
como fiandeira. do quartel de Quitaúna (SP), em janeiro de 1969. campo estendeu-se até os 16 anos.
Em março de 1950, embarcou em um caminhão pau Seu filho mais velho, Ariston, também militante da Durante cinco anos trabalhou como fiandeira e
de arara para a cidade de São Paulo. Ainda em 1953, o VPR, foi preso em 1970, após ter escapado do cerco depois encarregada de compras na indústria ma-

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nufatureira. Por conta dos baixos salários, decidiu Em 1967, pediu afastamento por tempo indeter- nacional: Chizuo Osava, Madre Maurina Borges
mudar-se para São Paulo onde acreditava que as minado do Partido Comunista. Tinha uma intensa da Silveira, Diógenes José de Carvalho de Oliveira,
condições de trabalho seriam melhores. Chegou militância mesmo sem estar vinculada a nenhum Otávio Ângelo e Damaris, que seguiu com os três
à cidade onde o marido Antônio Raymundo de partido. No final de 1967 entrou para a Vanguarda filhos menores: Adilson Oliveira Lucena, 9 anos, De-
Lucena já estava, em 1º de junho de 1950. Popular Revolucionária (VPR) e logo seu marido en- nise Oliveira Lucena, 9 anos, e Ângela Telma Oliveira
trou para a clandestinidade. Com a prisão de vários Lucena, 3 anos e meio para o México, onde ficou por
Trabalhou na empresa de tecelagem Jafet por um
militantes no início de 1969, foram obrigados a en- dezenove dias.
ano e posteriormente foi transferida para a creche
trar definitivamente para a clandestinidade. Logo depois, recebeu o convite de Fidel Castro para
como cozinheira.
No dia do assassinato de seu marido, Damaris esta- viver em Cuba. Damaris chegou à Cuba e permane-
Damaris filiou-se ao Sindicato dos Têxteis em 1950. va em casa com as crianças. Ela conta que Lucena, ceu internada por vários meses para se tratar das
Pela sua atuação junto aos trabalhadores recebeu o atingido, caíra ao lado do tanque, já fora da casa, torturas sofridas nos cárceres brasileiros. Na Ilha
cargo de delegada sindical. Participou do Congresso quando um último tiro foi disparado em sua têm- viveu e criou seus filhos. Voltou ao Brasil em maio
de Mulheres Operárias realizado no Rio de Janeiro pora, na presença dela e dos filhos. Damaris foi bar- de 1980 onde seu filho Ariston tinha permanecido
em 25 de maio de 1956. Na volta, foi demitida “por baramente torturada na OBAN e seus filhos foram preso por 9 anos.
causar distúrbios na população fabril”. Passou a mi- levados ao juizado de menores.
litar no Partido Comunista.
Saíram da prisão por ocasião do sequestro do côn-
Em 1958, no governo de Jânio Quadros, ajudou na sul japonês na capital paulista, Nobuo Okuchi, em
organização da greve dos dez dias. março de 1970. Assim foram banidos do território

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1. Matéria Jornal da Tarde do dia 23 de fevereiro
de 1970, após o assassinato de Antônio e a prisão
de sua família
2.Adilson, Ângela Telma e Denise no DOPS,
São Paulo, 1970
3. Damaris durante sua prisão no Brasil
4. Damaris com Ângela Telma no colo,
Diógenes Oliveira, Adilson, Shizuo Ozawa,
madre Maurina Borges, Denise e Otávio Ângelo,
na chegada ao exílio, México, 1970

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6

5. Ariston em São Paulo, 1953


6. Família Lucena no final de 1966
7 e 8. Ariston preso em São Paulo, 1970

10

9. Condenação à pena de morte de


Ariston
10. Fichas de Ariston do DOPS
11. Ariston no presídio do Barro
Branco, São Paulo, 1977
12. Salvo conduto de Ariston

11 12

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1

A vida em Cuba

1. Damaris e Adilson em Cuba, 1970


2. Denise, Ângela Telma e Adilson, Cuba, 1972
3. Marina Lamarca, Isaura Coqueiro, Damaris Lucena, prefeito da Ilha de
Piños e Ilda Martins Gomes da Silva, Ilha de Piños, Cuba, 1975
4. Damaris nos dias de hoje. Atrás, prêmio La Utilidad de La Virtud,
que recebeu da entidade cubana La Sociedad Cultural José Martí em
reconhecimento a sua trajetória e vida dedicada à militância
5. Ângela Telma, Cuba, 1970
6. Ângela Telma, Cuba, 1973
7. Ñasaindy Barrett de Araújo, Trinidad e Ângela Telma
Cuba, 1976
8 e 9. Denise, Cuba
10. Ângela Telma, Denise e Adilson na festa de 15 anos dos
gêmeos Denise e Adilson, Cuba, 1975
11. Adilson, Cuba, 1972
12. Denise e Adilson, Cuba, 1974
13. Adilson, Cuba, 1973

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Revolucionária,
por Damaris Oliveira Lucena

Meus parentes por parte de pais são africanos.


Meu bisavô foi vendido aqui no Brasil com toda
a família. Só ficou um pequenininho com minha
bisavó. Então eu sou de gente que não se conforma
com injustiça. Fui crescendo sempre achando que
as coisas não eram daquele jeito. Que era injustiça
que se fazia. E me casei com um homem também
que não gostava de injustiça. No fim, paramos em
São Paulo. A minha história está aí, todo mun-
do sabe. E aí nos envolvemos com a luta armada
e com a reforma deste país, deste grande Brasil,
desta maravilha que é este país, cheio de riqueza,
cheio de gente boa, cheio de cultura. Mas, infeliz-
mente a riqueza deste país é mal dividida, a cultu-
ra é mal dividida, tudo é aqui é mal dividido. Mas
nós vamos tocando. Quem sabe amanhã ou depois
de amanhã isso será bem dividido.
Eu cheguei em São Paulo, me envolvi com os
movimentos sindicais, fui para o Rio de Janeiro,
e todo esse itinerário de vida aí no meio de todo
mundo que lutava. Eu assisti à Segunda Guerra,
achava aquilo terrível. Eu lia os jornais para meu
pai. Quando a guerra começou, eu tinha 12 anos.
Quando terminou, eu tinha 17.
Sempre fui uma mulher lutadora contra a injusti-
ça. E graças à minha disposição de luta, fui presa,
fui torturada, mataram meu marido, maltrataram
meus filhos, torturaram meu filho. As freiras “ba-
tiam cabeça”, não queriam nossos filhos, que eram
os filhos terroristas. As freiras, imagine, as religio-
sas, as irmãs de caridade, tudo de chapeuzinho
branco na cabeça, se benzendo toda hora.
E eu parei em Cuba, graças à Revolução Cubana.
Estudei, botei meu pé dentro de uma faculdade,
que para mim foi uma das coisas mais maravilho-
sas que eu já vi, entrar em uma faculdade. Uma
faculdade Cubana. Estudei. Faltou só um aninho
para eu me formar. Acho que eu ainda volto lá em
Cuba para me formar. De forma que eu sempre fui
uma mulher batalhadora. Procurei educar meus fi-
lhos não dizendo para eles serem comunistas, ou
revolucionários.

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operária, mãe e companheira

“Houve coisas terríveis estão pedindo esmola. E lá em Cuba não tem isso, Houve coisas terríveis na minha vida: quando eu
graças à Revolução Cubana. Nós tínhamos tudo vi meu marido morto e eles com a arma em cima
na minha vida: quando do bom e do melhor. de mim, dizendo: “Mata ela! Mata os filhos dela!”.
eu vi meu marido morto Então, foi uma coisa assim, deram um golpe bru-
Outra vez quando tiraram meus filhos e disseram
que iam nos matar. Foi muito triste, eu estava pre-
e eles com a arma em tal, mas brutal. Quando nós demos conta, a costa
brasileira estava cheia de navio americano. Olha,
sa junto com a Drª Eliana Rollemberg, chegou a
polícia com o Capitão Homero [César Machado] e
cima de mim, dizendo: o presidente se não tivesse ido embora ele tinha
não sei quem mais com os meus filhos. Eu estava
sido assassinado como assassinaram o [Salvador]
‘Mata ela. Mata os filhos Allende lá no Chile.
em uma janela, e quando os vi, me deu uma crise
tão grande que quase morro. Teve um momento
dela’. Foi, para mim, uma Quando chegamos no México, o Mário Japa, que eu pensei que eu ia perder o juízo. Eu pensei:
coisa muito terrível.” [codinome de] o Shizuo Osawa, foi ao consulado
cubano e lá tinha uma carta do Comandante Fidel
“Vieram torturar os meus filhos para eu ver, e falar
onde estavam os meus companheiros”. Para mim
Castro oferecendo asilo para mim e as crianças. foi uma das coisas mais tristes da minha vida. Eu
Uma vez eu vi meu pai conversando com uma
Que se eu quisesse, eu podia ir para Cuba. Quan- pensei: “Se torturarem os meus filhos aqui, eu
russa e ela falou para ele: “Senhor Manoel, os ver-
do ele me falou isso, foi uma das maiores satisfa- morro”. Eu falei para eles: “Olhem, me matem e
melhos tomaram o poder lá na Rússia”. Os ver-
ções da minha vida, receber um convite de um matem os meus filhos. Está tudo terminado”. Para
melhos? Eu pensei: “Será que eles tinham a pele
estadista. Eu, que era uma simples trabalhadora, mim foi muito terrível. Foi um momento duro da
vermelha?” Eu tinha 7 anos quando saiu a Revo-
semianalfabeta. Foi uma das maiores alegrias que minha vida. Eu procuro esquecer, mas, de vez em
lução Russa.
eu tive na minha vida. quando, eu lembro das barbaridades da ditadura.
Eu vim escutar a palavra comunismo aqui em
São Paulo, quando eu cheguei. Eu perguntei: “gen-
te, o que é comunismo?”. “Ah, companheira, co-
munismo é as pessoas que querem que as pessoas
tenham escola, tenham alimento, hospital”. Ah
bom, então eu pensei. “Eu sou comunista porque
eu quero que tenha tudo isso para todo mundo”.
Então, por isso eu me envolvi com a luta de bene-
ficiar todo mundo.
E para nós foi muito duro. E no governo do Pre-
sidente João Goulart, todo mundo na rua lutando
por reforma. Reforma agrária, reforma urbana, re-
forma educacional. Nem ninguém falava em co-
munismo, nem ninguém falava em religião. Se fa-
lava na reforma. Nosso entusiasmo era tão grande
pela reforma, e ninguém queria criar partido, criar
religião. Aí uma boa parte da igreja, com o senhor
Lincoln Gordon, representante máximo daquela
grande potência norte-americana aqui no Brasil,
dono do mundo, dono da maior riqueza, que hoje
À esquerda, Damaris, São Paulo, 2013.
Foto de Celso Imperatrice
À direita, família Lucena reunida em São Paulo

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Duas pátrias, duas mães
por Ñasaindy Barrett de Araújo

O processo histórico brasileiro da ditadura Chacina da Chácara São Bento, em Pernam- dos meus pais. E a partir daí comecei a sofrer
me conectou à família Lucena de uma forma buco, naquele conhecido episódio, devido à isso com mais força. E também, ao mesmo
muito forte. Hoje eu sou uma integrante da traição do Cabo Anselmo. tempo, desejei saber quem eram eles, como
família e fico muito honrada. eles eram, onde eles estavam, se estavam vi-
Em Cuba, as notícias chegavam para nós
vos ou mortos. Mas, mesmo assim sempre
Eu sou Ñasaindy Barrett de Araújo. Já fui assim: “Morreu, não morreu, desapareceu,
estive muito acolhida com a Damaris, com os
Ñasaindy de Oliveira Lucena. Eu tive uma foi preso, não foi preso”. Ou seja, a gente não
irmãos. É a minha família.
certidão de nascimento que tinha esse nome. tinha uma verdade definitiva. Não havia cor-
E foi com essa certidão que eu vim para o pos. Então, eu fui ficando, ficando, ficando E hoje eu continuo convivendo com a mi-
Brasil como se fosse filha legítima da dona com a Damaris. Ela foi me assumindo como nha família, com a Damaris, cada vez mais
Damaris. filha, eu fui assumindo ela como mãe, e os fortalecendo os nossos laços, que não são
filhos dela como os meus irmãos. Essa afeti- fáceis, porque foram muito polêmicos em
Sou filha biológica de Soledad Barrett vidade foi se compondo e se fortalecendo. E algumas situações. Por exemplo, como você
Viedma e José Maria Ferreira de Araújo. Os meus pais nunca voltaram. querer assumir o nome dos seus pais biológi-
meus pais se conheceram em Cuba, onde cos e, ao mesmo tempo, não rejeitar o nome
também nasci. Um ano após meu nasci- da sua mãe adotiva. Recuperar a sua identi-
mento, Damaris Oliveira Lucena chegava dade não quer dizer que você vá abrir mão de
com sua família em Cuba, no exílio. E foram uma identidade que você construiu junto, ao
colocadas na convivência em conjunto, na lado dela, como família.
mesma casa.
Nossa chegada no Brasil, em 1980, foi cheia
Quando eu tinha 1 ano e dois meses, meu de dificuldades. Inclusive a Damaris preci-
pai saiu de Cuba e veio para o Brasil dar con- sou esticar por mais um ano a permanência
tinuidade à sua militância, na guerrilha. Dois dela no exílio, justamente porque não tinha
meses depois, em setembro, ele foi preso e uma solução muito definitiva para o meu
morreu sob tortura. caso. Foi uma situação complexa. Eu não era
filha legítima, mas também não tinha como
Minha mãe ficou mais um pouco em Cuba
dizer que não era filha.
e depois de uns quatro meses, mais ou me-
nos, ou seja, em dezembro do mesmo ano, Eu não me lembro exatamente dos fatos, Bom, no final das contas consegui vir para
1970, ela partiu também para dar seguimen- mas eu sabia que tinha alguma coisa diferen- o Brasil, o que para mim foi um choque, para
to à sua militância. Eu permaneci em Cuba, te na minha própria condição de criança em quem viveu em Cuba e conhecia a dignidade
em companhia da Damaris e dos seus filhos, Cuba com os outros exilados. A Damaris sem- martiniana e a ética do respeito ao ser huma-
já bem integrada, porque já morávamos jun- pre me disse quem eram os meus pais, mas eu no. Para quem compreendia alguns valores
tos há alguns meses. me lembro de um momento em que isso ficou da vida, da igualdade, da solidariedade.
Então, a minha mãe seguiu na militância. mais visível.
Quando cheguei ao Brasil, caí na real mes-
Isso era fim de 1970. E ela faleceu em 1973, na Eu tinha 10 anos quando alguém fez um mo do que era ter saído de Cuba. Aí foi bem
quadro com fotos dos meus familiares. Acho complicado. Eu tinha 11 anos. E vivi dezesseis
Ñasaindy à esquerda com 6 anos e, ao centro, com 4.
Ambas fotos em Cuba
que foi ali que eu tomei consciência da perda anos no país com uma dificuldade enorme de

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documentação, porque ainda era a ditadura Quando a gente pensa na infância, tem colo de uma pessoa que eu já amava, eu que-
e havia toda uma dificuldade de acessar os a questão da ausência e do exílio, que eu ria morrer. E isso eu fiquei sabendo depois.
órgãos responsáveis pela questão de RG, do- acho que é muito forte. Estar fora da sua pá- E durante toda a minha vida, e talvez ainda
cumento. Então eu fiquei 16 anos clandestina tria, longe dos seus familiares, é uma coisa até hoje seja ainda o que eu ainda quero. En-
no Brasil, desde a data que chegamos. Só fui que marca muito. No caso da Damaris, por tão é muito difícil para a gente lidar.
adquirir minha identidade com meu nome le- exemplo, ela tinha ainda um filho que esta-
gítimo em 1996. E tem a forma como ela foi assassinada,
va preso, que é o Ariston. A segurança dele
todo esse cenário, isso tudo também, de al-
estava sempre em risco, sempre tinha essa
São trinta e tantos anos de uma terapia au- guma forma, faz a gente tocar nessa questão
preocupação, como ele estaria vivendo, o
todidata, feita à base da experiência, de um da violência. É muito forte.
que ele estaria vivendo dentro da prisão. Já
autorreconhecimento, de autoconhecimento. se sabia de tantas barbaridades.
Eu tenho quatro filhos. Os próprios filhos fa- Eu tenho certeza e costumo dizer que eu
zem a gente refletir muitas coisas. Fazem a não tive infância. Eu sempre fui uma pes-
gente se sentir criança. E eu tenho muito or- “No momento em que, soa isolada. Brinquei um pouco, mas não o
gulho de ser filha de Soledad Barrett Viedma, ou eu perdi a minha mãe quanto poderia, vamos dizer assim. Sempre
me vi, na fase da adolescência, como um ex-
de José Maria Ferreira de Araújo e de Dama-
ris Oliveira Lucena. E de ter meus irmãos. Te-
ou na minha despedida, traterrestre, totalmente distanciada, muito
nho muito a agradecer a eles. quando eu soube que eu solitária. Muito, muito, muito mesmo. Eu vi-
via em um mundo totalmente à parte.
Tudo o que aprendi, a mulher que eu sou não veria mais a minha
Então, realmente, acredito que filhos [de
hoje, é por causa da Damaris. A Soledad tem mãe, mesmo estando perseguidos, desaparecidos e assassinados
a sua força. Foi uma mulher incrível, que
cada vez que eu conheço mais, gostaria mui- no colo de uma pessoa pela ditadura] vivenciaram uma dificulda-
de de adaptação, de identidade, de autoco-
to de tê-la conhecido, com certeza. Eu acho que eu já amava, eu nhecimento. Estamos meio atrasados na
que ela tem aspectos muito contemporâneos
que foram calados. Ela era uma mulher mui- queria morrer” vida. De alguma forma ou de outra você se
to livre. Estudar a Soledad é falar da mulher, atrasou. Eu pelo menos me considero muito
Essa coisa dela com o filho, essa preocu- atrasada. Eu me formei faz dois anos.
do feminismo, da importância da educação.
pação, de como ele estaria, isso permeou
É falar de um monte de coisas. E, ao mesmo tempo a gente vê que a maio-
a minha infância. E a ausência dos meus
pais biológicos, legítimos, ficou muito pre- ria das pessoas está de alguma forma en-
Mas, no dia a dia, na convivência, na edu-
sente quando eu tomei consciência disso. gajada, comprometida com a sociedade. E,
cação, na criação, muitos valores foram
Isso passando pelos conflitos, de todo um nós, com certeza, fazemos questão de dar
transmitidos pela Damaris, pela família. E
processo de questionamento das escolhas continuidade a essa luta dos nossos pais.
eu tenho muito a agradecer.
deles, a experiência histórica. Eu não tive Isso é uma coisa, é um comprometimento e,
Quanto à questão da Comissão da Verda- essa consciência, essa memória que a Telma mais do que isso, é uma coisa que está den-
de, é maravilhoso que esteja acontecendo, [Telma Lucena, irmã adotiva] tem. Ela era tro da gente. Pelo menos dentro de mim. O
que tenham pessoas assistindo, presentes. tão jovem e lembra como tudo foi. Ela é uma meu caminho, a escolha principal é a edu-
Que seja, de alguma maneira, replicado. Não pessoa que tem uma dimensão, um nível de cação, com certeza. Educação é, a princípio,
existe situação melhor para a gente refletir, consciência e de memória muito aflorado. um grande caminho. Mesmo assim pode ser
inclusive sobre a nossa responsabilidade bem desvirtuado. Mas, é muito importante
como testemunhas, como pessoas vivas da Eu não. Eu fui diferente. Eu, consciente- que nós não deixemos de atuar, que a gente
experiência. mente, não tenho nenhuma lembrança. Nem sempre se coloque, se posicione, diante de
de estar com meu pai e nem com a minha todas as situações. Que mantenha esse cará-
Tem essa coisa que é incrível: passam os mãe. Mas, nos meus processos terapêuticos, ter ético constante de fazer a sua ação a sua
anos e, quando se desperta, de repente en- vamos dizer assim, tive oportunidade sim palavra, a sua palavra a sua ação.
contramos alguém que fez parte daquele mo- de me encontrar com o que seria o momen-
mento com você, mas que você não reconhe- to de despedida da minha mãe. E, pelo que
ceria na rua. Se não fossem esses momentos, parece, não sei se é memória ou inventado ÑASAINDY BARRETT DE ARAÚJO nasceu em 4 de abril
esses encontros, da gente estar se recuperan- – porque chega uma hora que você não con- de 1969, em Havana, Cuba. É Filha de Soledad Barrett
Viedma e José Maria Ferreira de Araújo. Filha adotiva
do, se aproximando, dando as mãos... E esse segue mais saber identificar muito bem –, de Damaris Oliveira Lucena. É pedagoga e faz es-
círculo cresce muito. Cada vez mais, na hora nesse momento eu escolhi morrer. No mo- pecialização em “Artes Visuais, Intermeios e Edu-
que você inclui os netos, os jovens que estão mento em que perdi a minha mãe ou na mi- cação”. Atualmente trabalhando como capacitado-
ra em um Portal Educativo. É mãe de Yalis Lucena
aí hoje e que estão próximos a essa história nha despedida, quando eu soube que eu não Drummond, Ivich Barrett Queirolo, Habel Davi de Araújo
por nossa via. Isso é muito importante. veria mais a minha mãe, mesmo estando no López e Diana de Araújo López

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2

José Maria Ferreira Araújo, ou Araribóia,


nasceu em 6 de junho de 1941, em Fortaleza (CE), filho de
João Alexandre de Araújo e Maria da Conceição Ferreira de
Araújo. Desaparecido em 23 de setembro de 1970. Militan-
te da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Preso em 23 de setembro de 1970 pelo DOI-CODI/SP e le-
vado às câmaras de tortura, morreu em consequência das
mesmas. Vários presos políticos testemunharam as tor-
turas a que foi submetido e sua morte, segundo denúncia
feita pelos presos políticos de São Paulo enviada à CNBB,
em fevereiro de 1973, encontrada nos arquivos do DOPS/
1
SP. Seu nome constava como Edson Cabral Sardinha, pois
a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Polí-
ticos não tinha contato com seus familiares.
Com o nome de Edson Cabral Sardinha, sua morte foi de-
nunciada na carta escrita pelos presos políticos do Presí-
dio do Barro Branco encaminhada ao presidente da OAB,
Dr. Caio Mário da Silva Pereira, em 25 de outubro de 1975,
segundo a qual “foi assassinado pela equipe do capitão
Benoni de Arruda Albernaz”.
Seu paradeiro foi descoberto por meio de pesquisas reali-
zadas nos arquivos do IML/SP pela Comissão de Familia-
res de Mortos e Desaparecidos Políticos, onde constava
ter sido enterrado com o nome falso de Edson Cabral
Sardinha na quadra 11, sepultura 119, do Cemitério de Vila
Formosa I. No laudo necroscópico, o nome de Edson Ca-
4 bral Sardinha está identificado por um T em vermelho (de
“terrorista”), recurso utilizado pelos órgãos de segurança
para diferenciar os corpos dos ativistas políticos dos de-
3 mais que por lá passavam. Somente com a abertura da
vala clandestina do cemitério D. Bosco, de Perus, na cida-
de de São Paulo, em 1990, seu verdadeiro nome foi divul-
5 gado e seus familiares localizados.
José Maria conheceu Soledad Barrett Viedma em Cuba,
onde realizou treinamento de guerrilha quando era mi-
litante do MNR. Soledad foi assassinada em janeiro de
1973, em Pernambuco, junto com outros companheiros
delatados pelo Cabo Anselmo – José Anselmo dos Santos
–, um agente dos órgãos de segurança infiltrado nas orga-
nizações de esquerda.

Soledad Barrett Viedma, ou Viejita, nasceu


em 6 de janeiro de 1945, em Laureles, no Paraguai, filha de
Alex Rafael Barrett e Deolinda Viedma Barrett. Morta em
6
8 de janeiro de 1973, no Massacre da Chácara São Bento,
município de Paulista (PE). Militante da Vanguarda Popu-
lar Revolucionária (VPR).
Foi casada com o militante da VPR, José Maria Ferreira de
Araújo (desaparecido em 1970), com quem teve uma filha,
1 e 2. José Maria Ferreira de Araújo, pai de Ñasaindy, era militante Ñasaindy Barrett de Araújo, que cresceu em Cuba e hoje
da VPR e desapareceu em 23 de setembro de 1973 vive no Brasil.
3 e 4. Soledad Barrett Viedma, mãe de Ñasaindy, foi morta no Soledad vivia com o seu companheiro Cabo Anselmo, cuja
episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento
participação como agente policial infiltrado no Massacre
5. Ñasaindy ainda bebê nos braços do pai, Cuba
da Chácara São Bento foi relatada de forma detalhada
6. Ñasaindy aos 9 anos com seu cachorrinho de pilha
no documento intitulado “Relatório de Paquera”, encon-
trado no DOPS/SP. Suspeita-se de que estivesse grávida
dele, quando levou quatro tiros na cabeça e dois no pes-
coço, após ter sido presa e levada à chácara. Tinha marcas
de algemas nos pulsos e equimoses no olho direito, o que
desmentiu a versão oficial de morte em tiroteio. Junto com
ela, mais cinco militantes da VPR foram mortos no Massa-
cre. Soledad foi enterrada como indigente, sem qualquer
identificação, no Cemitério da Várzea, no Recife.

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104 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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O novo arrimo de família
por Jaime Martinelli Sobrinho

Eu sou o mais velho dos irmãos, portanto o fizesse lá, conversar com ele e dizer que não carnezinho. Imagine, uma pessoa que foi ami-
que não sofreu o que eles sofreram. Eu fui mais fosse rebelde, porque eu controlava o dinheiro. go do Presidente da República, amigo do João
cobrador do meu pai, tinha 15 anos em 1964. De- [Ele] tinha uma namorada, que é a esposa dele Goulart, nessa situação.
pois do golpe, fomos distribuídos na casa de es- hoje, mas o dinheiro, quem separava para ele ir
tranhos, depois parentes ficaram com cada um ao cinema era eu, o Jaime. Era eu que fazia as Ele nunca quis nada para ele, sempre lutou
dos irmãos, até que meu avô nos reuniu numa funções ruins da família. pelo bem do povo brasileiro e hoje isso parece
casa de aluguel. E só quando ele [o pai, Raphael uma utopia. Hoje, a gente vê tudo que acon-
tece aí, uma pessoa que nem o próprio Lula,
Martinelli] apareceu voltamos a conviver. “Fui filho único por que sai de uma condição de nada e hoje é um
Ele era um líder sindical conhecido nacional- quatro anos e pouco milionário. Não que a gente quisesse isso para
mente. Eu, na época, era só o colecionador de nós, mas meu pai merecia um reconhecimento,
fotos da revista O Cruzeiro, do homem que pa- e depois ele já [estava] meu pai merecia.
rava o Brasil com um telefonema. E não tinha metido em política.
noção do tamanho da grandeza do meu pai. E o que eu acho é que é uma pessoa que gra-
Logo nós percebemos que eu tinha que arru- Meus outros irmãos ças a Deus temos tempo para consertar todos
mar meu primeiro emprego. E assim aconte- sofreram, não esses erros de não entendê-lo. Nós passávamos
Natais com todos os irmãos dele, aquela farra
ceu. Ele, por ser uma pessoa que sempre lutou
contra a ditadura foi preso na sede do Inocoop. conheceram esse de família italiana, que ele adorava e nós não
E eu já estava trabalhando. pai que eu conheci” conseguimos ter essa união pela falta dele.

Ele não foi preso e localizado, ele foi pre- Eu tive sorte que meu nome não tem a ver
so e sumido. A história é meio longa, mas foi E comecei a ser um questionador do meu pai. com a política dele ainda, pois os outros todos
através de uma tia que conhecia uma pessoa Eu ia visitá-lo, mas não tantas vezes. Comecei a tiveram. O meu irmão é Edson Lenin Martinelli
de alta patente do Exército que morava na rua ter revolta pelo fato de ele ter sido líder políti- e carregou isso na escola. Eu acho que meu pai
que ela morava que conseguimos localizar co, cassado, procurado. E passada aquela fase, deveria ter tirado esse carimbo dos filhos. A
onde ele estava. Ela pediu para a família ir até ele se envolveu com a luta armada e acho que gente não merecia isso, mas ele era um idealis-
a porta da OBAN levando roupa, para ficarem ele não pensou tanto na família. Nós não sabí- ta, e paciência. E comigo e meus irmão ele teve,
sabendo que o tínhamos localizado. E assim a amos o que ele fazia. Eu não sei se isso foi uma o que adora, que são os netos. Junto dos netos
vida foi, para mim, um pouco difícil porque eu defesa para a família. Se nós tivéssemos sido pe- a gente vê isso. Ele é um moleque junto dos
passei a ser arrimo de família e comecei a con- gos, torturados, não teríamos o que falar do meu netos, tem uma saúde de ferro para brincar, e
trolar os meus irmãos, que em seguida foram pai. Nem a mãe e nenhum dos filhos sabíamos eu passei por isso como filho.
tendo funções também na empresa que eles o que ele estava fazendo.
começaram a trabalhar. E aquela velha história Fui filho único por quatro anos e pouco e de-
de pegar os envelopes de pagamento, põe tudo Fomos descobrindo tudo com o processo, so- pois ele já [estava] metido em política. Meus ou-
aqui na mesa, passei a ser o pai deles. bre as torturas, eu questionava muito que ele tros irmãos sofreram, não conheceram esse pai
não devia ter se metido novamente naquilo. Eu que eu conheci. Eu tenho certeza que o maior
A gente tem um rompimento de amor por acho que um idealista não devia ser pai. Mas cobrador dele de tudo, fui eu. Hoje nós já tira-
causa dessas coisas de inversão de papeis. Tem como ser humano, como alguém que o conhe- mos algumas barreiras da frente, mas ele sabe
uma carta, inclusive, que a Rosa me passou, há ça, que conversa, vira fã do velho. Ele é uma que eu fui o filho mais incompreensível.
pouco tempo, que eu escrevi ao meu pai dizen- pessoa rara que passou por altos cargos e não
do isso, que ele precisava, na visita que o Edson teve um tostão na vida. A casa que ele teve foi Uma coisa que eu queria deixar claro, e eu
graças aos filhos pagarem as mensalidades do acho que a Comissão da Verdade está batendo
À esquerda, Jaime, ao centro, com a mãe Maria Augusta e o pai
Raphael Martinelli, São Paulo, 1952 Inocoop, ele iniciou, mas nós que pagamos o muito nessa tecla, é Tortura Nunca Mais. Meu

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pai foi torturado de maneira bárbara. Ele era Tanto é que dois de nós, três se divorciaram, Eu comprovei que o João Goulart era amigo
treinado para isso também, não podemos dizer voltaram para casa adulto, pai de filhos. E a do meu pai, porque quando ele esteve na lista
que era nenhum bobinho. Ele foi treinado para maior alegria dela foi nos receber, as ex-noras para ser trocado pelo cônsul, ele se recusou a ir
tudo isso, mas ele esteve em um programa ficaram horrorizadas ao verem que ela podia porque queria cumprir o que devesse e ele devia
agora, recentemente, do Antônio Abujamra, cuidar de nós de novo. Que foi o que ela soube mesmo, porque na ocasião ele lutava contra a
Provocações, onde falou uma coisa que eu ouvi fazer a vida inteira. Ela não queria nenhuma ou- ditadura. Então ele quis pagar no Brasil o que
pela primeira vez e que marcou muito. Foi per- tra coisa que não cuidar dos filhos. Sobre nós, os estava fazendo de errado, quis cumprir a pena
guntado por que ele era da linha stalinista, que quatro irmãos se formaram, trabalhando e pa- dele aqui como cumpriu. A gente estava naque-
para mim sempre foi um criminoso dos maio- gando seus cursos superiores. E pudemos fazer la situação muito ruim na Lapa de Baixo [Em
res que teve nessa humanidade. Ele foi ques- o inverso com os nossos filhos, graças a Deus. São Paulo], morando de aluguel, sendo ajudado
tionado pelo Abujamra: “Mas, stalinista?” E por parentes. E aí um amigo do João Goulart
ele falou: “Sim, porque Stalin matava, mas não “Tortura é a coisa mais veio em casa conversar com minha mãe para fa-
torturava”. Tortura é a coisa mais absurda que lar que o João Goulart estava chamando para a
existe no mundo. E eu acredito que só quem absurda que existe no gente viver no Uruguai, ter emprego para o meu
tenha passado, e ele passou, pode dizer isso mundo. E eu acredito que pai lá, para a gente largar tudo e ir embora. E ele
logicamente como é, não aceitou. Mas, teve esse
com todas as letras. É muito mais fácil matar
do que torturar. Então, essa coisa horrível que só quem tenha passado, único amigo que reconheceu mesmo e sabia
algumas pessoas estão passando aqui pela Co-
missão da Verdade tentando se defender, as
e ele passou, pode dizer que meu pai estava passando as necessidades.
E essa pessoa subiu na Lapa de Cima, porque
pessoas não podem ser humanas fazendo tor- isso com todas as letras” viu a situação que a gente vivia, que não tinha
turas com seres humanos. nada, comprou uma máquina de lavar e mandou
entregar em casa.
Não pode ter uma inteligência, por exemplo, Sobre o meu pai, ele deve ser uma pessoa
de uma ditadura colocada naquele momento muito decepcionada com amizades, o que Nós nos amamos, mas temos problemas en-
que tenha que se fazer dessa coisa absurda, criou para mim um problema seríssimo. Eu te- tre irmãos. Hoje contei para o Edson uma pas-
dessa coisa abominável para que se possa ven- nho um amigo só, que é meu compadre. Não sagem de como a gente saiu do Rio de Janeiro
cer uma mentalidade contra o atual regime da tenho mais porque hoje em dia é uma dificul- e ele não lembrava, porque era bem menor que
época. Então, é isso que eu queria deixar gra- dade ter amigos. Eu lembro do meu pai falando eu. Então, tem algumas coisas que eu conheço
vado. A Comissão da Verdade eu tenho acom- bem de Lula em casa, quando era líder sindical e eles não conhecem. É falta da convivência de
panhado e espero que tenha bastante frutos. e estava viajando o mundo, sendo acusado por irmãos. Mas o que eu queria dizer é isso, que
Tem algumas pessoas aí com a idade do meu isso. E meu pai defendendo, dizendo que ele tenho dificuldades para amizades.
pai, que podem dar depoimentos e dizer quem tinha feito a mesma coisa para os filhos lá em
realmente são torturadores, quem realmente casa. “Eu fiz a mesma coisa (quando líder sin- Outra coisa que meus irmãos talvez não sai-
fizeram essas coisas horríveis. dical), conheci o mundo sendo convidado sem bam é do meu pensamento. Com dificuldades
ter um dinheiro no bolso, sendo chamado, e o eu trabalhei em multinacionais, vivi, cresci,
Acho que a nossa [vida] ainda foi privilegiada. Lula está fazendo a mesma coisa”. E não era. comprei minha casa própria, meu carro, edu-
A nossa não teve nascimento em cela de tortura, quei meus filhos, tudo, e a gente assistiu que
mães dando a luz em cárceres, a nossa ainda foi Eu fico imaginando a decepção dele com o esse mundo não é para pessoas que nem meu
privilegiada. Graças a Deus estamos todos com José Dirceu, com o Genoíno, com o Luiz Eduar- pai, honesto. A gente teve na nossa frente um
saúde, com netos, e aí tocando a vida. do Greenhalgh. Quando eu estava divorciado, monte de caminhos errados para seguir para
[morando] na minha mãe, atendia telefonema ficar muito bem de vida. Eu recusei todos. E te-
Espero maior sucesso para a Comissão da dessas pessoas procurando pelo meu pai. De- nho certeza que por algumas conversas que eu
Verdade e que realmente vocês prestem aten- vem ter usado todo o conhecimento que ele tive com o Edson, ele igualmente. Nós tivemos
ção, esse homem não vai estar mais muito tem- teve como líder sindical, como tudo que ele esse problema de não triar, se for em benefí-
po entre nós, apesar de ter uma saúde melhor conhecia de ferrovia e conhece até hoje, e está cio próprio, fazer alguma coisa contrária à lei,
que a minha, mas é uma figura rara, na política sempre atualizado. E essas pessoas estão usan- conforme a honestidade que meu pai nos criou
brasileira é uma figura rara. do isso até hoje. é uma herança fantástica para nós, a gente
não triou. Não lamento nem um pouco isso e
O meu compadre, que nas ausências dos Ele, como idealista, uma pessoa com capa-
graças a deus estou como o Edson falou, estou
meus irmãos é um irmão também, falou uma cidade enorme sem ter feito nenhuma fortuna
feliz com a minha vida. Podendo abraçar meu
coisa sobre a minha mãe, uma coisa que me alheia, não pegando nada que não era do nosso
pai, tendo tempo de falar aqui, eu te amo, pai.
marcou pelo resto da minha vida. Ele diz que país, e esses sem vergonha dessa bandidagem
Ainda está em tempo de falarmos isso.
ela tinha que ser canonizada viva. Ele conhe- toda que ele considerava como pessoas dignas,
ceu ela como frequentador da nossa casa, e ela e esse papelão. Então, imagine meu pai, nunca
não era uma pessoa que por ser apolítica, não perguntei isso para ele porque a gente não tem JAIME MARTINELLI nasceu em 15 de março de 1949.
era sem vida. Eu tenho certeza absoluta que ela essa liberdade, mas a decepção que ele tem com Filho de Raphael Martinelli e Maria Augusta Martins
era uma mãe galinha. pessoas que ele confiava. É uma coisa terrível. Martinelli, é economista aposentado.

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Adolescência perdida
por Edson Lenin Martinelli

Tudo começou em Jundiaí (SP). Nós nas- da prisão por quatro anos e tortura de nosso Hoje sou um cidadão com 60 anos de idade,
cemos lá, meu pai era ferroviário, minha mãe, pai. Fomos pré-adolescentes que tivemos que perdendo a esperança em ver o que sobrou do
doméstica. Fomos crianças normais, brinca- ir ao trabalho mais cedo para sustentar a nos- meu pai, e o que ele e eu sonhamos de alguma
mos na rua, em campos de malha. Enquanto sa casa. Paramos de brincar e de viver o fogo forma para essa vida. Perdi um pouco da infân-
isso, meu pai iniciava nas causas sindicais e da idade. Tivemos que nos policiar no traba- cia, um pouco da adolescência, e um pouco da
socialistas. Fomos crianças que curtimos a mu- lho para não sermos taxados como burgueses, convivência do meu pai. Perdi um pouco de di-
dança para o Rio de Janeiro e continuamos a também tinha essa dualidade. nheiro que queria ter, um pouco da convivência
brincar na rua e passear em Copacabana, para com os meus irmãos, perdi e perdemos muito.
onde nossos pais nos levavam todos os do- Perdemos partido, perdemos vozes que nos dão
mingos. Enquanto isso, meu pai se destacava “Às vezes, no nosso a esperança em ação. Perdemos governantes no
na federação dos ferroviários e na greve da
classe ferroviária.
egoísmo a gente achava sentido eficiente da função. Perdemos opção de
votos e perdemos os eleitos.
Fomos crianças que viajamos pelas praias
que esse amor do meu
Perdemos o cumprimento das leis e suas
da Bahia, Pernambuco, ficamos hospedados pai pela luta não vinha punições. Perdemos saúde, gentileza, educação,
em casa de frente para o mar enquanto meu
pai era ovacionado nos palanques das ruas e
para nós, só ia para os decência e por aí afora. Mas ganhamos. Ganhei
meus filhos, minha esposa, minha moradia,
praças. Fomos crianças que vivenciamos o pri- outros. E a gente tinha a vida longa do meu pai. Ganhei meus irmãos
meiro terror de ter que fugir na madrugada de
março em 1964, enquanto meu pai fugia para
raiva do meu pai por e amigos, ganhei consciência, dignidade e
honestidade.
outros destinos que não o nosso. causa disso aí”
Ganho em viver e poder dizer agora que as
Fomos crianças instaladas em casas de es- perdas fazem parte da nossa vida e que futu-
tranhos em cidades desconhecidas ao fim da Fomos adolescentes e parceiros do meu pai na ras gerações de filhos e pais sindicalistas, po-
fuga. Fomos crianças separadas em casas de formação e campanha do novo partido constru- líticos ou não, de alguma forma, contribuíram
tios diferentes e deles dependentes. Fomos ído para nós, o PT. Fui namorado de uma única para a construção de uma vida melhor. Essa
crianças com dificuldades em diferentes es- mulher, me apaixonei e com ela casei. Enquanto semente sob a forma de tortura, ideal, luta, ou
colas naquele ano. Enquanto, por um ano, não meu pai levantava a bandeira do PT e por ela por simplesmente educar seus filhos de forma
conseguimos saber onde estava o nosso pai. lutou até a posse do seu líder maior. amorosa foram plantadas por mim, minha es-
E felizes por poder viver com ele novamente posa, meus irmãos, minha adorada mãe, meu
após essa ausência assustadora. Fui eleitor do José Dirceu, José Genoino e
querido pai.
Lula, enquanto meu pai não conseguiu nenhu-
Fomos filhos que voltaram a brincar nas vár- ma única função de liderança dentro do gover- Sou uma célula viva com capacidade de aju-
zeas da Lapa de Baixo, mas fomos crianças que no do PT. A vida foi acontecendo. Fui, acredito dar nas transformações para um mundo feliz.
tiveram que justificar dezenas de vezes o por- que sou um bom marido, bom pai e perdi minha
quê desses nomes e sobrenomes associados mãe. Enquanto meu pai perdeu a esposa, per- No nosso egoísmo a gente achava que esse
à esquerda. Enquanto meu pai continuava na deu a oportunidade de ajudar intensivamente o amor do meu pai pela luta não vinha para nós,
luta da esquerda brasileira. Fomos pré-adoles- nosso Brasil por não governar, não deixarem ele só para os outros. E a gente tinha raiva do meu
centes assustados e horrorizados com a notícia participar do processo do PT. pai por causa disso aí. Eu principalmente.

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Maria Augusta com os três filhos, no Rio de Janeiro, 1962. Da esquerda para direita, Luiz Carlos
aos 5 anos, Maria Augusta (grávida de Rosa Maria), Edson aos 8 anos e Jaime com 13 anos

O sobrenome Lenin, por exemplo, hoje você aconteça isso aí. Prejuízos, a gente teve alguns
vê a estátua do Lenin caída no chão. Que ho- prejuízos. Trabalhar muito cedo, vida dura, dei-
“Eu tive que ficar por menagem foi essa? Isso confunde até hoje. xar todo o dinheiro em casa até os 23 anos de
vários anos escondendo Por que derrubaram a estátua do Lenin? Ele idade. Você não viver mesmo o fogo da adoles-
merecia isso aí? E eu tive que ficar por vários cência, a gente sofre um bocado, mas a coisa
esse Lenin no meu anos escondendo esse Lenin no meu sobreno- forte que fica é como eu coloquei. Fica a digni-
sobrenome. Eu tive me. Eu tive um professor que era sargento que dade, a honestidade, é ter esse exemplo de pai
que não tirou um tostão de ninguém. Hoje eu
me olhava de uma forma estranha nas aulas de
um professor que era educação física. sou uma pessoa feliz. E feliz de estar do lado do
sargento que me Muita coisa se perde. Eu acho que a gente
velho até hoje, com 89 anos. Sofri mas sou feliz,
como diz aquela música.
olhava de uma forma perdeu a adolescência, perdeu muita coisa.
EDSON LENIN MARTINELLI nasceu em 21 de agosto de
estranha nas aulas Mas a gente idolatra muito meu pai. Apesar
de falhas como pai, porque nós somos órfãos
1953. Filho de Raphael Martinelli e Maria Augusta Martins

de educação física”
Martinelli, formado em Administração de Empresas, tra-
com pai, porque o idealismo dele faz com que balha como consultor em empresas.

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Amor silenciado
por Rosa Maria Martinelli

Na primeira vez que tivemos ver que aquele homem ali na minha
que fugir do Rio de Janeiro para frente era meu pai, ele era uma pes-
São Paulo, eu tinha só 2 anos. soa fisicamente diferente.
Meu pai estava sempre viajando,
e quando ele retornava, sempre Ele chegou bem próximo de mim,
tinha uma bonequinha, uma coisa colocou a mão na minha cabeça e
assim. E da primeira vez, quando foi nesse instante que eu vi que era
ele foi preso em 1970 eu vi que ele ele. Eu não entendia nada, mas lem-
demorava a voltar, e eu sentia que bro de uma coisa que me chamou a
as pessoas em volta, as pessoas atenção, quando eu fecho os olhos e
próximas queriam me poupar de lembro desse dia, era a camisa dele
saber exatamente o que estava abotoada errada. E as mãos tremiam
acontecendo com ele. Eu era mui- muito. E, novamente, eu caio naque-
to menina e apegada a ele, sentia la palavra silêncio porque na minha
que as pessoas cochichavam e es- curiosidade infantil queria pergun-
condiam de mim. tar: “E aí, pai, o que está acontecen-
do? O que é aqui?” Me lembro da mi-
Acho que se tem alguma coisa nha tia falando “xiu”, e então, foram
que aprendi quando eu era pe- duas coisas muito marcantes.
quenininha, foi silenciar. Silenciar
é a palavra que me vem imedia- A segunda situação que eu lem-
to na cabeça. Era sempre “xiiiu, bro já foi no presídio Tiradentes, eu
não pode falar”. Eu perguntava, passava em revista junto com minha
e falavam “psiu”. Era sempre um mãe. Numa das vezes, meu pai fazia
silêncio e eu chorava muito por- aniversário e minha mãe quis fazer
que sentia a falta dele. E lembro um bolo, passamos praticamente a
quando a minha tia, irmã do meu sexta-feira inteira fazendo aquele
pai ficou sabendo que ele estava bolo. Tínhamos pouco dinheiro e
no DOPS. Eu nem sabia o que era aquilo era um acontecimento. E o
DOPS, achava que ia visitá-lo em dia seguinte era um sábado, quando
algum lugar, tinham encontrado Rosa Maria e sua professora do aconteciam as visitas. Fomos até lá,
meu pai.
Grupo Escolar, em São Paulo, 1968 eu e minha mãe. E nos meus olhos infantis, era
inconcebível ver aquela mulher [do presídio]
Fui com minha tia. Ela me levou porque eu era des escuras. Cheguei muito feliz porque ia re- cortando o bolo em pedaços. Ela praticamente
uma criança que não estava mais dormindo à ver meu pai. Essa é uma cena muito marcante destruiu o presente que a gente ia dar para o
noite, e ela quis me aliviar. E eu me lembro que na minha memória, porque quando meu pai fi- meu pai. E mais uma vez eu perguntei, “Mãe,
foi uma cena muito marcante nesse dia porque nalmente apareceu, dois homens o amparavam porque ela está fazendo isso?” E minha mãe
eu cheguei num lugar muito escuro, com pare- e ele estava irreconhecível. Eu não conseguia me mandou fazer silêncio de novo.

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Rosa na horta da casa de sua família no bairro da Lapa, São Paulo, 1968

Eu passava na revista feminina e aquilo era recentemente eu tive a felicidade de reencon-


para mim uma coisa absurda. Eu era criança, trar um senhor que esteve preso junto com o
“Eu passava na revista tinha que abrir a boca, tinha que abrir as per- meu pai. Na época, ele era estudante, jovem.
nas, eles vasculhavam meu corpo todo para Eu pedia que deixassem ele andar comigo pelo
feminina e aquilo poder entrar. Mas ali era sempre uma coisa boa pátio, porque ele era um grande contador de
era para mim uma para mim. Eu ficava feliz de ir até lá porque sa- histórias. Eu tive a felicidade de reencontrá-lo
bia que ia vê-lo e podia brincar. Era um pátio e de promover também o encontro dele com o
coisa absurda. Eu era enorme, eu lembro dos dois pavilhões, onde, de meu pai, o senhor Luis Paulino. Foi muito emo-
criança, tinha que um lado, ficavam os presos políticos e do outro, cionante o encontro porque meu pai nunca nos
os presos comuns. E eu sempre estava perto dos fala sobre tortura.
abrir a boca, tinha presos comuns, porque eu fazia umas brincadei-
Através desse senhor eu soube que eles se co-
que abrir as pernas, ras, eles me jogavam colares, jogavam pulseiras
nheceram exatamente num dia em que meu pai
e eu ficava feliz.
eles vasculhavam estava indo para os porões, estavam entrando
Ali eu conheci outras pessoas como meu pai, juntos para a tortura. Eles não se conheciam e
meu corpo todo para mais jovens, com quem eu tinha afinidade por ele, muito amedrontado, diz ao meu pai: “Puxa,
poder entrar” histórias. Sempre gostei de ouvir histórias, e eu tenho uma placa de metal na minha cabeça,

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eu fui operado. E eu tenho muito medo que eles que recebemos de meu pais e que enviamos caras vão pagar pelo que eles fizeram”. Esses ca-
me batam e eu possa morrer”. Ele mesmo me para ele. Eu tinha 8, 9 anos. Ali pude ir forman- ras sádicos, psicopatas, não sei nem que nome
contou essa história. Meu pai tem uma grande do o meu quebra cabeças. Fui lendo, relendo e dar para isso. Finalmente eles vão lá sentar e ser
dificuldade de falar nisso. Ele disse: “quando eu sentindo o tamanho daquilo que era para mim julgados pelos crimes que cometeram, aí eu me
entrei, a primeira coisa que o seu pai fez foi fa- naquela idade. E posso dizer que foi maravilho- desiludo. Esse assunto para mim é muito visce-
lar: ‘não bata nele. Não bata na cabeça dele. Ele so. Era um privilégio poder ver toda a história ral. Eu me incomodo profundamente da Lei da
tem um problema assim, assim’”. E ele acha que dos quatro anos que meu pai ficou no presídio. Anistia ter perdoado esses monstros, gostaria
ele foi salvo por conta de o meu pai ter dito isso. Meu pai, como todo revolucionário, tem essa que essa lei pudesse ser novamente revista. É
veia poética. Ele não gosta que fale isso, mas olhar para os vizinhos, Argentina, Chile, eles
O aniversário dele de 70 anos foi no ano pas- ele tem. Ele foi o cara que através das cartas julgaram seus atrozes, eles realmente julgaram.
sado e ele quis muito que meu pai fosse. Eu o me empurrava a escrever, a fazer rimas. E todo Por que o Brasil não revê isso? Famílias foram
levei, e ele colocou essa história publicamente. sábado quando eu ia visitá-lo a gente trocava destroçadas, então, falar da gente aqui, falar da
Eu achei muito bacana porque mostra bem a ideias sobre a leitura, sobre o que eu tinha es- própria dor é sempre muito difícil. Mas eu con-
pessoa do meu pai, que é esse cara que sem- crito, aquele versinho, enfim. Eu acho que par- sigo ver a amplitude disso.
pre é pelos outros. Muitas vezes nós, filhos, fi- tiu dele isso.
camos muito a parte da vida dele, porque ele Até o que ficou em relação ao meu pai é sem-
queria nos poupar de saber tudo que estava pre assim, existe uma certa distância. Existe
algum lugar que dá para chegar no meu pai,
acontecendo. Eu, por muito tempo, não quis
saber dessa história.
“Meu pai tem uma e em outros momentos, ele mantém uma dis-
fragilidade emocional tância que é própria dele, de não querer falar
Por volta dos meus 30 anos, tive a curiosi- no assunto, não querer te machucar, mas de
dade de recolher umas fitas cassete que meu muito grande. Ele não toda forma quem passou por uma tortura, pa-
pai deixava para alguns jornalistas na época. quer falar no assunto, rece que já passou pela pior coisa do mundo.
Eu praticamente roubei essas fitas para ouvir. Então, para nós que somos filhos, muitas vezes
Eram cinco. E na segunda eu já não conseguia ele sai de cena. Hoje, temos problemas, fica difícil chegar nele com
mais parar de ouvir, ele falava muito da histó- com um pouco mais de aquele seu probleminha. Parece sempre pe-
ria dele e ali ele contava das torturas. Aquilo quenininho, porque diante do que ele passou,
foi tão forte dentro de mim, aquele rombo de idade ele está um pouco não existe coisa pior no mundo. Então, sempre
imaginar que um ser humano possa ser capaz
de fazer isso com outro que eu tive uma ca-
mais flexível, eu diria” colocamos essa distância em relação a ele.

tarse, eu queria entender como isso podia ter Meu pai tem uma fragilidade emocional
acontecido a ele. Quando eu olho aquelas cartinhas, vejo a muito grande. Ele não quer falar no assunto,
menina que eu era naquele período. Eu dizia: ele sai de cena. Hoje, com um pouco mais de
Meu pai fala pouco a respeito disso, mas a “eu te amo meu papai, papaizinho, você é meu idade ele está um pouco mais flexível, eu diria.
marca que ficou foi muito grande em todos galã, você é meu príncipe”, essas coisas que Ele se preocupa mais, quer que a gente ligue,
nós, os filhos. Porque você tem que recolher uma criança diz ao pai. Então, é como se eu ti- enfim. Então, esse movimento que a gente faz
tudo isso para criar uma certa identidade, por- vesse feito isso naquele período, e de lá para para se aproximar passa por esse traço que fi-
que você veio dali. O que eu posso dizer é que cá eu não sei como se faz esse caminho. Eu cou, que é um traço pesado. Talvez a memória
nesse tempo todo eu vim perguntando a ele não sei como se faz esse caminho com irmãos, daquele período tenha um peso tão grande que
toda a história e fui sempre me interessando com filho. Se tem algum lugar que a ditadura, nos dificulta esse acesso hoje.
por tudo isso. Não só a história dele, mas a his- a história me alterou, foi aí. Eu acho que foi no
tória da ditadura no Brasil ou em qualquer ou- amor que eu não sei expressar. Eu não consigo Para se ter uma ideia de como eu sempre tive
tro lugar, eu sempre tive um grande interesse, nem com o amor maior do mundo que é amor relacionamentos difíceis, casamentos difíceis,
eu queria saber, esmiuçar, esmagar aquilo den- de filho e ele sofre com isso também. Eu sei alguns terapeutas chegaram à conclusão de
tro de mim. Fiz terapia durante muitos anos e o quanto eu o amo, mas não consigo expres- que quando eu amo, eu amo a distância, porque
retomei porque eu tinha esse medo, medo da sar. Eu tenho essa barreira. Eu acho que aí eu quando meu pai foi preso eu vivia em pleno
noite, medo deles irem embora, de pegarem realmente tenho as sequelas desse período, Édipo. Toda menina é apaixonada pelo seu pai,
meu pai, minha mãe, meus irmãos. Eu acho não é só pelo distanciamento do meu pai e e exatamente nesse momento ele saía de cena.
que eu convivi com esse medo. E acho que só tudo mais. É como se eu não pudesse falar por- Então, eles chegaram à conclusão de que eu
conseguia colocar esse medo para fora quando que o silêncio era a coisa mais importante na- amo o distante. Quando esse distante se apro-
escrevia. E aí eu comecei a escrever, muito. Es- quele período. Eu aprendi direitinho o silêncio, xima de mim, eu não sei o que fazer. Até é en-
crevia compulsivamente. e eu queria me livrar dele. E é difícil conseguir. graçado porque nos meus relacionamentos eu
Até os 50 eu não consegui. ficava pensando: “puxa, esse cara tem o quê? Ele
Quando adoeci, em 2007, tive um câncer de deve ter alguma coisa muito problemática para
mama e ganhei de presente do meu pai todas Quando tudo começou a vir à tona na Comis- eu poder estar gostando dele”. Enfim, falar de
as nossas cartinhas. São quatro anos de cartas, são da Verdade, pensei “puxa, que bacana. Esses mim é falar um pouco disso porque essa relação

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com o outro sempre foi difícil para mim, e para A minha mãe faleceu em 2003. Ela era des- Então, ele nunca falava para ela as coisas que
o outro, claro, também. cendente de português e toda a família dela fazia. E nós ficamos muito a parte. Minha mãe
era de Jundiaí. Acho que minha mãe era a pes- era quem trazia aquela coisa de família, do al-
Claro que hoje aos 50 anos, eu trabalhei tudo soa da família que mais expressava o amor. Era moço de domingo, de reunir os filhos, de ligar
isso e não estou curada, mas me sinto muito a que nos unia. Ela sempre deu a vida pelos para cada um. Depois, os meninos casaram, e
mais consciente de que isso veio daquela época, filhos. Ela não queria saber onde estava o meu ela sempre estava em constante contato que-
porque eu amei meu pai à distância. Para se ter pai, ela não queria saber das coisas que meu rendo que eles passassem por lá. Ela tinha esse
uma ideia, eu nunca disse ao meu pai que eu o pai fazia. Ela não queria saber. Então, o meu pai apego, esse amor. Eu não sei por que a gente
amava. Nunca. Não consigo. É como se falar de tinha uma vida completamente a parte. Quan- não aprendeu com ela.
amor fosse falar de uma coisa muito frágil e que do ela perguntava, “onde você estava?”, ele
pudesse quebrar. A história dele é uma história respondia “É melhor não saber por que eu não Ela era a expressão máxima da humildade,
toda de amor, pelo seu povo, pelo seu país, é um quero que eles venham aqui, peguem vocês e tanto que existe uma história que meu pai con-
cara que teria dado a vida pelo Brasil. vocês sob tortura, contem”. ta que, durante a tortura, em um dos momentos
em que ele estava apanhando muito, os tortura-
dores falaram: “Já foram lá? Já viram a mulher
dele? Vamos trazer a sua esposa aqui”. E aí um
dos torturadores disse: “Ela não vale a pena, é
uma mulher que anda descalça, maltrapilha”. E
minha mãe não era uma maltrapilha, mas anda-
va descalça. Era uma mulher humilde, simples,
sem atrativo, uma mulher sem vaidade.

E por conta desse silêncio verbal que toda a


nossa família tinha que ter, eu posso dizer que
eu me salvei através de tudo que eu escrevi.
Para mim, é bastante difícil falar sobre isso. Eu
gosto mais de escrever. Então, eu queria termi-
nar o meu depoimento lendo um conto que foi
o meu primeiro conto publicado.

Quando eu fiquei doente, escrever para


mim foi muito importante. E no meu primei-
ro conto, eu escrevia coisas para mim mesma.
Coisas que eu guardava. Até que um dia resol-
vi publicar e uma pessoa falou, “Rosa, deixa eu
publicar seu conto”. E eu deixei. E esse conto
expressa bem a minha visão de menina quan-
do visitava meu pai no Tiradentes. O conto
chama “Anos Setenta”.

ROSA MARIA MARTINELLI nasceu em 16 de julho de


1962, em Jundiaí (SP). Filha de Raphael Martinelli e
Maria Augusta Martins Martinelli (falecida em 2003) é
formada em Educação Física e trabalha como personal
trainer.

Carta redigida por Raphael


Martinelli para sua filha
Rosa, de 8 anos, durante
o período de sua prisão, 1970

112 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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ANOS SETENTA
1

Mãos firmes a revistavam...tinha apenas se enfiava entre os vãos das pernas enor- – São presos “comuns”... é como são cha-
9 anos. Pode abaixar as calças? Afasta as mes... Posso ver? Perguntava. mados.
pernas! Muito bem! Levante os braços, Lá vinha ele... um homem baixo, loiro, ros- – O senhor também é um preso comum?
abra a boca, cabelos...(tudo numa agilida- to bonito,músculos fortes... e com aquele Pois eu não acho... acho que é um preso im-
de troglodita e sem pausa). sorriso... um sorriso conhecido e querido, portante, o mais importante de todos!
Pode vestir... a saída é por ali... olhos muito claros que a fitavam com sau- – Neste prédio que estou são só presos po-
Por ali era um portão verde de ferro que dades. líticos... somos divididos.
dava para outro portão de grade, que dava O coração ia aos pulos, quase tropeçava – Preso político? É alguma coisa ruim?
para um pátio enorme que tinha chão de entre aquelas fardas... tentando se apro-
concreto quebrado. Ia feliz, sem entender. ximar. Mas, o que era aquilo? Porque ele – Não é não... e sorriu aquele sorriso cal-
tinha aquelas argolas rodeando seus pu- mante.
Para o seu tamanho, aqueles dois pavi-
lhões que rodeavam o pátio eram verda- nhos? – Mas pai, por que tá preso?
deiros monumentos, cheios de janelinhas Já muito próxima, a menina atônita já não – Ainda é pequena pra entender.
gradeadas e com mãos acenando. era feliz, por tentar entender. – Mas não tô feliz agora... queria que voltas-
Quem seriam aqueles? Pai!!!! Abraçava, pulava no colo, puxava sua se pra casa.
Passeava num passo de dança... dois pra mão... quase o amassava. – Quando for embora, vai parar lá na Av.
cá, dois pra lá... até chegar noutro portão – Pai, o que era aquilo? Porque aqueles ho- Tiradentes, sabe qual é?
onde a escuridão do lado de dentro lembra- mens prenderam seus braços? – Sei. Essa que fica em volta do prédio...
va os medos de dormir. – São algemas e servem pra que a gente – Então, vai contar três andares, de baixo
Homens fardados barravam a entrada de não tente fugir. para cima e olhar pra janelinha da direita.
um dos prédios grandes e curiosa que era – O senhor quer fugir? Vou acenar pra você, com uma toalha bran-
– Não. Mas eles pensam que sim. ca. Vai imaginar um pássaro, que vai voar
até seus ombros... e o levará sempre junto
– Pai, aprendi um novo passo... quer ver? pra onde quiser.
Aposto que não sabe fazer... quer tentar?
Dança comigo? – Puxa! Verdade?
Imagem surreal de alegria, num retângulo (silêncio)
de vidas cortadas. – Já sei porque tá aqui, pai, e nem preciso
– Gostou? crescer tanto. Está preso porque sonha bo-
nito. Eles quiseram trancar suas palavras
Nem percebeu que das janelas com mãos assim. Mas isso não é roubo?
desconhecidas lhes jogavam colares, pul-
seiras... coisas bonitas. ...
– É pra mim? – Tenho um pai passarinho poeta preso –
mas não conta pra ninguém.
– Claro que sim! Pode dançar mais pequena
bailarina? – O quê?
Lá ia ela fazendo rodas, cantarolando, fa- – Que ele tem asas.
zendo estrela e sendo a própria.
“O portão do Tiradentes ainda existe, a meni-
– Quem são eles pai? na também... e o pássaro continua voando"

1
Rosa Maria Martinelli, “Anos Setenta”, in: Entrelinhas: Anto-
logia de Contos e Microcontos, Andross Editora, São Paulo,
2008, pp. 123-125.

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Família Martinelli
1. Raphael Martinelli, aos 20 anos, ainda solteiro, em São Paulo, 1944
2. Maria Augusta, aos 19 anos, em Jundiaí (SP), 1944
3. Martinelli aos 23 anos, em São Paulo, 1947
4. Maria Augusta, aos 22 anos, em São Paulo, 1947

4
3

1 2

5 6 5. Casamento de Maria Augusta e Martinelli,


em 27 de dezembro de 1947, São Paulo
6. Lua de mel do casal, em Santos (SP), 1947
7. Maria Augusta com Jaime, em São Paulo, 1949
8. Jaime em Jundiaí (SP), 1950
9. Jaime, aos 14 anos, e Rosa, Rio de Janeiro,
antes do Golpe, 1964

8 9

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10. Jaime aos 12 anos,
Rio de Janeiro, 1961
11. Luiz Carlos aos 10 anos,
São Paulo, 1966
12. Edson aos 6 anos,
São Paulo, 1958
13. Rosa aos 6 anos,
10 11 12 São Paulo, 1968

13

14

15 16

14. Aniversário de Rosa, 6 anos, São Paulo, 1968


15. Maria Augusta, Luiz Carlos aos 5 anos, Edson aos 8 anos
e Jaime aos 13 anos, Rio de Janeiro
16. Rosa aos 6 anos, e seu cachorro Faísca, “almoçando
fora de casa”, São Paulo, 1968
17. Martinelli e sua filha Rosa
18. A família reunida

17 18

INFÂNCIA ROUBADA 115

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Raphael Martinelli nasceu em São Paulo (SP), em
16 de outubro de 1924. Filho de Maximino Martinelli e Yoli
Pistorezzi Martinelli.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina
(Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Na luta
Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empre- 1. Martinelli discursando na frente da
sa de produtos de aço Tupi. Câmara Federal, Rio de Janeiro, 1963
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. 2. Martinelli preso em São Paulo.
Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da Quando se recusou a sair do país na
troca do Embaixador
várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam
3. Em Cuba, Martinelli em palestra no
a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista
movimento operário cubano, 1961
Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de
4. Foto feita pelos órgãos de repressão
seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários. da ditadura, durante a prisão 1
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um
dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964.
Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a
clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da
Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado
à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-
-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro
filhos, sete netos e quatro bisnetos.

Maria Augusta Martins Martinelli, caçu-


la de seis irmãos, nasceu em Jundiaí (SP), em 1925. Filha de
Amélia e João Martins, ambos portugueses. Casou-se com
Raphael Martinelli em 1947.
Faleceu em novembro de 2003, aos 78 anos, quando ia
completar 56 anos de casamento com Martinelli. De acor-
do com Rosa, sua filha, era uma “cozinheira maravilhosa.
Quem compartilhou da sua mesa, sabe. Fazia o melhor ca-
peletti in brodo que se tem notícia. O fazia artesanalmen-
te. Sua felicidade era nos ver repetir o prato. Todas as noi-
tes, até mesmo quando estava doente, esperava meu pai
para colocar a conversa em dia. Ela nasceu para ser mãe,
era muito presente e afetiva”. De acordo com Martinelli, a
parceria da esposa “foi essencial para minha história como 3
2
revolucionário”.

Ao lado, ficha do
Raphael no DOPS

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“Os filhos sofrem, mas temos que dar
continuidade à vida”
por Raphael Martinelli

Após o golpe de 31 de março, eu tive que ir para “quem é esse cara?”. Foi um encontro clandesti- avisou. Aí, depois de 24 horas esse que foi preso
a clandestinidade. No dia do golpe, fiz um discur- no, no bairro da Lapa. Nessa época, eles estavam abriu o meu nome, como se fosse ter uma reunião
so na rádio para a minha área ferroviária. Se eu morando em Jundiaí. comigo.
demorasse um pouco mais para ir embora, teria
sido preso, porque os militares tomaram a rádio Depois fui ficar clandestinamente onde meu pai Quem estava lá era o [Benoni de Arruda]
também. E eu cheguei a ser denunciado como es- morava, no bairro da Lapa, em São Paulo. E meu Albernaz que era um assassino e era difícil sair
pião russo pelo ministro do trabalho. filho Luiz Carlos ficava comigo. Combinamos que, vivo. Mas sobrevivi porque eu entrei como alguém
por segurança, ele nunca me chamasse de pai. que tinha participado de reunião, de questão de
Mesmo na clandestinidade eu continuei mo- Convivi muito com ele. De vez em quando eu dava cooperativa, sindicato. E eu no pau de arara, com
rando no Rio de Janeiro. Nem pude ir mais para uma escapada em Jundiaí para ver a família. o tira, fazendo esse jogo comigo. Aí chegou aquele
a minha casa, que ficou cercada o tempo todo. da Ultragás, o [Henning Albert] Boilesen, eu vi ele.
Eles estavam à minha espera, para me prender. Eu nunca parei. Eu e meu irmão compramos O cara disse: “Agora só falta pegar o Marighella”.
Lá, moravam minha mulher e meus quatro filhos, um Ford 29 e eu ia para as reuniões clandesti-
sendo que a mais nova, a Rosa Maria, tinha um namente com aquele carro. Nosso partido tinha O companheiro que me abriu não aguen-
ano e pouco. terminado com a educação revolucionária e eu tou e começou a abrir, abrir, e abriu o trem pa-
viajava explicando que o partido tinha que ter or- gador. Eu estava arrebentado. Só abri o trem
Resolvi voltar para São Paulo, apesar da pres- ganização revolucionária. pagador quando me mostraram fotos de um cara
são dos companheiros do comitê central do Par- morto. Quando vi que todos os compas que par-
tido Comunista Brasileiro (PCB), que me pressio- Nessa época, eu estava morando no fundo do ticiparam estavam mortos, eu acabei abrindo. Eu
navam, querendo que eu fosse para o Rio Grande quintal da casa do meu pai e meus filhos e mu- só não fui morto porque nunca foi aberto que eu
do Sul. Eu disse que não ia a lugar nenhum. Eu lher também vieram para cá. A repressão sabia era dirigente da ALN.
queria ir para São Paulo, porque era a minha área, onde eu estava e todo Primeiro de Maio eles iam
me prender, me buscavam em casa e eu ia para E porque eu tinha uma cunhada, ela falava para
eu comandava a ferrovia Santos Jundiaí.
a Polícia Federal. Minhas prisões eram só no burro. Ela conhecia um oficial e falou de mim:
Enquanto eu estava na clandestinidade, no Rio, Primeiro de Maio, mas eu nunca parei de atuar “Poxa vida, ele é diretor do sindicato. Será que
não conseguia encontrar a minha família. Monta- na organização. Havia vários companheiros que ele está preso, podia ver isso?”. Aí o cara deu o
mos um esquema para levar todos para São Pau- tinham as mesmas ideias, como o [Carlos] Mari- serviço para ela: “Ele está na OBAN”. Aí ela foi
lo. Com um caminhão de mudança, meu irmão ghella. Reunimos o comitê estadual e pergunta- me levar roupa na OBAN, para ficarem sabendo
levou todas as coisas da família para São Paulo. mos “qual é a saída?” “O comitê central não dá que ela sabia que eu estava preso lá.
mais, a ditadura está aí”. Então criamos a Ação
Primeiro eles ficaram em Bragança, num sítio e Libertadora Nacional, a ALN. Fiquei doze dias na OBAN. O meu companhei-
depois foram para Jundiaí, onde morava a famí- ro falou coisas graves de mim, e eu fui arrebenta-
lia da minha mulher. Depois que fiquei sabendo Na casa do meu pai, a família vivia modesta- do. Uma noite, saí da cela forte e encontrei com
as dificuldades que eles passaram. mente. Criavam coelho, no quintal tinha cabra, ele. Usei aquela posição de dirigente comunista,
galinha, tudo. E meus filhos frequentavam o gru- disse que ele estava falando demais. Aí, nessa
A minha família foi primeiro para São Paulo e po escolar. madrugada, mesmo eu estando arrebentado, eles
depois fui eu, que fiquei em outra área clandes- me torturaram de novo. Não sei se foi ele que fa-
tina. Fiz todo o esquema contrariando o partido As consequências foram mesmo quando eu fui lou ou se tinha microfone.
e fui chamado de irresponsável. Vim para São preso em 1970, aí sim a família sofreu, passou di-
Paulo por minha conta. Eu assumi essa respon- ficuldade. Fui levado diretamente para a OBAN. Depois fui para o DOPS, onde sofri ainda mais.
sabilidade. A minha opinião era que a direção do Apanhei muito mais do que na OBAN. O DOPS
Eu fui preso onde trabalhava. De acordo com a tinha minha vida todinha, viagem à URSS, cur-
partido estava errando, que de 1955 para a frente,
nossa organização, mesmo fazendo organização sos, Cuba, viagem, conferências. Se eu tinha apa-
desde a morte do [Joseph] Stalin, não havia mais
revolucionária, se possível tinhamos que ter um nhado na OBAN, me arrebentaram no DOPS.
educação revolucionária.
emprego. E eu trabalhava na Cooperativa Habi- Costumo dizer que não é o pau de arara, e sim o
Primeiro, fiz um esquema clandestino, sem con- tacional União Sindical, que era dos ferroviários. que eles fazem em cima de nós, no pau de arara,
tato com a minha família. E quando fiz contato Quando cheguei no trabalho, a OBAN já estava e isso era diariamente.
com a minha mulher, fui encontrá-los e a minha lá, com metralhadora e o diabo. Fui preso porque
menina não me reconheceu. Ela tinha um ano e um companheiro caiu e o outro conseguiu fugir. Fiquei dezoito dias lá, mais doze na OBAN. Fo-
pouco. Coitadinha, ela me olhou como quem diz Ele pediu para outro companheiro me avisar. E ele ram 30 no total. Minha última estada no DOPS

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foi quando arrebentaram o Olavo Hanssen. De-
pois, ele apareceu morto. Sempre elogiei a posi-
ção do Hanssen, a resistência dele. O DOPS era
isso, uma máquina de matar.

No dia seguinte à morte dele, fui para o Tira-


dentes, era maio. Fui preso em abril de 1970. Lá,
eu tive visita. Na visita, eu estava arrebentado,
porque na OBAN levei um soco inglês nas cos-
tas. Fiquei com as costas arrebentadas. E na cela
forte, sem assistência. No DOPS, levei pauladas
na cabeça. O [Maurice] Politi me emprestou
uma blusa de lã para eu me enfaixar com ela. Eu
estava tão machucado que a minha família não
podia me abraçar.

A família da gente sofre no lar, sofre na so-


ciedade. Eu recusei sair no sequestro do embai-
xador suíço, e então minha fotografia saiu no
jornal como terrorista. Aí ficam achando que
a gente é terrorista mesmo e isso mexe com a
família.

Com esse troço de terrorista, quem dava as


aulas de educação moral e cívica nas escolas
eram os capitões. E um capitão colocou meu
filho Edson na frente e começou a arrebentar
com os terroristas. E ai disse: “O Martinelli teve
a coragem de dar o nome de Lenin para esse
menino, vejam só”.

Mandei entregar um livro para meu filho,


dizendo: “Leia Lenin e veja porque botei seu
nome de Lenin, veja o bandido que ele é”. Ele
tinha 7 anos, ele nasceu em 1953.

A família sofre muito com as consequências.


Na cadeia, eu fazia cestas de vime, uma por dia,
e eles vendiam para ajudar com as despesas da
família.

Minha mulher, filha de portugueses, tinha os


filhos sempre em primeiro lugar. Nesses três
anos e meio, todos foram muito bons filhos.

Tem uma carta do meu filho mais velho [Jai-


me] que é uma coisa espetacular. Ele escreveu
para o Médici arrebentando e colocando o pai lá
em cima: “Onde já se viu, esses homens que de-
viam estar governando o Brasil”. Esse meu filho
quase nunca ia me visitar, ele não aguentava.
Ele não queria me ver preso. Os filhos sofrem,
mas temos que dar continuidade à vida. Painel fotográfico feito
por Rafael Rossi
Martinelli, cineasta e diretor
de fotografia, neto de
Raphael Martinelli,
em homenagem ao avô.
A obra ficou exposta na
Galeria Olido,
em São Paulo, 2010

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por Dora Augusta Rodrigues Mukudai

Quando recebi a mensagem por e-mail me pada de tudo. Eu não vi nada”. Felizmente como os pais da Priscila [Arantes] e do André
convidando para participar [da Audiência não perdi meu pai, porque apesar de tudo o [Arantes], da Iara [Lobo], da Raquel [Rosa-
sobre as crianças atingidas pela ditadura], que passou, ele está vivo. A minha mãe fez len], são pessoas que a gente tem de respeitar
num primeiro momento pensei que não ti- de tudo para transformar nossas vidas em e admirar. Que tinham um ideal e passaram
nha nada para contribuir, que não tinha vidas normais. o que passaram para hoje, quarenta e poucos
nada que pudesse ajudar porque eu conhe- anos depois, nós termos um país melhor.
ci crianças, especialmente quatro crianças, “Felizmente não Até hoje eu não sei tudo que o meu pai pas-
e diante dessa situação que eu sei que eles
viveram, eu achava que não tinha muito a perdi meu pai, sou. Durante esses onze anos de vida fora do
país, e depois, quando voltamos, em 1980,
acrescentar. Um deles, que tem a minha ida- porque apesar de para o Brasil, não sabíamos – meu irmão e
de, aos 2 anos de idade foi fichado no DOPS
como subversivo perigoso, o Ernestinho [Er- tudo o que passou, ele eu – exatamente o que estava acontecendo,
nesto Nascimento] e os seus primos. está vivo. A minha mas sabíamos que alguma coisa ruim esta-
va por trás daquela situação toda.
Eu nasci em 1968, em Osasco, em plena mãe fez de tudo
A Iara Lobo mencionou uma coisa muito
greve geral. Uma confusão, um caos no país, para transformar importante, que é a questão do respeito à
especialmente na região de Osasco. O meu
pai, Darcy Rodrigues, servia no quartel de nossas vidas em imagem dos nossos pais. Hoje, na internet,
tem muita coisa que eu descobri sobre o
Quitaúna. Era sargento na época e lugar te- vidas normais” meu pai que ele não contou para nos poupar.
nente do Capitão [Carlos] Lamarca.
Quando eu tinha seis meses de idade, meu Eu estava com seis meses e a minha mãe Lembro-me que, em 1999, tinha o hábi-
pai, ciente da gravidade da situação, tentou, encontrava-se grávida na época. Ela não sa- to de ler a revista IstoÉ, pela internet, toda
e conseguiu, obviamente, poupar a minha bia, nem meu pai, que meu irmãozinho es- segunda-feira. Fazia isso no meu horário de
mãe e eu de qualquer problema que ele sa- tava chegando. Nós fomos para o exterior, almoço e não lia a revista inteira porque não
bia que estava por vir e nos mandou para passeamos por alguns lugares – passeamos dava tempo. Numa segunda-feira, abri a re-
a Europa no mesmo voo com a esposa do entre aspas – até conseguir asilo político em vista numa reportagem de capa que falava
Capitão Carlos Lamarca e seus filhos. Cuba, onde fomos todos, a esposa do Lamar- sobre o assalto ao cofre do Ademar de Bar-
ca, os filhos, minha mãe, eu e meu irmãozi- ros. Comecei a ler a matéria e pensei: “Não
Então, quando recebi esse convite, pensei: nho que nasceu lá. me interessa”. E continuei lendo a revista, as
“O que é que eu tenho para falar? Eu fui pou- outras matérias. Mas fiquei com aquilo na
Vivi minha infância inteira em Cuba até cabeça porque eu não sabia o que era o as-
meus 11 anos de idade. É um país que eu amo, salto ao cofre do Ademar, mas alguma coisa
que me deu a base para o que sou hoje. Um me falava que já tinha ouvido aquela histó-
À esquerda, Darcysito e Dora de uniforme escolar, Cuba país onde aprendi que pessoas como meu pai, ria, que aquilo tinha a ver comigo.

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“Era muito difícil Eu li outras partes da revista e quando Nós passamos dez, onze anos em Cuba vi-
acabava minha hora de almoço, resolvi vol- vendo como cubanos. Estudamos em escolas
receber informações tar à matéria. Eu não sabia o que era, mas, de como cubanos. Mas tinha um grupo grande
naquela época, as repente, vi a foto do meu pai naquela repor- de brasileiros exilados que se reunia com al-
tagem. Dezenove anos depois de eu estar de guma periodicidade e ouvia o hino do Brasil
correspondências volta ao Brasil, ainda não sabia o que tinha com muita emoção, ouvia gravações da Voz
chegavam todas acontecido com meu pai. Eu me assustei. do Brasil e trocava informações. Porque, na
Não sabia de nada daquilo e, por ter passa- época, era muito difícil ter notícia do que
violadas, fotografias do todos os anos da minha infância com os acontecia no Brasil, ter notícias dos familia-
chegavam rasgadas meus pais me protegendo, até hoje não corro res. Eu lembro que quando chegavam corres-
atrás de certas informações. Eu as descubro pondências dos nossos familiares, elas eram
e demoravam meses a conta gotas em livros, pela internet. motivo de muita alegria e de muita apreen-
para chegar” Alguns sites falam do meu pai de uma ma-
são. Era muito difícil receber informações na-
quela época, as correspondências chegavam
neira muito pejorativa e triste. Isso magoa todas violadas, fotografias chegavam rasga-
demais, porque eu sei que meu pai é guerrei- das e demoravam meses para chegar.
ro, é briguento, é bravo. Quando se trata de
justiça ele é muito bravo. E tenho muito or- Em uma dessas correspondências che-
gulho dele, por saber que não teve medo de gou a notícia de que eu tinha perdido meu
fazer justiça. Não me interessam os métodos avô materno, que não cheguei a conhecer.
que usou, mas ele tentou fazer justiça. Meu E lembro dessa sensação, que eu acho que
pai sempre foi muito honesto. E é isso que eu é a mesma que a Priscila menciona, de que
levo de toda essa história. Que a esperança, a gente não sabia exatamente o que aconte-
como disseram os demais nesta Audiência, cia, mas que a gente sabia que alguma coisa
e a justiça sejam feitas; e a esperança de que ruim ainda podia acontecer.
nós não tenhamos mais pessoas que enxer-
gam a verdade que querem enxergar, e não a Os meus pais sempre deixaram claro para
verdade de fato. mim e para o meu irmão que aquele não era
o nosso lugar e que a qualquer momento po-
O André [Arantes] comentou que dife- díamos ir embora, que precisávamos voltar
rentes olhares trazem diferentes visões do para o nosso país. Então, nós passamos dez
mesmo fato. E a gente sabe que muita gente anos da nossa vida sem poder nos apegar a
neste país ainda acha que pessoas como os amigos, a brinquedos, a lugares, aos profes-
pais do André e da Priscila, os pais da Iara e sores, a escola, porque a qualquer momento
da Raquel, os meus pais, os pais das quatro iríamos embora.
crianças que eu mencionei, são terroristas.
O que eu mais quero com essa Comissão Queríamos muito ir embora, porque sen-
da Verdade é que um dia ninguém mais pen- tíamos a paixão dos meus pais pelo país, a
se assim. necessidade que tinham de voltar, além do
desespero de voltar para o convívio dos fa-
Nós chegamos em Cuba quando eu tinha miliares aqui.
mais ou menos 6 meses de idade. O meu ir-
mão, Darcy, nasceu em Cuba. Meu pai ficou Em 1980, quando voltamos para o Brasil,
aqui no Brasil, na clandestinidade, no Vale do fomos morar no interior de São Paulo, em
Ribeira. Ele esteve preso, foi torturado e foi um Bauru. Eu lembro que foi uma época muito
dos quarenta que foram trocados pelo embai- difícil porque depois de mais de dez anos
xador alemão. Entre esses quarenta, estão as fora do país os meus pais não tinham mais
quatro crianças que mencionei. E o meu pai casa, não tinham mais nada do que eles dei-
finalmente chegou a Cuba quando eu já tinha xaram aqui. Além de que, nenhuma escola
2 anos de idade e o meu irmão já tinha um em Bauru queria matricular a mim e a meu
ano de nascido. irmão. Por dois motivos: porque era tudo

122 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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muito recente, as pessoas tinham medo E eu sou muito grata a ele e à minha filha,
elegância. Apoiou o meu pai até hoje, que
de envolvimento com pessoas perigosas; e porque eles sempre entenderam e tiveram
é minha mãe. Hoje eles estão separados,
também porque o Ministério da Educação orgulho dos meus pais e da minha família.
mas são muito, muito amigos, e ela sempre
demorou para validar os estudos que fize- E queria também agradecer uma pessoinha
apoiou meu pai, apesar de não ter sido muito
mos em Cuba. muito especial, que meu pai tentou poupar
ativa em todo esse processo.
o tempo inteiro, pela sua fisionomia e seu fí-
Mesmo assim, felizmente, com a ajuda de
sico frágil, delicadinha, professora. Meu pai
companheiros, conseguimos assistir, parti- DORA AUGUSTA RODRIGUES MUKUDAI nasceu em
poupou muito essa mulher, sem saber que
cipar em uma escola como pessoas transpa- 6 de agosto de 1968. Filha de Darcy Rodrigues e de Rosa-
ela é uma pessoa extremamente guerreira. lina de Freitas Anselmo. É bacharel em Ciência da Com-
rentes. A diretora do SESI de Bauru aceitou
Ela segurou toda essa onda com muita, com putação e trabalha com gestão de pessoas na área de
que eu e meu irmão assistíssemos às aulas
muita garra e com muita classe, com muita Tecnologia da Informação.
na série em que meu pai afirmava que nós
estávamos, independente do MEC validar
ou não. E ficamos por um período, eu na sex-
ta série e meu irmão na quinta série, sem ter
o nome na lista de chamada, fazendo as pro-
vas às escondidas, separadas e, obviamente,
com isso tudo sabíamos que éramos vistos
como diferentes, apesar do meu pai e da mi-
nha mãe tentarem nos fazer acreditar que
estava tudo bem.
O André também comentou sobre a che-
gada de um momento em que ele podia “ser
quem ele era”, contar para as pessoas quem
ele era. Da sexta série até o colegial eu tam-
bém vivi esse momento de não poder falar
muito porque eu tinha morado em Cuba,
quem eu era, quem era meu pai. Só depois de
alguns anos que percebemos que as pesso-
as começaram a entender melhor. E quando
eu entrei no colegial, eu estudei no Colégio
Técnico da UNESP em Bauru, tinha uma
professora de história que nos mandou ler o
livro Feliz Ano Velho.
Até então eu tinha muito medo de falar do
meu passado. E fiquei muito feliz de saber
que tinha uma professora que incentivou o
debate e que, finalmente, eu podia falar o que
pensava daquilo tudo, que finalmente eu ti-
nha encontrado pessoas que eram solidárias
a tudo isso e aceitavam toda essa situação.
Então eu fico feliz de ser a última aqui [a fa-
lar] porque, juntando o depoimento de todos,
descobri que eu tenho coisa para falar.
Queria comentar que hoje eu sou casada,
meu marido é Jorge Mukudai, descendente
de japoneses, pessoas simples, uma família
Rosa com Darcysito no
que não tinha, nunca teve participação po- colo e Dora, Cuba
lítica, nem entendimento político nenhum.

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Darcy Rodrigues nasceu em 19 de novem-
bro de 1941, em Avaí (SP). Sargento do Exército, re-
sistiu ao golpe de 1964 junto com militares resisten-
tes. A aproximação com o capitão Carlos Lamarca,
no Quartel de Quitaúna, em Osasco, fortaleceu o
grupo. Em 1969, já ligado à Vanguarda Popular Re-
volucionária (VPR), abandonou a carreira militar.
Darcy e Lamarca foram os principais atores da fuga
do Quartel de Quitaúna, em janeiro de 1969.
Foi preso em abril de 1970, junto com José Lavechia,
numa área rural do Vale do Ribeira, onde a VPR fazia
treinamento de guerrilha. Ficou preso por 57 dias, 2
3
sendo torturado diariamente. Saiu do país em 15
de junho de 1970, trocado junto com outros presos,
libertados no sequestro do embaixador alemão,
Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben.
1, 2, 3 e 6. Fotos de Darcy em prontuários
Levado inicialmente para a Argélia, depois exilou-se de órgãos de repressão
em Cuba, onde sua mulher e filha já viviam desde 4. Dora fichada no DOPS aos 4 meses,
pouco antes de deixar o Exército. Morou dez anos em 17 de dezembro de 1968
em Cuba, onde trabalhou como professor e estudou 1 5. Ficha de Rosalina no DOPS
Economia. Lá, nasceram dois dos seus quatro fi- 6 e 7. Foto e ficha de Darcy em prontuários de
lhos. A família voltou ao Brasil em 1980, onde Darcy órgãos de repressão
estudou direito. Em 1983 exerceu o primeiro de mui- 8. Militantes banidos na troca do
tos cargos públicos na cidade de Bauru, onde vive embaixador da Alemanha no Brasil. Darcy
é o número 11. Imagem do relatório do CIE,
até hoje. Em 2010, Antonio Pedroso Junior, lançou
Indivíduos Banidos do Território Nacional,
o livro: Sargento Darcy, Lugar Tenente de Lamarca, 1970, distribuído aos orgãos de repressão, para
sobre a trajetória do militante. reconhecimento dos mesmos

Rosalina de Freitas Anselmo nasceu 4


em 7 de setembro de 1943, em Três Lagoas (MS),
onde se formou professora. Casou com Darcy Ro-
drigues em 1963. Foi para Cuba em janeiro de 1969
onde se especializou em educação infantil e traba-
lhou como professora. Retornou para o Brasil em
1980 indo morar em Bauru (SP). Tem quatro filhos
e duas netas.

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6

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1

1. Darcy, Darcysito com 3 anos,


Rosalina e Dora com 4 anos, Cuba
2. Rosalina com Darcysito, Rosa
e os filhos de Carlos Lamarca,
Claudia e César, no parque
Almendares, Havana, Cuba
3. Dora, Darcy, Darcysito e
Rosalina grávida do terceiro filho,
Havana, Cuba, 1979

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“A possibilidade de
nunca mais vê-los martirizava
nossas mentes”
por Darcy Rodrigues

Quando decidi conjuntamente com o Capitão No momento da ação, me encontrava junta- dura militar, acabei sendo preso em abril de 1970,
Carlos Lamarca abandonar as fileiras do Exér- mente com o camarada José Araújo Nobrega, durante treinamento de guerrilha no Vale do Ri-
cito Brasileiro e aderir à luta armada contra o tentando resgatar armas, munições que se en- beira, tendo sido libertado em 14 de junho, jun-
arbítrio e a tirania, instalado em nossa pátria contravam no aparelho utilizado pelo compa- tamente com outros 39 companheiros em troca
pelos militares, o primeiro pensamento foi ga- nheiro Pedro Lobo, preso em Itapecerica. Por da liberdade do embaixador alemão, sequestrado
rantir a integridade e a segurança de nossos ironia do destino, o embarque de nossos fami- por um grupo de combate da VPR, comandado
familiares. liares estava previsto para o dia 24, às 20 horas, pelo saudoso camarada Eduardo Leite, o Bacuri.
Em discussão com lideranças da Vanguarda no aeroporto de Congonhas, com o destino
inicial sendo a Itália. Sem nada combinar com Fomos levados para a Argélia e de lá, pouco
Popular Revolucionária (VPR), decidimos en-
o camarada Lamarca, decidi ir ao aeroporto, tempo depois segui para Havana, em Cuba,
viar Rosalina e Dora Augusta, minha esposa
despedir-me de Rosa e Dora Augusta, e acabei onde após um ano e meio de separação, reen-
e filha, juntamente com Maria Pavan, César e
encontrando com Lamarca, que decidira igual- contrei com Rosalina, Dora Augusta, e Darcy-
Claudia, esposa e filhos de Lamarca, para o ex-
mente despedir-se de seus familiares. sito. Não sabíamos, quando Rosa saiu do Brasil
terior, mais precisamente para Cuba, mantendo-
que ela se encontrava grávida de nosso segun-
-as afastadas de nosso país, enquanto durasse a Como relato pitoresco desta nossa ida ao ae- do filho, que veio a nascer em território cubano.
guerra revolucionária. roporto, à época a TV Excelsior estava exibindo
Em decorrência da prisão de companheiros uma novela, onde existiam cenas de violência e A separação dos familiares e o pior, a possibi-
que estavam pintando um caminhão com as co- tiroteios, sendo que uma das cenas estava sen- lidade de nunca mais tornar a vê-los, martiriza-
res do Exército, em uma propriedade rural em do gravada nesta noite no aeroporto de Congo- vam nossas mentes durante todo o tempo.
Itapecerica da Serra, fomos obrigados a anteci- nhas. Ao ouvirmos os tiros e policiais correndo,
Decorridos mais de quarenta anos dos fatos,
par a ação expropriatória a ser realizada no IV RI chegamos a pensar que tínhamos sido locali-
tenho que necessariamente fazer uma severa
de Quitaúna, na cidade paulista de Osasco. zados pela repressão e rapidamente colocamo-
autocrítica, pois por questões de segurança, e
-nos em posição de defesa, já que não tínhamos
Acabamos a realizando de forma parcial, no sempre buscando preservar meus familiares,
a mínima intenção de sermos capturados.
dia 24 de janeiro de 1969, quando o camarada jamais comentei com eles detalhes de minha
Lamarca, em companhia do cabo Mariane e do Para nosso alívio, eram somente cenas de uma militância política, fazendo com que eles fos-
soldado [ Carlos Roberto] Zanirato, saíram com novela. Esta foi a última vez que Lamarca viu a sem descobrindo somente na adolescência e na
munição e 63 fuzis daquela unidade militar. esposa e filhos. Engajados na luta contra a dita- juventude detalhes de minha atuação política.

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por Zuleide Aparecida do Nascimento

Eu sou a Zuleide, uma das miniterroristas,


que é a maneira como fomos taxados [pela di-
“Do período que ficamos Quando fomos sequestrados, fomos levados
para uma casa que eu não lembro onde era. Lá,
tadura]. Nascemos em Osasco, somos filhos de no Juizado, o que me ficamos por cinco dias. Meu irmão Luis Carlos
Sebastião Rivom do Nascimento, que é filho da conta que era uma casa grande e bem mobi-
tia Tercina e irmão do Manuel Dias do Nasci-
lembro é que fizeram uma liada. Ficamos trancados num quarto de onde
mento. Minha mãe chamava Maria do Perpétuo trança no meu cabelo. não podíamos sair. Depois, nos levaram para o
Socorro do Nascimento, mas nós fomos criados Juizado de Menores. E o Samuel, que era nosso
pela vó, Tercina Dias de Oliveira, chamada de Eu tinha um cabelo de irmão de criação, foi levado para um local onde
Tia, desde que éramos pequenos. comprimento abaixo da ficavam meninos infratores. Ele apanhou mui-
to, foi torturado.
Na época da greve [de Osasco], eu tinha cintura e ele foi cortado”
3 anos de idade. Depois dessa greve, a família O Samuel ficou careca porque teve o cabelo
toda começou a ser perseguida porque o tio, raspado, foi tratado como menor infrator, apa-
o Manuel Dias de Oliveira, o Neto, foi um dos Depois da greve, fomos morar no Vale do Ri- nhou. E além de ter sofrido a agressão psicoló-
cabeças, um dos líderes da greve junto com o beira. Lá, era a vó quem dava estrutura para o gica que todos nós sofremos, ele ainda sofreu
José Ibrahin. Com muito orgulho eu falo que Capitão Lamarca. Quando as pessoas que sa- agressão física.
a greve de 1968 foi planejada na casa da minha biam da existência do aparelho do Vale come-
Do período que ficamos no Juizado, o que
avó, lá em Osasco. Ela dava todo apoio. çaram a ser presas, a organização fez por bem
me lembro é que fizeram uma trança no meu
nos tirar de lá, porque sabia que a qualquer mo-
cabelo. Eu tinha um cabelo de comprimento
O meu tio Manuel conheceu o Zequinha mento o aparelho poderia ser estourado. Quan-
abaixo da cintura e ele foi cortado. Tinha uma
Barreto nas fábricas. Aí o Zequinha passou a do saímos do Vale, o [José] Lavechia se separou
pessoa cortando e outra do lado falando: “Me
militar na VPR e meu tio também. Depois ele de nós e entrou para as tropas do Lamarca, foi
dá essa trança que eu quero fazer uma peruca”.
também levou a minha avó para a organização. integrado à linha de frente da VPR. E nós fomos
Eu não lembro de muita coisa porque era pe-
O tio Manuel se filiou ao sindicato com 15 anos levados para um aparelho em Peruíbe.
quena, mas desse fato eu lembro.
de idade, por incentivo da minha avó, que tinha
A estratégia da ditadura, depois que ocupa-
um espírito libertário. Quem teve a oportuni- Para mim, foi realmente uma grande violên-
ram o Vale do Ribeira, foi manter a casa com a
dade de conhecê-la, sabe a figura que ela era, o cia. Eu era uma criança de 4 anos de idade. O
mesma rotina de quando estávamos lá. De ma-
espírito de luta que tinha. que uma menina gosta? De ter cabelo compri-
nhã, colocavam as roupas das crianças no varal,
do. Para mim, isso foi uma tortura. E foi tam-
davam comida para os bichos, abriam a casa e
bém uma tortura terem me separado da minha
ficavam lá dentro. Isso servia de armadilha para
avó, que era a única mãe que eu conhecia.
À esquerda, Zuleide fichada antes outros companheiros que chegavam ao local
do banimento do país, 1970.
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
pensando que estava tudo bem, que a Tia estava E eu tinha que ser forte. Minha avó olhava
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros lá. Mas ao chegarem, eram presos. para mim e falava: “Seja forte, resista, não abai-

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“Cuba é o meu país e xe a cabeça”. E eu tendo que me segurar, tendo Quando voltei ao Brasil, me engajei no movi-
que segurar o tranco vendo minha avó partir. mento sindical. Trabalhei em muitos sindica-
não tem como deixar Para mostrar segurança, ela nem olhou para tos, até porque também eu não tinha condições
de ser. Foi o país que trás quando se separou de nós. de procurar emprego em outro lugar. Quando
tentei fazer ficha de emprego em muitos lu-
nos acolheu. Foi pai Só conseguimos sair do Brasil porque mi- gares, inventei que tinha estudado em uma
nha avó brigou muito para nos tirar, porque o
e mãe para nós. caminho natural não seria esse. Nós seriamos
escola em Pernambuco, mas que meus papéis
tinham se queimado no barraco da favela onde
Eu brinco que o Fidel adotados. Quando ela ficou sabendo que ia ser eu morava.
extraditada, que tinha que sair do Brasil, ia ser
Castro era o meu pai” banida, disse: “Cadê meus netos?” E disseram Nesses meios também tive uma válvula de
que apenas ela iria embora. No período em que escape para o enfrentamento contra aqueles
estávamos no Juizado de Menores, não me lem- que me massacraram. Quando fui para o mo-
bro bem como foi o fato, mas sei que de repente vimento sindical, fui participar de greve geral
acordei e o Ernesto estava lá. Ele não tinha sido e acabei indo para o embate com a polícia. Fui
preso conosco e sim com o pai e a mãe dele. para a linha de frente receber gás na cara. En-
frentá-los foi também uma forma que eu tive
Quando enfim resolveram nos liberar, dis- de falar: “Aqui estou eu, entenderam? O que
seram para minha avó: “Está bem, aqui estão fizeram, eu também estou enfrentando vocês,
seus três netos”. E ela: “Não, eu quero meus entenderam?”
quatro netos. Estou sabendo que o Ernesto
está lá dentro também, e ele é meu neto e vai Quando voltei ao Brasil, em 12 de janeiro de
comigo. Entrei aqui com três, mas eu vou sair 1986, tinha 20, 21 anos. Meu irmão [Luis Car-
daqui com quatro”. E assim foi. los] voltou um pouco antes de mim. O Samuel
voltou depois, em 1983. A vó e o Ernesto volta-
Quando fomos libertados, a única coisa que ram comigo.
me lembro é que me vi dentro de um helicópte-
ro e lá na frente um monte de milicos armados. O tio [Manoel Dias do Nascimento] já ha-
Foi quando foi feita a foto dos quarenta. [Em 15 via voltado ao Brasil assim que foi decretada
de junho de 1970, quarenta militantes foram ba- a Anistia. Ele veio fazer o meio de campo para
nidos do Brasil e enviados à Argélia em troca nós, foi atrás dos nossos documentos, porque
do embaixador alemão Ehrenfried Von Hollen- quando saímos do país, não tínhamos nenhum
ben]. Aí nós fomos para a Argélia, onde ficamos documento. E então, quando meu tio mandou
um mês e pouquinho. Depois fomos para Cuba, meu registro de nascimento lá para Cuba, foi
que foi o país que nos acolheu. Ficamos lá du- impressionante. Só então descobri minha ida-
rante dezesseis anos. Estudamos, terminei o se- de real. Quando eu cheguei em Cuba, coloca-
gundo grau e depois voltei ao Brasil. ram como se eu tivesse nascido em 1966, quan-
do na realidade eu nasci em 1965.
Havia muitas crianças que nasceram no Bra-
sil, no Chile e que depois foram para Cuba. E a Eu não sabia minha data de nascimento, por
casa da vó, era a casa da avó de todos. As crian- exemplo, nem meu nome direito. Quando en-
ças iam passar as férias escolares lá na casa da trei na creche, usei o nome de Zuleide Lucena,
vó, então, às vezes, tinham umas doze crianças que era o sobrenome da Damaris Lucena, viúva
lá. Os filhos do Virgílio [Gomes da Silva] foram do [Antônio Raymundo] Lucena, que já estava
criados juntos conosco. Ficávamos todos juntos. lá com os filhos quando chegamos. O gover-
no cubano nos colocou para morar na mesma
Também tínhamos uma relação muito boa casa que a Damaris porque ia ser mais fácil, in-
com as crianças cubanas. Na nossa casa, éra- clusive para as crianças dela conviverem com
mos em oito crianças. Todas as brincadeiras outras crianças. Nós fomos criados como uma
aconteciam lá. Os vizinhos cubanos vinham grande família. Na casa, morávamos a Dama-
brincar com a gente e todos eles conheceram ris, a vó e as oito crianças. Era ela que cuidava
as nossas histórias. de todos nós, e a Damaris que nos levava ao

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“Aconteceu de
crianças realmente
serem taxadas
de terroristas,
como se a gente
fosse perigo para
a sociedade.
Crianças foram
torturadas de fato,
isso aconteceu
no Brasil”

Ângela Telma, filha de Damaris Lucena,


Zuleide e Ernestinho, Cuba
médico, à escola. Foi ela que me matriculou Chamarem a minha avó de Tia foi uma forma
na escola e como não tinha documento, deu o carinhosa criada pelos próprios companheiros.
nome de Zuleide Lucena. Assim fui chamada Eu imagino que como ela era a mais velha, a
durante muito tempo. A questão do meu nome mais idosa, as pessoas carinhosamente a cha-
era uma confusão. Uma hora eu era Zulmara, mavam de tia. E pegou. Inclusive quando ela foi
outra vez Zuleide. Outra hora era Zuleide Lu- presa, os milicos a chamavam assim. E isso foi um pai. A gente sentava, ele brincava com a
cena, outra ainda Zuleide Aparecida. integrado ao nome dela: Tercina de Oliveira, a gente, lia histórias. Isso no pouco tempo que
Tia. Ela era a cozinheira e costureira do Lamar- ficava ali com a gente.
Essa identidade nós nunca achamos. Até ca, no Vale do Ribeira.
hoje sou uma pessoa completamente sem Ele matava com a gente a saudade que tinha
identidade. Eu sei que sou brasileira, porque Nós conhecemos o Lamarca, guardo bem dos filhos, a Claudinha e o César. Ele nos aju-
nasci brasileira. Mas não me sinto brasileira isso na memória. Quando ele chegava do mato dou a suprir um pouco a necessidade de pai e
e sim cubana. Sei que não sou cubana, então depois de quinze, vinte dias – porque havia um nós o ajudamos a suprir um pouco a necessi-
é uma confusão muito grande. Aí eu costumo revezamento do pessoal que estava no mato, dade dele de filhos.
dizer que como tenho na veia a herança de mi- no treinamento e ele vinha buscar o outro pes-
litância, digo que sou latino-americana. Acho soal que chegava e a casa servia de ponte – ele Eu estava em Cuba quando ele foi morto [La-
que fica muito mais fácil. sentava no chão da cozinha lá de casa, tirava marca foi assassinado em 17 de setembro de
a bota e falava: “E aí Tia, você quer um touci- 1971]. Eu olhei para a minha avó e perguntei:
Cuba é o meu país e não tem como deixar de nho aí para colocar no feijão para dar um gos- “Vão fazer com ele que nem fizeram com o Che
ser. Foi o país que nos acolheu. Foi pai e mãe tinho?” Ele estava falando do próprio pé, que [Guevara]? Vão arrancar as mãos do Lamarca
para nós. Eu brinco que o Fidel Castro era o estava há vinte dias dentro de uma bota. Ele também?” O que soubemos foi que ele estava
meu pai. Porque durante dezesseis anos nos brincava com a vó. Eles tinham um relaciona- no sertão da Bahia com o Zequinha [Barreto],
apoiou e nos deu tudo, a formação que a gente mento muito gostoso de mãe e filho. É uma fi- que foi perseguido lá, e que tinham consegui-
tem hoje devemos a Cuba. gura que jamais esquecerei. Para mim, ele foi do encurralar e matar ele.

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Quero contar um pouco a história to, que para ele é importante falar. “Vai, vai ser eu quero que amanhã meu filho saiba direito o
do Samuel. bom, você fala muito poucas vezes sobre isso”. que aconteceu. Ele tem 9 anos de idade. Quan-
Dizem que quando a gente solta, vai tirando do as crianças são pequenas, o que ensinamos
Ele era do Rio de Janeiro, foi criado pela mãe, um pouco de cima. Eu, quando faço isso que a elas? Que se você rouba, é preso. Se mata, é
tinha irmãs mais velhas. A mãe saía para traba- estou fazendo hoje [testemunhando], o resto preso. Um dia, estávamos eu e o tio Manoel no
lhar, as irmãs também. Ele ficava sozinho, brin- do dia fico como se tivesse passado um trator carro, conversando e falando: “Sabe fulano, que
cando pelo cemitério do bairro onde morava. em cima de mim. Já o Ernesto dorme até três esteve preso com cicrano, com a Vó, não sei o
Ficava na rua. Minha avó, que sempre criou vá- dias seguidos. quê”? Aí meu filho olhou para mim e pergun-
rias crianças, foi passar um tempo lá no Rio de tou: “Você já foi presa? O tio já foi preso? A
Janeiro e conheceu essa criança na rua. Ela foi Mas realmente ele não quer falar. Ele disse: bisa já foi presa?” O menino levou um susto.
à casa da mãe e pediu para cuidar dele. A mãe “Eu não quero, tenho que trabalhar. Aqui nin-
deixou. Aí quando a vó retornou para São Paulo guém conhece a minha história, aqui eles não Hoje em dia eu explico porque fomos presos.
trouxe o Samuel junto. conhecem de onde eu vim, para onde eu fui, E ele fala: “Na época da guerra, né mãe?” Mas
quem eu fui, quem eu sou, nada. E eu não que- isso tem que ser corriqueiro nas escolas por-
Ele passou por toda a nossa história, foi de ro que saibam, não quero, não quero”. Eu acho que realmente essa é a história do Brasil, isso
aparelho em aparelho, foi para o Vale do Ribei- que ele não quer falar. aconteceu de fato, é a história da gente.
ra. Além da dor psicológica que a gente sofreu,
ele passou por tortura física. Fomos para Cuba e Hoje o Samuel é uma pessoa super retraída. Apesar de todo o sofrimento, dou graças a
quando o tio Neto voltou, resgatou a identidade Nós que somos irmãos dele, que nos criamos Deus de ter saído do Brasil na época, de ter
do Samuel, que na volta, foi procurar a família com ele, sentimos a diferença dele antes de sido banida do Brasil, ao invés de ter que ficar
biológica e começou a resgatar a história dele. Cuba e em Cuba. Lá foi o período em que ficou aqui como aconteceu com muitos, com pai pre-
Reencontrou a mãe e teve condições de ter o mais descontraído, mais à vontade. Depois que so, mãe presa, e eles nas escolas sofrendo o que
nome dela no registro. Quando saiu do Brasil, voltou, a gente percebe que ele tem um blo- hoje se chama bullying, sendo discriminados e
usava o nome da vó, Samuel Dias de Oliveira, queio muito grande. sofrendo o que sofreram na escola.
até porque todo mundo saiu sem documento. Para mim, é muito doloroso contar e lembrar Eu pelo menos não passei por isso. Fui para
Ele só teve condições de ter registro de nasci- da minha história. Mas eu faço pela importância. um país onde pude ter o resto da minha infân-
mento quando voltou, porque foi com a mãe Acho que esses fatos que aconteceram têm que cia em paz e não ter essa vida massacrada e
[biológica] ao cartório e se registrou. Hoje, ele ser revelados, falados. Quero parabenizar o traba- sendo seguida o tempo todo como aconteceu
se chama Samuel Ferreira, que é o sobrenome lho da Comissão porque são coisas que precisam com várias crianças que ficaram aqui.
da mãe. Porque na época em que se registrou ser faladas, abertas, jogadas ao mundo.
no Brasil, o pai já tinha falecido. A vó faleceu há dez anos, em oito de março
Eu me orgulho de ter esta história, de ter, de de 2003. Ela tinha um registro de nascimento
Em 2009, 2010, quando foi julgado o nosso certa forma, participado de tudo isso. E tam- que constava como data de nascimento o dia
processo em Brasília, fui defender o processo bém é a única história que eu conheço, o úni- 2 de novembro. Então eu costumo falar que
do Samuel que, quando entrou com um pro- co jeito de vida que conheço. Para mim, é tão minha vó nasceu no dia dos finados e faleceu
cesso de anistia, apresentou o nome de Samuel natural ter esta história e ter passado por tudo no Dia Internacional da Mulher, oito de março.
Ferreira. E aí existia um conflito, porque todos isso. Não é que eu goste de falar, há uma ne- Ela teve câncer de útero. Acho que ela faleceu
os documentos que juntávamos era de Samuel cessidade de se falar, a necessidade de gritar com 93 anos. Não temos certeza da idade, por-
Dias de Oliveira. ao mundo. Aconteceu isso sim, aconteceram que havia uma confusão de data.
Eu costumo falar para o Samuel que tenho essas barbaridades sim, de matarem pai de fa-
mais carinho e cuidado por ele do que tenho mília, de matarem mães de família, aconteceu
ZULEIDE APARECIDA DO NASCIMENTO nasceu em 5 de
pelo meu próprio irmão de sangue. Ele me li- de crianças realmente serem taxadas de ter-
agosto de 1965. Osaco (SP). Filha de Sebastião Rivom do
gava e falava: “Você é a única irmã que eu te- roristas, como se a gente fosse perigo para a Nascimento e Maria do Perpétuo Socorro do Nascimen-
nho, a minha família de sangue aqui não quer sociedade. Crianças foram torturadas de fato, to, estudou em Cuba e trabalha como secretária.
saber de mim. Eles não me procuram, eu não isso aconteceu no Brasil, na América Latina e
tenho contato com eles”.Na semana passada não pode voltar a acontecer. SAMUEL FERREIRA nasceu no bairro do Éden em São
João do Meriti (RJ). Filho de criação de Tercina, era con-
eu falei com ele, para vir aqui dar depoimen- Nenhum ser humano tem o poder de tortu- siderado neto da família instalada na entrada do sítio
rar, de acabar com a vida de outro ser huma- que servia de fachada para a área de treinamento de
À esquerda, Samuel fichado antes do banimento do país, 1970 guerrilha. Tinha quase 9 anos quando foi banido e, sem
no. Em nome de quê? Por isso que eu acho documentos, ganhou o sobrenome de Tercina. Só conse-
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros importante e por isso que eu vim hoje. Porque guiu regularizar seus papéis em 1982.

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134 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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por Luis Carlos Max do Nascimento

Meu nome é Luis Carlos Max. Sou um dos Lá, nós conhecemos o Carlos Lamarca, coi- abaixar a cabeça. Isso porque não podíamos
quatro netos da Tia Tercina [Dias de Oliveira]. sa de que tenho muito orgulho. Ele morava lá reconhecer o lugar para onde estávamos indo.
Somos eu, minha irmã Zuleide, tem o Ernesto, no meio do mato mesmo. A morte dele foi uma
e meu irmão de criação, que é o mais velho, o perda muito dolorosa. Da mesma forma que ele Aí fomos para Peruíbe. E foi lá que fomos
Samuel. Nós fomos criados com minha avó des- era rígido por ser um comandante de uma or- presos. A tensão maior foi quando de madru-
de cedo. Depois que minha mãe adoeceu, nós ganização, era doce também. Ele nos deu uma gada a polícia chegou em casa, foi em março
fomos viver com a nossa avó. grande formação. Ele nos ensinava muita coisa ou abril de 1970. Estávamos eu, vó, Samuel e
e o tenho como um pessoa muito querida. Zuleide. O Lavechia já não estava mais lá. Ali
Na época da greve de Osasco eu tinha 5 anos. sim percebemos que a coisa era pesada mes-
Logo em seguida, minha avó teve que entrar na Quando o Vale do Ribeira caiu e a polícia fi- mo. Vimos a brutalidade daquela invasão. A
clandestinidade, junto com meu tio, que era sin- cou sabendo da existência do local, a situação já minha avó ficou muito tranquila. Ela sempre
dicalista e foi cassado. Nessa época, a vó era do não podia mais se sustentar, então tivemos que foi muito bem preparada para isso e sempre
Partido Comunista – que foi cassado. sair de lá e fomos para uma casa em Peruíbe. nos preparou. Era de madrugada quando nos
Desde criança nós tínhamos noção do perigo, acordou: “Olha, não está acontecendo nada,
Ficamos indo de um aparelho para outro, fu- éramos preparados para isso, vivíamos nessa recolham as coisas, arrumem as roupas, nós
gindo da polícia, até que fomos para o Vale do tensão. Não éramos crianças comuns que po- vamos ter que sair”. E nós tranquilamente fi-
Ribeira, no final de 1969. O Vale do Ribeira era diam brincar na rua. zemos isso. Mas sentimos a invasão, a polícia
um centro de treinamento de guerrilha, para chegando, entrando e revirando as nossas coi-
preparar o pessoal para a luta armada. Quem
chefiava era o Carlos Lamarca. Nós não mo- “Desde criança nós sas todas. Foi pesado.
rávamos na cidade nem no povoado, e sim no tínhamos noção Depois disso, os militares e a polícia invadi-
vale, dentro do mato. Ali não podia entrar nin- ram o Vale do Ribeira, teve tiroteios, bombar-
guém, era escondido. do perigo, éramos deios. Ficou uma linha de fogo mesmo. Se esti-
Lá, vivíamos minha avó e nós três – eu,
preparados para isso, véssemos ali, não sei o que iria acontecer. Mas
o Lamarca nos tirou dali. Quando os militares
Zuleide e o Samuel, irmão adotivo que minha vivíamos nessa tensão. estouraram a casa, foi muito sigiloso, não era
avó criou desde pequeno. O Ernesto ainda não
estava conosco. Estava em outro aparelho com Não éramos crianças todo mundo que sabia. A casa serviu de arma-
dilha para outros companheiros que chegas-
o pai e a mãe. Só encontramos com ele quando comuns que podiam sem ali sem saber que havia sido invadida. Aí
fomos presos e levados ao Juizado de Menores.
E tinha o Nicolas, que era o codinome do José brincar na rua” chegavam lá e já eram presos.
Lavechia. Éramos uma família de camponeses Fomos levados para São Paulo, para o DOPS.
de fachada. Ficamos lá mais ou menos três A gente ficava dentro de um aparelho. Era Até hoje, quando me lembro, é doloroso. Fo-
meses. Nessa época, eu estava com 6 anos, a complicado. Não podia fazer barulho porque o mos colocados em uma sala e sabíamos o que
Zuleide com 4 e o Samuel com 9. vizinho de baixo sabia que tinha crianças. Vol- estava acontecendo. A situação estava ten-
À esquerda, Luis Carlos fichado antes do banimento do país, 1970
ta e meia tínhamos que sair de uma casa para sa. Hoje eu vejo meus filhos com 6, 7 anos...
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
outra. Nós íamos dentro do carro sem poder Eu não vejo neles o preparo psicológico que
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros olhar para a rua, tínhamos que fechar os olhos, tínhamos. Aí falamos: “Mas com 6 anos você

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“No DOPS, foi uma fazia isso, fazia aquilo, você sabia o que estava quatro dias. Era uma casa comum, muito chi-
acontecendo?” A gente vivia aquilo, tinha que que, com móveis caros, de madeira, com tape-
crueldade quando nos saber. De uma forma ou de outra, os nossos tes. Não vimos ninguém além de uma senhora
colocaram em uma sala companheiros também não deixavam que as que cuidava de nós. Ela não nos maltratava,
dores maiores chegassem até nós. mas também não nos dava carinho nem nada.
e nos separaram da vó.
Minha avó nos orientava: “Olha, vocês não Eu, por ser mais rebelde, saía do quarto cor-
Eu, que sempre fui o podem falar alto”, “Agora seu nome será X”. Eu rendo e ela dizia: “Não, não pode sair do quar-
mais rebelde dos irmãos, não podia mais chamar minha irmã de Zuleide, to”. Ela levava comida para nós. Só saíamos de
tinha que ser Zulmara. E ela não podia atender lá para ir ao banheiro. E dali nos levaram para
me agarrei muito na pelo nome de Zuleide. E eu passei a ser chamado o Juizado de Menores, onde ficamos uns dois
minha vó e comecei a de João Carlos. Essa era a preparação que tínha- meses mais ou menos.
mos. Acho que todas as crianças que estavam
chorar. Aí dois policiais com seus parentes na clandestinidade também Lá, praticamente só havia crianças, tinha até
pegaram a minha avó receberam esse preparo. A minha avó sempre bebês. Então ficávamos brincando o dia todo.
A única coisa com a qual me senti muito mal
passou segurança para nós, sempre foi dura, ca-
pelo braço e outro me rinhosa na hora que era para dar carinho e dura foi que tiraram os nossas pertences, cortaram
desgarrou dela” quando necessário. Pela vida que levávamos, a o cabelo da Zuleide e tiraram o brinquinho de
ouro dela, uma argolinha que minha avó havia
minha avó não podia ser mole conosco. Aliás,
ninguém podia ser mole naquela época, então dado a ela.
a minha avó sempre falou olhando nos nossos
Um belo dia chegaram e disseram: “Olha,
olhos e sempre falou sério quando era neces-
vocês estão indo embora”. Foi uma alegria.
sário. Ela era nossa referência de seriedade, de
Nos levaram não sei para onde, não sei se foi
tudo. A melhor referência que tenho é a da mi-
de novo para o DOPS, mas reencontramos a
nha avó, que no caso todo mundo chama de Tia.
nossa avó. Todo esse tempo ficamos sem sa-
No DOPS, foi uma crueldade quando nos co- ber nada dela. Quando nos reencontramos, a
locaram em uma sala e nos separaram da vó. alegria foi imensa. E junto com ela estavam os
Eu, que sempre fui o mais rebelde dos irmãos, companheiros, inclusive o Nicolas.
me agarrei muito na minha vó e comecei a cho-
Nós fomos fichados, tiraram uma série de
rar. Aí dois policiais pegaram a minha avó pelo
fotografias, tiraram as digitais. Depois ficamos
braço e outro me desgarrou dela. Ela me disse:
sabendo que estávamos saindo do Brasil. A po-
“Carlinhos, fique tranquilo que não vai acon-
lícia não estava querendo liberar as crianças e
tecer nada, tá? Depois a gente se vê”. Mas eu
minha avó disse: “Sem as crianças eu não vou”.
fiquei muito mal, porque a partir dali eu não a
Nós não tivemos passaporte. Quando você é
vi mais. Ficamos horas e horas naquela sala. E
banido, não tem passaporte, não tem documen-
depois fomos levados para o Juizado de Me-
tação nenhuma. É expulso mesmo. Nós, por es-
nores. Eu fiquei muito mal, mas muito mal. Eu
tarmos junto com nossos companheiros, fomos
não queria me alimentar, não queria brincar
fichados como terroristas. Não somos nós que
com as outras crianças que estavam lá. Nunca
estamos dizendo isso. São os documentos do
tinha me separado dela. Lembro disso até hoje.
DOPS que diziam que éramos terroristas.
Eu e a Zuleide, como éramos menores, fomos
Tiraram nossas digitais para caso retornás-
levados ao Juizado. Não fomos maltratados lá.
semos ao Brasil, já saberiam. Se retornássemos
Mas o Samuel, como já tinha mais de 9 anos,
para o Brasil é porque iríamos fazer guerrilha,
foi levado para uma instituição de crianças in-
como teve companheiros que voltaram e fo-
fratoras, onde foi maltratado. Mas antes de nos
ram assassinados. Então fomos banidos mes-
levarem para o Juizado de Menores, nos leva-
mo, exilados.
ram para uma casa muito grande. Não sei qual
era a intenção de fazer isso, se era para depois Parece que essa noite nós dormimos no
alguém nos adotar. Ficamos ali uns três ou DOPS ou no aeroporto. Aí fomos para o Rio de

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“Quando voltamos ficava com medo de ver polícia, de ver militar,
achava que estava sendo vigiado. A minha irmã
Nós fomos muito bem aceitos, mas não éra-
mos cubanos, éramos brasileiros e estávamos
para o Brasil, não tremia quando via a polícia. Treme até hoje. com muita vontade de voltar para o Brasil e
foi de uma forma Eu voltei ao Brasil um pouco antes da
reencontrar as nossas identidades. Até hoje eu
não achei minha identidade.
segura. Havia um Zuleide. Cheguei em 1982, tinha 18 para 19
anos. Nós tínhamos um problema de identi- Moro no Rio de Janeiro e hoje vim especial-
medo muito grande. dade muito grande. Fui saber meu nome ver- mente para São Paulo. Meu filho mais velho, de
Sempre tivemos dadeiro quando o meu tio Neto voltou para o
Brasil para preparar o campo para nosso retor-
25 anos, me perguntou: “Pai, o que você vai fa-
zer em São Paulo?” Eu respondi: “Meu filho, eu
aquele temor da farda no. Não tínhamos casa aqui, não tínhamos do- tenho que resgatar uma coisa do passado para
cumento nenhum. Então enviaram para Cuba todas aquelas pessoas que não conheceram o
verde dos militares” a nossa certidão de nascimento. Aí que eu fui que aconteceu no Brasil, na época que todo
ver realmente meu nome verdadeiro, porque mundo estava cego com futebol. Na década de
Janeiro, onde chegamos à noite. Dormimos no até então não sabia. 1970 teve a Copa do Mundo, nas ruas estava se
saguão do aeroporto, em uma sala onde esta- comemorando o jogo do futebol. Nem sei se o
vam todos os companheiros, os quarenta. Era Recebi a certidão de nascimento em 1980. Brasil foi campeão na época, mas a maioria dos
uma sala imensa, com um montão de colchões Foi quando preparamos toda a documentação brasileiros também não sabia que nos porões
no chão e dormimos ali. No dia seguinte de para retornar ao Brasil. Até então, eu tinha uma da ditadura pessoas eram assassinadas, até
manhã, embarcamos para a Argélia. Antes de confusão de nomes. Eu não sabia mais qual era crianças foram torturadas na época”. Foi isso
sairmos, tiraram aquela foto que todo mundo meu nome, se era João Carlos, se era João Car- que falei para os meus filhos.
já conhece. Fomos num avião comum, da Va- los Dias, se era Luis Carlos Dias.
rig, até hoje me lembro. Porque nos livros, nas escolas, as crianças
Em Cuba, nossa convivência com as crian-
não sabem que isso aconteceu. Eu e minha
Na Argélia, também havia um problema polí- ças cubanas era normal, porque estudávamos
irmã, assim como muitas outras crianças, so-
tico, então não podíamos estar muito expostos. praticamente numa escola interna. Tínhamos
mos a prova viva do que realmente aconteceu.
Depois o Fidel Castro ficou sabendo da situa- uma ligação também muito grande com as
ção e disse: “Quero que essas crianças venham crianças brasileiras que moravam lá. Eram os Fisicamente as coisas vão se apagando,
para Cuba. Eu me responsabilizo por elas, vou filhos da Damaris Lucena, do Lamarca, que como o companheiro Zé Ibrahin que morreu
dar educação e saúde para elas”. Foi o próprio eram o Cesar e a Claudinha, os filhos do Darcy esta semana [José Ibrahin, líder sindical, fale-
Fidel que nos fez esse convite. [Rodrigues] também estavam lá. A nossa casa ceu em 2 de maio de 2013]. Mas temos que ir
era praticamente um território brasileiro, pois levando as memórias para o futuro. Da mesma
Aí pegamos outro avião e fomos para Cuba, todos os brasileiros exilados em Cuba que mo- forma que se guardou as histórias da Segunda
onde fomos acolhidos pelo governo e pelo povo ravam em Havana se reuniam na nossa casa, na Guerra Mundial, do Holocausto, também que-
cubano. Praticamente toda a formação cultural casa da minha avó. No 7 de Setembro e no Car- remos falar sobre isso todos os dias para que
e política que temos é cubana. Quando cheguei naval fazíamos festas. Era um território onde isso nunca mais aconteça.
lá, em agosto de 1970, já tinha 7 anos. não se podia falar espanhol, só português, para
não perdermos o nosso idioma.
Minha mãe não foi para Cuba. Me separei
dela quando tinha 4 anos de idade. E como tí- Tínhamos aulas de Português e História do
nhamos entrado na clandestinidade, não soube Brasil, porque nossos pais sabiam que tínha- LUIS CARLOS MAX DO NASCIMENTO nasceu em
mais dela. Eu vim a reencontrá-la, praticamente mos que voltar para o Brasil e não perder essa Osasco (SP). Filho de Maria do Perpétuo Socorro do
conhecê-la, quando eu tinha 42 anos de idade. identidade, eles se preocupavam com isso. A Nascimento e de Sebastião Rivom do Nascimento.
Tem formação de Técnico Industrial, trabalha em me-
Por conta desses problemas todos, não conse- influência cubana para nós foi muito grande,
talúrgica e mora no Rio de Janeiro.
gui conviver com ela. E o triste da história são fomos muito novos para Cuba.
as sequelas que ficam.
Lá, havia preparação de guerrilha. Então,
Quando voltamos para o Brasil, não foi de nós, os maiorzinhos, já estávamos sendo pre-
uma forma segura. Havia um medo muito gran- parados também justamente para voltar para
de. Sempre tivemos aquele temor da farda ver- o Brasil e montar a nossa guerrilha. Tivemos
de dos militares. Tínhamos temor até de guarda aulas de guerrilha em Cuba, com armas, em lo-
de banco, de arma. Era uma coisa tenebrosa, eu cais estratégicos.

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por Ernesto Carlos Dias do Nascimento

Quero agradecer a todos os que me encoraja- quando elegeram José Ibrahin presidente do Mantovani do Nascimento e outros compa-
ram a escrever minha história, ou melhor, nos- sindicato. Meu pai não compôs a chapa dessa nheiros. Nessa época vivi esse ambiente, mas
sa história. Muito do que contarei aqui talvez vez para que não fosse impugnada, já que toda era ainda uma criança muito pequena.
não fosse necessário para uma narrativa formal chapa precisava ser aprovada previamente
do que se passou. Só os documentos públicos pelo DOPS, mas fez questão de comparecer ao No dia 18 de maio de 1970 fui preso em São
seriam suficientes para mostrar as atrocidades DOPS junto com Ibrahin e outros companhei- Paulo, com minha mãe. Eu tinha apenas 2 anos
que nós passamos, provando que até as crian- ros para negar que era comunista e solicitar a de idade. Fomos levados para a Oban, onde
ças perderam sua cidadania durante a ditadu- aprovação da chapa. meu pai foi torturado na minha frente. Passei
ra militar. Mas não foi só isso que perdemos e ainda pelos cárceres do DOPS, Presídio Tira-
me estendo um pouco mais para que fiquem “Eu tinha 2 anos e dentes e DOI-CODI/SP. Depois de um tempo,
registrados os sentimentos, os desdobramen- me separaram da minha mãe e fui para um
tos, as consequências e os pontos de vista das 3 meses e fui tratado local incerto, talvez para o Juizado de Meno-
crianças que passaram por situações adversas, como ‘Elemento Menor res1. Minha mãe solicitou aos militares que me
inclusive até os dias de hoje. E assim possamos entregassem para minha madrinha, tia Bê, mas
lutar por um futuro onde possamos dizer: “Los Subversivo’, terrorista...” nunca o fizeram ou entraram em contato com
niños nacen para ser felices” – José Martí. essa tia. Fui mantido lá como qualquer outro
No 1º de maio de 1968, conduziu os trabalha- preso político e me levaram diversas vezes às
Meu pai iniciou sua militância no ano de dores metalúrgicos de Osasco junto com Ze- seções de tortura para ver meu pai preso no
1959 com apenas 16 anos, sempre incentiva- quinha Barreto, outro grande companheiro de pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam
do pela minha avó Tercina Dias de Oliveira. luta, até a Praça da Sé, onde houve o primeiro me torturar com uma corda, na sala ao lado, se-
Atuou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), confronto com as forças de repressão do Esta- parados apenas por um biombo.
foi eleito na chapa do Sindicato dos Metalúr- do, que estavam disfarçadas de civis. Tal ato
gicos de Osasco em 1962, onde militou até foi o ensaio para a grande greve dos metalúr- Eu tinha 2 anos e 3 meses e fui tratado como
ser cassado pela ditadura em 1964. Continuou gicos de Osasco, ocorrida em junho de 1968, “Elemento Menor Subversivo”, terrorista e fui
sua luta clandestina organizando os trabalha- em que os trabalhadores foram duramente re- banido do país por decreto presidencial, con-
dores através das comissões de fábrica, o que primidos pelos militares, inclusive com tiros. forme consta nos documentos no arquivo do
lhe rendeu oito passagens pelo Departamento Com sua prisão decretada, teve que ir para a Estado de São Paulo. Fiquei preso até 16 de
de Ordem Política e Social (DOPS) até 1967, clandestinidade, passando a atuar na Vanguar- junho de 1970, quando fomos libertados no
À esquerda, Ernesto fichado antes do banimento do país, 1970
da Popular Revolucionária (VPR), junto com o resgate feito pelo Capitão Carlos Lamarca na
Foto de acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo,
Capitão Carlos Lamarca, minha avó Tercina troca de 442 presos políticos pelo embaixador
reprodução de Luiza Villaméa, Revista Brasileiros Dias de Oliveira, minha mãe Jovelina Tonello Alemão Ehrenfried von Holleben.

1
Como não temos registro do Juizado e meus primos maiores não se recordam de mim no Juizado de Menores, minha mãe desconfia que eu estivesse nas mãos de um militar que solicitou a minha
adoção oficial, coagindo-a. No meu regresso do exílio, conversando com minha madrinha,Tia Bê, ela me contou que, naquele dia, foi avisada por telegrama para que fosse me buscar no Juizado de
Menores. Ela foi correndo me buscar com meu tio João Calixto. E para a surpresa deles, há vários dias eu já estava no exterior. Foi quando ficou sabendo que meus pais estavam presos. O ofício que
registra os trâmites no dia 15 de junho de 1970, solicitando exames de corpo delito e fotos desse processo, menciona que os menores estão no Juizado e nele consta apenas um número de telefone.
2
Para reparar a história é necessário corrigir o número de presos libertos nessa ação. Como comprovado por documentos e testemunhos, os menores foram tratados como presos políticos, não
permitindo que fossem levados por outros familiares, fomos expostos a torturas física e psicológica e ainda oficialmente banidos por decreto presidencial.

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Fui banido juntamente com minha avó vida de um cidadão para sua educação e for- Davidson, e só percebi que estava fardado na
Tercina Dias de Oliveira, mais conhecida como mação do caráter. hora que ele partiu. “Tia Damaris olha... ele é
“A Tia”, que sabendo estar eu preso com meus meu amigo!”
Os primeiros anos que tenho lembranças em
pais, informada pelos companheiros de presí-
minha vida (após um ano em Havana, entre 3 Minha mãe sofreu muito e com certeza eu
dio e confirmado pelo seu interrogador, disse:
a 4 anos de idade) foram marcados por pavor sofria com ela. Nas entrevistas e depoimentos
“Entrei com três netos, mas só saio com qua-
de policiais de farda, de grupos com mais de feitos a jornalistas, minha mãe conta que en-
tro”. Meus pais continuaram presos.
quatro pessoas e quando meus pais chegavam trou em todo esse processo de luta armada por
Além de mim, também foram banidos meus do exterior4. Nessas situações eu entrava em amor ao meu pai, e não foi uma história inven-
primos-irmãos: Samuel Dias de Oliveira, filho pânico, chorava, me escondia debaixo da cama, tada para suportar a dor da tortura, de fato ela
adotivo da minha avó (9 anos de idade quando dentro de armário, mordia quem tentava me tinha uma paixão que, mesmo passando mui-
da prisão); Luis Carlos Max do Nascimento, pegar, urinava nas calças. tas dificuldades durante décadas e hoje serem
filho do primeiro filho adotivo de minha avó divorciados, ela ainda fala de meu pai com bri-
(6 anos de idade quando da prisão); e Zuleide “Os primeiros anos que lho nos olhos.
Aparecida do Nascimento (4 anos de idade
quando da prisão), irmã de sangue do Luis Car- tenho lembranças em Essa paixão acesa no primeiro olhar no re-
feitório do Frigorífico Bordon (fábrica onde
los. Como esclarece minha avó Tercina em seu minha vida foram mar- os dois se conheceram), fez que ela o seguisse
depoimento à Delegacia Especializada de Or-
dem Social, quando da sua prisão. Assim, mi- cados por pavor de poli- sem vacilar. Meu pai, já engajado na luta, tinha
temor de ter um filho nesses anos de chumbo,
nha avó só aceitou ser banida se pudesse levar ciais de farda” mas eu cheguei quando minha mãe completa-
consigo as quatro crianças, as três que tinham
sido presas com ela e eu. Minha avó sempre va 30 anos, idade que geralmente mulher não
contou que um sargento ou capitão, que a in- esperava mais ter um filho. Nos dois anos e
Com 4 para 5 anos de idade, toda vez que via
terrogou e não teve coragem de torturá-la fisi- três meses seguinte, eu não desgrudo da mi-
um policial de moto, gritava “Olha meu amigo
camente3, ajudou-a e insistiu muito para que nha mãe, que me amamentou até ser arranca-
ali!”. Eu ficava horas na varanda de nossa casa
conseguisse me levar. do de seus braços na cadeia.
na Quinta Avenida no bairro de Miramar ven-
do eles passarem e achava que era sempre o No meu regresso ao Brasil, em 1986, uma
O Decreto presidencial de 15 de junho de
mesmo que passava e enchia o saco de todos companheira de cela da minha mãe, a Encarna-
1970 lista os opositores políticos presos que
com meus gritos, “Olha meu amigo ali!”. Quan- ção (Encarnación Lopes Peres, in memoriam)
seriam e foram trocados pelo Embaixador da
do cresci, e superei esse trauma, minha avó me me conta:
Alemanha, sequestrado pela VPR e aliados.
contou que a Tia Damaris5 teve esta ideia: fo-
Chegamos à Argélia em 16 de junho 1970, e mos comprar brinquedos em Los dias de Reyes Ernesto, sua mãe sofreu muito. Um dia os
em 27 de julho de 1970 desembarcávamos em e, sem eu perceber, ela pediu para um policial milicos entraram em nossa cela e fizeram a
Havana, Cuba, onde vivi até 7 de janeiro de me dar um brinquedo de presente. Ele me colo- gente tirar toda a roupa. Eu me despi com rai-
1986. Lá, passei os anos mais importantes da cou até em cima da moto, uma clássica Harley va e cheia de ódio no meu olhar, não sabia o

3
Após dias e horas de interrogatório por meio de tortura psicológica, minha avó Tercina Dias de Oliveira, “A Tia da VPR”, se alterou com seu interrogador e bateu um grande cinzeiro de vidro
na mesa. Este lhe deu três palmatórias com uma régua em uma das mãos, em seguida ela lhe estendeu a outra mão à palmatória e, após gritar “Você não tem mãe, não?”, fechou firmemente seus
lábios e o encarou de maneira corajosa. Encerrou-se o interrogatório e não foi mais torturada.
Sem minimizar a coragem, firmeza e importância que minha avó teve nesse momento histórico, quero registrar meu agradecimento a esse militar cujo ato não só garantiu que eu ficasse nas mãos
de minha família, como pode ter salvado as vidas de meus pais no momento em que eu passei a constar do registro oficial (na foto dos banidos, sendo quarenta adultos e quatro crianças, publicada
na capa dos grandes jornais conforme exigência de Carlos Lamarca para libertar o Embaixador Alemão), tornando, assim, público que meus pais se encontravam presos, não podendo ser mais
desaparecidos, como aconteceu com muitos presos mortos em tortura. E, conforme testemunhas, meu pai estava mais para lá do que para cá.
4
Meu pai e minha mãe ficaram presos quando eu fui banido com minha avó, e só saíram dez meses depois, na troca pelo embaixador Suíço e foram para o Chile recebidos pelo primeiro
presidente socialista eleito em eleições diretas, Salvador Allende. Meus pais foram para Cuba em agosto de 1971, por isso fiquei mais de um ano sem vê-los – já estava com 3 anos e meio quando
os reencontrei. No entanto, eles não ficaram comigo, o ímpeto desses jovens guerreiros os levou a seguir sua missão para libertar nosso Brasil da ditadura opressora, e após fazerem um curso de
guerrilha em Cuba, viajaram o mundo para fazer outros treinamentos, reencontrar outros exilados na Europa e na América Latina, no sentido de mobilizá-los no Chile para retornar ao Brasil e
continuar a luta contra a ditadura militar. Entre uma viagem e outra, até 1974 eles passaram por Cuba várias vezes (não ficavam em nossa casa, ficavam de quarentena com outros companheiros
em trânsito) e esses encontros e partidas eram muito sofridos para mim.
5
A Tia Damaris foi minha terceira mãe, (a segunda e de maior convivência e afeto foi minha avó). Quando chegamos a Cuba fomos morar na mesma casa onde ela foi acolhida pelo ICAP (Instituto
Cubano de Amistad con los Pueblos) um ano antes de nós chegarmos. Viúva de Antônio Raymundo Lucena, que foi metralhado em casa, ela e os três filhos foram presos. Tia Damaris foi banida
do Brasil em 1969, trocada pelo Cônsul japonês. Vivia com três de seus quatro filhos (o Ariston, mais velho, ficou preso no Brasil), os gêmeos Adilson (“Kito”) e Denise (7 anos na época), a Ângela
Telma (5 anos) e a filha adotiva Ñasaindy de Araujo Barret (Inhai, como a chamávamos quando tinha um ano de idade), caçula da casa nascida em Cuba em 4 de abril de 1969, filha de José Maria
Ferreira Araújo e Soledad Barret Viedma, assassinados em janeiro de 1973, em Pernambuco, sob tortura.
Tia Damaris, esbelta baiana, enérgica, corria sempre com a gente, tanto em uma emergência hospitalar como para nos levar para o internato (na creche ou escola). Éramos oito crianças entre 1
e 9 anos e só ela e minha avó para cuidar. Ela nos deixava na creche aos domingos no fim da tarde e nos buscava nos sábados de manhã. Fiquei quase três anos na creche e mais cinco na escola-
-internato. O primeiro ano ficamos juntos eu a Telma, Zuleide e a Inhai. A Telma e a Zuleide tinham dois anos a mais do que eu e davam para mim e para Inhai uma certa segurança, quando elas
saíram a Inhai e eu sentimos muito, dormíamos em uma beliche meninos e meninas juntos. Eu e a Inhai dormíamos um do lado do outro e quando o coração de um de nós apertava nos dávamos
a mão e falávamos: vamos chorar pra Tia Damaris vir nos buscar... uaaahhh uaaahhh uaaaahhhh... até ouvir uma voz: “niños, vallasen a dormir”.

140 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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que nos esperava, mas fomos tão violentadas isso foi em 1979 quando se ofereceram volunta- que um dia percebi que estava deitado no meio
que nada mais fazia diferença, e eles ficaram riamente para lutar na revolução da Nicarágua. da sala e na lousa de feltro tinha uma equação
gritando com sua mãe para ela se apressar, ela matemática simbolizada com patinhos cola-
Meu pesadelo mais comum era com um dos. Ela perguntou olhando pra mim: “¿Tres
envergonhada começou a tirar a roupa atrás de
asno, uma corda e uma agulha. O asno usava paticos mas dos paticos es igual a...?” Respondi
mim, eu vi aquela cena e me comovi muito, ela
um boné militar, a agulha tinha olhos arrega- na hora: “Cinco paticos”. Ela me convidou para
era aquela moça com a pureza do interior que
lados e uma risada aguda sarcástica e corria sentar na cadeira com os outros e eu respon-
sofreu mais com a vergonha de ficar nua na
atrás de mim, eu apavorado tentava fugir. O di “No puedo, yo soy mas chico”. “No importa,
frente desses milicos do que com os choques
asno me cercava, me dava coices ou chutava ven”. Depois vi seu entusiasmo contando para
elétricos que tomou... é linda a paixão que ela
coisas sobre mim. A corda parecia boazinha, superiora, “No les dije que el entendia todo y
tem pelo seu pai.
disfarçada de linha se estendia até mim, mas que es muy inteligente”.
Minha mãe sempre me contou de sua aflição quando eu a segurava ela machucava minhas
durante a clandestinidade, das dificuldades mãos e me deixava cair em um abismo. Alguns meses depois, a tia Damaris me colo-
financeiras que passou, muitas vezes só tinha cou na marra na primeira série na escola que
Devido a toda sua história de luta, meu pai a Zuleide e a Telma Lucena estudavam. Não
o peito para me dar, e como meu pai era pro-
apanhou muito dos militares e sempre se man- queriam me aceitar porque eu tinha apenas 5
curado e eles participavam, principalmente, na
teve reservado ao falar do tempo que ficou no anos, mas a tia Damaris me levou quase que
mobilização da resistência armada na cidade,
presídio – nunca conversou comigo sobre nos- arrastado pelo braço (ela andava muito rápido)
ele ficava escondido em casa e ela tinha que
sa passagem pelos presídios. Neste ano, 2013, um dia depois que começaram as aulas e me
ir à feira sozinha comigo no colo, ou dirigir
o repórter Luiz Carlos Azenha fez uma série enfiou na fila “del Matutino”, foi até a frente da
com ele escondido no carro. Como minha mãe
de reportagens sobre “Crianças e a Tortura”. diretora, que ia começar o matutino, e apon-
não era procurada oficialmente (seu nome e
Em um capítulo dedicado à minha história, ele tando o dedo no nariz dela falou-lhe rápido em
foto não tinham sido publicados nos jornais),
me entrevistou, depois meu pai e por último português alguma coisa que nem eu entendi e
ela servia de motorista e, em um dos reencon-
minha mãe, separados e em locais diferentes. foi embora. Eu estava matriculado.
tros após o exílio com amigos sobreviventes,
Meu pai conta para o Azenha que fui levado
me contaram o apuro que todos eles passaram
muitas vezes às seções onde ele era torturado Mas nunca me esqueci da Inhai [Ñasaindy
quando foram resgatados e trasladados de um
e lá faziam “simulação” de espancamento em Barrett]que ficou para trás, que era exatamente
“aparelho” para outro pela minha mãe em uma
mim usando uma corda. um ano e dois meses mais nova do que eu, “¿Y
Rural, eu ao lado dela no banco do passageiro
que le pasó a Ñasaindy solita ayá en el circu-
e vários companheiros, inclusive meu pai, dei-
lo?”.
tados no chão atentos com metralhadoras na “Eu comecei a
mão e cobertos por uma lona. No caminho pas- Nesse período, meus pais chegaram definiti-
saram por uma barreira policial, mas o disfarce entender tudo o que vamente em Cuba e ficaram preocupados co-
dela dirigindo sozinha comigo ao seu lado fun- as tias e os coleguinhas migo porque, apesar do meu prematuro bom
cionou. Mas ela ficou tão nervosa que ao che- desempenho na escola, eu não mantinha con-
gar à casa-aparelho passou por cima do portão, da creche falavam, vívio social e ficava distante no “meu mundo”.
todos saltaram com arma na mão e por pouco mas não me Levaram-me ao pediatra para descobrir mi-
não saíram atirando. Ela ficou com fama de má nhas sequelas. Ele orientou meus pais a buscar
motorista e até hoje eles riem desse momento comunicava, ficava um psicólogo, dizendo que eu tinha traços e
quase trágico. sempre nos cantos...” atitudes de um menino autista, o que não se
confirmou. Eram bloqueios, mecanismos de
Nesse período eu tinha muitos pesadelos e
Eu comecei a entender tudo o que as tias e defesa por ter sido separado abruptamente dos
nas noites de pesadelos sempre fazia minhas
os coleguinhas da creche falavam, mas não me pais e pelos abusos que eu passei.
necessidades involuntariamente. Quando ti-
nha febre os pesadelos aconteciam até acorda- comunicava, ficava sempre nos cantos, atrás Quando voltei ao Brasil, meus parentes (tios,
do. Lembro uma vez que as tias da creche fi- de colunas ou de árvores. Lembro de uma tia primos, madrinha etc.) sempre diziam que eu
caram tão preocupadas que ligaram pra minha nova me dando instruções para lavar as mãos era muito vivo, esperto e falante, além de re-
avó ir me buscar e ela mandou meus irmãos. e ir para o refeitório quando outra tia lhe disse, conhecer os parentes, comecei a falar muito
Eles ficaram um pouco comigo para me acal- “El es brasileño y no entiende, tienes que acer- cedo e com pouco mais de um ano já conhecia
mar, mas a diretora não deixou que me levas- le gestos”. Dei risada e saí correndo. Essa tia as marcas de todos os carros. Fica clara minha
sem e hoje eu entendo o porquê. O mais velho nova começou a falar comigo sem fazer gestos mudança radical de comportamento após pas-
deles, o Samuel, só tinha 11 ou 12 anos e a cre- e eu sempre a atendia, aí comecei a segui-la. sar pela prisão.
che ficava longe de casa. A última vez que mijei Eu via que ela, à tarde, chamava os meninos
nas calças tive vergonha de falar, eu já estava maiores e entrava em uma sala e passei a es- Durante minha alfabetização, em Cuba, na
com 11 anos e dormia no meio da minha mãe piar pela porta entreaberta, assim comecei a primeira série, tive muita dificuldade em pro-
e do meu pai depois de eles voltarem de mais assistir suas aulinhas de pré-escola. Dessa for- nunciar o “rr” , mas um ano depois eu fui con-
uma concentração para irem a outra guerrilha, ma, ela foi me deixando adquirir confiança, até decorado no Teatro Lazaro Penha junto com

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os melhores mestres e doutores do país por ter memorizar muchas composiciones”. Respondi, mestres enxadristas –, não pôde participar de
tirado média máxima (dez) na primeira série “Si lo sé, pero vea, por ejemplo, em la matriz competições internacionais porque ele “Não
do primário. No Teatro tive que ficar sozinho, de este proyecto uso acero-herramienta ruso tinha pátria” (não era cubano e era banido do
no andar debaixo só podiam ficar os homena- YA12C8N6 que tiene 1,2 % de carbono, 0,08 de Brasil), o César Lamarca já desenhava navios
geados, a Zuleide viu sua professora que tam- cromo e 0,06 de niquel temperado a 55 Hrc – no ginásio na escola especial Los Camilitos.
bém estava sendo homenageada e pediu para Dureza Rockwel una medida internacional, en Mas o que aconteceu com essas pessoas bri-
que cuidasse de mim. Sentei no cantinho “de la guia uso acero-aleado con 0,08% de carbono lhantes na volta ao Brasil após a Anistia?
su butaca”, a Zu e meus pais, que estavam há cementado e temperado a 1,2 mm de profun-
didad consiguiendo una alta dureza superficial Nosso brilhantismo teve que enfrentar o
pouco tempo em Cuba de forma definitiva,
sin perder la tenacidad, en la base acero de preconceito político-social imposto pela mídia
foram para o andar de cima. Quando me cha-
construción com 0,45% de carbono...”. O pro- reacionária, a falta de reconhecimento e legali-
maram, foi um suspense. Primeiro o mestre de
fessor me interrompe “Disculpeme Ernesto...”, zação de nossos estudos e diplomas adquiridos
cerimônia errou meu gigante nome “ahora lla-
e olhando para os outros sabatinadores fala em Cuba por parte das autoridades. A Anistia
mamos Ernesto Carlos Diaz do... doooo Nasc...
“Señores, para mi basta”. Todos concordaram foi só para os carrascos torturadores, eu só tive
Nasc... del Nacimiento, por haber logrado el
e me dispensaram. Ficou um suspense dana- meu diploma reconhecido pela Comissão da
promédio máximo em todo el año escolar en
do e eu com um pouco de temor, foram muitas Anistia do Ministério da Justiça em junho de
la Escuela básica Viet-Nam Heroico”. Quando
perguntas e apesar da parte teórica do projeto 2012.
o homenageado se levantava todos aplaudiam,
mas como ninguém me via caminhando em ser feita em grupo, eu fiz tudo sozinho porque
Meus pais chegaram definitivamente em
direção ao palco, ficou um silêncio total e fui os colegas que estagiavam na fábrica comigo
Cuba em abril de 1974, após conseguirem esca-
chamado mais duas vezes, quando comecei a não quiseram arriscar e pegaram projetos mais
par do golpista assassino Pinochet. Eu já tinha
subir as escadas meio que engatinhando. Co- simples. Passei várias noites acordado fazendo
6 anos e estava terminando a primeira série.
meçaram risos e aplausos progressivamente o projeto ao lado de minha avó, minha sempre
Dessa vez não entrei em crise no reencontro,
até o teatro explodir de vibração com todos guardiã e companhia nas madrugadas. Todos
eu sabia que eles estavam para chegar e quan-
aplaudindo em pé. Fiz exatamente o que os ou- ficaram aguardando o resultado dos avaliados
do os vi entrando na minha sala de aula, reagi
tros homenageados faziam, debrucei-me sobre naquele dia pela banca examinadora até come-
com muita tranquilidade, fui até a mesa da pro-
a mesa para cumprimentar os integrantes da çar um murmúrio geral na escola e fazerem
fessora e pedi licença para ver meus pais, ela
mesa e peguei meu canudo das mãos da Minis- uma roda sobre mim e todos que chegavam fa-
com empolgação pediu para eu correr para os
tra da Educação Vilma Espin, que teve dificul- lavam praticamente a mesma frase: “Cooonñó
braços deles.
dades em colocar o broche de condecoração ERNESTO SACASTE 100”, eu respondia “Gra-
no meu peito debruçada sobre a mesa. No dia cias a mi abuela”. A convivência com eles trouxe uma estabili-
seguinte, essa cena comigo foi reprisada na TV dade e segurança a todos as crianças da casa.
no Noticiero Nacional. A Telma gritou “Corre, A figura e o carinho do meu pai nos propor-
Chesinho, corre, vem ver você na televisão”. “A figura e o carinho do cionou muita felicidade e, apesar de ser o filho

Nota dez na primeira série, nota cem no Pro-


meu pai nos proporcionou único deles, seus carinhos faziam esquecer que
eram praticamente todos órfãos. O Samuka
jeto de Graduação, sempre tirei média acima muita felicidade [...] seus [Samuel] foi adotado pela minha avó, a Zulei-
de 9 e no Projeto de Graduação do Centro
Tecnológico Amistad Cubano Soviético con-
carinhos faziam esquecer de e o Carlinhos são filhos do primeiro filho
adotivo da Tia, mas desde muito pequenos fo-
segui a nota máxima no teórico e na defesa que eram praticamente ram criados pela nossa avó, os filhos da Dama-
oral, um feito inédito na história do Instituto,
defendendo o projeto perante uma banca de
todos órfãos” ris tiveram seu pai assassinado e a Ñasaindy
perdeu o pai, José Maria Ferreira de Araújo e a
professores. A última pergunta foi: Professor, mãe, Soledad Barrett Viedma, para os tortura-
“Ernesto, sabemos que asi que termines la gra- Cuba é reconhecida mundialmente e até pe- dores que nem a lembrança lhe foi preservada.
duación regresaras a tu país Brasil que sigue los opositores políticos como uma potência na Eu de fato fui privilegiado por ter recuperado
las normas Norte-americanas y aqui seguimos Saúde e Educação, então quem se destaca lá meus pais aos 6 anos de idade.
las normas internacionales pero el acero y to- deve ser bom. Pressupondo isso, assim como
dos los metales que usaste en el proyecto es- eu, modéstia à parte, várias crianças brasileiras Os cubanos nos deram muito afeto, e todos
tan codificados por las normas Russas ¿Como exiladas em Cuba foram brilhantes. Destaco al- os cuidados necessários para nosso bem. Mi-
haras los proyetos?” Sem hesitar respondí “Sé guns e me perdoem os outros: a Telma, auto- nha avó recebia além da casa toda mobiliada,
que Brasil tiene grandes indústrias y puede ser didata, que além de ter sido avaliada durante também serviços como troca de gás, conserto
que tengan sus próprias nomenclaturas, pero vários anos na escola como a melhor aluna, de aparelhos domésticos. Tínhamos direito a
es sensiyo, lo sabré por la composición quími- aprendeu a falar russo sozinha falando com fazer compras em lojas especiais para técnicos
ca de cada metal encontraré su similar en las seus vizinhos no bairro de Alamar, seu irmão estrangeiros em que era possível encontrar
normas brasileñas o norteamericanas”. Profes- Kito que foi campeão de xadrez várias vezes até produtos importados. Com a chegada dos
sor interrompeu, –“Eso dá trabajo tendras que em Cuba – a Ilha também terra de grandes meus pais, eles quiseram viver como os cuba-

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nos e nos mudamos para uma casa em La Lisa, Muitos tios voltaram clandestinos, José melhor este desafio. Meu pai por carta insistiu
um município a oeste de Havana, e passamos Ibrahin, José Dirceu e outros, não sei se todos que eu continuasse e terminasse a Engenharia
a fazer compras nas bodegas que tinham de vivem hoje. Meu filho mais velho se chama Átila na Universidade, mas as saudades da minha
tudo, claro, menos as guloseimas importadas. em homenagem a um desses grandes tios dos mãe e meu anseio em conhecer minha pátria
anos de exílio e que faleceu no Brasil sem poder nativa pesaram na minha decisão de regressar
Essa casa com três quartos, dois banheiros e reencontrá-lo (Deputado Valnerí do Rio Grande em 1986.
belo quintal, tornou-se a porta de entrada dos do Sul). Átila era seu apelido pelo seu tamanho
brasileiros que chegavam do exílio, que ficavam e bravura. Com as crianças era muito carinhoso, Quando meus pais voltaram para o Brasil em
meses morando com a gente. Alguns se casa- pegava quatro de nós em cada braço e ele virava 1980, saíram de Cuba em março, mas ficaram
ram em nossa casa, fizeram aniversários e festa uma gangorra humana. um mês no Panamá tentando tirar passaporte
de 15 anos, além dos tradicionais festivais brasi- e visto de retorno junto a outros brasileiros.
Ao chegarem, em abril, ainda ficaram 24 horas
leiros de fim de semana. E assim nossa família
começou a crescer, com muitos tios carinhosos
“Era uma numerosa no aeroporto de São Paulo sendo interrogados
e que se divertiam conosco como se fosse “seu e esquisita família. (dessa vez sem agressão física). Confiscaram
todos os livros que eles levavam, tanto os de
último dia”... e foi para alguns.
Sim, esquisita porque conteúdos técnicos quanto os de políticos. Eu
A cada seis meses recebíamos jornais bra- meu pai e minha mãe são fiquei até 1986 concluindo meus estudos e o
sileiros, Jornal do Brasil, Estadão e O Globo. sonho de conhecer o Brasil foi crescendo pro-
Eu e meu irmão, Carlinhos, gostávamos de tios de meus irmãos que porcionalmente às saudades que sentia pelos
histórias em quadrinhos e éramos os primei- são órfãos e eu não...” meus pais nesses seis anos de adolescência.
ros a pegar os pacotes de jornais para cortar as Depois de passar cinco dias no Panamá para
“tirinhas” e colar em um caderno, criando um Depois da Lei da Anistia em 1979, quase tentar tirar passaporte e visto (entramos com
gibi. Numa dessas vezes vi a foto de seis “tios” todos se foram. Em março de 1980 meus pais salvo conduto, só deram passaporte para o fi-
que foram mortos na fronteira do Uruguai pelo regressaram, a Tia Damaris, meus primos- lho da Zuleide que nasceu em Cuba) chega-
exército brasileiro entrando clandestinamente -irmãos Kito, Denise, Telma e Ñasaindy, tam- mos ao Brasil em 12 de janeiro de 1986. Até
no Brasil. Foi um choque. Foi assim também bém. Tia Isaura, Suely e Célia Coqueiro, Darcy, que, enfim, vim a conhecer a minha pátria na-
que descobri que eu era classificado como ter- Rosa Darcisinho e Dorinha com os quais mui- tiva. Realmente o Brasil é lindo e ser turista
rorista no rodapé de nossa foto publicada nos to convivi antes da chegada dos meus pais em aqui é maravilhoso, mas depois de três meses
jornais quando fomos banidos e até hoje usa- 1974. Miriam (Marília Carvalho Guimarães) e a minha vida de turista acabou, começou a
da para relembrar os terroristas trocados pelo seus filhos da minha idade Marcelo e Eduardo, realidade. Foram dois anos de angústia, sofri-
embaixador alemão. Lembro-me ainda que ao César e Claudia Lamarca, Tia Clara Charf (em mento, confronto e cadeia no serviço militar.
ver tal foto, perguntei a minha avó: “Vó! Vó! O Cuba só a chamávamos de Clara Marighella).
que é terrorista?”, “São gente ruim que matam Alguns que eu tinha muito apego já se haviam Meu pai voltou para Cuba no final de 1985
outras pessoas”, “Então eu sou ruim?”, “Claro ido, como Tio Gregório (Ubiratã), Mazine, para nos ajudar nos preparativos para o nos-
que não, filho! De onde você tirou isso?”, “Aqui Cassiana, o Tio do Berço (nos primeiros anos so regresso (foi um reencontro de estranhos).
no jornal diz que nós somos terroristas...”. Não de exílio o Tio Rogério deitava em nosso berço Como ele e minha mãe tiveram dificuldades e
sei se entendi a explicação dela. para contar historinhas e acabava dormindo). não revalidaram seus diplomas, (minha mãe se
Em 1981 meu irmão mais velho Samuel volta formou Enfermeira Geral, mas só consegui o re-
Era uma numerosa e esquisita família. Sim, gistro do COREM de Auxiliar de Enfermagem
para o Brasil e, em 1982, é a vez do meu irmão
esquisita porque meu pai e minha mãe são tios em 1998; meu pai nunca revalidou seus diplo-
Carlinhos. Da casa que abrigou dezenas de
de meus irmãos que são órfãos e eu não; temos mas, nem voltou a trabalhar na sua profissão),
“Tios, primos e irmãos” só restou eu, minha
um monte de tios, mas ninguém é irmão; um ele pediu pra refazerem todo meu histórico
avó e minha irmã Zuleide.
monte de primos brasileiros que só conhece- escolar, pediu para retirarem do meu currículo
mos em Cuba. Foram 16 anos em Cuba contan- Chegou minha adolescência e minha avó todas as matérias relacionadas a política que
do nossa história mais de uma vez por dia. me educou do mesmo jeito que educou mais fazem parte do ensino fundamental cubano e
de quarenta crianças que passaram pelas suas tivemos que ir a todos os órgãos para validar
Mas esta numerosa família foi esmaecendo. mãos, sempre incentivando a encarar os desa- os documentos que foram certificados pela
Quando a Tia Damaris mudou-se para um apar- fios e assumindo responsabilidades. Eu, como Embaixada Suíça, representante oficial dos in-
tamento do outro lado de Havana perdi quatro todos, aprendi desde cedo a lavar minhas rou- teresses do Brasil em Cuba. Matérias excluídas:
irmãos e ganhei quatro primos, creio que tinha pas, a pregar um botão ou fazer pequenos re- Fundamento de los conocimientos Políticos,
8 anos. Duro foi perder o contato com a Telma mendos no meu uniforme, a cozinhar e saber Geografia Política Econômica, Marx, El Capital
e a Inhai que mudaram de escola e eu fiquei no tomar decisões quando se faz necessário, não 1, El Capital 2, El Capital 3, Marx e Engels, Mar-
internato sozinho. A Zuleide também saiu por- importa o tamanho da responsabilidade. xismo Leninismo e Táticas Militares e outras.
que foi para o ginásio. Passamos a nos ver prati-
camente uma vez por ano quando passávamos Escolhi fazer um curso tecnológico para vol- Toda essa trabalheira não adiantou de nada,
as férias um na casa do outro. tar ao Brasil com uma profissão para encarar nunca consegui revalidar meu diploma, tendo

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“Em Cuba revivíamos escrito em meu histórico, meu curso é “Médio- Em uma escola profissionalizante renomada
-Superior”. Em 1991, cinco anos após voltar para de São Paulo, curiosamente fundada em 1964
nossa dramática história o Brasil, consegui a equiparação de ensino mé- que só contrata Engenheiros para dar aulas,
contando-a quase todos dio para prosseguir no estudo superior. nunca consegui preencher ficha de solicitação
de emprego. Um dia me passei por aluno e con-
os dias, mas as reações Em Cuba revivíamos nossa dramática história segui chegar na sala do diretor, em uma con-
contando-a quase todos os dias, mas as reações
das pessoas eram de das pessoas eram de solidariedade e admiração.
versa de quinze minutos já estava contratado,
mesmo sem possuir nenhum diploma.
solidariedade e admiração. Aqui no Brasil fui até apedrejado quando de-
batia politicamente com um professor em uma Teve uma empresa que não me discriminou
Aqui no Brasil fui até escola para esclarecer que eu não era terrorista porque um dos diretores era um chileno fugiti-
apedrejado quando e que em Cuba não existe ditadura militar. Fui vo do Pinochet e me contratou como desenhis-
preso também duas vezes no Serviço Militar ta. Cinco anos depois, com 25 anos eu era dire-
debatia politicamente Obrigatório por insubordinação, mas, como su- tor técnico desta empresa que trabalhava com
com um professor” portar calado me chamarem de terrorista, assas- tecnologia avançada, automação, robótica etc.,
sino, ateu-satanás e outras injúrias? com mais de cem funcionários, mas a empresa
passou por dificuldades financeiras, nas reces-
que trabalhar em serviços inferiores à minha Pior é ter que viver uma vida de mentiras, sões dos anos 1990 e fiquei novamente traba-
formação. E a discriminação pelo fato de ter ocultar meu passado, mentir no meu currículo lhando na informalidade, como empreendedor
vivido em Cuba se manifesta em todas as insti- que, em vez de ter me formado no El Centro e ativista no setor de TI e, como voluntário, pre-
tuições e esferas sociais. Tecnológico Amistad Cubano Soviética, me sido e milito em associações de inclusão social.
formei no Centro Federal de Educação Tec-
Como pode ser constatado em uma série de nológica de Pernambuco, assim sugerido por
documentos que estão comigo, meu pai fez colegas, para que eu pudesse arrumar empre-
todos os trâmites para revalidar meu diploma: go. E não é que funcionou? Claro, mentira tem
primeiro, a tradução oficial que lhe custou dois perna curta e meus empregos em grandes em-
meses de salário; depois, entramos com proces- presas também.
so na Secretaria de Educação do Estado de São ERNESTO CARLOS DIAS DO NASCIMENTO, brasileiro,
natural de São Paulo, Capital, nascido em 4 de feverei-
Paulo que encaminhou para a Fundação Paula Com muito orgulho dei aulas técnicas (vo- ro de 1968, casado, quatro filhos e uma neta, filho de
Souza-Fatec. Depois de dois anos devolveram o luntário com pequena ajuda de custo) e fui Manoel Dias do Nascimento e Jovelina Tonello Manto-
processo dizendo que não tinham cursos simi- um dos fundadores de uma escola profissio- vani do Nascimento, avó paterna Tercina Dias de Oli-
lares no Brasil, sendo meu curso muito superior nalizante criada pelo Movimento de Oposição veira (A Tia), Formado em Tecnologia de Projetos de
Máquinas e Ferramentas, especializado em Tecnologia
em matéria e carga horária que um curso técni- Metalúrgica de São Paulo nos anos 1990, sendo da Informação e Automação Industrial. Atualmente é
co e até maior que um similar superior, mas que reconhecida pelo MEC como a primeira escola Coordenador Governança de TI e Tecnologia Cidadã na
não poderiam revalidá-lo porque, conforme está com Supletivo Profissionalizante no Brasil. Prefeitura de Guarulhos – SP.

Manoel Dias do Nascimento e da militância do marido. Depois de passar pela Ope- minha presença. Só para eu falar alguma coisa”, relatou
ração Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Manoel. Chorando muito, Jovelina testemunhou: “Ele
Jovelina Tonello M. do Nascimento Ordem Política e Social (DOPS), foi com o filho para a [o filho Ernesto] dizia: ‘Não pode bater no papai. Não
Foram militantes da Vanguarda Popular Revolucioná- ala feminina do Presídio Tiradentes. pode’. Para mim foi muito duro. Batiam muito em mim,
ria (VPR), organização comandada pelo guerrilheiro mas não me perguntavam nada porque sabiam que eu
Em fevereiro de 1971, Manoel e Jovelina foram dois
Carlos Lamarca. Ele foi um de seus fundadores, en- não tinha participação nenhuma”.
dos 70 presos políticos que tiveram a liberdade troca-
quanto ela iniciou a militância após a prisão e o exílio. da pela do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, Em 15 de agosto de 1971, o casal chegou a Cuba, onde
Antes de ajudar a criar a VPR, Manoel era líder sin- sequestrado por militantes de resistência à ditadu- reencontraram Ernesto. Jovelina, então, foi à Coreia do
dical filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). ra. Exilaram-se no Chile. Na ocasião, contaram o que Norte fazer treinamento de técnicas de guerrilha. Em
Entrou na clandestinidade em 1968, após ter a prisão tinha acontecido com eles para os cineastas estadu- 1972, ela e Manoel voltam ao Chile para se prepararem a
decretada. Incentivou a mãe, Tercina Dias de Oliveira, nidenses Haskell Wexler e Saul Landau, cujo docu- retomada das atividades guerrilheiras no Brasil.
a também contribuir para a VPR. Sua tarefa era or- mentário Brasil, um relato da tortura tornou-se uma
Em setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Al-
ganizar a guerrilha em São Paulo (SP). Foi preso em das primeiras denúncias internacionais dos abusos
lende, os dois foram presos no Estádio Nacional. O ca-
maio de 1970, quando cobria um ponto para passar cometidos pelo regime.
sal conseguiu fugir e se abrigar num refúgio da ONU, de
informações a companheiros. No mesmo dia, mais “Antes de eu descer do pau de arara, minha compa- onde seguiram para Cuba novamente.
tarde, a companheira Jovelina e o filho Ernesto foram nheira chegou com meu filho. Este filho assistiu a
presos na casa da família no bairro de Vila Formosa. Lá, Jovelina fez curso de enfermagem. Ela e o marido
parte da tortura. Em seguida, puseram minha com-
Jovelina trabalhava na prefeitura de Osasco (SP) e foi voltaram ao Brasil em 1985. Ernesto retorna com Terci-
panheira no pau de arara, tomando choque em todas
demitida durante a licença maternidade por causa na em 1986.
as partes do corpo, inclusive nas partes íntimas. Na

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1 e 2. Manoel e Jovelina são
fotografados antes de serem trocados
pelo embaixador suiço
3. Manoel e Jovelina foram banidos
do país no dia 13 de janeiro de 1971, em
um grupo de 70 militantes trocados
pelo embaixador suíço Giovanni Enrico
Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro
em uma ação comandada por Carlos
Lamarca. Na foto alguns dos militantes
trocados, entre eles Frei Tito de Alencar
1 2
4. Fichas de Manoel no DOPS

Filho torturado
5. “Me levaram até o cárcere onde fui
torturado...
Antes de descer do pau de arara minha
companheira chegou com meu filho e ele
assistiu parte da tortura
Bateram no pai na frente dele...
ele dizia: “Não pode bater no papai, não
pode, diz que não pode”
A criança em seguida foi levada para a
policial feminina...
Espancavam a própria criança pra ela se
alimentar... bateram nele na minha frente”
Cenas do documentário Brazil: A Report
on Torture (1971), de Haskell Wexler e
Saul Landau, filmado no Chile, logo após a
chegada dos 70 presos políticos

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1

Tercina Dias de Oliveira nasceu em 2 de


novembro de 1913. Faleceu em 2004, aos 90 anos de ida-
de. Ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR). Durante o período em que viveu na clandestini-
dade, Tercina era chamada de “Tia”, apelido dado por
Carlos Lamarca. Figura lendária da esquerda brasileira,
teve quatro filhos de quatro relacionamentos diferen-
tes e criou outras duas crianças que adotou. Foi Mano-
el Dias do Nascimento, um dos filhos, que a levou para
a militância.
Juntamente com os netos, viveu no sítio em que Lamar-
ca realizava treinamentos militares, no Vale do Ribeira,
em São Paulo. Uma de suas missões era fazer a casa
principal parecer levar uma vida “normal”. A outra era
costurar os uniformes usados nos treinamentos.
Tercina foi presa em Jacupiranga, interior do estado,
com três das quatro crianças. Em 1979, foi uma dos 40
militantes trocados pelo embaixador alemão Ehren-
fried Anton Theodor Ludwig Von Hollenben, sequestra-
dos em junho de 1970.
Banida, Tercina seguiu da Argélia para Cuba com três
netos e um dos filhos de criação: Samuel Dias de Oli-
veira, Luis Carlos Max do Nascimento, Zuleide Apare-
cida do Nascimento e Ernesto Carlos do Nascimento.
Retorna ao Brasil em 1986 com Zuleide, Luis Carlos e
Ernesto. Samuel voltou em 1982.

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Crianças banidas
1 e 2. Tercina fotografada antes de ser
banida do Brasil
3. Samuel, Zuleide com sua boneca,
Ernestinho, Luis Carlos e Tercina.
Foto de acervo do Arquivo do Serviço
Nacional de Informações (SNI)
4. Ficha com a relação das crianças
banidas do país
5. Zuleide, Ernestinho, Luis Carlos
e Samuel. Foto de acervo do
Arquivo do Serviço Nacional de
Informações (SNI)

3 3 4

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2

1. Página de indentificação de Tercina e das


crianças retiradas do relatório do CIE,
Indivíduos Banidos do Território Nacional,
1970, distribuído aos orgãos de repressão
para reconhecimento dos mesmos

2. Foto de jornal dos quarenta militantes


banidos na troca do embaixador alemão.
3. Identificação das pessoas na foto
(Os documentos acima foram encontrados em
prontuários do DOPS, no Arquivo do Estado
1 de São Paulo)

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1

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3

1. Célia Coqueiro, Cláudia Lamarca, Ñasaindy


Barrett de Araújo, Tercina, Suely Coqueiro,
Denise Lucena, Telma Lucena e Zuleide do
Nascimento, na festa de 15 anos dos gêmeos
Denise e Ariston Lucena, Cuba
2. Ernesto, Zuleide, Ñasaindy, Tercina, Jove-
lina, Luis Carlos e Samuel. A criança mais nova
da foto era cubana e não foi identificada. Foto
tirada na mesma data, Cuba
3. Foto da festa de 15 anos de Zuleide, Cuba
4. Samuel, Zuleide e Tercina, Cuba

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A Lua de Leta
por Leta Vieira de Sousa

Convidada pela assessoria da Comissão curiosos esperando um depoimento cheio


da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva” a de profundidade. Mas eu já conheço esse
escrever um testemunho de minha experi- olhar e entro num sistema de respostas au-
ência enquanto filha de ex-presos políti- tomáticas e vagas. No fim, vejo os olhares
cos da ditadura militar brasileira, me decepcionados e sinto que consegui al-
peguei mais uma vez pensando: mas o cançar o que desejava : o final da sessão
quê eu vou falar? “quem é você”. Como se ao saberem
que eu “nasci na cadeia”, como alguns
Acho que muitos filhos se fazem gostam de comentar, definisse meu
essa mesma pergunta, um sentimen- caráter, o meu eu.
to de “não faz sentido porque eu não
vivi nada em comparação aos meus Agora, convidada a escrever esse
pais e seus companheiros” que nos testemunho, fico refletindo sobre o que
deixa habitualmente silenciosos. eu não falo a esses olhares curiosos, so-
bre a constante insegurança, sobre as
Além disso, ainda me vem o ques- tristezas, sobre as dificuldades. Penso em
tionamento de “por que eu e não outros como meus pais lutaram pra me dar uma
filhos que sofreram mais que eu?”. Nesse vida estável e buscaram que eu fosse apenas
momento, passo a me lembrar da lista de “uma menina normal”. Mas quem pode ser
amigos queridos que, como eu, têm pais normal quando a polícia entra na sua casa pra
que sofreram muitíssimo com a ditadura, espancar seu pai? Ou quando vive a invasão
mas que não têm o mesmo reconhecimento militar de Volta Redonda (já em 1989) e seus
ou estatuto de anistiada que outros filhos e Sempre que as pessoas comentam sobre pais vêm até você para se despedirem, com
eu temos. a própria infância, você pula um trecho. o sentimento de que serão assassinados?
Sempre que você ouve alguém chamando a Ou quando sua família está separada em vá-
Pra mim, ser uma anistiada política, filha de
ditadura militar de revolução, você segura rias partes do mundo porque foi obrigada a
pessoas que lutaram contra os absurdos da
o grito. Sempre que você ouve alguém fa- se exilar? Ou quando seu avô é obrigado a
ditaduta militar brasileira é, e sempre foi, ra-
lando sobre terrorismo, você tenta não cair viver escondido para evitar ser deportado?
zão de grande orgulho. Meus pais e seus ami-
num debate emocionado. Sempre que você Ou quando seus amiguinhos da escola são
gos são o que toda criança sonha: são heróis
busca um emprego que exige suas refe- proibidos de falar com você porque seus pais
de verdade que ultrapassaram seus limites e
rências, você torce pra que não descubram acham que você é representante das “forças
suas próprias mazelas pelo bem comum.
“toda a verdade”. Um visto, morar fora do do mal”?
No entanto, com esse status de “filha de he- país por um tempo? Você sabe que ele
róis”, vem também o outro status, o de “filha pode ser negado e que eles terão justificati- Mas meu testemunho nunca será tão inte-
de terroristas”. Com esse, vem o silêncio, o va, afinal, seus pais sequestraram um avião. ressante ou importante quanto o daqueles
medo de saberem quem você é e o que você Quer algo mais top top na lista de terroris- que viveram experiência mais duras e sé-
pensa. Esse medo me acompanha até hoje. mo internacional depois de 2001? rias que eu. Meu testemunho não pode ter
o mesmo peso do que o de uma criança que
Sempre que descobrem que sou filha da viu seus pais serem torturados ou assassina-
Jessie e Leta na penitenciária de Bangu, Presídio Jessie Jane e do Colombo, imediatamente dos. Daí volta à pergunta : o que eu tenho a
Talavera Bruce, Rio de Janeiro, 1976 me cercam de perguntas e vejo os olhares acrescentar?

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Acho que o que eu poderia acrescentar é o tros bebês. Eu tenho o privilégio de ser filha de minha mãe, me passa pela mente várias vezes.
testemunho de meus amigos desconhecidos, uma geração de sonhadores, de ser protegida Eu não estava presente, mas posso ver seus
mas que têm muito mais histórias que eu so- e amada incondicionalmente por pessoas que rostos, sentir seu suor, ouvir suas vozes tene-
bre esse período. Aqueles que iam todas as sequer conheço mas que, igualmente, amo. brosas. Sempre pude, sempre poderei.
semanas visitar pais e tios nos presídios e fica-
vam confusos tentando entender como aqueles Minha mãe, às vezes, conta de quando des- Quanto à minha experiência no presídio,
heróis poderiam ser os bandidos. Ou a história cobriu que estava grávida, da felicidade que obviamente não tenho memória. Mas todas as
daqueles que nasceram no Chile ou na Argen- sentiu. E, logo depois, da imensa bronca que vezes que eu vejo a lua cheia, lembro dos meus
tina, por exemplo, e começaram suas vidas em recebeu de uma companheira: “Você está lou- pais dizendo que essa é a “Lua de Letinha”,
fuga mesmo sem saber – alguns deles até hoje ca? Como pode ter um filho nessa situação?”. porque lhes mostrava no dia em que foram sol-
não têm documentação brasileira regularizada. tos, como se eu estivesse advinhando que eles
Talvez ela estivesse louca, talvez fosse um não tiveram oportunidade de ver o mundo fora
Porém, não cabe a mim falar por eles.
delírio de uma mulher que tinha todo o futuro do presídio. Porém, apesar da falta de memória
Muitos me perguntam como foi ser um bebê traçado atrás de grades intransponíveis. E é por específica, eu me lembro do sentimento.
na prisão. Como poderia responder se eu era causa de loucos assim que o mundo é melhor,
um bebê? Mas quando vejo minhas fotos e mais belo, mais cheio de esperança, de alegria. Esse sentimento me acompanha até hoje.
ouço os depoimentos de minha mãe, vejo que São os loucos que são capazes de colocar em Nos momentos importantes da vida ele me re-
fui quase um bebê como outro qualquer, reple- xeque todas as verdades, de subvertê-las. Ain- torna, como se um clic interno me acendesse e
to de amor e, talvez, mais carinho do que ou- da bem que sou filha de uma subversiva! informasse “isso é importante, seja forte, siga
em frente, faça o que é preciso, ouça o entor-
As histórias de meu nascimento me foram
no, observe, fale menos, se proteja e, sobretudo,
chegando aos poucos. Não, não nasci num pre-
“Todas as vezes sídio, nasci em um ótimo hospital no Flamen-
proteja os seus”. É um sentimento, uma coisa
não mesurável, uma urgência.
que eu vejo a lua cheia, go. Não, minha mãe não estava sozinha, ela
teve o apoio de outros loucos que se expuse- Deparei-me com esse sentimento num belo
lembro dos meus pais ram ao serem presos, mas que estavam ali ten- dia de sol. Eu brincava alienada a tudo, na rua
dizendo que essa é a ‘Lua tando nos proteger. Pra mim, esses heróis são,
por extensão, meus pais e mães, meus parentes
Cuba, em Vila Americana, Volta Redonda. Era
o ano de 1989. Comecei a ouvir minha avó me
de Letinha’, porque lhes mais íntimos. chamar, eu precisava voltar para casa imedia-
mostrava no dia em que A imagem dos homens que foram no quarto
tamente. Quando cheguei, o caos estava esta-
belecido. Uma mochila havia sido preparada,
foram soltos” do hospital ameaçar a minha vida, a vida de
papéis eram queimados no fundo da casa, meu

Diário de Jessie
“(...) Fiquei muito triste em me separar de
você. Chorei muito, todo o tempo. Desde o
início deste diário tenho te falado de como
seria duro este momento. Mas tenho te
falado também da necessidade dele (...)”

“(...) É todo o nosso país que sofre um período


negro da sua história, somos apenas parte
disto tudo. Seu nascimento nos trouxe
muita alegria. É nosso grito de liberdade (...)”

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avô dizia que tínhamos que ir, “dá um beijo nos bora, ficou aquele sentimento de urgência, de
seus pais”. Esses, correndo de um canto para o manter tudo em ordem, nada poderia nos atin-
outro, vieram e disseram que era pra eu ir, que gir, nada poderia nos separar, nem mesmo a
o Exército havia invadido a cidade e eles esta- morte, muito menos a prisão.
vam indo para o Sindicato dos Metalúrgicos e
me encontrariam mais tarde. Nessa madrugada, três operários foram as-
sassinados, mulheres grávidas foram espanca-
Já era noite quando pegamos um táxi, meus das por soldados em ônibus, a praça pública
avós e eu, em direção à casa de uma compa- foi metralhada, entre outras barbaridades co-
nheira de meus pais, a Marlene. No táxi, o rádio metidas após a ditadura ter oficialmente ter-
falava como a cidade estaria sendo protegida minado. Nessa madrugada eu pude entender
contra os baderneiros… O taxista começou a um pouquinho todo o terror que meus pais e
falar : “Espero que o Exército pegue esse ban- seus companheiros sentiram por tantos anos,
do de comunista, tem tudo que ir pra cadeia, primeiro na clandestinidade, depois nas tortu-
vocês não acham?” Silêncio. ras e, por fim, nas prisões. Uma gota em um
oceano de lutas, dores, decepções. Uma gota
Quando chegamos na casa da Marlene, to- num oceano de esperança em um mundo me-
dos de frente para a televisão, tentando ter lhor, mais igualitário e mais justo.
notícias. O Jornal Nacional dizia como a ação
militar em Volta Redonda era importante. Eu Uma gota.
via o olhar de pavor nos olhos da minha avó,
Imagino agora a vida dos outros filhos, nas-
sentia suas vibrações. Fui ao banheiro chorar
cidos antes de mim, que viveram na clandesti-
pra que não soubessem que entendia que de-
nidade, que viram seus pais sendo presos, que
pois desse dia eu poderia não mais encontrar
acompanharam as longas e inesquecíveis ses-
meus pais.
sões de tortura. Só posso imaginar a força des-
Eles finalmente apareceram. Vieram até a sas pessoas, só posso respeitar suas cicatrizes.
mim e me abraçaram. Explicaram que tenta-
vam ajudar os operários em greve na Compa- LETA VIEIRA DE SOUSA nasceu em 1976, filha de Jessie Colombo e Leta com 3 meses, Bangu, 1976
Jane Vieira de Sousa e Colombo Vieira de Sousa Júnior.
nhia Siderúrgica Nacional (CSN). Eu entendia
Formada em arquitetura e urbanismo, tem MBA em
e concordava, nada precisava ser explicado. gestão de negócios sustentáveis, especialização em
Demos um abraço eterno. Quando foram em- cooperação internacional e trabalha como tradutora.

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1 2

1. Matéria do Jornal O Globo de


2 de julho de 1970
2. Jessie, Colombo e Leta na penitenciária
de Bangu, em 1977
3. Fichas de Colombo e Jessie nos órgãos
de repressão
4. Jessie com Leta no colo, padre
Renzo Rossi e Colombo, na penitenciária
de Bangu, em 1977
5. Cópia de matéria de jornal do dia
da libertação de Jessie, Leta e Colombo

Colombo Vieira de Sousa Júnior nasceu Jessie Jane Vieira de Sousa nasceu em Bangu (Presídio Talavera Bruce) e ele no Instituto
21 de abril de 1949, em Bom Jesus do Galho, então Penal Cândido Mendes (Presídio da Ilha Grande).
em 6 de março de 1950. Filho de Colombo Viera de Sou-
distrito de Caratinga (MG), numa família de militan- Ficaram cinco anos sem se ver e a única forma de
sa e Inah Meireles de Sousa. Iniciou sua militância em
tes. Filha de Leta de Souza Alves e Washington Al- comunicação eram cartas. Em 1972, conseguiram
1967. Foi militante da Dissidência do Estado do Rio de
ves da Silva, ambos militantes do Partido Comunis- autorização judicial para se casar. Em 1975, con-
Janeiro, Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-
ta Brasileiro (PCB) e do grupamento comunista que quistaram o direito à visita íntima. Assim, Jessie en-
8) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Sua irmã, Ina
deu origem à Ação Libertadora Nacional (ALN). Seus gravidou na prisão e, em setembro de 1976, nasceu
Meireles de Souza, também militante do MR-8, foi
pais foram presos e torturados na Operação Bandei- Leta, filha do casal, na Clínica São Sebastião (Rio
presa, no Paraná, em abril de 1969 e cumpriu dois anos
rantes (Oban). Seu pai, Washington, foi banido para de Janeiro) sob forte vigilância policial. A bebê per-
de prisão no Rio. Quando foi preso, sua mãe, a exem-
o Chile no sequestro do embaixador suíço Giovanni maneceu alguns meses ao lado de Jessie na prisão
plo do que aconteceu com a mãe e irmã de Jessie, foi
Enrico Burcher, em dezembro de 1970. e depois foi entregue à sua sogra. Jessie e Colombo
presa e levada para o DOI-CODI do Rio de Janeiro onde
foram soltos em 1979 e estão casados até hoje.
permaneceu por um mês, obrigada a assistir seu filho Em 1969, Jessie entrou para Ação Libertadora Nacio-
ser torturado. Colombo tem um longo percurso no mo- nal (ALN). Na organização, conheceu Colombo Viei- Jessie tem quatro irmãos: Sandra Maria Alves de
vimento sindical junto ao Sindicato dos Metalúrgicos ra de Souza. O casal viveu na clandestinidade até Sousa, presa duas vezes em São Paulo e tortura-
de Volta Redonda onde foi assessor político. Foi asses- 1º de julho de 1970, quando foram presos durante da na Operação Bandeirantes, em 1970; Vera Vani
sor parlamentar do líder metalúrgico Juarez Antunes, a ação de sequestro do avião Caravelle PP-PDX da Alves de Pinho, voltou clandestina do Chile e assim
de quem foi secretário de governo durante seu breve Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, realizada junto viveu por nove anos no Brasil; José Alves Neto-Juca,
mandato à frente da Prefeitura de Volta Redonda. Foi com os irmãos Heraldo e Fernando Palha Freire.Es- preso junto o pai no Chile, ficaram por três meses
secretário de transporte da Prefeitura de Caríacica tava com 21 anos quando foi presa e barbaramente no Estádio Nacional; Ivan de Sousa Alves, casado
(ES) e presidente do Ceasa deste estado quando Vitor torturada no DOI-Codi, do Rio de Janeiro. Jessie e Co- com uma ex-presa no Uruguai e ainda vive na Sué-
Buaz era governador. Foi também assessor do gover- lombo foram condenados a dezoito anos de prisão cia. Com o banimento do pai, as prisões de Jessie,
nador Leonel Brizola. Hoje está aposentado. e ficaram presos por nove. Ela, na penitenciária de Sandra e de sua mãe, todos entraram na clandesti-

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nidade e quando puderam foram para o Chile. No


golpe, seu pai e Juca foram presos logo nos primei-
ros dias. Sua mãe se refugiou e os três se reencon-
traram a bordo do avião que os levou para a Suécia.
Tudo graças à intervenção do embaixador sueco
que salvou centenas de pessoas. Sandra e Ivan se
refugiaram na embaixada da Argentina e depois fo-
ram para Portugal e, em seguida, Suécia.

Seus pais e Juca foram inicialmente para a Suécia,


em seguida para Cuba e depois Suécia, onde todos
se reencontraram (menos Jessie que estava presa
e Vera que estava clandestina no Brasil). Seus pais
e Juca retornaram ao Brasil em 1980 e Sandra retor-
nou há cerca de 5 anos. Mas Ivan ficou na Suécia.

Hoje, Jessie é professora associada do Instituto de


História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Graduada em História pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), tem mestrado em Histó- Acima, Colombo, Jessie e Leta, na porta
de Bangu, 6 de fevereiro de 1979.
ria pela Universidade Estadual de Campinas e dou-
Colombo foi solto na mesma noite e, em caravana,
torado em História Social pela UFRJ. foi para a porta da penitenciária esperar Jessie.
Leta tinha 2 anos e seis meses

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Nascimento de Leta
por Jessie Jane Vieira de Sousa

As memórias relacionadas ao nascimento da A gravidez transcorreu com tranquilidade, militares que se opunham ao projeto de abertura
minha filha me transportam para situações con- mesmo sem os exames próprios ao pré-natal, mas “segura, lenta e gradual” proposto pelo ditador
traditórias. De um lado, a imensa felicidade com o parto foi mais complicado. Ernesto Geisel, se somava aos inúmeros atos de
a chegada daquele pequenino ser, que nos trazia terrorismo que naquele momento ocorriam na ci-
Quando faltava um mês para o nascimento da dade do Rio de Janeiro.
esperanças, alegrias e ao mesmo tempo, angús-
Leta, fui transferida para o hospital penitenciário
tias pela consciência de que não poderíamos tê-
e ali permaneci até o dia do seu nascimento. Nes- Naquela noite, terminei dormindo e fui acorda-
-la conosco. E, de outro lado, a preocupação pelo
se período pude receber visitas da família do Co- da pela presença de soldados armados dentro do
futuro que poderíamos vislumbrar para nossa fi-
lombo, que já me dava assistência ao longo dos quarto. A partir deste momento, nossa presença
lha, já que estávamos condenados a muitos anos
anos em que estive presa. E assim pudemos estar no hospital se transformou num verdadeiro hor-
de prisão e não sabíamos quanto tempo mais vi-
juntos aos sábados e domingos. ror. Como ainda não haviam cortado o telefone,
veríamos sob a ditadura. Havia ainda a ausência
pude me comunicar com a advogada Abigail Pa-
da minha família, que se encontrava no exílio. Neste hospital-prisão permaneci isolada em
ranhos, ex-presa política, e o médico Leo Benja-
uma pequena cela, sem exercícios ou banho
A família de meu companheiro, Colombo Viei- mim, querido e corajoso combatente, que imedia-
de sol. E, evidentemente, sem qualquer assistên-
ra de Sousa Júnior, também já havia sido atin- tamente chegaram ao hospital e, após um difícil
cia médica.
gida pela repressão. Porém, quando soube que diálogo com as autoridades policiais ali presen-
estava grávida, tudo o mais se tornou secundário. Os hospitais militares se negaram a fazer o tes, conseguiram que os soldados ficassem do
parto. Diante dessa recusa, os companheiros lado de fora do quarto.
A história da minha gravidez se insere na his-
organizaram um fundo que nos permitiu pagar
tória das lutas contra a ditadura, já que ela ocorre Esses acontecimentos me fizeram ficar em
um hospital privado e, mais importante, o parto
no momento em que o regime estava acossado alerta. Ao amanhecer chegaram vários homens
sendo realizado por um médico de absoluta con-
pelo crescimento das oposições e por um cres- que, pela janela do meu quarto, passaram a me
fiança. Tratava-se do dr. Jeferson Carneiro Leão,
cente desgaste no exterior diante das denúncias ameaçar dizendo que iriam matar a minha filha,
ele mesmo militante da causa democrática e que
sobre violação dos direitos humanos. que era necessário realizar o que eles chamavam
havia trazido ao mundo vários filhos de compa-
de operação Jacarta (em referência à matança de
Minha gravidez só foi possível com a transfe- nheiras nossas. Mas eu só o encontrei a poucos
comunistas que a Indonésia havia realizado). Eu,
rência dos presos políticos da Ilha Grande para o dias do parto, quando fui levada à clinica.
encolhida na cama, tentava me comunicar com
centro da cidade do Rio de Janeiro após uma lon-
Dia 19 de setembro, um daqueles domingos o mundo exterior. O telefone já havia sido corta-
ga greve de fome realizada por aqueles compa-
de visitas no presídio político, minha sogra per- do e nenhuma enfermeira atendia aos meus cha-
nheiros. O episódio obrigou o regime a reconhe-
cebeu que eu, sem saber, estava em trabalho de mados. Nem a minha filha, que se encontrava no
cer a existência de presos políticos e resultou na
parto desde a noite anterior. Logo os companhei- berçário, vinha para mamar.
construção de um presídio específico para aque-
ros acionaram os carcereiros e fui levada para a
les presos. Tínhamos outras demandas e, dentre Em algum momento, dr. Jeferson, me pedindo
maternidade sob forte escolta, ainda na caçamba
elas, a de que fosse permitido o encontro entre que ficasse calada, entrou no quarto para avisar
de um camburão e algemada. Lá me esperavam
os casais presos. Este era o nosso caso. Eu e Co- que eu seria imediatamente enviada à penitenci-
alguns companheiros, que impediram que os
lombo já estávamos há anos sem nos encontrar ária e que a escolta policial chegaria a qualquer
soldados da Polícia Militar, que faziam a escolta,
e para o carcereiro de plantão no sistema peni- momento. Logo após, chegou uma assistente
entrassem na sala de cirurgia.
tenciário do Rio de Janeiro, tal reivindicação se- social, Gloriete, servidora do sistema penitenciá-
ria atendida se autorizada pelo juiz da Auditoria À uma hora da manhã do dia 20 de setembro rio, que ajudou a me levantar – eu estava opera-
de Aeronáutica. E qual não foi a nossa surpresa de 1976 nascia Leta, de cesariana, no Hospital São da há menos de 48 horas – e nos encaminhamos
quando conseguimos tal autorização? E, como a Sebastião. Inocentes, eu com minha alegria de para o pátio do hospital onde um camburão nos
medicina dizia que eu não poderia engravidar, ser mãe e ela que só queria saber de mamar, não aguardava. No percurso, sob os olhares hostis
nem pensamos em algum tipo de anticonceptivo. sabíamos que naquela madrugada ocorria o se- que surgiam dos outros quartos, pude ver minha
Foi assim que nossa filha foi gerada, uma luz da questro de Dom Adriano Hipólito, bispo de Nova cunhada, Iná, e Iramaya Benjamim. Elas estavam
natureza em uma fresta aberta pelas campanhas Iguaçu e conhecido por suas posições a favor dos impedidas de se aproximar. Minha angústia era
contra a ditadura. injustiçados. Esse crime, realizado por grupos de absoluta pela falta de notícias da minha filha e

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por não entender o que ocorria, sem contar os te- Durante os anos seguintes, Leta era levada
mores de uma sutura ainda não cicatrizada. para ver o pai e a mim de quinze em quinze dias.
Com o crescimento da luta pela anistia, quando a
Somente quando entramos no camburão é que a
existência dos presos políticos se tornou um pro-
Gloriete me informou, sumariamente, o que ocor-
blema para o regime, conseguimos nos encon-
ria. Cheguei à penitenciária em torno do meio dia
trar, os três, em Bangu, duas vezes ao mês. E, em
e minha filha me foi entregue, por Iná e Iramaya, à
algumas ocasiões especiais, pudemos até mesmo
tarde. Elas me entregaram a menina pela grade e
passar finais de semana juntos.
nada puderam falar.
No dia 6 de fevereiro de 1979 fomos soltos e, na
Na verdade, aquele pesadelo tornou a se repetir saída da prisão, lá estava ela. Linda, no colo das
quando, também em uma madrugada, acordei para avós – minha mãe, rompendo com as proibições
alimentar Leta e pude ouvir da guarita, no pátio que a impediam de voltar ao país, resolveu que
do pavilhão aonde nos encontrávamos, vozes que naquele momento estaria ali – e, ao longo da pon-
repetiam as mesmas palavras ouvidas no hospital. te que liga o Rio a Niterói, cidade em que residi-
No dia seguinte comuniquei ao diretor, mas, ainda mos até hoje, ela ia nos mostrando o barco, a lua,
hoje, não sei do que realmente se tratava. como se estivesse entendendo tudo o que ocor-
Dos episódios ocorridos no hospital pude me ria. Ficou acordada a noite inteira e, na manhã
inteirar melhor anos depois, quando acessei os seguinte, pegou o pai pela mão e foi apresentá-lo
documentos produzidos pelo sistema penitenciá- aos gatos da casa.
rio e ali pude ter consciência do verdadeiro peri- Em seguida fomos residir em Volta Redonda,
go que rondou a vida da minha filha. Soube então onde, pelas mãos de D. Waldir Calheiros, bispo
que o consultório do dr. Jeferson fora invadido da cidade, conseguimos nosso primeiro trabalho.
e depredado por duas vezes e que a direção do Foi um período difícil para Leta já que, aos 2 anos
hospital havia exigido a minha imediata retirada e meio, se viu separada da família com quem ela
do hospital. E, sobretudo, pude ler as inverdades havia vivido até então.
produzidas pela repressão acerca dos episódios
relatados acima. Quase toda semana encontrávamos com sua
avó Inah na porta do presídio onde íamos visitar
Leta permaneceu comigo somente nos pri- os companheiros e, em especial o marido da min-
meiros meses de vida, quando a entreguei aos ha sogra. A hora das saídas eram momentos de
cuidados da família do Colombo. E aquele foi o grande aflição porque Leta chorava muito ao se
momento mais dramático em toda a minha exis- despedir da avó. Até que em uma dessas ocasiões
tência. Uma dor dilacerante, sem igual. ela simplesmente deu um beijo na avó e, desse mo-
mento em diante, os sintomas de desajustes com
Pela legislação penitenciária, Leta poderia per-
a nova vida desapareceram. Ficando, evidente-
manecer no presídio até os 6 anos, na creche que
mente, as referências relativas à estabilidade que
existia à época, quando então teria que ser entre-
lhe foi dada pela família do pai.
gue à família ou a um juiz. Eu optei por tirá-la da-
quele ambiente entendendo que ela não deveria
crescer entre aquelas grades e que deveria ter uma
vida familiar normal entre os primos e desfrutar a
sua infância como todas as crianças têm direito.
Colombo só pôde conhecê-la quando ela tinha
quinze dias de nascida.

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O testemunho do que eu sei,
li, vi, ouvi, senti e pensei
por Maria Eliana Facciolla Paiva

Sou filha do ex-deputado Rubens Beyrodt ao governo Jango, como Partido Comunista
Paiva, que foi cassado na última lista das várias Brasileiro, ainda na ilegalidade (que, por sua
que foram publicadas a partir de primeiro de vez, usou a legenda do PSD).
abril de 1964, pelo golpe militar. Depois de au-
xiliar a fuga do Procurador Geral da República, Rubens Paiva, assim como outros deputa-
Valdir Pires – que atualmente é vereador em dos do PSB e PCB utilizaram para se elegerem
Salvador na Bahia; e, Darcy Ribeiro, Ministro em 1962, respectivamente, legendas do PTB e
da Educação. Em seguida, papai exilou-se na PSD. Como deputado eleito, ele fez parte da
Embaixada da Iugoslávia, a única Embaixada direção da Comissão Parlamentar de Inquérito
aberta em Brasília para que investigou o IBAD,
receber os perseguidos. “O testemunho que que teve um papel de
destaque na preparação
Rubens juntou-se a todos
aqueles que estavam ali trago para a semana do Golpe Militar.
refugiados e que faziam “Infância Roubada” é O testemunho que tra-
parte da Frente Parlamen-
tar Nacionalista, criada de uma adolescente de go para a semana “In-
fância Roubada” por ini-
no início dos anos 1960. quinze anos e meio” ciativa da Comissão da
Formada de uma forma Verdade “Rubens Paiva”,
quase que espontânea na Câmera Federal, a da Assembleia Legislativa de São Paulo é de
Frente Parlamentar Nacionalista foi organiza- uma adolescente de 15 anos e meio. Acredito
da por militantes de diversos partidos de es- que o meu depoimento é um pouco diferente
querda, religiosos, artistas. Enfim, grande parte do que eu ouvi aqui, hoje, apesar de ter coisas
da sociedade participante da luta que defendia bastante semelhantes. Uma delas é a capacidade
a aprovação, pelo Congresso, das Reformas de incrível que quase todos nós tivemos, em rela-
Base. Entre elas: Reforma Agrária, Reforma Ju- ção à nossa memória, que parece nos pedir: “eu
rídica, Reforma da Educação, Reforma Urbana, vou esquecer o que aconteceu, e um dia eu não
Reforma da Lei de Remessa de Lucros. lembrarei mais”.

Meu pai fez parte do pequeno Partido Socia- Isso está claro, porque apesar toda a midiatiza-
lista Brasileiro, que não tinha direito a voto, ção que existe em torno do meu pai, eu só fui
mas tinha voz de comando e direção. O PSB, dar o meu depoimento há dois anos. Eu nun-
como aliado do PTB (Partido Trabalhista Bra- ca falei, os meus irmãos talvez soubessem um
sileiro) era agregado a outras forças de apoio pouco, minha mãe sabia mais, porque fomos
presas juntas. Minha família nunca soube de
nenhuma sequência de detalhes, os meus ami-
À esquerda, foto da família Paiva reunida. gos também não. Só quem soube foi um ou ou-
De pé, Eliana, no sofá Eunice, Rubens, Aracy
e Vera, no chão Ana Lúcia, Maria Beatriz e
tro amigo, pessoas com quem eu convivo e que
Marcelo Rubens perguntaram com grande insistência.

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O que foi a minha adolescência roubada? Eu tou com a circulação de políticos, militantes, ele se preocupou com a segurança física e moral
sabia o que se passava neste país, exatamente ex-deputados, ex-ministros e de todo o pessoal desse grupo, que já vinha sendo trucidado e per-
como todo mundo, ouvindo tudo que aqui já ligado ao governo João Goulart, e todos que seguido pelas ações que faziam contra a dita-
foi dito. O meu pai foi deputado federal, foi um faziam parte deste grupo. Os militares sempre dura instituída pelos militares, a partir de 1964.
deputado engajado. Ele já era engajado politi- estiveram de olho nessa casa, porque papai era Em casa só sabíamos que havia prisões e que
camente desde a sua juventude. Foi vice-líder um sujeito muito alegre, muito afetivo, social- alguns foram bastante maltratados, a maioria
da UEE, vice-presidente da UEE Paulista, fez mente muito engajado. bastante torturada e era uma maioria de jovens,
parte da campanha do “petróleo é nosso”. bem jovens. Outros presos e interrogados eram
Não havia espaço para tristeza ou depressão. intelectuais, parte integrante do vasto grupo de
Rubens Paiva foi eleito deputado federal pelo Tudo podia ser engraçado, a vida era uma fes- políticos, na sua maioria cassada, artistas e inte-
Estado de São Paulo aos 34 anos de idade, uma ta naquela casa, tanto que a famosa expressão lectuais, que circulava em casa.
das primeiras ou segundas gerações a entrar no “esquerda festiva” (acho eu) vem um pouco
atual Congresso Nacional em Brasília, depois daí. Se alguém não sabia o que era esquerda Em janeiro de 1971, meu pai tinha 41 anos
da era Vargas. Antes disso, ele ajudou a cons- festiva, agora está sabendo. Era uma esquerda recém-completos quando foi preso. Ele faz
truir Brasília como engenheiro civil. Era emprei- que tinha sido cassada em 1964 e que acha- aniversário dia 26 de dezembro e foi preso no
teiro e fez pontes na construção de Brasília. va que os militares não iriam longe. Tinham meio da manhã do dia 20 de janeiro – feriado
o dom de se divertirem com certa ignorância no Rio de Janeiro. Essa é a história do meu pai.
Com a cassação, meu pai voltou do exílio dos militares no poder, assim, em uma compa- Nunca mais soubemos dele, não se sabe até
nove meses depois. Como deputado federal ele ração, como o discurso que o jornal Pasquim hoje o que aconteceu exatamente, como mor-
tinha direito e posse ao passaporte diplomático construiu, especialmente. reu e onde está enterrado o seu corpo.
vermelho. Pegou o passaporte, colocou no bol-
so, pegou um avião com escala no Rio de Janei- “Nunca mais soubemos Agora, a minha história em relação a ele. No
início, ao sair da prisão, eu resolvi que iria es-
ro. Desceu no Aeroporto Santos Dumont, pegou
a Ponte Aérea e veio para São Paulo. Entrou em dele, não se sabe até quecer o que aconteceu. Por que eu antes não
casa pela cozinha dizendo para quem ali estava, hoje o que aconteceu contei, ou pouco contei, do que aconteceu. So-
bre as 24 horas que durou a prisão domiciliar,
“oi, eu cheguei”. Foi um dos maiores sustos da
minha mãe quando, de repente, surge aquele exatamente, como minha, do meu irmão Marcelo, irmã caçula, Be-
pai de família de cinco filhos na porta da cozi- morreu e onde está atriz e, minha mãe Eunice, as minhas 24 horas
no DOI-CODI?
nha, dizendo “voltei, estou de volta”.
enterrado o seu corpo” Assim como os detalhes de tudo que tinha
A partir daí nós moramos mais alguns meses
em São Paulo, e nos mudamos no início de 1965 testemunhado na prisão e morte de meu pai
Até o dia em que foi assinado o AI 5 (Ato
para o Rio de Janeiro. Como deputado cassado, e na prisão, por onze dias, da minha mãe no
Institucional número 5). Quando começaram
meu pai havia entrado em uma espécie de lista mesmo quartel da Rua Barão de Mesquita, na
prisões, torturas e mortes, meu pai achou que a
negra. Como era engenheiro civil, seu trabalho Tijuca?
coisa era séria e começou, em seguida, a ajudar
era de empreiteiro, empreendedor. Sem os di- militantes engajados na luta armada, uma nova Porque eu tinha 15 anos de idade. Eu tinha a
reitos civis ele já não podia mais assinar como geração constituída. A geração de 1968, uma vida inteira pela frente, tinha que conviver com
engenheiro obras contratadas por governos, geração acima da minha e uma geração ou os meus colegas, tinha que conviver em uma
ou pagas com o dinheiro público. Como de- duas abaixo da dele. Nesta geração de militan- sala de aula, tinha que olhar para os professores,
putado cassado não podia seguir vida política tes estavam poucos amigos com uma maioria eu tinha que ir à praia. Nas turmas e na turma da
e se reeleger. Então a ideia dele, ao ser convi- de jovens, filhos de amigos que se engajaram praia eu tinha que dançar um rock, eu tinha que
dado, foi entrar como sócio em uma firma de em ações como o rapto de embaixadores. Par- ouvir música. E não interessava para os meus
engenharia no Rio de Janeiro, a Machado da te destes amigos, filhos e parentes de amigos, amigos, para os grupos com quem eu andava,
Costa Engenharia, acho que nem existe mais. atuou principalmente no rapto do embaixador que eu contasse a história do meu pai ou que eu
Pegou o dinheiro que tinha e investiu na socie- americano. tinha sido presa no DOI-CODI do Rio de Janei-
dade desta empresa. Então, nós nos mudamos
para o Rio de Janeiro. Meu pai ajudou com conversas e com dinhei- ro. Não interessava de jeito nenhum.
ro que pôde dar, considerou um acerto político. Muito menos interessava para os meus avós,
O estilo do meu pai era e sempre foi da con- No entanto, esta ajuda acabou ligando papai no os pais do meu pai, que acreditaram durante
tinuidade da vida. Do prazer pela vida. Então o próprio circuito de luta armada, o que ele não
que ele fez? Alugou um sobradinho em frente à muito tempo que meu pai poderia estar vivo.
imaginou e com a qual ele não estava envolvido.
praia do Leblon. Nossa vida de paulistanos mu- Meu avô morreu três ou quatro anos depois,
dou radicalmente, mas a vida continuava a mes- Não sei se ele concordava com o que esta com a certeza ou incerteza, de que meu pai po-
ma, frente ao mar e da melhor maneira possível. militância armada fazia, porque eu era muito deria voltar um dia para ele e para a família.
menina para saber se ele apoiava ou não. Não Meu avô, Jayme Almeida Paiva, morava em
Inaugurada esta nova fase, o pequeno sobra- cheguei a conversar sobre isso com ele, não era Santos e pediu que nos mudássemos para lá e
do na Avenida Delfim Moreira, nº 80, se agi- tema de conversa. No entanto, soube depois que fôssemos esperar a volta do meu pai.

162 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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A nossa casa do Rio de Janeiro, que era alu- dever a ser cumprido, por pedido da minha guei para São Paulo, avisei o meu tio, o advo-
gada, ficou fechada durante seis primeiros me- mãe, quando abri a porta da minha casa, quan- gado Cássio Mesquita Barros, acho que ele não
ses. E só foi entregue ao proprietário seis meses do eu senti o ar de fora, eu comecei a respirar estava, mas o recado foi dado.
depois. Depois disso, nós moramos com meu de novo. Alguma coisa precisava ser feita, com
avô, em Santos, SP, durante três anos. Um ano muita urgência, e que saberia o que fazer. Foi Sai de novo, fui para a rua, já ansiosa, dar o
depois da morte ou desaparecimento do meu este o recado que ela me passou. Conheço a tempo necessário para um treino de vôlei, fi-
pai, minha mãe, inclusive por ideia do meu avô, inteligência da Eunice e antes jamais tinha vis- quei circulando perto de casa. Muito preocupa-
começou a fazer um curso de Direito em uma to minha mãe agir daquela maneira. Tão séria, da com minha mãe. Repito, nunca a tinha visto
Faculdade em Santos e, formada, já morando em tão resoluta, tão assustada. agir daquela maneira. O meu amigo Ronaldo
São Paulo, se tornou uma brilhante advogada. quis vir comigo, eu tentei despistar e pedi mui-
Eu estava muito focada na minha pressa. E, to para que ele não viesse atrás de mim, ou na
A história, ainda em resumo, é esta: meu pai com a saída para a rua, com o ar que novamen- minha casa, porque estava tudo muito esquisito.
foi preso no dia 20 de janeiro, mais ou menos te entrou no pulmão, quando até então minha Não falei mais nada do que estava acontecendo.
ao meio dia, uma hora da tarde. Fui me des- respiração estava quase que suspensa, não tive
pedir dele por volta das onze horas da manhã muito tempo para pensar, mas senti que o ar O resto veio se formando da maneira lógica
quando fui para praia em frente, no Leblon. Pa- dentro da minha casa tivesse faltando. Hoje em de um quebra cabeças, foi o momento em que
pai estava sentando no jardim com Raul Ryff, dia o olhar da minha mãe parece que já dizia de comecei a juntar intuitivamente as peças daqui-
que era muito amigo dele e morava perto de uma vida que tínhamos para salvar, ou de um lo que a vida inteira presenciei com o trânsito e
casa. Ryff era jornalista e foi assessor de im- desastre iminente. Isto porque agi quase sem as conversas políticas em casa. Então eu enten-
prensa do João Goulart. pensar, e fiz o que tinha que fazer, sem pensar dia que estava acontecendo alguma coisa. Sa-
nas consequências. bia a leitura disso, mas não conseguia decifrar,
Dei um beijo nos dois e fui à praia encontrar ou já tinha decifrado e estava esperando a sequ-
minha turma. Voltei duas horas depois e a casa Dois quarteirões atrás de casa, entre as ruas ência. Como eu digo, existiu a fase aparente de
estava fechada, o que era estranho em pleno ve- Ataulfo de Paiva e a Afrânio de Melo Franco, “esquecimento”, que a gente leva anos para que
rão. Entrei, vi uns homens, meio na penumbra e no Leblon, existia o que a gente chamava de ela retorne. Mas tudo fica guardado.
fui para a área da cozinha deixar toalha, esteira. “condomínio de jornalistas”, onde viviam mui-
Minha mãe me pegou na entrada e disse, com tos deles, inclusive o Raul Ryff. As várias tur- Bom, dei um tempo e voltei para casa. Quan-
um olhar muito assustado: “O seu pai foi preso. mas de praia e parte dos meus amigos mora- do cheguei, um dos homens que estava em
Você vai tentar sair e avisar, telefonar para o seu vam lá. Um deles era o Ronaldo Pacheco, que casa, a paisana, o mais forte, estava com um
tio advogado (que é o marido da irmã caçula do era um dos meus melhores amigos. cabo de fio elétrico na mão, querendo me bater,
meu pai) em São Paulo. Você tem dinheiro?”. perguntando: “onde você foi?”. Eu, vestida de
jogadora de vôlei, de novo fui entrando, sen-
Eu ouvi, não falei nada e continuei pela cozi-
nha. Subi por trás, pela escada dos fundos e não
“Minha mãe me pegou na tei no sofá da sala, ele sentou ao meu lado e
voltei para a sala. Isto porque Eunice, minha entrada e disse, com um respondi assim: “Eu saí”. Ele disse: “Você não
saiu”. Eu respondi: “Fui jogar vôlei”. “Não, você
mãe, parecia estar me esperando atrás da porta
da sala de jantar que dava para a cozinha. E a
olhar muito assustado: não foi jogar vôlei, você foi avisar o teu tio, a
maneira com que ela me falou, especialíssima, “O seu pai foi preso. Você tua família, que seu pai foi preso”, ele falou fu-
rioso, mas já mais calmo.
demonstrou certo planejamento de palavras e
ação. Muito do seu estilo. Portanto, eu entendi
vai tentar sair e avisar,
aquilo que deveria entender; ou seja, que preci- telefonar, para o seu tio O que aconteceu depois que telefonei e en-
quanto esperava voltar para casa? O meu tio,
sava agir rápido, sem que soubessem ou conse-
guissem ver o que fazia.
advogado em São Paulo. advogado, querendo saber realmente o que

Nessa época, eu era atleta juvenil do Clube


Você tem dinheiro?’” tinha acontecido, ligou para a minha casa
quando o telefone estava censurado. Agora,
Botafogo, de voleibol. Então, subi e me ves- um dia a Comissão de Verdade, advogados,
ti de atleta do Botafogo. Desci rapidamente Fui direto para a casa dele e disse: “eu não procuradores, historiadores e jornalistas terão
as escadas da sala, e fui saindo pela porta da posso contar exatamente o que está aconte- de saber se realmente existia escuta telefônica
frente, por onde tinha entrado. E falei rapida- cendo (também ainda movida pela urgência naquela época. Não sei que tipo de escuta te-
mente, sem que tivessem tempo para pensar: do olhar e simples fala da minha mãe), mas eu lefônica era, mas na minha casa foi escuta de
“estou indo jogar, estão me esperando, tenho preciso usar o teu telefone para fazer um inte- extensão para extensão telefônica. Tínhamos
que ir”. E fui saindo de casa e fechando a porta rurbano para São Paulo, posso?”. um telefone no escritório do meu pai, outro na
atrás de mim. cozinha, outro em cima no hall e um no quarto
Hoje em dia penso que foi um encadeamento dos meus pais. Até hoje eu fico curiosa em re-
Lembro agora do alívio que eu senti quando de fatos, Ronaldo não tinha ideia nenhuma do lação a isso.
fui passando pela porta e depois pelo portão que se passava na minha casa, o que lá acon-
da casa. Agora me vem esta lembrança, que tecia, era meu amigo de bairro. Não sei como Ou seja, o meu tio ligou e como um bom ad-
havia como que esquecido, da sensação de um imediatamente ele franqueou o telefone. Li- vogado começou a questionar a minha mãe so-

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bre o que estava acontecendo. Então, quando é dito que os militares depois de destruí-lo per- lá fomos nós para o DOI-CODI. Chegando ao
eu cheguei em casa, o militar que ouviu a con- guntam o que foi feito do “deputado”. quartel da Rua Barão de Mesquita, minha mãe
versa pela extensão estava transtornado. e eu fomos separadas. Fui inteiramente revis-
O depoimento do médico coronel Lobo, que o tada, a minha mãe deve ter sido também, e fui
De certa forma é interessante pensar no que atendeu no DOI-CODI, diz que ele cheio de he- colocada em uma espécie de corredor polonês,
se passou, eu sou muito parecida com meu pai, matomas pelo corpo todo, deitado sem conse- sentada em uma cadeira de madeira.
então dei muito uma de “Rubens Paiva”. Eu fa- guir se mover, só dizia o próprio nome: “Rubens
lei para ele, entrando em casa com ele me ame- Paiva”. Desde o dia que li este depoimento pen- Por que chamo de “corredor polonês”? Por-
açando: “Senta aqui comigo, vamos conversar, so que, primeiro ele tenta se identificar, porque que cada um que passava me dava um coque
qual o problema do senhor?” O cara era enor- parece que certa hora ele percebeu que perdeu na cabeça ou me chamavam de comunista.
me, muito forte, olhando para mim, acho que a identidade ali dentro. É o caso do torturado, do Vinham perto do meu ouvido e me chamavam
não entendeu nada. Aquela menina, completa- sujeito torturado que perde a identidade dentro de comunista. E eu pensei: “está acontecendo
mente loira, cabelo de frequentadora de praia, da prisão. Esse é o grande problema da tortura, alguma coisa”. Não sabia exatamente decifrar
quase dourado, vestida com roupa de jogadora física e psicológica que eu saiba. Em segundo aquele ambiente. Como adolescente você não
de vôlei, perguntando para ele o que estava lugar, a tortura moral, dizendo: “o senhor depu- consegue entrar na leitura daqueles aconteci-
acontecendo. Ele foi se acalmando. tadozinho, o senhor ainda está querendo algu- mentos que não fazem parte do teu cotidiano,
ma coisa?”. Parece que a tortura foi em cima dis- ou que conhece alguma história ou descrição.
Eu não perguntei para ele o que poderia ter so, ou seja, ele reagiu, foi torturado, massacrado. Eu tinha 15 anos e meio. Nasci em 1º de junho
perguntado: “O que é esse cabo na tua mão?”. Mas digo isso hoje em dia, também parte de de 1955 e a prisão foi em 21 de janeiro de 1971.
Eu fiquei olhando para ele e não para o cabo pensamentos que tive esses anos todos.
elétrico. E assim ele foi escondendo o cabo. A No meio da tarde eu fui interrogada por um
reação dele foi muito engraçada. Bom, esta já é
uma interpretação de uma menina de 15 anos,
“Fomos colocadas em um sujeito bastante grosseiro, moreno, grandão.
Conforme ele foi falando comigo, foi me agre-
quarenta anos depois. Mas me parece que todo fusca no banco de trás... dindo e eu fui respondendo. Ele foi pergun-
mundo, todos nós que fomos presos crianças,
está tendo este tipo de reação. Falamos, rimos
nós fomos encapuzadas. tando dos amigos do meu pai, e eu respondia
sobre aqueles que eu conhecia. Grande parte
e choramos como crianças e adolescentes. Era um capuz fedorento, gente conhecida e, pensei, “público e notório
que frequentam a minha casa”.
E também era como meu pai reagia. Inclusi- já devia ter sido usado
ve acho que foi por isso que ele foi morto, pa- para tudo. E lá fomos Gostaria de afirmar que este meu primei-
ro interrogatório foi extremamente violento.
rece engraçado aos 15 anos, mas é sério para
adultos. Acredito que ele tenha reagido desta nós para o DOI-CODI” Eles colocaram na minha frente uma espé-
maneira na prisão, por isso o massacraram, eu cie de planilha, um gráfico enorme, parecia
penso que ele diria: “Eu fui deputado eleito le- Voltando um pouco, depois dessa minha uma página dessas, do tamanho de uma
gitimamente, vocês não têm nada comigo. Ou conversa com o policial, nas primeiras 24 horas cartolina, como um gráfico, com nome de pes-
vocês me respeitam ou não sei, vão para aquele de prisão domiciliar, a coisa toda acalmou. Eu soas, quadriculada.
lugar”. Creio que foi isso que ele fez dentro da não lembro muito mais o que aconteceu depois
cadeia e foi por isso que ele morreu inclusive. disso, depois dessa conversa com esse homem. A sensação que deu é que eles estavam orga-
Isso devia ser umas cinco horas da tarde. Nós nizando o que estava acontecendo e eles come-
Hoje em dia não se tem dúvida: papai entrou fomos dormir. Não me lembro se vimos televi- çaram a perguntar e olhar para aquele papel e
na prisão exigindo que fosse tratado como de- são, o que comemos, não lembro mais nada. Só perguntar de novo, olhar para mim para que eu
putado. Ao mesmo tempo começou a tentar lembro-me da minha mãe, no dia seguinte, me confirmasse. Ele olhava para aquilo e me per-
defender as duas senhoras que foram presas acordando e falando: “Acorda, se veste que a guntava: “Tal pessoa é amigo do seu pai?”. Eu
junto com ele e responder usando de certa au- gente vai ter que dar depoimento”. Eu escolhi respondia: “É” ou “Não conheço”.
toridade. Tem algum relato que conta que os uma roupa que me cobria todo o corpo, porque
militares começaram a maltratar estas senho- eu fiquei com medo, comecei a ficar com medo Quando o militar percebeu que não iria con-
ras que foram presas juntas com ele. Inclusive de ser exposta a alguma coisa que não pudesse seguir muita coisa, começou uma preleção no
a nossa professora do Colégio Sion, Cecília Vi- controlar. Era uma túnica preta que vinha até sentido de dizer alguma coisa como: “Então o
veiros de Castro, que papai conhecia. perto do joelho com uma calça. Muitos meses seu pai era um grande comunista”. Não sei de
depois disso eu joguei essa roupa no mar, num onde eu tirei essa frase quando respondi, na
Professora Cecília começou a ser maltratada lugar muito longe, porque por mais que eu la- hora, lembro bem disto porque o interrogador
na frente do meu pai, que enlouqueceu. Imagi- vasse, ficou com o cheiro da prisão. ficou sem resposta: “Eu não sei se ele é um gran-
no ele dizer: “Vocês não têm direito, vocês não de comunista, porque eu não sei se ele conhecia
sabem o que estão fazendo, vocês parem com Fomos colocadas em um fusca no banco de alguma coisa sobre Marx”. Apesar de uma boa
isso. Eu sou deputado, respeitem”. Tanto que trás, havia duas pessoas na frente. Pararam o biblioteca, papai não era um bom leitor de lite-
nos únicos depoimentos que têm da possível fusca e nós fomos encapuzadas. Era um capuz ratura política. Foi um militante socialista, no
tortura e também de resgate do que aconteceu, fedorento, já devia ter sido usado para tudo. E entanto acho que nem Marx tinha lido na vida.

164 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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O interrogatório continuou nesta batida de neste momento, começam acontecer torturas ça, como garota. Qualquer outra pessoa mais
expressão e conversa, digamos, quase adoles- horrorosas em sala ao lado, mais adiante. velha descreveria de outra maneira. Ou seja, o
centes, até que certa hora o interrogador falou sujeito era um pouco mais velho e um pouco
com um ar de que “chegamos onde eu queria”. Não entendi muito bem o que estava acon- mais sábio, não era o monstro que era o ante-
Ele me disse assim: “Mas se o teu pai não é co- tecendo, mas para uma criança de 15 anos de rior, gordo e horroroso, peludo.
munista, você é comunista”. Eu tomei um sus- idade ouvir “pelo amor de Deus, parem com
to e disse: “O quê????” O interrogador: “Você é isso”, repetido em sequência, foi a coisa mais Com este interrogador, o clima foi um pouco
comunista e aqui está a prova”. Então ele tira alucinante que eu já ouvi em toda minha vida. melhor. Ele começou a conversar comigo de
de trás dele um trabalho escolar que eu escre- Aquilo já não era mais um filme na minha ca- uma maneira pouco mais saudável: “Como é
vi no Colégio Sion para professora de História, beça, os gritos eram reais. A primeira vez que que você está?”. Quando ele fez essa pergunta,
Dona Ilma, sobre a invasão da Tchecoslováquia. contei isso, eu não parava de chorar, porque voltou de novo a configuração Rubens Paiva e
Sobre a “Primavera de Praga”. Que relata a rea- quando ouvi a tortura estava vedada, com um eu disparei em exigências: “Não gosto deste
ção contra os russos em um momento em que, capuz fedorento, me cobrindo a cabeça toda, capuz, ele está me incomodando. Não consigo
principalmente a cidade de Praga se rebela. Foi em um corredor estreito, no dia 20 de janeiro, respirar. Tenho 15 anos de idade, se o senhor
um trabalho que eu adorei fazer. Eu achei aqui- verão no Rio de Janeiro, dentro do DOI-CODI, não me liberar em 24 horas, o senhor pode ser
lo fantástico, como um povo tinha conseguido sem nada que me fizesse entender a realidade, denunciado”. Ele foi ouvindo e ficando cada
reagir e de uma maneira tranquila a um regime foi a coisa mais enlouquecedora do mundo. vez mais com um ar mais grave, e eu continuei:
soviético, stalinista, que foi terrível. “Estão me apalpando nesse corredor, estou
“Eu fiquei meio estática, ouvindo coisas horrorosas, eu estou achando
Nesse momento que ele colocou esse traba- tudo isto um absurdo. Têm uns meninos que
lho na minha frente, eu dei um tal pulo, que pensando, tentando estão sendo maltratados ali dentro, perto de
deixou o interrogador com um sorriso tal que respirar: ‘Agora eu sei mim. Além disso, estou ouvindo berros de gen-
te que está sendo violentamente maltratada.
parecia que ele tinha comido um doce.
onde eu estou. Será que Não estou entendendo o que está acontecen-
Eu falei assim: “Bom, esse trabalho é meu”.
E em segundos se passaram mil coisas na mi- isso não vai parar nunca?’ do... pegaram um trabalho meu de escola”. Dis-
parei a falar e o militar cada vez mais quieto.
nha cabeça: será que eles irão atrás da minha Não parava, e a coisa
professora, Dona Ilma? O que mais eles pega- Nessa hora, nada foi perguntado, quem dis-
ram lá em casa? Será que mais alguém poderá piorava. Ou seja, o tal do parou a falar fui eu. Depois que eu me acalmei
ser comprometido? Este trabalho foi inteiro cirurgião tinha ido fazer ele me disse para que eu repetisse o que estava
feito no Departamento de Pesquisa do Jornal acontecendo. Voltei a dizer e pedir, principal-
do Brasil, do qual o Raul Ryff era o chefe e me uma sua cruel tortura mente, que me tirassem o capuz. E respondeu:
franqueou horas e horas de trabalho. cotidiana” “tudo bem, a gente vai ver”. Acabou aí o inter-
rogatório. Este militar imediatamente mandou
Depois, no final da tarde, quando me levaram tirar o capuz e me colocaram um venda, deu
Eu fiquei meio estática, pensando, tentando
para a cela, tentei lembrar onde é que eles ti- certo. Puseram uma venda e quando saí da sala
respirar: “Agora eu sei onde eu estou. Será que
nham pegado, em casa, o trabalho sobre a “Pri- consegui ver por baixo, quando a mamãe entrou.
isso não vai parar nunca?” Não parava, e a coi-
mavera de Praga”. Eu e minha irmã mais velha
sa piorava. Ou seja, o tal do cirurgião tinha ido Eu e a mamãe entramos juntas na cadeia,
dormíamos no mesmo quarto, e cada uma de
fazer uma sua cruel tortura cotidiana. mas não a vi mais. Estávamos as duas venda-
nós tinha um gaveteiro com trabalhos de escola
e coisas como diários, fotografias. Eles devem Também tinham dois rapazes, sentados no das. Quando eu saí deste interrogatório, ela
ter revirado a casa toda. Principalmente quan- chão na minha frente. Toda vez que alguém entrou e ela sentiu que era eu e perguntou:
do fiquei dando voltas para voltar para casa, passava os chutavam, e naquele lugar, porque “Filhinha, você está bem?” Com a maneira
depois de ter ligado para meu tio em São Paulo. eles davam berros tremendos. habitual, bastante doce da Eunice. Eu respon-
di: “Tudo bem mamãe, está tudo bem, não se
Bom, voltando a esse primeiro interrogatório, Duas horas depois, fui novamente levada preocupe, está tudo em ordem”. Ai que eu falei
por sorte ou por azar, entra nessa sala outro mi- para interrogatório. Nesse segundo interroga- “Mamãe, tudo bem?”, “Sim, filhinha, como vai
litar (não se sabia as patentes, não se sabia no- tório, entra um pouco a cronologia dos fatos você?”. Até hoje eu não consigo reproduzir a
mes, mas eles andavam com placas de metal no da morte de Rubens Paiva guardados comigo. doçura que foi aquilo lá, “Minha filhinha, como
peito, à paisana); ele vira-se para o monstro na Ou seja, porque eu sabia que papai estava mor- vai, você está bem?”
minha frente e fala: “Ei, cirurgião, nós temos um to, eu tinha quase certeza desde o momento
trabalho para você”. Aí se encerra o interroga- que saí da prisão. Objetivamente começa a se Aí fui colocada novamente nesta espécie de
tório. Imediatamente o interrogador se levanta, configurar nesse segundo interrogatório. Es- corredor polonês, com a venda, mas minutos
me colocam o capuz e sou levada de volta para o perava-me sentado atrás da mesa um segundo depois a tortura recomeçou pior do que antes.
corredor. Não estou sentada muito longe desta militar, um pouco mais velho, um pouco mais Foi aí que comecei a ter uma crise de choro
sala pequena, com a mesa, debaixo de uma es- calmo, um pouco menos, digamos, animalesco. compulsiva. Já estava quase entardecendo, de-
cada, onde se deram as conversas. No entanto, Vejam que só consigo descrever como crian- via ser cinco, seis horas da tarde.

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Acho que ficou evidente que eu não poderia celas depois de mim. Pedi para que ele disses- venda de novo, levaram-me até a saída, eu me
continuar ali. Alguém veio até mim, pediu para se para ela que eu estava bem. Ele foi até a cela lembro de ter assinado qualquer coisa, me co-
que eu me levantasse e me levaram para uma dela, voltou mais assustado me dizendo que locaram em um fusca e me soltaram na Praça
cela onde pude tirar a venda. E, de novo, tive ela estava estendida no colchão, sem se mexer. Saens Peña, na Tijuca. Fui para um bar ali ao
a sensação de que alguma coisa já deveria ter lado e com a carteira de endereços da minha
acontecido com papai, porque a coisa ficou, di- Depois soube que mamãe ficou dois dias sem mãe e dinheiro, liguei para o Bocayuva Cunha
gamos, não light, mas os ataques pararam. Os se mexer, imóvel, porque não sabia o que tinha ir me buscar. Foi uma conversa rápida por tele-
gritos pararam, a pressão acabou até o meio acontecido comigo. Só a avisaram dois dias fone. Pedi um sundae e esperei Bocayuva che-
dia da manhã seguinte. depois de me soltarem. Isto porque ela, Euni- gar. Não consegui comer, minha cabeça pen-
ce, me contou, na única vez que conversamos sava em tudo, principalmente na minha mãe.
Eu (e minha mãe foi colocada a duas celas sobre a prisão. Ela estava furiosa quando me
depois da minha, o que vim a saber no dia se- contou que só disseram para ela que fui solta Bocayuva chegou com um médico da famí-
guinte) fui colocada em uma cela semiaberta, dois dias depois de eu sair. Eu ainda disse para lia. Conversamos sobre o que tinha acontecido.
com chuveiro e latrina. Mas o terrível é que ela; “Mas eu pedi para os guardinhas avisarem Quando entramos no túnel Rebouças, que liga
durante a noite foram colocados pessoas na você”. E ela, já em casa, onze dias depois: “Pois a Zona Norte entrei em prantos, enlouquecida
frente da cela, gente amordaçada, gente enca- é Eliana, não me disseram nada.” Esta foi a úni- de dor e preocupação. Quando cheguei em casa
puzada, amarrada, imobilizada. Não dava para ca conversa sobre a prisão que tive com minha meus avós maternos já estavam lá. Não me lem-
ver quem eram. Estavam todos estranhamente mãe durante todos estes anos. Fora a bronca bro dos meus irmãos. Durante onze dias quando
quietos e eu só ouvia a respiração. Era uma res- que tomei por ter trazido a bolsa dela. Cena a minha mãe esteve presa, eu botava maiô, saía
piração muito difícil por causa do capuz. Tinha que relato a seguir. de casa, dizia para o meu avô que estava indo à
um colchonete pequeno e imundo no chão. praia (porque meu avô, pai da minha mãe, é um
Acho que dormi e acordei várias vezes. “Fui colocada novamente italiano Facciolla, completamente histérico e
não podia saber o que estávamos fazendo), pela
O dia amanheceu com a música do Rober- nesta espécie de corredor praia eu caminhava até o final do Leblon, onde
to Carlos “Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus polonês, com a venda, mas era o apartamento do Bocayuva Cunha.
Cristo eu estou aqui…”. Achei aquilo grotesco.
Já não tinha mais ninguém deitado em fren- minutos depois a tortura Lá, alguns amigos dos meus pais se reuniam
todos os dias pela manhã e iniciaram uma
te das celas. Alguns guardinhas estavam por
ali, com o quais conversei bastante, apesar do
recomeçou pior do que campanha nacional e internacional de pressão
receio deles. antes. Foi aí que comecei para a soltura de Rubens e Eunice. Foi Raul Ryff
que me ajudou, inclusive, a redigir uma carta
Ah sim, eu sempre esqueço que houve um a ter uma crise de choro contando da minha prisão e pedindo a soltura
terceiro interrogatório, porque estava mor- compulsiva. Já estava dos meus pais. A ideia deles, desse grupo de
rendo de sono. Durante a madrugada eu fui amigos de papai, era tentar divulgar o seques-
interrogada uma terceira vez. De novo foi um quase entardecendo, devia tro de Rubens e Eunice, o mais rápido possível.
interrogatório acho que mais para saber se eu ser cinco, seis horas Uma vez estive com meus avós ao 1º Exército
estava bem, foi uma conversa tranquila. Por no Rio, para levar roupas, objetos de higiene
isto que digo agora que fica claro que papai es- da tarde” para os dois. Os militares não aceitaram tudo,
tava ou já morto ou quase morto. Eles estavam mas pegaram uma ou outra coisa.
recuando de maneira muito rápida, quer dizer, Eu fui solta em 24 horas e mamãe ficou onze
todo ataque que a gente tinha sofrido antes dias presa. Quando eu saí da prisão, me tira- Recentemente, foi encontrada na casa do Ge-
ou que teria sofrido, estava amainando muito ram da cela, com a minha vendinha, e me leva- neral Molinas uma lista em uma página datilo-
rapidamente. ram para uma sala, espécie de sala de saída e grafada de objetos pessoais e livros que teriam
me deram a bolsa da mamãe com tudo dentro. sido levados com papai para prisão. É aí que se
Pela manhã perguntei aos guardas se eles sa- Nesta sala estavam dois militares. Outros dois, confirma a impressão que tinha de que revista-
biam onde estava o meu pai. Perguntei indivi- a paisana e desconhecidos que me ordenaram: ram a casa inteira. Tinha livros, de dez a quinze
dualmente para os dois que estavam de guarda “Agora você sai”. Eu respondi: “Não saio, só livros e, certamente, foi neste momento que o
e vinham me ver. Os dois ficaram assustados. saio daqui com minha mãe, como cheguei”. meu trabalho escolar foi junto.
Conversaram entre eles e a resposta veio: “Acho Morrendo de vontade de sair dali correndo.
Ainda falei: “Porque isso aqui é a bolsa da mi- Quanto aos problemas relatados pelas crian-
que seu pai foi levado lá para cima”. Depois o
nha mãe, se ela souber que eu estou saindo ças presas, eu também tive um estresse muito
outro falou: “Acho que ele estava muito mal,
com a bolsa dela com tudo dela, inclusive ci- grande. Devia ter entre 24 a 25 anos de idade.
mas eu não posso dizer mais nada”. Então per-
garro, ela não vai gostar”. “Não vou sair, não Logo após o acidente do meu irmão Marcelo,
guntei para um deles sobre Eunice: “Quero sa-
saio”. Eles: “Vai sair”. Eu, “Não vou sair”. que o deixou tetraplégico. Acho que foi o único
ber onde está minha mãe. Você a viu?”
momento em que não aguentei e alguma coisa
Ele foi confabular com o outro e veio com a Ainda tentei negociar deixar cigarros e ou- disparou dentro de mim. Foi quando fiquei de-
resposta. Contou que minha mãe estava duas tras coisas, mas não deixaram. Colocaram a lirando por uns dois dias, consciente, tanto que

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Carta escrita por Eliana Paiva a partir
da proposta do jornalista Raul Ryff para
divulgação nos meios políticos e na
imprensa nacional e internacional. Raul
recusei os remédios que me davam. Mas pas- que torturaram já se sabe. Os torturadores pre- era assessor de imprensa do Jango.
sou como veio. Porém, por mais estranho que cisam ser identificados, sim. Mas é necessário
pareça o que veio nesses delírios foi a memória que a história seja contada, porém vários fatos
de judeus e holocaustos que eu não deveria ter, ainda faltam ser apurados.
porque eu não sou judia.

A explicação disso me parece meio óbvia: eu


leio muito, histórias existem de todos os tipos,
MARIA ELIANA FACCIOLLA PAIVA nasceu em 1º de junho
entre textos e imagens, sobre os campos de de 1955. Segunda de cinco filhos de Rubens Beyrodt Pai-
concentração nazistas. Foi esta a única referên- va e Maria L. Eunice Facciolla Paiva. Professora universi-
cia objetiva que tinha quando tentei entender tária, Jornalista, Editora de Arte. Possui Licenciatura em
o que eu sei, li, vi, ouvi, senti e pensei no DOI- Educação Artística, com Habilitação em Artes Plásticas
pela ECA - USP. Mestrado em Ciências, Curso Ciências da
-CODI. Eu pelo menos entendi que estava em Comunicação pela ECA - USP. D.E.A. (Diplôme d’Études
um campo de concentração ali dentro. Seques- Approfondies) em Estéticas, Tecnologias e Criação Artís-
trada, maltratada e politicamente excluída. ticas no Departamento Artes e Tecnologias da Imagem
(A.T.I.) e Departamento de Artes Plásticas pela Univer-
Para concluir, acho importante saber onde sité Paris VIII. Doutorado em Ciências da Comunicação,
foram parar os restos mortais de meu pai. Por- área Jornalismo pela ECA - USP. Concluiu Pós-doutorado
pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do
que todos têm o direito de saber o que aconte- Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisadora/colaborado-
ceu. Já que a morte foi apurada. É preciso que ra da Linha de Pesquisa Design, Comunicação, Cultura
as Comissões da Verdade insistam em saber e Artes Departamento de Design e Artes da Pontifícia
onde estão os restos mortais. Quem foi que o Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), como
integrante do “Grupo Barthes: estudo dos aspectos sub-
matou não interessa tanto como saber onde jetivos envolvidos nos processos de configuração e de
estão seus restos mortais. Que assassinaram, recepção de objetos de uso e de imagens”.

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1
Álbum de família
1. Marcelo, Ana Lucia, Vera, Beatriz e
Eliana na casa da família na alameda
Tietê, São Paulo
2. Eliana Paiva, na Argentina, na volta
do pai do exílio
3. Eunice, Beatriz, Ana Lucia no
colégio Sion, Rio de Janeiro
4. Rubens e Beatriz na casa da rua
Delfim Moreira, Leblon, Rio de Janeiro
5. Rubens e Marcelo na mesma casa
6. Eliana, Marcelo, Beatriz, Vera, Eunice
e Ana Lucia logo após a prisão na casa
da rua Delfim Moreira, Leblon,
Rio de Janeiro
7. Ficha de Rubens em prontuários dos
órgãos de repressão

3 4 5

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6

Aires, conseguiu pegar um voo para São Pau-Pau Ma Lucrécia Eunice Facciolla Paiva
lo, seguindo para a casa de sua família, decidi-
decidi nasceu no Brás, em São Paulo, em 7 de novembro de
do a não mais sair do Brasil. Mudou-se com a 1929. Filha de imigrantes italianos, estudou no Colé-
família para o Rio de Janeiro, voltou a exercer gio Notre Dame de Sion.
a engenharia e a cuidar de seus negócios, mas man-
man
Rubens Beyrodt Paiva nasceu em Santos tendo contato com os exilados. Conheceu Rubens aos 17 anos, através de Maria, irmã
em 26 de dezembro de 1929. Filho de Jaime Almei- caçula de Rubens. Eunice e Rubens casaram-se com
da Paiva, advogado, fazendeiro do Vale do Ribei- Em 20 de janeiro de 1971 estava na sua casa quando
a mesma idade, aos 23 anos, em São Paulo, em 30 de
ra e despachante do Porto de Santos, e de Araci foi sequestrado por agentes da repressão. Foi apre-
maio de 1952. Formada em Línguas Neolatinas, pela
Beyrodt. sentada na época uma versão oficial e falsa sobre
Faculdade de Letras da Universidade Mackenzie, no
seu desaparecimento que afirmava que seu carro
Era engenheiro formado pela Universidade Ma- início da década de 1950; pela mesma universidade,
havia sido atacado por indivíduos desconhecidos e
ckenzie, em São Paulo, em 1954. Militou no movi- completou seu bacharelado em Direito, em 1977,
que, a partir dali, nunca mais havia sido visto. Esta
mento estudantil. Foi presidente do centro acadê- quando foi paraninfa de sua turma. Teve cinco filhos:
versão só foi publicamente desmascarada no ano
mico da universidade e vice-presidente da União Vera Silvia (setembro de 1953), Maria Eliana (junho de
de 2014, com documentos e depoimentos coleta-
Estadual dos Estudantes de São Paulo. 1955), Ana Lucia (fevereiro de 1957), Marcelo Rubens
dos pela Comissão Nacional da Verdade, com con-
Em outubro de 1962 foi eleito deputado federal por (maio de 1959) e Maria Beatriz (agosto de 1960).
firmações de agentes que assumiram participação
São Paulo, na legenda do Partido Trabalhista Brasi- e esclareceram as circunstâncias da tortura, morte Foi detida no dia 20 de janeiro de 1971, com sua filha
leiro (PTB). Teve seu mandato cassado no dia 10 de e ocultação do cadáver de Rubens. Eliana, mesmo dia do desaparecimento de Rubens
abril de 1964, um dia antes da edição do AI-1. Em sua homenagem, a Comissão da Verdade do Paiva. Sua filha foi libertada no dia seguinte, mas
Exilou-se na Iugoslávia e depois na França e, duran- Estado de São Paulo, instalada em 2012, assumiu Maria Lucrécia permaneceu presa por doze dias, in-
te a escala de uma viagem que fazia para Buenos seu nome, como forma de resgate de sua memória. comunicável.

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por Ernesto José Carvalho

Queria parabenizar o deputado Adriano dante. Eu nasci em janeiro de 1968 e o Che Neste dia, minha mãe foi presa e o Dimas
Diogo e todas as pessoas envolvidas nessa [Guevara] tinha morrido em 1967. Isso foi, Casemiro assassinado.
luta. Acho que a nossa geração tem a obri- inclusive, tema de discussão dentro da orga-
gação política e moral de passar a história a nização política, se o meu nome poderia ser Eu e meu irmão assistimos a tudo e em
limpo, como a geração de 1968 teve a obriga- esse ou não. Porque eles tinham medo, os seguida fomos levados para a OBAN. Che-
ção de resistir à violência do Estado. cartórios estavam sendo vigiados e o meu gando lá, tem um detalhe dolorido, mas im-
pai nessa época já vivia na clandestinidade. portante de se falar, porque dá um pouco
Eu sou filho de um operário que se chama a dimensão não só da violência física, mas
Devanir José de Carvalho, morto em abril Quando eu entendi a história, já na Euro- também moral. Alguns policiais estavam
de 1971. A versão oficial é que ele resistiu à pa, comecei a usar o Guevara. Até meus tios usando os objetos pessoais do meu pai,
prisão no dia 5 de abril e acabou sendo mor- e as pessoas mais próximas me chamavam como uma jaqueta e um relógio. Enfim, de
to em conflito. Meu pai era mineiro, de onde de Guevara, de Che, de comandante e come- lá, fomos entregues aos meus avós e minha
saiu no meio da década de 1950. Foi morar cei a usar, mas nunca me preocupei em ir ao mãe ficou trinta dias presa. Quando ela saiu,
no ABC com meus tios e meus avós, come- cartório e mudar o nome nem nada. Hoje, foi montada uma operação para sairmos do
çou a trabalhar como metalúrgico, era ferra- muita gente me conhece pelo Guevara. Eu país e fomos para o Chile. E nós montamos
menteiro e se envolveu nas lutas sindicais apresento um programa de TV e uso o nome uma operação, na qual eu, meu irmão e um
do ABC, na formação do sindicato e depois no GC de Ernesto Guevara. Eu tive o nome companheiro chamado Caio Venancio, tam-
ingressou no Partidão. Dali foi para a Ala roubado por conta dessa história. bém tínhamos a tarefa de entrar na embai-
Vermelha e depois o Movimento Revolucio- xada da Argentina, que era o único lugar
nário Tiradentes, que é o MRT, organização onde poderíamos ficar. Vários companhei-
que ele liderava. “Chegando lá, alguns ros brasileiros já estavam lá. Conseguimos
policiais estavam entrar numa ação violenta, na qual o Caio
Quando cheguei aqui e vi esse seminá- acabou sendo ferido. Ficamos lá três uns ou
rio “Infância Roubada”, fiquei refletindo um usando os objetos quatro meses.
pouco sobre isso. E quando a assessoria pe- pessoais do meu pai, Chegamos na Argentina no final de 1973,
diu meu nome para preencher a plaquinha,
passei o meu nome de registro. Na hora de
como uma jaqueta eu já estava com 5 anos. Muitos brasileiros
passar o meu nome, sempre tenho esse pro- e um relógio” foram para lá, inclusive os meus tios pater-
nos, Daniel [José de Carvalho] e Joel [José
blema, penso numa parte roubada da minha
infância. Uma das coisas que foram rouba- de Carvalho], que eram militantes e são
Quando o meu pai foi morto, em abril de desaparecidos. Lá, a gente vivia aparente-
das da minha infância foi o meu nome.
1971, eu tinha 3 anos e meu irmão, Carli- mente numa certa tranquilidade, apesar de
O meu nome de registro é Ernesto José nhos, tinha 7. Nós morávamos na Zona Sul vivermos em um local específico separado
Carvalho, mas era para ser Ernesto Guevara e meu pai foi capturado no Tremembé, Zona pela ONU para os refugiados. Havia um cli-
José de Carvalho, que era uma homenagem Norte de São Paulo. Logo depois disso, fo- ma de terror porque a operação Condor já
que meu pai estava prestando ao coman- mos morar num aparelho, que foi invadido estava a todo vapor e o governo brasileiro
pela polícia dez dias depois. Então houve tinha uma estratégia de atrair os refugia-
Ernesto e Carlos Alberto, São Paulo, 1971 um tiroteio e morreram mais duas pessoas. dos, por meio de emboscada. Foi isso que

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aconteceu com os meus tios, Daniel e Joel, Eu continuo tendo isso. Tenho 45 anos, já Esse embate causa incomôdo e acaba rou-
na Argentina. Eles foram atraídos por uma vivi quase vinte anos a mais do que o meu bando uma parte da sua vida, porque ele não
emboscada feita por “cachorros”, que eram pai viveu, já sou avô e continuo tendo essa é só ideológico. Talvez ele seja muito mais
militantes que tinham passado para o outro questão de talvez maximizar um pouco, car- emocional do que ideológico.
lado e tinham a tarefa de ir até onde estavam regar na tinta. Por exemplo, eu até ia fazer
os refugiados nos países do Cone Sul e con- um ato simbólico de escrever Guevara no Eu sou músico e já tive dificuldades de tra-
vencê-los a voltar. meu nome aqui embaixo, porque é mais um balhar por conta do meu nome, apesar de meu
ato afirmativo. trabalho ser muito mais voltado para essa his-
Meu pai morreu com 27 anos, e meus tios “Cresci em cima dessa tória. Eu tenho um espetáculo que se chama
com 20 e poucos também. Canções da Resistência, que conta essa histó-
crença, dessa firmeza ria por meio da música e de depoimentos, da
A minha memória fica muito clara a par- ideológica, esse orgulho apresentação do filme 15 filhos, e isso natural-
tir da nossa chegada no Chile. No Brasil, mente acaba tendo provocações, discussões.
quando eu tinha 3 anos, por exemplo, não que a gente tem da Continuamos tendo fases, energias roubadas
me lembro de nada da figura do meu pai, história do meu pai, por conta dessa história toda.
não me lembro de nenhum momento com
ele. Até para reconstituir a imagem dele eu dessa geração” Esses dias o cantor Lobão, que é de praxe
levei muito tempo, porque nem fotos a gente falar algumas besteiras, (ele já disse que a
tinha. Temos uma foto dessa época em que Quando eu era mais novo, já tive proble- ditadura arrancou umas unhazinhas) disse
ele está distante, é a única e última foto que mas ao dar entrevista para a imprensa bur- numa entrevista que ele queria que as víti-
temos com ele: estamos eu, meu irmão e ele. guesa e os caras me provocarem com essa mas da ditadura se “fodessem”.
questão do nome, questionando se não seria
Acho que essa parte roubada da nossa vida oportunismo meu. Como eu sou músico, A gente continua tendo uma parte da nos-
tem um significado muito grande. Quando já ouvi provocações de várias formas, mas sa vida roubada nessas agressões no campo
nós chegamos ao Chile, à Argentina e a Por- o que eu faço, apesar de também ser fã do ideológico. As forças que deram o golpe mili-
tugal, eu convivia com pessoas que tinham comandante Guevara, é mais uma home- tar em 1964 continuam exercendo seu poder
a mesma afinidade ideológica que os meus nagem à escolha que o meu pai fez. Nesses na democracia. E do ponto de vista pessoal
pais. Cresci em cima dessa crença, dessa fir- momentos, eu vivo dizendo que tenho orgu- é um desgaste enorme ouvir um cara como o
meza ideológica, desse orgulho que a gente lho enorme da história do meu pai, dos meus Lobão que na minha geração foi muito ouvi-
tem da história do meu pai, dessa geração. tios, e de todos que resistiram ao golpe de do, contestador dizendo um absurdo desse.
Mas quando voltei ao Brasil, em 1979, ainda 1964, de toda essa geração. Nem sei se a
vivíamos sob a ditadura e eu fui morar com gente teria essa capacidade, se a minha ge- Meu pai tinha quatro irmãos: Daniel e Joel
a família dos meus avós maternos e tios, em ração teria essa capacidade, mas sou um de- estão desaparecidos desde 1974, o Jairo que
Diadema. Para mim foi um choque. Eu tinha fensor, inclusive dos atos mais extremos que era o caçula e o Derly que era o mais velho.
até um tio do outro lado, que era milico. Che- essa geração tomou, como a luta armada. Eu O Derly mora aqui no ABC Paulista, voltou
guei e as pessoas me tratavam como filho acho que essas situações são completamen- do exílio em 1981, 1982 salvo engano, mora
de bandido. Inclusive na escola, logo que eu te justificadas, a violência era do Estado, e no ABC. O Jairo, caçula, acabou casando na
cheguei, comecei a ter problemas, porque a não dessa geração, que estava resistindo a Europa, constituiu família e não conseguiu
história que eles contavam não era a mesma uma violência, que foi o golpe. voltar de vez para o Brasil até hoje. Meu ir-
história que eu conheci e concordava. mão é professor de história.
Essa questão que a gente carrega, de pro-
Então, quando meu tio mais velho que mover as ações afirmativas em defesa da Nós recebemos o pedido de perdão do Es-
também foi refugiado [Derly José de Carva- memória dessas pessoas, eu continuo ten- tado brasileiro e fiquei emocionado em rece-
lho] voltou ao Brasil, em 1982, aí eu comecei do problemas com isso. Hoje, a internet é ber o pedido de perdão feito pelo ministro
a ter uma referência diferente da que eu esta- um campo democrático, para o bem e para José Eduardo Cardozo, que é um cara que
va tendo. Então eu acho que a nomenclatura o mal, então a gente ouve barbaridades. Na eu adoro e é um companheiro. Quando che-
deste seminário é muito, pelo menos para minha página do facebook eu faço questão guei a Brasília e entrei no Ministério da Jus-
mim, pertinente. de ter o meu nome, a história do pai. Outro tiça e veio o José Eduardo, pensei: “Puxa, a
dia recebi uma provocação na minha página gente mudou mesmo, o país está muito me-
Eu acho que a Eliana [Paiva] falou um do twitter. Até mudei a apresentação. A per- lhor”. Lá em Diadema tem uma escola linda
pouco dessa estratégia que a gente tem na gunta é “Quem você é?”. Eu coloquei: “Sou com o nome do meu pai, tem rua no Rio de
adolescência, na infância, de ter uma defesa. Ernesto Guevara, sou filho de guerrilheiro”. Janeiro e aqui em São Paulo.

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E acho que os torturadores têm que ser pu-
nidos. E não é por revanchismo. Uma vez eu
dei uma entrevista e disse que não me inte-
ressava conhecer o algoz do meu pai, o cara
que foi lá e o assassinou. A gente até sabe
disso, mas eu disse que o problema era o
sistema, não indicar a pessoa. Mas isso não
quer dizer que eu não ache correto que essas
pessoas tenham a sua punição. Uma coisa
que eu aprendi, com a história do meu pai,
é que a luta não pode ser uma coisa pessoal
porque estamos falando de um projeto polí-
tico, de luta de classes. Na verdade, eu torço
para que todos eles fiquem vivos até a ve-
lhice extrema e possam ver triunfar um país
mais justo, fraterno e democrático, sonho da
geração do meu pai e que esses facínoras
mataram, torturaram e roubaram, para que
o sonho não se realizasse, e o pior castigo
seria assistirem à vitória da classe trabalha-
dora.

O modus operandi que a polícia usa hoje


é o mesma. A polícia hoje, no Estado demo-
crático, continua achando que o método de
investigação mais eficiente é a tortura e isso
é uma herança que a gente recebeu, que o
regime militar deixou.

ERNESTO JOSÉ CARVALHO nasceu em 31 de janeiro de


1968, filho de Devanir José de Carvalho e de Pedrina José
de Carvalho, é músico.

Ernesto, Carlos e Pedrina em uma praça de São Paulo, 1970

“Uma coisa que eu aprendi


com a história do meu pai, é
que a luta não pode ser uma
coisa pessoal porque estamos
falando de um projeto
político, de luta de classes”

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Devanir José de Carvalho nasceu em Muriaé 1

(MG), em 15 de julho de 1943, filho de Ely José de Carvalho


e Esther Campos de Carvalho. Assassinado em 7 de abril
de 1971, em São Paulo, foi dirigente do Movimento Revolu-
cionário Tiradentes (MRT). Casou-se com Pedrina José de
Carvalho, com quem teve dois filhos, Carlos e Ernesto.
Nos anos 1950, seus pais se mudaram para São Paulo em
busca de melhores condições de vida. Ele e seus irmãos, 1. Devanir e seus irmãos Jairo,
Derly, Joel, Jairo e Daniel, foram trabalhar no ABCD pau- Derly, Joel e Daniel, quando
crianças. Todos tornaram-se
lista no início da instalação das indústrias metalúrgicas militantes
e automobilísticas. Ainda adolescente, aprendeu com o
2. Daniel, Jairo e sua então
irmão mais velho o ofício de torneiro-mecânico e desde esposa, a chilena Laura, grávida,
então passou a trabalhar nas indústrias da região, como e Joel. Foto tirada no Chile pouco
Villares e Toyota. antes do golpe de Pinochet, 1973
3. Devanir, São Paulo, 1968
Em 1963, ajudou a fundar o Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo e Diadema, participando ati- 4. Devanir com operários na
Toyota, São Paulo, 1963. Ele
vamente de sua organização e da realização de greves. In- é o terceiro da direita para a
gressou no PCdoB e, após o golpe de 1964, mudou-se com esquerda
a família para o Rio de Janeiro (RJ), onde passou a traba-
lhar como motorista de táxi. Em 1967, começou a militar 2
na Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB, voltando para
São Paulo (SP). Em 1969, desligou-se da Ala Vermelha e,
com outros companheiros, fundou o MRT em outubro da-
quele ano.
3
Devanir fez treinamento de guerrilha na China, participou
e comandou inúmeras ações armadas contra a ditadura.
Ele e Eduardo Collen Leite, o Bacuri, dirigente da Rede
(Resistência Democrática), deram início ao que viria ser
depois a Frente Armada Revolucionária, junto com a VPR
ao realizar o sequestro do cônsul-geral do Japão em São
Paulo (SP), Nobuo Okuchi, em março de 1970, quando cin-
co prisioneiros políticos e três crianças foram trocados
pelo diplomata.
Documento do Serviço de Informação do DOPS/SP infor-
ma que em “[…] 5/4/71 - 11h00 - 9:50 hs o terrorista Devanir
José de Camargo [sic], ocupando o Volks, cor azul, chapa ‘fria’
AE-3248, portando metralhadora, manteve tiroteio com po-
liciais, que resultou ferimentos graves no terrorista que não
resistindo aos ferimentos morreu”. Segundo a requisição
de exame necroscópico, foi morto em via pública na rua
Cruzeiro, 111.
Conforme o depoimento de Ivan Seixas, ex-preso político
e militante do MRT à época, Devanir foi capturado feri-
do nessa Rua Cruzeiro, 111, no bairro do Tremembé, Zona 4
Norte de São Paulo, quando tentava resgatar um compa-
nheiro e sua família que moravam nesse endereço. Leva-
do vivo para o DOPS/SP, Devanir foi torturado até a morte
durante três dias seguidos

Pedrina José de Carvalho conheceu Devanir


em Diadema (SP), no começo da década de 1960. Em 1963
casaram-se e tiveram dois filhos, Carlos e Ernesto Gueva-
ra, nascidos em 1964 e 1968, respectivamente. Em 1969, a
família entrou para a clandestinidade. Viveram em várias
casas e não podiam receber nem visitas familiares. A fa-
mília ficou junta até a morte de Devanir, em 1971.
Dias depois do assassinato, Pedrina chegou a ser presa
nas dependências da Operação Bandeirante (OBAN) por
um mês. Após a prisão, passou a ser perseguida pela dita-
dura. Exilou-se com os filhos. Primeiro foi para o Chile, de-
pois para a Argentina, passou por Portugal e retornou ao
Brasil depois da Lei de Anistia promulgada em 1979. Teve
mais dois filhos. Hoje, vive em Diadema (SP).

174 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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7

5. Devanir e Carlos, São João Clímaco (SP), 1969


6. Carlos andando de bicicleta, São João
Clímaco (SP), 1969
7. Maria José Pereira Rezende e Pedro
José Rezende, avós maternos do Ernesto
Seu avô era também militante comunista
8. Carlos e Pedrina, Argentina, 1974.
A menina na foto não foi identificada
9. Ernesto, Carlos e, ao fundo, a avó Maria
e Pedrina, Buenos Aires, Argentina, 1974
10. Carlos, Ernesto, Pedrina e Isaura Coqueiro
na casa dos pais do Devanir, São Bernardo
do Campo(SP), 1971
11. Ernesto e Carlos em uma praça em
Portugal, 1976

10 11

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“Foi muito terrível para meus filhos”
por Pedrina José de Carvalho

Meu marido, Devanir José de Carvalho, era militante


desde a época do sindicato. Ele começou fazendo reuniões,
ações, manifestações. Até esse momento, nós sabíamos
o que estava acontecendo. Fomos para o Rio de Janeiro,
onde ficamos morando por um tempo. Ele era militante do
PCdoB. Depois, voltamos para São Paulo, onde ele entrou
na Ala Vermelha. [Em 1969, desligou-se da Ala Vermelha
e, com outros companheiros, fundou o Movimento Revo-
lucionário Tiradentes (MRT) em outubro daquele ano]. O
Carlos, meu filho mais velho, nasceu um pouco antes do
golpe, em 2 março de 1964. E o Ernesto nasceu em 1968.
Em 1964, nós estávamos morando em São Paulo. E a
militância do Devanir era tranquila. Ele participava de
reunião na casa de um, de outro. Quando houve o golpe,
eu estava de dieta do Carlos e tive que ir à casa do Derly
[irmão de Devanir] para tirar as coisas dele de lá. Como
ele era diretor do sindicato, houve intervenção e ele teve
que fugir para não ser preso.
Devanir trabalhou nas empresas Villares e Toyota. Em
1969, a coisa ficou mais complicada, porque companhei-
ros começaram a ser presos e ele teve que entrar na clan-
destinidade. Na nossa vida, o que mudou com a entrada
na clandestinidade foi que os garotos não podiam mais
ir à escola, só se fosse com documento falso. O Carlos só
pôde ir para a escola quando nos mudamos para o Chile,
já aos 7 anos. Nesse período de clandestinidade, mesmo
sem eles poderem ir à escola, eu procurava ter uma vida
normal. O Devanir participava de reuniões, saía para fazer
ações, mas a gente não sabia onde eles estavam.
Quando os irmãos do Devanir foram para o Chile [Der-
ly, Daniel, Joel e Jairo foram presos em maio de 1969, fi-
caram incomunicáveis durante o mesmo período. Foram
libertados (e banidos) em janeiro de 1971, em troca do em-
baixador suíço Giovanni Enrico Bucher] até os advogados
diziam que era para o Devanir ir embora. Mas ele dizia:
“Eu não vou desbundar. Se você quiser ir embora com os
meninos, tudo bem, mas eu não vou”. Eu disse: “Não, tudo
bem”. E fiquei até o final.
Desde que entramos na clandestinidade, em 1969, mui-
ta coisa mudou. Ficamos afastados da família. Eu não po-
dia visitar meus pais, apenas tinha notícias. Moramos em
vários lugares. Foram umas cinco casas. Nos mudávamos
a toda hora e quando algum companheiro era preso, tínha-
mos que sair das casas só com a roupa do corpo e docu-
mento. Ficamos juntos até sua morte, em 1971.
O Carlos era o filho mais velho, então ele percebia mais
o que se passava. Meus filhos não tinham muito contato
com outras crianças, só em 1970 quando eu comecei ter
amizade com uma vizinha e as crianças passaram a brin-

Pedrina em Portugal, 1976

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car no quintal com os filhos dela. Na nossa casa, veram muita sorte de termos pegado eles na rua Entrei no ônibus apavorada e saí pelo Paraguai,
tínhamos muitos documentos de militância. As [estavam falando do Dimas, que tinham matado]. com as duas crianças. Chegamos em Assunção e
crianças tinham acesso normal ao local onde os Se não, não íamos poupar nem as crianças”. só conseguimos passagem para o dia seguinte.
documentos ficavam, mas os vizinhos não. Então, Meu medo era levarem as crianças para o jui- Passamos a noite sentados em um banco da ro-
ninguém de fora podia vir na nossa casa. zado, mas deixaram eu ir até a casa da minha so- doviária. Foi uma viagem muito difícil.
Também não podíamos ir ver nossas famílias. gra para deixar as crianças lá, antes de ser levada Quando chegamos no Chile, estavam todos da
Um dia, em 1970, fomos de madrugada para visi- para a Operação Bandeirante. família do Devanir. O Joel, o Daniel, meus cunha-
tar os pais do Devanir. Acho que foi a última vez Nos interrogatórios, faziam tortura psicológi- dos. Foi uma época tranquila, uma beleza, eu pude
que a mãe dele o viu. ca, ameaçavam buscar meus filhos, alegando que trabalhar… Se não fosse o golpe do Pinochet, acho
A notícia da prisão dele chegou da seguinte assim e eu iria falar. E eu dizia “não tenho nada que eu nem voltava. O golpe foi terrível, vi aviões
forma: nós tínhamos um ponto de emergência. para falar”, dizia que quem tinha os contatos era fazendo bombardeios... vi tanques de guerra.
Caso ele não chegasse em casa até tal hora, é por- meu marido. Eles falavam que iam me levar ao Nos refugiamos na embaixada da Argentina,
que havia sido preso e não iria voltar. Então eu te- Rio, me colocaram num carro, rodaram comigo onde ficamos por uns quatro meses. Lá os me-
ria que ir encontrar um companheiro às nove da pela cidade, me deixaram sentada numa praça ninos pegaram piolho, nós passamos fome. E
manhã, do dia seguinte, em Santo Amaro, onde para ver se alguém vinha. Fiquei presa por um também pegamos um terremoto. A embaixada
tem a estátua do Borba Gato. Como ele não apa- mês e saí de lá pesando 54 quilos. Eles me diziam tremeu feio. Então fomos morar na Argentina.
receu, eu fui para esse lugar e encontrei o Dimas “olha como você está acabada”. Nos refugiamos na embaixada da Argentina,
[Antônio Casemiro, companheiro de or- onde ficamos por uns quatro meses. Lá
ganização de Devanir]. Era dia 6 de abril os meninos pegaram piolho, nós passa-
de 1971. Nessa hora eu já imaginei que o mos fome. E também pegamos um ter-
Devanir tinha sido preso. O Ivan [Seixas] remoto. A embaixada tremeu feio. Então
também estava nesse ponto. Nem volta- fomos morar na Argentina. Lá, para os
mos para casa, fomos direto para a casa meninos, acho que o melhor período foi
do Dimas, com apenas uma peça de rou- quando ficaram juntas crianças brasilei-
pa. Lá ficamos até dia 17, quando Dimas ras, uruguaias, chilenas, depois do golpe
foi morto. Depois disso, os companhei- do Chile na Argentina. Chegamos a fi-
ros foram até a nossa casa, porque nós car um ano na Argentina. Minha mãe foi
havíamos deixado tudo por lá. Os meni- duas vezes nos visitar lá.
nos sentiam o clima, ficavam quietinhos Depois resolvemos ir para Portugal
sabendo que tinha alguma coisa errada. por causa da língua. Fomos em 1974,
Eu falava, “calma, vai dar tudo certo”. Jairo e eu. A mulher dele já estava lá. Lá
No período que ficamos na casa do eles se soltaram, pegavam bonde, ôni-
Dimas, o pequeno Ernesto perguntava bus, andavam sozinhos, iam ao cinema.
do pai a toda hora e a gente dizia: “O pai Roberto, Pedro Gil, Ernesto e Carlos, na casa da Pedrina, Diadema (SP), 2010 E eu relaxei, ia para a praia com eles. Fi-
viajou” para ele se acalmar. Mas o Carlos, camos morando lá de 1974 a 1978. Mas eu
que já estava maior, entendia, ficava triste e que- tinha muitas saudades do Brasil. Eu ouvia Chico
No período em que estive presa, embora eles
ria vingar a morte do pai. Buarque e sentia uma saudade…
nunca tenham falado nada, imagino que o Carlos
A notícia da morte do Devanir chegou quando e o Ernesto tenham sofrido muito. Foi muito terrí- Quando cheguei ao Brasil, fiquei quatro horas
estávamos na casa do Dimas: “Terrorista morto”. vel para eles. O Carlos ajudou a cuidar do Ernesto. sendo interrogada no aeroporto. Minha mala foi
Foi muito difícil. Eu dizia para os meninos: “Vai revirada, queriam saber como eu tinha documen-
Fiquei presa durante um mês e quando fui sol-
ficar tudo bem, vamos ficar na casa da vó, têm os to, se alguém havia me dado. Minha mãe ficou
ta, todas as terças-feiras eu tinha que ir à OBAN
tios no Chile, nós vamos para lá”. apavorada, toda a minha família estava me espe-
assinar um papel. Eu não aguentava mais. Eu não
Eu fui presa no dia que mataram o Dimas. Eu rando. Também chegaram a ir na minha casa.
tinha mais vontade de ficar no Brasil. Um dia, a
tinha 25 anos. Estava na casa dele com as crian- Isaura Coqueiro me disse que um companheiro E a readaptação foi muito difícil, principalmen-
ças e foi terrível. Os homens disseram que iam da ALN falou: “Diga à Pedrina que se ela quiser ir te para o Carlos, porque não aceitavam o boletim
levar meus filhos para o Juizado de Menores e eu para o Chile tem um pessoal lá esperando por ela”. dele. Hoje ele é um professor, um bom professor.
disse: “Não! Ele tem avós dos dois lados”. Resolvi ir embora, mas não podia falar para O Ernesto canta músicas de protesto, faz shows
Nesse dia, o Dimas saiu junto com o Gilberto ninguém, nem para a minha mãe. Disse à ela: nas escolas e conta a história do pai. O Ernesto
Faria Lima e eles falaram: “A janela fica aberta, “Estou pensando em ir para Cachoeira Paulista, também jogava bola, foi até técnico de futebol.
qualquer coisa vocês fecham”. E a Maria Helena, na casa da vó”. Ela disse: “Ah, é bom mesmo, vá, Aqui retomei a vida, fui trabalhar, arrumei um
mulher do Dimas, estava saindo com o filho de- sim”. Arrumei uma mala e fomos pra a rodoviá- companheiro. Em Portugal também tive um com-
les quando os homens chegaram. Foi um susto. ria. Chegando lá, tinha um cara de bigode. Logo panheiro com quem tive um filho. O companhei-
Quando eu escutei uma voz diferente, corri para o o reconheci. Era um policial. Não sei o nome, mas ro não quis vir para o Brasil, mas meu filho veio
quarto para fechar a janela. Mas eles acharam que era da OBAN. Ele me perguntou: “Está fugindo, comigo. Tive mais um filho com meu atual com-
eu ia pegar uma arma que estava no quarto. Acho Pedrina?”, e eu respondi “Não, estou indo para a panheiro, Roberto. Tenho quatro filhos: Carlos,
que eram cinco homens. Eles disseram: “Vocês ti- casa da minha avó”. Ernesto, Pedro Gil e Roberto.

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O ídolo que não tinha rosto
por Ieda Akselrud de Seixas
sobre Irineu Akselrud de Seixas

Eu não sou a criança atingida. Fui presa, Em meados de setembro, meu pai foi ex- neiro, para a casa da tia Anita, que era irmã
mas tinha 23 anos na época dos aconteci- purgado e a família teve que fugir para Porto de minha mãe Fanny, porque estou achando
mentos. Mas falarei em nome do meu irmão Alegre, passando por várias barreiras milita- que a coisa está muito tensa aqui”. Ele tinha
Irineu Akselrud de Seixas, que tinha 10 anos res. O Irineu tinha de 3 para 4 anos quando o 9 anos e acharam melhor levá-lo. Havia uma
quando os fatos aconteceram. golpe aconteceu. sensação de perigo e de medo. Ele foi para o
Rio Janeiro, e nós ficamos aqui em São Pau-
Éramos uma família de quatro filhos. Meu lo, onde eu, minha irmã e minha mãe fomos
pai era uma pessoa extremamente afetiva, presas, em 16 de abril de 1971.
muito entusiasmada, principalmente com a
causa política, e externava o afeto dele pelo A minha tia, ao dar a notícia da morte do
toque, caso raro de nortista filho de nordes- meu pai, foi absolutamente inadequada. Ela
tino que beijava os meus amigos homens. Já deu um comprimido de calmante para ele e
minha mãe era uma pessoa que só beijava disse: “Seu pai foi assassinado e eu não sei
os filhos até os 5, 6 anos. E depois disso ela onde está sua família”. Isso para uma criança
externava o afeto por gestos, fosse fazendo de 10 anos! Logo depois de receber a notícia,
aquela comida que a gente gostava, fosse Irineu foi tomar banho. No chuveiro, come-
torcendo por qualquer vitória nossa ou nos çou a cantar: “Meu pai não morreu, é menti-
acalentando na hora do fracasso. ra, meu pai não morreu”.
O Irineu foi atingido a partir de 1964. Nós Irineu disse que aquilo foi horrível, porque
morávamos no Rio de Janeiro e meu pai tra- ele achava que era mentira, mas mostraram a
balhava na Petrobrás, pertencia ao sindicato televisão, os jornais, e ele não se conformava.
e era comunista. Com o golpe, meu pai teve
que fugir da refinaria dentro de uma ambu- A partir disso, foi tudo muito confuso para Como disse, fomos presas no dia 16 de
lância. Os funcionários chegavam para tra- ele. Ele conta que tinha a sensação de medo. abril e a nossa incomunicabilidade só foi
balhar e havia uma lista de expurgados por Até a nossa prisão e a morte de meu pai, era quebrada, só fomos visitadas, quando era
serem inimigos da pátria. Eles iam para o uma criança bem-humorada, espirituosa e quase dezembro. Essa perseguição não tem
departamento pessoal, recebiam o dinheiro, alegre. Irineu não entendia muito bem o que lógica. Qual a importância que eu tinha? Eu
assinavam os papéis e para sair da refinaria, acontecia, porque o 1º de abril no Rio de Janei- não era militante, minha irmã não era mi-
via de regra, tinha que ser nos esquemas de ro foi uma coisa muito traumática para todo litante, minha mãe também não. Ficamos
ambulância. Caso contrário, seriam presos. mundo e uma criança poderia intuir, mas não presas durante um ano e meio por crime
compreender o que estava ocorrendo. de pensamento. Já tinham matado o meu
pai, o meu irmão Ivan estava preso e tinha
Em 1969, viemos para São Paulo. Certa apenas 16 anos.
vez, havia alguns militantes que estavam
À esquerda, Irineu com aproximadamente 5 anos em casa e não sei por que o Irineu disse: “Eu Irineu não pôde se avistar conosco. Fica-
Ao centro, com 10 anos preciso, acho melhor eu ir para o Rio de Ja- mos vinte dias na OBAN e depois fomos

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“O Irineu apenas foi se querer voltar ao Tiradentes para que pudésse- Alguém dissera para ele que nós estáva-
mos nos avistar com o Irineu. Uma noite, ao mos quebradas, que tínhamos sido muito
avistar conosco por entardecer, a minha mãe teve uma crise nervo- torturadas e estávamos todos quebradas.
volta de dezembro. sa e começou a gritar: “Quero o meu filho, que- Isso eu acho de uma crueldade com uma
ro o meu filho”. E o Pedro Seelig disse “Traz o criança de 10 anos! Ele disse “Eu só quero
E durante o tempo que Ivan”. E ela: “Mas não é esse filho, quero o ou- ver vocês quando estiverem soltas”.
estávamos presas, ele tro filho”, ele perguntou “Mas onde ele está?”.
O Irineu apenas foi se avistar conosco por
não vinha nos ver com O Pedro Seelig era uma figura estranha, por- volta de dezembro. E durante o tempo que
frequência, porque que ficava condoído com a situação da minha estávamos presas, ele não vinha nos ver com
mãe, não me perguntem o porquê... maluco é frequência, porque estava no Rio de Janeiro.
estava no Rio de Janeiro” maluco, psicopata é psicopata. Ele perguntou: Vinha a cada quinze dias, às vezes uma vez
“Mas onde está o seu filho, que eu mando bus- por mês. Era muito difícil.
levadas para o DOPS. E no dia 9 de julho car?”, ela respondeu “Está no Rio de Janeiro”,
ele disse “Mas lá eu não posso buscar. Ele tem A minha irmã Iara era muito próxima do
transferiram a mim, minha mãe e irmã para Irineu, e um dia ele perguntou a ela, “Como
o presídio Tiradentes. Ivan permaneceu no telefone?”, “Tem”. Aí ligaram para a casa da
minha tia, onde estava o Irineu. E minha mãe é que o pai morreu?”. Ela achou que seria
DOPS. Mas uma semana depois fomos leva- menos dolorido dizer: “O pai morreu em um
das para o Sul, onde permanecemos por cer- falou: “Irineu, é a mãe que está falando”, e ele,
“Não é a mãe, não, é mentira, eu não sei quem tiroteio. Os caras mataram, mas ele também
ca de sessenta dias, escoltadas pela cúpula matou dois”. A Iara achou melhor dizer isso
da OBAN. Nesse período o Irineu não teve é você, não é a minha mãe”. Aí mamãe disse
assim “Zico, é a mãe”, que era o apelido dele. para ele ter uma compensação, porque esta-
notícias nossas. va apartado da família, de tudo, ele não tinha
Em seguida ele começou a chorar e pergun-
Em Porto Alegre, a recepção foi feita pelo tou: “Onde você está, mãe?”, e ela: “Estou em mais casa, não tinha mais referência, e o pai,
Pedro Seelig, que era o diretor do DOPS de lá. Porto Alegre, no DOPS de Porto Alegre”, E que era o ídolo dele, fora morto.
A cela era muito estranha, apertada, não tinha ele respondeu “Eu não quero ver vocês assim, Ficamos presos durante um ano e meio e
espaço para andar. E havia a agonia da gente porque vocês estão todos quebrados”. quando saímos da prisão, o Irineu veio morar
conosco. Mas, de certa forma, foi abandonado,
porque tinha o problema do Ivan. Eu costumo
Joaquim, Fanny e Irineu com meses de vida, em Belém (PA) dizer que nós não ficamos um ano e meio pre-
sas, mas sim quase seis, como o Ivan.
Às vezes, estávamos vendo televisão e, de
repente, aparecia “Lista de desaparecidos”,
que a rede Globo dava, e aparecia o nome
Ivan Seixas. Então tínhamos que andar qui-
lômetros, porque não havia dinheiro para
pegar um táxi, achar um telefone e ligar para
Taubaté [O irmão, Ivan, estava preso na Casa
de Custódia e Tratamento de Taubaté, presí-
dio de segurança máxima, misto de manicô-
mio com penitenciária.], no sentido de saber
como e onde o Ivan estava. E o Irineu ficou
relegado para segundo plano. Ele tinha casa,
comida e roupa lavada, colégio, mas tudo gi-
rava em torno do Ivan.
Tem uma coisa que marca bem o sentimen-
to do Irineu. A minha mãe estava viajando,
não tinha ninguém em casa e ele já não mo-
rava mais lá. Ele foi em casa e disse: “Ieda, eu
vim conversar contigo uma coisa. Tenho um

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problema. Eu só consigo lembrar da imagem E essa falta de proteção para uma crian- acho que a maior vítima foi o Irineu. A infân-
do pai, se eu vir uma fotografia, eu não lembro ça de 10 anos é uma coisa estúpida demais. cia foi perdida, a ponto de ele não lembrar da
da cara do meu pai, eu só lembro da nuca”. Mataram o pai dele, a família toda foi presa cara do pai dele. E o irônico, ou muito bom, é
e ficou muito tempo. A mãe e as irmãs fica- que o Irineu é o retrato do meu pai.
Eu entendi o porquê do “só da nuca”. Por- ram presas um ano e meio. O Ivan ficou cinco
que quando eles fugiram para o Rio Gran- anos e meio, quase seis. E o Irineu ficou sen- O testemunho acima é de Ieda Akselrud de Seixas,
irmã de Irineu.
de do Sul, ele ia sentado no carro atrás do do seguido um ano e meio enquanto estáva-
meu pai. Então, a última lembrança que ele mos presas.
tinha do pai era a fuga em 1964. Ele bloque-
ara tudo. “Não lembro de nada e acho um Quando pôde voltar se juntar à família no- IEDA AKSELRUD DE SEIXAS nasceu em 6 de outubro
vamente, a casa era outra, sem móveis, obje- de 1947 e é trabalhadora aposentada.
absurdo ter esquecido da imagem do pai. Eu
sei que ele morreu em tiroteio”. Ele já tinha tos, brinquedos. Nenhuma referência da vida
20 e poucos anos, não era mais criança. Eu anterior à prisão de sua família. IRINEU AKSELRUD DE SEIXAS nasceu em 29 de julho
de 1960 e é técnico de informática.
disse “Não, Irineu, o pai não morreu em ti-
O que fizeram comigo, minha mãe, irmã,
roteio”, ele: “Como assim?”. Depois daquela
meu pai e com o Ivan foi muito duro, mas eu
conversa que ele teve com a Iara aos 10 anos,
não teve oportunidade de conversar sobre
isso, porque tudo girava em torno do Ivan.
E quando eu disse “Não, o pai foi morto em
tortura”, ele chorou e disse: “Nossa, agora eu
me lembro da imagem dele rindo”.

Depois de tudo, o Irineu ficou uma pessoa


extremamente travada. Está sempre tenso
e, de uma certa forma, afastou-se um pouco
da gente. Recentemente, ele disse: “Eu fiquei
adulto aos 10 anos, quando passei a ter medo,
sensação de perda. Aquilo estava sempre pre-
sente na minha cabeça, porque mesmo quan-
do vocês foram libertadas, eu tinha medo que
vocês fossem presas de novo”. Enquanto o
Ivan estava preso, o Irineu achava que ele se-
ria morto. Ele se sentiu solto no mundo.

Ele disse: “Mesmo quando viemos para


São Paulo com o que sobrou da família reu- “Ai nfância
nida, era muito difícil. Eu não podia contar perdida é uma
para os meus amigos, colegas, quem eu era,
o que era, porque eu tinha medo, medo por realidade.
eles, medo por mim. Era uma sensação de OI rineu
perda, como ter uma espada sobre cabeça e
tinha medo. Só parei de ter medo nas elei- perdeua
ções diretas de 1989. Aí parece que eu pude infância aos
respirar aliviado”.
10a nos.
A infância perdida é uma realidade. O Iri-
neu perdeu a infância aos 10 anos. O olhar
O olhar dele
dele para o mundo era um olhar de adulto. para o mundo
Ele tinha noção exata, consciência de tudo o
que acontecia, da arbitrariedade, da falta de
era um olhar
proteção que existia. de adulto”

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por Ivan Akselrud de Seixas

Meu pai e eu éramos militantes, tínhamos ati- 5, estávamos atentos, porque ele não apareceu que ela podia ter sido invadida. Estava tudo
vidades paralelas. Eu estava ligadíssimo ao gru- nos pontos que tinha conosco. Na terça-feira, tranquilo e entramos. Resgatamos tudo que
po de fogo, do qual ele fazia parte também, mas dia 6 de abril, fui com o Rei [codinome de Di- tinha de valor e colocamos dentro da Kombi.
se dedicava a outras atribuições como dirigente mas Antônio Casemiro] a um ponto que tínha- Eram armas, documentos, mimeógrafos, mate-
da Organização. Ele estava, por exemplo, mon- mos com o Henrique. rial de família, roupas e saímos.
tando uma oficina para construir armas.
Chegando de volta ao aparelho do Rei foi
De manhã, saíamos juntos e cada um ia para “O que eu sabia e fazia muito barra pesada. O Ernesto era o filho me-
um lado para cumprir suas tarefas. Ao final do era diferente do que ele nor do Henrique e da Dina e estava muito ten-
dia, por questão de segurança, nos encontráva- so. O Carlinhos, por ser maior e muito atento a
mos e íamos juntos para casa. sabia e fazia. Eu sabia tudo, estava muito ligado. “Cadê meu pai?, ele
O que eu sabia e fazia era diferente do que muita coisa, fiz muita perguntou. Respondi como pude: “Seu pai foi
para o Rio, cobrir um ponto com o MR-8, mas
ele sabia e fazia. Eu sabia muita coisa, fiz muita coisa. E ele também. volta logo”. Ele colocou as mãos na cintura e
coisa. E ele também. Mas as atividades eram
compartimentadas. Assim, minha mãe não Mas as atividades eram me disse sério: “Eu sei que meu pai caiu. Vo-
cês não precisam mentir para mim. Vocês vão
sabia nem um quinto das minhas atividades.
Minhas irmãs, então, não sabiam de nada. Elas
compartimentadas” prometer uma coisa para mim. Vocês vão pe-
gar quem matou meu pai”. Nós ainda não sa-
viam que eu andava armado com revólver, pis- bíamos se ele estava vivo ou se já o haviam as-
tola, granada e ficavam meio assustadas. Chegando lá, o Henrique não estava e sim a sassinado, mas o filho tinha a certeza que nós
Dina [Pedrina Carvalho], mulher dele, choran- não queríamos assumir. Aí foi difícil segurar.
Nos dias que antecederam nossa queda, do, com óculos escuros, duas crianças e uma
aconteceram muitas coisas. Tinham ocorrido Eu falei: “Tá bom” e me afastei num canto para
sacola. Demos uma volta no quarteirão para chorar. O Rei também.
prisões que poderiam levar à nossa Organi- ver se estava tudo bem e voltamos para pegar
zação, o MRT. Havia a história de um ponto a família do comandante. Colocamos eles den- Logo depois, saímos para organizar o se-
que a repressão estava sabendo. Tínhamos in- tro do carro e saímos correndo. Dina disse “Ele questro do Theobaldo de Nigris, presidente da
formantes dentro da OBAN que nos disseram caiu, ele caiu!!”. Levamos todos para a casa do FIESP, entidade patronal financiadora das tortu-
que o Henrique [codinome de Devanir José de Rei, deixamos as crianças, as sacolas e saímos ras. Rapidamente nos organizamos com o pes-
Carvalho] não podia ir ao ponto do dia 5 [de com ela para salvar a casa de Henrique, que soal da ALN, e no dia seguinte, 7 de abril, fomos
abril de 1971]. Por isso, dissemos ao Henrique: era o aparelho do Comando da Organização. para a casa do empresário, que ficava na rua Pe-
“Não saia no dia 5, o que você tiver que fazer na Pegamos uma Kombi e um Fusca e fomos droso. Eu dirigia o carro que ia invadir a casa.
rua, faremos por você”. Mas ele não nos ouviu para a casa que ficava em Interlagos, extremo Na hora, o companheiro da ALN disse: “Peraí
e caiu. No dia seguinte ao do tal ponto do dia da Zona Sul de São Paulo. Rodamos um pouco que eu vou ligar” e voltou chorando, dizendo:
À esquerda, Ivan fichado pelo DOPS para ver se tinha algum sinal de vida lá, por- “O Gordo morreu, o Gordo morreu. Acabaram

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“A chegada na sala de o carro e bateu na frente da Rural. Metralharam Aí comecei a apanhar de novo, saí de novo
o carro. Uma bala pegou meu pai de raspão e na porrada. Rasgaram minha roupa toda, me
tortura é uma coisa um dos caras colocou uma arma na cara dele e dominaram, amarraram as mãos e me puse-
muito impressionante, outro colocou uma pistola na minha nuca. ram no pau de arara. Eu sempre fui gordo e o
cano foi cortando atrás do meu joelho. Tudo é
não tem como descrever. Na hora, a sensação foi de assalto. Você não
sabe o que está acontecendo. Imediatamente
de uma extrema violência. A primeira vez que
Foi uma cena de horror. nos tiraram do carro e nos puseram num ou-
você é pendurado tem uma sensação horroro-
sa. Fica de ponta cabeça, não sabe o que vai
Eles disseram: ‘Tira a tro carro do esquema deles. Fomos levados
para a delegacia 37, na Vergueiro, onde fomos
acontecer. Aí puseram os fios da máquina de
choque no polegar e o outro dentro da orelha.
roupa’. ‘Vão se foder, não espancados. Depois, nos colocaram na C-14 da
Na sala, tinha uns cinco torturadores. E aí co-
OBAN e fomos levados para lá. No caminho, al-
vou tirar a roupa porra gemados um pulso ao outro, falei para meu pai
meçou a gritaria. “Vai falar ou vamos te ma-
tar?” A única coisa que me veio à cabeça eu
nenhuma?’, eu respondi” pegar a arma do cara que estava sentado mais
falei: “Não vou falar. Vão para a puta que os pa-
perto dele no banco de atrás. O cara que esta-
riu”. Eles queriam ponto, eles tinham uma ne-
va na frente viu o movimento pelo retrovisor e
cessidade urgente de pegar pessoas com quem
de matar o Henrique. O nosso contato do DOPS disse “Se tentar isso, vocês morrem aqui”. Nós
eu tinha contato.
disse que ele acabou de morrer meia hora atrás, não estávamos armados. Se estivéssemos, já
que o Fleury não queria transformá-lo num se- teríamos escapado, mas não tinha como. Meu Eu ouvia os caras fazendo a mesma coisa
gundo Bacuri”. Aí começamos a falar “Vamos pai já estava sangrando pelo espancamento. com meu pai. Eles começaram pedindo ponto
invadir e matar esse filho da puta”, mas preva- e eu xingando, “Não vou falar”. Depois, come-
Chegamos no pátio da OBAN e pararam o
leceu o bom senso e nós batemos em retirada. çaram a falar: “Você não tem só 16 anos, qual é
carro. Era a hora da troca de plantão e havia
a sua idade?” Eu perguntei: “Você é analfabe-
Então começamos a recompor a Organiza- vários caras no pátio. Uma parte saia do plan-
to? Olha o documento, seu bosta”. Eu xingava
ção, o que foi muito tenso. Numa emergência tão e a outra estava entrando. Na hora que nos
e eles me davam choques. Eles não queriam
total eu passei a ajudar na coordenação do nos- tiraram do carro, o cara gritou: “Olha quem pe-
ouvir meus xingamentos. Cada pergunta era
so grupo. gamos, o Roque e o filho dele, o Teobaldo” e me
seguida por um choque longo. E gritavam:
deu um murro na nuca. Quando me recuperei
“Ponto!!” E eu: “Não vou falar nada”. Era por-
Nos dias 6 e 7 soltamos panfletos denuncian- e levantei, eles começaram o espancamento e
rada, telefone...
do a prisão do Henrique e depois que ele foi nós saímos na porrada com eles, pois tínhamos
morto – a repressão só anunciou sua morte na essa decisão. Foi tão violento que a algema se Como eu estava irredutível em não falar, eles
semana seguinte – voltamos a soltar panfletos abriu, soltou do meu pulso. disseram: “Traz a grande”, referindo-se à má-
denunciando que tinham matado um revolucio- quina grande. Eles estavam usando a média.
nário e que isso não ficaria assim. Fui sendo levado para o canto da sala de tor-
Eles apelidaram de Mariquinha a máquina pe-
tura, meu pai ficou no meio do pátio, trocando
quena, de Maricota a média e a Maricona, que
No dia 14 recebi a orientação do Rei para, no socos com os caras. De relance, eu vi o Davi
era a máquina grandona.
dia seguinte, fazer o estritamente necessário e ir dos Santos Araújo vindo na minha direção.
para casa. Era uma senha para “Vai ter algo”. Eu Para mim, ele era mais um, ninguém era espe- Me deram choques ao mesmo tempo no de-
estudava de tarde, então não saí de manhã, fui cial. Acertei um murro na cara do Davi e ele dão do pé, nos dedos e dentro do ouvido. Era
para a escola e à noite vimos no noticiário que caiu longe. Depois ele veio, me deu uma gra- choque, porrada, porrada, porrada. Depois de
mataram o [Henning Albert] Boilensen. vata, começou a me sufocar. Os caras davam um tempo, mesmo na pancadaria, comecei a
golpes de caratê, coronhadas. Sufocado, me jo- raciocinar. Pensei: “Eu tenho que driblar os ca-
No dia seguinte, saí com meu pai, que tinha guei para trás e cai em cima da barriga dele, de ras. Eles querem um ponto, eu vou dar, mas um
recém-chegado do Rio. Ele tinha uma Rural costas. Ele me soltou e eu levantei, mas levei ponto frio”. Mas como eu faço para administrar
Willys, que estava numa oficina, no Jabaquara, um chute na boca e caí. Aí eles me dominaram. no meio daquilo, pancadaria, grito? Era avassa-
e por esse motivo estávamos desarmados. De lá Foi barra. lador. Como eu faço para lembrar de uma rua
fomos para um ponto que meu pai tinha com o que não seja a verdadeira? Eu não lembrava de
Rei, às 9 horas. Mas, como não ia dar para che- De relance, vi os caras batendo no meu pai,
rua nenhuma. Nessa hora você não lembra de
garmos a tempo, fomos para outro ponto, com o que se defendia batendo de volta. Ouvi tiros e
nada. A cabeça fica uma confusão total.
Juracy e o Rei, que era na rua Vergueiro, 9000. depois me disseram que meu pai tentou correr e
Chegando lá, tinha uma pracinha com uma pa- o metralharam. Fui levado para cima, para o pau Foi quando tive uma ideia. “Vou ver se con-
daria na esquina. Entramos na pracinha e vi o de arara e meu pai foi para a cadeira do dragão. sigo lembrar de uma rua para falar”. Aí veio a
Juracy [codinome de José Rodrigues Ângelo A chegada na sala de tortura é uma coisa mui- hora do almoço, eles deram uma trégua por uns
Júnior] na frente da padaria, fumando, sem nin- to impressionante, não tem como descrever. Foi cinco minutos. Me deixaram pendurado e fo-
guém por perto. Prudentemente, meu pai parou uma cena de horror. Eles disseram: “Tira a rou- ram almoçar. Eu no pau de arara e meu pai na
o carro a 50 metros de distância e, mesmo as- pa”. “Vão se foder, não vou tirar a roupa porra cadeira do dragão. Nessa hora, consegui botar
sim, ele foi até nosso carro. Uma perua fechou nenhuma?”, eu respondi. a cabeça em ordem e me veio uma rua, que era

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a do ponto verdadeiro que eu tinha, na rua Ma- tendo o pé feito criança: “Merda, ele não fala migo na mata, me conduziram, porque eu es-
chado de Assis, na Vila Mariana. “Mas essa não nada, vai ter que matar”, e todos eles riram. O tava sem poder andar. Disseram: “Corre!”; e eu
posso falar”. Apaguei, até que consegui pensar Capitão Amici [vulgo do delegado João José “Que correr o quê!”. Me deram uma coronhada,
numa outra rua. Aí vem um cara, um tal de Bu- Vetoratto], estava acendendo um cachimbo e e começaram a dar tiros, em volta de mim, em
céfalo comendo o bife e diz: “E aí, vai falar ou falou: “Engraçado, né? Mas eu não sou viado volta da minha cabeça, com a pistola: “Pum,
não vai?” e rodou a manivela para me aplicar e comigo você vai falar. Vou te pendurar de pum, pum”. Era ensurdecedor.
o choque, comendo o bife. Aí veio outro, segu- novo”. E respondi: “Combinado”. Quando che-
rando um prato, comendo algo: “E aí, vai falar gamos à sala do pau de arara, eu tinha que avi- Para mim, tanto fazia morrer ou não. Não
ou não vai?”, dzzzzzz, dando choque... “Cadê o sar meu pai que não tinha falado. Então, disse: é questão de valentia. Qualquer coisa ali era
ponto?” E isso, enquanto o desgraçado comia. “Claro que era ponto frio, seus babacas, vocês uma merda. Depois, me puxaram, me arrasta-
acham que eu ia entregar um companheiro?”. ram para fora, me puseram no carro novamen-
Entre um choque e outro me veio à cabeça te e saíram.
uma rua que seria aceitável, que não estáva- Rasgaram minha roupa toda, me puseram no
mos usando para ponto, mas que já tinha sido pau de arara de novo e foi barra pesada, pan- No comecinho da estrada do Cursino, hoje
usada. Joaquim Nabuco, 500, lá no aeroporto. cadaria pesadíssima. Foi quando quebraram a avenida do Cursino, tinha uma padaria. Eles
Pensei: “Vou ter que fazer uma cena, deixar minha vértebra. De tão furioso da porrada que pararam o carro para tomar café e eu vi, na
os caras voltarem e quando ficar intenso, vou levou, o Davi ficou em pé em cima do meu peito. banca de jornal, a manchete da Folha da Tarde
fingir que não estou aguentando”. Eles volta- com a foto do meu pai, e eu pensei: “Mataram
meu pai, o próximo sou eu”. Isso foi no dia 17
ram, teve pauleira de novo em cima de mim e
eu fingi: “Ah, tá bom, eu falo. Tenho um ponto
“Rasgaram minha de abril, de manhã.
às duas ou duas e meia na Joaquim Nabuco, roupa toda, me puseram De volta para a OBAN, aconteceram duas
500”. “Com quem é o ponto?”, perguntaram. E
eu “Com o Clemente [codinome de Carlos Eu- no pau de arara de novo coisas malucas. Uma é que o [delegado Sér-
gio Paranhos] Fleury foi lá me ver. Ele queria
gênio Paz, militante da ALN]”. e foi barra pesada, saber do levantamento da casa dele. Ele esta-
Aí os caras me tiraram do pau de arara, me pancadaria pesadíssima. va conversando com o Ustra e eu sentado no
banco. Ele me pergunta: “Você me conhece,
desceram para o primeiro andar e começa-
ram a me preparar para ir. Eu estava muito Foi quando quebraram moleque?”. Eu dei de ombros. “Quem sou eu?”,
perguntou. E eu respondi: “Fleury”. Ele, todo
ensanguentado, esfolado, arrebentado. Me co- a minha vértebra. De tão vaidoso, riu e perguntou: “Foi você que fez o
locaram uma camisa, que ensopou de sangue.
Secaram, mas ensopou de novo. Aí colocaram furioso da porrada que levantamento da minha casa?” E eu, como sa-
bia que isso tinha sido aberto, dei de ombros
uma manta de algodão, uma calça e me deram
uma sandália de dedo. Na hora que eu esta-
levou, o Davi ficou em pé de novo. “Onde é que vocês pensam que é a
va algemado, pronto para ir, entra o [à época em cima do meu peito” minha casa?”. E eu: “Carneiro da Cunha, na
major, Carlos Alberto Brilhante Ustra] Ustra e Saúde”. “O que vocês queriam comigo?”, ele
fala: “Não, ele não vai, ele pode estar fingindo, perguntou. E eu: “Te matar, ora”. Aí ele disse:
Era umas oito, nove da noite quando eu re- “Que filho da puta!”. E o Ustra disse: “É, esse
vai correr e vamos ter que matar, não é para
solvi ganhar tempo e falar onde eu morava. aí só matando, a gente vai matar depois, agora
matar agora. E ele está mancando, vai denun-
Fui levado num carro e quem foi comigo foi o não”. Aí o Fleury disse: “Olha, moleque, aqui
ciar e o Clemente vai fugir. Leva o Juracy que
Capitão Ênio [Pimentel da Silveira], conhecido você está tendo moleza. Quando você chegar
está colaborando”. Aí eu pensei “Pelo menos
como Nazistinha. Ele foi com uma [pistola] 45, no DOPS eu vou te matar de porrada, está
vou ficar sem apanhar”.
alucinado, e quando chegou na minha casa, co- certo?”. Eu estava quebrado de tanta porrada,
Levaram o Juracy e eu fiquei levando umas locou na minha nuca e disse: “Se alguém tossir imagine moleza... e respondi “Combinado”.
porradas, choques, mas não pendurado. Acho lá dentro eu vou estourar a sua cabeça”. E ele, “Que filho da puta, o moleque ainda
que depois de uma hora volta o Otavinho é debochado”.
As três, minha mãe e minhas irmãs, estavam
[vulgo do delegado Otávio Moreira Júnior]
lá dentro. Pelo combinado, elas deveriam fugir Eles entraram, veio o Davi, me pegou pela
furioso, gritando, com aquela voz fininha: “Era
quando fosse sete da noite. “Por que vocês não algema e disse: “Vou pendurar esse moleque”.
ponto frio! Ele nos enganou”. Ele pegou um pe-
fugiram?”, eu questionei. E elas: “Fugir para Quando chegamos na porta da sala vejo o meu
daço de pau no chão e acertou no meu braço
onde?”. “Qualquer lugar, menos a cadeia”, eu pai na cadeira do dragão. O capitão Ênio sai de
tão forte que na hora levantou uma bolha de
respondi. Os caras me espancaram para aca- dentro perguntando “O que ele está fazendo
sangue pisado. Ele disse: “Agora eu quero apa-
bar com a conversa. Fui levado de volta para aqui?” E o Davi responde: “Vou pendurar”. Ênio
relho”. E eu disse: “Eu entro de olho fechado na
a OBAN, para onde as três também foram le- diz: “Não, a prioridade é o velho”. O Davi fala:
casa do Rei”. Aí teve mais paulada, ele acele-
vadas. De madrugada, saíram com a Ieda num “Eu vou pendurar”. Aí ficam “Não vai”, “Vou”,
rou, batendo mais rápido, repetidamente.
carro, a Iara em outro e eu num terceiro. E fica- “Não vai”, “Vou”. Até que eles puxam as armas
De repente, ele destrambelhou a bater. Aí ram rodando. De manhãzinha, me levaram para e se engatilham. Do andar debaixo, o Ustra gri-
ele largou pedaço de pau no chão e saiu ba- ser fuzilado no Parque do Estado. Entraram co- tou: “O que está havendo aí?”. O Ênio diz: “É o

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“Eles pararam o carro Davi, major, ele quer pendurar o menino, mas minha mãe: “Dona Fanny, a senhora vai poder
a prioridade agora é o Roque”. Aí o Ustra grita falar para seus netos que teve a mala carrega-
para tomar café e eu vi, “Davi, obedece o oficial, porra, desce esse meni- da pelo delegado da OBAN”. E ela respondeu
na banca de jornal, no daí!”. O Davi obedeceu e me levou para uma
sala de interrogatório. Fui levado para a rua, e
a ele: “Você que vai ter a honra de falar para
os seus netos que carregou a mala de uma co-
a manchete da pelo rádio veio a informação: “Matamos o Rei. munista com muita dignidade. Você não tem
Folha da Tarde com Estamos na ambulância levando ele para o hos-
pital”. Essa era a senha deles, que significava
dignidade, eu tenho”.

a foto do meu pai, que eles estavam indo para a OBAN. No final Nos levaram para o a OBAN e nessa noite
ouvimos as torturas brutais cometidas contra
do dia me puseram na cela.
e eu pensei: ‘Mataram o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino.
meu pai, o próximo Não me lembro muito bem desse momen-
to, mas foi na cela que fui saber que meu pai
Depois de muita tortura o mataram e alegaram
que ele morreu ao tentar fugir dos policiais.
sou eu’” tinha sido morto ou estava para ser morto. Fomos levados para o Sul. Ficamos um mês e
Mas não cheguei a ver o corpo dele. Na minha meio no Rio Grande do Sul e de lá voltamos
cabeça, esse momento é muito conturbado. para o DOPS, onde fiquei até novembro, quan-
Não sei exatamente onde estava nessa hora. Eu do tive minha incomunicabilidade quebrada.
praticamente desmaiei de cansaço. Estava há Aí fui para o Presídio Tiradentes e em janeiro
dois dias sem dormir e de manhã me tiraram me levaram para a penitenciária do Estado. Fui
mais uma vez para ver se eu reconhecia al- mantido lá por dois meses na tentativa de me
guém na rua. levar para a televisão. Era aquela operação de
forçar a pessoa a rejeitar a luta contra a ditadu-
No tempo que esteve presa, minha mãe di- ra e, pior ainda, elogiar a política da ditadura.
zia para eles: “Vocês são uns monstros. Tortu- Claro que não aceitei. Aí voltei para o Tira-
rar meu filho e matar meu marido do jeito que dentes e em 12 de maio entramos em greve de
vocês mataram”. Lá, todos chamavam minha fome, pois queriam separar os presos em pe-
mãe de Dona Fanny, menos o Ustra. Um dia, quenos grupos e reprimir ou até matar os que
ela estava numa cela com outras mulheres, ele achassem irrecuperáveis. Voltei para a OBAN
chegou e disse: “Olha aqui, velha filha da puta. por vinte dias, onde pararam a greve de fome
Olha o que o assassino do seu marido fez com na porrada e ameaça. Depois, voltei para o Ti-
o industrial [referindo-se à Henning Albert radentes e começou um período que eram dois
Boilensen]”. E ela respondeu: “Muito me admi- meses lá e depois DOPS.
ra um oficial das Forças Armadas tratar uma
senhora desse jeito. Você deveria ter vergo- Quando fiz 18 anos, eu estava no Presídio do
nha”. Ele, totalmente perturbado, foi embora. O Hipódromo, pois o Tiradentes foi demolido,
comandante do II Exército chamou a atenção em maio. Em minha homenagem, as compa-
dele diante da oficialidade por causa disso. nheiras da ala política cantaram a música “Pe-
sadelo”. Foi muito emocionante.
Depois de 28 dias de OBAN , ouvi: “Sua mãe
está indo embora para o DOPS”. Pensei: “Ago- Para Taubaté, eu fui levado em novembro de
ra vão me matar”. Aí percebi que era um des- 1973, onde fiquei até os 22 anos. Em 1974, após
piste, porque na última hora me chamaram e um pedido de habeas corpus feito por minha
disseram: “Arrume as suas coisas que você vai mãe, saiu uma decisão para eu ser solto e me
para o DOPS”. Quando chegamos ao DOPS, trouxeram para São Paulo. Fui trazido e um
havia um tumulto desgraçado na frente. Entra- preso de Taubaté foi pago para me matar. Ele
ram conosco e fomos direto para a cela. iria me matar no carro de presos, pois ele viria
junto comigo no camburão. Outro preso inter-
No DOPS, fiquei até julho, quando o Otavinho, feriu e conseguiu neutralizar o cara.
da OBAN, disse que eu seria levado para o Sul.
Achei que seria morto, me despedi do pessoal, Fui levado ao juizado de menores para ser
pedindo “Lembrem de mim” e os companheiros solto. Lá, havia um cerco monumental de tro-
dizendo “Aguenta firme, não abaixe a cabeça”. pas da Polícia Militar, da Polícia Civil e os ca-
ras da OBAN forçaram o juiz a voltar atrás na
Eu tinha certeza que iam me matar. Entrei no decisão de me soltar, alegando que eu tinha
carro e quando vi, estávamos no presídio Ti- quebrado a liberdade vigiada. Minha irmã Iara
radentes. Pensei: “Então não vou morrer, só se e o advogado conversam com o juiz, que ale-
forem matar muita gente”. O Otavinho disse à ga que eu tinha outro processo e a Iara mos-

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tra uma declaração que dizia que eu não tinha ditoria para marcar presença, dizer que estava tamos e tivemos que virar soldados. Todos nós
processo algum: “Vocês não estão vendo o que vivo, que não tinha fugido. Então me integrei tivemos a vida interrompida, o sacrifício de vi-
está acontecendo? Se eu deixar ele sair, vão à luta por liberdades democráticas, que era a ver clandestinidade.
matar o Ivan e a mim também. Não vou fazer Anistia, Constituinte, eleição direta.
isso”. Fiquei lá no Recolhimento Provisório
de Menores por uma semana. Fui espancado, A ditadura nos forçou a virar soldados para IVAN AKSELRUD DE SEIXAS nasceu em 4 de setem-
quebraram meu dedo e depois me devolveram combatê-la. Acho que esse é o grande crime bro de 1954, em Porto Alegre (RS). Filho de Joaquim
para Taubaté, onde cheguei numa situação da ditadura. Meu pai era um mecânico e virou Alencar de Seixas e de Fanny Akselrud de Seixas. Foi
um soldado para combater os caras. Eu era um militante do Movimento Revolucionário Tiradentes
diferente. Não podia mais ler revistas, jornais, (MRT) e tinha 16 anos em 1971, quando foi preso. For-
nada. Era cela forte direto e lá fiquei uns quinze filho de mecânico. Eu ia ser mecânico, operá- mado em jornalismo, é Coordenador da Comissão Es-
dias, sob a alegação de que não havia cela co- rio de outra coisa, com muito sacrifício e sorte tadual da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”.
mum para mim. técnico ou engenheiro, mas todos nos violen-

Fiquei numa situação de merda, porque não


tinha prazo para sair. Era uma prisão perpétua
não declarada. Estava de saco tão cheio que
pensei e até tentei me matar enforcado. De-
pois, voltei atrás. Numa madrugada eu colo-
quei o lençol na grade e coloquei no pescoço.
Na hora que eu ia pular do banquinho, passa-
ram na minha frente todas as pessoas que eu
conheci na vida, olhando para mim e pergun-
tando “Por que, por quê?”. Aí tirei o lençol e
fiquei a noite inteira pensando: “A morte não
é para quem morre, é para quem fica”, Então,
devo satisfação a quem fica, e não posso fazer
isso, tenho que enfrentar.

“A ditadura nos forçou


a virar soldados para
combatê-la. Acho que
esse é o grande crime
da ditadura. Meu pai
era um mecânico e
virou um soldado para
combater os caras”
Também passei por uma fase em que queria
acreditar em alguma coisa sobrenatural, que
seria Deus. Mas vi que não existia. Eu brinco
que eu vi Deus e ele disse “Não acredite em
mim, eu não existo”. Depois, pensei na loucura
como uma forma de escapar daquela situação.

Até que mataram o [Vladimir] Herzog, o


[Manoel] Fiel Filho e começou a fase de aber-
turas. Os caras começaram a se livrar dos ca-
sos mais complicados. O primeiro era o meu,
o mais denunciado no exterior. Fui solto em
agosto de 1976. Depois que saí, fiquei dois para Nesta página, Ivan e
três anos sendo seguido dia e noite. Nos dois seu cachorro Veludo,
em sua casa em
primeiros anos tinha que ir toda semana na au- Porto Alegre (RS)

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1

Joaquim Alencar de Seixas nasceu em 21 de ja- Família Seixas


neiro de 1922, em Bragança (PA), filho de Estolano Pimenta
1. Joaquim e Fanny namoram
de Seixas e Maria Pordeus de Alencar Seixas. Morto em 17 de no Rio de Janeiro (RJ), em 1946
abril de 1971. Dirigente do Movimento Revolucionário Tira-
2 e 3. Fanny e Joaquim, em 1945
dentes (MRT).
Era casado com Fanny Akselrud Seixas, com quem teve qua-
tro filhos, Iara, Ieda, Ivan e Irineu.
Joaquim mudou-se para o Rio de Janeiro aos 19 anos e traba-
lhou como mecânico de aviões na Varig, Aerovias e Panair.
Perdeu o emprego diversas vezes devido a sua atuação polí-
tica. Quando trabalhava na Varig, apresentou uma denúncia
ligando a empresa ao governo ditatorial de Getúlio Vargas e
aos nazistas alemães. No Rio, aproximou-se do Partido Co-
munista e nele militou até 1953. Logo após a queda de Getú-
lio, casado com Fanny, a quem conheceu na sede do partido,
muda-se para o Rio Grande do Sul, onde desempenha distin-
tas ocupações. Por volta de 1960, volta a residir no Rio. Ocu-
pou o cargo de encarregado de manutenção da Petrobrás e
participava ativamente do sindicato dos petroleiros quando
ocorreu o golpe militar. 2 3

Demitido da estatal nos expurgos praticados pelo regime


militar na empresa, Seixas e a família retornam ao Rio Gran- 4
de do Sul no final de 1964. Em 1970, a família se muda para
São Paulo e se integra ao MRT (Movimento Revolucionário
Tiradentes).
Em 15 de abril de 1971, em represália ao assassinato de De-
vanir José de Carvalho, dirigente do MRT, em ação conjunta
organizada pelo MRT e pela ALN, é morto o então presidente
da Ultragás Henning Albert Boilesen, fundador e financiador
da OBAN, posteriormente reorganizada como DOI-CODI. Nos
dias 16 e 17, foram presos e, em seguida, assassinados, Seixas
e Dimas Casemiro, sob a acusação da execução de Boilesen.
No dia em que foi preso, Seixas estava acompanhado do
filho adolescente, Ivan, também militante do MRT. Ambos
foram levados para a 37a DP. No pátio de manobras daquela
unidade, a violência dos espancamentos chegou ao ponto de
partir a corrente das algemas que os uniam. Pouco depois,
na sala do interrogatório, um foi torturado na frente do ou-
5
tro. Enquanto o suplício se prolongava, a casa da família foi
saqueada e foram presas a esposa e as duas filhas. No dia
seguinte, 17 de abril, os jornais paulistas publicaram uma
4 e 5. Joaquim e Fanny com a primogênita
nota oficial dos órgãos de segurança estampando a notícia Ieda, nascida em 6 de outubro de 1947, em
da morte em tiroteio de Joaquim Alencar de Seixas. Contudo, Porto Alegre (RS)
ele não estava morto, pois ainda sofria as torturas, o que foi 6. O casal com as filhas Ieda e Iara, em
testemunhado por seu filho Ivan, sua esposa e suas duas fi- viagem ao Rio de Janeiro
lhas, Ieda e Iara.
6
Por volta das 19 horas do dia 17, Seixas foi morto. Sua esposa
Fanny viu os policiais estacionarem uma perua C-14 no pátio
de manobras, forrarem seu porta-malas com jornais e coloca-
rem o corpo que reconheceu ser o de seu marido.

Fanny Akselrud de Seixas nasceu em 2 de feve-


reiro de 1918, em Santa Maria (RS). Filha de imigrantes oriun-
dos da região conhecida como Bessarábia, Moldávia, profes-
sora primária, trabalhou como secretária na sede do Partido
Comunista, do qual era militante desde jovem.
Em 1944, conheceu Joaquim Alencar de Seixas na sede do Par-
tido Comunista, e com ele teve quatro filhos.
Em 16 de abril de 1971, horas depois que seu marido e seu filho
Ivan foram presos, Fanny foi arrancada de casa com suas duas
filhas, Iara e Ieda e levadas para a OBAN (Operação Bandeiran-
te) onde foram torturadas. Depois de transferidas para o Pre-
sídio Tiradentes, ficaram presas por um ano e meio.

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7 8 9

12
7 e 8. O cotidiano da
família Seixas (os pais,
Ieda, Iara e Ivan) em sua
casa na Vila Jardim, em
Porto Alegre (RS)
9. Ivan no cadeirão em
refeição com a família

10

11

10. Ieda (a mais alta), Ivan


e Iara (a primeira à direita)
com amigas, no Parque da
Redenção, em Porto Alegre
(RS), 1949
11. Iara, Irineu e Ivan, na casa
da família em Belém (PA)
12. A família reunida na
porta de casa em Belém (PA),
em 1960

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2

1. Carteira de identificação profissional de Joaquim


como contra-mestre da Petrobrás
2. Joaquim em reunião com operários na Petrobrás
3. Família reunida na entrada de sua casa no Rio de
Janeiro. Fanny, Joaquim, Ieda, Ivan, Iara e Irineu, 1964.
Logo depois Joaquim foi expurgado da Petrobrás e a
família fugiu para Porto Alegre (RS)
4. Imagem confeccionada por Joaquim com câmera
que ele mesmo construiu

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8

Acima, Edição da Folha


da Tarde de 17 de abril 7
5 6
de 1971,em que a morte
de Joaquim Seixas é
anunciada. Porém, Seixas
ainda estava vivo, nas
dependências da OBAN
5. Irineu, adulto
6. Joaquim preso, foto de ficha do DOPS
7. Ivan, depois de sair da prisão.
Foto para documentos, 1976
8.Fichas de Joaquim, Fanny e Ivan do DOPS

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Saudade é ser depois de ter 1

por Iara e Isabel Lobo

Somos filhas de Raimundo Gonçalves de vezes publicamente. Não se importaram quando de uma série de reportagens falando
Figueiredo e Maria Regina Lobo de Figuei- com o fato desse homem ter dado sua vida sobre o caso de Guararapes, que o aponta-
redo, torturados e mortos pela ditadura nos pelo ideal que acreditavam e que, segundo va também como autor, contou-nos que ele
anos de 1971 e 1972, em Recife e no Rio de Ja- relatos, tenha salvado a vida de vários de propriamente não estava envolvido, mas que
neiro, respectivamente. Sempre é muito di- seus companheiros em diversas ocasiões. nosso pai e um grupo sim.
fícil lidar com a morte de nossos pais. É um
Esse senhor pediu-nos para xerocar um
assunto muito delicado para nós, que mexe
com sentimentos muito profundos.
“Mais do que conhecer material particular que tínhamos em mãos,
os responsáveis pela alegando que era para guardar em seu arqui-
Mais do que conhecer os responsáveis pela vo particular. Depois de dois dias, esse mate-
morte de nossos pais, queremos que, nesse morte de nossos pais, rial foi publicado na imprensa, em resposta
processo desencadeado pela instalação da queremos que, no às referidas reportagens, tentando inculpar
Comissão da Verdade, as imagens de nossos somente nosso pai pela ação.
pais sejam respeitadas, principalmente a do processo desencadeado
Sabemos que não é papel da Comissão
nosso pai. pela instalação da Nacional da Verdade investigar a ação da
Nosso pai foi apontado como um dos res- Comissão da Verdade, esquerda, mas, realmente, no nosso caso, ti-
vemos que lidar muito cedo com questões
ponsáveis por um ato no aeroporto de Gua-
rarapes (PE), com o objetivo de atingir o ge-
as imagens de nossos muito além do bem e do mal, dos bons e dos
neral Costa e Silva, e que, não dando certo, pais sejam respeitadas, ruins. Foi muito difícil ver esses homens se
causou a morte de duas pessoas. Não nos principalmente a aproveitando tanto da morte do nosso pai,
como da nossa fragilidade.
cabe e não podemos julgar tal ato e muito
menos nosso pai. Sentimos muito a morte do nosso pai”
Da mesma forma que concordamos que a
dessas pessoas e de alguma forma sabemos impunidade dos militares envolvidos com os
que estamos ligadas a elas. Temos conhecimento que um dos envolvi-
crimes da ditadura tem repercussões nos dias
dos no ato, que muitos anos depois respon-
Ocorre, porém, que o referido ato foi uma de hoje em várias esferas da sociedade, acre-
sabilizou nosso pai, foi quem o entregou à
ação planejada por um grupo de pessoas, ditamos que a covardia com que nosso pai foi
polícia, o que resultou em sua morte. Outro,
que, com a exceção de um padre, aproveita- tratado por seus “companheiros” tem reflexos
bastante tempo depois, ao ser interpelado
ram que nosso pai estava morto e jogaram até hoje na cultura de nossa esquerda.
por nós por queimar a imagem de nosso
a responsabilidade toda sobre ele. Para isso, pai, desmentiu as afirmações feitas por ele Vimos com bons olhos a instauração da Co-
denegriram a imagem de nosso pai, algumas na imprensa, mas não teve o trabalho de missão da Verdade, principalmente no gover-
À esquerda, o casamento de Raimundo
desmentir também publicamente. Outro, ao no da presidenta Dilma, que sentiu na pele o
e Maria Regina, em Olinda (PE), 1966 ser procurado por nós muito tempo depois, sofrimento daquela época. Faz bem ver alguns

1
Guimarães Rosa

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“Ter a lembrança de estudantes hoje protestarem com autêntica Temos posições diferentes quanto à neces-
emoção, como também é bom ver a deputada sidade de responsabilização pela morte dos
água entrando em nossa Erundina, nos seus 80 anos, tão verdadeira- nossos pais, mas, ambas necessitamos que
casa por causa de uma mente empenhada em garantir justiça às mor- o processo em curso trate a história de nos-
tes ocorridas no regime militar. Faz bem sim, sos pais de uma forma muito cuidadosa. Não
cheia do rio Capiberibe, principalmente em um país com uma cultura gostaríamos, por exemplo, de ver fotos de
nós em cima da cama como a nossa. É muito ruim perceber o “deixa nossos pais mortos espalhadas pela internet.
Nossas lembranças são por demais tênues e
de casal de nossos disso”, sem ao menos as pessoas se colocarem
em nossos lugares e pensarem o que senti- preciosas.
pais e só conseguir riam com a impunidade e com o descaso se
Ter a lembrança de água entrando em nossa
recordar de uma fossem seus familiares.
casa por causa de uma cheia do rio Capiberi-
grande alegria: andar Porém, além da morte de nossos pais de be, nós em cima da cama de casal de nossos
forma tão violenta, quando éramos muito pais e só conseguir recordar de uma grande
na casa, só de barco” pequenas, e de toda a falta que eles fizeram, alegria: andar na casa, só de barco. Depois
tivemos que nos deparar com a atitude des- no cangote de nosso pai correndo da cheia
ses senhores. No entanto, toda essa vivência e sentir-se segura. Reconhecer em breves
foi o que nos impeliu muito fortemente, cada momentos o cheiro da mulher mais linda do
uma da sua maneira, a buscar uma superação, mundo. Lembrar de como ela conseguia fazer
um conforto, muito embora isso seja trabalho da poltrona de ônibus um lugar cheiroso, gos-
para todas as nossas vidas. toso e quentinho. Reconhecer em alguém algo
que lembra nossa mãe. As recordações tristes
Gostaríamos que neste processo em curso existem muitas, mas essas são as que preser-
houvesse um pouco da profundidade e trans- vamos com maior cuidado.
cendência que estamos buscando na elabo-
ração da morte de nossos pais. Não se trata Gostaríamos de ter os restos mortais de nos-
de não se buscar justiça, mas de ver além so pai, muito em consideração à mãe dele, já
disso. Só assim acreditamos que o processo falecida, que um ano antes da morte de nosso
possa contribuir de fato para as vítimas, es- pai, perdeu sua outra filha afogada. Nossa avó
tejam elas mortas ou vivas. fez uma promessa de não sair mais de casa,
caso o corpo dela fosse achado. O corpo de
Gostaríamos que esse processo pudesse nossa tia foi encontrado, mas um ano depois
contribuir de alguma forma, por exemplo, seu único outro filho morreu e ela nunca pode
para que os parentes dos mortos no episódio enterrá-lo. Nossa mãe foi enterrada por seus
de Guararapes tivessem um olhar compassi- familiares.
vo para com nosso pai, que tivessem um en-
tendimento de que os que lutaram naquela Enfim, gostaríamos que o processo em cur-
época foram os que mais captaram toda a so, mais que mexer nessas feridas tão gran-
necessidade de liberdade e justiça social que des, aplique os remédios e os cuidados neces-
havia na época. Que soubessem que nosso sários para que elas possam cicatrizar.
pai era, sobretudo, um homem muito carido-
so, um homem simples, filho de um seleiro e
uma parteira de uma cidade de Minas. Fazia ISABEL LOBO DE FIGUEIREDO nasceu em 1967
o que podia para ajudar quem precisava. e é engenheira agrônoma.

Segundo nossa avó, mais de uma vez, IARA LOBO DE FIGUEIREDO nasceu em 1968
e é advogada.
quando rapaz, chegou em casa sem a camisa
e os sapatos, pois os havia dado na rua.

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A família
1. Dirigente da VAR-Palmares, Raimundo
morreu aos 33 anos
Maria Regina Lobo de Figueiredo
2- Maria Regina participou da Juventude nasceu em 5 de junho de 1938, no Rio de Janeiro (RJ),
Universitária Católica (JUC) e foi militante
da VAR-Palmares filha de Álvaro Lobo Leite Pereira e Cecília Lisboa Lobo.
3- Isabel e Iara, filhas de Maria Regina
Morta em 29 de março de 1972. Militante da Vanguar-
e Raimundo da Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares).
Participou da Juventude Universitária Católica (JUC) e
era formada em Filosofia pela Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro
(atual UFRJ). Desenvolveu um trabalho na cidade de
Marcos (MA), pelo Movimento de Educação de Base
(MEB), apoiado pela Igreja Católica. Ali permaneceu
cerca de três anos, dirigindo-se depois para o Recife
(PE). Era casada com Raimundo Gonçalves Figueiredo,
2
assassinado em 28 de abril de 1971, com quem teve duas
filhas, Isabel e Iara, as quais tinham 3 e 4 anos quando
ocorreu sua morte.
A prisão e morte de Maria Regina e outros três compa-
nheiros de organização – Antônio Marcos Pinto de Oli-
veira, Wilton Ferreira e Ligia Maria Salgado Nóbrega,
ocorreu no episódio que ficou conhecido como Chacina
de Quintino, quando a casa em que moravam, no Rio de
Janeiro, foi invadida por agentes do DOI-CODI/RJ, em 29
1 de março de 1972.

Raimundo Gonçalves de Figueiredo


nasceu em março de 1939, em Curvelo (MG), filho de
Francisco Gonçalves Viana e Ana Gonçalves de Figueire-
do. Morto em 28 de abril de 1971. Dirigente da Vanguar-
da Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares).
Era bancário em Sete Lagoas (MG), onde participou da
Juventude Operária Católica (JOC). Logo foi transferido
para Belo Horizonte (MG). Estudou em um seminário
na mesma cidade, onde participou de mobilizações
estudantis e mutirões em favelas. Nesta época, iniciou
sua militância na Ação Popular (AP). Após romper com
essa organização, participou da Ala Vermelha – uma
dissidência do PCdoB – e, mais tarde, ingressou na VAR-
-Palmares. Esteve preso no DOPS/GB entre outubro e
novembro de 1968, de onde foi solto por meio de um
habeas corpus. Morreu aos 33 anos e vivia em Jaboatão
dos Guararapes (PE). Foi baleado e preso em uma casa
do bairro de Sucupira, em Recife (PE), por agentes do
DOPS pernambucano, em 27 de abril de 1971, morrendo
no dia seguinte.

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por Paulo de Miranda Sipahi Pires

Sou filho da Rita Maria de Miranda Sipahi dos; na verdade, eles são heróis”. Quando digo via uma angústia mesmo de saber que aquilo
Pires e do Antônio Othon Pires Rolim, tam- isso, estou me reportando ao Paulo aos 8 anos ia acabar. E aquele presídio era um lugar mui-
bém conhecido como Ari. Os dois foram pre- de idade. Essa é a reparação que espero. to ameaçador. A visita acontecia em um pátio
sos. Na época, eu a Camila, minha irmã, éra- estreito com um muro muito alto. Eu sentava
mos crianças. Eu tinha 6 ou 7 anos, e ela tinha Falando da época das visitas aos nossos num banco de alvenaria encostado no muro
um pouco menos, 5 anos. pais no Presídio Tiradentes, uma coisa que me e bem em cima, no alto do muro, tinha uma
atormentava eram os dois toques da campai- guarita. E nos momentos em que eu estava so-
Por sermos crianças, quando os fatos acon- nha. Quando soava o primeiro toque, eu sabia zinho eu olhava para cima. E na guarita tinha
teceram, é muito difícil manter algum tipo de que era o momento de nos despedirmos, então um soldado com o fuzil apontado. E eu sentia
memória mais contextualizada do que esta- era uma dificuldade para mim. sempre que alguém estava me ameaçando.
va acontecendo. Mas acho que a dificuldade
maior mesmo era não ter com quem conver- “O que eu mostrarei aqui Eu me sentia totalmente ameaçado naquele
sar, alguém que ouvisse e que validasse o que
eu estava sentindo então. O que eu mostrarei
são alguns desenhos ambiente. Mas me sentia ameaçado também
na escola em que estudava. E eu pensava que
aqui são alguns desenhos que fiz na época e que fiz na época e que se meus pais eram bandidos eu também era
que retratam os sentimentos que vivi em fun-
ção da prisão dos meus pais. No papel, através retratam os sentimentos bandido. Eu não me senti amparado para re-
petir: “Não, você não é um bandido, porque
dos desenhos, foi possível expressar coisas que vivi em função da seus pais não são bandidos”. Assim, eu carre-
que naquele momento eu não podia expressar
verbalmente. prisão dos meus pais. go esse sentimento daquela criança de 7 anos.
E nunca me foi dito o contrário. E não será dito
A minha exigência em relação ao Estado é
No papel, através dos pela TV Globo, pela Folha de São Paulo nem
pelo Estadão. Isso não será dito pelas setenta
que declare que meus pais são heróis e não desenhos, foi possível famílias detentoras da mídia no Brasil.
bandidos. Naquela época, se alguém estava
preso era bandido. Como eu era criança e meus
expressar coisas que
A reparação de dizer “seus pais são heróis”
pais estavam presos, era como se eles fossem naquele momento eu cabe ao Estado fazer de alguma maneira. Cla-
bandidos. Mas eles não eram bandidos. Eu ti-
nha essa noção. Só que não se falava dessas
não podia expressar ro que há projetos de memória nas grandes ci-
dades onde houve muita repressão da ditadu-
coisas. E se falássemos, éramos severamente verbalmente” ra. Só que eu moro numa cidade do interior do
repreendidos. Eu fui repreendido na escola. Rio de Janeiro, onde a convicção que as pes-
Então eu tive muita dificuldade com a expres- Nós fazíamos uma viagem de trem, pegáva- soas têm a respeito da ditadura é que foi muito
são dos meus sentimentos. Portanto, a minha mos a fila para a revista e esperávamos muito boa. Eu acredito que para atingir todo o país
exigência em relação ao Estado é que de algu- para ter aquele encontro com nossos pais, e fa- não basta um canal da TV Cultura, porque a
ma forma me digam: “Não, eles não são bandi- zer a visita num espaço tão curto de tempo que divulgação dessa mídia é muito pequena.
nem matava a saudade. As visitas eram um
À esquerda Paulo, brincando com amigo, aos 7 anos,
misto de dor e de alegria, porque assim que Quando eu fui à primeira sessão da Comis-
Rio de Janeiro começavam eu sabia logo que iria acabar. Ha- são da Verdade de São Paulo, na Assembleia

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“E para dizer que muito veram e contam suas histórias. E eu imagino
que o único jeito de se atingir um país do ta-
pouca coisa mudou, manho do nosso, hoje, é desse jeito, por meio
institucionalmente a da internet. Mas não basta ter apenas o re-
gistro para as gerações futuras. Eu quero que
Polícia Militar atua esse registro ainda mude a minha vida, ainda
exatamente da mesma quero ver isso acontecer para reparar o que
senti dos 7 anos aos 49 anos de idade.
maneira que no passado
na ditadura” E para dizer que muito pouca coisa mudou,
institucionalmente, a Polícia Militar atua exa-
tamente da mesma maneira que no passado,
na ditadura. Hoje, a PM não está só reprimin-
Legislativa de São Paulo, ocorreu-me lembrar
do as pessoas que têm uma atividade política,
de algo que eu tinha visto a respeito da ques-
mas está assassinando e acontece um genocí-
tão do Holocausto: o [Steven] Spielberg ha-
dio dos jovens negros, pobres e que moram na
via recolhido fundos e doado, também parte
periferia dos grandes centros urbanos.
da renda do filme A Lista de Schindler, para a
criação de um museu de memória às vítimas
do Holocausto. Nesse museu há um arquivo PAULO DE MIRANDA SIPAHI PIRES nasceu em 14 de ja-
“Este é um desenho da tia Laura. Ela
enorme, acessível online e com testemunhos neiro de 1964. Estudou psicologia e trabalha como ban-
e o tio Huseyin foram as pessoas que
das pessoas que passaram por aquilo, sobrevi- cário na Caixa Econômica Federal. nos abrigaram enquanto nossos pais
estavam presos”.

“Este é o trem de prata, pegávamos esse trem para visitar os nossos pais, porque
a gente morava no Rio e eles estavam presos no presídio Tiradentes, em São Pau-
lo. Então a gente pegava o trem de prata. O trem de prata tinha que andar bem
rápido para a gente chegar logo e não perder a hora da visita. Pegávamos o trem
de noite no Rio de Janeiro e chegávamos de manhã em São Paulo. Para explicar
que ele andava rápido eu desenhei um coelho do lado direito”.

“Me disseram que mamãe lutou contra


a ditadura, então retratei mamãe como
guerrilheira com fuzil e vestida com as
cores da bandeira do Brasil”.

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“A torre de comando está avisando a
espaçonave para voltar com o homem que
saltou da nave quebrada. Como fazer para
trazer meus pais de volta? Muita angústia”.

“Nesse desenho estou falando da vida


bruta, porque estava muito bruto tudo
o que aconteceu com nossa família”.

“Não era possível falar da minha raiva e da


minha frustação, mas eu precisava dizer
e convencer a mim mesmo do meu poder
destruidorque eu tinha contra aqueles que
ousaram sequestrar minha mãe e meu pai”.

“O desenho retrata mais ou menos a situ-


ação que eu sofria. Imaginem três aviões
que tentam aterrissar e cada um tem seu
trajeto de aterissagem, e eu não podia estar
em nenhum desses trajetos. Isso traduz
o meu sofrimento, pois eu não sentia que
podia estar em algum lugar”.

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por Camila Sipahi Pires

Sou filha de Rita de Miranda Sipahi e Antô- depoimento, 9 de maio de 2013, junto a eles ou- zer gracinha, porque todo mundo me achava
nio Othon Pires Rolim. Para fazer esse relato tros desenhos reelaborados. Pareceu mais con- muito engraçadinha. Eles entraram, não sorri-
decidi realizar uma projeção de desenhos e veniente que o relato estivesse em primeiro ram, não fizeram nada, não quiseram nenhuma
textos, que nomeei como “O sequestro da mi- plano. Os desenhos, portanto, estão mais como interlocução com a gente, chamaram minha
nha memória”. Quero dedicá-lo a todos os pre- adornos. Espera um dia transformá-los em um mãe e deram voz de prisão para ela. Nós não
sos, desaparecidos, mortos e principalmente livro.] entendemos nada, porque foi tudo cochichado.
aos seus familiares – mães, pais irmãos, filhos... Ela foi para dentro, se desfez de alguns docu-
enfim, todos aqueles que sofreram direta ou mentos como se estivesse se arrumando e to-
indiretamente com a tortura, porque eu enten- mando banho e voltou para a sala.
do que o sofrimento que as famílias passaram
também foi uma forma de tortura. Saímos e descendo no elevador ela disse que
precisava nos levar a um lugar ali perto, em
Como filha, procurei dar a minha contribui- Copacabana, para casa da Rute – produtora de
ção contando um pouco daquilo que eu me re- teatro, muito sua amiga. Eu e o Paulo estáva-
cordo, que é pouco, já que acredito que naque- mos suspensos no ar, não entendíamos o que
le momento, assim como meus pais, a minha estava acontecendo. Eram cinco pessoas no
memória também foi sequestrada. Digo isso carro: minha mãe, os dois, eu e o Paulo. Ela pre-
porque no decorrer dos acontecimentos passei feriu dirigir porque sabia o endereço. Eles con-
por um processo de esquecimento, ou melhor cordaram. Foi aí que eu vi as armas. Tinha um
dizendo, “apagamento” de memória, gerado homem do lado dela, no banco da frente, que
pela angústia e pelo medo, que me poupou das encostou uma arma em sua cintura. O outro,
dores imediatas da separação. Em contraparti- que estava atrás comigo e com Paulo, colocou
da, levou consigo os rostos de pessoas queri- uma arma, pelo outro lado, apontada para ela.
das, como o de meu pai, minha babá chamada
Neném, meus amigos, momentos agradáveis, Um deles disse que se ela tentasse alguma
minha vida familiar e escolar. coisa eles teriam que tomar atitudes graves.
Senti um medo enorme em estar dentro do
Mas como contar tudo o que lembro quaren- A vivência da prisão de meus pais, além do carro. Tento desenhar esse momento, mas não
ta anos depois? Procurei trazer a criança Cami- esquecimento, também marcou a minha alma consigo. Até hoje fico angustiada com a ilumi-
linha, dar voz à pequenina. Então, eu escrevi e com medos atávicos e tristezas que somente nação amarelada em ruas desertas, como eram
desenhei. depois, ao amadurecer, mas principalmen- naqueles anos 1970.
[Para esta publicação decidiu expor somente te através da compreensão do que se passou,
Fomos levados para a casa da Rute. A gente
alguns dos desenhos apresentados no dia do pude entender e reconhecer suas origens.
saiu do carro, um dos homens ficou esperando
O sequestro de minha mãe foi assim: era noi- na rua, o outro subiu no elevador conosco. A
À esquerda Rita, sentada ao fundo, e Camila, de pé, aos 7 anos, de- te e estávamos em casa quando dois homens minha impressão é que era um elevador mui-
pois de sua mãe solta. Ao centro, Camilinha dança nua – ilustração
de Camila Sipahi Pires bateram à porta. Como de costume, eu quis fa- to apertado. A gente saiu e eu vi um corrredor

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“Eu fazia meus enorme. Voltei lá depois de adulta e vi um corre- foram morar conosco em nosso apartamento.
dor pequeno, a visão de uma criança distorce as Tio Huseyin era muito amoroso, animado, di-
comícios, porque coisas... Fomos andando pelo corredor de mãos vertido. Tia Laura era uma tia deliciosamente
eu precisava falar dadas. Ela bateu na porta, a Rute abriu, e minha gorda, gentil e enérgica. Logo depois chegou
mãe disse algo em seu ouvido. Rute ficou com a Tereza, ela era negra, também muito gorda e
para todo mundo que aquela expressão de horror no rosto. A seguir, veio trabalhar em nossa casa.
meus pais estavam pela primeira vez, depois de toda aquela cena
Acho que tudo isso se deu em torno de um
começar, minha mãe nos olhou nos olhos e dis-
presos e que aquilo se chorando: “Aqueles homens... vou ter que ir mês e meio, dois... não posso dizer com certeza.
não era justo, que o com eles. Vocês ficam aqui com a tia Rute”. Ela A tia Laura ficou muito preocupada, porque
nos abraçou e se foi. A porta se fechou. A partir
presidente estava dali surgiu uma ansiedade enorme, a gente se
quando eles começaram a explicar que os mili-
tares eram malvados, pessoas más, que tinham
errado, que não era perguntanto: “Quando ela vai voltar? Cadê mi-
nha mãe, cadê meu pai?”
prendido os pais e as mães, comecei a fazer co-
justo mesmo, que mício na porta da escola.
A essa altura meu pai já estava preso no Reci-
meus pais eram fe (PE), mas nós não sabíamos. Naquela época,
Antes da prisão eu não tinha noção do que
estava acontecendo, mas eu sabia que existia al-
pessoas boas, que ele morava em São Paulo e nós no Rio, com mi- guma coisa que não podia ser dita. Tenho uma
nha mãe. Eles não estavam separados, eles de-
tinham filhos bons” cidiram viver assim para nos proteger, porque
lembrança muito antiga (porque eu apaguei
tudo que foi anterior à prisão), de ir a um en-
em São Paulo o pessoal da Ação Popular (AP) terro de alguém, não sei quem era, num lugar
estava “caindo”. E, de repente, a gente estava ermo, e que as pessoas choravam muito. Estava
na casa da Rute. Eu, muito ansiosa. O Paulo, todo mundo muito assustado e eu lembro des-
muito ansioso. Passou muito tempo sem que ses cochichos, desse clima de medo pré-prisão.
a gente soubesse onde estavam a Rita e o Ari. Sabíamos que tinha alguma coisa que estava
estranha no ar, mas não sabíamos o que era. Sa-
As coisas só melhoraram um pouco quando
bíamos que eram segredos. E a partir da prisão
nosso tio Huseyin, irmão de minha mãe, ligou.
o clima era de uma tristeza muito grande.
Eu lembrava dele... Ele avisou que estava indo
para o Rio de Janeiro com minha tia Laura Eu fazia meus comícios, porque eu precisava
e meu primo Vitor, de 1 ano e meio. Quando falar para todo mundo que meus pais estavam
eles chegaram fizeram uma coisa maravilhosa, presos e que aquilo não era justo, que o presi-

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dente estava errado, que não era justo mesmo, da, cabelo preso e saia marrom. Não era a mi- “Muitas vezes eu
que meus pais eram pessoas boas, que tinham nha mãe linda, que eu via no Rio de Janeiro,
filhos bons. Eu dizia isso na porta da escola e de cabelos soltos. De repente, vi aquela mulher pensava: ‘Eles vão
as pessoas diziam: “Psiu, psiu...”. Me lembro frágil, com a cor branca de pessoa doente, com matar a gente, a
dos pais de colegas e da minha tia me dizendo: olheiras... Foi um encontro caloroso, mas com
“Fala mais baixo, não precisa dizer isso toda uma pessoa que estava arrebentada. Foi um gente vai ficar preso
hora”. Naquela época tudo era muito perigoso. encontro tenso. aqui’. Na saída do
Eu, na minha inocência, não entendia isso. Eu
não tinha vergonha, eu queria falar que não era Eu sabia que eu ia ver meu pai também. Eu prédio os policiais
justo, que minha mãe não tinha feito nada. Eu
queria deixar isso muito claro.
não o via há muito tempo. Vi os dois no mesmo ainda ficavam
dia. O que acho mais grave disso tudo é que
me lembro menos do meu pai do que de minha apontando os fuzis
Na primeira vez que fui ao presídio fiquei
muito ansiosa. Eu estava louca para chegar em
mãe. Eu acho que isso ocorreu por conta do
que aquele período fez comigo: apaguei meu
para nós”
São Paulo. Pegamos aquele trem dormitório, pai tão amado...
nós dois e a tia Laura. Ela foi uma grande mu-
lher. Era muito carinhosa, mas também um tan- As visitas aconteciam duas vezes por mês, Até a hora que tocava uma sirene que anun-
tinho brava. Eu sentia muita segurança com ela. a cada quinze dias. Depois da revista a gente ciava o término da visita. Acho que era a pior
A chegada à visita era sempre um momen- entrava no pátio, encontrávamos nossos pais e parte. Pior que a entrada, porque na entrada
to muito ambíguo. São Paulo era uma cidade outras famílias de presos com seus filhos, ou- ainda havia a esperança do encontro. Na saí-
fria, nublada, cinza. A gente descia na Estação tras crianças com quem a gente brincava en- da havia a despedida, eu sabia que ia ver meus
da Luz e andava até o Presídio Tiradentes, que quanto os adultos conversavam. Tinham car- pais só depois de muito tempo e que não po-
era um lugar todo murado. Lembro de passar tinhas, pessoas curiosas em nos conhecer... Me deria levá-los comigo. E o mais grave era que
por debaixo do arco e de pessoas que nos rece- lembro do velho Takaoka com seus ratinhos levavam a gente para outro pátio, com um
biam de forma gélida. Eles nos mandavam tirar feitos de papel higiênico cor de rosa ou cinza. grande brasão do Exército brasileiro na pare-
toda a roupa. Para nós, que estávamos feli- Dentro do ratinho havia um fiozinho de seda e de, que era algo assustador, e os guardas que
zes, indo para um encontro tão importante, um carretel. Ele puxava o fiozinho e o ratinho ficavam nas guaritas em cima dos muros de
encontrar essa barreira de frieza abalava nossa andava sozinho... Era muito lindo. todo o presídio apontavam as armas para nós.
alegria. Trancavam os portões e ficávamos nesse pátio
Naquele lugar tão triste tinha dessas coisas. pequeno, junto com todos os outros familiares,
Na primeira visita, minha mãe estava muito Era como se aquelas pessoas tristes, presas ti- era muito claustrofóbico, porque todo mundo
magra e pálida, vestia uma blusa rolê mostar- vessem um suspiro de alegria. ficava apertado ali. Depois de algum tempo,

Eles falavam baixinho,


eles contavam segredos...

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que era eterno pra mim, de muito barulho de chegado. Esperamos durante um bom tempo, gente ditava. Nas cartinhas eu contava tudo
portões fechando, começavam a abrir os por- mas conseguimos. A autorização chegou e que estava acontecendo, que eu tinha brigado
tões de saída, que eram vários também. Muitas dessa vez entramos acompanhados pela guar- com o Paulo, perdido um dente, que tinha ga-
vezes eu pensava: “Eles vão matar a gente, a da, não no pátio, mas na Torre. nhado parabéns na escola. Lembro que um dia
gente vai ficar preso aqui”. Na saída do prédio “escrevi” que eu era uma menina muito infeliz,
os policiais ainda ficavam apontando os fuzis Foi uma alegria as pessoas nos verem ali, as com o desenho de uma menina chorando. Eu
para nós. presas ficaram muito tocadas. Sentimos muito manifestava muito sofrimento nos meus dese-
amor por parte delas, embora fosse um lugar nhos, nessa coisa de morte, de perda.
Desde essa experiência nunca gostei de ficar triste. Era tudo muito arrumado, as camas be-
em lugares fechados com muita gente. Era o fim liche cobertas com mantas feitas de retalhos, No período que meus pais estiveram presos,
do dia, a gente voltava para a Estação da Luz e coisa que atualmente, inclusive, tem a ver com o Paulo ficou muito agressivo e teve que fazer
viajávamos a noite inteira para chegar ao Rio. a costura que eu faço hoje. ludoterapia. Para mim era muito frustrante,
porque eu passava uma hora e meia vendo ele
Acho importante dizer que a saída do Tira- Uma das únicas coisas que me lembro é de brincar e eu não. Mas eu contava muito com
dentes, além da dificuldade de nos despedir uma mulher, com vestido branco, andando na- o Paulo para outras coisas. Ele representava a
dos pais e deixar aquela situação para trás, quela escada em caracol sem fim, com cabelos minha segurança.
daquele reino onde ninguém sorri, os policiais, desgrenhados e falando sozinha, uma realida-
com toda aquela encenação, queriam deixar de de muita loucura. Apesar de tudo, acho que a situação poderia
um recado bem claro: engendrar nas nossas ter sido muito mais dramática. Meus tios fo-
cabeças o medo. Eles não só acreditavam que Depois de um tempo e muitos beijinhos, elas ram muito importantes naquele momento tão
os nossos pais eram bandidos, mas também me chamaram para falar perto de um buraco na conturbado. O Vitor, meu primo, também, pois
que nós viríamos a ser “perigosos” no futuro. parede, uma pia, um encanamento, e disseram: deixei de ser a caçula.
Eles queriam desfazer qualquer possibilidade “Fala oi pro seu pai que ele está ouvindo do ou-
de repetirmos os atos dos nossos pais. tro lado”. E eu entendi que eles tinham alguma Quando o presidente – era o Médici, mas eu
comunicação ali, por um cano. Me emocionei achava que era o Geisel – falava na televisão,
Tem uma coisa que me disseram e que não muito ao ouvir a voz dele do outro lado: “Oi, eu me sentava na frente e tentava convencê-lo
sei se é verdade: que eu e o Paulo fomos umas filha...” Lembro que não tinha privada, fizemos que meus pais eram muito bonzinhos.
das poucas crianças a ir à Torre das Donzelas, xixi num buraco no chão. Logo depois fomos
onde ficavam as presas políticas. Foi uma visi- avisados que era hora de ir embora. Muito tempo depois, disseram que minha
ta muito esperada e que ocorreu durante a se- mãe tinha sido solta e que estava na casa da tia
mana. Lembro da angústia. Quando chegamos Na vida lá fora, no Rio, a gente recebia car- Elenita e do tio Aytan, em São Paulo. Eu adorava
lá disseram que a nossa autorização não tinha tinhas muito amorosas. A tia escrevia o que a a casa deles, adorava brincar com meus primos

Mamãe, mamãe não


chore, a vida é assim
mesmo...

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Guilherme e Fabiano, acho que a Isabel ainda so mais seis meses. O retorno para São Paulo “Naqueles dias
não tinha nascido. Viajamos para São Paulo, foi uma quebra de ritmo. O fim da convivên-
para o reencontro. Acho que aquele foi o maior cia com a tia Laura, o tio Huseyin, do Vitor, da aconteceu uma coisa
susto que tomei na vida, porque quando eu che- Tereza, foi novamente uma perda. Claro que que me envergonhou
guei na casa de meus tios bem cedinho e entrei eu queria ficar com a minha mãe, mas já tinha
no quarto de meus primos, que era bem grande, me adaptado a uma nova situação. Houve, de muito. Várias vezes
vi no meio do cômodo uma cama de campanha, novo, uma ruptura. Fomos novamente morar chamei minha mãe
dobrável, com uma pessoa totalmente coberta em outro lugar, tivemos que nos acostumar
com um lençol branco. Para mim, aquilo era com outros amigos, com nova escola. Depois de tia e não de mãe.
morte. Pensei: “Minha mãe morreu, devolveram meu pai saiu da prisão, ficou alguns meses em Porque a palavra mãe
um corpo”. Comecei a apertá-la e falar: “Mãe, nossa nova casa até se separar definitivamente
mãe”. Aí ela tirou o lençol de cima da cabeça e de minha mãe. tinha se tornado a
estava vestida com uma camisola branca. E es-
tava muito pálida. Então ela nos abraçou. Tempos depois se casou com a Cida Ribeiro, e palavra tia”
agreguei sua família à minha vida, pessoas mui-
A primeira coisa que perguntei à minha mãe to queridas, como a Dita e o Chico, pais dela.
foi: “Você vai voltar para a prisão?” E ela: “Não,
Camila, quem é preso uma vez não é preso E minha mãe se casou com o Alípio Freire.
nunca mais”. E isso me deu um alívio enorme. Fomos morar numa casa no Alto da Lapa. Co-
Eu não sabia que, na verdade, era uma gran- meçei ali a ter uma vida normal, uma infância
de mentira, porque meu pai já tinha sido preso muito mais gostosa, brincando com amigos na
anos antes, logo depois do nacimento do Pau- rua. Os pais do Alípio também foram muito
lo, no Recife, na queda do Arraes, em 1964. Essa importantes, assim como a chegada de minha
era a segunda vez que Miguel estava preso. irmã Maiana, quando eu tinha 9 anos.

Naqueles dias aconteceu uma coisa que me Fomos estudar em colégio público, porque
envergonhou muito. Várias vezes chamei mi- era o que dava naquela época. E eu sentia que
nha mãe de tia e não de mãe. Porque a palavra a ditadura continuava ali. A partir da prisão
mãe tinha se tornado a palavra tia. dos meus pai peguei horror a qualquer militar,
guarda, policial. Anos antes eu ia visitar meus
Minha mãe voltou a morar com a gente e pais na cadeia, via todo mundo fardado, pes-
voltamos para São Paulo. Meu pai ficou pre- soas que nunca nos tratavam bem. Aquele co-

Seu presidente solta minha mãe e


meu paizinho, eles são bonzinhos!!!!

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“Com 9 ou 10 anos eu légio parecia assim, todos fardados, com gra- Com 9 ou 10 anos eu ficava imaginando o
des nas janelas... Eu costumava falar para meu que tinha acontecido, mas tinha receio de per-
ficava imaginando o que amigos que meus pais tinham sido presos. Mas guntar aos meus pais, medo de tocar naquela
tinha acontecido, mas sabia qua a sociedade não via com bons olhos. ferida. Meu pai me dizia algumas coisas, minha
Para aquelas pessoas não era nada bom ser fi- mãe outras. O que sempre tive claro para mim
tinha receio de perguntar lho de presos políticos. Nunca tive vergonha, é que eles tinham lutado pelo povo brasileiro.
aos meus pais, medo de mas houve momentos em que eu não falei, por- Quando fui ficando adolescente, comecei a en-
que as pessoas entediam que gente de esquer- tender que existia tortura e, com 14, 15 anos, eu
tocar naquela ferida” da era terrorista, criminosa. Era uma sociedade pedi ao Alípio para descrever para mim o que
profundamente reacionária. Além disso, mi- era aquilo. Eu pensava: “Como vou conseguir
nha mãe era uma mulher desquitada e havia conviver com a ideia de que meus pais sofre-
um preconceito enorme ao desquite. Nós, en- ram tanto, apanharam tanto, sem eu saber o
quanto estudamos lá, tinhamos que cantar o que foi esse sofrimento?” Foi importante saber
Hino à Bandeira, amar o Brasil dos militares. o nível de agressividade daquilo. Me tornei
Até que conseguimos ir estudar em um colé- parte daquela luta...
gio particular, com pessoas mais de esquerda.
Foi muito importante para nossa autoestima. Depois daquilo fui agraciada por ver muitas
coisas importantes, como a abertura política,
Sobre a tortura, eu sabia que algumas pesso- a Anistia, os exilados voltarem com a gente
as ficavam machucadas, porque quando íamos cantando “O Bêbado e a Equilibrista” no Aero-
ao Presídio Tiradentes havia pessoas que esta- porto, a criação do PT, a luta pelas Diretas Já.
vam doentes, infelizes, via que tinha gente que Enfim, senti o suspiro depois de tanto tempo
tinha sido muito machucada. de um novo Brasil.

A visita...
Eles sequestravam,
torturavam, prendiam,
matavam, ocultavam
cadáveres, mentiam,
Eles eram os homens
da lei...

206 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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“E sei que milhares de tinha 18 anos me casei novamente, com o Sko- bre a violência nas instituições públicas, nas
wa e tive meu segundo filho, o Bento, tão espe- delegacias e penitenciárias. Então, comecei a
crianças hoje passam pelas rado e amado. fazer os bonecos. Foi um projeto que comecei,
mesmas penalizações que Com seu nascimento tive que me afastar da
abandonei, voltei novamente. Busco sempre
abordar esse assunto, pois acredito que se não
eu e meu irmão passamos função de diretora de arte na agência de publi- passarmos a limpo a violência que aconteceu
no passado, independente cidade onde trabalhava. Então, comecei a fazer
bonecos de feltro para portas de maternidade,
abertamente – pois nada foi tão escondido na-
quela época, muito pelo contrário – , não ire-
de serem filhos de presos para conseguir dinheiro, para ajudar na vida. mos mudar o sistema penitenciário de hoje. E
comuns, porque criança Eu fazia bonecos muito bonitos, famílias feli-
zes, comercial de margarina...
sei que milhares de crianças hoje passam pelas
mesmas penalizações que eu e meu irmão pas-
é criança, opressão é samos no passado, independente de serem fi-
Um dia comecei a ver que aquilo não era a
opressão” minha realidade. Fui sempre muito feliz com
lhos de presos comuns, porque criança é crian-
ça, opressão é opressão.
a minha maternidade, não era isso, mas tinha
Aos 18 anos, tive minha filha Flora. Foi um a necessidade de fazer outros bonecos. Fiz, E a luta continua...
grande desafio e uma grande benção. O pai então, a série de bonecos torturados. Eu não
dela, Flávio, faleceu quando ela tinha 5 anos. torturava os bonecos... eu retratava como era
Foi muito doloroso ver minha filha passar aos a tortura.
5 anos por uma realidade tão trágica. Por muito CAMILA SIPAHI PIRES nasceu em 6 de julho 1966, em
tempo vi, refletido nela, as mesmas dores que Na minha família falamos sobre isso a vida São Paulo (SP). Formada em Produção Editorial, foi
diretora de arte em publicidade por 25 anos. Hoje tra-
eu passei nessa idade, mas com ela era mais inteira, mas a impressão que eu tenho é que
balha com design editorial e continua fazendo seus
doído, pois seu pai não iria voltar. Quando ela eu estou em uma sociedade que não pensa so- bonecos.

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Antonio Othon Pires Rolim (Ari Rolim), nas-
ceu em 14 de outubro de 1936 na cidade de Juazeiro do Nor-
te, Ceará, filho de Antonio Pires Sobrinho e Teotonia Rolim
Pires. Iniciou sua militância na Juventude Universitária
Católica (JUC), em 1957. Formou-se em direito pela Uni-
versidade Federal do Ceará e, em 1961, ingressou na Supe- Álbum de família
rintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)
1 e 2. Ari e Rita
transferido posteriormente para o Ministério do Planeja-
3. Paulo ainda pequeno, Recife (PE)
mento. Participou da criação do movimento político Ação
Popular no Nordeste, tendo sido seu dirigente em Pernam- 4. Ari e Paulo aos 3 anos
1 2
buco. Foi preso e processado pelo IV Exército em Recife
e afastado do serviço público. Mudou-se para São Paulo,
onde continuou sua militância política. Foi professor da
Pontifícia Universidade Católica (PUC–SP) e participou da 3 4
criação do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores),
quando foi preso pela OBAN (Operação Bandeirante) em
junho de 1971, em cujas dependências foi submetido a tor-
turas e posteriormente condenado pela Segunda Auditoria
de Guerra a cinco anos de prisão, tendo cumprido dois anos
e sete meses de pena no Presídio Tiradentes da capital do
Estado de São Paulo. Durante nove anos participou da di-
reção do Le Monde Diplomatique do Brasil, edição em lín-
gua portuguesa. Participou ainda da criação e implantação
da Associação pela Tributação das Transações Financeiras
em Apoio aos Cidadãos (ATTAC), uma organização contra a
mundialização financeira do capital. Há vinte e cinco anos
desenvolve um trabalho de organização da área de proje-
tos e consultoria no setor de engenharia e arquitetura en-
volvida com estudos e projetos de infraestrutura brasileira.
5. Paulo aos 3 anos
Rita Maria de Miranda Sipahi nasceu em e meio
23 de fevereiro de 1938, em Fortaleza (CE). Filha de Tahir 6. Rita e Paulo aos 4 anos
Sipahi e Alayde Miranda Sipahi. Graduada em direito pela 7. Sequência de fotos
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). No início Ari e Paulo aos 5 anos
dos anos 1960 iniciou sua participação política na Juventu-
de Universitária Católica e no movimento estudantil. Foi
representante da União Nacional dos Estudantes (UNE), 5 6

no Ceará. Participou da fundação da Ação Popular (AP) no


Ceará e integrou o Partido Revolucionário dos Trabalhado-
res (PRT), dissidência da AP. Foi casada com Antônio Othon
Pires Rolim, também militante da AP. Em novembro de
1964, quando morava no Recife foi compelida a refugiar-se
na cidade de São Paulo, em virtude da prisão preventiva de
seu então marido, onde passaram a residir. No ano da 1971,
quando residia no Rio de Janeiro, foi presa. Na ocasião, es-
tava em seu apartamento com seus dois filhos, Paulo e Ca-
mila, com 7 e 5 anos, respetivamente. Seu marido, à época,
encontrava-se por motivo de trabalho fora da cidade. Foi
sequestrada (não havia autorização para prisão) por uma
equipe do DOI-CODI/RJ, onde ficou durante alguns dias. No
entanto, a ordem de busca havia sido emitida pela Opera-
ção Bandeirante (OBAN/SP), para onde foi levada. Desde os
primeiros momentos da prisão, nos dois órgãos de repres-
são política, foi torturada. Depois de permanecer por duas
semanas na OBAN, foi encaminhada para Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS), local em que era feito o
reconhecimento da prisão política. Permaneceu presa du-
rante onze meses no Presídio Tiradentes, na Torre das Don- 7
zelas. Desde o ano de 1974 é casada com o jornalista Alípio
Freire, com quem tem uma filha, de nome Maiana. Foi ser-
vidora pública da Prefeitura Municipal de São Paulo, com
atuação na criação do Sindicato dos Servidores Públicos de
São Paulo. Participou da fundação do Partido dos Trabalha-
dores, em 1980. Hoje é Conselheira da Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça, cuja atuação é reconhecida como
serviço público relevante, sem remuneração.

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8. Camila com 6 meses
9. Camila, Rita e Paulo, pouco antes
da prisão, Rio de Janeiro
10 e 11. Camila aos 4 anos
12. Tia Laura
13. Camila, Vitor e Paulo, Rio da Janeiro
14. Huseyin e Laura, os tios que
ficaram com Paulo e Camila 8

10 14

11

12

13

15

15. Camila aos 5 anos, brinca com amiga, Rio de Janeiro 18

16 e 17. Camila aos 7 anos, Paulo com 9 anos


18. Maiana, irmã de Paulo e Camila, aos 2 anos, tomando
banho de mangueira na frente da casa da Rua Curuzu,
São Paulo

16 17

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Fragmentos e histórias
por Rita Sipahi

Fragmentos da história Desde criança, o Paulo tinha uma personalidade Certa feita, foi permitido que os dois fossem ao
forte e marcante. Não desistia do que queria. In- presídio passar um dia comigo na Torre (como
de um menino que nasceu sistia, refletia e voltava à carga com novos argu- chamávamos a Ala Feminina), e com o pai, no
em 1964, quando foi mentos. Sempre reagiu com veemência, quando Pavilhão 1 da Ala Masculina. Depois da visita, os
contrariado. dois voltaram muito tristes para o Rio. A realidade
desfechado um golpe da prisão teria sido mais difícil de suportar que a
A continuidade da nossa militância colocava si-
contra o Brasil tuações limites, que estiveram presentes ao lon- fantasia que tinham sobre o local onde seus pais
go da sua infância, e ele os percebia mesmo que estavam?
Terminei o último ano do curso de Direito no Re- Durante outra visita, o Paulo chorava todo o tem-
nada fosse contado: conversas, sussurros, contra-
cife, em 1963. No dia 14 de janeiro seguinte (1964), po. Depois de muita insistência consegui que ele
ções das faces, medo disfarçado e o clima tenso.
na Maternidade Beneficência Portuguesa, nasceu me dissesse o que o angustiava. Ainda chorando,
meu primeiro filho: o Paulo. Em São Paulo, a escola que frequentou aos 2, 3
anos, chamava-se Pequeno Príncipe. Um dia, a ele me perguntou: “Você vai ficar para sempre na
A transferência para o Recife se dera pelo casa- prisão? Sua prisão é perpétua?”
diretora me perguntou por que o Batman que o
mento com Antônio Othon Pires Rolim – Ari, Enquanto estivemos presos, nossos amigos se
Paulo representava era diferente do Batman de
funcionário da SUDENE. Minha atuação política, organizaram para que Paulo e Camila tivessem
seus amigos. E concluímos que era pelo fato de
iniciada no movimento estudantil do Ceará, pros- assistência psicológica. Assim, as crianças foram
não ter televisão em casa. Comprei uma TV.
seguiu em Pernambuco. Depois de alguns anos na atendidas pela doutora Clélia, psicóloga da PUC
Juventude Universitária Católica (JUC), a partir Quando nos transferimos de São Paulo para o
– Rio. Quando fui solta (meses antes do Ari), já de
de 1962, passei a militar na nova organização polí- Rio, em mais uma tentativa de escaparmos da
volta ao Rio, na saída da última sessão do acom-
tica, criada naquele ano, a Ação Popular (AP). prisão, as crianças tiveram de enfrentar outras
panhamento, ao me devolver simbolicamente os
Eram tempos de muita efervescência, expectativas novas mudanças: escola nova, amigos deixados
dois, Clélia disse: “Até mais, Paulo”. Ele, muito sé-
e esperanças. Construiríamos um novo Brasil – era para trás, alfabetização que não se concluiu. A
rio, respondeu: “Até nunca”.
o que nos apontavam o Plano Trienal, as Reformas reação do Paulo foi a de me responsabilizar:
“Você me tirou da minha escola e eu estava A criança bonita, amorosa, cheia de delicadeza
de Base e a grande mobilização popular. foi se transformando num menino arredio, com
aprendendo a ler”.
A grande festa duraria pouco. muitos medos, que por volta dos 10 anos passou a
Nesse tempo, uma das reações físicas do Paulo
Paulo completava dois meses e dezessete dias adorar uma pequena tartaruga.
foi engordar. Tornou-se quase obeso. Só voltaria
quando, na noite de 31 de março, foi desfechado o a emagrecer aos 17, 18 anos. A morte do animal (seu pai e eu já estávamos em
golpe, e o presidente João Goulart obrigado a dei- liberdade) transformou-se numa verdadeira tragé-
xar o País. Nada mais seria como antes. Em 1971, meu então marido e eu fomos presos.
dia: ele chorava sem parar – queria um enterro num
Eu estava sozinha em casa, com as crianças. Con-
Logo depois, o pai do Paulo foi detido e levado cemitério de tartarugas, que insistia em dizer que
segui que os policiais permitissem que, antes de
para o DOPS do Recife. Liberado, teve em seguida existia. Acabamos por convencê-lo a depositá-la no
ser levada para o DOI-CODI, deixasse os filhos
sua prisão preventiva decretada. Decidimos nos rio Pinheiros, na água – de onde era originária. Con-
em casa de um casal de amigos – Rute e Roberto
refugiar em São Paulo. sultei o doutor Antônio C. Cesarino para entender
Cartaxo (gratidão imensa a ambos). Em segui-
o que acontecia. Ele me explicou que o Paulo chora-
Foi nesse ambiente que o Paulo viveu seus primei- da, meu irmão Huseyin e minha cunhada Laura
va por todas as mortes – inclusive a dele.
ros dias. Tudo isso certamente incidiu e decidiu saíram do Recife onde moravam e se transferi-
sobre seus caminhos. ram com os filhos para o Rio, para assumir o nos- Certamente muito sofrimento e dificuldades o
so lugar de pais. Gesto de amor e dedicação, ao acompanharam na adolescência, algumas percebi-
Em 1966, já com 2 anos e em São Paulo, nasceu sua
qual sou eternamente grata. das, outras, certamente não. Somente às vésperas
irmã, Camila.
dos 40 anos, depois de assistir o filme argentino
Os seus primeiros anos foram marcados pela Ari e eu fomos levados clandestinamente para Kamchatka (que trata de um casal de militantes
adaptação à nova cidade, pela instabilidade da o DOI-CODI de São Paulo, onde permanece- argentinos obrigado a viver com seus dois filhos
nossa vida diante de dificuldades colocadas pela mos incomunicáveis até a transferência para o na clandestinidade e que, por fim, entrega as duas
realidade do país. Alguns sinais revelavam isto: DOPS/SP. Somente então foi quebrada a nossa crianças aos avós), ao chegar em casa, sentou-se
quando tinha 4 anos, certo dia Paulo começou a incomunicabilidade e, nesse momento, as crian- junto a mim no sofá, me abraçou e disse: “Fique
vomitar sem parar. Eu o levei ao Dr. Rubem Blasi ças que acompanhavam tudo a distância foram tranquila, agora eu entendi tudo”.
(pediatra) que me perguntou: “O que está aconte- autorizadas a nos visitar. A nossa expectativa
era a de que constatassem que estávamos vivos Terá entendido mesmo? A gente consegue enten-
cendo com este menino? Não tem nada, a não ser
e assim ficassem mais tranquilos. As fantasias der a barbárie?
a reação do vômito”.
passariam a ser outras – quem sabe? Formado em Psicologia, Paulo é funcionário da
Calei. Não podia contar o que ocorria: meu irmão
Do DOPS fomos para o Presídio Tiradentes, Caixa Econômica Federal, tem um filho – Tahir, de
(Aytan) e minha cunhada (Helenita) que também
onde passamos a ter visitas semanais. Quinze- 25, uma neta – a Glória, de um ano, e é militante há
viviam em São Paulo, haviam sido presos. Apesar
nalmente, Laura e/ou Huseyin se deslocavam do cerca de sete anos, do Partido Socialista dos Tra-
de militarmos em organizações distintas, cor-
Rio para São Paulo, para que as crianças pudes- balhadores Unificado – PSTU.
ríamos novos riscos, o que intensificava o clima
de tensão. sem nos visitar.

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Histórias de uma menina uma questão de princípios... eu, com dois filhos se em tom alto e incisivo: “Moço, moço, deixe a
pequenos e na clandestinidade, não fui poupada. minha mãe voltar pra casa”.
que nasceu quando a
Saía às quatro horas da manhã disfarçada de ope- Foram onze meses que fiquei separada da Ca-
esperança de um novo país rária para procurar emprego na rua Mofarrej, na mila. Ela e o irmão continuaram a ir à escola, to-
já sucumbira ao golpe Vila Leopoldina. Saía de casa às 4 horas, e voltava dos se desdobravam para que nada lhes faltasse.
antes que a Camila e seu irmão acordassem. Aca- Dona Maria – mãe do Marcus e Sonia Lins – cos-
bei por conseguir uma vaga na BIC. Mas, diver- turou o vestido da festa junina; Rute e Roberto
Camila nasceu no dia 6 de julho de 1966. Seu nas- gindo da orientação da AP, não assumi a vaga, Cartaxo – em casa de quem a deixei juntamente
cimento foi cheio de acidentes. não me tornei operária. com o irmão, no momento em que fui presa e es-
Ao comunicar ao meu pai que ela teria o nome Um dia a Marilene chegou para me ajudar. Dona tava sozinha em casa com os dois, que se arru-
de sua mãe turca, ele mandou um telegrama ad- Maria, sua mãe, aparecera um dia procurando mavam para dormir –, fizeram tudo que puderam
vertindo que a escrita correta seria Jamille. Mas emprego e ficou um tempo, Quando saiu, fez-se para tranquilizá-los; a tia Laura e o tio Huseyin
ficou Camila. substituir pela Marilene. (minha cunhada e meu irmão) que foram morar
no Rio, ocuparam o nosso lugar e foram seus pais
Nasceu com um torcicolo congênito, que lhe cau- A Camila se apegou muito à Mari. de fato. As compensações eram muitas: carinho,
sava muita dor e um choro constante. Uma fisio-
Todos adoravam a Camila. atenção, tudo que estava ao alcance deles foi fei-
terapeuta alemã (recomendada pelo médico que,
to, sempre preocupados em lhes dar segurança.
depois de vários outros consultados, deu o diag- Quando começou a frequentar a escola, carregava
Mas, mesmo assim, conforme me contou a Lau-
nóstico acertado) não lhe poupava o choro. Eu sempre uma sacola comprida, cheia de pequenas
ra, cada vez que aparecia um militar dando en-
não conseguia assistir às sessões – saía de perto coisas, que arrastava pelo chão. Era comovente vê-
trevista na TV, os dois se abraçavam e ficavam
para não chorar também. -la com aquela sacola, tão pequenina e decidida
agarradinhos. Do mesmo modo que um dia sua
Desde bebê tinha preferências bem definidas: em meio a todos os perigos e incertezas que nos
mãe fora levada quando os preparava para dor-
nunca aceitou mamadeira. Resultado: aos oito rondavam, e que ela certamente percebia.
mir, o mesmo poderia acontecer com eles ou com
meses pegava a colher e comia sozinha, com ple- Encantava com seu jeito de chegar, suas pergun- os tios. Quanta coisa devia se passar por suas
na desenvoltura. tas, sua carinha cheia de graça, a falha entre seus cabeças... como juntar as palavras para fazer as
A ajuda naquele tempo era dos amigos próximos primeiros incisivos superiores, uma leveza que perguntas? As respostas não os tranquilizariam,
– nossos companheiros de militância; do meu ir- inspirava carinho. A todos encantava seu modo os adultos também não tinham as respostas. Um
mão Aytan e da minha cunhada Helenita, que fa- independente, despachado e sem complicações. tempo de muita paciência e tristeza.
ziam residência médica em São Paulo e moravam Sobretudo, Camila estava sempre bem humorada. As respostas às perguntas caladas estão, de certo
em nossa casa. Mas todos trabalhavam e, durante modo, na carta feita para a Mari.
Quando mudamos para o Rio, em virtude das
o dia, eu ficava sozinha com a Camila – além do
prisões de companheiros da AP em São Paulo, Para demonstrar como esta questão persistiu no
Paulo, que tinha 2 anos e meio. Eu andava exausta.
Camila se ressentiu muito da falta da Marilene. tempo, relato o que ouvi quando já estava em
Uma manhã, enquanto estendia as fraldas no va-
Guardei uma carta dela para a Mari: ela pedia para casa, depois da prisão. Certo dia, enquanto Ca-
ral, o Paulo me disse: “Ela chora muito. Vamos por
eu escrever o que ditava. Eram cartas longas, e re- mila tomava banho e o Paulo aguardava sua vez
no lixo. Mas lá fora, para o lixeiro levar”.
produzo em seguida um trecho daquela que ainda sentado num banco, ela lhe perguntou: “Paulo,
Até hoje me lembro daquela sensação de cansaço. tenho e que expressa a dor de haverem sido sepa- porque será que nossos pais foram presos mes-
Além de tudo, estávamos clandestinos em São radas: “Mari, eu estou com saudades. Quero ir na mo? Eles dizem que foi porque eles falavam mal
Paulo, vindos do Recife onde, logo depois do sua casa, estou com muitas saudades de você. Não do Governo. Mas eu já vi tantos tios falarem
golpe, meu então marido, o Ari, depois de ter quero que você morra. Olhe, eu quero falar com mal do Governo e não foram presos...” Paulo res-
passado cerca de vinte dias no DOPS/PE, teve você, eu estou muito triste. Você está feliz, mas a pondeu: “Ora, sua burra, você não entende nada...
decretada a prisão preventiva. Juntamente com gente não está não. Eu estou muito triste...” É que os outros só falavam. Os nossos pais fala-
isso, havia também os compromissos com a reto- Isto me remete ao quanto ela sofreu quando fo- vam e faziam, e o Governo tinha provas do que
mada da militância e todos os cuidados e tarefas mos presos. Recordo dela, pequenina, com seu eles falaram e fizeram”. Ela, meio decepcionada,
daí decorrentes. vestido vermelho estampado de elefantes bran- pronuncia um “Ah, sim...”
Camila cresceu em meio à tensão da nossa mi- cos, na sala do DOPS/SP – juntamente com o ir- Camila sempre se interessou em conversar e pen-
litância, dos sustos, dos medos; assistindo reu- mão – levados pelo tio Huseyin, que conseguiu sar sobre o que aconteceu naqueles anos, e tem
niões; gente que chegava e saía; gente que per- autorização especial para uma visita, ainda que desenvolvido diversos trabalhos tridimensionais
manecia mais tempo em nossa casa, e depois estivéssemos incomunicáveis. Sempre conversa- e ilustrações a esse respeito. Hoje, formada em
se ia. Como militante da Ação Popular (AP), em deira, nesse dia tentava falar com o delegado que comunicação, é ilustradora, programadora visual
virtude da política de integração na produção assistia à visita. Como ele não lhe desse a menor e editora de arte. Tem dois filhos: Flora – de 28
definida pela organização, um conflito estava atenção, pra se fazer notar, aquele tiquinho de anos, e Bento, de 10.
instalado: ser operária ou não ser. Para alguns, gente puxou o paletó do chefe de delegacia e dis-

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“Ainda hoje não se dão conta do que
significou a luta para reaver meu filho”
por Lenira Machado
sobre Aritanã Machado Dantas

Daqui a dois dias, fará quatro meses que eu Uma coisa que nós sempre discutimos mui- brinho Ernesto, filho de minha irmã, nas visitas
perdi Aritanã [falecido em 11 de janeiro de to e sobre a qual o Aritanã tinha muita clare- que faziam para a gente dentro do presídio. Ele
2013]. Aritanã Guarani Machado Dantas que za é sobre minha opção de ter um filho e ir me contava dos passeios nos finais de sema-
era como ele se colocava na internet, como para a clandestinidade. Eu sempre disse e ele na que fazia com a tia Elza Lobo, companheira
uma manifestação de solidariedade às lutas sempre aceitou que, para mim, na qualida- de longa data, recém-libertada do Tiradentes e
dos indígenas no Brasil. Meu filho foi vítima de de de militante de esquerda, seria impossível que ia buscá-lo na casa dos avós paternos para
uma doença, contra a qual lutou durante seis pensar em tentar mobilizar a classe operária, passear. Ele dizia que não tinha só duas avós,
anos. Chegou um momento em que era impos- em tentar mobilizar camponeses que tinham que ele também tinha uma avó chamada Ana,
sível continuar sofrendo do jeito que estava. filhos se, um militante de esquerda, com obri- mãe de Elza. Ele manteve esse relacionamento
Ele morreu calmamente, cercado por nós, no gações frente ao país não fosse capaz também até o falecimento da maravilhosa dona Ana.
meio da noite. Ele estava tentando retomar sua de criar um filho na clandestinidade. Essa foi
vida profissional, que tinha sido muito bonita. uma opção muito clara que fizemos e ele tinha Eu acho que o meu filho viveu bem essa pri-
isso muito claro. Nunca houve sentimento de meira fase da nossa prisão até minha soltura,
Meu filho era finalizador de filmes, foi res- culpa entre nós em função da opção que os em 1972. Eu tenho uma carta da Lúcia Coelho
ponsável pela finalização do documentário da pais fizeram naquele momento drástico da po- [ex-presa política e psicóloga]. Como eu estava
Revolução de 1932 [A Guerra Civil – 1932], foi lítica brasileira. muito preocupada com a situação do Aritanã,
responsável pela edição de som e mixagem do eu pedi a ela, como psicóloga, que o encami-
documentário do Prestes O Velho, a história de
Luiz Carlos Prestes – de Toni Venturi, foi respon-
“Ele aprendeu muito nhasse para uma análise psicológica para eu
saber como estava meu filho e a resposta da
sável pela finalização do som do documentário cedo que ele não podia avaliação foi muito boa.
sobre a vida de Ulisses Guimarães, de Eduardo
Escorel, além de participar de outras produções
falar o nome Lenira, Ele era uma criança que sabia distinguir as
e de muitas campanhas publicitárias. Tinha nem Altino... Passou a coisas. O avô dele, em função de denunciar as
nossas prisões e torturas, ficou preso no QG
uma imensa capacidade de trabalho.
nos chamar de ‘Querida’ do 2º Exército. Então, na primeira visita que
Nossa primeira prisão ocorreu em 13 de maio e ‘Meu bem’...” ele nos fez no nosso presídio, o Tiradentes, ele
disse: “Prefiro a prisão do meu avô. Lá tem mo-
de 1971, em casa. Vale lembrar que meu sogro
era um general e que eu era de uma família rango, tem geladeira e tem sorvete”.
Ele aprendeu muito cedo que ele não podia
de comunistas, fui e sou, e que os policiais do
falar o nome Lenira, nem Altino [Rodrigues Em abril de 1974, quando da minha segunda
DOPS me conheciam muito bem. A ditadura
Dantas Junior, pai de Aritanã], e que os nossos prisão, foi instaurado neste país, pela primei-
de Getúlio [Vargas] não me deixou chamar Le-
nomes mudavam de acordo com o local em que ra vez, um processo de destituição de pátrio
nina. Fez com que meu pai mudasse o nome
nós estávamos. Passou a nos chamar de “Queri- poder por questão ideológica. Eu acho que as
na hora para Lenira, dentro do cartório. Quem
da” e “Meu bem”. Quando alguém perguntava: pessoas ainda hoje não se dão conta do que
sabe a minha vida de filha de militantes na di-
“Como chama seu pai?”, ele respondia: “Meu significou a nossa luta por reaver o Aritanã.
tadura de Getúlio me ajudou a preparar meu
bem”. “Como chama sua mãe?” “Querida”. Sou- O processo, que durou dois anos doloridos e
filho, criança, para nos acompanhar na militân-
be conviver com isso e soube conviver também sofridos, se restringiu ao Aritanã. Só foi ga-
cia da ditadura militar pós 1964.
com a vida no presídio feminino, com Cami- nho graças ao escritório do advogado Iberê
la, com Paulo [filhos de Rita Sipahi e Antonio Bandeira de Melo, quando Dr. Nahum e toda
Lenira e Aritanã abraçados na casa
em que moravam, quando restituído
Othon Pires Rolim], com Daniel Pimenta, filho equipe empenharam-se em nossa defesa e pela
o pátrio poder aos pais, São Paulo de Telinha Maristela S. Pimenta, com meu so- solidariedade de companheiros como a do jor-

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nalista Fernando Morais nós pudemos, enfim, escolar Rodrigues Alves, na Avenida Paulista. tar recuperar meu filho, que foi sair do Brasil. Ir
receber de novo meu filho em casa. Quando eu soube o que estava acontecendo à África como cooperante do governo Moçam-
nessa escola pública (a direção foi orientada a bicano. Lá ele se encontrou novamente com a
Foram dois anos de luta, não só para mim, impedir contato meu com o Aritanã e ele era esperança, a solidariedade, a fraternidade. Tam-
para ele também e para todas as pessoas que apresentado aos colegas como filho de terroris- bém foi lá que encontrou sua profissão, menino
naquele momento conviveram e participaram tas), fui conversar com a diretora. Na hora que de 14 anos, trabalhando na empresa de cinema
daquele processo. Durante seis meses, eu fui entrei na escola, que parecia mais um presídio, e audiovisual que Ruy Guerra havia criado em
proibida de entrar no apartamento dos meus ex- esta mulher começou a gritar “Socorro, terro- Moçambique. Foi com a equipe do Ruy Guerra
-sogros, porque eu era tida como uma terrorista rista! Socorro terrorista!” e não quis me escutar. que Aritanã se formou na área de cinema.
e colocava a vida da família em risco. Depois, meu filho foi levado para um colégio
de padres, no Morumbi, o Santo Américo. De- Nós vivemos um grande amor, muitas ve-
Para ver meu filho, a porta do apartamento zes com muitos conflitos, tapas e beijos, mas,
era aberta, ele era sentado próximo à porta e eu pois de dois anos do processo de destituição
do pátrio poder, quando ganhamos o processo também, com muito amor. E ele plantou uma
ficava ao lado do elevador. Eu levava papel, lá- semente que se chama Ivan, um filho que tem
pis, tinta, e ficávamos os dois sentados por uma em segunda instância, voltamos a ter uma vida
normal e nova matrícula no Lourenço Castanho. hoje 21 anos, músico, faz faculdade de música
hora no chão brincando naquele hall de eleva- e que é de uma integridade, de uma sensibi-
dor. Em diversos momentos meu filho prestou lidade, de uma afetividade que só Aritanã foi
depoimento a assistentes sociais para saber
como a mãe terrorista o tratava.
“E ele plantou uma capaz de construir em alguém tão jovem. Mes-
mo na doença, mesmo fazendo uma cirurgia
semente que se chama de cérebro, mesmo se internando uma vez por
Quando da nossa primeira prisão, eu conse-
gui levar Aritanã para a casa dos meus sogros Ivan... de uma afetividade mês no Hospital das Clínicas ele conseguiu ser
pai e mãe de uma pessoa maravilhosa. Essa é a
e implorei que o levassem para escola no ou-
tro dia. Isso foi feito. Aritanã chegou à escola
que só Aritanã foi capaz grande herança que meu filho me deixa.
Lourenço Castanho, que teve uma importância de construir em alguém O testemunho acima é de Lenira Machado, sobre
enorme na vida do meu filho. A solidariedade
que eu tive da direção daquela escola é imensa.
tão jovem” seu filho Aritanã.

Meu filho entrou na classe e, aos 4 anos, fez o Voltar à antiga escola foi uma glória para ele.
relato da nossa prisão, “Meu pai e minha mãe Em um dos seus últimos aniversários, fez ques- ARITANÃ MACHADO DANTAS nasceu em 30 de setem-
foram presos. Meu pai começou a apanhar bro de 1966, filho Lenira Machado e Altino Rodrigues
tão de convidar todos colegas de Lourenço Dantas Junior. Formou-se na área de cinema começan-
dentro de casa, minha mãe conseguiu me dei- Castanho para participarem da comemoração. do a trabalhar aos 14 anos na equipe de Ruy Guerra em
xar na casa do meu avô e da minha avó, mas Fomos aconselhados por psicólogos a voltar a Moçambique. Morreu aos 47 anos, em 2013. Seu filho
o carro que fomos não tinha chapa branca de ter uma casa mais restrita, eu com meu novo Ivan, hoje com 22 anos, é violinista profissional.
polícia”. Esse foi o depoimento que ele deu na companheiro e com Aritanã. Meu filho havia
escola com 4 anos. perdido a noção de utilização do espaço.
Em 1974, quando ele foi tirado de casa, saiu do Essa volta foi muito complicada para todos.
Lourenço Castanho, e foi matriculado no grupo Eu só via uma saída naquele momento para ten-

Lenira Machado nasceu em 9 de outubro de dela foi preso também seu marido à época, Altino onde Aritanã, aos 14 anos, começou a trabalhar com
1940, em São Paulo (SP). Filha de Delamare Machado Rodrigues Dantas Júnior, com quem teve um filho, cinema, integrando a equipe técnica de Ruy Guerra.
da Silva e de Hercira Garcia Machado, ambos militan- Aritanã Machado Dantas. Após seis anos de luta por sua saúde, Aritanã Macha-
tes comunistas. Iniciou sua militância muito cedo e do Dantas faleceu em 11 de janeiro de 2013. Lenira
Após dois dias no DOPS, é transferida para o DOI-
em 1959 passa a militar na Juventude Comunista. Ao trabalha como consultora em projetos urbanos e
-CODI, onde foi, durante 45 dias, severamente tortu-
romper com o PCB, filia-se ao Partido Socialista Bra- avaliação de projetos.
rada, sendo submetida a choques elétricos, pau de
sileiro, passando a atuar nas Ligas Camponesas e no
arara e cadeira do dragão. Em decorrência das tortu-
movimento estudantil na União Estadual dos Estu-
ras, Lenira teve um deslocamento na coluna e ficou Altino Rodrigues Dantas Júnior, fi-
dantes de São Paulo (UEE). Era estudante de Ciências lho do general Altino Rodrigues Dantas, nascido em
paralítica. Fez um longo tratamento de fisioterapia
Sociais da Universidade de São Paulo (USP), sendo Campo Grande (MS), lá foi militante secundarista.
para voltar a andar. Condenada a cinco anos de pri-
jubilada em 1968, enquadrada na Lei Suplicy. Depois Em 1961 mudou-se para São Paulo. Foi diretor da
são, mesmo doente, cumpriu um ano e oito meses no
do golpe de 1964, quando se vê obrigada a ir para a União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE)
Presídio Tiradentes, em São Paulo.
clandestinidade, tem sua mãe e irmão adotivo pre- e depois, em 1965, foi presidente da UNE. Estudou
sos pelo DOPS e seu pai foragido. Ao retornar, volta Em 3 de abril de 1974 foi presa pela segunda vez em Direito na Faculdade de Santos, mas não conseguiu
a atuar no movimento estudantil, na reestruturação São Paulo. Aritanã tinha 9 anos. Quando foi solta, concluir o curso. Formou-se posteriormente em jor-
da União Nacional dos Estudantes (UNE), entrando constatou que havia perdido o pátrio poder e guar- nalismo. Foi preso em 1971 com sua companheira à
para a Ação Popular (AP) e depois participa na criação da de seu filho para o sogro. Foi o único processo de época, Lenira, e lá testemunhou o assassinato do
do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Destituição de Pátrio Poder movido devido à ideolo- preso político Aluísio Palhano. Altino foi Vereador
Foi presa pela primeira vez em 13 maio de 1971, pela gia dos pais. Conseguiu reaver a guarda apenas em do município de Santos na legislatura de 1988, elei-
equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Junto 1976. Saíram do Brasil e foram para Moçambique to pelo PT.

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1. Aritanã aos 2 anos e meio
2. Ainda bebê, 5 meses
3. Aos 4 anos, já dava testemunho
sobre a prisão dos pais na escola

1 2 3

4 5 6

4. Aritanã, Altino e Flávio, amigo de infância, e


Carlos Botazo, o “Baixo”, que foi padrasto de Ari,
em dia de visita no Presídio do Barro Branco
5. O sorriso pleno de Aritanã
6. Aos 9 anos, quando é restituído o pátrio poder
dos pais, voltando para casa com Lenira

7 8

7. Ari, aos 20 anos, trabalhando como finalizador


de filmes publicitários e documentários
8 e 9. Aritanã, aos 26 anos, com Ivan, seu filho
recém- nascido

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por Paulo Fonteles Filho

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a DOI-CODI instalado dentro do próprio Minis- Arthur, o sargento Ribeiro, o cabo Edson Torre-
oportunidade histórica de participar deste im- tério do Exército, em Brasília, seja no Rio de zan, o cabo Jamiro ou Jamito, o cabo Nazareno,
portante evento da Comissão da Verdade “Ru- Janeiro, no Centro Científico de Torturas, na o cabo Martins, o cabo Calegari, e os soldados
bens Paiva” de São Paulo que lança luz sobre terrível Barão de Mesquita, também da Polícia Ismael, Almir, Osmael e Admir”.
as brutalidades e violências perpetradas pelos do Exército. Meus pais também ficaram presos
lobos febrentos que assaltaram o poder em 1964 em Belém, na Gaspar Viana, onde meu irmão Esses famigerados, especialistas na Santa
e que, seguramente, também elegeram a infân- Ronaldo foi gerado, e no antigo Presídio São Inquisição e que diziam que os métodos da
cia como inimiga da segurança nacional e dos José. Nessa fase eu já havia nascido, portanto, Gestapo estavam ultrapassados, atuaram para
generais facínoras, responsáveis pela tortura, estava em segurança familiar. liquidar-nos, tanto em Brasília como no Rio de
assassinatos e desaparecimentos forçados. Janeiro. Numa das passagens do depoimen-
to ao Jornal Resistência, meu pai denunciava
Em segundo lugar, registro um abraço afe-
“Uma das lembranças que, “através de um vidro, mostravam-me a
tuoso, aos que, como eu, conheceram todo o mais antigas que tenho Hecilda, apanhando no rosto e nas pernas, grá-
barbarismo dos verdugos e aqui rendo minhas vida de cinco meses”.
homenagens à memória de meu pai, Paulo Fon-
sobre mim mesmo está
teles, advogado de posseiros no Sul do Pará, no fato de ter nascido na No dia de meu nascimento, em 20 de fevereiro
de 1972, minha mãe asseverou ao insurgente jor-
assassinado pelo latifúndio em 1987 e a minha
mãe, Hecilda Veiga, a pessoa mais íntegra que prisão e de ser filho de nal dos paraenses que: “levaram-me ao Hospital
conheço nesta vida e que, com o destemor de comunistas” da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nas-
cimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as
ter me feito nascer, em meio ao Pelotão de In-
vestigações Criminais (PIC), em fevereiro de coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto
Mas vamos aos torturadores, e como ensina
1972, revelou inexorável bravura a ponto de um e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência
Wadih Damous, Presidente da Comissão da
agente da repressão política, dentro da Polícia muito difícil, mas fiquei firme e não chorei”.
Verdade do Rio de Janeiro, em discurso na As-
Federal, cunhar a frase: “Filho dessa raça não sembleia Legislativa do Estado do Pará quan- Minha mãe, Hecilda, afirma ainda que o tal
deve nascer”. do da devolução simbólica dos mandatos em médico disse-lhe que ela não gostava do filho,
março de 2013, dentre eles do ex-governador simplesmente porque não sofria. Minha mãe,
Em “Segunda Anunciação”, poema escrito Aurélio do Carmo, único vivo entre os gover-
anos depois dos cárceres, meu pai denunciava que peitou o general Bandeira, ia dar o braço a
nadores cassados em 1964, que “os torturado- torcer? Nunca, jamais.
o discurso e a prática do tirano: “Teu filho, teu res têm medo da luz do sol”. Aqui haveremos
filho, teu filho não nascerá. Teu filho, filho des- de colocar holofotes sobre as bestas-feras. Uma das lembranças mais antigas que tenho
sa raça, filho dessa raça não deve nascer. Filho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido
dessa raça não deve nascer. Teu filho, filho des- Segundo denúncia de meus pais, publicada na prisão e de ser filho de comunistas. Minha
sa raça não deve nascer, não deve nascer”. no Jornal Resistência, da Sociedade Paraense avó, Cordolina Fonteles de Lima, contava que
de Defesa dos Direitos Humanos, no final da os agentes da repressão atrasaram minha en-
Aqui, antes de mais nada, devo por convic- década de 1970, “fomos seviciados e tortura-
ção e altiva consciência denunciar locais e os trega para a família, por horas, porque sim-
dos pelo general Antônio Bandeira, coronel plesmente não haviam encontrado algemas
verdugos que atuaram severamente para por Azambuja, major Paulo Horta, major Andra-
fim em nossas vidas, seja no Pelotão de Inves- que dessem em meus pulsos de recém-nascido,
de Neto, major Othon Rego Monteiro, capitão eles deviam me achar bastante perigoso!
tigações Criminais da Polícia do Exército, e no Magalhães, capitão Menezes, ‘doutor’ Cláudio,
o delegado da Polícia Federal Deusdeth, tenen- No curso dos anos tenho refletido sobre tais
Paulo, aos 3 anos, Belém (PA) te Burger, o sargento Vasconcelos, o sargento atos de “terrorismo”, numa pérfida lei de um

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dos ideólogos mais importantes daqueles tem- quintal. Por aqueles dias já convivíamos com assassinato do meu pai, mas também a morte
pos sinistros, o coronel Jarbas Gonçalves Pas- os lavradores e os filhos destes, como é o caso do deputado João Batista. Meu pai foi assassi-
sarinho, que definha como o pústula que é e dos filhos de Amaro Lins e de Neuza, Vladimir, nado em 11 de julho de 1987. E o João Batista
parece estar bem próximo do Satanás. Carlos e Mauricio, além de Helenira, amigos foi assassinado, se não me falha a memória,
para todo o sempre. no dia 6 de dezembro de 1988. E o James Vita
Não tenho dúvidas que herdamos de nossos Lopes era conhecido como o Capitão James.
pais, seus destemores e convicções. A canção Lembro-me, meus caros e minhas caras, que Foi julgado e condenado pelo Tribunal de Jus-
de Belchior, cantada pela mais bela voz femi- nesse período, a reação começava fazer carga tiça do Estado do Pará, e hoje se encontra livre.
nina em todos os tempos de civilização brasi- sobre a nossa família. E nós nos transferimos
leira, a de Elis Regina, está prenhe de verdade para Belém em 1978 exatamente pelo medo Naqueles dias, eu tinha 15 anos e para não
quando afirma que “ainda somos os mesmos que os meus pais tinham de que algo pudesse enlouquecer decidi ingressar nas fileiras do
e vivemos como os nossos pais”. Neste caso, nos ocorrer naquelas condições. Inclusive, hoje Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Era mi-
Paulo e Hecilda, por seus valores fraternais de manhã, lembrei-me de um poema que ele nha saída e a forma de me organizar para en-
devem sempre ser seguidos pelos filhos, o que escreveu para os filhos chamado “Para Ronal- frentar o futuro.
nos dá a régua e o compasso. do e Paulinho”, onde ele diz o seguinte:
Quando, enfim, tivemos a notícia do faleci-
Se este é meu depoimento, vou falar de um “Onde encontrá-los? Num porão? Numa cela, mento de Carlos Alexandre Azevedo [em fe-
tempo em que, menino, testemunhei a retoma- ensanguentados de fuzis nas mãos libertando- vereiro de 2013] é que muita coisa veio à tona
da de meus pais na luta do povo, meu pai no -me? Quem sabe será toda uma vida”. e meus sentimentos se voltaram para minha
campo e minha mãe na cidade. Poderiam ter própria história. Em artigo escrito numa longa
se acomodado, poderiam ter cuidado de suas e dura madrugada asseverei: “Mas o que fazer
próprias vidas, o que seria justo diante das me- “As histórias da diante destes testemunhos, de tua segunda
mórias do cárcere. Mas não, retomaram às po-
sições de combate. carochinha contadas eram morte?”

E ali estávamos nós, crescendo como cres-


sempre de guerrilheiras Sinto que em tempos de Comissão Nacional
da Verdade (CNV) devemos cobrar que este-
cem as árvores. As histórias da carochinha tartaruguinhas contra jam embutidos, no relatório que será apresen-
contadas eram sempre de guerrilheiras tarta-
ruguinhas contra um jacaré de fardas que vi- um jacaré de fardas que tado aos brasileiros, os acontecimentos cri-
minosos que foram perpetrados por questões
viam no Araguaia. viviam no Araguaia” políticas contra a infância deste imenso país.
Foi por aqueles tempos em que meu pai, Tua segunda morte carrega o legado de que,
formado em direito, resolveu advogar para a Por conta de uma atuação radicalmente vin-
mais do que nunca, devemos cuidar da tenra
Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região culada à luta dos lavradores conheceu, mais
idade contra os infanticidas, dos de ontem
do Araguaia. Muito de sua decisão têm as di- uma vez, as ameaças contra sua própria vida e
como também os da atualidade.
gitais na luta guerrilheira do Araguaia e o fato a vileza dos donos do poder de então. Foi eleito
de ter travado conhecimento com os primeiros deputado estadual em 1982 sob a consigna de Com ousadia, sem procuração alguma, a não
presos da insurgência nas matas paraenses, “Terra, Trabalho, Liberdade e Independência ser pela memória da carne violada, tomamos
dentre eles estava José Genoíno Neto. Outro Nacional”. para nós, por tais testemunhos, a exigência de
fator importante para se destinar à defesa dos que quem nos torturou, no ventre ou fora dele,
posseiros foi o incentivo que teve do poeta e Derrotado nas urnas em 1986, não conseguiu responda pelos crimes de inexorável covardia,
intelectual Ruy Paranatinga Barata no conflito êxito na campanha para a Assembleia Nacio- contra aqueles que devem ser protegidos des-
da Fazenda Capaz, em 1977, de propriedade do nal Constituinte e, menos de um ano depois, foi de a fecundação.
coronel estadunidense John Davis. assassinado a mando da União Democrática
Ruralista (UDR), quando se votava o Capítulo Assim cumprimos com a civilizatória missão
Debruçado na defesa dos camponeses pobres da Terra. O intermediário de tamanha covardia de proteger os filhos do povo brasileiro.
e procurando reunir informações sobre luta re- foi James Sylvio de Vita Lopes, da OBAN e do
belde araguaiana, meu pai, Paulo Fonteles, mais SNI, que, nos auspícios do regime moribundo, Neste sentido, é preciso que as Comissões
uma vez passou a sofrer a carga da reação, de foi organizar milícias da grande propriedade da Verdade façam as ligações na perspectiva
famigerados como o Major Curió, do Centro rural na Amazônia. de traçar um paralelo comum entre essas vi-
de Inteligência do Exército (CIE) e do grande vências de filhos de presos políticos e dos inú-
latifúndio, aliados incontestes na espoliação da Todo o esquema que se montou, todo o apa- meros centros de detenção de menores, cria-
Amazônia, sempre em benefício dos poderosos, rato que liquidou fisicamente com o meu pai dos durante a ditadura, como a Febem e que
sejam eles nacionais ou estrangeiros. partiu exatamente do esquema da repressão na vida democrática não mudou seus métodos
política. Esse James Sylvio de Vita Lopes é e, como é o caso de São Paulo, onde a tortura
Moramos em Conceição do Araguaia e tí- de São Paulo e mora atualmente em Jundiaí. se esconde travestida pelo pomposo nome de
nhamos o imenso rio dos Karajá em nosso E pesa sobre ele não apenas a organização do Fundação Casa.

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Apenas agora nos debruçamos sobre a in- Existe uma luta na sociedade brasileira nessa tudantes da Universidade de Brasília. Minha
fância na ditadura militar e há um caminho perspectiva. E nós precisamos ganhar a socie- mãe estudante de Ciências Sociais, e meu pai
extenso a percorrer. Tal caminho seguramente dade brasileira para isso. Esse é um dos fatores estudante de Direito, militante da Ação Popu-
irá nos levar aos filhos de camponeses e crian- que têm me alimentado a vida: não apenas ter lar Marxista-Leninista (APML). Eles saíram do
ças indígenas, além dos casos de filhos de mili- vivido esse processo todo, ter nascido na prisão, Pará, onde eram estudantes, para organizar, a
tantes políticos, já bastante relatados. ter tido um pai assassinado, mas também esse pedido da Direção Nacional da Ação Popular,
processo da luta política, da militância social. E o Movimento Estudantil em Brasília, em parti-
Há dois anos conheci Sebastião, ex-motoris- aqui eu não quero colocar em discussão o Par- cular na Universidade de Brasília. E o meu pai
ta do Incra durante a Guerrilha do Araguaia, tido A ou Partido B, mas sempre a perspectiva e minha mãe foram presos em outubro de 1971.
na cidade de Marabá. Tal pessoa relatou-me da luta coletiva, da luta civilizatória, na luta para E eu venho a nascer em fevereiro de 1972. Um
sua revolta ao lembrar que na Base da Bacaba fazer valer a questão dos direitos humanos no período absolutamente terrível para todos nós.
havia uma ala de tortura apenas para crianças nosso país, revisitando isso na atualidade.
e jovens, filhos dos sertões naquele país pro- A minha infância foi muito marcada exata-
fundo e desigual. Queria render minhas homenagens aos que mente por isso. Porque os meus pais diziam
lutaram, aos que tombaram e aos meus pais. o que eles eram. Eu me lembro, eu não devia
Aqui destaco o registro poético de meu pai, Há um fato muito característico nessa relação ter 4 ou 5 anos de idade, que o meu pai dizia
que assim relatou meu nascimento em força e com eles, que é como eles colocaram nos filhos para mim: “Olha, nós somos comunistas. E se
arte: “A criança nasceu. A mãe passa bem. Ape- o seguinte sentido: “Vão para a luta. Vão en- tu disseres isso por aí nós podemos ir presos”.
sar de todas as proibições, bebamos vinhos até frentar as questões”. Me lembro que, quando menino, eu estudava
a embriaguez! Quem é que pode com povo?” em uma escola católica, e um belo dia uma
Acho que este momento em que o Brasil se “Eu me lembro, eu não professora de moral e cívica mandou que eu
pintasse com as cores as três armas: verde o
debruça sobre a questão da violência e do bar- devia ter 4 ou 5 anos Exército, azul a Aeronáutica, e branco a Mari-
barismo do regime militar é um momento mui-
to importante da vida nacional, da civilização de idade, que o meu pai nha. Eu pintei tudo de vermelho e escrevi do
lado “Exército vermelho”. Chamaram a Hecil-
brasileira. dizia para mim: ‘Olha, nós da para prestar contas na escola e minha mãe
Eu tenho um irmão, o Ronaldo, que foi gera- somos comunistas. E se tu disse: “É isso mesmo”.
do na prisão. Quando meus pais voltaram ao
Pará, num período mais leve da prisão deles, disseres isso por aí Meus pais foram enquadrados pelo 477
um militante político disse ao oficial do dia nós podemos ir presos’” [decreto-lei de 1969 que previa a punição de
professores, alunos e funcionários de universi-
que meus pais estavam separados há muito
tempo e que precisavam ficar juntos. E o oficial dades considerados culpados de subversão ao
É essa convicção, é esse heroísmo que foi ca- regime], e foi um momento muito interessan-
consentiu que os meus pais ficassem juntos. E,
paz de me fazer ter nascido. O mesmo heroís- te de nossas vidas em que nós ficamos juntos.
nesse dia, meu irmão foi gerado na prisão.
mo da Crimeia [Alice Schmidt de Almeida], de Mas logo depois que eles puderam retomar a
Para nós, um momento que foi absolutamen- companheiras que geraram seus filhos na pri- universidade e se formaram, meu pai entrou
te terrível foi a manhã de domingo em que, são, sob tortura, sob sevícia, sob espancamen- na luta política e foi para a região do Araguaia,
através das redes sociais, nós tivemos a infor- tos, sob grande pressão psicológica. muito em função das informações já recebidas
mação da morte de Carlos Alexandre Azevedo. durante o processo do PIC, quando chegam os
Quando eu nasci, minha mãe pesava 37 qui-
Eu ficava pensando: “O que me salvou? Quais primeiros camponeses presos em Brasília.
los. Ela foi cortada de uma ponta a outra sem
foram os caminhos que me permitiram estar
anestesia e não disse um “ai”. Não tem coisa que Desde muito cedo nós convivemos com a
vivo, poder travar a luta política e a militân-
mais me orgulhe nessa vida do que isso. É como violência, com as ameaças. Com 8, com 9, com
cia?” E o que eu pude apurar é que questões
um combustível, um motor para travar a luta. 10 anos de idade, nós já sabíamos da atividade
foram absolutamente decisivas nesse sentido.
deles. E isso tinha um impacto muito forte. Eu
Essa é a tarefa deste momento. Contar esta
Primeiro, as relações sociais. Eu tive um pai devia ter uns 9 anos de idade quando come-
história para vacinar a consciência nacional
e uma mãe absolutamente afetuosos, genero- çaram a vir camponeses em casa todo tempo.
dos brasileiros para que nenhum filho nasça
sos. Com todas as dificuldades, com todas as E quando a turma chegava eu e meu irmão
na prisão, para que nenhum filho tenha esse
proibições, me ensinaram valores absoluta- éramos desalojados do nosso quarto, aquela
dissabor de não conhecer o pai.
mente pertinentes, como poder ter a capaci- coisa bem urbana em Belém do Pará. E uma
dade de fazer o enfrentamento na vida atual, Quando eu nasci, fiquei apartado dos meus vez eu tentei peitar meu pai, dizendo: “Que
como de revisitar a Lei da Anistia. Nós preci- pais por mais de um ano e meio. Fui viver com história é essa, meu pai, esse pessoal vem para
samos atuar nisso. Precisamos fazer com que os meus avós paternos. Nascer na prisão con- cá e tal, toma o nosso quarto?” E eu recebi tal-
aqueles que nos barbarizaram, no ventre ou cretamente é nascer no presídio. Meus pais vez a mais importante lição na vida quando
fora dele, paguem pelo que fizeram. foram presos em outubro de 1971, ambos es- ele disse: “Olha, esses camponeses que estão

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“E eu só me ressinto os filhos pensam da gente. Eu tenho filhos e que brilha, como um sol. E a minha mãe como
não são poucos, e eu sempre quero que eles um oráculo, no sentido da sabedoria, da resis-
muito de não ter podido gostem de mim como eu gostava e gosto do tência. Então falar sobre mim mesmo é falar
ter mais convivência em meu pai. disso, não é? Porque isso é a melhor parte que
há em mim. O que há de melhor em mim foi
particular com meu pai. Quando meu pai foi assassinado, em 11 de aquilo que eles me deixaram, e que ajudaram
junho de 1987, claro que não estávamos mais
Porque em certa medida, no período da ditadura militar, mas ele foi li-
a forjar dentro da gente, que é a convicção
de que é preciso enfrentar esse momento na
os sertões e a luta no quidado por agentes da repressão. O latifún- atualidade.
dio foi pegar quem para fazer a liquidação
Araguaia exigiam dele física desses lutadores do povo, lutadores É claro que a minha vida é marcada por tra-
um afastamento de meses da luta pela reforma? Foi pegar gente expe- gédias, ter nascido na prisão, ter convivido
rimentada, gente que conhecia os porões. com ameaças. Minha mãe foi torturada no
sem nos ver” Quando meu pai foi assassinado, eu pensei: dia 19 de fevereiro, um dia antes de meu nas-
“O que eu vou fazer da minha vida?” Eu tinha cimento. Ela sofreu pancadas tanto nos bra-
aí, quando eu vou para a terra deles, para os
15 anos de idade. ços quanto nas pernas. Aliás, o meu próprio
sertões, eles me protegem a vida. Eles dão a
parto foi sob tortura. Nasci nessas condições
cama para eu dormir”. E foi ali naquele mo- Nós estudávamos à tarde e o meu pai foi e tenho um irmão gerado nessas condições.
mento que eu percebi a grandeza da ativida- assassinado às 10h40 da manhã. Eu escutava
de deles. rock and roll com o meu irmão mais novo na-
quela vitrola que quando terminava o disco,
E eu só me ressinto muito de não ter podido PAULO FONTELES FILHO nasceu em 20 de fevereiro
voltava para o rádio. E nessa história de vol-
ter mais convivência em particular com meu de 1972. É filho de Hecilda Veiga e Paulo Fonteles. Mi-
tar para o rádio, anunciaram o assassinato do litante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi
pai. Porque em certa medida, os sertões e a
meu pai. vereador de Belém (PA) e é pesquisador da Guerrilha
luta no Araguaia exigiam dele um afastamen- do Araguaia.
to de meses sem nos ver. Uma das coisas que Quando ele chegava em um lugar, brilhava.
eu julgo ser mais importantes é aquilo que Eu tenho uma imagem dele como uma coisa

Paulo César Fonteles de Lima nas- clusivamente à defesa dos posseiros da região do morava com o marido na própria Universidade, num
ceu na cidade de Belém do Pará, no dia 11 de feverei- Araguaia. Foi preso diversas vezes devido ao seu alojamento destinado a casais.
ro de 1949. Filho de Benedito Osvaldo Rodrigues de trabalho militante. Era ativa militante do movimento estudantil e da
Lima, oficial da Marinha Mercante, e de Cordolina Em julho de 1981 laçou-se candidato a deputado es- reconstrução da UNE nesta cidade quando foi pre-
Fonteles de Lima, carinhosamente conhecida como tadual pelo PMDB e foi eleito. Também se candida- sa, grávida de cinco meses, em 1971.
D. Nita. Seus pais eram militantes do Partido Comu- tou a deputado federal nas eleições de 1986, para Em seus depoimentos, Hecilda relata que foi levada
nista desde 1945. a Assembleia Nacional Constituinte, mas desta vez primeiro à delegacia da Polícia Federal, onde já so-
Em 1968, ingressou no curso de Direito da Universi- não logrou êxito. freu socos e pontapés e ouviu de seus algozes que
dade Federal do Pará. Em 1969, dedicou-se no Pará a Era constantemente ameaçado de morte e, apesar “filho dessa raça não deve nascer”. Foi levada em
reorganizar o movimento estudantil, sendo eleito di- das diversas denúncias públicas que fez sobre isso, seguida ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC),
retor da União Estadual dos Estudantes (UEE), neste em 11 de junho de 1987 foi assassinado quando via- onde sofreu ameaças e soube que seu companheiro
momento já como militante da Ação Popular (AP). java para o interior do Pará, aos 38 anos de idade, a Paulo também estava lá. Depois seguiu para o Ba-
Em 1970, mudou-se para Brasília com sua esposa mando dos latifundiários da região. talhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro e lá
Hecilda, onde participaram das lutas estudantis, da Paulo César Fonteles de Lima deixou cinco filhos: as torturas físicas se agravaram. Precisou de atendi-
reorganização da União Nacional dos Estudantes Paulo César Fonteles de Lima Filho, Ronaldo Veiga mento médico sendo então levada para o Hospital
(UNE), então na ilegalidade. Foram presos em 6 de Fonteles de Lima, João Carlos Hass Veiga Fonteles de do Exército. De volta a Brasília, relata que foi colo-
outubro de 1971, pelo DOI-CODI, onde sofreram bár- Lima, Juliana Zaire Fonteles de Lima e Pedro César cada numa cela cheia de baratas. Posteriormente,
baras torturas. Esteve preso durante um ano e oito Miranda Fonteles de Lima. foi levada ao hospital da Guarnição em Brasília per-
meses, cumprindo a pena em presídios militares de manecendo ali até o nascimento de seu filho, Pau-
Brasília, Rio de Janeiro e posteriormente transferi- lo. Muito mal tratada, teve um parto induzido, feito
do para o presídio São José no estado do Pará. Ao Hecilda Mary V. Fonteles de Lima com um corte sem anestesia.
sair da prisão, já militava no Partido Comunista do nasceu na cidade de Belém, estado do Pará, no dia Quando saiu da prisão, Hecilda, neste momento
Brasil (PCdoB). 11 de março de 1947. Filha de Luiz da Silva Veiga e já militante do PCdoB, manteve sua militância, ao
Em agosto de 1978, foi novamente indiciado, junta- Hilda Ferreira Veiga. Casou-se com Paulo César Fon- lado do marido, em defesa dos Direitos Humanos e
mente com sua mulher, por ter denunciado publica- teles de Lima. contra os latifundiários da região do Araguaia.
mente as torturas que sofrera. Logo depois passou Quando o casal mudou-se para Brasília em 1970, He- Hoje, vive em Belém (PA), onde é professora do cur-
a trabalhar na Comissão Pastoral de Terra (CPT), cilda era militante da Ação Popular (AP). Estudava so de Ciências Sociais da Universidade Federal da-
como primeiro advogado paraense a se dedicar ex- Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UnB) e quele estado (UFPA).

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“Todos queriam ver quem era
a ‘fera’ que estava ali”
por Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima

Quando fui presa, minha barriga de cinco me- sensações que aquilo provocava eram indescri-
ses de gravidez já estava bem visível. tíveis: calor, frio, asfixia.
Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, De lá, fui levada para o Hospital do Exército e,
diante da minha recusa em dar informações a depois, de volta à Brasília, onde fui colocada
respeito de meu marido, Paulo Fontelles, come- numa cela cheia de baratas.
cei a ouvir, sob socos e pontapés: “Filho dessa Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem
raça não deve nascer”. em pé nem sentada. Como não tinha colchão,
Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação deitei-me no chão. As baratas, de todos os tama-
Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura nhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o
no pau de arara e choques. Dias depois, soube sutiã e tapar a boca e os ouvidos.
que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em
dos “refletores”. Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo.
Eles nos mantinham acordados a noite inteira Nesse dia, para apressar as coisas, o médico,
com uma luz forte no rosto. Fomos levados para irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem
o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Ja- anestesia. Foi uma experiência muito difícil,
neiro, onde, além de me colocarem na cadeira do mas fiquei firme e não chorei.
dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, Depois disso, ficavam dizendo que eu era fria,
e fui submetida à “tortura científica”, numa sala sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam
profusamente iluminada. ver quem era a “fera” que estava ali.
A pessoa que interrogava ficava num lugar
Trecho do livro: Luta, Substantivo Feminino: Mulheres
mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à
em que sentávamos saíam uns fios, que subiam ditadura (Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
pelas pernas e eram amarrados nos seios. As Editora Caros Amigos, 2010)

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Crime: ser filho de resistente
por Rosalina de Santa Cruz Leite
sobre André de Santa Cruz Leite

Fui presa pela primeira vez em 1971. Eu e Geraldo fomos, então, novamente
Fui torturada, conheci o limite humano submetidos a torturas como “cadeira do
da dor, da força bruta e da derrota de um dragão”, “palmatórias” e “pau de arara”.
sonho e a impotência diante da violência Entretanto, a pior tortura nessa segunda
desmedida do Estado terrorista, implan- prisão foi o fato de ter um bebê de cinco
tado pela ditadura militar no Brasil. Sofri meses, meu filho André de Santa Cruz
quase todos os tipos de torturas físicas e Leite, que ficou por três dias em poder
psicológicas pelas quais passavam todos dos policiais, trancado no nosso aparta-
os presos políticos na década de 1970. mento. A equipe de busca do DOI-CODI
Além de ter passado pela famigerada “ge- montou na nossa casa aparelhos de es-
ladeira”, a sala escura, o emparedamento cuta e ali ficaram nesses três dias para
que nos fazia perder a noção de tempo e prender quem chegasse ao apartamento.
de espaço. Fiquei um ano presa no Rio de Sem poder mamar e acostumado a ter a
Janeiro, na Vila Militar e depois no Presí- mãe por perto, André, segundo a “meni-
dio Talavera Bruce, em Bangú. na” que cuidava dele, chorava muito e os
policiais, irritados, o ameaçavam.
Sai da cadeia em 1973, mudei-me pra
São Paulo e pensei que nada pior do que Meu irmão Marcelo Santa Cruz che-
passara poderia me voltar a acontecer. gou ao apartamento três dias após a
Foi, então, que meu irmão querido, que nossa prisão, ao tomar conhecimento
como eu era militante da esquerda, estu- do ocorrido, intercedeu para que André
dante e socialista, Fernando Santa Cruz, fosse entregue a um de nossos familia-
um dia saiu para cobrir “um ponto”, isto res. Para amedrontar e pressionar Mar-
é, um encontro político com um compa- celo, os policiais torturadores pegaram
nheiro, Eduardo Collier, da sua organi- o André e ameaçaram jogá-lo pela jane-
zação, a APML (Ação Popular Marxista- A procura que envolveu toda a nossa fa- la. Logo depois, Marcelo foi levado para
-Leninista). Era 23 de fevereiro de 1974, mília para encontrar Fernando, saber as a OBAN onde ficou por uma noite preso,
Fernando e Eduardo nunca mais voltaram. circunstâncias da sua prisão, do seu assas- levando pontapés e sofrendo ameaças. Ao
sinato e a localização dos seus restos mor- ser liberado, meu irmão levou uma autori-
À esquerda, pintura de Rosalina Santa Cruz, 2000 tais, levou a mim e ao meu companheiro, zação minha para retirar o André do apar-
Acima, André com 6 meses em São Paulo, Geraldo Leite, à nossa segunda prisão, em tamento. Ao chegar de volta ao apartamen-
no apartamento onde moravam,
logo depois da prisão
abril de 1974, agora na Operação Bandei- to, os policiais já haviam abandonado o
rante (DOI–CODI/SP). local e a “menina” estava de saída levando

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“As crianças da minha o André para Minas Gerais onde morava da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
sua família. Ela contou que ao desocupa- do Rio de Janeiro, mas tem muitas sequelas
família sofreram rem o apartamento, pouco antes do Marcelo emocionais, todas fruto da dor que sentiu
as consequências chegar, eles disseram que ela poderia levar pela perda do pai.
o nosso filho, pois nós éramos “bandidos e
dos terríveis terroristas” e não voltaríamos mais para re- André, Alexandra e Felipe, eles não lem-
bram desses momentos, mas cada um teve
momentos de perdas, ver a criança.
um modo de se defender de experiência
de pressão e ameaças Na OBAN, compartilhei com as compa- cruel que atingiu diretamente seus pais e a
nheiras, entre elas Nádia Lúcia do Nasci- eles, cujo crime maior era o de ser nossos
que passaram, cada mento, que havia sofrido um aborto sob tor- filhos. Hoje, cada um a seu modo, luta por
uma de forma muito tura, o desespero de não saber o que estava um mundo justo e solidário e são pessoas
acontecendo com o meu bebê. O fato de ter dignas, que se orgulham de ser e fazer parte
diferente entre si” suspendido abruptamente a amamentação de uma família de resistentes.
fazia com que eu sentisse muitas dores nos
O testemunho acima é de Rosalina de Santa Cruz Leite
seios, o que não me deixava ficar nem um
sobre seu filho André.
minuto sem sentir a falta física de meu filho.
As crianças da minha família sofreram as
ANDRÉ DE SANTA CRUZ LEITE é filho de Geraldo Leite
consequências dos terríveis momentos de e Rosalina de Santa Cruz Leite, ambos presos políticos,
perdas, de pressão e ameaças que passaram, militantes da VAR/Palmares. André nasceu em São
cada uma de forma muito diferente entre si. Paulo em 18 de novembro de 1973, é assistente social,
O André, meu filho que nasceu dez meses de- formado pela PUC/SP. Trabalha num Hospital em São
Bernardo do Campo.
pois da saída da minha primeira prisão, e que
tinha quatro meses quando Fernando desa-
pareceu, foi desde a gestação muito marcado 3

pela nossa aflição e medos, buscas e ausên-


cias durante seu primeiro ano de vida.
A Alexandra, filha da minha irmã Elzita
de Santa Cruz Pimenta, desenvolveu desde
cedo fobia social e síndrome de pânico que
não a tem permitido trabalhar. Já André tor-
nou-se uma criança e um jovem muito mar-
cado pelo que passou nesses anos terríveis
de nossas vidas. Por tudo isso, desenvolveu
uma dependência química que o levou a in-
ternações e a muito sofrimento psíquico.
Já o Felipe [Santa Cruz], filho de meu ir-
mão Fernando, até hoje não conhece as
circunstâncias do desaparecimento e as-
sassinato de seu pai. Ele viveu anos da sua
infância em busca de uma explicação para
o fato do pai, tão amoroso e presente na sua
vida, ter “sumido” assim “de repente” e nun-
ca mais ter voltado. Felipe é hoje presidente

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1 2

Em família
1. Geraldo com André no colo, logo
após a saída da maternidade
2. Rosalina com André em São Paulo
3. André com Rosalina com
aproximadamente 6 meses

4. André com 2 anos em sua casa, no


bairro da Aclimação, São Paulo
5. André com 6 anos
6. André com 10 anos

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1

2 3

5
1. Elzita e Lincoln, avós maternos
de André
2. Elzita Santa Cruz
3 e 6. Fernando Santa Cruz, tio de
André, poucos meses antes de sua
prisão e desaparecimento
4. Fichas de Fernando e Rosalina
nos órgãos de repressão
5. Rosalina Santa Cruz, 1976
4
7. Felipe com 1 ano e sete meses,
pouco antes da prisão de Fernando

militante do movimento pela Anistia, 23 de fevereiro de 1974, em Copacabana, no Rio


uma das fundadoras da Comissão de Fa- de Janeiro, por agentes do DOI/CODI-RJ. Logo em
miliares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Par- seguida, o apartamento foi invadido pelos órgãos
ticipou do Movimento de Mulheres. Foi Secretária da repressão.
Rosalina de Santa Cruz nasceu em Municipal da Assistência Social do governo Luiza
Recife (PE), filha de Elzita Santos de Santa Cruz Em 14 de março de 1974, buscando saber do paradei-
Erundina. Atualmente é membro da Comissão da ro de Fernando e Eduardo, as duas famílias foram
Oliveira e Lincoln de Santa Cruz Oliveira. Começou Verdade da PUC/SP, onde é professora do curso de
sua militância política na Juventude Estudantil ao DOI-CODI/SP, cujo carcereiro de plantão, conhe-
Serviço Social desde 1980. cido como “Marechal”, confirmou que os dois jovens
Católica em Recife (PE). Foi militante da VAR-
-Palmares no Rio de Janeiro (RJ), onde ficou presa estavam presos ali, só podendo receber visitas no
domingo, dia 17. Foram deixados, então, para eles,
entre 1971 e 1972. Fernando Augusto de Santa Cruz, objetos de uso pessoal. Posteriormente, esses obje-
Respondeu a Inquérito Policial Militar (IPM) no filho de Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira e Lin- tos foram devolvidos, com a justificativa de que se
Rio de Janeiro, tendo sido julgada e condenada coln de Santa Cruz Oliveira. Nasceu em 20 de fe-
pela Lei de Segurança Nacional a um ano de pri- tratava de um engano, pois os dois não estavam ali.
vereiro de 1948, em Recife, Pernambuco. Desapa-
são. Sua segunda detenção foi em São Paulo, em recido desde 1974, aos 26 anos. Militante da Ação
1974, pela OBAN. Popular Marxista-Leninista (APML). Elzita de Santa Cruz, nasceu em Água
É irmã de Fernando Santa Cruz, preso político Era casado com Ana Lúcia e tinha um filho: Feli- Preta (PE), casou-se com Lincoln, médico sanitarista.
desaparecido desde 23 de fevereiro de 1974. Foi pe. Foi preso junto com Eduardo Collier Filho, em Teve dez filhos, 28 netos e 24 bisnetos.

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6 7

Carta de Felipe
(Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, aos 11 anos de idade)
Parte de seus filhos foi atingido pela ditadura mi- Todo mundo podia pensar que eu escreveria uma carta triste.
litar, como Marcelo, que foi expulso da faculdade Mas não. Eu escreverei uma carta dizendo tudo o que acho. Eu
e Rosalina que foi presa e torturada. E por fim Fer-
tenho uma ideia de como era meu pai, devia ser um homem que
nando, seu quinto filho, preso e desaparecido em
23 de fevereiro de 1974. lutava contra a ditadura militar do presidente Médici que foi uma
das que mais teve repressão e morreu como muitos outros que ten-
Foi a partir do desaparecimento do filho que come-
çou a via-crúcis de dona Elzita a quartéis do Rio de
taram o mesmo.
Janeiro, Recife, de São Paulo, de cartas – sem res- Eu tenho uma vida feliz, mas ele está na minha cabeça como o
posta- a autoridades civis e militares. meu outro pai. Sabe, minha mãe casou de novo com um homem
A luta incansável da mãe de Fernando pelo escla- que eu considero muito meu pai, tanto quanto o outro, pois eu te-
recimento da situação dos desaparecidos políticos nho 11 anos e meu pai morreu quando eu tinha dois anos. Hoje
no Brasil e por informações do paradeiro de seu fi- moro em Porto Alegre e sou muito feliz. Torço pelo Interna-
lho é retratada no livro Onde está meu filho?
cional e faço muitas coisas como jogar na escolinha do Bráulio.
É uma das lutadoras pela anistia e pela democratiza- E ao fim de tudo eu acho que alguém um dia vai acabar com essa
ção do país e hoje, aos 100 anos, segue, ao lado dos
filhos, em busca dos restos mortais de Fernando.
ditadura militar.
Esta carta está publicada no livro Onde está meu filho?

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O bêbe que a Ditadura
separou da mãe
por José Paulo De Luca Ramos

Eu sou José Paulo De Luca Ramos, filho de faço essa relação. Tive crises até meus 15, 16 por conta do que ocorreu com minha mãe no
Derlei Catarina De Luca e Nilo César Sobral anos. Depois, deu uma parada e ficou mais psi- período da ditadura. Lógico que tem a lacuna
Ramos. Nasci em 1972, em Londrina (PR). Na cológico, eu diria. Quando tem algum desafio, da ausência da família durante cinco anos, mas
época, meu pai e minha mãe passavam por lá quando eu fico um pouco angustiado me dá naquele momento eu não tinha a consciência
fugindo da polícia. Quando eu tinha 1 ano de uma crise. Hoje meu filho de 8 anos tem asma dessa falta.
idade, minha mãe já havia sido presa e tortura- também, mas bem mais amena porque conse-
A minha infância e juventude foram muito
da, e precisou fugir do Brasil para não ser mor- guimos tratar desde cedo.
normais. Estive envolvido com a política, com
ta. Acabou indo para Cuba. Ela foi na frente e
a luta pelas Diretas Já, também me lembro da
eu um ano depois. Cheguei à Ilha com 2 anos “Quando eu tinha criação do PDT em Santa Catarina.
de idade, em 1974, onde morei por cinco anos.
Minha mãe, por seis. Tenho lembranças da 1 ano de idade, minha Depois, mais velho, eu posso até repetir o di-
gente voltando em 1979, na época da Anistia. mãe já havia sido tado: “Mãe liberal, filho conservador”, porque
eu procurei muita segurança. Fiz engenharia,
Da infância em Cuba eu não tenho do que presa e torturada” administração e busquei o lado da racionali-
reclamar, porque foi uma fase muito boa. No
dade. Não sei se inconscientemente ou não.
período em que morei lá, dos 2 aos 7 anos, tinha
Também tem a história dos psicólogos, que Depois de me formar, fui estudar fora, fiz MBA
educação, saúde, mas, óbvio não tinha o meu
faz parte das coisas que eu não lembro, mas em finanças e voltei para o Brasil. Não sei se
pai. Ele ficara no Brasil. Antes de irmos para
que minha mãe sempre conta. “Você teve foi uma escolha inconsciente ou consciente de
Cuba, meus pais se separaram.
ajuda psicológica em Cuba”. Talvez, hoje, os eu procurar esse lado da racionalidade, de ir
Então, até os 7 anos não tive nem a presença poucos momentos de crise de asma sejam um para o lado da segurança.
do meu pai nem a falta dele, o que é diferente mecanismo de defesa da minha mente.
de se perder um pai. Então, como criança, na- Na infância, meu nome permaneceu sem-
Mas ir em busca de ajuda psicológica foi pre o mesmo, José Paulo, mas tinha algumas
quela época, eu não sofria por conta disso.
uma das razões que fez a minha mãe ir para certidões com sobrenomes diferentes porque
Em Cuba, tive muitas crises de asma. Mas Cuba. Quando voltamos para o Brasil tive al- meus pais usavam nome falso. Essa questão
como lá o sistema de saúde já era avançado, gumas conversas com psicólogo e foi por isso foi se resolvendo ao longo da minha juventu-
quando as crises começavam eu era interna- que fomos morar no interior. Para estar junto de, quando eu tinha entre 15 e 18 anos. Mas
do e devidamente tratado. Acho que foram da família. nunca foi um trauma. Simplesmente tinha
22 internações nesses cinco anos por crise de algumas coisas na vida diferente das outras
asma. Não sei se isso é diferente de outro as- Uma vez no Brasil, tive toda a estabilidade de
ter uma família grande, de conhecer meu pai, crianças, mas nada que me traumatizasse.
mático que não teve uma mãe torturada. Não Minha mãe estava ali, meu pai estava ali,
meus avós. Isso foi em 1980, eu tinha de 8 para
9 anos. Considero que tive uma infância nor- minha família. Eu cresci no interior de Santa
À esquerda, José Paulo, Içara (SC),
dezembro de 1973 mal, não me acho diferente de outras crianças Catarina, o que fez muito bem para mim. Ter

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“Na infância, meu
nome permaneceu
sempre o mesmo, mas
tinha algumas certidões
com sobrenomes
diferentes”

essa base sólida de família, de ter todo mun- ponto de referência. Mas isso, de novo, é a mi- 1. José Paulo com meses de idade, com
do lá. Então, mesmo que meus pais fossem nha mãe que conta, as famílias que me aco- o francês Philippe Vialle, uma das pessoas
que cuidou dele ainda bebê junto com
separados, eu tinha a figura do pai, a figura lheram naquela época me contam, porque eu a esposa Bernadete Vialle, 1972
da família. Nunca ficou um elo faltando. não lembro disso. 2. José Paulo, Itajaí (SC), 1973.
Foto tirada por Onadyr de Jesus, que
Tem algumas coisas que a gente, como fi- Mas essas histórias não era eu quem busca-
também cuidou do bebê

lho, sente, mas evita falar para os pais. Mi- va e sim minha mãe. Não é que a gente, como
nha mãe sempre falou das coisas. Da tortu- filho, negue. Mas a gente evita falar. Nossos
ra, ela foi falando mais tarde, porque como é pais buscam toda informação possível. E a
uma coisa que machuca quando a gente fala, gente não. Eu fico mais na minha. Por exem-
e evitávamos. plo, eu não participo assiduamente das coisas
Quando minha mãe foi para Cuba, eu ti- que minha mãe busca. Apoio, mas não é uma
nha entre 1 e 2 anos, fiquei um ano perambu- coisa que eu queira buscar. E talvez isso seja
lando em Santa Catarina pela casa de algu- assim para não me abalar emocionalmente.
mas famílias para a polícia não me prender. Eu estou bem sem ir buscar.
Foi um período que só conseguimos refazer
Fora isso, eu tenho muito orgulho de ser
no ano 2000 quando descobri a casa onde
filho da Derlei, ela é uma verdadeira heroína
fiquei num período de dois, três meses. Ha-
por tudo o que ela passou, por tudo o que ela
via essa lacuna na minha história. Claro que
viveu, de querer mudar o Brasil. Ela fez de
essa experiência diferenciou a minha infân-
uma forma, e eu procuro fazer, também, da
cia da de outras crianças da época.
minha maneira. 1

A maior parte desse período fiquei com


Hoje tenho três irmãos por parte de pai. A
minha avó. Mas fiquei, também, com padres
gente tem um relacionamento, não diria de ir-
em seminários, conventos e uma família em
mãos, mas de amigos. É um relacionamento
Itajaí. Tem também histórias de alguém ir
bom. E meu pai existe, está lá. Eu não busco a
me buscar em algum lugar, levar para minha
falta de um pai. Eu não tenho que preencher
avó me ver e voltar. Por conta disso, muitas
uma lacuna. Elas estão todas saradas. Ou es-
vezes eu me questionei, brincava com a mi-
pero, eu acho que estão.
nha mãe, perguntando: “Será que eu sou eu
mesmo, não me trocaram em algum lugar?”
E aí isso foi se materializando, diminuindo.
Depois, fui vendo a semelhança física com JOSÉ PAULO DE LUCA RAMOS nasceu em Londrina
meu pai, então é uma ferida sarada. (PR) em 1972. É filho de Derlei De Luca e Nilo Ramos.
Estudou engenharia na Universidade Federal de Santa
A minha mãe conta a história que embora Catarina (UFSC), administração na ESAG e fez MBA em
finanças na Universidade de Michigan. Hoje mora em
eu tenha chegado em Cuba com 2 anos, só fui São Paulo, é casado com Luciana e tem dois filhos, João
chamá-la de mãe quando eu tinha 3. E queria Paulo, que nasceu em 2005 e Ana Lúcia, que nasceu em 2

sempre voltar para minha avó, que era meu 2009. É executivo no setor financeiro.

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Em Cuba
3. Em 1973. Foto tirada por Bernadete Vialle
4. José Paulo e a mãe, Derlei, Cuba, 1975
5. Em Havana, Cuba, 1975
6. José Paulo e amigos no Hotel Presidente,
onde morou durante um ano, Cuba, 1975
7. No dia seguinte à chegada em Cuba
em junho 1974
8 e 9. Em Havana, Cuba, 1975
10. José Paulo brincando em Cuba
11. Subindo em uma árvore em Santiago
de Cuba, 1976
3 4 5

6 7 8

10

11

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Derlei Catarina De Luca nasceu em Içara (SC),
em 17 de setembro de 1946. Era estudante secundarista
quando houve o golpe de 1964. Foi militante da Juventu-
de Estudantil Católica (JEC) e da Ação Popular (AP). Foi
presa em Ibiúna junto com outros estudantes catari-
nenses que participaram do XXX Congresso da UNE, em
1968. Entrou para a clandestinidade em 13 de dezembro
de 1969 e logo depois, de acordo com definição da orga-
nização, integrou-se na produção, indo trabalhar numa
tecelagem, em Curitiba. Foi deslocada pela organização
para um trabalho em São Paulo, onde foi presa pela Ope-
ração Bandeirante (OBAN), em novembro de 1969. Tortu-
rada no pau de arara, foi submetida a choques elétricos
e chegou a entrar em coma. Quando saiu da prisão, em
abril de 1970, foi para Florianópolis (SC), sendo acolhida
por Dom Afonso Niehues, arcebispo da cidade. Ficou lá
por dois meses, acompanhada por médicos. Em seguida, 1 2
foi mandada para a Bahia por sua organização. Ficou em
Feira de Santana até começo de 1972, de onde saiu com
o nome de Maria Luiza Vitali. De lá, seguiu para Londri-
na (PR), grávida de vários meses. Seu filho, José Paulo De
Luca Ramos nasce em 11 de janeiro de 1972. Em abril, seu
marido, Nilo Ramos, é preso. Obrigada a fugir, Derlei dei-
xa seu filho na porta de um hospital em Londrina e segue
para o Chile. Com o golpe que derrubou Salvador Allende,
vai para Cuba. O menino percorre um longo caminho até
ser entregue em Havana, já com 2 anos e três meses de
idade. Estudou história na Universidade do Oriente, em
Santiago de Cuba.
Após a Lei Anistia em 1979 e de retornar do exílio em Cuba,
Derlei participou das buscas pelos catarinenses mortos e
desaparecidos políticos.
Fundou e coordenou o Comitê Catarinense Pró Memória
dos Mortos e Desaparecidos Políticos, hoje Memorial dos
Direitos Humanos.
Em 1988, recebeu o título de Cidadã Honorária de Criciú-
ma e, em 2001, recebeu da Assembleia Legislativa de SC a
Medalha Antonieta de Barros. É autora de diversos livros,
entre eles Os jasmins do Jardim de Paolo, À sombra da Fi-
gueira e No corpo e na alma, Além da lenda e o livro didáti-
co de história e geografia do município de Içara.
3
É professora e coordena o Coletivo Catarinense pela Me-
mória Verdade e Justiça. Membro do CASC e da Rede Brasil
Memória, Verdade, Justiça. 4

De volta ao Brasil
1. José Paulo (de calça marrom)
com os primos em Florianópolis
(SC), quando voltou ao Brasil
5 depois da Anistia
2. Recebendo medalha em
um campeonato de futebol
3. Na Campanha das Diretas,
Criciúma (SC), 1985
4 e 5. Foto e fichas de Derlei
nos órgãos de repressão

232 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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Uma rede de solidariedade
por Derlei Catarina De Luca

José Paulo De Luca, José Paulo Vitalli Ramos, cerdotes e seminaristas. Como explicar um bebê casa da avó Maria Rizzieri. Nesse período, teve
Alexandre ou Xandinho nasceu e viveu na clan- num seminário católico, onde só moravam ho- como anjo Valmir Martins e Murilo Canto. Ona-
destinidade nos seus primeiros anos de vida. mens? O menino chorava e chorava. Saíram na dyr faz questão de fotografá-lo. Fotografia esta
Teve vários registros de nascimento com nomes madrugada gelada de Curitiba em busca de um que manteve escondida durante trinta anos. Em
e mães diferentes. pediatra. O pediatra pensou que o menino fosse Içara é cuidado pela Ica – Nadir dos Santos, en-
filho de algum padre. Eles negam e o pediatra quanto a avó vai trabalhar.
Oito cidades, dois estados, cinco países foi o
não fez mais perguntas. Apenas aconselha a da-
roteiro durante quase três anos. Lugares desco- Meses depois, se prepara para viajar a Cuba
rem mamadeira de quatro em quatro horas. Qua-
nhecidos, com pessoas desconhecidas, passando com permissão do Juiz de Menores, Wladimir
se mataram o menino de tanta comida!
de mão em mão. Dezenas de mãos solidárias cui- Divanemko, que ordena o registro do menino
daram dele, sabendo apenas que a mãe era pro- Militantes da Ação Popular se mobilizam em com o nome verdadeiro da mãe. Cuba e Brasil
curada pela ditadura. Santa Catarina. Quem o abriga, enrola numa não tinham relações diplomáticas. O Juiz não se
Em 18 de abril de 1972, aos três meses de idade manta quentinha é a jornalista Márcia Maykot. aperta. Escreve no despacho: Para ir ao encontro
deixei-o com Joana Lopes, num hospital em Lon- Num Volkswagen descem a Serra Geral em dire- da mãe.
drina. Sem ter ideia dos fatos, ela segura o me- ção à Ilha de Santa Catarina.
Tia Darcy Terezinha De Luca e Dozolina Rizzie-
nino. Expliquei que meu marido fora preso por Em Florianópolis, em frente à Maternidade ri viajam a Buenos Aires, onde as aguarda Yurina,
problema político, e saí rapidamente sem dar-lhe Carmela Dutra é entregue para João Soccas, que da Juventude Cubana. Passam dois dias num ho-
tempo de reagir. Não podia por em risco a vida de pediu apoio ao casal francês Pihilippe e Berna- tel. Viajam ao Peru e Darcy acompanha-os até o
meu filho. Precisava impedir que caísse nas mãos dette Vialle. O estudante de engenharia, solteiro, embarque, em Lima. Ao entrar no avião, o menino
da repressão se eu fosse presa. Joana conversa faltava às aulas para cuidar do menino. Aprendeu percebe que tia Darcy não está, escapa da mãe de
com os médicos do hospital e o menino fica inter- a trocar fralda e esquentar mamadeira que Berna- Yurina e sai correndo pela pista. Segundo o com-
nado no berçário por vários dias até conseguirem dette deixava pronta antes de sair de casa. panheiro cubano organizador da viagem, foi o mo-
uma solução. mento mais tenso da missão. O menino só tinha
Semanas depois, em frente a mesma materni- autorização para viajar com tia Darcy. No avião
Sai do berçário e vai para a casa de vários pro- dade, o casal francês entrega o menino para o
fessores universitários. Passava uma noite em cada da companhia aérea Cubana de Aviación ele não
casal Ivo e Onadyr de Jesus de Itajaí. O menino sossegou, nem comeu. Tomou 17 sucos de laranja.
casa. Por segurança e por que as pessoas tinham segue para Itajaí com o nome de Alexandre, um
de manter seus horários de vida normais, para não pacote de remédios e várias recomendações, es- Yurina me entrega um menino de 2 anos e três
suscitar desconfiança. Esse período ele teve como critas numa folha de caderno, em tinta vermelha, meses, já caminhando.
anjo da guarda Eda Arzua. num português arrevesado. Em Havana, fomos acompanhados pelos psi-
A médica Elzira Vilela busca-o em Londrina e Calada e muda, Onadyr segura as línguas das quiatras Elza Gutierrez e Alberto Lavandera.
leva para Curitiba. Ali, o menino passa dias e noi- mulheres. As vizinhas xeretavam. Diziam que ela Em 1979, com a Lei de Anistia voltamos ao Bra-
tes no Seminário Catarinense, aos cuidados do era burra e a criança devia ser filha do Ivo com sil. Levei 32 anos para refazer sua trajetória desde
Padre-diretor Evaristo Debiasi e os seminaristas outra mulher. A cunhada desconfiada perguntava o momento em que eu o deixei em Londrina, até
Vertolino e Sergio Maikot. de quem era a criança. Com cinco filhos e tendo a chegada em Havana. Faltam muitas lacunas a
O bebê chorava e os seminaristas davam ma- mais uma criança para alimentar, Onadyr nunca preencher, mas uma verdade é notável. Apesar da
madeira. Quanto mais mamadeira, mais o bebê se queixou nem explicou a origem da criança. ditadura, meu filho foi envolvido numa rede de
chorava. Não sabiam trocar fraldas e receavam Apenas o vigário, padre Taicyl, sabia. Durante solidariedade que garantiram sua segurança. O
chamar alguém. Queriam que o menino se ca- quase um ano o menino ficou em Itajaí, quando Diário Catarinense publicou a história, em 2005
lasse para não chamar a atenção dos demais sa- então é devolvido ao casal Vialle e daí segue para sob o título: “O bebê que driblou a ditadura”.

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“Seu pai não era um ladrão,
era um herói”
por Grenaldo Edmundo da Silva Mesut

Na infância, o que eu ouvia sobre meu pai Não lembro, por exemplo, da chegada da no- Essas brigas envolviam a mim, minha mãe,
era que ele era um ladrão, que eu era filho de tícia da morte dele. As publicações da época avó e meu tio, irmão da minha mãe. Minha mãe
um ladrão e que meu sangue não prestava. divulgaram informações do sequestro do avião tinha uma personalidade forte, assim como mi-
Essa história vinha à tona em brigas familia- [que ele fez] e da morte. Até a minha foto, com nha avó, que era alemã da gema e tinha tido
res que ocorriam em casa. Depois que meu pai o título “Naldinho, filho do sequestrador”, di- uma educação muito rígida. Sempre que havia
morreu, minha mãe virou dependente do álco- vulgaram na imprensa. Fiquei muito chocado desentendimentos na minha família, isso era jo-
ol e minha avó virou a mantenedora da casa. quando descobri uma foto minha no jornal O gado na cara da minha mãe e consequentemen-
E eu, pequeno, ouvia coisas como: “Você é um Globo. Só fui descobrir isso depois, com 34, 35 te vinha para cima de mim também.
ladrão, você não presta”. anos de idade.
A maior vítima disso tudo foi a minha
A história da minha família é essa: mi- mãe. Imagine ela, uma mulher analfa-
nha avó veio da Alemanha durante a Se- beta, dona de casa, se vendo numa situ-
gunda Guerra Mundial. Minha mãe tam- ação em que o marido diz que a comida
bém nasceu na Alemanha. Logo depois não está boa e simplesmente vai embo-
do golpe de 1964, meu pai conseguiu fu- ra? Imagine para ela, o marido se des-
gir por ter sido condenado a cinco anos pedir assim e a notícia seguinte ser a
e oito meses de prisão. Ele seguiu para do sequestro?
Guarulhos, cidade satélite ainda muito
pequena, e conheceu minha mãe. Eles Hoje, fico imaginando como foi para ele
tiveram um romance, ficaram juntos e ter que abandonar a esposa e um filho de
então eu nasci em 1968. 4 anos e ter que lutar pela sobrevivência.
E como foi para a minha mãe, analfabe-
Eu tinha quatro anos quando ele mor- ta, descobrir a morte dele dessa manei-
reu. A única lembrança que eu tenho até ra, nessa situação, com todo mundo em
hoje é de uma casa onde morávamos eu, cima dela. Foi muito para a cabeça dela.
minha mãe e meu pai. E um dia, na frente Eu acho que ela não sabia da militância
da lareira dessa casa, ele me deu um brin- do meu pai.
quedo, passou a mão na minha cabeça e
foi embora. O brinquedo era um carrinho Quando tudo isso veio à tona, minha
tipo cegonheira. Mas eu não me lembro mãe mudou completamente a maneira
da fisionomia dele. Para mim, esse episó- dela de ser. Virou uma alcoólatra, depen-
dio do brinquedo foi como uma despedida, mas Durante a minha infância, sempre que se to- dente do cigarro. E eu só fui perceber isso aos
é a única lembrança que eu tenho dele. E a par- cava no nome do meu pai era através de uma 34 anos, idade em que comecei a juntar todas
tir daí não tenho mais nenhuma lembrança. briga. Foi assim na infância, adolescência e co- as peças.
meço da vida adulta. O que eu ouvia era sem-
pre: “Você é filho de ladrão, você não presta, Minha mãe nunca falou nada do meu pai.
você não tem sangue bom”. Além de ladrão, a Sempre disse que ele tinha morrido num avião,
À esquerda, Grenaldo aos 3 anos. Uma cópia desta foto
história era que depois do sequestro do avião, só isso. Ela bebia muito, ficava muito bêbada,
foi levada por seu pai à sua avó paterna no Maranhão
Ao centro, a dedicatória do pai no verso ele havia se suicidado. a ponto de brigar e quebrar as coisas dentro de

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casa. Quando bebia, ela mudava totalmente, Nós moramos nesse lugar até meus doze um monte de coisas na minha cabeça, para
escutava umas músicas do Evaldo Braga, Agui- anos. Minha avó levava umas coisas para nós conseguir elaborar, fazer uma linha do tempo e
naldo Timóteo. Eu não conseguia perceber que comermos ou eu ia até a casa dela buscar. Era conseguir desenvolver. Porque até então, como
minha mãe entrava literalmente na fossa. Ela eu quem cuidava da minha mãe, desde higie- filho de ladrão eu nunca pensei em ir atrás de
acendia um cigarro, pegava um copo de conha- ne pessoal, tudo. E quantas vezes eu também nada, porque essa era a minha história verda-
que que gostava muito e ficava escutando aque- fugi para jogar bola, brincar. Aí ele dizia: “Você deira e eu também não queria saber. Como era
la música que colocava para dormir. deixou sua mãe!”, e batia em mim. Ele achava a história do ladrão? Eu era o filho de um la-
que eu tinha a obrigação de estar lá a todo mo- drão, ele foi, roubou um avião e só, ponto.
Nessa época, comecei a perceber as tristezas mento, resolver todos os problemas. Eu sem-
dela. Nós morávamos no terceiro andar de uma pre fui um cara grande em comparação com a Eu não indagava, simplesmente escutava e
quitinete no centro de Guarulhos. Lá, quase não população da época. Mas o fato de eu ser gran- ficava quieto. A primeira vez que eu indaguei
tinha água. Todos os dias tínhamos que ir bus- de não significava que eu tivesse que ter tanta sobre isso, ainda pequeno, ela já tinha tido o
car água para tomar banho no banheiro coleti- responsabilidade. AVC e não conseguia me falar nada. Conse-
vo. Minha mãe ficava lá bebendo, tomando as guia falar, mas as ideias não batiam.
dela e eu ficava deitado no sofá cama. Às vezes eu chegava em casa meia hora an-
tes dele. Eu conhecia o barulho do ônibus da Quando eu indaguei minha avó, ela disse:
Depois que meu pai morreu, nosso padrão de Zefir, empresa que a Camargo Corrêa usava. “Ah, tinha uns jornais aí, mas sumiram”. Meu
vida mudou totalmente. A casa onde moráva- Ele entrava na avenida e desacelerava, fazia um tio, que era seis anos mais velho que eu, come-
mos era muito boa, o local também era bom, barulho muito peculiar de ônibus antigo. Ele çou a falar algumas coisas, mas também com
um bairro de classe média operária. chegava por volta das 18 horas, então eu voltava hostilidade. Quando eu tinha 13 anos, meu tio,
vinte minutos antes, limpava a casa, fazia tudo que para mim era como se fosse meu irmão
Minha avó tinha uma casa no centro de Gua- mais velho, seguiu pelo caminho das drogas,
rulhos. Era uma pensão que foi crescendo. Mi- correndo. Tinha que estar tudo limpo e ela de
banho tomado. Se não, o couro comia. ficava muito louco.
nha mãe trabalhava como empregada nessa
casa, ajudando na limpeza. Por conta das diver- As pessoas que se relacionavam comigo,
gências, por conta do álcool, minha avó e mi-
nha mãe se desentendiam bastante. E eu, com
“Eu não perguntava sobre meus amigos que estão comigo até hoje não
tocavam nesse assunto. Nem eu falava da mi-
sete, 8 anos também não entendia minha mãe. a morte do meu pai, era nha vida nesse sentido, de chegar e falar: “Pô,
Só fui entender depois, quando descobri toda
a história.
um assunto tabu, porque meu pai é ladrão”. Eu não falava do meu pai
nem da minha mãe.
eu fui criado pensando
Eu não perguntava sobre a morte do meu pai, Com 11 para 12 anos, saímos da quitinete e
era um assunto tabu. Porque eu fui criado pen- que era filho de ladrão” nos mudamos numa Kombi para a casa da mi-
sando que era filho de ladrão. Não queria tocar nha avó. Eu e minha mãe com as sequelas to-
nesse assunto, era muito complicado. Era um Foi muito sofrimento para minha mãe. Toda das dormíamos na sala da pensão e minha avó
assunto que não podia ser falado. a situação da morte, essa tentativa de ter uma no quarto dela.
Quando eu tinha 9 anos, minha mãe teve um pessoa, talvez para ocupar um espaço. E assim
Minha avó, que há muitos anos era mascate,
AVC e perdeu todas faculdades mentais. Não ele nos deixou de vez. Antes disso, eu apanhei
administrava tudo isso. De manhã ela ia traba-
andava mais, praticamente virou um bebê. E, muito, fui muito destratado.
lhar, mascateava, vendia coisas, panos, de co-
para piorar, eu tinha um padrasto. Esse relacio- Como todas as crianças, eu gostava de fazer zinha. No período que vivíamos todos juntos
namento dela foi uma das tentativas de mudar traquinagens, jogar bola. Hoje, sou professor na pensão, isso de filho de ladrão foi batido
de vida. Nessa quitinete morávamos eu, minha de educação física. Eu descia a rua, tinha umas muito na minha cabeça, pelo meu tio e pela
mãe e padrasto. Ele descobriu toda a história quadras, a gente jogava, brincava. Até hoje me minha avó. Nessa época, meu tio virou usuário
do meu pai, porque também trabalhou na Ca- lembro o nome dele. Ele batia em mim e na mi- de drogas, dependente de álcool. Foi então que
margo Corrêa, onde meu pai foi vigia por al- nha mãe. É complicado porque depois de tudo eu percebi que o homem que eu achava que
guns anos. E a história que também chegou isso comecei a entender a minha mãe. Quan- era meu ídolo, meu irmão, virou praticamente
para ele era de que meu pai era ladrão, terro- do meu pai nos abandonou, minha avó, mui- um monstro. Tive essa decepção com quem eu
rista. E ele usava muito da força física contra to dura, simplesmente jogava na minha cara: achei que fosse “o cara”, mas não era nada.
mim, me chamando de filho de ladrão. Ele re- “Seu filho de ladrão”. E minha mãe, já mal da-
forçava muito essa história. Ele batia na minha Quando eu tinha 15 anos, minha avó faleceu
quele jeito, não reagia.
mãe, batia em mim. E quando minha mãe teve dentro de casa, depois de uma briga que teve
o AVC, ele segurou a onda por um tempo, mas Minha mãe faleceu quando eu tinha 18 anos com meu tio. Eu e minha mãe ficamos moran-
quando viu que a mulher com quem ele vivia de idade. Depois que comecei entender a his- do lá na pensão com meu tio. Aí eu conheci
não ia mais voltar, foi embora. tória do meu pai, quando eu tinha 34 anos, veio quem ele era. Batia em mim e na minha mãe.

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Ele era usuário de cocaína, que colocava em foi ruim. É um pouco bom até”. E segui mi- “Até eu descobrir a
cima da mesa e chamava os maloqueiros da nha vida, ainda morando com meu tio. Parei
rua. Ficavam lá, traficantes, tudo dentro da mi- de jogar, fui servir na Aeronáutica, de onde saí verdadeira história, eu
nha casa, cheirando, com minha mãe do lado, como soldado de primeira categoria, em 1987. tinha desencanado de saber
sem entender nada. Eu passava, olhava e nun-
ca me ofereceram. Eu não sabia nem o que foi a ditadura mi- mais. Mas alguma coisa me
Eu era atleta, jogava bola, tive dois professo-
litar. Fui tolhido de qualquer informação na
minha vida escolar. Na escola, tive OSPB, his-
dizia que tinha algo a ver
res de educação física espetaculares, isso me tória, geografia, ciências e meus professores com a ditadura. Quando
ajudou muito. Participava das atividades de nunca abriram a boca, nunca falaram nada a
uma instituição que ajuda menores que preci- respeito, até o terceiro ano de ensino médio.
começou a haver uma
sam de apoio. Passei um bom tempo lá. Essa Não lembro de nada significativo que um pro- abertura maior e a ditadura
era minha fuga. Quando o bicho estava pegan- fessor tenha falado sobre a ditadura. Veja só
do, eu ia para lá. Meus amigos de infância tam- o terror e lavagem cerebral em três, quatro, começou a aparecer mais
bém me ajudaram muito. Me chamavam para cinco gerações. Eu não tinha a menor ideia de eu falei: ‘Acho que meu pai
sair, para ir à praia. nada. Achava que meu pai era um ladrão co-
mum. Entrei na faculdade de esporte, aquela tem a ver com essa ditadura’.
Era muito complicado, porque eu era office
boy, levantava cedo, ia trabalhar. E tinha von-
coisa toda que também tem uma doutrina. Pensei em ir a um jornal
tade de fugir de tudo aquilo, mas minha mãe Até eu descobrir a verdadeira história, eu pesquisar porque sabia que
estava lá. Não se passava uma, duas semanas
sem que houvesse a mesma explosão, a mesma
tinha desencanado de saber mais. Mas algu-
ma coisa me dizia que tinha algo a ver com
aqueles jornais tinham
briga, coisa, aquela coisa de fugir e voltar. a ditadura. Quando começou a haver uma sido rasgados”
abertura maior e a ditadura começou a apa-
E a história do meu pai virou um tabu mesmo,
recer mais eu falei: “Acho que meu pai tem a
eu fechei qualquer tipo de porta que pudesse
ver com essa coisa de ditadura”. Pensei em ir
trazer qualquer história dele à tona. Eu tinha
a um jornal pesquisar porque sabia que aque-
medo de me decepcionar ainda mais. Assim,
les jornais antigos tinham sido rasgados.
coloquei na minha cabeça que não era filho de
ladrão e que se meu pai realmente tivesse sido A maneira por meio da qual eu descobri
um ladrão, não poderia fazer nada. Pensei: “sei minha história foi muito linda. Foi através da
que posso fazer minha vida ser diferente e ela jornalista Eliane Brum, que soube que meu
vai ser diferente, não sei quando, mas vai, vou pai não era ladrão. Em 2001, uma cunhada
correr atrás da minha vida”. minha viu o nome do meu pai relacionado a
uma história da ditadura. Ela ligou para mi-
Quem também me ajudou muito foi meu
nha mulher, Leila, que tinha recém operado
professor de educação física. Eu ia disputar
o joelho. Ela estava em casa e recebeu a liga-
jogos, treinava, competia. Eu jogava bem, no
ção da minha cunhada, que morava em São
time da região. Aos domingos, tinha jogo às
José dos Campos: “Vi uma revista na dentis-
oito da manhã e à noite havia brigas. Parecia
ta e tinha uma matéria onde havia uma pes-
que era assim, passou a ser normal. Eu achava
soa com o nome igual ao do Grenaldo, acho
que no dia seguinte ia ser melhor.
que é o pai dele. Veja lá na identidade dele.
Quando eu tinha 18 anos, minha mãe morreu. É Grenaldo Jesus da Silva?”. “Ah, acho que
Numa das brigas com meu tio, ela apanhou. Eu é, ele nunca fala do pai”, minha mulher res-
intervi, ele saiu de casa e eu fiquei só com ela. pondeu. Aí ela foi pesquisar no computador
Ela passou mal, desmaiou e eu a levei de táxi, e ligou de novo. “Leila, tem a foto do pai do
sem um tostão, para o hospital. Chegando lá, Naldo, prepara ele”. Era a revista Época, que
ela não tinha documento, porque numa briga tinha acabado de ser lançada.
de anos antes, ele tinha queimado todos os do-
cumentos dela. Depois de uns dias hospitaliza- Quando eu cheguei em casa, a minha mu-
da, ela morreu. lher me disse: “A Época está com umas his-
tórias do seu pai..”. Na hora, a primeira sen-
Eu me culpo um pouco com essa situação, sação é de medo. “Puxa, e agora, como é que
porque eu pensei: “Minha mãe morreu, mas não vai ser?” Pensei, “vou ter que encarar”. E co- Avó de Grenaldo, D. Christina, alemã, era mãe adotiva de Mônica

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mecei a buscar na internet, falei com a minha vergonha dele, não. Não tenha medo da sua to” e “Seu pai não era um ladrão. Seu pai era
cunhada, que disse: “A revista não está comigo, história. Leia isso, depois a gente conversa”. um herói”. Nessa hora eu ajoelhei, e comecei a
está lá na dentista”. orar: “Deus, muito obrigado, o Senhor está me
No final, ela disse: “Tenho uma coisa para te libertando de uma parede enorme que tinha na
Na internet, achei o Dossiê de Mortos e Desa- contar. Tem uma pessoa que quer te conhecer. minha frente”. Eu estava apoiado nos joelhos e
parecidos Políticos, e vi algumas informações Posso marcar uma reunião para você conhecê- não via mais nada. Ele veio perto de mim, me
concretas que indicavam que a morte do meu -lo?” E na hora pensei: “É o cara que matou abraçou e disse: “Tenho mais uma coisa para te
pai tinha sido em março de 1972. Não tive cer- meu pai, meu Deus”. falar: Seu pai deixou uma carta para você, pe-
teza de nada, minha cabeça estava fervendo. dindo desculpas, dizendo que não queria fazer
Eu tentava me segurar, mas não estava enten- Me preparei emocionalmente para o encon-
tro, que foi na casa da Marisa. A Eliane pergun- nada disso, mas que não podia mais estar junto
dendo ainda, porque não tive educação, forma- a você e sua mãe”.
ção sobre o que foi ditadura. Não conseguia tou se eu me incomodaria que ela levasse um
entender a dimensão da coisa. fotógrafo. E eu com isso na cabeça, de que a Ele disse que a carta existe, que está na Ma-
pessoa que ela levaria seria o cara que tinha rinha: “Essa carta foi feita para você. Ela ficou
Quando comecei a entender qual era o con- matado o meu pai. nas minhas mãos e foi aí que eu percebi quem
texto histórico, tive medo pela minha filha, era seu pai, que eu podia em algum momento
pela minha mulher. Contei a história para uma
aluna minha de personal trainer que era pro- “Essa frase ‘Seu pai talvez ter sido ele” . Porque ele, como sargento
da Aeronáutica, não concordava com o que es-
fessora de história. Ela sugeriu que fôssemos não foi um ladrão. tava acontecendo. Eu falei: “Zé, você fez a coisa
ao Arquivo do Estado de São Paulo. Fomos eu,
ela e minha mulher. Tinha um monte de coisa, Seu pai foi um herói’ mais maravilhosa do mundo”.

e quando abri nos jornais da época, O Globo, eu tenho na minha Esse momento foi muito bonito. Quem esta-
va lá quando nos encontramos viu a presença
Folha de São Paulo, as revistas da época, todos
diziam que ele era terrorista. Fiquei muito de- cabeça e isso faz a de Deus, todo mundo estava chorando.
cepcionado, pensando. “Puxa, o que falaram do minha vida seguir” Essa frase “Seu pai não foi um ladrão. Seu pai
meu pai era verdade. Meu pai é um ladrão”. Fi-
foi um herói” eu tenho na minha cabeça e isso
quei muito arrasado. Vi a minha foto no jornal
No dia do encontro, o homem entrou, me deu faz a minha vida seguir. A minha vida acelera.
O Globo, a entrevista da minha mãe que estava
um abraço, sentou e começou a contar a história Se alguém vier e me mandar abaixar a cabeça,
ao lado. Tem outra parte que fala do enterro do
dele: que ele era um controlador de voo, que era antes eu até podia abaixar. Mas agora, não. Ago-
meu pai.
sargento da Aeronáutica [José Barazal Alvarez]. ra eu peito, agora eu vou para cima. Quando
Eu não entendia a manipulação que todos os Disse que ele atendeu a uma ocorrência do meu meus filhos falam: “Eu não consigo...”, eu digo:
canais de mídia faziam naquela época. Aí dis- pai, e quando percebeu que era um sequestro, “Não fale que não consegue. Essa palavra não
se: “Quero conversar com essa mulher que fez começou a conversar com o meu pai e com o pode existir. Você consegue, você sabe, você
essa revista”. Pesquisei o nome Eliane Brum piloto. Ele me disse que percebeu que meu pai vai...Você é neta do Grenaldo!”. Minha vida mu-
e pedi para a minha aluna fazer a intermedia- não era a pessoa que estavam falando. O avião dou depois disso. Hoje sou um Grenaldo muito
ção do contato. Ela ligou e a Eliane disse a ela: estava indo para Curitiba e a intenção do meu diferente. Sou o Grenaldo filho do herói.
“Você conhece o Grenaldo? Eu estou procuran- pai era de ir ao Uruguai, onde, à época, não ti-
nha ditadura. José disse que percebeu que ha- Isso e a tortura da minha mãe foram as coi-
do por ele”.
via alguma coisa diferente, que meu pai estava sas que mais marcaram a minha vida. Acho
Aí marcamos o encontro numa pizzaria. Fo- sozinho, numa situação de desespero total. que não existe tortura pior do que a que ela so-
mos eu, minha mulher e a minha aluna. Até freu depois da morte do meu pai: O AVC, o al-
então eu tive mais medo. Foi a Eliane que me Ele foi o encarregado de fazer o inquérito, o coolismo, morando muito mal, apanhando do
aliviou. Meu peso era muito grande por con- Inquérito Policial Militar do caso. Ele conta que meu padastro, depois do meu tio. Ela foi a mais
ta da carga familiar e ainda mais por conta de queria dar baixa, mas que não conseguia, mui- torturada. E eu de tabela.
tudo que vi nos jornais. Eu precisava liberar tos amigos haviam desaparecido e viveu sob
ou enterrar de vez aquela história. Ela já veio Então, o Zé foi o meu libertador e a Eliane
medo por muito tempo, porque não estava de
com livros Dos Filhos deste solo, Combate nas Brum um anjo que Deus colocou na minha vida.
acordo com o que estava acontecendo.
trevas, A Ditadura Escancarada, a Revolta dos A partir daí comecei uma outra luta, de pesqui-
Marinheiros. Na hora de fazer o inquérito, o corpo do meu sa, correndo atrás, lendo.. E fomos, a Eliane e eu,
pai estava dentro de um carro. Ele mexeu no cor- atrás do Inquérito Policial Militar. Nós encon-
Comentei algo sobre meu medo, minha situ- po e viu que havia uma perfuração na cabeça. tramos um pedaço da carta, que estava rasgada.
ação, sentir esse fardo nas minhas costas, do
ladrão, de tudo que vi. Ela colocou a mão em Quando ele contava isso, olhou para mim e Eu tentei resgatar a história do meu pai atra-
mim e disse. “Seu pai é um herói, não tenha disse: “Seu pai não se suicidou, seu pai foi mor- vés das ações que eu movi. A própria indeniza-

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“Descobri que, em 1971,
quando meu pai saiu
de casa, foi para o Rio de
Janeiro e de lá para
o Maranhão. Chegando
lá, diz à minha avó:
‘Mãe, tenho um filho.
O nome dele é Grenaldo
e a foto dele é essa’”

ção do governo federal é um reconhecimento


legal disso. O sargento [Augusto Carlos] Cas-
saniga foi quem executou meu pai, mas nunca
fui atrás disso.

Depois disso tudo, no começo de 2003, co-


nheci minha avó paterna. A Eliane me disse:
“Mandei a revista para a casa da sua avó”, e
eu “onde ela está?”. “No Maranhão”, disse ela.
Na chegada a São Luís, descendo do avião, já
percebi que era a minha avó. Ela me abraçou,
começou a chorar. Foi muito especial. Nos dias
que fiquei lá, ela ficava me abraçando, me to-
cando, pegando no meu cabelo. Parecia que
estava vendo meu pai.

Aí descobri que, em 1971, quando meu pai


saiu de casa, foi para o Rio de Janeiro e de lá
para o Maranhão. Chegando lá, disse à minha
avó: “Mãe, tenho um filho. O nome dele é Gre-
naldo e a foto dele é essa”. E atrás da foto está
escrito assim: “Oi, eu sou o Naldinho, tenho
três anos. Quando eu crescer, irei até o Mara-
nhão”. Ou seja, como eles sabem que eu era fi-
lho do meu pai? Como eles têm certeza disso?
Porque é a mesma foto que eu tenho, que foi
publicada na reportagem da revista Época. Mi-
nha avó viu a reportagem que a Eliane mandou
onde tinha a mesma foto.

GRENALDO ERDMUNDO DA SILVA MESUT nasceu em


27 de abril de 1968 em Guarulhos (SP). Filho de Grenaldo
de Jesus Silva e Mônica Mesut, é professor de Educação
Física e mora em São Paulo. Mônica e D. Christina, sendo Grenaldo um dos bebês

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Grenaldo de Jesus Silva nasceu em 17 de
abril de 1941, em São Luís no Maranhão, filho do al-
faiate Gregório Napoleão Silva e da servente de escola
Pai, marinheiro
Eneida Estela Silva. 1. Carteira de identificação de Grenaldo na Marinha
Era o filho mais velho dentre 12 irmãos. Ingressou na 2 e 3. Grenaldo, marinheiro
Escola de Aprendizes de Marinheiros do Ceará em 4. Certidão de Óbito de Grenaldo Jesus da Silva,
1960. Em 30 de setembro de 1964, quando era mari- no Aeroporto de Congonhas, no dia 30 de maio de 1972
nheiro de 2ª classe, foi expulso em função de sua mi- 5. Grenaldo trabalhando como vigilante na empresa
litância política e acabou condenado a cinco anos e Camargo Corrêa
dois meses de prisão. Fugido, chegou a Guarulhos (SP),
onde trabalhou por cinco anos. Lá se casou com Môni-
ca Edmunda Messut e tiveram um filho. Trabalhou de
1965 a 1970 como porteiro e vigilante na empresa Ca-
margo Corrêa. Em 1971 começou a receber cartas que
o deixavam nervoso, provavelmente avisando que a
repressão havia conseguido descobrir seu paradeiro.
Grenaldo saiu de casa dizendo que buscaria a família 1
para viverem uma vida melhor. A mulher só voltou a ter
notícias dele quando foi divulgada sua morte por oca-
sião do sequestro de um avião no Aeroporto de Congo-
nhas, na cidade de São Paulo.
Foi assassinado em 30 de maio de 1972, neste Aero-
porto, quando tentava sequestrar um avião da Varig,
que voava para Curitiba e acabou retornando para São
Paulo. Após negociar a saída de todos os passageiros e
a maior parte dos tripulantes, a aeronave foi invadida
e Grenaldo, mesmo imobilizado, recebeu um tiro na ca-
beça dado por agentes do DOI-CODI/SP. Sua execução
foi contada em detalhes pelos policiais aos presos po-
líticos do DOI, quando voltaram da operação aos gritos
de alegria.
A versão policial foi de suicídio. De acordo com os regis-
tros do Cemitério D. Bosco, em Perus, seus restos mor-
tais encontram-se entre as 1.049 ossadas da vala clan-
destina criada ali em 1976 e descoberta apenas em 1990.

Mônica Edmunda Messut nasceu na Ale-


manha. Sua mãe Christina fugia deste país depois da Se-
gunda Guerra Mundial quando, no caminho, encontrou
uma mulher morta e, nos braços, um bebê ainda com
vida, era Mônica. Decidiu, com todas as adversidades de
2
uma Europa devastada, salvar a criança levando-a con-
sigo. Esta dura história de sobrevivência traduziu-se
3
em uma família que não gostava de falar do passado,
o que justifica as poucas expli-
cações que pediram a Grenaldo
quando o conheceram. Mônica
5
e Grenaldo se apaixonaram e ti-
veram um único filho, que leva
o nome do pai. Depois do as-
sassinato de seu companheiro
passou por muitos problemas,
inclusive dependência alcoóli-
ca, e teve um acidente vascu-
lar cerebral que a deixou com
danos permanentes. Seu filho
tinha 9 anos na época e se tor-
nou o responsável pelos seus
cuidados. Nove anos depois ela
morreu. O filho acredita que a
mãe nunca soube da militância
do seu pai.
Essas informações são basea-
das em uma matéria de Eliane
Brum na revista Época de no- 4
vembro de 2003.

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7

9 10

6. Christina e Mônica passeiam no centro da cidade


7. Grenaldo ainda bebê
8. Vestido de marinheiro, com cerca de 4 anos
9. Grenaldo com 10 anos
10. Matéria da Revista Época, novembro de 2003

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por Cecília Capistrano Bacha

Meu nome é Cecília. Sou neta do David ção, ninguém sabia que era filha do David Ficou nove meses entre o Cenimar, no cen-
Capistrano, sobrinha do David Capistra- Capistrano e da Maria Augusta de Olivei- tro do Rio de Janeiro, e a Ilha das Flores.
no Filho – pai e avô militavam no Parti- ra. Ela tinha um nome falso, Márcia.
do Comunista Brasileiro (PCB) –, filha Logo que o aparato repressivo começou a
da Maria Cristina Capistrano e neta da Minha mãe não falava nada. Tinha montar toda a história que envolvia minha
Maria Augusta Capistrano. Acompanhei medo de falar alguma coisa, que ela era mãe, já fazia uma semana que ela estava
bastante a busca pelo meu avô, mas como filha do David, claro, e também de acabar no DOI-CODI. Era uma estratégia dos pre-
eu nasci em 1975, já era uma fase que a abrindo o endereço de minha avó que mo- sos prolongar ao máximo o tempo que fica-
minha avó, meu tio e minha mãe não ti- rava com o meu tio David, que também vam sem falar quem eram. Agindo assim
nham mais esperanças de encontrá-lo. era do PCB. minha mãe fazia que os companheiros per-
cebessem que estava presa e, desse modo,
Nasci no ano que a minha mãe foi absol- pudessem se ajeitar, se arrumar para fugir
vida do inquérito policial militar. Ela fazia “Minha mãe foi presa de possíveis encontros marcados.
propaganda do Partido Comunista do Bra- quando estava sozinha Quando a história foi montada, meu
sil (PCdoB). Foi presa junto com o compa-
nheiro dela, o Tarso, na Vila da Penha, Rio em casa com meu irmão, irmão estava há uma semana no aparta-
de Janeiro. O Tarso também era filho de Jonas, na época com mento com policiais do Exército. Minha
mãe sempre me fala da solidariedade dos
um militante do Partido Comunista Brasi-
leiro (PCB), e os dois eram namorados, mo- 4 anos. O meu irmão vizinhos que levavam bolo, café para eles.
ravam juntos e faziam material de agitação ficou no apartamento, Ela não tinha notícia nenhuma dele, que
por sua vez também não tinha notícia
e de informação do PCdoB.
que era tipo um CDHU” dela. Minha avó também não tinha notí-
Ela foi presa quando estava sozinha cia nenhuma porque não sabia que a filha
em casa com meu irmão, Jonas, na época estava presa.
com 4 anos. O meu irmão ficou no apar- Depois disso, só quando o Tarso resol-
tamento, que era tipo um CDHU. Lá, hoje veu falar que ele era filho do Donato, a Bom, levaram meu irmão para a minha
em dia, é o Complexo do Alemão. Fica repressão foi montando a história dela. A avó. Ela levou um susto danado, no en-
dentro do Complexo do Alemão. família do Donato acabou ajudando muito tanto desconfiava que alguma coisa tinha
durante todo o processo, inclusive contra- acontecido porque minha mãe não apare-
E então ela foi levada para o DOI-CODI. tando advogado. cia. Era muito raro ela ficar tanto tempo
Chegando lá, como não tinha documenta- sem dar notícias.
Depois de um mês no DOI-CODI, ela foi
transferida para o Cenimar. Em seguida Fico imaginando o que meu irmão fi-
À esquerda, Maria Cristina e sua filha Cecília com
cerca de 1 ano de idade mamãe foi levada para a Ilha das Flores. cou fazendo lá uma semana. Brincando

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de carrinho, eu acho. Também imagino prisão e a tortura agora, depois de me ver filhos”. E o meu tio ficou nesse dilema bas-
que teve muita sorte por ter os vizinhos adulta. No entanto, eu sempre soube, mi- tante tempo. No entanto, minha mãe de-
olhando por ele. Nossa família era bem nha avó me contava. Eu não confirmava morou muito a se decidir pelo PCdoB, que
conhecida lá na região, porque, às vezes, com minha mãe para não deixá-la triste. cooptou muitos jovens na época.
arrumávamos remédio, ajudávamos as
Da minha avó, posso dizer que é uma Até hoje minha avó é chamada para
pessoas dando orientações de quem pro-
lutadora, mesmo. Eu sempre convivi mui- contar a história da busca pelo meu avô,
curar, enfim, esse papel que muitas pes-
to com ela, posto que a minha mãe traba- todos os passos que eles seguiram nessa
soas fazem na comunidade orientando as
lhava fora, e frequentemente nos deixava busca, o quanto isso foi importante tam-
que têm pouco conhecimento.
com a minha avó. Talvez por isso acom- bém para o trabalho da Anistia.
Minha avó me contou que uma vez panhei-a bastante indo aos encontros da Quando começou as Diretas Já, me
levou o Jonas para visitá-la na prisão. Anistia. Por inúmeras vezes me levava. A lembro de ter sido uma época em que as
Minha mãe colocou esse nome no meu visão que tenho dela é a de uma mulher pessoas podiam aparecer mais, a história
irmão em homenagem a um estudante muito, muito ativa, feminista, que estava da minha família passou a ser contada, a
pernambucano assassinado que era ami- sempre buscando saber a história do meu gente era mais festeira. Quando a minha
go da família. Minha avó relatou que mi- avô, preservar a memória dele. mãe começou a me levar para os comí-
nha mãe estava muito mal, e não expres- cios, fazia uma operação de guerra. Tinha
sava nenhuma reação. Ficava tremendo
porque ela tinha levado muito choque no
“O que eu sofri é uma várias dicas, não soltar a mão, papelzinho
com nome no bolso, ficava dando um mon-
DOI-CODI. E minha avó sempre me con- coisa invisível. Mas te de conselhos antes de sair de casa. Eu
tava isso.
certamente ficou alguma pensava: “gente, o que está acontecendo, é
só uma festa que a gente vai. Um show”.
Assim, quando eu já era maiorzinha,
tipo 7 anos, havia alguns momentos que
marca. Acho que passa
Lembro-me de uma sensação ao chegar a
minha mãe tinha uns ataques de fúria de geração para geração uma dessas passeatas, veio-me uma clare-
contra a gente, coisa de mãe mesmo, mas
achávamos que era meio desproporcional,
quando se sofre uma za. Entendi mais o que estava acontecendo,
o que a gente era. Acho que de mim, o que
e a minha avó sempre falava “Não. Isso é violência tão grande” posso falar é que tenho certa revolta que
porque ela sofreu muito, ela foi muito tor- não sei direito de onde vem. Meus colegas
turada. Você tem de obedecer e entender, Da prisão de minha mãe, minha família de escola sempre falavam: “Você é revolta-
sua mãe tinha só 22 anos”. Desde então fala pouco, até porque havia aquela briga da. Você é sempre do contra”. Pessoas que
imagino o que ela deve ter passado no entre PCB e PCdoB. Mamãe saiu de casa nem sabiam dessa história familiar toda. E
DOI-CODI, bonita do jeito que era. cedo, resolveu ir para o PCdoB, tinha de não é que eu seja do contra. Mas acho que
proteger a família. Então, era aquela ques- há certa injustiça que não se resolve. Fica
O que eu sofri é uma coisa invisível
tão. Meu avô deu o ultimato: “Você pode aquela coisa, e você vai levando isso para
porque não estava lá para saber. Mas cer-
ir, mas vai ter de sair de casa”. outras esferas. Vai pensando “nossa, é tão
tamente ficou alguma marca... Eu não sei
injusto” e não resolve.
explicar, acho que passa de geração para Pouco antes de escrever este depoimen-
geração quando se sofre uma violência tão to, li uma carta que o meu tio mandou Sobre a minha militância, sempre parti-
grande. E procuro, muitas das vezes, enten- para um amigo, o Marcelo, lá de Pernam- cipei dos vários movimentos, acompanho
der como isso pode ter me afetado, porque buco, em que conta como estava pressio- as reuniões de desaparecidos políticos,
eu sinto que afetou mas, conscientemente, nado com os colegas indo para o PCdoB – mas sempre do lado de minha mãe e do
não identifico onde. A gente fica sempre ele se sentia muito culpado em relação ao lado da minha avó. Sempre escutando.
buscando o lugar onde as marcas podem pai. Ele escreve essa palavra, “culpado”, e
ter ficado. Minha mãe foi me contando a conta que o pai ficou muito triste de ele ir
nossa história muito aos pouquinhos. O para o PCdoB. O pai dele, meu avô, falava: CECÍLIA CAPISTRANO BACHA nasceu em 1975, no
meu pai nunca me falou nada sobre essa “Conquistei tantas pessoas para o PCB e Rio de Janeiro. Filha de Hélio Arthur Bacha e Ma-
ria Cristina Capistrano. É mãe do Juliano e da Lui-
história, e até hoje sequer toca no assun- não consegui conquistar meus próprios za. Atualmente está cursando pós-graduação em
to. Mesmo mamãe só foi se abrir sobre a filhos. Eu tenho de segurar meus próprios Marketing Digital em São Paulo, onde reside.

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1

1. Gregório Bezerra, Helio Arthur e Cecília


2. Helio Arthur Bacha, pai de Cecília
3. Cecília no colo do seu tio, David Capistrano Filho

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4
3. Matéria de jornal divulga pedido de
informações do MDB sobre o paradeiro
de David Capistrano pai e filho.
David Capistrano é desaparecido
político e seu filho, neste período, esteve
preso e incomunicável
4. Cecília na campanha da
Constituinte, 1986

1. Maria Augusta, avó de Cecília,


ao microfone e seu filho David
2. David Capistrano, avô de Cecília

Maria Cristina Capistrano nasceu em 6 participou da ANL e da revolta de 1935, quando foi O irmão de Maria Cristina, David Capistrano da Cos-
de janeiro de 1950. Filha de David Capistrano da Costa, preso e condenado a 7 anos de detenção no presídio ta Filho, iniciou sua militância política em 1962 no
desaparecido político desde 1974, e Maria Augusta de de Ilha Grande, de onde fugiu a nado exilando-se em Colégio Estadual de Pernambuco, em Recife, aos 14
Oliveira Capistrano, hoje com 94 anos, ambos militan- seguida no Uruguai. Voltou ao Brasil e foi novamen- anos de idade. Após 1964, intensifica sua atuação po-
tes comunistas desde 1945. Tem dois irmãos, Maria Ca- te preso em 1944, sendo anistiado 1 ano depois. Em lítica. No final de 1965 muda-se para o Rio de Janeiro,
rolina Capistrano e David Capistrano da Costa Filho. 1946 foi eleito o deputado estadual mais votado de onde forma-se médico sanitarista pela Faculdade de
Pernambuco, cassado um ano depois. Medicina da UFRJ e inicia militância no movimento
Era secretária de Agitação e Propaganda do PCdoB e estudantil universitário. Com a intensa perseguição
tinha 22 anos quando foi sequestrada em sua casa, Teve intensa atuação política em São Paulo e Rio de a ele, vai para São Paulo em 1974. É eleito, em 1992,
onde estava sozinha com seu filho, com 4 anos na Janeiro até ser enviado por dois anos para a Escola prefeito da cidade de Santos pelo Partido dos Traba-
época, no Rio de Janeiro. Foi levada ao DOI-CODI, mas de Quadros do Partido Comunista da União Soviética lhadores.
não foi identificada imediatamente como filha de (PCUS), em Moscou. De volta ao país teve atuação po-
lítica em vários estados, sendo preso novamente em Maria Cristina Capistrano hoje tem 64 anos e é coor-
David, pois a repressão conhecia somente seu nome
1961 ao tentar assegurar a posse de Jango, quando denadora pedagógica. Seu filho, Jonas, faleceu em
falso, Márcia, no momento. Ficou durante um mês no
da renúncia de Jânio Quadros. Teve, ainda, mais uma 1976, vítima de um atropelamento. É, ainda, mãe de
DOI sofrendo torturas. Foi levada em seguida para o
prisão posteriormente. Com o golpe de 1964 foi per- Eneida e Cecília Capistrano Bacha.
Cenimar e, na sequência, para a Ilha das Flores, per-
manecendo encarcerada ali por mais 9 meses. seguido e teve seus direitos cassados. Em 1972 viajou
para Tchecoslováquia, retornando 2 anos depois,
Seu pai David, cearense de Boa Viagem, iniciou sua mesmo ano em que é sequestrado e desaparecido pe-
militância em 1931. Como sargento da aeronáutica, los órgãos de repressão.

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“Meu filho ficou na companhia
daqueles homens”
por Maria Cristina Capistrano

Meu primeiro filho, Jonas, nasceu em no- mar só recebi uma visita de familiares, entre Em 1974, meu pai voltou ao Brasil, após ter
vembro de 1968. Ele estava junto a mim quan- eles meu filho. saído clandestinamente do país. Sabemos que
do fui presa em 1972, em um apartamento foi preso nas proximidades de Uruguaiana
No dia seguinte ao interrogatório na Mari-
do conjunto habitacional do Quitungo, no Rio (RS), juntamente com José Roman, que havia
nha, uma embarcação nos levou para o presí-
de Janeiro. saído de São Paulo para encontrá-lo na frontei-
dio da Ilha das Flores, na Baía de Guanabara,
ra. Meu pai e José Roman nunca mais foram
Saí arrastada de lá e o meu filho ficou em onde permaneci por oito meses, e durante
vistos e são considerados “desaparecidos po-
companhia daqueles homens, sem que eu esse tempo só foram permitidas duas visitas
líticos”, denominação que, embora não tenha
soubesse o que fariam com ele. Felizmente, de um advogado e nenhuma de familiares.
qualquer sentido, tem um significado reconhe-
apesar do medo que a polícia política causava
Após a minha liberação, fui obrigada a voltar cido por todos que viveram o terror da repres-
na maioria da população, meus vizinhos toma-
semanalmente, durante quase cinco meses, ao são no período da ditadura militar.
ram conhecimento da situação no momento
quartel da Marinha, pois, para a polícia políti-
em que fui presa, e pude contar com a solida- Em 1975, quando nasceu minha segunda fi-
ca, estava sob liberdade condicional, embora
riedade deles, que providenciaram leite, pão, lha, Cecília, eu ainda estava sob a ameaça de
nenhum julgamento tenha acontecido. Aca-
biscoitos, almoço e ceia para o Jonas, nos dias processo jurídico na Justiça Militar, mas as
távamos essa anomalia, essa imposição, uma
em que ficou nas mãos dos agentes da repres- adversidades políticas ficaram em segundo
vez que existia o temor de sermos novamente
são. Depois o Jonas foi levado para a casa dos plano, diante da alegria de sua chegada.
encarcerados, sem qualquer culpa formalizada.
pais do meu companheiro e depois para a casa
da minha mãe.
Maria Cristina, Luiza, filha de Cecília, e Cecília em São Paulo
Todos esses acontecimentos me foram relata-
dos posteriormente, pois quando saí, apenas le-
vei a angústia de estar deixando meu filho com
desconhecidos, sem qualquer segurança sobre
a forma como ele seria tratado.
Passei mais de trinta dias no DOI-CODI, na
Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde so-
fri todo tipo de tortura que a ditadura militar
impunha regularmente aos presos políticos –
espancamento, choques elétricos, “geladeira”,
fome, sede e completa insegurança quanto à
preservação da própria vida.
Após esse período, fui transferida para o Ce-
nimar, no quartel da Marinha, na Praça Mauá,
e lá foi realizado um interrogatório formal, que
posteriormente serviu para instruir o processo
encaminhado à Justiça Militar. No Cenimar
não sofri torturas físicas, embora a pressão psi-
cológica continuasse por vários motivos, mas,
principalmente porque não dispúnhamos do
acompanhamento de um advogado. No Ceni-

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~

por Clóvis Petit

Vou falar da minha adolescência, período em lego”. Para uma criança de 12 anos de idade,
que vivenciei a atuação política dos meus ir- o que significaria pelego? Ou mesmo, “abaixo
mãos, que se deu em São Paulo mais ou menos o imperialismo”, “abaixo MEC-USAID”. Eram
a partir de 1968. Nessa época, o Lúcio, que já preocupações de uma criança de 12 anos que
tinha se formado na Faculdade de Engenharia começava a querer saber o que aquilo repre-
e Eletrotécnica de Itajubá/MG, resolveu tra- sentava. Com 12 anos comecei a aprender
zer a minha mãe para morar em São Paulo. A coisas que a população não sabia. Se pichava
Maria Lúcia tinha prestado um concurso e es- aquilo, mas talvez o povão não estivesse nem
tava trabalhando na cidade. A Laura também tendo a consciência do que estava escrito ali.
estava em São Paulo há muito tempo. Enfim, Aquelas frases todas e tal.
praticamente toda a família morava na cidade.
Na escola, nós tínhamos aquelas aulas de
O ano de 1968 foi de muita agitação, porque Educação Moral e Cívica, que eram um hor-
foi o ano que mais preocupou a ditadura mili- ror. Para alguém que mesmo adolescente, mas
tar, culminando com a edição do AI-5. que já tivesse uma certa consciência política,
era insuportável assistir uma aula onde a pro-
“Lembro-me de ter feito fessora dizia que não ter direito de votar para
Presidente era certo. Que a Guerra do Vietnã,
algumas discussões com o os Estados Unidos estavam lá só para ajudar.
Jaime sobre imperialismo. Eu era muito contestador, me destacava em
Foi um momento que me relação aos outros alunos. Lembro-me de uma
vez que estava estudando lá no Liceu Noro-
abriu bem a cabeça” este, em Bauru, e foi um advogado mais um
outro cara que eu não sei o que fazia lá, mas
Nessa época, eu estudava num colégio parti-
ele foi assim, entrou de sala em sala alertando
cular chamado Alfredo Pucca. Nós morávamos
contra o terrorismo, contra a subversão e coisa
na Bela Vista, eu ia a pé para a escola. Na volta
e tal. E senti aquilo como um certo alerta para
da escola, minha mãe se preocupava porque fi-
mim porque eu batia de frente ali com alguns
cava sabendo pelos meus irmãos que haveria
professores.
passeatas, coisa e tal. Às vezes eu me atrasava
e já era motivo de preocupação para ela. Antes Lembro-me de ter feito algumas discussões
das passeatas, normalmente o Lúcio, o Jaime, com o Jaime sobre imperialismo. Foi um mo-
Maria Lúcia, todos se reuniam em casa. Outros mento que me abriu bem a cabeça. Eles tra-
militantes do PCdoB também se reuniam e saí- ziam da USP um livrinho que chamava Um
am dali já para as manifestações. dia na vida do Brasilino, que contava a histó-
ria de como era a exploração das indústrias no
Fui tomando consciência política naquela
país, como era a vida do Brasilino. E depois,
época. Passava pela cidade e via escrito, “pe-
mais à frente, voltamos para o interior. Mor-
Jaime e Clóvis, durante uma visita de Jaime, que morava
reu uma irmã da minha mãe e tinha uma avó
em Itajubá (MG), à família em São Paulo, 1968 que morava com essa irmã. Então minha mãe

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resolveu voltar para Bauru para ficar cuidan- estação rodoviária. Me despedi dele e nunca de São Paulo, o Aloysio Nunes. Então eles não
do da minha avó. E logo em seguida, em 1970, mais o vi. Ele falou que voltaria para me buscar sabiam exatamente quem estava no Araguaia.
meus irmãos já estavam se preparando para ir um dia. “Fica aí cuidando da mãe, mas um dia Apesar de ter sido muito duro para mim quan-
para Guerrilha do Araguaia. Teve também o eu volto para te buscar”. Nessa época, eu já es- do eu soube da morte da Maria Lúcia, eu não
momento da prisão do Jaime, em 1968. tava com uns 14 anos, mais ou menos. podia contar nem para minha mãe, nem para
o meu irmão.
Antes de voltarmos para Bauru, o Jaime Nós não sabíamos que eles estavam no Ara-
participou do Congresso de Ibiúna e foi preso. guaia, não sabíamos onde eles estavam. Eles E foi muito difícil porque, já na época da
Como tinha estudantes de diversas localida- foram para lá entre 1970 e 1971, mais ou menos. anistia, quando o Clóvis ficou sabendo, ele era
des do Brasil, muitas mães vieram para São E foi no começo da luta da Anistia, em 1977, um adolescente, ficou muito revoltado e queria
Paulo e formaram um comitê visando a liber- que nós ficamos sabendo que a Maria Lúcia vingança sim. Dissemos para ele: “Não, você
tação dos presos políticos. Eu fui em duas ou tinha morrido e que eles tinham ido para essa tem que se engajar em uma luta política”. E foi
três dessas reuniões. Eu estava sempre junto a região. A Laura ficou sabendo antes, mas acho providencial estar surgindo o Comitê Brasilei-
minha mãe, e depois nós fomos até a porta do que guardou isso também para não causar um ro de Anistia, CBAs, os movimentos pela anis-
presídio Tiradentes para ver se tinha alguma impacto muito forte na minha mãe, que tinha tia. E toda essa raiva do Clóvis, essa revolta, foi
novidade, se víamos o Jaime. tido um pré-derrame, um AVC e ficado com direcionada para a anistia, para o movimento
uma paralisia facial. E acho que a Laura quis político. Porque a primeira coisa que ele falou
Dava para vê-los lá, bem de longe, o pessoal poupá-la. Ela já tinha uma preocupação, sabia foi “Vou vingar a morte da Maria Lúcia, vou
acenando com a mão, por entre aquelas gra- que os filhos tinham ido embora, mas não sa- por veneno na caixa d’água de um quartel, eu
des. Até que veio um sujeito, era um tira, veio bia para onde e nem o que estava acontecendo. vou fazer isso, eu vou fazer aquilo”. Quando ele
lá querer conversar com a minha mãe, querer Foram praticamente seis anos sem notícia de- conta como adquiriu consciência aos 12 anos,
saber quem éramos. Eu puxei minha mãe pelo les. Aí chegou um ponto que a Laura tinha que fora o Lúcio, o Jaime, que já tinham militância
braço e disse: “Olha, não conversa com esse contar alguma coisa, porque os noticiários já política, a Maria Lúcia era quase uma segun-
sujeito, não, que esse aí é da polícia”. E era iam começar a publicar e não ia mais ter como da mãe para ele. Ela que via as lições dele, ela
mesmo. O sujeito era um araponga. guardar esse segredo. que explicava o que era o imperialismo, o que
eram os royalties que o Brasiliano pagava etc..
Quando o Jaime saiu do presídio Tiraden-
E como foram os dois caçulas que ficaram com
tes, passou em casa e depois foi para Itajubá.
Chegando lá, ficou sabendo pelos vizinhos
“Nós não sabíamos a minha mãe, a perda foi imensa para ele.
que o Exército tinha estado na casa em que ele que eles estavam no A Dodora [Maria Auxiliadora da Cunha
morava e vasculhado tudo. Estavam à procura
dele. Já havia um mandado de segurança do Araguaia, não sabíamos Arantes] levou o comitê do CBA para Bauru.
Fizeram até um dossiê dos perseguidos, dos
Exército para que ele comparecesse lá e pres- onde eles estavam. Eles ferroviários perseguidos da cidade de Bauru.
tasse depoimentos. Mas ele não foi, porque na-
quela ocasião quem ia para esse tipo de inter- foram para lá entre 1970 Lá na Corte [Interamericana de Direitos Hu-
rogatório já era para ir para a tortura mesmo.
Então o Jaime ficou escondido lá em Itajubá
e 1971, mais ou menos” manos da OEA] na Costa Rica, nós familiares
também somos considerados vítimas porque
em um sítio do pai da Regilena, que era esposa tínhamos o direito a uma integridade pessoal,
dele. Fiquei com ele umas duas semanas mais [Neste instante, a irmã, Laura Petit, inter- familiar, que foi duramente atingida. Nós nun-
ou menos. Até me lembro bem que teve uma rompe e diz:] ca nos pensamos como vítima e nós sofremos.
noite que os cachorros latiram bastante. O Jai- Eu realmente não contei, primeiro por cau- A nossa família se desintegrou. A minha mãe
me pegou uma espingarda e já ficou meio de sa da saúde frágil da minha mãe e porque o poderia ter tido muitos netos, pois teve cinco fi-
prontidão. Mas não era nada. Clóvis ainda era um adolescente. E eu fiquei lhos. E os meus filhos perguntam coisas assim,
temendo que em um ato de desespero a minha “Por que é que eu não tenho tios, por que é que
Depois, o Jaime passou a trabalhar como eu não tenho primos?”.
mãe saísse procurando, indo justamente nos
eletricista no norte de Goiás e de lá seguiu
locais em que não deveria ir. Ir em uma delega- Tem uma coisa que eu acho que foi muito
para São Paulo. Depois ele foi para o Araguaia,
cia, querer saber dos filhos. dura e eu só pude perceber mais tarde. Quando
nós não tivemos mais contato com ele.
E por questão de segurança também. Eu o Lúcio foi lá se despedir da minha mãe porque
O último que eu vi foi o Lúcio. Ele foi para ia para Guerrilha e disse para o Clóvis: “Olha,
acreditava que a ditadura ou o SNI ainda não
Bauru em 1971 mais ou menos, e deixou comi- você agora já está ficando mocinho, então você
tivesse os nomes de quem estaria na guerrilha,
go um livro de Lenin que chamava Cultura e cuida da mãe”. Porque eu já era casada e estava
que se fôssemos procurá-los seria entregá-los
Revolução Cultural, um livrinho do Manifesto em São Paulo. E quando a minha mãe faleceu,
para a polícia, para a ditadura.
Comunista e alguns exemplares do jornal A o Clóvis sentiu muito, como eu, a perda dela; e
Classe Operária. Eu também tinha um pôster Quando a Rede Globo, em 1996, publicou ele dizia assim: “Será que eu cuidei direito da
bem grande que era de um Vietcong com um uma relação dos militantes que teriam ido ao minha mãe como o Lúcio me pediu?” Então tam-
fuzil nas costas. Eu acompanhei o Lúcio até a Araguaia, na lista tinha até o vice-governador bém foi uma carga muito difícil para ele, porque

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foi o único que restou para dar suporte para ela sequer esse probleminha, que seria um proble- e que não têm nada a ver com os torturadores.
na velhice, além de mim. ma administrativo, um problema de moralida-
de, nem isso se cumpre, quanto mais a justiça. [Neste instante, a irmã, Laura Petit, interrom-
Como a Laura disse, quando eu fiquei sa- pe e diz:]
bendo da morte da Maria Lúcia, fiquei muito Este governo que está aí já era para ter var- Eu só queria fazer uma observação. Essa tem
revoltado. Ainda passei por um período de es- rido essa camarilha de canalhas, de pessoas sido uma luta solitária, porque, por exemplo, do
perança de que algum deles estivesse vivo, ou criminosas que estão sendo pagas com o di- Araguaia, os dois únicos desaparecidos encon-
o Jaime, ou o Lúcio. Imaginávamos, “Eles po- nheiro público. Eu fico revoltadíssimo com a trados foi através dos familiares que tiveram o
dem ter fugido, podem estar em uma área mais impunidade, com a falta de decência, de res- apoio da Comissão de Justiça e Paz, a Comis-
reservada junto com alguma colônia de pesca- peito. Quando você entra com um processo são de familiares, que foram ao Araguaia em
dor”. Falava-se de um padre da época da guer- na justiça, ele é negado. Quer dizer, precisa- 1991 e em 1996 e encontraram [os restos mortais]
rilha, que mora lá isolado com não sei quem. -se primeiro tentar mudar a Lei da Anistia. O da Maria Lúcia e do Bergson [Gurjão Farias]. E
Quer dizer, a gente acabava nutrindo esse tipo parágrafo primeiro da Lei da Anistia fala dos mesmo depois que nós tivemos na Justiça brasi-
de esperança. crimes conexos, mas no direito, crime conexo leira, transitado e julgado um processo que du-
rou 25 anos, nós ganhamos a ação. A juíza
Eu passei por esse momento de revolta foi favorável aos familiares, mas até hoje
e vou dizer que não acabou. Tenho revol- nós não tivemos a sentença cumprida den-
ta ainda hoje. E muita. Principalmente tro do país. Quer dizer, não se encontraram
quando vemos como essa política está os corpos dos setenta militantes e campone-
sendo desenvolvida, dissimulada, de não ses do Araguaia. Não foram ouvidos os mi-
enfrentar a questão da punição aos tortu- litares para esclarecer as circunstâncias de
radores, aos assassinos. Estão todos aí na mortes. Quando a juíza chama, eles se ne-
máquina pública. Quando o poder atual gam a prestar as informações. Os arquivos
diz “Isso é só questão da justiça”, estou continuam secretos tais quais os da Guer-
esperando que o STF julgue a questão da ra do Paraguai e a gente não sabe quando
anistia, que o Judiciário faça as punições essa verdade vai surgir. Nós recorremos ao
e o Executivo fica aguardando, esperan- direito internacional e fomos vitoriosos lá.
do que a justiça tome as suas providên- Há dois anos, vamos completar já três, e até
cias. Não é bem assim. hoje a sentença não foi cumprida. Quando é
A Constituição Federal é clara quando que o Estado brasileiro vai, depois de tanta
toca no princípio da moralidade pública. luta dos familiares, quando é que o Estado
Então, esse Governo que está aí da Dil- brasileiro vai nos devolver os corpos? Por-
ma Rousseff, hoje tenho críticas severas que até hoje a gente está como lá em 1979,
ao PT, ele decepcionou claramente na na anistia. Onde estão? Queremos saber os
questão da política de direitos humanos responsáveis. Queremos justiça.
no país. O PT é um partido que eu tam- Sobre o sentimento de não ter encontrado
bém ajudei a fundar ali nos seus pilares. [os corpos dos irmãos], não tem nem o que
Lá em Bauru a gente estava fazendo a luta falar. Isso é muito difícil. Minha mãe sempre
da anistia e eu ajudei a criar o PT, quando teve essa esperança de encontrar os filhos.
este ainda era Comissão provisória. Ela conseguiu enterrar a Maria Lúcia e dizia
A moralidade pública, que é um prin- que esperava até antes de morrer também
cípio que está na Constituição Federal,
Clóvis, Duartina, 1969 enterrar o Lúcio, o Jaime. Ela tinha essa
ela diz que quando alguém passa em um esperança de que ainda fosse conseguir
concurso público, qualquer cidadão, para qual- não significa o que a parte contrária fez. Cri- isso. Mas ela se foi, talvez a gente se vá também.
quer cargo, é feito uma checagem da vida pre- me conexo é uma conexão de crimes. A pes- Quando comecei essa luta eu era adolescente e
gressa dessa pessoa para saber se ele pode ser soa para cometer um ato comete outro e outro. já estou de cabelo branco. A gente vai envelhe-
empossado ou não em um cargo público. Mas, Existe uma conexão. Então deturparam e pe- cendo, mas enquanto tiver uma bengalinha, se
no entanto, temos torturadores, assassinos, que garam carona na Lei da Anistia. É uma coisa pudermos dar uma bengalada, daremos.
cometeram crimes hediondos, massacraram, também imoral. É uma coisa que é um sarcas-
cometeram crimes de lesa-humanidade e estão mo. Na Lei da Anistia não tem um artigo se-
na máquina pública, no poder, descumprindo quer que fale sobre torturador, sobre quem co- CLÓVIS PETIT nasceu em Duartina (SP), aos 7 de março
esse princípio constitucional. E na sentença da meteu crime de tortura, de lesa-humanidade. de 1956, formado em Direito, Diretor do Sindicato dos
Corte Interamericana está dito claramente que São artigos que foram feitos para resguardar Trabalhadores no Comércio de Minérios e Derivados de
esse governo deve excluir da máquina pública direitos de pessoas que estavam vindo do exí- Petróleo de Presidente Prudente e Região

todas essas pessoas. Quer dizer, até hoje nem lio ou que estavam sendo tiradas das prisões

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6 7 8

Família Petit
1. Julieta, avó de Clóvis, e José Bernardino,
seu primeiro marido, 1942. José é pai dos
quatro irmãos de Clóvis
2. Laura, Lúcio e Jaime, Itapuí (SP), 1948
3. Maria Lúcia em seu primeiro
aniversário, Amparo (SP), 1951
4. Clóvis, Duartina (SP), 1957
9
5. Laura, Itapuí (SP), 1948
6. Julieta, Itapuí (SP), 1948
7. Lúcio e Jaime na primeira comunhão,
Amparo (SP), 1951
8 e 9. Maria Lúcia e Lúcio no primário,
Duartina (SP), 1957

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10

10. Clóvis, Duartina (SP), 1959


11. Clóvis, Duartina (SP), 1964
12. Clóvis, Duartina (SP), 1960
12 13 13. Julieta com Maria Lúcia
11 e Clóvis, Duartina (SP), 1960

14. Maria Lúcia com 14 anos, Duartina (SP), 1964


15. Maria Lúcia lendo jornal na casa onde
moravam, São Paulo, 1968
16. Maria Lúcia e Jaime na formatura dela no
curso ginasial, Duartina (SP), 1964
17. Julieta costurando, São Paulo, 1968
18. Jaime, nesta época presidente do Centro
Acadêmico da Escola Federal de Engenharia
de Itajubá (MG), 1968

14 15

17 18

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4

1 2 3

1. Maria Lúcia, São Paulo, 1968


2. Lúcio cursando engenharia, Itajubá (MG), 1965
3. Jaime, 1968. Esta foto é da ficha do DOPS
e foi tirada quando ele foi preso durante
o XXX Congresso da UNE em Ibiúna, 1968
4. Laura e Lúcio, Praia Grande, 1967
5. Maria Lúcia e Laura na escadaria da Avenida
Nove de Julho, centro de São Paulo, 1969
6. Julieta, Bauru, 1982. Período em que 22
familiares iniciaram uma ação na Justiça
Brasileira pedindo à União a localização dos
desaparecidos políticos, vivos ou mortos,
esclarecimentos das circunstâncias de seus
desaparecimentos e atestados de óbito nos
casos de morte

presos e mortos entregues anonimamente ao jor-


Maria Lúcia Petit da Silva nasceu Em 1991, familiares de mortos e desaparecidos
nal por um militar que participou da repressão po-
em 20 de março de 1950, em Agudos (SP), filha de do Araguaia, com membros da Comissão Justiça
e Paz da Arquidiocese de São Paulo e a equipe de lítica durante a ditadura. Entre as fotos, a família
José Bernardino da Silva Júnior e de Julieta Petit
legistas da Unicamp, estiveram no cemitério da conseguiu identificar Maria Lúcia morta, embru-
da Silva. Desaparecida em 16 de junho de 1972.
cidade de Xambioá, em Goiás (atual Tocantins), lhada em um pedaço de pára-quedas e a cabeça
Militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
onde exumaram duas ossadas. Uma de um velho, envolta em plástico. A foto apresentava detalhes
pertenceu ao Destacamento C da Guerrilha do
negro, provavelmente Francisco Manoel Chaves idênticos aos da ossada encontrada em Xambioá
Araguaia.
(desaparecido na Guerrilha do Araguaia) e outra, e foi encaminhada ao Departamento de Medicina
Iniciou sua militância no movimento estudantil de uma mulher jovem enrolada num pedaço de Legal da Unicamp, em 30 de abril de 1996.
secundarista em São Paulo, onde foi professora pára-quedas, que poderia ser Maria Lúcia. Esses O exame da arcada dentária feito pelos dentistas
primária municipal. restos mortais foram encaminhados à Unicamp. que a atenderam em 1967, além do depoimento
No início de 1970, como militante do PCdoB, foi Em entrevista à imprensa, Badan Palhares, en- descritivo das circunstâncias da morte feito por
para o interior de Goiás e, logo após, para o Sudes- tão Chefe do Departamento de Medicina Legal seus companheiros e a comparação da foto publi-
te do Pará. Maria Lúcia dedicou-se ao magistério da Unicamp, afirmou que os restos mortais eram cada com os despojos encontrados em 1991, possi-
e ao trabalho na roça, conquistando grande sim- certamente de uma guerrilheira. Mas ao chegar a bilitaram a identificação de Maria Lúcia em 15 de
patia dos moradores da redondeza. Em 1972, o São Paulo mudou de ideia e passou a dizer que a maio de 1996.
Exército brasileiro cercou a região de atuação dos ossada pertenceria à filha de um dentista que atu- Em 15 de junho de 1996, houve um culto ecumênico
guerrilheiros do PCdoB, utilizando forte aparato ava na área, que teria sido morta por não atender e vigília em sua homenagem na Câmara Municipal
militar, onde se encontrava Maria Lúcia. à ordem de prisão de uma patrulha. Cinco anos de- de São Paulo. No dia seguinte, seus restos mortais
Segundo os depoimentos de sobreviventes, em 16 pois, o mesmo legista foi obrigado, pelos fatos, a foram traslados para o cemitério de Bauru (SP),
de junho de l972, ao se aproximar da casa de um examinar e reconhecer essa ossada. com a presença de sua mãe, Julieta Petit da Silva.
camponês, Maria Lúcia foi fuzilada por tropas Em 28 de abril de 1996, o jornal O Globo iniciou
do Exército, sob o comando do general Antônio uma série de reportagens sobre a Guerrilha do
Bandeira. Araguaia, quando publicou fotos de guerrilheiros

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Foto entregue por um camponês para o pesquisador Paulo
Fonteles. Segundo o camponês, foi tirada na base militar de
Bacaba, município de São Domingos do Araguaia, e nela se
veem alguns militantes da guerrilha capturados, inclusive
Lúcio. Todos os fotografados são desaparecidos políticos. 1974

Jaime Petit da Silva nasceu em 18 de ju- Maurício Corrêa, em 1993, diz que “[…] existe regis- Em 1965, trabalhou em São Paulo (SP) como enge-
nho de 1945, em Iacanga (SP). Desaparecido em 28 tro de sua morte em 22 de dezembro de 1973”, sem nheiro. Em meados de 1970, abandonou o trabalho
ou 29 de novembro de 1973. Militante do Partido especificar as circunstâncias e o local de sepulta- e a cidade para continuar a luta política na região
Comunista do Brasil (PCdoB). mento. De acordo com o relatório do Ministério da Sudeste do Pará, local escolhido pelo PCdoB para
Marinha, também de 1993, ele foi “[…] morto em 22 iniciar a Guerrilha do Araguaia.
Em 1965, ingressou no Instituto Eletrotécnico de dezembro de 1973”.
de Engenharia da Faculdade Federal de Itajubá e No campo, destacou-se como excelente mateiro.
trabalhou como professor de Matemática e Física Fez vários poemas e literatura de cordel que eram
recitados pelos camponeses da região e nas ses-
nos colégios de Itajubá e Brazópolis (MG). Em Ita- Lúcio Petit da Silva (Beto) nasceu em 1º sões de terecô (religião local).
jubá se casou. de dezembro de 1943, em Piratininga (SP). Desapa-
recido em 21 de abril de 1974. Militante do Partido Tornou-se vice-comandante do Destacamento A –
Participava ativamente do movimento estudan-
Comunista do Brasil (PCdoB). Helenira Rezende –, após a morte do comandante
til. Em 1968, foi eleito presidente do diretório aca-
André Grabois, em 14 de outubro de 1973. Era co-
dêmico. Nesse mesmo ano, em outubro, partici- Por conta das dificuldades financeiras da família,
nhecido como Beto. Visto pela última vez por seus
pou do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, quando começou a trabalhar muito cedo. Foi viver com
companheiros em 14 de janeiro de 1974, após forte
foi preso. um tio em Itajubá (MG), onde terminou o colegial
tiroteio com as Forças Armadas.
Condenado à revelia em 1969, foi obrigado a aban- e o curso superior no Instituto Eletrotécnico de
Engenharia. Foi homenageado pela cidade de São Paulo (SP),
donar o curso de Engenharia e ir viver clandestina-
que deu seu nome a uma rua no bairro Visconde
mente no interior. Posteriormente, mudou-se para Fez parte do diretório acadêmico da faculdade,
do Rio Branco. Outra rua com seu nome se localiza
a localidade de Caianos, no Sudeste do Pará, onde onde iniciou sua militância política, encarregan-
em Belo Horizonte (MG).
já residiam seus irmãos Lúcio e Maria Lúcia, tam- do-se do setor de cultura. Participou das ativida-
bém desaparecidos durante a guerrilha, integran- des do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE.
do-se ao Destacamento B das Forças Guerrilheiras Escrevia poemas e crônicas sobre os problemas
do Araguaia. Sobre Jaime, o relatório do Ministério sociais brasileiros para o jornal O Dínamo, do dire-
do Exército, encaminhado ao ministro da Justiça tório acadêmico.

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por Edson Luis de Almeida Teles

Eu sou Edson, irmão da Janaína, primo do Eu não tenho lembranças de ter sido uma Algumas cenas são descritas pelos meus
Joca, primo do Igor, filho da Amelinha e do noite grave, mas eu acredito que para a Cri- pais ou pela Jana, mas eu me lembro clara-
César, sobrinho da Crimeia. Bom, e aí começa meia foi uma noite muito difícil. Lembro de mente de corpos torturados, marcados, roxea-
a minha história. uma cena, acho que era a Crimeia queimando dos, machucados. E a cena que mais me ficou
papéis, jogando na descarga. E eu apertando presente foi o meu primeiro contato com a mi-
Eu nasci em 1968 e me chamo Edson Luís a descarga. nha mãe. Parece que eu estava de costas para
em homenagem ao estudante secundarista a janelinha de uma cela ou de um portão que
morto no Rio de Janeiro em uma manifesta- Eu tinha 4 anos de idade e a Jana 5. Nessa tinha uma janelinha. Ela me chamou e eu, feliz
ção estudantil. Meus pais eram militantes do manhã, eu estava fazendo o que sempre fazia, da vida, reconheci a voz e me virei. Quando
PCdoB. E a Crimeia foi guerrilheira do Ara- que era assistir [ao programa de televisão] eu vi o rosto, eu não o reconheci. Ele já estava
guaia. Meus pais participaram plenamente da Vila Sésamo na sala. Eu gostava de ficar de roxeado, desfigurado.
estruturação da guerrilha do Araguaia e do ponta cabeça, tentando fazer o cérebro mudar
Partido Comunista. a imagem que eu estava vendo na televisão. E E me causou um forte estranhamento por-
foi nesse momento que chegaram os policiais. que eu pensei: “Quem é esta pessoa que tem
Em dezembro de 1972, morávamos eu, a mi- a voz da minha mãe? Mais do que a voz, tem o
nha tia Crimeia, meu pai, minha mãe. O Joca
estava na barriga da Crimeia e lembro que já
“Ela me chamou e eu, jeito de se comunicar comigo que eu reconhe-
ço claramente, mas não é a minha mãe”.
conversávamos com ele. E tinha também o ca- feliz da vida, reconheci
Nessa época, não sabíamos o nome dos nos-
chorro que o [Carlos Nicolau] Danielli tinha
dado para a gente. Vivíamos numa casa na Zona
a voz e me virei. sos pais. Era, provavelmente, uma medida de
Sul de São Paulo, no bairro de Cidade Ademar. Quando eu vi o rosto, segurança para eles e para nós. Tenho outras
lembranças, mas que eu acredito que são coi-
No dia 28, meus pais levaram o Danielli para eu não o reconheci. sas que eu vi. Por exemplo, eu perguntei para
um ponto com outro dirigente do partido e no
fim do dia eles foram sequestrados pelos milita-
Ele já estava roxeado, o meu pai: “Por que você está roxo, verde? Por
que você está tão marcado assim?”O fato é que
res do DOI-CODI aqui de São Paulo, que ficava desfigurado” nós fomos levados para a presença dos pais tor-
na Rua Tutóia. Lá, começaram as sessões de turados. E isso foi usado para que eles falassem
tortura e de busca de informações. Uma ques- Primeiro, um casal. Um civil tocou a campai- e os militares obtivessem informações. Havia
tão central da busca deles era saber quem era nha e logo depois, eu não sei como foi exatamen- todo tipo de ameaças: “Vamos matar os seus fi-
a tal pessoa que tinha vindo do Araguaia fazer te, mas os policiais já entraram. O cachorro ficou lhos, vamos sequestrá-los”. E isso evidentemen-
contato com a direção do partido, que era jus- num “morde não morde”. Os policiais entraram te era uma possibilidade grande ali.
tamente a Crimeia, eu suponho. E a Crimeia armados e nós fomos levados para o camburão.
estava em casa conosco. O fato de os meus Eu não sei quantas vezes nós fomos levados
pais não terem voltado desse ponto já denota- Aí eu já não sei se sou eu que lembro, se al- ao DOI-CODI, mas éramos acompanhados por
va que alguma coisa tinha ocorrido, provavel- guém contou, se é a Jana que lembra, mas nos uma policial, que nos levava a uma casa onde
mente a prisão deles. colocaram no camburão cheio de armas. “Es- dormíamos na cozinha, num colchão no chão.
ses filhos de comunistas vão pegar essas ar- E no dia seguinte éramos levados de volta ao
mas, cuidado”, disseram. E nós fomos levados DOI-CODI. O próprio Coronel [Carlos Alberto
Edson, aos 3 anos, e Janaína, aos 4, São Paulo, 1971 para o DOI-CODI. Brilhante] Ustra, que comandava a instituição,

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o DOI-CODI, assumiu no seu livro [A Verdade olhares muito impactantes. Eles estavam as- são em Brasília, foi levada para Belo Horizonte
Sufocada – A história que a esquerda não quer sustadíssimos. Depois eu elaborei que eles es- e passou a fazer o contato conosco. Lembro de
que o Brasil conheça] dizendo que estava fazen- tavam muito assustados com a figura daquele ela ter ido duas vezes à casa do delegado e mais
do um ato de benevolência com esses presos, delegado porque provavelmente eles sofriam ou menos de termos ido passear numa praça.
levando seus filhos para visitar os pais. tortura naquele lugar. Fiz dois passeios a esse Foi ali que retomamos o contato com aquela
tal zoológico e não me lembro de ter saído ne- nossa história que por seis meses tinha ficado
Eu não sei quantos dias esse processo durou. nhuma outra vez. Os filhos dele iam passear perdida. Aí, em algum momento, nós fomos
Acredito que pela minha idade e talvez por me- com ele aos domingos e voltavam com algum retirados dessa casa e voltamos ao convívio
canismos saudáveis daquilo que a gente lembra presente, um tênis novo ou alguma coisa assim. com a Crimeia. Passamos algum tempo que eu
e esquece, eu não lembro de muitas cenas desse Isso também me marcava. Eu pensava: “Putz, não sei quanto na casa de uma tia dela, a Celia.
momento. Mas claro, a gente era criança, então que sacanagem”. A gente não ganhava nada ali, Depois, nós fomos morar no Rio de Janeiro, na
mescla esses momentos de terror, espanto, com havia muita diferença. Baixada Fluminense onde os meus avós mater-
outros que você começa a brincar ali no pátio nos moravam, o Joffre e a Lúcia.
do DOI-CODI, correr para lá e para cá. Por quê? Um questionamento que me fiz, na época,
Porque nada daquilo fazia sentido. foi: “Por que os nossos pais haviam nos aban- Acho que nós moramos lá por um ano. De-
donado naquela casa com aquelas pessoas?” pois, voltamos para São Paulo e começamos
Depois de alguns dias, não sei quantos, os O delegado era meu tio, era casado com a irmã a mudar para um monte de lugares. Não era
militares nos entregaram, eu e Janaina para do meu pai, portanto, eles eram nossos tios. uma vida clandestina. Nossos nomes eram os
um tio nosso que era delegado de polícia em Mas eu não os conhecia antes desse evento, verdadeiros, mas havia uma vida semiclan-
Belo Horizonte. Na época, ele era casado com então eu não os via como tios. destina porque não podíamos contar a nos-
uma irmã do meu pai e nós fomos viver com
sa história. Eu não podia ir à escola e contar
eles em uma espécie de cárcere privado. Era
“Olha, o pessoal participou lá de uma guerri-
muito desagradável. “O dia da visita ao meu lha, não sei o quê”.
Havia ordenamento disciplinar, meio que pai no presídio era muito Em São Paulo eu entro numa instituição que
de prisão, então por isso eu chamo de cárcere
privado. Éramos acordados às sete da manhã, bom. A gente estava me marca muito pelo convívio social que é a
escola. Na Baixada Fluminense, eu era um mo-
a Jana tinha de fazer o café e aí passávamos o ali vivendo situações leque de shortinho e descalço, soltando pipa
dia nessa casa. Eu lembro muito de passar o dia
no quintal, que eu gostava, porque tinha árvo- limites, graves, como com a molecada lá do bairro correndo para lá
e para cá. E a sociabilidade é muito tênue, você
re. Eu criava um super mundo imaginário que não ter a presença do não precisa mentir, falar: “Ah, meu pai está
me deslocava completamente dessa situação.
Eu brincava um pouco com os filhos desse tio pai no dia a dia. E eu não sei onde”, não precisa inventar história.
– ele tinha três – em um período do dia, por-
que no outro eles iam para a escola. E quando
passava a semana ou Em São Paulo, sobre o meu pai estar preso,
eu contava que ele estava internado, porque
chegava à noite, depois do jantar, nós éramos os dias anteriores a essa ele tinha sido mesmo internado uma época
levados para o nosso quartinho, no fundo da
casa. Lá tinha um beliche e um vitrozinho por
visita pensando nela” como tuberculoso. Então, eu dizia, “meu pai
é tuberculoso. Ele está internado”. Passavam
onde não daria para sair. E não lembro se era as férias, eu voltava para a escola e eu dizia.
um trinco ou uma chave, mas eles trancavam [Neste momento, a irmã Janaína de Almei-
da Teles interrompe e diz:] “Meu pai está mal, continua internado”. Só
a porta. Ali era a nossa pequena cela. que nós íamos visitar o meu pai no presídio
“Nós vivemos na clandestinidade, não co-
Eu fui levado para passear com esse delega- Romão Gomes na Zona Norte de São Paulo.
nhecíamos a nossa família, nem materna, nem
do. O que era raro, porque não saíamos, ficáva- paterna. Muito menos a paterna porque ela mo- Os dias de visita eram muito esperados e
mos todos os dias lá. E um dia ele falou: “Ah, rava toda em Minas. Então nós fomos levados muito gostosos. Só que eu não podia compar-
vou te levar ao zoológico”. “Legal”, eu pensei. para Belo Horizonte. Eu lembro bem do dia que tilhar com os meus amigos ou com os paren-
Na minha memória, o zoológico era um lugar esse casal de policiais nos prendeu em casa. tes dos meus amigos.
legal. Mas ele me levou à delegacia que ele Eles nos levaram de carro. Era um Opala, aque-
comandava. Me levou para passear no corre- le azul claro que é a cor dos outros carros do A escola, para mim, sempre foi um lugar que
dor onde estavam as celas. Parava em frente DOI-CODI. E levaram para esse delegado. Não repetia o cárcere privado de Belo Horizonte e
a uma cela, apontava para o preso e falava: sei como descobriram esse parentesco e nos en- essa situação de condicionamento da nossa
“Esse aqui é um veado”. Apontava para outro: tregaram para esse homem que é um... Não te- existência. Eu entrava na sala de aula e lá ti-
“Esse aqui é uma cobra” e esse daqui é não nho adjetivos para classificá-lo. Lá, ficamos seis nha uma foto do [Ernesto] Geisel. Parecia que
sei o quê. Era uma perversão sarcástica dele meses sem saber o que estava acontecendo”. ele estava me vigiando. Ficava me olhando
comigo e com os presos. Aquela era a mesma com aquele olho, para onde você ia na sala, o
situação do DOI-CODI. Eu olhava nos olhos Para nós, era uma casa de desconhecidos. cara estava te olhando. E do lado da foto do
dessas pessoas que estavam presas. Eram Depois desses meses, a Crimeia foi solta da pri- Geisel tinha o crucifixo com um cara tortura-

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do, pregado, sangue escorria da mão dele, da para mim o que era aquilo, mandava eu tirar. E mais perto da parede do prédio onde tinha o
perna. Era Jesus Cristo. E havia aquelas car- eu só ficava olhando para ela. Porque eu já era ponto de ônibus ali em frente, como se isso
teirinhas nas quais você ficava ali preso, um cínico, já tinha aprendido. Eu não respondia fosse nos proteger.
atrás do outro. nada. E aí ela chamou uma pessoa que hoje eu
creio que fosse um oficial superior a ela e falou: Depois, com a volta da democracia, você não
Então, uma das imposições ou imperativos “Olha, tem um negócio aqui e ele não quer en- confia no Estado, na polícia e precisa repen-
éticos de ser criança na ditadura é aprender tregar”. O cara olhou e falou: “Não, tudo bem, sar tudo que treinou desde a infância, como
a mentir rapidinho, logo cedo. E mentir certo, entra”. E aí foi legal porque eu aprendi que mentir. Em 1988 há uma nova lei, mas eu não
rápido. No Sete de Setembro havia aqueles tra- dava para burlar todo aquele sistema. Então, acreditava nas leis. Então, tem que começar a
balhinhos, tinha que enaltecer a Bandeira, o entrar com alguma coisa e pegar alguma coi- pensar, “agora é um Estado democrático, há
Hino, o Governo... Então se aprende a mentir sa lá de dentro e também sair com ela, era o leis, regras, outras funções para essas institui-
e ser cínico. Porque eu fazia tudo direitinho. meu ato de resistência. Eu era uma espécie ções, há toda uma reelaboração subjetiva que
“Vamos pintar a bandeira?” “Vamos”. Na hora de guerrilheiro que também estava fazendo a tem de ser feita”.
de cantar o Hino, e na minha escola a gente minha parte. Em 2002, a Jana entrou em contato com
cantava o hino uma vez por semana, era um
Fábio Konder Comparato para processarmos
horror. Nesse dia que tinha que cantar o Hino
e hastear a bandeira, eu fazia um movimento “Eu vestia um casacão o Coronel Ustra, pela prisão, sequestro e tor-
tura da família. A elaboração desse processo
com a boca, era o meu ato de resistência. Mi- enorme que não era foi uma coisa que me marcou muito porque
nha resistência era: “Não vou soltar uma pala-
vra desse Hino”. do meu tamanho, um foi aí que caiu minha ficha: “Nós realmente
estamos em outro Estado. É possível, tentar
O dia da visita ao meu pai no presídio era chapéu de aviador, um processo contra essas pessoas e apesar de
muito bom. A gente estava ali vivendo situa- desses que tapa as todas as limitações da Lei da Anistia”. Então
foi a primeira vez que eu sentei para escrever
ções limites, graves, como não ter a presença
do pai no dia a dia. E eu passava a semana ou orelhas e um óculos essa história.
os dias anteriores a essa visita pensando nela. grandão, escuro, só Na minha tese de doutorado, Brasil e África
Pensando sobre esse período, eu não tinha que sem as lentes. do Sul: Memória Política em Democracias com
Herança Autoritária, também trabalhei com
uma relação e nem me vejo hoje como vítima
em relação a tudo o que eu vivi na ditadura. A Não era mais filho do esse tema, tratando do caso da África do Sul
minha postura era de sobrevivente e resisten-
te, então eu tinha que arrumar mecanismos
comunista, estava e do caso brasileiro. Chamei o caso brasileiro
de política do silêncio. Depois ficou claro para
para resistir àquilo tudo. disfarçado” mim que eu estava falando da minha própria
história. Essa tese foi uma espécie de divã. Ao
Recentemente, eu escrevi uma homenagem Uma lembrança muito desagradável foi escrever sobre a história do país, eu estava na
ao Padre Renzo, que é uma figura importante quando meu pai foi condenado. Nós fomos verdade reelaborando a minha inserção en-
da luta dos presos políticos no Brasil. E nesse levados para a casa de uma amiga da minha quanto sujeito no Brasil, no Estado brasileiro.
texto eu lembro de uma história de resistência. mãe e o meu pai veio se despedir da gente já
Eu gostava de ir para o presídio Romão Go- na cama. Ele disse “amanhã eu vou para uma
mes vestido de uma espécie de agente secreto audiência do julgamento, mas eu volto”. E eu
da resistência. Eu vestia um casacão enorme falei para ele: “Não, você não vai voltar”. Para EDSON LUÍS DE ALMEIDA TELES nasceu em 15 de junho
que não era do meu tamanho, um chapéu de mim era certo, era óbvio. Eu tinha certeza des- de 1968. Filho de Maria Amélia de Almeida Teles e César
aviador, desses que tapa as orelhas e um ócu- sa condenação e realmente eu só voltaria a vê- Augusto Teles. Filósofo, é doutor em filosofia e profes-
los grandão, escuro, só que sem lentes. Não era -lo nessas visitas ao presídio.
sor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
mais filho de comunista, estava disfarçado.
Eu me assustava quando alguém chegava em
Uma vez, pedi ajuda para a Crimeia. Eu que- casa com uma pessoa estranha. Era a ideia de
ria esconder um potinho de guache na jaqueta que novamente ia acontecer a prisão, de que al-
para poder entrar no presídio sem que nin- gum momento a gente seria preso novamente.
guém visse. Porque na entrada do presídio a A todo o momento eu me preocupava com isso.
gente era revistado, as crianças também.
Na volta da escola, por exemplo, voltávamos
Então a Crimeia fez um bolso falso nessa ja- só nós dois, Jana e eu, de ônibus. Eu pensava
queta. Botei meu potinho de guache lá. Teve assim: “Não posso ficar no ponto de ônibus na
uma primeira revista na qual a mulher locali- calçada muito perto da rua, porque pode pa-
zou o potinho de guache, mas ela não achava o rar uma Kombi e nos sequestrar rapidamen-
buraco para ter acesso a ele. E ela perguntava te”. Então eu ficava mais recuado da calçada,

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por Janaína de Almeida Teles

Vou tentar complementar algumas coisas de sim. O estranho é que os carros eram pintados Tentávamos inventar brincadeiras, disfarçar
que me lembro, das quais o Edson não se lem- de cor azul claro. para nós mesmos, fazer o tempo passar porque
bra. É interessante perceber que nossas lem- não entendíamos o que acontecia ali.
branças e memórias são complementares. Fomos levados para o DOI-CODI (localizado
na 36ª. delegacia de polícia). Eu tinha 5 para De noite, nos levavam para uma casa muito
Lembro-me do dia da prisão, o dia 29 [de de- 6 anos, então, imagino que por isso eu tenha grande. Na minha lembrança, ela ficava perto
zembro de 1972], mas não me lembrava de que mais lembranças do que o Edson. Fui levada do DOI-CODI. Dormíamos ao lado da cozinha
tínhamos ajudado a minha tia, Crimeia Alice para uma cela onde meus pais estavam senta- em uma cama de campanha militar, dessas que
Schmidt de Almeida, a queimar os documen- dos numa mesa, onde parecia haver dois pra- dobram. Eu não conseguia dormir direito, pois a
tos guardados na nossa casa. Depois, soube tos de sopa ou de outra comida. Eles não con- luz da cozinha ficava acesa e eu estava bastante
que a casa funcionava como um “aparelho seguiam se mexer e nem falar direito porque preocupada com aquela situação... Não estava
clandestino” voltado às atividades de impren- estavam muito machucados. acostumada a dormir longe dos meus pais.
sa do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
Lembro-me muito bem, contudo, que durante O comandante do DOI-CODI/SP entre 1970
a noite anterior à nossa prisão, ficamos contan- “Perguntei alguma e 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra, deu
do moedas dos nossos cofres. Tempos depois, coisa para o soldado uma versão cínica para o nosso sequestro em
soube que a Crimeia pensou em fugir conosco, seu primeiro livro. Segundo ele: “[...] Para não
mas ela não tinha nenhum dinheiro e nossas e ele me disse “Cala mandar as crianças para o Juizado de Meno-
moedas não eram suficientes para possibili- a boca, comunista!”, res, uma moça, Sargento da Polícia Feminina
tar uma fuga. Lembro-me também da hora da do Estado de São Paulo, ofereceu-se para to-
prisão, de quando um casal de policiais bateu ou algo assim” mar contar dos menores em sua casa, enquan-
à nossa porta. Fui atender e eles foram estra- to aguardávamos a chegada dos familiares do
nhos, meio grosseiros. Ela foi atendê-los no Antes, eu fora levada para a cela onde minha casal, que se encarregariam da guarda deles.
portão, em seguida, voltou e, nesse momento, mãe estava sendo torturada, eu a vi na cadei- Diariamente, a meu pedido, as crianças eram
minha tia pediu para irmos para um quarto nos ra do dragão. Mas não me lembro disso. Só levadas ao DOI para visitarem seus pais. [...]”1.
fundos da casa. A porta não foi fechada total- me recordo de ter ficado muito chocada e de Vale ressaltar que a casa onde me recordo ter
mente e por uma fresta fiquei tentando ouvir o abraçá-los, beijá-los e, mesmo assim, eles não pernoitado era bem grande e não poderia ser a
que estava sendo dito, porque senti que a situ- conseguiam se mexer. Depois de muitos anos, moradia de uma sargento da Polícia Feminina.
ação estava muito ruim. senti-me culpada por não conseguir lembrar-
Durante o dia eles nos levavam de volta para
-me dessas coisas direito. Isso me atormentava
De repente, vieram os policiais e nos tiraram o DOI-CODI. Ficávamos lá, entrando naqueles
um pouco. Depois, fui entendendo que isso era
daquele quarto. Começou uma movimentação corredores escuros. Ouvíamos gritos, depois
uma autoproteção e que não havia como lem-
grande, uma gritaria e fomos levados para uma alguém nos punha para fora e a gente ficava no
brar de fatos tão dolorosos.
C14, onde havia muitas armas no chão. Então, estacionamento. E, de vez em quando, aparecia
perguntei alguma coisa para o soldado e ele Não sei quantos dias ficamos lá, mas, na alguém para falar conosco. Lá pelas tantas, al-
me disse “Cala a boca, comunista!”, ou algo as- minha memória, a gente ficou mais ou me- guém falou que aquilo era um hospital. Pensei:
nos uma semana. E ficávamos o dia inteiro no “Bom, meus pais parecem doentes mesmo, mas
DOI-CODI, entrando e saindo das celas, mas, aqui não tem ninguém vestido de branco. Como
Janaína com 11 anos e Edson com 10,
João Pessoa (PB), 1978 especialmente, ficando no estacionamento... isso aqui é um hospital?”. “Não tem ninguém

1
USTRA, Carlos Alberto B, Rompendo o silêncio, Editerra Editorial, 1987, p.160.

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para os meus primos, tinha que servir a ma-
madeira deles na cama. Ajudava a cuidar deles
e da casa etc.

Frequentemente, perguntava pela minha


mãe e o delegado dizia que não era para fa-
larmos dela porque era comunista! Eu queria
mandar carta para meus pais. Estava começan-
do a aprender a escrever, queria que alguém
escrevesse uma carta e queria receber cartas
dos meus pais. Mas eles respondiam que não
era permitido falar desse assunto.
Tenho lembranças muito desconexas sobre
aquele período. Uma delas é de quando o de-
legado colocou uma arma na mesa e disse que
não era para perguntar da minha mãe. Ele era
uma pessoa agressiva. Eu não me lembro da
cena do zoológico relatada pelo Edson, mas
havia uma atmosfera de muito medo naquela
casa. Eu frequentava uma escola nesse perío-
do, onde todos os dias éramos obrigados a ou-
vir aquela canção do Roberto Carlos, acho que
se chamava “Jesus Cristo”, no autofalante da
escola. Para mim aquele era um ambiente es-
tranho, pois eu não tinha formação religiosa e
éramos constrangidos a rezar. O delegado nos
forçava a tratá-lo por “senhor”, o que não era
costume na minha família.
Um seis meses depois, a Crimeia apareceu,
escondida, a gente brincava no jardim em fren-
te da casa. Ela nos chamou do outro lado da
rua, fazendo “psiu”.
A partir daí, ela começou a nos encontrar es-
condida. Eu não me recordo dos detalhes, mas
ela mandou não falarmos que estávamos nos
encontrando com ela. A gente obedecia por-
que sabia que aquele lugar não era bom, e a
Amelinha, Padre Renzo Rossi, Crimeia, Edson e Janaína, Rio de Janeiro, 1975 Crimeia era uma lembrança boa... Nós havía-
mos convivido com ela e com meus pais jun-
tos. Nós não conhecíamos ninguém da família,
cuja maioria vivia em Minas Gerais, pois nas-
“Tenho lembranças de branco (mas havia algumas pessoas vestidas cemos na clandestinidade...
de verde oliva), isso aqui não é um hospital!!!”.
muito desconexas A Crimeia explicou o que tinha aconteci-
Eu achava que tinha gente doente lá, por
sobre aquele período. isso ouvia gritos. “Mas como um hospital
do com meus pais, que eles não haviam nos
abandonado. O delegado e nossos primos, os
Uma delas é de quando pode ser escuro deste jeito?”, pensava. Enfim, filhos dele, falavam que meus pais tinham nos
eu não entendia nada, e um dia aquele mes-
o delegado colocou mo casal que tinha batido à porta para nos
abandonado. E eu pensava: “A gente se gosta-
va tanto, como é que eles me abandonaram?”
uma arma na mesa prender nos levou para Belo Horizonte (MG). Não fazia sentido. Então, a Crimeia apareceu
Lá, na casa desse tio policial, Edelton Bosco
e disse que não era Alvarenga Machado, casado com uma irmã
e nos explicou que eles estavam presos, e que
não tinha como saírem de lá.
para perguntar da do meu pai, eu tinha que acordar mais cedo
Minha tia passou a ser a pessoa que explica-
porque era uma espécie de assistente da em-
minha mãe” pregada doméstica. Eu fazia o café da manhã va as coisas. Eu perguntei “ene” vezes o que es-

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tava acontecendo. E ela repetia com paciência da rua! A gente a encontrou várias vezes até que fiquei com medo de que ela tivesse ido embora
as explicações. Para fazer a gente dormir, ela ela nos levou... ela nos ajudou a fugir de lá! Um sem mim, mas ela estava lá me esperando e fui
contava histórias da Guerrilha do Araguaia. Só dia, chegou e combinou que viria nos buscar no embora feliz da vida! O tratamento autoritário
que não contava a parte violenta da história, e dia seguinte, ao final da tarde. Ela falou: “Hoje e insensível do delegado e de sua família deixa-
sim que ela havia cuidado de uma oncinha, que nós vamos embora, peguem as suas coisas que ram marcas profundas em nós.
tinha tido uma lontra chamada “pilontra”, uma nós vamos fugir daqui”. E a gente fugiu com a
égua que se chamava “Marta Rocha”, porque Crimeia da casa do delegado e fomos morar na Muitos anos depois, soubemos que Edelton,
tinha uma bunda grande igual a da miss, en- casa da prima dela. era um delegado corrupto da delegacia de La-
fim, ela contou sobre os vários filhotes de ani- goinha, em Belo Horizonte, de onde saíram vá-
mais que criou e sobre a vida na mata... Então, rios torturadores para compor o temido DOI-
a minha relação com a Guerrilha do Araguaia “Os policiais não -CODI de Minas Gerais.
começou desde muito cedo. Obviamente, eu deixaram nos Meus pais foram soltos em outubro de 1973,
não entendia o que era a Guerrilha do Ara-
guaia, mas sabia que a Crimeia havia morado encontrarmos todos se não me engano, e nos encontramos no Rio
de Janeiro, na Baixada Fluminense, onde mo-
muitos anos na Floresta Amazônica juntamen- juntos. Foi angustiante rávamos com os meus avós maternos. Ficamos
te a outros amigos e companheiros.
e tivemos de esperar um tempo lá até meus pais conseguirem vol-
tar para São Paulo, onde meu pai voltou a im-
A Crimeia explicou também que o [Carlos
Nicolau] Danielli fora assassinado. Ela teve de muito tempo para primir jornais clandestinos na gráfica que ele
repetir algumas vezes porque isso tinha aconte- conseguirmos nos tinha, localizada no Bexiga, bairro central da
cidade. Por causa dessas atividades, o proces-
cido com ele, sobre o porquê dos militares não
gostarem de nós... Ele era como um tio muito encontrar todos juntos” so dele foi reaberto. Nós fomos à audiência na
querido, o tio “Sig”, que frequentava a nossa segunda Auditoria Militar, que ficava na Ave-
casa. Lembro-me também do “tio” Gustavo, Luis nida Brigadeiro Luis Antonio, para assistir ao
[Neste momento, a tia de Janaína, Crimeia, a
Ghilardini, assassinado sob tortura no Rio de julgamento final.
interrompe e complementa:]
Janeiro. Não conheci o André Grabois, o pai do Esse foi um dos momentos mais tristes para
Joca (João Carlos Schmidt de Almeida Grabois) Esse delegado foi meu vizinho e eu perguntei
mim porque não consegui entender o que esta-
e meu tio. Ela contava muitas histórias sobre o a ele: “Você sabe onde estão as crianças?”Ele
va acontecendo. Apenas vi os militares todos
André, sobre quando fingiu que lutou com um respondeu: “Não”. E como eu não confiava na
enfileirados, o juiz no alto, e meu pai com o
jacaré ou quando uma onça quase o atacou (ele polícia, resolvi ir até a casa dele, a qual sabia
rosto muito triste – nós ficamos muito tristes.
estava sem óculos e era bastante míope), suas onde era. Fiquei vigiando e um dia achei as
Ele foi para a prisão porque teve de se apresen-
piadas, peripécias, desenhos e do futebol que crianças. Aí bati na porta dele e falei, “Meus
tar à Auditoria para não nos colocar em risco,
ele gostava de jogar. sobrinhos estão aqui, sou tia e quero vê-los”.
porque, do contrário, teríamos de viver na clan-
Por meio da memória dela, fomos nos fami- E aí começamos a negociar que eu veria as destinidade novamente. E não havia condições
liarizando com essa história difícil e essa nossa crianças nos finais de semana. Até que eu fa- materiais suficientes para levar a família para o
família distante. A Crimeia também começou lei: “Olha, na verdade sou mais tia deles do exílio ou permanecer na clandestinidade. Toda
a nos ensinar a escrever, porque era difícil, não que você, eu vou ficar com as crianças”. Ele aquela história já havia sido muito traumática.
dava mais para ir à escola naquele período, respondeu: “Vai ter de entrar na Justiça e eles
Após a nossa prisão e o reencontro da famí-
uma vez que já havia passado meio ano. não vão te dar a custódia deles, porque você é
lia, eu e meu irmão passamos a fazer terapia na
terrorista, você é mãe solteira. Eu vou ficar com
Ela também nos levou para visitar meus pais PUC, com o pessoal do Sedes Sapientiae, gra-
as crianças!”.
no presídio Carandiru. Era a primeira vez que eu ças à ajuda da Madre Cristina, figura incrível
ia vê-los depois de seis meses. Era inverno, fazia Nesse meio tempo, consegui entrar em conta- que ajudou muita gente.
muito frio, e não tínhamos casacos suficientes. to com a Rosa Cardoso, que era advogada dos
A partir da segunda prisão de meu pai, em
Chegamos lá, meu pai estava no lado masculi- pais deles, e pedi para que ela providenciasse
1975, passamos a visitá-lo no presídio todos os
no e minha mãe no feminino. Os policiais não a custódia das crianças. No dia em que ela me
sábados. E minha mãe, que é muito mineira,
deixaram nos encontrarmos todos juntos... Foi entregou os papéis, eu os levei sim, porque não
era a primeira a entrar e a última a sair.
angustiante e tivemos de esperar muito tempo ia pedir permissão ao delegado e dizer-lhe que
para conseguirmos nos encontrar todos juntos! estava com a custódia deles, isso não! Mas, le- O Edson nos contou sobre sua fantasia de
Desse dia, lembro-me de que minha mãe estava galmente, eu não os sequestrei. ser um agente secreto, eu achava aquilo engra-
muito bonita de cabelos compridos. çadíssimo, pois amadureci demais para a mi-
Não me lembrava desses detalhes todos, mas nha idade. Desde a prisão, preocupava-me em
Há muitas histórias até cinematográficas, re- lembro bem o dia em que a Crimeia falou: “Pega proteger meu irmão, meu primo e em defender
almente. Uma delas diz respeito à Crimeia e o as suas coisas e vamos embora!”. Saí correndo meus pais! Queria ser adulta para poder en-
modo como ela nos encontrou, secretamente, para pegar minhas coisas, ela ficou nos espe- frentar os policiais e buscar meus pais na pri-
no jardim da casa, fazendo “psiu” do outro lado rando perto do portão. Atrasei-me um pouco e são! Depois, percebi que ter ficado meio adulta

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antes do tempo trouxe consequências muito mais ou menos no mesmo padrão: brincava redobrar o cuidado para ir e voltar da escola”.
difíceis e duradouras na minha vida, como muito e depois dormia no sofá ou no colo de Tínhamos de tomar todo o cuidado para voltar
distúrbios hormonais na infância que se pro- alguém. Mais tarde, comecei a ajudar a dobrar, para casa porque eles não eram de brincadei-
longaram na vida adulta. Além de voltar a ter colar selo no jornal e a entregá-lo de bicicleta ras, esse era o pessoal que explodia banca de
enurese noturna, passei a ter problemas com o no meu bairro. Acabamos conhecendo muita jornal etc. Aí, eu fiquei realmente preocupada
sono (os quais de tempos em tempos voltam) e gente interessante e vários filhos de exilados; e com medo.
entrei em processo de puberdade precoce aos construímos algumas amizades duradouras e
aprendemos muito! Era uma infância que todos tentavam tornar
7 anos de idade, o que levou a uma espécie de
mais ou menos normal, mas certamente era
menopausa temporária, na vida adulta.
rodeada de muito medo e tensão.
Acho que a principal característica dessa per-
“Acho que a principal
da parcial da infância se apresenta por meio de característica dessa Então fomos estudar no colégio Equipe,ainda
em 1979, onde ganhamos bolsa de estudos. No
um sentimento profundo de que ela se mani-
festará, sempre. A recorrência dessa sensação
perda parcial da infância primeiro dia, o diretor me perguntou, “O que
gera um sentimento de impotência enorme. A se apresenta por meio você espera do colégio?” Eu respondi, “Poder
falar tudo o que penso”. Ele ficou meio espan-
melancolia envolve a vida e, embora ela pros-
siga e tenha momentos felizes, a sensação de
de um sentimento tado. Depois, ajudei a organizar várias greves
cansaço parece uma herança muito pesada profundo de que ela se no colégio, seja para não aumentar a anuidade
ou para evitar a demissão de alguém. Eles não
para “carregar”. As demandas dessa infância
perdida sempre retornam, cobrando seu espaço manifestará, sempre” gostaram muito disso. Até que suspenderam a
minha bolsa, não sei se pela agitação política
em momentos onde nem o corpo e nem a mente
Quando ocorreu a Chacina da Lapa, em de- ou em decorrência da crise econômica aguda
podem mais dispor do tempo de criança. Esse
zembro de 1976, ficou um clima péssimo lá vivida pelo país naquele momento. A despeito
desencontro é bastante doloroso e se torna ain-
em casa, todo mundo acordou meio esquisi- desse fato, o ambiente lá era super legal, sau-
da mais intenso quando sinto as dificuldades
to. Soube depois que minha mãe e minha tia dável e foi onde comecei a ter uma atuação mi-
inerentes ao ato de contar essa história.
passaram a noite queimando papéis e, sem litante, podendo dizer que eu e minha família
Na escola, também não gostava de cantar o querer, elas acabaram queimando quase toda tinhamos sido presos. O que nos deixava mais
Hino Nacional. E não gostava de ter de mentir, a correspondência que trocamos nos anos de aliviados, reconfortados.
eu sempre contava que meu pai era um comer- prisão. Uma pena, pois eu gostaria de ler as
ciante que viajava muito, por isso nunca esta- nossas cartas daquela época. Dias depois, mi- No Equipe havia um ambiente intrigante,
va em casa. Os colegas, a professora e as mães nha mãe pediu para conversarmos e explicou que despertava nossa curiosidade, e também
dos amigos sempre perguntavam. Era difícil que, talvez, o processo dela fosse reaberto e queríamos acelerar o processo que culminaria
mentir e, às vezes, a gente era pego em con- ela seria presa. Nós teríamos de ficar moran- com o final da ditadura. Ainda havia muitas
tradição, pois o Edson contava outra versão... do apenas com a Crimeia e o Joca. Nesse dia, dúvidas sobre o sucesso da chamada “transi-
chorei muito na frente de todo mundo, pois fi- ção política”. Eu queria ser militante para aju-
Desse período, lembro-me muito das visitas dar a acabar com a ditadura e naquela escola
quei muito triste com a ideia de ficar sem pai
que fazíamos a Dom Paulo Evaristo Arns na havia militantes de quase todos os grupos po-
e mãe também!
Cúria Metropolitana. Minha mãe sempre ia lá líticos da época.
para falar com ele – sozinha ou em reuniões co- Felizmente, isso não aconteceu e pudemos
letivas. As famílias de presos políticos faziam Em 1982, outro fato nos deixou apreensivos.
esperar o dia em que meu pai foi solto. Fica-
muitas reuniões com D. Paulo, naquela época. Por ocasião dos dez anos do início da Guerri-
mos quase o dia inteiro em frente ao antigo
Geralmente, ele passava as mãos nos meus ca- lha do Araguaia, as famílias de desaparecidos
prédio do DEOPS/SP esperando por ele, quan-
belos e com aquela voz tranquila perguntava propuseram ao PCdoB a realização de uma
do, finalmente, ele saiu, ficamos muito alegres.
como eu estava. Depois, oferecia balas e nos revista onde fossem publicados documentos
Disso ainda me lembro.
deixava brincar embaixo da mesa dele, enquan- e fotos inéditos ou pouco conhecidos sobre a
to conversava com minha mãe. Apenas lembro Recordo-me da chegada do João Amazonas guerrilha. Meu pai, que trabalhava na editora,
que saíamos de lá meio aliviados. ao Brasil, em 1979. Fui escolhida para levar um e minha tia, uma das poucas sobreviventes,
buquê de rosas vermelhas para ele no aero- empenharam-se muito para produzi-la e até
Eu também sempre ia às reuniões do jornal porto. Mas o que foi mais marcante na chega- eu ajudei. A revista2 foi apreendida e os milita-
Brasil Mulher, porque muitas vezes minha mãe da do Amazonas é que nós fomos ameaçados res iniciaram um inquérito na Justiça Militar.
não tinha com quem nos deixar e acabávamos pela Aliança Anticomunista Brasileira (AAA). Naquele momento, consideramos que, talvez,
dormindo nos bancos ou sofás da sala. Depois, Um dia, meus pais leram a carta de ameaça, a Crimeia pudesse ser presa novamente. De-
começaram as reuniões do jornal Movimen- que dizia que a gente poderia ser sequestra- pois, o inquérito acabou sendo arquivado, mas
to, onde minha mãe trabalhava, e do Comitê da ou sofrer um acidente no caminho para a ficamos preocupados. As famílias tiveram que
Brasileiro de Anistia, as quais eu frequentava escola. Eles disseram “Agora vocês vão ter de fazer um empréstimo para editar a revista e

2
Vários autores. Guerrilha do Araguaia (1972 - 1982). São Paulo: Anita Garibaldi, 1982

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acabamos sendo obrigados a vendê-la clandes- eu ainda estava aprendendo a escrever. E o os filhos e a tia grávida haviam sido presos, e
tinamente para repor o dinheiro. Vendiam-se Renzo gostou dele, conheceu a história da que o Danielli fora assassinado sob tortura. Por
exemplares da revista para pessoas como Teo- nossa família através de uma carta, na qual isso, no livro Brasil: Nunca Mais, publicado em
tônio Vilela, Chico Buarque e, por solidarieda- meu pai incluiu esse poema. Ele veio da Bahia 1985, consta a nossa história3 (Note-se que 25%
de, muita gente pagava mais do que ela valia. para o Rio de Janeiro só para nos conhecer. das pessoas processadas na Justiça Militar da-
E, assim, foi possível quitar essas dívidas. Depois ajudou a publicar um livro3 na Itália, quele período tiveram a coragem de denunciar
organizado pelo famoso jornalista e deputado torturas em juízo). A família sempre denunciou
Tínhamos muito medo, mas tínhamos ami- da esquerda independente do PCI e, depois do também o sequestro, as torturas e a prisão (de
gos. Houve muita solidariedade, o tipo de soli- PDS, Ettore Masina, no qual havia poemas re- quase um ano) sofridos pelo meu avô materno,
dariedade silenciosa ou anônima. lacionados com a ditadura brasileira, entre os ainda em 1964 (ele e meus pais foram conde-
quais o meu. Na introdução, Masina contou a nados em um Inquérito Policial Militar (IPM),
Havia solidariedade de todos os tipos, tal
história da minha família. Esse poema (repo- em Minas Gerais, no ano de 1966, e passaram a
como a do Padre Renzo Rossi, originário de
duzido abaixo) foi publicado – e a nossa histó- viver na clandestinidade desde então).
Florença (Itália), que nos “adotou”, tornando-
ria contada – em vários jornais de esquerda,
-se uma figura meio paterna, meio de avô, e Nesse sentido, meus pais escreveram um
de exilados, de grupos de defesa dos direitos
que ajudava muito. Meu pai é diabético, então depoimento em 28 de outubro de 1979, regis-
humanos etc.
precisávamos de ajuda, porque era muito difí- trado em cartório naquele mesmo ano, onde
cil mantê-lo com a insulina e os remédios ne- na última página diziam: “(...) As crianças de
cessários. A Rosa Cardoso, a nossa advogada, nosso país precisam também de uma anistia
ajudava; a Teresa, a professora que me alfabeti- ampla, geral e irrestrita. Precisam que se lhes
zou, ajudava; a Ana e o Alemão; a Érica ajuda- devolvam o direito de serem crianças no tem-
va... Muitos foram solidários conosco. po certo.” Nesse depoimento, eles contam que
Fiquei muito contente quando descobri, durante as torturas, sofreram ameaças de que
muitos anos depois, como a minha prisão, de seus filhos seriam assassinados caso não con-
meu irmão e da minha tia grávida de 7 meses tassem o que sabiam.
foi denunciada desde o primeiro momento. Em
Apesar de ser uma experiência muito doloro-
1994, soube pelo próprio D. Cândido Padin, bis-
sa, minha família se esforçou para denunciar
po de Bauru, que ele fora o intermediário, junto
o coronel Ustra como torturador – em 2008 ele
à Anistia Internacional, das denúncias sobre a
foi condenado em uma ação civil movida por
nossa prisão. À época, expressei em público
nós contra ele –, assim como os demais cri-
minha gratidão, pois até então, não sabia quem
mes de que foi testemunha. Fazemos questão
havia sido o portador dessa ajuda tão valiosa.
de denunciar que Ustra e o comandante do II
Em 2007, descobri uma pasta de docu- Exército, Humberto de Souza Mello, tortura-
mentos sigilosos nos arquivos da Comissão ram pessoalmente minha tia Crimeia, então
Justiça e Paz de São Paulo, onde havia um grávida de 7 meses.
documento datado de 9 de fevereiro de 1973
relatando uma denúncia sobre a prisão de mi- Não é coincidência que uma história com
nha família à CNBB (Conferência Nacional essa gravidade não conste no meu habeas
dos Bispos do Brasil). Esta denúncia saiu do data (solicitado em 1993). Não há nenhum re-
DOI-CODI através de Rioco Kayano, que ha- gistro sobre o sequestro de que fomos vítimas
via sido transferida para o DEOPS e, por isso entre 1972 e 1973. Não obstante, há menção a
pôde encontrar-se com seu irmão. Ele relatou diversas atividades políticas das quais parti-
as torturas e ameaças de morte sofridas por Em diversas oportunidades minha família cipei. As forças de segurança mantiveram mi-
meus pais a um advogado que escreveu a re- protagonizou denúncias dos crimes cometi- nha vida sob vigilância. Nele, encontram-se in-
ferida carta. Presumo que essa carta deve ter dos pelo Estado durante a ditadura. Através formações incorretas ou inventadas, mas nada
sido a fonte da denúncia de D. Cândido Padin. de uma série de iniciativas, inclusive por meio sobre o sequestro.
desse poema, minha família insistiu em contar
Aos 8 anos, fiz um poema para dar de pre- a nossa história. Quando meus pais foram pro- O medo esteve sempre presente e foi retoma-
sente de aniversário para o meu pai. Esse po- cessados na Justiça Militar, em 1973, eles ain- do em diversas ocasiões da minha vida. Fiz psi-
ema chama-se “Dói gostar dos outros”. É um da estavam presos e sob ameaça de voltar às coterapia várias vezes para tentar reelaborar
poema triste, tem erros de português porque torturas, mas não deixaram de denunciar que essas experiências traumáticas. E as ameaças

3
MASINA, Ettore. Le parole sepolte fioriranno: i canti della resistenza brasiliana. Roma: Borla, 1976
4
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais (Prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns). 23 a ed,
Petrópolis, Vozes, 1989, p. 45, 230, 252 e 253.

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permaneceram no período democrático. Em participar do debate organizado pela Secretaria segui perceber como o Joca era parecido com
1996, auxiliei as buscas e escavações realizadas Estadual de Cultura de São Paulo, que definiu os o pai!!! E senti algo como uma convicção, que
no sudeste do Pará, para tentar encontrar os padrões de acesso a esses arquivos, o qual pas- antes era apenas racional, de que o André era
restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia, sou a ser irrestrito a partir do final de 1994. mesmo parte da nossa família!!!!
e lá nós fomos ameaçados. Também fomos
ameaçados em 2001, com homem armado, no Os problemas decorrentes da falta de aces- Na minha pesquisa de mestrado, para enten-
vilarejo de Santa Izabel, próxima a Xambioá so aos arquivos da repressão do período dita- der o silêncio que predominava sobre os crimes
(TO). Ou seja, as ameaças de morte, de seques- torial persistiram. Assim, em 2005, coordenei da ditadura considerei necessário recuperar as
tro ou de sumiço sempre estiveram presentes, juntamente com historiadores, estudantes e histórias das famílias dos mortos e desapareci-
inclusive no período democrático, não apenas professores, a campanha Desarquivando o Bra- dos políticos no Brasil. E nesse período come-
durante a ditadura. sil, a qual tinha por objetivo revogar a lei que cei adotar nas minhas análises uma perspectiva
mantinha o “sigilo eterno” dos documentos comparada, notadamente, com relação à histó-
Aos poucos, resolvi que exerceria a profissão considerados “imprescindíveis à segurança da ria da ditadura argentina. Durante a pesquisa de
de historiadora. Sabia que teria de enfrentar sociedade e do Estado” (lei 11.111/05). Muitos doutorado, pesquisei as histórias e as memórias
críticas severas de historiadores que acreditam protestaram contra a lei e organizaram cam- dos presos políticos brasileiros. Paralelamente,
ser impossível manter certa distância do tema panhas similares e, inicialmente, conseguimos realizei um projeto de História Oral em vídeo
estudado, quando se está diretamente envolvi- liberar documentos do extinto Serviço Nacional na Universidade de São Paulo, em colaboração
do na história sobre a qual estudamos. Persiste de Informações (1964-1990) – custodiados pelo com a Universidade de Campinas, no qual gra-
ainda a ideia que menospreza a experiência vi- Arquivo Nacional desde dezembro de 2005 vamos oitenta entrevistas com presos políticos
vida e que a separa da teoria, um procedimen- em regime de acesso restrito. Apenas em 2011, de vários estados, cerca de 320 horas, com o
to bastante similar ao exercido em laboratórios porém, conquistamos a Lei de Acesso à Infor- apoio da Fundação Ford do Brasil.
de química. Eventualmente, persiste na univer- mação e essa nova realidade está auxiliando a
sidade uma espécie de positivismo anacrônico. Comissão da Verdade e a historiografia brasilei- Essas pesquisas foram muito importantes
ra. Não obstante, muitos arquivos permanecem para que eu pudesse me aproximar da experi-
A despeito dessas vicissitudes, quando di- inacessíveis, notadamente, os de órgãos milita- ência política desse período, o que me possi-
vulgaram a existência da Vala de Perus, em res de informação e repressão, tais como o Cen- bilitou aprofundar a análise crítica e a investi-
1990, acompanhei o esforço dessas mulheres e tro de Informações do Exército (CIE), Centro de gação factual da nossa história recente. Assim,
deste homem, Ivan Seixas, fantásticos, que pes- Informações da Marinha (CENIMAR) e Centro tentei enfrentar também as minhas próprias
quisavam, todos os dias, nos arquivos do IML. de Informações da Aeronática (CISA). experiências traumáticas, tanto no aspecto psi-
Aos poucos, fui compreendendo que tinha de cológico quanto no teórico e acadêmico.
ajudá-los como militante e como historiadora e
acabei participando, em 1992, da comissão que “O medo esteve sempre
investigava os casos de mortes e desapareci-
mentos políticos de São Paulo, criada pela então
presente e foi retomado
prefeita Luiza Erundina. E, a partir daí, comecei em diversas ocasiões JANAÍNA DE ALMEIDA TELES nasceu em 11 de fevereiro
de 1967. Filha de Maria Amélia de Almeida Teles e César
a pesquisar nos arquivos do DEOPS/SP e a par-
ticipar da organização do Dossiê dos Mortos e
da minha vida. Fiz Augusto Teles. Historiadora, é pesquisadora do progra-
ma de pós-doutorado do Departamento de História da
Desaparecidos Políticos publicado em 1995 e psicoterapia várias vezes USP e investiga a atuação dos advogados de presos po-
líticos durante a década de 1970.
em 1996, e da edição de 2009.
para tentar reelaborar
Para a versão de 1995, ficamos cerca de qua-
tro anos pesquisando nos arquivos do DEOPS.
essas experiências
Naquela época, a universidade não se interes- traumáticas. E as
sava muito por essa pesquisa. Depois, come-
çaram a surgir projetos acadêmicos e passei
ameaças permaneceram
a participar dessas pesquisas, mas continuei a no período democrático”
reconstruir as histórias de morte e de vida des-
ses militantes e a buscar informações e provas
que pudessem despertar o interesse da socie- As pesquisas nos arquivos do DEOPS tive-
dade para essa temática. ram uma importância adicional para mim, que
foi pessoal. Durante muitos anos, não consegui
Entre 1992 e 1994, além de participar das pes- “materializar” a presença do tio André na minha
quisas nos arquivos do DEOPS/SP – autorizada vida. Em 1992, porém, no dia da transferência
apenas aos familiares de mortos e desapareci- dos arquivos do DEOPS/SP para o Arquivo do
dos políticos – colaborei ativamente na campa- Estado, encontramos uma foto do André adulto
nha para que esses documentos fossem fran- (era a foto de seu passaporte) e, para mim, aqui-
queados ao acesso público. Fui a única mulher a lo foi emocionante, pois pela primeira vez con-

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1

Família Teles
1, 2 e 3. Amelinha com Janaína aos seis meses,
no Rio de Janeiro, 1967
4. Janaína, aos 3 anos, com uma boneca feita por
sua tia Crimeia, 1970
5. Amelinha e Edson, aos 2 anos, São Paulo, 1970
6. Edson, aos 2 anos, Janaína, aos 3, São Paulo, 1970
7. Amelinha e César em dia de visita no Presídio do
Barro Branco, São Paulo, 1976

4 5

6 7

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2

1. Dia de visita no Presídio


do Barro Branco 3

2 e 3. Fotos das fichas de César


e Amelinha no DOPS

César Augusto Teles nasceu em 7 de julho No ano de 1975, César, já transferido para o Presídio ditadura. É membro da Comissão de Familiares de
de 1944, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Filho de do Barro Branco (SP), junto de outros 34 presos polí- Mortos e Desaparecidos Políticos e reconhecida mi-
Eustásio Telles e Geni Moreira Telles. Era ferroviário ticos escreveu o “Bagulhão”, uma carta de denúncia litante dos Direitos Humanos. É também uma das
quando ingressou no Partido Comunista em 1962. das torturas sofridas pelos militantes. Além da im- precursoras do Movimento Feminista no Brasil e fun-
portante riqueza de detalhes das mazelas sofridas, dadora da União de Mulheres de São Paulo.
César e sua esposa Amelinha eram responsáveis pela
a carta traz uma lista de 233 torturadores, o que foi Formada em Direito, nunca quis exercer a profissão
imprensa clandestina do PCdoB quando foram pre-
uma grande contribuição na luta pelo fim da ditadu- e utiliza seus conhecimentos para fortalecer os mo-
sos em São Paulo juntos do dirigente Carlos Nicolau
ra. Ficou preso até 1977. vimentos populares. É idealizadora do projeto de
Danielli, no dia 28 de dezembro de 1972. Levados para
a OBAN, César, que já era diabético e tuberculoso, de- Promotoras Legais Populares que, há 20 anos, forma
mulheres, especialmente as mais pobres, sobre seus
vido às bárbaras torturas que sofreu durante dias, Maria Amélia de Almeida Teles conhe- direitos e como conquistá-los com organização e luta.
entrou em estado de coma e levou muitos dias para cida como Amelinha, é militante comunista desde os
se recuperar o que, apesar de seu peculiar bom hu- anos de 1960. Nasceu em 6 de outubro de 1944, na ci- A família Teles ingressou com ação declaratória con-
mor, lhe deixou sequelas que carrega até hoje. dade de Contagem, Minas Gerais. Filha de Joffre de Al- tra Carlos Alberto Brilhante Ustra, com a finalidade
Seus filhos Janaína e Edson e sua cunhada Crimeia, meida e Lúcia Schmidt de Almeida, militou ao lado dos de que a justiça o declare como torturador. O proces-
grávida de 8 meses, foram presos em seguida. pais no PCB e depois no PCdoB até meados de 1987. so foi favorável nas duas primeiras instâncias, mas
Ustra recorreu e o processo segue para julgamento
Foram torturados e presenciaram o assassinato de Morou no Rio de Janeiro no período de 1966 até 1969
no Superior Tribunal de Justiça.
Danielli pela equipe do então major Carlos Alberto e em São Paulo a partir de então. Desde que saiu da
Brilhante Ustra. cadeia em 1973, luta por justiça para as vítimas da

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Testemunhas da dor
por Amelinha Teles

Toda a minha família foi vítima de perseguições No dia 28 de dezembro de 1972, por volta das corredores da OBAN durante alguns dias, vendo
e dolorosas torturas por parte da repressão política 18h30, as forças de repressão, comandadas pelo os presos, inclusive os pais, entrarem e saírem das
instaurada no Brasil no período do golpe militar. então Major Carlos Alberto Brilhante Ustra, acaba- salas de torturas e ouvindo seus gritos de dor.
Fomos duramente atingidos, eu e meu companhei- ram prendendo a mim e a meu companheiro César
Era muito doloroso para mim e para o César
ro, César Augusto Teles, e nossos filhos Janaína e quando estávamos juntos a Carlos Nicolau Danielli,
saber que nossas crianças eram obrigadas não só
Edson Luis de Almeida Teles. dirigente comunista, que acabou por ser assassina-
a assistir os horrores das torturas cometidos nos
do sob torturas, três dias após essa prisão.
À época, meus filhos Janaína e Edson eram crian- porões da ditadura contra os pais e contra todos
ças com 5 e 4 anos de idade, respectivamente, e No dia 29 de dezembro de 1972, um dia após os presos políticos, mas também eram obrigadas a
mesmo assim foram vítimas de tortura psicológica. sermos presos, os policiais/agentes do Exército ficar confinadas/presas numa delegacia de polícia
sequestraram também nossos dois filhos e minha atípica, que serviu de aparelho político repressor.
O responsável direto pelas perseguições e tortu- irmã Crimeia, que cuidava deles naquele momen-
ras contra a minha família foi Carlos Alberto Bri- O fato de meus filhos, ainda muito pequenos, te-
to. De casa, foram levados aos berros, gritos e ame-
lhante Ustra, coronel reformado do Exército bra- rem sido presos e terem sido obrigados a assistir
aças, sob a mira de metralhadoras até serem deixa-
sileiro, comandante do DOI-CODI/SP no período as sessões de tortura é assumido pelo próprio Us-
dos na OBAN (DOI-CODI/SP).
de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Responsável tra ao descrevê-lo no livro denominado Rompendo
não apenas por ter chefiado a famigerada opera- Meus filhos Janaína e Edson foram usados pelos o Silêncio, em resposta às acusações públicas rea-
ção OBAN, e por ter comandado o DOI-CODI do bárbaros e boçais opressores, como instrumentos lizadas pela atriz e então deputada Bete Mendes,
II exército, mas também, e, sobretudo, por ter prati- de tortura psicológica, pois a todo tempo os “mili- que o reconheceu em Brasília.
cado pessoalmente os atos de tortura. tares” diziam a mim e ao César que nossas crian-
ças também seriam torturadas e mortas. À página 166 do referido livro, escrevendo sobre
O meu sequestro e o dos meus foi justamente o período da ditadura, Carlos Alberto Brilhante
no contexto histórico, que se insurgiu contra o sis- Edson e Janaína foram testemunhas dos gritos Ustra, asseverou:
tema então vigente a denominada “Guerrilha do de dor dos presos políticos sendo torturados e,
“A propósito, convém citar o caso de um casal
Araguaia” (1972 a 1974) localizada no sudeste do principalmente, do meu rosto transfigurado, de tal
de uma Organização que foi preso porque ambos
Pará e o norte de Goiás, hoje Tocantins. modo que só fui reconhecida pelo Edson quando
eram militantes. Neutralizado o ‘aparelho’ onde eles
ele me ouviu chamá-lo, identificando-me pela voz,
Nesse período, eu, meu companheiro e minha residiam, que aliás era um ‘aparelho de imprensa’,
uma vez que eu estava deformada em função das
irmã Crimeia, éramos do Partido Comunista do seus filhos, bem pequenos, não tinham para onde
equimoses provocadas pelas torturas. Meu filho, à
Brasil, que passou a ser o principal alvo da repres- ir. Para não mandar as crianças para o Juizado de
época, tinha apenas 4 anos de idade e se lembra
são militar, pois era o centro logístico/financeiro Menores, uma moça, Sargento da Polícia Femini-
da: “Horrível sensação de estar diante de alguém
da “Guerrilha do Araguaia”, que tinha suas bases na do Estado de São Paulo, ofereceu-se para tomar
que conhecemos a voz, mas não há identificação
no PC do B de São Paulo e Rio de Janeiro, e a partir conta dos menores em sua casa, enquanto aguar-
com o corpo, que a esta altura estava roxo, com he-
do momento em que o Exército brasileiro tomou dávamos a chegada dos familiares do casal, que se
matomas (...)”.
conhecimento desse plano de guerrilha, intensi- encarregariam da guarda deles. Diariamente, a meu
Já minha filha, Janaína, que à época tinha 5 anos pedido, as crianças eram levadas ao DOI para visi-
ficaram-se as perseguições e brutais técnicas de
de idade relato sobre o mesmo episódio: “Lembro- tarem seus pais. Hoje, revoltado, vejo que este casal,
torturas, utilizadas para a obtenção de confissões
-me claramente de me indicarem, entre corredores no livro Brasil: Nunca Mais nos acusar de levar os
dos presos políticos.
escuros, o lugar onde encontraria meus pais. Eles filhos até eles para que ‘vissem seus pais marcados
Eu e César trabalhávamos, principalmente, na estavam numa sala escura sentados em uma mesa pelas sevícias sofridas e pressioná-los, dizendo que
imprensa do Partido, fazendo, portanto, oposição onde havia dois pratos de sopa, mal se mexeram as crianças seriam torturadas, se não confessassem
política, de maneira clandestina, ao regime militar quando viram a mim e a meu irmão. Estavam o que queríamos saber’”.
instalado no Brasil. esverdeados ou amarelados e sem forças. Achei
muito estranho, mas fiquei feliz em pular em seus Ora, naquele período e hoje mais ainda é sobeja-
Minha irmã, Crimeia Alice Schmidt de Almei- mente sabido que na sede do DOI-CODI, era um
colos, mesmo que eles mal conseguissem sorrir.
da, participou diretamente dessa guerrilha e era local utilizado pela polícia política da época para a
Não me lembro sobre o que falamos, mas esta lem-
companheira de André Grabois, filho do dirigente prática de torturas, das quais não apenas eu e meu
brança é muito marcante, nunca a esqueci. A falta
comunista, Maurício Grabois. (André Grabois foi companheiro fomos vítimas, o que por si só é uma
de reação dos meus pais foi impressionante, eles
assassinado em 14 out. 1974, pelo Coronel do Exér- crueldade inominável, que se amplifica ao absurdo
sempre eram muito carinhosos. Naquele momen-
cito Lício Augusto Ribeiro Maciel, conforme suas
to eles estavam inertes”. quando se trata também de crianças, como foi o
próprias declarações feitas a jornalistas). Crimeia
caso de meus filhos Janaína e Edson.
estava grávida de 7 meses quando também foi se- O absurdo com meus filhos não se restrigiram a
questrada pelos agentes do DOI-CODI/SP. isso. Janaína e Edson ficaram perambulando pelos

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A história que
o menino não queria
ouvir a mãe contar
por João Carlos de Almeida Grabois

O meu nome é João. Minha mãe es- vontade de ouvir. Não era uma história aconteceu alguma coisa com você, por-
tava presa quando eu nasci. Ela estava que, para mim, tinha sido boa. que eles ameaçavam me sequestrar.
sequestrada e eu nasci em Brasília, no Então tem que avisar, tem que ser mais
Aí depois eu fui conhecer o Igor [Igor
Hospital da Guarnição do Exército. Mas responsável, não pode sair da escola e ir
Grabois, outro primo de João Carlos],
isso eu não lembro. Comecei a ter lem- brincar, e tal. Tem que voltar para casa”.
mais tarde, já quase nos anos 1980, eu já
branças quando a gente já estava mo-
estava na escola. Nessa época conheci Tinha essa tensão, até depois de mais
rando no Rio de Janeiro, com o Edson
mais gente da família. Antes, a família velho ela ainda carregava essa preocu-
e a Jana [Edson Teles e Janaína de Al-
era reduzida à Jana, o Edson, o Cesar, a pação. Eu ia para as baladas e ela ficava
meida Teles, primos de João Carlos], eu
Amelinha e a minha mãe. Eram poucas em casa esperando: “Aconteceu algu-
já devia ter meus 4 anos, em 1977, 1978.
pessoas e aí, de repente, mais que dobra ma coisa?”, ela perguntava. E isso já era
Quando eu era pequeno, minha mãe o número de familiares. Os Grabois têm nos anos 1990, mas mesmo assim ficou
contou que meu pai tinha morrido na um monte de primos. essa preocupação.
Guerrilha do Araguaia. Ela dizia: “Olha,
se perguntarem, você vai dar outro nome. “Minha mãe Aí, quando eu estava com 17 anos,
Não vai falar o nome verdadeiro do seu contava a história mais ou menos, a gente abriu um
processo contra a minha avó... olha que
pai, nem contar essa história de que ele
era guerrilheiro. Você fala que ele teve um do Araguaia na hora engraçado. Na verdade, era contra o
acidente e morreu. Que você era muito de dormir e eu não meu pai e contra a minha avó para reco-
bebê e teve um acidente de carro, morreu nhecimento de paternidade.
e pronto”. gostava porque
Tinha o curador de ausente que es-
Mas eu já tinha consciência. Minha
achava que ela ia tava defendendo o meu pai. Ele ficava
mãe contava a história do Araguaia na morrer no final” questionando se minha mãe não tinha
hora de dormir e eu não gostava porque tido outros casos, se eu era realmente
achava que ela ia morrer no final da his- Eu lembro que minha mãe tinha a filho do meu pai, sei lá o que. Uma coisa
tória. Então, eu pedia: “Não conta, não”. preocupação de sermos sequestrados. assim meio surreal. A minha avó era ré,
Os meus primos, Janaína e Edson, já A gente não podia chegar atrasado. Por tinha este cara que estava lá para defen-
eram mais velhos e gostavam dessa his- exemplo, se eu saísse da escola e fosse der os interesses do meu pai, mas ques-
tória. E eu, não. Mesmo sendo histórias para a casa de um colega e não tivesse tionando a paternidade. Aí, uma hora o
de bichinhos, da cachorra, eu não tinha sido planejado, se não tivesse avisado juiz perguntou se eu tinha uma pergun-
a minha mãe, ela ficava desesperada. E ta para fazer. Eu disse: “Tenho, sim. Por
À esquerda, Joca em Bertioga, litoral paulista, 1978 explicava “Olha, eu fico pensando que que essa pessoa que está representando

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“Havia um caderninho o meu pai não está querendo reconhecer o
filho dele? Eu acho que se meu pai estives-
que ganhei da minha se aqui ele ia querer, sim. E eu não entendo
mãe em que ela contava essa coisa aí”. Ele falou: “Não, a figura dele
é essa, e alguém tem que questionar”. Aí
toda a sua história. eu falei, “Mas não tem sentido, ele não está
Era tipo um diário aqui não é por que ele não quer reconhecer
a paternidade. Ele não está aqui porque é
que ela fez durante desaparecido”.
todo o tempo em que Nós ganhamos esse processo e a partir
esteve presa” dos 17 anos eu passei a ter no RG a filiação,
pai: André Grabois. Porque antes, só tinha
assim: mãe, Crimeia Alice. E ganhei uma
certidão que tinha os avós paternos.
Havia um caderninho que ganhei da mi-
nha mãe em que ela contava toda a sua his-
tória. Era tipo um diário que ela fez durante
todo o tempo em que esteve presa. Todo dia
ela escrevia um pouquinho porque achava
que não ia me conhecer.
Eu demorei muito tempo para ler esse ca-
derninho. Minha mãe o colocou na minha
fralda quando me entregou para minha
tia, minha madrinha. Quando eu estava
com três meses e saí da cadeia ela entregou
para essa minha tia. E aí depois a minha tia
entregou esse diário para minha mãe e de- 1

pois a minha mãe entregou para mim. Só fui


lê-lo quando estava com 21 anos. É triste.
Mas essa parte de ficar ouvindo histórias
assim eu não gosto muito. O diário do Mau-
rício [Grabois] eu também não li, não. A úni-
ca história que eu li foi a que a minha mãe
escreveu.

JOÃO CARLOS DE ALMEIDA GRABOIS nasceu em 13 de


fevereiro de 1973, em Brasília. É filho de Crimeia Alice
Schmidt de Almeida e André Grabois. É administra-
dor e estudante de matemática.
2

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1. Joca, Rio de Janeiro, 1974
2. Crimeia e Joca,
Rio de Janeiro, 1974
3. À direita, Joca com 4
anos em São Paulo, 1978

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3

1. Crimeia quando presa no XXX Congresso da UNE,


Ibiúna (SP), 1968
2. André, pai de Joca. Fotografia de um passaporte falso
3. André aos 13 anos. Única foto que a família teve
durante muitos anos
4. André, Gilberto Olímpio Maria e amigos na festa
dos formandos do 4º ano do Ginásio Dom Orione em
Porto Franco (MA), dezembro de 1967
5. Joca com 7 anos, São Paulo, 1980

1 2

André Grabois nasceu em 3 de julho de 1946, no No segundo semestre de 1967, retornou clandestinamen- e trabalhou como estivador em Santos e como ferroviário.
Rio de Janeiro (RJ), filho de Maurício Grabois, também de- te ao território brasileiro pela Bolívia. Foi um dos primei- Foi preso político em 1964. Sua mãe era dona de casa. Cri-
saparecido no Araguaia, e Alzira da Costa Reys. Desapare- ros a chegar à região onde se deu a Guerrilha do Araguaia, meia passou a adolescência em Minas Gerais, onde iniciou
cido em 14 de outubro de 1973 na localidade denominada indo morar na localidade de Faveira no início de 1968. Ali sua militância no movimento secundarista.
“Fazenda Caçador”. Militante do Partido Comunista do trabalhava na roça e possuía um pequeno comércio próxi-
Quando do golpe de 1964, mesmo sendo menor de idade,
Brasil (PCdoB). mo ao povoado de Ponta de Pedra.
seu nome foi incluído no Inquérito Policial Militar, junto
Filho do dirigente comunista líder da bancada do Partido Era conhecido como Zé Carlos. Em 1969, casou-se com a com o de seu pai e de sua irmã, Maria Amélia de Almeida
Comunista na Constituinte em 1946, desde muito cedo, guerrilheira Crimeia Alice Schmidt de Almeida, a quem co- Teles. Por conta do IPM, a família seguiu para o Rio de Ja-
graças ao convívio com destacados militantes do movi- nheceu no Pará. Tiveram um filho, João Carlos, que nasceu neiro. Lá, Crimeia foi estudar Enfermagem na Escola Ana
mento comunista no Brasil, André interessou-se pelas na prisão, em fevereiro de 1973, que André não chegou a Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi
questões políticas. conhecer. presidente do diretório acadêmico da escola. Participou
Foi o comandante do Destacamento A – Helenira Resen- do Congresso de Ibiúna, em outubro de 1968, quando
Em 1964, em razão das perseguições movidas contra seus
de –, das forças guerrilheiras do Araguaia até sua morte. ocorreu sua prisão.
pais, foi obrigado a abandonar os estudos e, com apenas
17 anos, foi viver na clandestinidade. Seu pai e seu cunhado, Gilberto Olímpio Maria, integra-
Após o AI-5, em dezembro de 1968, entrou para a clandes-
vam também a guerrilha e morreram durante o ataque do
Em meados de 1966, André Grabois, Divino Ferreira de tinidade. Em janeiro de 1969, como militante do Partido
Exército, em 25 de dezembro de 1973.
Souza, João Carlos Haas Sobrinho e Líbero Giancarlo Cas- Comunista do Brasil (PCdoB) seguiu para a região do Ara-
tiglia viajaram para a China e, na escala no aeroporto de guaia, onde se desenvolveria a guerrilha contra a ditadu-
Karachi, no Paquistão, tiveram os seus passaportes reti- Crimeia Alice Schmidt de Almeida ra militar. Morou na região até agosto de 1972, quando
dos por várias horas, sem nenhum esclarecimento. André nasceu em 17 de abril de 1946, em Santos (SP). Filha de foi enviada pelo Partido para São Paulo, na tentativa de
realizou cursos de formação política e militar na China e Joffre de Almeida e Lúcia Schmidt de Almeida. Nascida romper o cerco que as Forças Armadas haviam imposto à
na Albânia. numa família de esquerda, seu pai era militante operário guerrilha.

274 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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4

Estava grávida, fruto de seu relacionamento com André


Grabois, um dos comandantes da guerrilha. Seguiu para
São Paulo e foi morar na clandestinidade, junto com sua
irmã Maria Amélia.
Em dezembro de 1972, quando estava com cerca de seis
meses e meio de gravidez, foi sequestrada e levada para
a Operação Bandeirante (OBAN) onde foi torturada. De-
pois, foi levada para o presídio do Pelotão de Investiga-
ções Criminais, o PIC, em Brasília, onde as violências se-
guiram. Crimeia ficou 27 horas em trabalho de parto, sem
qualquer ajuda. Seu filho, João Carlos, nasceu, no Hospital
da Guarnição do Exército, em Brasília, em 13 de fevereiro
de 1973. Seu companheiro, André Grabois, foi assassinado
em outubro de 1973 e não pode conhecer o filho.
Crimeia ficou presa até abril de 1973. Desligou-se do
PCdoB em 1987. Atualmente é militante da Comissão
de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e da
União de Mulheres do Município de São Paulo.

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“Um comunista a menos!”
por Crimeia Alice Schmidt de Almeida

Fiquei grávida enquanto ainda estava na quido amniótico escorria pelas minhas pernas Como castigo, ele era tirado do quarto, pas-
mata, na guerrilha do Araguaia, perseguida elas me atacavam em bandos. Já que os milita- sava dois ou três dias sem ser trazido para as
pelas Forças Armadas. Nesse período, estava res não tomavam nenhuma medida, depois do mamadas e voltava com diarreia e vômitos. Isto
sob constante estresse das ameaças: persegui- almoço comecei a gritar desesperadamente. Os o fez perder muito peso e com um mês pesava
ção de militares armados, sobrevoos de aviões outros presos fizeram coro e no fim da tarde me 2,700 quilos. E sempre que me era devolvido
e helicópteros além de fome e várias crises de levaram para o hospital da Guarnição. nesse estado precário, diziam que era eu a
malária. Assim foram os seis primeiros meses responsável porque não queria cooperar. Fi-
da gravidez do meu filho João Carlos. À noite o obstetra, Doutor Trindade, disse
nalmente, no dia 2 de abril o entregaram aos
que eu estava em trabalho de parto, mas como
Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses meus familiares que foram a Brasília buscá-lo.
ele não estava de plantão, então só faria a cesa-
e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI- Ele foi abruptamente desmamado. Pelas cons-
riana no dia seguinte. Reclamei que meu filho
-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastan- tantes ameaças dos militares de que iriam
poderia morrer e ele respondeu: “É melhor! Um
te adiantado de gravidez não foi empecilho para adotá-lo, exigi que fosse previamente registra-
comunista a menos!” Prescreveu soro venoso e
as torturas físicas e psicológicas. Levei choques do como meu filho, o que consegui.
foi-se embora. Eu não queria tomar o soro por-
nos pés e mãos, muitos espancamentos, amea- que imaginei que era para retardar o parto, mas Ao retirarem o bebê, aplicaram-me uma me-
ças de fuzilamento e outras violências. E o pior, me amarraram ao leito e o aplicaram. A porta dicação para secar o leite e em seguida voltei
a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nas- do quarto ficava aberta, vigiada por um soldado para a cela onde recomeçaram os interrogató-
cesse branco, saudável e do sexo masculino. armado com metralhadora. Eu cortei o equipo rios que eram quase ininterruptos. Permaneci
O primeiro a me torturar foi o major Carlos do soro com os dentes e não recebi a medica- presa por mais uns vinte dias até ser liberada,
Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI- ção. Por volta das 2h30 da madrugada do dia e fui levada para a casa da tia que havia busca-
-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o 13 meu filho nasceu de parto normal e pesava do meu filho.
carcereiro me torturava quando me tirava da 3,150 quilos. Não me foi mostrado, mas soube
Enquanto estava presa, meus familiares em
cela para levar às salas de interrogatório. Du- que era um menino e saudável.
Minas Gerais levaram João Carlos ao médico
rante essa época, o feto apresentava soluços, Nos primeiros dias o bebê ficou isolado no que constatou desnutrição e prescreveu uma
os quais eu tentava amainar alisando a barriga berçário e só me era entregue para as mamadas. dieta especial. Quinze dias após, ao retornar à
e cantando baixinho para ele. Até hoje, em mo- Com o passar dos dias notei que ele foi ficando consulta, João havia recuperado o peso que o
mentos tensos meu filho apresenta soluços. muito molinho, sonolento, sem forças para cho- médico previra que seria em cerca de três me-
Depois de um mês no DOI-CODI/SP fui rar e para mamar. Perguntei ao pediatra o que ses. Obviamente meus familiares não disse-
transferida para o Pelotão de Investigações estava acontecendo, respondeu-me que estava ram que ele era recém-saído da prisão.
Criminais da Polícia do Exército. Fui interroga- tudo bem. Então, perguntei à auxiliar de enfer- Em Belo Horizonte, alojaram-me em casa
da algumas vezes, sempre com as ameaças de magem, que o trazia para as mamadas, e ela me separada do meu filho por motivos que desco-
morte e de sequestrarem o meu filho. Uma das disse que a criança chorava muito e, por isso, o nheço. Nessa época, eu não tinha documentos
vezes fui levada para interrogatório no Ministé- pediatra lhe prescreveu “Luminaleta”, um tran- e não sabia do paradeiro de minha irmã, meu
rio do Exército na Esplanada dos Ministérios. quilizante de uso infantil. Falei para o pediatra cunhado e meus sobrinhos. Providenciei minha
que ele não era o médico do meu filho, não tí- documentação, localizei meus sobrinhos e de-
No dia 11 de fevereiro, à noite, entrei em nhamos médicos, estávamos presos, não admi-
trabalho de parto. Solicitei um médico que só cidi me mudar com eles e meu filho para a casa
tia que ministrassem tranquilizantes ao meu dos meus pais, no Rio de Janeiro. Meu filho es-
chegou pela madrugada e me encaminhou ao filho e queria que ele ficasse comigo no quarto.
Hospital de Base. Lá, o médico disse que não tava com cinco meses quando nos mudamos.
Consegui. Com o passar dos dias ele ficou mais As crianças tinham muitos problemas, João
estava na hora do parto, recomendou que me ativo, chorava mais forte e mamava. Os milita-
colocassem na enfermaria do presídio e apli- quase não dormia e comia compulsivamente.
res queriam me interrogar no hospital; eu me
cou um antibiótico. Os militares me levaram recusava a isso e avisei que só responderia aos No final do ano, minha irmã e meu cunhado
de volta, não para a enfermaria, mas para a interrogatórios quando o meu filho estivesse foram libertados por relaxamento da prisão
cela, onde havia muitas baratas, e como o lí- em segurança. preventiva e nos mudamos todos para São

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Paulo. Nesta época, meu filho começou a apre-
sentar convulsões. Com a madre Cristina, do
Sedes Sapientiae, consegui um neurologista
para ele. Foram tempos muito difíceis, mas
encontramos muita solidariedade. O acompa-
nhamento neurológico foi feito até os 10 anos,
sem um diagnóstico conclusivo.
Embora muito cedo eu tenha lhe contado
sobre o desaparecimento do pai, a prisão, seu
nascimento, o tempo que ficamos separados,
ele sempre dizia que queria ver uma foto do
pai, saber como ele era. Com a Anistia, meu fi-
lho pode conhecer a família paterna que vivia
na clandestinidade. A vida clandestina a que
fomos todos obrigados nos impediu de termos
fotos, cartas, qualquer lembrança. As poucas
que existiam foram destruídas por medo que
pudessem ser apreendidas pela polícia e dessa
forma facilitar a identificação de nosso fami-
liar. No caso de André, a única foto de adulto
(com 18 anos) foi encontrada quando foi aber-
to o arquivo do antigo DOPS de São Paulo. Foi
quando João Carlos pôde ver, pela primeira
vez, a foto do pai – tinham a mesma idade.
Meu filho sempre frequentou escolas públi-
cas, era inteligente, porém muito peralta. Não
gostava muito da escola porque “era do gover-
no”, mas os colegas compensavam.
Em 1988, foi feita uma ação de investigação
de paternidade. Enfrentamos duas grandes
dificuldades: ele tinha medo de ter pai e mãe
perseguidos pela repressão política e somente
aos 15 anos e com a democratização do país
aceitou fazê-la; também não aceitávamos en-
trar com uma ação em que o réu fosse André,
pois na verdade ele era a principal vítima.

Crimeia com Joca no colo, presa, em Brasília, 1973,


quando entregou Joca para sua tia Célia

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A bebê sequestrada
por Carmen Sumi Nakasu de Souza

Meu nome é Carmen Sumi Nakasu de Nesses três meses, passei cinco dias com “Carreguei para a minha
Souza. Eu nasci em Valinhos (SP), em cir- os agentes do DOPS. Depois, com uma ami-
cunstâncias um pouco obscuras. Fugindo ga da família, a dona Maria Cecília Figueira vida esse sofrimento do
daqui para ali, minha mãe conseguiu acer- de Melo e em seguida fiquei sob o cuidado tempo em que fiquei afastada
tar a realização do parto com um colega da de familiares. Recentemente eu reencon-
Faculdade de Medicina. trei dona Maria Cecília e sua família. Eles
dos meus pais. Eu era uma
me contaram como foi a minha chegada e criança muito tímida, muito
Quando eu tinha um ano e uma semana,
em setembro de 1973, fui presa com a minha
a minha estadia. Disseram que cheguei
como uma criança extremamente amedron-
insegura, que não conseguia
mãe e meu pai na Estação da Luz em São Pau- tada. Depois, fui levada para a minha avó, ficar longe da mãe”
lo. Era meia-noite e nós íamos tomar o trem com quem fiquei até reencontrar meus pais.
para o Rio de Janeiro, porque a intenção era Quando os reencontrei, não os reconheci.
sair do Brasil. Eles viviam uma situação mui- Já havia passado três meses, que para uma
to complicada por conta da militância políti- criança de um ano é muito tempo.
ca. Naquele momento, nós fomos presos.
Carreguei para a minha vida esse sofri-
Meus pais ficaram no DOI-CODI por no- mento do tempo em que fiquei afastada dos
venta dias sendo torturados. E por um perío- meus pais. Eu era uma criança muito tímida,
do eu fui usada para obter mais informações. muito insegura, que não conseguia ficar lon-
Fui mais um instrumento de tortura nas ge da mãe. Tive uma infância psicologica-
mãos dos militares. Eles me sequestraram e mente bastante conturbada, eu tinha muitas
fiquei por quatro, cinco dias nas mãos de al- convulsões e terrores noturnos.
guém, ninguém sabe de quem. Provavelmen-
te foi de uma investigadora que me pegou no Também fui uma adolescente igualmen-
momento em que minha mãe se separou de te tímida, muito tímida, nunca tive muitos
mim. Só fui encontrá-los depois de três me- amigos. Não conseguia me relacionar muito
ses. Antes desse período, eu era uma criança bem e frequentemente era abatida por uma
muito alegre e extrovertida que gostava mui- sensação horrível, uma angústia tremenda.
to de tomar banho. E quando eu voltei para a Do nada, essa sensação me tomava. Era uma
casa dos meus familiares, retornei com muito coisa estranha, que vinha com falta de ar,
medo e, estranhamente, passei a ter pânico tudo junto.
de banho e do barulho da descarga.
Desde os 10 anos de idade minha mãe me
colocou para fazer terapia, ou melhor, tera-
À esquerda, Carmen com um ano e meio, em 1974, pias. Fui de terapia em terapia para conse-
em Atibaia (SP), na casa de seu avô paterno. guir amenizar um pouco essa dor e na ten-
À direita, logo após seu sequestro, Carmen é
entregue à sua avó materna, Elza, com quem ficou
tativa de me transformar numa pessoa mais
durante o período que seus pais estiveram presos. extrovertida, mais alegre.

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“Eles deveriam
ter me devolvido
imediatamente para Aí quando estava com meus 19 anos fiz Crianças que sofreram violências, nasceram
minha família, para uma terapia de regressão. Foi uma experiên- dentro do presídio, enfim, histórias muito
as pessoas que cia muito marcante porque foi feita uma es- mais complicadas do que a minha.
pécie de volta ao tempo, como se fosse uma
conheciam minha auto-hipnose, uma técnica da Psicologia Hoje, não estou envolvida em nenhuma
família” Neurolinguística. E eu voltei no tempo atra- luta política. Sou católica praticante. Não
participo de nenhuma ONG, de nenhum
vés daquela sensação de angústia até chegar
justo no momento em que meus pais foram grupo, não sou ativista de partido político
pegos pelos agentes. Eu comecei a chorar ou de qualquer causa. Mas admiro muito os
muito. Chorava e via uma cena meio confu- meus pais por toda coragem de enfrentarem
sa, de uma correria de lá para cá. Aí, nesse tudo o que eles enfrentaram e terem resisti-
momento a terapeuta falou: “Agora você vai do bravamente a todo tipo de tortura, não te-
conversar com essa criança. Fale que já está rem delatado ninguém. Tudo por uma causa
tudo bem e que foi um momento que você muito maior do que a minha existência, por
viveu, mas que a situação já está resolvida”. exemplo. Que era a causa de todo um povo.
Então eu conversei com essa criança. Foi De procurar, através dessa luta, dar possibili-
incrível, porque quando eu voltei ao tempo dade para os camponeses, para os operários,
presente, parecia que tinha saído um chum- de terem um mínimo de dignidade. Até hoje
bo de cima de mim. meus pais são exemplos para mim.

De alguma maneira eu tinha que vivenciar No meu dia a dia procuro ter atitudes que
uma memória que estava lá no fundo escondi- sejam solidárias, de respeito ao próximo. De
da, mas que se manifestava de uma forma es- saber que todos, ainda que de distintas clas-
tranhíssima, que me deixava meio paralisada. ses sociais, ascendências, formações, devem
ser tratados com a mesma dignidade.
A ditadura militar promoveu erros terrí-
veis, que deixaram marcas indeléveis num Então, eu canto. Sou cantora lírica. E eu
número incalculável de pessoas. No meu acho que através da música consigo expres-
caso, acho que o grande erro do regime mi- sar muitos sentimentos que ficaram pre-
litar foi ter ficado comigo nesse período. Eles sos dentro de mim. Tanto que gosto muito
não poderiam ter feito isso. Não tinha senti- de cantar músicas muito tristes. Quanto
do nenhum. Eles deveriam ter me devolvido mais triste a música é, mais eu gosto. Atra-
imediatamente para minha família, para as vés da música, consigo transformar senti-
pessoas que conheciam minha família. Foi mentos muito profundos em arte, e com isso,
injusto para uma criança ter vivido uma situ- permitir também que as pessoas que me
ação dessas. ouvem vivenciem muitas dessas emoções,
transformando-as.
Eu acho que realmente houve muita in-
justiça, uma violação tremenda dos direitos
humanos. Os militares foram atrozes no que
fizeram. E eu penso que consegui, graças a CARMEN SUMI NAKASU DE SOUZA nasceu em 21 de
muitas terapias e ao auxílio constante da mi- agosto de 1972. Casada, é mãe de três filhos. É bacharel
nha mãe, superar muito dessa dor interior. em Linguística e Literatura Portuguesa pela Universi-
dade de São Paulo (USP). Atua como empresária, pro-
fessora de inglês e cantora lírica.
Porém, minha história foi muito mais leve
do que a de muitas pessoas que perderam
os pais e que, infelizmente, não puderam Carmen cantando.
nem enterrá-los, ou que sofreram agressões. Foto de Inaê Coutinho

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“Sou cantora lírica. Eu acho
que através da música consigo
expressar muitos sentimentos
que ficaram presos dentro
de mim”

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Elzira Vilela nasceu em 9 de agosto de 1939, em Álbum de família
Pouso Alto (MG). Filha de José Costa Pinto e de Elza
Vilela Pinto. Estudou na Faculdade de Medicina de Soro- 1. Com o pai, Licurgo, 1975
caba-PUC São Paulo. Iniciou sua participação política em 2. Carmen em momentos familiares durante sua
infância: na casa dos pais
1960. Foi militante da organização Ação Popular (AP) du-
3. A família reunida em Atibaia (Carmen, sua irmã
rante 11 anos (1962 a 1973) onde desenvolveu vários traba-
mais nova, Maria, Licurgo, Elzira e a avó paterna
lhos, como médica no sindicato de trabalhadores rurais do Sumi Nakasu)
Vale do Pindaré, no Maranhão e como integrada no campo 4. Com os pais em Atibaia
em Alagoas. Militou também em Pernambuco, São Paulo e
Maringá (PR). Casou-se com Licurgo Nakasu, também mili-
tante da AP, em 3 de julho de 1971. Viveu durante seis anos
na clandestinidade política. 2

Foi presa em 2 de setembro de 1973 com o marido e a fi-


lha Carmen, de um ano de idade. Na Operação Bandeirante
(OBAN), para onde foi levada, Elzira foi torturada por mais
de 80 dias. Além de Elzira, seus três irmãos, Francisco, Ma-
ria Célia e Rosane, também foram presos na mesma época
(setembro de 1973). Em 1976 teve outra filha, Maria.
Elzira participou da fundação do PT em 1980. Médica sani-
tarista, homeopata e pediatra, nunca deixou de lutar pelos
Direitos Humanos, tanto na saúde coletiva, como em orga-
nizações como o Grupo Tortura Nunca Mais (1983 a 2004).
Atualmente, milita no Coletivo Contra Tortura e participa
do Conselho Consultivo da Comissão da Verdade do Estado
de São Paulo “Rubens Paiva”.

Licurgo Nakasu nasceu em 10 de agosto de 1946,


em Atibaia (SP). Filho de Tadamitsu Nakasu e Sumi Naka-
su. Entrou na Faculdade de Agronomia da USP, Esalq, em
Piracicaba, em 1966. Sai em 1967 para militar em tempo in-
tegral na Ação Popular. Era colega e amigo de Luiz Hirata,
assassinado em 1971, na OBAN.
Militou em São Paulo e ABC. No campo, atuou como ar-
rendatário em Goioerê (PR). Viveu durante seis anos na
clandestinidade. Foi preso em 2 de setembro de 1973 com
a esposa e a filha Carmen, de um ano de idade. Levados à
OBAN, Licurgo foi torturado por mais de 90 dias. Após a pri-
são, concluiu os estudos na ESALQ. 1 3
Participou ativamente do PT em seus primeiros tempos,
sendo dirigente do núcleo Wilson Souza Pinheiro. Fez
mestrado em Sociologia Rural na PUC com Octavio Ianni e 4
doutorado na UNESP de Rio Claro em Geociências e Meio
Ambiente.
Trabalhou no Instituto de Pesquisas
Tecnológicas durante cinco anos e
lecionou no curso de Geografia, da
Universidade Estadual Vale do Acaraú
(Uva) e nos cursos de Pedagogia e His-
tória das Faculdades Inta. Publicou o
livro Aprender com a Natureza.. Atuava
como consultor em Desenvolvimen-
to e Meio Ambiente, Agroecologia,
Pedologia, Manejo e Conservação de
Solos, Educação Ambiental e Turismo.
Licurgo faleceu em 2011, aos 65 anos de
idade, vítima de um câncer no esôfago.

Fichas de Elzira e Licurgo no DOPS

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Os piores dias da vida de uma mãe
por Elzira Vilela

A gravidez e o nascimento de Carmen foram Fiquei muito feliz com a notícia. Senti que nada além de implicar riscos reais, dado que vivíamos
muito difíceis. O cerco da repressão era impla- do que pudesse acontecer comigo daqui para ainda em uma ditadura.
cável e obrigava a mim e meu esposo Licurgo frente seria tão terrível quanto esse pesadelo que O segredo começou então a ser revelado, no
Nakasu mudarmos continuamente de residência. acabara de viver. entanto, parece não ter transformado o estado
Meu estado de saúde era precário, tive um qua-
Após cinquenta dias, quebrou-se a incomuni- emocional de minha filha, uma vez que conti-
dro de insuficiência pan hipofisária que exigia
cabilidade e Carmen veio me visitar juntamente nuava a ser uma criança com muitos medos e
repouso, medicamento e indicação de parto
com minha mãe. Ela não reconheceu a mim nem angústias, apesar de todo afeto e segurança do
cesariana.
ao seu pai. Ficamos muito tristes. ambiente familiar.
O local do nascimento de Carmen não pode-
Quando fui libertada, Carmen estava com mi- Carmen era uma criança criativa, mas de pou-
ria ser em São Paulo, onde eu residia. Os agentes
nha família e apenas depois de algum tempo tive cos amigos e insegura. Apenas aos 16 anos teve
do DOI-CODI prenderam minhas irmãs para dar
condições de reassumir os cuidados maternos, coragem de revelar o local onde tinha nascido,
conta do meu paradeiro. Como elas nada revela-
pois eu temia comprometer o médi-
ram, eles disseram que sabiam que
co que havia realizado o parto.
eu estava grávida e quando chegasse
a um hospital eu seria presa. Conse- A retomada da vida após a prisão
gui que um colega que trabalhava em e a extinção da APML (Ação Popular
uma cidade do interior de São Paulo, Marxista Leninista) foi muito peno-
Valinhos (SP), fizesse o parto. sa. A vida só retornou em sua pleni-
tude com o fim do regime militar, em
O primeiro ano de vida de Carmen
1985, ano em que Carmen começou a
foi tranquilo. Era uma criança saudá-
estudar canto lírico.
vel físico e emocionalmente. Em se-
tembro de 1973, com um ano de idade A arte do canto ajudou-a muito na
ela foi presa e levada ao DOI-CODI superação dos seus traumas de in-
juntamente comigo e meu esposo. fância. Porém, em diversos momen-
No DOI-CODI, retiraram Carmen do tos da vida, ela precisou recorrer a
meu colo e a levaram para longe de tratamentos psicoterápicos.
mim. Iniciou-se um verdadeiro infer-
no. A violência física, a pancadaria, os Quando engravidei de Maria, em
pontapés, as palmatórias, os choques 1975, foi uma grande alegria, pois vi-
eram terríveis, mas nada se compara- víamos um luto pela perda dos com-
A mãe, Elzira (ao centro) e suas filhas, Carmen (à esquerda) e Maria (à direita)
va ao desespero diante da ausência panheiros queridos. Ela foi a vida
de minha filha. Eu não sabia onde ela nova que surgia. Ela nasceu, em mar-
se encontrava, o que estavam fazendo com ela e ço de 1976. Logo depois, desenvolvi
se ainda estava viva. devido ao precário estado de saúde no qual me um quadro de intensa melancolia. Chorava muito
encontrava. Ao vê-la senti que estava muito dife- e logo recomecei a trabalhar profissionalmente,
Os torturadores diziam que não mais desapa- rente: nervosa, inquieta e insegura. pois a sobrevivência exigia.
reciam com crianças. Pediam que me acalmasse!
Alucinada, pensava que poderiam torturar minha Nos anos subsequentes, Carmen teve inúme- A cidade de São Paulo, da qual havia me au-
filha para que eu revelasse nomes de companhei- ras convulsões resistentes a medicamentos; qua- sentado desde a saída da prisão, me fazia lem-
ros. “Não, não falo nada”, eu pensava “... Mas eu dro que perdurou até os 7 anos de idade. Aos 5 brar muito dos companheiros, dos encontros, dos
escolhi essa luta, e ela tem apenas um ano de anos, ela foi encaminhada pelo neurologista para pontos. Além de termos o telefone censurado, a
vida... Eu a amo mais do que tudo... ”. uma psicóloga que, após algumas sessões, me imprensa censurada, hospedamos um compa-
chamou para revelar que minha filha tinha um nheiro que saiu da prisão. O ambiente era muito
Foram os mais terríveis dias de minha vida. sonho que se repetia: contava que estava em meu tenso. A Carminha continuava a ter crises con-
Eu quase enlouqueci. Não sei quanto tempo colo, chegavam policias, tiravam-na de mim e a vulsivas. Era uma vida muito difícil. Maria era
se passou até que o comandante Brilhante Us- levavam embora. A psicóloga pediu que eu con- uma criança que chorava muito. Se não fosse o
tra veio até a cela e contou que havia entregue tasse todo o ocorrido para Carmen. Eu e meu es- carinho do pai... Felizmente hoje é psicóloga e
Carmen para minha irmã mais nova, Rosane, poso Licurgo achávamos que falar para Carmen professora universitária. E se entende também
que também estava presa e seria liberada. tudo que ocorrera poderia ser muito traumático; como vítima da ditadura.

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Reconstruindo Gildo
por Tessa Moura Lacerda

Meu nome é Tessa Moura Lacerda. Eu sou aos dirigentes da Ação Popular e, portanto, ao nem ela sabia. Na verdade, isso foi uma fanta-
filha da Mariluce Moura e do Gildo Macedo meu pai, e como ele foi morto. Eu disse à mi- sia que eu fiz quando tinha uns 9, 10 anos.
Lacerda. Ambos foram presos em outubro de nha mãe: “Bom, pelo menos a gente tem certe-
1973. E três dias depois meu pai já estava as- za de que ele está morto”. E ela ficou chocada: Creio que isso se deve também à ausência
sassinado. Minha mãe permaneceu presa grá- “Como você não tinha certeza? Eu recebi os do corpo, o fato de não haver um túmulo, qual-
vida de mim por 42 dias. objetos dele”. quer coisa para fazer o rito, aceitar minima-
mente que aquela pessoa está de fato morta.
Durante a minha infância, eu me lembro Uma coisa que falei no filme 15 Filhos e que é
de ter perguntado, aos 6 anos: “Mãe, conta de absolutamente pirante é, por um lado, eu ten-
novo a história de Gildo?” Isso significa que eu tar imaginar como meu pai era e, por outro,
já sabia da história. Depois, ela me contou que aceitar que isso que eu imaginei morreu.
falava sobre isso em casa desde meus 2 anos
de idade para que eu ficasse conhecendo a his- Tanto a vida dele, que vou reconstruindo por
tória do meu pai biológico, já que ela tinha se meio de conversas, poucas fotos, mas sobretu-
casado de novo. E depois de alguns anos pas- do a morte de maneira brutal, cruel, e o fato
sei a chamar esse segundo marido dela de pai. de não ter um corpo para que eu faça o rito
mesmo, aceite, faça o luto por essa morte, são
Esse momento foi de muita emoção, nós cho- muito inefáveis.
ramos muito, e eu tentei, com os instrumentos
que uma criança de 6 ou 7 anos tem, recons-
truir a minha história. Eu desenhei como de
fato é a minha história, como gostaria que ti- Na época em que o Fernando Henrique acei-
vesse sido e como poderia ter sido – desenhei tou fazer a Lei 9.140 em 1995, por meio da qual
minha mãe grávida no enterro do meu pai e o Estado reconhecia a responsabilidade pelas
isso nunca aconteceu. mortes de mortos e desaparecidos políticos,
nós participamos de várias reuniões da Co-
É muito duro falar desse assunto. Foram missão de Familiares de São Paulo, e também
poucos os momentos da minha vida em que Eu, aos 9, 10 anos, tinha esperança de que de Minas, porque meu pai é mineiro. Tivemos
falei disso. O filme 15 Filhos foi um desses mo- Gildo tivesse conseguido fugir. Acho que aos acesso a cópias de cartas e cadernos. Eu tinha
mentos, e hoje também. Quando eu tinha 15 15 anos eu ainda não tinha desfeito essa fanta- 20 anos e li avidamente tudo que chegava.
para 16 anos, tive uma conversa com a minha sia, queria acreditar que ele tinha conseguido
mãe. Tinha saído uma notícia no Jornal do fugir. Como a ditadura foi até 1985 (ano em A Comissão de Familiares de Pernambuco
Brasil que explicava como a ditadura chegou que completei 11 anos), eu achava que essa era também mandou um dossiê com a descrição
a justificativa para que ele não tivesse apareci- da morte. Minha mãe disse: “Você não vai ler
do. Minha mãe jamais me sonegou essa infor- isso”, porque queria me preservar. Mas eu li
À esquerda, Tessa aos dois anos, com Mariluce, grávida
da segunda filha, Elisa, Rio de Janeiro, 1976 mação. Jamais. Mas eu não queria acreditar. avidamente, para tentar reconstruir Gildo. E
Acima, Gildo, aos 23 anos, 1972 Eu queria acreditar que ele estava vivo e que a minha história. E mais recentemente acha-

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mos que mesmo com a Lei 9.140, deveríamos via só o nome da minha mãe e dos meus avós advogada, o processo sempre tem de ter al-
processar o Estado brasileiro pela morte de maternos. guém que se acusa. E não poderia ser o Estado
Gildo. Esse foi outro momento em que entrei porque um processo de investigação de pater-
em contato com minha história. E por suges- E isso criou situações constrangedoras, nidade não se faz contra o Estado. E quem ti-
tão do advogado fiz uma perícia psicológica. além de ser horrível para mim: “Como assim nha de ser réu nessa ação tinha que ser a mãe
Achei o resultado muito interessante, porque a não ter um pai nem na certidão?” Quando eu de Gildo, o que era uma situação surreal. Ela
psicóloga disse que não há nenhum dano que fui ficando mais velha, fui percebendo olha- concordando com tudo, dando declarações de
tenha me impossibilitado de viver e de gozar res, situações constrangedoras por não ter o que Tessa era neta dela sim, mesmo assim ti-
da vida e ter alegrias. Mas como paira sempre nome do meu pai na certidão. Como se eu não nha que ter um processo. E esse processo demo-
essa sombra para mim, o que ela via refletido tivesse pai mesmo. E para que eu obtivesse o rou muito tempo.
na minha personalidade era insegurança, bai- nome dele na minha certidão, juridicamente
xa autoestima, enfim, uma série de coisas as- foi necessário que a minha mãe processasse a
sim… Medo. Eu tenho muito medo sempre. Eu família do meu pai para que eles reconheces-
não durmo de luz apagada. Sempre tem que ter sem a paternidade. Nasci em Salvador em junho de 1974. Minha
alguma luz acesa. E agora com os filhos é muito mãe se mudou para o Rio quando eu tinha
fácil dizer: “Tem de deixar a luz acesa. E se eles “Até os 18 anos, eu não 2 anos. Depois voltamos para Salvador, onde
ficamos até eu ter 9 anos. Depois nós fomos
quiserem ir ao banheiro de madrugada?” Mas
são coisas que eu carrego desde a infância. tinha o nome do meu pai para o Rio e, com 11 anos, nos mudamos para
Brasília; e com 14 para São Paulo. Desde en-
na certidão de nascimento tão eu moro em São Paulo. Tenho dois irmãos.
porque ele já estava Uma irmã e um irmão mais novos do que eu,
Eu tenho uma relação ambígua com essa his- que são filhos do meu padrasto, do meu pai
tória porque como ela é muito difícil, a minha morto quando nasci. não biológico.
sensação é que eu não consigo encará-la sem- No documento havia Meu nome foi escolhido pelo Gildo. Minha
pre de frente. Há alguns momentos em que eu
paro e falo: “Agora eu preciso resolver isso”. E só o nome da minha mãe conta que eles estavam em uma viagem.
Ele a levava para conhecer a família dele em
não é uma coisa que “Ah, então está resolvido,
deixei para trás”. Eu invejo quem consegue le-
mãe e dos meus avós Minas. E durante a viagem falaram: “Se tiver-
var a vida totalmente se dedicando a essa his- maternos” mos um filho com a, que nome você gostaria?”
tória. Mas a minha maneira de lidar com ela é “Se fosse menino... se fosse menina...”, com b,
nem sempre encará-la de frente. Nem sempre Não que eles não reconhecessem antes dis- com c... Com t, ele falou “Tessa”, aí ela falou,
ficar falando sobre, porque é muito duro. Eu so, mas juridicamente era necessário. Isso “Gostei desse nome”.
gostaria de ter a coragem de pautar a minha também para mim era bastante estranho, Quando ele foi morto, ela estava com um
vida por isso e expor mais essa história. processar a minha tia, a minha avó e tal, ser mês e pouco de gravidez, mas eles tinham tido
contra elas para ter o nome do meu pai na cer- essa conversa anterior. Inclusive isso foi uma
tidão. E, então, tive o nome dele só aos 18 anos. coisa que me levou a pensar “ele não pôde ser
Sem a certidão eu não podia fazer o RG, e não meu pai”. Se eu tivesse alguma queixa, algum
Depois de todo esse percurso, eu fui estudar podia prestar o vestibular. Eu fiz o vestibular
filosofia. Fiz toda a minha formação em filo- sentimento infantil de raiva, ou qualquer coi-
com 18 anos. O meu aniversário é em junho e sa assim, é impossível que eu tenha qualquer
sofia, virei professora e em 2011 fizemos um foi uma correria para fazer o RG.
colóquio na USP em homenagem à professora sentimento desses em relação a ele.
Marilena Chaui, com quem eu trabalho e que [Neste momento, a mãe de Tessa, Mariluce
também é uma pessoa que me cobra uma pos- Moura, interrompe e diz:]
tura em relação à minha história. Só esclarecendo esse detalhe da certidão: O atestado de óbito que conseguimos foi
quando eu casei com o Gildo, ele estava usan- por meio da Lei 9.140, mas ainda não consta a
Eu consegui fazer um texto sobre a filoso-
do o nome da clandestinidade, que era Cássio causa mortis.
fia política de Espinosa. Um texto acadêmico,
de Oliveira Alves. Havia uma certidão nossa
mas falando da história de Gildo. Isso para
de casamento e da igreja. Como casamos na Gildo também nunca constou na lista dos
mim foi uma grande vitória. É um texto de
igreja, isso poderia ser reconhecido pelo Esta- desaparecidos. Por isso que a minha mãe ficou
quinze páginas, é pouco, mas foi a maneira
do, mas não com nome falso. E quando fiquei chocada quando eu disse: “Agora nós temos
que consegui trabalhar nisso.
viúva, era viúva de um homem que não tinha certeza”. Porque na época da morte, foi divulga-
atestado de óbito e, portanto, o homem não era da a versão falsa, os teatros da ditadura, no Jor-
morto. Então, eu tive de registrar só com o meu nal Nacional, no Jornal do Brasil, no Le Monde.
Até os 18 anos, eu não tinha o nome do meu nome e entrar com um processo de investigação
pai na certidão de nascimento porque ele já es- de paternidade. Só que ao fazer o processo de A morte foi divulgada como se fosse um
tava morto quando nasci. No documento ha- investigação de paternidade, segundo a minha tiroteio no centro do Recife, às seis horas da

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tarde, naquele movimento de pico e ninguém o corpo, nem túmulo, nem jamais vai ter direi- “Jamais eu vou
viu nada. Meu pai Gildo e o José Carlos da to de fazer o luto de maneira decente”. Isso eu
Mata Machado teriam sido levados para um não aceito. Não dá. Por isso que eu não acho tão abandonar essa
encontro com um terceiro, que não é nomeado,
e esse terceiro teria percebido a emboscada.
absurdo para uma criança de 9 anos imaginar:
“Quem sabe o meu pai fugiu para fora do país”.
história, nem se eu
E ele teria atirado no meu pai, que morre no quisesse eu poderia
E o mais difícil é saber que não dá mesmo. A
local, e o Zé Carlos fica ferido. Não só a ver-
são oficial encobre a morte sob tortura como sensação que fica é que, com todas as aspas, é dar as costas para a
ainda meu pai morre como se fosse traidor do uma história que não fecha. Não é justo. Não
é justo com ele. Não é justo com os pais dele.
história do meu pai,
companheiro.
Não é justo com a minha mãe. Não é justo co- para a história do
Quando isso aconteceu, minha mãe estava
presa. Ao sair, ela tentou reaver o corpo. Dizia-
migo. Não é justo com os meus filhos. Não é
justo com ninguém.
Brasil. Mas eu queria
-se que seria menos difícil reaver o corpo de
Na Grécia Antiga, Sófocles escreveu a tra-
– e aí é a criança
Gildo porque ele tinha um metro e 92 centí-
metros de altura. Mas a investigação da Co- gédia Antígona, que mostra toda a questão que está dizendo –
missão de Familiares de Pernambuco apurou do corpo insepulto. É uma necessidade do ser
humano de sepultar seus mortos, fazer o luto,
enterrar o meu pai”
que primeiro seu corpo estava em um caixão
lacrado, mas depois foi jogado em uma vala fechar o ciclo em certo sentido. Jamais eu vou
comum chamada Buraco do Inferno, e depois, abandonar essa história, nem se eu quisesse eu
poderia dar as costas para a história do meu lei proibindo que ex-torturadores, em geral,
seus restos mortais foram transferidos para
pai, para a história do Brasil. Mas eu queria – e ocupem cargos públicos. Eu não queria uma
outra vala comum, no cemitério Parque das
aí é a criança que está dizendo – enterrar o meu vingança pessoal. Meu pai não deu a vida por
Flores, lá no Recife. E, nessa, as ossadas fica-
pai. Não adianta me explicar cientificamente algo individual. Ele deu a vida pela democra-
ram a céu aberto, os ossos foram se deterio-
que não dá. É muito doloroso. cia. Democracia brasileira e latino-americana.
rando. Ficamos sabendo disso mais ou menos
Eu quero uma responsabilização pública.
na época da Lei 9.140. Mais doloroso ainda do que saber que a mi-
Temos essa informação, mas mesmo assim nha mãe foi torturada comigo dentro da barri-
é muito duro. Não sabemos se há a possibili- ga e me perguntar até que ponto essa tortura TESSA MOURA LACERDA nasceu em Salvador, em
dade de identificação por meio de exame de me atingiu. Sei que ela se preocupou muito com 18 de junho de 1974. Filha de Mariluce Moura e Gildo
DNA. Inclusive, eu contribuí com uma amos- isso na época. Na época não, sempre, mas en- Macedo Lacerda, é professora de Filosofia na USP, casa-

tra de sangue para o banco de DNA do go- fim... E eu fui fazer exames e tal, eletroencefalo- da e mãe de três filhos.

verno federal. O que sabemos é que, por ser grama. Fiz de novo, já adulta, já casada, porque
uma vala a céu aberto, a identificação da os- eu estava vendo uns flashes. Só contei para a
sada é inviável. Sabemos disso. (Pelo menos minha mãe depois, para ela não ficar preocupa-
é a informação que tínhamos na década de da. Não tinha nada.
1990). Mas esse saber racional não tira a dor Para mim, a maior dor é não poder enterrar
daquela criança que queria falar: “Eu sei que o meu pai. Mais do que qualquer dor física que
não dá, mas eu quero enterrar meu pai”. Eu eu tenha sofrido sem saber e que, de alguma
quero levar os meus filhos [ao cemitério] e di- maneira, esteja lá no meu subconsciente, se é
zer: “Olha, o seu avô está aqui”. É claro que eu que eu tinha o subconsciente naquela época,
enchi a parede de minha casa com fotos de to- no embrião.
dos os nossos familiares, dos pais, dos avós e
bisavós dos meus filhos para que eles vejam e
entendam e reconstruam, e saibam que, além
dessas pessoas com quem eles convivem, têm Eu nunca quis ir atrás dos torturadores. No
um avô que eles nunca vão conhecer. Então, começo não sabia muito bem o porquê, mas
saber racionalmente que isso é impossível, depois eu fiquei pensando, e entendi que é
não adianta. É muito duro. porque eu não queria saber o rosto dessas
Eu fico pensando também nos meus avós, pessoas. Acho que todas devem ser punidas,
pais de Gildo, o quanto deve ter sido duro para mas elas não estavam isoladas; era uma ação
eles, que morreram sem ter enterrado o filho. do Estado, então o Estado como um todo e to-
dos os membros daquele Estado precisariam
O máximo que eu posso fazer é dizer para ser responsabilizados. Eu queria que as Forças
mim mesma: “Está bem, o meu pai está mor- Armadas brasileiras não tivessem o poder que
to”. Mas não dá para dizer “Você nunca vai ter elas ainda têm e acho que deveria existir uma

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1 2 3 4

1. O menino Gildo
2 e 3. Aos 18 e 19 anos, respectivamente
4. Mariluce, aos 19 anos, na Chapada da
Diamantina (BA), durante uma reportagem
5. Fichas de Gildo nos órgãos de repressão
6. Gildo carregando o sobrinho Marcelo Moura
Perdigão, filho da irmã de Mariluce, em 1973
7. Mariluce com Tessa bebê, agosto de 1974,
Salvador (BA)

6 7

foi orador oficial da União Estudantil uma próxima ida a Uberaba, no fim do mês (o que, de
Uberabense (UEU) e do Partido Unifica- fato, ocorreu); despedindo-se com um até breve.
dor Estudantil (PUE). Gildo e Mariluce foram presos em 22 de outubro de
Em 1967, já como ativista da Ação Po- 1973, em Salvador. Apanhado na Avenida Luiz Tarquí-
pular no movimento estudantil, Gildo nio, perto da Igreja do Bonfim, Gildo foi conduzido à
transferiu-se do Colégio Dr. José Ferreira Superintendência da Polícia Federal, onde passou a
para Belo Horizonte (MG), onde concluiu tarde e parte da noite juntamente com Mariluce (que
o segundo grau. Em 1968, ingressou na ali o viu pela última vez) e outros presos. No dia seguin-
Faculdade de Ciências Econômicas te Gildo foi levado ao Quartel do Barbalho, do Exército,
(Face) da UFMG. Foi preso no Congres- e imediatamente conduzido às câmaras de tortura. Gil-
so da União Nacional dos Estudantes do foi transferido em 25 de outubro para o DOI-CODI do
(UNE) em Ibiúna, em outubro de 1968. IV Exército, no Recife, onde foi torturado até a morte,
Foi vice-presidente da UNE na gestão de em 28 de outubro de 1973.
Honestino Guimarães (1971-1972).
Gildo Macedo Lacerda nasceu em 8 de Deslocou-se, no primeiro semestre de 1972, para
julho de 1949, em Ituiutaba, município de Veríssi- Salvador, Bahia, como um dos dirigentes regio- Mariluce de Souza Moura nasceu em 3 de
mo (MG), filho de Agostinho Nunes Lacerda e Justa nais da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). novembro de 1950, em Salvador (BA), na quarta posição
Garcia Macedo Lacerda. Morto em 28 de outubro de Nesse mesmo ano, em outubro, casou-se com entre os 11 filhos de Laerte de Souza Moura e Regina
1973. Militante da Ação Popular Marxista-Leninista Mariluce Moura. Nilza Moura. Iniciou sua militância em 1968 e foi mili-
(APML). A sua última carta para os familiares foi datada de 17 tante da organização Ação Popular (AP) entre 1968 a
Mudou-se muito cedo com sua família para Uberaba de setembro de 1973, na qual manifestou sua preocu- 1973. Estudou o ginásio e o colegial no Colégio de Apli-
(MG). Estudou no Colégio Triângulo, Escola Normal e pação por não receber cartas da família, acreditando cação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), jorna-
Colégio Dr. José Ferreira, onde foi presidente do Grê- em extravio de correspondência. Falou, ainda, de seu lismo na UFBA, fez mestrado e doutorado em comuni-
mio Central Machado de Assis. Ainda secundarista, trabalho, do salário melhor, da saudade de todos e de cação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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8 9 10

12

8. Tessa aos seis meses,


em Salvador (BA), 1974
9. Tessa aos 2 anos,
no Rio de Janeiro (RJ)
10. Aos 4 anos, em
Salvador (BA)
11. Tessa e os irmãos Elisa
e Tiago, em Brasília (DF), em 1985
12. Durante audiência sobre o
pai, na Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo “Rubens 11
Paiva”, em 2013

Conheceu Gildo em 11 de junho de 1972 e casaram-se ras, onde tenta, pela ficção, recuperar o
pouco mais de quatro meses depois, em 28 de outu- sofrimento da morte de Gildo e o amor
bro de 1972. Trabalhava no Jornal da Bahia e na sucur- que os uniu.
sal de O Globo quando percebeu que estava sendo A certidão de nascimento de Tessa le-
vigiada. Quando de sua prisão em 22 de outubro de vou quinze anos de luta judicial para
1973, mesmo dia em que ocorreu a prisão de Gildo, incorporar o nome do pai. Nunca Mari-
foi levada para a sede da Superintendência da Polícia luce, Tessa e os pais de Gildo puderam
Federal, na Praça Cairú, centro de Salvador, e no dia enterrar seu corpo.
seguinte para o Quartel do Forte de São Pedro.
Em 1975 Mariluce casou-se novamente, com Rico
Durante uma das sessões de torturas no Quartel Marconi, com quem teve outros dois filhos, Elisa
do Barbalho na noite de 25 de outubro, data presumi- e Tiago.
da da transferência de seu marido desse mesmo quar-
Desde 1969 Mariluce trabalhou nas redações de
tel em Salvador, para Recife, ouviu de um dos tortu-
alguns dos mais importantes veículos impressos
radores, sem poder ver quem falava porque tinha os
do país, incluindo O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta
olhos vendados, que “Gildo foi levado para uma lon-
Mercantil, Exame e IstoÉSenhor. Foi editora-chefe
ga viagem”. Em 1º de novembro o capelão do Exército
da Revista Brasileira de Tecnologia, do Conselho Na-
em Salvador (VI Região Militar) levaria à sua cela um
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
jornal com a notícia fantasiosa sobre a morte de Gil-
(CNPq). Iniciou a implantação do setor de comuni-
do num tiroteio no Recife, em 28 de outubro – data
cação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
presumida de sua morte sob tortura em dependên-
de São Paulo (FAPESP), concebeu e desenvolveu o
cias do Exército.
projeto da revista Pesquisa FAPESP e é sua diretora
Mariluce foi libertada em 3 de dezembro de 1973 e a de redação. Lançou em maio de 2014 a revista Bahia
filha do casal, Tessa, nasceu em 18 de junho de 1974. Ciência e iniciou em agosto a implantação de seu pro-
Em 1982, Mariluce lançou o livro A Revolta das Vísce- jeto Ciência na rua. Tem três filhos e cinco netos.

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Ser mãe na ditadura: alguns percursos
por Mariluce Moura

I ritos de nossa cultura. Mas Tessa nasceu, linda, que isso ocorreu por determinação do Ministé-
forte e saudável, em 18 de junho de 1974, e com rio da Educação, em razão de eu ter sido presa e
A tortura é sempre vil, destruidora, acachapan-
ela nasceram para mim, ainda bem, experiências ter respondido a processo na justiça militar. Em
te, aniquiladora – espécie de terror inalcançável
profundas de natureza inteiramente diversa. 2008, a Universidade me entregou o documento
pela inteligência de quem a sofre. A tortura sobre
que comprova a arbitrariedade). Não havia tem-
o corpo de uma mulher grávida é tudo isso, não
po hábil para recuar dos planos e segui em frente.
em dose dupla, mas elevada a uma potência im- III Como sempre fazia nas curtas viagens de traba-
possível de determinar em termos matemáticos.
Qual é o momento certo para revelar a uma lho, deixei Tessa com minha mãe, que a adorava e
Sim, ela atinge imediatamente dois âmbitos bio-
criança a morte trágica do pai, ocorrida bem an- a quem ela era profundamente ligada. Nessa épo-
lógicos vinculados, um ser e um vir-a-ser. Mas,
tes de seu nascimento, e de cujas reais repercus- ca, meu pai lutava contra um câncer de pulmão e
porque esse ainda inconsciente vir-a-ser sequer
sões sobre sua constituição psíquica, emocional, o clima da casa da família, tristonho, difícil, certa-
pode saber de onde surgem esses tremores ter-
afetiva, a rigor ninguém sabe? Como igualmente mente tornou mais dura ainda para Tessa, então
ríveis, esses espasmos assombrosos do corpo-
não se sabe da influência de um luto prolongado, com um ano e oito meses, essa separação de mim
-lugar em que está aninhado – a alterar para sem-
ainda que aparentemente domado, da mãe sobre por três semanas. Hospedada com um casal ami-
pre a tonalidade dos eventos no ambiente que o
as estruturas em formação da pessoa-filho (neste go, enquanto tentava resolver os trâmites para
abriga e onde surgirão suas primeiras e mais pri-
caso, filha). Tessa soube que o seu pai tinha mor- o aluguel de um apartamento, voltei a Salvador
mitivas percepções –, o impacto, a dimensão da
rido antes mesmo de completar 3 anos. para pegar Tessa antes mesmo da resolução das
violência da tortura sobre ele permanecerá nas
pendências quando soube que a equipe médica
alturas de uma potência imensurável.
Estávamos, no final de 1976, de volta a Salva- que operaria meu pai, no Hospital das Clínicas
II dor, depois de uma estada de nove meses no Rio da UFBA, fechara seu tórax sem fazer a cirurgia.
de Janeiro – aqueles eram tempos de buscas um O câncer no mediastino era inoperável àquela al-
Compartilhar os dados do desenvolvimento in- tanto erráticas. Eu fora para retomar em parte o tura. Compreendi que ele estava no fim de sua
trauterino de um bebê costuma ser gratificante plano que fizéramos juntos, Gildo e eu, antes de vida. Morreria no começo de maio, a dois meses
experiência amorosa para um casal que se enga- todo o horror de outubro de 1973: mudar para o e meio de completar 59 anos.
jou conjuntamente na geração desse ser novo. Rio de Janeiro, onde ele seguiria trabalhando
Mas a vivência tão simples e feminina de contar sob falsa identidade até que algum evento lhe Voltei ao Rio com Tessa e com Rino Marconi,
ao parceiro o que disse o médico sobre o tama- permitisse deixar a clandestinidade e retomar colega de faculdade e de trabalho, com quem ini-
nho e o peso do bebê ou sobre a força de seus uma plena existência legal, enquanto eu faria o ciara uma nova relação no final de 1975. Ele se
batimentos cardíacos, poeticamente atestada por mestrado na Universidade Federal do Rio de Ja- tornaria de fato meu segundo marido. Hospeda-
um frio estetoscópio de Pinard em tempos sem o neiro (UFRJ) e cuidaria de desenvolver a carreira dos ainda com o casal de amigos, Bernard Van
realismo das ultrassonografias, foi mais uma en- jornalística num mercado de trabalho mais pro- der Weid e Célia Pope, ficamos naqueles primei-
tre tantas possibilidades cortadas de meu percur- missor que o de Salvador. Nossa prisão em 22 de ros dias cariocas assustados e preocupados com
so de vida pela ditadura. Entre dezembro de 1973 outubro e seu assassinato, provavelmente em 28 os pesadelos que invadiam o sono de Tessa e a
e junho de 1974, saí a cada mês do consultório do de outubro, cortaram esse e todos os planos de levavam a acordar aos gritos no meio da noite.
gentil e protetor doutor Elias Darzé, respeitado vida, todos os sonhos, que tínhamos. Entretanto, Cerca de uma semana mais tarde, conseguimos
professor de obstetrícia da Faculdade de Medi- em julho de 1975 tornei-me por concurso profes- mudar para nosso apartamento e seu reencontro
cina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sora da UFBA e, poucos meses depois, decidi, in- com objetos familiares – sua cama, seus brinque-
vivendo, em paralelo à alegria de saber que o centivada pela própria Universidade, candidatar- dos, os móveis levados de Salvador – e mais a ro-
bebê seguia forte e saudável, a aridez extrema, a -me ao mestrado na UFRJ. Passei na seleção e tina restabelecida com a ajuda da babá que che-
solidão infinita de um silêncio imposto e intrans- comecei a preparar a mudança para fevereiro de gara da Bahia tiveram sobre ela um rápido efeito
ponível à partilha dessa alegria a quem ela mais 1976. Solicitei transferência de trabalho da sucur- tranquilizador.
de perto falaria e contagiaria, ou seja, o pai. Eu sal baiana para a sede de O Globo (meu contra-
seguia do consultório para a sucursal do jornal Eu soube que estava grávida novamente pouco
to com a Universidade era de tempo parcial, eu
onde trabalhava transitando pelo indecifrável de antes da rápida ida a Salvador. Vivi num ritmo pe-
seguia trabalhando em jornal no outro turno) e
uma súbita inexistência, pelo abismo de um de- sado aqueles meses, indo pela manhã às aulas do
tratei de tomar outras providências.
saparecimento, pelo incompreensível assassina- mestrado na UFRJ, voltando para almoçar em casa
to de Gildo, meu marido, aos 24 anos, sobre mim A poucos dias da mudança para o Rio, a UFBA e seguindo depois para o jornal, onde a jornada ia
atirado sem informações verdadeiras, sem dados, me informou que meu contrato não interessava à das duas da tarde até quase meia-noite. Rino de-
sem corpo para enterrar e prantear segundo os instituição, portanto, eu estava demitida (soube dicava, então, mais tempo do que eu a Tessa. Mas

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comecei a ter vários episódios de pressão baixa e que Aída antevira: alguns dias depois de inicia- V
tonturas durante a gravidez, o que me levou a li- da essa estratégia, nós duas jantávamos, quando
cenças seguidas, bem como me permitiu estar Tessa me perguntou onde estava Gildo. Eu segui É muito difícil mensurar, para além da ausên-
mais com Tessa, o que eu achei um ótimo efeito o roteiro que já tinha em mente e ao final ela me cia do pai, o significado da falta do nome do pai
colateral desse processo. disse: “Então, eu também escolho Rino como em uma certidão de nascimento e em outros do-
pai”. Ela falava muito bem, de forma muito arti- cumentos de identidade para quem carrega tal
Voltamos a Salvador no começo de novembro culada e clara. Na manhã seguinte, sentados na situação. É difícil compreender a repercussão
de 1976, a família ampliada com o nascimento de mesa do café da manhã, em vez de chamar Rino dessa falta nas formas como uma criança, depois
Elisa em 29 de outubro. Deveríamos permanecer de Rininho, como fizera até então, disse-lhe: “Pai, adolescente, mais adiante jovem adulto, se move
pelo período de minha licença e férias, mas Rino me dê a manteiga”. Foi com espanto e emoção no mundo e experimenta dificuldade em se apro-
propôs ficarmos de vez porque sua situação de que ele reagiu à unção inesperada. Em tempo: o priar de seu direito pleno de existir, de se exercer
trabalho no Rio era desconfortável. Com alguma eletroencefalograma de Tessa não apontou ne- livre e vigorosamente como sujeito. É difícil per-
relutância, dados meus interesses profissionais e nhuma alteração em relação ao padrão. ceber o sentimento de diferença, talvez de infe-
acadêmicos, aceitei. Foi então que matriculamos rioridade, que esse buraco de informação é capaz
Tessa na Barca D’Alva, escola que iniciara uma IV de acionar. A certidão original de Tessa não tinha
experiência singular de educação de crianças o nome do pai. Teriam sido necessárias uma cer-
em Salvador, baseada em teorias de Piaget e de Quando Tessa tinha entre 6 e 7 anos e eu es- tidão de casamento civil e uma certidão de óbito
Célestin Freinet, mas fortemente influenciada tava grávida de Tiago, a casa em reforma para para que o registro de nascimento pudesse ter
pelas ideias educacionais mais recentes de Agos- abrir espaço a esse novo bebê e Rino usando sua sido imediatamente feito com o nome também
tinho da Silva, de Darcy Ribeiro e, talvez, embo- habilidade para construir os objetos que o preen- do pai morto. Não havia nem uma nem outra.
ra menos claramente, de Anísio Teixeira. Certo cheriam, ela expressou por diferentes meios um Gildo e eu nos casáramos no religioso, ele com o
dia Glória Carvalho e Aída Vieira, as criadoras à intenso conflito emocional em relação ao pai e a nome de Cássio de Oliveira Alves, que usava nos
frente da escola, chamaram-me para conversar seu próprio lugar junto a esse pai, já que havia documentos da fase final da clandestinidade – e
porque despertavam a atenção delas alguns mo- Elisa e haveria Tiago. Numa das vezes em que foi da vida. E era esse que constava de nossa certi-
mentos de distanciamento de Tessa em meio às mais longe nessa expressão, juntando fala, lágri- dão de casamento religioso. E a ditadura, embora
atividades que desenvolvia com outras crianças. mas e movimento corporal, ela dizia, dirigindo- tenha anunciado a sua morte num documento
-se simultaneamente a mim e a Rino, que tentava cheio de falácias, não fornecera atestado de óbi-
Aída, que era psicóloga e já estava razoavel- abraçá-la: “Eu quero que você seja meu pai, mas to nem devolvera seu corpo, o que longamente o
mente informada sobre os percalços que enfren- eu não quero que você seja meu pai, eu queria lançou à condição de desaparecido. Só em 1997
tamos e enfrentávamos, acreditava que Tessa se que Gildo estivesse vivo!”. Em 1979 ela viajara nos seria entregue uma certidão de óbito, com
deparava nesses momentos com um “um grande conosco para Minas, encontrara os parentes pa- a estranha declaração de “morto nos termos da
buraco de informação”. Ela já estivera em Minas, ternos, participara da filmagem do documentá- lei...”. Ou seja, uma não causa mortis.
conhecia os avós paternos, vira algumas raras fo- rio Anistia, proposto por Rino (e realizado por
tos de Gildo que eu tinha, me ouvira falar dele, ele junto com Agnaldo Siri Azevedo e Timo Um processo de investigação de paternidade
mas não sabia onde estava essa pessoa – era uma Andrade), depois vira o filme em 1980. Soube- teve que ser movido por mim contra a família de
abstração inalcançável. Ao mesmo tempo em ra do livro que eu estava escrevendo e soubera Gildo (de comum acordo) para que Tessa tives-
que concordou comigo quanto à necessidade de que tinha relação com Gildo. Mais tarde partici- se o nome do pai. Longamente ele se arrastou na
um eletroencefalograma, já que a mãe fora víti- paria intensamente do lançamento desse livro. Justiça e, finalmente, teve julgamento favorável
ma de torturas, inclusive choques elétricos, no Eu sentia sempre tamanha delicadeza na forma no dia em que ela completou 15 anos. No entanto,
começo da gravidez, propôs-me uma estratégia como as coisas evoluíam que jamais me via se- a certidão, o documento em si, só chegou às mãos
de comportamento: que passássemos a falar nor- gura da mãe que devia ser em relação a esse dela quando acabara de completar 18 anos. Um
malmente de Gildo nas situações cotidianas em tema da morte/desaparecimento do pai. Jamais ciclo se fechara. E uma dolorosa história perma-
sua presença. Aída disse-me que tinha certeza de senti meus pés sobre um chão firme lidando com nece em aberto enquanto não forem esclarecidas
que ela logo iria me perguntar onde estava Gil- esse repertório tão complexo de emoções, as de todas as circunstâncias da morte de Gildo, devol-
do. E então eu falaria da morte – e diria também Tessa e as minhas mesmo. No fundo, eu só sabia vidos à família seus restos mortais e punidos os
que Rino a escolhera como filha ao me escolher ser a mãe que eu de fato era, corporificada pela responsáveis pelo crime. Estamos hoje diante de
para ser sua mulher. As coisas se passaram en- mulher um tanto reservada nas expressões afeti- quarenta anos de desinformação e impunidade.
tão de forma impressionantemente próxima ao vas que sou.

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292 COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO “RUBENS PAIVA”

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por Igor Grabois Olímpio

Eu tenho 47 anos e passei toda a infância e nha de quatro em quatro meses cumprir tare- Quando se deflagra o Araguaia, logo em se-
adolescência no período da ditadura. De uma fas em São Paulo, então o meu convívio com guida essa casa do Jabaquara é abandonada e
certa maneira, me sinto próximo do que se ele foi nesse período. A última vez que eu o se consegue uma no Brooklin. É aí que as coi-
convencionou a chamar de geração de 1968, vi, foi em abril de 1971. Eu tinha de 4 para 5 sas começam a perder essa cara de normalida-
apesar de ter nascido em 1966, sem ter vivido anos e tenho lembrança nítida dessa última de. Em 1971, quando eu tinha 5 anos, a Victória
esse tempo histórico conscientemente, apenas vinda. Inclusive essa foi uma última recepção conseguiu uma certidão de nascimento para
meio que por tabela. familiar, quando houve uma grande reunião mim, como mãe solteira. Ela foi ao bairro de
na Praia Grande. Cascadura, no Rio de Janeiro, olhou uma casa,
Depois do golpe de 1964, o Maurício Grabois
anotou o endereço, número. Foi a um cartório
[avô de Igor, comandante da Guerrilha do Ara-
próximo e disse: “Eu vim registrar meu filho,
guaia], como é sabido, era dirigente comunista “A partir de abril de 1972, ele tem 5 anos, nasceu nesse endereço, em
dos mais importantes do Brasil e a persegui-
ção a ele se estendia a toda família. O Maurí-
eu passei a me chamar casa”, e mostrou o tal endereço.
cio era dirigente do PCdoB. Sua companheira, Jorge. Esse segundo nome, A partir daí eu passei a me chamar Jorge
minha avó Alzira também era militante do
PCdoB. Minha mãe, Victória; meu pai, Gilberto
essa segunda pele, durou de Freitas. Todos tinham nomes trocados. A
Victória chamava Tereza de Rosa Freitas, a
Olímpio e André Grabois [tio de Igor, irmão de oficialmente até 1982. minha avó Alzira nunca tirou documentos ile-
Victória] também eram militantes do PCdoB.
Então a família toda era quase que um comitê, De vez em quando, até gais, mas também não usava o nome Alzira,
era Dona Maria.
quase uma célula. hoje, quando alguém A partir de abril de 1972, eu passei a me cha-
Quando as crianças nasciam, era na clandes- chama por Jorge eu olho mar Jorge. Esse segundo nome, essa segunda
tinidade, ou seja, corriam esse risco. Em 1964,
1965, após o golpe, o PCdoB foi buscar áreas para trás” pele, durou oficialmente até 1982. De vez em
quando, até hoje, quando alguém chama por
para deflagrar a guerra popular contra o regi- Jorge eu olho para trás.
me, a guerrilha rural. Meu pai, e a minha mãe E o Maurício, meu avô, passava um período no
Victória eram responsáveis por prospectar al- Araguaia e outro período em São Paulo, exercen- Essa casa do Brooklin tinha uma função po-
gumas áreas. Então, eles foram para o interior do a direção do PCdoB num revezamento com o lítica. Ela não era só uma casa e vim saber isso
do Mato Grosso na cidade de Glória de Doura- João Amazonas. bem depois. O segundo andar era completa-
dos. E foi nessa busca que fui gerado. mente vedado a qualquer criança que porven-
A última vez que eu o vi, foi no reveillon de tura ficasse minha amiga, que fosse frequentar
Minha mãe não foi para a guerrilha porque 1971 para 1972. Também tenho lembranças níti- essa casa. Ninguém podia ter acesso ao meu
engravidou de mim. Foi por isso que ela se das dele que são anteriores às do meu pai. Me quarto. Mas quando eu ia na casa de outras
tornou uma não combatente do ponto de vista lembro do meu avô num apartamento que mo- crianças eu tinha acesso ao quarto delas.
armado. E entre 1966 e 1971, a vida tinha uma ramos do Ipiranga. Nesse período de 1966 a
certa aparência de normalidade. Meu pai vi- 1972, moramos em algumas casas. Primeiro, no E aí, com 6, 7 anos eu pergunto: “Cadê meu
Ipiranga. Depois, num apartamento no Paraíso, pai, cadê meu avô?” E como resposta, ouvia:
Igor com sua mãe Victória
Arquivo pessoal – Reprodução de onde tenho lembranças. Depois fomos morar “Ah, eles estão trabalhando, e o trabalho é fora
da Revista Brasileiros numa casa de cômodo no Jabaquara. de São Paulo, estão trabalhando”. Só que esse

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trabalho nunca permitia folga, era uma espécie O João Amazonas tinha verdadeiro pavor A notícia do desaparecimento do meu pai,
de trabalho eterno. Era uma desculpa e eles iam desse cachorro. Ele era proibido de entrar em do meu tio e do meu avô chegou em 1974,
enrolando. Funcionou durante um período, com casa e quando ele entrava o Amazonas corria quando o Amazonas trouxe as informações. O
7, 8 anos. E depois parou de funcionar. pelas escadas fugindo. Naquela situação de desaparecimento deles ocorreu com meses de
clandestinidade, o cachorro se converteu em diferença. Meu pai e o meu avô, foi no mesmo
No segundo andar dessa casa, no meu quarto um problema, porque a vizinhança reclamava, dia, 25 de dezembro. Natal de 1973. O André foi
particularmente, tinha uma parte da biblioteca ele latia e só duas pessoas conseguiam lidar em outubro. Isso também eu fui descobrir de-
do PCdoB, com as obras completas do Stalin, com ele, eu e minha avó. pois em conversas quando comecei a recons-
livros do Lênin, do Marx, do Mao, em francês
truir toda a cena.
e em espanhol, nunca em português. E não era E um belo dia aparece um cidadão com uni-
uma biblioteca com estante, não. Os livros fica- forme da Força Pública dizendo: “Vim buscar o Bem, a partir de 1977, 1978, eu já começo a
vam em um saco de viagem, que fechava com cachorro”. Foi mais um desaparecimento, mais chegar à conclusão que esse negócio de traba-
zíper. Em cima, iam três ou quatro camadas de um vazio nesse período. A desculpa era “O ca- lho era conversa fiada. Aí eu pensei: “Como é
jornal envolvendo grupos de volumes. E no ar- chorro vai treinar e volta”. Nunca mais voltou. que eu vou resolver esse mistério?”. A primeira
mário, em algum lugar intocado também tinha coisa que faço é abrir a biblioteca do PCdoB.
uma parte das finanças do PCdoB que ficavam “A notícia do Então, com 11 anos eu comecei a ler algumas
meio que escondidas ali.
desaparecimento coisas. Li Esquerdismo, a Doença Infantil do
Comunismo de Lênin e não entendi nada. Ti-
E nessa casa o João Amazonas vinha, de
quinze em quinze dias. A história de fachada do meu pai, do meu tio nha um livro em espanhol que era em conjunto
para a vizinhança era que ele era irmão da mi- e do meu avô chegou com chineses com soviéticos. Era um artigo
chinês, um soviético, louvando a unidade in-
nha avó Alzira, e que era meu tio José. A úl-
tima vez que o Amazonas esteve em casa foi em 1974, quando quebrantável da União Soviética com a China,
antes da queda da Lapa, em 1976. Depois ele o Amazonas trouxe a pretexto dos 90 anos do Lenin.
foi para o exílio. Foi mais uma figura masculina
que também desapareceu do mapa. Simples- as informações. Em 1978, foi relançada a coleção Os Pensa-
dores. Eu comprei um Marx, o segundo volu-
mente as pessoas iam literalmente sumindo O desaparecimento me, que tenho até hoje. É um volume meio afe-
do pedaço. Primeiro meu pai, depois o Maurí-
cio, depois o Amazonas. Então todas as figuras deles ocorreu com tivo. Então fui ler Salário, Preço e Lucro.
masculinas da família desapareciam. meses de diferença” Então, a partir de 1978, as perguntas come-
Vivemos oito anos nessa casa do Brooklin. çam a ser feitas e elas não são respondidas. Até
Na vizinhança, o que se ouvia era Roberto Car- A partir de 1976 foram desfeitos os dois últi- que um dia, em setembro de 1979, numa revista
los. No domingo, era Silvio Santos o dia inteiro mos contatos com o PCdoB que eram o João IstoÉ, tinha uma matéria: “Com Stalin no leme,
na tevê. Era aquele bombardeio de propaganda Amazonas e Elza Monnerat. O primeiro estava PCdoB volta à cena!” e uma baita foto do Ama-
do regime, via Silvio Santos, via Roberto Car- fora do país e Elza foi presa na queda da Lapa zonas, assim logo após a Anistia. Eu pensei:
los. Inclusive havia aquele anúncio: “Este é um [dezembro de 1976], aí se perde o contato com “Opa, conheço esse cidadão aqui da fotogra-
país que vai para frente”. o PCdoB e se perde o contato também com a fia”. Fui lendo e uma certa hora diziam: “Os que
família. Quem fazia a ligação com a família era fundaram o PCdoB, João Amazonas, Maurício
Eu era regularmente matriculado no ensino a irmã do Maurício Grabois, a Maria Grabois Grabois”. Tinha uma Grabois na parada como
oficial do Estado de São Paulo onde também que era uma médica no Rio de Janeiro. a minha tia Maria. Aí eu chamei a Victória, a
tinha o culto à ditadura. Por exemplo, imagina minha mãe e disse: “Olha, essa situação aqui
eu ter que fazer um trabalho marcando a data Com o nome de Tereza, em 1975, minha mãe
que a gente vive, tem a ver com isso”.
do dia 31 de Março? fez o vestibular e entrou na faculdade de Le-
tras de Moema. Ela também foi aprovada na Foi o dia em que a Victória sentou e contou
Nessa vida preenchida por vazios e cercada USP e na PUC, mas era impossível frequen- a história toda. Foi assim, de uma vez só, um
por mistérios, tem um episódio: a minha avó tar uma das duas por questões de seguran- choque anafilático. Entendi todo o mistério, o
fazia contatos com o Carlos Danielli em pon- ça e a faculdade de Moema era mais discreta. porquê daquele medo, os segredos, por que os
tos. No último ponto que ela fez com ele antes A partir de 1976 ela assume aulas como pro- vizinhos não podiam saber, por que as crianças
de ser assassinado, ele disse: “Aquela casa é fessora temporária e começou a fazer parte da não podiam subir no segundo andar da casa.
insegura, tem que ter um cachorro”. E não sei Associação dos Funcionários Públicos de São
como, mas ele arrumou um cachorro, que mais Paulo. Em 1978, quando começaram as greves, a Nesse dia eu passei a fazer parte da célula
tarde eu vim saber que era uma mistura de Apeoesp começou a se destacar como entidade do PCdoB ou do que sobrou do PCdoB, onde
Pastor Alemão com Collie. Minha avó chegou representativa dos professores. Antes de cair a o debate era o seguinte: sai da clandestinida-
um dia com um cachorrinho pequeninho, que ficha que era uma violação de segurança muito de agora ou espera o João Amazonas vir fazer
se tornou um bicho do tamanho de um bonde, grave, minha mãe já estava no comando de gre- o contato e dar o aval do Comitê Central para
que ocupava o quintal. ve. E tudo isso sem contato com o PCdoB. sair da clandestinidade?

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Foi um debate torturante que durou uns três já participava do debate: “Pelo amor de Deus, Havia motivos para se ter uma preocupação
meses. E os exilados voltavam. O primeiro do vamos sair da clandestinidade, vamos voltar de segurança, mas elas acabavam virando
PCdoB que voltou foi o Diógenes Arruda, que para o mundo dos vivos”. verdadeiro exercício de paranoia. Qualquer
a gente nem conhecia. Com a anistia, a Elza cidadão esquisito que passava na rua era da
Monnerat é solta do presídio político femini- Isso [postura do Comitê Central em deixar a polícia fazendo a campana e levantando os da-
família sem notícias e sem orientação do que dos da casa para eles entrarem lá.
no. E a partir daquele momento era fuçar as lis-
fazer a respeito da clandestinidade] é injusti-
tas da volta dos exilados que eram publicadas.
ficável. Tinha as notícias, teve o contato com A Liana Casaroli, que já é falecida, se tornou
“Hoje está voltando Prestes, hoje está voltando
a família, via Maria Grabois, via Jaime Gra- uma grande amiga da minha mãe. Elas se co-
o Brizola, hoje está voltando o Gabeira, está
bois, então é absolutamente injustificável. Isso nheceram na porta da escola particular que eu
voltando o Franklin Martins”, e o Amazonas
é uma das coisas que está inclusive na nossa estudei um ano, no Brooklin. Ela se tornou a
nunca que voltava. briga com o PCdoB. melhor amiga da minha mãe e uma pessoa de
Então, qual era a conclusão? De que o PCdoB confiança naquele momento. Ela era a única
não estava acreditando na abertura, na anistia, “Isso [postura do pessoa que inclusive, dentro daquela comuni-
essa deveria ser a linha política, ou seja, o pes-
soal estaria achando que os retornos eram para Comitê Central em dade que a gente vivia, tinha uma visão mais
arejada, uma visão de oposição ao regime.
botar a cabeça de fora para eles cortarem. En- deixar a família Quando teve a queda da Lapa, havia a pre-
tão a gente não saiu da clandestinidade.
sem notícias e sem ocupação que alguém abrisse sob tortura os
E aí descobrimos pelo jornal que o Amazo-
nas estava vindo, primeiro para o Galeão, no
orientação do que dois aparelhos, as duas casas fortes do PCdoB.

Rio e depois para Congonhas, em São Paulo. fazer a respeito Soubemos da Chacina da Lapa pela impren-
sa, no Jornal Nacional. Foi uma crise, um cho-
Quando ele veio, ele não tinha casa para ficar
no Rio de Janeiro. O PCdoB procurou a minha
da clandestinidade] que. Eu não sabia, mas a Victória e a Alzira,
tia Maria Grabois pedindo para abrigar o Ama- é injustificável” minha mãe e minha avó, ficaram apavorados
zonas por uma noite na volta dele. Então ele e a quando viram aquilo. O Comitê Central do
Elza Monnerat ficaram na casa do meu tio avô PCdoB tinha sido atacado, Pedro Pomar e o
Tanto que, quando o Amazonas morreu, em
Jaime Grabois, que é irmão também do Mau- Ângelo Arroyo, tinham sido assassinados e
2002, eu já não tinha nenhuma relação política,
rício. Minha tia Maria perguntou a ele sobre a a Elza Monnerat e o Wladimir Pomar, tinham
pessoal ou afetiva com ele. É uma figura que
situação de minha mãe e minha avó Alzira, e marcou a minha formação, o que é inegável. sido presos. Essas pessoas eram as referências
ele não respondeu nada. orgânicas delas.
Com a Elza a gente teve mais contato porque
Em 25 de novembro de 1979, eu e a Victória ela morava no Rio, frequentava muito a nossa O Jornal Nacional falava em aparelho ter-
fomos para o aeroporto de Congonhas receber casa. Ela perdeu o peso político. Era do Comitê rorista desmantelado, dois terroristas mortos
o João Amazonas. Ficamos em um canto com Central porque era uma pessoa histórica, mas em confronto com policiais. Foi aquela maté-
pessoas que estavam esperando passageiros não tinha uma tarefa política propriamente ria do Jornal Nacional e saiu no dia seguinte
comuns. Enquanto isso, estava lá a turma com dita. Ela fazia algumas atividades de apoio, no Estadão, no Jornal da Tarde, na Folha da
faixas, “Vale do Ribeira recebe Amazonas”, e o dava depoimentos, falava das questões his- Tarde. Aquela foto do Jornal da Tarde ficou
pessoal gritava “Um, dois, três, quatro, cinco tóricas. A última tarefa dela era assistente da guardada lá na biblioteca do PCdoB. A porta
mil, queremos um Araguaia em cada canto do fração dos familiares de mortos e desapareci- da casa da Lapa metralhada.
Brasil”. Essa era a palavra de ordem do pesso- dos políticos do PCdoB.
al do PCdoB e aquela explosão do pós-anistia. Qual era situação? Podia cair a casa, nós po-
Nós ficamos ali, eu fiquei em um fascínio ina- Sobreviver na clandestinidade, eu era a úni- díamos cair, então a Victória correu lá na casa
creditável. ca criança que não tinha primo, que não tinha da Liana Casaroli e disse: “Olha, fica com o
tio, não tinha primo, que não tinha família. Jorge que eu preciso fazer uma viagem com
Sai o Amazonas, aquela corrente humana. O Joca [João Carlos Grabois, filho de André urgência e daqui a três dias eu venho buscá-lo.
Ele ia ser levado diretamente para o Sindicato Grabois], por exemplo, eu não sabia da exis- Se eu cair preserve o Jorge”. A Victória tinha
dos Metalúrgicos, se não me engano. Era o Zé tência dele, só fui conhecê-lo em 1980. a confiança que se acontecesse alguma coisa a
Duarte segurando ele num braço e o Dióge- ela, a Liana seguraria a minha onda lá de cria-
nes Arruda no outro. Essa cena eu me lembro A outra coisa, é que também não tinha pas- ção. Eu tinha 10 anos.
como foto e me lembro como cena de filme. A sado. Quem era o meu avô, meu bisavô? Eu
Elza Monnerat vinha atrás. A Victória disse não tinha passado. Qual era a identidade fami- Em novembro de 1979 o Amazonas volta,
que ela pensou em segurar a Elza, tinha que liar, qual era a identidade étnica? Também não não faz contato e não sei se foi por votação ou
ter segurado, mas ela não teve coragem. Vol- tinha lugar. Era São Paulo, Rio, eu não tinha por imposição, eu e a Victória dobramos a Al-
tamos para casa para o velho debate. Aquela lugar, um local. Nasci no Rio, morava em São zira e a Victória saiu a campo para buscar um
agonia de Pilatos: “Sai da clandestinidade ou Paulo, mas o ar de provisoriedade dos lugares advogado para poder promover nossa saída
não sai da clandestinidade?” Nessa época eu era muito grande. da clandestinidade.

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O advogado que se conhecia, era um que O diploma da Victória também foi outra briga. é mandado para treinar, o Amazonas para de
aparecia muito na televisão, defendendo Foram uns três ou quatro anos de briga no MEC. vir, vão abrindo vazios. E é engraçado, porque
os presos políticos, que era o Luiz Eduardo mesmo sendo da primeira infância, dessas
Greenhalgh. Ela marca uma reunião e che- Em novembro de 2009, eu fui anistiado. O re-
pessoas eu tenho a memória muito nítida.
ga dizendo: “Sou a Victória Grabois, filha de lator, Rodrigo Gonçalves, fez um parecer muito
Maurício Grabois e estou na clandestinidade”. bonito. Ele tinha que justificar a anistia pelo Por exemplo, quem me ensinou a jogar xa-
O Luiz Eduardo deu algumas orientações ju- Código Civil, com um período de persegui- drez? Foi o Amazonas, quando eu tinha 9
rídicas. A primeira foi: “Saia de São Paulo, vá ção. Ele teve que arrumar um argumento para anos. Nesse período, eu tinha uma relação as-
para o Rio buscar abrigo da família lá no Rio”. quantificar essa perseguição. Porque sofri per- sim meio de avô para neto com o Amazonas.
seguição a vida inteira, em qualquer momento Depois foi um distanciamento só, mas nesse
Como a Victória dava aula no Estado, com entre o dia em que eu nasci até a anistia e o dia período da clandestinidade era uma proximi-
holerite e coisas do gênero, a orientação foi dessa resolução do meu parecer do Conselho dade muito grande. São vazios, então não te-
para simplesmente não renovar o contrato Estadual de Educação do Rio de Janeiro. nho uma elaboração de luto.
de ACT. Ela tinha comprado um carrinho e o
Se formos fuçar um pouquinho na Escola Es- Com a lei 9140/95, o governo brasileiro fala
Greenhalgh deu um jeito de vendê-lo na boca
tadual Mário de Andrade ou na Direção Regio- assim: “Busquem seus atestados de óbito, por-
do lixo. O carro ajudou a fazer a mudança.
nal de Ensino lá de Santo Amaro, é capaz de en- que o governo brasileiro, o Estado brasileiro
Então a Victória tirou documentos como contrar lá o histórico escolar do Jorge Freitas. considera os desaparecidos mortos”. Então,
Victória Lavínia Grabois Olímpio. Ela tirou car- Todas as notícias das mortes eu tive poste- em 1995, minha mãe foi lá no cartório de pes-
teira de identidade, CIC e título de eleitor aos riormente aos acontecimentos. O desapareci- soas naturais do Rio de Janeiro buscar o ates-
36 anos, independente do que aconteceria com mento do meu pai, do meu avô, do meu tio, a tado de óbito de meu pai. Nele, consta: morto
os documentos ilegais. E entrou-se com o pro- queda da Lapa, tudo isso eu fui saber pós-anis- segundo a lei 9.140 de 95. É isso que está es-
cesso com base na Lei da Anistia. O artigo que tia. Ou seja, é como se eu tivesse uma vida até crito no atestado de óbito do meu pai. Isso foi
se usou foi o crime conexo da anistia. Porque a anistia e passasse a ter uma outra vida a par- necessário porque senão a vida civil não pros-
o crime da Victória era de falsidade ideológica, tir disso. É um corte. seguia. Minha mãe se casou de novo, teve ou-
que era um crime do Código Penal. E tinha que tro filho com outro companheiro. Então toda
se colocar esse crime como conexo da anistia. essa normalização da vida civil dependia dis-
Ou seja, até a tragédia que a gente viveu, o cri- “Soubemos da Chacina so. Mas esse atestado de óbito também não foi
me conexo da anistia é o que anistiou os tortu- da Lapa pela imprensa, uma elaboração de luto.
radores, é o artigo primeiro da Lei da Anistia.
no Jornal Nacional. Foi Eu fui ler o Relatório Arroyo só em 1980. O
Entrou-se com um processo para, com base [Angelo] Arroyo foi um membro da Comissão
na Lei da Anistia, recuperar todos os docu- uma crise, um choque” Militar da Guerrilha do Araguaia que sobre-
mentos que estariam porventura como Tereza viveu à guerrilha, retomou o contato com a
da Rosa Freitas ou como Jorge Freitas. E então O desaparecimento do meu tio, o André foi direção do PCdoB, e apresentou um relatório
transformar em Victória Grabois e Igor Gra- em outubro de 1973. O desaparecimento do pormenorizado do ponto de vista do que ele
bois os documentos que foram obtidos no pe- meu pai e do meu avô foi em 25 de dezembro viu. O relatório é a principal fonte que a gente
ríodo da clandestinidade. de 1973, no Araguaia. tem até dezembro de 1973.

O meu caso era o mais grave. Eu estava na As datas anteriores eu não tinha conheci- A figura do Maurício Grabois é sempre um
sétima série, e ainda fiz a oitava série e o pri- mento. A única coisa que eu me lembro é o modelo. Apesar de eu conhecer o Maurício
meiro ano do Ensino Médio como Jorge. Fui terror da minha avó e da minha mãe na hora como avô, o Maurício lenda sempre foi forte,
até para uma escola da Comunidade Judaica em que veio a notícia na Globo: “Estourou a referência de gerações de militantes, eu passei
que aceitava me tratar formalmente como Igor Lapa, terrorista, não sei o quê, morreram em a vida encontrando antigos militantes que me
mesmo meus documentos sendo Jorge. Foi combate, em enfrentamento”, mas eu não sa- falavam assim: “Conheci o teu avô, reuni com
uma saída enquanto o processo não rolava. bia o que aquilo significava. Eu não consegui teu avô, estive com teu avô em local tal”. Ou
relacionar o terror com a notícia e com os seja, grande parte dos militantes comunistas
Essa situação toda virou inquérito policial. três dias que fiquei na casa da Liana Casaro- do Brasil, até de uma certa idade, eu sei que
O Delegado da Polícia Federal, Veronezzi, que li. Nunca me foi falado assim: “Caiu o comitê hoje seriam mais de 75 anos, vamos dizer as-
presidiu o inquérito policial, apreendeu os do- central do PCdoB, nós estamos isolados do sim, eu acho que até contemporâneos dele, co-
cumentos. E houve uma espécie de lobby para PCdoB, perdemos o contato”. Isso nunca foi nheceram o Maurício. Ele sempre foi uma re-
o Conselho Estadual de Educação aprovar discutido comigo, só foi discutido lá em se- ferência. Além de ser uma figura familiar, ele
que o nome Igor Grabois poderia constar nos tembro de 1979, ou seja, todo esse período foi meio que se converte em uma figura mítica.
meus documentos, histórico escolar. A partir no escuro.
dessa resolução do Conselho Estadual de Edu- Já o meu pai, eu fui redescobri-lo na idade
cação eu fiz universidade, concurso público e Então, não tem luto. São vazios. Meu pai não adulta. Meu pai não tinha essa referência toda,
nunca ninguém questionou nada. vem mais, meu avô não vem mais, o cachorro há poucos militantes que conheceram ele. Meu

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pai militou na juventude do Partido Comunista “Então, não tem luto. gurança do Pará para cada um dos cinquenta
em 1958-1962, foi dirigente quando o PCdoB homens de confiança dele – uns 25 tiveram
era um partido muito pequeno e a partir de São vazios. Meu pai morte violenta.
1964 foi para a clandestinidade. Boa parte dos não vem mais, meu Foi queima de arquivo, porque eles se torna-
militantes que conheceram o meu pai morre-
ram. De vez em quando alguém fala dele, da avô não vem mais, ram assassinos no Araguaia e depois viraram
assassinos de aluguel, pistoleiros, mataram
guerrilha. Fui redescobri-lo com os velhos co- o cachorro é mandado camponeses nos conflitos de terra.
munistas da Zona Leste, com as referências fa-
miliares e com os amigos dele. A descoberta do a treinar, o Amazonas Sobre a questão dos corpos, por que se acha-
meu pai foi a partir da vida adulta, já tem mais para de vir, vazios vão ram [os restos mortais de] Maria Lucia [Petit]
de vinte anos que isso aconteceu.
abrindo vazios” e Bergson [Gurjão Farias]? Primeiro foram os
esforços da Crimeia [de Almeida], da Ameli-
Meu pai parece ser uma pessoa mais huma-
na. Parece mais um ser humano do que o Mau- nha [Teles], da Victória [Grabois], da Laura
Sabemos que a solução para o pleito dos fa-
rício Grabois que tinha essa dupla presença, [Petit] de irem lá na região, de identificarem
miliares é muito simples, é a abertura dos ar-
uma presença afetiva e ao mesmo tempo uma aquele cemitério de Xambioá. Foram lá e con-
quivos. Numa reunião conosco, o Ministro [da
presença política muito grande. Algumas pes- seguiram abrir, identificar, e foi uma luta para
defesa] Celso Amorim quis dar a impressão
soas dizem que isso dá divã para muitos anos, identificar também. E a outra questão é que
que tinha uma caixa. Aí a Marinha pegou a
como sempre me recusei ao divã, então... esses dois foram mortos logo no início, que até
sua caixa, a Força Aérea pegou a sua caixa, o
que a tecnologia, vamos dizer assim, de ocul-
Exército pegou a sua caixa e eles incineraram.
Eu estive lá [na região do Araguaia] muito tar- tação de pistas e dos corpos ainda não estava
Então cada um incinerou a sua caixa e nós não
diamente, em setembro de 2011. Eu queria muito tão desenvolvida.
temos nenhuma notícia.
ter ido antes, mas só consegui ter a oportunida-
Os demais, de outras regiões, muito prova-
de de ir agora no Grupo Trabalho Araguaia. Nessa mesma reunião eu citei para o Minis-
velmente, é duro dizer isso, mas em função
tro que o Ruy Barbosa tinha mandado quei-
Até hoje eu não consegui ler o que dizem ser dessas diversas operações de limpezas a di-
mar os documentos da escravidão e o máximo
o diário da guerrilha, do Maurício Grabois, ficuldade é muito grande de achar os demais
que ele conseguiu fazer foi queimar os assen-
que foi publicado na revista Carta Capital. corpos. Então se não se acham os corpos, é
tos de vendas de escravos no Rio de Janeiro.
Justamente pelo fato de esse diário não ter porque houve a operação limpeza.
O Ruy Barbosa não conseguiu porque se fosse
uma fonte comprovada, com certeza tem um queimar, ele teria que queimar o país. Porque a
filtro. Todo mundo sabia da existência desse escravidão foi o retrato do país, como a ditadu-
diário que o Maurício mantinha. Esse diário ra foi o retrato do país. Então queimar arquivo IGOR GRABOIS OLÍMPIO nasceu em 9 junho de 1966.
estava com ele quando foi morto. O Exérci- é queimar o país.
Filho de Victória Grabois e Gilberto Olímpio é professor
to teve acesso aos pertences dele e o diário universitário e economista formado pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
virou um troféu de guerra. Ele foi soterrado Por que essa recusa tão grande do Exército
em algum arquivo, pode ter sido até surru- Brasileiro em abrir os arquivos? Porque se abrir
piado como troféu pessoal de algum partici- os arquivos, as classes dominantes vão se olhar
pante ali da repressão, a gente não tem como no espelho. Quantos da burguesia brasileira,
saber. Provavelmente está em algum arquivo. quantos do empresariado, quantos da política,
E uma versão desse diário foi manchete na quantos militares inclusive alguns mais novos
Carta Capital. vão se enxergar, vão se ver nesse apoio, nessa
colaboração, nesse apoio da ditadura?
A minha mãe leu e acha que tem elementos
verdadeiros. Ela reconhece o pai no diário. E a questão dos corpos? A questão das ossa-
Tem uma passagem em que o Maurício fala de das? Há notícias lá do Araguaia, que em 2001
mim, fala do meu aniversário. Eu só passei os o Exército fez uma operação limpeza. O [major
olhos, não tive coragem de ler, mas pelo que eu Sebastião] Curió, que é militar e é político, tem
vi, só tem coisas cotidianas, não fala de ações até uma cidade com o nome dele, Curionópo-
da guerrilha. Parece que o pessoal estava ali o lis, ele reúne as pessoas de confiança dele que
tempo todo caçando jabuti, procurando água participaram como guias e assassinos junto
no rio, coisas do gênero. Então com toda a cer- com o Exército.
teza ele é uma versão, não é um diário comple-
to. Então eu não quis ler com esse filtro. Eles estão morrendo, alguns são assassi-
nados. Dos cinquenta que receberam a car-
Estamos em contato com os familiares. E há teirinha de Delegado – que o povo lá chama
o peso dos familiares dos guerrilheiros com a de Delegado calça curta, porque o Curió deu
condenação do Brasil na Corte Interamericana. uma carteira de Delegado da Secretaria de Se-

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2

1. Victória e Alzira em
manifestação no Rio de Janeiro
segurando cartaz e fazendo
denúncia sobre os desaparecidos 3
do Araguaia
2. Foto de carteira de identidade
de Maurício Grabois
3. Maurício discursando na
1 abertura da Assembleia Nacional
Constituinte, 1946. Ele foi um dos
três deputados da bancada do
PCB eleitos pelo Distrito Federal
para a Constituinte

6 7

4. Gilberto na Checoslováquia, 5. Gilberto Olímpio Maria


1961. Lá cursou engenharia 6 e 7. Carteira de estudante de Igor
e conheceu Osvaldão, outro com nome que usava na clandestinidade.
4 5 importante líder do Guerrilha Arquivo pessoal – Reprodução
do Araguaia da Revista Brasileiros

Gilberto Olímpio Maria nasceu em 11 de Nesse mesmo ano, viajou para a China, onde realizou
treinamento de guerrilha.
-se para São Paulo e entrou para a clandestinidade.
março de 1942, em Mirassol (SP), filho de Antônio Conheceu Gilberto Olímpio Maria, no Rio de Janeiro,
Olímpio Maria e Rosa Cabello Maria. Desaparecido Retornando ao Brasil, morou em diversos locais do quando ele voltou Checoslováquia e com ele se casou.
em 25 de dezembro de 1973. Militante do Partido Co- interior do país, inclusive em Porto Franco (MA) com A partir de 1966, militantes do PCdoB foram desloca-
munista do Brasil (PCdoB). João Carlos Haas Sobrinho (desaparecido em 1972), dos para a região do Araguaia, onde se desenvolveria
com quem se mudou mais tarde para a região de Caia- a guerrilha contra a ditadura militar. Entre 1966 e
Mudou-se para São Paulo (SP) onde estudou no Colé-
nos, próxima ao rio Araguaia, no sudeste de Pará. 1969, seu pai, Maurício; seu irmão André e seu mari-
gio Sarmiento. Pertenceu ao Partido Comunista Bra-
sileiro (PCB) e, depois, ao PCdoB. Era conhecido como Pedro. Na guerrilha atuava na do, Gilberto também se transferiram para a região.
comissão militar e, posteriormente, foi comandante Victória só não foi para o Araguaia porque estava
Em 1961, viajou para a Checoslováquia para estudar
do Destacamento C com Dinalva Monteiro Teixeira, a grávida. Maurício Grabois, André Grabois e Gilberto
Engenharia. Dois anos depois, retornou ao Brasil,
Dina (desaparecida em julho de 1974). Olímpio foram assassinados pela ditadura militar e
com Osvaldo Orlando da Costa (“Osvaldão”, desapa-
Com Paulo M. Rodrigues e outros companheiros fun- são até hoje desaparecidos políticos.
recido em 1974), de quem se tornara amigo. Traba-
lhou no jornal A Classe Operária, periódico clandesti- dou o povoado de São João dos Perdidos, Distrito de Enquanto sua família estava no Araguaia, Victória,
no editado pelo PCdoB, até o golpe militar de abril de Conceição do Araguaia (PA). que já vivia na clandestinidade, seguiu morando em
1964, quando passou a viver na clandestinidade. São Paulo, adotou uma nova identidade, teve de re-
gistrar seu filho Igor com nome falso e mudava cons-
Em 30 de dezembro de 1964, casou-se com Victória Victória Lavínia Grabois Olímpio tantemente de casa. Ao todo, viveu dos 20 aos 36
Grabois, em Araraquara (SP). Em 1964, Victória e nasceu em 01 de novembro de 1943, filha de Alzira da
Gilberto, junto com os companheiros Osvaldo Orlan- anos na clandestinidade.
Costa Reis e de Maurício Grabois, histórico dirigente
do da Costa (Osvaldão) e Paulo Mendes Rodrigues comunista. Victória e sua família eram militantes do Após o decreto da lei da anistia em 1979, Victória vol-
foram destacados pelo Partido a atuarem no oeste Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Iniciou sua mi- tou para o Rio de Janeiro, procurou um advogado que
de Mato Grosso. Realizaram trabalho de massa junto litância em 1963, durante o movimento estudantil. defendia presos políticos, tirou novos documentos e
aos camponeses e, também, no reconhecimento do Após o golpe de 1964, foi expulsa do curso de Ciências finalmente saíram da clandestinidade. Professora
território, visando à instalação da guerrilha. Em 1965, Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia (perten- aposentada do ensino médio, é presidente do Grupo
foram obrigados a abandonar o trabalho por proble- cente à atual Universidade Federal do Rio de Janeiro Tortura Nunca Mais (RJ) e integrante do Fórum Femi-
mas de segurança. Em 1966, nasceu seu filho Igor. (UFRJ)). Com a perseguição política, a família mudou- nista do Rio de Janeiro.

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A vida na clandestinidade de meu filho
por Victória Grabois

Igor, meu filho, nasceu na clandestinidade e só mimado. Permita que ele vá desenvolvendo os meu filho, foi um sofrimento indescritível. Sen-
voltou ao convívio social aos 13 anos de idade. seus problemas. Não deixe que o tratem como se tia-me solitária, não suportava os finais de sema-
Eu conheci seu pai Gilberto Olímpio Maria, no ele fosse de vidro. Diga a ele que se eu pudesse na, feriados ou férias. Gastava toda minha ener-
final de 1963 e imediatamente nos apaixonamos. estaria brincando a vida toda com ele, de escon- gia cuidando da educação do Igor e trabalhando
Nossa relação era de muito amor e carinho. Mar- der e de outras brincadeiras e passearia muito como professora em escolas da periferia de São
camos nosso casamento para abril de 1964, mas também. Dê um abraço nele por mim. Sem cho- Paulo das sete da manhã até as onze da noite.
o golpe militar frustrou nosso desejo e só nos ro, ele não se justifica”. Senti-me impotente, sobretudo porque ainda
casamos em 30 de dezembro desse mesmo ano. estava na clandestinidade, apesar da vigência
A última vez que encontrei Gilberto foi em 2
Após o nosso casamento, fomos morar em de maio de 1971. Igor e eu o levamos até a ro- da Lei da Anistia. Minha primeira reação foi
Guiratinga, cidade situada no oeste de Mato doviária de São Paulo (SP), de onde ele partiria achar meios para sair da clandestinidade. Eu
Grosso. Lá, ao lado de Osvaldão [Osvaldo Or- para o interior do país. Tivemos uma despedida tive a notícia de que André teria sido morto em
lando da Costa] e Paulo Rodrigues, também de- muito triste, chorávamos os três. Igor, com ape- 1973, meu pai considerado desaparecido, e de
saparecidos, formamos um grupo de reconheci- nas 4 anos, percebia muito bem a triste situação. Gilberto... nenhuma notícia.
mento, tendo como meta estudar e pesquisar o Naquele dia, tive a percepção que nunca mais João Amazonas e Diógenes Arruda, dirigen-
local mais adequado para iniciar o movimento veria meu marido. tes do PCdoB, já haviam chegado do exílio, mas
de resistência à ditadura militar. Quando soubemos que o Exército havia ini- nem eles ou qualquer outro membro do Partido
No final do ano de 1965, por problemas de se- ciado sua operação na região, minha mãe, Igor e nos procurou. Minha mãe, Igor e eu continuáva-
gurança, fomos obrigados a abandonar o traba- eu tivemos que sair da casa onde vivíamos para mos isolados do PCdoB e da família. Não havia
lho que desenvolvíamos e voltamos para a cida- outra casa. Gilberto e meu pai conheciam nosso mais sentido continuar morando em São Paulo.
de de São Paulo. Nessa época, mudei meu nome endereço e tivemos medo que eles fossem pre- A saída foi procurar um advogado. Indicaram-
para Teresa, por medida de segurança. sos e obrigados a informar nosso paradeiro. -nos o Dr. Luiz Eduardo Greenhalgh, marquei
Em setembro de 1965, soube que estava grá- Para preservar a integridade da minha famí- uma audiência para aquele mesmo dia. Fui ao
vida. A reação de Gilberto foi de muita alegria, lia, precisei trocar o nome de meu filho. Como encontro do Luiz Eduardo e quando entrei no
assim como a de meus pais. A minha gravidez ele era muito pequeno, iria completar 6 anos, dei escritório e me identifiquei, ele demonstrou ale-
foi muito festejada, afinal o bebê que iria nascer a seguinte explicação: Igor é nome russo, ele iria gria e espanto por eu ter ido procurá-lo. A partir
seria o primeiro neto do lado materno e paterno, se matricular em uma escola de maior porte e, daquele dia, iniciei o processo de justificação,
o primeiro sobrinho. Da mesma forma, minhas no Brasil, não se aceitava nomes estrangeiros. A meu e do meu filho, para voltar a ter a nossa do-
amigas da Faculdade ficaram exultantes com a partir daquela data ele se chamaria Jorge, tra- cumentação original. Eu voltaria a ser Victória
chegada do primeiro filho da “turma”. dução de Igor. Prontamente, meu filho aceitou a e meu filho, Igor. A ação foi fundamentada nos
minha explicação. Igor é muito inteligente e per- crimes conexos da Lei da Anistia, pois ao usar
Em 9 de junho 1966, nasce nosso filho Igor. cebeu que teríamos que viver de forma discreta. um nome falso e ter registrado meu filho com
Após alguns meses, Gilberto retorna ao interior, outro nome, havia cometido o crime de falsida-
indo morar no Maranhão com meu irmão, André Desde a ida de Gilberto para o Araguaia as- de ideológica.
Grabois e com o médico João Carlos Haas. sumi a função de pai e mãe do meu filho. Fiquei
com a enorme responsabilidade de educá-lo so- O sonho do pai, do avô e do tio despertou em
Durante o período em que meu marido esteve zinha. As circunstâncias eram desfavoráveis, Igor o dever de continuar a luta interrompida
no Araguaia recebi duas cartas no ano de 1970 e a vida clandestina é uma situação de risco, a com os desaparecimentos dos três. O ideário po-
uma em 1971. Nas cartas, Gilberto dizia que es- qualquer momento poderíamos ser descobertos lítico dos seus entes queridos ficou como semen-
tava bem e que se preocupava com a educação pelo Exército. te no solo do Araguaia. Ele está prosseguindo
do nosso filho: a luta contra a miséria e a opressão e exigindo
Esse momento foi um dos mais difíceis da mi- do Estado brasileiro respostas: Como? Onde?
“(...) quanto ao Marcelo , cresceu muito? Dê um nha vida. Perder todos os homens da família e Quando? Quem assassinou e desapareceu com
abraço nele e agradeça pelo desenho. Estava ba- viver na clandestinidade, longe dos amigos e os corpos de Gilberto, Maurício, André e seus
cana. Espero que ele tenha um aniversário feliz. dos outros familiares, sem ter uma identidade companheiros?
Outra coisa, não deixe que ele se crie demasiado própria, trabalhar para sustentar minha mãe e

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“Ele lutou muito para poder
conseguir se inserir na sociedade,
mas não conseguiu”
por Darcy Andozia

sobre Carlos Alexandre Azevedo

Eu sinto que meu filho poderia estar hoje momentos, eu ficava sozinha no carro por mui- com o tal menino que estava preso no DOPS
aqui falando da mesma maneira que falou em to tempo, porque eles iam revistar uma casa, desde aquela tarde.
Brasília quando fomos receber o pedido de prender outras pessoas.
Por conta disso, não sofri tortura física na-
perdão [do Estado brasileiro]. Sou mãe, convi-
Só fui encontrar meu filho de madrugada, quela noite. Permitiram-me levar o menino
via com ele no dia a dia e, mesmo assim, me
por volta de uma, duas horas, no DOPS, com a para a casa dos meus pais em São Bernardo.
surpreendi com a consciência e visão de mun-
babá, Joana, que cuidava dele. Na manhã ante- Fomos durante a madrugada. Fui alertada pelo
do que ele tinha.
rior, os policiais estiveram em minha casa para Fleury de que, se eu abrisse a boca para gri-
A luta contra a ditadura me deu forças para me buscar. tar ou falar qualquer coisa quando chegasse lá,
enfrentar o que vivi nesses anos todos, para meu filho voltaria comigo e não iriam levá-lo
me manter coerente. Contarei um pouco da “levaram a criança e outra vez a lugar nenhum.
história que nós vivemos.
a babá para o DOPS. Quando chegamos a São Bernardo, Joana
Numa manhã de fevereiro de 1974, meu filho desceu com Cacá no colo, dormindo. Eu então
Cacá, de um ano e sete meses, foi preso em Ambos ficaram sem perguntei para o motorista se era possível es-
nossa casa, que ficava no bairro do Brooklin, se alimentar, sem perar até que alguém da minha família acor-
dasse. Vi quando minha mãe abriu a janela e
em São Paulo. Eu tinha saído para ir à procura
de Dom Paulo Evaristo Arns, com quem tínha- água, sem nada, por Joana entrou com meu filho. O carro deu uma
mos um relacionamento direto, para avisar que um bom tempo” arrancada imensa e nós voltamos para o DOPS.
o pai de Cacá [Dermi Azevedo] certamente ti- No DOPS, fui levada para uma cela onde
nha sido preso na noite ou no dia anterior. Já Como eu não chegava, levaram a criança e estava uma companheira nossa de trabalho
tínhamos recebido a notícia de que ele teria a babá para o DOPS. Ambos ficaram sem se e outra companheira de Belo Horizonte, que
morrido. Então, para tentar evitar que de fato alimentar, sem água, sem nada, por um bom tinha sido presa há algum tempo. Fiquei pre-
isso acontecesse, porque sabíamos que não se tempo. Para minha surpresa, vi que na boca sa durante quarenta dias. Nos primeiros dias,
matava imediatamente e ele só tinha sumido do meu filho havia um corte lateral. A meni- minha roupa rasgou e pedi uma agulha para
no dia anterior, eu fui atrás de Dom Paulo. na me contou que [os policiais que] estavam consertá-la. Um dia, foram revistar as celas e
em casa falaram: “Cadê a sua mãe? Sua mãe encontraram a agulha de costura. Por causa
Nem voltei para casa, porque, quando fui ao
não está aqui nem pra te alimentar”. O menino disso, passei não lembro quantos dias dentro
escritório de Maria Nilde [Mascellani], por vol-
começou a chorar de fome. Então os policiais do que se chamava de solitária. Tive a oportu-
ta das seis e meia da tarde, fui presa.
deram um tapa muito forte que cortou a boca nidade de conhecer o que era uma cela peque-
Andamos por São Paulo e a equipe seguia da criança. na, acho que de um metro, bem estreita e um
prendendo outras pessoas, inclusive uma te- pouco comprida.
Meu filho acabou me salvando da tortura. Fui
rapeuta que trabalhava com Nilde. No trajeto,
levada para a sala de tortura, onde havia uma Na cela tinha um banco de cimento e um vaso
eles foram me colocando medo. Em alguns
máquina de choque elétrico e comecei a ser in- sanitário. Era preciso ficar atenta escutando o
terrogada pelo delegado Sérgio Fleury. Aí che- barulho da água no vaso, porque era dali que se
Cacá em um açude com cerca
de 5 anos, Rio Grande do Norte gou um policial perguntando o que iriam fazer pegava água para beber, com um copo, quando

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“Em 2011, quando o Cacá educação. Também fui da RENOV, que era Eu descobri, depois da sua morte, que na in-
uma entidade de assessoria educacional. ternet ele era uma referência para muita gente.
recebeu a indenização do Isso me deu forças até para continuar a vida.
Estado, ele falou claramente Eu sustentava a família, tinha mais facilida-
de de conseguir trabalho que Dermi, que viera
Cacá foi embora com 40 anos, ia fazer 41. Foi
surpresa para todos os amigos, para mim, para
de como se sentia, que fugido para São Paulo do Rio Grande do Norte, os profissionais que cuidavam dele. Morreu
não se adaptava” onde estava sendo perseguido. numa sexta-feira de madrugada (16 de feverei-
ro de 2013). Na terça-feira anterior eu estava na
No Rio Grande do Norte, onde ficamos até
eles davam a descarga, uma vez por dia. Certa casa de uma amiga. Eu quase não saía para lhe
1979, meu filho sofria na escola, era chamado
vez me senti mal porque não conseguia comer fazer companhia. A minha amiga ligou para
de terrorista, mau elemento, os meninos batiam
a comida, que vinha completamente estragada. brincar com ele e disse “Olha, Cacá, não libe-
nele. O todo tempo ele reclamava de ser atin-
Ninguém conseguia. rarei sua mãe hoje. Você permite que ela fique
gido e tinha vergonha disso, de ouvir dizer que
aqui?” E ele respondeu: “Não, Ivete, eu que-
Dom Paulo Evaristo Arns ajudou muito a mi- nós éramos marginais, principalmente a mãe
ro que minha mãe venha pra casa, porque eu
nha família. Pediu ao padre de São Bernardo – porque era uma paulista e todo paulista era,
gosto muito de ficar com a minha mãe”. E três
que fosse dar assistência a eles. Dom Paulo, para eles, libertino. Isso ocorreu durante muitos
ou quatro dias depois – não deu para perceber
esse padre e um advogado propuseram que anos. Ele acabou se fechando e os médicos di-
absolutamente que meu filho estava triste ou
minha mãe fosse ao DOPS levar algumas coi- ziam que o trauma tinha sido muito grande, que
deprimido – ele se suicidou de madrugada. In-
sas para nós, como roupas e alimentos. Foi as- a partir daí teria esse problema de saúde. Para
clusive mandou um e-mail para os amigos se
sim que minha mãe descobriu onde eu e Dermi poder ganhar dinheiro e nos manter, eu precisei
despedindo, deixou um bilhete muito bonito
estávamos. Até aquele momento não sabiam. trabalhar naquela cidade. Fui dar aulas. Quando
para mim, em que me pede para eu não esque-
eu entrava na sala dos professores, todos saíam
cer e nem descuidar dos outros irmãos.
No período em que estive presa, meu filho fi- e eu ficava sozinha. Isso não foi por um dia, uma
cou com meus pais. Ele teve uma infância mui- semana, foi durante muito tempo. O testemunho acima é de Darcy Andozia, sobre
seu filho Carlos Alexandre.
to difícil. Nós sofremos muita discriminação
quando saímos da prisão. Quando Dermi saiu Em 2011, quando o Cacá recebeu a indeniza-
da cadeia, estava muito mal, fora da realidade ção do Estado, ele falou claramente de como
e, para que melhorasse mais rápido, nos muda- se sentia, que não se adaptava. Acredito que
mos para uma cidade pequena do Rio Grande ele lutou muito para poder conseguir se inse- CARLOS ALEXANDRE AZEVEDO (1972-2013) filho mais
do Norte, Currais Novos, onde ele tinha nascido. rir nessa sociedade, mas não conseguiu. Mas o velho de Darcy e Dermi, foi uma criança desde muito
interessante e o que quero ressaltar é que ele cedo marcada pela ditadura. Adulto, sofria de depres-
são e fobia social. Aos 37 anos, teve reconhecida sua
Antes de minha prisão, em São Paulo, eu era uma pessoa consciente, lia muito. Acompa- condição de vítima da ditadura e recebeu uma indeni-
trabalhava com Maria Nilde, que já havia sido nhava sua vida de perto. Ele morava comigo zação, mas nunca pôde trabalhar regularmente. Era
perseguida e tinha aberto um escritório de em São Paulo. técnico de computadores. Suícidou-se aos 40 anos.

Darcy Andozia nasceu em 30 de junho de para São Paulo dez anos depois. Darcy sempre ten- onde nasceu e depois mudaram-se para a capital do
1948. Ela e seu marido na época, Dermi, eram liga- tava recomeçar a vida, mas sofria ao ver que Carlos estado, Natal.
dos aos padres dominicanos e ao então cardeal de nunca se recuperou. Ele desenvolveu fobia social
Ingressou no curso de Jornalismo na Universidade
São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Trabalhavam e, apesar de todo o apoio médico e psicológico que
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde se for-
na retaguarda auxiliando, por exemplo, a saída recebeu, não conseguiu mais lidar com suas angús-
mou em 1979. Retornaram para São Paulo em 1984
de militantes para o exílio a fim de garantir sua so- tias e suicidou-se em fevereiro de 2013. Segundo
e ele começou a trabalhar no jornal Folha de São
brevivência. Darcy, ele “não conseguiu se adaptar ao mundo”.
Paulo. Em 2001 conclui seu mestrado em Ciências
Foi presa no dia 15 de janeiro de 1974 enquanto bus- Darcy é pedagoga aposentada. Políticas pela USP com a dissertação Igreja e Dita-
cava ajuda para seu marido que havia sido preso no dura Militar: colaboração religiosa com a repressão
dia anterior e ela temia por sua vida. Seu filho Car- de 1964. Se formou doutor pela mesma universida-
los Alexandre Azevedo, foi levado de sua casa, em de quatro anos.
São Bernardo do Campo, com 1 ano e sete meses de Dermi Azevedo nasceu em Currais Novos Dermi é um dos fundadores do Movimento Nacio-
idade, com sua babá, Joana. Lá ele também sofreu (RN) em 4 de março de 1949. Filho de José Alexandre
nal de Direitos Humanos (MNDH). É portador da
agressões da equipe do delegado Sérgio Paranhos de Azevedo e Amélia Maria de Azevedo.
Síndrome de Parkinson, doença que acredita ter ad-
Fleury. Darcy conseguiu que seu filho e a babá fos- Foi preso durante o XXX Congresso da UNE em Ibi- quirido como sequela das fortes pancadas recebi-
sem para a casa de seus pais, mas ela permaneceu úna, interior de São Paulo, em 1968. Foi preso nova- das na cabeça durante as torturas. É autor do livro
presa por mais de quarenta dias até ser solta. mente em 14 de janeiro de 1974, um dia antes de sua Travessias torturadas – Direitos Humanos e ditadura
Mudou-se para o Rio Grande do Norte com a famí- esposa e seu filho. Quando saiu da prisão, em maio no Brasil lançado em 2013.
lia depois da libertação de seu marido. Retornaram do mesmo ano, voltou com a família para a cidade

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2

Álbum de família
1. Cacá e seu irmão Daniel, visitando
a avó, 1976
2. Dermi e Darcy com Cacá no colo,
no aniversário de 3 anos dele, no
Rio Grande do Norte
3. Dermi com Estevão no colo, Darcy com
Daniel, e Cacá na casa onde moravam no
Rio Grande do Norte
4.Cacá com aproximadamente 10 anos
durante visita à família em São Paulo
5. Daniel, Estevão e Joana, irmãos de Cacá,
Darcy e Cacá. Foto do aniversário de
60 anos da Darcy, 2008 1

4 5 “A indenização não vai


apagar nada do que aconteceu
na minha vida. Mas a Anistia
é o reconhecimento oficial de
que o Estado falhou comigo.
Para mim, a ditadura não
acabou. Até hoje sofro os seus
efeitos. Tomo antidepressivo
e antipsicótico. Tenho
fobia social”
Declaração de Cacá em entrevista
à revista IstoÉ, 2011

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“Sou a prova de que mesmo
na guerra existiu um grande amor”
por Lia Cecília da Silva Martins

Aos 9 anos de idade soube que era ado- tou. Falando com um amigo, soube que o “um dia, no mês de
tada. A história que minha mãe adotiva mesmo conhecia um cartório na cidade de
e minha irmã me contaram foi a seguin- Bragança. Sendo assim, resolveu me re- junho de 2009, vi
te: num dia do ano de 1974, um delegado gistrar lá. De acordo com o dentista, que em um jornal local
acompanhado de um soldado foi até a Ins- informou ao examinar minha arcada den-
tituição Lar de Maria em Belém, no Pará, tária, eu teria nascido entre junho e julho
uma matéria cuja
dizendo que haviam recebido uma denún- de 1974. Então ela escolheu uma data para manchete dizia
cia de sequestro. Que a sequestradora ha-
via sido presa e que a instituição deveria
registrar meu nascimento: dia 1° de julho
de 1974, dia do aniversário de minha tia
‘Crianças sequestradas
ficar com a criança, que tinha uns seis me- (irmã de meu pai Sandoval). Meu nome, na guerrilha do
ses, pois estavam esperando um retorno
da polícia de Goiás, estado onde o seques-
Lia Cecília, foi escolhido pela minha irmã
Rosália Luz.
Araguaia’... falava
tro teria ocorrido. Assim, fiquei na institui- da existência de um
ção e o tempo foi passando, sem que tives- A partir daí, fui vivendo rodeada de
amor por todos. De meus pais Eumélia
‘bebê branco’ que
sem resposta. Muitas vezes o responsável
pela instituição e Eumélia Martins iam até e Sandoval Martins, meus irmãos Paulo, poderia ser filho de
a delegacia para obter respostas, mas nun- João Carlos, Antonio Sandoval Martins e um guerrilheiro”
ca conseguiam. minha irmã Rosália Luz. Assim, fui viven-
do, mas sempre com a curiosidade de sa-
O tempo foi passando e fui crescendo, ber um pouco de minha origem. Até que
muito doente. A cada fim de semana eu um dia, no mês de junho de 2009, vi em
ia para o lar de alguém, até que Eumélia um jornal local uma matéria cuja manche-
Martins resolveu ficar comigo, pois eu te dizia “Crianças sequestradas na guerri-
precisava fazer uma cirurgia para a retira- lha do Araguaia”. No texto, um dos guias
da das amídalas e adenoide. Nessa época, dos militares falava da existência de um
eu tinha 2 ou 3 anos. Ela foi até o juiza- “bebê branco” que poderia ser filho de um
do para saber o que precisava fazer para guerrilheiro.
me adotar, mas o juiz disse que só pode-
ria dar a guarda provisória. Ela não acei- Foi então que resolvi falar com minha
irmã. Disse que achei a matéria interes-
Lia e seus pais adotivos sante. Ela concordou comigo e resolvemos

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“Sobre meu pai, enviar um e-mail ao jornal. Recebemos a nunca podia imaginar que indiretamente
resposta nos comunicando que a matéria faria parte dela. Eu sou a prova de que mes-
pelo pouco que ouvi era do jornal O Estado de São Paulo, para mo na guerra existiu um grande amor.
percebi que foi um onde enviamos e-mail. Na resposta, nos
Meus pais adotivos nunca souberam
enviaram o e-mail de tia Mercês. Enviamos
homem de um e-mail para ela, que assim que viu minhas quem eram meus pais biológicos. Quan-
caráter excepcional, fotos, logo entrou em contato conosco. do fiquei sabendo, em 2009, minha mãe
adotiva já havia falecido e meu pai estava
de personalidade Eu e ela nos encontramos pessoalmente
em julho de 2010. Meu primeiro contato doente e com 89 anos. Então resolvemos
forte, generoso, foi com tias Sandra, Vitória, tios Paulo e não contar a ele para poupá-lo.
decidido e que Roberto em março de 2010 em Fortaleza, Minha relação com minha família ado-
quando resolvemos fazer o DNA. Logo tiva continua sendo repleta de amor. Fui
acreditava em um que saiu o resultado positivo, nos apro- apoiada por eles quando resolvi buscar
ideal, um futuro ximamos muito. Posteriormente, convivi minhas raízes. As duas famílias se dão
com as tias Eliana e Socorro, em Brasília.
melhor” Depois, com tia Mercês, em Curitiba.
bem. Minha irmã conhece todos eles,
com exceção de tia Mercês, que só se co-
Sobre meu pai, pelo pouco que ouvi per- nhecem via rede social. As tias Eliana e
cebi que foi um homem de um caráter ex- Socorro minha irmã conheceu durante o
cepcional, de personalidade forte, genero- momento difícil que passamos, eu e meu
so, decidido e que acreditava em um ideal, esposo Márcio, com a perda de minha fi-
um futuro melhor. Minha mãe, não se sabe lha, nossa princesa Cecília, dia 23 de de-
quem é. Suspeita-se que era estrangeira, zembro de 2012 com 1 ano e dois meses de
pois os camponeses disseram que ela era idade de leucemia.
baixa, tinha cabelo curto, que falava uma
língua diferente e que também vivia sob LIA CECÍLIA DA SILVA MARTINS nasceu em 1° de ju-
as árvores observando pássaros. lho de 1974 (data escolhida por seus pais adotivos).
Filha adotiva de Eumélia Martins e de Sandoval Mar-
Não sei definir o que senti ao saber que tins. Filha biológica de Antônio Theodoro de Castro.
Formada em Gestão de Recursos Humanos, traba-
era filha de guerrilheiro. Eu já conhecia a lha em empresa que ministra cursos de capacitação
história da Guerrilha do Araguaia, mas e treinamento de operação de máquinas pesadas.

1. D. Eumélia e Sr. Sandoval, pais


adotivos de Lia
2. Lia adolescente (segunda
em pé da direita para a esquerda)
e família

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3. Lia entre sua irmã Rosália (à
esquerda) e tia Socorro (à direita)
4. Na ordem tia Eliana, Rosália
(irmã) e tia Socorro, irmãs de
Antônio Teodoro Antônio Teodoro de Castro nasceu em
5. D. Eumélia e Sr. Sandoval,
12 de abril de 1945 em Itapipoca (CE), filho de Raimundo
com um bebê da família de Castro Sobrinho e Benedita Pinto de Castro. Desa-
parecido em 27 de fevereiro de 1974. Era militante do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e integrou o Desta-
camento B da Guerrilha do Araguaia.
Cursava o 4° ano de Farmácia na Universidade Federal
do Ceará (UFCE) e era diretor da Casa do Estudante Uni-
6 e 7. fotos de Antônio versitário. Mudou-se para o Rio de Janeiro em razão das
8. Sandra Castri, tia de Lia,
perseguições políticas que vinha sofrendo na universi-
em encontro com a dade. A seguir, matriculou-se na Faculdade de Farmácia
família consanguínea e Bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), participando do movimento estudantil nos anos
1969-1970.
Como se intensificaram as perseguições e Antônio aca-
bou mudando-se para o Sudeste do Pará, na região do
rio Gameleira, onde se integrou ao Destacamento B da
guerrilha.
Segundo o Relatório Arroyo, documento escrito pelo
3 dirigente Ângelo Arroyo, que escapou do cerco militar à
região da Guerrilha do Araguaia em 1974, Antônio Teo-
doro foi ferido em 30 de setembro de 1972, quando mor-
reram ou foram presos João Carlos Haas Sobrinho, Ciro
Flávio de Oliveira Salazar e Manoel José Nurchis. Mais
6
adiante, esse mesmo documento relata que houve um
tiroteio com as forças de repressão no dia 25 de dezem-
bro de 1973, no qual Antônio estava envolvido. Desde
então, não se teve mais notícias suas.
Em 2014 um exame de DNA foi realizado para verificar
a probabilidade de Antônio ser pai de Lia. No dia 18 de
março foi apresentada uma contraprova que indica
como positiva a paternidade. O exame só não foi con-
clusivo pela falta de informações sobre a mãe. A família
de Antônio pediu à Secretaria de Direitos Humanos
que realize exame de compatibilidade também com as
famílias das guerrilheiras desaparecidas no Araguaia
4
7 com intuito de identificar quem é a mãe de Lia.

5 8

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Lembranças
por Valter Pomar

Nasci em agosto de 1966. Nessa época, ro de Pinheiros, São Paulo, capital; noutra
meu pai Wladimir Ventura Torres Pomar casa, esta no bairro de Indianópolis, tam-
e minha mãe Rachel da Rocha Pomar, as- bém em São Paulo, capital, acompanhando
sim como meus irmãos Pedro Estevam e minha avó ao açougue e depois vendo meu
Wladimir, já viviam na clandestinidade. avô, sentado em frente de uma máquina de
escrever (que hoje está comigo) e a orien-
Só no final dos anos 1970, quando meu pai tando a sempre dar gorjeta ao açougueiro,
ainda estava preso, é que fui registrado com segundo lembro para manter boas relações;
os sobrenomes verdadeiros da minha famí- acompanhando Pedro e Catarina, minha avó
lia. Por isto é que aparece, como uma das tes- paterna, numa festa realizada num sítio em
temunhas da minha atual (e espero que úl- Minas Gerais, onde encontraram meu tio
tima) certidão de nascimento, Luíz Eduardo Eduardo, diretor da Mesbla e que não era
Greenhalgh, que foi advogado de meu pai e clandestino; dentro de uma Kombi branca,
conduziu o processo de mudança de nomes. no que hoje acredito ter sido um “ponto” com
amigos, numa praça próxima ao aeroporto
Até 1976, data da prisão de meu pai e assas- de Congonhas.
sinato de meu avô, sempre morei com meus
pais, e com meus irmãos, até que saíram de
casa para estudar e trabalhar. “Só no final dos anos
Nesse mesmo período, tive contato esporá- 1970, quando meu pai
dico com meus avôs paternos; e também com
minha avó materna e seu segundo marido
ainda estava preso, é que
(meu avô materno faleceu pouco antes de eu fui registrado com os
nascer); assim como com os irmãos de meu
pai. Minha mãe é filha única. sobrenomes verdadeiros
da minha família”
De meu avô paterno, Pedro Pomar, assas-
sinado em dezembro de 1976, tenho poucas
lembranças: encerando e lustrando, juntos, Essas são algumas das parcas lembranças
um chão de tacos de madeira, numa casa que que tenho de meu avô. E uma cartinha, onde
vinte anos; depois descobri estar no bair- dizia “Nada temas, procura conhecer a ver- Pedro Pomar, quando
deputado, em 1949
dade, por mais dura e desagradável que ela
Valter (ao centro), com seus irmãos, seja. É a verdade a coisa mais importante e
Pedro Estevam, à esquerda, e Vladimir,
à direita, em Fortaleza (CE), em 1970
bela da vida”.

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“Meu grau de
consciência
acerca da condição
clandestina em
que vivíamos era
muito pequeno”

Recordo de alguns poucos amigos e


companheiros de meus pais, basicamen-
te militantes e simpatizantes do PCdoB,
em São Paulo e no Ceará. Depois de 1976
reencontrei alguns, como é o caso de Car-
los Ferrinho e Dona Heloísa; Washington
Oliveira, atual vice-governador do Mara-
nhão, e sua companheira Alzira.
Ao longo daqueles dez anos, morei em
São Paulo, Santos, Fortaleza, Crato e Ju-
azeiro do Ceará, bem como em Belém do
Pará. Apesar das frequentes viagens e
mudanças de casa, não me recordo de ter
ficado sem frequentar escola, nem me lem-
bro de nenhuma privação especial, nem de
carinho, nem de alimento, nem de saúde.
Meu grau de consciência acerca da con-
dição clandestina em que vivíamos era
muito pequeno. Fui registrado como Val-
ter e depois trocaram meu nome para Car-
los, o que exigiu uma explicação breve:
curiosamente, recordo a imagem dessa
Valter e sua mãe, Rachel, em Niterói (RJ), 1978. Foto tirada por Wladimir, após
conversa, mas não lembro o que foi dito. sair em liberdade condicional
Recordo ter mexido numa pasta 007, em
Juazeiro, e encontrar uma arma: fechei a
pasta, nada disse nem perguntei. Recordo que aprendi a rezar o Padre Nosso numa neral tio da minha mãe, o reencontro com a
ser repreendido por cantarolar uma música escola pública (!!) em Belém do Pará. Re- avó Catarina e meus tios Carlos (falecido em
de Geraldo Vandré, pelas ruas de Juazeiro. cordo de pouco mais do que isso. dezembro de 2012) e Jonas (com quem morei
Numa das casas em que moramos no durante vários meses, em Pariquera Açu, SP)
A realidade só ficou patente para mim e, finalmente, a mudança para a capital, onde
Ceará, quando queria evitar uma bronca na noite de 16 de dezembro de 1976. Estava
de meu pai, corria para um local que era fui registrado como Valter Pomar e matricula-
sozinho em casa e vi na TV o noticiário so- do no Ginásio Equipe.
visível da rua, pois sabia que ele não po- bre a queda da Lapa. Comentei com minha
dia ser visto ali. Recordo ter visto na TV mãe, confundindo Lapa com Mooca, onde Portanto, no meu caso, a clandestinidade foi
cenas do fim da Guerra do Vietnã e de ter moravam Carlos Ferrinho e Dona Heloísa. vivida, mas pouco percebida. Foi sobre meus
comentado isso de maneira mais efusiva No dia seguinte, ao voltar da escola, minha pais e meus irmãos, dez anos mais velhos, que
do que o recomendável. Lembro de fazer mãe e meu irmão mais velho estavam em caiu o peso daquela época.
comentários críticos à religião, acho que casa e me passaram para ler o jornal falan-
motivado pelo que vi das peregrinações do da morte de Pedro Pomar. VALTER POMAR nasceu em 28 de agosto de 1966, filho
para Padim Cícero e no Círio de Belém; de Wladimir Pomar e Rachel Pomar, formou-se técnico
diga-se que meus pais autorizaram que eu Depois veio a fuga da casa, a viagem de em artes gráficas, doutor em História, hoje é dirigente
recebesse educação religiosa, graças ao ônibus para Brasília, o contato com o ge- nacional do Partido dos Trabalhadores (PT).

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Família Pomar
1. Pedro, Catharina e Wladimir Pomar,
Belém (PA), 1938
2. Pedro, Catharina e Wladimir Pomar,
São Paulo (SP), 1945
3. Rachel, Wladimir, Pedro Estevam
e Wladimir, em Belo Horizonte (BH), 1960
4. Joran, Eduardo e Pedro; Catharina,
Rachel e Wladimir; Carlos, Vladimir e Pedro
Estevam, no bairro Tatuapé, São Paulo, 1959

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4

1. Vladimir, Rachel, Pedro Estevam


1 e Wladimir, em Iaçu - Bahia 1961
(foto tirada por Pedro Pomar)
2. Rachel, Pedro Estevam, Pedro Pomar
e Vladimir, em Iaçu - Bahia, 1961
3. Vladimir, Wladimir e Pedro Estevam
na praia, Rio de Janeiro (RJ), 1962

Wladimir Ventura Torres Pomar, 1962, fez parte da fundação do Partido Comunista
nascido em Belém (PA), em 14 de julho de 1936, é ana- do Brasil (PCdoB). Dois anos depois, foi preso na
lista político e escritor. Filho do histórico militante Bahia por resistir ao golpe militar. Solto no final do
comunista Pedro Pomar, viveu na clandestinidade ano, foi julgado e condenado à revelia. Viveu na clan-
já aos 5 anos de idade, pois o pai era dirigente do destinidade desde então. Em 1976, foi preso na ope-
Partido Comunista Brasileiro (PCB), perseguido pelo ração repressiva que resultou na chamada Chacina
Estado Novo de Getúlio Vargas. da Lapa, que matou três dirigentes do PCdoB, entre
eles seu pai.
Trabalhou como jornalista e colaborou com diver-
sos meios de comunicação, como Tribuna Popular, Libertado em 1979, desligou-se da direção do partido
Classe Operária, Movimento, Correio Agropecuário e e entrou para o recém-fundado PT. Foi coordenador
Brasil Extra, do qual foi diretor editorial. Além disso, geral da campanha de Lula à Presidência em 1989.
foi funcionário de empresas como Companhia Side-
rúrgica Nacional (CSN), General Eletric e Cerâmica Rachel da Rocha Pomar é nascida no Rio
do Cariri. de Janeiro em 28 de janeiro de 1936.
Ingressou no PCB em 1949, quando atuava no movi- Formada em Biblioteconomia pela UFRJ, com mes-
mento estudantil secundarista. Em 1951, trabalhou trado em sociologia na PUC/SP, foi militante do Co-
na Arno e participou do movimento sindical. Em mitê Brasileiro pela Anistia, entre 1977 e 1980.

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5

4. Manchete da Folha de São Paulo


fala sobre procurados depois da
Chacina da Lapa
5. Manchete do Jornal do Brasil,
sobre a Chacina da Lapa, que noticia
a morte de Pedro Pomar
6. Wladimir, Aldo Arantes e outros
em julgamento
(Os documentos acima foram
encontrados em prontuários
do DOPS, no Arquivo do Estado
de São Paulo)

7. Valter, Rachel, Vladimir e Pedro


Estevam, em Belém (PA), julho 1976
8. Valter, Pedro Estevam,
Vladimir, Rachel e Wladimir Pomar,
no Parque do Ibirapuera,
São Paulo (SP) 1980

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Como sobrevivemos na clandestinidade
por Rachel Pomar

Meu marido, Wladimir, foi preso nos primei- geleia sumiram da mesa. No almoço, a carne moí- Goiás e foi decidido que eu e as crianças ficaría-
ros dias do golpe militar de 1964, no interior da da substituíra os bifes. Às vezes, queriam um bife, mos morando em Goiânia. Meu filho mais velho,
Bahia, onde trabalhava como engenheiro da Ge- ou até um pãozinho a mais, e não podíamos dar. então com 9 anos, caiu de um cajueiro sobre uma
neral Electric. Foi a primeira vez que senti uma grade de ferro, sofrendo em enorme corte em “V”.
Para as crianças, a coisa toda não ficou clara.
solidariedade real de pessoas que superaram o A hemorragia foi assustadora. Parecia um esgui-
Trocar de nome foi o primeiro passo. Até acharam
medo para me ajudar. cho, jorrando sem cessar.
engraçado, mas para nós era um problema verda-
Embora Wladimir houvesse recebido habeas deiro. Demoramos a conseguir certidões de nasci- Alucinada, corri para um vizinho que chegava
corpus, foi vítima de sequestro em 28 de agosto mento e novas identidades. Depois, tirei carteira de carro para o almoço e pedi aos gritos que nos
do mesmo ano, denunciado por Márcio Moreira profissional e título de eleitor. Mas paramos por pusesse no carro e nos levasse para um pronto-
Alves. Criou-se uma crise entre o Tribunal e o co- aí. Como trabalhar sem currículo escolar ou refe- -socorro. Ao ver a gravidade do caso, ele disse
mando militar para efetivar a soltura. rências de trabalho anterior? Tínhamos 28 anos e que havia necessidade de um hospital com mais
seria normal que tivéssemos esses documentos. recursos. Argumentei que não tinha como pagar.
Nós morávamos, então, com dois filhos, um de
Respondeu que estava acostumado a sustos como
7 e outro de 5 anos, em um apartamento no Rio Mas estávamos todos juntos. Tivemos que
aquele: “Pagarei o que for necessário e depois vo-
de Janeiro. Na volta da prisão, Wladimir já fora contar com a ajuda de custo do PCdoB, no qual
cês me pagam”. Foi necessária cirurgia de quase
demitido. Sobrevivemos por alguns meses com meu marido militava. Então, fomos para um lugar
três horas, que deixou uma cicatriz permanente.
sua indenização trabalhista, após pagarmos o ad- perdido no mapa, no interior de Goiás, chamado
Conseguimos resgatar a dívida financeira, mas a
vogado. Certos de que seria condenado pela Jus- Santa Terezinha do Crixás, tomar conta de um
da solidariedade permanece até hoje. Nunca mais
tiça Militar, foi imposta a nós uma questão sim- sítio. Mudança radical da cidade para o campo.
o vimos.
ples: Wladimir ser preso, ou optar pela fuga, no Viramos criadores de porcos, às margens do rio
exílio ou na clandestinidade. Um tio meu, coronel do Peixe. Para os meninos foi uma época boa, de Em 1968, tivemos que sair de Goiás e fomos para
do Exército, nos alertou de que, se ficássemos no descobertas. Aprenderam a andar a cavalo. Tive- São Paulo. As crianças mais velhas enfrentaram as
Brasil, nossa vida correria risco. “Não haverá com- ram contato com aves e outros animais. Iam bus- constantes trocas de escola. Em meados de 1969
placência”, advertiu. car leite em fazenda próxima. Mas vivíamos sob a mudamos de novo, desta vez para o Ceará. Wla-
pressão de sermos descobertos. dimir passava a maior parte do tempo no interior,
Optamos pela clandestinidade. Meu marido já
vindo em casa uma a duas vezes por mês, enquan-
vivera essa experiência. Mas eu e as crianças não Em 1966 foi preciso voltar a São Paulo. Eu estava
to as crianças e eu morávamos em Fortaleza.
fazíamos ideia do que seria uma vida desse tipo. com quase sete meses de gravidez e sem qualquer
Saímos do apartamento em que morávamos como acompanhamento médico. Foi um grande amigo, Aí, consegui trabalhar no IBGE (Instituto Bra-
fugitivos. Wladimir, primeiro, levando um dos me- Ângelo Arroyo, que levou a mim e a meus filhos, sileiro de Geografia e Estatística). Fiz concurso
ninos. Eu, depois, levando o outro, para nos encon- numa viagem difícil e demorada. Eu estava com para recenseadora e fui aprovada para chefe de
trarmos em São Paulo. Fomos apenas com as rou- uma infecção renal, com cálculos, e a posição da posto. Foi um bom período. Pagamento todo fim
pas do corpo em duas pequenas malas. Tínhamos criança não era boa. Fiquei quase dois meses em de mês. Poder comprar sapatos, por exemplo, tê-
que aparentar estar saindo para uma pequena tratamento e, felizmente, meu terceiro filho nasceu nis para os meninos. Eles voltaram a estudar e o
viagem. Abandonamos tudo. Só me despedi dos numa maternidade, pois o parto precisou ser ce- mais novo frequentava o jardim de infância. No
meus pais, e sem dizer para onde iríamos. sáreo. Uma vitória: a primeira na clandestinidade. entanto, a ditadura tornava cada vez mais inten-
so seus métodos repressivos. Quedas e mortes
Ficamos algum tempo na casa de amigos. Casa No entanto, eu ignorava que meu pai morrera
de amigos queridos. Nossa situação ficava mais
e gente modesta. Dois dias após a chegada, as doze dias antes de eu dar à luz. Só fui saber de sua
perigosa.
crianças tiveram caxumba. Febre alta e muitas morte quase dois meses depois, quando levei a
dores. Sem condição de procurarmos um médico. criança para ele e a avó conhecerem. Uma grande Em 1973, saímos de Fortaleza e fomos para Jua-
Era uma prisão domiciliar de toda a família. Nem dor para mim. Ele sempre foi um grande amigo, zeiro do Norte. Interior difícil. Bem menos recur-
nós, nem as crianças, saíamos à rua. Não telefo- amparando-me até nos momentos mais difíceis. sos. Troca de colégios. Achávamos importante
návamos. Não escrevíamos cartas. Não fazíamos Além disso, havia dor e aflição à nossa volta. Ami- manter o estudo das crianças, apesar das dificul-
nem recebíamos visitas. As crianças ficaram sem gos “caíam” a toda hora, torturados ou mortos. E dades. Em 1974, novas prisões de pessoas que tra-
poder estudar, sem amiguinhos, sem brinquedos, tínhamos que continuar a vida de corre-corre, de balhavam com o Wladimir. Fomos para Santos,
sem parentes, sem seu quarto, sem suas camas. mudança em mudança, de cidade em cidade... fu- São Paulo. Nova adaptação.
Uma infinidade de “sem”... gindo sempre.
Ainda em 1974, outra mudança, para Belém,
A vida cotidiana era dura: privações até na ali- Ainda em São Paulo, consegui trabalhar em uma Pará. A família precisou se dividir para dar aos
mentação. Não bastava “botar mais água no fei- agência de turismo. Foi um alívio. Mas chegou um filhos maiores, agora com 17 e 16 anos, a oportu-
jão” para quatro pessoas a mais. Tudo era conta- momento em que não deu para continuar lá. Wla- nidade de viverem suas próprias vidas. O mais
do: oito pessoas, oito pãezinhos no café. Queijo e dimir realizava atividades políticas no norte de velho conseguiu emprego num jornal e pas-

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sou a morar sozinho. O segundo foi estudar em tícias e nos acolheram prontamente. Com ajuda,
Florestal, cidade de Minas onde havia um curso consegui reunir dinheiro suficiente para comprar
técnico agrícola em regime de internato. Eu, o as passagens de ônibus para Brasília e, de lá, para
mais novo e Wladimir passamos a morar numa São Paulo. Em Brasília localizei meu tio, então
pequena casa de subúrbio. general de divisão. A esposa dele nos recebeu di-
Começamos a pintar e vender camisetas e ce- zendo: “Você vai atrapalhar a nossa vida”. Logo
râmicas marajoaras. A situação continuava preo- depois, fardado, ele chegou: “Eu avisei vocês. Não
cupante. Apesar disso, Wladimir viajou para São posso fazer mais nada”.
Paulo em dezembro. Na manhã do dia 17, ao ir Na rodoviária de Brasília, vimos numa revista a
para a escola, meu filho mais novo pegou o jornal foto do Wladimir, de rosto inchado, como um dos
que recebíamos todos os dias e viu estampada a presos. Soube pelos jornais que houvera outro as-
foto do avô, na primeira página, como morto na sassinato, de João Baptista Drummond. Também
Lapa, São Paulo. A notícia dizia que Arroyo tam- descobri que Luiz Eduardo Greenhalgh era um
bém morrera. Outros participantes da reunião do dos advogados dos presos da Lapa. Ao chegar a
comitê central do PCdoB haviam sido presos. O São Paulo, consegui encontrar um cunhado e ir
que, para nós, incluiria o Wladimir. ter com minha sogra Catarina. Além do aneuris-
Dessa forma trágica a clandestinidade parecia ma cerebral que a atormentava, sofreu a perda do
terminar para nós. Que fazer? Embora a dor das marido e a prisão do filho.
perdas provocasse uma terrível incapacidade Ao contratar Greenhalgh, estava encerrada a
de raciocinar, dessa vez eu precisava resolver minha clandestinidade. Entretanto, precisava de
sozinha. emprego, com urgência. Greenhalgh levou-me
Temi pela vida de meus filhos. O mais velho então ao encontro de um padre, pároco de Campo
chegou logo depois. Vira a notícia. Chorava quan- Belo, Antonio Haddad. Ele aceitou contratar-me
do abri a porta e também não sabia o que fazer. como assistente social da agência paroquial de
O obstáculo era o de sempre: faltava dinheiro empregos para mulheres da periferia, e me levou
para ir até São Paulo e arranjar advogado para o até Dom Paulo Arns. Juntos, se tornaram, por as-
Wladimir, que eu supunha ter sido aprisionado. sim dizer, meus anjos protetores. Um dia preten-
Em meu desespero, fiz meu filho mais velho jurar do contar a história comovente de Haddad – cuja
que tomaria conta do irmão de apenas 10 anos, bondade, retidão de caráter e simplicidade não
caso eu viesse a sofrer algum constrangimento da posso descrever tão rapidamente.
repressão, ou até mesmo perdesse a vida.

Comecei por vender tudo: móveis, fogão, gela-


deira velha... Dizia que meu marido sofrera um
acidente em São Paulo e eu precisava viajar com
meu filho para lá. Com a ajuda de uma vizinha
solidária, vendi quase tudo, passando os objetos
sobre o muro que separava nossas casas. De noi-
te, queimei os papéis que pudessem dar alguma
pista sobre nós. Só depois soube que a repressão
sequer descobriu que Wladimir estava em Belém.

Na manhã seguinte, abandonei a casa com meu


filho menor. Procurei uns parentes do Wladimir,
que nem sabiam que morávamos em Belém, e
contei a minha situação. Eles haviam visto as no-

1
Márcio Moreira Alves, Torturas e Torturados, Editora Idade
Nova, Rio de Janeiro, 1966

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Agradecemos a todas e todos que contribuíram com a preparação e a realização do ciclo
de audiências “Verdade e Infância Roubada” da Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo, especialmente Amelinha Teles, Crimeia Schmidt de Almeida e Dodora Arantes,
que são responsáveis pela ideia original do livro.

Merecem todo nosso reconhecimento e carinho as crianças e os adolescentes da época


da ditadura e que, hoje todos adultos, conseguiram vencer a barreira do trauma e do
silenciamento imposto durante anos e anos. Seus valiosos e corajosos testemunhos
são a essência deste trabalho.

Agradecemos ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, nas pessoas de Fabiana


Araujo Marcolino Vianna e, em especial, de Ricardo Silva Santos, Oficial Administrativo
do NATEP/Acervo DEOPS, pela cessão de imagens utilizadas nesta obra.

Também gostaríamos de agradecer às pessoas que auxiliaram ao longo do proces-


so de produção e finalização deste livro: Álvaro Okura, Amanda Brandão, Danilo
Morcelli, Douglas Mansur, Igor Ojeda, Luiz Felipe Foresti, Luiza Villaméa, Maria Carolina
Bissoto, Pádua Fernandes, Raquel Oliveira de Brito, Renan Quinalha, Ricardo Kobayaski e
Vivian Tavernaro.

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