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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

RAFFAELLA ANDRÉA FERNANDEZ

PROCESSO CRIATIVO NOS MANUSCRITOS DO ESPÓLIO


LITERÁRIO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

CAMPINAS
2015
RAFFAELLA ANDRÉA FERNANDEZ

PROCESSO CRIATIVO NOS MANUSCRITOS DO ESPÓLIO


LITERÁRIO DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de


Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Campinas para obtenção do título de Doutora
em Teoria e História Literária, na área de Teoria e
Crítica Literária.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vera Maria Chalmers

Este exemplar corresponde à versão final da


Tese defendida por Raffaella Andréa
Fernandez, orientada pela Prof.ª Dr.ª Vera
Maria Chalmers.

CAMPINAS, SP
2015
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 143007/2011

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Fernandez, Raffaella Andréa, 1979-


F391p FerProcesso criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de
Jesus / Raffaella Andréa Fernandez. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

FerOrientador: Vera Maria Chalmers.


FerTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

Fer1. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Manuscritos. 2. Jesus, Carolina


Maria de, 1914-1977 - Crítica e interpretação. 3. Poesia brasileira - Escritores
negros. 4. Criação (Literária, artística, etc.). 5. Marginalidade social na
literatura. 6. Periferias. I. Chalmers, Vera Maria,1941-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Creative process in the literary of Carolina Maria de Jesus's literary
assets
Palavras-chave em inglês:
Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Manuscripts
Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977 - Criticism and interpretation
Brazilian poetry - Black authors
Creation (Literary, artistic, etc.)
Social marginality, in literature
Inner cities
Área de concentração: Teoria e Crítica Literária
Titulação: Doutora em Teoria e História Literária
Banca examinadora:
Marcos Antonio de Moraes
Mário Augusto Medeiros da Silva
Mirhiane Mendes de Abreu
Therezinha Apparecida Porto Ancona Lopez
Vera Maria Chalmers
Data de defesa: 31-08-2015
Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária

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Dedico essa pesquisa à memória de
Carolina Maria de Jesus.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar devo agradecer a agência de fomento CNPq pelo financiamento de todo o
trabalho em solo nacional, que possibilitou o desenvolvimento e a dedicação exclusiva à
pesquisa desde a graduação;

Agradeço a Capes/PSDE pelo fomento que viabilizou parte fundamental da pesquisa realizada
em solo internacional;

Agradeço ao auxílio Faepex por fomentar atividades desenvolvidas no “Centenário Carolina


Maria de Jesus” em Portugal;

Agradeço especialmente à professora Vera Maria Chalmers, por ter assumido o encargo da
orientação pela confiança e liberdade intelectual a mim dispensada nos anos desse trabalho;

Toda minha gratidão, in memoriam, à coorientadora Catherine Viollet, pelo carinho e atenção
a mim dedicados durante o período de estágio de doutorado em Paris, pela ajuda na consulta
dos manuscritos de Carolina de Jesus e sugestões bibliográficas preciosas;

Também a Phillipe Lejeune, pela acolhida e pelo profundo debate junto aos membros do
“Séminaire Genèse et Autobiographie” no Institut des Textes et Manuscrits Modernes
(ITEM/CNRS) alocado na École Normale Supérieure de Paris;

Um agradecimento especial vai para a família Jesus, principalmente a Vera Eunice de JESUS
Lima que muito me tem ajudado nesses anos de pesquisa da obra de sua mãe, pelos
depoimentos, pela disponibilização de originais e, sobretudo, pela confiança, carinho e
partilha que me aproximam ainda mais de Carolina de Jesus;

Não poderia deixar de agradecer aos protagonistas de primeira hora, onde tudo começou, isto
é, a Unesp de Marília com a presença de meu amigo poeta e filósofo Milton Mello, que me
presenteou com uma publicação rara de Quarto de despejo, encontrada por ele no lixo de uma
biblioteca e imediatamente entregou a mim porque na ocasião lia e pensava em estudar a obra
Cidade de Deus, de Paulo Lins;

Agradeço minha primeira orientadora Célia Tolentino que acreditou no envio do primeiro
projeto proposto ao CNPq na árida área da Sociologia da Literatura pouco aceito nos cursos
de Ciências Sociais;

Agradeço atenciosamente aos Professores Sérgio Barcellos e Valéria Rosito por


compartilharem dados, descobertas e inquietações mobilizadas pelos arquivos de Carolina de
Jesus ao longo de nossas investigações;

Agradeço em imenso às professoras Vania Chaves e Isabel Lousada, assim como a


bibliotecária Maria Coutinho pelo convite de montagem de uma exposição e diversas
conferências na Universidade de Lisboa e na Associação Internacional de Paremiologia-
Tavira em homenagem ao Centenário Carolina Maria de Jesus em terras lusitanas;

Agradeço as leituras, abordagens e sugestões sobre o aparato genético do professor Carlos


Pittella Leite;

Agradeço especialmente ao professor Mário Augusto Medeiros por todo seu tempo a mim
dispensado para conversas precisas e interesses comuns que envolveram não somente os
estudos sobre a obra de Carolina de Jesus, mas toda a literatura marginal periférica em sua
fundamental existência e criatividade;

Agradeço a Mirhiane Mendes de Abreu pela inspiração intelectual, leitura atenta, precisa e
paciente, além de seu apoio incondicional;

Não poderia esquecer de deixar meu muito obrigado aos professores Telê Ancona, Marcos de
Moraes e às alunas Ângela Grillo e Tatiana Longo pela acolhida junto ao IEB num primeiro
momento dessa pesquisa, quando ainda buscava suporte para conhecer os debates em torno da
Crítica Genética;

Agradeço ao Museu Afro Brasil na figura de Romilda Silva e Izabel Monteiro, bibliotecárias
queridas e carolineanas de fé, gestoras da biblioteca Carolina Maria de Jesus;

Agradeço ao Arquivo Público de Sacramento, a Fundação Biblioteca Nacional e ao Instituto


Moreira Salles por viabilizarem minhas pesquisas nesses espaços públicos;

Agradeço ao poeta Oswaldo de Camargo pelas conversas que me situaram não apenas no
mundo da literatura negra, em São Paulo, como também seu encontro com a obra e pessoa de
Carolina Maria de Jesus;

Agradeço o Allan da Rosa por suas poéticas do revide, pelas discussões e pelos nós que colou
em minhas orelhas de coelha;

Agradeço minha amiga poeta Dinha que possibilitou a realização de um sonho com a parceria
para a publicação de Onde estaes felicidade?, de Carolina Maria de Jesus. Nesse sentido, não
poderia deixar de manifestar minha gratidão pela intervenção da escritora Cidinha da Silva
junto à Fundação Cultural Palmares;

Toda minha gratidão mais profunda a minha mestra de todas as horas e em todas as instâncias
Josefina Neves Mello, pela leitura, discussão e revisão atenta deste trabalho, companheirismo
e ensinamentos para a vida;

Agradeço aos alunos do Haiti que chegaram em 2012 na Unicamp, e que para terminarem
seus estudos pós-terremoto em seu país, fizeram do meu encontro com a língua francesa, e
cultura crioula, uma matéria viva para além dos livros;

Não poderia deixar de agradecer a todos os funcionários e amigos da UNICAMP que


souberam dispor suas mãos, ombros e abraços nos mais diversos tipos de apoio por mim
solicitado;
Agradeço a meu filho Icaro Andri por tudo, mas principalmente pela compreensão de minhas
tormentas e ausências maternais em prol deste trabalho e por dividir o peso deste esforço de
anos, considerado também por ele de suma importância para além de nós entre nós;

Agradeço a todos os meus companheiros carolinianos queridos, cujos nomes não cito porque,
de tão extensa, a lista não caberia nesta folha de papel;

A todos que participaram dessa jornada, de perto ou de longe, o meu sempre obrigada!
RESUMO

Esta tese consiste na organização cartográfica e analítica do processo criativo das narrativas
esparsas, recolhidas no espólio literário de Carolina Maria de Jesus. Partindo da evidência de
que a escritora criou uma “poética de resíduos”, procurou-se delinear os percursos e as
escolhas estabelecidas por ela ao longo de seus manuscritos, a fim de decifrar as estratégias de
sua forma de invenção. A natureza de seus escritos é híbrida e fragmentada e, como tal, pede
uma postura quase arqueológica de escavação. Assim, para chegar ao desvendamento de sua
poética de resíduos, optou-se por um olhar mais detido para as narrativas que comporiam seu
livro de contos. A autobiografia serve de base para suas criações literárias; dessa maneira a
escritora apoia-se sobre si mesma, reconstituindo sua memória e seu cotidiano para produzir
no leitor um dado efeito. Carolina de Jesus quer que ele seja afetado pela concretude de sua
escritura. No decorrer das análises foram cartografados os trajetos (de vaivém, de fuga, de
abandono e retorno) do “eu” fraturado que percorre resquícios das próprias lembranças,
misturadas às suas experiências de leitura, com fatos de sua vida imediata, no afã da
construção de sua obra. Uma extensa produção composta pelo encontro entre o “de-si-
mesma” de dentro e o “de-si-mesma” de fora, na movimentação de suas várias faces,
compondo o que se deve considerar a elaboração de sua “identidade narrativa”. Por iminência
compreendemos algo que está a ponto de acontecer, um vir-a-ser que na poética empreendida
por Carolina de Jesus está expresso através de resíduos de discursos literários e não literários,
apresentando-nos uma nova voz a romper cânones; ao mesmo tempo em que emblematiza um
novo acontecimento na história de nossas letras: a assim denominada, por seus escritores
provindos das periferias paulistanas, “Literatura marginal periférica”.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus; Literatura Marginal Periférica; Manuscritos;


Poética de resíduos; Processo criativo.
RÉSUMÉ

Cette thèse vise à organiser cartographiquement et analytiquement le processus créatif des


narrations éparses, recueillies dans le Patrimoine de Carolina Maria de Jesus. Compte tenu de
l’évidence selon laquelle l’auteure a créé une ‘poétique du résidu’, nous chercherons à
délimiter son parcour et ses choix établis tout au long de ses manuscrits afin de mettre en
évidence les contenus de sa forme d’invention. La nature de ses écrits est hybride et
fragmentée, et de ce fait demande une posture quasi archéologique d’excavation. Pour
parvenir au dévoilement de la poésie de résidus, nous avons choisi de nous focaliser sur les
narrations que l’auteure elle-même considérait comme des textes qui pourraient composer son
livre de contes. L’autobiographie lui sert de base pour ses créations littéraires; de cette
manière, l’auteure s’appuie sur elle même, en reconstruisant sa mémoire et son quotidien en
vue d’impressionner le lecteur. Carolina de Jesus veut que le lecteur sente quelque chose à
travers la concrétude de son écriture. Tout au long de nos analyses, nous avons démontré les
trajectoires (de va-et-vient, de fuite, d’abandon et de retour) du moi fracturé qui a suivi les
vestiges de ses souvenirs, mélangées avec ses expériences de lecture et les faits de sa vie
immédiate dans l’ardeur de la construction de son œuvre. Cette œuvre, constituée de la
rencontre entre le moi et le surmoi, dans ses multiples formes, constitue ce qui peut être
appelé son « identité narrative ». Nous comprenons l'imminence d'un événement proche de
s'accomplir, une réalisation qui, dans la poétique employée par Carolina de Jesus, s'exprime à
travers le résidu d'un mélange de discours littéraire et non-littéraire, et qui nous apporte une
voix nouvelle apte à rompre les canons usuels ; et qui en même temps emblématise un
événement nouveau dans l'histoire de notre écriture : la « littérature marginale périphérique »,
comme elle est dénommée par les écrivains en provenance de la périphérie de la ville de São
Paulo.

Mots-clés: Carolina Maria de Jesus; Littérature Marginal Périphérique; Poétique du résidus;


Processus créatif.
ABSTRACT

This thesis consists in a cartographic and analytical organization of the creative process of the
sparse narratives collected in the assets of Carolina Maria de Jesus. Starting from the evidence
that the writer created a “poetic of residues” we aimed to outline the paths and choices
established by her along the manuscripts in order to decipher her creative process. The nature
of her writing is hybrid and fragmented, which almost calls for an archaeological process of
excavation. Therefore to unveil her poetic we closely investigate the narratives that would
take part in her book of short stories. The autobiography is the basis for her literary creations,
the author leaning on herself to reconstitute her memories and everyday life in order to
produce on the reader a given effect. Carolina de Jesus wants the reader to be affected by the
concreteness of her writing. During the analyzes we drew a map of the trajectories (the
shuttles, the fugues, the desertions and the regresses) of the fractured “self” that travels
through the remnants of one’s own memories mixed with one’s reading experiences and with
facts of one’s immediate life, in the effort of building the work of art. Her work is composed
by the encounter between her “self from inside” and her “self from outside”, considering the
circulations of her various faces – what ends up constructing that which we can name her
“narrative identity”. By imminence we will comprehend something that is about to happen, a
devenir that in the poetic of Carolina de Jesus is expressed through the residues of literary and
non-literary discourses, presenting a new voice breaking canons; as well as serving as an
emblem of a new event in the history of the Brazilian literature: one that the writers from the
peripheries of S. Paulo call “marginal literature”.

Keywords: Carolina Maria de Jesus; Creative Process; Manuscripts; Marginal Literature;


Poetic of Residues.
SUMÁRIO

Notas introdutórias .............................................................................................................015

I – PROCESSO CRIATIVO DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS.............................029

III.1 Narrativas da iminência e identidade narrativa.......................................................030

III.2 Refração e frestas identitárias ...............................................................................051

III.3 Organicidade e fissura .........................................................................................064

II – GESTOS E GENEALOGIA: DIFERENTES ESTADOS DE UM TEXTO ..........085

II.1 Manuscritos dispersos versus palimpsestos de narrativas................ ........................086

II.2 Percursos de preâmbulos ......................................................................................096

II.3 Prólogo(s) para “Cliris” .....................................................................................114

II.4 Prólogo para “Provérbios” ...................................................................................133

III – TRAJETO DA VIDA E DOS DOCUMENTOS .....................................................153

III.1 Percurso de uma catadora de palavras na recolha de sentidos ..................................154

III.2 Fontes dos originais..............................................................................................162

III.3 “Diario 20”, um journal de travail .......................................................................213

III.4 Histórico das edições ...........................................................................................221

III.5 Recepção da obra ................................................................................................234


IV– AUTOBIOGRAFIA COMO GÊNERO CONDUTOR DO DEVIR-TRAPEIRO DA

LITERATURA....................................................................................................................249

IV.1 A escrita como devir ............................................................................................250

IV.2 Nas pegadas do devir-trapeiro da literatura ............................................................256

IV.3 Vida autobiografada como imperfeição ou (hiper)feição de Si ................................267

IV.4 O canto triste: a escrita como ofício ou do devir-escritora.......................................272

À guisa de conclusão ..........................................................................................................284

Referências bibliográficas ..................................................................................................293


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Notas introdutórias

Agradeço ao destino por ter-me feito nascer pobre. A pobreza foi-me


uma amiga benfazeja; ensinou-me o preço verdadeiro dos bens úteis à
vida, que sem ela não teria conhecido. Evitando-me o peso do luxo,
devotou-me à arte e à beleza.

(Anatole France, 1844-1924)

Tua vida é uma página da história/ Do teu eu, vivido e


experimentado.../ Se tua visão, acaso, é notória, é que há muito tu tens
caminhado...

(Auta de Souza, 1876-1901)

Como a maioria dos pesquisadores que se dedicam à obra de Carolina Maria de


Jesus (1914/15/16-1977), o primeiro livro a que tive acesso foi Quarto de despejo: diário de
uma favelada. Li essa obra numa tarde de domingo, no meu quarto, na moradia estudantil da
Unesp de Marília, onde cursei Ciências Socais de 1999 a 2004. O desejo de saber o que iria
ocorrer ao final do testemunho daquela escritora favelada acompanhou minha leitura com a
mesma intensidade e curiosidade de compreender as surpreendentes passagens que evocavam
lirismo, mescladas à linguagem comezinha falada na favela.

Capturada por Carolina de Jesus, naquele dia estava decidido meu projeto de
pesquisa de iniciação científica, meses depois financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e que foi o início de uma construtiva
obsessão, movida pelo fascínio que conduziu meus passos até aqui. Durante o trabalho de
conclusão “Em todo e nenhum lugar: vozes da marginalidade”, defendido em 2002 no curso
em Ciências Sociais da UNESP de Marília, orientado pela professora de Sociologia Célia A.
F. Tolentino, foram observadas as relações entre Quarto de despejo: diário de uma favelada e
o livro Esmeralda: por que não dancei, relato da ex-menina de rua de Esmeralda do Carmo
Ortiz, a fim de compreender como se davam as condições sociais experienciadas por essas
duas mulheres negras e pobres, que viveram à margem da cidade de São Paulo durante os
cinquenta anos que as separavam. Além da observação de como se davam os mecanismos de
perpetuação da marginalidade, mudando apenas as personagens e mantendo os cenários da
pobreza e do racismo, pudemos notar a força literária dos escritos de Carolina de Jesus. Tal
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constatação me conduziu rumo ao aprofundamento dessas características, no curso de


Literatura e Vida Social, na UNESP de Assis, onde foi desenvolvida a dissertação de
mestrado “Carolina Maria de Jesus, uma poética de resíduos” defendida em 2006, sob a
orientação de Tania de Macedo e Heloisa Costa Milton.

Na dissertação foi identificada a multiplicidade de discursos que compõem


Quarto de despejo. Realizamos um levantamento da trajetória da vida de Carolina de Jesus,
observando possíveis imbricamentos existentes entre as vozes de escritora, narradora e
protagonista, e apresentamos um panorama de sua fortuna crítica. A partir das ideias de
“desterritorialização”, “rizoma”, livro-radícula” e “literatura menor”, “linhas de fuga” e
“devir” (devir-fome), desenvolvidos pelos fundadores da Esquizoanálise, Gilles Deleuze e
Félix Guattari, ao longo do conjunto das seis obras intituladas Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia I e II (1995-1997), e ainda de outras, como Kafka: por uma literatura menor
(1977) e Crítica e clínica (1997), pude analisar os gestos estruturais da “literatura menor”
empreendida pela escritora.

Foram delineados os aspectos que, no sentido da reciclagem de discursos por ela


empreendida, dão à obra de Carolina de Jesus características de uma bricolagem discursiva. O
“diário de uma favelada” está montado sobre restos de discursos, assim como as habitações da
favela são construídas com os restos da cidade. Nos escritos de Carolina de Jesus encontra-se
uma forma análoga à de um barraco, que aglomera material-argumentos temporários, frase-
arquitetura imprecisa, sempre em mutação geográfico-discursiva. Sua escritura1 tortuosa se
revela na expressão mais fiel da dura rotina que marca o cotidiano de trabalho de uma mulher
negra, que percorre incansavelmente as ruas de São Paulo em busca dos restos que vão
garantir a ela as mínimas condições de vida, para suprir tanto a si quanto a seus filhos. No
entanto, mesmo sendo uma escritura obscura, ela foi trabalhada com recursos do lirismo dos
românticos que, na busca de uma perfeição formal parnasiana, confunde-se com a linguagem
das radionovelas, do romance policial, da fábula e da crônica. Carolina de Jesus inventa a
língua da fome, da escassez, do descarte, fazendo seu texto valer por si mesmo.

1 Neste trabalho, parte-se da ideia de escritura como aquela que traz um dado novo para a escrita, pois
desenvolve a criação, retratando novas línguas e elementos terceiros na criação de história e de palavra, que
variam entre o oral e a língua escrita. Para Barthes (2002), a escritura requer para si o clamor artístico,
enquanto a escrita visa o rigor linguístico, sendo ela transitiva predispondo -se mais a falar sobre algo. O
conteúdo não importa tanto quanto a forma que cria o conteúdo como uma série de elementos linguísticos
cronologicamente situados.
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Em toda a obra de Carolina de Jesus, sobretudo em seus manuscritos inéditos,


pode-se acompanhar uma tensão discursiva que encaminha o leitor para o que denominamos
uma poética de resíduos, oriunda dessa condição de marginalidade de onde ela escrevia.
Mescla elementos notáveis, se atentarmos para passagens realistas em atrito com aquelas mais
propriamente românticas, revelando as múltiplas facetas da escritora. Ela mesma afirma que é
preciso criar um instante de devaneio para que aconteça a fruição de sua escrita (JESUS,
1960, p.59-60). Em contraposição às misérias cotidianas, encontramos momentos em que ela
fala das valsas vienenses que escutava em seu barraco, da beleza do céu estrelado que ela
queria usar para fazer um vestido, do voo do colibri, como se a poesia pudesse transportá-la
para um lugar diferente, longe do odor fétido da favela e da lama que a cercava. Carolina de
Jesus era, antes, uma sonhadora quixotesca. Algumas vezes é poética na própria miséria, em
sua forma mais agressiva. Por exemplo, quando escreve que a “fome é amarela” e que os
“favelados são corvos” sobrevivendo de restos, à beira do rio Tietê. A partir da plasticidade
dessas imagens, sua obra pode ser vista como expressão significativa da re-apresentação de
uma realidade expressa por meio do “povo que faltava” (DELEUZE e GUATTARI, 2004). A
escritora se dispõe a significar e vai, ela mesma, retalhando sentidos pré-moldados,
fornecendo condições de possibilidade de expressão para o lugar social da paisagem, expondo
a semiótica dinâmica e particular das margens.

Assim, durante os estudos desenvolvidos no mestrado, perfilaram-se algumas


evidências daquela poética de resíduos que vieram dar origem à tese de doutoramento,
orientada por Vera Maria Chalmers. Nesse novo trabalho, então, objetiva-se cartografar os
processos criativos das narrativas de Carolina de Jesus, mediante a aglomeração de gêneros
literários, não literários e/ou quase literários, sobretudo pelos rastros de autobiografia que
marcam seus escritos. Foram realizadas a descrição e uma breve análise de romances (Dr.
Silvio, A Felizarda, Rita, Diários de Marta ou a Mulher diabólica), outras mais detidas sobre
as narrativas esparsas que foram recolhidas de dentro do espólio literário, tais como as versões
de Prólogo, Carta sem endereço, O canto triste, alguns provébios, O poeta, O lenhador,
narrativas sem título, pequenos projetos literários denominados por ela de “Humorismos”,
trechos de suas canções, partes inéditas dos diários e de poemas, alguns trechos das obras
publicadas. Todo esse material foi selecionado a fim de demonstrar eivadas relações entre uns
e outros na composição de sua poética de resíduos.
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Como se sabe, hoje, os textos publicados de Carolina de Jesus foram solapados


por correções, supressões, ajustes e delimitações, de modo que foram necessárias diversas
visitas aos arquivos e às instituições custodiadoras que guardam seus originais (manuscritos,
datiloscrito, microfilmados), até ser possível apreender as diferenças entre o texto publicado e
seus originais. Todo o material está dividido entre o Museu Afro Brasil (MAB), em São
Paulo, a Biblioteca Nacional (BN) e o Instituto Moreira Salles (IMS), no estado do Rio de
Janeiro, o Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswick
(APMS), em Sacramento, e o Acervo de Escritores Mineiros (AEM), em Belo Horizonte, no
estado de Minas Gerais. A partir daí, foi empreendida uma busca pelo conhecimento da
totalidade do material e uma tentativa de reconstituição mínima da integridade do acervo
deixado pela escritora, para então selecionar e analisar algumas de suas narrativas, a partir do
espólio literário Carolina Maria de Jesus.

Durante os caminhos teóricos e analíticos perseguidos na exege de tal corpus não


se perdeu de vista a concepção de totalidade sugerida por Arlertte Farge em Le gôut de
l’archive. A autora atenta para as dificuldades da materialidade do arquivo, pois segundo ela o
pesquisador não pode se esquecer de que está diante do sujeito de papel. Assim, ela
problematiza o real e a falsa totalidade do pesquisador diante do arquivo, pois o olhar é
construído através dos mecanismos de preservação que incidem sobre a obra, podendo afetar
a disposição do processo criativo e, consequentemente, da interpretação do arquivo. O contato
com o material palpável estrutura o olhar e escreve um novo arquivo, sendo os fundos de
arquivos “um mar” no qual o leitor mergulha, e pode vir a se afogar, sobretudo se não
observar as lacunas que dizem muito sobre o conjunto de uma obra.

Para aperfeiçoar e preencher diversas lacunas metodológicas sobre as técnicas do


estudo genético dessa obra foi realizado um estágio doutoral com uma bolsa do Programa de
Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES), durante o período de nove meses, junto ao seminário
“Genèse et Autobiographie” no Institute de Textes et Manuscrits Modernes (ITEM), realizado
anualmente na École Normale Supérieure de Paris, anteriormente coordenado por Catherine
Viollet, coorientadora desse estágio, e por Phillippe Lejeune, o estudioso da autobiografia,
referência na França e exterior.

O período de estágio em Paris representou um momento importante nessa


pesquisa, pois após entrevista com as jornalistas Clélia Pisa, Maryvonne Lapouge e com a
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editora Anne-Marie Métaillé, elas doaram cópias da edição de dois cadernos de Carolina de
Jesus – que nos anos de 1970 a escritora havia deixado com essas jornalistas. Esses cadernos
contêm anotações do trabalho de tradução realizado por Régine Valbert e estabelecido por
Métaillié, que deram origem ao Journal de Bitita publicado em 1982, ocasião em que recebeu
diversos prêmios. As duas versões publicadas no Brasil são resultado da tradução dessa
versão francesa do livro, publicado primeiramente na França. Portanto, o resgate desse
material2 permitiu novas possibilidades de leitura, pesquisas no domínio da crítica genética e
da tradução, e que poderá vir a ser objeto de uma publicação mais próxima do projeto literário
da escritora.

Em geral, os trabalhos sobre Carolina de Jesus tendem a valorizar sua obra como
um testemunho da favela, quer dizer, como sendo a verdadeira voz do “povo”; mas o trabalho
individual de sua escrita permanece sem atenção. Nesse estudo, portanto, ao procurar
cartografar suas narrativas, buscando compreender seus processos de criação, não somente
como uma expressão simbólica de indivíduos marginalizados, mas, sobretudo, como criação
artística, busca-se jogar luz sobre sua atividade de escritora, com toda a complexidade que
isso representa. Por outro lado, ao cartografar as narrativas, busca-se compreender os
mecanismos de associação entre realidade e ficção, estabelecida nas elisões que a escritora faz
entre as dimensões literária e autobiográfica.

Na pesquisa para a dissertação já havia ficado demonstrado que a escrita de


Carolina de Jesus não é relevante apenas pelo fato de contrariar a gramática. Se for
considerada somente a sua capacidade de traduzir a voz própria de um tal modo de expressar
e enxergar seu mundo, perdem-se as possibilidades de encontrar uma língua literária em sua
obra, aquela que forneceu a matéria-prima para sua escrita. E este é o objetivo da tese.

Seguindo a acepção crítica de Deleuze e Guattari (1977), o conjunto dos


manuscritos de Carolina de Jesus pode representar a “voz do povo que faltava”, uma voz que
vai mostrar que, para além dos deslizes gramaticais, há uma realidade testemunhada da favela,
calcada numa língua literária que se constitui matéria-prima para sua escritura, pois revela

2 O material será doado para o Arquivo de História Social Edgar Leuenroth (AEL) da UNICAMP
http://www.ael.ifch.unicamp.br/site_ael/, uma das maiores instituições da América Latina destinada à
preservação, conservação e difusão de documentos relativos à história do Brasil. Em 2010, Mário Augusto
Medeiros da Silva, pesquisador e atual docente do IFCH, entregou ao AEL os microfilmes de jornais e
originais de Carolina de Jesus, que estão na Biblioteca Nacional, como parte de seu doutorado financiado pela
FAPESP. Assim, a junção de tais arquivos permite-nos criar um fundo Carolina Maria de Jesus, a fim de
preservar a memória da escritora e facilitar novas pesquisas sobre sua obra.
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devires de um tipo de escrita marginal, o devir-chiffonnier (devir-trapeiro), empreendido em e


no processamento de sua narrativa, sua “poética de resíduos”.

Vale lembrar que Carolina de Jesus fez crítica ao desenvolvimentismo em voga e


aos emblemas da urbanização acelerada em seu tempo histórico; no entanto, ao reciclar os
tempos-espaços de sua obra, percebe-se que ela hibridiza com indiferenciação, de certo modo
obedecendo aos ditames do mercado consumidor, fundado no valor de troca e não no valor de
uso, de acordo com a teoria sobre a lógica do Capital (MARX, 1987), no equivalente geral do
tempo especular, narcísico. A expectativa do progresso não tem a ver com o progresso, mas
com a expectativa do fazer. A escritora estava abalada pelas promessas não cumpridas dos
políticos e de suas promessas, mas ela conhece e escolhe o agir. E, assim, em seu agir-
escritura, ela age através da força dessa sua própria escritura.

Em A educação pela noite, Antonio Candido (1987) comenta que até a década de
1930 predominou no Brasil uma percepção de que éramos um país novo, estávamos
embebidos em um pensamento de que a história iria promover a transformação. Após a
década de trinta, entretanto, começava-se a perceber o Brasil como um país subdesenvolvido,
jovem e atrasado. E é este o país que a escritora das favelas irá mostrar ao revelar as mazelas,
não apenas as da vida do pobre nas grandes cidades, mas o contraponto da modernização,
expresso também na pobreza do meio rural. Daí, a temática “campo versus cidade” latente em
seus escritos, tais como o “Prólogo” ou “Onde estaes felicidade?”. Mesmo de maneira
ambivalente, Carolina de Jesus não conseguia definir uma escolha pelo melhor local para
viver, talvez por indecisão porque gostava dos dois, ou ainda contaminada por um discurso de
direita. Essa ambivalência em relação à pobreza relacionada ao êxodo rural reaparece em seus
textos, em muitos momentos. Carolina de Jesus afirma ideais de uma reforma agrária,
desejando o retorno ou o envio dos pobres de São Paulo para o meio rural, propondo um
contra-êxodo associado ao discurso da UDN 3 , que era, inclusive, liderado por Carlos Lacerda,
a quem ela dirigia diversas críticas. Além disso, o partido era opositor do populismo
varguista. Mais um contrassenso, uma vez que Getúlio Vargas foi, não raras vezes, almejado e
elevado pela escritora, como podemos ler neste poema publicado em 17 de junho de 1950

3 Quando no final de 1944 começaram a surgir no Brasil movimentos políticos que exigiam o fim da ditadura e o
retorno da democracia e liberdades civis, pressionado, Getúlio Vargas antecipa o decreto de um novo código
eleitoral que garantia as manifestações e reivindicações políticas. Ent re outros, surgiu em abril de 1945 a União
Democrática Nacional (UDN), um grupo liberal de oposição formado pelas oligarquias estaduais de extrema
direita e de orientação conservadora, que propunha como reforma o contra-êxodo rural associado aos interesses
econômicos norte-americanos.
21

para o jornal “O defensor” e reescrito por ela em seu diário de 15/07/1955 – 28/07/1955 (BN,
Caderno 1, 47, GAV1, 01):

É orgulho da nossa gente


É opinião Brasileira
Que temos um presidente
Que honra a nóssa Bandeira

Getulio heroico e potente


Grande alma Nacional
Devia ser presidente
Desde o tempo de catedral

Getulio é competente
Para guiar a Nação
Foi um grande presidente
Deixo minha impressão
Nas minhas orações peço
Ao bom Deus, justo e potente
Para ter breve regresso
O Getulio a presidência (JESUS, 2014, p.54-55).

No entanto, cinco anos após esse registro, lemos nos seguintes textos, onde a
escritora tece uma reflexão sobre a desigualdade e a reforma agrária. São dois fólios
transcritos de um dos cadernos guardados no Museu de Sacramento, de localização: APMS
05.02.09, que equivale ao Caderno 9 da Fundação Biblioteca Nacional (MS-565(5):

Em um pais igual ao nosso com terras inesplorada. Onde o pobre diz: não posso viver! E
ser uma alma penada! Com tantas terras nêste onde o homem nunca penetrou. E o povo
vive infeliz comendo pão que o diabo amassou. O diabo é o capitalista que só visa
enriquecer. Alma mediocre egoísta que deixa o pobre sofrer. Com terras para agricultura
para abastecer o mundo inteiro. E o povo vive na penura. Nem sei o que pensar do
brasileiro. É, que o pobre quer plantar! Mas o pobre não tem terra. Quando o povo
começa a reclamar o governo promove uma guerra prefere empurra os nosso filhos para
lutar no campo de batalha. Enviam esses coitados para o exílio. Mas, não dá terra para o
homem que trabalha.

O que nos falta é cultura


Vontade e dinamismo
22

O que o nosso governo procura


É conduzir o povo ao habismo
É fraca a nossa alimentação
Não sentimos o seu efêito
É igual o chefe da nação
Mediocre depôis de elêito

Na campanha eleitoral
Nos promete vida deçente
Mas depois é um animal
Que nos ataca com unha e dente
Político quer enriquecer
Para não mais trabalhar
Quando o mandato vençer
Deixa o cargo vai viajar!
(APMS 05.02.09, Peças teatrais: “Oh Se eu soubesse” e “A senhora perdeu o direito”,
Fólio s/n).

Estes textos foram escritos no caderno que contém as entradas do diário de


17/07/60 e tem duas peças teatrais “Oh Se eu soubesse” e “A senhora perdeu o direito”.
Sabemos que, diferente dos cadernos de 1955, com o poema em homenagem a Getúlio
Vargas4 , esse caderno não estaria entre aqueles que foram entregues a Audálio Dantas,
quando da preparação de Quarto de despejo, tanto pelo conteúdo predominantemente literário
das peças de teatro, quanto pelo fato de os originais por não terem sido entregues por ele à
FBN, em 2011. Essas constatações relacionadas aos diferentes conteúdos expostos nos dois
poemas e na reflexão de Carolina de Jesus sobre a reforma agrária apresentam, uma vez mais,
a escritora que, embora ambígua, estava atenta aos fatos históricos que fatalmente recaem
sobre os desvalidos. No entanto, segue a dúvida: estaria a escritora se valendo dos
mecanismos midiáticos para ganhar visibilidade em 1955, e depois, mais amadurecida,
demonstraria seu desencanto com a política brasileira em 1960?

Mas o que Carolina de Jesus faz com sua escritura seria um inventário ou uma
invenção? Como foi possível constatar na pesquisa da tese, seus textos não se apresentam

4 Getúlio Vargas morreu em 24 de agosto de 1954, e em 1955 ela, ambiguamente, reza para ele voltar a ser
presidente.
23

apenas sob o fluxo do discurso oral, havendo diversas modificações ao longo das várias
versões reescritas, o que lhes imputa um caráter ficcional e nos permite retornar a eles através
do investimento dessas transformações (rasuras, confirmações, supressões, substituições e
complementos).

No entanto, mesmo estando os documentos bastante dispersos, ainda assim,


pudemos cartografar um breve dossiê. Se um maior número de teses cujos autores houvessem
estudado os originais de Carolina de Jesus, haveria maior produtividade sobre sua obra, já que
o contato com o conjunto dos escritos permite ver diversas possibilidades de estudos e de
publicação mediante a presença dos vários gêneros experienciados pela escritora. Mas, se
pensarmos que o conjunto dos escritos de Carolina de Jesus, em geral, parece ser adaptado
para um público imaginado de antemão por ela, talvez se possa inferir que seu processo
criativo revela mais do seu pretenso destinatário do que da própria escritora. Mas qual seria o
teor dos textos e a quem se dirigem, ou seja, quem seria seu público-alvo?

Em sua obra, os locais esquecidos são reconhecidos como necessidade. Ela pinta o
que deseja rever, efetuando uma reapresentação voltada para o local do esquecimento,
gerando uma impressão desse porvir como escritura. Esse movimento mostra a existência de
uma iminência estética, muitas vezes contraditória, por sua tendência híbrida. Assim,
emergindo do limbo como nos arquivos mortos, par de chose, os arquivos de Carolina de
Jesus expõem sua iminência poética na medida em que compõem a reinvenção de um modo
de existência e subjetividade particulares.

Buscamos seus arquivos para conhecê-los, sobretudo. Assim, fomos encontrar


para decodificar textos que fossem próximos ao gênero conto, mas nos perdemos entre teias e
labirintos de textos refratados. Como mostra Derrida (2008), o arquivo é fragmentação per se,
um deslocamento contínuo, e dele podemos depreender uma ideia de tempo explosivo. O
autor nos leva a refletir junto a Carolina de Jesus, e perguntar: como ler aquilo que não cessa
de ser escrito? Essa travessia incessante e acidentada, esse devir-obra, ou seja, o arquivo da
obra que ainda não aconteceu, que vem e continua vindo, reiterado, acontecimento inacabado
das narrativas inéditas, estas com as quais tivemos contato. O arquivo, então, se coloca para
nós como iminência: um presente que não cessa de acontecer, um porvir obra completa de
uma artista, aquilo que não aconteceu.
24

De certo modo, a disponibilização do espólio literário de Carolina de Jesus gera


uma memória poética, já que esses documentos permitem novos desvendamentos quando
interpretados e quase poetizados por nós, leitores-autores, sobretudo ao serem vislumbrados
pela crítica literária. Passa-se a olhar esse passado em movimento ou em aberto, de posse
desse presente agora partilhado. Como vimos, o registro passa a narrar, pois a memória não é
mera depositária de lembranças, mas é aquela ferramenta que nos permite começar com graça
outro passado. Praticando uma re-interiorização do vivido e uma inauguração do ser através
da palavra, a linguagem caroliniana instaura-se pela capacidade de memória, um voltar ao
ponto de partida para dar princípio à vida: “no princípio era o verbo”, e se há verbo é porque
há um princípio, um discurso.

Carolina de Jesus parece arquivar um futuro, desejando ficar para a posteridade,


sobretudo em seus “Prólogo(s)”, sempre recomeçando um novo passado à prise d’image;
assim, vemos em sua obra o presente se fazendo eternidade peremptória. Seu processo
criativo é um projeto disparador de ideias e reflexões, mas também de busca do
embelezamento e de encontros com a literatura.

A criação de estratégias cartográficas para acessar e experimentar o arquivo da


escritora possibilitou-nos uma experiência estética inusitada, pois essas coisas-textos afetaram
nosso corpo ao mobilizar formas de pensar um tipo de arquivo refratado, no qual os textos se
desencontravam e se reencontravam em cadernos diferentes o tempo todo. A cada dia
suscitando mais e mais questões dessas memórias encapsuladas, à margem, e repletas de
germes de uma memória viva, ocultada nos mais variados esconderijos, mas à espera de
ativação.

Os arquivos são fragmentos, tanto como as características imanentes a essas


narrativas fraturadas (e da infração que elas denotam), de modo tal que os deciframentos e a
aproximação do pesquisador com esses arquivos também é fragmentada, pois a aproximação
daquele que interpreta resulta em retalhos de interpretações entre esses arquivos e a realidade.
Arquivo é uma construção da realidade a partir daquele que o trabalha. Sendo assim, foi
necessário delimitar o estudo para não nos perdermos no labirinto caroliniano. Um dos
desafios foi pensar em como legitimar a escolha das palavras-chave para analisar partes desse
arquivo. De modo que essa prática se torna, em si mesma, a geração de uma autoridade
justificada como elemento necessário para organizar o passado.
25

Através do exame desses arquivos foi possível observar como o fazer uma obra se
diferencia do agir numa obra. Agir nos vem como um diagrama de objetos que resultam de
forças iminentes em nosso corpo. Deslocamento de cartografia do presente que dá sentido às
coisas; é o sujeito em ação agindo sobre seu próprio destino. O fazer conjuga-se como
executar, desempenhar; como gesto traçado no mapa das intenções de até onde seu autor quer
chegar; e, por mais criativo que seja, tudo permanece o mesmo, pois cada dado converge para
a economia da obra vicejada por seu autor-compositor. O agir é inato, é o desinteressado
tecer, como Bispo do Rosário tecia incessantemente seus estandartes dentro de sua cela-forte.
Ele não objetivava fazer uma obra, apenas agia. Os manuscritos de Carolina de Jesus se
aproximam desse lugar tácito, impensado, como em Bispo do Rosário: a escritura como
alimento. A escritura como vida, como a própria existência; não apenas como trajeto, mas sim
como instauração de um lugar. Uma vida-escrita ou por escrito repleta de uma potência
impessoal emaranhada de técnicas de si e de suas infindas variações.

Do mesmo modo como Bispo do Rosário bordava a letra que faltava, Carolina de
Jesus desenha a escritura que faltava – ambos materializando a palavra ao primar pelo
significante –, inscrevendo seus corpos em suas obras. A borda do furo de Bispo do Rosário é
a economia de cada linha miraculosamente preenchida por Carolina de Jesus 5 . Partindo do
mesmo ponto de vista da subjetividade, que se move dentro dos limites marcados por sua
condição marginal, está a “corpoeticidade” presente na expressão poética de Miró da
Muribeca, um ex-morador de rua, não por acaso também negro e pobre, e nas declamações de
seus performáticos poemas urbanos pelas ruas do centro de Recife (PE). Essa
“corpoeticidade” vem marcada por três substantivos como dialéticas ressignificadas pelo
poeta em forma de “poesia no corpo, corpo na poesia e cidade na poesia”, como analisa
Rosário (2014)6 .

Os manuscritos de Carolina de Jesus permitiram à pesquisadora evidenciar


lacunas e diálogos transversais que se entrecruzam e se atravessam deixando pistas para
iluminar os caminhos percorridos pela escritora. Pôde-se ver como a memória vai emergindo
das lacunas, evidenciando abismos, fraturas, de modo que, partindo de questionamentos

5 Ver “Bispo e Jesus: poética de sucatas”, de R. FERNANDEZ (2010), apresentado no XI Encontro da


ABRALIC – Internacionalização do Regional, de 10 a 12 de outubro de 2012, na UEPB-UFCG, Campina
Grande (PB). Anais da ABRALIC (2012), vol. 1, n.º 1 [ISSN 2317-157X]
6 Ver ROSÁRIO, André Telles. Corpoeticidade e a literatura performática do poeta Miró de Muribeca. Rio de
Janeiro: Multifoco, 2014.
26

levantados nos documentos rasurados de Carolina de Jesus, interpretam-se seus interstícios (a


liberdade dos falares) e consideram-se as incertezas da memória como possíveis verdades. A
não linearidade dos escritos permite adentrar por qualquer fio tecido desses textos que, a
exemplo dos textos de Benjamin (2010)7 , representa uma fonte mais além do testemunho da
artista.

A visualização mesma do palimpsesto, do ato de riscar e escrever de novo, já se


apresenta como um traço identificatório do fluxo contínuo da memória.

A “poeta da favela”, como Carolina de Jesus gostava de se autointitular, praticava


em seus escritos as mais diversas formas de gêneros textuais, literários e não literários.
Portanto, em seu acervo, encontramos diários, peças teatrais, contos, fábulas, romances,
crônicas, cartas, provérbios, poemas; também compôs dois long-plays (LP)8 com samba,
marcha-rancho, xote, canção e uma valsinha. Carolina de Jesus tocava violão, recitava seus
poemas para políticos e celebridades ou mesmo pelas ruas de São Paulo, com o saco de
catadora de lixo às costas. Também, encontramos registro da criação de um “vestido elétrico”,
no qual ela colocava lâmpadas que acendiam; e ainda de refazer, a cada ano, uma fantasia de
carnaval com penas de galinha d’angola, para contrapor às plumas e paetês das belas vedetes,
que desfilavam com toda pompa nas famosas avenidas.

Todas essas criações, experimentadas em seu devir-artista, emitem certo ruído,


pois estão num embate fronteiriço umas com as outras, sobretudo quando colocados diante de
seus 56 cadernos com mais de cinco mil páginas manuscritas autográfos e datiloscritas9 .

No dia 27 de maio de 1957, ela diz no jornal Última Hora: “Minha diversão
predileta: ouvir o rádio. Gosto de novelas do Wálter (Gerhard) Forster e música de (Antonio)
Rago. Quando não estou escrevendo ligo o rádio e escuto. O rádio tem me ensinado muita
coisa”. Carolina de Jesus excursiona pelas artes em geral demonstrando sua versatilidade. Seu
aprendizado autodidata é também em boa parte auditivo, reiterando as influências de sua

7 Ver, por exemplo, a maneira como Benjamin escreve seu texto “Sur le concepte d’histoire”. In: Ouevres III.
Paris: Gallimard, 2010, p.427-443.
8 Um dos discos foi gravado pela RCA Victor e outro foi colocado em prova pela Fermata (cf. JESUS, 1996,
p.297).
9 MEIHY, José Carlos Sebe B. Contos das ruas. Semialfabetizada, Carolina Maria de Jesus vendeu mais de um
milhão de livros só no exterior. Revista de História da Biblioteca Nacional ISSN-1808-4001. (05/05/2010).
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/leituras/conto -das-ruas. Acesso em: 13/02/2011.
27

formação cultural com o avô griô (griot)10 e suas intermináveis conversas pelas ruas e praças
de Sacramento (MG), com seus netos e vizinhos.

Iniciamos esta tese discutindo o processo criativo de Carolina de Jesus,


observando como ocorrem as manifestações literárias e não literárias em algumas narrativas
dessa escritora. O agenciamento de fragmentos discursivos mobilizados nos textos nos levam
até processos de reconstrução identitária.

Assim, a partir das considerações de Ricoeur sobre a “identidade narrativa”, na


perspectiva teórica de Willemart, sobre o papel do scriptor11 foram analisadas as
interferências e influências que incidiram sobre sua escritura, que pode também ser
considerada uma poética à cata ou da catação, permeada por intervensões em suas
publicações. Mesmo que, no caso desses fotogramas aqui analisados, não poderem ser
considerados manuscuscritos, uma vez que a escritora não usou o fotograma como um recurso
para externar sua criação.

A segunda parte do estudo deu ênfase à genealogia dos textos que apresentam
diversas versões, a fim de compreender como as modificações incidem sobre o conteúdo e as
formas dessas versões, de acordo com os métodos da Crítica genética francesa, discutindo
algumas das consequências das formas de criação da escritura de Carolina de Jesus. Foi
observado em que medida as narrativas dispersas, repetidas ou inacabadas aparecem na coleta
dos fragmentos de discursos da escritora em seu devir-trapeira de literatura-reciclagem que
atuam tanto na sua vida quanto na sua escrita.

10Segundo Houaiss (2012, p.1.484), Griô, no Sudão e em parte da zona guineense, poeta, cantor e músico
ambulante pertencente a uma casta especial que, além de cronis ta e detentor da tradição oral do grupo, freq.
exerce atribuições mágico-religiosas. (...). No Brasil, o Mestre Griô é o detentor de conhecimentos transmitidos
por gerações através da linguagem oral, sendo o indivíduo que leva em sua língua todo os saberes , teóricos e
práticos, que compõem as tradições de um povo; ele é a memória viva da família. Contando estórias e fazendo
história, o griô é o ser ancestral que valoriza o poder da palavra, da oralidade, das ligações afetivas dentro da
comunidade. Etimologia: do fr. Griot (1688), de guiriot ‘músico ambulante da África Negra’. Para saber mais,
buscar em: LIMA, T.; NASCIMENTO, I.; ALVEAL, C. (Orgs.). Griots: culturas africanas. Natal: EDUFRN,
2012.
11Segundo Willemart (1999), o scriptor ocuparia o espaço entre a mão que começa um projeto de escritura até
chegar ao autor que assina o manuscrito final. Como os livros, publicados, de Carolina de Jesus jamais
passaram pelo crivo de seu jugalmento (no processo de edição), neste estudo considera-se a presença do
scriptor como fio condutor para análise do processo criativo de uma obra em porvir, tendo sido realizadas, para
esta análise, algumas as intersecções com as edições de autoria duvidável, não do ponto de vista de quem
escreveu, mas de seus editores que decidiram as versões finais das obras que foram publicadas.
28

Depois dessa imersão do leitor no universo da escrita caroliniana, desconhecida


para aqueles que não leram seus originais, partimos para uma apresentação do “Trajeto dos
manuscritos e da vida”, dedicado a contar a história de sua vida em conjunção com a trajetória
de seus manuscritos, narrada em seus textos, mas também através de fontes como jornais,
revistas, artigos, como se pode acompanhar em “Percursos de uma catadora de palavras na
recolha de sentidos”. Em “As fontes dos manuscritos”, procura-se realizar um mapeamento
dos manuscritos de Carolina de Jesus, bem como dos estudos referentes a eles; pensamos ser
necessária essa visão geral dos textos esparsos na colaboração a possíveis pesquisas sobre o
assunto. Assim, estabelecemos um catálogo geral de todos os originais encontrados. Na
segunda parte, apresenta-se um levantamento sobre “Histórico de publicações” e a “Recepção
da obra”, pontos importantes para se pensar os movimentos de seu processo criativo, mas
também as nuances entre um escritor marginal e um de centro.

Finalmente, chega-se a uma explanação do gênero textual que sustenta seu


processo escritural: a autobiografia como fio condutor de sua criação. Pelas pegadas do devir-
trapeiro da literatura de Carolina de Jesus identifica-se o lugar da escritura autobiográfica
tanto na vertente memorialista quanto na diarística, ambas experimentadas na composição da
escritora. Os traços autobiográficos, salutares aos desvendamentos da imperfeição e
(hiper)feição de si, corroboram para uma gestação do seu devir-escritora. Isto levando em
conta que sua obra, de um modo muito particular, como veremos adiante, se nos apresenta
como uma narrativa poética.

Desse modo, pretende-se contribuir para as pesquisas sobre Carolina de Jesus e


seu espólio literário, universo rico e com ainda muito a ser explorado em suas fontes originais,
revelando-se como um delicado tesouro inexplorado do patrimônio brasileiro escrito.
29

Capítulo I

PROCESSO CRIATIVO DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS


30

I.1 Narrativas da iminência e identidade narrativa

Ce que nous écrivons est nécessairemet le même,


Et le devenir de ce qui est le même est, en son
Recommencement, d’une richesse infinie.

(Maurice Blanchot)

Repetir, repetir – até ficar diferente


Repetir é um dom do estilo.

(Manuel de Barros)

O crítico literário francês e teórico da literatura Gérard Genette, em Palimpsestos:


a literatura de segunda mão (1982) observou que o objeto da poética não é o texto em si, mas
o que ele denominou como a arquitextualidade do texto, definida como o conjunto das
categorias gerais ou transcendentes como, por exemplo, os tipos de discurso, modos de
enunciação, gêneros literários, etc. Em seu conceito de poética o autor observa a
transtextualidade ou transcendência textual do texto, e diz que todo texto coloca-se em relação
com outro; por isso, mantém, manifesta ou oculta, alguma semelhança com outros que o
antecederam. Metaforicamente, este autor se refere à criação literária como uma prática
análoga à dos antigos pergaminhos em cujo couro eram gravadas as inscrições, e estas eram
sobrepostas após a raspagem do texto anterior. Segundo ele, a inscrição que foi raspada para
que outra fosse escrita não é, de fato, de todo apagada, de modo que se pode lê-la por
transparência, ou seja, lê-se “o antigo sob o novo”. Assim, no sentido figurado, são
palimpsestos aquelas obras que fazem referência a uma obra anterior, ou que dela decorre por
“transformação ou imitação”. (GENETTE, 1982)

É este gesto estrutural, figurado na prática do palimpsesto que promove a escritura


de Carolina de Jesus em seu processo criativo, decodificado por meio de diferentes versões de
suas narrativas, algumas manuscritas, e constituídas de diversas variantes discursivas literárias
e não literárias, como um centão12 a compor sua poética de resíduos. A escritora também faz

12 CENTÃO: Composição poética ou musical, de origem greco -latina, formada por uma “manta de retalhos” (do
latim cento) de sentenças, expressões alheias, versos ou melodias de vários autores (pot-pourri), ou de um só
31

palimpsesto de sua própria obra, tanto aproveitando ideias e textos alheios quanto
reelaborando seus textos anteriores. Vejamos exemplos do primeiro caso, em que a escritora
se vale de um poema de Olavo Bilac com a intenção de parodiá-lo. Embora nas descrições da
FBN tenhamos encontrado a indicação de que no Caderno 6-MS-565(4) está um texto com
dezesseis páginas com dados autobiográficos, quando esses originais são analisados com a
lupa de um geneticista nota-se a existência de uma sorte de hibridismo literário, exercitado de
maneira orgânica por Carolina de Jesus. Tem-se nesse caderno, assim como nos demais que
compõem o MS-565(4) e MS-565(5), toda sorte de textos em um mesmo caderno: poemas,
pensamentos, provérbios, narrativas curtas, quadrinhas, peças teatrais, romance, cartas,
memórias autobiográficas e diário.

Na passagem escolhida, observa-se que após narrar uma empreitada diária de seu
cotidiano difícil, a escritora seleciona um trecho do poema “A pátria”13 de Olavo Bilac para
parafrasear sua rotina nada venturosa, ironizando o ideário ufanista (da primeira República)
presente na poesia pedagógica do poeta. Este tipo de recolha do discurso alheio, como fonte
inspiradora para o pastiche14 , é um dos movimentos de captura de caráter crítico encontrado
em sua escrita. Noutro momento, em Quarto de despejo, Carolina de Jesus parafraseia
Casimiro de Abreu, autor bastante comentado por ela em suas rememorações, devido ao
impacto que lhe casou, por ter sido ele o primeiro poeta que ela conheceu.

autor. É condição fundamental que o centão reconstitua os elementos dispersos dos quais parte até obter uma
nova composição, com um novo sentido. Pode-se aproximar este conceito da ideia de bricolagem. Os poemas
homéricos e virgilianos deram origem a muitos centões, sobretudo a partir da Era Cristã. Na Renascença
italiana, Dante e Petrarca também inspiraram centões. O poema “Antologia”, de Manuel Bandeira, é um centão
feito de versos seus. Bibliografia: F. Ermini: Il Centone di Proba e la poesia centonaria latina (1909); O.
Delepierre e Van de Weyer: Revue analytique des ouvrages écrits en centons depuis les temps anciens jusqu’au
XIX siècle (Genève, 1968; 1ª ed., Londres, 1868); R. Herzog: Die Bibelepik der lateinischen Spätantike, Tomo
I (1975).
13A PÁTRIA – Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! / Criança! não verás nenhum país como este! /
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! / A Natureza, aqui, perpetuamente em festa, / É um seio de mãe
a transbordar carinhos. / Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos, / Que se balançam no ar, entre os
ramos inquietos! / Vê que luz, que calor, que multidão de insetos! / Vê que grande extensão de matas, onde
impera / Fecunda e luminosa, a eterna primavera! // Boa terra! jamais negou a quem trabalha / O pão que mata
a fome, o teto que agasalha... // Quem com o seu suor a fecunda e umedece, / Vê pago o seu esforço, e é feliz, e
enriquece! // Criança! não verás país nenhum como este: / imita na grandeza a terra em que nasceste!
14 Segundo a teorização de Gérard Genette, em Palimpsestes, o pastiche é apontado como um recurso
transtextual, classificando-se como uma forma de hipertexto uma vez que se trata de um texto que obedece a
uma lógica derivacional face a outro que lhe é anterior (o hipotexto), estabelecendo com o texto matriz relações
de imitação.
32

Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu
Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no inicio da rua Pedro Vicente. As
folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Patria.
[...]. Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no
Casemiro de Abreu, que disse: “Ri criança. A vida é bela”. Só se a vida era boa naquele
tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: Chora criança. A vida é amarga
(JESUS, 1960, p.36).

O palimpsesto como acontecimento em sua própria obra aparece nas várias


maneiras, como os originais sofrem algum tipo de transformação: diversas versões de um
mesmo texto, sobreposição de trechos colados sobre e acima de outros; rasuras, isto é, que em
si já inferem sobre o texto, sendo elas correções e acréscimos feitos a lápis e com canetas de
diferentes cores.

Neste caso as rasuras podem também estar no plano dos mecanismos do


autodidatismo, uma vez que ela recorre a seus antigos escritos para retificar e formalizar em
seu gesto de scriptor, a correção de palavras, ideias, inadequações semânticas, de acordo com
os acertos descobertos em suas leituras, inclusive, dos dicionários que lhe foram ofertados por
estudantes e escritores. Entretando, em termos de um percurso genético, rasurar não está no
plano da correção stricto sensu, pois rasurar está num plano em que não cabe o certo ou
errado, apenas no caso do erro evidente de uma palavra mal-empregada. A rasura é a
tranformação de tudo, sendo ela a entrada em uma nova entrada. A artista está no campo em
que para ela vale tudo, então ele acrescenta, transpõe e substitui ao bel-prazer.
33

Documento 1:

Documento 01: Fac-símile.

Notação:
Localização: FBN-MS-565 (5)
Localização: APMS 04.02.13

Análise documentária:
APMS – Caderno autógrafo a grafite, papel branco amarelecido, escrita no anverso e
reaproveitamento de cada espaço livre do papel, capa dura, acabamento costurado com
lombada danificada, folhas soltas e mutiladas, apresentando sinais de fungo. Dimensões: 17 x
23 cm; 222 páginas; F. s/n. Rasuras a grafite, ao correr da pena ou em leitura posterior,
indicam dois momentos da escritura, sendo a segunda marcada por confirmações da
ortografia.
FBN – Coleção Vera Eunice de Jesus Lima; microfilme identificado como “Miscelânea” (2a
parte); Caderno 10.

Classificação de gênero:

Fólio pertencente ao “Diário 33” (24/12/1960 a 24/01/1961), datado de 25 de janeiro de 1961.


O manuscrito refrente compõem-se de: texto autobiográfico com partes da 2a versão de
“Diário de Bitita”, diário e poemas.
34

Transcrição do trecho:

(...)
Todos os favelados estão/
magros. É deficiência alimentar/
falta d água. Olhando aque/
las crianças raquíticas/ pensei nos versos de Olavo/
Bilac/
Criança ama a terra que/
nacêste/
Não veras no mundo ,
pais igual a êste
Eu estava com dez anos
quando li êste verso//
e concordei com o poeta.
Naquela epoca não existia
favela. Não existia fome.
Os preços dos generos de
primeira necessidade era
ao alcance de todos
(...)

A máquina literária da escritora favelada se ergue de sob os escombros de um


lirismo beletrista, que considera o belo como o próprio da arte, assim como o fazem os
sambistas; recordemos que ela também era uma compositora de sambas, fazia parte dessa
fração do povo que produz arte nas franjas da sociedade e, através dela, expressa sua condição
social. Aquilo que, muitas vezes, é denominado “estética da fome”, “literatura marginal” ou
“literatura periférica”, para nós pode ser entendido como uma poética de resíduos, uma
reciclagem literária ao modo de um bricoleur15 que vai colando, no seu texto, pedaços de

15 Texto eivado de ligações teóricas que procura revelar a poética de resíduos (aglomeração de discursos ou pode
ser um recurso) de Carolina de Jesus tendo como eixo a bricolage, desde “As nascentes” de Levi-Strauss e
depois vem sendo transpostas; e a bricolagem como uma apropriação que se move na maior liberdade porque
conserva, transfere e muda campos. Ao analisar Macunaíma, Gilda de Mello Souza observa que esta obra não
foi construída a partir da mimesis, e sim “a partir da combinação de uma infinidade de textos pré-existentes,
elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira” (p.10). Em seguida a
estudiosa estabelece relação entre o bricoleur de Levi-Strauss e o processo de criação dessa obra, dizendo: “O
processo talvez se aproximasse mais da bricolage, tal como a descreve Lévi-Strauss, e isso também já foi
lembrado pela crítica. O bricoleur procura realmente a sua matéria-prima entre os destroços de velhos sistemas.
No entanto, seu gesto é norteado por um objetivo lúdico, por uma sensibilidade passiva, e esta se submete
sobretudo ao jogo das formas. Diante do elenco de detritos que tem sempre à mão, o bricoleur se abandona a
uma triagem paciente, escolhendo ou rejeitando os elementos, conforme a cor, o formato, a luminosidade ou o
arabesco de uma superfície. A figura que irá compor em seguida, combinando a infinidade de fragmentos de
que dispõe, poderá ser muito bela, mas, como respeita as imposições da matéria aproveitada, é caprichosa,
cheia de idas e vindas, de rupturas, e não revela nenhum projeto. É impossível inscrever neste horizonte raso de
acasos, onde o sentido emerge e se extingue s eguindo a vida breve das formas, o livro intencional e cheio de
ressonâncias de Mário de Andrade. Mais do que na técnica do mosaico ou no exercício da bricolage, é no
processo criador da música popular que se deverá, a meu ver, procurar o modelo compositiv o de Macunaíma.
(SOUZA, p.11). ## Rapsódia (Macunaíma). Chamie comenta que Macunaíma é uma fábula de fábulas ou um
“discurso de discursos”. A sua organização compositiva o demonstra. Mário de Andrade coletou lendas, contos
35

discursos alheios, procurando uma aproximação com essa ‘clássica’, linguagem entendida
como “arma” crítica, ela vai colando retalhos ou restos de ideias e de formas em seus
experimentos de escrita. Uma alquimia muitas vezes venenosa para a crítica de linhagem mais
tradicionalista, que privilegia os ditames do cânone, ou um antídoto entusiástico para as
aberturas críticas, sobretudo os estudos pós-colonialistas16 , de gênero ou raciais. Nesta
pesquisa, mais do que buscar alinhamento junto a posturas teóricas – envolvida na avalanche
de papéis desmembrados de seu espólio – procurou-se compreender a composição da
escritora, sua dinâmica, seu modus operandi.

Em Carolina de Jesus ocorre um processo de escritura que gera um efeito de


iminência nas narrativas, isto é, um presente que não cessa de acontecer, daí os traços
autobiográficos marcantes dentro desses textos a embaralhar os elementos narrados. Nesse
sentido estamos de acordo com o primeiro estudioso a se deter na leitura e disseminação
desses manuscritos:

Em conjunto, os escritos deixados somam-se em cerca de quatro mil páginas


manuscritas, cuidadosamente recolhidas por ela própria (...). O volume,
contudo, é muita coisa até para profissionais da escrita. Se é verdade que isto
interessa, sob muitos pontos de vista, para pessoas preocupadas com a
história cultural brasileira, a produção de Carolina releva-se como um
monumento pelo menos intrigante (MEIHY, 1996, p.22).

Assim, no processo criativo das narrativas da escritora, estas aparecem marcadas


por fragmentos que contribuem para a elaboração da recolha e sobreposição dos retalhos,
nesse caso, dos “fatos”. Este procedimento é uma característica da escritura dos diários, isto é,
a insistência de um presente que acontece sem cessar, revivificado através da memória, uma
forma de iminência transbordante e transformadora do eu em constante decodificação e
mutação. Nesses textos não há uma história de si em acontecimentos cristalizados, mas o
empreendimento de uma escritura que se refaz o tempo todo, em um trabalho autodidático, no
qual a obra, munida da linguagem do relato e de alguns aspectos da linguagem ficcional,
permite em seu entremeio a convivência de toda sorte de gêneros e discursos.

populares, romances, etc. do vasto repertório brasileiro. Respeitou a integridade prosódica de cada um deles
(CHAMIE, 1972, p.72-73).
16 Dentre outros, cito Franz Fanon, Albert Memmi, Stuart Hall, Homi Bhabha, Ángel Rama, Edward Said.
36

A escrita diarista e memorialista acompanha todo o percurso da obra, ora como


ajuste e preparação da obra mesma, ora como terapia que se escreve à revelia do desejo de ser
escrita pela escritora, e como Leitmotiv de onde Carolina de Jesus extrai temas ou
acontecimentos inteiros reaproveitados, reciclados em suas narrativas curtas como aquelas
hibridizadas com intenso traçado e desfecho ao modo das fábulas, em seus romances, ou
noutras consideradas por ela como seus “Humorismos”, e que ela reaproveita duas situações
por ela vivenciadas para ironizar sua própria vida em forma de anedota. Como nesse exemplo:

Documento 2:

Documento 02: Fac-símile.

Notação:

Localização: APMS 02.01.07

Análise documentária:

APMS-Caderno autógrafo a grafite, papel branco amarelecido, escrita no anverso e


reaproveitamento de cada espaço livre no papel, capa dura, acabamento costurado com
lombada danificada, folhas soltas e mutiladas apresentando sinais de fungo. Dimensões: 17 x
23 cm; 222 páginas; F. s/n. Rasuras a grafite, ao correr da pena ou em leitura posterior,
37

indicam dois momentos da escritura, sendo a segunda marcada por confirmações da


ortografia.

APMS – Caderno autógrafo a grafite, sem capa, acabamento grampeado, danificado com
folhas soltas; F. s/n.

Estatuto genético:
Corresponde à primeira versão dos textos inéditos intitulados “Humorismos”.

Diário de 27/01/61 a 22/02/61


Tipo: escritos autobiográficos e diversos

Transcrição do FTG:

Quando eu era empregada Quando eu trabalhava como


doméstica, trabalhava com empregada doméstica, se o patrão
má vontade, porque o meu me despediam eu deixava um
desejo era ser artista. Queria verso escrito na parede para
ser cantora. Quando eu via uma exasperar as patroas.
artista no palco, invejava-a Eis alguns:
Nos meus dias de folga lá estava Não gosto de trabalhar
eu, ou no teatro, ou nas rádios para os donos de pensão.
e na redação do Jornal O dia. Que quer tudo muito limpo.
Conversando com o saudoso Mas não quer cómprar sabão.
Chico Sá, pôis pretendia ser Se a gente dá um passo.
escritora. Quando eu escrevia A patroa está sempre junto.
versos ia na redação para E vive sempre observando.
ouvir a opinião do senhor Se a empregada come muito
Francisco de Sá
Uma noite entrei na redação
e disse: o senhor quer ouvir A mulher é o símbolo da
os últimos versos que escrevi? purêza e da virtude .
O senhor Francisco Sá coçou a se elas tivessem estas noções
Cabeça e disse-me: teriam mais pudôr nos trages
_oh, meu Deus! Porque é, que
Eunão nasci surdo!

O primeiro texto autobiográfico localizado à esquerda no quado está mais bem


estruturado e no final traz a citação: “Uma noite entrei na redação/e disse: o senhor quer ouvir
os últimos versos que escrevi? O senhor Francisco Sá coçou a Cabeça e disse-me: _oh, meu
Deus! Porque é, que Eunão nasci surdo!”, que reaparece isoladamente muitas vezes noutros
fólios. Sendo este texto anterior ao do quadro seguinte, pois no texto “A empregada”,
transcrito a seguir, pode-se perceber a elaboração do fato vivido, narrado e reapresentado,
através de estratégias ficcionais. No segundo texto, observa-se a estilização da citação “eis
38

alguns”, acima sublinhado, que o antecede, além de rimas toantes e consoantes que favorecem
a sonoridade, contribuindo com a coesão dos versos: junto/muito; pensão/sabão. O texto “A
empregada” também carrega elementos autobiográficos ao retomar o tema da empregada
doméstica, com destaque para a enumeração na caracterização dos tipos “patrão/patroa”. No
entanto, este texto é mais esgarçado; ele não tem o ritmo do poema de estilo nordestino. E,
apesar de estar próximo dessa linguagem popular, ele se parece mais com uma fala-confissão.
Seu desfecho tem a forma de uma sentença, de um ensinamento, bastante próximo da fábula,
por ser proverbial, perfazendo o ardil como manifestação de uma ironia nilista sobre si
mesma, através da influência retórica contundente, presente em seus escritos (MUECKE,
1995).

Tanto a insatisfação no trabalho de empregada doméstica, em função das


humilhações citadas, quanto a condição de poeta repelida e menosprezada são temas tratados
aqui com humor, como um auto-escárnio, como se pode ver a seguir nos textos autógrafos
transcritos, encontrados em duas versões, uma nos cadernos APMS e outra que supostamente
seja a segunda versão, como será explicado adiante na análise da cronologia dos cadernos que
estão no IMS:

Texto 1:

A empregada

Uma jovem dêixou o interior e vêio empregar-se em São Paulo para ganhar mais. Não
apréciou o São Paulo com seu bulicio diario e o seu clima enigmático. Enfim, ela estava
discontente regressou ao interior.

As amigas fôram comprimenta- la e saber que tal é São Paulo.


Ela respondeu-lhe assim

Quando eu era empregada


Sofri tanta humilhação
As vêzes eu tinha vontade
De dar uma surra no meu patrão

Era um patrão malcreado


Não deixava eu parar um segundo
E o diabo ainda falava:
De mim, para todo mundo.
Obrigava eu levantar
39

A uma da madrugada.
E ainda andava dizendo
Esta malandra, não faz nada

Se a gente da um passo,
O diabo esta sempre atrás
Vive sempre pondo defêito
Em todo serviço que a gente faz

Não gostei de trabalhar,


Foi para as donas de pensão,
Que quer tudo muito limpo
Mas não quer comprar sabão

Se a gente da um passo
A diaba, esta sempre junto.
Vive sempre observando,
Se a empregada come muito//
Vive sempre pondo defeito
_Em todo cerviço que a gente faz

Neste texto nota-se que a escritora procurou elaborar elementos do vivido através
da utilização de palavras e expressões que pertencem a um vocabulário mais elaborado, como
“bulício” e “clima enigmático”. Um ponto que merece destaque é a estrutura dos versos do
seu poema, quase todos com sete sílabas poéticas – redondilha maior17 – o que remete à forma
da poesia antiga, que usava esse modelo de versificação. Para Carolina de Jesus, esse modo de
escrever pode ser considerado, nesta análise, a evidência de que ela pretendia, de algum
modo, sofisticar o seu texto, aliando-o a um gênero textual consagrado. Talvez, também, por
ser compositora de músicas, essa métrica lhe saísse de modo natural, aliada ao ritmo das
frases, ainda que muitos versos estejam com o ritmo quebrado, ou seja, com menos ou mais
de sete sílabas.

A narrativa também carrega traços da forma do conto quando situa o


acontecimento no tempo, utilizando o passado perfeito, e no espaço da narrativa a cidade de
São Paulo, do ponto de vista do narrador já situado no seu interior. A trama fragmentada
repete elementos das narrativas do quadro anterior, tanto nos aspectos de fábula quanto na

17Redondilha é o nome dado, a partir do século XVI, aos versos de cinco ou sete sílabas – a chamada medida
velha, que foi muito utilizada por muitos poetas, inclusive por Camões. Aos versos de cinco sílabas dá -se o
nome de redondilha menor [pentassílabo] e aos de sete sílabas, de redondilha maior [heptassílabo ]. Por serem
versos que favorecem a memorização, ainda hoje, essa modalidade é empregada nas composições populares.
40

versificação, ao repetir em versos a narrativa da empregada ao seu auditório composto pelas


amigas. Daí decorrem traços de oralidade percebidos no verso anterior, portanto como poesia
popular.

Na terceira versão, composta por um texto híbrido de prosa e poesia, repetindo a


caracterização dos tipos patrão/patroa, isto é, patrão é malcriado e fala mal; a dona de pensão
não compra sabão; a patroa persegue a empregada. Aqui, no entanto, não tem uma conclusão.
A narrativa fica em aberto; mas depreende-se a recusa pela cidade grande, a cidade de São
Paulo, e a negação ao espaço da submissão, da humilhação e da falta de tempo que conduziu
Carolina de Jesus ao trabalho autônomo de catadora, gerindo seu próprio tempo e
promovendo sua escrita: (...) “Contei-lhe que, quando eu procurava trabalho era recebida com
desprezo por ser poetisa porque o povo diz que poeta é indolente, improdutivo. Então eu
ressolvi catar papel” (MAB: 12 de setembro de 1959, “Diario 20”, F. s/n).

A revelação de uma Carolina de Jesus artista, para além de uma história singular,
procurando definir a escritora no plano estético da arte que reafirma o direito à literatura,
estendendo-o ao direito da criação literária. Reconhecimento do artista não como exaltação,
mas como valor e na dignidade da criação artística por ele realizada, merecedora do trabalho
para além do crítico, sendo capaz de juntar a escritora com Baudelaire de “Le vin de
Chiffonniers” entre outros... Em “O canto triste”, epígrafe de abertura desta tese, por exemplo,
é uma espécie de protótipo ou projeto de texto e/ou metáfora do escritor como profissão de fé,
a escrita como ofício, (p.48; trabalho de catadora promovendo seu próprio tempo da escrita).
“Resolvi catar papel”, quer dizer, ela encontrou seu papel, como espaço da escrita e suporte
de sua produção.

Carolina de Jesus esquiva, mas ao mesmo tempo busca aproximação da


sociedade, uma figura que se expõe, tropeça e se caminha (protegida) junto ao muro, como o
poeta no poema “Le vin des chiffonniers” de Baudelaire, grafado no último capítulo desta
tese.

É pelo levantamento desses detalhes que se percebe o quanto o espólio literário de


Carolina de Jesus reverte elementos biográficos, através da intencionalidade impressa nos
seus textos. Conforme Barbosa:
41

Ao ler qualquer poema, eu tenho de ler nele um pouco da história da


linguagem na qual ele se inscreve. Mas não posso chegar a isso sem passar
pelo conhecimento da linguagem ou da língua em que o poema está escrito,
que vai levantar determinados problemas, sobretudo os de ordem semântica,
que qualquer bom dicionário ajuda a resolver. Entretanto, mesmo depois de
passar por esses problemas, vou-me defrontar com outros muito graves, que
são aqueles referentes à própria história daquela linguagem (BARBOSA, s/d,
p.22)18 .

É também na própria história de Carolina de Jesus que sua poética de resíduos se


sustenta, mesmo que cause estranhamento essa busca de transformar em poesia sua história:
não a história de sua vida e, sim, poesia enquanto uma escrita de vida, exigindo do leitor uma
leitura de sob a superfície, que atente, principalmente, para a construção social da qual os
textos emergem e na qual estão submergidos.

No exemplo a seguir, também há um diálogo com o fato narrado na sequência do


fotograma, que reaparece noutro manuscrito com o título de “O poeta”.

Texto 2:

O poeta

Um jovem gostava de poesia. E queria ser poeta. Assim que chegava do trabalho
pegava o lapis e o caderno ia escrever.
Depôis ia ler para um sapateiro visinho ouvir. E era assim, todos os dias. Um dia poeta
estava lendo quando o sapateiro explodio
_Oh! meu Deus! Por que eu não nasci surdo!

Dois textos característicos da linguagem jocosa de Carolina de Jesus. Pequenas


situações que serviram de mote para representar com hilaridade os dramas que cotidianamente
a cercavam. Personagens que podem ser encontradas em qualquer lugar, fatos que podem
acontecer a qualquer um. Das coisas comezinhas a escritora vai retirando motivações e
instrumentos para reutilizar em seus processos narrativos. No entanto, quando fala do poeta,
ela está declarando onde e para quem ele lê seus poemas. Este certamente não é um poeta

18 BARBOSA, Alexandre João. Literatura nunca é apenas literatura. Disponível em:


<www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_17_p021-026_c.pdf> Acesso em 16-11-2014.
42

reconhecido, pois ele não fala em um local público em que possa ser ouvido por muitas
pessoas. Ele lê para um sapateiro, representação do homem simples, artesão curvado sobre
seu objeto de trabalho, sem interesse por literatura. Essa situação, tratada em seu texto em
forma de anedota, parece fazer alusão à sua própria condição de escritora proveniente do
espaço social à margem do mundo das letras e dos letrados. Rememorar ou trazer essa
temática em forma de narrativa evoca um “direito à literatura” para si? Ou perfaz seu destino
com ironia retórica (MUECKE, 1995) a partir de uma linguagem interjectiva? Entendemos,
então, que as duas questões podem ser consideradas.

Observa-se que a estrutura de sua escrita está construída com os elementos de sua
história, traços biográficos de sua vida que se desdobram como nomadismos de textos em
diversos tipos de suportes, assim como retomadas temáticas e as repetições enraizados na
natureza particular do processo estrutural, insituído pela sua escritura à margem da sociedade,
efetuada como uma escrita na pobreza, mas não com uma escritura pobre. Assim como seus
diários são marcados pela repetição de uma rotina, este sistema de escrita incide sobre suas
narrativas e, mesmo nos romances, as entradas apresentam um padrão na descrição de um
espaço poético, bucólico, no qual depois vão se dar as peripécias de suas personagens,
replicando suas estruturas mentais, sua memória afetiva. Lembra o que diz Bourdieu (2004)19
quando explica de que modo se dá a permanência e a atualização da cultura pelo habitus, ou
seja, pela atualização das lembranças e repetição das ações.

Sua escritura ganha força porque Carolina de Jesus consegue mediar as relações
entre vida e obra, isto é, usa as memórias como experiências para transmutá-las em literatura,
e este trânsito – pelas sensações – se faz sem dificuldade. Na entrada do romance “Rita”: “Era
uma tarde amena. O sol estava semi-oculto entre as nuvens. “Os passaros percorriam o espaço
entôando suas canções. As maripóusas exibindo suas lindas côres anuia-se entre as avês da
celagem. Tudo era prenuncio de alegria” (FBN MS-565(9), “Rita”, caderno 14, F. s/n), o
mesmo tom idílico reaparece em uma das versões da entrada do capítulo IX do romance “Dr.
Silvio”: “A tarde estava amena. As aves demonstrava alacridade. Era o outono, e do pomar
vinha o perfume dos frutos sazonados” (FBN MS-565(8), “Dr. Silvio”, caderno 9. Nono
caderno 9).

19 O habitus é um agir prático, repetido e repetitivo, que funcionaria em cada momento, no corpo,
automaticamente, como uma matriz de posicionamentos que torna possível cumprir tarefas, repetir gestos e
crenças adquiridos numa prática anterior, de numa geração anterio r. (BOURDIEU, 2004)
43

O contato com os escritos inéditos de Carolina de Jesus nos dá mostra de que eles
podem ser lidos à luz de suas especificidades literárias, relacionando, por exemplo, seu
romance aos romances folhetinescos. No entanto, a presença da memória, associada a seus
textos, no trânsito entre memória e invenção, e que sedimenta sua literatura, associando-a
diretamente à trajetória de sua formação ao modus operiandi do bricoleur – que recolhe temas
para sua escritura, dificultando a justaposição ou associação direta e clara –, dificulta que ela
se vinculasse ao que pode ser considerado “Alta literatura”, pois, a “voz do povo que faltava”,
expressa através de Carolina de Jesus não se enquadra em modelos canônicos. Portanto, mais
do que buscar incluí-la no sistema literário por similaridade, ela nos induz a uma ruptura
fractal no mesmo sistema. Com efeito, assim, gera-se a dificuladade de lê-la esteticamente sob
o viés da crítica literária tradicional.

Esse bucolismo e certo clima idílico, expressados por meio da descrição dos
elementos da natureza, estão presentes nos diários de Carolina de Jesus. Ainda que ela
afirmasse, numa espécie de anexim, que “quem nasceu pobre não deve olhar para o céu”,
muitas foram as suas miradas rumo ao alto, seja como ponto de fuga da sordidez vivida no
espaço favelado, seja como forma de aproximação às expressões “belas” e “superiores”, que
se contrapõem a “baixas” e “inferiores”, qualidades a que os espaços marginais estão
confinados. Em meio aos afazeres de sua rotina, à beira do rio Tietê, por exemplo, ela
descreve plástica e poeticamente um momento de rotina:

5 de novembro de 1959:
Levantei as 5 horas. A água esta tão pouca eu fiquei desanimada. Puis o
balde para encher e fui escrever um pouquinho. _É tão bom escrever de
manhã. O silêncio é um bom cóajuvante para quem escreve. Abri a janela
para ver se o balde estava chêio. E perpassei o olhar pelo espaço. As êstrelas
ja estavam recluindo-se. O céu estava azul claro. Acho maravilhosa a estrela
d’alva. Ela tem aureola e surge na nascente./ Com certêza ela é a rainha das
êstrelas. _Assim que o balde enchia eu ia ritira-lo. E assim enchi o barril. Fiz
café e fui comprar pão (JESUS apud PERPÉRTUA, 2014, p.327).

Assim, pode-se dizer que a exogênese (seleção e apropriação das fontes), como
traços do passado, firmados em seus diários, retornam em suas narrativas como arquivos da
memória que corporificam sua poética de resíduos. Como observa Viollet (2014, p.22) “é
muito comum salientar que os escritos autobiográficos se baseiam normalmente em arquivos,
traços do passado – essa parte da alteridade inerente ao sujeito transpessoal, intersubjetivo”.
44

Carolina de Jesus se vale de sua existência, aproximando-se de um tipo de “estética do


empréstimo” como dispositivo ou técnica de composição que tanto favorece a montagem de
seus textos, a partir de elementos emprestados e repetidos, deslocados, aprimorados e
expandidos, quanto tem o objetivo de embelezar e agregar elementos poéticos a sua
linguagem.

Nesse sentido, a assimilação e a profusão do belo à poética de resíduos não se


trata apenas de mera “imitação” do elevado, do seleto ou da “alta” linguagem beletrista e
classicista, gerando em sua obra uma “linguagem fraturada”, como, por exemplo,
[levianamente] afirma Sousa: “a linguagem fraturada de Carolina deve ser entendida pelo que
de fato é: a tentativa de uma pessoa das camadas subalternas de dominar os códigos da cidade
letrada” (SOUSA, 2012, p.21). Ao contrário, no contato com os textos originais compreende-
se que o estilo rebuscado, experimentado por Carolina de Jesus, favorece uma criação
inusitada que compreende a arte da escrita como conhecimento e beleza:

(...) Contei-lhes que custei descobrir que era poétisa. Que pensei que era
enfermidade. Que o meu pensamento é clássico que fui obrigada a ler o
clássico para compreender os derivados das frases. Que eu não posso sentar.
Quando sento os versos emana-se/ (...). Eu reconheço que sou agraciada com
o êxesso de imaginação. Mas, eu estudei para aprender escrever. Dêsde que
aprendi ler lêio todos os dias. (...)/ _Onde encontra os livros para ler?/_Eu
cato papel, e acho no lixo, e ganho alguns (JESUS apud PERPETUA, 2014,
p.329).

Entretanto, essa postura “estranha” advinda de uma “subalterna” ameaça, pois


mobiliza temas e linguagem marginais, de pessoa abandonada e confinada ao gueto, pois que
as associa às expressões consideradas legítimas e superiores. Este gesto incomoda mais pela
persona que segura a pena do que pelo ato em si – de escrever – que poderia ser considerado
genial e excêntrico se advindo de uma escritora que dominasse o verbo cultivado, segundo os
padrões do centro do polissistema.

A realização dessa rede de escritura acede a uma nova leitura da prática


documentária sobre o acervo, no qual obra e documento estão interligados de tal modo que, ao
ler Carolina de Jesus, pode-se trabalhar dentro e fora do sistema das artes. Uma operação
dialética, na qual o documento promove um estranhamento diante da obra. No entanto, não se
pode vê-la como uma obra total, mesmo diante de lacunas primorosas para a compreensão de
45

outros aspectos da criação, seja dizer, a processualidade no cerne da constituição de sua obra
em aberto.

Ao cotejar as obras no contexto do momento histórico de sua produção, sem


demora chega-se à observação de que a sua “verdade” e os fatos não correspondem, mas
geram temporalidades a serem interpretadas do modo como sugere Agamben (2009), a tal
“cindibilidade do objeto”, como lembra Foucault (2009), ao constatar a fraqueza das fontes.
Nesse sentido também se dialoga com Derrida (2008) em seu “arquivo da fragmentação”,
quando vai refletir sobre os deslocamentos do contínuo, do modo como vimos nas diversas
fontes e lembranças do “Prólogo”, um passado-presente que não cessa de ser escrito.

Giorgio Agamben20 (2009) possibilita nosso entendimento acerca da relação entre


o marginal e o contemporâneo. Para ele, o estatuto do contemporâneo é o anacrônico, pois ao
mesmo tempo implicaria presença e afastamento. De modo que, para ser contemporâneo, não
basta que alguém habite seu tempo; é necessário que vivencie outro tempo deslocado de si
mesmo. A condição de existência do contemporâneo é ser capaz de captar aquilo que, sendo
marginal, se coloca de maneira livre. Por conseguinte, o marginal é um sujeito e/ou um
discurso que, em geral, está situado em questões sócio-históricas às margens da acessibilidade
dos bens econômicos, políticos, culturais, etc.

Em Carolina de Jesus ocorre algo análogo, pois sua literatura se faz num
movimento do limite até a fronteira, apresentando em sua materialidade residual vários tipos
de manifestação da escrita. Para seus textos-montagem ou textos-colagem ela utiliza cacos da
linguagem cotidiana, da linguagem da propaganda, de slogans, os ditos populares, clichês,
tradição passadista, criando uma nova linguagem em textos que se apóiam nos suportes que
estão a disposição ao seu redor.

Na peça teatral “Obrigada, senhor Vigário”, Carolina de Jesus associa os


elementos do melodrama, recolhidos das radionovelas, às quais acompanhava com
assiduidade em seu rádio a pilha, aos da linguagem retirada dos livros árcades e românticos. O
enredo dessa peça, assim como de outras às quais se pôde ter acesso: “A senhora perdeu o

20 Metaforicamente, Agamben (2009) nos fornece uma bela imagem para pensarmos as relações entre
modernidade e contemporaneidade, e de como o movimento de transmultação incide sobre história e estética.
Para ele, o anjo da história perde suas asas na tempestade do progresso, enquando o anjo da estética está fixado
na dimensão temporal das ruínas do passado. Do mesmo modo, Carolina de Jesus retraça os passos de uma
tradição passadista em conflito com o modernismo que dela se aproxima.
46

direito” e “Se eu soubesse”, como também seus romances não são autoficcionais, mas têm um
padrão temático repleto de traições, humilhações, injustiças, sobretudo contra frágeis
mulheres iludidas por viajantes ou pessoas urbanas dominadas pela ganância. Nessa peça
conhecemos a história de Clara, órfã escravizada pela tia Helena, uma mulher gananciosa que
vive de aparências e aceita adotar a menina para roubar sua herança. Helena é mãe de Pedro,
que estudou em Portugal, sendo uma figura que remete aos românticos idealistas defensores
dos oprimidos; neste caso, Clara é sua prima. Porém, um vigário é quem salva a pobre
menina, restituindo-lhe a herança e devolvendo- lhe a liberdade.

No trecho a seguir pode-se sentir o ritmo em que o melodrama se desdobra, numa


linguagem plural onde ela mistura grafias de várias épocas à sua oralidade:

Obrigada, senhor Vigário


Manoel - Espero que não sêja dinheiro. Porque não tenho nada.
João Ruiz - É uma coisa que para mim, tem mais valor do que dinheiro. - Trata-se… de
minha filha!
Manoel - Ah! Bom. Vou sentar… para ouvir-te.
João Ruiz - Oh! Senta-te. Senta-te.
Helena - peço-os que desculpe-me por não indicar-lhes os assentos. É que eu já perdi o
habito de receber visitas. sentam-se. prossegue. Como eu já disse: eu estou com os dias
contados. O médico dessinganou-me. e aconsêlhou-me por os meus negocios em ordem.
Me foi dificil ressignar com a ideia de partir para sempre e dêixar a minha querida
Clarinha ê só nêste mundo. Então lembrei-me de convidá-los para vir tomar conta d’ela
porque você é tio, não vae escravisa-la. Peço-te iduca-la como dama da alta sociedade.
Interna-la num bom colégio com luxo e confôrto para ela orgulhar-se de mim. Esforça-te
para casa-la bem. Investiga os ateçedentes do seu elêito. Aqui esta os papeis d ela
Registro de nascimento e o meu deposito bancario e a escritura das terras. Tudo esta
legalisado. – Eu queria viver mais uns dias… mas, não sou dono do meu ser (FBN MS-
565(5) Caderno 09, “Obrigada senhor Vigário”, F, s/n).

A ambientação cênica é um espaço onde tudo pode acontecer, traçando mais uma
vez o conceito de catadora, da acumuladora, que coloca dentro do seu espaço narrativo tudo o
que encontra pelo caminho, sem uma definição específica. Carolina de Jesus ia acumulando
em sua poética de resíduos todo elemento que considerava interessante como acessório. Em
sua escrita orgânica, vai montando, colando centões, e dando formas às coisas, já a seu tempo,
marginalizadas em seu valor estético. Nesse sentido, sua prática do pastiche insere-se no
47

espírito modernista de reaproveitar fragmentos de estilemas, esboçando o anacrônico como


estatuto do contemporâneo, teorizado por Agamben (2009).

Como Carolina de Jesus era catadora de papéis, e como ela mesma conta,
guardava os livros para ler no barraco. A hipótese sobre sua escrita é a de que ela deveria
encontrar livros impressos em épocas distintas, e como, para ela, os livros eram a expressão
do conhecimento, isso faz crer que todos, sem exceção, eram “objetos verdadeiros”, nos quais
ela podia confiar: “Eu acreditava em tudo que eu lia como se os livros fôssem meus
confidentes” (FBN: Caderno 1-“Poesias, provérbios e diários”, FTG s/n).

As narrativas esparsas de Carolina de Jesus demonstram que, quanto mais livre a


escrita, mais reveladora ela será, pois aqui sua escrita se insere na vida por um caminho de
ruptura e liberdade, possibilitando um aproximar-se da experiência mais humana, como diria
Foucault (1992) ao analisar “a escrita de si”. A escritora segue vivenciando infinitas
contradições, bebendo em fontes alheias, aproximando-se da experiência, mobilizando a ideia
de autoria e, ao proliferar escritura menos como traços briográficos providos de significado e
mais como biografema, ela coloca a primazia na forma em detrimento do conteúdo21 .

Nesse movimento, portanto, ela parece exercer o que seria uma contranarrativa,
gerando uma repetição que, do mesmo modo como a cultura se conserva e se atualiza 22 , ela
vai colocando de forma diferente as fábulas lidas, inserindo-as no contexto brasileiro e
revelando seu ato de escrever como um reescrever, desmesuradamente. Descontruindo
tradições, o outro advém através desse olhar de leitora, mas, sobretudo, sob o código da
expropriação e da recriação, a partir da colheita aleatória de que toma posse, feita para
preencher os vazios.

Como circunstância narratória temos um eu sustentado por vários outros eus, seja
na construção de suas personagens seja na incessante reprodução da fala de seus pares que, a
seu ver, precisam ser escutados, almejando também o lugar de “guardiã” da verdade dos fatos:

21Ver BARTHES, Roland. Le degré zéro de l’écriture. Œuvres Complètes. Livres, Textes, Entretiens. Nouvelle
édition revue, corrigée et présentée par Eric Marty. Paris, Seuil, 2002.
22Para Laraia (2000), cultura é o conjunto dos sistemas de padrões de comportamen tos socialmente transmitidos
(conjunto de modos, atitudes, linguagens, conhecimentos, costumes, ritos, etc.), difundidos e estimulados pelos
meios de comunicação, repetidos e atualizados pelo Estado e pelos grupos hegemônicos de uma dada
sociedade.
48

6 de agosto de 1958:
Eu penso que quem escreve deve escrever as maldades que os outros
praticam. Os jornalistas escrevem. Eu também posso escrever. E atraves dos
escritos que ficamos conhecendo o passado. O Nero quêimou os cristãos.
Mataram Socrates os judeus matou os inocentes os portugueses matou o
Tiradentes. Santos Dumond suicidou-se. E atraves dos livros que estes fatos
chegam a nossos ouvidos. Se a pessôa é bôa, eu escrevo se é malvada eu
escrevo (JESUS apud PERPÉTUA, 2014, p.330).

Carolina de Jesus quer escrever aquilo que não cessa, que não estanca, e que ela
repete: a imprevisibilidade de seus dias, uma “história menor” incerta, ou uma outra história,
aquela de um passado afro-brasileiro esquecido, as instabilidades de vidas marginalizadas,
mas que, em seu devir-trapeira, para as quais ela funda uma estética da ordinariedade, de sua
marginalidade a contragosto.

E o faz cedendo fluxo à “voz do povo que faltava”, e cedendo, talvez, seu lugar ou
expressando um lugar possível, presentificado hoje por sua morte, ao ceder sua voz a todos...
Carolina de Jesus tentou arquivar a história menor a que pertencia, mas pôde contar apenas
com a memória – material falível, enganoso – e com relatos orais e lembranças de seus avós,
de três gerações de escravos africanos. No entanto, no seu ofício de “escrevivências”23 , parece
que a escritora usa a imaginação para preencher tais vazios.

Sua escrita remete à morte do autor, entendida por Roland Barthes (1968) como
um “efeito do real”, principalmente expresso nas suas descrições, presentes nos paratextos
que acompanharam as edições de seus livros e garantiram a existência de uma Carolina de
Jesus, a “poetisa da favela”. Partindo desses pressupostos, pode-se compreender seus textos
como uma expressão-extensão do corpo da escritora, isto é, uma artista que se inscreve no
mundo, passando por um processo identitário na e pela reconstrução de sua alteridade, pois

23 Ao ser indagada sobre a origem de sua escrita, Conceição Evaristo diz: “Sem dúvida alguma, a narrativa de
Ponciá Vicêncio não se trata de minha biografia, como Becos da memória não é uma escrita verdadeiramente
autobiográfica. Porém, toda a minha escrita, poemas, contos, romances, e até ensaios, cumpre um ato de
escrevivência. Assim como algumas das histórias escutadas no interior de minha família foram apropriadas
como material narrativo para a escrita de Ponciá Vicêncio, a experiência do desfavelamento qu e sofri, as
angústias de minha meninice e de minha adolescência aparecem em Beco da memória. A composição da
personagem Maria Nova muito se con(funde) com a história pessoal do meu eu -menina. Inventar Maria Nova
foi inventar a razão de minha escrita (EVARISTO, 2014, p.31). Também a narradora por ela criada em
Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) retorna ao debate: “Invento? Sim, invento, sem o menor pudor.
Então, as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relat ar
fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se
acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não
comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas
histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência” (EVARISTO, 2011, p.9).
49

sua identidade é reconstruída e desconstruída a partir da relação com o outro, daí a oscilação
de pontos de vista considerados adequados a cada situação, interesses, ou talvez lapsos da
memória que sinalizam diversas ambiguidades em suas narrativas.

É como estar em contato com scriptor, aquele criado pelo texto de Barthes (2004),
como tecido, e não uma mera decomposição da obra acabada:

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu todo inacabado, por trás do qual se
mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos
agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de
um entrelaçamento perpétuo (BARTHES, 1987, p.82-3).

No mesmo sentido, pensando a leitura dos manuscritos, afirma Lopez:

(...) Ao perseguir a gênese de textos e interpretar as pegadas da criação, o


crítico deve saber que lida com a realidade visível de um trabalho em
processo, com sinais retratando certos movimentos do desejo do artista.
Entenderá então que, nesse processo, as marcas do scriptor lhe facultam
imaginar uma lógica onde a leitura do artista, os passos de sua impregnação
se desnudam (LOPEZ, 2011, p.33).

Como diria Deleuze (1993), a literatura só nasce com a destituição do dizer eu no


desvendamento do outro que já coopera para um entendimento de si mesmo. Ao escrever,
inscreve-se no mundo, pois esse escrever-se a si mesmo associa-se ao outro ultrajado de seus
direitos, experimentadores das mesmas dores, angústias e anseios. De entremeio a seus
poemas, pensamentos e provérbios, ou anotações casuais, retiramos um trecho para
demonstrar, no caso dela, como a escrita se revela numa extensão do seu próprio corpo como
representante de seus iguais e em contraste com outros:

Nos aqui no Brasil, não temos complicações com o nosso solo. Tudo que se planta dá. E
não temos super-produção. O que nos falta? Coragem? Bôa-vontade? Cultura? Ou apoio
do governo?
A pior coisa do mundo é ouvir um povo lamenta-se e não póuder auxilia-lo./ Um
portugues disse-me: que quem sustenta o Brasil são os portuguêses, eu não adimito que
ferem a fôrça moral os Brasileiros o que eu noto é que os portuguêses que descobriram o
Brasil, não tinham cultura para organizar o pais. E fôram eles que escreveram Ordem, na
nossa Bandeira. Eles não saneava o Bra as escolas no Brasil. Enviava seus filhos para
50

estudar em Coimbra. E os filhos regressavam pompôsos porque sabiam ler. Eram os


almôfadinhas uzando sapatos de bico-finos e chapéu de palhetas permaneciam nas
esquinas contando lorotas. Cheguei a presenciar isto. Eles deviam era fundar escolas e
educar o povo e incluir o filho do escravo. Após a proc proclamação da Republica, e a
libertação dos escravos o que restou para o Brasil, foi um saldo de analfabetos. O Brasil
era usado apenas pelo ouro que possuía. E não para dar cultura para o povo que aqui
permanecia. Vinham visando enriquecer-se e depois regressar a santa terrinha./ Se bem
que o Brasil é grande e em extensão territorial, devemos aos portugueses./ Fala-se em
reforma de base para mim a melhor reforma, é os que não tem condição para viver na
cidade voltar ao campo _ O que nos falta é ação (FBN MS-565(1), Caderno 3, “Próverbio
e texto não identificado”, F. s/n).

Pensar a colonização revela-se como um processo de descolonização da mente. A


escritora critica a colonização brasileira e, consequente e inconscientemente, vai ao encontro
da temporalidade do discurso colonial que define o plano de um processo que levará a algum
lugar na dependência da implementação de um modelo. Podemos pensar isso em paralelo ao
plano do processo literário de Carolina de Jesus, que não tem uma definição de busca autoral,
mas, ao contrário, a práxis de sua escrita burla formas tradicionais ao reciclar antigos modelos
e antigas figuras como a personagem Pedro, da peça citada anteriormente, e que faz
referências “aos filhos [que] regressavam pompôsos porque sabiam ler. Eram os almôfadinhas
uzando sapatos de bico-finos e chapéu de palhetas [que] permaneciam nas esquinas contando
lorotas”, os quais ela mesma afirma ter visto. Mas, sobretudo, pensar nas condições de recolha
desses traços biográficos, sob os quais ela produz sua obra. Insubordinação que, de certo
modo, trabalha de maneira não alienada, e não mantém como em toda autoria uma posição
expressa de seu estilo de narrar a realidade.

Em geral, quando se fala de literatura, agrega-se valor ao ato da ficcionalização


nela presente. No entanto, para os teóricos há uma diferença epistemológica entre a literatura
e outras formas de expressão. Enquanto a maioria das expressões se propõe a dizer alguma
“verdade” sobre o estado “real” das coisas d[n]o mundo, a expressão literária, ao contrário,
não teria essa obrigação ou filiação. Nesse sentido, deveria ser entendida stricto sensu como
ficção, ou seja, invenção ao invés de referência.

Para Derrida:

(...) não há nenhum texto que seja literário em si. A literariedade não é uma
essência natural, uma propriedade intrínseca do texto. É o correlato de uma
relação intencional com o texto, relação esta que integra em si, como um
componente ou uma camada intencional, a consciência mais ou menos
implícita de regras convencionais e institucionais – sociais, em todo caso.
51

(...). A essência da literatura, se nos ativermos à palavra essência, é


produzida como um conjunto de regras objetivas, numa história original dos
“atos” de inscrição e leitura (DERRIDA, 2014, p.63-4).

A narrativa de Carolina de Jesus abala esses pressupostos teóricos, pois está


repleta de referência a sua vida “real” e de invenção de mundos possíveis, nesse sentido
corroborando o pensamento de Ricoeur em Tempo e narrativa I em que o estudioso defende a
ideia de que a teoria literária precisa ser analisada sob o viés de uma hermenêutica da
suspeita. Neste caso, importa muito mais decifrar as expressões do que encontrar sentido, pois
o estatudo da linguagem não aparece nesta obra como um mero mediador. Estamos diante de
uma “hermenêutica da suspeita” que coloca em xeque o cógito cartesiano.

Como sugere Foucault (2000), a interpretação passa a ser um jogo de espelhos que
assume um caráter existencial e ontológico para o homem, e não apenas uma técnica de
interpretação enquanto sendo um objeto externo ao olhar do sujeito. A exegese como
ferramenta libertadora permite à consciência de si tornar-se um problema a ser investigado de
um modo hermenêutico, no qual a compreensão de si mesmo se dá mediante a compreenção
do outro. Então, a partir dessa visada não se interpreta o que está no significado e, sim, quem
coloca a interpretação e quem tenta justificá-la a partir de técnicas. Aqui, o signo passa a ser
entendido como dobra, constituída das próprias coisas, e não como significado estático.

I.2 Refração e frestas identitárias

Em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve diretamente


no corpo?

(Jacques Derrida)

No primeiro volume de Mil Platôs, Deleuze e Guattari definem três tipos de livro
a fim de justificar o livro-rizoma que se empenharam em escrever juntos. O livro-raiz seria
aquele pautado em lógicas binárias, calcados em tradições, simbolizado pela imagem de uma
árvore. Haveria um segundo tipo, o livro-radícula que começa a emancipar-se do livro
52

tradicional e, ainda que fasciculado, permite a convivência com os feixes de outras raízes,
gerando “pontos de fuga”. O terceiro tipo estaria desprendido de todo entrelaçamento, voltado
à multiplicidade por excelência, longe de qualquer vínculo com raízes que penderiam ao
dualismo, à reprodução; esse tipo de livro vivenciaria a heterogeneidade em sua potência de
total experimentação. Seriam exemplos desse terceiro tipo, segundo Deleuze (1993), os
autores: Kafka, Mach, Melville, entre outros.

Na dissertação Carolina Maria de Jesus, uma poética de resíduos (2006), as


análises me permitiram concluir que a escritora desenvolve sua obra num tipo de livro-
radícula, pelo constante movimento de aproximação e distanciamento dos modelos do livro-
raiz. Tal constatação se deve a uma condição imanente de sua poética que se vale dos restos
discursivos, literários e não literários, transitando de um território a outro, no seu processo de
criação-reciclagem de grande apropropriação e transfiguração de conteúdos. É assim que
Carolina de Jesus remove dualidades, apresenta uma existência estética em desequilíbrio,
acolhe desafios, oportunidades, vai afetando e é afetada por tudo o que encontra no seu
caminho-fluxo-criativo, começando seus processos de integração, de des e de
reterritorialização do e junto ao espaço marginalizado.

A partir desse prisma, observa-se que, na poética de resíduos de Carolina de Jesus,


o mecanismo de formação de livros-radícula é imanente ao processo criativo de suas
narrativas. Nos livros-radícula da escritora, a palavra é rememorativa, elevando a memória
como salto das coisas instaladas e prontas, pois, ao contemplar o outro, aquele a quem fala se
complexibiliza diante dela, e ela segue alinhando o precipício que desenvolve um Si
constituído através de um saber de exílio em sua errância metafísica, mas que segue
alinhavando pontes de sua experiência pessoal a partir de elementos da linguagem, mediados
pela relação homem-mundo e homem si mesmo (RICOEUR, 1979).

Vê-se, portanto, uma escritora que, sabendo-se plástica, performática, é capaz de


um autoengendramento ou de um esforço consciente ao desenhar uma imagem de si,
traduzindo eus inquietos e desassossegados que reivindicam uma autonomia da enunciação. O
eu da enunciação presente pode falar do eu da enunciação do passado, contribuindo para um
entendimento dos processos identitários que se formam a partir da escritura. Sua própria
alteridade está constituída como um patchwork, retalhos da memória unidos por fios de
contingências que se formam ao longo dos dias de sua existência de incertezas e sonhos
extraviados.
53

No trecho a seguir, pode-se observar de que modo a escritora alinhava às


memórias de sua chegada à favela do Canindé, em 1948, os sentimentos compartilhados com
os demais favelados:

Hoje vivemos apertados, ou exprimidos no toniquête dos tubarões. Os filhos dos


operariós não tem infancia. Não tem brinquedos. Não tem distrações e tão logo terminem
os cursos primariós são obrigados a trabalhar nas fábricas, onde muito cedo perdem os
sonhós tao propiós da puericia. Muitos se esforçam para estudar, mas dessanimam e
intérrompem os estudós quando sentem a penósa e embaraçosa situação, sêja pela
dificuldade finançêira com que lutam. Sêja pelo grande esforço físico, dispendido
(JESUS, 1914, p.53).

Nesse movimento, Carolina de Jesus reconfigura subjetividades coletivas (raça,


nação, etnia, gênero, classe social etc.), como a classe dos operários aqui rememorada, para
denunciar a opressão sofrida por todos eles. Uma trama identitária eficaz, mesmo sendo
multifária, incompleta, provisória. É eficaz porque cria um sentido em meio aos fragmentos, e
nesse sentido ela é contemporânea dos autores tidos hoje como pós-modernos, aqueles que
vivenciam “o eu mesmo como outro”, como diria Paul Ricoeur (1990). Em sua obra há a
presença de um pré-projetar a si mesma que se dá nos projetos de textos por ela articulados e
calcados na memória. Ainda que, a partir de uma evidente imposição do eu, suas narrativas
deixam de ser pessoais para se tornarem coletivas no processo de sua recriação textual. A
constituição de sua identidade é refratária à dos outros, e se faz ao longo das histórias
narradas.

Em Ricoeur (1989, p.122), a mimese é um movimento de recriação trespassada de


sentido humano: “a ficção é o caminho privilegiado da redescrição da realidade e a linguagem
poética é aquela que, por excelência, opera aquilo a que Aristóteles, ao refletir sobre a
tragédia, chamava a mimese da realidade”. A obra tem o poder de recriar o real, pois o
universo textual pode reconfigurar o mundo da ação. A literatura caroliniana representa a
compreensão da vida ultrapassando o limite do cotidiano e de suas significações, fazendo-se
semente num entre-lugar da política, da literatura e da filosofia, plugada e, ao mesmo tempo,
desconectada de um savoir-faire.

O texto, a escrita, a narrativa: cada um e todos são lugares onde se realiza a


compreensão de si, do mundo e dos outros através da desconstrução, da perda do “eu”, e de
sua reconstrução em outro nível de maturação e aprimoramento da identidade de si. Narrativa
54

aqui é entendida como descrição e prescrição no mundo, pois é por meio da narrativa que
Carolina de Jesus desconstrói e reconstrói, criando a “identidade narrativa” de si mesma,
sobretudo quando relê e modifica sua escrita, pois durante a leitura ela interpreta o mundo
tornando-se sujeito de sua própria interpretação. Ela se insere na compreensão de texto de
Ricoeur (1995, p.105) segundo a qual o texto contém uma proposta de mundo possível no
qual eu, o sujeito, “possa habitar e no qual se possam revelar as possibilidades que me são
mais próprias”, através de dois movimentos: a memória e a presença. Nesse sentido, Bergson
(1999) afirma que “a mesma vida psicológica seria, portanto, repetida um número indefinido
de vezes, nos estágios sucessivos da memória” (p.120).

Percebe-se uma identidade ligada à enunciação do sujeito que se assume como


sujeito a partir do ato da escrita, uma vez que a “identidade narrativa” é mais flexível,
atemporal, já que ela foge da imputabilidade que acompanha o sujeito. Nesse jogo entre o eu
da narradora e o eu da escritora, Carolina de Jesus desfaz coerências que sugam o leitor para
dentro dos antagonismos de sua escrita errática, tanto pelo viés autobiográfico, que a coloca
como personagem de si mesma, quanto pelo narrativo que cria ao reconstruir toda uma
“história menor” ou o centro de uma outra história.

Há ali uma duplicação de voz: uma que conta o itinerário através da consciência
imediata e aquela do narrador como alguém que já sabe aonde vai chegar, como o fez Proust
em à La recherche du temps perdu. De igual maneira, em Carolina de Jesus ocorre um
desdobramento da voz, pois na relação do eu consigo mesmo não há unicidade. E nessa
instalação do recurso ficcional de sua escrita, seu processo inicia o contato sugerido pelo
livro-radícula de Deleuze e Guarttari (1995) que, nessa instância, encontra no fazer da
literatura tradicional seu ponto de fuga.

O “eu me lembro”, ou melhor, “maintenant, je me souviens, maintenant je


promets” de Ricoeur (2004, p.165), em Carolina de Jesus é aquele objeto social visto e
enganado/negado por ela mesma, inclusive nas constantes retificações que ela faz nos textos:
“Não gosto de repetir as coisas dá a impressão de [que] quem escreve não tem assunto”
(JESUS, 1960, 10 de junho de 1958). Nesse processo de refração identitária, a escritora está, o
tempo todo, dizendo e se desdizendo. A “memória involuntária” cai no esquecimento, sendo a
ressurgência da verdadeira inteligência que consiste naquilo que realmente vem do corpo, dos
sentidos.
55

A narratividade, nesse caso, apresenta-se como lócus privilegiado de observação e


busca de sentido, de negociação dessas fragilidades, deslocamentos, fronteiras do dito e do
não-dito na escrita desse eu rememorado e imaginado. Lugar do paradoxo entre a
desconstrução da identidade e a reconfiguração da subjetividade contemporânea a ela. Vale
lembrar o que Antonio Tabucchi afirma no posfácio do seu livro Requiem, recentemente
reeditado:

De acordo com as indicações de certa crítica especializada, talvez um pouco


rígidas, mas, contudo, muito úteis, podemos acrescentar que a obra
romanesca, em lugar de estabelecer entre o leitor e o autor aquilo a que se
chama “um pacto autobiográfico”, (no sentido de que o leitor aceita o fato de
que o autor está a escrever uma autobiografia), constitui aquilo a que se
chama um “pacto romanesco”. O leitor sabe que está a ler qualquer coisa que
vem do vivido do autor, mas que é transformado em ficção, ou melhor, em
romance (TABUCCHI, 2015, p.103).

As narrativas puídas de Carolina de Jesus refletem o mundo das contradições,


carregado de impressões entretecidas quando mostra os acontecimentos do cotidiano do ponto
de vista do observador, mas sempre procurando trazer, junto, a voz do outro. Daí a
aproximação de alguns de seus textos ao gênero crônica moderna, como entendida por
Antonio Candido: aquela que margeia o ensaio ou o texto jornalístico (1996), como se pode
constatar em seu texto “Favela” (2014):

Era o fim de 1948, surgio o dono do terreno da Rua Antonio de Barros onde estava
localisada a favela. Os donos exigiram e apelaram queriam o terreno vago no praso de 60
dias. Os favelados agitavam-se. Não tinham dinheiro. Os que podiam sair ou comprar
terreno saiam. Mas, era a minoria que estava em condições de sair. A maioria não tinha
recursos. Estavam todos apreensivos. Os policiaes percorria a favela insistindo com os
favelados para sair. So se ouvia dizer o que será de nós?/ São Paulo modernisava-se.
Estava destruindo as casas antigas para construir aranha céus. Não havia mais porões para
o ploletario. Os favelados falavam, e pensavam. E vice-versa. Ate que alguém sugerio./ _
Vamos falar com O dr Adhemar de Barrós. _ Ele, é um bom homem. E a Leonor, é uma
santa mulher. Tem bom coração. Tem dó dós pobres O Dr Adhemar de Barros, não sabe
dizer não a pobreza êle é um enviado de Deus. Tenho certeza que se nos formos falar com
o Dr. Adhemar de Barros, êle soluciona o nosso problema./ E assim os favelados
acalmaram. E durmiram tranquilos. Ainda não tinham ido falar como Dr Adhemar de
Barrós. Eles confiavam nêste grande lider. Reuniram e foram. E foram bem recebidos
pelo Dr. Adhemar que não faz seleção. E abria as portas do palacio para a turba. Foi por
intermedio do Dr. Adhemar de Barros que o ze povinho conheceu as dependências dos
Campos Eliseos. Citaram ao Dr. Adhemar os seus problemas angustioso (JESUS, 2014,
p.39-40).
56

Através das impressões de sua chegada à favela, aquele aglomerado confuso de


barracos, erguidos às pressas à beira do rio Tietê, a escritora foi traduzindo ao longo da
narrativa as sensações desse passado experimentado, valendo-se da descrição, da reportagem,
do relato, do discurso em terceira pessoa, alavancando uma tênue fronteira entre realidade e
ficção, um ser/estar favelado que favoreceu uma criação com tom de crônica, mas também de
conto e relato autobiográfico.

A porosidade de seus textos, no entanto, não é apagamento de fronteiras excluídas


pelo julgamento daquilo que se encerra no “gosto” hierarquizado; adversamente, favorece o
processo criativo dessa poética de resíduos de caráter híbrido, que faz avançar as narrativas
trazendo o inusitado para dentro de sua escrita, como no texto a seguir, que mescla os gêneros
carta e poesia:
57

Documento 3:

Documento 03: Fac-símile.

Notação:

Localização: FBN-MS-565 (4) - “Documentos esparsos datoligrafados - Contos”


58

Análise documentária:

BN – Microfilmagem realizada na Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, em


setembro de 1996. Equipamento utilizado: MRD-2 Kodak
Projeto Carolina Maria de Jesus Coleção Vera Eunice de Jesus Lima
3ª Parte. Total de fotogramas: 538 (bruto) FTG s/n.

Estatuto genético:

Narrativas curtas e textos autobiográficos


Tipo: Narrativas híbridas

Transcrição:

CARTA SEM ENDEREÇO


“JOÃOZINHO”
S
_Papai por que partiste em ao menos me dizer adeus?
Eu no o queria para sempre junto de mim, mas mesmo com a distancia eu
continuo querendo-o bem. Só não consigo perdoar a sua atitude em aban-
donar-me tão cedo,mas tenho pedido muito ao papai do Céu para que me
mandasse-o de volta. Mas agora já estou entendendo que o meu pedido es-
ta se tornando impossível. Então resolvi mudar de ideia. Escrevendo o que
estou sentindo não sei como haverá o senhor de receber esta. Não sei o
seu endereço, mas tenho uma esperança. Uma vez o senhor me disse que
não há efeito sem causa e nem há nada perdido nesse mundo. Por isso
eu tenho esperança que um dia esta carta chegue nas mãos do desti-
nátario que é ele o meu papaizinho querido.
“oh! Papaizinho querido que partiste tão cedo e
sem ao menos me dizer adeu s.

RESPOSTA

Saudades !quantas saudades!


Porque me trouxe hoje aqui.
relembrar é reviver,
dos tempos que eu já vivi.

Esquecer-te não consigo,


viverei a relembrar,
do meu passado risonho,
que hoje me faz chorar.
59

Papai a voce o meu abraço.


com muita veneração.
não se esqueça do teu filho.
que tem um bom coração.

A carta sem endereço com a resposta imediata para provar que o campo espiritual não tem fronteira.

Nesta narrativa curta da escritora fica demonstrado que narrar as impressões da


realidade pode ser uma maneira de superar a imensa parcialidade diante dela. Sabe-se que
Carolina de Jesus jamais pôde conhecer seu pai, e que teve um contato muito próximo com as
doutrinas espiritualistas de vertente kardecista. A construção subjetiva parece se dissolver na
escrita, consciente ou inconscientemente, desses registros de sua vida. Revela-se assim a
singularidade do sujeito enfeixado de vicissitudes, mas cujo passado aparece como uma
possibilidade de reflexão, que permite a criação para além da mera especulação, de traumas e
até mesmo mera reprodução da escrita.

Nesse texto de aspecto híbrido entre carta e poema, mais uma vez o exemplo de
recolha de gêneros literário (poesia) e não literário (carta) como suportes para expressar
literariamente suas experiências, a ausência paterna, e das quais emergem rastros do contato
com as crenças kardecistas na cidade de Sacramento, como o perdão e uma suposta presença
espiritual desse pai, pois há alguém que responde a si mesmo em forma de poema, em duas
vozes, em que é o pai quem diz, mas no todo do texto essa intervenção aparece como uma
espécie de solilóquio:

RESPOSTA

Saudades! quantas saudades!


Porque me trouxe hoje aqui.
relembrar é reviver,
dos tempos que eu já vivi.

Esquecer-te não consigo,


viverei a relembrar,
do meu passado risonho,
60

O filho, ao que parece “Joãozinho”, responde automaticamente num segundo


momento do poema:

Papai a voce o meu abraço.


com muita veneração.
não se esqueça do teu filho.
que tem um bom coração.

Para além da mescla de gêneros que torna o texto mais interessante para a crítica
do ponto de vista estilístico, o que nos confunde e nos leva a indagar qual seria o objetivo da
escritora ao sinalizar ao final da “carta sem endereço”: A carta sem endereço com a resposta
imediata para provar que o campo espiritual não tem fronteira. Mas como poderia estar
dedicado ao eu-lírico do poema-resposta a voz do pai que abandonou o filho se, no último
verso, é o filho quem fala, e ainda confunde o destinatário, já que ora a voz narrativa se dirige
ao pai, a quem a carta está endereçada, ora ao leitor da narrativa?

O intempestivo desdobramento de vozes demonstra a emergência de uma


diferença desestabilizadora da criação, um contrassenso na apropriação imprevisível dos
gêneros, carta e/ou poema que, a despeito do cunho autobiográfico, vale-se do imaginário
como criação inusitada que questiona nossa racionalidade, apta a receber modelos estanques
ou plausíveis de um texto literário. Jauss (2002, p.40), citando Sartre24 , dá conta de explicar
como funciona a consciência imaginativa:

En el proceso primario de la experiencia estética lo imaginario no es todavía


objeto alguno, sino, como mostró Jean-Paul Sartre, un acto de
distanciamiento y formalización de la conciencia representativa. La
conciencia imaginativa ha de negar el mundo fáctico de los objetos para
poder crear a sí misma, mediante el signo estético de un texto hablado,
óptico o musical, una configuración de palabras, imágenes o sonidos. 25

24SARTRE, J-P. L’imaginaire – Psychologie phénoménologique de l’imagination , Paris, 1940, p.234, citado por
Robert JAUSS, 2002, p.40.
25No processo primário da experiência estética, o imaginário não é ainda objeto algum, senão, como mostrou J -
Paul Sartre, um ato de distanciamento e formalização da consciência representativa. A consciência imaginativa
há de negar o mundo fático dos objetos para poder criar em si mesma, mediante o signo estético de um texto
falado, ótico ou musical, uma configuração de palavras, imagens e sons (Tradução Minha).
61

Nesta narrativa Carolina de Jesus contraria as teorias estruturais de narratologia de


Propp26 (2001); por exemplo: a personagem pai está equiparada à do filho, isto é, antagonista
e protagonista estão no mesmo plano e, bem ou mal, não se separam em dicotomias como no
conto popular; aqui a profundidade da personagem pai relativiza esses valores. Há também a
mescla de narrador-protagonista (filho), que não assume sua identidade, com um antagonista
(pai), que não tem identidade. A concepção de tempo e espaço também se desfaz na
surpreendente voz que aparece clivada junto ao discurso do filho. Não importa o tempo, o
crucial é expressar o que uma imagem mostra, no caso, a confirmação de que “o campo
espiritual não tem fronteira”. A imagem da presença que se anuncia dentro daquele que fala
coordena a noção de tempo. O movimento depende do tempo, provocando perguntar sobre a
presença. Este é um daqueles textos singulares que, considerada a consciência imaginativa de
Jauss (2002), permite inesgotáveis indagações.

Assim como a escrita de um cronista ou jornalista, as narrativas de Carolina de


Jesus não se subtraem de todo do real; elas mantêm amarras com a realidade, repensada
através da recriação e constituição de subjetividade. Aqui, o que vale é a verossimilhança e
não a veracidade, pois como já foi observado, seus textos dialogam constantemente com o
ficcional. A linguagem poética por si só gera rupturas de espaço, e Carolina de Jesus parece
estar cônscia disso, daí sua idealização e constante vinculação com a linguagem romântica
passadista. Ainda porque, em certa medida, ao escrever, ela parece fazer um auto-exame de
suas experiências e expectativas de vida, aliando a experiência poética de caráter
memorialístico a esse tipo singular de linguagem literária.

Em suas narrativas o tempo não é circular, não é aquele que se reestrutura em


torno do presente, como vemos em seu primeiro diário, editado ao gosto do seu
“descobridor”; ao contrário, o tempo da representação não consegue dar conta de uma
identidade reencontrada. Ao longo dos diversos estudos, desenvolvidos em parceria, sobre a
filosofia da diferença sob a ótica de Bergson (1999), Deleuze e Guattari (1995) mostram que
o tempo aparece como multiplicidade aberta, sem referências ou com referências incertas. Em
Carolina de Jesus, uma das características imanentes a seus livros-radículas, que não estão
solidificados em tradicionais modelos de criação literária, é que estão soltos e, por outro lado,
ainda escapam imersos em pura fruição.

26Aqui faz-se alusão ao sistema de classificação dos contos marav ilhosos estabelecido por Propp em sua
Morfologia do conto, no qual o autor observa que toda fábula tem um núcleo simples em sua lógica estrutural.
62

Não obstante, mesmo a autobiografia aparecendo como alicerce fundamental de


todo o processo criativo de Carolina de Jesus, o pensamento está mais definido como criação
(obra) do que como vontade de verdade; tanto a emancipação do tempo como os fragmentos
de acontecimentos narrados flutuam em dissonâncias. O tempo é flutuante, mas os
acontecimentos são paradoxais, o tempo desorientado das histórias engendra outras
temporalidades e outros territórios e desterritórios. Há elementos que aproximam algumas de
suas narrativas à elaboração de autoficções, como foi demonstrado antes, acentuadas pelos
movimentos de desterritorialização de gêneros.

Bergson (1999) postula duas qualidades de memória: a memória hábito e a


memória pura. Esta é memória da lembrança, que necessita e usa as imagens para ser
processada. A primeira, no entanto, funciona por repetição, por replicação do passado.
Repete-o sem, contudo, ser o passado mesmo. Essa “memória hábito” usa o acervo das ações
passadas para repetir os gestos no presente. Ela é utilitária. Está presente no corpo. É
automática. E, como seu nome indica, é processada através do hábito. Seria o hábito
“iluminado pela memória” mais do que a própria memória. Carolina de Jesus trabalha com
essa memória hábito e empreende uma reconfiguração radicular com outras aventuras do
tempo, outras temporalidades que pedem passagem. Criando uma obra proponente que traz o
não dito, como observa Clélia Pisa, jornalista que entrevistou Carolina de Jesus antes de
prefaciar e editar Journal de Bitita:

(...) Carolina de Jesus y est à la fois historienne et biografe. Em tant


qu’historienne ele parle du Brésil. A sa manière qui n’est pas celle d’une
universitaire et qui ne raconte pas, non plus, une version populaire, sorte
d’écho loitain d’une histoire savante. Carolina travaille plutôt comme um
chercheur chevronné n’ayant pas malheur à sa disposition que quelques
minables documents et une bibliothèque aux rayonnages troués. (...) Dans
ces références culturelles Carolina de Jesus met a côté à côté, dans l’ombre
d’une hésitation, ce que nous ne trouvons pas accolé habituellement sauf à la
suit d’um long détouur explicatif. Ainsi dans son texte Nietzsche et
Nostradammus sont de voisins tranquiles (PISA in JESUS, 1982, p.11)27 .

27 Carolina de Jesus é ao mesmo tempo historiadora e biógrafa. Como historiadora ela fala do Brasil a sua
maneira que não é a de uma universitária, mas que também não é uma versão meramente popular, um tipo de
eco distante de um saber histórico. Carolina de Jesus trabalha mais como uma pesquisadora madura, que por
azar, não tinha a sua disposição mais do que alguns parcos documentos e uma biblioteca indefinida. # Nas suas
referências culturais Carolina de Jesus coloca lado a lado sem sombra de excitação, o qu e nós não encontramos
juntos habitualmente, salvo após um longo percurso explicativo. Assim, em seu texto, Nietzsche e
Nostradamus são vizinhos tranquilos (Tradução Minha).
63

Nessa obra, a mimética – tanto como transparência quanto como opacidade –


deixa quase de ser representação para ser escritura-corpo, ou seja, para além da performance é
a própria escritura que incide sobre corpo do scriptor que resguarda uma fala incerta,
cambiante e desconexa, específica do não-lugar. Carolina de Jesus faz emergir o desconforto
de uma vida asfixiante nas próprias teias de sua poética residual, em sua contundência crítica,
na insistência da força de criação, no conjunto heteróclito iminente à sua escrita.

As contingências materiais vivenciadas estão refletidas nas diferentes formas de


trabalho da escritora; há uma desancoragem narrativa em seus textos, através da qual a única
possibilidade de apreensão do ser se dá a partir do retalho, dos restos e dos “rastros”28
(GAGNEBIN, 2009). A experiência fraturada dessas narrativas gera espaços heterotópicos,
quer dizer, imagens sobrepostas, memórias, migrações próprias dessas populações moventes
e/ou trapeiras no sentido benjaminiano que exprimem e espremem os “rastros” de suas
experiências violentas num gesto “chiffonnier”, como no exemplo do trapeiro de Baudelaire:

Voici un homme charge de ramasser lês débris d’une journée de la capitale.


Tout ce que la grand cité a rejeté, tout ce qu’elle a perdu, tout ce qu’elle a
dédaigné, tout ce qu’elle a brisé, il le catalogue, il le collectionne. Il
compulse les archives de la débauche, le capharnaüm des rebuts. Il faut une
triage, un choix intelligent; il ramasse, comme un avare un trésor, les ordures
qui, remâchées par la divinité de l’industrie, deviendront des objets d’utilité
ou de jouissance (BAUDELAIRE, 1961, p.327). 29

O texto de Carolina de Jesus é refratado; ele se multiplica, causando uma ruptura


na ultravisibilidade em que se baseia nossa visão racional. Um novo olhar se faz necessário
para ler essa obra. É preciso esquecer outras leituras para adentrar esse novo e, talvez,
encontrar nele algo do passado. Como o trapeiro que vê ouro onde outros veem monturo. Uma
leitura que começa com sua alteridade, reveladora do modo de como ocorrem os espaços
intersticiais na obra de Carolina de Jesus, desterritórios, não-lugares ou lugares negados,

28 “(...) o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais que semp re corre o risco de se apagar
definitivamente. Sua fragilidade essencial e intrínseca contraria assim o desejo de plenitude, de presença e de
substancialidade que caracteriza a metafísica clássica. (...). Por que a reflexão sobre a memória vive essa
tensão entre a presença e a ausência, presença do que se lembra do passado desaparecido, mas também
presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória
certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro (GA GNEBIN, 2006, p.44).
29Eis aqui um homem encarregado de recolher os destroços de um dia na capital. Com tudo aquilo que a cidade
grande rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desprezou, tudo o que ela quebrou, ele faz um inventário
e tudo ele coleta. Ele consulta os arquivos do tumulto, a devastação dos resíduos. É preciso fazer uma triagem,
uma escolha inteligente: ele apanha, como o avarento um tesouro, o lixo que, mastigado pela divindade da
indústria, transformar-se-á em objetos de utilidade ou de prazer (Tradução Minha).
64

“rastros” que desejam e precisam ser lembrados. O acontecimento de sua obra não existe na
obra finalizada, mas em seu percurso, trabalhando a criação em meio àquilo que resta das
incertezas, das oscilações, de improvisações, dos imprevistos e dos rearranjos de seus
manuscritos retalhados. As narrativas de Carolina de Jesus saem da lógica do tempo histórico
para atenderem ao acontecimento. O que caracteriza o acontecimento é o desvio de causa e
consequência, mas aqui o acontecimento se dá no entretempo, na espera, pausa e margem que
se efetiva na linguagem, como sugere Deleuze (2000). Em sua obra, há um contratempo quase
musical ao estilo jazzístico, de improvisações, reverberações, esquecimentos recordados ou
lembranças desvirtuadas, escrita no exílio da intensidade e não mais da intencionalidade,
utilização de um improviso que revigora e se faz novo.

A composição da própria obra escapa à estética da “consciência representativa”, já


que a efervescência da escrita manuscrita não dá conta do desígnio da própria escritora, pois
somente com a organização própria de seus textos é que ela poderia realizar esse desígnio.
Mas, em particular, Carolina de Jesus cria uma estética das margens, um labirinto ameaçador,
que surpreende ao pedir passagem com seu inusitado ato criador, como neste trecho: É assim
moço, a gente aqui no mato, espera crescer e (se) quando (tudo cresceu) começa o crescido
(MAB, “Caderno 20”, Fólio s/n).

I.3 Organicidade e fissura

Ma quête d’identité: la quête de celles et ceux que


j’emplirai et qui me peupleront.

(Vincent Cespedes)

A identidade será convulsiva ou não será.

(Max Ernst)
65

Nota-se através dos originais de Carolina de Jesus que as imposições da norma


culta da língua portuguesa estão praticamente ausentes e, em geral, cedem lugar às marcas da
oralidade, tais como se processam no nível lexical, discursivo e fonológico, em contraste com
um número expressivo de vocábulos cultos, inseridos de memória, da cultura paraescolar, de
leituras autodidatas, e ouvido atento. O uso da acentuação e da pontuação prefiguram com
maior intensidade a reprodução das falas das personagens representadas no texto, seja na
presença do sotaque mineiro dela mesma, do nordestino, do português, do cigano ou do
espanhol (iducado, fidida, purtugueis, imprimacar, puis, treis, ricibi, reincarnações, lumbriga,
maguá-lo) do que propriamente uma adequação às regras gramaticais ou estilo único
determinado. Assim, lexias de traço popular como “apetite de leão”, “muamba’, “de arrepiar
os cabelos”, “Zé povinho” “bate-fundo”, “fuá”, entre outras expressões de cunho oralizante,
são comumente empregadas. Dessa maneira, analisar sua escrita através dos pressupostos da
perspectiva normativa se faz inviável, ainda que, pelo emprego, ocorra a apropriação de
léxicos de caráter culto. Tal apropriação ela faz, sobretudo, pela beleza do aspecto sonoro e
pela distinção e imponência, reconhecidos pela escritora em tais palavras, como
‘contingência’, “rascoa”, “resoluta”, ‘sapiencia”, ‘profugo’, “notivago”, etc., ou ainda quando
ela venha servir de parâmetro para mostrar esse material como contraponto da gramática
formal.

Suas narrativas parecem estar sempre na fronteira da escrita da primeira infância,


com uma grafia que imita a pronúncia, como nos rotacismos, ditongação em monossílabos
tônicos e variação de vogal, já citados anteriormente, mas que foram sendo “corrigidos” ao
longo do processo criativo, deliberado, também com uma função didática. Mesmo assim, em
geral, Carolina de Jesus foge aos padrões e incorre em ‘erros’ básicos por desconhecer as
normas gramaticais, assim como ladeia a escrita poética, distanciando-se organicamente do
uso normativo da língua para encontrar sua profundidade na recriação da palavra. Na análise
proposta, portanto, encontramos esses sinais que flutuam nos textos como segmentações
insólitas e enigmáticas, e manifestam na obra uma escrita esgarçada, na qual o léxico popular
reforça a imagem que emerge do estrato social desprivilegiado, enquanto o léxico culto alude
à memória discursiva de uma “identidade narrativa” que visa legitimar a voz literata
constituída em contiguidade e assimetria.

De fato, a escrita esgarçada ou mal-ajambrada de Carolina de Jesus gera uma


ruptura e colide com o funcionamento linguístico, mas que, de alguma maneira, esse
66

dilaceramento superficial guarda em seu cerne um mecanismo de produção literária que tenta
ao máximo aproximar o leitor do universo narrado. Não escapa à leitura de qualquer pessoa a
multiplicidade de vozes que atravessa os caminhos da escrita caroliniana e, ao se observar
também a vastidão de pessoas-personagens que constituíam a cidade de São Paulo, a cidade
conhecida profunda e refletidamente por ela; por isso, Carolina de Jesus fazia questão de
demonstrar a variedade e os conflitos que dela emergiam, especialmente no espaço favelado,
berço dos desvalidos, empurrados para as beiras da cidade.

Na crônica30 autobiográfica “Favela”, publicada no livro Onde estaes felicidade?


(2014), Carolina de Jesus conta que tanto migrantes quanto imigrantes tiveram que sair dos
cortiços improvisados nas zonas centrais de São Paulo porque os terrenos precisavam ser
desocupados para dar lugar à construção de monumentais prédios, projetados para a nova
metrópole, os “arranha-céus”31 . Os homens marginalizados nesse processo de modernização
passaram a sobreviver nas favelas como poeira e ácaros debaixo do fino tapete da “sala de
estar” que estava então sendo erigida. Ao relatar esses eventos – com olhar crítico, como faria
um cronista social – a escritora assinala os acontecimentos a partir de um ponto de vista
pessoal, unívoco.

Interessante notar, no contraponto, a presença da poeta Carolina de Jesus como


que embebida numa escrita fronteiriça e esgarçada, trazendo à tona as contingências da dicção
analfabeta com a qual conviveu nesse processo modernizador. A mescla de vozes, sotaques e
acentuações revela esse agrupamento de discursos nos quais sua escrita se dilacera ao recriar
aproximações das unidades de origem e de suas significações ao rebocá-las em seus textos,
por exemplo, quando reflete sobre a seca, transcreve um “repente” saído da boca de um
nordestino, cantador repentista recém-chegado do Nordeste, vagando na grande São Paulo:

30 A palavra “crônica” deriva do Latim chronica e do grego Khrónos (tempo) que significa o relato de
acontecimentos em sua ordem temporal (cronológica). No século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, a
crônica passou a fazer parte dos jornais. Ela apareceu pela primeira vez em 1799, no Journal des Débats,
publicado em Paris. A crônica literária, surgida a partir do folhetim, na França, tomou características próprias
no Brasil. (FONTE: Alana de O. Freitas El Fahl. Notas de Rodapé: algumas considerações sobre a Crônica
Literária no Brasil e os Periódicos do século XIX. [S.l.]: UEFS, 2013, p.42). É uma narrativa curta, de caráter
informativo sem deixar de conter algum traço de lirismo; escrita com certa finalidade para um público
determinado; pode ser jornalística, literária, histórica, etc. É, sobretudo, uma descrição pessoal. (SÁ, 1987)
31A música “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa, dialoga com essa realidade descrita por Carolina de Jesus,
principalmente nos versos: “/ ali onde agora istá esse adifício arto/ era uma casa véia, um palacete
assobradado.../[...]. Mas um dia/ nóis nem pode se alembrá/ veio os homi co’as ferramenta/ que o dono mandó
dirrubá. [...]”.
67

O que me impressionava era ver os nordestinos transitando nas ruas da cidade, com suas
tróuxas nas costas, com seus aspectos desnutridos como se fôssem habitantes de outros
planetas. Deshumanós, sujós e rótós alguns tocavam viólas e cantavam relatando nas suas
estrofes a infelicidade do norte.
No Estado do Ceará sete anos, não choveu
Quem era rico, imigróu-se
Quem era pobre, morreu
...Aquelas cenas ficavam dentro do meu cérébro como seu eu tivesse um compromisso
moral para amenizar a vida daquele povo (155) mas eu estava com seis anos nada poderia
fazer para suavizas as lutas d’aquêle povo infausto (IMS, “Meu Brasil”, F. 154-155).

Este excerto começa um texto sem título, mas que entrou no Diário de Bitita
(1986) com o subtítulo imaginado por Clélia Pisa como “Meu tio”, provavelmente,
considerando o início da narrativa que diz: “O meu tio Joaquim, era o mais bravo da família”.
A edição francesa, então traduzida, optou por enfatizar a trajetória do tio de Carolina de Jesus,
deixando de lado as atrocidades e a resignação, vivenciadas pela tia branca e questionadas
pela escritora, sobretudo quando deixa bastante clara a deliberação das agressões que recaem
com maior violência contra a mulher negra e pobre, colocada em pé de igualdade com essa tia
que teria de ser “enegrecida” ao casar com o tio. As passagens do racismo à brasileira,
vivenciados por Carolina de Jesus, foram excluídas da versão editada: Ela era branca e o povo
murmurava: Onde é que já se viu prêto com branco. E os homens brancos xingavam: É
açucar com o café. É o café com o leite. É o mosquito no lêite. Eu não aprovo estas uniões.
Cré com crê, e lé com lé (IMS, “Meu Brasil”, F. 117).

Algumas páginas antes, e a escritora já começa a sinalizar o percurso das


condições desiguais dos migrantes a despeito da chegada dos estrangeiros ao Brasil. Sabemos
que o texto foi repensado, dada a grafia com duas cores de caneta. Vejamos como ela expõe a
problemática dos privilégios dos imigrantes e o favoritismo na integração no mundo do
trabalho e o desprezo pela mão de obra dos negros:

Todas semanas chegava uma familia de colonos. A maioria eram estrangeiros que vinham
residir no Brasil e diziam: Que país! Que terra bôa para se viver. Viva o Brasil dos
brasileiros. E os italianos dizia para os filhos. Daqui há três anos, estaremos ricos. E
vocês devem estudar para ser doutores. E as crianças trabalhavam cantando as músicas de
Verdi. Lá Dona imobile. Cantavam de alegria porque iam ficar, ricos. As únicas familias
de cor que residiam na fazenda do senhor Olimpo Rodrigues de Araujo. Eram, o senhor
José Romualdo meu padrasto, e o Antonio Cavaco (IMS, “Meu Brasil”, F. 24-25).
68

Carolina de Jesus mapeava a geografia humana da cidade, observando, catando,


com olhos inquietos, retalhos de sentidos, percebidos ou imaginados, elaborando-os depois:
essa matéria-prima torna-se a argamassa de suas narrativas, fazendo, porém, a amálgama com
as memórias do passado familiar, seu esteio e seu lastro. A cidade oferece a ela o material, o
momento, o motivo e a razão de sua escrita poética. Para Meschonni (1982, p.22) “a poética é
a escuta de outras escutas”; desse modo, o poeta gera ruptura, pois capta o insólito, brinca
com as possibilidades, incorporando-as à sua escrita.

Aqui, o dilema gera uma via de mão dupla, pois entre filiar-se à opção de
considerar as lacunas vocabulares de Carolina de Jesus como sendo um problema do texto, ou
simplesmente elevá-las a uma questão de estilo, própria da recriação da língua, empreendida
por grandes escritores, optou-se nessas análises por enxergar nesses mecanismos uma situação
de fronteira própria do não-lugar ou lugar singular vivenciado na escrita de Carolina de Jesus.
Basta saber em que medida essas rupturas concorrem para efeitos que sinalizam rastros de sua
escritura, isto é, que geram um estilo inovador, observado na materialidade do processo
estrutural, mas também saber em quais locais esses vestígios, impressos no texto, podem
revelar as experiências de um sujeito único.

Finalmente, vale dizer que tanto a organicidade quanto as frestas da poética de


resíduos correspondem às condições materiais e aos percursos de constituição de sua
formação como escritora e como pessoa. Os resíduos como emparelhamento, acumulação 32 ,
improvisação e reutilização do descartável são molduras para a materialidade da obra. A
seguir, alguns exemplos.

No Documento 4 há uma série de cadernos: cadernos de criança, cadernos


variados: bruchuras, espiral ou encadernados, cadernos de contas. Todos encontrados em latas
de lixo de fábricas para o reaproveitamento das páginas (ou partes delas) em branco.

32Agamben (2012) observa que na sociedade moderna o homem não está mais ancorado na transmissibilidade da
herança cultural, senão da acumulação do passado. Parte de um movimento, oposto ao da sociedade tradicional,
está preso a seu passado buscando um futuro. Uma inadequação, um intervalo entre o ato da transmissão e
coisa a ser transmitida, e uma valorização desta última independentemente da sua transmissão (p.174).
69

Documento 4:

Documento 04: Conjunto dos cadernos doados por Audálio Dantas a FBN em 2011.

Nesta foto é possível ver os diferentes formatos e origens de seus cadernos e


livros comerciais que serviam de suporte para sua escritura. Pode-se perceber também o frágil
estado de conservação dos objetos, uns mais precários do que outros.

O Documento 5, na próxima página, é fac-símile de uma folha de livro de


compras, daqueles que se usava em escritórios de contabilidade e em estabelecimentos de
comércio. A folha fotografada foi também toda reaproveitada pela escritora, para escrever sua
crônica político-social daquele dia, cujo conteúdo vai comentado a seguir, depois da imagem.
70

Documento 5:

Documento 05: FBN – Cadernos de compras reutilizado para escrever texto enviado para o jornal.
71

Quando se observa a página escrita em prosa (à esquerda), o texto que ali está é
similar a uma crônica, com notícias da atualidade brasileira; fala das eleições, dos candidatos.
Com seu olhar crítico, Carolina de Jesus faz suas considerações sobre vários problemas do
país. Depois de falar de um de seus assuntos preferidos – a questão agrária, e de seus
trabalhadores – ela deixa a seguinte frase: “porisso eu aconsêlho”. No alto dessa mesma
página, ela escreve o que seria o seu aconselhamento: “se o povo não eleger o dr. Adhemar de
Barros para presidente do Brasil, a fome multiplicará”. Na página da direita, em versos, ela
escreve um poema. Os versos buscam a rima e estão ordenados com certo ritmo, quase todos
obedecendo à métrica clássica – redondilha maior. O tema dos versos segue a crônica, pois
continua falando das eleições e de algum candidato em quem ela recomenda o voto. Parece
que ela quer dialogar com o leitor, passando a ele os valores nos quais ela acredita, pois ali
estão palavras como “progressista”, “intelectual”, “culto”, “letrado”. Sempre em seu afã
pedagógico procura transmitir seus “ensinamentos”.

Portanto, este aspecto de sua escrita é explicitamente político. A política para


Carolina de Jesus é imanente à sua poética, está intrinsecamente ligada a ela, atingindo a
medula de sua criação.

O Documento 6, a seguir, mostra o fac-símile de duas folhas de caderno, escritas,


totalmente preenchidas.

Nesse documento, é possível notar dois aspectos muito interessantes, ou seja, na


folha da esquerda a questão da economia do uso dos espaços em branco, numa escrita em que
se pode ver margens irregulares em função das frases não alinhadas, com vários modos de
aproveitamento dos espaços, de preenchimento dos vãos da página, e mais uma vez a escrita
imita a vida, pois, a seu modo, ela recicla também o espaço de escrever, de grafar suas ideias.
72

Documento 6:

Documento 06: FBN – Utilização de cada espaço do caderno dada a insuficiência do suporte.

Do lado direito, a data encimando a página, como título, o dia e o mês repetidos
na primeira linha. Carolina de Jesus escreve que é o aniversário da sua filha Vera Eunice, e
que ela pretendia ter comprado um par de sapatos novos para a garota. Nesse texto ela faz sua
crônica familiar, colocando-se no contexto social, político e econômico do país, num
exercício de reiteração de suas queixas e demandas sobre sua própria realidade.

Os manuscritos do Documento 7, a seguir, estão em um fichário de registro de


despesas, o tipo do fichário usado em empresas, local preferido de suas recolhas.
73

Documento 7:

Documento 07: MAB - “Caderno 20” reaproveitado de uma fábrica.

Nesses manuscritos autográfos há aspectos importantes para a análise dos escritos


de Carolina de Jesus. Primeiro, a mistura de gêneros e de conteúdo de seus escritos, como já
apontado antes. Este Documento 7 tem característica de diário, pois ali ela vai relatando seu
74

dia, tanto como personagem de si mesma quanto protagonista de seu drama, narrando o que
fez, o que gostaria de ter feito, o que não pôde fazer e suas respectivas razões. Além disso, ele
está edificado como um journal de travail como será demonstrado mais detidamente no
capítulo terceiro.

Documento 8:

Documento 08: APMS – Mescla de gêneros num mesmo caderno.

Neste manuscrito repete-se o mesmo padrão dos anteriores, com a diferença de


que aqui a letra está mais caprichada, a grafia mais segura, a escrita mais clara. A mistura de
gêneros continua igual, prosa de um lado e versos do outro, como um exercício de exposição
de uma múltipla face, que precisa mostrar seus vários modos de ver o mundo, e até mesmo de
senti-lo e, por isso, analisá-lo. Novamente ela faz do livro e da escrita o objeto recorrente de
seus diários e de suas autoficções como será discutido na quarta parte deste estudo.

Carolina de Jesus faz a crônica de sua cidade do modo como ela a percebe, e
pontua os aspectos políticos: a insatisfação social, os preços e a movimentação das forças
75

(polícia, funcionalismo, etc.). Nos versos, ela faz o voo poético, lírico, permite-se sonhar: “se
é que temos o direito de renascer/ quero um lugar, onde o preto é feliz”.

Evidentemente, no Documento 9, em cujo texto estão narradas suas impressões


sobre a cena política, ela mescla os gêneros e os assuntos – fala da morte de Getúlio Vargas e
elogia Juscelino Kubitschek. O texto parece diário, parece ficção. São constatações do
presente e rememorações do passado com aspirações literárias, todos numa só narrativa, como
no texto analisado adiante.

Documento 9:

Documento 09: APMS – Fólios esparsos.


76

No seguinte datiloscrito [transcrito] foram encontrados traços de biografemas que


reaparecem nas entradas de três de seus romances inéditos:

Transcrição: Minha irmã

“Minha irmã”
Meu irmão, e eu, eramos pequenos. Não tinhamos o conhecimento para analisar o que é que ia
occórrer na nóssa vida familiar. Uma manhã nos acordamós com uma novidade em casa. Havia
nascido uma menina e esta menina era nossa irmã que a cegónha havia deixado _Só que a menina
estava mórta em carne viva como se estivesse sido assada. O meu irmão fói ver a menina e saiu
córrendo assustado como se estivesse visto um fantasma. Ele dizia: Credo! E cuspia.
Eu também fui ver pórque era muito curiósa e podia até, ser classificada de a secretaria, da
curiósidade E as pessoas que iam visitara minha mãe e ver a menina saiam vomitando. E dizendo
Que coisa hórróroza!
Eu, nunca vi cóisa igual.
É o fim do mundo!
E a noticia circulou que a menina havia nascido pôdre. Minha mãe queixava: que havia lavado
muitas roupas pezadas colchas de lâns. Os que fôram ver a menina passaram varios dias sem comêr.
Eu tinha dó da menina que mórte horrível.
Minha mãe dizia que ela ainda não tinha noção da dór. Que os que nasçem e mórrem sem
conheçer as atribulações da vida é que são felizes. Que o mundo para uns, é semelhante a uma arena
ós fórtes dóminam ós fracós.
Que a palavra _ vida simboliza _ sofrimento
FBN: MS 565 (5) - “Datiloscritos esparsos numerados a mão”. Minha irmã. FTG. 32

Quando Carolina de Jesus cita a fala da personagem mãe, na verdade ela está
repetindo – a seu modo – uma crença popular sobre palavras atribuídas a Sócrates, pois o
filósofo grego afirmava que “a maior felicidade é nascer morto”, já que viver necessariamente
implica sofrer. É possível ver aqui o palimpsesto de crenças e ideias recriadas na recolha de
traços e sensações de tudo aquilo que ela considerava belo, justo e educativo. Para a escritora
a beleza da vida era a própria poesia e toda forma de aprendizado esboçado por meio das
máximas, extratos filosóficos e linguagem poética. O belo para ela teria sua expressão última
na poesia, seja através da dor dantesca que precisa ser expurgada, seja através do ápice de um
instante de felicidade, como aparece no capítulo terceiro, nas análises sobre a preparação de
sua peça “Seu Binidito”.

No início desta narrativa, da qual há, pelo menos, três versões mapeadas por
APMS, FBN e IMS, e sinalizadas no capítulo terceiro, assim como os textos “O Sócrates
africano”, “Minha madrinha”, “A panela”, “Meu tio”, “Meu primo Adão”, “O ovo”, dentre
77

outros, podemos acompanhar a narrativa autobiográfica de determinados acontecimentos


marcantes que terminam com um tom proverbial, trazendo aspectos das fábulas e uma
possibilidade de ensinamento do trágico vivido.

Do ponto de vista da narrativa, a partir desse texto, em sua relação com o romance
“Rita” e as lembranças que registra sobre seu pai ao longo de suas diversas passagens de
rememórias, inclusive citado em Diário de Bitita, podemos supor que este texto dialogue com
os biografemas33 , que Carolina de Jesus reconstitui através de suas narrativas autoficcionais
como nos romances “Maria Luiza” e no excerto desse sem título no caderno, mas ela informa
que teria como título o nome “Rita”:

Na pequena cidade de Conquista nascia uma menina. Era raquítica olhos grandes nariz
achatado narinas dilatadas. Era o deposito da sífilis. Sêis dias depôis do seu nascimento
cobriu-lhe o corpo de chagas. Tiveram que envolvê-la numas fôlhas de bananeira e unta-
la com unguento sicatrizante. Quando ela nasceu surgiu a dessavença entre sua mãe e seu
esposo. No inicio quando sua mãe ficou gestante. Os mexericos começaram a medrar. Os
delatores propalaram eu a menina não era filha do senhor José Rodrigues mas de um
boêmio chamado João dos Santos a quem apelidaram de inimigo do trabalho porque ele
passava o dia todo tocando viola. Ele ia numa casa ali e começava a tocar. Como tocava
muito bem, era admirado pela a multidão que permanecia até a hora do almoço. Era
convidado para almoçar cousa que ele aceitava sem muita insistência. Saia daquela casa e
ia a [ileg] outra e assim ia vivendo (APMS-09.03.14.5, “Rita”, F. s/n).

Segundo Régine Robin (1989)34 o “biografema” é o que faz emergir no texto um


conjunto de aspectos parciais da biografia do escritor, mobilizando o imaginário ou um infra-
saber como inflexão do vivido, isto é, como proliferação de escritura. Carolina de Jesus faz
isso o tempo todo. Suas personagens femininas revigoram características de pessoas reais às
quais ela conheceu e com quem conviveu. Maria Alice ou Helena poderiam ser facilmente
substituídas por sinhá Maruca ou Dona Cota em suas sagas e cenas de submissão feminina.
As informações sobre seu pai, apenas citado como “poeta boêmio”, foram trazidas a seus
ouvidos através de comentários alheios; todo o restante, portanto, ficou a cargo da
imaginação, de juntar o quebra-cabeça de uma história para si. O ‘si’ como tentativa de
encontro do ‘eu’ pronto, fixo e acabado, que está sempre em desvantagem diante do ‘eu’
inacabado, fragmento, biografema, o indecifrável (ROBIN apud FIGUEREDO, 2013, p.21).

33A partir da noção e não como “conceito de escritura”, desenvolvido por Barthes (2002), a autora demonstra
que, enquanto a biografia está voltada para a história de vida, o biografema engendra uma escrita de vida.
Carolina de Jesus se dedica, na invenção de sua língua da fome, a fazer biografema.
34 ROBIN, Régine. Le Roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors lieu. Montréal: Préambule, 1989.
78

A seguir, pode-se observar como os biografemas confessos dialogam com o trecho do


romance autobiográfico, ensaiado por Carolina de Jesus, menos como projeto e mais como
instrumento, repertório e inquietações que tematizaram suas narrativas:

(...) Foi nesses bailes nada seletos que ela conheceu o meu pai. Dizem que era um preto
bonito. Tocava violão e compunha versos de improviso. Era conhecido como poeta
boêmio. Nos bailes, ele dançava só com a minha mãe. Ela teve só um filho com seu
esposo, o Jeronimo Pereira. O sobrenome Pereira, do esposo de minha mãe, deve ter sido
herdado de algum português, porque o esposo de minha mãe era mulato. Quando minha
mãe ficou grávida, surgiram os disse-me-disse tão comuns nas cidades do interior (...).
Diziam que a criança ia nascer filha do poeta boêmio. Quando eu nasci comprovaram-se
os boatos, e as más línguas sentiram-se meio proféticas (JESUS, 1986, p.72).

Assim, longe de exprimir uma exiguidade, as faltas na vida e as incompletudes na


escrita de Carolina de Jesus favorecem outras possibilidades, pontos de fuga, formas criativas,
experimentos para novas percepções, invólucro para a construção de uma escrita pujante.
Nesse quebra-cabeça que ela monta com suas narrativas ocorre um duplo movimento de
mostrar e esconder. Do mesmo modo que ela não quer contar tudo, ela conta, mas o faz de
modo oblíquo, driblando seu leitor, um tanto confessando, um tanto inventando, como fez
Henry Miller em sua obra “A crucificação encarnada”, composta na trilogia Sexus, Plexus,
Nexus.
79

Documento 10:

Documento 10: FBN – Fotograma em estado de degradação por rompimento e manchas

O Documento 10 parece ser parte de uma narrativa ficcional, mas por seu precário
estado de visualização não oferece campo de leitura para ser analisado. Os Documentos 11 e
12 apresentam, da mesma forma, um precário estado de conservação, sendo que o texto não
oferece visibilidade suficiente para análise. Apenas estão sendo mostrados aqui para atestar as
reais condições de alguns desses manuscritos.
80

Documento 11:

Documento 11: APMS – Caderno degradado anteriormente, molhado e com proliferação de fungos.
81

Documento 12:

Documento 12: APMS – Cadernos com cortes e rompimentos que comprometem o conteúdo.

A partir desses exemplos vê-se que a então poética de resíduos, erigida tanto nos
níveis de conteúdo e forma quanto no da materialidade do suporte de difícil acesso, frágil,
incompleto, continua sem previsão de tratamento pelas instituições custodiadoras, mantendo
desse modo, inexoravelmente, a obra de Carolina de Jesus na marginalidade cultural.

O processo criativo de Carolina de Jesus, preparado durante cerca de trinta anos,


foi realizado primeiramente de maneira improvisada, valendo-se ela dos mais variados
suportes, como demonstrado nos exemplos apontados anteriormente; depois, a partir de 1958,
começa a sofrer muitas interferências externas, especificamente, com a aproximação e a
interlocução de Audálio Dantas em sua vida. Ela já sinaliza em seus diários que, pensando na
publicação e num leitor ideal, começa a escrever para o jornalista, chegando inclusive a se
comunicar com ele em escólios em seus próprios cadernos. Ou o contrário, pois quando a
palavra “crítica” aparece anotada na margem do caderno, isto sinaliza que o jornalista operou
uma leitura avaliadora de seus escritos, como pode-se constatar no documento 13, a seguir.
82

Documento 13:

Documento 13: APMS 01.01.02, Diário 13/07/60 a 24/07/60.

Em sua pesquisa, Perpétua (2014) explorou os resultados dessas interferências na


produção e recepção de Quarto de despejo no Brasil e no exterior, e na formatação da imagem
da “escritora favelada” como produto de compra e venda, observando as críticas que Carolina
de Jesus faz à falta de tempo e a ruídos de outros autores em sua obra. Nos diários que
compõem parte de Casa de Alvenaria, a escritora, sem lapidação, explicita e tece
considerações sobre as consequências dos conselhos e intervenções que passam a condicionar
seu processo criativo, porém, valorizando o contato com poetas e estudantes que, com doação
de livros e dicionários, incentivavam a criação de seus escritos “mais literários”,
menosprezados por seus editores.

Também, nesses cadernos Carolina de Jesus tece um profundo debate em torno do


papel do escritor e das implicações que recaem sobre seu lugar de escritora marginal, questões
83

já sinalizadas em algumas passagens dos cadernos de Quarto de despejo, mas que não foram
selecionadas por Audálio Dantas:

19 de dezembro de 1958:
(...) quantas anedotas vão surgir em torno do meu nome. pórque o poeta rico, fica celebre
Com uma areola de rêspeito envolvendo o seu nome. E o poeta das margens. Do lixo, fica
celebre com uma pórnógrafia em torno do seu nome. Igual ao Manoel Maria du Bocage
(PERPÉTUA, 2014, p.228).

22 de julho de 1958:
Um homem que passava de carro vendo-me com o saco de papel nas costas parou o carro
e disse: Olha a escritôra! O outro que lhe acompanhava pérguntou-lhe:
_ Aquilo escreve? Um escritor tem noção de igiene e ela esta tão suja que até dá nôjo!
(...) eles continuaram falando e eu segui pensando (...). Os escritóres marginais não tem
valor no Brasil (idem, p.234).

O tempo da escritura foi interrompido a partir de agosto/setembro de 1960,


quando Carolina de Jesus se torna a “Carolina autora de um best-seller”, por imposição do
excesso de viagens. Quando se isola no sítio em Parelheiros, longe dos jornais, da crítica e da
fama na cidade, para além de seu apagamento em vias de um governo sob a ditadura militar,
ela consegue retomar seu processo criativo, sendo este o momento em que ela passará a
reescrever suas obras, com a ajuda de seu filho mais velho para datilografar seus poemas e
narrativas curtas. O pároco de uma igreja próxima ao sítio, segundo testemunhos familiares,
também datilografou alguns textos.

Daqui em diante para a análise genética dos originais, seguimos as sugestões de


Grésillon (1994) com algumas modificações e ajustes dos símbolos que foram necessários
elaborar, de acordo com os eventos específicos apresentados nos manuscritos de Carolina de
Jesus.

Assim, para as anotações das operações da escritura, pontuadas na nota lateral, e


que serão utilizados nas transcrições da pesquisa, foi estabelecido um conjunto de códigos,
conforme segue:
84

** substituição
## deslocamento
++ acréscimo
>< supressão
^^ correção
== confirmação
\\ inversão da ordem do pensamento
@@ alteração da pontuação
§§ repetição
[ileg.] palavra/ oração ilegível
/ quebra de parágrafo
\\ quebra de página
numeração para indicar páginas
85

Capítulo II

GESTOS E GENEALOGIA: DIFERENTES ESTADOS DE UM TEXTO


86

II.1 Manuscritos dispersos versus palimpsestos de narrativas

Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a


linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a
própria irredutibilidade a ela.

(Giorgio Agamben)

Fui a escola com a curiosidade tão própria da infância.

(Carolina de Jesus)

Como já foi dito, as edições brasileiras de Diário de Bitita são uma cópia do texto
estabelecido e traduzido pela jornalista brasileira Clélia Pisa, intitulado Journal de Bitita
(1982). Célia Pisa, em 1972, recebeu das mãos de Carolina de Jesus dois cadernos
manuscritos, um contendo um “Prólogo” e diversos poemas, começando pelo intitulado “Um
Brasil”, que cede nome a esse caderno, de acordo com o IMS, o outro com mais alguns
poemas, narrativas autobiográficas e textos ficcionais, nomeado pela titular “Um Brasil para
brasileiros”. Esse título – que nomeia uma de suas narrativas – decorre de uma frase de Rui
Barbosa, provavelmente repetida por seu avô, o “Sócrates africano”35 – quando com suas
conversas iluminava as parcas mentes naquele vilarejo em que viviam, na cidade de
Sacramento (MG). Além disso, havia a contação das histórias de escravos, de Zumbi dos
Palmares, narradas por um oficial de justiça de Sacramento, um senhor negro que lia trechos
de jornais e citava os abolicionistas, entre eles, José do Patrocínio (tendo sido este citado por
Carolina em uma de suas narrativas).

A edição francesa é resultado de uma tradução de Réginet Valbert a partir de tais


textos, contidos nesse segundo caderno; porém, apresenta acréscimos e correções, sugeridos

35
Segundo Elena Pajaro, em entrevista cedida à Revista Fapesp (2015), o avô da escritora era cristão e
comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe conferia autoridade moral e proeminência na
comunidade. Trazendo essa tradição da apelação pela conduta moral através do discurso proverbial, pode-se
dizer que Carolina de Jesus estava inserida em spiritual’s que “comunicam o caminho a ser seguido e
lamentam os seus desvios, recriando uma ética religiosa e política que foi constantemente retomada nos
discursos em prol dos direitos civis, especialmente nas décadas de 1950 e 1960” (p.80).
87

uns pela editora francesa Métailié, e outros pela releitura e restabelecimento do texto
empreendido por Clélia Pisa, jornalista brasileira residente na França. As notas que servem de
suporte aos textos mudam radicalmente de uma versão estrangeira para outra, o que denota
um direcionamento dos discursos para cada público-alvo. No caso do francês, principalmente,
essas notas enfatizam a “História do Brasil” para o leitor europeu pouco afeito à realidade dos
brasileiros, assim como os cortes, como afirmou Clélia Pisa em entrevista36 , sobretudo
referentes aos negros descendentes de ex-escravos que ainda viviam um processo
desumanizador de segmentação social resultante do preconceito racial.

Na versão datiloscrita das editoras francesas37 , com vistas a esclarecimentos, os


acréscimos apresentam diversas oscilações, sinalizando um texto produzido por várias mãos.
Esta é uma evidência confirmada pela editora Métailié, em entrevista concedida em novembro
de 2013. Nessa ocasião, ela confirmou que a tradutora estava presa ao português e traduzia
literalmente o que seria ininteligível para o leitor francês.

As interferências da jornalista brasileira são anotadas como forma de sinalização


de veracidade da capacidade de escrita de Carolina de Jesus. Como se pode ver no final da
primeira página transcrita, quando a escritora utilizou um termo em francês na frase: “Eu
começava minha avan premièr no mundo”, a tradutora insere a nota “em francês no texto”,
reafirmando o achado. Além disso, Pisa procurou manter na versão por ela datiloscrita alguns
desvios gramaticais de Carolina de Jesus, tais como a disposição dos parágrafos, a
acentuação, a pontuação, a ortografia, e a grafia do termo francês, que a escritora havia
reproduzido a partir do som de avant-première. Esta postura se deve ao fato de que, segundo
ela, “a linguagem original seja a linguagem da própria Carolina. Porque a tradução transforma
a escrita e até algumas passagens. Na tradução, a linguagem é rebuscada se compararmos com
a escrita de Quarto de despejo” (FERNANDEZ, 2014b, p.300-301).

Como já foi dito por diversos estudiosos, são muitas as “mesclas de


hipoconcordância e hipercorreção” como característica derivada da carência de educação

36“[...]. Tiramos o que tiramos e o que podíamos tirar. Teve que ser traduzido, e o importante no Journal de
Bitita é que fosse um testemunho que pudesse ser lido por um francês que não tivesse nenhuma referência da
Carolina. Porque este livro não é o original” (FERNANDEZ, 2014b, p.229).
37
Por ocasião da entrevista realizada em Paris, a editora Anne-Marie Métailié me cedeu fotocópias dos
datiloscritos de Clélia Pisa que “ordenaram” os originais de Carolina de Jesus; recebi também as fotocópias da
versão em francês estabelecida por Régine Valbert, todas elas anotadas e repensadas por Métailié e Pisa . Ver
FERNANDEZ, Raffaella A. Entrevista com Ane-Marie Métailié. Scripta, Belo Horizonte, v. 18, n.35, p.293-
296, 2º sem., 2014a.
88

formal somada às referências das literaturas beletristas brasileira e portuguesa, lidas e


constantemente referenciadas pela escritora. Acrescente-se a isto que Carolina de Jesus quase
sempre escrevia reproduzindo o som das palavras. Buscava enriquecer seus escritos por meio
de mecanismos da oralidade e do registro literal da voz, repleta de sotaques do “povo que
faltava”, tais como a fala de ciganos, nordestinos, mineiros, portugueses, e até da língua
francesa que marcou a belle époque brasileira. Ainda inseriu outros sotaques que vivenciou
dentro e fora da favela, no percurso entre Minas Gerais e a cidade de São Paulo. Estes são
alguns dos traços delineados por uma escrita singularmente híbrida, labiríntica, inaudita, no
favorecimento de um devir coleta criativa, referencial e correspondente. Nesses manuscritos
quase não há novas sugestões registradas a mão, com as quais a escritora rearranjava seus
textos para seus futuros editores, empreendendo, desse modo, correções, supressões, e o
acréscimo de palavras ou de frases inteiras com outra cor de tinta de caneta ou mesmo a lápis,
como se pode ver nas versões 1 e 2.

Apesar de não ter obtido grande sucesso de venda, como no caso da publicação
francesa de Le dépotoir (Stock) – Quarto de despejo, em 1962, e alguma visibilidade com Ma
vrai Maison (Stock) – Casa de Alvenaria, em 1964, o terceiro livro recebeu apenas uma “boa
acolhida” da imprensa francesa, e, como o segundo, não compartilhou o mesmo sucesso do
primeiro. Ainda assim, chegou a ganhar em 1983 o “Prix de Lectrices de Elle”, prêmio
regional da cidade de Nice, oferecido pela revista Elle38 , publicação feminista de grande
tiragem. Na ocasião, a jornalista Pisa, a editora Métailié e a tradutora Régine Valbert foram
até a cidade de Nice representar Carolina de Jesus, reiterando a observação de que, em
Carolina de Jesus, a despeito da qualidade literária, importa ver de que modo, numa visada
crítica, ela discute os problemas das desigualdades sociais, raciais e de gênero. Neste caso, as
idealistas da revista Elle se identificaram com sua feminilidade e ousadia, e se sensibilizaram
com a negritude e a pobreza da escritora brasileira.

A editora também nos informa que os direitos autorais de Journal de Bitita foram
concedidos à editora espanhola Alfaguara, que publicou o livro em 1984, sob o título de
“Diario de Bitita”. Métailié, na mesma entrevista (FERNANDEZ, 2014a), afirmou que uma
editora alemã se recusou a editar o livro alegando falsa autoria. A mesma desconfiança em
torno da autoria de Carolina de Jesus gerou polêmica no Brasil, no ano de 1993, com o artigo
“Mistificação Literária”, de Wilson Martins, no Jornal do Brasil (23/10/1993), tendo sido

38 Grand Prix 83 Nice. Lectures. Elle. Paris, 25 de Oct. 1882.


89

refutado em seguida por Audálio Dantas (Imprensa, jan./ 1994, p.42-43) com outro artigo:
“Mistificação da crítica: uma resposta à acusação de fraude literária”.

A dúvida de Wilson Martins e dos editores alemães se dava mediante a escrita


esgarçada de Carolina de Jesus – esta que vemos como alavanca do processo criativo de sua
poética de resíduos –, enquanto que para o jornalista brasileiro seria uma espécie de rearranjo
ou “embuste” entre a voz testemunhal da favelada e o seu “descobridor”. Em 1995, Martins
reafirma sua crítica no mesmo jornal, frisando que a narrativa “não podia ser de Carolina”
porque “continha expressões rebuscadas como ‘astro-rei’ em vez de sol, simplesmente; ou
frases inteiras, como ‘acordei, abluí-me e aleitei-me’(...); só podia ser coisa de jornalista”
(p.4). Manuel Bandeira chegou a intervir em favor do repórter em um texto para o jornal “O
Globo”, conforme segue:

Muita gente tem me perguntado se acredito na autenticidade do livro. Querem


atribuí-lo a trabalho de Audálio Dantas sobre notas, apontamentos de Carolina.
Houve de fato algum trabalho de composição da parte de Audálio. Este declarou no
prefácio que selecionou trechos dos cadernos de Carolina, suprimiu frases. Não
enxertou nada. Acredito. Há nestas páginas certos erros, certas impropriedades de
expressão, certos pedantismos de meia instrução primária, que são de flagrante
autenticidade, impossíveis de inventar (BANDEIRA apud CASTRO, 2007, p.36).

Assim como Marisa Lajolo e Manuel Bandeira, a verificação dos mecanismos da


poética de resíduos no corpo a corpo com os originais permite certificar que as
“impropriedades de expressão” de Carolina de Jesus contribuem para a efetivação da
autenticidade de sua escrita. Concorda-se com as afirmações de Lajolo no paratexto intitulado
“Poesia no quarto de despejo ou um ramo de flores para Carolina”, publicado na Antologia
pessoal de seus versos, onde Lajolo se detém no emprego de expressões e palavras
rebuscadas, as tais “lantejoulas” do quilate de “infausto, cilícios, ósculo”, associadas aos
“tropeços gramaticais” da escritora, e que segundo ela necessitam de outra história cultural,
construída sob bases analíticas mais flexíveis, para que se possa apreender esse tipo de obra
como um todo literário.

Felizmente, nos dias de hoje, e, sobretudo, após diversos estudos sobre os


manuscritos carolinianos, além da materialidade da microfilmagem de alguns cadernos, hoje
disponíveis na base digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, esses questionamentos
caíram por terra, de modo que se pode afirmar que a obra literária de Carolina de Jesus não foi
90

publicada no grau que ela abrange enquanto quantidade e qualidade literária tal qual expõem
seus originais.

Entre outras características, ressaltam o arcaísmo, o passadismo, o preciosismo;


uma volta ao passado, baseada na linguagem de românticos ou parnasianos, que ela lia e
admirava, contrariando os preceitos da literatura praticada nos anos de 1950, ligada ao
modernismo, indo em busca de uma linguagem mais afim com o cotidiano do povo. Este viés
do processo de catação dos recursos linguísticos afasta Carolina de Jesus do hall seleto da
literatura praticada pelos modernistas, ao mesmo tempo em que possibilita um diálogo
insistente com o passado literário. A movência dos resíduos discursivos, à procura de uma
identificação ou em busca de um lugar, é própria de uma prática da vida moderna, que coloca
o homem em condição de constante deslocamento, carente do diálogo com seu passado, como
sintoma de desnorteamento e de errância, e no caso do sujeito marginalizado o sintoma é
acentuado para além de suas condições sociais, pois nele está um sujeito excluído de sua
própria história. Nesse sentido é que a narrativa de Carolina de Jesus avança, a partir de uma
linguagem refratada, fraturada, e que se equilibra num lugar outro, em detrimento de um
indefinido ou indeferido, causando oscilações entre vinculação e desvinculação nos vários
espaços temáticos e formais: feminismo, negritude, política, sociologia, literatura e
autobiografia, enfim, toda sorte de captura que estivesse ao alcance de sua arguta
sensibilidade ou do decimonómico, que Carolina de Jesus logra captar.

Não se pode perder de vista que o movimento se faz em dobras, pois o lugar da
singularidade, enquanto marginal periférico urbano, constitutivo do não-lugar ou lugar da
negação onde está Carolina de Jesus, consiste justamente naquilo que ela mostra na própria
tentativa de se aproximar da língua literária brasileira e portuguesa românticas. Mas, como
não domina os elementos constitutivos da formação para alcançar esse intento, seus originais
revelam os potenciais erros de uma escrita sui generis que faz referências ao sistema literário,
consistindo-se, de maneira orgânica, autoral, fora dos padrões vigentes da língua e de
estruturas fundamentais, que redigem projetos literários, como a organização de cadernos e de
documentos determinados e rearranjados por seus próprios autores.

Esta é uma problemática que torna os manuscritos de Carolina de Jesus ainda


mais interessantes; manuscritos que intriga o leitor se este os vê sob a ótica do pós-
estruturalismo, com suas fragmentações, dobras ou amontoação de elementos; eles colocam o
leitor nesse labirinto de sobreposições das recordações que são próprias dessa escrita
91

marcadamente autobiografada, expressando lugares de incertezas da memória, mas também


de perambulações por estradas, becos e vielas; do rearranjo dos barracos, dos sobreviventes
pelas rebarbas da cidade, de resíduos de discursos e referencialidades, biografias despejadas
em cadernos encardidos e mal-ajambrados que mesmo depois de tantos anos ainda carregam
as marcas e o cheiro do lixo, com exceção daqueles que foram comprados quando a escritora
já havia se mudado da favela.

Nos cadernos pertencentes ao período de sobrevivência na favela há uma


diversidade de textos escritos ao acaso pelas ruas e esquinas, nas pausas para o descanso entre
uma catação e outra, como nos lembra Vera Eunice: “Minha mãe parava o carrinho e escrevia
ou falava um poema para mim”.

Os textos que chegaram às mãos das jornalistas pertencem aos últimos cadernos
do espólio de Carolina de Jesus. São cópias das versões mais bem-acabadas das memórias de
Bitita, e estão organizadas no modo como a escritora gostaria que chegassem ao público
leitor. Este livro, ao contrário do nome escolhido pelas editoras francesas, deveria se chamar
“Um Brasil para os brasileiros” e traria um “Prólogo” da própria Carolina de Jesus, como se
pode ler na seguinte imagem fac-similar:
92

Versão 3:

Documento 14 – IMS: CMJ, Pi, 001 – “Um Brasil para Brasileiros” (F. 1)
93

Como dissemos, a título de clareza na explicação, será levada em consideração a


sequência propostas pelos dossiês das três versões do mesmo texto “Prólogo’, muito embora
exista um questionamento em relação ao momento em que foram produzidos esses escritos.
Assim chamaremos de versão 1 o texto pertencente ao “Caderno 1” e de versão 2 aquele
presente no “Caderno 6”.

Em ambas as versões notamos a dificuldade para grafar a letra cursiva. Carolina


de Jesus estava sempre preocupada em recorrigir a grafia das letras ‘r’, ‘b’, ‘e’, ‘m’, ‘s’, ‘f’, ‘l’
e ‘v’, principalmente quando havia junções dessas, como observamos constantemente nas
marcações sobrepostas, nas letras ‘b’ e ‘r’ como nas palavras “breve” ou “abluir-me”. Revela
dificuldade em grafar a diferenciação das letras minúsculas e maiúsculas, embora
frequentemente saiba o momento de usá-las de acordo com a norma padrão. Os erros de grafia
vão diminuindo com o correr do segundo texto, ou seja, a correção se dá através do
letramento ali instaurado. As dificuldades com o entendimento de sua própria escrita, ou seja,
com a grafia das palavras, com a ortografia – resultado de apenas dois anos de convívio
escolar – foram cuidadosamente sendo corrigidas pela escritora num trabalho autodidático.
Ainda assim, em algumas ocasiões, as correções geravam novos erros.

Pelas próprias rasuras, e de acordo com o conteúdo desses textos e a expressão de


toda sua obra, nota-se que houve uma preocupação em rearranjar a grafia das palavras, o que
corresponderia ao seu projeto de buscar ser reconhecida como escritora. Assim, a leitura de
seus manuscritos faria parte desse projeto, daí talvez a prática de reler e revisar
constantemente seus textos.

Retomando a problemática da ortografia, de igual maneira ocorre uma oscilação


na acentuação, também observada por Elzira Perpétua (2000) em seu estudo sobre a gênese,
tradução e recepção de Quarto de despejo. A estudiosa atenta para o fato de que Carolina de
Jesus considerava “os acentos agudos e circunflexos não como marcadores de tonicidade, mas
como abertura e fechamento de vogais”39 , acrescentando que as concordâncias verbal e
nominal acompanham a oralidade, pois as “frases são carregadas de solecismos comuns à
linguagem oral”40 .

39
PERPÉTUA, 2000, p.167.
40 PERPÉTUA, op. cit., p.168.
94

Por diversas vezes Carolina de Jesus coloca dois tipos de acento numa mesma
palavra, o que não é usual em português; noutras, coloca um acento tímido como se tentasse
ludibriar o leitor de suas incertezas ortográficas; noutras ainda, exagera na utilização dos
sinais (antrópófogós) ou acentua com o agudo invertido como na língua francesa, o que pode
ser uma interferência da leitura de galicismos presentes nos jornais paulistanos da época, pois
ela parecia imitar os códigos linguísticos, o que contribuía ainda mais para esse tipo de
equívoco.

Na versão 2 do Prólogo há uma preocupação maior, tanto com a grafia quanto a


ortografia. Muitas vezes, ao corrigir demais incorria em outro tipo de erro, ou seja, no excesso
de palavras como em: “E pedia a a nós”. Também surgiam algumas repetições de erros de
ortografia como em “visinha”, uso desnecessário do acento circunflexo (lêite, prêto) 41 ou do
acento agudo (tódos, sórriam, viciós, jórnalista).

Vale ressaltar que os acréscimos, juntamente com o trabalho de revisão, revelam


uma reflexão a partir da releitura da escritora, pois, como se pode ver, novas palavras e letras
são inseridas em pequenos espaços. Além disso, diversas mudanças são operadas de um
manuscrito para o outro; o primeiro é mais enxuto e, por ter sido menos revisado, tem maior
quantidade de erros ortográficos, apresentando dificuldade de movimentação da letra cursiva.
Enquanto na primeira versão ela grafa “iguaes”42 e “póeticos”, na segunda versão está grafado
“iguais” e “poéticos”. Esse sinal nos permite dizer que a versão 1 foi escrita no quarto de
despejo, assim como a segunda, porém já repensada; e a terceira foi refeita no sítio, em
Parelheiros. E teria ainda uma suposta quarta versão que, segundo Vera Eunice, foi
datilografada pelos filhos e entregue também para as jornalistas, nos anos de 1970, junto com
os dois cadernos. No entanto, Métailié, tanto quanto Pisa e Lapouge, afirmam desconhecer
tais papéis.

41A língua portuguesa falada e escrita no Brasil já passou por várias reformas e acordos ortográficos, e esta
questão, até nossos dias, causa muita confusão ao usuário pouco letrado. No tempo em que Carolina de Jesus
escreveu e publicou seus livros, até 1971, as palavras que têm homógrafas não homófonas, como ele/êle;
este/êste; governo/govêrno; adorno/adôrno; forma/fôrma, recebiam o acento circunflexo para diferenciar de sua
homógrafa, cuja pronúncia era aberta. O acento diferencial foi abolido pela Lei nº 5.765, de 18/12/1971
(Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa [VOLP], [5.ed.], Academia Brasileira de Letras, 2009, p.
LXXXV).
42Ortografia da norma antiga, alterada via Decreto-Lei nº 8.286 de 5 de dezembro de 1945, cujo acordo havia
sido elaborado e aprovado em 1943, entre a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras
(VOLP, op. cit., p. XCV e XCVI). Vale lembrar que a Reforma Ortográfica de 1971 foi adotada apenas no
Brasil. Hoje está em vigência o Decreto nº 6.583 de 29 de setembro de 2009, em vigor de 1º de janeiro de 2009
até 31 de dezembro de 2015.
95

Valendo-se de travessões nas descrições dos “fatos”, Carolina de Jesus parece


narrativizar a vida. Tal evidência é visível pelas diferentes formas de contar os mesmos
acontecimentos, ampliados pela fantasia, pela descrição dos pormenores, como no exemplo da
passagem da fartura dos alimentos no campo, assim como a presença de certo heroísmo na
versão 2. O passado narrado através do presente modifica os fatos e, nesse sentido, a presença
do autor implícito compõe o seu reconhecimento no resgate da memória que privilegia
aspectos de valorização do eu escrito. Nota-se também que, assim como em seu best-seller, no
“Prólogo” ela utiliza vocabulário elaborado com a inserção de palavras como: “tépido”,
“leito”, “abluir”. Isto nos leva a pensar que a segunda versão possa ter sido reelaborada, e que
seja contemporânea ao momento do auge de sucesso de Quarto de despejo.

Em geral, os textos posteriores ao primeiro caderno foram escritos com uma letra
mais fluida e com menos desvios de gramática, como se ela já tivesse desenvolvido o hábito
da leitura e da escrita padrão. Mas esses escritos seguem o curso do processo criativo
enquanto palimpsestos de narrativas, pois mesmo que tenham sido reescritos apresentam
poucas rasuras, algumas supressões e outros acréscimos de pensamentos ou de ortografia,
mantendo, no entanto, o conteúdo estrutural.

Nas análises das versões do texto “Prólogo”, a seguir, o ato da rememoração


explicita uma tentativa de entender o passado que levou Carolina de Jesus a se tornar uma
escritora; no entanto, a memória é uma reconstrução, e isso fica patente, assim como o dado
vivido passa a ser um trampolim para a imaginação. A técnica da repetição coloca o leitor na
corrente do contato com esta perda estabelecida entre o escritor e as passagens do texto,
pondo o leitor na posição de refém da voz que fala. Ao pesquisador, caberá encontrar o que
está por trás desse pensamento, as técnicas narrativas, os dados referentes às personagens, as
ações externas que modificam os conteúdos, os experimentos da linguagem encaixados no
todo do texto; só que, nesse caso, entra-se no fluxo sem saber muito bem onde ele vai dar.

Rememorar faz parte das evidências atestadas pela técnica do arquivo, e é mais
explorada pela escritora do que a da arte narrativa. Essa escrita, portanto, privilegia o
detalhamento, a informação, o mapeamento e a acumulação, como se vê no exemplo das
entradas de seus romances. Entretanto, sem jamais sair do nível da memória, porém
questionando e problematizando os fatos no nível da imaginação ou da contestação, como
vemos, por exemplo, no texto “O canto triste”. No caso das versões do “Prólogo”, a
96

verificação abunda novas perspectivas que contrapõem a anterior, como no contrassenso, no


posicionamento em relação ao modo de vida urbano, abrindo novas fontes de sentido.

II.2 Percursos e preâmbulos

É pelo avesso que se conhece a bordadeira.

(Ditado popular)

A memória é uma ilha de edição.

(Waly Salomão)

Observa-se que as três versões do texto “Prólogo” estão localizadas na fronteira


entre a autobiografia e o conto, seguindo a trilha da poética de resíduos formulada pela
escritora no todo de sua obra. As transcrições a seguir apresentam a mesma temática de parte
significativa de sua obra, a saber, o conflito entre campo e cidade, que foi vivido por Carolina
de Jesus, notadamente em seu romance folhetinesco Pedaços da fome (1963), em seu
diário/crônica/autobiografia Quarto de despejo, de maneira mais dispersa em sua Antologia
poética, livro organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Marisa Lajolo, e também em
suas peças teatrais e em algumas das narrativas aqui analisadas.

Num primeiro momento realiza-se a descrição do material manuscrito e faz-se


uma leitura da reescrita feita nas duas versões do original de “Prólogo”. Em seguida, são
sinalizadas algumas diferenças, a partir da disposição paralela das três versões desse mesmo
texto, o que foi realizado de maneira pontual, pois um aprofundamento permitiria um novo
trabalho de tese no domínio da crítica genética, e sobretudo, da crítica textual, a fim de
mostrar de que modo as diferentes versões publicadas articularam a linguagem de Carolina de
Jesus. Portanto, a seguir, foram cotejadas a versão 1 e 2 no original pertencentes à FBN e a
versão 3 pertencente ao IMS. A primeira versão desse texto foi publicada em Jornal de Bitita
97

(1982), intitulada “L’école”; a segunda publicação traduzida do francês para o português em


1986, “Na escola” em Diário de Bitita, e a terceira versão publicada em Cinderela Negra, em
1994. Seguem imagens dos microfilmes pela FBN das versões 1 e 2:
98

Versão 1:

Documento 15: FBN: Caderno 1-“Poesias, provérbios e diários” (FTG s/n)


99

Versão 2:

Documento 16: FBN: Caderno 6 – “Poesias e textos autobiográficos” (FTG s/n)


100

As versões 1 e 2 estão armazenadas no primeiro microfilme denominado pelos


pesquisadores da FBN como “Miscelânea 1”, composto por oito cadernos manuscritos, numa
sequência aleatória de numeração e nomeação dos conteúdos – formas literárias e não
literárias. De acordo com o dossiê organizado pela FBN, o “Caderno 1” contém “Poesias,
provérbios e diários”. Nele encontramos uma das versões do texto que traz no topo da página
a seguinte indicação: “Prologo”, a título de explicação esse texto foi nomeado por nós de
versão 1, porque não podemos assegurar sua cronologia exata, pois o documento não tem
data; mas, podemos inferir sua feitura a partir da análise a seguir.

Em relação à versão 2, o papel desta primeira versão apresenta um melhor estado


de preservação. O papel nessa versão 2, que se encontra no “Caderno 6” e, segundo a
organização desse dossiê, nele estão contidas “Poesias e textos autobiográficos”, está mais
deteriorado, apresentando manchas e também um grande número de rasuras, supressões e
correções. O texto é mais longo, recorre a diversos elementos na reconstituição da memória
das vivências de Sacramento.

Além disso, a segunda versão passa a impressão de que o texto foi passado a
limpo, dado o número mínimo de reajustes gramaticais e da expansão do conteúdo. Essas
mudanças aparecem como traços pertencentes ao processo criativo da poética de Carolina de
Jesus na recolha e reutilização dos resíduos de memória, de possibilidades de ficcionalização
da vida e de agrupamento de aprendizados que passou a exercitar ao longo de sua vida escrita.

A versão 2 está muito próxima daquela publicada como “Minha vida... Prologo”
em Cinderela Negra (1994), o que denota uma quarta versão que pode estar entre os dois
cadernos perdidos na Biblioteca Mindlin, entregues por José Carlos Sebe Bom Meihy, ou,
então, poderia compor a tal versão datiloscrita que, segundo Vera Eunice, teria sido entregue
às jornalistas.

Como não foi possível ter acesso ao percurso desses documentos, infere-se que,
através da verificação de algumas diferenças vocabulares, essa nova versão está mais próxima
do texto publicado da versão dois, ao mesmo tempo em que há divergências em alguns
segmentos, como na primeira página onde aparecem as grafias de “Alan Caerdec” e “médico”
no lugar de “Allan Kardec” e “médium” da versão 2. Este é mais um indício de que Carolina
de Jesus foi apurando seu vocabulário ao longo de suas re-escrituras (JESUS apud MEIHY,
1994, p.172).
101

No total foram mapeadas entre publicadas e originais sete versões desse mesmo
texto, que marca o processo iniciático de Carolina de Jesus no mundo da escrita e da leitura, e
que, segundo suas versões, teve sua gênese na escola; porém, como foi dito em outros
manuscritos, como em “O Sócrates africano”, ela narra a presença do avô como uma figura
marcante, misto de avó-griô-filósofo, que incitava a pequena Bitita para o mundo do saber e
para a filosofia; além disso, demonstrava uma visão crítica à condição social dos negros43 .

A seguir, apresentam-se dois exemplos de uma amostra de três versões,


acompanhadas do aparato genético sinalizando as alterações realizadas nas versões do
“Prólogo” de seu livro de poemas. Estes diferentes momentos do processo criativo da
escritora e o modo como os diferentes textos (os originais dos textos 1 e 2 estão alocados no
APMS, estão microfilmados pela FBN, e a versão do texto 3 tem seu original preservado pelo
IMS) apontam para a complexidade de se editar Carolina de Jesus.

Na esteira das propostas de Viollet, Ingerborg Bachmann no seu texto “Mutations


génétiques d’un récit: «Un pas vers Gormorrhe», oportunamente, mostra lado a lado, pela
transcrição sinóptica, as mutações entre um original e outro texto, e, por vezes, mostra como
dialogar com o publicado para compreender seus vários estados de construção. A partir dessa
genealogia (gênese e cronologia) diversas mudanças apareceram e foram visíveis quando
assim dispostas, como será demonstrado adiante.

Mas, nesse momento, vale dizer que a comparação das três versões dos originais
de “Prólogo”, publicado como “L’école” em Journal de Bitita (1982), em “Na escola” em
Diário de Bitita (1986), e com o título de “Minha vida” em A cinderela negra (1994),
permitiu-nos desvendar as diferentes direções que um mesmo núcleo textual segue, de acordo
com os processos de mutações e ambivalência da própria escritora em seus nomadismos, bem
como sua forma de sentir e vivenciar a cidade grande e seu próprio ato da escrita. Assim
como, também, foi possível levantar as implicações resultantes das interferências que seus
editores e tradutores operaram sobre as versões publicadas dos “prólogos”, texto
incansavelmente reescrito por Carolina de Jesus.

43
Diz Carolina de Jesus: “Fiquei feliz em saber que o meu avô morreu ilibado. O seu nome Benedito José da
Silva. E tenho orgulho de acresçentar que êle foi, o Sócrates, analfabeto. Era imprecionante, a sapiência
d’aquele homem. Eu tinha a impressão o meu ilustre avô, era semêlhante a uma fita, unindo a família como se
fôsse um bouquet de flores. Não havia desidências. Predominava á _união. Enquanto o vovo estêve vivo, a sua
casa parecia uma assembleia. Onde os predominadores discutiam as falhas de nosso povo. Se naquela época a
nossa população era: a maioria analfabeta. E a minoria alfabetizada: Era um povo sem luz mental” (IMS: CMJ,
Pi, 002 – “Um Brasil”, F.101).
102

Exemplo 1:

Miscelânea 1 – Miscelânea 2 – APMS/FBN BR – IMS CLIT


APMS/FBN Caderno 6- “Poesias e textos CMJ Pi 0001
Caderno 1- “Poesias, autobiográficos” Um Brasil para
provérbios e diários” brasileiros
Prologo Prólogo Prólogo
Nesta primeira obra poética
Nesta primeira obra que apresento desejo de relatar Nesta primeira óbra
literaria aos ilustres leitores, como fói poética
que apresenta desêjo relatar que percebi a minha aptidão que apresento, desejo
aos ilustres lêitores como poética Quando completei sete relatar aos
foi anós, a minha saudósa mãe ilustres leitôres como
que percebi a minha aptidão envióu-me a escola,. foi que
literaria. O colégio “Allan Kardec”., percebi minhas
Quando completei sete anos, na minha terra Natal, aptidões para a
a Sacramento, Estado de Minas póesia. Quando
minha saudosa mãe enviou- Gerais. Fui a escola ignorando completei sete
me as suas utilidades anós, a minha saudosa
a escola. O colégio Allan mãe
Kardec enviou-me a escola.
em Sacramento Estado de “O colégio Alan
Minas Kardec.
Geraes. Fui a escola Na minha terra natal A
ignoran cidade
do suas utilidades . De Sacramento. No
Estado de Minas
Gerais _Fui a escola
com a
Curiosidade tão
própria da
infância. Para
averiguar o que
era escola e qual a
sua
utilidade na nossa
vida.
103

Exemplo 2:

Não interessava pelós estudós. Quem insistiu com a minha Quem insistiu com a minha
Minha saudosa professôra mãe para enviar-me a mãe
Dona Lonita Solvina insistia escola foi a utilitaríssima para enviar-me a escola, fói
comigo para aprender ler. Dona Maria Leite a utilitaríssima D. Maria
Eu achava tão dificil Ela residia em Chapadão Lêite.
aprender. Implórava a minha e visitava a cidade de Ela, era branca. Eu pensava:
mãe para não ir a escola Sacramento uma vez, pór É pôr causa de sua pele tão
que eu não queria aprender ano. Sua visita branca
lêitura. .Ela ouvia-me anual, era para assistir que ela se chama D. Maria
Expancava-me e eu ia a seção espírìta em leite?
contra a minha vontade. comemoração ao aniversário Mas, ela, era tão carinhosa,
Eu era indolente. Quando eu esquecer que
devia chamar D. Maria Santa.

^+ Prólogo ^+ Ela residia na Estação do


^ aos ^
Chapadão
^gerais^
^utilitaríssima^ e visitava a cidade de Sacram-
^Chapadão^
ento, uma vês pôr ano para
^Sacramento^
^Sua^ assistir a seção Espirita em
^seção^
comemoração ao aniversário do
^aniversário^
+esquecer+ falecimento do saudoso médium
Espirita Dr. Eurípedes
Barsanulfo,
o fundador do Colégio Alan
Kardek.

A Dóna Maria Leite, dava


roupas
e os livros para as crianças
pobres, as róupas e os livros
eram nóvós para nos estimular
enos deixar vaidósós.

^utilitaríssima^
^.^
^?^
=médium=
104

Através do cotejo dessas três versões, pode-se inferir a cronologia estabelecida, de


acordo com os arranjos que Carolina de Jesus mobiliza ao longo da criação de possíveis
preâmbulos para seu livro de poemas. No livro Journal de Bitita o texto foi recortado e
colocado no centro do livro, no capítulo intitulado “L’école”, escolha mantida na tradução da
Nova Fronteira e perpetuada pela Editora Bertolicci.

Observa-se que a versão 1 (Prologo) apresenta menos preocupação com a escrita,


sendo mais solta e podendo, assim, corresponder ao período da escrita mais incerta,
improvisada e imediata, feita no período em que Carolina de Jesus viveu na favela, entre
muitos afazeres, em meio a intempéries, em conflito com os vizinhos “barulhentos”, e
adversidades mil.

A versão 2 (Prólogo), num segundo momento de re-escritura dessas mesmas


lembranças e situações que favoreceram seu ofício de poeta – já carrega marcas de
observação da própria escrita, pois ela apresenta diversos acréscimos e autocorreções,
sobretudo da acentuação, da ortografia e até da caligrafia.

Na versão 3, Carolina de Jesus parece retomar a versão 2 ampliando os fatos e


executando com mais firmeza a gramática padrão, anteriormente em oscilação. Este
procedimento converge para o elemento autodidático visível na trajetória desses manuscritos
autografados ou datilografados, mas também para o desejo de legitimar essas memórias no
refinamento de sua forma e conteúdo, e daí este ser um texto reescrito em vários cadernos e
distribuído para muitas pessoas. Talvez ainda possa ter existido outras versões desses
prelúdios de sua iniciação literária, como se, por meio do corpo dessa reescrita como
preparação de um acontecimento maior, a escritora se introduzisse mais e mais, e outra vez,
no campo da literatura.

Infelizmente para os pesquisadores, nenhuma dessas versões foi datada, o que


complica o processo de rastreamento na decodificação das implicações históricas que marcam
as diferenças textuais. No entanto, alguns indícios levantados, a seguir, podem contribuir para
esta análise, sobretudo no cotejo de outros textos que cercam essas versões.

Assim, é importante salientar que na versão 2 o texto “Prólogo” está antes de uma
grande quantidade de poemas, sinalizando a preparação de um preâmbulo para a publicação
de seu livro de poemas nomeado por ela, no Caderno 6, como “Cliris” (título inventado por
105

ela)44 . De igual maneira, a outra versão de “Prólogo” antecede o projeto de seu livro de
provérbios, como será demonstrado adiante. Além disso, os poemas quase não apresentam
muitas rasuras, mas sim uma extensão e algumas modificações do conteúdo, pois nesse outro
texto Carolina de Jesus começa a realizar um trabalho de lapidação no gesto do palimpsesto
desse autoprefácio para seu livro de poemas. Outro indício de que nossa suspeita procede é o
modo como Carolina de Jesus reorganizou seus poemas para publicação, como lemos na
marginalia de duas das quatro versões do poema “Desilusão”, a primeira aqui reproduzida
(FBN: Caderno 6 – “Poesias e textos autobiográficos”, FTG s/n) traz o seguinte lembrete:
“Não foi incluido na Antológia”; posteriormente, outro poema com o mesmo título, porém de
diferente forma-conteúdo aparece com o seguinte lembrete: “X Já incluido” (FBN,
Miscelânea 1, Caderno 6 – Poesias e textos autobiográficos, FTG s/n).

Enquanto o primeiro poema trata dos sofrimentos de uma vida de fome que
encontra na poesia e nos filhos um alívio e uma forma de escapar do “suicídio como lenitivo”,
a segunda versão que vai ser ampliada nas versões 3 e 4, idênticas e gestadas num mesmo
momento, tematizam a desgosto de um eu lírico solitário e desprezado por um ex-amor e
trazem o mesmo verso final que não está na versão 2.

Nessa ação de mudança de rumo, ou seja, em que ela opta por colocar o poema
sobre o amor ao invés do outro, cujo tema é a fome, Carolina de Jesus parece se impor, ao
final de seu processo criativo, mediante um afastamento da temática da desigualdade social,
super explorada em Quarto de despejo, visando trazer a público essa outra Carolina de Jesus
passional, feminina, e também inflada de traços dos românticos oitocentista ao explorar
elementos do amor trágico.

Desses poemas, a seleção sinalizada com marginalias é subsidiária de um “celeiro


de criação”45 , pois isso nos apresenta indícios da preparação de seu livro de poemas que teria
sua última versão nos dois cadernos manuscritos do IMS, mas que vinha sendo escrito e

44 Como no grego existe a palavra κληρης (kliris), que tanto significa clero como “ministério” no sentido
religioso, algo de conotação piedosa ou missão, inferimos que ela certamente ouviu essa palavra nas pregações
kardecistas ou católicas, ou ainda pode haver lido/ouvido em algum livro de hinos, e deve de ter feito uma
associação do significado da palavra com a finalidade de seu livro de poemas (κληρης: LIDDELL & SCOTT,
Greck-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1996, p.959).
45[...]. Ao perseguir a gênese de textos e interpretar as pegadas da criação, o crítico deve saber que lida com a
realidade visível de um trabalho em processo, com sinais retratando certos movimentos do desejo do artista.
Entenderá então que, nesse processo, as marcas do scriptor lhe facultam imaginar uma lógica onde a leitura do
artista, os passos de sua impregnação se desnudam (LOPEZ, 2011, p.33).
106

planejado desde o Caderno 6, escrito no período de 24 anos de processo criativo da poética de


resíduos preparada na favela. Já as versões 3 e 4 estavam em preparo conjunto enquanto
Carolina de Jesus vivia no Sítio, sendo que uma delas, a versão 3, foi redigida em um dos
cadernos entregues a Clélia Pisa (IMS: CMJ Pi 001 – “Um Brasil para Brasileiros”, Fs. 90 e
91), e foram datilografados por seus filhos e por um padre, pois pode-se ver que a inclusão do
verso final no Caderno “Um Brasil para brasileiros”- IMS corresponde à versão datilografada
e resguardada na FBN, Miscelânea 2, Datoliscritos, Documentos esparsos – Poesias que
compõem a “Antologia pessoal” FTG s/n46 .

Vale ressaltar que o poema que reaparece nas quatro versões foi intitulado
“Desilusão” por Carolina de Jesus.

46 O livro de poemas de Carolina de Jesus Antologia pessoal publicado em 1996 por José Carlos Sebe Bom
Meihy e que seguiu a versão e a sequência dos poemas datiloscritos, e por isso não pôde desconsiderar outros
poemas que tratam a temática da negritude vista como um hiato na obra da escritora, como, por exemplo, “Os
feijões”, “Negros” e “Rebotalho”. Vale lembrar, que isso ocorre porque os cadernos qu e têm a versão ampliada
de algum desses poemas estavam sob a posse de Clélia Pisa em Paris, ainda que outros poderiam ter sido
consultados, tanto no original no AMPS quanto nos microfilmes da FBN. Conf. publicações dos poemas em
FERNANDEZ, R.A. Saliva, confetes e sangue na caneta cortante de Carolina Maria de Jesus. Revista Escrita
Pulsante, v.2, p.10, 2015; e FERNANDEZ, R.A.; GOMES, C. Bitita para além dos quartos de despejo e das
casas de alvenaria. Revista O Menelick : segundo ato, 2014, p.36-45.
107

Versão1:

Documento 17: FBN, Miscelânea 1, Caderno 6 – Poesias e textos autobiográficos (FTG s/n)
108

Versão2:

Documento 18: FBN, Miscelânea 1, Caderno 6 – Poesias e textos autobiográficos (FTG s/n)
109

Versão 3:

Documento 19: IMS: CMJ, Pi, 001 – “Um Brasil para Brasileiros” (F. 90)
110

Continuação da versão 3:

Documento 19 [continuação]: IMS: CMJ, Pi, 001 – “Um Brasil para Brasileiros” (F. 91)
111

Versão 4:

Documento 20: FBN, Miscelânea 2, Datoliscritos, Documentos esparsos – Poesias que compõem a “Antologia
pessoal” (FTG s/n)

Para finalizar as reflexões sobre os trajetos das versões do “Prólogo” de Carolina


de Jesus vale citar a passagem ao final do conjunto de poemas onde a escritora registra o que
o livro deveria conter, isto é, “uma Biografia!”, “2 fotografias”, “Uma mensagem” que talvez
seja esta, em forma de versos, a que encerra a coletânea de poemas elencados em “Cliris”:
112

Documento 21: FBN, Miscelânea 1, Caderno 6 – Poesias e textos autobiográficos (FTG. s/n)

Não se pode deixar de dizer que foram encontrados outros poemas no Caderno 7,
nomeado “Pensamentos” pela FBN, pois nele encontram-se, entre pensamentos, textos curtos
e provérbios, alguns poemas e a indicação do título do livro de poesia “Cliris – continuação”,
título que aparece anteriormente no Caderno 6:
113

Documento 22: FBN, Miscelânea 1, Caderno 6 – “Poesias e textos autobiográficos” (FTG. s/n)

Continuação:

Documento 22 [continuação]: FBN, Miscelânea 1, Caderno 7 – “Pensamentos” (FTG. s/n)


114

II.3 Prólogo(s) para “Cliris”

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada


um com seus signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não
misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de
rasa importância... Tem horas antigas que ficaram muito mais perto
da gente que outras de recente data.

(Guimarães Rosa)

Non seulement le souvenir ne rend pas compte d’un événement, mais


encore ne garantit pas la véracité du souvenir lui-même, toujours
susceptible d’être remanié par un souvenir ou un événement ultérieur.

(Michel Neyraut)

Todas as versões do texto denominado “Prólogo” falam sobre a iniciação literária


de Carolina de Jesus e de como a escritora toma para si a percepção de que era uma poetisa,
acrescentando na versão 2 que essa trajetória teria sido aflorada por sua nova vida na cidade
de São Paulo, pois: “As pessoas que vivem em São Paulo, são obrigadas a pensar com
intensidade porisso é que o meu cérebro desenvolveu-se (...)”, ou quando diz “Eu ignorava as
minhas qualidades poéticas. Nunca esperei que um dia me tornasse poetisa para mim foi uma
surpresa”, ou ainda quando diz “São Paulo é uma bolsa elástica, tudo cabe”.

Ela conta que foi nos primeiros anos de educação infantil que aprendeu a tomar
gosto pela leitura, embora num primeiro momento tivesse hesitado em ir à escola, o que foi
resolvido através da violência psicológica que marca toda sua infância e, consequentemente,
todo o texto. Nas entrelinhas desses contos podemos pressentir uma violência socavada,
marcada por certa herança de moralidade, marcante no pensamento de Carolina Maria de
Jesus. Ela parece reafirmar a necessidade desses mecanismos de violência ao colocá-la como
elemento impulsionador para seu processo de aprendizado. O que foi reelaborado com maior
força, na adaptação francesa desse texto, Diário de Bitita.

Nas três versões pode-se perceber uma massiva influência de pessoas abastadas e
brancas, a quem sua mãe obedecia e nutria admiração, as quais foram selecionadas por Clélia
115

Pisa da edição de Diário de Bitita, de modo a mostrá-las como caridosas tutoras e


incentivadoras no processo educativo da primeira infância de Carolina de Jesus:

Minha mãe era pobre. Dona Maria Leite insistiu com mamãe para enviar-me à escola. Eu
fui apenas para averiguar o que era escola. A dona Maria Leite residia na Estação do
Chapadão. Visitava a cidade de Sacramento duas vezes ao ano para assistir à sessão
espírita em comemoração à data de nascimento do senhor Eurípedes Barsanulfo. Ela dava
roupas para as crianças pobre, as roupas e os livros eram novos. Para estimular e nos
deixar vaidosos. Se as crianças ricas iam com roupas novas, os pobres também. E não
havia complexos. O que eu admirava é que a Dona Maria Leite não auxiliava os brancos,
só os pretos, e nos dizia:
_Eu sou francesa. Não tenho culpa da odisseia de vocês; mas eu sou muito rica, auxilio
vocês porque tenho dó. Vamos alfabetizá-los para ver o que é que vocês nos revelam: se
vão ser tipos sociáveis, e tendo conhecimento poderam desvia-se da delinquência e acatar
a retidão. (...) Minha mãe era tímida. E dizia que os negros devem obedecer aos brancos,
isto quando os brancos têm sabedoria. Por isso, ela devia enviar-me à escola, para não
desgostar a Dona Maria Leite (JESUS, 1986, p.123).

Estes recortes deixam escapar um elemento importante na formação da escritora,


que foi a preocupação e incentivo de sua mãe para com seus estudos, independentemente de
conselhos “esclarecedores” e valorização do “paternalismo” ou da filantropia das pessoas
deste segmento social. Nas palavras da Carolina de Jesus: “Quando você completar sete anos
vai entrar na escola para aprender a ler. Os que sabem ler conhecem o mundo, os que não
sabem, vê o mundo” (IMS: CMJ Pi, 002 – “Um Brasil”, F. 135).

A partir daí a menina Bitita não parou mais de desejar: “Que inveja eu tinha do
Dr. Cunha quando ele lia o jornal. Hei de ler o jornal. E fiquei alegre. Então o saber ler algo
importante assim” (idem). E as associações inesperadas não paravam por aí: “Queria ser igual
o José Patrocínio47 , que ajudou a libertar os nêgros e foi o primeiro homem que comprou o
Ford aqui no Brasil”. (IMS: CMJ, Pi, 002 – “Um Brasil”, F. 141).

47 No Rio de Janeiro em 1897 o automóvel já causava furor. José do Patrocínio famoso homem das letras
brasileiras, vivia a se gabar de seu maravilhoso automóvel movido a vapor passeando pelas ruas esburacadas
do Rio, causando imensa inveja no compatriota Olavo Bilac. Certa feita, José do Patrocínio resolveu ensinar o
amigo a dirigir seu carro, e Olavo Bilac conseguiu arremessá-lo de encontro a uma árvore na Estrada Velha da
Tijuca. José do Patrocínio ficou muito chateado, mas Bilac, com uma gargalhada comemorava o fato de ter
sido protagonista do primeiro acidente automobilístico no país! Disponível em:
<http://www.v8ecia.net.br/artigos/a_historia_do_automovel.htm>
116

Vale lembrar também que a figura marcante da professora Dona Lanita – jamais
citada nos textos publicados anteriormente – era uma mulher negra, como Carolina de Jesus
fez questão de registrar:

27 de abril de 1960:

Eu tive uma professora bôa


_ Ela podia se chamar bondade, Inteligência e santa.
Que mulher! Eu achava ela tão bonita. Ela era preta. Dona Lanita. Eu achava a lêtra dela
bonita e procurava imita-la.
Quando os alunos faltavam a aula ela ia busca-los em casa e dizia: se você faltar a aula eu
vóu mandar uma carta para o expetor vir aqui ele te espeta no garfo. Ele tem um garfo
dêste tamanho. Ela abria os braços. Eu ficava com medo. Não faltava as aulas. Ela dava
livros para eu ler. A moreninha, Inocência, Escrava Isaura. Dêpois tinha que explicar a
historia do livro. E foi por intermédio da minha ilustre e saudosa professora que eu
aprendi escrever versos e contos e a gostar de lêr.
Ela dizia: envez de você ficar na esquina você lucra muito mais lendo um livro. Eu nasci
na época dos professôres Naturais. E os meus filhos na época dos professôres fantasiado
de professores (MAB, “Caderno 20”, F. s/n).

Além de exaltar a figura da professora, fazendo questão de frisar que ela era
negra, Carolina de Jesus conta também que a mestra lhe emprestava “bons livros para ler”;
dentre esses, ela cita a Bíblia, outro sobre a vida de santa Terezinha e livros escolares, que
iam “transferindo-se de irmãos para irmãos” (IMS: CMJ Pi 001, - “Um Brasil para
brasileiros”, F. 14). Na versão 1, a escritora diz que foi a professora, Dona Lanita, que lhe
emprestou “A escrava Isaura” para leitura, informação extinta da versão 2 e 3, mas
rememorada na anotação do diário de 1960, e, modificada na versão publicada como Diário
de Bitita, na qual seu primeiro contato com um livro haveria sido feito por intermédio de uma
vizinha. A importância dessa professora negra não aparece nas versões publicadas, estando
apenas presente na versão 1. Então, parece que ao longo do contato com os seus
“incentivadores”, a escritora passou a ser instruída a ressaltar os grandes feitos da cidade de
Sacramento e de seus “patrocinadores”, como pode ser consultado nas anotações de seus
diários após o encontro com Audálio Dantas, como Perpétua bem analisou (2015).

Entre outros exemplos, cita-se o acréscimo de Pisa que, corrompendo a lógica do


original, desloca a passagem em que Carolina de Jesus cita a figura de outro professor
fundador do colégio, no lugar de Dona Lanita, à entrada desse importante capítulo: (...) o
professor era o senhor Halmilton Wilson, irmão do fundador do Colégio Allan Kardec. Quem
117

fundou o colégio foi o senhor Eurípedes Barsanulfo (JESUS, 2014, p.125). Este deslocamento
realizado pela editora reforça a observação de que havia uma necessidade de demonstrar a
influência fundamental desse segmento social na formação da escritora negra, reiterado mais
uma vez pela segunda nota de rodapé que acompanha esse acréscimo demonstrando ao leitor
francês, inclusive, sua vinculação desse público ao fenômeno Carolina de Jesus: Ce spirite
français a connu une grande fortune au Brésil. Se adeptes se comptent par millons48 (JESUS,
1982, p.147).

Na sequência vem a história da contribuição filantrópica da “utilitaríssima Dona


Maria Leite”, passagem que não está na versão 1, e que na versão 2 está marcadamente
sinalizada com ajustes e confirmações da ortografia, evidenciando uma segunda leitura mais
cuidadosa diferente do próprio texto, talvez porque Carolina de Jesus tivesse optado por
seguir essa segunda versão e estivesse no ato de preparação da versão 3. Na segunda versão
aparecem dois dados intrigantes, o acréscimo da palavra: “esquecer” e a utilização do
advérbio latino “sic”, demonstrando assim uma possível preocupação com a elevação da
imagem de Dona Maria Leite, uma personagem histórica em Sacramento, reutilizada na
publicação:

Quem insistiu com a minha mãe para enviar-me a escola foi a ^utilitaríssima^ Dona Maria Leite
Ela residia em ^Chapadão^ e visitava a cidade de ^Sacramento^ uma vez, pór ano. ^Sua^ visita
anual, era para assistir a ^s eção^ espírìta em comemoração ao ^aniversário / +esquecer+/ do
falecimento do saudoso Eurípedes Barsonulfo. O que eu achava interesante é que a Dona Maria
Lêite nos dava ^livros^ nóvos e róupas novas para nos estimular e nos deixar vaidosós. O que eu
adimirava é que Dona Maria Lêite, não auxiliaria os brancos +a+ irem para a escola. Auxiliava só
os prêtós. ^Para^ nós incentivar, ela nos dizia: Eu gosto dos prêtos: Sabem que eu queria ser preta!
E pedia a §a§ a +nós+ para ^+lermos+^ para ela ouvir. Minha mãe era tímida e dizia que os
negros devem obedecer aos brancos, isto é, quando o branco tem sabedoria _sic_. por isso ela
deveria enviar-me à escola para obedecer a Dona Maria Lêite. (FBN: Caderno 6 - “Poesias e textos
autobiográficos”, FTG s/n)

Ademais, a utilização do “sic” por Carolina de Jesus se faz de maneira curiosa


dentro desse contexto, pois deixa a impressão de que foi empregada a título de reprovação à
submissão da mãe no tocante à obediência ao homem branco. Tanto é que na versão 3 essa
passagem foi suprimida:

48Este espiritualista francês conheceu grande fortuna no Brasil. Seus adeptos contam-se em número de milhões
(Tradução Minha).
118

(...) Fui a escola com a curiósidade tão própria da infância. Para averiguar o que era
escola e qual a sua utilidade na nossa vida. Quem insistiu com a minha mãe para enviar-
me a escola e qual a sua utilidade foi D. Maria Lêite. Ela, era branca. Eu pensava: É pôr
causa de sua pele tão branca que ela se chama D. Maria Leite? Mas, ela era tão carinhosa
deveria se chamar D. Maria Santa. Ela residia na estação do Chapadao... (IMS: CMJ, Pi ,
001 - “Um Brasil para Brasileiros”, F. 1 e F.2)

Novos itens, entretanto, entram na versão 3 exaltando ainda mais o maternalismo


branco que foi tão vital à pobre Bitita, em que sua pele transfigurada no leite vital ao
desenvolvimento dos mamíferos. Um certo naturalismo parece envolver essas descrições.
Carolina de Jesus, ao fim de sua vida, entrega-se à venalidade que a transportou do lixo ao
luxo e, no desespero de ser publicada, teria abdicado de sua própria memória para ser
novamente aceita e quem sabe envolvida em novas armadilhas do mercado editorial. Este
enredo a escritora não pôde escrever, pois sequer pôde saber da existência da publicação
póstuma de Journal de Bitita.

Retornando ao primeiro parágrafo das versões 1, 2 e 3 é interessante notar que,


entre uma e outra, o adjetivo poético foi alterado para literário da versão 1, assim como foram
feitas correções na acentuação e na paragrafação das palavras. À vista disso, para este estudo,
considera-se como sendo uma segunda versão do texto “Prólogo” a que está mais arranjada e
apresenta mais pormenores, ampliando os acontecimentos narrados. Ao que parece, a escolha
pelo termo “poético” parece estar associada ao desejo de reafirmação e reconhecimento de
Carolina de Jesus enquanto escritora, mas este afloramento do passado está combinado com o
deslocamento espacial, temporal e corporal da percepção, de tal modo que o lembrar, se
souvenir, o “lembrar-se” funciona na poética de resíduos da escritora como o trazer à tona
uma percepção mais complexa de si, como se o termo “poético” estivesse mais à altura do que
ela se tornou no desenvolvimento de seu trabalho estético, que vai além do termo “literário”
que poderia se aplicar a qualquer tipo de escrita.

A seguir, em ambas versões manuscritas, Carolina de Jesus conta a pressão que


sofreu quando chegou ao ambiente escolar, suas expectativas e dificuldades ao iniciar os
estudos que posteriormente a teriam despertado para o mundo das letras. Ademais, na versão
2, ela ainda acrescenta um episódio de violência psicológica sofrida na escola e considerado
por ela como tendo sido necessário para sua elevação intelectual (mantido na versão 3 e na
publicação), no qual a professora a humilhou porque, aos 7 anos de idade, ela ainda mamava,
119

e devido ao seu apelido “Bitita”49 , o mesmo que posteriormente estampou a capa do livro,
outra jogada de marketing, derivada da terceira versão publicada em Journal de Bitita.

(1) (2)

Eu era indolente. Quando eu Quando entrei na escola


faltava a escola a minha fiquei com mêdo dós quadros
professora mandava um aluno
dós esqueletos humanos que
ir buscar-me em casa
Ela percebendo que eu não estavam espalhados pélas

interessava pelos estudos paredes. Tremia de mêdo


desenhou um homem no quadro
o primeiro ano era no período
negrò. Que trepassava uma
menina no tridente E disse-me da uma a cinco.

Carolina, êste homem é o expetór Eu estava com sete anós


E a criança que não aprender ler e ainda mamava.
até o fim do ano êle espéta Quando senti vontade de
no garfo. mamar começei a chórar
No fim do ano êle vem aqui. _Eu quero ir-me embora!
E eu vóu apressentar-te a êle Eu quero a mamãe!
Aquêle desenho no quadro Eu quero mamar!
imprecionóu-me . Eu olhava o Minha saudósa professôra
desenho , e olhava o livro. Dona Lonita Solvina
Sonhava com o desenho e perguntou-me:
bradava: _Então a senhóra ainda
_Mamâe! Olha o espétôr! mama?
A mamãe dizia-me: dórme _Eu gosto de mamar!
menina! Vocês está delirando. As alunas sórriam
pór _fim, decidi estudar Então a senhóra não têm

vergónha de mamar!
_Não tenho!
_A senhóra está ficando
mocinha e têm que aprender à

49Talvez o apelido Bitita advenha do fato de ela mamar até grandinha, pois no interior é comum chamar de
“cabritinha” às crianças que gostam muito de leite. Então, esse “Bitita” seria um apelido carinhoso.
120

lêr e escrever e não vai


ter tempo de mamar pórque
necessita preparar as lições.
Eu gósto de ser obedecida
Estais ouvindo-me Dona
Carolina Maria de Jesus.
Fiquei furiosa e responde
com insôlencia:
_O meu nome é Bitita
_O teu nome é Carolina
Maria de Jesus!
Era a primeira vez que ouvia
pronunciar o meu nome.
_Eu não quero êste nome. Vou
tralá-la pôr outro
E a professora deu-me Umas
reguadas parei de chórar
Quando cheguei na minha
casa tive nôjo de mamar
na minha mãe.

^professora^

Observamos como nesse momento a narrativa apresenta um preparo mais


avançado, em que ela cria uma atmosfera de terror ao descrever o espaço escolar, antes de
inserir a fala da professora, conduzindo os fatos com gestos semânticos sensoriais: “fiquei
com medo” “senti vontade de mamar”, “tive nojo”, etc. Na segunda versão, Carolina de Jesus
repassa a seu leitor os recônditos de suas memórias, retrabalhando por meio dessa retórica
implícita os valores de defesa dessa outra pedagogia, uma pedagogia da opressão psíquica que
favoreceu sua formação mais que “literária”, “poética”.

Em seguida, ela conta como finalmente começou a ler, mas dessa vez os episódios
são diferentes embora estejam intercalados na mesma forma sintática como os inicia e os
finaliza: na versão 1, a primeira leitura, mais detalhada, é de um anúncio de cinema e, na
segunda, mais geral, ela diz que lia nomes de lojas:
121

(1) (2)
E estudava com assiduidade E estudava com assidui-
Trêis mêses depois, eu percibi dade Três mêses depóis, eu
que já sabia ler. percebi que já sabia ler
Era uma quarta _ fêira ao sair Que bom! Senti um contentamento
da escola eu vi uma tabolêta interiór e exterior.
escrita. Era o reclame de cinema Lia os nomes das lojas.
Hoje puro sangue. “ Som mix “Casa Brasileira”, de Aimónd
Exclamei contentíssima! Goulart”. Eu fui correndo para
_Eu... já... sei lêr! casa. Entrei rápida como os raios
Eu ia lendo os nomes das ruas solares.
Das farmacias. Ate ´ aquela Mamãe assustou-se.
data, aquelas lêtras nada _O que é isto?
significativa para mim. Está ficando louca!
Eu fui correndo pra casa.
Entrei rapida como os raios
^Lia^
Solares .
>”<
Mamãe assustóu-se +”+
Interrogóu-me:
_ O que è isto ? Esta ficando
Louca!

Mais interessante do que os diferentes episódios para contar o mesmo fato, o que
pode ocorrer como um próprio jogo da memória que não se constitui como algo seguro, o que
chama atenção é como Carolina de Jesus procura manter uma mesma forma para iniciar e
terminar a narração desses acontecimentos, dando em primeiro lugar a informação de que
“estudava com assiduidade” e, segundo, como procurou manter um tom narrativo ao reutilizar
a frase “entrei rápida como os raios solares”.

Como diria Deleuze e Guattari (1997), a memória em si não delineia o percurso


artístico. Portanto, salienta-se que mesmo no caso autobiográfico há um descentramento dos
fatos que cedem o lugar prioritário à forma, pois como diria Ricoeur (1983), narra-se para dar
ordem ao caos, ou melhor, para criar um simulacro de ordem e ter a sensação de que há algum
sentido na vida. E, por mais precário que seja, Carolina de Jesus vê na escritura desse quase
memorial um caminho para alcançar a busca desse “sentido”, permeado por lacunas e pela
122

imaginação, que incorrem no risco da não veracidade que privilegia o viés do olhar, o que
favorece a prática da verossimilhança em sua escrita.

De acordo com Antonio Candido em A personagem de ficção uma obra literária


só se realiza em toda a sua plenitude quando prima pelo princípio da verossimilhança, ou seja,
quando procura convencer o leitor, através de suas personagens, de que tudo o que nela vai
escrito pode ser verdade (1976, p.55), sobretudo o romance; este só se realiza plenamente
quando comunica aos leitores “a impressão da mais lídima verdade existencial”, por meio “de
um ser fictício” (CANDIDO, 1976, p.55).

Neste texto de Carolina de Jesus, assim como noutros, será a “falta da verdade” ou
a necessidade de adequação de seus discursos ao intento de seus “predominadores” que irá
recriar com verossimilhança uma história mais condigna para si. Assim, é nos próprios textos
e nas vozes de outros autores que cercavam a escritora que ela vai traçando teias em sua
poética de resíduos como pontos de fuga, materializados em estratégias discursivas e não em
fios condutores a atravessar seus leitores de um ponto fixo a outro. Nesse lembrar e escrever,
Carolina de Jesus, mesmo sem saber, confirma o que disse o pensador Agostinho, quando
trata da questão da memória na temporalidade: “É impróprio notar que os tempos são três:
pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos fossem três:
presente das coisas passadas, presente das [coisas] presentes, e presente das futuras”
(AGOSTINHO, 1973, p.249).

Para sair das percepções vividas, não basta evidentemente ter uma memória que
convoque somente antigas percepções, nem uma “memória involuntária”50 que acrescente a
reminiscência como fator conservante do presente. A memória intervém pouco na arte,
mesmo e, sobretudo, em Proust (1987), como nos exemplos suscitados para discutir os limites
entre a memória voluntária e involuntária. Toda obra de arte é um monumento, mas como
mostra Carolina de Jesus, este não seria um tipo de edifício majestoso em comemoração ao
passado; é ele, sim, um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria
conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra, pois em suas narrativas o ato-
monumento não é a memória, mas a fabulação desta.

50De acordo com Bergson (1999) o que distingue a memória volutária da involuntária é a experiência a -histórica
como noção de memória biológica, isto é, a duração de uma experiência isolada no tempo uniforne e cotidiano.
Enquanto a memória voluntária expressa a vivência passada acessada arbitrariamente pelo intelecto, a memória
involuntária reintegra o indivíduo a uma experiência mais próxima da verdadeira.
123

Essas bipartições e diferenciações de um mesmo fato narrado por Carolina de


Jesus demonstram que não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de
infância, que são devires-criança do presente a partir de sua vivência com a escritura. Para
tanto, não é necessário ter memória, mas um material complexo que não se encontra na
memória, mas nas palavras, nos sons: “Memória, eu te odeio”. Só se atinge o percepto ou o
afeto como seres autônomos e suficientes, que não devem mais nada àqueles que os
experimentam ou os experimentaram: Combray de Proust ou Sacramento de Carolina de
Jesus, que jamais foram vividos do modo como descritos por eles, como não é e não será
vivido: Combray ou Sacramento como catedral ou monumento. E, se os métodos são muito
diferentes, não somente segundo as artes, mas segundo cada escritor, pode-se, no entanto,
caracterizar grandes tipos monumentais, ou “variedades” de compostos de sensação, quer
dizer, a vibração que caracteriza a sensação simples, mas ela já é durável ou composta, porque
ela sobe ou desce, implica uma diferença de nível constitutiva, segue uma corda invisível
mais nervosa que cerebral, é um ponto de fuga (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p.218-19).

Por exemplo, pode-se observar o modo como Carolina de Jesus vai ajustando,
modelando e modificando seu discurso. Na sequência das versões 1 e 2, ela conta que surgiu
um novo problema quando passou a adquirir gosto pela leitura. O desejo de ler entra em
conflito com a obrigação de realizar os afazeres da casa. Nesse momento, a mãe se nega a
apoiá-la, como havia feito antes, por intervenção da benfeitoria alheia; agora, na versão 2,
exige que ela preste mais atenção aos trabalhos caseiros do que aos livros, aniquilando toda
possibilidade de incentivo advindo dessa mulher pobre, negra e talvez humilde demais para
pensar no intelecto. Todavia, os originais apregoam que Carolina de Jesus veio de uma
família e de um meio negro, que sabia a importância da escola e da leitura, seja através da
professora Dona Lanita, do “mulato” que citava Rui Barbosa e José do Patrocínio ou do
“Sócrates africano”.

Os dados da versão 2 discrepam daquele referenciado na versão 1 de uma mãe


zelosa pelo aprendizado de sua filha, tal qual o empenho da professora em “discutir téses”, e
da própria Bitita que passa a se interessar pela literatura:

Não mais dêixei de ler. Passei a ser a primeira aluna da classe. Eu, e a minha professôra
discuti amos téses. Fiquei vaidosa quando percibi que era adimirada Depóis a mamãe foi
obrigada a ressidir na fazenda do ilustre senhór Olimpio de Araujo. Fói com pesar que eu
dêixei a escóla. Chórei pórque faltava ainda dois anos para eu (deixar a) receber o meu
124

diploma pór fim tive que ressignar (FBN: Caderno 6 – “Poesias e textos autobiográficos”,
FTG s/n).

Porém, a protagonista não desiste, afirmando: “O meu dêsejo, era ler,


ininterruptamente” e reitera que a leitura “forma o caráter”. Carolina de Jesus diz que o
primeiro livro que leu foi A escrava Isaura de Bernardo Guimarães, livro que supostamente a
teria feito refletir sobre racismo e as injustiças sofrida pelos escravos. Na versão 1 ela se
limita a fazer um breve resumo da experiência de sua emoção ao ler esta obra, e de como
prezava seus livros “a única coisa que eu realmente venerava”. Na versão 2 segue sua
empreitada de expansão e ativação de sua capacidade crítica e criativa; fazendo uma denúncia
contra o racismo sacramentano, ressalta sua capacidade de exame crítico desde sua estada na
escola:

(1) (2)

Uma visinha emprestou _ me um Uma vizinha emprestou – me Um


romançe. Escrava Isaura rómançe . Escrava Isaura
Compreendi tão bem o romançe que Compreendi tão bem o romançe que
chórei com dó da escrava . que chórei com dó da escrava que
fói amarrada na córrente foi amarrada numa córrente
E assim foi duplicando o meu E que n’aquela época tanto as
interesse, pela literatura . escravas como os escravizadores
Não mais dêixei de ler. passei eram ignórantes.
a ser a primeira aluna da pórque uma pessoa culta prevê
classe. as consequências dos seus atos
Eu, e a minha professôra discuti Os brancos retirando os negros
amos téses .Fiquei vaidosa quando da Africa, não previam, que
percibi que era adimirada iam criar problemas do
racismo no mundo.
Enfim ei lia um livro e
retirava a síntese.
E assim, foi duplicando o meu interêsse
pela literatura
Não mais deixei de ler.
passei a ser a primeira da
classe. Eu e minha professóra
125

discutiamós teses .atmosférica


E lia os livros de estórias
E história universal.

^vizinha^
^Africa^

Na seguinte passagem, quando Carolina de Jesus lamenta sua saída do campo, e


consequentemente o abandando da escola, floreia, na versão 2, seu cotidiano no campo e
associa a valorização do aprendizado ao saber da terra: “E a minha mente, era semelhante à
um reservatório que vai acumulando”.

(1) (2)

Eu permanecia no lêito ouvindo Eu permanecia no leito ouvin-


os gorgêios das avês. Eu era do os gorjeiós das aves.
sempre a a ultima a dêixar o lêito. Com á insistência de mamãe
Ia abluir-me no regato eu deixava o leito, ia
A brisa perpassava suavemente abluir-me no regato fitando
Eu aspirava o perfume que a água cristalina que
exalava das flôres . promanava no seio das
Começei apreciar aquela vida pedras côr de chumbo e
tranquila e silênciosa. era sempre tépida
Eu tinha a impressão que A brisa perpassava suàve-
tinhamos transpórtado de um mente . E eu aspirava o
mundo para outro. perfume que exalavam das
Formamos caravanas flôres.
Quando surgiu a colhêita eu Eu já estava compreendendo
fiquei adimirada da prodigalidade o valôr da terra, que sabe
da terra. plantamos dôis sacos de recompensar o esforço do
arroz, e colhemos trinta . homem, o ventre da terra
Um saco de milho ,e colhemos trêis e fecundo. Eu estava
carrós _ pensei: a melhôr amiga habituando-me naquêle
do homem ,é a terra mundo verde. Fórmamos
Êste fato dêixou-me profunda_ lavouras. Quando surgiu
126

mente adimirada Daí pór diante a colhêita, eu fiquei


começei estimular o meu padrasto adimirada da prodigalidade
para plantar. _Eu era a primeira da terra que é mãe e
a dêixar o lêito. amiga da humanidade.
Nas horas vagas eu lia .Duas plantamós dois sacós de\\
coisas que eu venerava. a terra arroz, e colhemos trinta
que duplicava. e os livros que plantamos um saco de milho
esclarecia a minha mente. e e colhemós três carrós.
formava o meu carater. Oh! Terra bendita que sabe
apenas multiplicar E se a
terra não agisse assim, não
estimularia o homem a
plantar. A terra bajula o
homem. Êste fato deixou-me
profundamente admirada
Dai pór diante começei
para plantar. Estava ficando
ambiciósa.
Eu, era a primeira a deixar
o lêito.
Nas hóras vagas eu lia
Duas cóisas que eu venerava
a terra que duplicava e os
li´vros que instruia-me.
E a minha mente, era semelhan
-te à um reservatório que
vai acumulando. E eu ia
formando o meu caráter.

^gorjeios^
^abluir-me^
^brisa^
^já^
+adimirada+
^trinta^
^Êste^
^semellhan^

De maneira diferente, no entanto, mas com a mesma intensidade, em ambas as


versões Carolina de Jesus segue a narrativa afirmando sua vocação para os estudos, como na
127

seguinte interjeição da versão 1: “eu lia tão pouco! O meu/ideal era ler initerruptamente”, e na
versão 2: “Eu acreditava nos livros/ como se eles fossem os meus/confidentes ”.

Na versão 2, o sentimento de ambição vai além da admiração incitada pelos


benefícios advindos da terra; assim como os livros não apenas esclarecem a mente, mas a
instruem, ou seja, não apenas aclaram, mas direcionam, e de igual maneira a terra não apenas
gera o sentimento de arrebatamento, mas impulsiona à ganância pelo bom, e ao intento de
conhecer mais e mais e usufruir de todas as esferas da qualidade de vida. O ter não está
limitado ao bem material, mas a uma capacidade nata de frutificar e florescer acompanhando
o ritmo da natureza.

Em ambas as versões, Carolina de Jesus descreve de maneira diferente, porém


com muitos louros, os dias de infância farta e despreocupada no campo, e do modo de vida no
campo.

(1) (2)

Eu góstava de cantar e tocar Que saudades d’aquêles tempos


violão e ler. Eu era como as avês Minhas mãos calejadas, mas
ao romper d auróra. Sempre Os dias tranquilos
cantando. Quando eu fitava o O amanhã não me preocupava
espaço eu ja sabia que tudo que Eu desconhecia o sofrimento
embelêzava o (espaço) céu era Era criança Eu não conhecia
obra da Natureza ou do criadôr o ódio para mim, todas as
que criou o mundo e deu de pessôas eram boas.
presente aos homens.
*(espaço)*

Ambas as versões fronteiriças são construídas num misto de ficção e testemunho,


onde o rural e o urbano se contrapõem perfazendo um jogo de opostos. Sendo que na versão 1
de “Prólogo”, quando Carolina de Jesus se refere ao rural, o tom é narrativo, de caráter idílico
e de valorização das coisas da natureza e dos sentimentos bons que ela proporciona aos
homens. Já na versão 2, observa-se uma ledora do próprio passado, amargurada, desiludida,
128

talvez mais realista; com efeito, os traços de tristes experiências retiraram o tom bucólico
dessa passagem da narrativa.

Em seguida, Carolina de Jesus narra as sensações de desolamento, desamparo,


agitação diária, e a solidão em meio à multidão ao chegar na cidade de São Paulo. Segundo
ela, esses sentimentos geraram modificações em sua maneira de pensar, acelerando sua
necessidade de escrever, ao passo que retiraram a tranquilidade proporcionada pela vida na
cidade pequena: E eu tenho saudades da Franca A Franca do Imperadôr Uma cidade
poética. Um recanto proprio para o amor. Em ambas versões, a perturbação modulada pela
cidade grande despertava e incentivava sua tendência poética, então adormecida, e embebida
em pleno bucolismo: percebi que o meu pensamento modificava. Não era o mesmo la do
interior. Sentia ideias que eu desconhecia. As ideias surgiam initerruptamente. No meu
cérebro parecia alguem ditando-me algo Eu pensava, pensava, mas não sabia definir.

Carolina de Jesus empreende uma reflexão sobre o impacto da metrópole sobre


seu processo de escrita, e também sobre a desilusão de perspectivas futuras que vão se
intensificando na economia dos elementos agregados na segunda narrativa, convencendo o
leitor das causas de seu desabafo/ pré-sentido numa segunda visada no acréscimo da dúvida:
sentia profundo pavôr da cidade industrial _pórque? Não sei. Logo a resposta estaria dada ao
leitor que, diante das novas variações – grifadas a seguir – vai se convencendo cada vez mais
de que as impressões da escritora tornar-se-iam uma triste realidade: Continuei alimentando a
ilusão de conhecer são paulo pôr causa dos rumôres, que são paulo. era a surcusal do
paraíso. Tanto a adjetivação “sucursal do paraíso” inventada para São Paulo quanto o vício da
contabilização na descrição minuciosa de valores passaram a fazer parte desse novo momento
do processo criativo no qual Carolina de Jesus já havia absorvido a mente da escritora, que
passa a computar a vida no lugar de descrever demoradamente as belezas da natureza como
fez na versão1.

(1) (2)

Estes bons tempos passaram E todos temós no nósso


para não mais voltar .Todos nós recondito, óu uma grande
temos no recondido dos nossos saudade. Ou uma desilusão
córações ou uma grande saudade E eu tenho saudades desta
129

ou uma dessilusão. quadra ditosa da minha vida


E eu tenho saudades desta quadra Minhas amigas que residiam
ditosa da minha vida. em são paulo, nas cartas que
E eu tenho saudades da Franca me enviavam. Convidavam-me
A Franca do Imperadôr para deixar o interior e vir
Uma cidade poética. Um recanto a são paulo.
proprio para o amor A insistência não me seduziam
Minhas amigas que residiam em interróguei á uma amiguinha
são Paulo nas cartas que enviava_ _porque quer você que vá
me, convidava-me para dêixar a são paulo?
o interior e vir a são Paulo pórque você é faguêira e
A insistência d elas, não seduzia-me gósta de trabalhar
Interroguei a uma amiguinha. Quando cito o teu nome é para
Pórque quer você , que eu va a enaltercer-te. E os meus amigós
São Paulo? deseja conhecer-te. E eu
pórque você é faguêira, útil. esforço-me para recordar suas
quando cito o teu nome e para anedótas chêias de verves
enaltecer-te. Os meus amigos Mas não sei interpretar tão bêm
desêja conhecer_te . Esforço-me como você.
para recordar suas anédotas Continuei alimentando a ilusão
chêias de verve. de conhecer são paulo pôr causa
Mas, não sei interpretar tão bem dos rumôres, que são paulo.
como voçe. era a surcusal do paraíso.
Insistia comigo para eu vir Algum dia... irei prometi.
_Algum dia... irei Prometi E êste dia, surgiu. Dia 31 de
E esse dia chegou! Dia 31 de janeiro de 1937, eu deixava a
janeiro de 1937 eu deixei a Franca, com destino a São paulo,
Franca com destino a são Paulo Eu estava préocupada pensando!
Quando cheguei o dia estava Como será que vai ser a minha
despontando. vida lá em são paulo é apropiado
Fiquei atonita com a afluência das para os pobres, óu é um recanto
pessoas na Estação da luz destinado só aos ricos? descêntes
Nunca tinha visto tanta gente viajei com uns patrões, descentes
(na) reunida. Pensei: será que ajustadíssimos Dina Romélia
hoje e dia de festa? professora. E o senhor Luís
Fiquei preocupada com o Eu era inciente e indolente dentro
corre-corre dos paulistas. da cidade eixo.
parece que estão sendo persegui só uma coisa eu notava que os
dos por alguem. paulistas não dinâmicos, e a
Olhares inquietantes, ansiosos a solidariedade. Viajei tôda a noite,
130

espera de condução A viagem custava cinquenta mil


Uns, empurrando os outros réis, e meu ordenado também
O meu olhar perpassava de um era cinquenta mil réis.
lado para outro. Quando chegamo o dia estava
Não senti a sensação almejada despontando. Fiquei atônita com a
Contemplei tudo com indiferença. afluência das pessoas na Estação da
Uma tristeza imensa invadiu-me Luz. Nunca havia visto tantas
profundamente. pessoas reunidas _pensei:
As aglomerações causava-me mal _Serâ que hoje é dia de festa?
Estar. pouco, a pouco fui entriste Fiquei preocupada com o corre
cendo-me. percebi que o meu pensa córre dos paulistanos. Olhares ansiósos
mento modificava. Não era o mesmo e inquietós a espera de condução
la do interior. Sentia ideias que uns empurrando os outros
eu desconhecia. As ideias surgiam E um espetáculo fabulôso Nos dá a
initerruptamente. No meu cérebro impressão, que o povo não tem
parecia alguem ditando-me algo educação . Quando empurra o outro
Eu pensava, pensava, mas não não pede desculpas.
sabia definir Não senti a sensação almejada
Senti-me tão só nesta grande comtemplava tudo com indiferença e
metropole sentia profundo pavôr da cidade
Um dia, apoderou-se de mim industrial _pórque? Não sei.
um desêjo de escrever
_ Escrevi. Mas uma tristeza imensa
invadia-me dominando-me
^pasa^ram As aglomerações causava-me mau
>na< estar pouco- a-pouco, fui entritecen
^Senti-me^ do-me. percebi que o meu pensa –
mento modificava-se. Não era o
mêsmo lá do interior.
Sentia idéias que eu desconhecia
dominando-me .E surgiam initerrup
tamente. no meu cérebro como se
fôsse alguém ditando algo nos
meus ouvidós. E eu não conseguia
definir aquela confusão.
E sentia-me, tão só nesta
grande metrópole.
Um dia apoderou-se de mim, um desêjo de
escrever:
_Escrevi_
131

^seduziam^
^ilusão^
^São^
^viajei^ +descentes+
^Luis^
^A^
^+e+^
^Estação^
^preocupada^
^E^
^nos^
^sentia-me^

O pensamento poético em ambos os casos está ligado a uma perturbação interna


que precisa ser expurgada através do lápis sobre o papel. Interessante notar que, na versão 1, o
texto invoca o trabalho do poeta como ofício e ação sobre as mazelas da vida, e a escrita
também é entendida como adorno para uma vida difícil, além de o poeta ter a incumbência de
falar pelo pobre e para os pobres. Finalmente, na versão 2, Carolina de Jesus recorre à noção
da moral cristã ao imprimir mais uma obrigação ao poeta: perdoar como Jesus Cristo
perdoou, pois, para a escritora, o poeta era uma espécie de “vate ilibado” superior à sedução,
e que não se deixava contaminar pela ganância.

(1) (2)

Quando estou exausta dêito-me Quando entró num bar quero

para adórmecer logo. Quando ser servida logo pórque

desperto, dêixo o leito , e vou não passo sentar por longo

carregar agua, lavar róupas – tempo E que se eu ficar

llouças etc. E dai começa o meu parada pôr muito tempo, os

calvario – andar ate, ficar versos começam á surgir

exausta. sento-me com o lapis Tenho estar em atividade

na mão. porque quando escrevo initerruptamente.

o meu cerébro normalisa Quando desperto deixo o leito

Depôis que promanavam-se em mim crêio que já familiarizei com o lápis

as ideias literarias eu deixei na mão pórque eu quando


escrevo, o meu cérebro,
132

de agafanhar-se nórmaliza-se.
Não e desleixo. É que eu sou Não fiquei vaidosa porque
triste interiormente, procuro as pessoas de visão nota
demónstrar uma alegria que estou que a existência é cómposta
bem longe de sentir de cilício, e amarume
O que notei é que o pensamento por eu observar as vanta
do poeta é valise. E as suas gens e as desvantagens
meditações esta sempre ao lado que a vida nós concedem
dos fracos. E o poeta é integro enquanto vamós empurrando
_ E superior a sedução a vida uns vai desiludindo
-se e outros não revelam
oq eu sentem
Eu demonstrar uma
alegria que estóu bem longe
de sentir. Mas a vida deve
ser adórnada com a
integridade. E favorecer o
póbre e ser superiór a
sedução. Esta deve ser
o escudo de um poeta.
não utilizar o seu saber para
prejudicar o próximo.
E saber perdôar. porque saber
perdôar é uma arte tão sublime. E nosso
saudoso
Jesus Cristo, comprovóu
dizendo: perdôai-lhes meu
pai! Eles não sabem o que
fazem.

^familiarizei^
^normalizou-se^
>~<

Aristóteles (2008), na Poética, cap. XII, define as partes quantitativas da tragédia


como sendo “o prólogo, o episódio e o êxito (partes recitadas ou dialogadas), e o coral,
composto de páramo e estásimo (partes cantadas). Na tese 6651 , Aristóteles explica que

51 ARISTÓTELES, 2008, p.119.


133

“Prólogo é uma parte completa da tragédia, que precede a entrada do coro. [...]”. Carolina de
Jesus, não se sabe por quais caminhos, parecia compreender e utilizar essa função do
“Prólogo” como gênero literário, pois seus prólogos estão sempre alocados anteriormente a
seus poemas ou provérbios (cantos) anunciando/ contextualizando a trajetória desses
conteúdos a seus desejados leitores; muitas vezes, parecendo solicitar indulgência para com
suas “falhas”, procurando sensibilizar aquele que iria lê-la: Quando desperto deixo o leito
crêio que já familiarizei com o lápis na mão pórque eu quando escrevo, o meu cérebro,
nórmaliza-se. Não fiquei vaidosa porque as pessoas de visão nota que a existência é
composta de cilício52 , e amarume53 . Como um narrador implícito, ela mesma especula,
dramatiza e ironiza a própria vida, mostrando-se como sendo igual àquele que a lerá, nesse
caso, a classe burguesa a quem se dirigia, procurando sempre aproximar seus valores nessas
demonstrações de identificação social, despertada pela crença de que é o “trabalho que
enobrece o homem”. E a protagonista dessas narrativas trabalhou muito e se distinguiu muito
dos seus iguais para chegar até esses escritos. O preâmbulo para ela seria o caminho de essas
justificativas chegarem até seu público-alvo.

II.4 Prólogo para “Provérbios”

O que notei é que o pensamento do poeta é valise. E as suas


meditações esta sempre ao lado dos fracos. E o poeta é integro _ E
superior a sedução.

(Carolina Maria de Jesus)

O devir-fome amarela em Carolina de Jesus consiste numa expressão do tornar-se


a secreção, o restolho incômodo, a ferida inflamada da modernidade na cidade de São Paulo.
Uma inflamação como resultado do inflar da desigualdade social, gerando anti(corpos) como

52Instrumento de penitência usado, ainda hoje, pelos crentes, tanto do cristianismo quanto de alguns segmentos
orientais, que creem ser a dor física uma purificadora da alma.
53 Desgosto profundo que faz mal à alma e ao corpo.
134

resultado criado pela chaga do organismo social doentio: o pobre marginalizado. Sem
esperança de cura, revela-se patologia que retorna como rota de fuga, de captura do devir-
fome amarela que os marginalizados, presos pela malha das desigualdades urbanas, irão
passar: essa chaga social pela qual os favelados não passarão incólumes.

A gênese dos manuscritos da escritora vira-lata passa por esse devir-fome amarela
como uma versão contrária aos excessos expelidos pelo corpo marginal como falta que gera
doença, pois a “fome amarela” é a cor da pele doentia da pobreza, do opilado, da verminose, a
esboroar os sonhos, esbarrando nas necessidades básicas desses marginais em vertigem. O
devir-fome amarela, como um corpo estranho ao corpo, é pus que se torna pústula que ameaça
virar um “câncer” e que precisava ser contido, como a própria Carolina de Jesus. O tornar-se
fome amarela degenerativo aparece enquanto um corpo estranho que escorre como pus, a
formar pústulas repletas da falta de realização, do desejo de um “Ter” que determina o seu
“Ser” na cruel sociedade moderna, como afirma a escritora: “Estamós numa época confusa
que se o homem não tiver muito dinheiro, não tem valôr para o homem”.

O processo criativo da “poeta da favela” caminha numa captura insana que gera e
que demonstra um procedimento febril rumo ao artístico: a formulação de uma poética de
resíduos que é alavancada por sua natureza pústula(r), fluida, turva e purulenta, células
criativas de defesa, já que para a escritora a “literatura é uma arma”. Suas narrativas emergem
do chorume social malcheiroso, a fermentar na criação e a incomodar essa mesma sociedade
que a gerou, uma sociedade asséptica, acostumada às aparências, a esconder debaixo do tapete
aquilo que lhe pareça pueril ou que cause pruridos morais, se alguém se atreve a mostrar suas
infecções e toda a sorte de chagas estranhas ao organismo social bem-comportado. Mas como
expelir aquilo que não cessa de ser produzido? Como diriam Plínio Marcos 54 e Carolina de
Jesus: enquanto houver mazelas sociais a literatura por eles inventada será atual.

Carolina de Jesus, uma mulher negra e favelada expele as pústulas em seu devir
criativo ao transmutar em forma e conteúdo as pústulas do tornar-se fome amarela para muito
além, mas não menos importante, das críticas à sociedade mobilizada por sua escrita. A
escritora segue criando algo para dizer o não-dito (até então), a partir daquilo que é interdito;
sua escrita poética é um agente invasor que, antes inativo, passa a tomar corpo e vai
requerendo vida, e exige uma face para si.

54Plínio Marcos foi o dramaturgo mais censurado no Brasil da metade do século XX, pois suas peças teatrais
denuciavam temas da marginalidade social. Entre outras, as mais conhecidas são: Dois perdidos numa noite
suja (1966); Navalha na carne (1967); Homens de papel (1968).
135

De imediato, quando da publicação de seu romance Pedaços da fome (1963),


tragicamente editado55 , essa escritora contestadora, contemporânea do governo da ditadura
militar brasileira, e distante do que se esperava de um “grande escritor”, Carolina de Jesus
precisava ser expelida – como o carnegão do furúnculo – e foi. Após as artimanhas da
venalidade do mercado com seu imbatível Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960),
que definiu neste clássico o que é uma favela, dolorosamente ela descobre que “a autora” não
poderia ir além da favela.

No entanto, o devir-fome amarela cresce, acumula pus, e em pus torna-se


pústula... ela quer mais romance, poesia, composições musicais, peças teatrais, enfim arte.
Toda uma poética que foi feita de resíduos discursivos, gêneros literários e não literários,
capturados pela catadora de lixo Carolina de Jesus, que alimentava corpo e espírito com os
restos recolhidos ao acaso e de pronto os reutilizava. Escrita redigida por meio de uma
linguagem ainda “oculta” para a língua portuguesa culta, a linguagem falada nas favelas, nos
becos e estradas, promovendo ruído ao querer associar-se à nobreza do clássico, da língua
lida, escrita e falada nos salões da elite.

Como pôde essa escritora que, passada a fama advinda por seu best-seller de
1960, foi alcunhada de “escritora vira-lata” e, ainda assim, atreveu-se a traçar linhas de fuga
com refugos discursivos no enfrentamento de sua literatura-armada? Poder-se-ia entender que
foi graças ao seu devir-fome amarela?

Tais perguntas como Ondes estaes felicidade? (2014), título de um de seus contos,
conflitos entre “bondade e maldade”, cidade e campo, negro e branco, e sobretudo os
impasses entre o lugar social do masculino e do feminino são marcantes nas temáticas
encarnadas em sua caneta cortante. A obsessão por personagens femininas que precisam lidar
com o poder masculino, mas que, diferentes da própria Carolina de Jesus, ou das personagens
de Machado de Assis56 , que ao enfrentarem o poder masculino lutam, as suas sucumbem à

55 Como a própria Carolina de Jesus ressalta, ocorreram diversas modificações que prejudicaram o projeto inicial
do romance, cujo título original era “A Felizarda”, e ela relata o sonho de vê -lo publicado no exterior: “O moço
que ia publicar mudou o livro todo, tirou as expressões bonitas, não gostei. Os americanos querem publicar,
mas não conseguem encontrar tradutor. Os tradutores brasileiros lá ficam cheios de importância e não querem
traduzir meu livro./ A Felizarda é uma moça muito rica e por isso ninguém queria casar com ela. Depois de
casar com um moço pobre, viver na favela, mendigar e ser presa, o pai, um coronelão, a encontra e a leva para
casa. Ela senta no piano, e relembra dos tempos de moça rica, toca valsa vienenses. O filho dela agarrado a sua
saia pergunta: Mamãe quem é você?” (Jornal do Brasil, 11/dez/1976).
56Pode-se citar as personagens Virgíla e Eugênia, pertencentes a segunda fase da obra machadiana, que agem de
acordo com seus próprios interesses. Ver. ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de
Janeiro: W. M. Jackson, 1957.
136

submissão por estarem fadadas à condição inferior de um certo tipo de feminino imposto pela
sociedade. Os temas são acompanhados de uma espécie de pedagogia da opressão que impõe
final trágico para aqueles que são alimentados pela ganância, ambição e maldades, trazendo
este recurso das fábulas para dentro de suas narrativas curtas, como ser verá em “O lenhador”.

O final trágico como castigo pela má conduta moral, característica dos incansáveis
Provérbios (1965), que inventou ou repetiu, escrevendo-os em diversos cadernos, é outro
recurso fundamental em seus textos de aspecto propositivo de sentenças moralizantes.
Curiosamente, na edição de seu livro dedicado a esse gênero não foi publicada a versão
completa de uma espécie de preâmbulo que Carolina de Jesus preparou para este livro; o texto
está disperso nos originais, entrecortado por uma narrativa curta sem título, mas que poderia
ser intitulada “A bondade e a maldade”, uma vez que se trata da personificação dessas duas
posturas humanas que determinam destinos, golpeados pela escritora quando maculados pelos
“sentimentos primários” que dominam o ser humano.

Embora seja possível encontrar provérbios esparsos na poética de Carolina de


Jesus, há no Caderno 4 (FBN: MS-565 – 4) um acúmulo de diversas sentenças, algumas
inventadas por ela, outras reproduzidas da cultura popular, e que retornam nos Caderno 3, 4, 5
e 7 (FBN: MS-565-4), e são entrecortados pela narrativa sobre a bondade e a maldade no
Caderno 3, trazendo na sequência mais um bloco e provérbios. No Caderno 4 há outro bloco
de provérbios, sendo registrada na capa deste caderno uma sentença que parece ligar-se ao
texto sobre a maldade e a bondade, e, desse modo, podemos supor ter sido criado no afã da
produção dos provérbios:

A bondade e a semente são semelhantes.


A bondade produz a paz universal.
E a semente produz bons frutos.
FBN: MS-565-4 Caderno 4, “Provérbios, diário e texto “O Brasil, (Fotograma s/n)

Este provérbio que também ganha destaque pode ser compreendido como uma
espécie de síntese do projeto de texto, ideia primeira ou essência deste gênero, como também
o núcleo condutor que edifica o caráter proverbial que acompanha toda a poética de Carolina
de Jesus. Como observa Elena Pajaro, existem diversos vínculos entre a escritora e os
elementos culturais da diáspora africana no continente americano, sobretudo no que tange às
137

tradições africanas que valorizam a palavra escrita. A pesquisadora identifica ligações entre
Carolina de Jesus e a cultura de Cabinda57 e, segundo ela, o avô da escritora, exaltado por ela
e pelos vizinhos como “o Sócrates africano” por representar a voz e a palavra sábia na antiga
Sacramento (MG), era ex-escravo e seus pais teriam vindo dessa região, “onde o exercício da
formação moral e da busca do caminho reto era feito por meio de diálogos e provérbios,
muitas vezes pictografados em tecidos e cerâmicas”58 .

A região de Cabinda hoje luta por sua independência de Angola. Foi um Porto
muito importante, entre o atual Congo e a atual Angola, já há tempos ocupado pelo povo
bakongo. Sendo um porto, muitos negros que eram capturados ou trazidos por seus sobas
(chefes tribais) do interior, passaram a ser denominados cabindas, mas muitas vezes este era o
registro feito no porto africano de procedência. Raquel Trindade, filha de Solano Trindade,
assina seu nome como “A Kambinda” e nos maracatus este é um nome muito vezes presente.
O escrever proverbial, as fábulas (marcante nas narrativas curtas de Carolina de Jesus) as
personagens animais, com adjetivos de características humanas, ou as adivinhas, todos estão
presentes na voz e poesia dos bakongo e também dos falantes de quimbanda e de umbundu.
Nesta região não existem propriamente griôs, pois este termo vem de outra região, e vale para
o oeste africano, mas há os cantadores e poetas mais velhos, os guardiães do sangue e da
história dessas comunidades africanas, espécie de Aedos da Grécia antiga, assim como foi o
avô de Carolina de Jesus, que não se cansava de relembrar, por exemplo, os feitos de Zumbi.
Pode-se afirmar que esse “relembrar” tem uma função pedagógica para os ouvintes mais
jovens.

Fica evidente que Carolina de Jesus, como escritora, herdou, gestou e levou
adiante tais características do estilo e da diáspora africana. A própria forma de ela lidar com
os verbos e com a concordância nominal, por exemplo, é bem específica do proletariado em
geral, em sua maioria os negros.

57Cabinda é uma das 18 províncias da República de Angola, apesar de lutar por sua independência política. A
capital da província de Cabinda é a cidade de Cabinda, também conhecida pelo nome de Tchiowa.
58
“Elena, que mantém contato com pesquisadores da cultura afrodescendente nos Estados Unidos, relaciona essa
preocupação quanto à firmeza de caráter com a tradição musical afro -norte-americana do spiritual. ‘Como os
provérbios, os spiritual’s comunicam o caminho a ser seguido e lamentam os seus desvios, recriando uma ética
religiosa e política que foi constantemente retomada nos discursos em prol dos direitos civis, especialmente nas
décadas de 1950 e 1960’, explica Elena. O avô de Carolina era cristão e comandava a reza do terço em
Sacramento, o que lhe conferia autoridade moral e proeminência na comunidade”. Ver entrevista concedida a
Márcio Ferrari, Revista Pesquisa FAPESP, edição n.º 231, São Paulo, 2015, p.78-81.
138

Carolina de Jesus transpõe essa dicção para a linguagem escrita ao lado da erudita
que não aceita os “erros de concordância”. O plural no artigo e não necessariamente no
substantivo: “os rechêio”, “os pequeno”, “prêtos disse”, etc.; ou inusitadamente ou talvez
procurando a melhor forma do seu contrário: “o mal que o álcool lhes acarretam”, “tipo que
nos fazem sofrer”, etc.

Na língua africana bantu uma pessoa é muntu, duas pessoas ou a comunidade já é


grafado “bantu”; desse modo, o “ntu” revela-se como sustança, o substantivo que não se
altera. Nas fontes bantu, altera-se o artigo antes do substantivo, mas não o substantivo que
vem depois, assim como a supressão do ditongo, do mesmo modo como redige a escritora,
trazendo à tona a necessária “voz do povo que faltava”, como advertem Deleuze e Guattari
(1977), resguardada pelo corpo em um devir-fome amarela que fala.

Nesse rumo vale citar Antonacci quando, ao analisar o modus operandi daquelas
escritas que destoam dos documentos-textos, aqueles legitimados pela epistemologia
hegemônica, diz que, mesmo rarefeitos, ainda assim encontram chão em:

[...] memórias ancoradas em experiências dos que só têm no corpo e em suas


formas de comunicação heranças de seus antepassados e marcas de suas
histórias. Em contínuos desterros, sem construídas séries documentais,
vivendo e transmitindo heranças em performances, recursos linguísticos e
artísticos, povos africanos pluralizam nosso alcance de acervos históricos,
monumentos e patrimônios audiovisuais, situando a necessária arqueologia
de saberes orais, a ser enunciada e valorizada (ANTONACCI, 2013, p.17).

Após o provérbio – A bondade e a semente são semelhantes./ A bondade produz a


paz universal./ E a semente produz bons frutos./ – citado e comentado, ela inicia o preâmbulo
de seu livro de Provérbios, sustentado por reflexões, tais como a definição metafórica de que
“provérbio é antes de tudo, uma advertência em fórma de conta-gôtas”, e mais algumas
implicações de seu lugar na literatura brasileira. Vale dizer que a escolha dos textos inéditos
ora transcritos foi feita respeitando um trajeto que os cadernos impõem, e na curiosa omissão
de um de seus autoprefácios, redigido por ela especificamente para a publicação desse livro,
que foi por ela idealizado, como se pôde perceber. Texto este que apresenta uma interessante
definição de seu processo de criação, além da irmandade do caráter proverbial, que ressoa na
cercania das narrativas curtas, como no exemplo de “O lenhador”, e que sinaliza um dos
139

percursos ou uma das linhas de fuga traçada pelo devir-fome amarela, duros momentos
vivenciados pelo corpo-escrita de Carolina de Jesus.

Prólogo para livro de Provérbios:

Documento 23: FBN: MS-565 – 4, Caderno 4, “Provérbios, diário e texto O Brasil” (Fotograma s/n)
140

Transcrição:

Êste é o segundo livro de provérbios que escrevo. O primeiro foi um opúsculo semi-
estrópiado. Mas as pouquíssimas pessôas que leu o livro de provérbios enalteceu a obra. Esta gentileza
dós leitôres incentivou-me a escrever outro livro de provérbios mais profundo. Agradeço a gentilêza
do meu povo brasileiro que recebe as minhas obras com grande aprêço.
Depois de um lapso de perplexidade na literatura onde exitei em abandonar ou prosseguir.
Decidi continuar escrevendo. Pretendo escrever peças teatrais porque escrevendo peças teatrais estarei
auxiliando os artistas atuais e aos vindouros. Como é bom a gente saber que sempre está// auxiliando a
humanidade. Como é bom fazer um exame de consciência e saber que não prejudicamos o próximo.
Pórque ser mau é fácil mas ser bom é uma arte que aprendemos a perdôar e a ignórar as ofensas. É
hórrível conviver com o homem da atualidade que está desumanizando-se. São impiedosas +e +
quando finge-se protetor de alguém, é visando interesse próprio. Estamós numa época confusa que se
o homem não tiver muito dinheiro, não tem valôr para o homem.
É por isso, o valôr móral está desapareçendo. E o homem sem móral, está destituido. É
necessário uma reforma na administração do país com o objetivo// de minórar as dificuldades que o
homem encontra na sua jornada.
Pórque a razão de tantos desabôres e sofrimentos nêste hemisfério?
Que bom seria se o homem no decórrer de sua existência não encontrasse o sofrimento que é o
causador da tristeza que o deprime e atrofia o seu ideal. Já que é o ideal o cómbustível do côrpo
humano que impulsiona o nosso espirito a lutar.
Sendo o homem a [ileg.] do universo o [ileg.] hemisfério é o seu dever polir o seu caráter fazer
uma revisão nos atos, e nas suas ações com o próximo.
Como é horrível ferir// alguém na sua sensibilidade. Como é horrível deixar alguém triste,
como é hórrível conviver com um homem arrogante prepotente e predominadór. É um tipo com o
complexo de superióridade.
E a maiór superioridade nêste mundo é ser amável proporcionar uns momentos de alegria aos
nossos semelhantes. Até os animais góstam das carícias, e são iraciónais. E o homem que tem o dom
da palavra falada e escrita pode jatanciar-se de ser poderoso. Mas usar a sua fôrça com limites para
não praticar injustiças porque o tempo vençe o homem, que quando exerçe uma profissão, transforma-
se// Completamente. O seu ego no início, êle pensa que é um governador. Depois pensa que é um
ditador, pôr último quer ser semi-onipotente. Transforma-se num tirano e cai no desagrado do homem
que não suporta ser teleguiado e sente uma revolta interiór. Procura lutar para quebrar os grilhões,
aludindo que a época da escravidão... já passóu. O homem da atualidade, acêita a liberdade de pensar e
agir como lhe aprás pórque livre mêsmo ninguém é. Há a semi-escravidão, dos deveres nêste globo
ovalado em que nós somós os rechêio. Onde nós devemos ficar... coêsos no auxílio mútuo para
predominar// um equililíbrio justo. Pórque o que é justo agrada a coletividade. Nesta época que existe
os grandes desequilibrios há inúmeros causos que devem serem examinadós pelos poderes publicos.
É necessário que as classes divida-se: uma fração na cidade. Todós colocados trabalhando com
descência ganhando um salário que lhe dê independências econômica para ir extinguindo a
cleptomania do nósso povo. Para que póssamós confiar uns nos outrós e predominar o bem estar
comum. Pórque os atós de um povo fica fundido no país.
A outra fração deve ficar no campo, e produzir// pórque o povo do Brasil, não tem o hábito de
plantar. Não sabem utilizar nem as terras do quintal. A única cóisa que os nóssós homens do campo
aprendem dêsde a infância é ingerir grandes quantidades de cachaças. Quando são adultos, são os
catedráticos dos alcolatras. Passam a vida trabalhando unicamente para gastar no álcool. E êles são tão
incientes que não observam o mal que o álcool lhes acarretam minando-lhes a saúde. Criam os filhós
semi-primitivamente, não ensinam os filhos nem a cuidar do assêio pessóal.
141

Quem dirige o país são os super-inteletuais que tem um compromisso moral com o seu povo.
Procurar dar-lhes// melhore +s + orientações ao seu povo. Um homem não deve aspirar a governar o
país para deixar apenas o seu nome na história. Deve deixar bôas obras para ós vindourós.
Quando um povo é arrojado, no lapso de duzentos anós o seu país já está civilizado. E o Brasil
já completou 467 anos de descobrimento e ainda está semi-embrionário. Está engatinhando. Deitado
eternamente em bêrço explêndido, onde uma minoria é que tem a possibilidade de estudar. As classes
privilegiadas que cresçem gozando todo o confôrto e são os semi-patriotas do país. Por ser ricós
infiltram-se na política// para defender interesses próprios. Fazem alusões nos seus discursós que vão
trabalhar em prol da classe proletária.
Mas a classe assalariada nasçe e cresçem sem ter um líder para defender seus ideais
_Qual será o futuro dêste povo que cresçem sem cultura +e + sem aprender um ofício? Mêsmo
um homem capacitado encontra váriós obstáculos o decórrer de sua existência onde as atribulações são
imensas.
Cada homem está perdido nêste turbilhão humano em que as dificuldades transforma o
homem em fera. E qual é a =fera mais=// feróz do que o homem, que quando se depara com um
problema, mata o seu semelhante?
E o homem atual, vangloria-se que já é civilizado.
Há milenios que o homem esta lutando para construir um mundo côeso e civilizado, mas os
homens que almejaram a purificar as ações do homem fôram minórias que se perderam nêste
turbilhão. Para que haja felicidade comum é necessário que os hómens que governam sêjam justós.
Um govêrno violento perde o aféto do seu// povo que não lhe perpetua numa esfinge ou numa rua.
Um govêrno que faz uma guerra não dêixa bôas impressões pórque a pósteridade não rende
culto aos tiranos, +e+ aos ditadores. Não existe ruas com o nóme de Napoleão Bonaparte, Nero,
Heródes, Hitler.
Um homem que vai ficar na história como persóna nóm grata é o presidente dós Estados
Unidos nesta atualidade.

“Lindón Jolmson”.
Pôr causa da guerra do Vietnan. Que mania arbitrária dos nórte americanós de//imiscuir nos
litigios de outros povós.
_Será os Estados Unidos o advogado do mundo? O tutôr do Universo? Eu não preciso bajular
os Estados Unidos pórque sóu preta e êles não gostam dós negrós. O único nêgro que êles góstam é o
petróleo.
Na minha opinião, êles deveriam odiar o próprio branco que levou o negro para o seu país
pórque n’aquela época o negro eram vendidos e davam lucros pórque o sonho do branco é querer ser
rico. E êle passa a vida lutando para conseguir êste objetivo.// E a prova disto é que estão tentando ir
na lua para ver o que há pôr lá para ser negóciado.
E o homem ainda não desbravou a terra ainda não deu condição condignas ao homem e já esta
com a pretensão de dominar outrós planêtas. O que se gasta nas construções de veículos espac^iais^
poderiam empregar estas sómas num auxilio mutuo minórando o sofrimento da humanidade. Se o
homem está ciente que há deficiências no mundo, pórque não soluciona? Pórque quem pode praticar o
bem e não pratica// é um egóista. Um imaturo. Ao povo do Vietnam os meus pêsames pôr esta
hecatombe que lhes abatem. Já é tempo de pôr um ponto final nêste litigio tão desigual pórque um país
em guerra paraliza-se. Estációna-se e as gerações que crescem nas guerras cresçem neuróticas
conheçendo a fôrça brutal do homem. Se o mundo fôsse dirigido pelas mulheres será que nos
proporcionariam mais felicidade?
142

_Eu queria ser ministra da agricultura para incentivar o povo a plantar, emprestariam tratôres
para auxiliarem o pequeno lavradóres e diminuirem ós prêços dos// fertilizantes. Pórque o nosso
homem do campo encontram tantas dificuldades que estão desinteresando-se das lides da agricultura.
Se as mulheres governassem não fariam um govêrno abstrato. O nosso govêrno seria concreto
pórque o mundo governado pelós homens está deçepcionando. Deus designóu o homem para ser o
lider supremo do mundo. Mas que lider que deixa muito a desejar porque existem certos homens que
quando enriqueçem apoiam sua fôrça no dinheiro//
Êste pequeno livro de provérbios que apresento aós meus leitores que me vem estimulando no
meu ideal.// Não é uma obra fastidiósa. É um deleite para o homem atribulado da atualidade. Espero
que alguns dos meus provérbios possa auxiliar alguns dós meus leitóres à reflexão porque o provérbio
é antes de tudo, uma advertência em fórma de conta-gôtas. Já que nos é dado a compreender
mutuamente para ver se conseguimós chegar ao fim da jórnada com desçência e elegância. O saudoso
André Luiz escreveu!
“Devemos tratar os familiares// Como tratamós as visitas”// Mas, infelizmente isto// Não ocóre. Quase
todos// os lares tem a sua guerra

O que nos deixa maguado// E fere profundamente o coração; // As palavras do filho malcriado//
Mediócre sem educação

É horrível conviver// com as pessôas arrógantes// Tipos que nos fazem sofrer// _Todos + o s + instantes.

Se os prêtos disse[ileg] que// não góstam da// humanidade, é com, // conhecimentos de causa

Há filhós quando adultos, // São rudes, e incultos.

Dado o conteúdo deste preâmbulo que faz referência ao sucesso de Quarto de


despejo, bem como a datação incerta do Caderno 4, tudo leva a crer que este texto tenha sido
redigido para compor uma das versões de seu livro de Provérbios, publicado em 1965, sob
encomenda a uma gráfica. Porque Carolina de Jesus desejava ser reconhecida como escritora
de outros gêneros. O livro começou a ser redigido no Caderno 1 (MS- 565-4) junto com
alguns poemas e passagens de um diário datado de 30/01/1958 até 01/12/0958. Sendo
retomado no Caderno 3 (MS-565-4) com a narrativa sobre a maldade e a bondade aqui
transcrita, chega finalmente até o Caderno 4 (MS-565-4), que reúne alguns textos diarísticos
datados de 1960 e 1966. Em seguida este bloco é finalizado pela narrativa “O Brasil”.
Retornam alguns provérbios esparsos no Caderno 5 (MS-565-4), em forma de “quadrinhas”
(estrofes de quatro versos e versos de cinco ou sete sílabas), e no Caderno 7 (MS-565-4) como
“Pensamentos”.
143

É interessante notar que nesse mesmo rolo, denominado Miscelânea I e II pela


FBN, encontram-se mais dois “Prólogos”, o que nos leva a pensar que nesse momento
Carolina de Jesus estava tentando situar suas criações e trajetória literária, além de chamar
atenção para outros tipos de produção, visto que estes textos antecedem o livro de Poesia
“Cliris”, bem como seu livro de provérbios. Vale notar que ela reputa um caráter pedagógico
à literatura, e que, ainda, seguindo a “pedagogia” da cultura popular, usa os provérbios como
máximas educadoras, como se pode verificar no texto a seguir.

Narrativa sobre a maldade e a bondade:

Documento 24: FBN: MS-565 – 4 Caderno 3, “Provérbios e texto não identificado” (Fotograma s/n)
144

Transcrição:

Caia a tarde lentamente o céu estava colorido e a brisa perpassava lentamente arrefeçendo o jardim em
homenagem a bondade que estava deambulando a maldade passaria pór ali// ia apressada. Mas
avistando a bondade paróu bruscamente. Fitando-a adimirando a belêza da bondade e pensando que a
>beleza< + bondade+ deveria ser a miss universo Quis retirar-se mas encontróu dificuldade para
locómover-se. Sentia o seu// côrpo pesado como se fosse uma estatua de concreto Aproximou-se e
retirando o chapeu da cabeça levantou-se e comprimentou-a
_Bôa tarde bondade: Como vae? Sempre ouvi dizer que a senhórita é líndissima. E a senhórita
comprova. A bondade sórriu e agradeceu A maldade convidóu a bondade para tomar sorvete// fôram.
A bondade ia sorrindo para todos. A bondade tinha carro conduziu a maldade até a sua casa A
maldade apreciou os gestos elegantissimos da bondade. E assim iniciou-se amizade da bondade e da
maldade. A maldade era oportunista ia fazer as refêições na residência da bondade que não reclamava.
E um dia, a maldade pediu casamento a bondade e ofereçeu-lhe aliança Quando a maldade ia//
procura-la não encontrava-a e ficava furiôsa. Sentava e esperava o retôrno da bondade. Interrogava-a
_Onde fôste?
_Fui visitar as crianças enfermas que não tem cura// As que estão com paralisia infantil, e nunca vão
poder jogar uma bola. Fui visitar as crianças pobres que tem desejos de // comer arroz e fêijão, e carne
batatinhas fritas, arroz doce e pão com manteiga e >não< os paes não podem cómprar. Fui visitar as
crianças ruraes que andam treis quilometros e meio para ir a escola. E vao chorando porque cansam de
andar. Sei que organizaram a semana da criança. Mas os benéficiados com a semana da criança, são as
crianças da cidade que vivem com todo confôrto e não são Fui revoltados porquê não sofrem.
Fui visitar os adultos que estão nos hospitaes, as mães que estão felizes na maternidade// com a
chegada de um filho. As que estão triste pórque o filho nasçeu e mórreu. e fui visitar os operários nas
fabricas.// Como você vê eu gosto de suavisar. Fui visitar os asilos onde estão os velhos que ja estão
apossentados do bulicio do mundo. Depois fui visitar os governadores, os reis e seus ministros. Eu sou
amiga sincera da humanidade. A maldade revoltou-se Já estou cansada de suportar suas toliçes. Cada
um com o seu problema. Repreendeu a bondade que assustou-se e chóróu dizendo que não supórtava
as palavras rudes aludindo que os seus antepassa dós eram humanós e nobre// e que angariava
inumeros amigos e eram felizes. A maldade interrogou-a _O que é ser feliz?
A bondade sórriu, achando a pergunta ingenua e prontificóu-se a responder -lhe
_E ter paz de Espirito. E quem consegue isto são os que praticam o bem.
_E você tem lucro praticando o bem?
_Sim. Sou querida de todos E até você maldade, gósta de mim, pórque sou bôa
A maldade sorriu, e deu um bêijo na bondade

Esta narrativa, ancorada nas máximas da bondade e da maldade, traz o tema da


conduta invariável do benfeitor, que consegue, no final da narrativa, fazer o mal se resignar à
sua própria maldade em detrimento da bondade que o contagia. A personificação de
substantivos abstratos e as adjetivações humanas são uma recorrente na escrita de Carolina de
Jesus, nomeando “Felicidade” (2014) como a protagonista de um de seus contos.

Ao invés de optar pela figura de animais que poderiam vir a representar as


qualidades humanas exploradas, ela opta por personificar o sentimento e trazê-lo a uma
145

relação com seu oposto, a fim de doutriná-lo, ensiná-lo, na busca da promoção para um
mundo melhor, que precisaria de uma mudança radical, ou seja, a partir da essência da
maldade.

Segundo o “Guia do Acervo de Carolina Maria de Jesus”, publicado no início de


2015, este texto apresenta uma “dicção sermonística, não se parece com o texto-estilo da
titular. Provavelmente transcrição de texto de outro autor” (BARCELLOS, p.165). No
entanto, discordamos dessa afirmação, pois em diversos manuscritos a escritora registra que
seus filhos e um pároco, vizinho do lado de sua última residência, em Parelheiros,
datilografavam parte de suas criações. Este texto pode ter sido datilografado pelo pároco, que
certamente realizou correções e adequações gramaticais sobre o texto original, podendo
mesmo, de algum modo, ter interferido no ordenamento do conteúdo.

Acrescidas a essas evidências, não nos escapam as alterações realizadas com a


caligrafia da escritora sobre o documento em questão, conforme se pode constatar no fac-
símile na página a seguir.
146

O lenhador:

Documento 25: FBN: MS-565 -4, Caderno 11, “Documentos esparsos datilografados (Fotograma s/n)
147

Transcrição:

O LENHADOR

Meus filhos, o Criador não esconde nada dos filhos, e afir-


mo que não =(esiste)= existe mistérios e nem segredos conforme di
zem os nossos irmãos ai na terra...
Procurar conhecer as coisas divinas não quer dizer que estão
violando setor ou guardados alheios, não irmãos! Procurar conhe-
cer, procurar saber sem interesse de explorar os mesmos, é descor
tinar o véu negro da ignorância que cobre a mente humana.
Irmãos, não exigimos perfeição, mas sim esfôrço e boa vontade!...
Os ensinamentos são gratuitos e é uma meta certa, como uma
seta que surge repentinamente no caminho de cada >um + um+ indicando
o caminho certo que lhes conduz a meta final, para o reajuste
de contas de suas próprias dívidas, “do outro lado” .
O mar revolto repentinamente, a natureza se agita: as cachoei-
ras aumentam sua força com rapidez à jorrar suas águas frias
e cristalinas, aumentando assim os seus riachos. É temporal o
que quer dizer agitação na ^natureza^ por poucos instantes. O
que para uns é observado para outros é simplesmente natural, e
assim se sucede. Darei um exemplo: Termina o temporal, rompe-
se um novo dia cheio de luz, pois, somos despertados com o can-
tar dos pássaros, o cantor do galo, enfim, o lenhador sai para seu
trabalho começando então a derrubada das árvores.
Aparece então a um dos lenhadores um senhor de vestes diferen
tes, fisionomia estranha à dos moradores das redondezas, e com
uma voz suave interrompe o lenhador dizendo: -- O que é isso,
irmão? Por que destroe?
--- Este é o meu serviço, moço. Respondeu o *6666 * lenhador. O
que sei fazer é um trabalho honrado que eu aprendi com meu pau.
-- Mas meu filho, voce está destruindo... Como voce pode dizer
que isso é um trabalho honrado?
--- É sim moço, a gente aqui do mato, planta, espera crescer
e quando >(tudo cresceu)< +crescidos + começa+-se+ o trabalho outra vez. Sabe, a gen
te planta e depois derruba as árvores e em seguida, vem um pes
soal que leva para cidade e então aquela gente prepara a faz
148

coisas muito bonitas que a gente não conhece e nunca viu, mas

(1)

só escutamos de falar.
--- Então, meu filho, você esta satisfeito com a sua vida? Com
o seu trabalho?
--- Sim senhor, com a graça do nosso Pai do Céu, eu estou satis
feito.
--- Pois bem, meu filho, você só conhece esta espécie de traba
lho, que é plantar, esperar crescer e derrubar, porém, hoje você
vai aprender um trabalho diferente.
--- Mas moço, com quem eu +vou + aprender esse outro trabalho, se por
aqui só tem gente como eu e que +não conhece+ >(desconhece)< outro tipo de traba-
lho?
--- Meu filho, reúna toda essa gente e traga-os aqui, eu estarei
esperando.
--- Puxa moço, o senhor vai ficar aqui nesse matão sem nada de
bom e sem recurso nenhum, só para ensinar 000000 +par+a mim a aos
meus companheiros e irmãos?
--- Sim filho, vá que estarei esperando.
--- Esta bem senhor, eu já vou indo, mas não vá embora agora,
pois, foi Deus que mandou o senhor aqui. 000000000 Adeus então?
e até lá, despediu-se o lenhador e correndo pela mata sumiu
entre os cipós e árvores, correndo, correndo sem parar, chegando
ao rancho do amigo Bastião, sem poder falar +propositaumenti + caiu de joelhos e
com o olhar para o alto ergueu suas mãos para cima em sinal
de agradecimento e tentando contar aos amigos + o + que acontecera,
porém não consegue, e, emocionando, pos-se a chorar, a chorar de
alegria. Os amigos e irmãos ao verem o que com rapaz nunca
tinha acontecido, pensaram que tivesse sido atacado por algum
animal e que o seu juízo não estava bom. Juizo foi a palavra
dada por eles.
Passada a emoção ele tentou contar aos outros o que lhe há-
via acontecido, mas, os mesmos não lhe deram créditos e o tempo
foi passando até que um dia o próprio rapaz ficou doente e os
outros fizeram tudo que estava ao alcance deles, porém em vão.
149

Foi então que já cansados e sem esperanças de salvá-lo, os ir-


mãos lembraram de r-e-z-a-r e pedir proteção à Deus. O doente
já enfraquecido pela doença e falta de recurso já nem se levan
tava mais, estava mesmo um farrapo humano. Enquanto acabara de

(2)

amanhecer uns saíram para o trabalho costumeiro, outros à pro


cura de ervas medicinais e outros a procura de caça para ali
mentar o doente. Repentinamente o doente acorda com um clarão
em seu rosto, como um Sol invadindo o seu corpo. Ele sentiu uma
reação revigorante reabastecendo-o de energia. E olhando para
os lados não conseguiu ver de onde viera toda aquela energia.
Então levantou-se e de joelhos olhou para o alto e com os bra
ços erguidos suplicou 0000000
--- Senhor, Senhor o Senhor veio me ajudar outra vez, mas quan
do veio me veio me ajudar na primeira vez eu falhai, 00000 por
causa dos meus companheiros não terem acreditado em mim, porém
eu deveria ter voltado assim mesmo para 00 para 00 contar o
que havia ocorrido, reconheço agora o grande erro que cometi
em não ter +ido+ido >(vindo)< falar com o senhor.
A essa altura eu já poderia estar com a minha vida melhorada,
no entando piorei devido a minha desobediencia.
Com isso o nosso amigo lenhador aprendeu que 0000000000000
O mestre não perdoa, porém aplica novos testes dando mais opor
Tunidades para provar a ele e aos demais o valor do chamamento.

_________________ x ____________________

Este texto demonstra mais uma vez o caráter proverbial ensaiado por Carolina de
Jesus, e que nessa narrativa vem acompanhado das originárias fábulas ou, como ela escrevia,
as “histórias da caronchinha”, que ela leu durante toda sua vida, como citado ao longo de seus
textos memorialísticos: “(...) comprei dois livros de histórias da caronchinha para reler as
estórias que li em criança. E reviver aquela minha quadra gostosa ao lado de minha saudosa
150

mãe. Época em que eu achava o mundo belo” (6 de outubro de 1966, Caderno 4 “Provérbios,
diário e texto “O Brasil”).

Seu artefazer está adstrito à busca pela sabedoria e pela boa conduta, as quais teria
na literatura seu espaço de reflexão autodidática e beleza na condução dos atos humanos. Arte
e vida não se separam nessa escritura errática do corpo poético, mas que interpela as posturas
e os valores dos homens sob o viés do imagético que estava a seu alcance. Assim, a escritura
híbrida de Carolina de Jesus abrange também, e sobretudo, o gênero fábula, embora sua
tendência à diluição de fronteiras não permita um enquadramento específico em um único
gênero. No texto “O lenhador” percebemos a clara intenção de moralizar/educar, típico das
fábulas, porém sem a presença dos elementos característicos dessa tipologia. Percebe-se que
ela tem para si um grande ideal de ego, de vontade de ajudar as pessoas, de desejo de mudar
as injustiças sociais, das quais foi sempre vítima em potencial e de fato. Como todo poeta, ela
quer alcançar um ouvinte, um leitor.

Enquanto processo criativo em seu devir-escritora, vemos na poética de resíduos


criada por Carolina de Jesus uma temporalidade específica em seus originais de um devir-
trapeira emaranhado de bifurcações, defasagens, jorramentos, cisões, junções de saberes,
modulações, diferenciações, reinvenções de si, expressões de potências genética de um
original, pois esta matriz é, desde sempre, múltipla. Nesse sentido, sua escrita é iminente no
sentido de que parece estar sempre pronta para acontecer novamente, seja nas versões de seus
textos, seja nos reencontros temáticos e de personagens, investidos e depositados ao longo de
sua obra como uma espécie de mise en place de suas criações. Personagens-tipo que
reaparecem em suas histórias como a submissão da mulher expressa em Helena, no poema
“Noivas de maio” e a ponte temática retrabalhada na personagem Maria Alice do romance
“Dr. Silvio”, ao afirmar a submissão feminina como ingrediente para o sucesso do
casamento59 ; temas como a busca pela felicidade; cidade versus campo; racismo, filhas não
perfilhadas.

59“E o Silvio compreendeu que as mulheres que têm possibilidade de trabalhar ficam arrogantes e no lar não
obedecem ao esposo, querem dominar. E autoridade de mulher é uma autoridade insolente. Com a tal vida
moderna em que tudo que se adquire custa um dinh eirão e a mulher tem que trabalhar para auxiliar o homem, o
mais sacrificado. O mais infeliz é o próprio homem. Se um governo aumenta os preços dos gêneros de primeira
necessidade vai complicando cada vez mais a vida do homem. Há os que não podem casar-se porque não [...].
não tem valor quando punimos alguém para defender interesses pessoais. Castigo por vingança. (APMS 07. 03.
10.1: “Dr. Silvio”, F. s/n). A conclusão desse romance coloca em evidência ambivalências homem/mulher
numa profusão de torturas de valores e convicções de experiências traumáticas, vividas pela personagem
151

O diálogo interativo ocorre entre um gênero e outro, sobretudo o caráter


proverbial que perpassa todo o espólio literário. Entre outros, pode-se citar o conto, publicado
recentemente, “Onde estaes felicidade?” (2014), que integra uma série de reflexões e saberes
ao longo do processo criativo, como o provérbio ao final deste conto: Se Deus voltar ao
mundo, será que vai repreender os homens por causa dos seus erros? Ou vai perdôa-los crêio
que os homens vão envergonharem-se (FBN: Caderno 1-“Poesias, provérbios e diários”- 8
Diário e história de Carolina”, FTG. s/n).

Não raras vezes este tema reaparece: A felicidade do homem consiste que êle vem
ao mundo, e não para ficar no mundo (FBN: Caderno 7 – “Pensamentos”, FTG. s/n).
Também em versos: Ao deixar meu barracão!/ Para viver na cidade/ Estava com a ilusão/ De
encontrar felicidade (...) Andei procurando carinhos/ So encontrei desilusão./ E uma
tonelada de espinhos/ Para ferir meu coração (FBN: Caderno 6-“Poesias e textos
autobiograficos”, FTG. s/n). E, mais uma vez, em tom de sentença, a escritora finaliza o
capítulo X do romance “Dr. Silvio” assim: _Claudinha sentou-se na mêsa não disse palavra a
ninguem. Parece que ninguem ali tinha o que dizer um ao outro. Tudo o que procurava
dentro daquela casa encontrava-se so faltava uma coisa que e almejada por _todós “A
felicidade” (APMS 07. 03. 10.1: “Dr. Silvio”, F. s/n).

A máxima que abre o conto Onde estaes felicidade? diz: Não êxiste nêste mundo,
quem não acalenta um sonho intimamente. Quem não aspire possuir algo que lhe proporcione
uma existência isenta de sacrifícios (JESUS, 2014, p.23). Como no final trágico dessa
narrativa, para a escritora, o homem está fadado a buscar sempre a felicidade sem jamais
encontrá-la, afirmação que se repetiu em sua própria vida.

Seja através dos diários ou dos provérbios, Carolina de Jesus vai tateando os
temas e gêneros que logra captar e os vai experimentando; assim, eles funcionam como
espaços de armazenamento de suas coletas e/ou de rememoração, acentuando seu desejo de
publicação: (...) Disse-lhe que que tenho uma historia interessante. O título e Onde estaes
felicidade? (JESUS, 1961, p.155).

Além disso, a junção de saberes pode ser exemplificada nesse texto pelo escopo
ao final de um dos primeiros fotogramas do conto onde há uma chamada em forma de nota de

masculina pela falta de submissão da mulher, postura que gera uma série de tragédias nas trajetórias das
personagens gerando um efeito de verdade e legitimação desses valores homocen trados.
152

rodapé, em que ela explica para si mesma, talvez numa segunda leitura desse texto, já passado
a limpo, o significado da palavra “veludo fruta silvestre de côr vermêlha” (idem), assim como
a glosa que aparece no início do conto, logo abaixo do título: “este conto- ótimo pela
duplicidade” (idem). Comentário avulso de teor explicativo aparentemente redigido por algum
editor em potencial a quem ela havia entregue para leitura.
153

Capítulo III

TRAJETO DA VIDA E DOS DOCUMENTOS


154

III.1 Percursos de uma catadora de palavras na recolha de sentidos

Quem escreve pode passar fome de comida, mas tem o pão da


sabedoria e pode gritar com suas palavras sábias.

(Carolina de Jesus)

Foi nas minhas andanças que formulei todas as questões, refiz todas
as perguntas, sonhei todos os sonhos.

(Samuel Rawet)

Ser é nada, tornar-se é tudo.

(Fernando Pessoa)

A história do nascimento de Carolina de Jesus é tanto fragmentada e desconexa


quanto a composição de seus manuscritos. Como ela mesma informa em várias versões de
suas folhas manuscritas, ou como se pode ler numa versão reduzida em seu Diário de Bitita,
provavelmente tenha nascido no ano de 1914, em uma comunidade rural onde seus familiares,
descendentes de ex-escravos, eram meeiros na pequena cidade de Sacramento, no interior de
Minas Gerais60 . Mudou-se com a mãe e os irmãos para uma fazenda na mesma cidade quando
cursava o segundo ano primário.

60Na versão publicada ela relaciona as incertezas de sua data de nascimento à falta de registro, à falta de
escolaridade e à impossibilidade de os negros servirem no exército: (...). No dia 27 de agosto de 1927 o vovô
faleceu. Minha mãe disse-me que eu estava com seis anos. Será que eu nasci no de 1921? Há os que dizem que
eu nasci em 1914./ Eu notava que os pretos não sabiam ler. Nunca vi um livro nas mãos de um negro. Os
negros não serviam no exército porque não eram registrados, não eram sorteado s. Eles diziam: _É orgulho. Só
os brancos que são considerados brasileiros. /Ninguém na minha família tinha registro. Não era necessário o
atestado de óbito para sepultar os mortos (JESUS, 2007, p.147). Enquanto que na versão manuscrita do Diário
de Bitita, localizada em Sacramento, lemos que foi a curiosidade de Bitita que conduziu ao questionamento de
sua existência: “(...). No dia 27 de agosto de 1927, o vovô faleçeu. Minha mãe disse -me que eu estava com sêis
anos. Será que eu nasci em 1921. / Há os que dizem que eu nasci em 1914. / Criança desconhece o calendário
_eu gostaria de investigar o ano em que nasci” (Museu de Sacramento, Caderno “Maria Luiza – romance”.
Apesar dessa indicação na capa do caderno, esse texto em prosa carrega traços autobiográfico s. Está dividido
em duas partes, uma delas com extratos de uma outra versão das memórias de Carolina de Jesus).
155

Estes dois anos mal cumpridos constituíram toda a sua escolaridade formal. A
escritora conta que seu pai foi um forasteiro negro, cantor e repentista, que havia passado pela
cidade de Sacramento, de quem a escritora teria supostamente herdado a personalidade
artística, sonhadora e nômade61 .

Já a inclinação para a política e filosofia estaria associada à figura do avô, um ex-


escravo, que pronunciava em rodas, ao modo dos griôs, textos de Sócrates, provérbios e
discutia problemas políticos. Carolina de Jesus reescreveu diversas vezes um texto dedicado a
figura de seu avô a quem denominava o “Sócrates africano”62 .

A partir do ano de 1937, ela começa a migrar para São Paulo, passando por várias
cidades do interior de Minas Gerais, depois por Franca, interior de São Paulo, até finalmente
chegar à metrópole em 1947. Conta que dormiu debaixo de pontes, foi auxiliar de
enfermagem, trabalhou em circo e foi empregada doméstica em diversas casas 63 , até ficar
grávida de seu primeiro filho. Não sendo aceita (grávida) para morar no emprego doméstico,
ela viveu temporariamente no centro de São Paulo, em cortiços que já estavam em processo

61Nas recordações da vida de Bitita, diz Carolina de Jesus: “(....). Um dia, ouvi de minha mãe que meu pai era de
Araxá, e seu nome era João Cândido Veloso. Que meu pai tocava violão e não gostava de trabalhar (...)./ Foi
nos bailes inseletos que ela conheceu meu pai. Dizem que ele era um preto bonito. Tocava violão e compunha
versos de improviso. Era conhecido como o poeta boêmio. Nos bailes ele dançava só com minha mãe (1986,
p.8 e p.82). Em entrevista, Vera Eunice reforça essa ideia atribuindo uma espécie de dom que viria a perpassar
gerações: “O pai dela? Pelo que ouvi, foi um boêmio, um daqueles in -cu-rá-veis! Mas a gente não escutava
falar tanto dele. Até onde sei, era do tipo que vivia pelas ruas, cantarolando, tocando violão e fazendo versos.
Passava a noite inteira pelas ruas, andando de boteco em boteco, bebendo e procurando moças para fazer
serenata. Bebia até o sol raiar, não trabalhava, ficava “fazendo arte”. Aliás, foi assim que ele conheceu minha
avó Maria Carolina: fazendo arte!./ Minha avó, para complicar ainda mais a história, era casada com outro.
Imagine isso naquela época! Tanto “fizeram arte” que acabou nascendo uma ‘obra -prima’: Carolina, minha
mãe” (MEIHY, 1994, p.66).
62 Além da versão datiloscrita em Miscelânea II a que tivemos acesso pode -se consultar esse texto em A
cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, publicado por Meihy e Levine em 1994, e na publicação
da Revista Escrita (1976). Em entrevista no primeiro livro, diz Vera Eunice: “(...). As poucas lembranças da
infância que foram boas eram da mãe e do avô. Além da mãe só o avô esteve próximo dela na infância. Ele era
conhecido como ‘Sócrates Africano’; um homem muito inteligente e sábio que, apesar da cor, foi considerado
e respeitado pelos ricos e poderosos daquela região. Pelo que sei, eles conversavam por horas e horas a fio,
discutindo as histórias que ele contava, falando dos tempos em que ele era jovem, d a escravidão... Minha mãe
aprendeu a contar histórias com ele; o gosto pela leitura veio com a curiosidade de saber mais histórias dos
lugares, dos heróis, Tiradentes, Zumbi dos Palmares... (MEIHY, 1994, p.67).
63Segundo narra em diversas passagens, foi nas bibliotecas dessas casas que adquiriu grande parte de seu
conhecimento, em especial na residência de Zerbini, médico paulistano que realizou o primeiro transplante de
coração no Brasil (MEIHY, 1994, p.68).
156

de demolição64 ; depois, mudou-se para a favela, onde teve mais dois filhos, um menino e uma
menina, sendo cada um de um pai estrangeiro.

Nunca se casou e tampouco teve um companheiro fixo, não por falta de propostas,
muito menos de amores, como ela mesma faz questão de afirmar em sua obra Quarto de
despejo, mas por considerar o casamento uma forma de escravidão feminina65 . Além disso, no
“Caderno 2066 ”, por exemplo, há revelações impactantes quando ela traz à tona a discussão da
escrita como possibilidade de emancipação feminina e do negro, sua crítica à sociedade e seus
desabafos sobre as adversidades de querer escrever ali, na favela, depois de um dia de
cansaço, em sua rotina de perambulação e “catação” de objetos recicláveis encontrados pelas
ruas da enorme cidade de São Paulo.

Em 1958, apareceu a primeira reportagem de Audálio Dantas sobre os diários de


Carolina de Jesus no jornal Folha da Noite. No ano seguinte, foi a vez da revista O Cruzeiro
divulgar o retrato da favela feito pela escritora 67 . O megassucesso colocou-a em várias
manchetes nacionais e internacionais, como na revista Paris Match, Elle e Realité68 , em
programas de rádio e TV, como o de João Silvestre, o de Hebe Camargo e no seriado da rede
Globo “Caso verdade”, apresentado nos anos 1980. O sucesso possibilitou aproximações com
algumas personalidades da cultura brasileira, como Adoniran Barbosa – com sua personagem
“Charutinho”69 , que a inspirava na escrita de suas novelas para o rádio 70 –, Ruth de Souza,

64 Na narrativa “Favela” (JESUS, 2014), inédita até então, Carolina de Jesus fala dos processos de despejo das
populações pobres que viviam nos cortiços paulistanos até a década de 1950. Devido à política
desenvolvimentista em voga nesse período, diversas habitações antigas foram demolidas para erguerem prédios
monumentais que dariam origem à São Paulo modernizada. Segundo Miranda (2003), a favela do Canindé e o
Parque do Ibirapuera foram erguidos no contexto de comemorações do IV Centenário da Cidade (p.14), em
janeiro de 1954.
65 Segundo seus filhos, em entrevista cedida a Meihy (1994, p.69), Carolina ficou grávida pela primeira vez de
um americano chamado Wallace, mas essa sua primeira filha, que recebeu o mesmo nome da mãe, morreu. Em
seguida, engravidou de um italiano com quem teve seu primeiro filho, o João. Depois foi a vez de conhecer um
marinheiro português, pelo qual Carolina foi imensamente apaixonada, e que lhe deixou o filho José Carlos; e,
finalmente, o pai de Vera Eunice, um comerciante espanhol de classe média, mas que jamais ajudou
financeiramente mãe e filha.
66 “Caderno 20”. Biblioteca Carolina Maria de Jesus. Museu Afro -Brasil (MAB) de São Paulo, São Paulo (SP).
67DANTAS, A. O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque
do mundo sórdido em que vive. Folha da Noite. São Paulo, ano XXXVII, n. 10.885, 9 mai. 1958. / DANTAS,
A. Retrato da favela no diário de Carolina. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, n. 36, p. 92-98, 20 jun. 1959. /
DANTAS, A. Da favela para o mundo das letras. O Cruzeiro, São Paulo, n. 48, p.148-152, 10 set. 1960.
68Segundo as jornalistas francesas, com uma reportagem fotográfica de Edouard Boubat (LAPOUGE, 1977,
p.165).
69Criação de Oswaldo Moles, a personagem “Charutinho” foi vivida/interpretada por mais de uma década por
Adoniran Barbosa na Rádio Record, durante a atração História das Malocas, que ia ao ar toda sexta-feira, às
21h.
157

Solano Trindade, Adhemar de Barros, Jorge Amado e Clarice Lispector. Contudo, a fama não
trouxe somente alegrias para a escritora. Em 1965, durante uma noite de autógrafos de Maçã
no escuro, de Clarice Lispector, a “poeta do lixo” foi colocada diante de um mundo que a
repelia, fato que ilustra as contradições de uma sociedade que aceitou seu best-seller –
enquanto representação exótica da favela, mas recusou a protagonista dessa obra como
escritora; talvez, por considerá-la um ser social ambíguo.

(...) Dia 19 eu fui na festa da escritora Clariçe Lespector que ganhou o


premio de melhor escritora do ano com o seu romance “maçã no escuro” A
recepção foi na residência de Dona Carmem Dolores Barbosa. Tive a
impressão que a dona Carmem não apreciou a minha presença. E eu fiquei
sem ação. Sentei numa poltrona e fiquei. As madames da alta sociedade iam
chegando. E me comprimentavam. A Ruthe de Souza quando chegou não me
comprimentou. Coisa que foi notado por todos (JESUS, 1996, p.201).

Como podemos ver, Carolina de Jesus sofreu discriminação até mesmo por parte
daqueles que tiveram uma relação mais pessoal com sua obra, como foi o caso da atriz Ruth
de Souza71 , que tantas vezes interpretou a protagonista de Quarto de despejo em diversas
apresentações televisivas e teatrais.

Pelo êxito comercial das vendas de seu primeiro livro, os direitos autorais lhe
permitiram comprar a tão sonhada “casa de alvenaria” em Santana, onde passou a morar com
os filhos até 1964. Santana era um bairro de classe média baixa, onde ela e seus filhos
sofreram uma série de preconceitos por serem negros e por carregarem o estigma da pobreza,
de serem oriundos da favela. Não suportando as discriminações, Carolina de Jesus mudou-se
para um sítio em Parelheiros, onde morou numa pequena casa com os filhos, sobrevivendo
das colheitas de algum plantio e da criação de galinhas e porcos – além da venda de víveres
na beira da estrada, que não deu certo por causa dos fiados –, e da “catação” de ferro, segundo
ela conta na parte de seu diário “No sítio” (JESUS, 1996, p.201-284).

70MUNGNAINI JR., Ayrton. Adoniran, dá licença de contar. São Paulo: Editora 34, 2002. O compositor
chegou a escrever a canção “Carolina” que ressalta o percurso do lixo ao luxo e o retorno ao lixo, lançada em
1967, pelo grupo “Sambaquatro”. Disponível em: <www//https:soundcloud.bigmug1984-1/sambaquatro-
carolina-adoniran>
71Durante o apogeu de Quarto de despejo, Edy Lima montou uma adaptação para o teatro, que estreou em 1961,
com direção de Amir Haddad, e com a atriz Ruth de Souza representando a protagonista da obra.
158

Na esteira do sucesso de Quarto de despejo, com o dinheiro também publicou sem


muito êxito outros livros: Casa de Alvenaria (1961), que pode ser considerada a escrita mais
fiel à realidade das escrituras de Carolina de Jesus, visto que ela mesma afirmou que era
chegado o “tempo de escrever desilusões”; Provérbios (1963); e o romance Pedaços da Fome
(1963). Consta que o livro de máximas tenha sido publicado por uma gráfica, sendo a editora
inventada. Essas obras não tiveram a mesma aceitação de Quarto de despejo devido a que se
considera ser uma “insuficiência” literária por parte da escritora; entretanto, sabemos que o
desinteresse também está ligado à sua saída da favela, fato que desvinculou sua figura de
escritora favelada do símbolo de “a voz do povo” que faltava. A suposta “insuficiência”
literária, reafirmada até mesmo por Audálio Dantas no prefácio de Casa de Alvenaria, foi
desmistificada com a publicação póstuma, no Brasil, de Diário de Bitita (1986), espaço
discursivo em que a própria escritora reitera seu destino marcado pelo ofício da escrita.

A escritora foi aceita somente enquanto elemento exótico de representação da


mulher brasileira de baixa renda; daí o fato de sua fama não ter sido capaz de fazer com que
seu valor recaísse sobre o trabalho intelectual que desempenhou. A ascensão social e
publicação dos demais gêneros por ela experimentados representaram uma mácula na
produção de seu “testemunho” da pobreza. Seu valor foi sendo reduzido conforme sua fama ia
aumentando, diferente, por exemplo, de Lima Barreto, que foi muito estudado justamente por
não ter recebido fama em vida. Ao tentar viabilizar seu reconhecimento como escritora de
literatura, Carolina de Jesus escapa da perpetuação do local da mulher negra que se insere na
tradição literária brasileira masculina e eurodescendente desde o século XIX, descritas em
obras como O cortiço, de Aluísio de Azevedo, assim como os contrastes entre A escrava
Isaura, quase branca, ou as donzelas brancas casadouras de Jose de Alencar e suas negras
escravizadas. Tais estereótipos, que estigmatizam as mulheres negras, ainda hoje tentam
mantê-las nessa posição subaterna. Para ser escritora de sucesso, Carolina precisaria estar
condenada ao não prestígio e à vida material na favela, isto é, ao não pertencimento daquela
seara por onde circulam os grandes escritores. Estes, voltados a uma atividade escolarizada e
de prestígio, inatingível para uma “escritora vira-lata”. O trinômio negra, mulher e favelada
não poderia estar unido ao termo “escritora” porque seu corpo é um corpo de uso que tem a
159

humanidade negada, o mesmo que foi feito com a mulher negra ao longo da História do
Brasil72 .

Carolina de Jesus faleceu no sítio de Parelheiros, pobre e esquecida, na


madrugada de 13 de fevereiro de 1977, vítima de uma insuficiência respiratória. Carolina de
Jesus, no entanto, voltou à história de nossas letras em 1996, a partir das publicações
póstumas de extratos inéditos de três diários, em um livro que recebeu o título de Meu
estranho diário, e de uma coletânea de seus poemas intitulada Antologia pessoal, com revisão
do poeta Armando Freitas Filho e prefácio de Marisa Lajolo, ambos organizados por José
Carlos Sebe Bom Meihy.

Hoje, pode-se inferir que não foi por acaso que o fim do prestígio de Carolina de
Jesus coincidiu com o fim do populismo no país, e com a entrada em cena de uma política
levada a cabo pelos governos militares no início dos anos 1960, que pôs sob censura todos os
meios de contestação. É possível que algum resquício de memória do “populismo varguista”
permaneça na imagem da escritora saída da favela como emblema da democracia brasileira.
No entanto, paradoxalmente, no dia do lançamento de seu primeiro livro, a escritora saiu a
“catar” papel para poder alimentar seus filhos. Além do cenário criado na Livraria Francisco
Alves, em cuja vitrine foi colocada terra da favela para servir de base para os livros da
favelada, ainda, na gravação de um programa de TV, fizeram a reprodução de um barraco
como cenário73 .

Em 2003, o cineasta negro Jeferson De produziu Carolina, filme com o qual a


escritora tanto sonhara. Carolina foi apresentado na estreia do 31° Festival de Gramado, e
recebeu prêmio de melhor fotografia; depois, no mesmo ano, ganhou o “Kikito”, prêmio de
melhor filme, além de ter sido premiado na 3ª Seleção Petrobras. Em 2014, foi lançado o

72 Entre tantos outros casos, cito o final trágico da atriz negra Isaura Bruno retratado no documentário “A
negação do Brasil” (2000) de Zoel Zito Araújo. A venalidade que circundou a figura de Carolina de Jesus
também se repetiu na história de sua coetânea, a atriz Isaura Bruno que interpretou a figura de “mamãe
Dolores” (mães negras da literatura), personagem de destaque no primeiro grande sucesso de audiência da
telenovela brasileira dos anos de 1960, “O direito de nascer”. Após longo sucesso na mídia bras ileira, a atriz
participou apenas de três novelas nos seis anos seguintes após seu sucesso, e acabou seus dias vendendo doces
das ruas de São Paulo e morreu pobre, desconhecida, mas afirmando “que tinha tantas tristezas que não sabia
qual era a maior”. É de praxe na história do Brasil esse tipo de reconhecimento que des -reconhece, a inclusão
que exclui, um paradoxo que acompanha as zonas de contato entre negros de sucesso e as elites
predominantemente brancas.
73A repórter combinou com o senhor Homero Homem e resolveram transformar o programa de televisão,
apresentando-se num barracão com os filhos, o senhor Homero Homem e o senhor Barbosa Mello (JESUS,
1961, p.72).
160

documentário Vidas de Carolina74 , de Jéssica Queiroz, ganhador do prêmio “Criando Asas”;


também, o documentário Das nuvens pra baixo: favela substantivo feminino (mulheres da
favela da maré e Carolina Maria de Jesus), organizado pelos professores Marco Antonio
Gonçalves (Antropólogo, Professor da UFRJ) e Eliska Altmann (Socióloga, Professora da
UFRJ), além do filme norte-americano Precious (2009)75 , inspirado em Carolina de Jesus.

E, finalmente, no dia 14 de março de 2014, no Instituto Moreira Salles (IMS), por


ocasião do centenário da escritora, foi exibido o documentário Favela, a vida na pobreza
(Favela – Das Leben in Armut), dirigido por Christa Gottmann-Elter76 . Nessa noite, no
auditório do IMS estavam presentes, além do jornalista Audálio Dantas e da professora
Marisa Lajolo como debatedores, Vera Eunice, filha de Carolina de Jesus, e seus familiares.

Não se pode perder de vista o fato de que ambos os documentários, realizados no


ano instituído como sendo o do centenário de nascimento da escritora, fazem relação entre a
obra da catadora e a vida de outras tantas carolinas, mostrando, assim, a atualidade de seus
escritos.

74 O filme Vidas de Carolina conta a história de duas mulheres que sobrevivem da coleta de res íduos recicláveis.
O documentário foi inspirado na vida de Carolina de Jesus e traz relatos de familiares da escritora e trechos do
livro “Quarto de Despejo”, conectando as três histórias. A proposta em Das nuvens para baixo é parecida com
o filme de Jéssica Queiroz ao buscar conexões entre mulheres de hoje e Carolina de Jesus, mas aborda
mulheres que não são necessariamente catadoras, uma é cantora de samba, outra é cantora gospel, outra é dona
de um bar, outra é moto-taxista, outra é uma senhora migrante da Bahia, que mora na favela da Maré há 20
anos. A personagem de Carolina de Jesus aparece interpretada por uma atriz da Maré, que enuncia o seu
discurso; naturalmente, os discursos da escritora e das outras mulheres vão cria ndo conexões possíveis,
trazendo à tona sua subjetividade e sobretudo a favela falada no feminino. Ainda podemos citar a belíssima
peça de teatro pós-dramática, hiper-realista e permeada pelas metáforas e críticas da escritora denominada
Ensaio sobre Carolina, da Cia de Teatro, dirigida por Lucélia Sérgio no ano de 2007, tendo circulado até 2009,
e enquete especial durante no evento Prazer em (Re) conhecer, sou Carolina!, ocorrida no ano do centenário.
75Segundo Sérgio Barcellos, “Ao ser entrevistada por ocasião da adaptação de seu romance Push para o cinema
(Precious, EUA, 2009), Sapphire, escritora negra norte-americana, declarou espanto ao saber que Carolina
Maria de Jesus é pouco lida no Brasil: ‘Eu dava um curso baseado em diários de mulheres, Virginia Woolf,
Sylvia Plath, Frida Kahlo, Carolina Maria de Jesus. Os das brancas eram introspectivos. O dela falava de
classe, raça, luta por comida para os filhos’. A personagem Preciosa, que dá nome ao filme, foi, segundo a
escritora, parcialmente construída a partir da figura de Carolina: ‘Fico impressionada porque os brasileiros
dizem que nunca ouviram falar de Carolina de Jesus ou de seu livro. Nos EUA você compra facilmente’,
conclui Sapphire, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo” (edição de 23 de janeiro de 2010).
76 O documentário foi dirigido pela alemã Christa Gottmann -Elter, quando ela trabalhava na Fundação
Adenauer, no Brasil. Foi baseado em Quarto de despejo e protagonizado pela própria Carolina de Jesus, que
conta sua história. Até então não havia sido exibido no Brasil, mas o documentário foi mencionado várias
vezes na cronologia de Carolina de Jesus com o título livre de O despertar de um sonho. Pelo fato de expor a
extrema miséria na favela, o filme teria desagradado ao então embaixador do Bras il em Bonn (entre 1971 e
1972, o Brasil teve os seguintes representantes em Bonn: Paulo Nogueira Baptista, João Baptista Pinheiro e
Egberto da Silva Mafra), que vetou sua exibição no país. Recentemente restaurado e legendado em português
pelo Instituto Moreira Salles, recebeu o título de Favela, a vida na pobreza. O Instituto Moreira Salles, com
altos esforços, conseguiu recuperar o documentário que estava fora do Brasil (Favela – Das Leben in Armut;
Ano 1971; Duração 0:16’40’’)
161

Através das representações de Ruth de Souza, Zezé Mota, Gal Quaresma, Débora
Garcia e de Wilson Rabelo, que representam Carolina de Jesus em curtas e longas metragens,
documentários e peças de teatro, o leitor/expectador conhece uma mulher que não titubeava
em intervir nos acontecimentos históricos ou na esfera íntima, o que expressa um
temperamento destemido, crítico e irônico, típico de uma pessoa de tino, intuitiva, de
personalidade persuasiva, sonhadora, ousada, às vezes contida, irreverente, contemplativa e,
acima de tudo, com uma capacidade imensa de encontrar alegria e força no sofrimento, no
cansaço e na dor. Para finalizar essa breve biografia de Carolina de Jesus, é oportuna a citação
de Meihy:

A vida de Carolina é dessas que se dividem com perfeição em um antes e um


depois. Seu livro “Quarto de despejo”, lançado em 1960, serviu como
divisor de águas. No “antes” situa-se um vazio de registros, documentos e
sinais. Esse tempo, pode-se garantir apenas foi preenchido por uma memória
idílica promovida por ela mesma. No “depois”, no entanto, uma legião de
polêmicas textos narrativas, opiniões e testemunhos; dela própria e de
outros, dá conta da oportunidade, do estranhamento e do desconforto
ocasionados pela saliência que conseguiu ter não apenas no Brasil, mas,
muito mais, internacionalmente. Afinal, como explicar aquele enigma: uma
quase analfabeta reconhecida pela produção literária? Uma mulher catadora
de papel reconhecia como símbolo nacional? Uma representante da favela
entre autores do gabarito de Jorge Amado e Clarice Lispector? (MEIHY,
2004, p.40).

São estes os sinais e os fatos apresentados em documentos de seu acervo,


analisados nesta tese; análise esta que vem sendo realizada com o intuito de iluminar mais e
mais o perfil dessa mulher – nascida entre os despossuídos do mundo: negra, pobre, sem
herança –, mas que tanto nos seduz, e cuja obra tornou-se objeto de estudo por força de sua
singularidade. A biografia de Carolina de Jesus só tem sentido em conjunto com uma
cartografia da sua escrita predominantemente autobiográfica que é a gênese de seus
biografemas.
162

III.2 Fontes dos originais

Nous ne connaissons vraiment que ce qui est nouveau, ce qui introduit


brusquement dans notre sensibilité um changement de ton qui nous
frappé, ce à quoi l’habitude n’a pas encore substitué ses a pales fac -
similés.

(Marcel Proust)

Antes de ser descoberta, Carolina de Jesus tentou ganhar visibilidade procurando


editoras e redações de jornais, chegando mesmo a sair reportagens em jornais que ironizavam
a catadora de lixo que “se dizia poetisa”. Tanto os editores quanto os jornalistas atribuíram
pouca qualidade literária a seus escritos, mas a escritora, não desistindo do intento de ser lida,
começou então a enviar seus textos para o exterior, em especial para a Readers Digest de
Nova York.

Em Cinderela negra, Levine e Meihy, pesquisadores fundamentais da vida e obra


de Carolina de Jesus, revelam que encontraram com Vera Eunice, filha de Carolina, cerca de
37 cadernos, num total de 4.500 páginas manuscritas; porém, hoje sabemos que seus
manuscritos ultrapassam cinco mil folhas entre cadernos a que podemos ter acesso e outros
que não sabemos ao certo onde se encontram77 . Os estudiosos relataram que parte desse
material se apresentava em processo de deterioração, pois a “poeta do lixo” escrevia em restos
de papéis como, por exemplo, no verso de folhas avulsas de registros de despesas operativas,
assim como em cadernos utilizados por crianças, dos quais ela reutilizava cada espaço em
branco.

Na década de 1970 foi feito um projeto de edição de parte dos manuscritos de


Carolina de Jesus, organizada por Meihy e microfilmada em 1996, em convênio com a
Library of Congress (1ª aquisição). Os originais, referentes à 2ª aquisição, estão disponíveis

77Em “contos da rua”, Meihy (2010) nos informa que haveria um caderno de Carolina de Jesus na Biblioteca
Mindlin; porém, nessa Biblioteca (que hoje está hospedada na USP), desconhecem a existência do tal caderno.
Em troca de e-mail com o professor, foi-me dito que haveria um esforço de sua parte para recuperar o tal
manuscrito. No mesmo ano, Vera Eunice nos informou que há mais um caderno com um romance inédito em
posse de Arlindo Silva, jornalista que escreveu a biografia de Silvio Santos. Ela disse que chegou, inclusive, a
ameaçar o jornalista de briga judicial para recuperá-lo. Até o momento desta escrita, não há novas informações
sobre este assunto.
163

na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca do


Congresso em Washington D.C. Este dossiê é constituído de 11 cadernos, microfilmados em
11 rolos, datados de 1958 a 1963, contendo as seguintes denominações estabelecidas pela
Biblioteca Nacional (FBN): romances, diários, poesias, provérbios, recortes de jornais, contos
e textos autobiográficos, documentos diversos e fotografias. Segue a relação do conteúdo dos
11 rolos microfilmados e dividido em dois blocos de microfilmes MS 565 (rolos de 1 a 10) e
MS 524 (somente 1 rolo):

Rolo MS 565 (1)


Diários:
Caderno 1
Diários 18/05/60 a 20/06/60
Caderno 2
Diários 13/07/60 a 24/07/60
Caderno 3
Diários 05/08/60 a 08/08/60
Caderno 4
Diários 10/08/60 a 26/10/60

Rolo MS 565 (2)


Caderno 6
Diários 04/12/60 a 05/12/60
Diários 10/12/61 a 17/12/61
Caderno 7
Diários 27/01/61 a 22-02/61
Caderno 8
Diários 26/02/61 a 09/03/61
Caderno 9
Diários 10/03/61 a 03/04/61
Caderno 10
Diários 07/04/61 a 06/05/61
Caderno 11
Diários 07/05/01 a 21/05/61
Caderno 12
Diário 18/12/61

Rolo MS 565 (3)


Diários 30/10/58 a 02/12/58

Rolo MS 565 (4)


Coleção de Cadernos contendo Miscelânea- Parte 1

Caderno 1
Poesias, Provérbios e diário
Caderno 2
Texto não identificado e diário
Caderno 3
164

Provérbios e Texto não identificado


Caderno 4
Provérbios, diário e texto “O Brasil”
Caderno 5
Poesias
Caderno 6
Poesias e texto autobiográfico (SP, 08/02/71)

Rolo MS 565 (5)


Coleção de Cadernos contendo Miscelânea- Parte 2

“Datiloscritos esparsos contos” (números a mão de 1-121, das quais faltam as


páginas 14-17, 51, 63, 64, 79, 82, 99, e mais quatro páginas não numeradas).
Caderno 9
Poesias e peças teatrais intercaladas
Caderno 11

Fotos de Carolina; Foto dela com os filhos; foto com Ruth de Souza. Capa
mutilada. Páginas manchadas.
Recortes: documentos mutilados, rasurados, manchados ou incompletos.

Romances – Microfilmados em 4 rolos


Rolo MS 656 (6) [1ª parte]
Caderno 1
Romance Dr. Silvio (a partir da página 100 há tinta vazada de uma página para
outra)
Caderno 2
“Dr. Silvio”
Caderno 3
“Dr. Silvio”
Caderno 4
“Dr. Silvio”
Caderno 5
“Dr. Silvio”

Rolo MS 565 (7) [2ª parte]


Caderno 6
“Dr. Silvio”
Caderno 7
“Dr. Silvio”
Caderno 8
“Dr. Silvio”

ROLO MS 565 (8) [3ª parte]


Caderno 9
“Dr. Silvio”
Poesias, textos esparsos titulados, sete páginas de diário do dia 31/12/58
Caderno 10
“Dr. Silvio”
Caderno 11
165

“Dr. Fausto” (faltam páginas)


Caderno 12
(Continuação de um texto não encontrado)
Romance “Diário de Martha” ou “Mulher diabólica”
Caderno 13
Romance sem identificação ou conto “Helena”

Rolo MS 565 (9) (4ª parte)


Caderno 14
Romance “Rita”
Caderno 15
Romance “O escravo”
Caderno 16
Romance “A Felizarda”
Caderno 2
Há 80 páginas de um possível romance

Rolo MS 656 (10)


Coleção Audálio Dantas – São Paulo
Coleção composta por recortes de jornais, revistas, documentos diversos e
diversas fotografias.
Última Hora – RJ, 06/05/1960
Correio da Manhã – RJ, 29/05/60
Folha da Manhã - SP, 19/08/1960
Folha – SP, 20/08/60 [Lançamento do Livro Quarto de Despejo]
Correio Católico – Uberaba, MG, 20/08/60
Diário Popular – SP, 20/08/60
Folha da Tarde – SP, 20/08/1960
Folha da Noite – SP, 20/08/1960
Última Hora – RJ, 20/08/1960
Diário de São Paulo – SP, 20/08/1960
Diário da Noite – SP, 20/08/1960
Última Hora – RJ, 20/08/1960
Lista Dos Mais Vendidos – 21/08/1960 – 1ª Colocada
Última Hora – RJ, 21/08/1960
Última Hora – RJ, 23/08/60
A Gazeta – SP, 23/08/1960
Última Hora – RJ, 23/08/1960
Última Hora – RJ, 24/08/60
Folha de São Paulo – SP, 24/08/60
Última Hora – RJ, 25/08/60
Folheto de campanha de Adhemar de Barros contendo foto, citação e pequeno
texto) 26/08/60
A voz de São Paulo – SP 26/08/60
Diário da Tarde – SP 26/08/1960
Coluna Paisagem e Memória de Helena Silveira: “Carolina, Sabiá Cego?”, Folha
de São Paulo 27/08/60
Reportagem sobre saída da favela – n/i, 30/08/1960
Folha de São Paulo – 30/08/1960
Folha de São Paulo – 30/08/1960
166

Folha de São Paulo – 31/08/1960


Folha de São Paulo – 31/08/1960
A Gazeta – SP – 31/08/60
Revista A Esperança – SP, 31/08/60 => Alagamento faz com que moradores da
favela do Canindé abandonem seus barracos, após isso, distribuição de brinquedos
velhos, “Resta a esperança”
O Estado de São Paulo – SP, 31/08/60
Diário Popular – SP, 31/08/60
Jornal do Brasil – RJ, 31/08/60
Última Hora – RJ, 31/08/60
Última Hora – RJ, 31/08/60
Última Hora – RJ, 31/08/60
Última Hora – RJ, 31/08/60
Última Hora – RJ, 02/09/60

MS 524 (1) [11º Rolo]


“Romance” – SP, 1954

Após a microfilmagem das fotos e reportagens, dos textos de diversos gêneros e


alguns originais de romances, como “A Felizarda”, “Rita” e “O escravo”, os originais foram
doados, por Vera Eunice, ao Museu de Sacramento, que os guardava de maneira dispersa até a
chegada do pesquisador Sérgio Barcellos. Ele não apenas reorganizou os dossiês como
codificou os textos; também, pôde constatar muitos danos devido ao mau estado de
conservação e armazenamento desse material.

Em abril de 2015 foi publicado o “Guia do acervo de Carolina Maria de Jesus”


com organização de Sérgio Barcellos, uma obra fundamental, contendo diversos dos textos de
seus colaboradores na preparação do catálogo que inventariou as recentes atualizações do
acervo da escritora. A seguir, apresentamos um catálogo analítico (catalogue raisonné) ou um
índice geral que unifica as análises: isto é, “análise documentária e a codicológica [que], ao
mesmo tempo que reconstituem possíveis itinerários da criação (...) absorvem notas de cunho
historiográfico e genético da autoria dos pesquisadores”78 .

A organização do guia permite cruzar dados e preencher lacunas, pois o espólio


literário de Carolina de Jesus oferece uma documentação escassa se quisermos descrever as
diferentes etapas de seu processo criativo. Porém, a documentação é muito rica se pensarmos

78Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/marioscriptor_2/congressos/os -manuscritos-no-arquivo-e-na-biblioteca


-de-mario-de-andrade.htmle>
167

o contexto discursivo de sua produção, facilitando a abrangência dos estudos de profusão


histórica e sociológica nos debates em torno da obra da escritora.

Com efeito, a maior parcela dos textos literários começa a ser redescoberta e
organizada. É o caso da descrição dos cadernos do IMS, que não foram descritos em suas
especificidades no guia, mas que a oportunidade de ter podido conhecê-los, diretamente no
Instituto, possibilita agora delinear um percurso na sequência deste capítulo. Nesse sentido,
esta pesquisa não prescindiu do trabalho braçal, cujo esforço descritivo estende-se até a
organização do material pesquisado, conforme observado por Pino, ao traçar os caminhos da
crítica genética atual:

Hoje já contamos com muitos manuscritos em acervos, classificados,


transcritos e, algumas vezes, publicados. Isso permite que, pouco a pouco,
alguns pesquisadores se sintam liberados desse esforço descritivo inicial e
procurem interpretações mais amplas, que considerem os documentos de
processo, mas que também analisem os acervos das editoras, os recortes
críticos de um autor, a correspondência com outros escritores, os seus
documentos de leitura (PINO, 2014 p.269)79 .

Segue classificação geral do Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes


Cassimiro de Araújo Brunswick de acordo com as informações do guia, mais alguns ajustes,
quando necessários:

FUNDO CAROLINA MARIA DE JESUS


CONTEÚDO E ESTRUTURA
Datas-limite: 1958-1974
Itens: 37 cadernos autógrafos contendo: diário, romances, contos, provérbios, poemas,
quadras, textos curtos e narrativas autobiográficas; há documentos diversos, tais como:
projeto de tese de doutorado, jornais e revistas, livros, entre outros.
Data de entrada: 25 de janeiro de 1999
Forma de entrada: Doação
Origem: Vera Eunice de Jesus Lima
Localização: APMS 01.01.01 A APMS 12.04

79 Disponível em: <http://www.vidaporescrito.com/#!bibliografia-sobre-carolina/cwl>


168

Estado geral de conservação dos documentos: Os documentos autógrafos


encontram-se, em geral, em estado de regular. Há cadernos, porém, que estão danificados,
com páginas mutiladas, manchadas e sem capa. A descrição individual de cada caderno é
fornecida mais adiante.

ORGANIZAÇÃO DO ARQUIVO

O arquivo foi dividido em quatro séries, refletindo o arranjo efetuado pela equipe
de pesquisadores da FBN, quando da microfilmagem feita em 1996, a partir dos documentos
originais que, posteriormente, foram devolvidos à filha da titular. As quatro séries são
identificadas como:
- Diário;
- Romance;
- Miscelânea;
- Documentos diversos.

A série miscelânea compreende os seguintes tipos documentais, classificados a


partir do gênero literário ao qual pertencem: poesia, provérbios, contos, peças teatrais,
histórias curtas, máximas, quadrinhas e textos autobiográficos.

A série documentos diversos compreende peças documentais agregadas ao


arquivo por terceiros, tais como: termo de doação, certidão de nascimento, publicações
diversas, etc.

“O fundo Carolina Maria de Jesus”, parte do acervo do Arquivo Público


Municipal Cassimiro de Araújo Brunswick, em Sacramento, Minas Gerais, foi organizado e
indexado através da utilização do método numérico simples. Seguiu-se o primeiro
ordenamento do material, quase que idêntico em sua totalidade, o qual se encontra sob a
forma de microfilmes na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, no Acervo de Escritores
Mineiros, em Belo Horizonte, e na Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.

No conjunto de microfilmes, o acervo está identificado como:

- Projeto Carolina Maria de Jesus – Coleção Vera Eunice de Jesus Lima.


169

Composto por um conjunto de 11 (onze) rolos de microfilmes identificados pela seguinte


codificação:

MS – 565 (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7), (8), (9) e (10)
MS - 524

O código alfabético, MS, refere-se à localização do material na Divisão de


Manuscritos da instituição. O código numérico refere-se a sua localização dentro da Divisão
de Manuscritos, por exemplo, gaveta ou prateleira 565. A numeração entre parênteses refere-
se ao número do rolo de microfilme. O material que compõe cada rolo de microfilme é
identificado nos primeiros fotogramas, em uma espécie de índice ou tabela de conteúdo,
porém, sem a indicação da posição ou ordem do fotograma que compreende o material. Por
exemplo, no primeiro rolo, estão os cadernos contendo Diário, numerados de 1 a 5.

Para a classificação da documentação existente no Arquivo Público Municipal


Cassimiro de Araújo Brunswick optou-se por um arranjo que reflete o mesmo padrão daquele
elaborado pelos profissionais da Biblioteca Nacional – tanto em deferência a sua autoridade
no assunto quanto à intenção de uniformizar ou criar uma organização do material original
autógrafo equivalente àquela, referente ao material microfilmado da FBN, com o intuito de
facilitar as buscas e a identificação da documentação constante do arquivo.

Portanto, criou-se a sigla de identificação para a instituição: APMS, iniciais do


nome da instituição, para indicar a localização institucional da documentação. Em oposição,
foi utilizada a sigla FBN, para indicar a localização da documentação correspondente à da
Fundação Biblioteca Nacional.

Em seguida, optou-se por numerar as caixas ou repositórios materiais dos


cadernos seguindo – sempre que possível – a numeração dada aos rolos de microfilme. Assim,
em APMS, a documentação constante no rolo de microfilme 1 (MS-565 (1) está
acondicionada em uma caixa que recebeu igualmente a numeração 01.

Optou-se, também, por seguir a tipologia do material empregada pela equipe de


pesquisadores da Biblioteca Nacional e, em APMS, aos cadernos contendo Diário foi
atribuído a numeração 01; aos cadernos contendo Miscelânea, a numeração 02; aos contendo
Romances foi atribuída a numeração 03; e aos contendo documentos diversos, a numeração
04.
170

Assim, a codificação básica, ou notação, contendo a localização na caixa ou lote


documental e seu gênero ou tipologia, apresenta-se como:

APMS 01.01 – Arquivo Público Municipal de Sacramento, Caixa 01, Espécie “Diário”;
Realizando-se a equivalência de classificação, os cadernos autógrafos receberam a ordenação
conforme foi atribuída a eles na Biblioteca Nacional. No caso dos cadernos contendo Diário,
uma sequência cronológica. Assim, os cadernos contendo Diário, em APMS, estão indicados
pelos códigos:

APMS – 01.01.01 A 01.01.05


Indicação do número da caixa ou lote de documentos, nesse caso, “caixa 01”;
APMS – 02.01.06 a 02.01.12
Indicação da espécie ou gênero, nesse caso, “Diário”;
APMS – 03.01.13 a 03.01.15
Indicação do número do caderno: nessa caixa encontram-se os cadernos número 13, 14 e 15.
Em seguida, procedeu-se à classificação dos cadernos autógrafos restantes, contendo
Miscelânea e Romance, seguindo a mesma indexação. A numeração dos cadernos contendo
Romance respeitou o seguinte critério:
APMS - XX.XX.XX.X
Em que os dois primeiros dígitos do localizador referem-se ao número da caixa (caixas de
número 06 ao número 09; os dois dígitos seguintes referem-se ao gênero textual, no caso,
“romance” (03); seguidos por dois dígitos que se referem ao número dos cadernos e; o último
dígito indica o título específico, conforme relação abaixo:
- 1 Dr. Silvio APMS - 06.03.01.1 a APMS - 07.03.10.1
- 2 Dr. Fausto APMS - 08.03.11.2
- 3 Diário de Martha ou A mulher diabólica - APMS - 08.03.12.3
- 4 Romance não identificado APMS - 08.03.13.4
- 5 Rita APMS - 09.03.14.5
- 6 O Escravo APMS - 09.03.15.6
- 7 A felizarda APMS - 09.03.16.7

I DESCRIÇÃO DOS ITENS

Localização: APMS 01.01.01


171

Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977


Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 18/05/60 a 29/06/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(1) Caderno 1.
Descrição física: Caderno sem capa, lombada costurada, últimas páginas mutiladas.
________________________________________________________
Localização: APMS 01.01.02
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 13/07/60 a 24/07/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(1) Caderno 2.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado, lombada descolando.
________________________________________________________

Localização: APMS 01.01.03


Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 05/08/60 a 08/08/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(1) Caderno 3.
172

Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado.


________________________________________________________
Localização: APMS 01.01.04
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 18/08/60 a 26/10/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(1) Caderno 4.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado, lombada danificada.
________________________________________________________
Localização: APMS 01.01.05
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 26/10/60 a 03/12/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Regular
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(1) Caderno 5.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado. Há um recorte de jornal colado
no verso da capa.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.06
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 04/12/60 a 17/12/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
173

Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: As entradas do período de 10/12 a 17/12 estão com o ano incorreto. Trata-se de 1960 e
não 1961.
Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 6.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado, com folhas se soltando.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.07
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 27/01/61 a 22/02/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Regular
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Caderno encontra-se em exposição permanente no Museu Histórico Coralina Venites
Maluf, Sacramento, Minas Gerais. Há uma cópia xerográfica, com 31 folhas, na localização
referente ao caderno no Arquivo Público Municipal de Sacramento.
Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 7.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado, com folhas se soltando.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.08
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 26/02/61 a 09/03/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 8.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado.
________________________________________________________
174

Localização: APMS 02.01.09


Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 10/03/61 a 06/04/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Há uma inconsistência na data final. Na FBN, consta como 03/04/61 e no APMS,
06/04/61. Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 8.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado, com folhas se soltando.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.10
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 07/04/61 a 06/05/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 7.
Descrição física: Caderno com capa, impresso “Bilac”, acabamento grampeado, com
reprodução do Hino à Bandeira na quarta capa, que está rasgada.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.11
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 07/05/61 a 21/05/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
175

Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 11.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado. As últimas folhas do caderno
estão em branco.
________________________________________________________
Localização: APMS 02.01.12
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 18/12/61 a 20/12/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(2) Caderno 12.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado. Com entradas apenas nas
primeiras folhas.
________________________________________________________
Localização: APMS 03.01.14
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 29/10/61 a 19/11/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação:
Autenticidade: Cópia xerográfica
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(3). Neste rolo de microfilme encontram-se períodos de
entradas de diário incluídos em cadernos descritos como “Miscelânea”. Portanto, não estão
numerados como cadernos nos microfilmes.
Descrição física: 131 folhas.
________________________________________________________
Localização: APMS 03.01.15
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
176

Título: Diário
Local: São Paulo
Data: 20/09/62 a 16/12/63
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(3). No rolo de microfilmes da FBN, este caderno não está
numerado.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento em espiral, com marcas de oxidação.
________________________________________________________
Localização: APMS 04.02.02
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Diário e romance
Local: São Paulo
Data: 09/08/60
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(4) Caderno 2. Além da entrada de diário, há um texto longo,
em prosa. Provavelmente um romance não identificado.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado, com a lombada danificada e a
quarta capa mutilada. Na folha de rosto há a identificação “Diário 30”, na caligrafia da titular.
Há páginas manchadas e mutiladas. As últimas folhas do caderno estão em branco.
________________________________________________________
Localização: APMS 04.02.04
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Provérbios, com prólogo, diário e texto “O Brasil”.
Local: São Paulo
Data: 01/09/66 a 17/10/66
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssima
Autenticidade: Original
177

Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(4) Caderno 04.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado, lombada danificada, solta.
Diversas páginas mutiladas e fragmentos de folhas mutiladas. As últimas folhas do caderno
estão em branco.
________________________________________________________
Localização: APMS 04.02.05
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Poemas
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(4) Caderno 05. Contém, além de poemas, anotações diversas
e várias folhas em branco.
Descrição física: Caderno com capa, acabamento em espiral.
________________________________________________________
Localização: APMS 04.02.06
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Poemas, com prólogo
Local: São Paulo
Data: [? - Há uma anotação datada de 1967]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(4) Caderno 06. Na FBN, o caderno é descrito como contendo
texto autobiográfico, após o prólogo e os poemas. No caderno autógrafo, não consta o texto
autobiográfico.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado, lombada danificada e folhas
soltas. 222 páginas. Dimensões: 17 x 23.5 cm.
________________________________________________________
178

Localização: APMS 04.02.09


Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Provérbios
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Não foi localizado nos rolos de microfilme da FBN. Caderno contém provérbios e
inicia com: “Quem predomina mais nos paises são os ricos”.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado, lombada danificada e folhas
soltas. Dimensões: 15,5 x 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 05.02.09
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Peças teatrais: “Oh Se eu soubesse” e “A senhora perdeu o direito”.
Local: São Paulo
Data: [contém uma entrada de diário do dia 17/07/60]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(5) Caderno 09.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado com lombada danificada e folhas
soltas e mutiladas. Dimensões: 16 x 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 05.02.12
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Histórico.
Local: São Paulo
Data: 08/02/74
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
179

Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(5), identificado como “Documento esparso manuscrito”. Há
uma cópia xerográfica deste documento em APMS.
Descrição física: Documento manuscrito em duas folhas de papel almaço pautado, em seis
páginas. Dimensões: 22 x 32 cm.
_______________________________________________________
Localização: APMS 05.02.13
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Texto autobiográfico
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Caderno não localizado nos rolos de microfilmes da FBN. Na folha de guarda há uma
anotação: “Maria Luiza Romançe Carolina Maria de Jesus”, na caligrafia da titular. Trata-se,
provavelmente, de uma das versões de Diário de Bitita.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado com lombada descolando e folhas
manchadas e mutiladas. Dimensões: 16 x 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 06.03.01.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Regular
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Primeiro caderno (1/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado. Dimensões: 16 X 23,5 cm.
________________________________________________________
180

Localização: APMS 06.03.02.1


Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(6), caderno 2. Segundo caderno (2/10) do romance Dr.
Silvio.
Descrição física: Caderno com capa, acabamento em espiral. Falta a contracapa, há páginas
manchadas e mutiladas. Últimas folhas com manchas de queimado. Dimensões: 14 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 06.03.03.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(6), caderno 3. Terceiro caderno (3/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Dimensões: 17,5 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 06.03.04.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
181

Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(6), caderno 4. Quarto caderno (4/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno capa dura, acabamento costurado, com lombada danificada e solta.
Dimensões: 17 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 06.03.05.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(6), caderno 5. Quinto caderno (5/10) do romance Dr. Silvio.
Em 19 de agosto de 2014, o caderno encontrava-se em exposição na Câmara Municipal de
Sacramento.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado. Dimensões: 16 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 07.03.06.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(7). Sexto caderno (6/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Várias folhas danificadas e com
manchas. Contracapa solta.
________________________________________________________
Localização: APMS 07.03.07.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
182

Título: Romance Dr. Silvio


Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(7), caderno 7. Sétimo caderno (7/10) do romance Dr. Silvio.
Este caderno parece tratar-se de cópia do caderno 6.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Falta a lombada e a costura está
se desfazendo. Há folhas soltas e danificadas.
________________________________________________________
Localização: APMS 07.03.08.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(7), caderno 8. Oitavo caderno (8/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Há folhas manchadas e corroídas.
Dimensões: 15 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 07.03.09.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
183

Notas: Equivale a FBN MS-565(8), caderno 9. Nono caderno (9/10) do romance Dr. Silvio.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Há folhas manchadas e
mutiladas. A costura da lombada está se desfazendo. Dimensões: 15 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 07.03.10.1
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Silvio
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(8), caderno 10. Décimo caderno (10/10) do romance Dr.
Silvio.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. A costura da lombada está se
desfazendo e há folhas soltas e rabiscadas. Dimensões: 15 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 08.03.11.2
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Dr. Fausto
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(8), caderno 11.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Há folhas manchadas e
danificadas. A costura da lombada está se desfazendo. Últimas páginas manchadas e ilegíveis.
Dimensões: 15 X 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 08.03.12.3
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
184

Título: Romance Diário de Martha ou A mulher diabólica


Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(8), caderno 12.
Descrição física: Caderno com capa, acabamento em espiral. Há folhas manchadas e as
últimas folhas contêm exercícios [escolares] de matemática. Dimensões: 15 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 08.03.13.4
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance não identificado
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(8), caderno 13.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento grampeado. A lombada está danificada e a
última folha está manchada. Dimensões: 16 X 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 09.03.14.5
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance Rita
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(9), caderno 14.
185

Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. As folhas estão escurecidas e
manchadas. Há páginas mutiladas. Dimensões: 16 X 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 09.03.15.6
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance O escravo
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(9), caderno 15.
Descrição física: Caderno com capa plástica, acabamento costurado. Dimensões: 17 X 23 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 09.03.16.7
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Romance A felizarda
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Péssimo
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Equivale a FBN MS-565(9), caderno 16. Versão original do romance Pedaços da
fome, publicado pela titular (ver seção Produção bibliográfica da titular, neste guia. Há,
também, uma folha solta, com anotações a lápis, que parece pertencer a outro caderno, não
identificado.
Descrição física: Caderno sem capa, acabamento costurado. Lombada danificada. Há páginas
manchadas e mutiladas. Dimensões: 17 X 22 cm.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.01
Autoridade: [?]
186

Título: Documentos diversos: Termo de visita e de doação (1 folha) e Levantamento e relação


do acervo de Carolina Maria de Jesus (3 folhas).
Local: Sacramento
Data: Termo de visita e de doação: 25/01/1999
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Documento original (termo de doação) e impresso (levantamento)
Apresentação: Quatro folhas impressas
Notas: Os termos de visita e de doação contêm assinaturas de: Vera Eunice de Jesus Lima, Dr.
Nobuhiro Karashima (Prefeito), Carlos Alberto Cerchi (Vereador) e quatro assinaturas de
testemunhas não especificadas.
Descrição física:
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.02
Autoridade: Vogt, Carlos
Título: Documentos diversos: “Trabalho, pobreza e trabalho intelectual”
Local: [?]
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Texto impresso
Apresentação: Nove folhas impressas
Notas:
Descrição física:
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.03
Autoridade: Perpétua, Elzira Divina
Título: Documentos diversos: Projeto de tese
Local: [?]
Data: junho de 1995.
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Original
Apresentação: Texto impresso
187

Notas:
Descrição física: 10 folhas.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.04
Autoridade:
Título: Documentos diversos: Transcrição do depoimento de Dona Maria Puerta [para o livro
Cinderela Negra].
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade:
Apresentação: Texto impresso
Notas:
Descrição física: 07 folhas.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.05
Autoridade: Carolina Maria de Jesus, 1914-1977
Título: Documentos diversos
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Cópia
Apresentação: Manuscrito
Notas: Cópia da primeira folha de caderno contendo “Prólogo”.
Descrição física: 02 folhas, cópia em papel fotográfico.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.06
Autoridade:
Título: Documentos diversos:
Local: [?]
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
188

Conservação: Bom
Autenticidade: Original
Apresentação: Fragmentos de papel
Notas: Fragmentos com perguntas sobre a titular, dirigidas a sua filha, Vera Eunice. Evento
não identificado.
Descrição física: Diversos fragmentos de papel.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.07
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Documentos diversos
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Original
Apresentação: Camiseta de algodão
Notas:
Descrição física: Camiseta com estampa da Associação de Mulheres Carolina Maria de Jesus.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.08
Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977
Título: Documento esparso manuscrito não identificado
Local: São Paulo
Data: [?]
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Ruim
Autenticidade: Original
Apresentação: Manuscrito
Notas: Quatro folhas avulsas, sendo um original manuscrito frente e verso, aparentando ser
uma folha de diário. Duas folhas originais, manuscritas, com caligrafia diferente da titular.
Uma folha com gramatura maior, contracapa de um caderno.
Descrição física: Quatro folhas avulsas.
________________________________________________________
Localização: APMS 10.04.09
189

Autoridade: Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977


Título: Documentos diversos: Diário
Local: São Paulo
Data: 22/01/61 a 26/01/61
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação: Bom
Autenticidade: Cópia xerográfica
Apresentação:
Notas:
Descrição física: Cópia xerográfica de vinte e três páginas de diário.
________________________________________________________
Localização: APMS 11.04
Autoridade: Diversos
Título: Documentos diversos:
Local: Diversos
Data:
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação:
Autenticidade:
Apresentação:
Notas:
Descrição física: 1 edição de I’m going to have a little house (1997); 1 edição de Provérbios;
1 DVD do filme Carolina, dirigido por Jefferson D; 2 CD contendo artigos de jornais e
reportagens sobre a titular, referentes a FBN MS-565 (5) e (10), e artigos e textos do acervo
particular de José Carlos Sebe Bom Meihy; 2 conjuntos de cópias xerográficas de Provérbios;
1 cópia xerográfica de Pedaços da fome.
________________________________________________________
Localização: APMS 12.04
Autoridade: Diversos
Título: Documentos diversos:
Local: Diversos
Data:
Fundo: Carolina Maria de Jesus
Conservação:
190

Autenticidade:
Apresentação:
Notas:
Descrição física: 1 livro de assinaturas da Exposição Carolina Vive, realizada em Brasília, em
ocasião do cinquentenário pela publicação do livro Quarto de despejo, contendo assinaturas
diversas e fotos e impressos sobre o evento; 1 edição do jornal O Estado do Triângulo, Ano
XXXVI, nº 953, Sacramento, 12 de junho de 2005, contendo artigo sobre exposição sobre
Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, páginas 01 e 09; 05 exemplares da Revista Destaque
IN:
- Ano 2, nº 10, Sacramento e Região, julho de 1996, contendo artigo: “Carolina Maria de
Jesus – Infância e adolescência em Sacramento”, por C. A. Cerchi, p.21-26;
- Ano 11, nº 62, março e abril de 2005, contendo artigo: “Carolina Maria de Jesus no Kansas:
Uma história de amor”, por Eva Paulino Bueno, p.13-16;
- Ano 11, nº 63, maio e junho de 2005, contendo artigo: “A glória de Carolina Maria de
Jesus”, por Oswaldo de Camargo, p.16-22;
- Ano 13, nº 74, março e abril de 2007, contendo artigo: “Clarice Lispector e Carolina Maria
de Jesus – Ícones femininos da literatura brasileira”, por Alessandro Abdala, p.06-09:
1 exemplar de XI Concurso de Contos Petros – Homenagem a Carolina Maria de Jesus.
Editado pela Fundação Petros, Rio de Janeiro, 2011, 96p.
1 exemplar de Diário de Bitita, editado por Editora Bertolucci, Sacramento, 2007, 258 págs.

O Arquivo Municipal “Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Brunswick” de


Sacramento (MG) oferece a seguinte descrição dos documentos de Carolina de Jesus
disponíveis no local que discrepam da realizada com mais rigor no guia, e principalmente pelo
desaparecimento de parte do acervo como dos originais datilografados e as composições
musicais de Carolina Maria de Jesus:

Levantamento e relação do acervo de Carolina Maria de Jesus, doado por sua filha,
Vera Eunice de Jesus Lima, à comunidade de Sacramento, MG, que se encontra no
Arquivo Público Municipal “Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Brunswick”.

1 – Quadros, fotografias emolduradas e objetos pessoais:


1.1 Óleo sobre tela de Carolina Maria de Jesus, do autor S.Santistela-1974 (0,54m x
0,69m)
191

1.2 Um bico de pena “Diário de favelada” autor: Paiva (Mogi das Cruzes) com inscrição de
C.M. de Jesus no verso (0,35m x 0,28m)
1.3 Três quadros de família “Carolina e filhos, José Carlos e João José” (0,23m x 0,16m)
1.4 Um quadro “representação de um sonho” escritora Lara de Esteves (0,31m x 0,28m)
1.5 Um quadro “óleo sobre tela” de Carolina Maria de Jesus, autor José Pires de Lima
pintado, em 19/03/1995 (1,00m x 1,40m) encontra-se exposto na biblioteca pública Dr.
José Valadares da Fonseca em sacramento.
1.6 Um parafuso, objeto de metal com um cordão (tipo corda) ganhado pela Universidade
do Chile por seus escritos com a seguinte justificativa “a todo escritor falta um parafuso”.
2 – Livros, apostila (Publicações do Brasil e exterior):
2.1 Edição Russa do “Quarto de Despejo – Kossuth Konyvkiado, 1964”.
2.2 Ed. Inglesa de “casa de Alvenaria” University of. Nebraska press, Lincoln and London
– 2 volumes.
2.3 Ed Brasileira de “Quarto de Despejo”, da Ed. Francisco Alves da 1ª edição (com
dedicatória da escritora), 1960. Edição de bolso (2ª edição) 1976
2. 4 “Cinderela Negra” (a saga de Carolina Maria de Jesus), de José Carlos Sebe Bom
Meihy e Robert M. Levine, Editora UFRJ, 1994
2.5 “Provérbios”, de Carolina Maria de Jesus, 2 volumes, edição da escritora, 1964
2.6 “Brasilian Authors Translated Abraad” (relação dos livros mais vendidos na França)
Fundação Biblioteca Nacional do Ministério da Cultura, 1994
2.7 “Brasilian Novel Catalog” (relação de autores brasileiros fund.), da Biblioteca
Nacional, Ministério da Cultura, 1994
2.8 2 rolos k7 gravados das músicas de Carolina Maria de Jesus, com o respectivo catálogo
de 12 composições “Quarto de despejo”
2.9 Afro-hispanic Review, vol. XI n.º 1-3 “A menor mulher do mundo”
3 – Manuscritos inéditos (romances e fragmentos de poesias, crônicas, contos inéditos e
publicados):
3.1 Romances inéditos – títulos:
- Diário de Marta ou mulher diabólica – 1 caderno
- O Escravo- 1 caderno – Rita – 1 caderno
- Felizarda – 1 caderno
- Dr. Fausto – 1 caderno
- Dr. Silvio – 10 cadernos
- Maria Luiza – 1 caderno
192

- Relacionados em maços
3.2 Diários
- 18/5/1960 a 29/6/1960 – 1 caderno
- 5/8/1960 a 8/8/1960 – 1 caderno
- Diário 13/07/ 1960 – 1 caderno
- 26/10/ 1960 a 3/12/1960 – 1 caderno
- 7/5/1961 a 6/05/1961 – 1 caderno
- 4/12/1960 a 17/12/1961- 1 caderno
- 18/12/1961 – 1 caderno
- 26/2/1961 a 9/3/ 1961 – 1 caderno
- 10/3/1961 a 3/4/1961 – 1 caderno
- 24/12/1960 a 26/1/1961 – 1 caderno
- 1/09/1966 – 1 caderno
- Meu estranho diário de 143 páginas – 1 caderno
- Dados autobiográficos – poemas – 1 caderno
- Diários m9/8/1960 – 2 cadernos
- Provérbios e diários 30/10/1958 a 4/12/ 1958 – 1 caderno
- Escrito de identificação difícil (romance) – Poemas – 1 caderno
- Cartas esparsas e histórico de 8/02/1974 – Xerox original
- Xerox (duplicado) de janeiro de 1961 – Xerox (Meu Estranho Diário), 129 págs.
4 – Peças inéditas de teatro:
- Carolina o luxo do lixo
- But the eyes are blind one must look with the heart…
- From “the little prince”

Embora na contagem da relação acima conste um total de 37 cadernos autógrafos,


contabilizando, então 11 cadernos microfilmados, com exceção de 1 caderno, os demais estão
em Sacramento.

O que nos chamou atenção nesse dossiê foram as novas versões do texto que
reaparecem na publicação de Diário de Bitita. O caderno de capa dura, acabamento em
costura medindo 16 X 23 cm pertencente ao lote 007.111 com a seguinte anotação na Folha
de rosto: “Maria Luiza, Romance, Carolina Maria de Jesus”, consiste numa autoficção da
193

trajetória de Bitita que no romance segue caminhos de boa ventura embora tenha sido
rejeitada pela família desde a tenra infância por ter nascido semimorta.

Em 2006, Clélia Pisa fez entrega ao IMS do Rio de Janeiro de dois cadernos que
Carolina de Jesus havia deixado com ela e com a jornalista francesa Maryvonne Lapouge nos
anos setenta. Ambos os cadernos manuscritos acondicionados no IMS correspondem ao
“Fundo Carolina Maria de Jesus.

Esta versão das memórias manuscritas enformaram a elaboração de Journal de


Bitita. O primeiro é composto de textos e poemas, dentre os quais estão os títulos “Meu
Brasil”, “Súplica do encarcerado” e “O marginal”. Este caderno tem 392 páginas e foram
todas preenchidas pela escritora. O segundo caderno abre com o título “Um Brasil para os
brasileiros: contos e poesias”. É composto de 194 páginas preenchidas pela escritora.
Apresenta um extenso prólogo de abertura para o livro de poesias idealizado pela escritora.

Vale dizer que foi no sítio em Parelheiros, depois passado o furor do sucesso que
havia envolvido a figura de Carolina de Jesus como escritora da favela que, longe dos
holofotes e microfones, a escritora pôde reescrever suas memórias, nesses dois cadernos, de
maneira mais elaborada e repensada. Os manuscritos foram, depois, datiloscritos por seus
filhos e por um pároco da cidade. Assim como alguns romances, como Dr. Silvio, os poemas
mesclados a suas memórias já vinham sendo escritos mesmo antes da publicação de Quarto
de Despejo.

O dossiê é composto do seguinte conteúdo, descrito na capa da pasta pelo IMS e


dos textos enumeradas e classificados a seguir. Em primeiro lugar a descrição que segue
corresponde ao caderno com maior número de páginas, iniciado com o poema intitulado
“Meu Brasil” e seguido dos demais textos na seguinte ordem:

Fundo Carolina Maria de Jesus


Acervo IMS
Arquivo CMJ
BR IMS CLIT Pi 0002
Incip: “Meu Brasil”
[…]
194

Data: [196-]
Nota: O Sócrates africano (p.86) foi publicado no livro Cinderela Negra (1994), de
Robert M. Levine e José CSB Meihy
- Meu Brasil
- Inspiração
- Lua de mel
- Suplica de mãe
- Deus!
- Saudades de mãe!
- Suplica do encarcerado
- Vai Vai
- Minha filha
- Poéta
- O ébrio
- Prece de mãe
- O infeliz
- Sou feliz
- O marginal
- Dr. Adhemar de Barros
- Mae, amor é sempre mãe

Na sequência, a partir da página 37, começam algumas das narrativas inéditas que
foram também datilografadas numa nova versão, apresentando algumas alterações, sobretudo
correções e rearranjos que podem ser verificados no rolo do microfilme intitulado Miscelânea
II pela FBN. A seguir, encontra-se a sequência do caderno alocado no IMS:

- O chapéu (37-40)
- Os óvos (41)
- (...) A minha mãe ganhóu o meu primo Adão (42-61)
- Minha madrinha (43-61)
- A árvóre do dinheiro (62-65)
- São Paulo (66-75)
195

- O Sócrates Africano (76-101)


- A interferência fatal (102-106)
- Minha irmã (106-108)
- A panela (109)

Na página 116 começa uma longa narrativa sem título, mas que perfaz o histórico
de seu tio que vai até o final deste caderno.

O segundo caderno é menor e parece ser o livro de poesia idealizado por Carolina
de Jesus, intitulado por ela mesma como “Cliris”. Podemos ler ali uma das versões do
“Prólogo”, escrito da página 1 até a 63, antes dos poemas, e tem a seguinte descrição pelo
Instituto Moreira Salles:

Fundo Carolina Maria de Jesus


Produção Intelectual
BR IMS CLIT Pi 0001
Título: Um Brasil para brasileiros
Data: [196-]

A partir da página 64 começam os poemas na seguinte sequência:


64- A carta
67- Pór que
70- Riso de Poeta
71- Uns bêijos
73- As aves
75- Mamãe
77- Trinado
79- Solteirona
82- Solteirona
85- A passarada
87- A rósa
88- Ingênuidade
89- Mistério
90- Desilusão
196

92- Noivas de maio


94- Metade da folha poema “Getulio Vargas”
98- Mentira
100- Remorço
102- “Presente”
103- Negrós
104- Devanêio
106- O Colono e o fazendeiro
109- Pobre inocente
112- Segredo oculto
113- O turco e o Lampião
114- Quero-lhe
115- Meu avô
116- Estátua de pedra
117- “Visita”
118- Festa dos bichos
120- O exilado
121- Em que pensas?
122- Carta de luto
124- Atualidades
126- A vida
127- Noite de São João
128- Reminiscências
129- Dá-me rósas
130- Ao meu amór
131- Tristêza
132- Hepocresia
133- Dona Leónor
136- Os feijões
137- O prisioneiro
139- Minha pátria
141- Rica e pobre
142- O devoto
144- O pequenino
197

145- Súplica de um cego


146- Maria Rita
148- Maria Rosa
151- Evocação
152- A velhice e a mocidade
154- O filho
157- poema em prosa com características de fábula
158- Vidas
160- Meus filhos
161- Quadras (A partir daqui começam os provérbios)
178- O caipira
179- Decepção
181- O Homem
182- Anceio
184- Ino do amor
188- Kennedy
189- O espedicionário
190- Prisão de amor
192- Primeiro amor
194- Pressentimento

Analisando este caderno pode-se supor que ele contém seus últimos escritos e
que, por isso, também, está entre os últimos cadernos manuscritos. No momento dessa escrita,
Carolina de Jesus já estava saturada das “ordens vindas de seus interlocutores” e voltou a
escrever à sua maneira, pois no sítio, onde permaneceu até o fim de seus dias, estava livre de
imposições e do foco das lentes alheias.

No caderno sem título ela volta a misturar gêneros a seu bel-prazer, e segundo a
fruição da hora, ou talvez porque, novamente, como descreve em seus últimos diários, tivesse
retornado à pobreza, mas voltado a escrever em vantagem de si mesma. Menos dinheiro, mais
tempo para escrever, este movimento acompanhou o processo de produção de Carolina de
Jesus. E, por isso, por ter voltado a “catar” discursos e recursos da memória na continuação da
criação de sua poética de resíduos, ela retoma a expressão de sua “experiência na pobreza”.
198

Ao entregar os dois cadernos de memórias para as jornalistas, deixou ao encargo delas o rumo
das obras, como Clélia Pisa nos afirmou em entrevista80 .

Em 2011, Audálio Dantas doou à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro um novo


dossiê que consta de 14 cadernos, contendo diversos gêneros, mas predominando o gênero
diário81 e 22 fotografias. Desses manuscritos, apenas o Caderno de número 11, datado de
04/12/1958 a 19/12/1959, foi digitalizado e encontra-se disponível no catálogo digital da
biblioteca. A seguir, a descrição completa do material que se encontra na FBN:

COLEÇÃO CAROLINA DE JESUS


Datas-limite: 1958-1963
Dimensões: 11 rolos de microfilme; 14 diários autógrafos e fotografias.
Data de entrada: 1996
Forma de entrada: Doação
Origem: Vera Eunice de Jesus Lima, filha da titular (1996) e Audálio Dantas (2011)

CONTEÚDO E ESTRUTURA
Romances, diários, poesias, textos, provérbios, recortes de jornais, documentos diversos e
fotografias.
Acréscimos: 14 diários autógrafos (Divisão de Manuscritos) e fotografias (Divisão de
Iconografia) doados por Audálio Dantas em 27/06/2011.

NOTAS:
A coleção foi organizada por José Carlos Meihy e microfilmada em 1996, em convênio com a
Library of Congress (1ª aquisição); o acervo original foi devolvido à proprietária, Vera Eunice
de Jesus Lima. Os originais dos 14 diários referentes à 2ª aquisição estão disponíveis na
Divisão de Manuscritos. O Caderno 11 está disponível na BN Digital.

-------------------------------------------------------------------------

80“RF: A senhora consegue se recordar da frase que ela disse quando entregou os originais em suas mãos?/; CP:
“Veja se vocês podem fazer alguma coisa com isso!”. Mas não com “isso”, mas com a obra de outra relação.
Por isso eu me sentia moralmente obrigada a ver. É mais o desespero” (Revista Scripta, 2014, p.301).
81DANTAS, Audálio. Tempo de reportagem: histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro. São Paulo:
Leya, 2012, p.27 e 31.
199

Localização: MS-565 (1-10); MS-524 (1); 47, GAV1,01-14.


-------------------------------------------------------------------------

MICROFILMES DA COLEÇÃO:

-------------------------------------------------------------------------

Localização: MS-524
JESUS, Carolina de. Romance. São Paulo, 1954. Coleção Carolina de Jesus.
Localização: MS-565 (1-10)
COLEÇÄO Vera Eunice de Jesus (Projeto Carolina de Jesus). Coleção Carolina de Jesus.

-------------------------------------------------------------------------

DOCUMENTOS MANUSCRITOS DA COLEÇÃO:

Localização: 47, GAV1, 01

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Caderno 1 contendo as memórias da escritora.

Local: São Paulo

Data: 15/07/1955-28/07/1955

Paginação: 73 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Em anexo: Nota contendo memórias retroativas de 1948 intitulado


“Favela”
Notas:
Consta ao fim do caderno conto intitulado “Oh! 3 de outubro!” e
rascunho de carta a José expressando seu afeto.

Registro 1.352.126-10/02/2012 D
200

Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 02

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Primeiro Diário

Local: São Paulo

Data: 02/05/1958-15/06/1958

Paginação: 389 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mass.

Este caderno marca o início da segunda fase dos manuscritos da


Notas:
escritora.

Registro
1.352.127-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 03

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Segundo Diário. Caderno 2

Local: São Paulo

Data: 15/06/1958-08/08/1958

Paginação: 394 p.
201

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Consta na folha de rosto anotação da escritora: “Diário, continuação.


Notas:
Segundo diário”.

Registro
1.352.128-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 04

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário Continuação. 3º Diário.

Local: São Paulo

Data: 08/08/1958-22/08/1958

Paginação: 100 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro
1.352.129-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 05


202

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário Continuação. 5º Diário.

Local: São Paulo

Data: 24/09/1958-30/09/1958

Paginação: 92 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro
1.352.130-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 06

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário Continuação. 6º Diário.

Local: São Paulo

Data: 01/10/1958-18/10/1958

Paginação: 92 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Boa

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro
1.352.131-10/02/2012 D
Patrimonial:
203

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 07

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Caderno nº 11.

Local: São Paulo

Data: 04/12/1958-19/12/1958

Paginação: 97 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

OBRA DIGITALIZADA – Consta na BN Digital:


Notas:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html

Registro
1.352.132-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 08

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Caderno nº 12.

Local: São Paulo

Data: 20/12/1958-29/12/1958

Paginação: 96 p.

Coleção: Carolina de Jesus


204

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Falta a capa do caderno.


Notas:
Caderno continuação do nº11.

Registro
1.352.133-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 09

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Caderno nº 13.

Local: São Paulo

Data: 02/02/1959-24/02/1959.

Paginação: 55 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas: Faltam as páginas iniciais do diário.

Registro
1.352.134-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 10

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977


205

Título: Diário 14.

Local: São Paulo

Data: 29/04/1959-12/05/1959

Paginação: 102 p. 02 docs.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Consta em anexo ensaio sobre a eleição presidencial brasileira de


Notas:
1960.

Registro
1.352.135-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Favelas - São Paulo (SP).
Assuntos:
Presidentes - Brasil - Eleições
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 11

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário 16.

Local: São Paulo

Data: 28/05/1959-[12/06/1959]

Paginação: 96 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro 1.352.136-10/02/2012 D
206

Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 12

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário 18.

Local: São Paulo

Data: 24/07/1959-27/07/1959

Paginação: 24 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro
1.352.137-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 13

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário 19.

Local: São Paulo

Data: 30/07/1959-04/08/1959

Paginação: 24 p.

Coleção: Carolina de Jesus


207

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Notas:

Registro
1.352.138-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.

Localização: 47, GAV1, 14

Autoridade: JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977

Título: Diário 21.

Local: São Paulo

Data: 27/10/1959-24/12/1959

Paginação: 396 p.

Coleção: Carolina de Jesus

Conservação: Regular

Autenticidade: Orig.

Apresentação: Mss.

Em anexo: Nota contendo memórias retroativas de 1948 intitulado


Notas:
"Favela"

Registro
1.352.139-10/02/2012 D
Patrimonial:

JESUS, Carolina Maria de, 1914-1977.


Assuntos: Favelas - São Paulo (SP).
São Paulo (SP) - Condições sociais.
208

Até o momento foram mapeadas cinco instituições brasileiras que guardam o


acervo literário de Carolina de Jesus, seja na forma de manuscritos, de cadernos autógrafos ou
de microfilmes:

- 37 cadernos no Arquivo público Municipal “Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo


Brunswick” de Sacramento (MG)
- 14 cadernos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
- 2 cadernos no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro
- 1 caderno no Museu Afro Brasil em São Paulo
- 2 cadernos na Biblioteca Mindlin na Universidade de São Paulo (ainda não localizados)82

Há, portanto, um total de 56 cadernos analisados e mais 1, supostamente sob a


posse de Arlindo Cruz, conforme informação de Vera Eunice de Jesus Lima.

Após esse ordenamento do acervo, pôde-se perceber que, a partir de sua


descoberta, Carolina de Jesus criou uma organicidade para seus cadernos, separando-os por
gêneros. Como constatamos, a partir dos cadernos guardados em Sacramento, somam-se 14
cadernos em forma de diário; 16 cadernos contendo romances, sendo dez cadernos dedicados
ao romance “Dr. Silvio”; seis romances: “Dr. Fausto”, “Maria Luiza”, “O escravo”, “Rita”,
“O diário de Martha” ou “A Mulher diabólica” e “A Felizarda”, e ainda seis cadernos
classificados como Miscelânea, divididos em dois rolos de microfilme (MS-565: 4 e 5)
contendo, segundo a descrição da FBN “poemas, provérbios, correspondência, peças teatrais,
recortes de jornais e revistas, partituras musicais” entre outras facetas narrativas não
decifradas pelos descritores, porém analisadas nesta pesquisa. Nos cadernos há um padrão de
dois Prólogos e, na sequência, o que viria a ser seu livro de poemas “Cliris”, e outro para seu
livro de provérbios. Nesses cadernos há também diversas narrativas e algumas anotações do
cotidiano, como fazia em seus diários, e ainda peças teatrais, quadrinhas, narrativas curtas
denominadas por ela como “humorismo” – mas que estavam mais para ironia e sarcasmo –, e
ainda pensamentos e anotações diversas.

82Há cópias dos microfilmes resguardados no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp, doadas em 2010
por Mário Augusto Medeiros Silva, utilizados e adquiridos para sua pesquisa junto à Fapesp, no Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP), da Unesp de Assis, solicitadas por mim e compradas pelo
programa de Pós-Graduação em Literatura e Vida Social (2008); em 2012, a professora Sueli M. Liebig
adquiriu 80% dos microfilmes, contendo diários, poemas e fragmentos de um romance para UEPB via
PROPESQ e, finalmente, em 2014 Meihy doa para Arquivo Público Mineiro em Belo Horizonte uma cópia dos
microfilme da FBN que estavam em sua posse.
209

A partir do exame de sua produção, percebe-se que Carolina de Jesus desenvolve


um labor literário com seriedade em seu fazer criativo, não sendo ele resultado apenas de um
“mero acaso do lapso da escrita de uma ‘cinderela negra’”. Nosso estudo genético 83 contraria
as teses que insistiram em relegar sua obra ao testemunho ou “fruto de uma mistificação
literária”, como escreveu Wilson Martins no Jornal do Brasil, em 23 de outubro 1993 84 ,
reportagem redigida em ocasião da reedição de Quarto de despejo pela Editora Ática.
Segundo Audálio Dantas, essa afirmação de Martins gerou polêmica e o jornalista chegou,
inclusive, a processá-lo juridicamente por difamação e calúnia. Como foi dito 2011, Dantas
resolveu doar os 14 cadernos que deram origem ao best-seller de Carolina de Jesus, para que a
autenticidade dos textos da escritora pudesse finalmente ser confirmada, ficando à disposição
para consultas do público na FBN.

Como vimos, o modo como os manuscritos de Carolina de Jesus estão codificados


na FBN não permite conhecer os caminhos do processo criativo de Carolina de Jesus. A
dispersão e a diversidade desses cadernos não favoreceram a organização de uma lógica
sequencial, tanto devido à ausência de datação nos textos quanto pelo caráter múltiplo da
utilização dos gêneros dentro de um mesmo caderno como naqueles intitulados nos
microfilmes como “Miscelâneas”. No entanto, no cotejo dos datiloscritos da FBN, dos
manuscritos no Museu de Sacramento e nos cadernos do IMS foi possível observar que a
escritora havia organizado de um modo estratégico o livro de suas memórias, totalmente
diferente daquela formulada pelas jornalistas. Foram selecionados alguns textos que
marcadamente contavam sua história, seja através da linguagem poética ou autobiográfica, na
escolha de episódios significativos de sua vida que corresponderiam a “Brasil que não é dos
brasileiros”, em contraposição a “Um Brasil para os brasileiros”, frase que daria nome a seu
livro – que foi publicado com o título “Diário de Bitita”, configurando-se uma estratégia de
marketing85 , em detrimento da vontade da escritora.

Esta frase foi muitas vezes anunciada por Carolina de Jesus como fala oriunda de
Rui Barbosa, repetida por seu avô. Assim, o caráter de denúncia e ironia que marca o estilo da

83De acordo com Ancona Lopez, “O conjunto das versões, etapas e rasuras, em um manuscrito, ou das variantes,
nas versões publicadas, multiplica um texto, nele fundindo diversos textos diale ticamente coexistentes e assim
possibilitando muitas leituras” (ANCONA LOPEZ, 1994, p.68).
84 MARTINS, W. “Mistificação literária”. Jornal do Brasil, 23 out. 1993. Caderno Ideias, Livros, p.4.
85Em entrevista, Clélia Pisa disse que Carolina de Jesus não teria condições psicológicas de fazer escolhas sobre
seu livro, reforçando desse modo o estereótipo de uma Carolina de Jesus “louca” que, ao final de sua vida, via -
se na condição de uma mulher “fracassada e derrotada” (Revista Scripta, 2014).
210

escritora foi suprimido na recomposição desses dois cadernos. Mais uma vez a edição de um
livro da escritora acaba por solapar o processo criativo de Carolina de Jesus, por não levar em
consideração a reutilização e apropriação que ela fez de uma fala emblemática de Rui
Barbosa, parafraseando justamente aquilo que cabe para colocá-la em xeque diante das
condições reais dos brasileiros pobres e negros. No dia 24 de outubro de 1972, Carolina de
Jesus concedeu uma reportagem ao jornal “O Globo”, durante a qual anunciou um novo livro,
ainda em preparo, nomeado por ela “Um Brasil para brasileiros”. Ao comentar o conteúdo do
livro, ela diz:

São coisas do meu tempo de menina, lá em Sacramento. Mas esse vai ser um
livro humorístico, que quase nada tem de dramático. Atos pitorescos que eu
vivi, lembranças de meu avô – ele punha ordem na casa – de sua morte e a
família se dissolvendo. (...) tem um capítulo em que conto as visitas que
fazia à minha tia. Ela só tinha uma panela e punha as mãos na cabeça,
sabendo que teria de acordar as três da manhã, para cozinhar o feijão,
despejá-lo numa vasilha e colocar couve para refogar. (O Globo, 1972)

Na sequência da entrevista, recebemos mais informações sobre os datiloscritos de


“Um Brasil para brasileiros” que, segundo Vera Eunice de Jesus Lima, também foram levados
pelas jornalistas, além dos dois cadernos manuscritos:

De seu livro, por enquanto, Carolina só tem o título e algumas páginas mal
datilografadas pelo pároco de Parelheiros, Frei Luís. – Ele é italiano e muitas
das coisas que eu escrevi não deu para entender. Vou ver se encontro um
jornalista amigo que me faça esse trabalho. (...). Suas lembranças de infância
– ela acredita – servirão de exemplo para a gente pobre, como ela foi e
voltou a ser. (O Globo, 1972)

Anteriormente, numa reportagem para o “Notícias populares” de 12 de setembro


de 1967, lemos a seguinte declaração: “Longe de tudo e de todos Carolina escreve dramas”.
Nessa matéria, o jornalista, de modo não ético, aponta a origem da escritora e a figura
importantíssima de seu avô, mas apresentando uma Carolina de Jesus derrotada e amargurada,
que volta a escrever suas memórias apenas em troca de dinheiro:

Para arranjar dinheiro, ela vai fazer uma coisa que nunca mais gostaria de
fazer: publicar um livro. – Antologias, ou recordações de família – e encenar
dois dramas <<Alair>>, uma espécie de autobiografia, e <<O Botão>> uma
211

história infantil./ Ela gosta muito de antologias e é com entusiasmo que fala
e escreve de seu avô, um preto velho analfabeto, que em Sacramento, lá em
Minas Gerais, era chamado de Sócrates Negro. No livro ela fala também e
muito dos operários, os grandes construtores da nação. E faz uma pergunta:
Para onde vai o Brasil? 86

Na reportagem da Gazeta de Santo Amaro, de 8 de outubro 1966, ela faz uma


anotação a caneta: “Escrevia, mas não me pagavam”. Vemos que ela organizava suas
reportagens, pois almejava posteridade, do mesmo modo como o fazia João Antonio 87 , sendo
que este último, supostamente, chegou a colocar fogo na primeira edição de seu livro
Malaguetas, Perus e Bacanaço para chamar atenção para seus manuscritos, e as modificações
que sua obra sofrera após esse episódio, criando um automito. (ORNELLAS, 2008)

Talvez Carolina de Jesus não tenha sido uma arquivista sistemática como João
Antonio, mas não nos escapam alguns vestígios de sua trajetória, organizados nesses cadernos
com recortes de jornais e revistas, com marcações de caneta, comentários ou correções
redigidos com a letra da escritora, arquivados no segundo rolo de Miscelânea. (FBN, MS-
506:5, FTG 493-FTG 547)

Ainda sobre a imagem do final trágico e derrotista que a mídia brasileira queria
reforçar sobre Carolina de Jesus, a Folha de S.Paulo do dia 29 de agosto de 1975 traz a nota:
“Hoje Carolina Maria de Jesus vive quase esquecida num sítio em Parelheiros e não quer mais
nada com a literatura: ‘Agora só se faz pornografia; eu já estou fora de moda’”.

Noutra reportagem intitulada “Carolina, vítima ou louca?”, realizada por Regina


Penteado, também publicada na Folha de S.Paulo de 1 de dezembro de 1976, a jornalista
descreve a casa do sítio da escritora fazendo referências explícitas a sua pobreza, ressaltando
os aspectos de sua vida literária:

86Partindo dos subsídios oferecidos através desse “arquivo da criação”, isto é, a menção nesta reportagem da
produção destes textos concomitantemente à escritura de seu título “Um Brasil para brasileiros”, assim como
alguns levantamentos de pequenas publicações esparsas em revistas e jornais, como observa Perpétua (2014)
ao citar a publicação do conto “O japones” na Revista Claudia; podemos inferir que as duas peças teatrais,
“Alair” e “O botao”, bem como as narrativas “O japonês”, “A esposa do judeu errante”, “Quando a ve lhice
chegar” e “A fatalidade de Helena” podem estar em algum dos dois cadernos, desaparecidos até o momento, da
Biblioteca Mindlin.
87
João Antonio foi um escritor que, assim como Plínio Marcos, acima referenciado, também tratou temas da
marginalidade social. Ficou notabilizado por seu livro Malagueta, Perus e Bacanaço em 1963.
212

O cômodo onde nos faz entrar, embora pobre e mal-arrumado, também está
muito limpo. Tem chão de cimento, uma pequena mesa ao centro e, numa
das paredes, uma estante cheia de livros, na sua maioria bem velhos. Entre
eles podem se ver “Os miseráveis”, de Vitor Hugo, “Os sertões”, de Euclides
da Cunha, e “Quincas Borba”, de Machados de Assis. Sobre sua escrita dizia
que, agora sim, está escrevendo bem, porque “os padres de Parelheiros me
deram lições”. Disseram assim: “Vou pôr você, – não igual o Jorge Amado,
mas quase igual”.

No entanto, longe de beirar a “loucura” ou aparentar ares de vitimização, quase


sempre reforçada pelas matérias veiculadas nos jornais da época, Carolina de Jesus
continuava registrando suas inquietações diante da vida, como se pode ler em reportagem do
dia 11 de dezembro de 1976, no Jornal do Brasil, em ocasião do lançamento da edição de
bolso de seu livro Quarto de despejo pela Edibolso:

O moço que ia publicar mudou o livro todo, tirou as expressões bonitas, não
gostei. Os americanos querem publicar mas não conseguem encontrar
tradutor. Os tradutores brasileiros lá ficam cheios de importância e não
querem traduzir meu livro./ Felizarda é uma moça muito rica e por isso
ninguém queria casar com ela. Depois de ela se casar com um moço pobre,
viver na favela, mendigar e ser presa, e pai, um coronelão, a encontra e a
leva para casa. Ela senta no piano e lembra dos tempos de moça rica, toca
valsas vienenses. O filho dela, agarrado à sua saia pergunta: “Mamãe, quem
é você?” (Jornal do Brasil, 1976)

A crítica da escritora chama atenção para os cortes de forma e conteúdo que seu
livro Pedaços da fome, originalmente por ela nomeado “A Felizarda”, sofreu nos entrechos da
publicação. Ao comentar o enredo original, ela pontua: “O moço que ia publicar mudou o
livro todo, tirou as expressões bonitas, não gostei”.

Carolina de Jesus reivindica respeito por seu projeto literário e coloca abaixo as
afirmações dos jornalistas e editores, desmentindo-os, que a viam como incapaz de decidir a
edição de seus livros, do modo como idealizou em sua criação.
213

III.3 “Diario 20”, um “journal de travail”

“[...] ne faut-il pas nous rappeler que nous sommes attachés sur le dos
d’un tigre?”

(Michel Foucault)

Há um “caderno” sem numeração e nomeado como “Diario 20” que pode ser
considerado um exemplo para compreender as condições atuais dos manuscritos de Carolina
de Jesus, bem como a maneira improvisada de como seus primeiros textos foram redigidos
em toda sorte de suporte levantado da sucata. O “Diario 20” contém diversos textos escritos
entre as datas de 10 de agosto a 26 de outubro de 1959, e foi emprestado por Audálio Dantas
ao Museu Afro-Brasil (MAB)88 de São Paulo, em 2005, na ocasião em que a biblioteca do
museu, em homenagem à escritora, recebeu o nome de Carolina de Jesus. Desde então o
original encontra-se numa vitrine sem o correto acondicionamento, necessário a um
manuscrito raro, sobretudo porque este bloco, cujas folhas, procedentes das latas de lixo, já
estavam em processo de degradação ao serem reutilizados pela escritora. O esfacelamento das
folhas foi sendo intensificado com a passagem do tempo e devido ao contínuo manuseio, sem
regras adequadas aos cuidados de um documento em arquivo. Infelizmente, segundo o MAB
não há previsão para a digitalização e restauro, por falta de verba pública destinada a esse tipo
de preservação, por mais precioso que seja o material. O mesmo tipo de problema ocorre com
os demais textos que estão divididos entre os estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e
São Paulo89 .

Com relação aos textos desse diário 20, eles foram escritos em folhas de um livro
de contas, do tipo arquivo, reaproveitado do lixo. As folhas foram amarradas com barbante,
de modo a serem usados os furos originais das folhas, como se pode ver no fac-símile a

88Em entrevista, Audálio Dantas afirma que pretende reaver este caderno qu e jamais lhe fora devolvido.
FERNANDEZ (2014)
89Em diálogo com as instituições, elas alegam que não têm verbas para digitalizar os manuscritos de Carolina de
Jesus. A FBN chegou a digitalizar o “Caderno 11” redigido no ano de 1958, que se encontra dispo nível no site
da biblioteca. JESUS, C. (04/12/1958-19/12/1958) Caderno 11-47, GAV1, 07. Disponível em
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1352132/mss1352132.pdf> Acesso em 04/08/2014.
214

seguir. A capa improvisada, manuscrita, apresenta a seguinte indicação: “Diario 20”. Está
datado de “10 de agosto a 26 de outubro de 1959”.

Diario 20:

Documento 26: MAB: “Diario 20” (Fólios s/n)


215

Este caderno-bloco está mais próximo do gênero diário em sua forma, e como está
datado no final dos anos 1960, próximo da publicação de Quarto de despejo, pode-se supor
que Carolina de Jesus tenha sido instruída a escrever os diferentes gêneros em cadernos
distintos a partir dessa data, pois nos cadernos anteriores ela mesclava gêneros e temas,
resultando em cadernos híbridos repletos de criações que, embora originalíssimas, e revelando
uma desmedida paixão pela escritura, demonstram o universo caótico de sua escritura. Pode-
se justificar seu hibridismo pela escassez de meios, mas sua escrita permaneceu viva a
despeito da falta de papel, caneta e lápis.

Apesar da evidência dessas intervenções, corroboradas com afirmações presentes


no mesmo caderno-bloco, nas quais a escritora conta, por exemplo, que recebia dicionários e
cadernos novos de estudantes da Academia XI de Agosto da Faculdade de Direito de São
Paulo, e de intelectuais que passaram a visitar seu barraco depois que ela começou a sair nas
“folhas” e lhes davam “dicas” de como trabalhar e quais temas deveria abordar, e muitas
pessoas lhe davam livros e cadernos:

(...) Eu fui no senhor Rodolfo, ele disse-me que:


_quando quizer cadernos eu compro. – sorri e disse que os advogados vão comprar. Ele
disse:
_A senhora confia muito nesses homens
_ O senhor compra... e eles vão comprar... Mas eles já compraram um dicionário pra
mim. Contei para o senhor Rodolfo que um governador, não sei se o Carvalho Pinto ou o
Kubistscheck que vae dar-me uma verba para eu ficar só escrevendo. (MAB: 12 de
setembro de 1959, “Diario 20”, F. s/n)

No entanto, mesmo com tantas influências, normas e padrões não eram possíveis
ao processo criativo descentrado, ramificado e versátil, próprio de sua escritura, dados os
acometimentos originados daquele tipo de vida incerto, estilhaçado e inóspito, reproduzido
em sua obra enquanto materialidade, forma e conteúdo.

Neste caderno-bloco Carolina de Jesus declara que, paralelamente ao “Diario 20”,


estavam em processo outras criações: uma peça de teatro chamada “Binidito”, contos e
poemas, todos referenciados e mesclados à escrita diarística, uma vez que ela comentava,
refletia e anotava características das personagens que estava criando, caracterizando este
documento como um “journal de travail” ou “journaux de genèse”, quer dizer, um diário que
216

cumpriria a função de organizar seu processo criativo para além da simples anotação do
cotidiano, pois nele há também anotações de pesquisa de outro texto (VIOLLET, 2006,
p.2.011). Para essa estudiosa, esse tipo de diário poderia configurar o coração do dossiê da
gênese. Corroborando Viollet, Lejeune e Bogaert afirmam: la forme du jornal déplace
l’attention vers le processus de création, rend la pensée plus libre, plus ouverte à sés
contradictions, et communique au lecteur le mouvement de la réflexion autant que son
résultat 90 (LEJEUNE & BOGAERT, 2006, p.31).

Este tipo de diário é caracterizado como um atelier ou laboratório de projetos


literários, nos quais o escritor testemunha a dinâmica da gênese de sua obra. Desse modo,
através desse vivido narrado, o geneticista pode observar o trabalho anunciado nas anotações
do escritor.

Un «journal de travail», en tant que journal d’un projet et témoin des


conditions de sa genèse, n’est pas à lire de manière linéaire et traditionnelle
– dans sa seule dimension de témoignage du vécu inscrit au jour le jour sur
l’axe calendaire – mais de manière multidimensionnelle, et selon divers
dispositifs: à la fois comme texte en soi, certes, mais aussi comme réservoir
prospectif d’idées, mosaïque des pièces diverses d’un chantier de
construction ouvert sous nos yeux vers un à-venir...91 (VIOLLET, 2011,
p.43).

O “diario 20” de Carolina de Jesus solicita essa leitura mais cuidadosa, tanto pelas
anotações sobre as personagens de suas futuras obras, quanto a fabulação de sua própria vida,
a ponto de fazer de um de seus amores platônicos a protagonista de uma peça teatral. Ela
também evoca as condições precárias da materialidade de sua escrita: “(...) Deu-me sua caneta
para escrever com ela, pidi um lápis _Ele abriu a gavêta procurando os lapis estéreograficos.
Não tinha carga. Ele dizia- e... os lapis estão ruins. TUDO RUIM AQUI NO DIARIO!”
(MAB: 30 de outubro de 1959, “Diario 20”, F. s/n)

90[...] a forma do diário desloca a atenção de sobre o processo de criação, gerando um pensamento mais livre e
aberto às suas contradições, e também comunica ao leitor tanto o movimento da reflexão quanto seus
resultados. (Tradução minha)
91Um “diário de trabalho”, considerando-se que se trata de um projeto de trabalho, e sendo testemunha das
condições de sua gênese, não é para ser lido de maneira linear e tradicional – em sua única dimensão de
testemunho do vivido inscrito no dia a dia, fixado ao eixo do calendário – mas de maneira multidimensional, e
segundo diversos dispositivos: numa só vez como texto em si, certamente, mas também como reservatório
prospectivo de ideias, mosaico de peças diversas de um canteiro de construção aberto sob nossos olhos em
direção a um tornar-se... (Tradução Minha)
217

Carolina escreve no cru da vivência e isso instaura uma outra forma de pensar a
representação de sujeitos subalternizados na literatura brasileira. A partir da sua experiência,
por meio dos biografemas, ela oferece o olhar de quem viveu no lugar de todas as carências,
que retornam como mola propulsora no e pelo processo criativo de sua poética de resíduos,
quando o ato de coleta e de inclusão de traços do lugar caótico fica instaurado em suas
narrativas-corpo.

No Diário 20 pode-se observar como a escritora ensaia certa ordem em meio a um


caos discursivo e vivido, cujas peças se interligam nesse lugar da escrita que contempla a
desordem, a impureza, o desajuste e a incipiência temática que brota, incólume, de sua própria
vida.

Por muito admirar, e até por estar imersa numa atmosfera de amor romântico e
platônico com o senhor “Binidito”, um advogado que a visita após sua primeira visibilidade
na mídia, a escritora acaba por se inspirar e escrever uma peça dedicada a ele: “Não comprei
pão. Tem uns pedaços semi-duros. Esquentei a comida que sobrou de hontem passei o dia
escrevendo o segundo ato da peça ‘Seu Binidito’” (MAB: 7 de setembro de 1959, “Diario
20”, F. s/n). A narrativa vai se delineando, ao passo que a estima por ele vai sendo acentuada
ao longo dos dias:

Folheando com anciedade. Li o Dicionário Escolar da língua portuguêsa. Entreguei-lhe a


comedia que reescrevi. Conversamos. Como é sublime conversar com um homem culto.
Hoje vieram 3 Senhor Binidito senhor Modesto e o senhor Brito. Falamos das politicas,
Prestes e os nortistas que vivem abandonados, la no Norte. Quando êles estão em casa sua
conversa reanima-me. estimula-me a vida. Combinamos que eu vou escrever a peça
Nossa Senhora Aparecida. Já conheçem o resumo e aprovaram. Falaram que já mandaram
imprimir o meu Diário – perguntei-lhes se vão para a venda. Responderam que sim. #
Fiquei horrorisada porquê êles vão fazer concorrência ao Audálio. Eu disse-lhes que se o
livro der bôa renda temos que dividir os lucros. Que eu não vou cômer uma vaca sosinha.
Falamos de Maria Antoniêta e outros vultos do passado. Quando o senhor Binidito
despediu-se eu pedi para êle ficar, porque êle agrada-me (MAB: 12 de setembro de 1959,
“Diario 20”, F. s/n).

É interessante notar como em seu “journal de travail” Carolina de Jesus discutia


com sua própria escrita, refletindo sobre a escolha dos títulos que daria a essas narrativas,
relacionando-as aos livros que lia ao acaso de seus encontros com eles nas lixeiras ou por
intermédio de presentes e doações. Cita no “Diário 20” a leitura impactante que fez do conto
218

“O colar” de Guy de Maupassant92 ; o romance “A cabana do Pai Tomás” (Uncle Tom’s


Cabin, 1852), escrito pela abolicionista Harriet Beecher Stowe; ela faz referência aos textos
autobiográficos de Caryl Chessman93 , que estava no corredor da morte94 enquanto escreveu
seus livros; as leituras de Júlio Verne; a proximidade entre sua trajetória e a de Edgar Allan
Poe:

Eu li que Edgar Alan Poe passou muita fome quando viveu neste planeta das
dessigaldades de vida _ sua esposa Virginia Klem ficou tuberculosa. Quando
eu descobri que era poetisa fiquei hororissada! Lia tudo que referisse aos
poetas. E percebi que a miséria é o manto dos poetas. Manto agro que lhe
condus ao tumulo _Dicidi que havia de trabalhar em qualquer [ileg.] para
não morrer de fome, Depois.......Vêio o dragão.... o custo de vida! E não
aparece são George para matar este dragão. (MAB: 1 de outubro de 1959,
“Diario 20”, F. s/n)

Sua literatura está adstrita à melancolia da desumanização vivenciada por esses


seres que palmilham e buscam uma válvula de escape de domesticação da dor, rancor e raiva;
na reorganização de uma memória que, ao ser escrita, se faz literatura. Revelando sua
predileção pela biografia de outros escritores, com os quais ela se identificaria pela “condição
miserável” em comum, como ela mesma diz: “a miséria é o manto dos poetas, manto agro que
lhes condus ao tumulo” ou o “livro é como a sombra do seu autor”, “Eu tenho livros, um
professor que não nos aborrece, uma bússola que nos guia”, “ele é um defensor” ou, ainda “o
livro é um professor”.

Ferreira (2013) atenta para as dificuldades do trabalho braçal, da tarefa manual


que se impõe ao pesquisador com os manuscritos de Carolina de Jesus; trabalho
complexizado pela necessidade de familiarização com os contextos sócio-históricos

92MAUPASSANT, Guy de. O colar. In: Guy de MAUPASSANT. Contos Fantásticos. (Tradução de José
Thomas Brum). Porto Alegre: L&PM, 1997, p.61-84. Col. L&PM Pocket, vol. 24. Online. Disponível em
<http://www.ufrgs.br/proin/versao_2/maupassant/index30.html>
93Caryl Chessman (dito, o bandido da luz vermelha) foi executado no dia 02 de maio de 1960, às 10h, na câmara
de gás do Presídio de San Quentin, Estado da Califórnia (EUA). Chessman escreveu na prisão as obras
autobiográficas “2455-Cela da Morte”, “A Lei Quer Que Eu Morra” e “A Face Cruel da Justiça”, e um
romance: “O Garoto era Um Assassino”. Obs.: Célula 2455 Death Row deu origem ao filme O corredor da
morte (1977). FONTE: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Caryl_ Chessman>
94Carolina de Jesus chegou a ler os textos de Carl Chesman, publicados enquanto ele estava na prisão e, muito
abalada e indignada com o caso, ela faz uma dura crítica após sua execução: “ Tétrica: a vida da humanidade
para os que são oprimidos Aos que tiveram a infelicidade De nascer: lá nos Estados Unidos pavoroso Estados
UU. Da America do Norte Que se transforma em secretário da morte Mata na cadeira elétrica e na camara de
gás” (FBN: “Caderno 7- Pensamentos”, FTG. s./n.)
219

referenciados na obra: “contextos estes, facilitadores ou complicadores da ‘decifração’ dos


conteúdos da escrita cursiva, irregular, fragmentada, rasurada, gramaticalmente ‘inculta’ e
referencialmente ‘culta’” (p.97).

As refrações dessas referencialidades dialogam no interior do campo


autobiográfico, fazem intermédio intertextual formal, e por vezes temático, ao substancializar
sua leitura. Por exemplo, no conto “O Colar”, de Guy de Maupassant, Carolina de Jesus
interpõe a estética da cultura letrada à sua vida, ocupando momentaneamente esse lugar com
seu “corpo precário”, mas autorizada por uma quixotesca mente literária:

(...) Revirei o barracão. Achei uma caneta que havia desaparecido a dois
mêses Mandei pidir o pente da Lêila emprestado. Ela emprestou-me e
recomendou-me cuidado! Fui pentear os cabêlos da Vera quebrou um dente.
Mandei o João ir comprar outro para dar-lhe e não encontrou, pensei no
conto de Guy de Maupassant _ O colar de diamante. (MAB: 1 de outubro de
1959, “Diario 20”, F. s/n)

Este conto – que aqui ela cita em forma de anedota, uma estratégia bastante
explorada por Carolina de Jesus em suas narrativas curtas – é a aventura de uma espécie de
falsa cinderela, que pede emprestado a uma amiga rica um colar de diamantes e o perde na
festa, onde exibiu-o com ostentação. Por conta do sumiço da joia, ela e seu marido passaram
dez anos executando as piores tarefas para pagarem os empréstimos que tiveram de fazer para
comprar um novo colar. Ao final, em um encontro casual com a amiga, ela descobre que o
colar da amiga era falso. Estes são gestos de fuga que, por meio da sublimação do sofrimento
que não se apaga, servem de lenitivo à falta, preenchida pela efabulação. Desse modo, com
reflexão, dialogismo, e o contato atávico com a arte que agita sua vida, ela vai superando
espaço e tempo, atraídos e trapaceados pelo trampolim de sua imaginação.

A escritora incorpora o texto de Maupassant num gesto de bovarismo, acionando


os rebusques na escrita. Como de costume, toda vez que se aproxima de temas da literatura,
anuncia e cita um verso seu, descreve uma situação como uma cronista do seu tempo, pois
crônica e poesia aparecem como um lugar de onde ela conseguirá lapidar seu processo de
escrita. Explorando o preciosismo na escolha das palavras ou com uma sobeja utilização de
ênclises, predominando as colocações pronominais: “emprestou-me” e “dar-lhe”, usos pouco
220

habituais por escritores de sua época, mas que possivelmente estariam presentes nas traduções
de livros encontrados ou recebidos como doação.

O “Diário 20” também mostra posturas e revelações impactantes quando traz à


tona a discussão da escrita como possibilidade de emancipação feminina, crítica e desabafo
sobre as adversidades de escrever em um espaço inapropriado, referindo-se ao barulho do
“batefundo” (brigas) ou dos festejos na favela, bem como pela falta de tempo e pelo cansaço,
após os esforços despendidos de uma rotina de perambulação e “catação” de objetos
recicláveis pelas ruas da cidade de São Paulo. É importante enfatizar que estes momentos
tensos de sua escrita são materializados na caligrafia bem marcada, que no ritmo da escritura
vai expressando seu estado psicológico, como se pode ler nos exemplos, nos quais essas
características aparecem:

Eu fiquei escrevendo mas é horrível escrever com lamparina. Paciência.


(MAB: 5 de setembro de 1959, “Diario 20”, F. s/n)
Um homem morando comigo, enjôa-se de mim pórque eu lêio todos os dias,
e estou sempre escrevendo. Mas êles tambem tem seus habitos. Gostam de
beber fumar etc. E enquanto eu viver, hei de escrever pórisso hei de viver
sempre só. Não vóu fazer janta. Vamos tomar cafe, e comer rosca. (MAB: 8
de setembro de 1959, “Diario 20”, F. s/n)

Dessse modo, nota-se que este caderno foi escrito no momento em que a Vera
Cruz está filmando “Cidade ameaçada” de Roberto Farias na favela do Canindé 95 . O “Diario
20” situa-se entre a publicação de Quarto de despejo (de 15 a 28 de junho de 1955, de 2 de
maio a 31 de dezembro de 1958, e de 1 de janeiro de 1959 a 1 de janeiro de 1960 (com vários
recortes temporais) e Casa de Alvenaria, de 5 de maio a 31 de dezembro de 1960, e de 1 de
janeiro a 21 de maio de 1961.

95“O que se nota é que ninguém gosta da favela, mas precisa dela. Eu olhava o pavor estampado no rosto dos
favelados. – Eles estão filmando as proezas do Promessinha. Mas o Promessinha não é da nossa favela.
Quando os artistas foram almoçar os favelados queriam invadir e tomar as comidas dos artistas. Pudera!
Frangos, empadinhas, carne assada, cervejas (...). Admirei a polidez dos artistas da Vera Cruz. É uma
companhia cinematográfica nacional. Merece deferência especial. Permaneceram o dia todo na favela. A favela
superlotou-se. E os vizinhos de alvenaria ficaram comentando que os intelectuais dão preferência aos
favelados. (...). As mulheres xingavam os artistas: – Estes vagabundos vieram sujar a nossa porta. As pessoas
que passavam na Via Dutra e viam os bombeiros vinham ver se era incêndio ou se era alguém que havia
morrido afogado. O povo dizia: – Estão filmando o Promessinha! Mas o título do filme é ‘Cidade Ameaçada’”
(JESUS, 1960, p.180-181).
221

Logo, ele está localizado no meio de ambos os livros; seus textos, portanto,
representam a transição da favela (barraco) para a cidade (alvenaria).

III.4 Histórico das edições

O que sempre invejei nos livros foi o nome do autor.

(Carolina de Jesus)

Para que se possa mais bem compreender o histórico das edições é importante
cartografar ainda um percurso do trajeto do acervo, hoje nomeado “Espólio Carolina de
Jesus”. Em 1960, ocorre a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada,
constituído a partir das entradas do diário de junho de 1955 a 1º janeiro de 1960. São os 15
cadernos que compõem esse primeiro livro que estiveram em posse de Audálio Dantas até
2011 (como dito em capítulo anterior, o jornalista doou 14 cadernos desse dossiê à FBN e
emprestou um caderno ao MAB). Esta foi a publicação mais significativa para a carreira da
escritora. Audálio Dantas conseguiu assinar um contrato de edição com a Livraria Francisco
Alves, e na ocasião foram vendidos seiscentos livros somente na primeira noite de autógrafos.
A tiragem inicial, que seria de três mil exemplares, foi de trinta mil, e esgotou em apenas três
dias na cidade de São Paulo.

No Brasil, somente em 1960, Quarto de despejo foi reimpresso sete vezes. Foi
traduzido para 14 línguas, publicado em 20 países, circulando por 40 países, cuja venda
alcançou a marca de um milhão de exemplares. Hoje, em 2015, podem-se contar traduções
para 19 línguas96 . Foram produzidas edições na Dinamarca, Holanda e Argentina. Em 1961,
na França, Alemanha (Ocidental), Suécia, Itália, Checoslováquia, Romênia, Inglaterra,
Estados Unidos, e no Japão, em 1962, na Polônia, em 1963; Hungria, em 1964; Cuba, em
1965 e, entre 1962 e 1963, na União Soviética. Chegou inclusive a ser proibido em Portugal,
por Salazar. Em 1963, saiu nova edição pela Francisco Alves, em 1976 duas edições foram

96 Disponível em: <http://www.vidaporescrito.com/#!bibliografia-sobre-carolina-/c1i9n>


222

publicadas pela Ediouro; um ano antes da morte da escritora, em 1983, outra pela Francisco
Alves; em 1990, uma pela Círculo do Livro; em 1993, pela Ática, que já o editou mais de dez
vezes desde então. O livro é classificado como literatura infanto-juvenil.

A última reimpressão em grande escala ocorreu em 2012, tendo sido distribuída


em todas as escolas municipais do Estado de São Paulo, acompanhada de um CD ilustrativo.
Em 2014 foi produzida uma edição de luxo em comemoração e homenagem ao centenário da
escritora na Flink Sampa Afro-étnica – Festa do Conhecimento, Literatura e Cultura Negra 97 ,
com novos prefácios e posfácios que ampliam a leitura sobre esta obra importantíssima na
qual Carolina de Jesus define a favela como o “quarto de despejo” da cidade, tornando-se um
clássico da literatura em torno dessa temática. 98

No entanto, como sabemos e bem o demonstrou Perpétua (2014) ao verificar os


recortes editoriais de Quarto de despejo, a pesquisadora mostra que o trabalho feito por
Audálio Dantas decompôs, selecionou, formatou e extraiu passagens do diário de Carolina de
Jesus, transformando-o em um texto diferente do original, assim como a estratégia de
marketing editorial99 formatou a escritora numa pessoa ingênua, rasa e sem grandes intentos.

Diz a estudiosa:

Das três modalidades de alteração observadas no cotejo do livro com os


manuscritos – acréscimos, substituições e supressões – as mais frequentes
são as supressões, que vão desde a omissão de partículas como pronomes,
até vocábulos, orações, parágrafos, páginas que registram dias inteiros, até
meses e podem abranger até um caderno inteiro, como é o caso do Caderno
21, com 400 páginas manuscritas inéditas. Não há caderno que tenha sido
publicado integralmente (PERPÉTUA, 2014, p.150).

Com relação aos originais de “Meu estranho diário”, como Carolina de Jesus
denominou os cadernos que deram origem ao segundo diário publicado como Casa de

97 <http://www.flinksampa.co m.br/2014/ index.php/about/homenageada/42-historico-carolina-maria-de-jesus>


98JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 1.ed. São Paulo: Ática: Brasília (DF):
Zumbi dos Palmares, 2014.
99De fato, a editora Francisco Alves transformou Carolina de Jesus em um produto de markting seja verificado
através das reportagens, paratextos ou do episódio da noite de lançamento. Em entrevista de Ciro Del Nero,
concedida a Mário Medeiros, o ilustrador informa que na noite de lançamento procurou criar uma estética para
o evento que aproximasse do público leitor ao espaço da favela, chegando inclusive a utilizar terra da favela na
vitrine para “trazer os barracões para dentro da editora”. Conf. Entrevista de Cyro Del Nero, concedida a Mário
Augusto Medeiros da Silva, em 29/9/2007, em São Paulo.
223

Alvenaria, foi observado o mesmo fato, isto é, passagens inteiras modificadas e recortadas
relegando o diário a uma lista enumerativa de fatos corriqueiros. O editor extirpa reflexões
importantes sobre o ato de ler e escrever que circundam o universo do artefazer da escritora.
Como por exemplo, no excerto que antecede o dia 18 de maio de 1960, após publicação de
seu best-seller, porém ainda na favela e descrevendo os acontecimentos cotidianos, Carolina
de Jesus devaneia sobre seu sonho de ter uma estante repleta de livros, como ela escreve na
seguinte passagem:

Para mim o livro é igual um calmante (...). Eu vou retirar os outros livros quando o
Audálio darme uma casinha eu vou comprar uma estante. Tem mulheres que sonha com
um guarda-roupa super-lotado de vestidos –E eu... quero uma estante com livros.
(...)
Uma menina perguntou-me: / _O que a senhora escreve?/ _Contos, poesias, e provérbios./
Aconsêlhei as crianças para lêr bons livros (FBN: Caderno 1- Diário de 18/05/60 a
29/06/60, F. s/n).

E depois de fantasiar sua estante, na sequência, faz uma reflexão sobre a


importância da leitura na formação das pessoas. Não podemos perder de vista que a
reverberação do best-seller de Carolina de Jesus foi favorecida pelas condições sociais do
Brasil que viabilizaram o sucesso. Vivíamos uma década de pleno desenvolvimentismo e de
manifestações culturais engajadas, contracultura e abertura política.

Segundo Meihy, seu diário teria despontado:

(...) no cenário nacional nas agitações políticas que marcaram os chamados


“anos dourados”, iniciados no governo de JK. No quadro da contracultura
cabiam tipos sociais que representassem as contradições nacionais. Nesse
conjunto, a experiência de mulher batalhadora que sobrevivia graças ao lixo
da cidade valia como argumento de interesse social. Foi assim que Carolina
se transformou em representante de temas que empolgavam o debate político
da esquerda e da direita (MEIHY, 2010, p.61).

Como lembra Audálio Dantas: “(...) o livro apareceu numa época de grande
afirmação nacional. Estava-se construindo Brasília, a seleção havia ganhado a Copa do
Mundo de futebol... Acreditava-se que era possível mudar o país” (DANTAS apud MEIHY,
1994, p.106).
224

Por conta deste livro, a escritora favelada foi homenageada pela Academia de
Letras da Faculdade de Direito de São Paulo. A fama advinda das vendas do livro rendeu-lhe
viagens pelo exterior: Uruguai, Argentina e Chile, e por cidades brasileiras como Pelotas,
Porto Alegre, Caruaru, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, etc. O sucesso da obra proporcionou-
lhe os anos felizes e tumultuosos da transformação que atravessou sua vida: viagens, jantares,
contatos com presidentes e escritores reconhecidos, entrevistas, participações em congressos,
a publicação de mais três de seus livros e um LP, a aquisição de um sítio para tentar escrever
com mais tranquilidade; enfim, um certo reconhecimento como “artista” até o início do
governo militar.

No entanto, o processo de ascensão social e a fama não aconteceram de maneira


estável, pois os estranhamentos entre a “sala de visita” e o “quarto de despejo” sempre
apareciam para tirar o sossego da escritora (agora ex-favelada), e com isso aguçar seu sentido
crítico, como na seguinte passagem inédita em que a escritora se queixa do encontro com
norte-americanos, quando esteve hospedada no Copacabana Palace durante o lançamento de
seu livro no Rio de Janeiro:

5 de dezembro de 1960 (...) Fomos para uma joalheria. Ele (David Saint Clair, editor e
tradutor norte-americano de Quarto de despejo para a língua inglesa) apresentou-me para
os donos da loja e disse: eles são americanos. Eles falavam inglês. Eu compreendia só
‘garbage room’. Comecei a transpirar. Percebi que um preto na presença de um norte-
americano fica intranquilo. Parece que eles olha o preto com repugnância. Pensei se
algum dia receber convite dos EEUU vou recusar” (FBN: Cadernos 6 de 10 - “Diários”,
FTG. s/n).

Em 1961, quando participou do “II Festival de Escritores”, realizado no Rio de


Janeiro, voltou desiludida e revoltada, após o encontro com o escritor Jorge Amado,
organizador do festival. Segundo ela, ele teria boicotado as vendas de Quarto de despejo para
favorecer as de Gabriela, cravo e canela, conforme relata em seu segundo diário Casa de
Alvenaria (1996).

Quando, através da mídia, a partir dos anos de 1960, Carolina de Jesus começa a
ganhar visibilidade com a publicação de parte de seus escritos, ela passa a narrar os modos de
como os visitantes da “sala de jantar” intervêm nos temas e na forma de sua produção
literária. Será, sobretudo, em Casa de Alvenaria, seu segundo livro, publicado em 1961, que
vai ficar visível como essas imposições direcionam sua escrita e sua conduta diante da
225

sociedade. No entanto, a práxis da escritora é mantida sob conflito, imersa num movimento
dialético que oscila entre cooptação e emancipação. Esse livro, portanto, marca a continuação
da publicação dos diários com escritos de 5 a 21 de maio de 1961, composto por 11 cadernos
pertencentes ao Arquivo Público de Sacramento.

Pensando sobre os mecanismos de cooptação da figura de Carolina de Jesus nas


publicações que vieram depois de seu sucesso, pode-se tomar como exemplo seu livro mais
conhecido: Quarto de despejo, este que ultrapassa a forma de diário ao incluir em suas
páginas travessões e interjeições na reprodução das falas de suas personagens, críticas e
poemas, de modo a mobilizar diferentes vozes, revelando três facetas de uma mesma pessoa-
protagonista: a narradora-protagonista, a escritora-narradora e a personagem, ela mesma,
Carolina de Jesus. Observamos nesse livro, mais notadamente nos manuscritos, trechos de
poemas ali inseridos, às vezes, comentando-os, noutras, parafraseando-os. Como lembra
Eurídice Figueiredo: “o tornar-se escrito e o ato de olhar-se escrever estão sempre presentes”
(FIGUEIREDO, 2013, p.74).

Encontramos ainda nos escritos de Carolina de Jesus algumas características de


sua narrativa que lembra a crônica de estilo policial no modo com ela se coloca, ou seja,
frases curtas e objetivas, linguagem sem rodeios: “Eu penso que quem escreve deve escrever
as maldades que os outros praticam. Os jornalistas escrevem. Eu também posso escrever”.
Assim, acompanhamos com entusiasmo o posicionamento crítico da escritora recriando, em
forma de crônica, os acontecimentos ou extra-acontecimentos de seu cotidiano, sem deixar de
emitir suas opiniões100 : “E atraves dos escritos que ficamos conhecendo o passado. O Nero
quêimou os cristãos. Mataram Socrates os judeus matou os inocentes os portugueses matou o
Tiradentes. Santos Dumond suicidou-se”.

Esses são alguns desvios, plasticidades, que foram analisadas no cotejo entre texto
publicado e original manuscrito, realizado por Elzira Perpétua (2000). Outro exemplo, uma
sorte de hibridismo literário, exercitado de maneira orgânica por Carolina de Jesus: após
narrar mais uma empreitada diária de seu cotidiano, a escritora seleciona um trecho do poema
de Olavo Bilac para parafrasear sua rotina.

100Sobre isto, vale citar Edouard Rouveyre: “Importa observar que o julgamento que um autor faz a respeito de
outros frequentemente sujeita-se a dúvidas e reformulações. É comum a apreciação de certas obras não lidas ou
cujo mérito foi por outros preconizado” (ROUVEYRE, 2003, p.17).
226

(...) Todos os favelados estão magrós. É deficiência alimentar. Falta dágua. Olhando
aquelas crianças raquiticas pensei nos versos de Olavo Bilac # Criança ama a terra que
nacêste/ Não veras no mundo pais igual a este # Eu estava com dez anos quando li êste
verso e concordei com o poeta. Naquela epoca não existia favela. Não existia fome. Os
preços dos generos de primeira necessidade era ao alcance de todos.

A seguir, o fac-símile do manuscrito mostra o trecho comentado:

Documento 27: FBN: Caderno 6 – Poesias e textos autobiográficos (F. s/n)

A máquina literária da escritora favelada se ergue de sob os escombros de um


lirismo beletrista que considera o belo como “o próprio da arte”101 ; e também como o fazem
os sambistas, até porque ela também era uma sambista, fazia parte dessa fração do povo que
produz sua arte nas franjas da sociedade, expressando sua condição social por meio dela;
atribuindo seus valores de beleza através de determinadas formas de linguagens, mesclando e
buscando na linguagem clássica referências para suas letras. Aquilo que, muitas vezes, foi
denominado “estética da fome”, “literatura marginal” ou “literatura periférica”, para nós
expressa uma poética própria, uma reciclagem literária ao modo de um bricoleur que vai

101“Schiller mostrou, precisamente, que o jogo estético une a sensibilidade com a inteligência. Derivando da
mais alta espécie de liberdade, que é a liberdade criadora, esse jogo depreende-nos da realidade para
introduzir-nos numa nova dimensão, objeto dos juízos de gosto estético para o qual a tradição filosófica,
oriunda dos gregos, reservou o nome de Belo” (NUNES, 2009, p.125).
227

colando no seu discurso retalhos, restos de outros discursos, como expressivamente faz
Carolina de Jesus, conforme mostrado no exemplo supra.

Se em seu primeiro livro, a mão de Audálio Dantas recortou as passagens mais


significativas para a crítica literária, ou seja, aquelas que faziam referências a suas leituras, às
passagens líricas e a outras que falavam de seu processo de criação – como demonstrado nesta
tese e no trabalho de Perpétua (2014), frisando as marcas da força sociológica desses escritos.
Em Casa de Alvenaria, o livro em que Carolina de Jesus narra a trajetória de um ano de sua
vida após a saída da favela, os aspectos literários de sua escrita foram minados com mais
intensidade, pois quando Audálio Dantas encomenda o livro Casa de alvenaria, ele quer uma
narrativa de excepcionalidade, produzida por um corpo de uso em “ascensão”.

Não por acaso, em Casa de Alvenaria Carolina de Jesus narra as visitas constantes
que ocorriam nas suas duas novas casas; na primeira, a que lhe foi emprestada e onde ela
viveu por pouco tempo, e na segunda, que ela comprou utilizando parte do dinheiro que
recebeu com a venda das edições de seu primeiro livro. O livro também conta suas visitas a
outros estados brasileiros, na laboriosa divulgação de seu Quarto de despejo, e
consequentemente, na utilização de sua imagem como porta-voz da favela. Enquanto a
escritura – sobretudo a manuscrita – tentava fugir de cooptação, denunciando esses
mecanismos de dominação, do poder do mercado, a exposição de sua imagem estava
subjugada aos poderes que permitiam a publicação de seu trabalho.

Muitas foram as tentativas de agregar a imagem da escritora a interesses políticos,


de mercado ou religiosos, como se observa através de passagens sobre a presença maçante de
partidos de esquerda, movimento negro, imprensa, mercado editorial e instituições religiosas
na vida de Carolina de Jesus, na onda do boom de seu primeiro livro. Havia uma cobrança de
coerência que ela não tinha condição de sustentar. A esquerda a considerava de direita, a
direita a tinha como revolucionária; portanto, ela não deveria ser destacada nem exaltada. A
escritora não foi um objeto apenas para a classe média, mas no Brasil todo, nos mais variados
grupos; ou seja, de modo geral, ela interessava a todos.

No entanto, o forte temperamento e as contradições internas de Carolina de Jesus,


características de uma artista afinada com as vicissitudes da vida, não permitiram que ela
fosse completamente cooptada por nenhuma dessas instituições. Manteve o distanciamento e
a proximidade necessários para seguir sua produção artística e tentar atingir seus objetivos
228

através desses meios102 . Entretanto, nos escritos de seu segundo livro há evidências do modo
como essas situações a oprimiam. Mas, ao mesmo tempo, também influenciavam suas
reflexões; assim, na medida em que oscilava entre criticar o peso de tais instituições, também
elogiava suas práticas. No entanto, com aquela sua veia irônica, ela sempre lançou mão do
humor e da ironia para criticar o sistema de poder, como se pode confirmar no trecho a seguir,
quando de sua visita a Porto Alegre:

(...) Fui falar com Dr. Leonel Brizola noutra sala. Perguntei-lhe como vai indo com o
desenvolvimento do Estado. (...) O Dr. Leonel Brizola pediu-me para não envaidecer não
desprezar os pobres.
─ Você deve voltar periodicamente a favela, para não perder a sua autenticidade. Você
vai visitar as favelas de Porto Alegre e dizer aos favelados que eles precisam e devem
estudar. Faça-me esse favor. O meu sonho é acabar com o analfabetismo no Estado. O
meu carro está ao teu dispor.
Dei uma risada e comentei:
─ Que honra para mim. Eu estava habituada a andar só na Rádio-Patrulha103 . (JESUS,
1961, p.90)

Aqui, Carolina de Jesus parece ironizar o pedido de Brizola, fazendo deboche com
o fato de ele ter colocado o carro oficial a sua disposição e o conselho de que ela deveria
“voltar periodicamente à favela, para não perder a sua autenticidade”. Ela entendeu
imediatamente a intenção de Brizola querer usá-la como veículo de propaganda para uma
ação “civilizatória” junto aos favelados de Porto Alegre.

Há várias descrições desse tipo de solicitação por parte de políticos, militantes,


religiosos e jornalistas, o que denuncia uma intenção de associar a imagem da escritora como
porta-voz da favela, uma “legítima” representante do “povo” (categoria bastante genérica por
sinal), colocando sempre em segundo plano sua posição de escritora, relegando à mulher o
estigma de “lugar da pobreza”.

102Carolina de Jesus conta que o jornal O Ébano chegou a levá-la até Santos para fazer fotos com Pelé. (Cf.
JESUS, 1961, p.155-6). O mesmo dirigente desse jornal pretendia vender o nome de Carolina para uma
empresa de sabão: (...) O contrato diz que eu devo ceder o meu nome para o sabão A. por um ano, para
propaganda nos jornais e televisão (...) O Osvaldo disse-me que vai vender-me para outros produtos. / Com
aquela confusão de “vender Carolina”. Eu fiquei pensando quando estava na favela não valia zero. Ago ra tenho
valor (JESUS, 1961, p.156).
103 Rádio-Patrulha era como, naquela época, chamavam a viatura da polícia.
229

O recorte que Audálio Dantas efetua do original, referente à resposta que Brizola
dá a Carolina de Jesus quando ela pergunta sobre o desenvolvimento do Estado, sugere mais
um sintoma da condução e “utilização” de sua voz. São diversas as lacunas acentuadas pelo
símbolo “(...)” como se algumas partes do texto fossem ilegíveis para o jornalista. No entanto,
quando cotejamos os textos publicados com os originais, compreendemos suas palavras de
indignação e a tentativa de encarceramento de sua vida no espaço da pobreza, fato pelo qual o
político não estaria mesmo interessado. Desse modo, hoje, pode-se entender os motivos
‘políticos’ pelos quais essas passagens foram suprimidas.

Carolina de Jesus constantemente critica essas categorizações que a diminuem,


enquanto sujeito pensante e criador, mas ela não encontrava outro meio de ser notada senão
cedendo de certa forma a tais mecanismos104 . Em Casa de Alvenaria, a escritora chegou a
inverter o discurso que teria feito em seu primeiro livro sobre o dia da abolição da
escravatura. Enquanto no dia 13 de maio de 1959 dizia em Quarto de despejo que a
escravatura atual era a fome, em 13 de maio de 1961 (JESUS, 1961, p.177), ela parece aderir
ao mito da democracia racial dizendo:

(...). Hoje é 13 de maio, dia consagrado aos pretos, que vivem tranquilos mesclados com
os brancos. Hoje, é um dia que nós pretos do Brasil podemos bradar:
─ Viva os brancos!

A projeção de Carolina de Jesus se deve ao fato de ela ser mulher, negra e da


favela, ou seja, três dimensões que nunca antes haviam se articulado na literatura brasileira.
Em Casa de Alvenaria, um livro escrito por encomenda, a escritora já tem uma análise muito
mais contundente das coisas, e sua escrita vai além da reflexão imediata. O diário não tem o
outro como destino direto, mas é um texto aberto, público, e com o objetivo de comprovar sua
aptidão literária, daí suas críticas à falta de tempo para escrever, e a descrição de suas obras

104Carolina de Jesus produz uma desmistificação dos morros e das favelas ao modo de composições vistas sob a
ótica de sambas como “Opinião” de Zé Keti ou canções da bossa nova, como no exemplo da canção “Zelão”
de Sérgio Ricardo: “Todo morro entendeu quando Zelão chorou/ Ninguém riu e nem brincou/ E era Carnaval/
No fogo de um barracão/ Só se cozinha ilusão/ Restos que a feira deixou/ Que ainda é um pouco só/ Mas assim
mesmo Zelão/ Dizia sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre/ Até melhorar” . Em um diálogo entre a
escritora e um motorista de táxi que a leva até a favela do Canindé, depois que ela concede uma entrevista à
TV Tupi, ela reproduz a visão do motorista que disse: “É a primeira vez que vejo a favela. Eu pensava que
favela era um lugar bonito, por causa daquele samba [de Silvio Caldas]: ‘Favela, oi, favela/ Favela que trago
no meu coração’ / Mas haverá alguém que traz um lugar desse no coração? Enquanto o motorista fitava a
favela eu pensava: com certeza o compositor do samba tinha uma mulher b oa na favela” (JESUS, 1960, p.21).
230

em processo, numa segunda lida dos originais. Neste livro, a escritora está exposta à visitação
pública na “sala de visitas”105 .

É interessante observar que essa espécie de máscara começa a ser moldada já no


fim de sua trajetória de Quarto de despejo, quando parte de seus textos estavam sendo
publicados na Revista O Cruzeiro. Houve já ali, por parte de seus agentes, uma preocupação
em preparar o público para a recepção de sua obra. Inclusive, a forma como estavam dispostos
seus livros e cadernos manuscritos sobre um monte de terra levada da favela para compor uma
estética da pobreza na vitrine da livraria, como foi mencionado por Cyro Del Nero (2007).
Esses fatos atestam o desejo de estigmatizá-la como favelada e catadora, marcas que a
escritora carregou por toda sua vida, e que, muitas vezes, contribuiu para o descaso de sua
obra. Hoje, felizmente, sendo recuperada no atual contexto para além do jargão de
“subliteratura”. E ela conta sobre o dia do lançamento do seu livro (JESUS, 1961, p.36-37):

15 de agosto ... Aqueci água para tomar banho. Vou na livraria levar um pouco de terra
para por na vitrina. Estava chovendo, fomos de ônibus e quando chegamos na livraria vi
meu retrato na porta. Estou desenhada em ponto grande. E a favela. O que está escrito no
quadro:
Esta favelada, Carolina Maria de Jesus, escreveu um livro – Quarto de despejo – A
Livraria Francisco Alves oferece ao povo.

Em algumas passagens Carolina de Jesus parece forçar a pena ao reescrever as


mazelas dos favelados; noutras, a reprodução dos pensamentos e das falas das personagens
parecem emergir de forma mais espontânea. Não nos escapa a observação de que, não por
acaso, em seus manuscritos, mesmo eles sendo uma miscelânea textual, encontra-se ali uma
escrita mais fluida, marcada por descrições de seu cotidiano, à maneira das reportagens que
lia, dos trechos de textos literários, mesclados a seus próprios textos, os quais incessantemente
reescrevia.

Como foi constatado nesta pesquisa, o jornalista recortou diversas excertos mais
próximos dos gêneros literários que podemos ler em seus originais. O mesmo não ocorreu,

105No filme Carolina, de Jeferson De, temos acesso a algumas imagens que foram gravadas no período do
segundo diário. Nelas, pode-se perceber o desconforto da escritora em meio ao público branco, curioso, classe
média, que tenta receber Carolina de Jesus com tanta pompa que lhe causava mal-estar diante das lentes, dos
holofotes e microfones, antes tão almejados por ela.
231

porém, com o terceiro diário “No sítio”, que foi publicado no original em Meu estranho
diário.

Agora, em processo de transformação, pode-se observar a dificuldade de


concentrar-se diante de sua realidade, porque Carolina de Jesus estava também em
movimentação pessoal, revendo seus valores, reconstruindo seu olhar diante da tão almejada
“casa de alvenaria”, adentrando a “sala de visitas” da sociedade, já de posse de seu
reconhecimento como escritora, mesmo um tanto quanto acelerado e sensacionalista. Diversos
são os estudos inclinados a demonstrar os altos e baixos da “escritora vira-lata”, como
comenta Sousa (2012), em relação à ascensão possibilitada pelo marketing que desenvolveu e
instituiu a imagem da “escritora catadora de lixo que escreveu um best-seller”.

Carolina de Jesus vivenciou e sentiu sua ida do lixo ao luxo, carregando consigo o
estigma da favelada e o devir-fome106 que sempre retornava quando estava diante da mesa
farta, ou vendo os desperdícios alimentícios da “sala de visita”. Em Casa de Alvenaria,
Carolina de Jesus mostra que tanto editores quanto programas televisivos contribuíram para
fomentar a curiosidade sobre ela, tanto sendo tida como ícone por seus admiradores quanto
sendo malvista pela crítica que a rejeitava. Mas, ao mesmo tempo em que era vista, Carolina
de Jesus – manuseando uma lupa, distanciada das emboscadas do glamour – também via esse
Outro que a olhava.

Nesse sentido, a escritora adentra a “sala de visitas” da sociedade, mas rejeita esse
local por encontrar nele a falta de solidariedade que tantas vezes via na favela. Negando esse
mundo de aparências de “boa conduta”, que ela via como o contrário à má-educação e
espontaneidade do favelado, mas repleto de ganância, racismo e individualismo da lógica
capitalista, mesclada do paternalismo brasileiro, agora ela via a realidade com outros olhos. E
todos esses desgostos que sentia, ela escreveu: “Eu ainda não habituei com esse povo da sala
de visita ─ uma sala que estou procurando um lugar para sentar” (JESUS, 1961, p.66) ou

106 Em minha dissertação “Carolina Maria de Jesus, uma poética de resíduos”, procurei demonstrar como o
devir-fome perpassava os escritos de Quarto de despejo. Nessa obra, Carolina de Jesus coloca homem e
animais como porcos, corvos, aves, cachorros e gatos na mesma condição para acentuar a animalidade humana,
além de apreender com os elementos que expressam o tornar-se fome, um vir-a-ser da miséria como na
imagem “a fome é amarela”, um sintoma doentio vivido pela escritora e por seus companheiros de mazelas,
tanto na favela quanto na pobreza experienciada, sobretudo, pelos negros no interior de Minas Gerais. Carolina
de Jesus estetiza a fome, refletindo sobre a fome literariamente. Em Quarto de despejo, a fome é violenta,
direta, uma doença amarela; já em Casa de alvenaria há um vigor de análise social, e a fome é re-apresentada
neste livro a partir da saciedade e fartura dos pratos em prejuízo da fome alheia. No segundo livro ela reflete
sobre a fome de maneira sistemática e nos ensina a pensar a fome, enquanto que no primeiro livro ela nos faz
sentir a fome.
232

então, “(...) Agora que estou mesclada com o povo fico observando os tipos de pessoas,
classificando os seus caracteres. Há os tipos trapaceiros fantasiados de honestos. São os
cínicos. Tem duas faces. Tipos que querem ser granfinos sem ter condições de vida definida”
(JESUS, 1961, p.151).

Nesse segundo diário aparecem essas dicotomias que a absorvem, ao mesmo


tempo em que ela as critica. Em alguns momentos, a escritora se sente feliz por fazer parte
desse meio social e de ver seus filhos “evoluindo” de acordo com o ambiente: “(...). Fiz café,
os filhos comeram pão. Agora com a fartura de comida os filhos estão enfastiados.
Supernutridos. São mais barulhentos, mais dispostos. Tenho a impressão de que estou
despertando de um sonho” (JESUS, 1961, p.36).

Aqui, percebe-se relações biunívocas entre as vozes do texto: de um lado, aquela


que fala sobre a favela e sobre sua ascensão modulando ações em conjunto com os espaços e
o tempo vividos como protagonista, contribuindo para revelar não apenas a sua centralidade
no discurso, mas também sua autoafirmação como novo símbolo de escritora negra da
sociedade, símbolo este contraposto ao papel de submissão e exotismo da maioria das
personagens femininas, sobretudo as negras, reproduzidas nas literaturas canônicas
brasileiras; de outro lado, a voz direcionada de Audálio Dantas e de seus editores na
insistência do enigma rebatido pela voz originária da narrativa. Vê-se que a imaginação foi
potencializada no contato com o Outro, porém os recortes realizados pelo coautor apresentam
apenas aqueles trechos que destacam uma favelada famosa.

Carolina de Jesus tem no livro, por norma, uma função bem definida: a de zelar
pelo lugar privado facilitando assim o cumprimento do percurso de acesso “às benesses”
urbanas, enquanto o jornalista atua como co-sujeito da ação, dando ao leitor a falsa ideia de
que a mulher que fala vive a plenitude do deslocamento e que experimenta o desafio do
desconhecido. Como as relações de afeto entre ambos são visíveis, um afeta ao outro, e daí
resultam as ambiguidades nos pontos de vista de Carolina de Jesus em relação ao jornalista,
ora o carrasco, ora o anjo salvador; aquele que, em alguns momentos, exerce autoridade e
dureza, mas em outros age com condescendência, confiança e respeito (sentimentos estes
mais evidenciados na versão publicada).

Mesmo com todo o esforço, o segundo livro não obteve o sucesso esperado pela
escritora. Carolina de Jesus ainda tentou vender seu romance Pedaços da fome (1963), com
233

prefácio de Alberto Moravia107 , e outro livro intitulado Provérbios (1965), mas não obteve
nenhuma visibilidade, ficando esquecida durante vinte e três anos de sua vida. Com a
publicação, na França, de Diário de Bitita, após uma lapidação efetuada no processo de
editoração da primeira edição francesa de 1982, Carolina de Jesus retorna à cena literária,
porém, agora, com menor intensidade.

Como foi dito antes, a edição de Journal de Bitita foi estabelecida por Clélia Pisa.
Foi ela quem leu, selecionou e estabeleceu o formato do livro. A tradução foi de Réginet
Valbert. No entanto, a partir do texto traduzido ocorreram outros acréscimos e correções
sugeridas por Métailié, a editora, em comum acordo com a releitura de Clélia Pisa. Diante dos
originais desse trabalho, pode-se observar que as notas que dão o suporte editorial aos textos
mudam radicalmente de uma versão para outra, o que denota um direcionamento do texto para
cada público-alvo selecionado. No caso francês, as notas enfatizam a história do Brasil para o
leitor europeu pouco conhecedor da cultura brasileira. Porém, o original de fato apresenta
diversas oscilações, sinalizando um texto produzido por várias mãos, evidência confirmada
pela editora, em entrevista concedida em novembro de 2013 108 . A versão da jornalista
brasileira não apresenta notas, mas sinalizações ao fim da página de momentos em que
Carolina de Jesus escreveu em francês, nas quais lemos “(1) em francês no texto”.

Como foi dito, Pisa procurou manter em sua versão datiloscrita alguns desvios
gramaticais de Carolina de Jesus como a grafia do francês avant première ou a disposição dos
parágrafos, a acentuação, pontuação e ortografia, as tais “mesclas de hipoconcordância e
hipercorreção”, observada por Lajolo (1996), como característica derivada da carência de
educação formal e das referências da literatura beletrista brasileira e portuguesa lidas e
absorvidas pela escritora. Estes são alguns dos traços delineados por uma escrita
singularmente tortuosa e labiríntica. No entanto, há novas sugestões registrada a mão, nas
quais a escritora rearranja o texto para a tradutora francesa, e anotações feitas por Pisa,
empreendendo correções, supressões e o acréscimo de frases. Métailié acredita que a tradutora
estava presa ao português e traduzia literalmente o que seria ininteligível para o leitor francês.

107 Alberto Moravia (1907-1990), autor italiano, jornalista, romancista e roteirista de cinema. Escreveu vários
livros que se caracterizavam por uma crítica frontal à sociedade europeia do séc. XX, que ele considerava
hipócrita, hedonista e acomodatícia. Tem vários livros transformados em filmes. Em seus escritos são
recorrentes os temas da sexualidade, existencialismo e alienação do indivíduo. Escreveu o prefácio da tradução
para o italiano do livro Quarto de despejo.
108GUIMARÃES, Raquel B.J. Escrita de mulheres: cotidiano, força e rebeldia. Revista Scripta, vol.17, n.33,
p.09-18, 2º sem., 2013.
234

Nos dias de hoje os estudiosos da obra de Carolina de Jesus se preocupam, e


fazem uma reflexão que valoriza os aspectos estéticos da obra para além do hiper-realismo
das narrações da sua pulsante vivência dramática, ou seja, suas experiências biográficas, de
uma simplicidade rude, mas repletas de criticidade.

Esses novos encontros e miradas à obra caroliniana visam, sobretudo, à difusão e


à preservação de sua memória cultural, procurando levar em consideração sua obra. Em certa
medida, muitas vezes, os novos leitores não deixam de recriar e reinventar uma Carolina de
Jesus como antes o fizeram, como necessidade de enquadrá-la em seus ideais, mas ao menos
renovam-se as possibilidades de mirá-la para além de sua faceta testemunhal. Nesse sentido,
essa pesquisa procurou decodificar outras texturas da obra de Carolina de Jesus a partir do
rico acervo literário, ainda não publicado e que desafia ser percorrido.

III.5 Recepção da obra

Respondi a carta de minha mãe pedindo-lhe, que não falasse que ós


pobres têm que ser afônicos. Viver no nósso pais como se fóssemós
estrangeirós. A ira da lei cóntra nós era ogra. A lei pode ser severa.

(Carolina de Jesus)

Diante da variedade testemunhal dos escritos de Carolina de Jesus, Audálio


Dantas percebeu o quanto seria vantajoso à nova prática jornalística mostrar ao Brasil o que
os favelados pensavam. Especialmente naqueles anos de 1960 em que o país passava por uma
transformação “democratizadora”, visando acompanhar o processo modernizador mundial que
aparentemente incluiria as massas, além dos movimentos de “contracultura”, como mostra
Holanda (1986, p.27) em Cultura e participação nos anos 60. Segundo José Meihy, uma
espécie de crônica urbana aparece junto às preocupações da mídia dessa época, que não mais
se interessava em mostrar a vida como deveria ser, mas sim a vida como ela é:
235

Neste sentido, a lida de Audálio Dantas para exibir este outro ângulo do
desenvolvimento em particular porque levava em conta o dia a dia dos
miseráveis e anônimos, ganhava sentido político. Fora ele mesmo que
começara a divulgar a voz dos personagens anônimos que trabalhavam em
favor daquela que se via como cidade que mais crescia no mundo. De início,
Audálio Dantas mesclava a fala da população com personagens escritas por
ele mesmo. Em um dado momento, não mais bastava supor que a narrativa
fracionada de uma escritora ou a reportagem feita indiretamente fosse o
suficiente. Por outro lado, a experiência carioca poderia ser vista como uma
crítica de viés até ficcional. A paulista não. Era o ‘retrato’ da vida que
interessava (MEIHY, 1998, p.22-23).

Paralelamente a essas ideias da época, na prática, a favela era vista e disseminada,


por exemplo, pela imprensa como um “câncer” social que precisava ser extirpado
imediatamente. Um lugar de “perversões religiosas”, fazendo remissão aos religiosos do
candomblé e da umbanda, seria também um espaço que alojaria “criminosos”, todos
colocados num mesmo balaio: “reminiscências da África tribal dos escravos”. As narrativas
de Carolina de Jesus recompõem tanto uma aproximação quanto um distanciamento dessa
visão, exprimindo sua ambiguidade num misto de denúncia e conciliação com o ponto de
vista vigente, sempre colocando o leitor na berlinda diante de sua obra e, portanto, servindo a
todo tipo de leitor. Seu Quarto de despejo compartilha desde o olhar preconceituoso
registrado na matéria (não assinada), a seguir, quanto executa, no contraponto, o espírito
modernizador e contracultural de sua vida miserável, até a escrita autoral em seu “prurido de
libertação intelectual”.

As próprias escolas de samba, que merecem a carinhosa atenção das


autoridades, não são mais do que um meio de exteriorização do primitivismo
da sub-humanidade que pulula das favelas do Rio. Mas a subversão de
valores é tal que aquilo que deveria ser olhado com vergonha e prova da
indigência moral e intelectual se transformou num motivo folclórico bastante
apreciado. Até o carnaval, que há mais décadas atrás, era no Rio uma festa
sadia que permitia ao carioca dar vazão à sua natural expansibilidade,
degenerou ultimamente por influência da favela, em espetáculo degradante
com laivos de orgia africana (1960)109 .

Este é o veio “modernoso” que abriga a obra de Carolina de Jesus e as favelas


brasileiras. Nota-se que o tom agressivo e preconceituoso do texto citado é exterior à
realidade dos morros cariocas e das favelas paulistanas, mas está muito presente na narrativa

109 FONTE: Uma vergonha nacional. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12 de abr. de 1960.
236

da escritora, que acreditou no fim da favela com a chegada da “modernização”110 . Fica


evidente também que, ainda que os críticos da época não pudessem lidar satisfatoriamente
com essa inusitada obra, no entanto, teceram longos elogios ao trabalho da escritora, como se
pode observar no trecho destacado, a seguir:

Percorro, com esforço, mas fascinado, um território desconhecido. Aqui toda


as nossas noções estéticas se baralham, os nossos conceitos literários se
confundem, e nós terminamos numa perplexidade ansiosa: o que emociona
um leitor de romances? O drama que ele nos relata, ou a arte do autor em
relatá-la? A literatura, ou a vida? Mas, no caso, a arte é a própria vida. Não
se trata de ficção, a obra de Carolina Maria de Jesus é o mais realista dos
romances, porque retrata a autenticidade de uma experiência vivida, com
essa brutalidade, essa vulgaridade cotidiana que a imaginação mais
desenfreada seria incapaz de criar e a arte mais requintada incapaz de
exprimir (...) Não sei se ‘Quarto de despejo’ é, rigorosamente falando, uma
boa obra literária, mas é um livro que empolga e marca, tão cedo não
esquecerei de sua leitura (1960)111 .

Quarto de despejo também foi entendido como “porta-bandeira na luta contra a


libertação dos favelados” ou como “planos vermelhíssimos”, em referência à onda comunista
que marcava a América Latina naquele momento. Segundo Marisa Lajolo (1995), Carolina de
Jesus não cedeu à mídia, nem aos projetos da direita ou da esquerda, permanecendo sem uma
definição de lugar:

Construção da mídia, na soleira da modernização acelerada da indústria


cultural brasileira, as duas carolinas – a de papel e tinta, e a de carne e osso –
foram devoradas pela mesma máquina que as engendrara; ritual de
devoração que transcorre sob os olhos e ouvidos cúmplices da esquerda, da
direita, e da academia. Todos traziam pronto o script que gostariam que a
Carolina de carne e osso protagonizasse. Mas o roteiro de encomenda
esbarrava na rebeldia daquela negra que, parecendo não conhecer o seu
lugar não aceitou nenhum dos papéis que lhe reservava o mundo da cultura
letrada branca e os devolvia na mesma moeda; no troco, as contradições não
exorcizadas nem no balanço da bossa e nem tampouco nas violadas no
auditório (1995, p.12).

110Essa esperança de Carolina de Jesus foi anulada ao longo de sua vida, como se pode constatar em seu relato
no filme Favela: uma vida na pobreza (1971), documentário gravado no início dos anos setenta, quando ela
declara com visível pesar que, infelizmente, o problema das favelas teria avançado c om o passar dos anos.
111 LAJOLO, M. Quarto de despejo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 de ago. 1960.
237

O livro de Carolina de Jesus foi relançado em 1993, com prefácio repleto de


conclusões unívocas, aquelas que julgavam a obra apenas de um ponto de vista, não levando
em consideração as contradições que movimentam essa narrativa, fazendo uso de uma ótica
redutora que privilegiou a característica testemunhal dos escritos carolinianos e menosprezou
a elaboração estética presente em Quarto de despejo.

Segundo Lajolo (1995), a ênfase dada ao testemunho de uma mulher excluída, por
ser pobre e negra, deve-se à predominância de um Brasil culturalmente masculino, branco e
patriarcalista, herdeiro de uma cultura colonial, e que, no intento de se modernizar, “gestou”
Carolina de Jesus, “mastigou-a”, mas não a “engoliu”. Esse fato encontrou sua ressonância
alguns anos mais tarde. Em 1996, no caderno “Mais” da Folha de S. Paulo, em decorrência da
publicação de Meu estranho diário (publicação póstuma de fragmentos dos diários de
Carolina de Jesus), Marilene Felinto escreveu sobre a escritora de Quarto de despejo. Para a
jornalista e ficcionista pernambucana, todas as obras da escritora favelada confirmam uma
espécie de equívoco, produzido em parte pela mídia em parte pelo discurso acadêmico, que
visava assentar conexões entre a “erudição alienada” e a “sabedoria popular infusa” erigida na
experiência. Felinto (1996) assinalava que o fato de os diários serem (nos anos de 1990)
publicados sem correções gramaticais, provaria seu valor enquanto documento social,
desprezando qualquer possibilidade de vislumbrar elementos literários dentro dessa narrativa:

É claro (e deveria ter sido na época) que aqueles manuscritos encontrados na


favela não têm qualquer valor literário, porque não transcendem sua
condição de biografia da catação de papel e de feijão (quando havia) no
cotidiano de uma favelada. Os textos têm no máximo valor documental, de
interesse sociológico – o “caso Carolina” talvez aponte para mecanismos de
ascensão social possíveis na realidade brasileira –, antropológico ou mesmo
psicológico em se considerando novamente o “caso Carolina” como um de
compulsão para a escrita, necessidade da arte ou coisas do gênero
(FELINTO, 1996, p.11).

Nessa matéria, a jornalista diz que a “academia tenta, mas não consegue dar
estatuto literário a Carolina Maria de Jesus”, afirmando que tanto Quarto de despejo quanto
Meu estranho diário (1996) necessitaram dos preâmbulos, prefácios e posfácios de Meihy e
Levine, como um esforço de transformar “os clichês de forma e conteúdo, a rima fácil e o
simplismo dos versos” da “catadora” em qualidade poética. Contudo, entende-se que a
comentarista não apreendeu as amarras discursivas que cedem forma ao conteúdo da narrativa
238

caroliniana, termo este que ela se negou a considerar, reiterando apenas a obrigação de uma
“reparação moral” devida às minorias e aos socialmente marginalizados.

Quando se tomam as próprias palavras de Levine e Meihy (1998), nota-se que não
há uma busca fundamental pelo reconhecimento de um estatuto literário para a obra de
Carolina de Jesus. O que Levine conta, entre outras observações, é a sua experiência como
pesquisador brasilianista da pobreza latino-americana. Aos poucos, ele relata como descobriu
a escritora da favela e como ocorreu a evolução de seu trabalho junto a estudantes norte-
americanos. Segundo Robert M. Levine, para as elites acadêmicas, os escritos carolinianos
contrastavam com as teses estadunidenses no que se referia à “democracia racial”,
desmistificando a ideia de que no Brasil não existia preconceito racial devido a uma suposta
“fusão étnica”. Além disso, o sucesso e a aceitação de Carolina de Jesus nos Estados Unidos
estavam também ligados a interesses políticos e medidas saneadoras de combate à pobreza.
Também, os ideais soviéticos que assolaram os anos de 1960, em face de todo um espírito de
transformação social movimentado por grupos de luta contra o sistema de produção
capitalista. A obra de Carolina viceja nesse contexto, como Levine comenta no prefácio do
livro da escritora:

A curiosidade do público norte-americano estava aguçada em vista da vida


cotidiana de pessoas de baixa renda. Foi nesse contexto que o livro de
Carolina encontrava oportunidade de sucesso. Os norte-americanos estavam
ávidos por saber das minorias e desde que Carolina fosse negra, pobre e de
um país “complicado”, estavam dados os elementos de sua aceitação
imediata. Além do mais, aqueles eram tempos de lutas pelos direitos civis
nos Estados Unidos e isto promovia uma popularidade ao tema e uma
simpatia natural para o assunto (LEVINE em JESUS, 1998, p.15).

Sabemos que, ainda hoje, a obra de Carolina de Jesus está entre os grandes
sucessos de venda editorial norte-americana, sendo sempre reeditada. Em 2003, uma outra
obra da escritora foi reeditada nos EUA, Diário de Bitita (1986). Livro de memórias da
infância vivida no interior de Minas Gerais foi relançado por estar relacionado aos estudos
comparativos com escritoras negras norte-americanas112 . Nessas discussões, os estudiosos do
tema comumente analisam o universo da mulher negra com grande preocupação sobre as
ambiguidades ser negra/ser branca que marcam essas narrativas. Sua escritura suscita um

112Mulheres tais como, Maya Angelou em I know the caged bird sings (1994); Toni Morrison em O olho mais
azul (2003); Alice Walker em Ninguém segura esta mulher (1987), dentre outras.
239

grande dilema para a crítica literária, a qual não consegue determinar até que ponto a escrita
caroliniana é ou não literatura, justamente porque sua própria obra não permite qualquer tipo
de determinação, sendo uma escrita esgarçada, esparsa, fragmentada e, em sua maioria,
inacabada113 . A seleção das palavras, o foco, a temporalidade; enfim, a estratégia de contar e o
modo como constrói seus livros trazem para seus textos características do literário de maneira
referencial, mas sempre insipiente do ponto de vista do cânone literário. Além da elaboração
do enunciado e sua relação com a enunciação, conduzida por seu desejo de se tornar escritora
com apoio do editor e dos leitores onipresentes, apresenta brechas para se discutir, inclusive,
suas variações de “autoria”, como discutido no último capítulo desta tese.

Certamente, Carolina de Jesus não está colada a nenhuma tradição literária; sua
expressão é móvel, sobretudo pela fragilidade gramatical estrutural e as dificuldades que
acompanham todo o seu processo criativo. Apesar de ter sido publicada há mais de 50 anos,
os livros publicados não apresentam uma fortuna crítica consolidada, e a maioria do que
existe exclui de imediato as análises que poderiam levar em consideração esse caráter
literário, pontualmente evidenciado, agora, em seus escritos.

Muitos críticos teceram estudos acerca do caso Carolina de Jesus. Alguns


importantes textos de referência mostram que a escritora teve uma grande projeção depois que
o jornalista Audálio Dantas publicou seus diários. Como aponta Bom Meihy (2005, p.5),
Carolina de Jesus dava concretude à ideia de povo, tão em voga naqueles dias, através do
discurso politizado daqueles que procuravam uma arte nacional-popular. “Quem é povo no
Brasil?”, perguntava Werneck Sodré. E lá estava Carolina de Jesus, sem condescendência,
revelando o duro cotidiano da fome, da exclusão, da mendicância, das sociabilidades no
espaço da favela. Naquele contexto de movimentos sociais, de utopias revolucionárias, de
boom industrial, de um Brasil inteligente, conforme termo empregado por Roberto Schwarz
(1999), essa escritora se produziu como grande revelação e como um estrondoso sucesso
editorial, tendo sido traduzida para vários idiomas e convidada a proferir palestras no Brasil e
no exterior.

113 Sobre isto, vale citar: “A escritura dos textos interrompidos ou dos inacabados revela um processo em
decorrência, a criação surpreendida em uma parada, voluntária ou não. Quando a ela se soma o caráter de
inédito, mais complexa é a presença do mundo privado, particular de quem escreve, nessa parcela por ele ainda
não colocada perante os olhas do público, mormente se faleceu sem deixar explicações ou dispor sobre o
destino do manuscrito. Mundo que, no âmbito do trabalho, reúne fases, decisões, hesitações, distrações e
lapsos, mudanças de rumo. E se abre para certos territórios da mente, ao absorver impulsos ou motivos presos a
recursos e mecanismos de defesa; ao encarar entraves e frustrações dizendo respeito, em certos casos, a
ditames de época” (ANCONA LOPEZ, 1994, p.68).
240

Contudo, Carolina de Jesus cairia no esquecimento tão logo passasse o


encantamento da sua descoberta. Como observam Levine e Bom Meihy (1994, p.10), sua
escrita é portadora das muitas ambiguidades que marcam a consciência popular no Brasil, e
isso terminava por desautorizar o discurso dos politizados, e também por eclipsar a
perspectiva de uma elite consumidora de livros que a desejava “cooptável”. Entretanto,
percebemos que, enquanto no Brasil, a obra de Carolina de Jesus é tratada com dúvidas sobre
sua literalidade, nos EUA, ela é classificada como parte da chamada literatura feminina e da
literatura negra, sendo frequentemente reeditada e constituindo bibliografia obrigatória para
certas disciplinas das Ciências Sociais, como ressalta Robert Levine (1996, p.13 e 19).

Como nessas edições, aparentemente “não há distância entre o vivido e o escrito”


nas narrativas de Carolina de Jesus, a configuração de suas narrativas liga-se intrinsecamente
ao que acontece no cotidiano, sem que haja, necessariamente, a utilização consciente de
símbolos e procedimentos artísticos, tão normalmente empregados por escritores canônicos.
Nos textos, que pendem mais para o testemunhal, ela retrata a situação de um enorme número
de pessoas que viveram à sua volta e que até aquele momento haviam tido pouca ou nenhuma
voz na expressão literária do país. Carolina de Jesus, ao revelar, naqueles idos anos de 1950-
60, seus sentimentos mais íntimos: dores, desejos, esperanças, amores e desamores, ela revela
também os sentimentos desse tão decantado povo brasileiro. O mito do povo, que fora
facilitado pelo emblema “democrático” do Estado Novo (1937-1945), foi refletido no
contexto da publicação de Quarto de despejo, até seu esquecimento, marcado pelo processo
de apagamento que se aprofundaria a partir da fase de ditadura militar (1964-1985).

Um dos organizadores da edição de Meu estranho diário (1996), Meihy preocupa-


se em explicar outro dualismo que a obra de Carolina de Jesus traz à luz, mostrando por que,
na esfera política, o livro de uma escritora da favela era cabível na segunda metade do século
XX, no Brasil. Segundo este historiador, o texto carrega um forte cunho de crítica social,
elemento extremamente interessante para o projeto de transformação que a esquerda
propunha: “baseado na reforma agrária, na melhoria de vida dos trabalhadores e na ação
social planificada a partir do Estado” (MEIHY, 1998, p.20), ao mesmo tempo em que se
aproxima dos ideais nacionalistas da direita progressista, que se vale da propositura de uma
“justiça social” para se defender de possíveis revoluções.

Quanto à esfera cultural, o estudioso atenta para a evidência de que estava


ocorrendo um reflorescimento em relação à música, com o surgimento da bossa nova, da
241

jovem guarda e das músicas de protesto, aclarando uma nova problemática social: o
crescimento da pobreza urbana junto com o desenvolvimento das práticas capitalistas,
contradição também presente na representação do Cinema novo, que teve uma de suas
maiores expressões na filmografia de Glauber Rocha 114 .

Na literatura, algumas mulheres ganharam destaque nesse período. Como lembra


Lajolo (1995, p.2), havia um grupo de escritoras com “ideias na cabeça e caneta na mão”,
entre elas, Cecília Meireles, Cora Coralina, Clarice Lispector... Podemos acrescentar à lista de
Lajolo algumas obras nas quais a visão do universo familiar parece nortear as narrativas,
sendo que nelas, de maneira mais ou menos explícita, sente-se um tom de desencanto e
desilusão com a vida familiar. Em Éramos Seis (1966) publicado em 1943, de Maria José
Dupré, a mulher cede à condição de “dona de casa”, relegada ao papel do eterno feminino.
Em Quarto de despejo, a protagonista é uma mãe que mantém os três filhos sozinha, cuja
experiência de vida se mistura à literatura de maneira mais intensa, havendo uma negação da
submissão do feminino ao masculino.

Este contraponto joga luz tanto do ponto de vista da escritora quanto da


personagem, o que permite pensar o lugar social da mulher nessas duas posições antagônicas.
Maria José Dupré, como mulher rica e de vida confortável, em Éramos seis escreveu sobre
uma mulher de vida simples, de pequenas alegrias, mas carregada também de grandes
tristezas. Carolina de Jesus, em Quarto de despejo, narra sua realidade crua, sem fazer
concessões, mesmo construindo um texto de valor poético.

No prefácio que Monteiro Lobato escreveu para a primeira edição do livro


Éramos seis, de Dupré, ele mesmo conta que inicialmente se negou a ler a obra e que não
queria avaliar esse segundo romance da escritora, porque ele “não lia romance de mulher”.
Artur Neves, no entanto, insistiu e enviou as provas para o endereço do editor, que o leu em
uma noite, e o publicou. Devido ao preconceito, tanto dos editores, quanto da crítica, os livros
da escritora eram assinados como “Senhora Leandro Dupré”. O caso de Maria José Dupré não

114Vale a pena conferir um filme pouco conhecido de Glauber Rocha: “Câncer”, filmado em 1968 e finalizado
em 1972, que trata especificamente da condição dos negros marginalizados na cidade de São Paulo, um
mendigo urbano, perfeitamente interpretado por Antonio Pitanga, que traça a dor e o desfalque de um homem-
farrapo que não encontra saída sequer pela “pedagogia da violência”, bastante explorada nas obras do cineasta.
O título do filme faz referência irônica a essa “doença social” que precisava ser exterminada em vias do surto
de “desenvolvimentismo e modernização” do país.
242

foi diferente do de muitas mulheres, que precisavam usar o nome dos maridos, ou
pseudônimo, para serem aceitas por editores e também pelos leitores.

Diferente, portanto, é o caso de Carolina de Jesus, que já foi publicada ocupando


um espaço, o espaço de escritora da favela. Os tempos eram outros. Vale salientar que, nesse
novo contexto histórico, todo o país estava em busca de uma identidade moderna, sendo
Carolina de Jesus a própria expressão da contradição modernização-atraso. Tais paradoxos,
como a convivência entre uma aparente modernização e os valores tradicionais de uma
sociedade patriarcal, marcavam a história e propiciavam a formação de uma literatura
produzida nas franjas do processo modernizador, apenas integrada a ele no que diz respeito
aos problemas sociais que lhe eram concernentes:

Produto da própria cidade, intelectual às avessas, independentemente de seus


dotes pessoais, Carolina Maria de Jesus passava a ser notada como resultado
eloquente da soma de ambiguidades. Falava por si, e por isto, mais no
coração dos leitores que, curiosamente, mostravam-se curiosos. (...). Seria
impossível no ambiente dos anos de 1960 pensar em desprezo à obra de
Carolina. Da mesma forma, exibida como denúncia, suas palavras
desafiavam os defensores de que a cultura seria apenas a acadêmica,
ilustrada pela elite. Junto com a necessária revisão de valores sobre a função
do conhecimento, porém, outros problemas se colocavam. Afinal, como
classificar aquela escritora? Seus textos seriam páginas de literatura?
Reportagens? (MEIHY, 1998, p.23-24).

Meihy, Levine e Lajolo souberam, com muita maestria, explorar as questões


sociais e políticas suscitadas por Carolina; porém, há ainda um enorme vazio quanto à análise
estilística. Segundo Levine (1996, p.9), a obra de Carolina de Jesus foi considerada
“subliteratura” ou “textos menores”. Como se vê, o impasse que sua obra criou foi enorme, já
que ela não pôde ser avaliada de acordo com os critérios que avaliam o círculo quase fechado
de escritores canônicos brasileiros. Num país de pouquíssimos letrados, ela se atreveu a
escrever, e sua extrema pobreza material somada à sua carência de educação formal
contrastaram de maneira gritante com a sofisticação da literatura das classes privilegiadas,
com as quais muitos estudiosos estão acostumados a lidar, aquele tipo de literatura que nem
sempre mantém a si mesma, mas que segue amparada por uma crítica que sobrevive da
autofagia alimentada pelo próprio jargão teórico. Na fronteira do que é ou não literatura é que
Carolina de Jesus se coloca. E essa fronteira não se amplia se continuarmos considerando a
243

produção caroliniana pelos moldes da perspectiva que, de uma forma ou de outra, a


consagrou.

Como pondera Carlos Vogt (1983), o desprestígio de Carolina de Jesus coincide


com o fim do populismo oficial no país e a virada política do golpe militar. As entradas do
diário percorrem os anos de 1958, 1959 até 1960, período de grandes transformações políticas
que afetaram a todos os brasileiros. Mudanças, tais como a construção de Brasília, inaugurada
em 1960, por Juscelino Kubitschek, a “capital da esperança” representava o auge de um
processo “modernizador” iniciado desde o segundo governo Vargas (1950-54), como foi
apontado por Meihy (1998, p.4). É importante salientar que a presença constante de ambos os
estadistas no diário da escritora representa parte de sua preocupação política, de modo que
essa manifestação simbólica de uma vivência politizada foi um dos focos de interesse da
divulgação de seu trabalho, pois Carolina de Jesus seria consequência de um suposto
“ambiente democrático”.

Como produto de consumo que satisfaz à curiosidade de quem não compartilha a


cultura de Carolina de Jesus, o diário permanece na condição de documento, limitado à
categoria de testemunho de interesse social. Este foi o tratamento que a obra recebeu, tanto no
Brasil como no exterior, mas também configura uma das causas de seu esquecimento. Outro
motivo que restringe a obra ao campo do pitoresco pode ser o fato de seus escritos não
estarem inseridos em nenhum gênero prestigiado da literatura brasileira, o que talvez viesse a
garantir a sua permanência. Relegado ao plano da novidade, mas nunca tendo saído dele, o
diário foi devidamente esquecido e mantido em sua categoria de produto de uma época.
Segundo Meihy (1998, p.3), nem mesmo Carolina de Jesus apreendeu a dimensão de sua
fama. Fez sucesso do dia para a noite, sendo curioso o fato de que, após o lançamento de seu
livro, tenha saído para “catar” papel porque não tinha dinheiro para alimentar os filhos:

Com isso sugere-se que toda a transformação operada fora superficial e


externa a Carolina, que se viu transformada em uma espécie de bonequinha
negra de uma sociedade que aprendera a ser flexível. Isso, aliás, dava ares da
tropicalização do mito importado de uma certa self made woman. Essa
versão nacionalizada da ascensão social imediata era algo interessante para o
sistema que passava a “provar a mobilidade social dos novos tempos”
(MEIHY, 1998, p.6).
244

Mas sucesso nem sempre, e principalmente no caso da escritora em questão,


significa aceitação ou interesse profundo, pois, como se vê, não havia conexões reais entre a
Cinderela negra e o Quarto de despejo. Afinal, até hoje não se tem o devido acesso a toda a
obra de Carolina de Jesus, pois, a partir de Levine e Meihy, sabe-se que ainda se encontram
guardados alguns escritos sem os devidos cuidados, num acervo praticamente abandonado,
longe do mundo que a reconheceu e reconheceria como fenômeno. Como explicar que um
relato incômodo tenha vendido tantos exemplares? Tal fato, como já referido anteriormente,
faz parte de um mecanismo pernicioso da indústria cultural que transforma os limites da
humanidade em material de consumo, extasiado e inconsequente.

Desse modo, Quarto de despejo configura-se como uma derivação (ou uma
deformação) dos gêneros de aventuras insólitas que têm lugar, hoje, não mais nas savanas
africanas ou no Oriente distante, mas na paisagem urbana da metrópole subdesenvolvida,
chegando aos leitores como um tipo de gênero deformado no qual uma dura dialética da
violência ou uma “dialética da marginalidade” ganha nova roupagem e toma o lugar da
“dialética da malandragem” anunciada por Candido (1978). Rocha (2004) repensa essa
“malandragem” como o desemboque para a “dialética da marginalidade”, quando analisa o
romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, apresentando cronologicamente a passagem do
mundo do “bom marginal”, do pícaro, “espertalhão”, homem mediano, malandro na
sobrevivência de seu cotidiano, para o mundo do “bandido inescrupuloso”, intrépido, e
movido pela ganância115 .

Reduzida a essa ótica, a obra perde muito de sua força expressiva, que se dirige à
humanidade de quem a lê. Pode-se inferir ainda que a distância geográfica tenha tornado
ainda mais confortável a fruição do diário pelo público estrangeiro, capaz de lidar com uma
carga menor de envolvimento com o conteúdo narrado. As obras subsequentes de Carolina de
Jesus não fizeram o mesmo sucesso que a obra de estreia; a fórmula “cansou” porque foi
entendida superficialmente – tanto que a palavra “fórmula” indica todo um conjunto de
procedimentos para se alcançar o reconhecimento do grande público – fato do qual Carolina
de Jesus não tinha a menor ideia ou consciência, embora ambicionasse a fama e a saída da
favela.

115 ROCHA, João César Castro. Dialética da Marginalidade: caracterização da cultura brasileira contemporânea.
Folha Mais! Folha de S.Paulo, São Paulo, 29-fev.-2004.
245

Relegada a apenas um relato interessante, afastado o perigo de interpretações


vinculadas a uma estreita visão de classe, a obra pôde ser devidamente ignorada, para que
voltássemos ao ramerrão das obras médias, vendáveis e de fácil digestão, que devem ter
compartilhado prateleiras com o diário, nos seus tempos áureos. Tanto a sociedade quanto a
literatura absorveram e neutralizaram a favelada que ousou escrever, obtendo sucesso
estrondoso, para depois, finalmente, esquecer esse estranho episódio. Para José Sebe Bom
Meihy, Carolina de Jesus representa um caso único na história da cultura popular brasileira,
pois que ela “seria a promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural”
(MEIHY, 1998, p.8).

Carolina de Jesus continua a ser publicada nos países de capitalismo avançado,


como os Estados Unidos, principalmente a título de exemplo da pobreza sul-americana, como
também alimentando o fetiche sobre a exótica pobreza da imagem feminina de classe baixa.

Os textos que seguem foram localizados em sites de universidades aqui indicadas,


contendo projetos educacionais de livrarias virtuais. Quarto de despejo foi traduzido para o
inglês um ano após seu boom como The life and death of Carolina Maria de Jesus (1995) e
nunca mais parou de ser publicado; seu segundo diário Casa de Alvenaria (1996) recebeu o
título I’m going to have a little house: the second diary of Carolina Maria de Jesus (1997), e
Diário de Bitita (1986) foi publicado como Bitita’s Diary (1998). A crítica norte-americana
não se diferencia da brasileira, limitando-se a contar a história da “catadora” de lixo e de
palavras. Alguns estudos culturais de tendência feminista veem em sua obra uma expressão da
pobreza e da opressão sofrida pelas mulheres negras no Brasil116 . Como constatamos, a

116A black woman in a country where blacks, even so many years after the freedom of the slaves, have few
professional opportunities, Carolina wrote courageously, fully. Her diary entries, through a succession of
details on the daily search for food and money, con vey the deep despair of the poor, of the dispossessed. It is
relevant, of course, that she was also a women, who understood the plight of other women whose husbands
denigrated them and beat them Her work, now at the eve of a re-evaluation, remains one of the most powerful
documents of what it means to be a black woman of the lower class in Brazil during the 1960s. This work
should make integral part of any serious study of Brazilian letters, life and culture, because through her
concrete nouns and sometimes rough adjectives, Carolina Maria de Jesus reveals, as only the greatest writers
do, the whole, unadorned truth of her time (BUENO, 2005, p.2). # Uma negra que vem de um país onde os
negros, mesmo que após muitos anos da libertação dos escravos, têm poucas oportunidades profissionais.
Carolina escreveu corajosa e inteiramente. Seu diário introduz, através de uma sucessão de detalhes, a busca
por comida e dinheiro, carrega o profundo desespero do pobre, do desprovido de posses. É relevante observar
que ela também era uma mulher que atendeu à condição de outras mulheres cujos maridos as denegriram e as
violentaram. Seu trabalho, no auge de uma reavaliação, perdura como um dos mais poderosos documentos do
que vem a ser uma negra da mais baixa classe social no Brasil da década de 1960. Esse trabalho deveria
compreender parte integral de algum estudo sério das letras, vida e cultura brasileiras, pois, através de seus
substantivos concretos e, algumas vezes, duros adjetivos, Carolina Maria de Jesus revela, tanto qu anto grandes
escritores fazem, toda a desordenada verdade de seu tempo. (Tradução Minha)
246

descrição biográfica é o que a crítica nos apresenta, além das relações entre o diário e a
“feminist literature”. Entretanto, Eva Bueno (2005) afirma que a escrita caroliniana deveria
fazer parte de um sério estudo sobre cartas, vida e cultura brasileira, “porque através de seus
substantivos concretos e adjetivos ásperos Carolina Maria de Jesus revela, como somente os
grandes escritores o fazem, (...) a verdade nua de seu tempo”. A alteridade, portanto, a
verdade que está no outro – “le vécu c’est l’autre”, como propõe Lejeune (apud COLONNA,
2004, p.234), é trazida à tona por esse texto de Carolina de Jesus.

Como mostra Eva Bueno, a obra de Carolina de Jesus toca quem a lê, porque o
narrador é menos mediador do que a própria experiência de vida relatada. Desse modo, a
protagonista permite que o leitor vivencie sua experiência contada, pois a intensidade da
narração vela o tempo e o espaço que separam narradora, protagonista e leitor.

No Brasil, ainda é possível encontrar comentários elogiosos que elevam a


importância de Carolina de Jesus como escritora da favela. Como consta no texto do escritor
Ferréz, morador do Capão Redondo (favela paulistana), em matéria publicada no caderno
Mais do dia 20 de março de 2005:

Ela não veio de nenhuma universidade importante, não era amiga de grandes
editores e muito menos teve estrutura para continuar sua carreira literária.
Talvez por uma dessas injustiças a escritora Carolina Maria de Jesus,
residente na favela do Canindé, rua A, barraco n° 9, talvez não seja
agraciada como uma escritora de clássicos, mas uma coisa é certa: “Quarto
de despejo”, seu primeiro livro, é a coisa mais importante que já li, por isso é
sobre ele que vamos falar. Tenho um exemplar datado de agosto de 1960, e é
meu xodó, porque é um dos pouquíssimos livros feitos por quem escreveu o
que realmente viveu. O subtítulo é “Diário de uma favelada” e realmente é
um diário. Retrata a vida de Carolina como catadora de papelão, que não a
impediu de pegar na caneta e escrever inúmeros cadernos que mais tarde
seriam condensados no livro, traduzido em mais de 40 países e escolhido
como tema de dezenas documentários em todo o mundo. O livro retrata a
vida de Carolina de 15/7/1955 a 1°/1/1960, e nele aprendemos como é viver
realmente na dificuldade de não saber o que virá no dia seguinte, em que a
única certeza é que a fome continuará a pegar seus filhos. O título vem da
imagem que Carolina faz da favela, que, segundo ela, é o quarto de despejo
da cidade, porque lá se jogam homens e lixo, que lá se confundem, coisas
imprestáveis que a cidade deixa de lado (FERREZ, Especial para a Folha, 20
de março de 2005).

Não foram diferentes os comentários que preencheram as folhas do Jornal de


Exposições de maio de 2005, referente ao evento em homenagem a Carolina e para Ruth de
247

Souza, preparado pelo Museu Afro Brasil (MAB), no dia 13 de maio daquele ano. A mostra
reuniu uma série de originais de Quarto de despejo, também as versões internacionais da obra
em cerca de 30 idiomas, além de fotos e documentos pessoais pertencentes a Vera Eunice,
filha de Carolina, e ao jornalista Audálio Dantas.

Em um desses documentos encontramos uma entrevista concedida por Carolina de


Jesus a uma revista chamada Para ti, publicada em dezembro de 1961, quando a escritora
visitou a Argentina. Numa das respostas ao entrevistador, Carolina fala da importância da
educação como um dos meios de superação dos problemas sociais, hipótese ainda,
indiscutivelmente, comprovada nos dias de hoje:

¿─ Cuáles son los medios más apropiados para levantar a esos seres
humanos? ─ Educándolos. El valor de la persona está en su inteligencia y
capacidad; como la política de Brasil es muy desorganizada, no se puede
esperar mucho de ella. Algo me sigue llamando la atención: el mundo ha
evolucionado y la gente sigue robando, matando...? ¿Por qué? (JACKON,
2005, p.10)117 .

Como se pode constatar a partir da leitura dessa crítica à qual tivemos acesso e
referenciamos nesta discussão, a maioria das revisões das obras de Carolina de Jesus deu
ênfase a sua personalidade, às ambiguidades ideológicas, a sua agramaticalidade e até a sua
vestimenta, tendo sido relegado a segundo plano o conteúdo de seu livro.

Nesse sentido, Craig Hendricks, num comentário sobre a repercussão da obra da


escritora nos Estados Unidos, corrobora esta afirmação:

Carolina never changes. The outspokenness, the direct and confrontational


style that served her so well in the favela quickly alienated Brazilians who
expected her to be polite. Humble, and introspective. Most reviews of her
book focused on her personality, her dress, her writing style, but almost
nothing about the content of the book itself. The harsh reality that Carolina
exposed, the racism, the sexism, the brutality of everyday life for favelados,

117─ Quais são os meios mais adequados para ajudar a ess as pessoas [os pobres]? ─ Educando-os. O valor da
pessoa está em sua inteligência e capacidade (de desempenho); [mas,] como a política do Brasil é muito
desorganizada, não se pode esperar muito dela. Uma coisa continua me chamando atenção: o mundo evoluiu e
as pessoas continuam roubando, matando... Por quê? (Tradução Minha)
248

all of this was dismissed as essentially local color, unimportant for Brazil
(HENDRICKS, 2006, p.2)118 .

As muitas obras consultadas, como, por exemplo, Crítica sem juízo (1993), de
Luiza Lobo, somente citam Carolina de Jesus como exemplo de escrita feminina produzida
por uma mulher pobre e negra, mas nunca analisam a elaboração estética no texto das obras
da escritora.

Na contramão da crítica, a potência da escrita literária de Carolina de Jesus


coaduna-se com a de outros que vieram depois dela (Allan da Rosa, Dinha, Michel Yakini,
Cidinha, Conceição Evaristo e tantos outros), capacidade de se humanizar e humanizar as
pessoas (CANDIDO, 1995), e de sair do lugar de quem se destrói em meio à miséria ou vive
uma rotina sem arte, pois sua literatura, enquanto criação, expande seu território em
desterritórios, curvas e inflexões estranhas, extravagâncias licenciosas, permissíveis e
descomedidas, “contrariando as estatísticas”. Sempre reinventado um novo lugar para além
daqueles supostos e determinados em que insistem em aprisioná- la.

118Carolina nunca muda. A franqueza, o estilo direto e de confronto que serviu tão bem na favela que,
rapidamente, brasileiros alienados esperavam que ela fosse uma mulher educada, humilde e introspectiva. A
maioria dos comentários de seu livro são focados em sua personalidade, seu vestido, seu estilo de escrita, mas
quase nada sobre o conteúdo do livro em si. A dura realidade que Carolina expõe, o racismo, o sexismo, a
brutalidade do cotidiano de favelados, tudo isso foi omitido, sendo considerado algo essen cialmente local, sem
importância para o Brasil. (Tradução Minha)
249

Capítulo IV

AUTOBIOGRAFIA COMO GÊNERO CONDUTOR DO DEVIR-TRAPEIRO


DA LITERATURA
250

IV.1 A escrita como devir

- Ele olhou-me e disse: Contei-lhes que um dia uma jovem bem vistida
vinha na minha frente.
Um senhor disse:
- Olha a escritora! O outro agêitou a gravata e olhou a loira.
Assim que eu passei fui apresentada.

- É isto!?
E olhou-me com cara de nojo. Sorri, achando graça. Ela é a escritora
vira-lata, disse a Dona Maria mãe do Ditão. Os passageiros
sorriram. E repetiram. Escritora vira-lata.

(Carolina de Jesus)

Como já foi dito, Carolina de Jesus tinha o hábito de copiar seus escritos,
mantendo somente um caderno originário para seus textos de teor literário. Ela reescrevia ou
pedia para datilografarem seus poemas, romances, contos e peças de teatro, aprimorando a
ortografia, incorporando sobre esses textos, com letra cursiva, novos assuntos e
acontecimentos. E foram essas diversas cópias do mesmo texto que ficaram guardadas com
sua filha Vera Eunice Lima de Jesus e resgatadas pelos professores Meihy e Levine, nos anos
1990. Os dois organizaram a publicação de parte desse material no livro Meu estranho
diário119 após longo processo de higienização, separação e organização do conjunto, que
também foi microfilmado.

A compulsão de Carolina de Jesus por copiar diversas vezes seus textos, como um
processo de reescritura, não incluía numerar as páginas dos diários. Alguns textos foram
copiados, basicamente, sem muitas alterações, diferentemente dos textos memorialísticos que
apresentam diversas versões.

Isso, talvez, corrobore para ilação do diário como écriture de premier jet, mas não
explica, porém, as motivações para a elaboração de cópias de outros gêneros. Nesse sentido,
segundo Meihy:

119Carolina de Jesus escolhe o nome “Desilusoes” para as narrativas que compõem seus cadernos pós -favela, e
os intitula “Meu estranho diário”. O termo “estranho” parece sugerir uma autoironia de sua “desdita”, e
também a condição de “escritora vira-lata” que a acompanhou por toda sua vida.
251

Alguns textos estão reproduzidos mais de uma vez e este fato é duplamente
importante: para a comprovação do tipo de cuidado que ela mantinha e para
seguir a fidelidade da cópia. Poucas vezes nota-se alteração no texto e,
quando isto ocorre, quase sempre é nos poemas. Não há como não se
emocionar em face da letra de Carolina. Firme, grande, corrente, vigor e
energia depreendem da fluidez com que escrevia. Tanta vitalidade justifica a
pergunta que certamente todos se fazem, por que ela escrevia e copiava o
que fazia? Não cabe a alternativa de ser rascunho, posto que os textos são os
mesmos. Há reaproveitamento, é certo. Algumas vezes ela enxertava
fragmentos do que tinha escrito e que aparecem em entrevistas. Há também
repetições, que mostram que o mesmo critério era usado (LEVINE &
MEIHY, 1996, p.29).

As cópias de seus textos funcionavam como uma reprodução do seu trabalho, para
conservá-lo e também para poder difundi-lo. É importante lembrar que Carolina de Jesus,
mesmo antes de ter seu diário publicado, já havia enviado seus trabalhos para editores, jornais
brasileiros e estrangeiros, e para pessoas às quais ela confiara parte de sua obra, contando com
possíveis publicações. Em sua realidade, na favela, não haveria possibilidade de reprodução
mecânica dos seus escritos, senão através da cópia manuscrita de cada um; somente bem
depois é que seus filhos passaram a datilografar alguns de seus textos, como o romance “Dr.
Silvio”, as narrativas memorialísticas de “Um Brasil para brasileiros”, narrativas curtas,
dentre outros.

Não se pode inferir que no caso de Carolina de Jesus houvesse uma preocupação
de elaboração formal, quando se trata do texto diarístico, pois, como notou Meihy (1996),
estes estavam sempre a salvo das alterações. Outro fator importante ao longo da prática de seu
devir-escrita foi a supervalorização, por parte de seus editores, dos escritos diarísticos em
detrimento dos escritos ficcionais. Talvez a contragosto, a escritora acabou por se resignar à
superimposição da escrita de diários em sua vida, bem como sua figura pública de escritora.
Ao evitar fazer alterações em seu texto diarístico, a escritora poderia estar sinalizando para o
modo como compreendia esses escritos num contexto mais amplo de sua produção de
literária. Carolina de Jesus “ruminava” suas horas, seus passos, suas reflexões e emoções, ao
longo do dia, visando pôr tudo em seu diário, pois escreveu seu diário para viver, mais do que
para mostrar o que viveu. Escrever suas carências foi a primeira forma de superá-las e
compreendê-las; depois, reutilizar pessoas, nomes, e assuntos escamoteados em seus
experimentos literários. Após sua “descoberta” e a possibilidade de transformação de seu
diário em livro, mais ainda se tornou imperativo escrever e tudo registrar.
252

No desenvolvimento desta pesquisa foi identificada uma multiplicidade de


discursos e gêneros literários e não literários que compõem o acervo do espólio Carolina de
Jesus, um patchwork sem arremates ou aquilo a que chamamos “poética de resíduos”. O
corpus da tese foi analisado a partir de narrativas esparsas em seus manuscritos inéditos,
dentre as quais foram eleitas as mais simbólicas desse processo, ou seja, aquelas pertencentes
a uma zona limítrofe entre os gêneros conto, carta, fábula e autobiografia. Esta escolha se
deveu ao fato de considerarmos que a escritora, ao produzir esse compêndio literário e ao
longo de todo seu processo criativo, ela empreendeu uma incursão do eu através da escrita de
si; mas, sobretudo, nos textos analisados, entendemos que ela procurou se distanciar desse
vício estilístico. A criação de Carolina de Jesus se desdobra sobre a vida e sobre outras obras
que escrevia, como Quarto de despejo já publicado, num mecanismo de apropriação e
recriação, reafirmando a teia radicular e conflitante das buscas que alimentam a re-invenção
de si mesma.

A reflexão teórica acerca da natureza dessas narrativas, em ruínas, em estado


residual, compostas por uma narrativa em busca de “identidade”, pode ser pensada a partir
dos pressupostos de Paul Ricoeur (2000) sobre a “identidade narrativa” como prática, pois
para o filósofo a identidade vem sempre acompanhada da prática de um indivíduo ou de uma
comunidade. Nesse caso, passa pelo reconhecimento do outro e de si mesmo através da
interpretação, possibilitada por essa linguagem memorialística e confessional da escritora.

Portanto, nesse sentido, percebe-se que os diálogos transcritos por Carolina de Jesus
tentam apreender os acontecimentos no tempo e no espaço, inscritos através da voz daquele
que observa, de modo que esse outro, reinterpretado por sua memória, contribui para a
formação de sua identidade:

Parler de l’interprétation en termes d’operátion, c’est la traiter comme un


complexe d’actes de langage – d’énoncioations – incorporé aux énoncés
objectivants du discurs historique. Dans ce complexe, on peut discerner
plusieurs composantes: d’abord le souci de clarifier, d’expliciter, de déployer
un ensemble de signification réputées obscures en vue d’une meilleure
compréhension de la part de l’interlocuteur (RICOEUR, 2000, p.442). 120

120 Falar da interpretação como operação é tratá-la como um complexo de atos de linguagem – de enunciações –
incorporados aos enunciados do discurso histórico. Nesse complexo podemos destacar vários componentes:
primeiro a preocupação de explicar, de esclarecer, de implementar um conjunto de significados conhecidos
como obscuros em vista de um melhor entendimento do interlocutor. (Tradução Minha)
253

Para Ricoeur a “identidade narrativa” se constrói em todas as narrativas que falam


de si, pois o ‘eu que fala’ constrói ações ao falar, recompondo uma “hermenêutica da
suspeita”, e responde sempre pela narrativa e pela intriga, através de um referencial que não
cria necessariamente uma autoficção, no sentido limitado ao testemunho, que vai gerar o
efeito de inderminação referencial nas narrativas. Porém, ao mesmo tempo, como recorda
Françoise Simonet-Tenant121 em Le propre de l’écriture de soi, este efeito responde pela
intriga, pela fala-ação, ou seja, transfere a experiência viva para a narração.

A ideia de “soi-même comme un autre”122 , de Ricoeur, mostra que há sempre um


outro que incide sobre a narração desse eu, seja nesse movimento de captura do discurso
alheio para dentro de seu texto, seja na sua interpretação do outro para si, para apropriar-se;
seja na sua forma de traduzir a própria mirada tendo em vista um público leitor, seja através
da intervenção alheia de seus interlocutores.

Não se pode perder de vista, no entanto, que suas narrativas ativam uma forma
oblíqua de falar de si mesma, na medida em que o faz através da história de outros, ou da
mistura desses com traços específicos que vão, de fólio em fólio, moldando um pacto indireto
que troca os nomes das personagens, mas não transforma o conteúdo de suas experiências,
algumas com maior proximidade de traços biográficos dramatizados, vertidos em variações,
como nos casos das personagens “Rita” (romance homônimo) e “Glória” (romance sem
título), que partilham a mesma ânsia de transformar seus destinos por meio da emancipação
feminina; tiveram uma infância bastante similar, sofrem de uma mesma doença, assim como
ambas são filhas de um anônimo que passara pela cidade onde nasceram, e como castigo
carregam a “doença de chagas”, que as exclui do convívio social.

Tanto a doença – que faz referência às feridas das pernas de Carolina de Jesus – e
o preconceito dela derivado, quanto a fuga de sua cidade de origem correspondem a dois
exemplos de rotas percorridas por Bitita, quando estava entrando na vida adulta.

Em geral, as personagens de Carolina de Jesus vivem as migrações do campo para


a cidade, e criticam o caos e as incertezas experimentados nas metrópoles, sentimento
marcante em seus diários, em todos os gêneros de seus escritos. Assim, a “identidade

121 Le Propre de l’écriture de soi, sous la direction de Françoise Simonet-Tenant, Paris, Editions Tétraèdre,
2007.
122 RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990.
254

narrativa” concebida em seus textos elabora imagens de si a partir de um eu lírico narrado.


Nesse sentido, pode-se pensar também que seus escritos são possibilidades de autoficção e
enunciação de uma poética vinculada aos gêneros institucionalizados e a outros, moventes,
como substâncias utilizadas para seus experimentos de escritura.

É no entreato dessas duas posições que se constitui essa escrita malabaresca, a


apoiar-se sobre escombros; em gênero, a nada se filia, mas faz parte do todo versátil que a
compõe, revalorizando sua “experiência da pobreza” num labirinto de vozes e discursos.
Nesse sentido, Carolina de Jesus faz uso dos “dispositivos” sociais apontados por Agamben
como ferramentas do poder, e os desloca para criar um tempo próprio, antecipando questões
contemporâneas no bojo de sua poética de catação e reciclagem:

A contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que


adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente,
essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e
um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época,
que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são
contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não
podem manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN, 2009, p.59).

Agamben propõe a profanação. Profanar, para o autor, significa restituir ao uso


comum o que havia sido separado na esfera do sagrado: “Consagrar (sacrare) era o termo que
designava a saída das coisas da esfera do direito humano; profanar por sua vez, significava
restituí-las ao livre uso dos homens” (AGAMBEN, 2007, p.65). Em função das
transformações provocadas pelo capitalismo, Agamben afirma que muitas coisas passaram a
ser improfanáveis, e, por isso, ele conclui: “a profanação do improfanável é a tarefa política
da geração que vem” (AGAMBEN, 2007, p.79).

Na esteira desta proposição, a escritura de Carolina de Jesus pode ser


compreendida como uma profanadora da linguagem, que se vale da sua língua materna
rudimentar, mas incorporando nela, deliberadamente, elementos da literatura beletrista para,
então, empreender a sua própria poética. Assim, ela mobiliza a “linguagem do povo que
faltava” através de sua língua literária particular, ou seja, decodifica a linguagem, de um
modo quase orgânico, para re-decodificá- la mediante os abusos de sua criação audaciosa.

Michel Pêcheux talvez possa nos ajudar a pensar essas questões:


255

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens;


não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige
silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal;
mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os
enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o
léxico jogando com as palavras.../ E assim começar a se despedir do discurso
que produz o discurso da dominação. De modo que o irrealizado advenha
formando sentido do interior do sem sentido (PÊCHEUX, 1990, p.17).

Alfredo Bosi também trata desse assunto, isto é, de narrativa e resistência:


“Resistência é um conceito originariamente ético, e não estético. O seu sentido mais profundo
apela para a força de vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a
força própria à força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir”
(BOSI, 2002, p.118). Mais adiante, Bosi conclui, afirmando: “[...], eu diria que a ideia da
resistência, quando conjugada à de narrativa, tem sido realizada de duas maneiras que não se
excluem necessariamente: a) a resistência se dá como tema; b) a resistência se dá como
processo inerente à escrita” (p.120). Esta segunda opção parece estar de acordo com o
processo criativo de Carolina de Jesus, pois que, em seu ato de escrever, ela resiste; e, ao
resistir, ela inventa e cria um novo sentido, a partir de seu próprio discurso.

Essa resistência da qual fala Bosi, e que pode ser percebida nas narrativas de
Carolina de Jesus, além de fazer parte do processo mesmo de sua criação, deveria ser também,
para ela, um recurso de sobrevivência íntima, como se o ato de escrever a protegesse da
“morte” do anonimato. Por outro lado, tampouco, não deixa de desvelar o jogo labiríntico,
como um esconde-esconde necessário que todo escritor acaba por construir, já que ele narra a
partir de si, de sua história, mas usa como ingredientes principais a imaginação e a fantasia.

Portanto, estudar a gênese de um texto implica aproximar-se ao máximo da


intimidade de sua tessitura. Conhecer as entranhas de seu escritor e revelar ao público um
olhar muitas vezes embebido das artimanhas, às quais os procedimentos criativos nos
arrastam, nos confunde e nos impõe uma interpretação sobre a realização de sua feitura.
Como demonstra Viollet (2007), os escritos autoficcionais não estão isentos da própria ficção,
que implica o ato de escrita sobre si, nem desse tipo de linguagem que margeia a
autobiografia e a ficção, permitindo ao leitor:

Évaluer la pertinence de la notion d’autofiction au filtre de quelques études


de genèse peut donc se réveler utile, em fonction des interrogatives suivants:
256

<<référentielles>>, et les mécanismes de fictionalisation de soi


éventuellment mis em oeuvre? De situer les lieux et les moment de
l’élaboration textuelle où se produisent ces phénomène d’en préciser les
modalités? Enfin, quels critéres linguistique, poétiques et stylistiques
permettent de produire ces effets d’équivocité, d’indértemination ou
d’indécidable propres à l’autofiction, susceptibles à la fois d’une lecture
référentielle et d’une lecture romanesque –ou encore refusant ou suspedant
aussi bien l’une que l’autre? (VIOLLET, 2007, p.9)123 .

Foi constatado que seus escritos revelam uma compulsão pela repetição e funcionam
como um verdadeiro laboratório de escrita e autodidatismo. Podem recair sobre a criação da
existência de uma personagem ‘si-mesma’, como aponta Viollet (2007). Mas, no âmbito da
análise literária, esta pesquisa preocupou-se menos com a veracidade dos acontecimentos
descritos do que com as tramitações imaginárias cujas versões foram adquirindo as novas
roupagens que a permeiam, mobilizando os esforços da pesquisa numa trajetória de volta, até
os “fatos”, somente para elucidar questões pontuais que poderiam corroborar esclarecimentos
acerca dos mecanismos que envolveram a criatividade, essa criatividade tão aparente nas
narrativas analisadas.

IV.2 Nas pegadas do devir-trapeiro da literatura

Souvent, à la clarté rouge d'un réverbère


Dont le vent bat la flamme et tourmente le verre
Au coeur d’un vieux faubourg, labyrinthe fangeaux
Où l’humanité grouille en ferments orageux,

On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,


Buttant, et se cognant aux murs comme un poëte,
Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,
Épanche tout son coeur en glorieux projets.

Il prête des serments, dicte des lois sublimes,


Terrasse les méchants, relève les victimes,

123 Avaliar a pertinência da noção de autoficção a partir de alguns estudos de gênese pode revelar-se útil a partir
das seguintes interrogativas: “referenciais”, e mecanismos de autoficcionalização, eventualmente se aplicam?
Situar os lugares e os momentos da elaboração textual onde se produziram tais fenômenos especifica suas
modalidades? Enfim, quais critérios linguísticas, poéticos e estilísticos possibilitaram a produção desses
efeitos de equivocação, de indeterminação ou indecifração, próprios à autoficção, suscetíveis ambos de uma
leitura referencial e de uma leitura romanesca, ou ainda recusando ou suspendendo tanto a um quanto ao
outro? (Tradução Minha)
257

Et sous le firmament comme un dais suspendu


S’enivre des splendeurs de sa propre vertu.

Oui, ces gens harcelés de chagrins de ménage


Moulus par le travail et tourmentés par l’âge
Ereintés et pliant sous un tas de débris,
Vomissement confus de l’énorme Paris,

Reviennent, parfumés d’une odeur de futailles,


Suivis de compagnons, blanchis dans les batailles,
Dont la moustache pend comme les vieux drapeaux.
Les bannières, les fleurs et les arcs triomphaux

Se dressent devant eux, solennelle magie!


Et dans l’étourdissante et lumineuse orgie
Des clairons, du soleil, des cris et du tambour,
Ils apportent la gloire au peuple ivre d’amour!

C’est ainsi qu’à travers l’Humanité frivole


Le vin roule de l’or, éblouissant Pactole;
Par le gosier de l'homme il chante ses exploits
Et règne par ses dons ainsi que les vrais rois.

Pour noyer la rancoeur et bercer l’indolence


De tous ces vieux maudits qui meurent en silence,
Dieu, touché de remords, avait fait le sommeil;
L’Homme ajouta le Vin, fils sacré du Soleil!

(Charles Baudelaire, Le vin des chiffonniers)

Muitas vezes, à luz de um lampião sonolento,


Do qual a chama e o vidro estalam sob o vento,
Num antigo arrabalde, informe labirinto,
Onde fervilha o povo anônimo e indistinto,

Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,


Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.

Juramentos profere e dita leis sublimes,


Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.

Toda essa gente afeita às aflições caseiras,


Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,

Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,


Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais

Erguem-se ante essa gente, ó solene magia!


E na ensurdecedora e luminosa orgia
Dos gritos, dos clarins, do sol e do tambor,
258

Trazem eles a glória ao povo ébrio de amor!

Assim é que através da ingênua raça humana


O vinho, esplêndido Pactolo 124 , do ouro emana;
Pela garganta do homem canta ele os seus feitos
E reina por seus dons tal como os reis perfeitos.

E para o ódio afogar e o ócio ir entretendo


Desses malditos que em silêncio vão morrendo,
Em seu remorso Deus o sono havia criado;
O Homem o Vinho fez, do Sol filho sagrado!

(Charles Baudelaire, O vinho dos trapeiros125 )

Ao analisar a obra de Baudelaire, Walter Benjamin (1989) observa a existência do


poeta trapeiro, o chiffonnier incorporado e visto sob a ótica do poeta. Homens dispersos pelas
ruas de Paris do segundo império, a observar a multidão e a recolher, para suas
sobrevivências, os restolhos, os farrapos de uma sociedade em pleno processo de
modernização. Estamos pensando a poética de resíduos de Carolina de Jesus com um traçado
semelhante, como o palmilhar desse trapeiro experienciado pelo poeta francês Charles
Baudelaire. De igual maneira, a catadora encontra nos restolhos das ruas e nas tradições
literárias passadistas o seu motivo propulsor, ou seja, ela “abre seu coração em gloriosos
projetos” de modo a transcender a “experiência da pobreza” que sustenta sua literatura.

A condição dessa escrita trapeira palmilhada numa cidade desumanizada, em meio


às promessas de progresso na vida dos homens, verte na junção de pequenas frações de língua
e literatura, reunidas com o mesmo fim, ou seja, no engendramento de uma narrativa, tanto
diarística como memorialística, que pode ser notada pela tentativa de separação dos gêneros e
na organização dos textos escritos por Carolina de Jesus. No entanto, numa realidade de
parcos recursos materiais, ficou inviabilizada uma possível organicidade cartesiana dos
gêneros, ao passo que sua condição “trapeira” colabora para a produção de uma mescla dos
gêneros, e da pluralidade discursiva que marca seus escritos, de modo a fazer entender que o
estilo fragmentado e fraturado de seus textos apareça como reflexo cognitivo de ruídos, em

124Do grego, Paktolós (Πακτωλός), pequeno rio da Lídia, afluente do Hermo (Χέρμο), célebre pelas pepitas de
ouro que abundavam em suas águas, origem da riqueza de Midas e Creso (N.T.)
125 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. (Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira). Edição
bilíngue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (p.363-365)
259

uma condição de vida em meio a ruínas, mas também como recurso de resistência criativa,
como já apontado aqui por Bosi e Pêcheux.

Pelo modo de Carolina de Jesus operar sua criatividade – e guardada a devida


distância entre os casos – isso faz lembrar Ginzburg (2012) quando afirma que os modos de
operação da linguagem benjaminiana unem fragmentação e conhecimento na formulação
própria de sua crítica literária. Ele considera que as notas de Benjamin expressam sempre uma
reflexão em andamento e se vale da incorporação daquilo que estuda para a forma de seu
texto, combinando formação literária com formação teórica. Observa ainda que “a tendência
de Benjamin parece ser pensar em aforismos, em casos como Parque central, e trabalhar como
um colecionar, operando uma montagem de ideias e citações” (p.138).

Este vínculo entre material estudado e material produzido, bem como a “utilização
das metáforas como conceito” estão de igual maneira sustentados nos textos de Carolina de
Jesus, que vai catando e acumulando suas experiências para compor seus exercícios de escrita.
As tais junções inesperadas entre Nietzsche e Nostradamus ou Hitler, Che Guevara e Vietnã
em um mesmo excerto, por exemplo, são peças de um mosaico ou um pano de trapos
amarrados como numa colcha de retalhos, imensa, repleta de referências unidas – como no
exemplo desta comparação – que produzem algo além de um choque entre culturas ou entre
sociedades, e recria sensações que nos aproximam de sua forma trapeira de captar recursos
literários e históricos, mas que dificultam que a analisem. Assim como ocorre nos textos
ensaísticos benjaminianos:

Os elos de pertinência entre as afirmações muitas vezes têm de ser


procurados por meio de uma hermenêutica delicada que examine
pormenores. Os exemplos dessa natureza, que poderiam ser vários – e são
facilmente encontráveis –, atormentam o leitor desprevenido e impaciente,
acostumado ao desdobramento dedutivo e esquemático dos textos
argumentativos convencionais (GINZBURG, 2012, p.138).

Ao seguir tais pistas, é de se supor que Carolina de Jesus também demonstra essa
falta de sistema. Mas, enquanto Benjamin procura nomeadamente pôr à disposição da
comunidade uma escrita que provoque, levando a uma função reflexiva, moral e política, a
escritora perfaz seu caminho a partir de uma desestabilização modeladora de seu acervo
literário, que emerge de uma condição marginal-trapeira, da denúncia social e do tino
260

literário, a intentar inserir no popular algum tipo de erudição. No caso de Benjamin, ele via a
crítica literária como um posicionamento político e de domínio da forma. Entretanto,
tomando-se a necessária distância entre as proporções, pode-se inferir que ambos são a
expressão de um mundo da negação ou do negado, que se rebela por meio da linguagem, e
que veem seus trabalhos como construção artística reflexiva rumo à busca da liberdade.

Com efeito, ambos são a expressão do conhecimento em sua dimensão humana,


parcial e fragmentária que não sustenta uma “posição falsa e autoritária do poder total”. Mas,
vale ressaltar que Carolina de Jesus não escolhe ser, e sim aparece como uma escritora
“vanguardista” a seu modo, pois sua produção exibe procedimentos precursores daquilo que é
autonomeada hoje “literatura marginal periférica”. Sua “poética de resíduos” enquanto projeto
literário erigido de uma forma orgânica resulta de sua existência à margem, de tal modo que,
mesmo que a escritora não tenha tido a intenção deliberada de construir um discurso
propositalmente fragmentado, ela o fez com maestria.

Quanto à materialidade dos cadernos, percebe-se que também apresentam


fragmentações na disposição dos textos, que muitas vezes recomeçam ou continuam noutros
cadernos, nutrindo a dispersão e a movência que, após longa observação, supõem-se
pertencerem ao período em que Carolina de Jesus, ainda na condição de catadora favelada,
não dispunha de recursos para adquirir cadernos novos; por isso, reciclava papéis para
escrever e, escrevendo, sobrevivia. Assim, pode-se avaliar de que modo suas dificuldades, de
maneira decisiva, interferiam no processo criativo de suas narrativas, já que não havia uma
estabilidade no suporte.

No fac-símile do manuscrito da peça teatral “A senhora perdeu o direito” é


possível observar um exemplo do que se aponta na análise, tanto na disposição de sua escrita
como no modo como faz o aproveitamento das páginas:
261

Documento 28: FBN: MS-565 (5): Caderno 10 – “A senhora perdeu o direito”, FTG s/n.

Esses cadernos mostram, em sua diversidade de gêneros, um reaproveitamento


quase que integral dos espaços das folhas que restavam dos cadernos reutilizados, resgatados
do lixo. Escritos numa caligrafia compacta, em folhas degradadas e sujas, alguns com
manchas do próprio lixo, haja vista o contexto material em que ela armazenava seus cadernos
e livros, isso é, dentro do barraco juntamente com os materiais recicláveis para tentar protegê-
los da chuva, para depois vendê-los durante a semana de acordo com sua necessidade mais
imediata, otimizando seu tempo, duplamente comprometido: o do trabalho de catação e o da
escrita.

Em seguida, quando de sua descoberta, passando a dispor de recursos materiais,


Carolina de Jesus vai modificando sua forma de escrever, após vários rumos. A partir de
então, sua letra é firme e volumosa, a ortografia aproxima-se da gramática padrão, e ela chega
mesmo a oscilar na escolha entre um sinônimo e outro, apresentando na margem do
manuscrito o significado da palavra, que foi levantado do dicionário.

Nos cadernos, agora comprados, a escritora se permite, a seu bel-prazer, deixar


linhas em branco – linhas que antes eram aproveitadas com tanto cuidado –, e podendo até
eleger cadernos distintos para gêneros variados na incansável re-escritura de seus textos,
262

procurando alcançar um tom estético de elegância, por meio da correta grafia de sua
expressividade. Também, nos novos cadernos já aparece a numeração de páginas, como no
exemplo a seguir, o que nos leva a entender que tais cadernos não são mais “restos reciclados”
e, sim, objetos comprados para um determinado fim, ou seja, cadernos para escrever seus
textos. Seus cadernos da posteridade.

A página em fac-símile, apresentada a seguir, em que Carolina de Jesus


homenageia seu avô, texto que foi reescrito em diversos cadernos, sendo depois datilografado,
aparece nesta imagem como sendo a última versão manuscrita do mesmo texto, datado dos
anos de 1970.
263

Documento 29: IMS: CLIT PI 0002: Meu Brasil -“O Sócrates Africano” (F. 76).

Essas diferenças no suporte, somadas às dispersões do que é hoje o espólio


literário de Carolina Maria de Jesus, dificultam a pesquisa do acervo, colocando o pesquisador
diante dos originais na condição próxima à de um arqueólogo que busca encontrar uma
justaposição de relação entre as partes e o todo, o que certamente vai interferir no olhar sobre
264

a obra, ao mesmo tempo em que essa condição direciona o rumo da pesquisa. Neste espólio,
muito em particular, não é possível inferir uma ordem original ou mesmo uma ordem sugerida
pela escritora, pois, neste arquivo fragmentado, as circunstâncias de distribuição e doação do
acervo permitiram a reunião das obras, assim como pelas adversidades pontuais do contexto
da vida insalubre de Carolina de Jesus não foi viável gerar um critério de arquivamento.

Como vimos, o conteúdo dos textos de Carolina de Jesus também segue linhas de
errância e incertezas; por exemplo, nos três “diários” da escritora, a temática da cidade e do
campo aparecem sugestionados por ela de um modo ambíguo, ora a cidade é eleita como
símbolo de desenvolvimento humano, chegando a ser, inclusive, um ambiente propício para
pôr em funcionamento sua máquina de autoescrita como ela diz na versão 1 de “Prólogo”, ora
a cidade é condenada como ambiente promíscuo e degradante, como no romance “A
felizarda” ou no conto “Onde estaes felicidade?”. O campo, às vezes, é presentificado pela
exaltação da natureza ou pela crença de que o país seria salvo por uma reforma agrária; o
campo de Carolina de Jesus nos parece ser lócus que corresponderia a uma vida digna, como
lemos versão 2 de “Prólogo”.

A escritora nunca parou de tecer linhas de errância no incessante cumprimento de


seu devir-aranha e, alinhavando o inadaptável e impronunciável para além da linguagem
realista de uma realidade inóspita, teceu sua interioridade através do registro oral ancestral
desvendado nas minúcias.

Elena Pajaro (2015)126 , ao decodificar a presença da referência ao “astro rei” no


discurso de Carolina de Jesus, afirma ser resquícios de um costume de saudação e veneração
ao Sol, da cultura banto, reproduzida por seu avô e por ela cultivada. Vestígio que costuma ser
lido como uma aparente e enfadonha repetição ou como laivos de poesia na descrição de sua
escrita diarística.

No entanto, sua escrita começa pelo meio, estilhaça o sujeito ao expor limites
entre memória e ficção, e parece sempre buscar a coisa que o signo já não é, como no
cultismo da linguagem passadista dos poetas românticos, lidos e reencarnados nas pegadas de
seu devir-chiffonnier, ou nessa ancestralidade quase imperceptível, em cuja linguagem vai

PAJARO, Elena. Entrevista concedida ao programa “Pesquisa Brasil” da rádio USP. Disponível em
126

<http://bit.ly/5JPBr>
265

recolhendo e tecendo seus textos com retalhos de linguagens alheias, mas que fazem também
parte dela mesma.

Às vezes o devir-trapeira revela-se no encontro com outros trapeiros, andarilhos


ou mendigos, conforme se pode ler no texto em destaque onde ela diz ter encontrado uma
indigente. Será que se valeu desse motivo para fazer sua crítica reflexiva ou autocrítica?
Estaria ela fazendo eco ao poema de Manuel Bandeira 127 lido em algum livro achado no lixo?

Fiquei horrorizada ouvindo/ uma indigente dizer que/ haviam roubado a sua/ trouxa, que
continha apenas/ trapos para ela forrar/ as calçadas para dormir/ O tipo que roubou-a deve
ser um tipo mutilado mental// que quando ganha esmola toma apenas um copo de/ lêite.
Queixou-se que não/ aprecia a juventude/ atual, que não tem/ consideração com os
velhos/ Que são imorais com ela/ e não deixa dormir/ em paz. Mas ela sabe que/ vai
dormir em paz, é/ na sepultura./ Que os homens ficaram/ impiedosos e egoístas/ e não
existe mais o/ assilo para a velhiçe/ chorou. Dizendo que é a/ única coisa que o pobre do
Brasil sabe fazer./ Murmurou tristonha./ Meu Deus! Meus Deus!/ O mundo virou um/
Chiqueiro! (FBN: MS-565 (4), Caderno 7 “Pensamentos”, FTG. s/n).

Isto que apreendemos na escritura de Carolina de Jesus vem corroborar a ideia de


que a repetição do gesto é como marca da condição humana, “esquecer para lembrar”, mas
refazendo e renovando sentidos para si e para os outros, pois mesmo as tradições caminham
na via “repetição-esquecimento-renovação”, como a re-veneração do “astro rei’ em sua obra.
A ligação entre recordação e deciframento, que Gagnebin (2006) remonta ao discutir Ricoeur,
afirmando que o contemporâneo é sempre como um estado potencial do passado.

A análise da obra de Carolina de Jesus segue na esteira de Benjamin (1989)


quando ele insiste na apreensão de um tempo histórico que não tem sua marca na cronologia
e, sim, na intensidade dos acontecimentos que pululam dos arquivos da memória. Como foi
dito, a teoria da linguagem de Benjamin (1989) contribui para se pensar na conquista da
emancipação humana através da palavra. Nesse caso, a poeta-trapeira no sentido
baudelairiano, que, contrariando as estatísticas, escrevia enquanto a classe média brasileira
dormia, e, desse modo, mesmo relegada à condição de total abandono à margem do mundo e
da dignidade, transformava em obra escrita sua experiência de tempo e espaço. Valendo-se

127“O bicho” / Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos. // Quando achava
alguma coisa,/ não examinava nem cheirava:/ engolia com voracidade. // O bicho não era um cão,/ não era um
gato,/ não era um rato. // O bicho, meu Deus, era um homem. (Manuel Bandeira). Disponível em:
<http://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira03.html>. Acessado em 15/jun/2015.
266

dos rejeitos daqueles que a excluíam, a escritora foi reconstruindo, reciclando, deslocando,
ressignificando, mobilizando e criando outra coisa que transpunha em positividade e
assimetria seu não-lugar, até então enjeitado, órfão.

Em sua obra, Carolina de Jesus perfaz uma apropriação de elementos diversos: de


posse de refugos, sucatas, fiapos de discursos, e de linguagens catadas e reaproveitadas, ela
exerce um desvio de ideias e comportamentos. Há aí uma inversão valorativa, pois a
apropriação de elementos diversos lançados pela sociedade é usada de forma diferente
daquelas que foram pré-determinadas. Também, nesse sentido, o conjunto dos manuscritos
remetem às assemblages de Bispo do Rosário128 , ao justapor de forma inusitada objetos e
palavras na composição do discurso de sua arte plástica. Seus textos estão inseridos numa
zona de indeterminação entre escrita e oralidade, refletindo a pertença de grupo em constante
mobilidade, em mutação, de um devir-trapeira factual para um devir-escritora desejado.

Nesse sentido, seu devir-trapeira da linguagem também se associa ao Eu da


multidão, ao poeta-trapeiro de Benjamin (1989). Aquele solto e deslocado, mas que, ao
contrário do badaud, que interrompe a caminhada e vislumbra a si próprio, ao observar o
espetáculo na rua sendo apenas mais um na multidão, nela, o trapeiro está desterritorializado
em meio às intensidades que o olhar da artista consegue apreender e captar por entre as
multiplicidades de si, recriando, assim, através de sua individualidade perpassada pelo outro,
uma identidade narrativa. É essa experiência do Eu que se transfigura no Ele de Ricoeur
(1984), configurando “zonas de indiscernibilidade”, onde já não há mais limites entre
Carolina de Jesus e a mendiga que ela abordou, ou entre o ofício da escrita e o da catação,
pois os atravessamentos emergem dessas trocas mútuas.

A multidão anula o sujeito, neste caso o sujeito autobiografado que, além disso, já
rarefeito pela escrita, porque esta desfaz a integridade do relato de vida no processo mesmo de
sua escrita. Nos manuscritos, as contaminações, a impessoalidade, os descentramentos ficam
mais evidentes quando acompanhamos os atravessamentos, uma vez que, em sua escrita, ao se
aproximar de algum gênero literário, Carolina de Jesus se inspirava na forma culta, mas
tropeçava no semianalfabetismo de sua escrita eriçada, desmaculada, mal-ajambrada.

128 Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) foi um artista plástico brasileiro, que ficou encerrado num manicômio
do Rio de Janeiro por mais de 50 anos. No final de sua vida, acabou reconhecido como uma das expressões da
arte contemporânea.
267

A escritora que estava sempre preocupada com a ortografia e a significação das


palavras, pois, mesmo que não soubesse escrever – por falta de escolaridade – sabia pensar. E
pensava os sentidos, e os expressava na ostentação da forma polida da escrita parnasiana,
adaptando-se, ou buscando adequar-se a uma escrita tradicionalmente tida como pertencente
ao nível culto.

Como os barracos adaptados ao local da invasão, a narrativa caroliniana engendra


sua escritura favelada. Escrita retalhada, emparelhada, amontoada, invasora que se evade para
além das zonas de perigo desconhecidas e inseguras, desencadeando seu devir-escrita trapeira
por entre as bordas, rompendo fronteiras. Cria tipos de narrativa-escombros, que apesar da
fragilidade sustentam-se e sobrevivem, dada sua capacidade de inovar e redimensionar o
antigo. Revela os resíduos da memória do cânone literário, anuncia um corte da memória
popular do ponto de vista do marginalizado, o “exército industrial de reserva”.

Seus textos, assim como seu corpo um dia também o foi, são nutridos pela
deambulação de ideias e de recolhimento do lixo, do excesso do outro que virou sobra, do
floreio das frases e o embelezamento de uma história almejada, através de um discurso
rebelde que agita as fímbrias no movimento de aproximação e impossibilidade de completude
da língua almejada, fatalmente despedaçando rituais de linguagem.

IV.3 Vida autobiografada como imperfeição ou (hiper)feição de Si

(...) aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável à


bela figura da qual, em transporte, foram quebrados todos seus
membros, e que agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a
partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro.

(Walter Benjamim)

Em Pour l’autobiographie, Lejeune (1998, p.225-226) sugere que o autor que


redige uma autobiografia apoiando-se num diário, tende a esquecer detalhes do vivido e tenta
268

encontrar uma imagem desse passado mais adequada ao seu presente; a fim de sofrer menos,
escreve para reviver. Seguindo essa pista podemos pensar que as várias versões de um mesmo
texto de Carolina de Jesus e suas variantes acompanham as diferentes fases de sua vida, bem
como as diferentes leituras que ela pôde realizar, adequando-as a seus diferentes estados de
espírito. Os textos “O escravo”129 e “Prólogo” são sintomáticos nesse sentido, pois a
percepção do sujeito sobre a cidade aparece de modo diferente nas três versões deste último
texto; em uma ela exalta, noutra ela critica. E, como nenhuma das versões é datada, podemos
supor que ela tenha escrito a da crítica depois da dura experiência vivida na favela de São
Paulo. É sabido que os recursos literários reutilizados pela escritora nos textos citados
também serviram para embelezar e dramatizar o que ela não pôde esquecer e que ficou
sacralizado em suas “escrevivências”, isto é, as violências sofridas na infância, as descobertas
de um mundo desigual e racista em sua adolescência, a cidade grande e o mundo dos
“letrados” em sua vida adulta.

Em Les brouillons de soi, Lejeune (1998, p.125) diz que não está seguro de que as
memórias de um autor, como, por exemplo, as de Simone de Beauvoir, correspondam a uma
autobiografia enquanto pacto autobiográfico, bastante discutido pelo autor em Le pacte
autobiographique (1996; 1975). Nesse sentido, pode-se pensar que a decisão de Carolina de
Jesus de recontar sua trajetória, até o momento de se tornar escritora, revela um esforço de
demonstrar como as circunstâncias da sua realidade incidiram sobre o desenvolvimento de sua
própria existência. Assim, no empreendimento do processo da escrita de si, as escritoras
expõem uma evidência em comum nos textos autobiográficos, isto é, a de que o ato de
recontar a si mesmas sempre implica julgamento alheio, de tal modo que o olhar do outro
modifica a forma e o tema de suas escritas.

Entretanto, na mesma obra, Lejeune (1996; 1975) diz ainda que a autobiografia é
definida pela existência de um pacto autobiográfico, ou seja, um “pacto de verdade” na
relação do escritor com aquilo que ele escreve. Doubrovsky (1977) concorda com o que
concerne à existência da autobiografia enquanto sendo a mesma impressão do autor, do
narrador e da personagem na obra, mas acentua o caráter fantasmagórico dessa construção,
pois Lejeune lembra que no ato de recordar e reescrever sua memória as coisas se mostram

129 Disponível em: <<http://omenelick2ato.com/literatura/O-ESCRA VO-CAROLINA/>>


269

mais complexas e embaralhadas, gerando o que ele nomeia de um pacto fantasmagórico130


entre leitor e autor.

Em seu livro Fils, Doubrovsky (1977) se propõe a escrever sobre sua vida em
resposta a essa descrição teórica de Lejeune (1996; 1975), levando ao extremo as
considerações de que o próprio Lejeune coloca em questão o pacto de verdade entre autor e
leitor no ato da escrita autobiografada e fantasmagórica, ao contrário dos gêneros ficcionais
que supõem outro tipo de pacto. Daí o surgimento da variante “pós-moderna” da
autobiografia, assim entendida como autoficção, inaugurada nesse romance.

Em seus textos, Carolina de Jesus, a escritora, não chega a realizar uma autoficção
porque não escreve propriamente um romance, como Doubrovsky (1977), em Fils, no qual o
nome da personagem principal, de maneira proposital e provocadora, é igual ao nome do
autor do livro. A escritora não chega a assumir esse risco, porém margeia o conceito no
sentido proposto por Doubrovsky, uma vez que suas narrativas não se atêm à simples
evocação nostálgica do passado, através de uma narrativa das origens, como em “Prólogo”,
“Meu avô”, “Meu tio”, “A panela”, “Minha vida”, entre outros. Ela constrói suas narrativas
contornando o confronto das matrizes culturais, que estão na base de sua parca formação,
versus cultura erudita – à qual nunca teve acesso –, valendo-se do que aprendeu nos primeiros
anos escolares e, por seu autodidatismo, nas muitas e variadas leituras, bem como fazendo
resgate e atualização da cultura popular e de sua história.

Por vezes, as narrativas de Carolina de Jesus chegam a se aproximar da tradição


da autobiografia tradicional, quando visa reconstituir e analisar sua trajetória como escritora.
Neste caso, pode-se citar sua composição musical autorreferencial “A vedete da favela”
(JESUS, 1961):

Salve ela OH! Salve ela


Salve ela! A vedete da favela (bis)

Conhece a Maria Rosa


Ela pensa que é tal

130 Le lecteur est ainsi invité à lire les romans non seulement comme des fictions renvoyant à une vérité de la
«nature humaine», mais aussi comme des fantasmes révélateurs d’un individu. J’appellerai cette forme
indirecte du pacte autobiographique le pacte fantasmatique (LEJEUNE, 1996, p.42). ## O leitor é, portanto,
convidado a ler os romances não como ficções referentes somente a uma verdade da «natureza humana», mas
também como reveladoras fantasias de um indivíduo. Chamarei a essa forma indireta do pacto autobiográfico
de pacto fantasmagórico. (Tradução Minha)
270

Ficou muito vaidosa


Saiu seu retrato no jornal

Salve ela OH! Salve ela


Salve ela! A vedete da favela (bis)

Maria conta vantagem


Que comprou muitos vestidos
Preparando sua bagagem
Vai lá pros Estados Unidos

Salve ela OH! Salve ela


Salve ela! A vedete da favela (bis)

Nesta canção, assim como nos poemas “Quarto de despejo” (JESUS, 1996, p.151-
153) e “Humanidade” (JESUS, 1996, p.138); no primeiro, considerado “romântico e
autobiográfico” por Souza (2011, p.101), a escritora reavalia seu sucesso, expondo o lado
infame da fama, e autocomiseração como pensamento de seu processo criador, confirmação
de sua condição de “escritora vira-lata” e a condensação da forma autobiográfica narrativa; no
entanto, ela não se coloca como personagens autonomeadas nessas obras. Na maior parte de
suas narrativas, ela não apresenta pensamento intelectual esboçado, reafirmado, revisado ou
modulado como num projeto definido. Carolina de Jesus forma um painel bastante
fragmentado de sua vida, como se quisesse ocultar de si mesmas certas experiências; mas,
muitas vezes, deixa escapar pedaços de si mesma numa fronha de retalhos parecidos. É desse
modo que a escritora vai dando conta da deriva e do nomadismo vivido como escritora
trapeira, recortado e reescrito a partir de uma intensidade narrativa própria dos romances, ao
modo do neologismo autoficção criado pelo autor francês:

Autobiographie? Non, c’est un privilège réservé aux importants de ce


monde, au soir de leur vie, et dans un beau style. Fiction, dévénements et de
faits strictement réels; si l’on veut, autofiction, avoir confié le langage d’une
aventure du langage, hors sagesse et hors symtaxe du roman, traditionnel ou
nouveau. Rencontres, fils des mots, allitérations, assonances, dissonances,
écriture d’avant ou d’après littérature, concrète, comme on dit musique. Ou
encore, autofriction, patiemment onaniste, qui espère faire maintenant
partager son plaisir (DOUBROVSKY, 1977, p.10) 131 .

131Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no crepúsculo de suas
vidas, e em belo estilo. Ficção. De acontecimentos e fatos estritamente reais: se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do
romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras. Aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de
antes ou depois da literatura, concreta como se diz em música. Ou ainda: autofricção , pacientemente onanista,
que espera agora compartilhar prazer. (Tradução Minha)
271

A complexidade dessa autoficção está justamente no fato de que este tipo de


escrita, ao recriar elementos autobiográficos, vai permitir a presentificação no ato de sua
produção, ao contrário da autobiografia convencional delimitada ao referencial do passado de
quem escreve. Entretanto, a autobiografia não deixa de ser uma ficcionalização de fatos e
acontecimentos absolutamente reais. Desorganizar o tempo através da narrativa possibilita a
organização de um tempo próprio, como diria Ricoeur (1984) em Tempo e narrativa II. A
identidade narrativa construída através desse novo tempo, implementado pela reescrita de si,
pode emergir como chave para criação de uma autoficção, pois viabiliza novas possibilidades
de reconhecimento de uma existência.

Pensando a autoficção como elemento impulsionador para a escrita de Carolina de


Jesus, deve-se ter em conta a estreita ligação entre narrativa e práticas sociais concretas,
observando estes escritos como uma “etnobiografia” na recusa da separação entre discurso,
linguagem e experiência, dicotomias entre público e privado, individual e social, pois este
conceito entende que a criatividade individual penetra as instituições culturais a partir do seu
uso, personalizando-as (GONÇALVES, 2012, p.10-11), ao modo como conclui Carolina de
Jesus: o mundo é negro para o negro.

Sua poética residual sugere uma nova categoria de “autorregistro”, que não está
ocupada com a transmissão ipsis litteris do real, ou o pretensamente “documental”, nem
interessada em criar uma história extraordinária, fundamentalmente “inventada”. Nesse
sentido, a obra caroliniana induz seu leitor a ver outra contribuição. Não foram poucas as
vezes em que a arte se antecipou à ciência. Eric McLuhan, filho do teórico da comunicação, o
professor canadense Marshall McLuhan, escreveu: “para que vocês entendam, finalmente, a
relação que meu pai tinha com James Joyce. Toda vez que ele fazia uma descoberta, corria
para o Finnegans Wake, certo de que tudo aquilo já havia sido previsto pelo autor irlandês”.
Também, Arthur Schopenhauer carregou Goethe para dentro da sua filosofia.

Não por acaso Deleuze (2006) dedica um livro à escrita de Proust, assim como
Foucault cita Borges na introdução do mais famoso de seus livros: As palavras e as coisas.
Então, sendo assim, a arte, não em raras ocasiões, prefigura a ciência. Os escritos de Carolina
de Jesus, esses híbridos entre ficção e realidade, podem oferecer uma contribuição
epistemológica para se compreender novas formas de ficção, mas também de existência
humana através de sua cosmologia. A arte é autorreferencial. Existe de si para si. A ciência,
ao contrário, pretende ser o fiel registro do mundo. Acontece que não há nenhuma lei que
272

determine a correspondência entre uma descoberta ou invenção científica e o mundo que a


reage. Mesmo a lei da gravidade. Ela opera até hoje, mas nada nos garante que será assim
para sempre. Há uma porção de “ficção” na ciência. Tal ficção tem sido ignorada, mas não o
será por muito tempo. Prova disso é o realismo especulativo, corrente filosófica
contemporânea recente, e que reúne entre seus teóricos nomes tais como Zizek, Badiou,
dentre outros. Roland Barthes disse em uma de suas aulas: “A ciência é grosseira, a vida é
sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”.

IV.4 O canto triste: a escrita como ofício ou do devir-escritora?

O devir é antes um encontro entre dois reinos, um curto-circuito, uma


captura de código onde cada um se desterritorializa.

(Gilles Deleuze)

A transcrição e a análise da narrativa datiloscrita “O canto triste”, a seguir, dá a


conhecer a concepção literária de Carolina de Jesus na funcionalidade de sua expressão mais
íntima e pungente, um poema em prosa, ou uma prosa poética. Neste exemplo, a escritora
sintetiza um tipo de entendimento do fazer literário que se aproxima da premissa de Manuel
de Barros, do aprender com as pedras e os pássaros; o olhar aquele da primeira infância,
daquele que escreve em pleno devir, devir-criança, devir-ave, devir-animal. Para Deleuze em
Diálogos, desterritorialização tem a ver com evasão, desterro, partida; é o traçar linhas de
fuga através das formas de expressão que inventa e vivencia devires no ato criativo:

É possível que escrever esteja em uma relação essencial com as linhas de


fuga. Escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é
forçado a seguir, porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos
embarca nela. Escrever é tornar-se, mas não e de modo algum torna-se
escritor. É tornar-se outra coisa (DELEUZE, 1998, p.56).
273

As pistas desse autor francês permitem compreender a literatura em seu caráter


mais amplo como acontecimentos, como devires, processos, linhas desterritorializantes,
fundantes do ponto de vista da narradora, sempre múltiplo e adjacente, sempre incorrendo na
negação de si, refazendo-se ou se desconstruindo numa mise en abyme de encaixes
inapreensíveis de gêneros dentro de gêneros ou não gêneros. Formulações de novos espaços
na atração de zonas de contato, que desfaz o sujeito e por isso o tornam numa outra coisa,
neste caso, no devir-fome e no devir-trapeira, des-subjetivando-a na perambulação impessoal
e intensa de zonas-limite: fome, animais e farrapos que vibram e culminam nos blocos da
exclusão. Quer dizer, Carolina de Jesus não apenas descreve o testemunho dessas formas, mas
se torna elas mesmas ao incorporar afetos e perceptos na coleta de enunciação coletiva, a tal
ponto de fazê-los cúmplices, tornando-se ela também fome amarela, corvos ciscadores do lixo
à beira do rio Tietê, trapeiros “homens de papel” sob as pontes e viadutos de São Paulo;
fazendo também cúmplice o leitor que lê os seus textos.

Em suas narrativas percebe-se certa aproximação com o tom romântico de um


Castro Alves, um Álvares de Azevedo ou um Casimiro de Abreu, poetas lidos pela escritora, e
reincorporados à narrativa de um eu lírico que se coloca o tempo todo como descoberta e
desejo quase narcísico de compreensão ou “figuração de si”, como bem caracterizou Marcos
de Moraes ao discutir recursos desenvolvidos na epistolografia de Mário de Andrade132 .
Característica do romantismo, mas também dos textos autobiográficos, como mostram seus
escritos.

No exemplo a seguir, a escritora se vale desses dois recursos da escrita


“figurativa” para reconstruir seu movimento intelectual interno, acompanhado de um projeto
autobiográfico.

132 MORAES, 2012, p.150.


274

Datiloscrito: O canto triste

Documento 30: FBN: MS565(5): Caderno 11: Documentos esparsos e datilografados – “O canto triste”, FTG,
s/n.

Transcrição:

O canto triste
Enquanto la fora a alvorada se agita existe aqui um coração an-
gustiado, aflito que palpita. Quando voce entender o cantar dos pássa-
ros começará a entender o porque da vida. A ave que deixa seu ninho em
busca de alimentos para seus filhinhos e ao regressar, que desagradável
surpresa, encontrar seu ninho vazio, porque a mão degenerada( mão e )seu ninho violou, le-vando
(embora )( entes tão queridos ) junto seus filhinhos
Desesperada ela apoia-se em um (pousa/ no galho de uma árvore bem alta e põe-se a
cantar.; um canto que só ela sabe, pois não é letra conhecida e a música
é a inspiração do momento. Seu canto é a prece que ela Suprema eleva ao CRIADOR
com todas as forças que em tí cala (nele se cala). Abre Senhor a inteligencia de ss
meus filhos para quando acontecer com eles o que hoje aconteceu comigo,
eles SABERE m levar ao Todo Poderoso esta mesma prece em forma de canto.
_______________________________________________________________
275

Continuação:

Documento 30 [continuação]: MS565(5): Caderno 11: Documentos esparsos e datilografados – “O canto


triste”, FTG, s/n.

Continuação:

os pássaros cantam na linguagem certa, na linguagem corre-


ta e sincera que a própria Mãe Natureza lhes deu; falar é boni-
to quando se fala certo. A linguagem só tem valor quando se tra-
ta de nominações estranhas. Digo estranhas para voces mas não pa
ra nos esquecer os dissabores é o nosso dever, pois, nos conside-
ramos isto como uma estrada em que viajamos e se estamos chegan
do no local designado, não vejo motivo para lembrar e comentar
no trecho da estrada ruim.

$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$

Quando Carolina de Jesus se reporta ao termo “linguagem certa” parece querer


trazer à tona a discussão sobre uma diferença entre as linguagens: a linguagem formal técnica,
não a natural e mais fluida que seria como a “linguagem dos pássaros”, imersa em perceptos a
extrapolar os limites da racionalidade, mais próxima da linguagem puramente poética: “A
linguagem sincera que a própria Mãe Natureza lhes deu”. Seria isto o tal dom poético que ela
tanto afirmava nas versões de “Prólogo”?
276

A “linguagem certa cantada pelos pássaros” parece ser aquela que vai na
contramão da literatura como trabalho realizado pelos “poetas de salão”. Se bem que,
paradoxalmente, de certo modo, Carolina de Jesus procurava se aproximar de uma literatura
mais convencional, do escrever “bonito”, inspirada pela linguagem lírica dos românticos, e até
mesmo ressalta sua disciplina de escrita como trabalho e necessidade de escrever como valor
e desejo imaterial. Além disso, ela faz diversas referências a Olavo Bilac – poeta parnasiano
na forma e romântico no conteúdo – e demonstra sua filiação a ele no que concerne à
preocupação com a utilização do vocábulo culto e com a simetria formal, procurando
valorizar a estética de seus poemas. No entanto, ao contrário dos parnasianos, seus versos
terminavam em rimas pobres.

A análise da narrativa se complica quando, em seguida, ela diz que “A linguagem


só tem valor quando se trata de nominações estranhas”. Seria ela contra a transparência da
linguagem e das metáforas sua definição de literatura? Ao passo que acaba por ativar o
contrário na sua expressão: “nominações estranhas”. Nesse sentido, Carolina de Jesus faz
pensar na simplicidade pulsante de seus textos, um estranho “canto dos pássaros” que dialoga
com “desaprendido com os grilos” de Manuel de Barros, ou seja, textos fora da lógica e do
senso comum da linguagem, zonas de vizinhança com o mundo animal. Ela reitera: “Digo
estranha para você”, onde esse “você” lê-se como o leitor “ilustrado”, aquele que sabe ler de
acordo com as regras gramaticas, através de uma técnica, longe do canto dos pássaros, o
devir-animal dos escritores “menores”, estes que reinventam uma linguagem ou uma língua
“estrangeira”, dentro da própria língua, ao perfazerem outros usos dentro da “língua maior”,
instituída como autoridade.

O devir-animal é aquele que para Deleuze e Guattari (1977) coloca lado a lado
homens e animais como Kafka mostra com Gregor de A metamorfose133 ou em seu conto
“Um relatório para academia”134 , personagens que vivenciam zonas de vizinhança com os
seres do mundo animal, inseto e macaco, para reencontrarem-se com sua animalidade
humana, saindo da zona de conforto do mundo da percepção racional até deixarem-se atingir
pelo percepto, sensações que deslocam os sentidos e ampliam a capacidade de viver/sentir
num nível sutil ou radical, desencadeando experiências desruptivas no presente fazendo o

133 KAFKA, F. A Metamorfose. (Tradução de Modesto Carone). 13.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
134KAFKA, F. “Um relatório para academia”. In: Franz KAFKA. Um médico rural: pequenas narrativas.
(Tradução de Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
277

sistema vazar. Os autores franceses contrapõem o devir à história, pois este desafia o tempo
da razão. A história é um marcador temporal de poder ao qual o devir escapa como pontos de
fuga, eclodindo em múltiplas absolvições da realidade que aprisiona, mas somente naquele
átimo de tempo, em que mesmo seus inventores não podem retornar a ele.

Carolina de Jesus finaliza a narrativa com outro dilema (para o pesquisador) ao


afirmar que não há “motivo para lembrar e comentar o trecho da estrada ruim” para se chegar
ao “local designado”, isto é, pode-se inferir aqui as dificuldades do processo da criação para
se chegar à obra. No entanto, nisso consiste o esforço de seu processo criativo acompanhado
de suas vivências. Esse texto revela a criação da linguagem e da própria vida como essência
ambígua, vislumbrada na maneira como desconstrói a si mesma a partir de suas premissas.

Essa narrativa foi eleita dentre outras da escritora por parecer bastante
representativa da reflexão sobre o ato da escrita empreendida por Carolina de Jesus, e por
desvendar o mecanismo do desmascaramento do “autor” como entidade distanciada do
escritor, ao desmembrar as facetas do ato de escrever. Mas também por reforçar sua
preocupação e a valorização pela escrita como meio de alcançar conhecimento e
desenvolvimento, como um contato quase divino: Seu canto e prece que ela (Suprema) eleva
ao CRIADOR com todas as forças que em ti cala (nela se cala). Abre senhor a inteligencia de
(meus) filhos para quando acontecer com ele(s) o que hoje aconteceu comigo, eles (saberem)
levar ao Todo Poderoso esta mesma prece em formato de canto.

Não podemos perder de vista que Carolina de Jesus começa a efetivamente


escrever nos anos de 1940, momento em que o Brasil vive a expansão do sistema universitário
brasileiro, como afirmou José Murilo de Carvalho, um tempo em que vivemos em “Uma ilha
de letrados num país de analfabetos”135 . No entanto, a escritora expõe narrativas rarefeitas
através dos fragmentos, do quase acaso do ato de escrever, de inconstâncias, descontinuidades
e do absurdo de vivências paupérrimas, angustiosas, a subverter a lógica geométrica,
tradicional e funcional por não pertencer a outro, senão a esse não-local ou lugar negado.
Fatalmente, ela acomete o esforço de uma escrita rasurada inserida no processo da
modernidade avassaladora, da efemeridade caótica, a despedaçar homens em suas percepções,

135 Até 1940, haviam sido criadas as primeiras universidades brasileiras: Universidade do Rio de Janeiro (1920),
transformada em 1937 em Universidade do Brasil (atual UFRJ), e Universidade de São Paulo (USP) em 1934.
FONTE: CPDOC-FGV. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
Disponível: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos37-
45/EducacaoCulturaPropaganda/Universidade Brasil>
278

cedendo lugar ao percepto como ponto de fuga sintomático desses marginalizados que pedem
passagem, e assim o fazem furando o cânone com sua escrita corrompida. Essas
incompletudes e precariedades marcam as narrativas sem rumo certo e sem precisão dessa
escritora, predisposta a negar, em específico nesse texto “O canto triste”, o gesto e a postura
esperada pelo escritor. Ao contrário, essa narrativa automutiladora critica o próprio ato do
fazer literário como visão autobiografada que não tem “motivos” válidos para relembrar uma
vida mal vivida.

As narrativas de Carolina de Jesus expressam seu lugar no mundo com tal força
que podemos acompanhar seus movimentos migratórios e incertos pelas linhas dos seus
textos, através da expansão de radículas, edificados por reelaboração de capturas, ajustes,
adaptações. O centro fixo é substituído por pontos de vistas em várias direções do observador
ambulante em seu devir-trapeira, formado pela convergência de novos espaços urbanos
palmilhados. Persistindo numa oscilação do foco narrativo, afinal, como representar a
catástrofe, senão de uma maneira caótica, uma vez que o próprio ponto de vista está
totalmente nela inserido?

Talvez seja por isso que suas criações estejam em constante movimento e
adaptação, pois no processo criativo dessa poética de resíduos, no ato mesmo da escrita,
vigora uma reavaliação de sua própria história, e daí as diferentes versões para um mesmo
acontecimento ou a presença de narrativas que emergem como exacerbação de um
individualismo camuflado em personalidade de escritora.

Carolina de Jesus mostra que o pensamento é tempo puro, restitui o discurso ao


corpo, de modo a atingir primeiro o corpo, a factibilidade para aquém da linguagem até
mesmo do sentido unívoco e seguro. Em seu espólio literário, o pensamento não aparece
como retraimento ou in-poder, no sentido da autoria clássica de uma retração criadora, pois
não há suspensão; é puro fluxo, multiplicidade que se incumbe de ir além do uno, gerando
microfissuras numa narrativa que vive o impasse entre o vínculo e a recriação com as relações
moleculares da escrita canônica.

A partir da leitura desses textos foi possível notar algumas aproximações entre
Carolina de Jesus e Manoel de Barros, no que concerne ao modo de realização da metáfora
homem/natureza, como no exemplo do escritor/pássaro. A poética de Manoel de Barros está
tecida por elos constantes entre natureza e homem, mas o autor se vale de uma matriz de
279

significação que revela outra forma de pensar cada palavra e as situações resultantes da união
das palavras. Algo que está além das palavras e só pode ser descoberto pelos sentidos gerados
pela poesia, pois nela a palavra ganha força de sentido que a faz renascer e revivificar.
Praticado em sua plenitude na infância ou expresso por homens-árvores, recriando um tipo de
devir-natureza do homem como nos lembra a personagem-pessoa Bernardo136 , uma figura
recorrente na obra barreana, ou no teorema da valorização, no qual, para o poeta, “a maior
riqueza do homem é sua incompletude”137 .

No caso do texto de Carolina de Jesus também pode-se notar a relação entre


homem-natureza sinalizado nas proposições das gêneses de suas narrativas; mas, diferente da
alegria barreana que emerge desse encontro, a escritora retrata o universo da dor carregado de
sentido da justiça divina, imprimindo em seu discurso, também, um sentido moral. Esse tipo
de narrativa, bastante comum entre os textos esparsos no espólio literário da escritora,
aproxima-se do gênero fábula, lido e praticado de maneira híbrida e polifônica, mesclado de
vários gêneros: poético, carta, autobiográfico, conto, romances e teatro. Várias narrativas com
características de histórias infantis, sempre com elementos grotescos, satíricos, irônicos,
anunciando o que, mais tarde, desembocaria num ensinamento moral. Não há delimitação de
forma nem de conteúdo, o que torna esses textos ainda mais envolventes e abertos para um
novo posicionamento de leitura; seja pela curiosidade, seja pelas subversões estéticas, ou
ainda pela atualidade das questões das discussões que posicionam essa voz escrita, ela se
apresenta como uma avalanche de possibilidades. Mas, afinal, o que a escritora está
considerando com “denominações estranhas”?

Lendo os textos de Carolina de Jesus, nota-se que a escritora compartilha a


concepção de poesia de Manoel de Barros, pois para ambos ela é o canal para se chegar à
época primitiva da criação na qual são “os pássaros que cantam, cantam na linguagem certa”,
esclarecedora, a que os homens precisam ouvir/ ler para se tornarem mais sensíveis. E

136Bernardo é quase árvore./ Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe./ E vêm pousar em seu
ombro./ Seu olho renova as tardes./ Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:/ um abridor de
amanhecer/ um prego que farfalha/ um encolhedor de rios – e um esticador de horizontes./ (Bernardo
consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada). Bernardo
desregula a natureza: / Seu olho aumenta o poente./ (Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?) (BARROS, 1994, p.97).
137Retrato de Artista enquanto Coisa/ A maior riqueza do homem é a sua incompletude./ Nesse ponto sou
abastado./ Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito./ Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas,/ que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, qu e aponta
lápis, que vê a uva, etc. / Perdoai./ Mas eu preciso ser outros./ Eu preciso renovar o homem usando borboletas
(BARROS, 2010, p.374).
280

somente os seres desprovidos de uma ótica filisteia são capazes desse retorno ao devir-homem
natural.

Diz Manoel de Barros: “Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o


canto — desde os pássaros./ A palavra sem pronúncia, ágrafa.” (BARROS, 2002, p.53).
Então, na despalavra de Barros ou na agramaticalidade de Carolina de Jesus, das “ignorãças”,
dos insignificantes, do chão, do barro, das “coisas pertencidas de abandono”, dos resíduos
discursivos mesclados ao acaso, dos seres ignotos é que ambos recriam e se permitem
“transfazer o mundo”.

Carolina de Jesus e Manoel de Barros compartilham o mesmo olhar sobre a


poesia. E quando a escritora afirma que “quando você entender o cantar dos pássaros
começará a entender o porquê da vida”, ela está, a seu modo, reiterando a sabedoria do olhar e
o entendimento do poeta sobre o mundo. No poema de Barros, o poeta encontra na criança
este olhar poético por excelência, desvendado pelo devir-criança que rompe com a gramática
para explodir em ressignificações para além da valorização que guarda em si apenas “palavras
estranhas”. Nos versos a seguir (BARROS, 1994, p.17) é possível perceber esse olhar típico
da criança que permanece no poeta:

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Quando a criança diz que escuta a cor dos passarinhos ela gera um novo percepto
compreensível ao poeta, uma zona de vizinhança com o devir-animal do homem que permite
escutar as cores ativando novas sensações e relações com o mundo, talvez mais animalesca,
instintiva. Aquela que a criança-poeta aprendeu com o devir-criança num átimo de tempo; e
que Carolina de Jesus, propõe como afirmação em forma de canto/poema. O verbo que pega o
delírio e transforma o sentido, função primeira na concepção barreana, funciona para a
281

escritora como a música dos pássaros que precisa, segundo Carolina de Jesus, ser capturada e
sorvida como um conta-gotas divino e imaculado para a cura humana.

Aqui, é oportuno citar palavras da escritora – e também poeta – Agustina Bessa-


Luís, quando escreve acerca do poeta e sua função no mundo:

O poeta ocidental, o que resta do bardo celta ou do seu mísero canto de cego
e de vagabundo, contém a mentalidade do sonhador, baseada em
experiências humanas incomensuráveis; é um produto intemporal que
subleva a própria força de viver e a vontade de acreditar, de amar e de criar
um mundo (BESSA-LUÍS, 1984, p.7).

Assim, o que vemos de especial na literatura de Carolina de Jesus é justamente a


riqueza de sua inventividade a partir do parco e do simplório, que se vale de cacos, retalhos,
das coisas “menores”, como também propõe Manuel de Barros em suas poéticas do chão, do
mínimo, dos restos. A singularidade da narrativa dessa escritora não poderia estar limitada por
estilos, nem mesmo por aqueles que ela própria criou, pois, seu devir-trapeira experimenta
uma vivência oscilante de incertezas e fraturas. É como a voz que emerge das ruínas,
celebrada e explorada por Benjamin (1975), que a poesia de Carolina de Jesus grita, sussurra,
murmura, uiva, gorjeia, e cria linguagens/ cantos estranhos aos nossos ouvidos.

Ao mesmo tempo em que desenvolvia sua própria abordagem desconstrutivista138


de escrita literária, uma escrita das (e nas) margens, na qual o oprimido fala de sua própria
opressão sem muito suporte para exprimir-se, Carolina de Jesus experimentava metáforas,
paisagens bucólicas e lirismo de dentro de seu próprio mundo, ou seja, no espaço exíguo do
fétido barraco, ela narra que escutava valsas vienenses enquanto as mulheres da favela
apanham como tambor.

Retomando a questão do palimpsesto – já discutido em capítulo anterior – no


texto “O canto triste”, ainda que mudando o sentido final, parece que ela também se apropria

138Descontrução é um conceito elaborado por Jacques Derrida. No entanto, a noção de desconstrução surge pela
primeira vez na introdução à tradução de “Origem da Geometria” de Husserl (1962). A desconstrução não
significa destruição, mas sim desmontagem, decomposição dos elementos da escrita. Ela serve nomeadamente
para descobrir partes do texto que estão dissimuladas e que interditam certas condutas. Esta metodologia de
análise centra-se apenas nos textos.
282

da fábula da coruja e do gavião139 . Aqui, ela a recria, dando-lhe exatamente o tom de tristeza
que não se encontra no original.

Lidos na superfície, seus escritos se compõem de cadeias de frases sem


concatenação semântica, sem lógica, um aglomerado de verbos inventados e palavras
desconexas, formando uma composição rítmica gaguejante. Outras vezes, uma sequência
semântica lógica é interrompida pela introdução de um elemento que sugere outros sentidos,
que remete a outra cadeia lógica nas livres associações que pratica. Nesses casos, a associação
de uma palavra com outra não confirma o significado da primeira, mas desconcerta-o,
relativiza-o, ou até o invalida por completo, confundindo o leitor como no trecho que segue:
As audiências públicas é impreterível. Mas os políticos ensôa-se, igual a jóia no escrinio. O
convencionamento de ter galgado, turba-lhe a mente (JESUS apud PERPÉTUA, 2014,
p.149).

Às vezes, as palavras aparecem descontextualizadas, em especial a dicção dos


escritores românticos reapropriados por Carolina de Jesus, como também algumas palavras do
jargão do Direito, muitas vezes usadas em sentido enviesado. Essas palavras aparecem
referindo-se senão a si própria, interligadas, na melhor das hipóteses, ao nível sonoro ou
rítmico ou de entonações com atributos correlatos à fala, na ânsia de atingir sua poeticidade.
Elas nos chegam, portanto, como elementos suprassegmentais, sem referencial verbal.

No primeiro fotograma evidencia-se que o fazer criativo desta poética de resíduos


também está presentificado no cuidado do manuseio de canetas-tinteiro e/ ou na confirmação
de palavras que haviam ficado poucos marcadas por canetas velhas ou tocos de lápis catados
no lixo, reutilizados por ela com certa dificuldade manual. Assim, quando seu recurso era a
caneta-tinteiro, ela não escrevia no verso para não dificultar a leitura. Outro indício de
autointervenção é comum quando o traçado das palavras estava ilegível devido à tinta fraca da
caneta ou o traço do lápis que havia sido quase apagado pelo tempo, Carolina de Jesus
sobrepunha essa escrita com outra caneta. Parece que esses cadernos mais fragilizados,
reescritos em cima da própria letra com diversas cores de canetas e lápis, cujo aspecto ainda

139 Gavião estava voando baixo e a coruja no toco pergu ntou: — Caçando, compadre Gavião? Sim, estou
faminto, respondeu ele. Ela, então, pediu-lhe: ─ Não coma meus filhos, compadre! Por favor! E ele: ─ Mas,
comadre Coruja, como vou saber quais são seus filhos? E ela: ─ Fácil, compadre! Os meus são os filhotes mais
bonitos! Gavião ouviu e se foi. Mas quando a mãe coruja chega no ninho percebe que o gavião havia devorado
sua ninhada. Toda chorosa, foi tomar satisfação com o predador, e ele prontamente respondeu: ─ Eu só comi
filhote feio! Moral da História: “Para toda mãe, os seus são os filhos mais lindos do mundo”. (Texto reescrito a
partir de Fábulas de Esopo – domínio público)
283

denuncia sua origem do lixo, façam parte dos cadernos escritos pela escritora quando vivia
ainda em seu barraco. Outro rastro dessa hipótese é a linguagem em que ela comete mais
desvios gramaticais do que as outras versões de alguns desses textos passados a limpo em
cadernos comprados após o sucesso editorial de seu best-seller. Essa dificuldade de datação
nos textos mais afins com o caráter literário não ocorre nos cadernos preenchidos por seus
diários, o que nos permite algumas vezes inferir datas e sequências de versões de textos
análogos.

No entanto, são inevitáveis as implicações que este processo labiríntico da escrita


de Carolina de Jesus nos impõe, pois às vezes ela começava a escrever num caderno, para, e
continuava noutro, retornando ao anterior, sem, contudo, numerar sequencialmente os locais
anterior e posterior de sua escrita. De modo que cabe ao geneticista reunir capítulos ou partes
de textos desconexos, como, por exemplo, no caso do romance Dr. Silvio, disperso em nove
cadernos, alguns quase esfarelados devido à fragilidade do material que, como os demais, foi
reaproveitado do lixo e, portanto, estão quase todos com a brochura lateral solta, rasgada. Sem
falar nos romances inacabados ou fragmentados como Rita, Dr. Fausto e Maria Luisa.

O limite entre a palavra escrita e a palavra escutada, entre literatura e não-


literatura, para Carolina de Jesus, é muito tênue. Finalmente, em relação a seus textos
inacabados podemos dizer que resta uma espécie de partitura muito aberta, passível de várias
interpretações e reinvenções. Como se diz em literatura contemporânea, análogo ao caso de
Rayuela (O jogo da amarelinha) de Julio Cortázar (1963), a obra de Carolina de Jesus é, por
excelência, uma obra aberta.

A partir das constatações apostas por nossas análises, as obras do espólio literário
de Carolina de Jesus revelam-se como um tesouro a ser desvendado, podendo vir a nos
oferecer muito de sua invenção ao ser publicada, possibilitando assim uma porta de acesso a
processos criativos do lado menos conhecido da história da nossa literatura, como na criação
desse dialeto inaugural do mundo retornando a uma língua primordial através da linguagem
dos pássaros.
284

À guisa de conclusão

Escrevia a tanto tempo para desafogar as misérias que enlaçava -me


igual cipó quando enlaçou todas as árvores.

(Carolina de Jesus)

A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas


conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

(Milton Santos)

O processo criativo apreendido a partir das análises dos textos do espólio literário
de Carolina de Jesus pôde ser entendido como a materialização em obra literária de uma
crônica da cidade de São Paulo e Minas Gerais, pois suas narrativas permitem ao leitor uma
convivência cuja influência múltipla e diversa enseja uma viagem incomum pelas ruas e
capital da garoa. Sua expressão literária mostra um sujeito que, ao perambular, permanece
sintonizado em tempo e espaço, reais, mas incertos, fugidios. Essa escritora é não somente
uma impossibilidade de escritor tradicional como também é criadora de uma escrita a partir da
impossibilidade e da vulnerabilidade da vida marginal dentro de uma cidade vista por ela
como “uma bolsa elástica” onde tudo cabe e tudo se mescla de maneira arbitrária e
simultânea.

Ricoeur (1983) diz que narramos para dar ordem ao caos, ou melhor, para criar
um simulacro de ordem, para podermos ter a sensação de que há um sentido em nossas vidas,
qualquer que seja ele. É esse “sentido” que, por mais precário que seja, Carolina de Jesus,
consciente das lacunas e atenta aos riscos de uma falsa veracidade, buscou através da escritura
de suas narrativas. Ela trouxe o coletivo através de seu universo particular e agora, nesse
momento, trazemos coletivamente sua particularidade estética.

Constata-se que, em todas as suas emergências, as narrativas de Carolina de Jesus


debatem-se em flagrante desconforto para o “leitor ilustrado”, atravancando um entendimento
mais profundo, menos direcionado, mecanizado, do “homem mediano”, de consciência
285

adormecida ou aquele de consciência “domada”. Nesse sentido, quando os textos foram


analisados, foi necessário recorrer a outras perspectivas, tais como a do hibridismo, que
associa cultura erudita e cultura popular. Não se pode perder de vista que Carolina de Jesus é
uma voz dissonante – e como tal, incômoda – em meio ao vozerio aturdido de tantos outros
que querem dizer ou gritar suas dores, suas verdades particulares ou seus “modos novos” de
dizer as mesmas coisas, e daí a constante filiação de sua imagem a diversos grupos que a
tomaram como inspiração, como o movimento contemporâneo da “Literatura marginal
periférica 140 ”.

A escritora Carolina de Jesus revela-se na condição do artista moderno. No


sentido da modernidade contemporânea, a tardia modernidade – e, não, a modernidade “tout
court” – adentrada nos meandros da elaboração criativa, de escritores adensados no âmbito de
suas escrituras. O desconforto causado por essa escrita rasurada, corrompida, que é um
processo comum a todas as modernidades (MENEZES, 1994), nela, força passagem e
ultrapassa fronteiras, já que todo transgressor tenta decalcar e marcar um território.

Carolina de Jesus também faz isto, como, por exemplo, em sua associação ao
Romantismo ou sobre a sua ancestralidade africana, à guisa de, consecutivamente, erudição
ou moralidade, pelo viés de uma frágil, mas existente, intertextualidade, situando-se fora do
seu tempo como atitude atemporal e rebelde.

Como vimos, de alguma maneira Carolina de Jesus também procurava ter essa
postura da escrita romântica, além de uma consciência aguda que promulga ebulições,
arrastando a carga de tantas referencialidades ao revisitar o antigo, o arcaico, reapresentando
múltiplos passados, que foram sendo revisitados por outros tantos presentes, proclamando
velhos procedimentos, revestindo o pensamento e a criação: Qu’on ne dise pas que je n’ai
rien de nouveau, la disposition des matières est nouvelle. Les mêmes mots forment d’autres
pensées par leur diferente disposition141 (PASCAL, 1951, p.431).

Desse modo, Carolina de Jesus deflagra estados virgens ou protótipos de


formulações artísticas, que viriam a aparecer com força, a partir os anos de 1990 até os dias de
hoje, as literaturas marginais periféricas, a linguagem e o discurso dos “sem voz” até então.

140 Para saber mais: VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
141 Que não se diga que eu não tenho nada de novo, a disposição das matérias é nova. As mesmas palavr as
formam outros pensamentos para uma disposição diferente. (Tradução Minha)
286

Assim como ocorreu com a obra de Arthur Bispo do Rosário – antes marginalizada –, agora,
foi exposta na Bienal de São Paulo como símbolo da produção artística contemporânea. São
obras que resultam de um movimento de rebeldia contra a apatia, contra o próprio lugar da
marginalidade, mas que só se tornam realidade pela reinvenção de espaços possivelmente
habitáveis no âmbito de sua própria arte.

As nuances que estendem uma combinatória de relação temporal entre intenção


inventiva e legado cultural, aqui, estão visíveis. Carolina de Jesus enreda-se a si própria
perfazendo o caminho inverso na “busca de seu tempo perdido”; e, na tentativa de sair de seu
não-lugar, ela gera uma intenção inventiva labiríntica própria de um des-lugar narrativo.
Nesse sentido, ou seja, ao deixar pistas para a volta, observa-se na estrutura mesma de sua
obra que seu processo criativo desdobra contínuos desvios, mas que ganham novo relevo face
à estagnação. Um constante escrever em condições de impossibilidade de escrita que se torna
factível, perfazendo dobras, amontoamentos, desencaixamentos; reinventando margens,
barrancos, deixando os rastros de uma narrativa que suscita ressonâncias de curiosos sujeitos
a verter dizeres e redizeres nesse processo de (hiper)feição de si.

Assim, é quase impossível encontrar elos ou paralelos bem definidos entre a


tradição literária e esse não-lugar narrativo instaurado por Carolina de Jesus, mas, sim,
vizinhanças, contiguidades, zonas de concomitâncias, pensando os mecanismos de
aproximação e desvinculamento entre territórios mesclados na construção de
desterritorializações, isto é, ela sai de seu não-lugar original para se reterritorializar num
espaço estranho, abalando-se, perdendo de vez as estruturas tantas vezes buscadas. Mesmo
assim, Carolina de Jesus cria uma terceira margem, um novo lugar, improvável, mas que, ao
ser inventado, existe; e ao passar a existir, passa a suscitar cuidado, atenção.

A escritura de Carolina de Jesus avizinha-se intimamente com a sonoridade do


jazz142 , aprofundamento máximo no tom, o descompasso a friccionar elementos
incompatíveis, gerando ruídos, sonoridades órfãs, grunhidos incômodos e estranhos,
dissonância desafinada. Uma enxurrada de palavras que segue seu curso sinuoso em
movimentos descontínuos, aos solavancos; por vezes assonantes; e essa união de fragmentos,
voos, improvisos, como no jazz, sempre retorna ao mesmo tema.

142“Assim como a música clássica, o jazz sempre foi um interesse de minorias”. (HOBSBAWM, 1998, p.387).
Coincidentemente, o reavivamento do jazz (1960-3) coincide com o auge do sucesso de Quarto de Despejo.
287

Suas narrativas, bem como seus suportes, são uma torrente de textos trincados a
atrair para o detalhe o que olho e captura; por vezes, a sonoridade alcança uma sintonia, mas
logo é tomada por um torvelinho de sensações desalinhadas, como um trem desgovernado que
segue seu trilho aos saltos, em um processo bruto de desvirtuamento-destronamento do
clássico, numa abrupta recalescência de trabalho estético, estrondo criativo ou moléstia
produtora, a empilhar imbricações de sentidos, justamente porque não detém a técnica, mas
expressa o sintoma de um desajuste que vingou a partir da catação de palavras e da
reinvenção de sentidos, resultando, por fim, na criação da sua inconfundível poética de
resíduos.

Em Carolina de Jesus tudo é residual, no sentido do descarte das formas ensaiadas


e depois abandonadas ao longo do processo criativo da escrita. Muitas vezes, essas formas são
pastiches ou aparições miméticas, experimentadas na formulação dos textos, como vimos em
“Carta sem endereço”. Assim, nunca alcançando uma possível plenitude que possa
caracterizar e/ou esquadrinhar, numa forma simples que se quer complexa, ela continua sem
se cansar, sem parar de escrever. Certamente, entramos no universo de seus textos já tendo em
vista que não estávamos pisando um território fixo, pois sua engenharia de escrita erra pelo
mundo das letras, causando instabilidade nas palavras e nas falas. Cada fio ou projeto, tecido
inicialmente é em seguida esquecido ou abandonado, tendo sido gestado já sem identidade ou
forma fixa, plasmados e erigidos sobre a mais pura paixão pela expressividade da rara palavra
em meio à bruta miséria.

Suas narrativas são nascidas de cada instante fugaz, cuja intensidade gera capturas
discursivas, temáticas e alusivas que consomem, mas seguem atingindo devires insuspeitos
dessa escritura. A vida escrita se expande para se agarrar àquilo que tem, ao mesmo tempo em
que os fios criativos não se articulam em fluxo constante, de um modo que não dão conta de
organizar os territórios de sua escrita, sendo nesse sentido rizomático seu processo criativo.
Em geral, o potencial atingido numa primeira investida criativa anunciada se desfaz,
desperdiça e retrocede, recomeça num caderno o que fora abandonado em outro, restando
traços de algumas de suas narrativas em contrição, um vir-a-ser do texto, uma obra inacabada,
inconclusa, oclusa na própria abertura que iniciou, mas não finalizou, e que, curiosamente,
não deixa de ser opulenta porque ali, fatalmente, pulsa uma escrita, mesmo na impossibilidade
de ir além, dada sua condição de origem.
288

A perspectiva crítico-teórica tomou o conjunto total do acervo disperso de


Carolina de Jesus (em instituições oficiais e particulares, e de paradeiro ignorado), como
corpus dessa análise. A visão de radícula refere-se à composição da estrutura do conjunto do
acervo disperso, isto é, constituindo o trajeto do processo criativo deste espólio literário como
sendo uma obra aberta. O processo não se fecha em obras individuais acabadas; mesmo
incompletas, elas se cruzam e entrecruzam, repetem-se, tangenciam-se e se corrigem.
Somente depois dessa constatação, o arquivo pôde, enfim, se constituir em roteiro de um
processo criativo em aberto.

É nesse deslimite formal gerado pelas próprias limitações que se faz a escrita
caroliniana, numa fúria de tecer tantas narrativas, ao ponto de a escritora ir pouco a pouco
substituindo, aleatoriamente, maneiras de fazer o literário. É como se Carolina de Jesus
estivesse sempre tentando, sempre reorganizando sua escrita para iniciar uma nova incursão
em novos territórios-formas. E as radículas não param de escapar aqui e unir-se ao lá de trás,
no já dito. Em seus palimpsestos, para sua escrita importa mais conquistar e tomar posse de
algum espaço para tecer suas narrativas do que buscar um estilo ou dar forma ao conteúdo.
Deficiência? Espelho de uma condição marginal? Fratura estilística ou estética? Inovação?
Nesse dilema uma possibilidade leva à outra, pois, ao mesmo tempo em que lápis e papel,
sangue e saliva vão perdendo a capacidade, maestria ou destreza de urdir, algo inusitado
edifica-se no conjunto de sua obra.

O processo de criação inventado por Carolina de Jesus nos ensina que o vácuo, o
vazio e, assim, o caos, podem estar repletos de potência de vir a ser. O enfoque na gênese nos
permitiu percorrer os arquivos da escritora definindo o formato dessa tese que teve como
objetivo principal cartografar o percurso criativo de sua obra. Portanto, os pressupostos que
amparam nossa hipótese foram confirmados ao final das análises, pois, como estava
evidenciado, diversos recursos foram reutilizados pela escritora na gestação de suas obras.

Neste espólio literário pôde-se confirmar a exortação de devires dada a força


polifônica que met en place um agenciamento de discursos adquirindo perceptos, isto é, novas
experiências de vida através da vivência ancorada na escrita e a liberação de um tornar-se
sujeito de si mesmo. Ainda que por meio da repetição e de elementos literários e
extraliterários que não se completavam, notou-se que o ritmo desses escritos se passa numa
performance moduladora de frequências nas quais alguns códigos se repetem ou se mesclam
na busca de consolidação de um passado autobiografado, nebuloso, onde as palavras e as
289

ideias se precipitam como voragem em expansão da memória num princípio de germinação


continua.

A noção de ficção é diferente nessa literatura, em primeiro lugar porque não há


uma crítica literária para ela, já que a obra em si não foi publicada enquanto literatura, como
ficou demonstrado nas diversas implicações que incidiram sobre as edições. Segundo, porque
Carolina de Jesus mistura gêneros literário e não literários, o que evidenciou para a pesquisa
como é difícil trabalhar diferentes categorias manipuladas, ou seja, a coexistência de junções
que parecem instransponíveis e mesmo impossíveis de se unirem, na realização de uma
enorme variação multiforme. Assim, foi possível perceber que a escritora coloca em xeque
uma prática paradoxal da literatura, constatando a impossibilidade de encontrar uma ficção
“pura” em sua literariedade, como adverte Derrida. Em todo caso, para ela, a literatura
permite uma posteridade, e também a liberdade no retraçar os diferentes pedaços de sua vida
que, num fluxo de mise en scene de soi-meme, ela vai ativando sua autoficção.

Aqui vale enfatizar que, ler Carolina de Jesus levando em conta a especificidade
de seu caráter autobiográfico não anula a qualidade literária da obra, quando se tem em vista
que ela empreende sua escritura e não uma escrita. Por meio da mobilização de biografemas e
não da feitura de uma biografia, ela busca o clamor artístico através de uma linguagem que
não se submete ao rigor linguístico, necessário para o fomento do que se considera um
elemento básico para a gestação da escrita literária; mesmo assim, muitas vezes, tenha a
intenção de se equiparar a ele. Ela cria biografemas, pois sua força está na criação de uma
escrita de vida, que, ao mesmo tempo, não escapa de uma autobiografia enquanto reinvenção
de sua história de vida, e nesse movimento de ambivalência própria de sua língua literária, ela
constrói uma história da escrita bastante particular em nossas letras.

As contingências materiais aí implicadas traduzem diferentes formas de


reconstrução conjuntural procedendo a espaços anômalos como única possibilidade de
apreensão a partir da experiência do fragmento. Assim, foi possível notar quais estratégias
Carolina de Jesus utilizou para adequar seu gesto de escrita a sua realidade. À luz do exame
gramatical mais apurado foi verificado, por exemplo, que a prática de reforçar a letra com
nova cor de caneta ou de retificar o erro de alguma palavra fazia parte do autodidatismo da
escritora e de sua tentativa de se adequar à norma culta.
290

Também, conclui-se que as escolhas feitas por Carolina de Jesus entre os gêneros
literários e não literários tinham a ver com o valor que ela desejava impor para sua
experiência. Tanto romance, diário ou crônica são modelos literários capazes de conter,
plasmado em seus textos, o cotidiano, e inserir a realidade social no processo de comunicação.
No entanto, em suas obras, o gênero não é formado apenas pela composição do estilo, mas
como forma arquitetônica onde o texto é incluído num conjunto de vários gêneros, despojado
de métodos composicionais definidos.

Confirmou-se também que a escritora se valeu de todas as ilusões narrativas no


jogo temporal de passado, presente e futuro, elaborando uma ficção de autoria em meio a seus
biografemas, ao reinventar suas narrativas em face ao caos da história que é metaforicamente
trabalhada, pontuada por autorreferencialidade, recolocando uma condição muito cara à
composição ficcional que, por norma, visa afastar-se do vivido. Além disso, ficou confirmado
que, em seu processo criativo caótico, ela não conseguiu romper com a estrutura das fábulas,
ligadas aos ditames morais de orientação judaico-cristã, que rechaça certa noção de pecado. E
sem deixar de ser cristã, revela por sua vez, decadência, estiolamento de tradicionalismos por
detrás de estruturas obscuras, como foi explorado na narrativa “O canto dos pássaros”.

A partir do delineamento e mapeamento das leituras e impactos dessas narrativas


sobre a escritora, constatou-se que, ao falar de uma profusão de livros de outros escritores,
Carolina de Jesus aponta suas referências, do mesmo modo que sugere como gostaria de ser
lida, associando o escritor nas vestes do ledor/ela mesma eleita como personagem de seus
livros. Assim, a escritora encontra meios de identificar, em si mesma, certas características
com o intuito de reduzir suas incompletudes e de compreender seu processo de criação. Em
sua “fenomenologia”, parece que ela também quer ser “lida” como leitora.

Dentre todos os esclarecimentos que nosso estudo possibilitou, um dos mais


importantes para os objetivos da pesquisa foi constatar que a datação dos textos está bastante
comprometida no corpo esparso do acervo. Porém, tanto a materialidade dos cadernos dos
tempos da favela – mais frágeis – e os dos tempos da casa de alvenaria – mais conservados –
quanto algumas indicações de acontecimentos da História e de sua história, sinalizados como
importantes para a escritora, como a chegada do homem à Lua, a morte de Che Guevara, as
décadas da morte do avô assinaladas na entrada dos diários, entre outras pistas, cedem
indicações de datas que podem situar o preparo de determinados cadernos num lapso temporal
291

mais preciso. No entanto, esse trabalho de arqueologia com fins de datação mais segura,
apesar dos indícios, não pôde ainda ser feito.

Carolina de Jesus, enquanto escritora constrói-se como uma personagem


autodidata, isto é, suas narrativas mostram como ela adquiriu conhecimento sobre as coisas
“do mundo da vida” conforme foi sendo absorvida pelas palavras, pela linguagem, pelas
leituras, e como ela própria está inserida na linguagem, sentia-se presa à matriz do
conhecimento que precisa ser colocado no papel para sanar as perturbadoras, mas
esclarecedoras, ideias. A transformação não seria a razão de sua falência, mas sim a
construção de sua poética, que toma posse de um lugar de transformação, de duplo valor do
outro, a partir de recortes e escolhas próprias, operando a metamorfose de si mesma.

Através da cartografia da obra de Carolina de Jesus aprende-se que errar e


experimentar fazem parte do processo de criação artística, colocando em xeque o conceito de
“autoria” como aquela que mantém a posição expressa de um determinado estilo de narrar a
realidade, pois o devir-escritora em suas obras tem um caráter performático e deglute com
anarquia estilos que passam, deslocando e liberando formas burladas, de modo que o como
narrar não é tão fundamental quanto o como explorar o conteúdo do universo dos subjugados
como substrato fundamental de sua criação, que abrange o tácito e inclui o impensado da
potência inventiva.

Seu processo de criação é orgânico, restitui o discurso ao corpo, quer dizer, atinge
em primeiro lugar o corpo numa afectibilidade que está aquém da linguagem e até mesmo do
sentido. Tende a tecer suas obras com desinteresse, agindo com um quixotismo “inato” no
lugar do fazer a obra objetivamente, ainda que se vislumbrem recursos autodidáticos que não
dão conta do despejo da escrita que inventariou as pessoas e a cidade.

Nesta tese atingiu-se o objetivo de disponibilizar uma apresentação das parcelas


significantes que compõem o dossiê dos originais de Carolina de Jesus, concluindo que suas
narrativas se fazem num movimento iminente, isto é, estão sempre prontas para acontecerem
novamente, pois seu caráter de obra inacabada, gerada pela incerteza no processo de redigi-
las, daí o fato de serem reescritas em profusão, e por reviverem o passado pelo caráter
autobiográfico em seus conteúdos. O esquecimento e a lembrança aparecem como impacto
simbólico, e como aparato para a geração de enunciados que recuperam o passado
experimentando novas formas de textos; então, é necessário esquecer outras formas de escrita
de um mesmo conteúdo, para ensaiar uma nova e talvez lembrar algo de si mesma no
292

emaranhando das emoções e razões que impulsionam e criam novas bases para rememoração
e invenção de novos textos. De modo que o espaço intersticial na obra de Carolina de Jesus
está erigido por entre as fraturas de memórias e pela busca dos lugares esquecidos. Estes, são
reconhecidos como necessidade e apego aos suportes escolhidos de maneira deliberada e
arbitrária, passível de imprecisão e, por isso, da incompreensão de sua ilegibilidade. Talvez
esta seja uma das razões que fizeram com que seus manuscritos inéditos tenham se mantido
silenciados por todo esse tempo. Esquecer uma grande obra é tão importante quanto lembrar
de sua forma a criar novas bases para lembrar dela.

Contudo, não nos escapa a evidência de que estamos ainda longe de uma visão
global/ totalizante que possa auxiliar uma interpretação clara do processo de escritura, seja
pela dispersão pertencente ao próprio processo produtivo, visível no espólio literário de
Carolina de Jesus, seja pelo limite imposto pelo espaço/tempo desta pesquisa. Entretanto, a
aproximação com a obra permitiu compreender que os livros publicados como produtos não
podem ser considerados a imagem fiel da criação presente na topografia das páginas originais.
Mesmo os manuscritos não podem ser lidos como texto final, mas como escritura que deixa
entrever uma série de eventos linguísticos cronologicamente sitiados, explicitando variações
entre a linguagem oral e a linguagem escrita, na reinvenção de um código próprio.

Com efeito, o que é notável no espólio literário de Carolina de Jesus é que parece
estar ela em constante busca da palavra para escrever a vida, não sendo a sua linguagem
ordinária e transitiva, mas uma constante captura de interação com o “belo” e o “corriqueiro”
delineando uma visão épica e trágica de um passado mineiro e de seu presente em São Paulo
saltando o muro da voz subalterna, fazendo-se voz ativa, altiva e poética.
293

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Documentos originais de Carolina Maria de Jesus:

Fundação Biblioteca Nacional. Coleção Carolina Maria de Jesus. Cadernos microfilmados: 11


Rolos (1958-1963): MS565 (1-10). Rio de Janeiro, 1996, P/b, 35mm.

Fundação Biblioteca Nacional. Cadernos autógrafos: 14 diários (1947-1963): 47, GAVI, 01-
14. Rio de Janeiro, 2011.

Arquivo Público Municipal Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonswik. Fundo


Carolina Maria de Jesus. 37 cadernos autógrafos (1958-1974): APMS 01.01.01. A APMS
12.04. Sacramento, 1999.

Museu Afro-Brasil. 1 caderno autógrafo: “Diario 20” (10/08/1959 a 26/10/1959). São Paulo,
2004.

Instituto Moreira Salles. 2 cadernos autógrafos: BR IMS CLIT CMJ P1 0001 e 0002. Rio de
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JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Paulo
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JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da Fome. São Paulo: Áquila, 1963.

JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Edição da Autora, 1965.

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294

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Janeiro, 2014 (16min4seg)

Vidas de Carolina. Jéssica Queiroz. Prêmio Criando Asas. Instituto criar de TV, cinema e
novas mídias; São Paulo, 2014 (9min45seg)

Das nuvens para baixo. Produção: Marco Antonio Gonçalves e Geandra Nobre. Direção:
Marco Antonio Gonçalves e Eliska Altmann. Rio de Janeiro: Osmose Filmes: UFRJ: UFFRJ,
2014. 1 DVD (77min)

Carolina. Direção e adaptação: Jeferson De. Roteiro: Baseado no livro Quarto de despejo.
Dogma Feijoada, São Paulo, 2003 (15min)

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A cor da Cultura, Canal Futura, Brasil, 2010 (2min).

Filmografia:

Cidade Ameaçada. Direção de Roberto Farias. RCA, São Paulo, 1960 (110m11seg)

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