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A morte em Heidegger: horizonte de possibilidades para uma vida autêntica

admin 24 de novembro de 2011 5

Douglas Lopes Amaral

Diante da facticidade e efemeridade da vida na qual o ser humano se vê mergulhado,


várias questões existencias se apresentam ao espírito humano, como a busca pela
origem, pelo sentido da vida. Tais questões tocam o mais profundo do existir humano e
sempre permanecem indecifráveis, enigmáticas e misteriosas ante a nossa capacidade
limitada de conhecer a razão de todas as coisas.

Em nosso texto versaremos a respeito de uma das questões existenciais que mais
desperta a curiosidade e desencadeia uma série de sentimentos, os mais variados, em
todos aqueles que têm consciência de sua própria existência, a saber, o tema da morte.
Para tanto nos valeremos do pensamento heideggeriano, e partiremos de sua analítica
existencial dos modos de ser do Dasein que, no modo de ser-para-a-morte, nos
apresentará a morte como horizonte de possibilidades para uma vida autêntica.

O modo de ser do Dasein é ser enquanto existente, pois sua essência é a existência, e
existência é poder ser no sentido de projetar-se, de superar-se, de transcender. O Dasein
existe enquanto é ser-no-mundo. “Estar no mundo significa fazer do mundo o projeto
das ações e dos possíveis comportamentos do Dasein” (VALE, 2008, p. 14). Entretanto,
o Dasein não se restringe só a este modo de ser, seu ser não pode ser determinado
apenas por esta estrutura. Isso significa que existem outras.

Ao mesmo tempo em que o Dasein é ser-no-mundo, ele é também ser-com os outros.


“Heidegger observa que quando lançado no mundo, o Dasein mantém uma interação,
uma relação, consigo mesmo, com os outros entes e com o mundo” (VALE, 2008, p.
16). Mesmo quando não deseja, ele, ainda assim, mantém-se em relação com o outro,
pois compartilha o mundo com ele. A ação do outro sempre reflete sobre os demais
Daseins.

Sendo no mundo e com os outros, o Dasein é também ser-em um mesmo mundo com os
outros. Este modo de ser “(…) é, pois, a expressão existencial do Dasein na medida em
que este possui, por constituição essencial, o ser-no-mundo, sendo assim (…) ser-em faz
parte da essência do Dasein” (VALE, 2008, p. 18).

Pudemos perceber acima que o Dasein possui uma multiplicidade de estruturas de ser.
Todavia, estas estruturas unidas formam sua unidade estrutural. Para compreendermos
como esta unidade se dá, precisamos entrever o modo pelo qual o próprio Dasein se
mostra para si de forma unitária, simplificada, de forma que seguindo este mostrar-se,
elabore seu sentido existencial. E essa experiência é realizada através do sentimento da
angústia que se torna fundamental (DUBOIS, 2005, p. 41).

Primeiramente, é preciso deixar claro que a angústia não se confunde com o medo. “O
temor é de alguma coisa, a angústia, ao contrário, é angustia de nada, diante de nada. É
necessário interpretar esse nada, esse nada não é nada. Nenhum ente intra-mundano,
pois a angústia é precisamente a experiência do ser-no-mundo enquanto tal (…)”
(DUBOIS, 2004, p. 41), ou seja, a experiência do próprio dasein. Portanto o medo diz
respeito diretamente aos entes intramundanos, ao passo que a angústia, pelo contrário,
não se refere a nenhum ente intramundano (VALE, 2008, p. 23).

Segundo Vale (2008), a angústia é um fenômeno privilegiado pelo fato de conduzir o


Dasein do impessoal para a possibilidade de ser ele mesmo. “A angústia manifesta no
Dasein o ser para o poder ser mais próprio, isto é, o ser-livre para a liberdade do se-
escolher-e-se-apropriar-de-si-mesmo” (HEIDEGGER citado por DUBOIS). Nesse
sentido, a angústia faz do Dasein um ser de possibilidades; a partir dela ele se vê livre
para escolher-se. Enquanto ser-no-mundo o Dasein é “(…) aquele que constrói, é aquele
que se projeta, é poder-ser, é deixar-ser; é liberdade enquanto possibilidade” (VALE,
2008, p. 25). “Para Heidegger é indiscutível que o dasein autêntico necessita estar
angustiado” (MALLMANN, 2008, p. 62).

Ainda como estrutura fundamental da existência, figura o cuidado. “O cuidado (…) é o


ser do Dasein e funciona a este título como puro a priori. Ele é, assim, a condição de
possibilidade, a abertura necessária, o espaço de jogo para fenômenos como o querer, o
desejar, a propensão, a inclinação” (DUBOIS, 2005 p. 43). As estruturas dos modos de
ser do Dasein encontram seu ponto de unidade no cuidado.
“Para Heidegger, o fenômeno mais originário, que sustenta ontologicamente a unidade e
a totalidade da multiplicidade estrutural do cuidado é a temporalidade” (VALE, 2008, p.
35).

A Sorge (cuidado) é presente, passado e futuro. No presente sempre já está implícita a


idéia da faticidade à qual se liga a idéia da hermenêutica. A idéia de futuro aqui em
questão não é aquela na qual morremos e que tudo termina, mas a idéia de futuro que
nos move agora no presente. Por isso, o Dasein é o ser-para-a-morte. Somos futuro,
passado e presente num único movimento. Somos sempre um adiante de nós, já no
mundo, junto das coisas. O passado é uma possibilidade que já foi e o futuro, o ser-para-
a-morte, é a última possibilidade ou a impossibilidade de qualquer nova possibilidade
(MALLMANN, 2009, p. 66).

O Dasein que se abre ao futuro, que tem por sua vez a característica da finitude, abre-se
a questão da morte, pois é tendo em vista o futuro, ou seja, o por vir, que o Dasein
poderá antecipar-se em busca da totalidade.

Porém, enquanto ser-no-mundo, ou seja, enquanto ente, o Dasein nunca poderá alcançar
o seu fim no sentido de totalidade. “Enquanto a pre-sença é um ente, ela jamais
alcançou sua ‘totalidade’. Caso chegue a conquistá-la, o ganho se converterá pura e
simplesmente em perda do ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2005, p. 16), o que significa
que o Dasein deixará de ser Dasein pelo fato de perder o Da de sua constituição, ou seja,
o aí do ser-aí.

Por causa disso, somos impossibilitados de fazer a experiência de nossa própria morte,
pois quando ela acontece o Dasein deixa de existir, já não é mais. Porém, apesar de não
podermos experenciar a “minha própria morte”, podemos fazer a experiência do
fenômeno ontológico da morte, ou seja, da passagem do modo de ser do Dasein que é a
vida, para o modo de não-ser-mais-presente, através da morte dos outros
(HEIDEGGER, 2005, p. 18).

Mas, “em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dos outros. No máximo,
estamos apenas juntos” (HEIDEGGER, 2005, p. 19). Muito menos podemos assumir a
morte do outro, morrer pelo outro no sentido ontológico. “Pode-se ‘morrer por outrem’.
No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro ‘numa coisa e causa
determinada’. Esse morrer por…, no entanto, jamais pode significar que a morte do
outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada” (HEIDEGGER, 2005, p. 20). Cada
Dasein deve assumir ele mesmo sua própria morte, “(…) ela é um processo que cada um
deve e necessita fazer por si próprio, na singularidade” (MALLMANN, 2009, p. 71).

Como dissemos, o Dasein não pode fazer a experiência de sua própria morte, pois
quando morre ele não é mais Dasein, nem pode experienciar a morte do outro pelo fato
de que “‘o morrer’ é da ordem do insubstituível” (DUBOIS, 2005, p.49). Para resolver
esse problema Heidegger propõe que pensemos existencialmente o fim do Dasein, isto
é, enquanto possibilidade, poder-ser, antecipação.

Porém, Heidegger constatará que a maioria das pessoas encara a morte a partir da
cotidianidade e do impessoal. Por acontecer frequentemente, a morte torna-se algo
comum, que não choca. Ela sempre acontece, mas nunca comigo: “A interpretação
pública da pre-sença diz: ‘morre-se’ por que, com isso, qualquer um outro e o próprio
impessoal podem dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém”
(HEIDEGGER, 2005, p. 35).

Tanto é verdade que as pessoas fogem da morte e não querem aceitá-la, que, quando se
deparam com um enfermo, ficam alimentando a esperança de que ele não morrerá, que
vai se curar: “(…) os ‘mais próximos’ frequentemente ainda convencem o moribundo
que ele haverá de escapar da morte e, assim retornar a cotidianidade tranquila de seu
mundo de ocupações” (HEIDEGGER, 2005, p. 36). Heidegger afirma que essa
tentativa de consolar e tranquilizar o moribundo é, antes de tudo, a tentativa dos
próprios consoladores de se tranquilizarem a si próprios, pois “o impessoal não permite
a coragem de assumir a angústia com a morte” (HEIDEGGER, 2005, p. 36).

A angústia não deve ser confundida com o medo de deixar de viver ou mesmo com a
morte. Ela deve ser entendida como a “disposição que possibilita uma compreensão
existencial da morte” (VALE, 2008, p. 47); é a angústia que faz com que o Dasein se
perceba como lançado no mundo para sua possibilidade mais própria. “Angustiando-se
com a morte, a pre-sença é colocada diante da possibilidade insuperável, a cuja
responsabilidade está entregue” (HEIDEGGER, 2005, p. 36).
Mas quando o Dasein vive na cotidianidade mediana do impessoal, mesmo que tente
fugir disso, ele se vê como de-cadente. Enquanto de-cadente ele busca a todo o
momento fugir de si mesmo, fugir da morte. Porém, mesmo quando o próprio impessoal
não está pensando na morte, a cotidianidade do Dasein mostra que ele está se
determinando como ser-para-a-morte. (HEIDEGGER, 2005, p. 37). Fica claro, portanto,
que o Dasein é ser-para-a-morte.

Enquanto ser-para-a-morte o Dasein precisa transportar-se para a consciência de que a


existência é escolha, que é fundamental escolher. É preciso, portanto, sair do impessoal
e esta decisão só depende de mim, uma vez que é de mim que se trata. É, pois, a
consciência que me chama, enquanto eu, a ser eu mesmo (DUBOIS, 2005, p. 54).

A voz da consciência faz com que o Dasein sinta-se “em dívida para com a sua
verdadeira natureza e encaminha-o para uma decisão antecipadora, que projeta a
existência autêntica como um viver-para-a-morte” (VALE, 2008, p. 51). Dessa forma, a
relação do Dasein com a morte se dá antes que a morte aconteça, e esta relação faz com
que o Dasein se abra para a sua possibilidade mais própria.

Em suma, ser para-a-morte é ser angustiado, pois “a angústia é uma forma privilegiada
de abertura, pois ela não permite que o ser fique quieto e alienado no seu mundo
impessoal” (MALLMANN, 2009, p. 53). Além do mais,

a angústia coloca o homem diante do nada, isto é, ao não sentido dos projetos humanos
e da própria existência. Existir autenticamente exige, então, coragem para enfrentar a
realidade própria do não-ser e sentir a angústia do ser que caminha para a morte.
Existência autêntica implica aceitar a sua própria finitude. (TRANSFERETTI citado por
MALLMANN, 2009, p. 81).

Assim, viver de maneira autêntica é viver tendo a consciência de que somos finitos e um
dia vamos morrer. Quem vive de maneira autêntica encara a morte como possibilidade
da impossibilidade da sua existência, e não como faz o impessoal que diz “morre-se”, na
tentativa de mascarar essa realidade. Viver autenticamente é reconhecer-se ser-para-a-
morte e a partir disso, diante das possibilidades para as quais ela nos abre, projetar e
construir a nossa vida a partir dessa constatação. Portanto, a morte deve ser vivida como
experiência antecipadora, isto é, deve ser vivida no dia a dia de nossa existência. Todas
as nossas ações devem ter em vista, como horizonte, essa possibilidade, a mais própria
do Dasein.

Referências

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Tradução de Bernardo Barros


Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 13. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante


Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005.

MALLMANN, Márcio. Para além do impessoal: em busca da autenticidade.


Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2009.

VALE, Antônio Adriano. A possibilidade da impossibilidade: a morte na obra ser e


tempo de Martin Heidegger. Mariana, 2008. (TCC em filosofia).

SER-PARA-A-MORTE É SER EM VIDA

Hélia Regina Caixeta Consonni

Introdução
O presente texto aborda o existencial ser-para-a-morte na visão de Heidegger em Ser e
Tempo, objetivando criar uma possibilidade de reflexão sobre o sentido da vida do
homem contemporâneo ocidental, cuja existência cotidiana e superficial o afasta de sua
dimensão mais originária que é a temporalidade, horizonte aberto de toda compreensão
e realização. Dentro de sua análise existencial, Heidegger vai fazer uso da angústia e do
ser-para-a-morte para perturbar a lógica do impessoal que comanda a vida cotidiana. Ele
acredita que o homem, ao tomar consciência da sua condição de ser finito, poderá se
apropriar de suas possibilidades, escolher seu si-mesmo mais próprio e assumir
autenticamente a sua maneira de viver enquanto ser-no-mundo.
Ter consciência de nossa condição de sermos-para-a-morte não significa vivermos
temerosos, assombrados. Significa sim uma abertura ao que a morte nos revela de mais
essencial: nossa própria vida e nosso modo de viver.

A idéia da morte
De todas as experiências humanas, nenhuma traz mais implicações e inquietude do que
a idéia da morte e o medo que ela inspira. Nem as doutrinas filosóficas ou as religiões, e
nem mesmo a ciência foi capaz de aplacar a angústia que a consciência da finitude
promove. Por isso nós, ocidentais contemporâneos, a negamos, e negamos das mais
variadas maneiras, ansiosos por idéias vitais que resolvam nossas tensões e que nos dão
a sensação – falsa – de a estarmos domando.

Porém, negar essa realidade ou fugir de qualquer reflexão sobre a morte não a evita
como bem colocou Ariès:

“Não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós… Deixar de pensar na
morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber
que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra” (ARIÈS,
2003, p.20)
Hennezel e Leloup (2005) acreditam que as pessoas precisam entender que a morte não
é um fracasso, (sentimento esse que surge devido à idéia de que a vida é sempre
inacabada), mas uma realidade que obriga o homem a tomar consciência de seus valores
mais profundos e a se posicionar diante da vida.

Dessa forma, Angerami (2007) conclui que “a morte é, muitas vezes, um processo vital
que determina inclusive o modo de viver e a própria condição da vida”. Por isso ela não
deve ser pensada como uma inimiga a ser derrotada, pois isto faz segundo Rubem Alves
(1992) com que nos tornemos surdos às lições que ela pode nos ensinar e tolos na arte
de viver. Ele entende que deveríamos nos tornar discípulos da morte e não inimigos. E
Sponville (2000) afirma sabiamente que “ninguém jamais fracassou em morrer, mas em
viver (…)” e nos lembra da impossibilidade de vivermos felizes “sem aceitar a própria
trama de nossa existência que é o tempo que passa e a vida que se desfaz”.
Dasein
Ao trazer a temática da morte na abordagem fenomenológico-existencial, a referência
que melhor nos orienta é a desenvolvida por Martin Heidegger, filósofo alemão
discípulo de Husserl, que em sua obra fundamental Ser e Tempo (Sein und Zeit),
desenvolve um estudo do sentido do ser no horizonte do tempo, tomando como objeto
de reflexão o homem pensado como Dasein, como ser-aí, existindo no mundo e
lançado como projeto. Isto porque Heidegger considera que o homem é o único ente que
desde sempre já possui em seu ser uma compreensão do ser, ou seja, apenas
o Dasein (o ser-aí) é capaz de se questionar sobre o sentido do Ser e sobre a existência.
E é em sua análise da condição existencial do homem que Heidegger conclui ser
o Dasein um ser-para-a-morte. Mas antes de aprofundar no tema proposto é
fundamental entender a noção heideggeriana de homem como Dasein e Ex-Sistência e o
que ele pretendeu com seu estudo sobre o sentido do ser.
Inicialmente faz-se necessário esclarecer o que Heidegger quer dizer com a
palavra Dasein. Segundo Michelazzo (1999), a palavra em alemão significa
“existência” e ele a escolhe porque vê em sua composição Da(aí) Sein (ser) “a
possibilidade de veicular com maior clareza o traço determinante da essência do
homem” (Idem, ibidem, p.127) Ele, portanto a utiliza, ainda conforme Michelazzo, para
designar o comum-pertencer do homem e do ser na unidade de sua pertinência e
distinção, em substituição às noções tradicionais de sujeito que tomam a essência do
homem em sua dualidade: animal-racional, corpo-alma, sujeito-objeto. Tal noção está
condicionada ao pensamento metafísico de esquecimento do Ser que é o que em Ser e
Tempo (Sein und Zeit) ele pretende superar ao propor a construção de uma ontologia
fundamental.
Em sua ontologia, Heidegger procura explicitar a relevância da relação originária entre
Ser e ente, existência e essência como pertencentes ao mesmo âmbito e se enfrentando
na unidade de um único e mesmo acontecimento, como uma identidade sempre
escondida sob a dualidade de suas aparências. E o que ele toma como ponto de partida
não é o ente objetivado e cindido da metafísica, mas o ser que se mostra à “existência
humana” de forma concreta e imediata: o homem, o único ente para o qual o ser mostra
um sentido. (MICHELAZZO, 1999, p.75)

Portanto o que distingue o homem como Dasein é o fato de ele ser “aquele ente que
existe compreendendo o ser e que por isso pode interpretar de uma certa maneira a si
mesmo e ao mundo” (NUNES, 1999, p. 58). O que significa que “desde sempre o
homem é compreensão, compreende-se em seu ser e nele já antecipa uma implícita
compreensão do ser em geral” (STEIN apud MICHELAZZO, 1999 p. 109). Mas a
compreensão do ser que é inerente ao Dasein, relaciona-se com o compreender-se no
mundo porque o ser-aí é fundamentalmente estruturado como ser-no-mundo, o que
significa dizer que o Dasein não se defronta com um mundo, mas já se encontra diante
dele desde sempre, num vínculo em que um e outro estão entregues reciprocamente de
tal maneira que fora dessa unidade não existiria nem homem, nem mundo.
E se desde sempre no-mundo, O Dasein já é também desde sempre ser-com-outros, pois
ele se reconhece enquanto homem e desenvolve suas maneiras de se relacionar, de
pensar e ser, a partir de uma experiência que é coletiva. Assim, o Dasein é um ser-no-
mundo e um ser-no-mundo-com-os-outros, e esta é a sua facticidade básica, pois o
homem, “é aquele que é justamente por força de sua relação consigo mesmo e com o
mundo; ele é a relação” (ABBAGNANO, 2006, p.75). Existir é, portanto uma
experiência pessoal e intransferível, onde eu, apenas eu me construo perante o mundo,
embora implique necessariamente ser alguém com o outro já que o Dasein se encontra
sempre em situações comuns com outros. E embora o homem se constitua em virtude
dessas relações, elas são fundamentalmente indeterminadas, não fixadas, o que acaba
por oferecer ao homem a liberdade necessária para decidir ou escolher acerca delas.
Mas a própria indeterminação do sujeito enquanto ser-aí é o limite que define o homem
em sua finitude, pois “pela instabilidade que lhe é constitutiva, o homem pode perder e
não mais achar todas e cada uma de suas possibilidades de ser”. (Idem, ibidem, p. 63).

Temporalidade e Ser-para-a-morte
Segundo Safranski nós não apenas somos, mas percebemos que somos e que estamos
entregues a nós mesmos. Ele completa dizendo que somos aquilo que nos tornamos ao
longo do tempo (horizonte aberto) enquanto ser-no-mundo e ser-com-outros.

E quando Heidegger nos convida a olhar para o tempo como um horizonte aberto, ele
nos faz perceber que entre muitas possibilidades que nos aguarda, uma ocorrerá com
toda certeza: a possibilidade da impossibilidade, o grande passar, a morte. E nesse
sentido, ele relaciona morte/tempo “O Dasein sabe de sua morte… O Dasein sente que
vai passar” para nos lembrar que em cada vivência aqui e agora já percebemos
essepassar e que vivenciamos o tempo em nós mesmos como esse passar, na maneira
como a vida se cumpre. (SAFRANSKI, 2005, p.172)
Nesta relação morte/tempo Abbagnano (2006) afirma que o homem é definido pelo
tempo, que é a possibilidade de que cada uma das possibilidades do homem se perca, e
pela morte que é a possibilidade da impossibilidade, por ser ela o que finda todas as
outras. Nesse sentido ele entende que a temporalidade (relação morte/tempo) determina
essencialmente a natureza do homem enquanto indeterminação e problematicidade,
porque ela “não é uma circunstância acidental da existência do homem, um estado
provisório de seu ser, ao qual se pudesse conceber que ele fosse subtraído. A
temporalidade define a natureza, a constituição última do homem, porque é a própria
problematicidade de seu ser. Tudo que o homem é, o é por força de sua natureza
problemática, que é a própria temporalidade” (Idem, ibidem, p.63). Isso faz mesmo todo
sentido se considerarmos que em nosso cotidiano vivemos meio escravizados pelo
tempo. Ele passa sem descanso e sem interrupção, e sempre apontando para um futuro
que poderá ou não acontecer, uma vez que na condição de ser-aí, a qualquer momento
posso já não mais existir.
Para Heidegger a morte como possibilidade certa não é um acontecimento no tempo,
mas o fim do tempo, e esta certeza não pode ser experimentada diretamente já que para
isso é preciso morrer e daí ser impossível ter a experiência dela. Então como fenômeno
cotidiano, a morte é vivida sempre como a morte do outro. Mas a minha morte e a morte
do outro revela o caráter determinante e constituinte do Dasein como ser-para-a-morte.
E ser-para-a-morte revela o não-ser como essência da existência, revela a situação de
inconclusão, de pendência em que o homem se encontra e por isso mesmo sempre
passível de realização.
Onticamente falando, o Dasein só se completa, só atinge a totalidade com sua morte,
quando deixa de ser ente, ou seja, quando deixa de ser-no-mundo. E é por isso que a
morte representa, no existencialismo, a última experiência, a que dará completude ao
indivíduo.
Dastur (2002) completa dizendo que na análise heideggeriana, a morte está intimamente
ligada ao fenômeno da existência e não deve mais ser pensada como algo externo que
determinaria o fim da existência, mas sim como o que constitui essencialmente a relação
do Dasein com seu próprio existir, que ele chama de ex-sitência. A existência é, por sua
própria natureza, nascimento e morte. O ex-sistir do homem tem seu sentido ontológico
na possibilidade inalienável de ser-para-a-morte, ou seja, “para morrer basta estar vivo”.
Nesse sentido Michellazo confirma que a morte é uma manifestação da própria vida, ou
seja, uma não pode ser sem a outra, porque, como Heidegger esclareceu “tudo o que
começa a viver já começa também a morrer, a caminhar para a morte”. (HEIDEGGER,
1978, p.156)

Angústia, Autenticidade e Inautenticidade


Sêneca já professava que “quem teme a morte, nunca agirá conforme sua dignidade”,
pois apenas aquele que tem consciência de estar sua sorte decidida desde o momento de
sua concepção, “viverá em conformidade com tal projeto e, ao mesmo tempo irá
cortejá-lo, com pleno vigor de alma” e que a desarmonia entre o comportamento social
e a autenticidade da pessoa é fonte de grande inquietude (SÊNECA, p.62). E é a partir
desta inquietude, que em Heidegger chama-se angústia que o homem poderá descobrir-
se capaz de se libertar do mundo alienante e do ritmo alucinante ditado pelo dia-a-dia
para assumir as rédeas do seu destino e dar à sua existência o sentido que lhe é mais
próprio.

Mas em geral, o Dasein não tem um saber expresso sobre sua condição de estar
entregue à própria morte, porque está absorvido no mundo de suas ocupações fugindo
da angústia, ontologicamente considerada, que nos remete à totalidade da existência
como ser-no-mundo e como ser-para-a-morte. De fato, muitos homens fogem da
angústia provocada pela consciência da morte e evitam refletir sobre suas implicações.
Outros poucos meditam sobre ela e sobre a abertura que ela proporciona de tornar
o Dasein aquilo que ele realmente é: autêntico e singular. Pois, conscientizar-se da
realidade da morte e assumi-la como minha, obriga-me, por meio da angústia
existencial, a encarar o meu ser como um ser de projeto que não dispensa a morte, mas
que faz dela a mola propulsora de minhas atitudes e projetos existenciais.
Assim, é possível afirmar que, a liberdade para a morte que a angústia viabiliza é o que
libera o homem da banalidade cotidiana para a possibilidade de uma existência
autêntica, na qual a morte é doadora de sentido das outras possibilidades, por ser ela o
que confronta o ser humano com seu mais genuíno modo de ser. E é por essa razão que
Heidegger afirmou em Ser e Tempo que “a angústia singulariza a pré-sença em seu
próprio ser-no-mundo que, na compreensão, se projeta essencialmente para
possibilidades.” (HEIDEGGER, 1993, p. 251). É através dela que me volto em minha
própria direção, e de posse de mim mesmo viabilizo um projeto de existência autêntica
e possível.
Nesse caso a tarefa do homem enquanto se “está sobre o próprio ser”, enquanto ser-aí é
para Nogueira (2007) apropriar-se de si mesmo, do seu ser, apropriando-se assim de
suas possibilidades de ser. E entre as possibilidades de ser, há duas radicais pelas quais o
homem decide seu destino: a autenticidade e a inautenticidade. São os modos
fundamentais de existir que dão forma a todos os outros no espaço-tempo da vida
humana. E é pela autenticidade que o Dasein é capaz de encontrar-se plenamente com o
seu ser, quando é remetido, pela voz da consciência, ao sentido da morte que nos mostra
o nada de todo o projeto. A existência autêntica é aceitação da finitude o que significa
ter “a coragem da angústia diante da morte”. (Idem, ibidem, p.110)
Mas a massificação do mundo contemporâneo nos induz ao consumismo, nos dita
valores e define nossas necessidades, nos leva a perder-nos num cotidiano frenético e a
vivermos de maneira alienada, esquecidos de nós mesmos e dissolvidos no modo de ser
dos outros, de tal maneira que a singularidade e a diferença se perdem no “todo mundo”
que na verdade não é ninguém. A esse modo cotidiano de ser, Heidegger chama de
“impessoal”, pois falamos diariamente como “a gente” fala, nos comportamos como
esperam que nos comportemos, e “nos relacionamos com os outros de modo a não
sermos nós mesmos, mas ‘a gente’”.(MICHELAZZO, 1999, p.130)

Bauman (2009) menciona em “A Arte da Vida”, que Max Frisch, o grande romancista
suíço do pós-guerra que sofreu influência do existencialismo e de Brecht, escreveu em
seu diário que apenas conseguiremos resistir à corrente e fugir das garras imobilizantes
do impessoal, se rejeitarmos e repelirmos resolutamente as definições e identidades
impostas ou insinuadas por outros para desenvolvermos a arte de “ser você mesmo”,
que é reconhecidamente a mais exigente de todas. E desenvolver esta arte depende
segundo Heidegger de conscientizarmos de nossa condição humana de sermos-para-a-
morte, pois só então poderemos nos apropriar de nossa existência e de nossas
possibilidades mais próprias.

Na forma inautêntica de existir o Dasein se envolve nas ocupações diárias e é absorvido


pelas preocupações de modo a se deixar levar pela vida vivida superficialmente em vez
de tomar-se à sua própria responsabilidade e realizar-se verdadeiramente enquanto ser-
no-mundo. E tantas ocupações e distrações encobrem exatamente o fato do homem estar
fugindo da sua condição de ser-no-mundo e de estar entregue a si mesmo, dando-lhe a
ilusão de que o mundo, como verdadeiro sujeito do homem, é que determina sua
existência e destino. Nesse caso, o homem pode inclusive crer que “tudo no mundo se
acomoda às suas necessidades, que até mesmo a constituição de mundo está ordenada a
fim de lhe possibilitar a vida e a felicidade, e que por isso nada há no mundo que não se
possa medir pelo metro de sua utilidade e critério” (ABBAGNANO, 2006, p.144). Ora,
com esse pensamento o mundo está mesmo em perigo, já que o homem se nega a
reconhecer que o próprio destino do mundo depende dele e não do mundo.
Mas Abbagnano (2006) nos lembra sobre a impossibilidade de antepor o mundo à
existência e renunciar a ele a iniciativa e responsabilidade da própria existência, pois “se
não tomo sobre mim a responsabilidade da decisão, perco-me a mim mesmo e à
realidade do mundo” (Idem, ibidem, p.147). E perder-se é naturalmente a recusa de
assumir-se a si mesmo, é a fuga diante da finitude radical da qual nenhuma existência
pode se desfazer. E esse perder-se próprio da condição inautêntica da existência
“expressa o esforço do Dasein na sua busca da familiaridade para escapar do confronto
com o ser” (MICHELAZZO, 2006, p. 130).
Confrontar-se significa dar-se conta do paradoxo de que o que é mais pertinente à sua
essência como existência é estar aberto à impossibilidade da própria existência. E
mesmo a busca pela familiaridade no sentido do previamente trilhado, também nem é
assim tão seguro e tranquilo, porque no impessoal também experimentamos o
sofrimento; tanto o sofrimento próprio das identificações estabelecidas, como o
sofrimento gerado pelas “necessidades” de consumo e de constante satisfação, bem
como do medo de não alcançarmos. Para Rodrigues:
“Será sobre esse território de familiaridade, povoado de incerteza e “angústia”, que a
experiência da estranheza se dará, marcando a provisoriedade de todas as coisas,
estabelecendo novas referências, abrindo o terreno para outras possibilidades de
sentido”. (RODRIGUES, 2008, p.196)
A angústia advinda dessa constatação é um estado de ânimo que rompe a existência para
o mundo, que tira o Dasein do cotidiano nivelador e o abre para aquilo que ele pode ser
a partir unicamente de si mesmo. Na abertura privilegiada dessa angústia, é que nos
angustiamos com a falta de sentido no mundo, que não mais pode nos sustentar, é nela
que nos remetemos ao fato de estarmos desde sempre lançados no mundo por nossa
própria conta. Ao nos apontar para o que de fato somos, ela naturalmente desconstrói as
nossas certezas, as nossas prioridades e referências, e então tudo que consideramos
importante é convocado a uma ressignificação.
Assim, quando o homem se defronta com a morte, ou porque perdeu um ente amado, ou
porque se descobriu com uma doença grave, ou ainda porque assistiu pela televisão,
espantado e comovido, a um desastre natural ou a uma tragédia provocada pelo homem
ele naturalmente se angustia. E é em consequência desta angústia devidamente assumida
que ele será capaz de promover mudanças significativas em sua vida, de “abraçar a sua
responsabilidade humana fundamental de construir uma autêntica vida de compromisso,
conectividade, significação e satisfação consigo mesmo” (YALON, 2008, p.39). O que
significa que o homem está essencialmente determinado tanto pela finitude como pela
angústia, pois ambas levam o homem a transcender a si mesmo enquanto ser-no-mundo.

Sponville (2000) considera que a angústia é o que há de mais humano, e que apenas a
morte nos liberta dela, mas sem jamais contestá-la, porque sua verdade revela que
“somos fracos no mundo e mortais na vida”. (Idem, ibidem, p.12)

Um importante personagem da literatura russa (que jamais fizera o que de fato queria,
mas sempre o que esperavam dele), Ivan Ilitch, de Tolstói, é um bom exemplo de quem
se tornou consciente da vida e da morte quando se descobriu com câncer e na iminência
de morrer. Foi nestas circunstâncias que ele pode se questionar sobre a morte,
rememorar sua vida e avaliar o que foi vivido e o que deixou de viver:

“E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha vida
deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer. (…) Talvez eu não
tenha vivido como deveria (…). Mas, como se eu sempre fiz o que devia (grifo meu)
fazer?” (TOLSTOI, 2008, p.89)
Mesmo sentindo terríveis dores e com a morte se aproximando, Ivan Ilitch pôde passar
por uma considerável mudança, descobrindo a compaixão, a ternura e empatia que até
então lhe eram estranhas. Sua história ilustra a passagem de uma vida morta, esvaziada
de sentido, para uma morte que lhe ensina sobre a vida. Podemos até pensar que
Sponville inspirou-se em Ivan Ilitch quando escreveu: “Quantas vidas, de tanto querer
evitá-la, condenam-se assim inteirinhas à morte?” (SPONVILLE, 2000, P.67)

E como Ivan Ilitch, muitas outras pessoas que se confrontam com uma situação difícil
na vida, nesse caso estar diante da iminência de sua morte, conseguem após o choque
inicial, ultrapassar o desespero e ir de encontro ao que há de mais íntimo em seu ser, ao
que lhes é mais essencial para dar um significado próprio ao restante de suas vidas. Tal
re-significação atinge não somente aquele que confronta diretamente a circunstância
difícil, mas a todos que lhe são próximos. Dessa forma, o sujeito que vive o “absurdo”
de perder alguém que ama também pode ser chamado a repensar sua vida, seus valores e
suas escolhas. Porque é na obscuridade em que se encontra, no vazio e na dor, que a
angústia heideggeriana o conduzirá a refletir sobre a existência, ao re-encontro consigo
mesmo, ao fazer e ser singular, enfim o conduzirá a realizar seu projeto de vida
autêntico.

A diferença dos discursos que são proferidos por parte daqueles que já vivenciaram o
confronto essencial com a finitude e daqueles que jamais sentiram o chão se abrir sob
seus pés é facilmente observável. Estes têm um arsenal teórico e racional para explicar o
que não tem explicação e para procurar saídas, culpados e para determinar até quando é
permitido sofrer. E de tanto fugir da morte e negá-la perdem a capacidade até de
solidarizar para mantê-la distante e não ser tocado por ela. Este modo impróprio de
compreensão é que facilmente os conduzem de volta à multidão, à impessoalidade sem
de fato terem sido tocados na profundidade da vivência que os intima a refletir e re-
significar a própria existência.
Considerações finais
Encarar a realidade da morte nos remete à nossa condição irremediável de estarmos
lançados a um futuro que pode ser limitado exatamente por ela. Mas também é o que
nos permite ter mais consciência da nossa vida, do quanto podemos usufruí-la e de
como queremos vivê-la, pois quando nos damos conta da simplicidade e fragilidade que
pode ser a vida, é que nos perguntamos sobre as coisas que realmente importam. É a
partir desse confronto que poderemos modificar nossos valores, re-significar nossas
vidas, e refletir sobre o que de fato é essencial enquanto seres-no-mundo. Afinal esse
nada existencial que o ser-para-a-morte nos revela é que nos garante a possibilidade
sublime de refazer caminhos.

O distanciamento que temos com tudo referente à morte e ao morrer, deixa claro o
quanto nos defendemos dela e a negamos. Ela, a morte, e a angústia vão se esbarrar
exatamente no projeto moderno de controle, de previsibilidade, de consumo, e de busca
da imortalidade e da felicidade a todo custo. E ao nos posicionarmos assim, perdemos a
oportunidade de refletir sobre o rumo que estamos dando à nossa existência e ao próprio
mundo. Isto porque ao mesmo tempo em que negamos nossa condição humana de
sermos finitos, vivemos literalmente a cultura do carpie diem, que interpretamos
erroneamente como se aproveitar o “aqui e agora” significasse apenas “ter” e “prazer”.
Essa busca incessante de gratificação nos leva a estabelecer relações hedonistas,
liquidas e descompromissadas com tudo e todos à nossa volta numa completa
banalização do ser e da vida.
Ter consciência de sermos-para-a-morte, de quem realmente somos enquanto
singularidade, e do que queremos enquanto seres-no-mundo, é que nos abrirá para a
possibilidade de uma existência autêntica e para a construção de um mundo mais
decente.

Viver de modo próprio e autêntico nada mais é que nos apropriarmos de nossa
existência utilizando nossa liberdade para fazer, conscientemente, escolhas responsáveis
que englobem inclusive o outro e o mundo. Sobre as nossas escolhas é importante
questionarmos a todo o momento se elas provêm de uma escolha pessoal ou se
fomos induzidos a elas, para evitar sermos levados pela multidão e pelo modo
impessoal. Porém escolher viver de modo mais próprio parece ir na contramão da
realidade instalada na nossa sociedade, a saber: ser normal é ser igual a “todo mundo”, é
estar no mundo da mesma maneira que todos. Desse modo, mesmo quando nos
apropriamos da nossa existência e nos tornamos singulares, ainda assim somos
novamente tentados a ceder à força da multidão, à alienação, ao esquecimento de nós
mesmos, e a abrir mão de nossos projetos existenciais. Isto porque na condição de ser-
com-os-outros, portanto social, nós humanos, complexos, limitados e falíveis, não
permanecemos o tempo todo num mesmo modo de ser. Por isso mesmo deveríamos nos
ocupar em efetivar nosso projeto existencial, não apenas quando a morte se impõe a nós,
mas continuamente e de forma compromissada, pois o fato de ela ser possível a
qualquer momento nos coloca na condição de estarmos sempre na sua iminência.

Ter sido apresentada à finitude da vida ainda tão criança foi um grande motivador para
estudar e escrever sobre a morte e suas implicações. Embora muitos pareçam sair ilesos
dessa experiência, a mim parece impossível viver a extrema angústia da morte e a dor
dilacerante de perder quem se ama e lhe é tão próximo e não extrair nenhum
aprendizado disso. Eu precisava encontrar um destino para todo aquele amor que
naquele momento parecia ser o maior de todos. Ainda muito cedo a morte me revelou a
fragilidade e transitoriedade da existência e a minha impotência diante dela. Ao nos
roubar o passado e nos privar do futuro ela revela o caráter de puro devir da vida e nos
chama a viver de modo a não haver arrependimentos, pois diante da dor da perda é a
história que foi vivida que nos conforta e nos libera para continuarmos sem a pessoa que
amamos. Tantas perdas favoreceram profundas e diversas reflexões que acabaram por
me conduzir ao reconhecimento de mim mesma. Hoje, liberta das garras da multidão e
da inautenticidade, busco assumir a todo o momento as rédeas da minha existência e
“consumir minha própria vida”. E foi através do pensamento heideggeriano e de suas
coordenadas que pude me perceber como ser-para-a-morte, e assim re-escrever a minha
história e atribuir um sentido próprio à minha existência. Foi também Sponville que
muitas vezes nomeou meus sentimentos:

“Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por isso só se
pode escapar da angústia aceitando isso mesmo que ela percebe, que ela recusa e que
a transforma. O quê? A fragilidade de viver, a certeza de morrer, o fracasso ou o pavor
do amor, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo… Essa é a vida
mesma, e não há outra. Solitária sempre. Mortal sempre. Pungente sempre. E tão
frágil, tão fraca, tão exposta!” (SPONVILLE, 2000)
Referências Bibliográficas
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TOLSTOI, Leon N. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
Sartre e Heidegger sobre a morte
São várias as divergências e convergências do pensamento de Sartre e Heidegger, mas
talvez tenha a intriga maior entre ambos se deva em relação à compreensão da morte.
Enquanto Heidegger definia o Dasein como ser-para-a-morte, Sartre negava qualquer
possibilidade de sentido à morte, dando a ela o caráter de absurdo total; o que de certa
forma dá ao para-si uma liberdade radical na medida em que este consegue
“imunidade” contra a própria morte já que esta é um fato exterior que não lhe diz
respeito enquanto estrutura subjetiva. Ora, qual homem é capaz de ficar imune à própria
morte? Por mais que a existência seja inautêntica e a morte seja pensada enquanto algo
natural e exterior a mim, em sua banalização estatística que diz respeito sempre ao outro
e não a minha própria morte, em algum momento o homem será interpelado pela
finitude de sua vida e se dará conta de que ninguém poderá morrer por ele, nem que seja
já no seu leito de morte. Daí Sartre ser acusado de cair em idealismo em sua tentativa
radical de afastar o “idealismo da morte”. Por outro lado, Heidegger é acusado de querer
dar à morte o sentido da vida. Camus seria um excelente contraponto para os dois, onde
a morte, vista também como absurdo e sem-sentido, dá ao homem a condição de
revoltar contra sua própria condição finita, porém, não necessariamente enquanto
negação, e tampouco como algo que não diz respeito ao homem; justamente é o
irracional e o absurdo que impele o homem à criação de sentidos para a existência.

Convém ainda fugir dessa “hermenêutica acadêmica”, e como perspectivas temos em


Heidegger um ser-para-a-morte que não é necessariamente um “sentido da vida”, mas
fundamento estruturante da existência, dando ainda a condição ao homem de, através da
revolta com sua finitude (não enquanto negação), também estar autenticamente diante
do horizonte do mundo onde os fenômenos são interpelados e interpelam; já em Sartre,
não pode ser justamente a revolta diante desse absurdo e irracional que elimina todas as
possibilidades do para-si que faz, exatamente aí, pelo tom agudo com que “olha a morte
de frente”, a consideração da morte enquanto fenômeno que afeta diretamente a
existência? – Quem não faz do pensamento uma “habilidade” lógica de formulação e
explicação do mundo, saberá muito bem lidar com essas divergências e convergências,
apreender as divergências nas convergências e as convergências nas divergências,
dotando o pensamento de uma potência muito maior na sua
inextirpável manifestação diante do mundo.
Ainda, dada a dificuldade de pegar o pensamento próprio de ambos a partir das
complexas obras “O Ser e o Nada” e a “confusa e estranha” produção de Heidegger em
“Ser e Tempo”, preteri optar por um possível diálogo entre ambos em relação à morte a
partir de uma compreensão que me é própria, portanto, o diálogo reproduzido na
imagem jamais aconteceu em realidade da forma como é apresentado e tampouco esgota
toda complexidade do pensamento de um e de outro sobre o assunto. Aliás, não dá para
apreender muito das considerações de Sartre sobre a morte sem levar em consideração
as relações entre as estruturas do em-si e do para-si; e tampouco em Heidegger o ser-
para-a-morte encontra clareza sem o seu referencial de tempo.

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