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A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO:

O PAPEL DAS ASSOCIAÇÕES DE CARÁTER EMPRESARIAL1

Heitor Frúgoli Jr.


Universidade Estadual Paulista

RESUMO
Neste artigo pretende-se discutir uma série de questões referentes à centralidade no contexto urbano de São
Paulo. Nosso objetivo é determinar: a) como os principais grupos privados se organizam para definir a
localização espacial do moderno setor terciário; b) como tais organizações pressionam o poder público,
visando obter benefícios de infra-estrutura de equipamentos urbanos; c) quais são as respostas concretas
dos poderes públicos; e d) quais são os principais grupos sociais, oriundos das classes populares, mais
atingidos por esse jogo de interesses.
PALAVRAS-CHAVE: centro urbano; requalificação; associativismo empresarial; espaço público.

I. INTRODUÇÃO: AINDA É POSSÍVEL UM tanto a ascensão da “cidade externa” – vide as


MAPA DAS MEGACIDADES? assim chamadas edge cities (ou “cidades de
contorno”)3 –, quanto o “renascimento do centro
Pode-se iniciar essa abordagem a partir do
da cidade” (SOJA, 1993, p. 252-258).
debate entre Edward Soja e Néstor Canclini quanto
aos limites de se traçar visões totalizantes sobre Assim, por um lado, Soja retoma a importância
nossas megacidades, sem pretender abranger as do centro nesse processo, pois esse define e dá
principais referências da enorme literatura substância à especificidade do urbano, conferindo
disponível sobre as metrópoles contemporâneas. seu sentido social e espacial singular, dado, in-
clusive, que somente com uma centralidade
Inspirado no caso de Los Angeles, o geógrafo
persistente é que pode haver cidades externas e
Edward Soja – um dos representantes da Los
urbanização periférica (SOJA, 1993, p. 281-282;
Angeles School2 – afirma que o processo espraia-
1992, p. 95).
do e polinuclear de descentralização, típico da
geografia das grandes cidades capitalistas desde Mas, por outro lado, o autor ressalta como o
o século XIX, vem sendo substituído por um processo de reestruturação urbana tem resultado,
processo ao mesmo tempo descentralizador e no caso de Los Angeles, na acentuação de uma
recentralizador, onde simultaneamente se observa descentralização que se expressa em forte segre-
gação e segmentação urbana em termos de etnia,
classes e mesmo de categorias ocupacionais.
Dessa forma, verifica-se a formação cada vez mais
1 Artigo originalmente apresentado na sessão “Metro- acentuada de uma cidade multipolar por excelência,
polização, centralidade e agentes urbanos” durante o Simpósio onde a própria possibilidade de uma totalização
Cidade e poder, realizado entre 23 e 24 de abril de 2001 na reflexiva estaria impossibilitada, com a constatação
Universidade Federal do Paraná, promovido pela Revista de
– frente a um texto geográfico abundante, com
Sociologia e Política e pelo Grupo de Estudos Cidade, Poder e
Sociedade, sob coordenação do Prof. Dr. Nelson Rosário de múltiplos sentidos e significações – de uma
Souza. Os principais argumentos deste artigo baseiam-se na paisagem pós-moderna, compreensível, por sua
pesquisa de minha tese de doutorado, defendida no Programa vez, somente através de uma geografia crítica pós-
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São
Paulo em 1998 e publicada em 2000 sob o título Centralidade
em São Paulo
(FRÚGOLI JR., 2000). 3 São sobretudo enclaves de alta renda que vêm formando
2 Sobre os principais fundamentos dessa escola, cf. Cenzatti espécie de “cidades à parte” nas áreas mais periféricas do
(1993). contexto urbano norte-americano (cf. GARREAU, 1991).

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, p. 51-66, jun. 2001


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A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

moderna (SOJA, 1993, p. 298)4 . Assim, para o 88-97).


autor, a pós-modernidade não seria apenas uma
Quanto ao centro da Cidade do México,
etapa cultural do capitalismo de acumulação
Canclini apresenta-o como um espaço marcado
flexível, como defende David Harvey (1992, p.
pelo declínio da densidade populacional, sobretudo
45-67; JAMESON, 1984), mas uma nova realidade
de moradores, com a intensificação de usos mais
social e espacial, cuja compreensão exigiria um
lucrativos – comerciais e turísticos. Sua área agre-
método no qual a geografia teria total preponde-
ga, por um lado, um rico e significativo patrimônio
rância sobre a história.
histórico, além de espaços públicos de forte
Os estudos de outras megacidades, entretanto, simbologia, como o Zócalo. Por outro lado, a
permitem ampliar e relativizar visões sobre esse própria área central cria um vetor de expansão
tema. Grandes cidades da América Latina vêm urbana rumo a uma região com escritórios co-
passando por diferentes processos de moderni- merciais e financeiros que deixaram o centro
zação, cujas contradições e paradoxos, ligados aos histórico (incluindo muitas instituições culturais
difíceis quadros sociais, são elementos constitu- de peso) (CANCLINI, 1993, p. 113).
tivos (BERMAN, 1986; HOLSTON, 1993). O caso
II.OS CENTROS EM COMPETIÇÃO NA ME-
da Cidade do México – dotada de algumas
TRÓPOLE CONTEMPORÂNEA
características metropolitanas muito próximas das
de São Paulo – fornece também alguns pontos Tendo em vista o contraponto entre os dois
para reflexão. autores até aqui abordados – Soja e Canclini –
pode-se constatar como o desenvolvimento da
Com relação a essa que é hoje a maior cidade
metropolização envolve o surgimento de outras
em população no mundo, Néstor García Canclini
áreas urbanas, que passam tanto a competir com
aponta que seu imenso crescimento pauta-se por
a área central, como a configurar uma realidade
um declínio de qualquer foco organizador do
multipolar – ainda que nos Estados Unidos tal
urbano. Nesse sentido, é uma “cidade sem mapa”,
processo dê-se com certas especificidades. Isso
sobretudo em termos da possibilidade da plena
implica tanto distintos arranjos da relação entre o
apreensão antropológica de uma cidade bastante
centro e as outras áreas metropolitanas
disseminada. Desse modo, Canclini assume que a
(RYBCZYNSKI, 1997), como diferentes visões
crise da cidade é homóloga à crise da antropologia,
sobre os desdobramentos desse processo, onde
o que exige um método de análise que contemple
está em jogo o significado da própria urbanidade.
simultaneamente as dimensões locais e globais5,
recorrendo-se também a outras disciplinas na Em muitos casos é apropriado afirmar que a
construção de objetos de pesquisa. Isso entretanto realidade metropolitana é hoje marcada por centros
não o aproxima de uma perspectiva analítica pós- ou pólos em competição, cuja força de cada um –
moderna, inclusive porque tal referencial implicaria seja o antigo centro, sejam os subcentros poste-
posições políticas problemáticas. Ao contrário da riores – difere a partir do dinamismo econômico,
visão mais otimista de Edward Soja com relação à do conjunto de empresas que abarcam, das
dispersão e multiplicidade presentes em Los An- políticas do poder público quanto ao desenvol-
geles – para ele signos de um avanço liberalizante, vimento metropolitano e dos grupos sociais que,
no sentido mesmo de um descentramento do com diferentes intuitos, situam-se nessas áreas.
poder –, Canclini lembra que as megacidades latino- Nesse sentido, uma análise não apenas da área
americanas têm heranças históricas gravíssimas, central, mas comparando centros que competem
como pobreza ampliada, inundações e desaba- por determinada hegemonia dentro da metrópole,
mentos, deterioração ambiental etc. – cuja multi- pode revelar como se relacionam diversos projetos
polaridade e pluralidade descentrada poderia nos e concepções urbanas em jogo, com influências
encaminhar a uma desintegração, o que apenas em temas como a vida urbana, a interação social e
acentuaria um quadro já profundamente preocu- o tipo de metrópole resultante dessa competição.
pante (CANCLINI, 1993, p. 120-122; 1995, p.
As questões até aqui situadas podem ser
pensadas para o caso de São Paulo, quanto ao
4 Para uma recente abordagem a respeito do urbanismo pós-
desenvolvimento de sua centralidade. Ainda que
no processo geral de expansão urbana possa
moderno na Los Angeles School, cf. Dear (2000).
observar-se uma forte tendência à dispersão e à
5 Cf. o amplo debate a respeito em Marcus (1998).
descentralização, é impossível postular que isso

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signifique a perda de um “centro”, mesmo que Pinheiros, seja do ponto de vista das empresas
não se possa mais falar, no caso paulistano, em Bratke-Collet e Richard Ellis, seja na prática da
uma única centralidade, de feição tradicional e Associação de Promoção Habitacional – todas elas
histórica. Persiste, de toda forma, a importância com forte poder decisório por parte do empre-
constitutiva do papel desenvolvido pela centra- sariado que delas participa, dentro do processo
lidade no contexto urbano, porém em novos de competição para que o pólo onde estão situadas
termos. seja o preferido para a permanência, relocalização
ou abertura de novas empresas do setor terceário
O desdobramento dessa centralidade ao longo
moderno.
do quadrante sudoeste de São Paulo (ROLNIK et
al., 1990; CORDEIRO, 1993) 6 , sobretudo a A formação dessas associações guarda rela-
dinâmica mais recente desse processo, tem acar- ções, obviamente, tanto com o contexto histórico
retado transformações sociologicamente relevan- quanto com o contexto geográfico onde estão si-
tes, ainda não devidamente analisadas, espe- tuadas. A importância histórica está presente, entre
cialmente quanto às formas de organização outros pontos de vista, porque períodos distintos
institucional dos grupos empresariais com inte- vêm definindo, quanto às regiões estudadas, não
resses nessas áreas, suas relações com o poder só paisagens urbanas distintas, como também um
público e os processos sociais excludentes campo mais diversificado ou restrito de atores
decorrentes dessa trama de interesses. sociais. Nesse sentido, enquanto a região central
acumula – devido à sua longa constituição – um
Antes de avançar nessas questões quanto ao
conjunto mais heterogêneo de participantes (o que
caso de São Paulo, é importante frisar, de toda
certamente influi na dinâmica da negociação em
forma, que não pretendo incorporar a perspectiva
torno da questão da requalificação), as outras
pós-moderna de Edward Soja, já que penso ser
centralidades, principalmente a mais recente,
possível, apesar da crescente complexidade
formada pela Berrini e pela Marginal Pinheiros –
urbana, a formulação de nexos explicativos que
marcadas por um conjunto mais restrito de
relacionem criticamente os espaços – nesse caso,
empresas, muitas delas poderosas economica-
as “centralidades” que serão aqui enfocadas –,
mente, incluindo um grande número de multi-
numa perspectiva comparativa que leva em conta
nacionais – atuam na esfera da intervenção urbana
as simultaneidades, mas que também busca
de maneira muito mais unilateral.
contemplar questões de fundo mais histórico. E
talvez a imagem de uma “cidade sem mapa”, A relevância do contexto geográfico, por sua
diagnosticada por Canclini, possa ser, ao menos vez, verifica-se em decorrência dos interesses
no estudo dos desdobramentos da centralidade do distintos que cada território enfocado ocupa dentro
setor terceário moderno de São Paulo, ser da lógica de desdobramento da centralidade, onde
substituída pelo mapeamento das várias mediações o surgimento de uma nova região alimenta-se em
que ocorrem ao longo do “quadrante sudoeste”, grande parte da decadência da anterior, tornando-
como veremos a seguir. se visível nessa dinâmica não só as forças e limites
específicos de cada uma quanto à atração do setor
III. UM QUADRO COMPARATIVO DO CEN-
terceário moderno, bem como os distintos tipos
TRO E DOS SUBCENTROS DE SÃO
de crescimento metropolitano como um todo em
PAULO
jogo.
O primeiro aspecto a ser levado em conta é a
Outro ponto comparativo importante diz res-
forma como se organizam inicialmente as as-
peito às distintas estratégias que essas associações
sociações estudadas: a) o centro tradicional, na
adotam na relação com o poder público, seja
perspectiva da requalificação proposta pela As-
construindo um razoável nível de articulação de
sociação Viva o Centro; b) a região da Paulista, na
setores da sociedade civil e procurando a posteriori
ótica da revalorização defendida pela Associação
uma negociação com o poder político (principal-
Paulista Viva, e c) a região da Berrini e da Marginal
mente o municipal), seja a priori, estabelecendo
ou nascendo mesmo de dentro do poder local,
6 Infelizmente não foi possível preparar mapas para o presente para a busca de uma ulterior legitimação frente à
artigo. Sugiro ao leitor que consulte “Os ‘centros’ de São sociedade.
Paulo em imagens: mapas e fotos” (FRÚGOLI JR., 2000, p.
III.1 AS CONDIÇÕES DO SURGIMENTO DAS
255-264).

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A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

ASSOCIAÇÕES E AS RELAÇÕES INI- realização de um conjunto de ações pela requa-


CIAIS COM O PODER LOCAL lificação do Centro (MEYER & GROSTEIN, 1995;
LIMA, 1997, entrevista com o autor; ALMEIDA,
A Associação Viva o Centro surgiu em 1991,
1997, entrevista com o autor).
quando a deterioração urbana do Centro – uma
região de grande magnitude e complexidade dentro Já a gênese da Associação Paulista Viva guarda
de São Paulo – já se achava bem avançada, em se algumas diferenças. O contexto urbano da Avenida
tratando de um processo em curso ao menos desde Paulista está historicamente identificado como um
os anos 70, ligado tanto à evasão de empresas espaço da riqueza das elites – inicialmente como
rumo ao “quadrante sudoeste”, quanto à inca- moradia –, mantendo depois, com algumas altera-
pacidade do poder público de reverter tal degrada- ções, a mesma simbologia, frente a processos pos-
ção, apesar de periódicos investimentos em infra- teriores de verticalização e crescimento do setor
estrutura na região. Por outro lado, apesar do terciário moderno, sobretudo o capital financeiro.
processo de declínio do Centro, este vem mantendo A partir dos anos 80, passou a exibir também
ainda um razoável dinamismo do ponto de vista fortes marcas de ocupação pública, culminando,
econômico, frente à porcentagem de empregos em termos de prestígio, em sua “eleição” como
ainda gerados na área central. Trata-se de uma “símbolo da cidade”, na comemoração de seu
área de utilização interclasses, com uma conflitiva centenário, em 1991 (REDE GLOBO, 1989; ITAÚ,
diversidade sociocultural (incluindo uma forte 1990).
ocupação nordestina), sendo que parte dos espaços
É justamente durante esse período de “apogeu”
públicos é apropriada por redes de relações
da Paulista, na passagem dos anos 80 para os 90,
informais voltadas à sobrevivência (como no caso
que os primeiros sinais de deterioração tornaram-
dos camelôs), além da grande presença da
se mais visíveis, ligados em parte a um fenômeno
população de rua. Um dos fatores impulsionadores
semelhante ao havido no Centro, como a fuga de
da formação dessa associação foi a reação a um
empresas e investimentos públicos em outras
novo ciclo de evasão de empresas que se dava no
regiões, ainda que em tons menos acentuados.
início dos anos 90, no qual a negociação pela
Além disso, verificou-se, de modo mais claro, toda
permanência da Bolsa de Valores de São Paulo e
uma negociação social em torno do que efeti-
da Bolsa de Mercadorias & Futuros foi um marco
vamente estaria em degradação e qual seria o patri-
inicial, com decisivo papel do suporte fornecido
mônio a ser recuperado, já que tivemos anterior-
pelo capital financeiro, no caso especificamente
mente a destruição quase integral dos antigos
um banco multinacional – o Banco de Boston –,
casarões e a degradação de muitos edifícios resi-
através da iniciativa de seu presidente, Henrique
denciais, sem que isso viesse a mobilizar o
Meirelles (FRÚGOLI JR., 1995, p. 37-72; MEYER
empresariado no sentido de pressionar o poder
et. al., 1993; FIPE, 1995; MEYER, 1997, en-
público para alguma política de recuperação
trevista com o autor; BARRETO, 1997, entrevista
(Debate, 1994).
com o autor ; ALMEIDA, 1997, entrevista com o
autor). A Paulista Viva, criada em 1995, surgiu
entretanto de dentro do poder público – que
A Viva o Centro nasce como uma iniciativa da
décadas antes já tentara uma frustrada intervenção
sociedade civil – com associados de base nitida-
de grande porte na Avenida, com enormes
mente empresarial, incluindo proprietários, e depois
prejuízos (MEZERANI, 1997) –, primeiramente
ampliando-se com o apoio de outras instituições –
como uma comissão, para depois obter uma relativa
, com uma crescente capacidade de mobilização.
independência, já como Associação. Tal processo
Situada numa área marcada por forte diversidade
foi conduzido por Olavo Setúbal, ex-Prefeito de
social, a Associação incorpora em si certa hetero-
São Paulo e Presidente do Itausa, a partir de convite
geneidade, ainda que não possa abarcar um con-
do então Prefeito Paulo Maluf (PPB, 1993-1996).
junto tão plural de demandas nem pretenda
Tal como no caso anterior, o apoio dado pelo capital
priorizar as necessidades mais ligadas às camadas
financeiro – o Banco Itaú – foi também decisivo,
populares. Mesmo assim, é dotada de uma
ainda mais porque esse banco foi um dos pro-
diversidade muito maior se comparada às outras
motores do evento que elegeu a Paulista como
associações pesquisadas. Uma de suas principais
“símbolo da cidade”. Durante sua existência como
tarefas é pressionar o poder público – buscando
comissão, mais subordinada ao poder público,
manter autonomia com relação a este –, para a
foram dados passos fundamentais na definição dos

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rumos da revalorização, a saber, a realização do Unibanco –, além da assessoria da Arthur An-


concurso e o compromisso de apoio ao projeto dersen. O surgimento da Associação foi motivado
vencedor; só depois foi formada a Associação, pela possibilidade de maximizar a valorização
com a busca de ampliação dos associados – des- imobiliária da região, numa clara articulação com
tacando-se, do ponto de vista do apoio financeiro, o poder público 7 em torno de uma operação
os bancos e as companhias de seguro com urbana para a construção da Avenida Águas
propriedade imobiliária na Avenida (INSTITUTO Espraiadas a partir de 1995, com a doação de
DE ENGENHARIA, 1995; MAGALHÃES & fundos para remover uma população favelada do
MAGALHÃES, 1996; SETÚBAL, 1997, en- local, ainda que declarando prestar uma
trevista com o autor; THIELE, 1997, entrevista intervenção de caráter social. Criada exclusiva-
com o autor; MAGALHÃES JR., 1998, entrevista mente para a realização dessa tarefa, não houve
com o autor). preocupação posterior com a divulgação ou
legitimação de seus objetivos, já que expressam
O terceiro caso, a criação do pool de em-
interesses de mercado e não pressupõem negocia-
presários da região da Avenida Luiz Carlos Berrini,
ções públicas. Isso também explica porque deta-
também em 1995, durante a Operação Urbana
lhes tanto da natureza interna desse pool, quanto
Águas Espraiadas, deu-se num contexto de nature-
dos vínculos com o poder público – cuja atuação
za distinta, em vários aspectos, dos casos anterio-
na citada operação foi marcada por irregularidades
res. A Berrini representa um subcentro bem mais
–, são inacessíveis, ao contrário da maior visi-
recente, articulado por uma única empresa, a
bilidade existente nos casos anteriores (FIX, 2001;
Bratke-Collet, ligada de início à criação de um nicho
BRATKE, R., 1997, entrevista com o autor).
específico no mercado de escritórios, alimentado
em boa parte pelo processo de fuga de empresas III.2 AS FORMAS ESPECÍFICAS DE INTER-
tanto do Centro quanto da Paulista e baseado num VENÇÃO URBANÍSTICA, VOLTADAS
sistema de incorporação sustentado também por ÀS ÁREAS CENTRAIS EM QUESTÃO
um pool de empresas, professando assim uma
A Viva o Centro recorreu a uma consultoria
atuação “independente” com relação ao poder
urbanística coordenada por Regina Meyer, que
público (CORDEIRO, 1993; FUJIMOTO, 1994;
realizou pesquisas e seminários que conduziram a
BRATKE, C., 1997, entrevista com o autor).
gradativas mudanças de concepção quanto à
Ainda que com potencial de crescimento, a passagem da noção de revitalização à de requali-
Berrini já enfrenta forte competição com o pólo ficação (que implica incorporar um dinamismo
do setor terceário moderno mais próximo à econômico e social ali ainda existente); à ampliação
Marginal Pinheiros, numa área mais periférica do da região a ser requalificada (do Centro à área
“quadrante sudoeste” – para onde se desloca a central, incluindo os bairros que circundam os
centralidade “terciária” em São Paulo –, cujo distritos da Sé e República); à necessidade de se
representante mais forte é a empresa multinacional pensar, a partir do Centro, numa intervenção com
de consultoria Richard Ellis, principal defensora efeitos por toda a metrópole, ressaltando a
da expansão urbana nessa região e para a qual a racionalidade de se investir numa área com
própria Berrini já estaria, de certa forma, “obso- empregos, infra-estrutura e inserção no tecido
leta”. Tal área como um todo, com a presença urbano como a área central; à inserção dessa
condensada de multinacionais, configura um requalificação num quadro emergente das “cidades
território conectado a um mercado mais globa- mundiais”, com um novo papel a ser desem-
lizado, típico de uma nova fase de acumulação do penhado pelo Centro (tendo como base o processo
capitalismo, identificado como pós-fordista (HAR- urbano havido recentemente em Barcelona, e como
VEY, 1992; RICHARD ELLIS, 1997; MONTAN- referência teórica o trabalho de Jordi Borja); final-
DON JR., 1997, entrevista com o autor). mente, essa concepção urbanística também está
amparada pela idéia de um “urbanismo reparador”,
O pool de empresários ali formado resultou na
com uma proposta de intervenção que procura
Associação de Promoção Habitacional, com a
dialogar criticamente com a realidade já existente
participação da Bratke-Collet e de outras grandes
(BORJA, 1995; MEYER et al., 1996; MEYER,
empresas nacionais e multinacionais da Berrini e
da Marginal Pinheiros, com a organização também
a cargo do capital financeiro – neste caso, o 7 Época, como já se viu, da gestão Paulo Maluf (PPB).

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A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

1997, entrevista com o autor). desenvolve em torno da Berrini e da Marginal


Pinheiros, dada a irracionalidade que significam
Várias referências produzidas pela consultoria
para a cidade em termos de custos para o poder
urbanística tendem a constituir um conjunto de
público e o esgarçamento da metrópole rumo a
posições articuladas, que passam a ser assumidas,
uma área cada vez mais periférica.
de maneira consensual e homogênea, pelos
integrantes da cúpula da Associação, na esfera do Na Paulista Viva, a conexão com uma visão
discurso: observa-se uma certa homogeneidade urbanística é mais fragmentada, tanto do ponto
em suas falas na divulgação dos objetivos da de vista de incorporação de princípios, como
Associação, em especial quanto à influência na quanto à fonte de seus principais parâmetros, já
opinião pública e à pressão sobre os organismos que não há uma consultoria urbanística de caráter
públicos. O ideário da consultoria urbanística da permanente, como no caso anterior. Por um lado,
Viva o Centro está também presente na formação existem as formulações do projeto vencedor do
e no conteúdo programático do ProCentro (criado concurso, coordenado por José Magalhães Jr.,
em 1993 pela Prefeitura como resposta às norteadas pela idéia de intervenções localizadas e
demandas pela revitalização da área), ainda que a por partes (inspiradas também, ainda que vaga-
partir daí comece a formular-se no último um mente, na noção de um “urbanismo estratégico”,
conjunto de visões e práticas mais fragmentadas, havido em Barcelona), que considera a Paulista,
que se afastam das propostas da Viva o Centro antes de tudo, um “espaço de excelência”. O fato
(SÃO PAULO, 1993, p. 1-12). de ter vencido o concurso confere à proposta certa
legitimidade e define o campo posterior de debates,
A gradativa incorporação, no discurso da Viva
que devem gravitar em torno da mesma, embora
o Centro, do tema das cidades globais ou
sofra o desgaste de se assemelhar, em vários
mundiais, enseja interrogações que só poderão ser
aspectos, à sugestão de um corredor de ônibus
melhor contempladas com pesquisas posteriores.
na avenida, feita anteriormente pela Secretaria
Uma das dificuldades quanto à compreensão das
Municipal de Planejamento – SEMPLA –, durante
influências do processo de globalização na estru-
a gestão Paulo Maluf, que fora amplamente
tura urbana consiste em separar as heranças
rejeitada por amplos setores da população, por ter
históricas anteriores daquelas específicas a uma
sido considerada fator de intensificação da
fase mais plenamente global do capitalismo
degradação urbana da área. Observa-se também a
contemporâneo. Nesse sentido, fica a dúvida sobre
participação de urbanistas experientes nas reuniões
se as asserções discursivas da Associação quanto
da cúpula da Associação, mas não é visível a
a São Paulo como cidade mundial referem-se a
forma concreta como interferem na formulação
uma realidade efetivamente concreta, ou se podem
de decisões (SETÚBAL, 1997, entrevista com o
constituir um novo discurso ideológico. Essa tem
autor; THIELE, 1997, entrevista com o autor;
sido, por sinal, uma das críticas quanto à adoção
MAGALHÃES JR., 1998, entrevista com o autor.
do plano de intervenção utilizado em Barcelona
em contextos muitos distintos – cuja expansão Por outro lado, talvez mais peso nessa esfera
mundial também se vale de visíveis elementos de tenha o discurso de Olavo Setúbal – dada sua
marketing –, pois sua mera transposição a outras experiência como ex-Prefeito de São Paulo (1975-
realidades pode significar a confecção uma certa 1979) –, que enfatiza na Paulista a idéia do “símbolo
visão que se pretende hegemônica sobre a cidade, da cidade” (que, sem desconsiderar o prestígio
amparada na teoria por um paradigma da glo- histórico da Avenida, foi também mediado pelo
balização e na prática pelas consultorias interna- competente marketing institucional do Itaú), cuja
cionais, mas que dão substrato a práticas com ênfase consagradora, de certa forma, descola de
outros fins, previamente ou não estabelecidos8. seu contexto uma discussão mais clara sobre seu
papel de centralidade em termos urbanísticos.
Com relação às outras regiões aqui enfocadas,
Diferentemente da Viva o Centro, Setúbal dá des-
observa-se um silêncio político da Viva o Centro
taque à realidade multipolar da metrópole, o que
quanto à centralidade exercida hoje pela Paulista e
implica incorporar a necessidade de revalorização
claras críticas ao desenvolvimento do pólo que se
de seus vários pólos, não apenas de sua área cen-
tral. Mesmo o reconhecimento da deterioração em
8 Para uma crítica mais recente do planejamento estratégico, curso na Paulista é feito de modo cuidadoso ou
cf. Arantes, Vainer e Maricato (2000). ambíguo, com tônica maior num papel de preven-

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ção (SETÚBAL, 1997, entrevista com o autor). um mote vazio de qualquer significado –, que ca-
racterizariam boa parte das construções que com-
Dada a própria situação intermediária em que
põem a recente paisagem urbana da Marginal
se encontra no processo de desdobramento da
Pinheiros (BRATKE, C., 1997, entrevista com o
centralidade, a Paulista não é a formuladora da
autor; MONTADON JR., 1997, entrevista com o
requalificação da área central, mas sofre com
autor).
aspectos da deterioração e fuga de empresas.
Tampouco é hoje o principal pólo do desenvol- Entretanto, tão rápido quanto sua ascensão tem
vimento do setor terciário moderno na metrópole, sido seu declínio como principal pólo de cres-
embora abrigue uma boa parcela do mesmo em cimento, já que um outro, mais periférico e parcial-
seu espaço. Isso coloca a região numa espécie de mente desterritorializado, vem se desenvolvendo
“limbo”, com uma posição que tende, do ponto em parte da Marginal Pinheiros, tendo como
vista urbanístico, a uma ambigüidade quanto à sua principal porta-voz a empresa Richard Ellis (ainda
inserção na cidade, o que explica, por parte da que esta não se assuma como tal, argumentando
Paulista Viva, tanto uma incorporação muito realizar apenas uma prática racional, norteada pela
seletiva de princípios formulados pela Viva o Centro lógica do mercado imobiliário). Essa empresa
em seus objetivos e práticas concretas, quanto também enfatiza o atendimento das necessidades
uma crítica tímida das centralidades mais recentes. dos clientes – no caso, sobretudo as grandes
empresas multinacionais, que têm optado principal-
Já no caso da região da Berrini, a questão da
mente por essa área para a localização de suas
intervenção urbanística tem características bem
sedes –, cuja demanda pediria a criação de “edifí-
distintas, também marcada por diferentes for-
cios inteligentes”, só possíveis em grandes áreas
muladores. A posição de Carlos Bratke – arquiteto
como a região da Marginal. Isso se justifica porque
responsável pelo projeto de mais de 60 edifícios
o Centro, nessa concepção, estaria inviabilizado
comerciais da Avenida – é a de uma atuação
pela deterioração, violência, difícil acesso, edifícios
norteada pelo mercado, atendendo a demandas
ultrapassados e pulverização patrimonial, e a
específicas dos clientes – inicialmente empresas
Paulista apresentaria baixo potencial para novas
de pequeno e médio porte –, sem as amarras
edificações, dado o acentuadíssimo encarecimento
representadas pelo poder público, o que o levou a
dos poucos terrenos ainda disponíveis. Tal posição
ser identificado como forte representante da
de defesa da região da Marginal tem fortes
vertente pós-moderna no Brasil, ainda que ele
adeptos, como a Bolsa de Imóveis do Estado de
próprio rejeite tal visão. Com a configuração, na
S. Paulo, que tem diversos megaprojetos na mes-
região da Berrini, de uma razoável centralidade do
ma região, e cujos representantes tecem freqüen-
ponto de vista econômico, há na verdade uma
temente declarações em defesa de investimentos
cobrança para que o poder público responda pela
privados e públicos na mesma, chamada por seto-
infra-estrutura, segundo Bratke não satisfeita
res da grande imprensa de “o novo centro de São
devido à incompetência administrativa deste poder
Paulo” (RICHARD ELLIS, 1997; MONTANDON
e não devido aos altos custos. Contraditoriamente,
JR., 1997, entrevista com o autor).
a região como um todo – incluindo as áreas
próximas, como a Nova Faria Lima e o pólo Não há, já com relação à Associação de Promo-
vizinho da Marginal Pinheiros – tem recebido ção Habitacional, nenhuma formulação urbanística
altíssimas parcelas do orçamento municipal em própria, a não ser puras razões de mercado, como
termos de infra-estrutura, especialmente a viária se pôde constatar pela análise das breves decla-
(BRATKE, C., 1997, entrevista com o autor). rações de seus porta-vozes na imprensa, nas quais
um papel pretensamente social mal disfarça o claro
Com relação às outras centralidades, há claras
intento de maximização imobiliária da área
críticas de Carlos Bratke à infra-estrutura do Centro
abrangida pela Operação Urbana Águas Espraiadas,
e à possibilidade de o mesmo voltar a ocupar um
além de pronunciamentos mais esparsos, no
papel de destaque no que diz respeito à volta de
sentido de que a remoção da favela foi vista como
empresas – daí sua absurda sugestão de transfor-
uma tradicional “limpeza” da área de um foco de
má-lo na “maior área verde da metrópole”. Ao mes-
violência e marginalidade9.
mo tempo, defende a Berrini da visão negativa a-
presentada pela Richard Ellis, com base na crítica
à noção dos “edifícios inteligentes” – segundo ele 9 Cf. mais detalhes em Frúgoli Jr. (2000, p. 203-212).

57
A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

III.3 A QUESTÃO DAS MEDIAÇÕES POLÍ- no futuro, pode representar significativa mudança
TICAS ENTRE AS ASSOCIAÇÕES E O nos rumos do tipo de requalificação da área central,
PODER PÚBLICO com um papel que, em princípio, não era mais
esperado por parte do Estado, quanto à
Com relação à Viva o Centro, um primeiro dado
possibilidade de comandar uma intervenção urbana
significativo é que o capital financeiro não se limita
com suas próprias forças. Dessa forma, ainda que
apenas a dar o principal suporte à Associação,
a Associação professe manter uma autonomia com
tendo dele emergido atores sociais que de certa
relação ao poder público, isso diz mais respeito,
forma se lançam à política urbana na defesa de
ao menos até recentemente, ao poder local11, já
seus interesses, como é o caso do seu presidente,
que nos níveis estadual e federal vem se dando
Henrique Meirelles, na época presidente do Banco
uma considerável conexão12 .
de Boston no Brasil e atualmente seu presidente
mundial, com um papel importante na fundação e De toda forma, tendo nascido por iniciativa da
hoje com um poder mais simbólico, além de Marco sociedade civil, e não de dentro do próprio poder
Antônio Ramos de Almeida, diretor de Relações público, a Viva o Centro constitui formalmente
Internacionais do mesmo banco, Presidente da uma associação sem vínculos partidários, o que
Diretoria Executiva da Viva o Centro, hoje o porta- lhe dá mais legitimidade para estabelecer relações
voz mais ativo e visível da Associação (ALMEIDA, com sucessivas gestões públicas, no sentido de
1997, entrevista com o autor). pressioná-las à realização de medidas voltadas à
requalificação do Centro. Independentemente
Deve-se também apontar o papel da consultoria
desses princípios formais, observam-se relações
de Jorge da Cunha Lima, ligado ao PSDB, nome
de maior ou menor afinidade com certas gestões,
de maior expressão em termos de trajetória política
o que implica, por sua vez, papéis de mediação
na Viva o Centro, dada sua condição de ex-Se-
política por parte dos membros da cúpula da
cretário da Cultura do Estado de São Paulo (gover-
Associação, cujo poder pode variar, de acordo com
no Franco Montoro, PMDB), que desenvolveu na
a conjuntura. A primeira relação estabelecida a
época o projeto Luz Cultural, voltado à revita-
partir do surgimento da Viva o Centro fôra com a
lização da região da Luz, na área central, a partir
gestão Luiza Erundina (PT, 1989-1992). Nesse
de um trabalho de reabilitação e integração de
caso, houve contatos iniciais satisfatórios, já que
diversas instituições culturais ali existentes.
tal gestão tinha alguns projetos de revitalização para
Incorporado para colaborar nas conexões políticas
a área – como a concretização da ida da sede do
necessárias ao papel de “interface” desejado pela
governo municipal para o Parque D. Pedro II –,
Associação, sobretudo nas relações da Viva o
ao mesmo tempo que estava aberta ao diálogo com
Centro com o governo estadual, a partir da gestão
a iniciativa privada, sem que isso resultasse
Mário Covas (PSDB, 1995-2001)10, Cunha Lima
entretanto em alguma parceria mais significativa
vem dando uma espécie de continuidade àquele
(ver, por exemplo, o fracasso da Operação Urbana
projeto, através da ação combinada entre o governo
Anhangabaú), talvez porque a gestão municipal já
federal (gestão FHC, filiado ao PSDB, com início
estivesse em sua fase final, enquanto a Associação
também em 1995), o governo estadual e, com papel
apenas em seus primórdios (PREFEITURA
mais limitado, o governo municipal, que já resultou
MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1991; SIMÕES
em reformas como as dos prédios da Pinacoteca
JR., 1994; FELDMAN, 1997, entrevista com o
do Estado e da estação Júlio Prestes, hoje sede da
autor).
Orquestra Sinfônica do Estado, responsáveis por
um novo afluxo das classes médias à região Finda essa gestão, iniciaram-se as relações com
central. Isso sem falar da possibilidade da mudança a administração Paulo Maluf, cuja prioridade era
da sede do governo estadual para o Centro, cogita-
da mas não implementada na primeira gestão de
Covas, através de projeto do escritório Piratininga 11 Refiro-me aqui à gestão Celso Pitta (PPB, 1997-2000),
Arquitetos Associados, que, caso venha a ocorrer não à gestão Marta Suplicy (PT, a partir de 2001), que não
será analisada.
12 Para maiores detalhes sobre o projeto da mudança da
sede do governo estadual para o Centro, cf. Piratininga
10 Que faleceu em março de 2001, tendo sido sucedido por Arquitetos Associados (s/d), Lima (1997), entrevista com o
Geraldo Alckmin. autor e Kipnis (1997), entrevista com o autor.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 51-66 JUN. 2001

claramente dirigida para outros vetores de Guardadas certas proporções, tal fenômeno
crescimento da cidade, situados no quadrante reproduziu-se mais recentemente, ao final de 1999,
sudoeste – como a construção da Nova Faria Lima a partir do apoio público da Viva o Centro (ainda
–, com um período inicial de dificuldades de que depois promovendo um grande debate a
relação, no qual o papel de mediação de Marco respeito) ao projeto “São Paulo Tower” – uma
Antônio Ramos de Almeida passou a ser cada vez megatorre de 494 metros de altura e 103 andares,
mais importante (sobretudo após a ida de Henrique cuja construção exigiria a desapropriação de 70
Meirelles para a Presidência da matriz do Banco quarteirões –, que, embora hoje seja praticamente
de Boston, nos Estados Unidos). Seguiu-se o nula sua concretização, poderia ter vindo a
surgimento do ProCentro, visto por muitos, em representar uma intervenção de fortíssimo impacto
seu início, mais como forma de a gestão Maluf na área central, sem que se comprovasse
aplacar as pressões e ganhar tempo, do que claramente seus efeitos quanto à requalificação
organismo voltado para a implementação de dessa área como um todo, num empreendimento
políticas concretas para o Centro. Contudo, o que se beneficiou da aliança do capital especulativo
ProCentro depois se debruçou de maneira mais com uma gestão municipal (Celso Pitta, PPB, 1997-
efetiva sobre a área central, em especial quando a 2000) marcada pela inoperância, corrupção e
Viva o Centro veio a dar subsídios de organização ilegitimidade (ASSOCIAÇÃO VIVA O CENTRO,
à comunidade através do programa de ações locais, 1999-2000, p. 12-28).
no qual moradores, proprietários, dirigentes de
No caso da Paulista Viva, trata-se de um
empresas e profissionais – com destaque para os
projeto de revalorização urbana claramente
comerciantes – passaram a pressionar o ProCentro
articulado à gestão malufista, já que nascido
e outras instâncias do poder público (administração
mesmo de dentro do poder público, a partir de
regional e vereadores, além de órgãos de segurança
uma relação de confiança entre o ex-Prefeito e
da esfera estadual) para a realização de melhorias
Olavo Setúbal, que detém, sem dúvida alguma, o
ligadas particularmente a seus interesses (FIUSA,
maior poder político dentro da Associação. Tal
1997, entrevista com o autor; CARUSO JR., 1997,
relação até levanta dúvidas sobre a autonomia da
entrevista com o autor; BARRETO, 1997;
Paulista Viva na definição de seus rumos, pois seu
ALMEIDA, 1997, entrevista com o autor).
surgimento como comissão deu-se num momento
No momento, porém, em que Henrique em que a proposta da SEMPLA – através do
Meirelles fechou um acordo, em nome do Banco secretário Roberto Richter – ensejara um conjunto
de Boston, com a gestão Paulo Maluf, já no seu de críticas e rejeições. Na ocasião do anúncio do
final, apoiando e patrocinando o concurso para o plano vencedor do concurso, o próprio Richter
Centro, deu-se um tipo de mediação política que afirmou que a proposta copiava sua idéia, e
atropelou, por sua vez, o trabalho de consultoria atualmente o projeto tramita na Empresa Municipal
urbanística que vinha sendo realizado pela Viva o de Urbanização (EMURB), sem que haja garantia
Centro, que preparava um grande projeto para a de que a proposta vencedora venha a ser
área central, a ser apresentado aos candidatos da implementada inteiramente, ou mesmo que tal
gestão seguinte. A Viva o Centro como um todo projeto seja realizado, dada a escassez de recursos
apoiou depois o concurso, mesmo em prejuízo da gestão Pitta e as novas prioridades da atual
das concepções da consultoria urbanística para a gestão, de Marta Suplicy (PT, a partir de 2001).
área, numa grande concessão à gestão malufista. Dessa forma, ocorre uma subordinação política
O projeto vencedor, da Promon Engenharia, pauta- da associação tanto a Olavo Setúbal como, num
se por uma grande intervenção do ponto de vista outro prisma, às duas últimas gestões municipais,
viário; sua viabilização é incerta, não só pela falta dominadas pelo malufismo. Um dado que a
de recursos públicos, mas porque cabe também à aproxima da Viva o Centro, por outro lado, é o
Prefeitura decidir por uma implementação papel político de destaque representado por seu
caracterizada pela incorporação de partes de outras superintendente Alex Thiele, que, tal como Marco
propostas também premiadas, o que levanta sérias Antônio Ramos de Almeida, vem dos quadros
dúvidas quanto à legitimidade e eficácia dos profissionais do capital financeiro, no caso, o
critérios e encaminhamentos de tais concursos Banco Itaú (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO
(MEYER, 1997, entrevista com o autor; FELD- PAULO, 1996; PROENÇA, 1996, entrevista com
MAN, 1997, entrevista com o autor). o autor; SETÚBAL, 1997, entrevista com o autor;

59
A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

THIELE, 1997. Entrevista com o autor)13 . nística, há uma tendência a se considerar que os
pobres realizam uma ocupação residual dos
A Associação de Promoção Habitacional, por
espaços urbanos, o que explicaria em parte sua
sua vez, vinculou-se da mesma forma a um projeto
presença na área central. Além disso, há o diagnós-
específico da gestão de Paulo Maluf, a Operação
tico de um sistema de transporte coletivo irra-
Urbana Águas Espraiadas, tendo findado com o
cional, convergindo excessivamente para o Centro,
término do processo de construção de moradias,
o que produziria, por sua vez, uma presença
no sistema “Cingapura” (embora sem assenta-
popular em massa desnecessária na região – por-
mento no próprio local)14 , destinada a uma ínfima
que simplesmente de passagem. Uma reorga-
parcela dos favelados removidos da área do Jardim
nização desse sistema incidiria sobre essa massa,
Edith. A diferença, com relação às articulações
distribuindo-a para outras regiões, o que dessa
das associações já enfocadas, é que se trata de
forma poderia reduzir tanto a mendicância quanto
uma associação com um fim unívoco – a retirada
o comércio informal. Isso propiciaria, conse-
de favelados para a valorização imobiliária –,
qüentemente, o atendimento do “verdadeiro inte-
fechada ao intercâmbio com outros atores sociais,
resse popular”, entendido como os empregados
inacessível do ponto de vista público, na qual não
das empresas – que constituem, por sinal, um
se esclarecem maiores detalhes sobre sua
habitual público-alvo de revitalizações urbanas em
participação efetiva, ligada a uma ação do poder
metrópoles do Primeiro Mundo (DAVIS, 1992;
público permeada por procedimentos irregulares
ZUKIN, 1995; LIMA, 1997, entrevista com o
(FIX, 2001; SPOSATI, 1995; SECRETARIA
autor; MEYER, 1997, entrevista com o autor).
MUNICIPAL DE HABITAÇÃO, 1996). Traço
comum com as anteriores, além da forte presença Outro ponto importante é a criação de uma
de empresários e proprietários, está no papel de aliança estratégica entre capital e trabalho, em torno
destaque, quanto à condução do movimento, que da questão dos menores de rua do Centro, o
têm os representantes do capital financeiro, inicial- Projeto Travessia, coordenado por Gilmar Carnei-
mente pelo então vice-Presidente do Unibanco Luís ro, ex-Presidente do Sindicato dos Bancários de
Eduardo Pinto Lima, porta-voz do pool em seus São Paulo – única organização trabalhista presente
primórdios. na Viva o Centro – e apoiado pela Associação (com
recursos financeiros do Banco de Boston e do
III.4 OS GRUPOS SOCIAIS MAIS ATINGIDOS
empresariado local). Tal projeto busca maximizar
PELAS INTERVENÇÕES URBANAS
a articulação dos recursos de atendimento hoje
No caso da Viva o Centro, a questão popular disponíveis, ao mesmo tempo que assumir tal
está contemplada de distintas formas, dado seu problemática do ponto de vista da parcela de
nível crescente de complexidade interna, ao incor- responsabilidade da sociedade civil. Essa ação,
porar atores sociais com posicionamentos diferen- ainda em seus primórdios, merecerá futuras
ciados a esse respeito. Trata-se de um tema de abordagens para a avaliação de seus resultados
fundamental importância, ainda mais porque as concretos, pois em princípio tanto pode ser vista
classes populares constituem a maioria da popula- como uma atuação original no encaminhamento
ção do Centro, num fenômeno de ocupação conco- da questão dos menores, quanto, numa visão mais
mitante à sua deterioração em termos de infra- cruel, uma forma disfarçada de retirar atores
estrutura urbana (FRÚGOLI JR., 1995). sociais indesejáveis das ruas do Centro (FUN-
Aqui novamente é necessário compor um DAÇÃO PROJETO TRAVESSIA, 1996; SAN-
quadro sobre o assunto, baseado em diferentes TOS, 1997, entrevista com o autor; SABINO,
campos das concepções e práticas concretas da 1997, entrevista com o autor).
Associação. De acordo com sua consultoria urba- Isso, entretanto, não esgota a questão. Cabe
abordar, sucintamente, a difícil relação da
Associação com os camelôs. A partir de um
13 Alex Thiele foi também assessor político de Setúbal workshop, a Viva o Centro colocou-se frontalmente
quando este preparava sua possível candidatura ao governo contrária à própria atividade dos mesmos, dado o
do Estado (pelo PFL) em meados de 80, o que acabou não conjunto de irregularidades constitutivas, apoiando
ocorrendo (THIELE, 1997, entrevista com o autor).
uma política no início a favor da ocupação
14 “Cingapura” é o nome de um programa de moradias legalizada e disciplinada, partindo depois para a
criado a partir da gestão Paulo Maluf. defesa da retirada completa dos camelôs dos

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 51-66 JUN. 2001

espaços públicos da área central. Tal posição tem expulsão das centenas de camelôs que ocupavam
ganho grande respaldo dentro de vários grupos a Avenida, que, pelo “sucesso”, serviu de modelo
de ação local, um programa desenvolvido pela para intervenções similares nas áreas centrais. Tal
Associação, que criou condições para a formação retirada foi acompanhada por medidas da
de grupos – comunidades que aglutinam morado- Associação para evitar o retorno dos ambulantes,
res, proprietários, dirigentes de empresas e usuá- inclusive o apoio a que os proprietários de edifícios
rios – em microrregiões do Centro. Para a maioria vigiassem suas calçadas com segurança privada
desses grupos, que constituem a “organicidade (SETÚBAL, 1997, entrevista com o autor; THIE-
de baixo” da Associação, as questões, não só a LE, 1997, entrevista com o autor; MAGALHÃES
dos camelôs, mas a da pobreza no Centro, é, antes JR., 1998, entrevista com o autor).
de mais nada, um caso de polícia. É óbvio que há
Outra medida foi a aprovação à redução de mais
aspectos de transgressão na prática dos camelôs,
da metade dos ônibus na Avenida, implementada
além de crescentes conexões com a criminalidade,
pelo poder público, concretizando algo que havia
e boa parte da dificuldade de relações políticas
sido discutido nos debates anteriores à formação
com os mesmos deve-se à sua extrema fragmen-
da Comissão, nos quais os ônibus eram consi-
tação organizativa. Por outro lado, trata-se da
derados um dos principais fatores da degradação
forma de sobrevivência de milhares de pessoas
ambiental (THIELE, 1997, entrevista com o
frente a um mercado de trabalho cada vez mais
autor), resultando numa medida com implicações
restrito – pautado há anos pelo desemprego
discutíveis quanto à eficácia, mas que, com certe-
estrutural, e não conjuntural. A simples expulsão
za, atingiu o usuário de menor poder aquisitivo.
dos ambulantes, como foi feita pela gestão Pitta
na assim chamada “Operação Dignidade” – Além dessas medidas concretas que incidem,
plenamente apoiada pela Viva o Centro e pela como vimos, sobre camelôs e usuários de ônibus,
Paulista Viva –, para “bolsões” muitas vezes o posicionamento de Setúbal contra quaisquer
isolados, precários e em áreas sem circulação de manifestações políticas na Avenida (em função
consumidores, produz uma exclusão territorial com principalmente dos transtornos causados ao
resultados que podem ser catastróficos. Sem falar trânsito pelas mesmas) e sobretudo o desinteresse
da rede de corrupção existente no interior das da Associação em enfrentar a questão da deterio-
administrações regionais, já revelada em inúmeras ração dos edifícios residenciais – tópico que
matérias da imprensa, que se beneficia do comércio estivera em destaque no início dos debates sobre
informal, sem que haja uma condenação por parte a degradação da Avenida –, significam que,
dessas associações com o mesmo nível de ve- potencialmente, outros atores sociais também
emência (VILLAS-BÔAS, 1995; BARRETO, estão perdendo nesse processo de revalorização.
1996a, p. 1; 1996b, p. 1; ALMEIDA, 1997, entre- Em todos esses casos, entretanto, não se pode
vista com o autor; BARRETO, 1997, entrevista falar propriamente em distância entre intuitos
com o autor; FRÚGOLI JR., 1999). professados e práticas concretas, já que não há
sequer uma posição publicamente defendida pela
No caso da Paulista Viva, a questão social
Associação com relação a um programa de
guarda algumas relações com os temas acima
intervenções – como procura fazer a Viva o Centro
discutidos, embora num contexto marcado por
–, com exceção das propostas do projeto vencedor
outras particularidades. Ao contrário da Viva o
do concurso, que, entretanto, não dão conta de
Centro, não há documentos que deixem claras suas
muitos dos aspectos sociais aqui discutidos
posições a respeito das classes populares, sendo
(SETÚBAL, 1997, entrevista com o autor; MA-
necessário investigar tais tópicos em pronuncia-
GALHÃES JR., 1998, entrevista com o autor).
mentos e práticas concretas.
Já a atitude da Associação de Promoção
As posições defendidas por Olavo Setúbal,
Habitacional representa um caso mais flagrante
Presidente da Associação, são também pela retirada
de apoio a uma ação, por parte do poder público,
completa dos camelôs, pelo fato de a Paulista ser
com práticas irregulares que resultaram na expul-
um espaço de excelência na metrópole, posição
são de milhares de favelados.
semelhante à do arquiteto José Magalhães Jr. De
fato, uma das primeiras medidas concretas da Neste caso, a diferença entre a intenção
Paulista Viva, já como Associação, foi o apoio à manifesta – o débil argumento de promover a
melhoria habitacional de favelados – e a concreta

61
A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

– maximizar a valorização imobiliária de uma área, ganho decisivo em termos de cidadania15 . Obvia-
com a remoção de uma grande favela – explicita- mente, há méritos em articular entidades privadas
se no momento mesmo do anúncio da intenção, e civis, definir propostas prioritárias para a área
sem quaisquer problemas éticos do ponto de vista central, constituir um campo de pesquisas e
dos principais patrocinadores da idéia, quanto à debates, procurar mobilizar determinadas parcelas
expectativa de benefícios privados. da comunidade e manter o papel de pressão sobre
os poderes públicos. Como já se disse, a Viva o
O problema, porém, vai além disso, ligado
Centro revela-se um campo fértil para a visibilidade
também à inacessibilidade pública de sua prática.
tanto da complexa negociação de determinados
Entre as várias indagações sem resposta, não há
consensos em torno da requalificação da área
transparência quanto ao número concreto de
central de São Paulo, quanto da trama dos conflitos
unidades habitacionais construídas com o montan-
decorrentes desse mesmo processo. Tal projeto,
te doado. A pesquisa mostrou uma defasagem
entretanto, passa pela atuação hegemônica de um
entre o prometido inicialmente – mil unidades
empresariado, em princípio preocupado também
habitacionais – e o efetivamente construído – 196
com questões sociais ligadas à cidadania, mas que
unidades –, sem que houvesse qualquer pronun-
em determinados momentos cruciais tem optado
ciamento da Associação quanto a eventuais redu-
por apoiar, através de acordos políticos articulados
ções no uso do montante doado pelo pool
sob a forma de lobby, intervenções urbanas que
(PREMAZZI, 1997, entrevista com o autor).
dialogam bastante com interesses mais gerais do
Portanto, na região mais periférica do quadrante mercado. Essa relação entre cidadania e mercado,
sudoeste, onde se estrutura o pólo mais forte do portanto, constitui aqui um campo de tensões
setor terciário moderno da metrópole, com a bastante problemático.
presença crescente de multinacionais, foi onde
Na outra ponta desse processo, por sua vez,
ocorreu o caso mais grave de exclusão territorial,
está em curso uma expansão dotada de um padrão
com a expulsão de milhares de favelados, muitos
totalmente distinto de urbanização, voltado ao setor
dos quais prestando serviços na região, o que atesta
de vanguarda do terciário moderno, mediado
no caso total intolerância quanto às classes
exclusivamente pelas regras do mercado
populares, quando a única linguagem possível é a
imobiliário, num campo de consultoria, construção
do mercado.
e instalação de empresas ligadas sobretudo a
IV. CONCLUSÃO: OS CONFLITOS E NEGO- corporações multinacionais, concentrando grande
CIAÇÕES EM TORNO DA CENTRALI- poder de decisão quanto aos rumos da expansão
DADE metropolitana. Isso resulta, sem dúvida, em um
O desdobramento da centralidade em São Paulo declínio gradativo da vida pública, não só porque
rumo ao quadrante sudoeste é problemático, vão sendo produzidos espaços desertos, um pouco
principalmente pelo fato de sua estruturação semelhantes aos subúrbios norte-americanos, mas
abarcar consideráveis parcelas do orçamento também porque esse tipo de associativismo
público, com uma concentração espacial de renda
e poder, em detrimento do desenvolvimento de 15 Há também outras forças atuando hoje no Centro, como
outras regiões urbanas (ROLNIK et. al., 1990). o recém-criado “Fórum Centro Vivo”, formado a partir de
movimentos populares, universidades e entidades diversas,
O presente trabalho aponta que tal processo
que se opõe ao atual processo de renovação urbana em curso
encontra-se num momento decisivo quanto à na área central e procura ampliar a participação popular na
possibilidade de que venha a ser alterado. Isso busca de melhorias e de democratização da região, incluindo
porque, por um lado, a Viva o Centro vem uma clara definição de uma política habitacional. Entre os
articulando um movimento para que tal expansão participantes mais expressivos, destacam-se a Central de
reverta, por assim dizer, para a área central, com Movimentos Populares, a União dos Movimentos de Moradia
e professores e estudantes da Universidade de São Paulo
um desenvolvimento mais adensado e menos
(Ato político-cultural, 2000). Um dado que tem se tornado
espraiado de urbanização, recuperando-se toda mais visível após o fim da presente pesquisa é a invasão
uma área de importância histórica na metrópole, organizada de prédios e terrenos por grupos de sem-teto na
não só do ponto de vista de uma racionalidade região central, sobretudo a partir de 1997, com cálculos que
econômica, mas também numa perspectiva mais apontavam, ao final de 1999, para ao menos 15 locais
ampla, social, cultural e institucional, com um invadidos, com 9 mil invasores, dos quais 6 mil deles
organizados (OLIVEIRA, 1999, p. 4-1).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 16: 51-66 JUN. 2001

empresarial tende, ao representar apenas fortes os vários atores sociais de uma região de forte
grupos privados, a submeter o poder público à heterogeneidade como o Centro, do seu ponto de
sua lógica de interesses, numa sincronia com a vista não há um claro lugar para os pobres, porque
atual fase do capitalismo, em que a dimensão estes supostamente não teriam qualquer projeto,
política é cada vez mais subordinada apenas à com sua interioridade, nesse sentido, totalmente
ordem econômica. Um desdobramento lógico é esvaziada.
que tal prática propicia, com muito mais inten-
Entretanto, no outro pólo do campo aqui
sidade, intervenções de forte caráter excludente
abordado, no caso a territorialidade representada
do ponto de vista social e territorial, como se viu
pela Berrini e Marginal Pinheiros, articula-se uma
no caso em que foram atingidos milhares de
urbanização de apartação e segregação com
favelados.
conseqüências muito sérias para a metrópole.
A recuperação da área central, entretanto, é Apesar do grande desgaste desse conceito, não
por si só insuficiente do ponto de vista da inserção há como negar que se trata de um espaço regido
das classes populares, pois também vimos como por muitas características identificadas como pós-
uma série de atores sociais vêm sendo sistemati- modernas – já que mediado exclusivamente por
camente excluídos dos processos pontuais de regras do mercado imobiliário, atendendo
requalificação ou revalorização, dentre os quais prioritariamente a clientes específicos (no caso
sobressaem os camelôs – que, com todos os várias empresas sobretudo do setor terciário,
problemas, representam uma estratégia de sobre- muitas delas saindo das áreas centrais), com uma
vivência para grande contingente das classes arquitetura que ora incorpora a idéia de flexibilidade
populares –, os pobres – cuja denominação pode (apta àquela exigida hoje pela lógica econômica
abranger a população de rua, desempregados, predominante), ora se volta às exigências das
subempregados etc. – e moradores das áreas mais grandes multinacionais, que têm convergido de
centrais – cujas possíveis formas de melhoria da maneira mais recorrente para a metrópole a partir
moradia e permanência não contam com um da configuração de um mercado cada vez mais
compromisso claro ou são ignoradas por parte globalizado; isso se dá dentro de um ideário de
dessas associações. Ainda assim, é tão significativa forte crítica aos limites do papel do poder público
a presença das classes populares sobretudo no na dinâmica urbana (embora tais áreas sejam
Centro, que se torna quase impossível imaginar a fortemente dependentes do mesmo para a
concretização de processos de revitalização desti- continuidade enquanto centralidades mais
nados apenas às classes médias e altas; é mais recentes), constituindo uma espécie de “solução
realista, sobretudo no contexto de um país descentralizada” para a cidade, com o poder de
periférico como o Brasil, supor que, de alguma influir na visão predominante do que seria o
forma, tais classes estarão presentes nesse espaço, verdadeiro “centro” da cidade. Cabe investigar
o que reforça a idéia de equacionar também suas mais detidamente que tipo de urbanização é essa e
demandas. qual a extensão de suas conseqüências para a
metrópole como um todo, já que vem acentuando
Tendo em vista esse quadro, torna-se
o declínio não só dos espaços públicos mas
necessário retomar determinados fundamentos que
também da vida pública.
regem o ideário da cidade moderna, como o
princípio constitutivo da diversidade social, que Fechando este artigo, é óbvio que tais fenôme-
se manifesta por exemplo na ocupação das ruas, nos e seus desdobramentos têm ressonâncias
praças e demais espaços públicos das grandes políticas não apenas para as áreas mais centrais
metrópoles, mas que também se traduz na da cidade, mas para o contexto urbano como um
configuração de uma vida pública, regida por todo. Embora trate-se de um estudo sobre São
relações políticas e democráticas nas quais as Paulo, pode vir a ser pensado – guardadas várias
diferenças sejam devidamente arbitradas. Ainda que proporções e particularidades, ou apreendendo-
associações como a Viva o Centro busquem – num se apenas partes do mesmo –, para outras grandes
momento em que se frisa a necessidade de a cidades que envolvam algum grau de multipo-
própria sociedade civil assumir a responsabilidade laridade, ainda que a capacidade de São Paulo,
cidadã com relação aos problemas sociais enquanto laboratório social, de servir de modelo
existentes – constituir um espaço de diálogo com para reflexão sobre outras metrópoles seja objeto

63
A QUESTÃO DA CENTRALIDADE EM SÃO PAULO

de discussões (VALLADARES, 2000, p. 11-12). “sincrônico” ou “transversal” do passado, mas não


se pode esquecer do desafio de se continuar
Retomando a proposta inicial do artigo, pode-
compreendendo as mudanças, só possível,
se dizer que, tendo em vista a crescente
segundo o autor, através de uma abordagem
complexidade das relações entre espaço e
interativa entre cultura e política (SCHORSKE,
sociedade nos estudos urbanos, sobretudo quanto
2000, p. 255). No plano da presente abordagem,
aos quadros metropolitanos mais recentes,
procurando combinar as especificidades dos
marcados por crescentes incertezas, talvez se
planos locais com conexões mais amplas (em
possa manter como intento básico a busca de
termos temporais e também espaciais), buscou-
análises mais abrangentes, tendo em vista
se decifrar uma de nossas megacidades, à luz de
mediações equilibradas entre o tempo e o espaço.
determinados eixos, a partir dos quais ainda é
Como bem lembra Carl Schorske em sua obra
possível reconstituir determinadas totalidades, ou
mais recente, a aproximação da história – mais
mapas que permitam superar a sedutora imagem
afeita aos processos diacrônicos – com a antro-
de uma cidade apenas formada por um jogo infinito
pologia – mais atenta às simultaneidades –
de fragmentos.
proporcionou à primeira um maior conhecimento
Recebido para publicação em 15 de maio de 2001.

Heitor Frúgoli Jr. (hfrugoli@uol.com.br) é Professor do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia


da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara.

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