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As Fronteiras da Identidade em Corumbá-MS: significados, discursos e práticas

Gustavo Villela Lima da Costa1

Resumo

As fronteiras entre estados nacionais são locais de encontros de diferentes sistemas


políticos e econômicos, onde a interação social permite uma circulação e apropriação de
diferentes tradições por parte dos moradores fronteiriços. Por esta razão, as fronteiras
podem ser consideradas, em muitos sentidos, como áreas liminares, repletas de
ambiguidades. Os estudos feitos nessas regiões de constante encontro com o “outro”,
permitem uma visão única nos modos pelos quais as identidades são construídas,
negociadas e sentidas pelos indivíduos. A partir da observação empírica realizada na
fronteira Brasil-Bolívia, na cidade de Corumbá-MS, buscar-se-á compreender como a
fronteira pode adquirir vários significados em torno dos quais são produzidos diferentes
discursos pelos atores sociais.

Palavras chave: Fronteira; Identidade; Antropologia

Resumen

Las fronteras entre estados nacionales son locales de encuentros de diferentes


sistemas politicos e economicos, donde la interacción social permite uma circulación e de
apropiación de las diferentes tradiciones de los residentes fronterizos. Por esta razón, Por
esta razón, lãs fronteras pueden ser considerados, en muchos sentidos, como zonas
liminales y ambiguas. Los estudios em estas region, de encuentro constante con el "otro",
permiten una visión única sobre la forma en que las identidades se construyen negocian y
son sentidas por los individuos. De la observación empírica realizada en la frontera Brasil-
Bolivia, en la ciudad de Corumbá-MS, tratamos de comprender cómo la frontera puede
adquirir diversos significados en torno al cual se producen diferentes discursos de los
actores sociales.

Palabras clabes: Frontera; Identidad; Antropología

1
Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus do Pantanal,
Corumbá-MS.
As Fronteiras da Identidade em Corumbá-MS: significados, discursos e práticas

Introdução: identidades e fronteiras liminares 2

Os processos dinâmicos de formação identitária 3 nas áreas de fronteira oferecem


desafios aos antropólogos que se dedicam a estudar empiricamente a vida social nessas
regiões, não apenas para o tema dos estudos fronteiriços, mas para o avanço em questões
teóricas da própria antropologia. A partir da observação empírica de uma área de fronteira
entre o Brasil e a Bolívia, na cidade de Corumbá-MS e do diálogo com outros autores, o
fenômeno social da vida nas fronteiras, com todas as suas ambigüidades, suscita algumas
hipóteses que serão debatidas neste artigo, como por exemplo: quais as peculiaridades de
realizar estudos antropológicos em áreas de fronteira? Quais os significados da fronteira
para os diferentes atores sociais que vivem nesta região? Quais resultados teóricos podem
ser obtidos ao estudar os processos de formação identitários nas fronteiras e que podem ser
aplicados a outras situações sociais distintas, em que essas dinâmicas não estão tão
claramente demarcadas (realizar uma antropologia “nas” fronteiras e não apenas “das”
fronteiras)?
Para entendermos as configurações sociais que se constroem nas regiões de
fronteira, é preciso considerar, do ponto de vista empírico que, apesar do papel estratégico
das fronteiras para os estados nacionais, não é possível menosprezar a construção local do
espaço social fronteiriço a partir de seus moradores. Os moradores da fronteira sentem-se
no direito de ultrapassar as barreiras nacionais, e o fazem cotidianamente, ou seja,
indivíduos dos dois lados da linha divisória entre os estados nacionais fomentam laços
sociais que vão além das meras relações comerciais e da manutenção dos negócios
transfronteiriços. Esta movimentação de pessoas, tradições e mercadorias nesta região
2
Agradeço os importantes comentários feitos pelo Prof. Marco Aurélio Machado de Oliveira para a realização
deste artigo, no âmbito da disciplina “Culturas e Fronteiras”, que oferecemos em conjunto no ano de 2010, no
curso de Mestrado em Estudos Fronteiriços, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no Campus do
Pantanal, em Corumbá.
3
A noção de identidade que nos interessa, em termos empíricos, é a autodenominação dos atores sociais, ou
seja, compreender como esses indivíduos se denominam e se vinculam a uma coletividade, que é identificada,
em geral, em oposição aos “outros” a partir do contato e da interação social. Além disso, nos interessa
entender os processos políticos de reconhecimento dessas identidades nas áreas de fronteira, que implicam
direitos de participação e cidadania desses atores sociais.
demonstra que a fronteira representa, para seus habitantes, tanto um recurso econômico
quanto social. Além disso, “como as fronteiras são lugares onde se encontram diferentes
sistemas políticos, econômicos e culturais, as mesmas oferecem oportunidades empíricas
únicas para entender os processos de construção, negociação e manipulação das
identidades”, (DONNAN & WILSON, 1994: 25).
Do ponto de vista teórico, abordaremos a idéia de fronteira como um espaço em
movimento, (um espaço vivo e vivido), indo além das visões das fronteiras baseadas apenas
no dogma da soberania dos estados nacionais, que trabalham necessariamente com a idéia
de limite estático e definitivo do Estado. As fronteiras podem ser consideradas, em muitos
de seus aspectos, como áreas liminares4, representando espaços que ainda estão sendo
estruturados, vivenciada como uma “zona de interesses mútuos” (LEACH 1960). O
conceito de liminaridade em antropologia surge a partir das análises sobre os ritos de
passagem desenvolvidas por Van Gennep e sobre os processos rituais estudados por Victor
Turner. Van Gennep afirma que durante a passagem ritual entre dois territórios, existe uma
região, que designa com o nome de margem, que adquire em determinadas ocasiões, certa
autonomia. Entende-se que nestas zonas, que “flutuam entre dois mundos”, uma pessoa
pode sair de um “mundo anterior” para entrar em um “mundo novo” (VAN GENNEP,
1978: 36). Durante este processo existem os ritos preliminares, de separação do mundo
anterior, os ritos liminares, executados durante o estágio de margem e os ritos pós-
liminares de agregação ao novo mundo. Este esquema de ritos de passagem pode ser útil
para pensar a fronteira (e seus moradores) como uma região que vive, em alguns de seus
aspectos, neste estado liminar, de ambigüidade entre dois ou mais contextos simbólicos,
políticos, econômicos e assim por diante. A implantação de legislações específicas nas
fronteiras é um dos exemplos de como essas regiões adquirem certa “autonomia” e um
status diferenciado e que não se situam inteiramente em nenhum dos dois “mundos”, no
caso, sob a completa jurisdição de dois ou mais países. Em resumo, o próprio direito
internacional e as políticas públicas implantadas pelos países, em inúmeras ocasiões
consideram esta especificidade das fronteiras, compreendendo seu status liminar, o que se
confirma ao analisarmos instrumentos jurídicos como o “Acordo entre o Governo da

4
Do latim limes, itis, limite, fronteira; daí, liminare, limiar, início, entrada.
República Federativa do Brasil e o Governo da República da Bolívia para Permissão de
Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Bolivianos”. Este
acordo fornece aos moradores fronteiriços um status especial de direitos e deveres, desde
que os mesmos permaneçam nas cidades de fronteira específicas, o que pressupõe uma
legislação específica, que não é nem a legislação da Bolívia, nem do Brasil, mas da
fronteira. Turner afirma que a primeira fase dos rituais (de separação) significa o
afastamento do indivíduo ou de um grupo de uma estrutura social ou de suas “condições
culturais”. Na situação de liminaridade as características do sujeito ritual são ambíguas e
somente na terceira fase de reagregação ou reincorporação, consuma-se totalmente a
passagem. Para este autor, é somente neste último estágio em que o sujeito permanece em
um estado relativamente estável e somente aí pode ter direitos e deveres definidos pelas
normas do novo grupo (TURNER, 1974: 116-7). Um exemplo desta situação de
liminaridade pode ser percebido na entrada de estrangeiros na Bolívia, em Puerto Quijarro,
a partir de Corumbá (o mesmo processo ocorre de maneira semelhante no caso de
bolivianos que pretendam entrar no Brasil). O trânsito entre as duas cidades vizinhas é
praticamente livre, não há barreiras, a não ser alfandegárias, para carros ou pedestres, a não
ser que a pessoa esteja carregando malas, ou que haja a suspeita de que possa estar
realizando algum comércio considerado ilegal (nem todos os veículos são parados, por
exemplo). O trânsito entre as duas cidades é intenso, em função do comércio e das relações
sociais intrínsecas que aí se estabelecem. No posto de controle fronteiriço, no lado
boliviano, por exemplo, caso o visitante deseje prosseguir viagem para outras localidades
do país, por trem, ou pela estrada, exige-se o carimbo do visto ou “permiso”, em que deve
constar o tempo de permanência, motivo de viagem, número do passaporte ou identidade e
outros dados. O que se depreende deste exemplo é que a fronteira é entendida localmente,
pelos órgãos oficiais de ambos os países, como uma área relativamente “comum” em que
não se exige o documento de entrada oficial no país para circular entre Puerto Quijarro e
Corumbá (a não ser para trabalhar ou estudar, como veremos mais adiante). Novamente
aqui se percebe que apenas no caso da pessoa pretender “entrar” no país, ou seja, afastando-
se da área “liminar” de fronteira, é que deverá cumprir totalmente o “rito de passagem.
Estes são apenas exemplos pontuais que ilustram esta condição “liminar” da
fronteira, e a partir do entendimento desta situação, observaremos de que forma esta
liminaridade das áreas fronteiriças exerce grande influência nos processos de construção e
vinculação identitária de indivíduos e grupos sociais que aí vivem e que atribuem diversos
significados e sentidos para fronteira.

Os Significados da Fronteira nos Processos de Construção Identitária

Como vimos até aqui, é justamente por fazer parte da fronteira entre dois países, que
os moradores dessas regiões podem negociar e manipular a fronteira de acordo com seus
interesses, utilizando esta situação ambígua em proveito próprio. Sendo assim, é preciso
investigar como esses atores sociais podem atribuir diversos significados para a fronteira
forjando suas identidades de acordo com seus interesses e sentimentos. Para entender em
que medida a “fronteira” pode gerar um sentimento de pertencimento e coesão, em torno de
uma identidade que transcende a identidade nacional, observaremos um estudo de caso em
uma fronteira africana. De acordo com Flynn que realizou sua pesquisa na fronteira entre a
Nigéria e o Benin, na África ocidental: “Os moradores da fronteira forjaram um forte
sentido de “identidade fronteiriça”. Esta identidade emerge, primeiramente, em contextos
de comércio trans-fronteiriço e se baseia tanto em questões residenciais da região, quanto
nos direitos percebidos pelos moradores fronteiriços em relação a este comércio na
fronteira.” (FLYNN, 1997:311). Este forte sentido de “identidade fronteiriça”, percebido
pela autora nesta fronteira específica, nos leva a indagar, em que medida, os moradores de
outras fronteiras forjariam um tipo de sentimento identitário semelhante e, se a fronteira,
por si só, pode construir um sentimento de localidade, coesão e de identidade baseada na
questão da moradia na faixa fronteiriça. Este diálogo com a autora nos leva a pensar,
localmente, as seguintes perguntas: Quais atores sociais demandam uma identidade
fronteiriça em Corumbá - Puerto Quijarro, na fronteira Brasil-Bolívia? Quais seriam os
parâmetros definidores das identidades nesta região? De que maneira a fronteira é
instrumentalizada pelos atores sociais como definidora de suas identidades?
Para a população fronteiriça, estudada por Flynn, o rio Okpara é menos um limite
que divide duas nações, do que uma ponte que os une em mútua interdependência. Uma
maneira pela qual os moradores daquela fronteira responderam à diminuição do comércio,
aos guardas de alfândega onipresentes, na busca por oportunidades econômicas, se deu a
partir da construção de uma “identidade fronteiriça” coletiva, baseada em reivindicações de
uso de seu território para a região e pelo direito, percebido pelos atores sociais, de
participar do lucro obtido no comércio de fronteira. (FLYNN, 1997: 312). Neste estudo de
caso, os moradores fronteiriços adquirem “uma profunda e estável identidade”, através da
qual definem a si mesmos e as suas relações com os “outros”, resumida no termo: “Nós
somos a Fronteira” (FLYNN, 1997: 312-13). Este caso demonstra que a fronteira, que
aparentemente parece ser um local de desterritorialização, pode gerar por parte de certos
atores sociais, um sentimento de pertencimento (de territorialização), ainda mais porque
grande parte da vida econômica nas cidades fronteiriças e da atração de migrantes se deve
justamente ao fato de que essas cidades se localizam nos limites entre países, o que
favorece práticas comerciais (lícitas ou ilícitas). Em resumo, podemos afirmar que a
identidade, incorporada por aqueles indivíduos africanos que se classificam como, “nós
somos a fronteira” é instrumentalizada, na busca de seus interesses imediatos no comércio
fronteiriço, o que não significa que abandonem suas identidades nacionais, étnicas ou
linguísticas.
Outro exemplo de configuração de identidades fronteiriças é apresentado por
Albuquerque, em seu estudo na fronteira Brasil-Paraguai, em que novos sentidos aparecem
para a vinculação de identidades a uma fronteira. A categoria identitária “brasiguaio” tem,
para o autor, vários significados, mas são os membros de camadas sociais mais pobres dos
imigrantes brasileiros que aceitam e valorizam essa classificação para obterem direitos e
benefícios sociais tanto no Brasil, quanto no Paraguai, (o que também contribui para que
não se sintam estrangeiros em nenhum dos dois países). Entretanto, nem todos os
brasileiros imigrantes gostam de ser identificados como “brasiguaios”, sobretudo os que
possuem recursos econômicos ou poder político, pois essa categoria estaria associada aos
imigrantes sem documentos e pobres. A não aceitação desta “identidade” indicaria uma
distinção de classe e o termo “brasiguaio”, acabaria sintetizando “a contraditória
experiência de conflito e integração na região das fronteiras” (ALBUQUERQUE, 2009:
158).

No caso de Corumbá, notamos semelhanças com o caso da fronteira Benin-Nigéria


em que reivindicações identitárias “fronteiriças” ocorrem entre os atores sociais que
dependem do comércio e do trânsito entre os dois países na fronteira (Brasil e Bolívia),
sobretudo entre os bolivianos, que vivem em Puerto Quijarro ou Puerto Suarez. O caso dos
“brasiguaios” também nos permite estabelecer pontos em comum com a configuração
social de Corumbá, pois grande parte dos atores sociais identificados como “fronteiriços”,
tanto numa fronteira quanto na outra, também fazem parte dos setores mais pobres da
sociedade, associando a esta identidade uma carga de estigma social. Esta demarcação
identitária acaba estabelecendo uma distinção entre classes sociais, demonstrando que, para
cada relação de identidade, há uma correspondente relação de status, de direitos e deveres
(CARDOSO de OLIVEIRA, 1976: 122). Em geral, os setores sociais corumbaenses que
possuem mais recursos econômicos não vivenciam e representam a fronteira com a Bolívia
como um fator identitário pessoal ou coletivo. Em inúmeras conversas com moradores
corumbaenses nota-se o discurso que refere imediatamente o “fronteiriço” ao boliviano, que
vive em Puerto Quijarro ou Puerto Suarez e nunca em relação a si mesmos, como se
Corumbá não fosse uma cidade de fronteira. A fronteira é o local onde se faz compras e,
em geral para os brasileiros da cidade não fica “aqui”, mas “lá”, adquirindo
primordialmente um caráter puramente utilitário para o consumo. É preciso destacar,
porém, que mesmo entre os indivíduos e grupos sociais que dependem da fronteira para
sobreviver, a identidade de “fronteiriço” não é verbalizada e denominada de maneira geral
pela cidade. Este discurso será acionado apenas na medida da necessidade para obtenção de
benefícios sociais. O que se observa, contudo, é que na prática, a questão da moradia na
área de fronteira, além do trânsito contínuo e diário entre os dois países, acaba por
configurar de maneira tácita e implícita esta identidade de “morador fronteiriço” aos
bolivianos que vivem no lado boliviano da fronteira.

De acordo com Souchaud e Baeninger, aproximadamente 75% dos imigrantes


bolivianos5 entrevistados na cidade de Corumbá disseram vir das terras baixas da Bolívia e,

5
Podemos classificar a situação dos bolivianos em Corumbá, com relação ao trabalho, a partir de
três situações jurídicas principais: os cidadãos bolivianos que têm o visto de permanência (através do
casamento com brasileiros ou nascimento de filhos em território brasileiro); Os bolivianos, que vivem em
Puerto Quijarro ou Puerto Suarez e que possuem o “documento fronteiriço”, que permite apenas o estudo e
trabalho do outro lado da fronteira; e os bolivianos que estão em situação ilegal e que vivem em ambos os
lados da fronteira (o que provavelmente constitui a maioria dos casos, em Corumbá).
em torno de 25% disseram ter origem em localidades do altiplano. Esta divisão se
manifesta também na matriz lingüística, já que nas partes altas, além do castelhano, são
utilizadas as línguas nativas quéchua e aymara, e na parte baixa, além do castelhano, usa-se
o guarani. Sendo assim, concordamos com os autores, quando afirmam que a manutenção
da coesão de cada grupo se dá pelas diferenças estabelecidas desde a origem, em um
processo de reprodução das diferenças que alimenta o distanciamento social que existia na
origem. Este fato torna ainda mais complexo o jogo identitário desses migrantes na cidade
de Corumbá, pois a partir de diferentes pontos de vista alguns pensam sua identidade a
partir de parâmetros étnicos, culturais, territoriais ou de classe. A partir da localização
diferenciada desses migrantes em bairros de Corumbá, os autores perceberam a existência
de duas lógicas: uma boliviana (etnolinguística), e outra brasileira (desigualdades sociais/
periferização), o que os levou a afirmar que a dinâmica urbana da cidade de fronteira tem
que ser considerada em função de elementos da estrutura social do país de origem e não
somente de destino (SOUCHAUD e BAENINGER, 2008). As principais atividades
realizadas por esses trabalhadores bolivianos no lado brasileiro são: o comércio de produtos
industrializados (roupas, brinquedos, artigos eletrônicos, entre outros), principalmente
fabricados na China, na feira Bras-Bol (espécie de camelódromo localizado ao lado do
cemitério de Corumbá) e nas demais feiras de rua da cidade; o comércio feito pelos
vendedores ambulantes de rua, “autônomos”; a venda de alimentos nas feiras livres de rua
na cidade de Corumbá, em que a maioria dos vendedores é composta por bolivianos, que
vendem hortaliças plantadas na Bolívia.
Apenas os bolivianos que trabalham em Corumbá, mas que vivem em Puerto
Quijarro e Puerto Suarez podem adquirir legalmente sua identidade de “fronteiriço” através
da legislação específica desta fronteira, em que é possível obter um documento para
trabalhar ou estudar (mas que não permite a moradia) em Corumbá (“documento especial
fronteiriço” da Polícia Federal), forjando a figura legal do “cidadão fronteiriço”6. Ou seja,

6
O Documento Especial do Fronteiriço, baseado na Lei N. 6.815/80 determina: “Art. 21. Ao natural de país
limítrofe, domiciliado em cidade contígua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança
nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente
prova de identidade.§ 1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer atividade remunerada ou
freqüentar estabelecimento de ensino naqueles municípios, será fornecido documento especial que o
identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de Trabalho e Previdência Social, quando for o
caso.§ 2º Os documentos referidos no parágrafo anterior não conferem o direito de residência no Brasil, nem
autorizam o afastamento dos limites territoriais daqueles municípios.”
os bolivianos que vivem em Corumbá já não têm direito a este documento. Em 12 de
janeiro de 2009 foi promulgado, pelo governo brasileiro através do Decreto nº 6.737, o
“Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República da
Bolívia para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços
Brasileiros e Bolivianos” e que reconhece que “as fronteiras que unem os dois países
constituem elementos de integração de suas populações” e permite, em seu Artigo I, o
“ingresso, residência, estudo, trabalho, previdência social e concessão de documento
especial de fronteiriço a estrangeiros residentes em localidades fronteiriças”. A relação de
vinculação das cidades fronteiriças, neste decreto, é a seguinte: Brasiléia (Brasil) a Cobija
(Bolívia); Corumbá (Brasil) a Puerto Suarez (Bolívia); Cáceres (Brasil) a San Matías
(Bolívia) e Guajaramirim (Brasil) a Guayeramirim (Bolívia). A principal e mais importante
diferença prevista neste acordo, se o compararmos ao “documento fronteiriço”, se refere ao
fato de que permite a residência nas cidades fronteiriças citadas acima. Este acordo ainda
não funciona, na prática, em Corumbá, o que mantém na ilegalidade grande parte dos
bolivianos que vivem e trabalham na cidade, criminalizando muitas de suas atividades. Em
inúmeras entrevistas realizadas com trabalhadores da feira Bras-Bol, por exemplo, não
houve nenhuma referência à possibilidade de conseguir algum documento deste tipo.

Na fronteira Brasil-Uruguai, notamos um fenômeno semelhante, em que a fronteira


é entendida pelos Estados como uma região sui generis e que, por conseguinte, os
moradores fronteiriços devem ter direitos especiais por habitarem nessa região. Em 2004,
foi ratificado o “Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o governo da
República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a
Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios”. Segundo Dorfman e Rosés, há uma
mudança do discurso em relação à fronteira, a partir da instituição do MERCOSUL,
entendendo-a como “precursora da integração, como um exemplo pragmático”
(DORFMAN e ROSÉS, 2005). As reivindicações políticas dos moradores fronteiriços entre
Rivera (URU) – Santana do Livramento (BRA) podem ser percebidas através da
mobilização dos vendedores de Rivera para conseguir trabalhar na linha de fronteira, depois
da proibição dessa atividade. Esses vendedores contaram com o apoio de um senador e de
um deputado da República uruguaia, em um processo de mobilização política e identitária
semelhante ao dos moradores da fronteira Nigéria-Benin e da fronteira Brasil-Bolívia, em
Corumbá. De acordo com Dorfman e Rosés, a demanda dos vendedores ambulantes por
este espaço se baseia no potencial econômico da fronteira demonstrando como “na
fronteira, questões de cunho aparentemente local e econômico repercutem em distintos
aspectos e escalas, como o político e a nacional”. (DORFMAN e ROSÉS, 2005: 207). De
acordo com as autoras, porém, esta identidade “fronteiriça” construída entre os moradores
do Rio Grande do Sul e do Uruguai, teria raízes históricas (desde os charqueadores e
criadores de gado no século XVIII), através de uma “história entrelaçada”, que forjou
fenômenos lingüísticos, com a utilização do “portunhol”, além de processos políticos, a
partir da atuação de famílias de grande poder na região, que possuem terras em ambos os
lados da fronteira (os caudilhos locais), a despeito das identidades nacionais, que também
são mantidas pelos indivíduos e grupos.

Na fronteira Brasil-Bolívia, em Corumbá, ainda está sendo forjada esta “história


entrelaçada” entre os dois países, pois data da década de 1950 a construção da ferrovia que
acabou por “inventar” definitivamente a fronteira Corumbá-Puerto Quijarro. No estado de
Mato Grosso do Sul, esta relação de integração com o vizinho fronteiriço se deu
historicamente e primordialmente com o Paraguai, cuja influência se percebe disseminada
por todo o estado (culinária, música, festas e etc.). Sendo assim, este tipo de reivindicação
ou construção identitária do “fronteiriço”, em relação à Bolívia, está circunscrita a
discursos específicos de atores interessados, diferentemente da fronteira gaúcha, entre
Brasil, Argentina e Uruguai que, de acordo com Hartmann, configuraria uma “cultura de
fronteira”, observada a partir de narrativas orais que transgridem os limites dos políticos
dos estados e que, em sua circulação, revelam identidades, tradições e sentimentos,
formando vinculações de grupo em torno de um conjunto de valores e práticas
compartilhados. (HARTMANN, 2005). A identidade de “fronteira”, portanto não é
verbalizada e sentida pelos moradores das cidades de Corumbá e Ladário e nem de Puerto
Quijarro e Puerto Suarez. Não se diz “moro na fronteira”, mas sim “moro em Corumbá” ou
“vivo en Quijarro”, por exemplo. O que se percebe é que, localmente, a identidade nacional
prevalece sobre qualquer outra vinculação coletiva, havendo inclusive, em alguns
momentos e a partir de certos setores sociais (sobretudo na elite corumbaense) a
exacerbação de um sentimento de apartamento e repulsa pelo fato da cidade estar situada na
fronteira, reproduzindo preconceitos e estigmas a respeito dos bolivianos e da fronteira.
Existe em Corumbá um forte sentimento de identidade local, exemplificado pela
categoria identitária utilizada pelos moradores da cidade que se definem como
“corumbaenses”. Esta identidade, historicamente e politicamente, se construiu, em um
primeiro momento, em oposição à Cuiabá, no estado de Mato Grosso, em um processo de
polarização entre o sul e o centro, e mais recentemente, em oposição à Campo Grande
como capital do estado de Mato Grosso do Sul, (BITTAR, 2009). O próprio isolamento da
cidade, distante de outros centros urbanos (cerca de 450 km da capital do estado) e sua
história particular - a partir da guerra da tríplice aliança, que impôs a internacionalização do
rio Paraguai até Corumbá, e da intensa atividade comercial daí decorrente, que atraiu
muitos imigrantes para a cidade (com políticas de substituição de mão-de-obra “nativa” por
imigrantes europeus) - contribuíram para distinguir Corumbá de outras cidades do estado de
Mato Grosso do Sul, (OLIVEIRA, 2005). O próprio sotaque corumbaense, por exemplo,
diferente de outras cidades do estado, possui o som do “r”, semelhante ao sotaque
nordestino ou carioca e apresenta um “cantado” particular, e representa, portanto, um
símbolo desta distinção identitária local.
As fronteiras são, portanto, representadas de diferentes modos pelos atores sociais
que as vivenciam, o que revela seu caráter polissêmico. Para Vidal, as fronteiras devem ser
entendidas em três dimensões: em seu sentido espacial, em sua acepção jurídica e também
como limite que traça os contornos de um grupo. Esta polissemia do termo “fronteira”
demonstra de maneira clara que não podemos usá-lo apenas para designar uma linha entre
dois estados, mas que as fronteiras podem “separar os territórios no seio de um mesmo
espaço nacional e se formar no espírito dos indivíduos quando se identificam em conjuntos
distintos” (VIDAL, 2008: 102). Os estudos nas fronteiras entre países, cujos limites
nacionais estão claramente demarcados, revelam, no fundo, a configuração de fronteiras
sociais menos óbvias e visíveis que aí se configuram, seja a partir de vinculações étnicas,
nacionais e de classe social, seja a partir de classificações jurídicas, que determinam
direitos e deveres dos atores sociais, seja pela vinculação a um território. É em torno dessas
fronteiras sociais é que são forjadas as identidades, em processos dinâmicos de luta política
pelas classificações por parte dos indivíduos e coletividades.
As Identidades na Fronteira: muito além do Estado

O processo de construção das identidades nas áreas fronteiriças é, portanto, um


fenômeno peculiar e complexo, em que as categorias “fronteira” ou “fronteiriço” adquirem
significados distintos de acordo com o posicionamento social e interesse dos atores sociais
que vivenciam a experiência de morar nessas regiões. Existe, porém, uma tendência a
acoplar o fenômeno da identidade à “cultura”, “etnia”, “território” ou “nação”, que acaba
por criar perigosas ficções acadêmicas. Nos processos migratórios (ainda mais em uma
cidade de fronteira que recebeu muitos imigrantes como Corumbá), as pessoas carregam
consigo seu passado, suas tradições, o que é visto como sua “cultura”, mas é preciso
considerar nas análises, que essas tradições são re-atualizadas e re-significadas a partir da
interação com outras correntes de conhecimento e de tradições. Neste processo, de
encontros com o “outro” é que se dão as condições para a manipulação, instrumentalização
e negociação das identidades e é neste contexto em que as identidades são vividas e
sentidas profundamente pelos atores sociais 7. Não devemos ignorar, porém, que os
símbolos, normas, crenças e valores possuem poder, porque são representações coletivas de
um grupo. De acordo com Abner Cohen, um indivíduo só pode manipular os costumes se
ele se tornar ou fizer parte de tal grupo, adotando seus símbolos correntes e mais
importantes, ou seja, “pagando o preço” de seu pertencimento ao integrar as atividades
simbólicas do grupo, através de um “grau de aderência aos seus objetivos” (COHEN,
1974). Anthony Cohen, por sua vez, considera que a “cultura” é representada como
identidade através de símbolos, que podem ser identificados como seus ícones típicos
(culinária, música, costume etc.), mas que seus significados são imprecisos e variáveis entre
os atores sociais que os usam. Esses símbolos são investidos de significado através de
processos sociais e são recursos potenciais nas arenas da política e do reconhecimento de
7
Ou seja, para explicar o processo de reconfiguração das identidades em áreas de fronteira, é preciso
entender que toda construção da identidade pressupõe tanto uma origem (uma matriz simbólica ou cultural
que dá sentido e ordena a vida social), quanto uma trajetória (um processo de construção e instrumentalização
das identidades, a partir da interação social que produz a diferença). Este quadro teórico apresentado por
Oliveira Filho, divide o pensamento antropológico entre os “primordialistas”, do qual Geertz é o principal
expoente, que entende que a “cultura estrutura a ação social” e os “instrumentalistas”, representados por
Barth, que entendem que a “cultura é estruturada na ação social” (OLIVEIRA FILHO, 1998).
identidades. A idéia de cultura associada à identidade é utilizada politicamente por atores
sociais como um fator de reconhecimento de grupos que buscam adquirir direitos políticos
(COHEN, 1993: 195). São duas visões complementares do conceito de “cultura” e de sua
relação com o fenômeno identitário, que abordaremos a seguir, na tentativa de entender os
processos pelos quais indivíduos e grupos interagem em um local tão heterogêneo como a
cidade de Corumbá.
A primeira dificuldade em realizar o trabalho empírico na região se deve ao fato de
que se observa, no cotidiano, são processos de constante re-apropriação e renegociação das
identidades (ou mesmo a adoção de múltiplas identidades), por parte dos migrantes que aí
interagem historicamente. Ao invés de entender a cidade de Corumbá como um mosaico de
“culturas”, o que pressupõe imaginar a existência de um “todo integrado”, formado por
partes separadas, (de “culturas” distintas entre si), buscamos baseados no trabalho de Barth,
compreender esta região como um local de interação de tradições, onde essas correntes de
conhecimentos se entrelaçam na circulação entre as pessoas, ao longo do tempo, a partir de
sua interação social, tornando-se difusas na vida da cidade e distribuídas desigualmente
entre os indivíduos (BARTH, 2000). Um exemplo da dificuldade em ordenar as identidades
a partir de sua vinculação às “culturas” se percebe através dos inúmeros casos de famílias
na cidade que podem ter uma configuração deste tipo: uma mulher corumbaense se casa
com um boliviano, mas seu avô materno era paraguaio, sua avó materna era síria, seu pai é
militar oriundo do Rio de Janeiro e sua é mãe corumbaense, por exemplo. A qual “cultura”
pertenceria um membro desta família? A partir daí, se coloca alguns problemas: Em qual
sentido podemos utilizar do termo “cultura”, para entender os processos sociais de
configuração das identidades, que nos permita estabelecer o afastamento de uma imagem
criada que é sempre a de um “todo” homogêneo? De que forma o pesquisador pode
estabelecer as relações entre o universo simbólico das pessoas e sua vida prática no
cotidiano? Em que medida a associação da cultura com a identidade é um instrumento
político de atores interessados? Para pensar nessas questões, concordamos com a crítica de
Barth a Geertz, quando refuta a idéia de que as “culturas” são públicas, compartilhadas
pelos indivíduos porque seu significado também o é. (BARTH, 2001, GEERTZ, 1978).
Não podemos supor que essas tradições e “culturas” são compartilhadas uniformemente
pelas pessoas na cidade, embora saibamos que as representações coletivas exerçam uma
força coercitiva sobre os indivíduos que fazem parte de determinado grupo social e que os
mesmos compartilham, em grande medida, de contextos sociais comuns. A questão é que
em Corumbá são muitos contextos sociais que se superpõem e se misturam, abrindo espaço
para as negociações das identidades. Esta visão nos afasta da tendência de homogeneizar a
fronteira, como se existisse uma única identidade fronteiriça, uma “cultura” de fronteira
híbrida, já que o que se observa, de fato, é a existência de diferentes fronteiras entre
indivíduos e grupos, que acabam sendo marcadores de limites entre indivíduos e grupos nos
processos de construção das identidades.
Estudar as fronteiras (ou nas fronteiras), portanto, impõe ao pesquisador a
preocupação com a negociação da identidade onde todos esperam que a identidade seja um
problema (DONNAN & WILSON, 1994). Ou seja, a fronteira acaba criando
necessariamente um “outro”, uma sentimento de alteridade; mas também acaba reforçando
a identidade do “eu” e do “nós”, em relação ao que é “diferente”. A partir daí, entendemos
que os grupos e suas identificações não podem ser compreendidos em si mesmos, mas
somente na relação com os “outros”, estudando os “limites podemos saber aquilo que um
grupo ou uma identificação incluem ou excluem, assim como os dispositivos através dos
quais constroem essas diferenças, articulando-as, na maior parte dos casos com formas de
desigualdade” (GRIMSON, 2001: 89), o que implica que esses estudos revelam muito
sobre a construção das relações de poder, tanto a partir da relação entre moradores e o
Estado, quanto entre as classes sociais e os vários grupos de status que convivem na
fronteira. As identidades dos moradores fronteiriços se processam, também, na tensão entre
o controle do Estado e a possibilidade de sua evasão (GRIMSON, 2001). O que dentro da
ótica do Estado e do dogma da soberania é visto como “contrabando”, ou pirataria, ou ainda
como uma prática comercial danosa ao comércio da cidade de um dos lados da fronteira,
por exemplo, representam de fato, práticas de comércio e de subsistência que fazem parte
da cidade (e da região fronteiriça) e da vida das pessoas. Sejam taxistas, vendedores,
sacoleiros, ou mesmo consumidores, de alguma forma todos lidam diretamente com esta
questão no seu dia-a-dia, em função das vantagens comerciais decorrentes da existência de
dois ou mais câmbios na região (no caso da fronteira em Corumbá, além do Real e do
Boliviano, utiliza-se o Dólar, nas casas de produtos importados no lado boliviano). Este
fenômeno de interação complexa, que liga as cidades fronteiriças de forma umbilical,
envolve desde o comércio, passando pela agricultura, assim como pelos serviços públicos
de saúde e educação.
As classificações sociais e os processos de reconhecimento identitários nas regiões
de fronteira estão condicionados, em grande medida à sua dupla condição: ora como
“barreira” (zona fortificada) e limite (alfândegas, passaportes, muros etc.); ora como
“passagem” (zona de interação), como área aberta, porosa, permeável e como um local de
interação social (trocas simbólicas e econômicas). Sendo assim é preciso estabelecer
relações dialéticas entre as duas condições da fronteira, não apenas entendê-las como áreas
de livre trânsito onde os limites e força dos estados são abolidos e nem reduzi-las apenas à
dimensão do conflito, da proibição, das disputas de poder. Esta questão é trabalhada por
Machado, quando, estabelece uma distinção entre “fronteira” e “limite” (distinção
semelhante também na língua inglesa entre os termos “frontier” e “border”). A fronteira
estaria orientada para fora, como vetor de forças centrífugas, enquanto os limites estariam
orientados “para dentro” (forças centrípetas), (MACHADO, 1998: 2).
Os limites internacionais em um espaço urbano contínuo como é o caso de Corumbá
- Ladário/ Puerto Suarez - Puerto Quijarro, podem parecer abstrações, mas é justamente por
sua presença que a vida ali se desenvolve. É em torno da fronteira, que os moradores das
cidades dos dois lados da fronteira criam relações de interdependência. A existência de
diferenças nas políticas econômicas nacionais, dos câmbios distintos de moedas, torna as
fronteiras áreas muito lucrativas para as trocas e o comércio tanto legal, quanto ilícito e
clandestino. As mercadorias nas regiões de fronteira são caracterizadas por valores
ambíguos (ou liminares) em razão de serem comercializadas entre dois sistemas
econômicos nacionais diferentes. Este comércio envolve diferentes câmbios de moeda e seu
valor na fronteira é sempre sujeito ao debate, dependendo de seu ponto de origem, de sua
destinação e das partes envolvidas, o que produz diferentes valores para agentes
alfandegários, comerciantes e residentes locais. De acordo com Flynn, mercadorias que se
movem através das fronteiras são “poderosas” e formam o centro de lutas políticas entre
grupos sociais, precisamente porque estão unindo duas economias nacionais, a partir dos
próprios moradores de áreas fronteiriças, que podem manipular sua situação marginal para
sua própria vantagem econômica, estabelecendo assim seu poder político e econômico a
partir de suas posições nos interstícios da região de fronteira. (FLYNN, 1997).
Nas fronteiras existem, portanto, duas lógicas nas demarcações políticas
internacionais: a lógica das populações locais e a lógica do Estado. De acordo com
Valcuende e Cardía, “as populações fronteiriças aprenderam a instrumentalizar a fronteira
em função de interesses concretos e, assim, as fronteiras políticas são reafirmadas ou
negadas à medida que as fronteiras sociais geradas a partir da interação social,
sobrepassam as demarcações estatais” (VALCUENDE e CARDIA 2009: 21). A fronteira
pode ser entendida não apenas como um recurso econômico para seus moradores, mas
também como um recurso social, a partir do qual se formam redes de solidariedade e
parentesco que atravessam os limites nacionais (um “recurso simbólico” através do qual
torna possível a comunicação em “contextos extraordinários”), (IDEM). A
“instrumentalização” da identidade se traduz, em muitos casos, em uma visão
absolutamente pragmática sobre “nacionalidade”, tal como ocorre na prática de registrar os
filhos no país mais conveniente.
É relativamente comum que pais bolivianos, que vivem na fronteira tenham seus
filhos no lado brasileiro, a fim de poder utilizar serviços públicos da cidade de Corumbá,
como o acesso à educação e à saúde pública e, principalmente, para conseguir o visto de
permanência no Brasil (o que também pode ser conseguido através do casamento). Há,
porém, casos mais raros de requerimento da dupla nacionalidade brasileira-boliviana, que
são exemplos interessantes para entender algumas estratégias e motivações dos atores
sociais para buscar não apenas formas de inserção no país vizinho e de manipulação
identitária, mas que demonstra como em torno dessas questões existe forte carga emotiva.
Em primeiro lugar, os pedidos de dupla nacionalidade não se resumem aos bolivianos, que
querem direitos no Brasil, mas também brasileiros que buscam a nacionalidade boliviana.
No dia 1º de março de 2010, no jornal “Diário Corumbaense” foi publicada uma matéria
com o seguinte título: “Crianças Brasileiras ganham direito a ter registro civil boliviano”.
No dia 28 de fevereiro, no Centro Boliviano-Brasileiro, localizado no Bairro Aeroporto, em
Corumbá onde ocorreu a mobilização “El derecho a La identidad para vivir em
democracia”, cujo principal objetivo era conceder o registro civil boliviano, para crianças
com até doze anos de idade e que tivessem pai ou mãe boliviano, mas que tivessem nascido
no Brasil. Neste dia cerca de duzentas pessoas procuraram pelo direito de registro civil
boliviano. De acordo com um dos pais presentes na ocasião:
“um dos maiores motivos pelos quais estou tirando a certidão de
nascimento para minhas duas filhas, é que transito constantemente entre os
dois países, e necessito garantir a segurança de minha família. Se eu
necessitar de um médico no Brasil, minhas filhas terão assistência, se
necessitar na Bolívia, elas também estarão asseguradas” (Fonte: Diário
Corumbaense 01/03/2010).

Outra pessoa, esta com 36 anos, com idade acima da estipulada para obter o
registro, afirmou:
“Sempre tive vontade de reconhecer minha nacionalidade boliviana,
pois toda a família de minha mãe é da Bolívia. Eu nasci no Brasil, mas tenho
sangue boliviano nas veias”. (Fonte: Diário Corumbaense 01/03/2010).

A reportagem do jornal e as entrevistas nos revelam duas questões interessantes a


respeito das identidades nacionais em áreas de fronteira: em primeiro lugar, esta
informação rompe com uma imagem criada no senso comum, de que apenas bolivianos
(assim como os paraguaios, peruanos, uruguaios, colombianos em outras fronteiras com o
Brasil) procurariam a cidadania brasileira para obter vantagens no atendimento aos seus
direitos (educação e saúde), ou para conseguir melhores condições de trabalho. Embora esta
prática seja majoritária, a reportagem mostra que também há o interesse de pais bolivianos
em registrar os filhos, nascidos no Brasil, como bolivianos. A partir desta atitude, esses
atores sociais acabam por recuperar ou reapropriar uma identidade, em função do fluxo
constante entre os dois países, deixando aberta uma nova possibilidade de vinculação
nacional para essas crianças, que obteriam direitos em ambos os lados da fronteira.
Em segundo lugar, notamos que as motivações pela busca de um registro civil
nacional, não são apenas pragmáticas, estratégicas e de ordem prática, pois de acordo com a
segunda interlocutora, o que a motivou foram o “sangue boliviano nas veias”, buscando
recuperar, sob forma de um registro nacional, a identidade da família de sua mãe. Neste
sentido é preciso destacar que as nações como “comunidades imaginadas”, diante da
maciça imposição dos discursos nacionalistas, são também vividas e sentidas pelos atores
sociais como parte de sua natureza, de seu “sangue” e de suas raízes, o que mobiliza muitas
vezes sentimentos exacerbados de ultra-nacionalismo, conflitos e xenofobia, mas que
também produz um sentimento de pertencimento e de busca por uma “identidade perdida”,
(manifestada inúmeras vezes na literatura e na poesia). Este movimento se reflete em
práticas de re-atualização de tradições e de fomento de laços sociais com descendentes
comuns, como os que ocorrem, em Corumbá, no Centro Social Brasileiro-Paraguayo, nas
associações árabe-brasileiras da cidade, assim como no Centro Boliviano-Brasileiro.

Considerações Finais

Neste artigo procuramos compreender os processos de construção da identidade em


regiões de fronteira, a partir de exemplos de manipulação e instrumentalização da categoria
“fronteira”, na região da cidade de Corumbá. A fronteira, como percebemos, adquire
significados distintos para os diversos grupos sociais que interagem nessas regiões,
revelando sua polissemia. Os estudos de identidade nas fronteiras entre países desvendam e
ilustram a formação de outras fronteiras sociais menos óbvias, nessas regiões, que
demarcam diferenças de classe e de status entre os grupos sociais que aí interagem. As
fronteiras são, portanto, locais privilegiados para romper com visões essencializantes e
naturalizantes que consideram a identidade (assim como a “cultura”, etnicidade ou
nacionalidade) das pessoas e grupos como dogmas ou fenômenos petrificados no tempo e
que independem da prática e criatividade das pessoas em seu cotidiano.
Além disso, procuramos demonstrar que a vida dos moradores das fronteiras é
constrangida e afetada por situações e dinâmicas próprias dessas regiões, não apenas em
questões relativas ao trabalho, comércio e aos benefícios sociais, mas em seus efeitos sobre
a própria construção identitária das pessoas e de coletividades. Ao enumerarmos algumas
dessas dinâmicas sociais, tentamos estabelecer um ponto de partida comum para o
estabelecimento de estudos comparativos em diferentes regiões de fronteira. Essas
características comuns às fronteiras entre os países, podem nos dizer muito sobre a própria
constituição dos estados nacionais em várias de suas dimensões (econômica, cultural,
militar, política e etc.) e, neste sentido, os estudos fronteiriços são necessariamente, estudos
sobre a formação, constituição e poder dos estados nacionais, “comunidades imaginadas” e
vividas através de seus “limites imaginados”. As pesquisas realizadas nessas regiões podem
demonstrar a eficácia e atuação dos discursos nacionais e da formação histórica das
identidades vinculadas à nacionalidade em áreas de contato com o “outro”, em um processo
contínuo de construção e (des)construção dos limites dos estados nacionais.
Não se deve perder de vista, porém, que há distintos processos de vinculação
identitária em jogo nas áreas fronteiriças e que os atores sociais negociam suas identidades
e produzem diferentes discursos sobre a fronteira, de acordo com seus interesses,
necessidades e sentimentos. Por este motivo é que os moradores das fronteiras devem ser os
sujeitos principais das pesquisas empíricas, e precisam ser vistos como agentes de sua
própria história. Esta visão demonstra, ainda, que o poder não pode ser encarado como uma
via de mão única, em que o Estado é o único agente produtor de identidades, definidor dos
seus limites territoriais e de sua própria história. As regiões de fronteira (a partir da vida de
seus moradores) representam, muitas vezes, o papel de protagonistas na formação dos
Estados-nacionais, ainda que as narrativas “oficiais” as considerem como áreas marginais e
coadjuvantes neste processo.

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