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Resumo
Resumen
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Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus do Pantanal,
Corumbá-MS.
As Fronteiras da Identidade em Corumbá-MS: significados, discursos e práticas
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Do latim limes, itis, limite, fronteira; daí, liminare, limiar, início, entrada.
República Federativa do Brasil e o Governo da República da Bolívia para Permissão de
Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Bolivianos”. Este
acordo fornece aos moradores fronteiriços um status especial de direitos e deveres, desde
que os mesmos permaneçam nas cidades de fronteira específicas, o que pressupõe uma
legislação específica, que não é nem a legislação da Bolívia, nem do Brasil, mas da
fronteira. Turner afirma que a primeira fase dos rituais (de separação) significa o
afastamento do indivíduo ou de um grupo de uma estrutura social ou de suas “condições
culturais”. Na situação de liminaridade as características do sujeito ritual são ambíguas e
somente na terceira fase de reagregação ou reincorporação, consuma-se totalmente a
passagem. Para este autor, é somente neste último estágio em que o sujeito permanece em
um estado relativamente estável e somente aí pode ter direitos e deveres definidos pelas
normas do novo grupo (TURNER, 1974: 116-7). Um exemplo desta situação de
liminaridade pode ser percebido na entrada de estrangeiros na Bolívia, em Puerto Quijarro,
a partir de Corumbá (o mesmo processo ocorre de maneira semelhante no caso de
bolivianos que pretendam entrar no Brasil). O trânsito entre as duas cidades vizinhas é
praticamente livre, não há barreiras, a não ser alfandegárias, para carros ou pedestres, a não
ser que a pessoa esteja carregando malas, ou que haja a suspeita de que possa estar
realizando algum comércio considerado ilegal (nem todos os veículos são parados, por
exemplo). O trânsito entre as duas cidades é intenso, em função do comércio e das relações
sociais intrínsecas que aí se estabelecem. No posto de controle fronteiriço, no lado
boliviano, por exemplo, caso o visitante deseje prosseguir viagem para outras localidades
do país, por trem, ou pela estrada, exige-se o carimbo do visto ou “permiso”, em que deve
constar o tempo de permanência, motivo de viagem, número do passaporte ou identidade e
outros dados. O que se depreende deste exemplo é que a fronteira é entendida localmente,
pelos órgãos oficiais de ambos os países, como uma área relativamente “comum” em que
não se exige o documento de entrada oficial no país para circular entre Puerto Quijarro e
Corumbá (a não ser para trabalhar ou estudar, como veremos mais adiante). Novamente
aqui se percebe que apenas no caso da pessoa pretender “entrar” no país, ou seja, afastando-
se da área “liminar” de fronteira, é que deverá cumprir totalmente o “rito de passagem.
Estes são apenas exemplos pontuais que ilustram esta condição “liminar” da
fronteira, e a partir do entendimento desta situação, observaremos de que forma esta
liminaridade das áreas fronteiriças exerce grande influência nos processos de construção e
vinculação identitária de indivíduos e grupos sociais que aí vivem e que atribuem diversos
significados e sentidos para fronteira.
Como vimos até aqui, é justamente por fazer parte da fronteira entre dois países, que
os moradores dessas regiões podem negociar e manipular a fronteira de acordo com seus
interesses, utilizando esta situação ambígua em proveito próprio. Sendo assim, é preciso
investigar como esses atores sociais podem atribuir diversos significados para a fronteira
forjando suas identidades de acordo com seus interesses e sentimentos. Para entender em
que medida a “fronteira” pode gerar um sentimento de pertencimento e coesão, em torno de
uma identidade que transcende a identidade nacional, observaremos um estudo de caso em
uma fronteira africana. De acordo com Flynn que realizou sua pesquisa na fronteira entre a
Nigéria e o Benin, na África ocidental: “Os moradores da fronteira forjaram um forte
sentido de “identidade fronteiriça”. Esta identidade emerge, primeiramente, em contextos
de comércio trans-fronteiriço e se baseia tanto em questões residenciais da região, quanto
nos direitos percebidos pelos moradores fronteiriços em relação a este comércio na
fronteira.” (FLYNN, 1997:311). Este forte sentido de “identidade fronteiriça”, percebido
pela autora nesta fronteira específica, nos leva a indagar, em que medida, os moradores de
outras fronteiras forjariam um tipo de sentimento identitário semelhante e, se a fronteira,
por si só, pode construir um sentimento de localidade, coesão e de identidade baseada na
questão da moradia na faixa fronteiriça. Este diálogo com a autora nos leva a pensar,
localmente, as seguintes perguntas: Quais atores sociais demandam uma identidade
fronteiriça em Corumbá - Puerto Quijarro, na fronteira Brasil-Bolívia? Quais seriam os
parâmetros definidores das identidades nesta região? De que maneira a fronteira é
instrumentalizada pelos atores sociais como definidora de suas identidades?
Para a população fronteiriça, estudada por Flynn, o rio Okpara é menos um limite
que divide duas nações, do que uma ponte que os une em mútua interdependência. Uma
maneira pela qual os moradores daquela fronteira responderam à diminuição do comércio,
aos guardas de alfândega onipresentes, na busca por oportunidades econômicas, se deu a
partir da construção de uma “identidade fronteiriça” coletiva, baseada em reivindicações de
uso de seu território para a região e pelo direito, percebido pelos atores sociais, de
participar do lucro obtido no comércio de fronteira. (FLYNN, 1997: 312). Neste estudo de
caso, os moradores fronteiriços adquirem “uma profunda e estável identidade”, através da
qual definem a si mesmos e as suas relações com os “outros”, resumida no termo: “Nós
somos a Fronteira” (FLYNN, 1997: 312-13). Este caso demonstra que a fronteira, que
aparentemente parece ser um local de desterritorialização, pode gerar por parte de certos
atores sociais, um sentimento de pertencimento (de territorialização), ainda mais porque
grande parte da vida econômica nas cidades fronteiriças e da atração de migrantes se deve
justamente ao fato de que essas cidades se localizam nos limites entre países, o que
favorece práticas comerciais (lícitas ou ilícitas). Em resumo, podemos afirmar que a
identidade, incorporada por aqueles indivíduos africanos que se classificam como, “nós
somos a fronteira” é instrumentalizada, na busca de seus interesses imediatos no comércio
fronteiriço, o que não significa que abandonem suas identidades nacionais, étnicas ou
linguísticas.
Outro exemplo de configuração de identidades fronteiriças é apresentado por
Albuquerque, em seu estudo na fronteira Brasil-Paraguai, em que novos sentidos aparecem
para a vinculação de identidades a uma fronteira. A categoria identitária “brasiguaio” tem,
para o autor, vários significados, mas são os membros de camadas sociais mais pobres dos
imigrantes brasileiros que aceitam e valorizam essa classificação para obterem direitos e
benefícios sociais tanto no Brasil, quanto no Paraguai, (o que também contribui para que
não se sintam estrangeiros em nenhum dos dois países). Entretanto, nem todos os
brasileiros imigrantes gostam de ser identificados como “brasiguaios”, sobretudo os que
possuem recursos econômicos ou poder político, pois essa categoria estaria associada aos
imigrantes sem documentos e pobres. A não aceitação desta “identidade” indicaria uma
distinção de classe e o termo “brasiguaio”, acabaria sintetizando “a contraditória
experiência de conflito e integração na região das fronteiras” (ALBUQUERQUE, 2009:
158).
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Podemos classificar a situação dos bolivianos em Corumbá, com relação ao trabalho, a partir de
três situações jurídicas principais: os cidadãos bolivianos que têm o visto de permanência (através do
casamento com brasileiros ou nascimento de filhos em território brasileiro); Os bolivianos, que vivem em
Puerto Quijarro ou Puerto Suarez e que possuem o “documento fronteiriço”, que permite apenas o estudo e
trabalho do outro lado da fronteira; e os bolivianos que estão em situação ilegal e que vivem em ambos os
lados da fronteira (o que provavelmente constitui a maioria dos casos, em Corumbá).
em torno de 25% disseram ter origem em localidades do altiplano. Esta divisão se
manifesta também na matriz lingüística, já que nas partes altas, além do castelhano, são
utilizadas as línguas nativas quéchua e aymara, e na parte baixa, além do castelhano, usa-se
o guarani. Sendo assim, concordamos com os autores, quando afirmam que a manutenção
da coesão de cada grupo se dá pelas diferenças estabelecidas desde a origem, em um
processo de reprodução das diferenças que alimenta o distanciamento social que existia na
origem. Este fato torna ainda mais complexo o jogo identitário desses migrantes na cidade
de Corumbá, pois a partir de diferentes pontos de vista alguns pensam sua identidade a
partir de parâmetros étnicos, culturais, territoriais ou de classe. A partir da localização
diferenciada desses migrantes em bairros de Corumbá, os autores perceberam a existência
de duas lógicas: uma boliviana (etnolinguística), e outra brasileira (desigualdades sociais/
periferização), o que os levou a afirmar que a dinâmica urbana da cidade de fronteira tem
que ser considerada em função de elementos da estrutura social do país de origem e não
somente de destino (SOUCHAUD e BAENINGER, 2008). As principais atividades
realizadas por esses trabalhadores bolivianos no lado brasileiro são: o comércio de produtos
industrializados (roupas, brinquedos, artigos eletrônicos, entre outros), principalmente
fabricados na China, na feira Bras-Bol (espécie de camelódromo localizado ao lado do
cemitério de Corumbá) e nas demais feiras de rua da cidade; o comércio feito pelos
vendedores ambulantes de rua, “autônomos”; a venda de alimentos nas feiras livres de rua
na cidade de Corumbá, em que a maioria dos vendedores é composta por bolivianos, que
vendem hortaliças plantadas na Bolívia.
Apenas os bolivianos que trabalham em Corumbá, mas que vivem em Puerto
Quijarro e Puerto Suarez podem adquirir legalmente sua identidade de “fronteiriço” através
da legislação específica desta fronteira, em que é possível obter um documento para
trabalhar ou estudar (mas que não permite a moradia) em Corumbá (“documento especial
fronteiriço” da Polícia Federal), forjando a figura legal do “cidadão fronteiriço”6. Ou seja,
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O Documento Especial do Fronteiriço, baseado na Lei N. 6.815/80 determina: “Art. 21. Ao natural de país
limítrofe, domiciliado em cidade contígua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança
nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente
prova de identidade.§ 1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer atividade remunerada ou
freqüentar estabelecimento de ensino naqueles municípios, será fornecido documento especial que o
identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de Trabalho e Previdência Social, quando for o
caso.§ 2º Os documentos referidos no parágrafo anterior não conferem o direito de residência no Brasil, nem
autorizam o afastamento dos limites territoriais daqueles municípios.”
os bolivianos que vivem em Corumbá já não têm direito a este documento. Em 12 de
janeiro de 2009 foi promulgado, pelo governo brasileiro através do Decreto nº 6.737, o
“Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República da
Bolívia para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços
Brasileiros e Bolivianos” e que reconhece que “as fronteiras que unem os dois países
constituem elementos de integração de suas populações” e permite, em seu Artigo I, o
“ingresso, residência, estudo, trabalho, previdência social e concessão de documento
especial de fronteiriço a estrangeiros residentes em localidades fronteiriças”. A relação de
vinculação das cidades fronteiriças, neste decreto, é a seguinte: Brasiléia (Brasil) a Cobija
(Bolívia); Corumbá (Brasil) a Puerto Suarez (Bolívia); Cáceres (Brasil) a San Matías
(Bolívia) e Guajaramirim (Brasil) a Guayeramirim (Bolívia). A principal e mais importante
diferença prevista neste acordo, se o compararmos ao “documento fronteiriço”, se refere ao
fato de que permite a residência nas cidades fronteiriças citadas acima. Este acordo ainda
não funciona, na prática, em Corumbá, o que mantém na ilegalidade grande parte dos
bolivianos que vivem e trabalham na cidade, criminalizando muitas de suas atividades. Em
inúmeras entrevistas realizadas com trabalhadores da feira Bras-Bol, por exemplo, não
houve nenhuma referência à possibilidade de conseguir algum documento deste tipo.
Outra pessoa, esta com 36 anos, com idade acima da estipulada para obter o
registro, afirmou:
“Sempre tive vontade de reconhecer minha nacionalidade boliviana,
pois toda a família de minha mãe é da Bolívia. Eu nasci no Brasil, mas tenho
sangue boliviano nas veias”. (Fonte: Diário Corumbaense 01/03/2010).
Considerações Finais
Referências Bibliográficas