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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

A crítica social através da sátira em “Coração


Cabeça Estômago”, de Camilo Castelo Branco

Valesca Peroni Giuriati – no USP: 8572240


Profa Lilian Jacoto – Literatura Portuguesa II
“Coração, cabeça, estômago” é um romance que representa o lado
satírico de Camilo Castelo Branco. Camilo, que teve a vida pessoal muito
parecida com as narrativas ultrarromânticas, nesta obra decide encarar a
filosofia Romântica de forma diferente: através da sátira, critica não só o
romantismo como também a sociedade portuguesa em geral.

A obra em sua estrutura conta com múltiplos narradores: O Editor,


narrador não participante da história (ou heterodiegético, de acordo com
CASTRO (1976) e PAVANELO (2008)), introduz a história de Silvestre, e é
responsável por organizar os escritos do amigo, além de explicar fatos mal
resolvidos em sua narrativa, mandados ao Editor por um Silvestre moribundo,
para serem publicados após sua morte.

Sendo assim, apesar das intervenções do Editor, Silvestre é o


responsável pela sua narrativa, como numa autobiografia. De acordo com
CASTRO (1976), Silvestre é então um narrador autodiegético.

No começo da obra, o Editor explica no que consiste o título “coração,


cabeça, estômago”: São divisões formadas pelo autor para designar diferentes
momentos de sua vida. Apesar de não serem datados, o Editor é capaz de
encontrar neles uma ordem baseado no comportamento do amigo durante o
tempo em que as memórias foram escritas: a época do “coração” é dominada
por um Silvestre jovem, impulsivo, capaz de fazer “tolice brava”; alguns anos
mais tarde, a época da “cabeça” é marcada pela total dedicação de Silvestre à
intelectualidade e à luta pelas causas sociais. Por fim, em “estômago”, Silvestre
descreve o momento em que encontra sua esposa até a sua morte, tempo em
que se refugia no espaço rural e se deixa levar pelos prazeres da comida, que
será sua causa mortis.

Em “coração”, Silvestre fala sobre seus amores frustrados; cada capítulo


representa uma moça pela qual ele se apaixonou, mas não é levado ao
casamento pelos mais diferentes e esdrúxulos motivos. Com cada moça, uma
nova faceta do poeta ultrarromântico surge em Silvestre, e quase sempre resulta
no ridículo: O desprezo da morte em favor do amor pela primeira moça (“Contei
à Leontina, em estilo alegre, com presunçoso desprezo da morte, o perigo em
que estava minha vida, por amor dela.”); o amor pulsante porém impulsivo por
Catarina e Clotilde; a primeira rejeitada pela pressa em casar-se, a segunda que
até corresponde seus avanços, até Silvestre descobrir que a moça já era casada
com um homem que a deixava livre para namorar outros rapazes; A mulata,
cujas características físicas Silvestre toma como responsáveis pelo seu amor e
lascívia desenfreados (à moda de José de Alencar que, no Romantismo
brasileiro, realizara em “Iracema”, ao comparar a moça branca, atribuindo a ela
o amor recatado, casto, digno do casamento; e a índia, que por ser escura,
representava o amor “sujo”, carnal, irresistível para os portugueses). Elise de La
Sallete, a quinta moça, representa a influência francesa na sociedade
portuguesa, e o descontentamento de Camilo com este arranjo. Silvestre
acredita piamente em seu testemunho de pureza e martírio (o que a torna a
perfeita heroína romântica na sua imaginação), e a coloca em alto patamar,
apenas para descobrir que fora enganado alguns dias depois.

Depois, em narrativas mais detalhadas, contrapõe “A mulher que o mundo


respeita” com “A mulher que o mundo despreza”. Camilo deseja, através de suas
histórias, demonstrar as injustiças da restrita sociedade portuguesa do século
XIX. A primeira, D. Paula, era muito rica, fidalga. Silvestre tenta ter um caso com
ela, acometido de paixão, mas a senhora se envolve e engana vários homens
durante a trama. Silvestre fica revoltado com tamanha falta de caráter da moça,
e com o respeito que ela inspirava apesar disso (mas ao que tudo indica,
Silvestre sofria mesmo era com a falta de interesse que D. Paula tivera com ele,
e a zombaria com que ela o tratara). A segunda mulher, Marcolina, era uma
mulher pobre, que muito sofrera por causa da mãe. Ela contrapõe perfeitamente
D. Paula: é pobre e se sente indigna, por causa de todo o sofrimento a que fora
sujeitada ao longo dos anos; porém é orgulhosa e séria, e ao ser acolhida por
Silvestre, passa a amá-lo de verdade (mas só o confessa no leito de morte).
Silvestre encontra no amor por ela certa rebeldia; ao amar a mulher “que o
mundo despreza” ele a põe num patamar superior à da respeitada por todos, por
ser ela a merecedora de suas afeições. Essas duas narrativas demonstram a
passagem gradual do momento “coração” para o momento “cabeça”, por atribuir
o amor às causas político-sociais em que acreditava.

Encerrada a narrativa de Marcolina (de forma bastante trágica, claramente


construída nos moldes românticos: morre jovem e tísica, com acessos de tosse
com sangue. Esse tipo de morte era considerado “sonho” entre muitos poetas da
época), dá-se início o período “cabeça” de Silvestre. Ao contrário do que se
espera, ter sua vida regida pela razão não o torna um homem “racional”
propriamente: Ao dedicar-se à intelectualidade, Silvestre encontra-se também no
mundo do idealismo, acreditando ser capaz de mudar o mundo ao escrever em
seu jornal de pequenas tiragens. Camilo resgata aí, no que deveria ser a pura
racionalidade, o Romantismo da personagem: Silvestre se tranforma novamente
no heroi romântico, não pelas suas investidas com donzelas, mas sim por se
encontrar às margens da sociedade, com opiniões incompreendidas e
desvalorizadas. Endividado pela falta de sucesso de seu jornal, e mal falado por
ter acusado um homem respeitado de abusar de uma família, Silvestre resolve
ir para a terra de seus antepassados, dando origem à parte final, o “Estômago”.

Nesta parte, Silvestre encontra seu heroísmo romântico na negação da


cidade e de seus valores, valorizando a vida no campo e sua conexão com a
natureza. É aí que conhece Tomásia, que terá função oposta à das donzelas
apresentadas em “coração”: Tomásia não é descrita fisicamente de acordo com
os padrões românticos de beleza, pois é grande, corada, desleixada; não é
graciosa, mas é trabalhadora e firme. Num primeiro momento, Silvestre não a
considera bonita, mas seu interesse cresce gradualmente, junto com sua afeição
pelo campo, o qual não se acostuma num primeiro momento. Mas, como em
todos os aspectos do romance, sua realização enquanto romântico não é bem
realizada. Ao invés de encontrar na natureza o “eu puro” clássico do romantismo,
Silvestre se torna cada vez mais apegado à materialidade da comida e da
corrupção política. A vida no campo no início lhe causava paz de espírito, mas
após alguns anos ele e a esposa se tornam pessoas doentes, apáticas,
obcecadas com os prazeres do estômago, até que, como o próprio Silvestre
menciona em seu último poema “e por muito comer eu desço à cova!”; morre
literalmente por comer demais.

Camilo Castelo Branco traz em Silvestre as críticas e frustrações com o


movimento romântico em Portugal. A partir dele, critica o aspecto “fútil” do
Romantismo de forma cômica, a partir do desejo de Silvestre de apresentar-se
romântico, remediando “o infortúnio de ter saúde, sem atacar os órgãos
essenciais da vida, mediante o uso de beberagens”
Bibliografia
CASTRO, A. P. Narrador, tempo e leitor na novela camiliana.1976.Minho: Casa
de Camilo
PAVANELO, Luciene Marie. Entre o coração e o estômago: o olhar distanciado
de Camilo Castelo Branco. 2008. Dissertação (Mestrado em Literatura
Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-25082009-151642/>.
Acesso em: 2015-01-08.
SILVA, T.C.C.Coração, Cabeça e Estômago - ou o irremediável
romantismo.In____Revista de Estudos Portugueses (vol.9-10).1986-88.Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/4450/4225/>
Acesso em: 2015-01-08

BRANCO, C.C.Coração, cabeça, estômago. In____Obra Seleta (Org. Jacinto


de Prado Coelho).1960.Rio de Janeiro: Editora José Aguilar.

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