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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:


A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

São Paulo
2013
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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:


A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira

São Paulo
2013
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G633m Gomes Júnior, Edmundo.


“Mal sabia ele...” : a intertextualidade literária no filme Mais
estranho que a ficção / Edmundo Gomes Júnior. – 2013.
114 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbite-


riana Mackenzie, São Paulo, 2013.
Referências bibliográficas: f. 107-114.

1. Intertextualidade. 2. Cinema. 3. Literatura. 4. Kristeva,


Julia, 1941-. I. Título.

CDD 401.41
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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:


A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em 12 de dezembro de 2013.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________
Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira – Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________
Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan
Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________
Profª Dra. Elisabeth Brait
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
5

Dedico este trabalho a minha mãe,


minha primeira professora.
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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter colocado estas pessoas em meu caminho.


À estimada Professora Helena, pelo constante incentivo desde meu primeiro ano de
graduação, por sua paciência e tranquilidade nas orientações, por seus conselhos que seguirei
por toda vida, por seu exemplo de integridade e, principalmente, por sua grande amizade.
A Eli, anjo da guarda cuja presteza foi fundamental nos momentos em que as respostas
não estavam nos livros.
À minha mãe, meu porto seguro, por acreditar em meus sonhos. Sem seu apoio
nenhum deles seria possível.
À minha avó Julia, exemplo de caráter e amor incondicional. Saudade eterna.
À CAPES e à Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de estudos concedida,
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.
À Profª. Dra. Elisabeth Brait, pela leitura atenciosa de meu trabalho e pelas preciosas
críticas e sugestões feitas durante a banca de qualificação que possibilitaram o
amadurecimento da idéia.
À Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan, pelas contribuições não só durante a banca de
qualificação, mas também durante o curso de pós-graduação, compartilhando seu grande
conhecimento do universo do fantástico, que possibilitou diferentes pontos de vista sobre esta
pesquisa, e por me apresentar à Literatura Hispano-Americana, cujas sugestões, mesmo
quando não inteiramente seguidas, estão constantemente presentes em minhas reflexões e
motivarão novos estudos.
Aos professores do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, especialmente às Profª Dra. Aurora Gedra, Profª Dra. Elisa
Guimarães, Profª Dra. Lilian Lopondo, Profª Dra. Marlise Vaz Bridi e Profª Dra. Maria Luiza
Atik, cujas aulas nunca esquecerei, e à Profª Dra. Maria Lúcia Vasconcelos, por me fazer
entender que não é possível colocar um oceano num copo d’água.
Aos amigos Gisele, Sheila, Marcelo, colegas de mestrado e companheiros de jornada,
presentes nos momentos mais importantes, e Luiz Felipe, Renato, André, Thaís, Adriana,
Cida, Nany, Paula, Denise e Felipe, por entenderem minha ausência.
À Phoebe, que por muitas madrugadas de trabalho esteve ao meu lado em silêncio.
Aos meus alunos da EE Major Arcy, por mostrarem que não há impossível.
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We shall not cease from exploration


And the end of all our exploring
Will be to arrive where we started
And know the place for the first time.

(T. S. Eliot)
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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar o filme Mais estranho que a ficção (2006), dirigido
por Marc Foster, no viés do conceito de intertextualidade, criado por Julia Kristeva. É
apresentada uma pesquisa sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na
narrativa fílmica, visando assim discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção
de sentido. Para essa análise foi levantada a origem desse conceito, confrontando o
dialogismo de Mikhail Bakhtin com os textos de Kristeva. A autora elaborou, além da
intertextualidade, os conceitos de ambivalência e transposição, termos que são empregados
posteriormente por outros autores. Durante a análise foi possível notar, através dos intertextos
presentes no filme, a natureza prometaica da criação ficcional, onde criadores enfrentam a
decadência, as semelhanças entre as representações dos mestres na ficção em relação à
jornada do herói épico, a utilização da écfrase como antecipação do desfecho da estória e a
formação da identidade das personagens da obra através do diálogo.

Palavras-chave: Intertextualidade; Cinema; Literatura; Kristeva.


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ABSTRACT

This essay aims to analyze the film Stranger Than Fiction (2006), directed by Marc Foster,
following of the concept of intertextuality, created by Julia Kristeva. It presents a survey of
the literary works mentioned in the film and their effects on film narrative, in order to discuss
how intertextuality enables the production of meaning. For this analysis the origin of this
concept is researched, confronting the dialogism of Mikhail Bakhtin with Kristeva's texts.
Kristeva also developed the concepts of ambivalence and transposition, terms that are used
later on by other authors. During the analysis it was possible to see through the intertexts in
the film the Prometheus theme repeated in the nature of fictional creation, where creator face
decay, the similarities between the representations of mentors in fiction in relation with the
epic hero's journey, as the use of ecphrasis as an anticipation of the outcome of the story and
the formation of the identity of the characters work through dialogue.

Keywords: Intertextuality; Literature; Cinema; Kristeva.


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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
1.1. Sobre o Objeto de Estudo ........................................................................................ 14
2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA ........................ 18
3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO ....... 34
3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo ..................... 41
3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes ............................ 46
3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção .................................................... 49
4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO ................................ 55
4.1. A caverna do mestre ................................................................................................ 56
4.3. O discurso como formador da identidade do professor ........................................... 63
5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO
FICCIONAL ................................................................................................................. 79
6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO . 96
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 104
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 107
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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir o filme Mais estranho que a ficção, dirigido
por Marc Foster, no viés da intertextualidade, dentro da perspectiva da produção
cinematográfica como objeto artístico dentro de uma linguagem própria de seu suporte, mas
que se apropria de recursos de outras linguagens, como a Pintura e a Literatura. Para isso,
discutiremos o filme pelo à luz dos conceitos sistematizados por Julia Kristeva, pesquisando
sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na narrativa fílmica, visando assim
discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção de sentido.

A escolha deste filme foi feita devido à grande quantidade de referências à Literatura
nele presentes. Tomaremos o filme e sua narrativa como eixo central, tratando os principais
aspectos intertextuais conforme eles são apresentados na obra.

Partiremos da gênese do conceito de intertextualidade e de sua repercussão


epistemológica e trabalharemos essa formulação não só na pesquisa sobre as obras citadas,
mas também nos efeitos de sentido e recursos que são utilizados em comum na Literatura em
obras aparentemente sem relação com o filme, mas, como a pesquisa indicará, dialogam entre
si dentro de um universo temático.

Este trabalho pode servir de suporte ao ensino de Língua e Literatura, embora não
esteja voltado para a educação, já que o estudo da intertextualidade faz parte do currículo do
Ensino Médio (SEE, 2009, p.25). A escassez de referencial prático e teórico para esse estudo,
entretanto, acaba dificultando que a intertextualidade e outros conceitos sejam trabalhados
pelos professores, que muitas vezes os desconhecem.

A identificação desta lacuna na vivência cotidiana do trabalho em sala de aula


originou a idéia inicial deste trabalho. No exercício desta função, sobretudo no Ensino Médio,
podemos notar uma dificuldade dos alunos em aplicar os conceitos abordados nas aulas de
Língua e Literatura, sobretudo aqueles que necessitam de maior reflexão e abstração para
serem compreendidas, dentre eles as figuras de linguagem e estilo e a intertextualidade
presentes nos textos.
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Além disso, nas aulas de Língua Estrangeira notamos que, apesar das inovações e
novas abordagens de ensino, boa parte do material pedagógico e, consequentemente, o plano
de aula, ainda focam o ensino da gramática e a leitura de textos cuja interpretação consiste em
questionários que visam a coleta de dados. Essa abordagem, por sua vez, gera um desinteresse
pela leitura que se reflete na busca por resumos de obras literárias e pela pouca busca em
bibliotecas. Deve ser suprida, portanto, uma lacuna de novas propostas da obra literária não só
como objeto de estudo, mas também como fonte de inspirações, o que pode aproximar o aluno
da obra literária, vendo o estudo da Literatura não como uma simples identificação categórica
de obras dentro de gêneros: é preciso ir além do pensar literário e despertar no estudante de
Literatura interesse no fazer literário. Para isso, faz-se necessário a utilização na sala de aula
de obras cujo cerne esteja na criação literária, na figura do narrador e seus dilemas e na
intertextualidade presente nas obras escolhidas.

Entretanto, um dos principais fatores da dificuldade em compreender a


intertextualidade, além dos diferentes níveis de interpretação, provém do baixo repertório de
leituras, não somente de obras literárias, mas também das leituras de mundo, o que é
compreensível pela idade ou pelo grau de formação dos alunos. É necessário, portanto, um
direcionamento auxiliado pelo professor para que esses alunos possam identificar a
intertextualidade nas obras analisadas. Não compete ao professor, porém, atuar como um
intérprete de mundo para o aluno, mas fornecer as ferramentas para que essas leituras sejam
feitas.

Para Roland Barthes, um dos prazeres do texto está na intertextualidade, pois um texto
sempre remete a outro, num fenômeno que o autor descreve como “simplesmente uma
lembrança circular. E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito
quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o
sentido faz a vida.” (BARTHES, 1987, p. 49, grifos do autor.)

Em Texto, discurso e ensino, Elisa Guimarães sugere atividades ligadas à


intertextualidade, dentre elas:

Exploração de um texto, nele procurando traços de intertexto – o que desperta no


aluno a consciência de cultura, dado o fato de a intertextualidade, enquanto permuta de
textos, inscrever o enunciado na cadeia infinita de discursos. (GUIMARÃES, 2009, p.
164, grifos da autora)
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Faz-se necessário, portanto, evocar obras que além de conterem traços de


intertextualidade, despertem o prazer pela Literatura. Dificilmente, porém, será possível
atingir um público alvo junto ao qual se deseja criar o gosto pelos livros se não houver um
suporte intermediário, isto é, não se motiva alguém a ler com um texto que fale sobre a
importância da leitura, dada a resistência do indivíduo a esse hábito.

A utilização do cinema em sala de aula auxilia neste propósito, dentre muitas outras
possibilidades exploradas por autores como Marcos Napolitano, que dedicam seus estudos a
essa proposta de ensino-aprendizagem:

Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura, ao


mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer,
a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de
arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e
“difíceis”, os filmes tem sempre uma possibilidade para o trabalho escolar.
(NAPOLITANO, 2009, p. 15)

Esses autores, entretanto, enfatizam a utilização do cinema em disciplinas como


História, Geografia e Ciências Sociais, ou quando é citada a Literatura, limitam-se às
adaptações de obras de livros para filmes. Propomos, portanto, utilizar uma obra
cinematográfica que tenha a intertextualidade, implícita ou explicitamente, presente em sua
temática, e o filme Mais estranho que a ficção atende a esse propósito.

A atuação docente foi inspiradora para a elaboração desta pesquisa, porém não
buscaremos apresentar o trabalho da intertextualidade através de uma sequência didática,
visto que esse tipo de recurso não considera os diferentes contextos de ensino e idealiza
situações utópicas, tanto de recursos de sala de aula quanto de material humano. Ao invés
disso, priorizaremos a análise do filme e a pesquisa que ele provoca, demonstrando como a
intertextualidade não só desperta a memória de textos anteriores, mas também provoca novas
leituras.

Pressupomos aqui que as referências presentes em Mais estranho que a ficção não
foram escolhidas ao acaso, de modo que apresentam sua função dentro da temática do filme, e
o que pretendemos, portanto, é investigar a relação das obras citadas com os elementos
narrativos da obra cinematográfica.
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1.1. Sobre o Objeto de Estudo

Mais estranho que a ficção, título original Stranger than Fiction, conta a estória de Harold
Crick (Will Ferrell), um solitário auditor da Receita Federal americana (e seu relógio, nas
palavras da narradora). Harold tinha vida e rotina controladas de modo quase obsessivo-
compulsivo, até que começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos. Passa então a tentar
descobrir de quem é essa voz, busca a ajuda de uma analista, que lhe recomenda, mediante
sua recusa em tomar medicação, a procurar um especialista em Literatura. Harold se encontra
com o professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que recomenda descobrir se a vida de
Harold, caso seja uma obra literária, consiste em uma tragédia ou em uma comédia. Após o
levantamento das características destes dois gêneros narrativos definidos pelos tratados
aristotélicos, Harold retorna para conversar com o professor, e descobre que a voz que narra
sua vida pertence a Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa por matar os
protagonistas de suas obras.

Harold consegue se encontrar com Karen, sem questionar a existência da narradora,


pois sua preocupação maior é pedir-lhe que não o mate. A assistente de Karen (Queen Latifa)
sugere que ela deixe Harold ler os esboços do livro. Após essa leitura, apresentada também ao
professor, o herói percebe que sua morte tem um sentido para a narrativa.

O protagonista diz a Eiffel que entende a necessidade de sua morte para que a obra se
torne grandiosa. A tensão do filme passa então para o dilema das escolhas entre vida e morte
da narradora e do protagonista: se Karen decidirá matar o herói e se Harold aceitará essa
morte.

Ironicamente, Harold passa a aproveitar melhor a vida: investe em seu relacionamento


com Ana Pascal, aprende a tocar guitarra, presenteia seu amigo com uma estadia em um
centro de treinamento para astronautas e preocupa-se menos com o trabalho e com a maneira
minuciosa ao desempenhar suas tarefas mais mundanas.

Na manhã da fatídica sexta-feira prevista para sua morte, diferentemente dos outros
dias, em que andava apressado, Harold caminha tranquilo para o ponto de ônibus. Quando a
condução se aproxima, um garoto guiando uma bicicleta entra em seu caminho, e Harold se
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joga no lugar do menino para salvá-lo de um atropelamento. Harold é mostrado atropelado, a


câmera se afasta e há uma transição para uma conversa entre Karen e Hilbert. Ela lhe entrega
uma cópia do livro, dizendo que ele pode estar interessado no novo final. Harold é mostrado,
com grande parte de seu corpo engessado. Um médico lhe explica que ele fora salvo por uma
lasca solta do relógio de pulso no momento de impacto com o ônibus, e Harold explica à
namorada que não teve escolha a não ser salvar o garoto de ser atingido.

Eiffel conversa com o professor Hilbert sobre o desfecho do livro e como ele não faz
sentido com o restante da obra. A autora diz que irá reescrevê-lo. O professor lhe pergunta por
que mudou o livro, ela explica que inicialmente era uma estória sobre um homem que não
sabia que morreria, e então morre, mas se o homem sabe que irá morrer e o faz por vontade
própria, mesmo sabendo que isso poderia ser evitado, não seria esse tipo de homem – ela
questiona - que se gostaria de manter vivo?

A escritora faz sua última narração, complementada pelas imagens de todas as


personagens do filme, retomando suas vidas. Diferentemente do sentimento de uma tragédia
anunciada do início da estória, ela narra como Harold sentiu que tudo daria certo daquele
momento em diante, levando ao típico e talvez inesperado final feliz hollywoodiano.

1.2. Possibilidades de Leituras de Mais estranho que a ficção

Tendo neste estudo a intertextualidade como visão de leitura, não ignoramos a gama
de possibilidades de análise que Mais estranho que a ficção permite, dada sua função como
produto ideológico, visto que toda produção humana pode se tornar símbolo e não apenas
existir como parte de uma realidade, mas também refletir e refratar uma outra, estando sujeito
aos critérios de avaliação ideológica e análises de questões filosóficas, psíquicas, históricas e
sociais sobre as manifestações da linguagem.

Dada essa gama de possibilidades, dentro do viés da ficção como produção textual e
estética, sem nos atermos em profundidade aos aspectos formais do filme, no que concerne à
escolha de ângulos de câmera e edição, por exemplo, elencaremos algumas propostas de
análise, das quais a última delas norteia os objetivos deste trabalho. A primeira dessas
propostas se atenta à metalinguagem presente na obra, pela indicação da ficção para si
mesma, de uma estória dentro da outra. Ligada a essa metalinguagem também é possível
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analisar a presença do insólito gerado pela situação, o que leva a um questionamento quanto à
existência de Harold, da autora e da própria ficção em si. A esta reflexão sobre a ficção se
acresce, por sua vez, uma análise sobre a representação dos elementos da narrativa, da qual o
próprio filme, dentro do discurso do professor, traz uma reflexão didática sobre os gêneros da
narrativa e sua estrutura e serve, por exemplo, como fator de motivação para que alunos
produzam ficção, ao invés de apenas se prenderem à análise de gêneros.

Uma quarta possibilidade de leitura se manifesta pela gradação do abstrato para o


concreto que o filme apresenta, da teoria literária para a prática da escrita, através das
antíteses de discursos do professor de Literatura e da escritora. Também é possível analisar
Mais estranho que a ficção pelo seu cunho social, visto que Harold é um pária e não apresenta
as características do herói convencional, e a ficção, por sua vez, pode representar tais
indivíduos marginalizados como uma forma de denúncia daqueles invisíveis socialmente.
Mesmo estando fora do padrão épico, o trajeto de Harold na narrativa fílmica também segue a
estrutura da jornada do herói, o que também permite analisar a narrativa identificando os
estágios dessa jornada até sua conclusão.

Uma última proposta de análise (no sentido de enumeração e não de possibilidade), e à


qual iremos dar maior importância, levando em conta as delimitações do trabalho científico,
está na intertextualidade presente em Mais Estranho que Ficção. Ela se manifesta, em sua
forma mais explícita, nas citações presentes no decorrer do filme, seja no discurso das
personagens, seja nas imagens que nos remetem a outros textos.

Para a realização dessa análise, iniciaremos no capítulo Intertextualidade na


Literatura e no Cinema um panorama dos conceitos de intertextualidade sob diferentes
perspectivas teóricas, comparando-as e visando identificar pontos em comum dentre elas a
fim de delimitar o escopo de trabalho. Ainda dentro do estudo do intertexto, exploraremos
como essa característica textual também se manifesta na linguagem do cinema.

Em Categorias Narrativas em Mais estranho que a ficção analisaremos como o


gênero narrativo pode ser definido através da mimésis, isto é, o conceito aristotélico da arte da
imitação e da representação, e da maneira com se conduz o diálogo entre as personagens.
Também trabalharemos o conceito de écfrase e quais suas contribuições para a construção da
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trama, além das estratégias da linguagem cinematográfica pra metaforizar mudanças de foco
narrativo.

Em Lugares e discursos dos mestres na ficção analisaremos a intertextualidade entre


Mais Estranho que Ficção e algumas obras literárias em que a representação do mentor do
protagonista dialoga com a caracterização do professor Hilbert, tanto em sua apresentação e
seu discurso quanto no espaço em que ele se encontra, nos artifícios de produção do engano
no encontro entre aluno e mestre. Trabalharemos o conceito de ironia dramática e
demonstraremos sua manifestação como uma forma de metalinguagem.

Em Homens sem carne e a natureza prometaica da criação ficcional exploraremos a


intertextualidade entre Mais estranho que a ficção e os mitos e fábulas que tratam da origem
do homem ou de personagens cuja constituição física reflete sua incompletude e como essa
escassez direciona a narrativa a um confronto entre esses construtos e seus criadores.
Trataremos das transformações do protagonista em A formação da identidade em Mais
estranho que a ficção, tendo em vista a influência do debate entre personagens e a função
modificadora da narrativa e, que mesmo na estória de um anti-herói moderno, reflete a
jornada do herói clássico.

Em Considerações finais, faremos uma síntese das discussões levantadas por esta
dissertação e exporemos os resultados finais deste estudo, além de possíveis propostas de
continuidade e aplicação desse trabalho.
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2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA

O conceito intertextualidade foi estabelecido por Julia Kristeva, sob a influência do


pensamento de Bakhtin, autor cuja obra ela se tornou uma das maiores responsáveis pela
divulgação. Esse conceito tem sido desenvolvido por autores dentre os quais citamos
Dominique Maingueneau, Roland Barthes e Gérard Genette, leitores da autora búlgara, além
de autores contemporâneos a este trabalho cuja produção intelectual indica a leitura de ambos,
dos quais citamos: Elisabeth Brait, Elisa Guimarães e Tiphaine Samoyault, entre outros.

Apesar de Bakhtin não se utilizar do termo intertextualidade, podemos perceber o


quanto os conceitos de diálogo e dialogismo presentes em sua obra, além dos termos
dialógicas intertextuais e intratextuais, esboçados em Estética da Criação Verbal (1997, p.332)
já orientam para esse fenômeno, visto a grande influência do autor na obra de Kristeva, que
trata o diálogo intertextual e a intertextualidade como sinônimos (1974, p.70).

A proposta de estudo que Bakhtin/Voloshinov desenvolve em Marxismo e Filosofia


da Linguagem foca, entretanto, na natureza da enunciação e na análise estilística, ainda com
forte ligação com a Linguística. É em Problemas da Poética de Dostoiévski que Bakhtin
desenvolve o conceito de dialogismo, mais inserido no escopo da crítica literária. Apesar de
analisar a obra de Dostoiévski, a fim de explicar a concepção da variedade dialógica do
romance, Bakhtin recorre aos diálogos socráticos de Platão:

O gênero se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do


pensamento humano sobre ela. O método dialógico de busca da verdade se opõe ao
monologismo oficial que se pretende dono de uma verdade acabada, opondo-se
igualmente à ingênua pretensão daqueles que pensam saber alguma coisa. A verdade
não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens,
que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica. (Op. cit., p. 94).

Desta forma, sob influência da ótica bakhtiniana, podemos afirmar que “toda evolução
dos gêneros literários é uma exteriorização inconsciente de estruturas linguísticas em seus
diferentes níveis”, e que o dialogismo se manifesta como formas de “intertextualidade e
interdiscursividade implícita” (KRISTEVA, 1974, p. 64), isto é, há um diálogo ao mesmo
tempo interno e externo à obra, e por isso a sua importância nos estudos da intertextualidade.
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Para os estudos da intertextualidade faz-se necessário primeiramente uma reflexão


sobre a noção de texto a fim de compreender seus mecanismos de geração de sentido. O
estudo do texto dentro da perspectiva bakhtiniana se aproxima de outras ciências, como a
Física, relativizando esse texto como objeto, dentro de seu contexto de produção e de leitura.
Kristeva (1974, p. 63) explica que o estudo da poética (que para a autora compreende não só a
poesia, mas todas as formas de mimese) se insere nas ciências humanas quando aborda a
prática real do pensamento através do cruzamento da linguagem como prática de consciência
e quando a significação se articula por um encontro de diferenças através do texto.

Kristeva define o texto como um objeto de três dimensões: o sujeito da escritura, o


destinatário e os textos anteriores (1974, p. 63). Sendo assim, ao mesmo tempo em que a
palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário, ela
também está orientada para o corpus literário anterior ou sincrônico.

Roland Barthes explica que apesar da origem da palavra texto vir do latim textum,
significando tecido, a trama dos fios que o formam se assemelha muito mais a uma teia de
aranha, em que o sujeito pode se enrolar qual uma aranha presa em sua própria construção
(BARTHES, 1987, p. 82). O tecido do texto, portanto, é formado por mais do que linhas
horizontais e verticais que se cruzam, mas por outros eixos que o trespassam em outros
sentidos.

“Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e


transformação de uma multiplicidade de outros textos”, diz Kristeva (1974, p. 64), que vê a
intertextualidade como uma maneira de a história passar por nós, assim como, para a autora, o
texto, não é um sistema fechado de significado referente a ele mesmo. Ao invés disso, seu
significado se deposita na dependência a outros textos.

Para compreender o significado de um texto deve-se considerar seu contexto social e


histórico, isto é, outros textos constitutivos do sistema intertextual de que ele faz parte. Neste
sentido, Kristeva (1974) afirma que a análise intertextual é uma maneira de inserir a diacronia
ou a história numa estrutura de significado antes aparentemente estática, sincrônica,
independente de estrutura de significado. Kristeva usa o termo em francês “le seuil” (o limiar)
para indicar o “ponto comum” em que os conceitos maiores se convertem, vinculando-o ao
termo cronotropo, desenvolvido por Bakhtin, o tempo e espaço vinculados em que toda a
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criação literária toma forma. Sendo assim, a intertextualidade não se limita às referências que
um texto possa conter: ela se expande ao sistema ao qual o texto pertence e ao momento da
criação estética.

Considerando o texto como um objeto de significação e de comunicação que causa um


percurso gerador de sentido (BARROS, 2005, p.11-13), pode-se ampliar as possibilidades de
suporte desse conceito – além da escrita, outras artes como a fotografia, a pintura e as artes
compostas que utilizam mais de um tipo de código, como o cinema e as histórias em
quadrinhos, também são abarcadas, no que Kristeva chama de língua visível:

La photographie nous montre une réalité antérieure, et même si elle donne une
impression d’idealité, elle n’est jamais sentie comme purement illusoire : elle est le
document d’une « realité dont nous sommes à l’abri ».
Au contraire, le cinéma appelle la projection du sujet dans ce qu'il voit, et se présente
non pas comme l'évocation d'une réalité passée, mais comme une fiction que le sujet
est en train de vivre. On a pu voir la raison de cette impression de réalité imaginaire
que provoque le cinéma, dans la possibilité de représenter le mouvement, le temps le
récit, etc. (KRISTEVA, 1981, p.311)*.

O filme, portanto, assim como na narrativa literária, possui um narrador, que pode se
apresentar por forma explícita, falando ao mesmo tempo em que as imagens são mostradas,
ou através da câmera. A noção de tempo também é necessária dentro do filme, assim como
numa obra literária, visto que dois livros com o mesmo volume de páginas ou dois filmes com
o mesmo tempo de duração podem representar apenas um dia na vida de uma personagem ou
toda uma vida.

Segundo Kristeva, além de recriar uma realidade, o cinema também se aproxima do


texto por possuir uma sintaxe:

Le cinéma ne copie pas de façon « objective », naturaliste ou continue une réalité qui
lui est proposée : il découpe des séquences, isole des plans, et les recombine par un
nouveau montage. Le cinéma ne reproduit pas des choses : il les manipule, les

*
A fotografia nos mostra uma realidade pré-existente, e mesmo dando uma impressão de idealidade, ela nunca é
sentida como puramente ilusória: é o documento de uma “realidade da qual estamos seguros”. Por outro lado, o
filme recorre à projeção do sujeito naquilo em que ele vê, e isso é representado não é como a evocação de uma
realidade passada, mas como uma ficção que o sujeito está vivendo. Pode-se perceber a razão desta impressão de
realidade imaginária que o cinema provoca, na possibilidade de representar o movimento, o tempo da narrativa,
etc.
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organise, les structure. Et c'est seulement dans la nouvelle structure obtenue par le
montage des éléments que ceux-ci prennent un sens. (KRISTEVA, 1981, p.312)*.

Kristeva afirma que devemos admitir o cinema como linguagem e não apenas o
considerar como uma, além de sê-lo também uma língua. A autora estabelece uma relação
entre o cinema e as histórias em quadrinhos, pela imitação da organização sequencial das
imagens estáticas para introduzir o tempo e o movimento na narrativa: a imagem isolada é um
enunciado, mas disposta em sequência de outra, forma uma narrativa, e o texto escrito e o
falado servem para seu suporte. A autora ressalta que o termo “linguagem” não deve ser
empregado apenas em seu senso linguístico, mas de modo analógico, pois o cinema é um
sistema de diferenças que transmitem uma mensagem (1981, p. 313).

A discussão entre língua e linguagem é vasta, porém, como afirma Christian Metz, o
termo linguagem cinematográfica já apresenta certa comodidade por já ter se imposto no
vocabulário especializado da teoria e da estética do cinema, enquanto “língua
cinematográfica”, não parece aceitável no atual estado das pesquisas (1977, p. 112). Metz
também afirma que o cinema não é uma língua por não ter um sistema de signos destinados
totalmente à intercomunicação, isto é, o filme é mais preso a um estatuto de arte por consistir
num objeto de arte, sendo muito mais um meio de expressão do que de comunicação (op. cit.,
p. 93). A interlocução entre cineasta e espectador não é imediata, apesar da polemização de
sua mensagem.

A mensagem do cinema, como a de qualquer outra forma de linguagem, contém um


discurso, como afirma Bakhtin:

Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma


peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a
participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos
os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente
isoladas nem totalmente separadas dele. (BAKHTIN, 2006, p. 17).

Sendo assim, a intertextualidade se torna importante para o cinema pela produção de


sentido que as imagens e discursos contidos nos filmes propiciam. Se, como afirma Kristeva,
cada imagem representa um enunciado, o filme consiste num objeto material de uma
sequência desses diversos enunciados, e sendo assim podemos integrar diferentes suportes

*
O filme não copia de forma “objetiva”, naturalista ou contínua uma realidade que se propõe: ele corta as
seqüências, isola os planos e os recombina com uma nova montagem. O filme não reproduz as coisas: ele as
manipula, organiza e as estrutura, e é somente na nova estrutura obtida pela montagem dos elementos que eles
produzem sentido.
22

discursivos dentro da análise da intertextualidade e, obviamente, da interdiscursividade. No


cinema, por exemplo, diferentes níveis de leitura que podem ser identificados pelas reações
dos espectadores, tema abordado por Marcel Martin, que também discorre sobre a produção
de sentido de um filme, afirmando que:

[...] a maior parte dos filmes de qualidade são legíveis [sic] vários níveis, segundo o
grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador. O mérito de tais
filmes é sugerir, para além da dependência imediata do dramatismo de uma ação, por
mais profunda e humanamente apaixonante que ela seja, sentimentos ou ideias em
geral. Na gênese desta significação, em segundo lugar, o símbolo desempenha um
papel importante. A utilização do símbolo no cinema consiste em recorrer a uma
imagem capaz de sugerir ao espectador mais qualquer coisa [sic] do que a simples
percepção do conteúdo aparente lhe poderia dar. A propósito da imagem fílmica
poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo aparente e de um conteúdo latente (ou
ainda de um conteúdo explícito e de um conteúdo implícito), sendo o primeiro
diretamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o
realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela
(MARTIN, 2005, p. 117).

Notamos, portanto, que as diferentes leituras que se pode fazer da narrativa fílmica
dependem muito do hábito que sua platéia ocasional tem de assistir a filmes com enredos mais
elaborados. Martin considera, portanto, a existência de um nível de leitura do espectador e se
faz necessário, portanto, uma alteridade entre autor e leitor através da obra, fundamental no
ato de enunciação, da qual o filme se torna um instrumento de sua materialidade. Estas duas
características do filme também o definem como um texto, pois, como afirma Marcuschi
(2008, p. 83), o texto é um “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de
enunciação”. José Luiz Fiorin também fornece uma definição de texto ligada ao ato da
enunciação e da materialidade:

O enunciado é uma posição assumida por um enunciador, é um sentido. O texto é a


manifestação do enunciado, é uma realidade imediata, dotada de materialidade, que
advém do fato de ser um conjunto de signos. O enunciado é da ordem do sentido; o
texto, do domínio da manifestação. (FIORIN, 2006, p.52).

Essa materialidade do texto reforça os mecanismos da enunciação, sobretudo a


intencionalidade da manifestação verbal. O texto, portanto, também é detentor de um
objetivo, além de um contexto, tornando-se “um processo que se perfaz numa totalidade
integrada por uma unidade temática, um formato e uma significação. Tal totalidade é
alcançada mediante a relação entre seus constituintes e seu contexto de produção”. (VAN
DIJK, 1980, p. 18).
23

A necessidade de um contexto de produção auxilia a compreensão do conceito de


textualidade, a fim de distingui-lo claramente com a intertextualidade. Enquanto a
textualização é o processo pelo qual é elaborado um texto, a textualidade é a cadência de
idéias dentro desse texto, isto é, o produto da textualização. Segundo Maria Helena Mira
Mateus, a textualidade é formada por um conjunto de propriedades que uma manifestação da
linguagem humana deve possuir para ser um texto. Dessas propriedades que trazem a noção
de textualidade, e logo, o sentido do texto, segundo Mateus, temos a conectividade, a
intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e por último, que nos
será mais importante, a intertextualidade (MATEUS, 1983, p. 185-216). Podemos notar que
existe uma relação de interdependência dessas prerrogativas textuais, principalmente pelo fato
de que todas pressupõem um leitor e um contexto de produção. A conectividade do texto o
torna ceito ou não, dependendo do seu teor de informação ou da possibilidade de polemização
de sua leitura, transformando-o num objeto gerador de sentido. Esse processo se dá
internamente, através dos elementos de coesão e coerência, e externamente, através de seu
contexto situacional e da intertextualidade.

Elisa Guimarães retoma a intertextualidade como “o processo de incorporação de um


texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”
(GUIMARÃES, 2009, p. 134, grifo da autora), que “designa não uma soma confusa e
misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos,
operado por um texto centralizado, que detém o comando do sentido” (Op. Cit., p.163). A
autora explica que a citação pode ser concebida “como simples ilustração – o próprio tema
ilustração referenciando a possibilidade de uma função puramente auxiliar ou de apoio da
citação” (Op. Cit., p. 137). Guimarães também ressalta a exigência de certo nível de cultura
para que o leitor compreenda a alusão e da manutenção da configuração temática no processo
de estilização, além de demonstrar que a citação e a alusão também se manifestam no
processo de interdiscursividade (Op. cit., p. 139).

Fiorin discute a interdiscursividade como “o processo em que se incorporam percursos


temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro” (FIORIN, 2003, p.
32). Já Guimarães a identifica
24

[... ] como interação com um dado discurso, uma memória discursiva, que constitui
um contexto global que envolve e condiciona a atividade linguística.[...] Torna-se
impossível a apreensão do discurso sem a percepção das relações dialógicas, ou seja,
sem história (GUIMARAES, 2009, p. 134).

Desse modo, tanto intertextualidade e interdiscursividade são ligadas à história,


porém, enquanto na intertextualidade o texto em si é o gatilho, na interdiscursividade a
ideologia é o que liga um texto a outro; o texto e consequentemente a intertextualidade
privilegiam a materialidade da língua, da mesma forma que o discurso e a interdiscursividade
visam sua natureza social e, portanto, ideológica.

Mais importante do que sistematizar uma classificação para as formas de


intertextualidade e interdiscursividade é compreender os diferentes efeitos de sentido que cada
uma dessas manifestações produz.

A produção de sentido de um texto, seja ele literário ou de outra concepção estética,


formado por outros textos, na concepção bakhtiniana, vai além do sentido de citação, alusão
ou estilização, passando a considerar as orientações que a obra segue e sua repercussão.
Podemos, com isso, considerar a Literatura como um extenso diálogo entre obras, em que
cada uma manifesta suas influências anteriores utilizando diferentes modulações de voz, onde
“o narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo
com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, com o seu encantamento ou o seu desprezo”
(Bakhtin 2006, p.154).

Bakhtin/Voloshinov (2006) sugere uma análise desse discurso internalizado:

O estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma investigação mais profunda


das formas usadas na citação do discurso, uma vez que essas formas refletem
tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa
recepção, afinal, que é fundamental também para o diálogo. (Op. cit., p. 149)

A preocupação bakhtiniana com o discurso orientado para e pelo outro traz à luz a
noção de diálogo e suas ramificações:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se


da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o
objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não
pode deixar de participar de uma interação viva e tensa com ele. Apenas o Adão
25

mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não
desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua
orientação dialógica do discurso para o objeto. Para o discurso humano, concreto e
histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode
dela se afastar (BAKHTIN, 1998, p. 88).

O discurso, portanto, nasce do diálogo, questão que Bakhtin ressalta e que tanto a
linguística quanto a filosofia da linguagem haviam desconsiderado até então. O conceito de
diálogo para Bakhtin/Voloshinov (2006), porém, é mais amplo do que a simples comunicação
entre dois indivíduos:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é
verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a
palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo
que seja. O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de
diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a
fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações
impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da
comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos
posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em
função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio
autor como as de outros autores: ele decorre, portanto, da situação particular de um
problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é
de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele
responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais,
procura apoio, etc (Op. Cit., p.125, grifo nosso).

O diálogo interno não é necessariamente evidenciado como resultado das intervenções


anteriores das quais fala Bakhtin, dentre elas as diferentes vozes formadoras do discurso do
falante, que age como o sujeito sociológico, na concepção de Stuart Hall, que tem um “núcleo
ou essência anterior que é o seu ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo
contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”
(2003, p. 11). Sendo assim, não há necessidade de que as influências autorais sejam reveladas
ou estejam presentes no texto sob as formas de paráfrase, citação ou alusão: elas podem se
revelar em diferentes estruturas temáticas e ideológicas, até mesmo revelando um zeitgeist ao
qual o autor pertença, “pois nosso próprio pensamento - nos âmbitos da filosofia, das ciências,
das artes – nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode
deixar de se refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento” (BAKHTIN, 1997,
p. 318).
26

Essas expressões verbais do pensamento dão origem, consequentemente, a outros


produtos estéticos, dando origem a um dialogismo externo com outros textos. Outra forma de
dialogismo externo se dá pela polemização da obra, visada por todo artista que quer ter sua
obra discutida, visto que, segundo Bakhtin:

[...] a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre
duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o
qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida
e “respondida” por outras vozes e de outras posições (1981, p. 73).

O autor dialoga, portanto, não somente com suas vozes internas, mas também
pressupõe um leitor que dê sentido a sua obra:

A relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico. [...]


A compreensão estreita do dialogismo concebido como discussão, polêmica, paródia.
Estas são formas externas, visíveis, embora rudimentares, do dialogismo. (BAKHTIN,
1997, p. 351)

A formulação desse conceito bakhtiniano serviu como base para que Kristeva criasse o
conceito de intertextualidade, a fim de solucionar a problemática das limitações do dialogismo
ao expandir a noção de texto aos interlocutores, considerando o sujeito autoral não só como
um ser biológico, mas um conjunto de formações discursivas, afirmando que

O texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou


negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus
literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no
texto. [...] Sendo o interlocutor do texto, o sujeito também é um texto [...].”.
(KRISTEVA, 1974, p. 98-99)

Essa visão da formação criativa como um outro texto, influenciada pelo pensamento
alheio anterior e posterior, serve-nos para o propósito da análise do objeto de estudo, não
somente pelo viés da intertextualidade e da interdiscursividade dentro da gênese textual, mas
também pelos efeitos que a leitura da obra produz através do diálogo externo que se manifesta
posteriormente à obra, quando essa é compreendida e polemizada pelos sujeitos-leitores, que
consistem em outro texto, expandindo, portanto, o conceito de intertextualidade à relação
entre obra e leitor. Tendo em vista que a noção de intertextualidade é posterior à de
dialogismo e se trata de um produto dos estudos de Kristeva sobre a obra de Bakhtin, pode-se
concluir que a intertextualidade incorpora em si os mecanismos do dialogismo, como pode ser
comprovado nos artigos “Le mot, le dialogue, le roman”, onde Kristeva explica, a partir dos
27

livros Problemas da poética de dostoiévski, de 1963, e A obra de François Rabelais, de


1965, de Bakhtin, o quanto a lógica da linguagem se diferencia da lógica científica
tradicional, visto que a “palavra literária’ não é um ponto (um sentido fixo) mas um
cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do
destinatário, ou da personagem), do contexto cultural atual ou do anterior.” (KRISTEVA,
1974, p. 62, grifos da autora).

Kristeva sistematiza este cruzamento das superfícies textuais em três dimensões


(sujeito-destinatário-contexto) como um conjunto de elementos sêmicos em diálogo, ou como
um conjunto de elementos ambivalentes:

O termo “ambivalência” implica a inserção da história (da sociedade), no texto, e do


texto na história; para o escritor, são uma única e mesma coisa. Falando de
“duas vias que unem na narrativa”, Bakhtine tem em vista a escritura do corpus
literário anterior, o texto como absorção de, e réplica a um outro texto [...]. Visto desta
maneira, o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística. Bakhtin postula a
necessidade de uma ciência, que denomina de translinguística e que, partindo do
dialogismo da linguagem, lograria compreender as relações intertextuais [...].
(KRISTEVA, 1974, p. 67, grifos da autora.)

Ao afirmar que o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística, Kristeva abre
a possibilidade de utilização de sua teoria para as diversas áreas da linguagem, razão pela qual
seu conceito de intertextualidade é utilizado pelas diversas correntes teóricas vigentes.
Kristeva ressalta que Bakhtin denomina diálogo e ambivalência como os dois eixos que
definem o estatuto da palavra, termo que diversas vezes Kristeva trata como sinônimo de
texto, visto que a noção de texto como o depositório de todas as virtudes e potencialidades da
língua, antes atribuído à palavra e posteriormente à frase, é recente em termos
epistemológicos em relação ao contexto de elaboração do conceito de intertextualidade.

Para compreender a diferença entre o dialogismo, a ambivalência e a intertextualidade,


vale ressaltar, como afirma Kristeva, que o dialogismo implica o duplo num sistema de
oposições e é melhor ilustrado na estrutura da linguagem carnavalesca e no romance
polifônico, enquanto a ambivalência pode ser aplicada tanto ao espaço dialógico quanto ao
espaço monológico, manifestando-se quando o autor se serve da palavra de outro, para nela
inserir um novo sentido, conservando sempre o sentido que a palavra já possui, podendo
consistir em imitação, onde o sentido não é relativizado, em paródia, onde esse é utilizado
com uma significação oposta, e em polêmica interior oculta, caracterizado pela influência
28

modificadora da palavra de outrem sobre a palavra do autor, representada pela palavra do


narrador. Pela necessidade dessa estrutura de voz exterior, autor e narrador, Kristeva
restringe, porém o uso de palavras ambivalentes para o romance, enquanto a intertextualidade
se configura em uma ruptura que não é unicamente literária, mas também social, política e
filosófica (1974, p. 70-72).

Kristeva utiliza o termo filosófico thétique, isto é, o que supõe a existência da


consciência ou do que se afirma como ela, dando um caráter existencial à produção de
sentido, mediante as limitações da percepção e da experiência, que são concebidas como
ações lógicas e não são encontradas na teoria sintático-semântica formal, mas inseridas numa
mesma teoria por seu nível transcendental, tética (nomeação) ou de síntese e dedução, o que
leva a interpretação, em termos de “relações semânticas” ou “estruturas conceituais”, a
depender de um sujeito em processo (1974b, p. 31-43).

Além da instauração da identificação do sujeito, Kristeva tinha uma preocupação de


que a os estudos da intertextualidade passassem a ser uma simples crítica das fontes, dando
preferência ao termo transposição:

Le terme d’inter-textualité désigne cette transposition d’un (ou de plusieurs)


système(s) de signes en un autre; mais puisque ce terme a été souvent entendu dans le
sens banal de « critique des sources » d’un texte, nous lui préférerons celui de
transposition, qui a l’avantage de préciser que le passage d’un système signifiant à un
autre exige une nouvelle artieulation du thétique - de la positionnalité énonciative et
dénotative * (KRISTEVA, 1974b, p. 59, grifo da autora).

Segundo Laurent Jenny, apesar de Kristeva dar preferência ao termo transposição a


fim de evitar apenas a crítica às fontes:

Herdamos então o termo ‘banalizado’, e que nos cabe tornar tão pleno quanto
possível. [...] A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de
influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado
por um texto centralizador, que detém o comando de sentido (1979, p. 15).

Para Jenny, a ameaça maior à definição da intertextualidade está na noção de texto e


seu trabalho é enfraquecido quando se busca apenas identificar simples alusões e

*
O termo “intertextualidade” designa essa transposição de um (ou vários) sistema(s) de signos noutro, mas
como este termo foi frequentemente tomado na acepção banal de “crítica das fontes” dum texto, nós preferimos-
lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem dum a outro sistema significativo
exige uma nova articulação do tético – da posicionalidade enunciativa e denotativa. (Tradução de Laurent Jenny,
1979, p. 15)
29

reminiscências, sem se verificar os efeitos de sentido, o que justifica a preferência ao termo


intertextualidade, mesmo contrariando sua criadora.

Já o termo transposição [intersemiótica] é utilizado por autores como Claus Clüver e


Leo H. Hoek. Clüver afirma não haver um termo para intertextualidade entreartes nem da
relação de produção palavra-imagem (1997, p. 46), dentre elas a ekphrasis, ao lidar com a
problemática da tradução:

Representações verbais de esculturas, pinturas, tapeçarias, trabalhos gráficos e


fotografias, reais e imaginárias, são encontrados em muitas narrativas em prosa, e a
imagem narrada de uma obra de arte existente pode muito bem ser considerada uma
transposição (2006, p. 119).

Clüver também se utiliza do termo referência ao estabelecer relações entre textos


verbais e imagens (2006, p. 134-148), assim como Hoek ressalta o quanto inúmeros tipos de
textos, literários ou argumentativos, inspiram-se em fontes artísticas e têm um referencial
pictural (2006, p. 167). Esta referência, segundo o autor, também pode causar o efeito de mise
en abyme , isto é, uma narrativa dentro da outra, fenômeno que também aponta para a
metalinguagem.

O estudo da transposição na visão de Clüver e Hoek, entretanto, aponta para uma


supremacia do texto ou da imagem, analisando o que foi modificado na passagem de uma
forma de arte para outra, enquanto Gérard Genette se preocupa com os efeitos que a
intertextualidade produz no leitor. O autor a considera um dos cinco tipos de
transtextualidade, ou transcendência textual do texto, definido como “tudo que o coloca em
relação, manifesta ou secreta com outros textos” (2006, p.7), e comenta suas virtudes:

Este estado implícito (e às vezes totalmente hipotético) do intertexto é, há alguns anos,


o campo de estudos privilegiados de Michel Riffaterre, que definiu, em princípio, a
intertextualidade de maneira muito mais ampla do que eu fiz aqui e aparentemente
extensiva a tudo isso que chamo de transtextualidade: “O intertexto”, escreve ele, por
exemplo, “é a percepção pelo leitor de relações entre uma obra e outras, que a
precederam ou as sucederam”, chegando até a identificar, em sua abordagem, a
intertextualidade (como fiz com a transtextualidade) à própria literariedade: “A
intertextualidade é (...) o mecanismo próprio da leitura literária. De fato, ela produz a
significância por si mesma, enquanto que a leitura linear, comum aos textos literários
e não-literários, só produz o sentido”. (loc. cit.)
30

Genette, entretanto, categoriza a citação como um outro tipo de transtextualidade,


diferenciada do intertexto:

O segundo tipo é constituído pela relação, geralmente menos explícita e mais distante,
que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém
com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos,
prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim
de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais
acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por
vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos
vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como
desejaria e pretende. Não quero aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir,
deste campo de relações que teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é
certamente um dos espaços privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da
sua ação sobre o leitor [...] (Ibid., p. 9)

Dominique Maingueneau também diferencia o intertexto da intertextualidade: para ele,


entende-se por intertexto de uma formação discursiva “o conjunto dos fragmentos que ela
efetivamente cita e, por intertextualidade, o tipo de citação que esta formação discursiva
define como legítima através de sua própria prática.” (MAINGUENEAU, 1997, p. 86).

Para Fiorin (1994, p.29), “o conceito de intertextualidade concerne ao processo


desconstrução, reprodução ou transformação do sentido”. O autor traça uma classificação de
intertextualidade em três processos: a citação, a alusão e a estilização (FIORIN, 1994, p. 30).
O primeiro processo, a citação, transmite o intertexto de forma explícita para o leitor. Ela
pode se manifestar mencionando a fonte, sob a forma de paráfrase, por exemplo, ou se
materializando, como num quadro ou numa estátua. Já na alusão utiliza-se a mesma estrutura,
porém se substituem alguns elementos, podendo polemizar ou não os temas em comum. A
estilização, por fim, reproduz um conjunto de procedimentos, considerando o estilo como o
conjunto das recorrências tanto no plano da expressão e no plano do conteúdo, “à maneira
de”. (FIORIN, 1994, p. 31). Podemos notar nessa sistematização uma gradação do intertexto
de menos para mais alterado.

Segundo Beth Brait, o termo intertextualidade pode ser utilizado no estudo das
relações dialógicas, porém “não dá conta, sozinho, das complexas relações que incluem,
necessariamente, os discursos sociais, culturais, estéticos motivados pelo diálogo estabelecido
entre textos e pelos posicionamentos assumidos, valores colocados em confronto, em tensão,
31

tanto da perspectiva da produção como da recepção” (2012, p.129). A autora elenca a


problematização do discurso no discurso ou da enunciação na enunciação:

É o que explicita participação ativa do leitor (ouvinte, espectador) no processo. David


Lodge menciona essa dimensão em vários momentos, iniciando pela expressão “faz
lembrar”. A interação entre o leitor e o texto, e não apenas as formas encontradas pelo
autor para sinalizar o diálogo entre textos, é que possibilita a percepção das faces da
intertextualidade, que promove a interdiscursividade, ou seja, a convocação de
discursos, possibilitando que o processo se apresente como discurso sobre discurso e
não apenas como texto a partir de texto. De alguma maneira, há conhecimentos
prévios, conscientes ou não, que permitem atualizar um possível diálogo, cabendo aos
profissionais do texto descrever as relações aí estabelecidas, os discursos que as
constroem, os consequentes e diversificados efeitos de sentido possíveis (loc. cit.,
grifos da autora).

Podemos notar, portanto, que para um estudo do dialogismo, do discurso sobre o


discurso ou da enunciação sobre a enunciação, faz-se necessário um estudo do contexto de
recepção, além da tradicional análise do contexto de produção, que muitas vezes se confunde
com a biografia do autor. Este tipo de análise, porém, descarta a ambiguidade entre ficção e
vida, visto que um narrador não necessariamente exprime os pensamentos de um autor, assim
como a grande maioria das obras não se limita à biografia e mesmo as biografias possuem um
nível de subjetividade que pode “ficcionalizar” os fatos narrados. Ainda assim, os estudos
biográficos sobre romancistas, por exemplo, tentam caracterizá-los como “leitores de”, como
se a obra posterior fosse apenas uma sombra da lida pelo autor que pode ter lhe dado
inspiração para a criação. Um exemplo clássico, é a comparação de Dom Casmurro, de
Machado de Assis, com Otelo, O Mouro de Veneza, de William Shakespeare. É evidente que
Machado de Assis conhecia a peça, que é citada diretamente no capítulo CXXXV: Otelo, em
que Bento vai assisti-la. Centenas de estudos já foram realizados visando as relações
intertextuais entre livro e peça, explorando detalhes mais específicos, como o nome da
personagem ser uma junção de santo e Iago, como uma breve pesquisa sobre bibliografia
acadêmica pode comprovar. Faz-se necessário, porém, atentar à capacidade do texto de
provocar referências não explícitas, proporcionada pelas várias camadas narrativas
intercaladas, a fim de não tratar a obra como apenas uma atualização de um tema ou uma
simples releitura. Não visamos aqui retirar o mérito de tais estudos, porém a quantidade de
estudos sobre o tema revela não só sobre as obras, mas também sobre seus leitores e o
funcionamento do sistema de referências que acionam sua memória.

A memória opera, como elucida Kristeva (1974b), não só num sistema de linguístico,
mas também psicológico, seja na concepção freudiana, quanto na abordagem junguiana dos
32

arquétipos, ou até mesmo dentro de um sistema biológico de aquisição da linguagem em que


o sistema de referências aciona as experiências particulares de cada sujeito.

O aspecto de memória, como já citado por Beth Brait, é explorado por David Lodge
(1993, p. 98-103), que afirma que dentre as maneiras que um texto pode se referir a outro
estão a paródia, o pastiche, o eco, a alusão, a citação direta e o paralelismo estrutural, e que os
autores [de ficção] podem estar cientes ou não de que estes mecanismos estão presentes em
suas obras, podendo inconscientemente utilizar arquétipos míticos ou fábulas, por exemplo.

Lodge também emprega o termo referência que, por sinal, é utilizado amplamente fora
do ambiente acadêmico e exprime fortemente o conceito de intertextualidade em contextos de
esclarecimento para leigos ou para iniciantes em seu estudo. O autor não diferencia a
referência como sendo uma forma sutil ou explícita, mas um processo de recordação do leitor,
que pode se manifestar através de ecos, alusões, provadas ou não em confronto com o autor,
visto que pode ser resultado de uma reprodução inconsciente, ou ainda um efeito subliminar
dessa alusão literária em leitores que leram a obra anterior e a esqueceram ou a conhecem
apenas por citação seletiva.

David Lodge afirma ainda que a intertextualidade não consiste necessariamente em


um adendo decorativo ao texto, mas pode se tornar um fator crucial em sua concepção e
composição. Lodge elenca um outro fator ligado à intertextualidade, o qual ele capitaliza
como “Oportunidade Perdida”, quando no curso de leitura, encontram-se ecos, antecipações e
analogias do próprio trabalho autoral muito tempo depois que o último é concluído, tarde
demais para se aproveitar a descoberta. Com essa afirmação, Lodge mais uma vez infere o
quanto o processo de intertextualidade pode se manifestar de modo inconsciente. Da mesma
forma que Kristeva afirma que a intertextualidade é uma manifestação da tradição, e a
tradição por sua vez é o exercício da memória de um nicho cultural, podemos observar que,
tanto para o autor quanto para o leitor, os mecanismos da memória tampouco funcionam de
forma consciente em sua totalidade.

Ainda sobre intertextualidade e memória, Tiphaine Samoyault propõe a análise da


noção da intertextualidade como uma verdadeira reflexão sobre a memória da literatura,
considerando-a o resultado técnico e objetivo do trabalho constate, sutil e, às vezes, aleatório,
das memória da escritura. (2008, p. 10-68) (2008, p.10).
33

Pensar a intertextualidade como memória permite reconhecer que os liames que se


elaboram entre os textos não são atribuíveis a uma explicação ou um inventário
positivista: mas isto não impede que se fique sensível à complexidade das interações
existentes entre os textos, do ponto de vista da produção tanto quanto da recepção. A
memória da literatura atua em três níveis que não se recobrem jamais inteiramente: a
memória trazida pelo texto, memória do autor e a memória do leitor. (op. cit., p. 143)

Tendo em vista essa atuação, e considerando que neste trabalho a análise intertextual
tomará um caminho inverso de uma crítica tradicional de classificação dos intertextos,
identificaremos os textos literários dentro de um objeto de outra mídia e não o contrário.
Seguiremos Clüver e Lodge e consideraremos como referência as diversas manifestações de
intertexto, afim de, como propõem Kristeva e Samoyault, atermo-nos à intertextualidade
como um exercício de acionamento de outros textos por seus leitores e não à sua
classificação.
34

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Mais estranho que a ficção possui duas tramas maiores, principais e mais extensas, e
duas menores e secundárias, todas convergentes para o clímax do filme. A primeira,
inicialmente, conta a vida da personagem principal, através de uma narradora com sotaque
britânico (00h00min54s):

This is a story about a man named Harold Crick, and his wristwatch. Harold Crick was
a man of infinite numbers endless calculations and remarkably few words. And his
wristwatch said even less. Every weekday, for 12 years Harold would brush each of
his 32 teeth 76 times. Thirty-eight times back and forth. Thirty-eight times up and
down. Every weekday, for 12 years Harold would tie his tie in a single Windsor knot
instead of the double thereby saving up to 43 seconds. His wristwatch thought the
single Windsor made his neck look fat but said nothing. Every weekday, for 12 years
Harold would run at a rate of nearly 57 steps per block for six blocks barely catching
the 8:17 Kronecker bus. His wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind
rushing over its face.*

Com a simultaneidade nessa cena entre narrador e imagem, há um tom irônico nas
tomadas que deveriam demonstrar a visão de Harold sobre o mundo, com o destaque na
primeira cena em que a câmera, como se tornasse forma de um narrador em primeira pessoa,
ao invés de focar o espelho como se fossem os olhos de Harold, parece localizada em sua
boca (00min 01s). Tanta importância dada a uma rotineira escovação de dentes contém três
funções: a primeira, de rebaixamento de um herói, cujos atributos não estão ligados a uma
força externa, cuja jornada não consiste em uma ida a uma terra distante, mas uma jornada
interna.

Ocorre, portanto, um esvaziamento do protagonista, de forma que, no primeiro contato


com o leitor, apenas essa casca seja revelada e a narrativa, como diz Bakhtin, arrancar seus
véus, revelando novas facetas e preenchendo-o com novas características, seguindo a função
transformadora da jornada do herói (1997, p. 27). A jornada de Harold se inicia quando ele
perde controle de sua própria vida, representada por mais uma mudança de planos, desta vez

*
Esta é a história de um homem chamado Harold Crick, e seu relógio de pulso. Harold Crick
era um homem de infinitos números, intermináveis cálculos e notavelmente pouquíssimas
palavras, e seu relógio falava menos ainda. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold
escovava cada um dos trinta e dois dentes setenta e seis vezes: trinta e oito vezes para frente e
para trás, trinta e oito vezes para cima e para baixo. Todos os dias de semana, por 12 anos,
Harold amarrava sua gravata num nó Windsor simples, ao invés do duplo, economizando,
assim, 43 segundos. Seu relógio achava que o nó Windsor simples engordava seu pescoço, mas
não falava nada. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold corria uma marcha de cinquenta
passos por quadra, por seis quadras, para custosamente pegar o ônibus das oito e dezessete para
Kronecker. Seu relógio se deliciava com o vento fresco batendo contra o mostrador (tradução
nossa).
35

dos infográficos e dados que demonstravam este controle. Quando Harold atravessa a rua, não
mais contando os passos, há uma materialização destes gráficos e eles caem: “é a vida
deslocada do seu curso habitual” (Bakhtin, 1997, p. 126).

A segunda função da ênfase da escovação se dá por ser esse o momento em que a voz
de Eiffel se revelará a Harold. Essa mudança na posição da narradora causa uma reação em
cadeia que, como veremos, atingirá todas as personagens e afetará toda a realidade, tendo seu
ápice no enfrentamento de Harold com Eiffel.

Há ainda uma terceira função: ao ser descrita minuciosamente, a representatividade da


ficção é exacerbada. Visto que o filme é um produto estético de consumo e tem seu tempo de
duração dentro de uma média de todos os outros, enquanto uma obra literária pode variar seu
número de páginas a gosto de seu autor, assim como seu tempo de leitura também varia de
acordo com seu leitor, a narradora poderia ter resumido os momentos iniciais da manhã de
Harold, mas optou por um recurso bem mais literário do que cinematográfico.

Um espectador desatento pode ignorar a presença de mais uma personagem, o relógio


de pulso, personificado por ter uma opinião sobre o laço da gravata e por ter uma sensação
quando Harold corria para pegar o ônibus. Nesta última frase dita pela narradora, “His
wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind rushing over its face”, é gerada uma
ambiguidade da natureza do relógio e de sua consciência de ser, visto que a palavra face
também pode ser traduzida como rosto.

A narradora continua (00h02min15s):

And every weekday, for 12 years Harold would review 7134 tax files as a senior agent
for the Internal Revenue Service. […] Only taking a 45.7-minute lunch break and a
4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Only taking a 45. 7-minute
lunch break and a 4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Beyond
that, Harold lived a life of solitude. He would walk home alone. He would eat alone.
And at precisely 11:13 every night Harold would go to bed alone placing his
wristwatch to rest on the nightstand beside him. That was, of course, before
Wednesday. On Wednesday, Harold's wristwatch changed everything. **

**
Além disso, Harold vivia uma vida de solidão: ele caminhava para casa sozinho, ele comia
sozinho. E precisamente às onze e treze, todas as noites, Harold ia dormir sozinho, deixando
seu relógio para descansar sobre o criado-mudo junto à cama. Isso foi, é claro, antes de quarta-
feira. Na quarta-feira, o relógio de Harold mudou tudo.
36

Mais uma vez o relógio é descrito como portador de sensações e vontades, pois
precisava descansar e causaria mudanças. Ele poderia ser equivocadamente considerado
apenas como parte do cenário ou da constituição de Harold, pois numa primeira leitura do
filme podem ser ignoradas as opiniões do relógio, que achava que o nó que Harold fazia na
gravata engordava seu pescoço, mas não falava nada (1min 40s); que amava o vento fresco
batendo contra seu mostrador (2min 03s) e que, como diz a narradora, mudou tudo na quarta-
feira (3min 35s). É uma lasca de metal do relógio que impede a morte de Harold, obstruindo
uma artéria, impedindo a hemorragia (1h 40min 24s). Caso não estivesse na estória desde seu
início, o salvamento do herói poderia ser confundido com um recurso de deus ex machina,
mas essa é a estória de Harold e seu relógio de pulso, como expõe a narradora na primeira
frase do filme. Também é possível neste momento especular a onisciência da narradora, visto
que ela demonstra saber o que acontecerá adiante, na quarta-feira.

O conceito de narrador onisciente é trabalhado por Gérard Genette em Figures III.


Quando narradores ativam uma focalização onisciente é possível retomar fatos do passado
(analepse), antecipar acontecimentos (prolepse), resumir eventos menos relevantes (sumário)
ou suprimir fatos irrelevantes (elipse) (Genette, 1972, p. 82).

A principal função da analepse (a qual poderíamos chamar de flashback) é recuperar


eventos cujo conhecimento se torne necessário para se conferir coerência interna à história,
através de um movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao
presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores a seu início.

Já a prolepse, que poderíamos identificar na fala da narradora de Mais estranho que a


ficção nestes momentos iniciais do filme, corresponde a todo movimento de antecipação, pelo
discurso, de eventos cuja ocorrência na história é posterior ao presente da ação, a fim de criar
tensões. A prolepse não deve ser confundida com profecia ou com premonição, visto que ela é
feita por um narrador que não interage com o protagonista, diferente do que veremos no
decorrer da estória.

No estudo do narrador, Genette também se utiliza de termos do léxico


cinematográfico, tais como foco (tão difundido que hoje o termo foco narrativo se tornou
constante nos estudos literários), duração, frequência, modo e, o que nos será mais importante
neste momento, a diegese. Assim como no cronotropo de Bakhtin, que considera tempo e
37

espaço inseparáveis (1998, p. 211), entende-se por diegese o universo espaço-temporal no


qual se desenrola a estória (Genette, 1972, p.48). Esse conceito deu origem à terminologia
proposta por Genette sobre a voz do narrador, definindo-se pela instância de enunciação do
discurso determinada: o narrador pode ser autodiegético, heterodiegético ou homodiegético
(op. cit., p. 252-253).

O narrador autodiegético é o narrador-personagem que é o próprio protagonista da


história. Geralmente ele se expressa em primeira pessoa e utiliza-se de prolepses, visto que,
como já viveu os fatos contados, possui um grau de onisciência. Temos como exemplo o
narrador Sérgio em O Ateneu, de Raul Pompéia, já homem maduro que relata o impacto do
colégio em sua vida.

Já o narrador homodiegético viveu a estória como personagem e dessa experiência


tirará as informações de que carece para construir seu relato. Ele observa e testemunha os
acontecimentos de uma forma mais secundária na trama. Diferencia-se do narrador
autodiegético por não participar da história como protagonista, participando na posição de
simples testemunha ou como personagem secundária solidária com a personagem central.
Temos como exemplo de narrador homodiegético o capitão Robert Walton, em Frankenstein,
de Mary Shelley, que narra a estória através de cartas para sua irmã. Este tipo de narrador é
recorrente na literatura fantástica, visto que a incompletude do conhecimento dos fatos gera
uma dúvida que traz o questionamento da realidade.

Por sua vez, o narrador heterodiegético, o mais comum na Literatura, não é co-
referencial com nenhuma das personagens da diegese e não participa, por conseguinte, na
história narrada, apenas narra os acontecimentos. Também consiste na maioria das vezes num
narrador onisciente e observador. O narrador relata uma história à qual é estranho uma vez
que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão,
estabelecendo uma relação de alteridade e tentando adotar uma atitude demiúrgica em relação
a história que conta. Ele manipula o tempo do discurso de forma desenvolta, utilizando de
analepses, prolepses ou sumários, exprime-se normalmente na 3ª pessoa, o que não impede,
contudo de utilizar a 1ª pessoa, e por se situar muitas vezes num nível narrativo
extradiegético, isto é, não participar da história que conta, estando fora dos acontecimentos, e
pelo anonimato que quase sempre o atinge, favorece uma situação propícia para a confusão do
narrador com o autor. Ele pode ser apreendido principalmente nas obras realistas, naturalistas
38

e neo-realistas e projeta em suas obras códigos ideológicos e temas que se articulam com
esses códigos, como pode ser conferido nos romances de Eça de Queirós, Flaubert, Tolstoi e
grande parte dos narradores do século 19.

Tendo em vista essa terminologia, poderíamos (ou podemos, até este momento)
classificar a narração inicial do filme como heterodiegética, e consequentemente
extradiegética. Porém, na interação entre a narradora e o protagonista, essas categorias dão-se
por terra, por não terem previsto a desconstrução do mundo ficcional através da
metalinguagem e do fantástico, visto que a metalinguagem é muito mais explorada como uma
manifestação da crítica literária (BARTHES, 2007, p. 27) ou como uma reflexão sobre a
língua (CAMPOS, 2006, p. 17-29), e o fantástico, por outro lado, tem como característica
enriquecedora sua variedade temática.

Genette, entretanto, define como narrativa intercalada aquela onde vários atos
narrativos são intercalados entre eventos (1972, 229). O autor considera este o mais difícil e
complexo modo de narrar, dada a necessidade de emaranhar as estórias, e é possível notarmos
isso em Mais estranho que a ficção nos momentos em que, aparentemente sem nenhuma
relação com a trama principal, são mostrados um garoto ganhando uma bicicleta e uma
mulher procurando emprego (00h03min44s). Essas duas personagens, anônimas e não
narradas, conduzirão as duas tramas menores, quase imperceptíveis numa primeira leitura do
filme. A alternância dessas tramas é o princípio da montagem alternada paralela, onde, como
explica Marcel Martin (2005), “duas (e por vezes várias) ações são conduzidas pela
intercalação de fragmentos, pertencendo alternadamente a cada uma delas, com o objetivo de
fazer surgir um significado da sua confrontação” (MARTIN, 2005, p. 200).

Harold aparece logo em seguida, escovando seus dentes. A narradora continua: “Se
alguém perguntasse, Harold teria dito que esta quarta-feira em particular era exatamente igual
às quartas-feiras anteriores. E ele a começou do mesmo jeito.” (00h04min03s). Neste
momento Harold para de escovar os dentes, percebendo estar ouvindo uma voz. Primeiro ele
acha que o som vem de sua escova de dentes. Há um momento de silêncio. Ao retornar à
escovação, a narradora também continua descrevendo suas ações, e Harold grita perguntando
se que há alguém em seu apartamento. Sem resposta, ele decide continuar escovando e
ouvindo a narração: “Enquanto os outros fantasiavam sobre o dia que teriam ou tentavam se
39

lembrar das cenas finais do último sonho, Harold apenas contava as escovadas”. Harold fica
mais assustado, já que alguém sabe seus pensamentos.

A narradora continua descrevendo as ações de Harold, que perturbado pela voz, não
consegue desempenhar as ações do cotidiano, do simples ato de se vestir até a conversa com
colegas de trabalho, assim como em todas as vezes em que ele interrompia algo, a voz
também cessava a narração.

Nessa cena, onde há a apresentação do elemento insólito mais evidente do filme (e


segunda manifestação, se considerarmos o relógio coma personagem), existe um contraste
entre a função da narração no cinema e a do silêncio. Enquanto

[...] a voz fora de campo abre ao cinema o rico domínio da psicologia em


profundidade, tornando possível a exteriorização dos pensamentos mais íntimos
(monólogo interior); o silêncio encontra-se promovido como valor positivo, e sabe-se
muito bem a função dramática considerável que pode desempenhar como símbolo da
morte, de ausência, de perigo, de angústia ou de solidão. O silêncio, muito melhor do
que uma música atordoadora, pode sublinhar com força a tensão dramática de um
determinado momento (MARTIN, 2005, p. 144, grifos do autor).

Harold conversa com um colega de trabalho, que não escuta a voz. Complacente com
sua situação, seu amigo sugere que Harold vá auditar uma padaria, achando que seria um
trabalho mais tranquilo. Harold, porém, é hostilizado pela dona da padaria, Ana Pascal, e
vaiado por sua clientela, sendo que um desses clientes chega a apontar uma faca em sua
direção. Após um diálogo com Ana sobre sua sonegação de impostos, Harold é mais uma vez
assombrado pela narradora:

(00h11min56s) It was difficult for Harold to imagine Ms. Pascal as a revolutionary.


Her thin arms hoisting protest signs. Her long shapely legs dashing from tear gas.
Harold wasn't prone to fantasies and so he tried his best to remain professional. But, of
course, failed. He couldn't help but imagine Ms. Pascal stroking the side of his face
with the soft blade of her finger. He couldn't help but imagine her immersed in a tub
shaving her legs. And he couldn't help but imagine her naked, stretched across his bed.
*

*
Era difícil para Harold imaginar a Srta. Pascal como revolucionária. Seus braços finos
brandindo cartazes de protesto, suas formosas longas pernas fugindo do gás lacrimogêneo.
Harold não era dado a fantasias e fez um grande esforço para manter o profissionalismo. Mas,
obviamente, falhou. Ele não conseguia evitar imaginar Srta. Pascal acariciando seu rosto com a
parte lateral do dedo. Não conseguia evitar imaginá-la submersa em uma banheira depilando as
pernas. E não conseguia evitar imaginá-la nua estirada em sua cama (tradução nossa).
40

Nesse momento, a natureza da narração e o livre arbítrio de Harold são colocados em


cheque, pela dúvida se o texto narrado verbaliza os pensamentos do protagonista, ou se a
narração é o que o faz agir. Ele contesta a narração:

(13min19s) [Narradora:] - Harold suddenly found himself beleaguered and


exasperated - outside the bakery…
[Harold: ] - Shut up!
[Narradora:] - … cursing the heavens in futility.
[Harold: ]- No, I'm not, I'm cursing you, you stupid voice! So shut up and leave me
alone! **

Ele se contradiz, porém, pois grita para o alto, como disse a narradora, não
necessariamente para os céus. O primeiro conflito dentro da narrativa para o protagonista é
estabelecido: Quem narra? Enquanto isso, para o espectador há um novo questionamento: O
que é real? Entretanto, mesmo que resolvido o conflito de que Harold é uma invenção de
Eiffel, ou vice-versa, ambos são construtos: tudo dentro da obra é ficção ou, no máximo,
representações.

**
[Narradora:] – Harold, de repente, viu-se sitiado e exasperado, fora da padaria...
[Harold]: - Cale a boca!
[Narradora:] - ... amaldiçoando os céus futilmente.
[Harold]: - Não, eu não estou, eu estou amaldiçoando você, sua voz estúpida! Então cale a boca
e me deixe em paz!
41

3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo

Essas representações, no viés da mimesis, não têm a obrigação de necessariamente


refletir o real, como elucida Aristóteles:

[...] É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que
poderia ter acontecido, segundo, verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta não
se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso
[...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter
acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história,
porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular. O universal é o
que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil
ou o necessário. (ARISTÓTELES, 2004, p. 43)

Aristóteles também considera possível o poeta não apenas criar, mas também relatar
fatos históricos e fábulas, porém ao imitar a ação em seu conjunto, o poeta, diferentemente do
historiador, desperta terror e compaixão. Evidentemente, para Aristóteles o conceito de poeta
não é restrito ao autor de poesias, mas a todo autor de ficção, e é definido pela sua missão:
“[...] consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela
imitação, e porque imita as ações” (Idem, p. 45). Esse conceito em muito também se aproxima
da função do narrador:

Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples
narrativa ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a
própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a
imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias
(ARISTÓTELES, 2004, p.28).

Tendo em vista as formulações de Aristóteles (nota-se que Aristóteles já esboçava uma


categorização dos narradores que se aproxima daquela feita por Gennete), pode-se entender
personagens e narradores como representações estéticas: as personagens mimetizam pessoas,
enquanto os narradores projetam consciências que pairam seus olhares sobre elas. Mesmo as
personagens que representam figuras históricas possuem na imitação alterações que as tornam
sujeitos ficcionalizados, seja pela idealização exagerada, seja pela sátira, visto que o discurso
e a enunciação são subjetivos e, portanto, ideologicamente moldados. Ainda a fotografia,
que deveria retratar a realidade com precisão, possui traços de subjetividade pelas escolhas
feitas pelo fotógrafo, como explana Roland Barthes em A câmara clara (1984).
42

Barthes também questiona a representação do real, neste caso dentro da Literatura, em


Aula:

O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por


palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável — mas somente
demonstrável — pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o
impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos
topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem
unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a
literatura não quer, nunca quer render-se. [...] a literatura é categoricamente realista, na medida
em que ela sempre tem o real por objeto de desejo; [...] ela é também obstinadamente:
irrealista; ela acredita sensato o desejo do impossível (BARTHES, 2007, p. 21).

Massaud Moisés utiliza representações como uma das definições da personagem de


romance. Para ele, “personagens são ‘pessoas’ que vivem dramas e situações, à imagem e
semelhança do ser humano, ‘representações’, ‘ilusões’, ‘sugestões’, ‘ficções’, ‘máscaras’, de
onde ‘personagens’ (do lat. persona, máscara)” (Moisés, 2001, p. 226, grifo do autor).
Moisés, entretanto, restringe ao romance a necessidade de haver uma personagem humana,
diferente das fábulas e mitos, onde as personagens são representações de atitudes: mesmo um
objeto inanimado, se não tiver sido antropomorfizado, reflete um olhar humano sobre ele.

A referência que Moisés faz às máscaras como formas de representação remontam à


origem das narrativas verbais que, sobretudo no mundo ocidental, tomaram sua forma no
teatro grego e nos poemas épicos, oriundas dos textos de tradição oral transmitidos através
dos tempos. Apesar de esses dois gêneros não tomarem a forma da prosa narrativa, visto que
um se materializa através da dramatização enquanto o segundo apresenta-se em versos, ambos
apresentam em comum os elementos predominantes do romance, isto é: enredo, personagens,
tempo e espaço, enquanto o narrador se encontra subentendido e distante dos acontecimentos,
isto é, apenas os relata. Também sobre a questão dos gêneros, em A teoria do Romance,
George Lukács afirma que

Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções
configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração.
O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada
de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que
ainda assim tem por intenção a totalidade. (LUKÁCS, 2000, p. 55).

Também Tzvetan Todorov afirma que “um novo gênero é sempre a transformação de
um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação”
(TODOROV, 1980, p. 46). Também sobre os gêneros, Bakhtin/Voloshinov ressalta que “cada
43

época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-
ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de
discurso social, corresponde um grupo de temas” (2006, p. 42). Sendo assim, podemos
afirmar que a narrativa moderna é o resultado da transformação da epopéia, tendo como tema
principal nesta forma de criação estética o herói que ainda busca sua identidade.

Em seu estudo sobre a questão da identidade, Stuart Hall considera o homem como
detentor de uma identidade formada a partir do Iluminismo. Antes disso, segundo Hall,
acreditava-se que as tradições e estruturas eram “divinamente estabelecidas [...]. O status, a
classificação e a posição de uma pessoa na grande ‘cadeia do ser’ – a ordem secular e divina
das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo
soberano” (HALL, 2003, p. 25).

Considerando as grandes obras ocidentais anteriores ao Iluminismo, percebemos que o


homem na ficção de fato é representado como um realizador das vontades divinas, desde os
mitos e os textos clássicos provindos da tradição oral. Essas narrativas clássicas, mitológicas
ou religiosas, se dividiam, principalmente: nos mitos cosmogônicos, isto é, aqueles que
relatavam a origem de seres e elementos da natureza, como, por exemplo, as Metamorfoses de
Ovídio; nas grandes jornadas, dentre as quais podemos destacar a Odisséia e a Ilíada de
Homero, estendendo-se às obras do medievo também provindas desse mesmo tipo tradição,
como as novenas da cavalaria, ou àquelas concebidas diretamente no texto escrito, como na
Divina Comédia, de Dante Alighieri, além de outras manifestações deste gênero épico, como
em Os Lusíadas, de Camões. Desta forma, as epopéias consistem nas jornadas de povos, seja
em busca da terra prometida, das grandes guerras, do momento da formação de um país ou
nação ou do retorno ao lar ou da busca pelo pai pelo herói.

A transformação da epopéia para o romance passou a depender não só da visão do


homem sobre si, mas também do modo de construção do discurso. Para Bakhtin, o ponto
principal para a formação do gênero narrativo se deu pelo desenvolvimento do uso do
discurso indireto livre, presente, como exemplificado pelo autor, nas fábulas e contos de La
Fontaine (Bakhtin , 2006, p. 157). Também a afirma Bakhtin que
44

Na maior parte dos casos, porém, e especialmente naquela área em que o discurso
indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço – a área da nova ficção em
prosa – a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível. Além disso, o
próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção, pelos grandes
gêneros literários em prosa, de um registro mudo, ou seja, para leitura silenciosa.
Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos
planos e a complexidade, intransmissível oralmente, das estruturas entoativas tão
características da literatura moderna (Bakhtin/Voloshinov, 2006, p. 197).

A consolidação dos gêneros literários em prosa, portanto, permitiu que um maior


número de destinatários, sob a forma de leitores e não somente de espectadores e ouvintes,
tivesse acesso às narrativas. A evolução do gênero permitiu também que a narrativa servisse
como instrumento de criação estética assumidamente ficcional, podendo, desta forma,
apresentar representações de novos mundos. Para Bakhtin,

A grande forma épica (a grande epopéia), que abrange também o romance, deve
proporcionar uma imagem de conjunto do mundo e da vida, deve refletir o mundo e a
vida por inteiro. O romance deve apresentar a imagem global do mundo e da vida pelo
ângulo de uma época considerada em sua integridade. Os acontecimentos
representados no romance devem, de um modo ou de outro, substituir toda a vida de
uma época. (Bakhtin, 1997, p. 264, grifos do autor)

Bakhtin ressalta, porém, que não era possível representar um “mundo inteiro” no
romance até o Renascimento porque nem mesmo o mundo real era conhecido em sua
totalidade, além do que o fantástico não visava outros mundos, mas completar aquele em que
se vivia (Idem, p. 265). Em Estética da criação verbal, o filósofo traça um panorama histórico
do romance, assim como em Problemas da poética de Dostoiévski. Nessa obra, Bakhtin
define o romance polifônico: é aquele marcado pela existência de “um herói cuja voz se
estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. (...)
É como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e
com as vozes plenivalentes de outros heróis.” (1981, p.5, grifos do autor).

Em Mais estranho que a ficção notamos que os mecanismos da polifonia não se


restringe ao mundo literário: temos o discurso do autor, pelas escolhas de filmagem, foco,
câmera, e película e trilha sonora, dentre outros recursos, e a voz da narradora, que se difere
da voz do autor quando se torna personagem, e a voz do protagonista, que enfrenta a
narradora.
45

A maneira mais comum de representar diálogos em filmes se dá pela alternância de


tomadas que vetorizam o olhar dos interlocutores, isto é, uma personagem fica situada à
esquerda da imagem e olha para a direta, enquanto a personagem do lado direito tem seu rosto
voltado para o lado esquerdo da imagem. Essa escolha de imagens, segundo Martin, reflete o
posicionamento das personagens na narrativa:

Quando não são diretamente justificados por uma situação ligada à ação, os ângulos de
filmagem excepcionais podem adquirir um significado psicológico particular. [...] O
plano picado (filmagem de cima para baixo) tem tendência para tornar o indivíduo
ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo, fazendo
dele um objecto levado por uma espécie de determinismo impossível de ultrapassar,
um brinquedo do destino (MARTIN, 2005, p. 51).

Quando Harold grita para cima, há uma resposta. A câmera se afasta dele em
movimento de ascensão, sem desfocá-lo. A próxima tomada dá continuidade a esse
movimento, com a câmera já em um ângulo alto, mostrando uma mulher na ponta de um
parapeito de um prédio, olhando para baixo, numa vetorização oposta à de Harold. Ela tem as
mãos estendidas e as move como se sentisse algo dentre os dedos ou como movesse algo. É
mostrada uma calçada sendo lavada por um homem, e a mulher anônima que procurava
emprego no começo do filme é molhada por ele por culpa do garoto que ganhou uma bicicleta
nos minutos iniciais.

A mulher no topo do prédio, interpretada por Emma Thompson, é mostrada


novamente, com uma trilha sonora que ressalta a tristeza em seu rosto. Ela apaga o cigarro,
guarda-o no bolso com um outro, e seu pé escapa do parapeito, não se sabe se
intencionalmente ou por acidente.

A imagem do prédio é sobreposta pela imagem de uma mão estendida, e as linhas das
paredes do edifício parecem se ligar às pontas de seus dedos, que se movem como se
manipulassem uma marionete, produzindo efeitos ao mesmo tempo de metáfora fílmica e de
estado onírico. O efeito de metáfora no filme é atingido pelo confronto entre as imagens
através da sobreposição, “que exprime [...] uma compenetração perceptiva, permitiu belos
efeitos psicológicos (expressão do sonho, de alucinação) e simbólicos” (Martin, 2005, p.233).

A mulher é interrompida por uma voz que pede licença, e as linhas agora são a
moldura da janela. Uma mulher negra aparece em frente a essas linhas, com o foco sendo
46

ajustado se como a voz despertasse a primeira mulher, que ao invés de estar no topo de um
prédio, está sobre uma mesa. A mulher negra, interpretada por Queen Latifah pergunta se a
mulher sobre a mesa se chama Eiffel. Com a confirmação, a recém chegada se apresenta
como Penny Escher, enviada pela editora como assistente. Karen protesta, dizendo que Penny
foi enviada por acharem que ela está com bloqueio criativo.

3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes

Karen fala sobre uma fotografia que viu em um livro chamada The Leaper (traduzido
como “A Suicida” na legenda do filme, mas com o sentido de “saltadora” numa tradução mais
literal):

“It's old, but it's beautiful. From above the corpse of a woman who'd just leapt to her
death. There's blood around her head, like a halo and her leg's buckled underneath,
her arm's snapped like a twig, but her face is so serene, so at peace. And I think it's
because when she died she could feel the wind against her face.” (16min 13s) *

Apesar de essa fotografia não estar presente no filme nem ter seu autor definido, há
uma forte relação dialógica com a famosa fotografia da modelo (fig. 1) capturada por Richard
Wiles para a revista Life em 12 de Maio de 1947 e republicada na coletânea organizada por
David E. Scherman, The Best of Life (1973), que posteriormente foi utilizada por Andy
Waröl em sua obra Suicide (Fallen Body). A altivez do rosto de Evelyn também é ressaltada
por Dillenberger em Religious Art of Andy Warhol, na análise do quadro de Waröl: “The
model is serene and whole in death, her body cradled on the indented top of a car, her face
tranquil, her body relaxed, her white gloved hand touching her pearls.” (DILLENBERGER,
2001, p. 67) *

*
“É antiga, mas é linda. De alto [se vê] o cadáver de uma mulher que tinha acabado
de pular para a morte. Há sangue em volta da cabeça, como uma auréola e sua perna
está dobrada para baixo, seu braço está quebrado como um galho, mas seu rosto está
tão tranquilo, tão em paz. E eu acho que é porque quando ela morreu, ela podia sentir
o vento contra o rosto* (tradução nossa).
*
“A modelo está serena e completa na morte, seu corpo embalado [como num berço] no teto retorcido de um carro, seu rosto
tranquilo, seu corpo relaxado, com a mão em luva branca tocando suas pérolas” (tradução nossa) .
47

Fig 1: corpo de Evelyn McHale, (Robert C. Wiles, 1947) Fig. 2: Suicide (Fallen Body), Andy Waröl

Além do efeito de alusão, a écfrase ou ekphrasis, isto é, a descrição de uma obra ou


objeto, desempenha uma forte função no discurso literário. Temos como exemplos a descrição
do escudo de Aquiles na Ilíada, as bandeiras em Os Lusíadas, e o texto de abertura de
Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, onde é descrito o quadro da crucificação,
que acontecerá no final do livro. Também na obra de Saramago existe a descrição de uma
igreja em Ensaio sobre a Cegueira em que todos os santos descritos estabelecem uma relação
de sentido com a narrativa. Essa interrelação entre literatura e artes plásticas reforça o
argumento de Claus Clüver de que a intertextualidade se manifesta além do texto escrito e os
textos literários servem como objetos propícios a estudos interartes:

Tão logo reconheçamos que poemas, pinturas ou sinfonias não sejam textos
autônomos ou auto-suficientes e que não sejam intrinsecamente ou essencialmente
românticos, impressionistas ou simbolistas; tão logo reconheçamos a importância do
“ler como” (reading as) e do papel do leitor no processo de estabelecer o status e o
sentido dos textos; tão logo nos apercebamos da importância das intertextualidades no
processo de leitura e tão logo readmitamos o poeta/artista/compositor/produtor de
textos aos contextos em que percebemos o texto – a partir de então incluiremos em
nossas investigações históricas a tarefa de reconstrução das preocupações e programas
estéticos, dos modos de representação, das convenções estilísticas estruturais
48

relevantes (ou supostamente relevantes) para o artista, seus modelos negativos ou


positivos; e poderemos propor as mesmas tarefas no domínio do público que recebia
as obras. (CLÜVER, 1997, p. 40-41).

Assim como Todorov desenvolve que as alusões possuem um outro sentido dentro do
fantástico, Clüver afirma que

Ekphraseis literárias não operam com tais restrições, mesmo sendo baseadas em obras
reais; a maioria delas tendem a atingir autonomia em relação ao texto-fonte, o qual
transformam de acordo com as necessidades do texto literário onde funcionam. (Ibid.,
p.42)

Fig. 3 e 4 : A “morte” de Harold

Nesse caso, além de inferir que a criação provém de uma fonte externa de inspiração, o
quadro causa uma convergência de discursos sobre a morte, tratada como uma casualidade
poética e libertadora, que se concretizará na autotextualidade de Karen na concepção da morte
de Harold. As citações do quadro da suicida, partindo do pressuposto de Fiorin que se pode
alterar ou confirmar o sentido do texto citado ou fazer uma citação por outra semiótica (2003,
p. 30-31), aparecem de forma verbal, como já citamos, e plástica, no atropelamento de Harold
(fig. 3 e 4): as pernas de Harold também se emborcam para baixo do corpo, assim como seu
braço parece um galho quebrado, além da tomada aérea que confere com a descrição do
quadro da suicida descrito por Karen.

Somada às imagens do começo do filme, que mostram uma motorista de ônibus


ganhando seu uniforme, um garoto ganhando uma bicicleta e das maçãs rolando quando
Karen sai para comprar cigarros (1:12:00), nota-se que no fantástico nada é mostrado por
acaso, há um pandeterminismo, onde “tudo, até o encontro das diversas séries causais (ou
“azar”), deve ter sua causa, no sentido pleno do termo, mesmo que esta não seja porém de
ordem sobrenatural” (TODOROV, 1981, p. 59).
49

Nesse momento, porém, mais importante do que identificar esses elementos de coesão
do filme, é perceber que além da incorporação da voz de outro na materialidade dessa cena e
da confrontação (no sentido de resposta) de um discurso anterior, há um conceito ideológico
que foi polemizado pelo filme: a função da morte não só sob uma perspectiva de sacrifício,
numa discursividade de um ideal romântico, mas também, como Bakhtin também defende
(1997a, p. 35), uma forma de acabamento do herói e da obra em que ele está inserido.

3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção

Após falar sobre uma fotografia, Karen diz que não sabe como matar Harold Crick.
Penny descreve suas aptidões profissionais e diz que irá ajudá-la nessa empreitada
(16min52s). O filme se volta novamente para Harold, que é convocado a falar com Dr. Cayly,
num tom estranhamente informal, no departamento de recursos humanos da empresa. A
narradora retorna, voltando o pensamento de Harold novamente para Pascal. As nuvens
pintadas na parede atrás de Harold começam a se mover, sugestionando um elemento onírico
ao espectador. Ao fechar os olhos, Harold é interrompido pelo médico, que lhe sugere tirar
férias.

Já na rua (20min 10s), o relógio de Harold começa a tocar e mostrar pontos de


exclamação em seu visor. Ana Pascal é vista passando pelo outro lado da rua como se a
câmera estivesse dentro do relógio, atrás de sua lente. É ressaltado, mais uma vez, um dos
elementos fantásticos presente no filme: a vontade própria do relógio e seus sentimentos
antropomorfizados. Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, numa análise
do conto A princesa Brambilla, de Hoffmann, faz uma análise sobre a presença das lentes no
universo do fantástico:

[...] significativamente, toda aparição de um elemento sobrenatural vai acompanhada


da introdução paralela de um elemento pertencente ao campo do olhar. Trata-se, em
particular, das lentes e do espelho que permitem penetrar no universo maravilhoso
(1981, p. 64).

A lente do mostrador do relógio faz, portanto, que o espectador veja o mundo pela
perspectiva do relógio, um objeto que não tem olhos tampouco tem qualquer função
relacionada à visão. Seus pensamentos continuam a ser descritos pela narradora:
50

Harold supôs que seu relógio estava simplesmente com defeito e nem sequer
considerou que ele poderia estar tentando lhe dizer algo. De fato, Harold nunca
prestara muita atenção nele, exceto para ver as horas, o que, na verdade, deixava o
relógio maluco.
E assim, neste particular começo de noite, enquanto Harold esperava o ônibus, seu
relógio, de repente, parou.

Harold pergunta as horas às outras pessoas que esperam o ônibus, e ajusta seu relógio
para as seis horas e dezoito minutos. Após isso, a narradora continua: “Thus Harold's watch
thrust him into the immitigable path of fate. Little did he know that this simple, seemingly
innocuous act would result in his imminent death.”* (21 min 00s).

Ao ouvir a última frase Harold se desespera, gritando para o alto e perguntando


quando e quão iminente. Ao chegar em casa, Harold começa a procurar a narradora pela casa,
e ele mesmo começa a narrar suas ações, depredando seu próprio apartamento:

Okay, where are you?


“Harold would brush his 32 teeth 72 times.”
Why won't you say anything? I heard you.
“That would result in his imminent death.”
I heard you! Come on, you stupid voice.
“Harold frantically grabbed his lamp. Harold, incensed, shook the hell out of it for no
apparent reason! And smashed it on the ground, kicking it repeatedly! Harold took his
Kleenex box, threw it across the room then stormed the closet!” Come on. Say
something. Something. Say something! Say something!
“Harold, distraught... God!....Harold, distraught...Harold”*

Ao narrar seus próprios atos, Harold usa palavras que não usaria no dia a dia,
revelando traços de polifonia presentes no filme, pelas diferentes vozes conflitantes. Há
também nessa cena um confronto com o espelho. Este objeto, muito caro ao cinema pela sua
utilização, é considerado uma temática à parte, como ressalta Martin:

*
“E assim o relógio de Harold o empurrou ao imitigável caminho do destino. Mal sabia ele que esse simples e
aparentemente inócuo ato resultaria na sua morte iminente” (tradução nossa).
*
[Harold:] - Ok, onde você está?
“Harold escovava os 32 dentes 72 vezes.”
Por que não fala nada? Eu ouvi você.
“Aquilo resultaria em sua morte iminente.”
Eu ouvi você! Ande, voz idiota!
“Harold freneticamente agarrou seu abajur. Harold, indignado, chacoalhou-o como o inferno,
sem razão aparente. E o esmagou no chão, chutando-o repetidamente! Ele pegou a caixa de
[lenços de papel] Kleenex, e jogou pelo quarto... e então invadiu o armário!”
Vamos. Diga alguma coisa. Algo. Diga alguma coisa! Diga alguma coisa!
“Harold, perturbado...” Deus!
“Harold, perturbado...Harold ...” (tradução nossa)
51

[...]o [tema] do espelho, janela aberta sobre um mundo misterioso e angustiante (ver o
espelho de “Der Student von Prag” - O Estudante de Praga, onde se vê o duplo do
protagonista, ou aquele que, num dos episódios de “Dead of Night” - A Dança da
Morte, restitui um passado que antigamente fazia parte das suas funções), ou então
testemunho impassível e cruel das tragédias humanas (ver aquele espelho onde se
multiplica o desespero de “Cidadão Kane” (2005, p. 82, observação do autor).

O espelho também é um objeto caro à Literatura Fantástica, colocado por Todorov


como tão importante quanto as lentes:

O mesmo acontece com o espelho (em francês, miroir), esse objeto cujo parentesco
com “maravilha” [etimologicamente se origina] por uma parte, e olhar (“olhar-se”) por
outra [...] A verdadeira riqueza, a verdadeira felicidade (e estas se encontram no
mundo do maravilhoso) só são acessíveis aos que conseguem se olhar no espelho [...]
A “razão”, que rechaça o maravilhoso e também renega ao espelho, sabe bem. A
“razão” se declara contra o espelho, que não oferece o mundo, a não ser uma imagem
do mundo, uma matéria desmaterializada em uma palavra, uma contradição frente à lei
de não-contradição. [...] Olhar através de lentes permite descobrir outro mundo e
falseia a visão normal; o transtorno é semelhante ao produzido pelo espelho. A visão
pura e simples nos descobre um mundo plano, sem mistérios. A visão indireta é a
única via para o maravilhoso. Mas esta superação da visão, esta transgressão do olhar,
não são por acaso seu símbolo mesmo e algo assim como seu maior elogio? As lentes
e o espelho se convertem na imagem de um olhar que já não é um simples meio de
unir o olho com um ponto do espaço, que já não é puramente funcional, transparente,
transitiva. Estes objetos são, em certa medida, olhar materializado ou opaco, uma
quintessência do olhar. Por outra parte, a palavra “visionário” contém a mesma
ambiguidade fecunda: é aquele que vê e não vê, e é de uma vez grau superior e
negação da visão. (1981, p. 64, grifos do autor)

Nesse sentido, Mais estranho que a ficção possui os tipos menos convencionais de
lentes: na cena inicial, em que Harold escova os dentes, a câmera é mostrada como se
estivesse dentro de sua boca. Ao entrar correndo em casa, procurando pela voz, Harold é
mostrado pelos furos de vazão do chuveiro. Após isso, Harold olha para o espelho,
procurando algo além de si mesmo. A câmera o mostra de frente, como se o espectador o
visse através do objeto, mas o olhar da personagem vagueia, ele se olha, mas não se vê.
Impossibilitado de trabalhar, Harold consulta uma analista, ainda não acreditando
totalmente estar louco, numa possibilidade de racionalização do elemento fantástico. Essa
dúvida, tanto para Harold quanto para o espectador, consiste, segundo Todorov, em uma forte
característica do fantástico, visto que, para o autor, este gênero ocupa o tempo desta incerteza
(TODOROV, 1981, p. 15). Harold recebe, então, seu diagnóstico:
52

(22 min 56 s): [Dra. Mittag-Leffler:] – I'm afraid what you're describing is
schizophrenia.
[Harold:] – No. No. It's not schizophrenia. It's just a voice in my head. I mean, the
voice isn't telling me to do anything. It's telling me what I've already done. Accurately
and with a better vocabulary.
- Mr. Crick, you have a voice speaking to you.
- No, not to me, about me. I'm somehow involved in some sort of story. Like I'm a
character in my own life. But the problem is that the voice comes and goes. Like there
are other parts of the story not being told to me and I need to find out what those other
parts are before it's too late.
- Before the story concludes with your death.
- Yes.
- Mr. Crick, I hate to sound like a broken record but that's schizophrenia.
- You don't sound like a broken record, but it's just not schizophrenia. What if what I
said was true? Hypothetically speaking, if I was part of a story, a narrative even if it
was only in my mind what would you suggest that I do?
- I would suggest you take prescribed medication.
- Other than that.
- I don't know. I suppose I would send you to see someone who knows about
literature.
- Okay. Yeah. That's a good idea. Thank you.*

A hesitação sobre a sanidade de Harold pelas personagens que o cercam, e também


pelo espectador, marcam mais um dos elementos do fantástico, que Todorov define o como
uma “percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 1981, p. 49). Além do
relógio, o acontecimento estranho mais marcante que marcará o primeiro conflito do filme
acontece quando Harold começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos: ocorre a
transformação da narradora, que já se pronunciava desde os primeiros segundos de filme e

*
[Dra. Mittag-Leffler:] – Temo que o você está descrevendo é esquizofrenia.
[Harold:] – Não, Não é esquizofrenia. É só uma voz na minha cabeça. Quer dizer, a
voz não está me dizendo para fazer nada, está me dizendo o que já fiz. Com precisão e
com um vocabulário melhor.
– Sr. Crick, você tem uma voz falando com você.
– Não, não comigo. Sobre mim. Estou de alguma forma envolvido em algum tipo de
estória. Como se eu fosse Uma personagem na minha própria vida. Mas o problema é
que a voz vem e vai. Mas há outras partes da estória não contadas a mim e preciso
saber o que essas outras partes são antes que seja tarde demais.
– Antes que a história conclua com a sua morte.
– Sim.
– Sr. Crick, detesto soar como um disco furado, mas isso é esquizofrenia.
– Você não soa como um disco furado, mas só não é esquizofrenia. E se o que eu disse
fosse verdade? Hipoteticamente falando, se eu fosse parte de uma estória, uma
narrativa mesmo que fosse só na minha mente, o que você sugeriria que eu fizesse?
– Sugeriria que tomasse medicação prescrita.
– Além disso.
– Não sei. Suponho que o enviaria para alguém que conhece literatura.
– Ok. Essa é uma boa ideia. Obrigado.
53

não causava estranhamento para o espectador, deixando de ser um elemento estético e se


tornando mais uma personagem.

Mesmo em face do estranho, Harold se preocupa em não perder o ônibus para o


trabalho, assim como pensa Gregor Samsa, em A Metamorfose, de Franz Kafka, que se
preocupa em ter perdido o trem para também ir trabalhar, ainda que transformado em barata.
A escolha de estereótipos de burocratas como personagens reflete uma preocupação em
apresentar aspectos reconhecíveis e até enfadonhos de suas rotinas. Estes traços de realidade
preparam o leitor para o surgimento do fantástico, que produzem na obra um efeito de
questionamento dessa existência, o que, porém, não é feito tão prontamente por seus
protagonistas, que tentam manter seus hábitos.

Visões estereotipadas também são exploradas nas características de Karen Eiffel


(Emma Thompson): magra, fumante, melancólica, introspectiva, podendo lembrar Virgínia
Woolf ou Clarice Lispector. Além disso, como ressaltam Ana Lucia Trevisan e Maria Luiza
Guarnieri Atik numa análise da narrativa onírica na obra de Rubens Figueiredo, “a presença
de personagens introspectivas provoca a desestabilização de um entendimento de mundo mais
imediato, tal aspecto conjuga-se às formulações de enredos permeados pelas inquietações,
pelas dúvidas e pelas manifestações da ambiguidade” (ATIK; TREVISAN, 2012).

Quando Karen revela que está em crise criativa por não conseguir terminar sua obra.
Um espectador mais atento entenderá que Karen é uma escritora e Harold é uma personagem
de seu livro. Consequentemente, essa elucidação gera mais dúvidas: trata-se de uma narrativa
paralela ou de um recurso de mise en abyme (ou nested narrative) isto é, uma história dentro
da outra? O aparecimento de Eiffel como personagem coloca em xeque a “existência” de
Harold: a materialidade de um traz o questionamento da materialidade do outro, assim como
da própria ficção, que reflete sobre si própria, criando uma metaficção.

Na hipótese da mise en abyme, temos o trabalho de Lucien Dällenbach sobre o


recurso. Dällenbach afirma que limitar a tipologia intertextual a pares paradigmáticos acaba
restringindo o campo de seu estudo, e propõe analisar os autotextos segundo sua abrangência.
Sendo assim, a mise en abyme funciona no nível da narrativa e no da reflexão, em que ele
intervém como elemento duma meta-significação, podendo ser considerado uma citação de
conteúdo ou um resumo intratextual (1979, p. 54).
54

A utilização da mise en abyme, segundo Dällenbach, implica em duas operações


distintas: “uma redução (ou estruturação por engaste) e uma elaboração do paradigma de
referência (ou estruturação por projeção no eixo sintagmático dum “equivalente” metafórico)”
(op. cit., p. 55), ou seja, se haver uma hierarquização das obras, como uma dentro da outra, ou
uma mais próxima do nível do real enquanto a outra mais ficcionalizada, o rompimento das
estruturas da estória se torna iminente. Essa idéia de destruição é tão forte que na teoria do
teatro utiliza-se a expressão quebrar a quarta parede quando, por exemplo, o ator fala com
seu público, o que não impede, porém, de que a personagem que sabe que está numa obra de
ficção seja vista como louca pelas outras dentro da obra, visto que a reposta, quando dada, não
é ouvida por todos.
55

4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO

Quando Harold aceita o conselho da psiquiatra e procura um professor de Literatura


(24min 45s), revela-se a necessidade de uma personagem junto ao herói que conheça o
funcionamento do sistema em que eles estão inseridos. Essa busca pelo mestre está presente
em diversos mitos, como relata Joseph Campbell em O Poder do Mito e em O Herói das Mil
Faces. Campbell (2008, p. 57-236) afirma que a jornada do herói apresenta três grandes fases:
a partida, a iniciação e o retorno.

Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da Jornada do Herói
se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que
fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele
está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 2007, p.74)

O mestre é o responsável, portanto, pela iniciação, que enviará o herói à segunda parte
desta jornada. Campbell compara a jornada do herói clássico a Luke Skywalker, protagonista
dos episódios 4 a 6 da saga fílmica Star Wars.

Em Star Wars - Episódio IV e em O Retorno de Jedi, filmes roteirizados por George


Lucas e dirigidos por Richard Marquand (1983), Luke tem como mestres Ben Kenobi (Alec
Guiness) e Yoda (voz de Frank Oz), respectivamente. Tanto Ben quanto Yoda não se
apresentam inicialmente como autoridades: enquanto o primeiro participa da criação de Luke
passando-se por seu tio, o segundo é encontrado em um pântano de um planeta inóspito e
também não se revela no primeiro contato. O mesmo acontece com Gandalf, em O Senhor dos
Anéis, novela de J. R. R. Tolkien: o poderoso mago se revela como um simples manipulador
de fogos de artifício, “[...] coberto de farrapos cinzentos [...] movimentando-se devagar. [...]
parecia um velho mendigo, caminhando fatigado, apoiando-se num cajado rude”
(TOLKIEN, 2001, p. 89), só revelando suas virtudes quando se fez realmente necessário.

O mestre, assim como o centauro Quirón, professor e tutor de muitos heróis no mito
grego, revela no primeiro impacto muito mais o grotesco do que o conhecimento que
compartilhará com o herói, muitas vezes para testá-lo, já que “alguns mestres decidem não
ensinar nada, com receio do mau uso que a sociedade fará do que eles descobriram”
(CAMPBELL, 1991, p. 154). Também no texto bíblico os mestres descritos representando
extrema humildade em contraste à sua importância, como por exemplo João Bastista, que
56

“[...] tinha as suas vestes de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e
alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre.” (Mateus 3:4), e mesmo Jesus Cristo, que
chega em Jerusalém montado em um jumentinho (Lucas 19:28-44), e após Sua ressurreição é
confundido com um jardineiro por Maria Madalena (João 20:15). Cabe ao discípulo, portanto,
conseguir identificar a grandiosidade do mestre sem se ater a sua aparência física.

4.1. A caverna do mestre

A primeira aparição do mestre no roteiro original de Mais estranho que a ficção,


escrito por Zach Helm (2006), não foi transposta para o filme. Nela, Harold faz sua primeira
visita ao campus da universidade. Enquanto procura pelo prédio do professor numa área
central e arborizada, há, nesse local, “um homem velho, de pé, segurando um surrado par de
óculos no meio do corpo, aparentemente usando-os para ler um livro aberto a seus pés.”
(HELM, 2006, p. 27, tradução nossa.)

Harold conversa com um aluno da universidade que lhe diz que o professor não está
no prédio, mas próximo da árvore segurando seus óculos. Notamos aqui uma tendência, tanto
no cinema quanto na literatura, de descrever o professor como um sujeito exótico, excêntrico.
Temos, como exemplo em obras literárias, em Dois Irmãos, de Milton Hatoum, “o mestre de
francês, ele mesmo um excêntrico, um dândi deslocado na província, recitador de simbolistas,
palhaço da sua própria excentricidade.” (Hatoum, 2006, p. 34.); em Os Desastres de Sofia,
conto de Clarice Lispector, a aparência do professor também causa inquietação:

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de
profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos
dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó
na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com
um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. [...] E bem devagar vi o professor
todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele
era o homem de minha vida. O novo e grande medo. (LISPECTOR, 1999, p. 11-19)

Também em Perto do Coração Selvagem, da mesma autora, a personagem principal se


apaixona pelo professor, porém não pelos seus atributos físicos: “Os cabelos dele ainda
negros, seu corpo enorme como de um animal maior que o homem.” (LISPECTOR, 1998, p.
56); mesmo em Aparição, de Vergílio Ferreira, em que o professor é o narrador do romance,
notamos o estranhamento que as demais personagens têm perante ele.
57

Em “A Personagem no Teatro”, ensaio presente em A Personagem de Ficção,


organizado por Antônio Candido, Decio de Almeida Prado explica que “entendidas como
individualidades, [as personagens] foram inteiramente substituídas, durante séculos, por
máscaras arquétipos cômicos tradicionais” (CANDIDO, 1968, p. 93). Assim como no teatro,
as personagens na literatura e no cinema também são representadas de forma reduzida: seria
impossível contar em sua totalidade a história de vida de alguém, seus anseios, suas vontades.
O que é mostrado, portanto, são as máscaras. Essa aparência cria um determinado efeito de
sentido quando entrar em contradição com a essência da personagem, e gera outro significado
quando a aparência e essência se conjugam.

Tanto na apresentação das personagens quanto no espaço em que elas são encontradas
percebemos a presença do grotesco, contrastando com suas virtudes. Bakhtin (1987, p. 268)
desenvolve as concepções sobre o grotesco, considerando as origens folclóricas e
ambivalentes deste conceito, não somente a carga do ridículo, da aberração, “do que vem das
grutas”, mas também da renovação. Isso se dá pelo processo de carnavalização, onde as
máscaras são um dos elementos essenciais:

[...] É preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do
espírito e das ideias. A sua [a da festa] sanção deve emanar não do mundo dos meios e
condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto
é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa. [...] Essa
visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de
imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através de formas de expressão
dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso, todas as formas e
símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da
renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder.
(BAKHTIN, 1987, p. 8-10.)

Dessa forma, considerando a ficção como detentora de um conjunto de regras próprias


onde o meio em que ela circula provém infinitas possibilidades de criação, seja na obra
literária, cinematográfica ou teatral, a personagem de ficção veste sua máscara para assumir
seu papel dentro da estória. A essência da personagem torna-se mutável, visto que ela será
revelada aos poucos, à medida que a máscara for retirada e essa personagem revelar mais uma
de suas faces: o mestre não se revela em primeira instância ou se passa por outro, como
acontece nas obras já citadas, além do mito de Minerva, que se disfarça de Mentor para
Telêmaco. No caso do professor humano, desprovido de toda esta divindade ou poder
sobrenatural dos mestres, mais do que ser apresentando, ele precisa ser reconhecido: para
58

haver uma relação harmoniosa, sua autoridade é exercida pelo conhecimento de mundo e pela
contribuição que ele dará ao seu interlocutor, caso contrário, isto é, se o professor tentar impor
sua autoridade por outros meios, como através da hierarquia, por exemplo, a relação
professor-aluno torna-se conflitante ou desastrosa, como para Lino, professor de música de
Hércules, que tendo repreendido seu discípulo com aspereza demais, despertou a ira do filho
de Zeus que o matou com uma pancada; ou o professor de matemática em Dois Irmãos, que
humilhando seu aluno Omar despertou-lhe um desejo de vingança que resultou em agressão
física (HATOUM, 2006, p. 33); ou a primeira professora de Joana em Perto do Coração
Selvagem, que não sabendo responder à pergunta da aluna foi constrangida perante toda a
turma (LISPECTOR, 1998, p. 30); ou o professor em Os Desastres de Sofia, que,
demonstrando impaciência, é desafiado.

Tanto em Mais estranho que a ficção quanto em Dois Irmãos e Perto do Coração
Selvagem, o reconhecimento da autoridade se dá pela busca do aluno pelo professor em seu
espaço. Nota-se que o tipo de interação muda à medida que as personagens são retiradas do
contexto da sala de aula, assim como os temas a serem debatidos, sem estarem presos a um
programa imposto pela instituição. Para Georg Lukács, “o cenário possui uma significação
autônoma, enquanto elemento destinado a completar o ambiente.” Ele possui um conteúdo
simbólico que revela traços das relações sociais e elementos dramáticos que revelam os
aspectos das personagens (LUKÁCS, 2000, p. 49). A sala de aula, neste sentido, chega quase
a um não-lugar, isto é, um local de passagem (AUGÉ, 1994, p. 36), enquanto o cenário que
realmente representa o professor aproxima-se do recluso, do isolamento, da gruta.

Na cena em que Harold e o professor estão no interior da universidade, na concepção


do roteiro, eles andam por um corredor escuro, até que chegam ao escritório:

“O escritório de Hilbert é a mesma coisa que a fotografia e combina com ele


perfeitamente: há livros por todos os lugares, exceto nas prateleiras, muitos quebra-
cabeças espalhados (quase todos resolvidos) e vários tapetes enrolados
inexplicavelmente encostados no canto. Uma cafeteira jaz no peritoril.” (HELM, 2006,
p. 29)

Dois cenários parecidos são descritos em Dois Irmãos, ambos habitados pelo professor
Laval, e que o narrador descreve como cavernas:
59

Pensava em Laval, nas conversas noturnas em sua caverna, como ele chamava o porão
onde morava sozinho. (...) Eu via a silhueta de Laval através do óculo redondo do
porão. A luz solar pouco aclarava a caverna, e uma lâmpada que pendia do teto
iluminava a cabeça do mestre. (HATOUM, 2006, p. 190)

O que se sabe é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem
do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e
emudecido, o rosto, cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação.
(Op. cit., p. 193)

Também em Perto do Coração Selvagem, Joana faz sua última visita a seu professor:

Sabia que o professor adoecera, que fora abandonado. [...] naquela mesma sala
estranha e sonsa onde agora a poeira vencera o brilho. Ela olhava ao redor e a meia
escuridão era úmida e ofegante. O professor parecia um grande gato castrado reinando
num porão. (LISPECTOR, 1998, P. 114)

A catábase, isso é, a descida ao mundo inferior a fim de obter a anagnorisis, isto é, o


conhecimento supremo, está presente desde os mitos de Hércules, Ulisses, Orfeu e Enéias,
(SANTOS, 2008), assim como no medievo, com a descida de Dante aos Infernos, e no
encontro de Luke Skywalker com Yoda em uma caverna num pântano em o Retorno de Jedi.
Esta mudança de planos serve, também para Bakhtin, como catalisador de um potencial para o
herói:

O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O


“alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio de absorção (o túmulo, o
ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno). Este é o
valor topográfico do alto e do baixo no seu aspecto cósmico [...] Quando se degrada,
amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e
melhor. [...] A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo
nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também
um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. [...] o
baixo é sempre o começo". (BAKHTIN, 1987, p. 19)

É no fundo da gruta, portanto, que o herói encontra o conhecimento, materializado na


figura do professor. Este espaço, como afirma Barthes, relaciona-se com outros elementos
narrativos, não apenas de maneira funcional, mas também semântica, ou seja, da ordem dos
sentidos gerados pelo espaço: “Os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se
para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera” (BARTHES, 1976, p. 34). A
presença dos inúmeros livros no escritório do professor Hilbert fornecem os índices não
apenas para o caráter do professor, mas também de sua formação discursiva. Michel Foucault
(1984, p.49) define como heterotopias espaços que conseguem sobrepor, num só espaço real,
60

vários sítios por si só incompatíveis, e utiliza como exemplo a biblioteca e o museu, espaços
cuja composição depende de objetos que representam outros tempos e espaços, podendo ir do
espaço íntimo até o espaço sideral.

Sendo assim, a presença dos livros na sala faz com que o leitor infira sua leitura pelo
professor. Além de outras narrativas, que representam outros tempos e espaços, os livros
também são depositários dos discursos que compõem a fala de Jules Hilbert. Como veremos,
dentre personagens do filme, o professor projeta o maior número de vozes ecoando em seu
discurso, ou seja, sua fala é a que mais tem propriedades dialógicas na obra e mais citações
intertextuais.

4.2. A Ironia dramática como forma de metalinguagem

A interação entre o professor e o novo aluno molda o discurso de Hilbert à medida que
novas situações e informações sobre o problema de Harold vão surgindo. O primeiro diálogo
entre Harold e o professor no filme acontece enquanto ambos sobem uma escada e em
seguida, entram em um banheiro (24min 41s):

[Prof. Jules Hilbert:] - So you're the gentleman who called me about the narrator.
[Harold:] - Yes.
- This narrator says you're gonna die.
- Yes.
- How long has it given you to live?
- I don't know.
- Dramatic irony. It'll fuck you every time. *

O primeiro traço de intertextualidade no discurso do professor se manifesta na análise


da característica de construção utilizada pela narradora da vida de Harold, revelando a
formação e especialidade em construções narrativas do mestre. Hilbert não explica o que é a
ironia dramática, apenas diz a Harold, sem eufemismos, o quanto ela irá prejudicá-lo. Esta

*
[Prof. Jules Hilbert:] – Então você é o jovem cavalheiro que me ligou sobre o
narrador.
[Harold:] – Sim.
– E esse narrador diz que você vai morrer.
– Sim.
– Quanto tempo lhe foi dado para viver?
– Não sei.
– Ironia dramática. Vai te ferrar sempre. (tradução nossa)
61

fala também revela a formação discursiva do roteirista do filme: o termo ironia dramática é
encontrado muito mais em guias para elaboração de roteiros para teatro, cinema e televisão,
do que em teoria literária, que por outro lado trata essa ferramenta muitas vezes como a sátira,
que na Literatura, por sua vez, possui um número considerável de vertentes, o que permite
considerá-la um gênero à parte. Neste ponto de vista, ela engloba muito outros aspectos
históricos e políticos do que o viés que privilegiamos neste estudo, e por isso a distinção entre
sátira e ironia dramática.

O cineasta Yves Lavandier, autor de um desses muitos guias de roteiro, intitulado


Writing Drama, define a ironia dramática como “a ferramenta de dar ao espectador um item
de informação de que pelo menos uma das personagens na narrativa não tem conhecimento
(pelo menos conscientemente), assim colocando o espectador um passo à frente de pelo
menos uma das personagens” (2005, p. 147, tradução nossa). Essa é utilizada desde o antigo
teatro grego clássico, sobretudo nas tragédias. O exemplo mais clássico está em Édipo Rei, de
Sófocles, em que a personagem principal demanda uma investigação de um crime que ele
mesmo teria cometido.

Assim como em Mais Estranho que Ficção, em Édipo Rei também há uma
personagem que sabe do destino do protagonista, porém não o revela: quando é chamado para
testemunhar, o cego Tirésias se lamenta: “Como é terrível a sapiência, quando quem sabe não
consegue aproveitá-la!” (SÓFOCLES, 2002, p. 34.) Ele inicialmente se recusa a dizer o que
sabe, porém não deixa de lançar uma maldição em tom profético antes de sair de cena:

Sentir-te-ás um dia tão aniquilado como jamais homem algum foi neste mundo! [...] o
homem que vens procurando entre ameaças e discursos incessantes sobre o crime
contra o rei Laio, esse homem, Édipo, está aqui em Tebas e se faz passar por
estrangeiro, mas todos verão bem cedo que ele nasceu aqui e essa revelação não há de
lhe proporcionar prazer algum; ele, que agora vê demais, ficará cego; ele, que agora é
rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos em terras de exílio, tateando o chão à sua
frente com um bordão. Dentro de pouco tempo saberão que ele ao mesmo tempo é
irmão e pai dos muitos filhos com quem vive, filho e consorte da mulher de quem
nasceu; e que ele fecundou a esposa do próprio pai depois de havê-lo assassinado! Vai
e reflete sobre isso em teu palácio e se me convenceres de que agora minto, então terás
direito de dizer bem alto que não há sapiência em minhas profecias! (Ibid., p. 40-41.)

O coro do teatro grego dá voz ao autor, função que o narrador desempenha no


romance, e às vezes, no cinema, porém essa função também é dada a uma personagem
profética que aparece em vários clássicos do teatro e da Literatura. Romeu e Julieta, de
62

William Shakespeare (1564–1616), também se inicia com um coro que revela o destino dos
amantes:

Chorus.Two households, both alike in dignity, In fair Verona, where we lay our scene.
From ancient grudge break to new mutiny, where civil blood makes civil hands
unclean. From forth the fatal loins of these two foes a pair of star-cross'd lovers take
their life; whose misadventur'd piteous overthrows doth with their death bury their
parents' strife. The fearful passage of their death-mark'd love, And the continuance of
their parents' rage, which, but their children's end, naught could remove, is now the
two hours' traffic of our stage; the which if you with patient ears attend, what here
shall miss, our toil shall strive to mend. (SHAKESPEARE, 1993, p. 2)*

Além do coro revelando o final, a peça tem seu personagem profético: antes de sua
morte, Mercúcio, amigo de Romeu: “Que uma praga caia sobre suas casas”
(SHAKESPEARE, 1993, p.68, tradução nossa). Também é possível identificar a ironia
dramática em contraste com outra figura profética, presente na Literatura Portuguesa: o velho
do Restelo, no Canto IV de Os Lusíadas¸ de Luís Vaz de Camões, representa o pessimismo e
sua voz destoa do narrador:

A que novos desastres determinas


De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
(LUS, IV, 97) (CAMÕES, 2003, 188.)

Não se deve correr o risco, portanto, de considerar toda profecia uma ironia dramática.
A ironia pode ser considerada no fato de que a personagem que representa o conservadorismo
português se encontra justamente no Restelo, local de onde partem os barcos para a Índia,
além do contraste de uma única voz em poucos versos dentro de um grandioso poema que
exalta o povo português. A fala do velho, articulada em forma de perguntas, configura muito
mais uma crítica à expansão marítima do que uma ironia dramática, visto que e as mortes das

*
Coro. Duas casas, iguais em dignidade, na formosa Verona, onde preparamos nossa cena.
Antigos ressentimentos explodem em novo motim, onde o sangue civil torna mãos civis
imundas. Diante dos corpos fatais desses dois inimigos, um par de cruzadas estrelas amantes
toma suas vidas; cuja desafortunada queda porventura com sua comovente morte enterra a luta
de seus pais. A temerosa passagem de seu amor marcado com a morte, e a continuidade do
ódio de seus pais que nada poderia extinguir além do fim de seus filhos, é agora a
movimentação de duas horas em nosso palco, o qual, se vocês com orelhas pacientes
assistirem, o que aqui se perder, nosso trabalho deve se esforçar para consertar (tradução
nossa).
63

quais ele fala não acontecem no poema depois de sua fala, mas dentro das histórias contadas
pelos diferentes narradores dos cantos posteriores. A ironia dramática, muito mais que as
outras formas de ironia, requer uma vítima; ela pode se manifestar em um tom cômico e em
um tom trágico. Na modalidade cômica ela desperta o riso pela situação de ridículo a que
expõe o protagonista, enquanto no viés dramático desperta na platéia a compaixão pelo herói,
que apesar dos esforços, está fadado ao trágico.

Esse recurso é utilizado amplamente em filmes conhecidos, como Titanic (1997), em


que sabemos que a majestosa nau está fadada à destruição, usando, portanto, o tom trágico, e
Show de Truman (1998), em que o espectador sabe que a vida do protagonista é toda
manipulada, neste caso, em tom cômico. Na Literatura Brasileira, um dos exemplos mais
clássicos é o Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. O leitor que se atenta ao
título do livro nota que toda a obra exalta ironicamente uma personagem que caminha para o
equívoco. Vale ressaltar a diferença entre esse tom de ironia e a ironia machadiana, visto que
os narradores de Machado também são personagens.

Lavandier considera como situações clássicas para a utilização da ironia dramática: os


anacronismos (viagem no tempo de viagem, quarta dimensão e manipulação científica);
duplos ou gêmeos; disfarces, transformações, amnésia e substituição de identidade;
maquinações, planos malignos e esquema de mentira (LAVANDIER, 2005, p. 263-315,
tradução nossa, grifo nosso). Dentre essas estratégias, a existência de uma outra dimensão se
aproxima à metalinguagem, que aponta para a obra como algo feito para ser visto, e ao
dialogismo, que supõe um ser externo à obra, além das personagens, com o qual se mantém
um diálogo e que lhe dá sentido.

No cinema, o sentido da ironia dramática só é conhecido pelo espectador, enquanto as


personagens tentam racionalizar a situação a quais estão expostos, como acontece nas
próximas perguntas do professor, que questiona a sanidade de Harold, já que a loucura seria a
explicação mais plausível.

4.3. O discurso como formador da identidade do professor

Na continuação do diálogo entre Hilbert e Harold (24 min 56s) podemos não só
observar traços identitários de ambos, mas também contextualizar a ação pedagógica do
64

professor. Esta técnica permite, como já vimos, que novas facetas sejam reveladas das
personagens:
[Prof. Hilbert:] - So you crazy or what?
[Harold:] - Well…
- Are you allowed to say that to crazy people?
- I don't know.
- Oh, well. How many stairs - in the hallway out there?
- What? You were counting them as we walked, weren't you?
- No.
- Of course. What bank do you work at?
- No bank. IRS agent.
- Married? […] Ever?
- Engaged to an auditor. She left me for an actuary.
- How heartbreaking. Live alone?
- Yes.
- Any pets? […] Friends?
- No. Well, Dave at work.
- I see. The narrator, exactly what does he sound like?
- It's a woman.
- Is it a familiar woman? […] Someone you know? […]Did you have enough
time to count the tiles in the bathroom?
- I wasn't counting the tiles.
- […] So this woman, the voice, told you you're gonna die?
- She didn't tell me. She doesn't know I can hear her.
- But she said it.
- Yes.
- And you believed her.
- She's been right about a few other things.
- Such as?
- How I felt about work.
- You dislike your work?
- Yes.
- Well, not the most insightful voice in the world, is it? First thing on a list of
what Americans hate: work. Second, traffic. Third, missing socks. See what
I'm saying?
- Sort of.
- I told you you were gonna die, you believe me?
- No.
- Why? I don't know you.
- But you don't know this narrator.
- Well…
- Okay, Mr. Crick, I can't help you.
- Why? Well, I'm not an expert in crazy, I'm an expert in literature theory. And
I gotta tell you, thus far there doesn't seem to be a single literary thing about
you. I don't doubt you hear a voice, but it couldn't possibly be a narrator
because, frankly, there doesn't seem to be much to narrate. Beside that, this
semester I'm teaching five courses. I'm mentoring two doctoral candidates and
I'm the faculty lifeguard at the pool. *
*
- Você é doido ou o quê? Posso perguntar isso a um doido?
- Eu não sei.
- Quantos degraus - tinha o vestíbulo?
- O quê?
- Você contava enquanto subíamos, não é?
- Não.
65

Após perguntar sobre a vida de Harold e deparar-se com tantas negativas e a falta de
aspectos interessantes, Hilbert o menospreza, dizendo que não há nada de literário na
personagem, demonstrando o juízo de valor que tem de sua especialidade. Para o professor, a
Literatura se encontra ideologicamente num patamar mais elevado do que a simples leitura,
ela é portadora de características de elaboração que a destaca na ordem do discurso. No
mesmo sentido, afirma Nicolau Sevcenko:

Dentre as muitas formas que assume a produção discursiva, [a literatura,


particularmente a literatura moderna,] constitui possivelmente a porção mais dúctil, o
limite mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando
reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da
perplexidade. É por onde o desafiam também os inconformados e os socialmente mal
ajustados. Essa é a razão por que ela aparece como um ângulo estratégico notável,
para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada
estrutura social. Tornou-se hoje em dia quase um truísmo a afirmação da
independência estreita existente entre os estudos literários e as ciências sociais (1999,
p. 28).

- Claro. Para qual banco você trabalha?


- Banco, não. Fiscal da Receita.
- Casado? [...] Já foi?
- Noivo de uma auditora, que me trocou por um atuário.
- Que trágico.
- Mora sozinho?
- Mascotes? [...] Amigos?
- Não. Bom, Dave, do trabalho.
- Entendo. Esse narrador soa exatamente como?
- É uma mulher.
- É uma mulher familiar? Alguém que você conhece? [...] Deu tempo de contar os azulejos do
banheiro?
- Eu não contei.
- [...] Então, a voz feminina disse que vai morrer?
- Ela não disse para mim. Ela não sabe que a ouço.
- Mas disse isso.
- Disse.
- E você acreditou nela.
- Ela já acertou em outras coisas.
- Por exemplo?
- Como me sinto no trabalho.
- Está insatisfeito?
- Estou.
- Bom, não é a voz mais perspicaz do mundo, não é? A coisa mais odiada pelos americanos: O
trabalho. A segunda: O trânsito, terceira: Meias sem par. Entendeu?
- Mais ou menos.
- Se eu falasse que você iria morrer, você acreditaria em mim?
- Não.
- Por que não?
- Não o conheço.
- Nem conhece essa narradora.
- Bem...
- Okay, Sr. Crick, não posso ajudá-lo. [...] Não sou especialista em doidos. Sou especialista em
literatura e tenho que lhe dizer que, até aqui, não há nada de literário em você. [...] Não duvido
que ouça uma voz, mas duvido que seja uma narradora porque, sinceramente, não há muito a
narrar. Além disso, este semestre estou lecionando para cinco cursos, tenho dois orientandos de
doutorado e sou o salva-vidas efetivo da piscina. (tradução nossa)
66

Harold, porém, não parece inconformado socialmente, até mesmo porque ele trabalha
para o governo dos Estados Unidos e é visto pelas outras personagens como um arauto da
opressão, e em nenhum momento ele considera abalar estas estruturas sociais. O professor
também não identifica nenhum componente artístico, estético ou temático que classifique a
rotina do auditor como Literatura. O mestre se situa numa relação de poder, remetendo-nos às
reflexões de Foucault sobre A ordem do discurso:

Creio que existe um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos
discursos. Desta vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar
os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu funcionamento,
de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim não
permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, talvez, dos sujeitos que
falam. Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou
se não for qualificado” (FOUCAULT, 1999, p.37).

Por não identificar Harold como portador de um discurso literário, pelo não
cumprimento dessas exigências que o professor acredita serem necessárias, Hilbert priva
Harold de sua ajuda. Em seguida, como complemento à sua negativa, descreve seus afazeres,
o que já fornece pistas para sua titulação, provavelmente de livre docência, até que cita uma
atividade que destoa com as restantes: salva-vidas de piscina.

Esse conflito de ações contextualiza o sujeito na pós-modernidade. Historicamente,


segundo Stuart Hall (2003), enquanto a concepção iluminista de sujeito considerava-o assim
que nascia como um indivíduo centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, a identidade, numa concepção sociológica posterior, passou a servir
para preencher o espaço entre o “interior” e o “exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo
público, ligando o sujeito à estrutura.

Hall afirma que o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. O próprio processo de identificação, através
do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e
problemático. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (Hall, 2003, p. 11-13).
67

Não é mais possível, portanto, definir a identidade do professor apenas pela sua
profissão, acreditando, quase numa concepção marxista, que a subjetividade é construída
unicamente por meio do trabalho, até porque o professor, sobretudo universitário,
constantemente está envolvido com atividades que não necessariamente envolvem a sala de
aula, no que concerne a interação entre professor e aluno, tais como publicações e pesquisa.
As diversas atividades de um professor limitam seu tempo, impondo-lhe fazer escolhas,
inclusive no âmbito pessoal de sua vida. Apesar de exercer um trabalho voltado para a
interação, frequentemente o professor é retratado como um solitário, às vezes, quase como um
eremita em sua caverna, como já ilustramos.

No caso do professor Hilbert, as inúmeras atividades, inclusive a de salva-vidas,


ironicamente quase o impedem de salvar a vida de Harold. Porém, mesmo desistindo, o
professor ainda revela seu método, sugerindo que Harold registre o que ouvir:

- Perhaps you should keep a journal. Write down what she said or something. That's
all I can suggest.
- I can barely remember it all. I just remember: “Little did he know that this simple,
seemingly innocuous act would lead to his imminent death.”
- What?
- “Little did he know that this…”
- Did you say, “little did he know”?
- Yes. I've written papers on “little did he know”. I used to teach a class based on
“little did he know.” I mean, I once gave an entire seminar on “little did he know”.
Son of a bitch, Harold. “Little did he know” means there's something he doesn't know
that means there's something you don't know. Did you know that?
- I want you to come back Friday. Okay. No, “imminent”, you could be dead by
Friday. Come back tomorrow at 9:45.
- Ten seconds ago you said you wouldn't help me.
- It's been a very revealing 10 seconds, Harold. *

*
- Talvez você devesse manter um diário. Anote o que ela disser, ou algo do tipo. É tudo que
eu posso sugerir.
- Eu quase não me lembro de nada. Só lembro de: "Mal sabia ele que esse aparentemente
inócuo ato resultaria na sua morte iminente."
- O quê?
- “Mal sabia ele que...”
- Disse, “mal sabia ele”? [...] Já escrevi ensaios sobre “mal sabia ele”. Eu ministrei um curso
baseado em “mal sabia ele”. Já apresentei um seminário inteiro sobre “mal sabia ele”. Filho da
mãe, Harold! “Mal sabia ele” significa que há algo que ele não sabe. Isso significa que há algo
que você não sabe, sabia?
- Quero que volte na terça. Não! Você pode estar morto até terça. Volte amanhã. Às 1h30.
*- Dez segundos atrás você disse que não me ajudaria.
- Foram dez segundos muito reveladores, Harold. (tradução nossa).
68

Nesse diálogo notamos dois conceitos também inerentes ao discurso de um professor


de literatura: o posicionamento do narrador, que se revela onisciente, e a epifania, recurso
caro às obras de temática existencialista em que o real é posto em xeque. Além disso, no
roteiro original há uma fala de Harold que foi omitida na transposição para o filme - “No, I
didn’t know that. I also don’t know what “innocuous” mean.” (HELM, 2006, p.32)** - que
também revela traços de polifonia, em que a personagem e a narradora não compartilham do
mesmo discurso. Outras vozes se fazem ecoar pelo professor: ao ouvir “mal sabia ele”,
Hilbert estabelece uma relação da frase com seu próprio discurso, ou seja, de seus próprios
textos que produziu baseado em outras leituras ou discursos que incorporou dentro de sua
formação cultural. O texto possui, como explica Bakhtin, um aspecto ecoante:

Se tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também


as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se
relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, uma
emoção sobre a emoção, palavras sobre as palavras, textos sobre os textos. É nisto que
reside a diferença fundamental entre nossas ciências (humanas) e as ciências naturais
(que versam sobre a natureza), embora também aqui a separação não seja estanque.
No campo das ciências humanas, o pensamento, enquanto pensamento, nasce no
pensamento do outro que manifesta sua vontade, sua presença, sua expressão, seus
signos, por trás dos quais estão as revelações divinas ou humanas (leis dos poderosos,
mandamentos dos antepassados, ditados anônimos). O que se poderia chamar de uma
definição científica e a crítica dos textos são fenômenos mais tardios (significam toda
uma revolução do pensamento nas ciências humanas, é o nascimento da dúvida)
(BAKHTIN, 1997, p. 330).

A busca pelo sentido do texto narrado para Harold motiva o segundo encontro das
personagens. Hilbert assiste ao “Canal do Livro”, que entrevista o autor do livro “You ain’t
got nothing on me”, Emmett Cole, ambos fictícios. O título, “Você não tem nada sobre mim”,
apresenta duas negativas e uma estrutura deveras informal para um livro, revelando
regionalismos presentes na obra (se ela existisse) e o resultado da série de perguntas que o
professor fará a Harold logo em seguida.

**
“Não, eu não sabia. E também não sei o que “inócuo” quer dizer.” (tradução nossa)
69

5. INVESTIGAÇÃO LITERÁRIA: UM EXERCÍCIO DE INTERTEXTUALIDADE

Quando Harold abre a porta na segunda visita ao professor, dois livros destacam-se na
estante ao seu lado: The Assassins de Elia Kazan e Fire in the Belly, de Sam Keen, traduzido
como O Homem Na Sua Plenitude. O título do primeiro livro condiz com a preocupação de
Harold de não ser morto, como se houvesse um assassino a sua espreita, como acontece no
enredo do romance, porém, além deste, fato o livro não complementa muito à cena. O
segundo, porém, trata de um estudo sobre os gêneros masculino em contraste ao feminino,
trata sobre a identidade masculina e tem um capítulo intitulado “A mulher, deusa e criadora”.
Eis o trecho anterior a esse capítulo:

É a Mulher na nossa cabeça, mais do que as mulheres na nossa cama ou na nossa sala
da diretoria, a causa da maioria dos nossos problemas. E essas criaturas arquetípicas –
deusas, prostitutas, anjos, Madonas, castradoras, bruxas, feiticeiras, mães-terra –
precisam ser exorcizadas da nossa mente e do nosso coração antes de podermos amar
as mulheres. Enquanto a nossa casa estiver assombrada pelo fantasma da Mulher,
nunca poderemos viver bem com mulher alguma. Se continuarmos a negar que ela
existe nas sombras, a Mulher continuará a ter poder sobre nós.

A jornada do homem com relação à Mulher envolve três fases. No princípio, ele está
profundamente mergulhado numa relação inconsciente com uma figura mistificada,
composta de opostos irreais: virgem-puta, mãe alimentadora-devoradora, deusa-
demônio. A fim de passar de criança a homem, na segunda fase, ele precisa despedir-
se da Mulher e errar por muito tempo pelo mundo selvagem e doce dos homens.
Finalmente, depois de ter aprendido a amar a própria masculinidade, ele pode voltar ao
mundo cotidiano para amar uma mulher comum. (KEEN, 1998, p. 26)

Por boa parte do livro o autor desenvolve a inquietação sobre “o que é ser um
homem”, repetindo a pergunta por diversas vezes por toda a obra. Evidentemente a intenção
do autor era abordar o tema no sentido de gênero, quase numa questão Freudiana, mas para
Harold, ser um homem remonta o sentido da própria humanidade colocada em xeque. Harold
literalmente tem uma mulher falando em sua cabeça, que também se revelará sua criadora, e
uma outra mulher, Ana Pascal, a qual não consegue amar enquanto a primeira não se calar. O
professor saúda Harold (31 min 45 s):

[ Prof. Jules Hilbert:] - Come in. Mr. Crick. […] Please. How are you?
[ Harold Crick: ] - I'm fine, actually.
- […] Looks like our narrator hasn't killed you quite yet. […] Count the stairs outside?
- No. Course not. I've devised a test - How exciting is that? - of 23 questions which I
think might help uncover more truths about this narrator.
- Now, Howard
- Harold.
70

- Harold. These may seem silly, but your candor is paramount. Okay. So. We know it's
a woman's voice, the story involves your death it's modern, it's in English. I'm
assuming the author has a cursory knowledge of the city. […]Question one: “Has
anyone recently left any gifts outside your home?” Anything? Gum? Money?
- A large wooden horse?
- I'm sorry?
- Just answer the question.
- No.*

Temos o primeiro vislumbre do método de investigação literária do professor. Como


primeiro impulso, Hilbert especula com a mesma pergunta três gêneros narrativos como
possíveis origens para a estória de Harold: uma estória infantil, um romance e um poema
épico.

Doces como presentes estão geralmente relacionados a fábulas e estórias infantis,


dentre elas João e Maria, conto de fadas da tradição oral em muitos países, e A Fantástica
Fábrica de Chocolates, de Roald Dahl. Dentre essas muitas estórias, destaca-se o livro
infantil A Birthday for Frances, por Russell Hoban (1925 – 2011), em que a personagem
principal, Frances, vai a uma loja de doces com seu pai, e gasta o valor de duas mesadas para
comprar uma barra de Chompo, uma guloseima imaginada, e quatro chicletes, para dar de
presente a sua irmã Gloria. Eis o trecho inicial da estória:

It was the day before Frances's little sister Gloria's birthday. Mother and Gloria were
sitting at the kitchen table, making place cards for the party. Frances was in the broom
closet singing:

Happy Thursday to you,


Happy Thursday to you,
Happy Thursday, dear Alice,
Happy Thursday to you.
“Who is Alice?” asked Mother.

*
[ Prof. Jules Hilbert:] - Sr. Crick, entre, por favor. Como vai?
[ Harold Crick: ] - Bem, na verdade.
- [...] Parece que a nossa narradora ainda não o matou. [...] Contou os degraus lá fora?
- Não.
- Claro que não. Eu providenciei um teste - emocionante, não? - com 23 perguntas, que eu acho
que poderão ajudar a revelar mais coisas acerca dessa narradora. Agora, Howard...
- Harold.
- Harold. Elas podem parecer tolas, mas sua sinceridade é fundamental. Então, sabemos que a
voz é de mulher, a estória envolve a sua morte, é atual, em inglês e presumo que a autora tenha
um conhecimento superficial da cidade. [...] Primeira pergunta: Alguém deixou algum presente
à sua porta recentemente? Chicletes? Dinheiro? Um cavalo gigante de madeira?
- Como é?
- Apenas responda à pergunta.
- Não.
71

“Alice is somebody that nobody can see,” said Frances. “And that is why
she does not have a birthday. So I am singing Happy Thursday to her.”
“Today it is Friday”, said Mother.
“It is Thursday for Alice”, said Frances. (HOBAN, 1995, p. 5)*

Assim como Harold, Francis tem alguém com quem fala e que mais ninguém pode ver
ou se comunicar. No status de amigo fictício, Alice também se encontra no não-lugar, no não-
tempo, assim como a narradora de Harold encontra, como afirma Bakhtin (1998), no
cronotropo de criação, visto que aquele que cria está fora do tempo da narrativa e do espaço
onde ela acontece. A marcação do tempo também acontece em Mais estranho que a ficção:

[Narradora:] - And though this was an extraordinary day a day to be remembered for
the rest of Harold's life Harold just thought it was a Wednesday.
[Harold:] - I'm sorry, did you hear that? The voice. Did you hear it? "Harold thought it
was a Wednesday"?
[Mulher:] - Don't worry, it is Wednesday.
[Harold: ] - No, no, did you hear it? "Harold just thought it was a Wednesday"?
[Mulher:] - Who's Harold?
[Harold: ] - I'm Harold.
[Mulher:] - Harold, it's okay, it's Wednesday.
[Harold: ] - No, no, I Never mind. (5 min 50 s) **

A marcação do tempo em ambas as estórias é definida, portanto, pelos dois dias da


semana citados. Afirma Bakhtin sobre a indicação temporal:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais


num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do
tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o
espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo (Op. cit, p. 211).

Dessa forma, é possível saber qual o nível de deslocamento que as personagens terão
em suas estórias, assim como a duração do enredo, através da limitação do tempo em que ele
se desenvolverá.

*
Era um dia antes do aniversário de Gloria, irmã de Frances. Mamãe e Glória estavam sentadas à mesa da
cozinha, fazendo cartões para a festa. Frances estava no armário de vassouras cantando: “ [Parabéns para
você], Feliz quinta-feira para você, parabéns Alice, Feliz quinta-feira para você.”
“Quem é Alice?” perguntou a mãe.
"Alice é alguém que ninguém pode ver", disse Frances. “E é por isso que ela não tem um aniversário.
Então, eu estou cantando feliz quinta-feira para ela.”
“Hoje é sexta-feira”, disse a mãe.
“É quinta-feira para Alice”, disse Frances.
**
[ Narradora: ] - E embora este fosse um dia extraordinário, para ser lembrado para o resto de sua vida,
Harold apenas achava que fosse quarta-feira.
[ Harold: ] - Com licença. Ouviu isso? A voz. Ouviu: “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?
[ Mulher no ponto de ônibus ] - Não se preocupe, é quarta-feira.
[ Harold: ] - Não, não ouviu? “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?
[ Mulher:] - Quem é Harold?
[ Harold: ] - Eu sou Harold.
[ Mulher:] - Harold, tudo bem, É quarta-feira.
[ Harold: ] - Não, não, eu... Deixa pra lá
72

A segunda especulação do professor é sobre a ocorrência de algum dinheiro deixado à


porta de Harold. A estória mais conhecida onde isso acontece é no romance folhetinesco Um
conto de duas cidades¸ de Charles Dickens. Nele, um médico de família nobre francesa, Dr.
Manette, é aprisionado na Bastilha por dezoito anos após receber um montante de dinheiro em
sua porta. A prisão causa sua loucura e isolamento. Manette representa, em muitos sentidos, o
herói romântico, que se sacrifica por uma causa. Apesar de a maioria das artes
contemporâneas estarem denominadas como num período pós-modernista, devemos observar
o quanto o entretenimento para as grandes massas ainda tem suas estruturas presas ao
romantismo: ora o final feliz que supera todas as barreiras, ora o trágico no sentido de
sacrifício, e essa dicotomia também faz parte da narrativa de Mais estranho que a ficção,
configurando um dos dilemas da estória.

Em O poder do mito (1990, p. 104-136), Joseph Campbell faz uma análise sobre o
sacrifício de herói clássicos e modernos, afirmando que é por meio dele que há a bem-
aventurança, porém o sujeito contemporâneo, influenciado pelo Cristianismo e por novas
posturas filosóficas, não mais vê a morte biológica como a única solução:

O Novo Testamento ensina a morrer para si mesmo, literalmente, sofrendo a dor da


morte para o mundo e seus valores. Esse é o vocabulário dos místicos. Agora, o
suicídio também é um ato simbólico. Ele rejeita a postura psicológica em que você se
encontra num dado momento, de modo que você deseja ingressar noutro melhor. Você
morre para a vida em curso, a fim de ingressar em outra, de alguma espécie. Mas,
como diz Jung, é melhor você não se deixar envolver numa situação simbólica. Você
não precisa morrer literalmente, fisicamente. Tudo o que tem a fazer é morrer
espiritualmente e renascer para um modo de vida mais aberto. (Ibid., p. 127)

Podemos identificar, também no discurso de Campbell, a intertextualidade na citação


ao texto bíblico, e ela também está presente em algumas das obras citadas pelo professor e nas
alusões presentes em Mais estranho que a ficção, como veremos posteriormente. Campbell
também se baseia em Jung, que atribuiu alguns mitos a situações simbólicas:

O indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos
aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de
erro. Nesta época de convulsões sociais e mudanças drásticas é impor-tante sabermos
mais a respeito do ser humano, pois muito depende das suas qualidades mentais e
morais. Para observarmos as coisas na sua justa perspectiva precisamos, porém,
entender tanto o passado do homem quanto o seu presente. Daí a importância essencial
de compreendermos mitos e símbolos. (JUNG, 2008 , p. 58)
73

Dentre esses mitos e símbolos, encontra-se a terceira referência a obras literárias feita
pelo professor, mais absurda para Harold, porém mais reconhecível para o espectador: o
cavalo de Tróia, presente na Ilíada. O poema épico grego relata a visão de Homero (ou
creditada a ele) do último ano da Guerra de Troia, cujo tema central é a cólera de Aquiles.
Quem recebe o cavalo de presente, porém, é Páris, descrito pelo próprio irmão como
“denodado, mas tíbio e inerte e mole” (HOMERO, 2009, p. 163), ao contrário dos outros
heróis são referidos por toda a epopéia pelos mais valorosos epítetos: Aquiles era chamado
“de pés velozes”, “brilhante”, “semelhante aos deuses”; Ulisses, “o ardiloso”, “a glória dos
aqueus”, “comparável a Zeus em Prudência”, “paciente e divino”; Heitor, nobre e “dos mil
artifícios”; enquanto isso, Páris é “formoso”, “divo”. Tanto Paris como Harold, portanto, não
possuem atributos físicos e intelectuais aplicáveis na guerra, não se enquadrando no conceito
de herói épico.

Continuando a entrevista, Professor Hilbert faz a próxima questão: “Do you find
yourself inclined to solve murder mysteries in large, luxurious homes to which - Let me
finish. - To which you may or may not have been invited?”* (33min 00s.) Com essa pergunta
Hilbert não trata de uma obra específica, mas de todo um gênero literário: o romance policial,
cujo precursor foi Edgar Allan Poe (1809-1849), com o conto Os Assassinatos da Rua
Morgue, publicado em 1841. O conto deu origem a mais duas estórias com a personagem
principal, o detetive Dupin, e é considerado como uma influência para a criação de Sherlock
Holmes, personagem de Arthur Conan Doyle, (1859-1930) pertencente ao mesmo gênero,
assim como o detetive Hercule Poirot criado por Agatha Christie (1890-1976). A investigação
criminal, porém, é um tema que remonta bem antes de Poe: mesmo Édipo Rei pode ser
considerado uma estória de investigação, pelo clima mistério na estruturação da peça: há
interrogatórios, testemunhas, um plot twist, isto é, uma mudança abrupta no enredo que volta
a narrativa para um aspecto ou personagem específico. Também em As Mil e uma Noites há
um conto intitulado As Três Maçãs em que é encontrada uma urna com um corpo de uma
jovem em pedaços em seu interior e suas personagens tentam descobrir o autor do assassinato.
Sendo assim, o gênero de investigação, não necessariamente policial, possui um corpus
textual imenso. Porém, como todo bom acadêmico, o professor delimita o tema e define um
subgênero, o chamado, em inglês, de locked room mystery ( que pode ser traduzido como

*
“Sente-se tentado a solucionar assassinatos em grandes mansões luxuosas- deixe-me terminar - às quais pode
não ter sido convidado?” (tradução nosssa)
74

“mistério a portas trancadas”). Em Tipologia do romance policial, Tzvetan Todorov faz um


apanhado de um vasto número de romances policiais, e analisa a estrutura dessas obras:

Na base do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar
para descrevê-lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do
crime e a história do inquérito. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm
nenhum ponto comum. (TODOROV, 2006, p. 96)

Assim como no romance policial, há em Mais estranho que a ficção duas histórias
iniciais, a do planejamento da morte da personagem pela escritora, e a investigação de Harold
buscando sua assassina. Todorov também trata do posicionamento dessas tramas dentro da
obra:

Trata-se pois, no romance de enigma, de duas histórias das quais uma está ausente mas
é real, a outra presente mas insignificante. Essa presença e essa ausência explicam a
existência das duas na continuidade da narrativa. A primeira comporta tantas
convenções e processos literários (que não são outra coisa senão a “trama” da
narrativa) que o autor não pode deixá-los sem explicação. Esses processos são,
notemo-lo, essencialmente de dois tipos: inversões temporais e “visões” particulares: o
teor de cada informação é determinado pela pessoa daquele que a transmite, não existe
observação sem observador; o autor não pode, por definição, ser onisciente, como era
no romance clássico. A segunda história aparece, pois, como um lugar onde se
justificam e se “naturalizam” todos esses processos: para dar-lhe um ar “natural”, o
autor deve explicar que está escrevendo um livro! E é temendo que essa segunda
história se torne opaca ela própria que ele joga uma sombra inútil sobre a primeira,
que tanto se recomendou o estilo neutro e simples, tornado imperceptível (Ibid., p. 98).

A metalinguagem, neste caso manifestada pela suposição de um leitor, torna-se,


segundo Todorov, necessária no romance policial. Ela visa, porém, a naturalidade, enquanto
no filme, causa estranhamento. O fato de a narradora ser onisciente também descarta a
possibilidade de a vida de Harold ser um romance policial, porém este momento de
investigação que o protagonista compartilha com o professor remete ao tema principal deste
gênero: a busca pela verdade. Neste caso, eles tentam, dentro de uma sala fechada, desvendar
o crime antes que ele aconteça, apesar de já premeditado pela narradora, que apenas não
decidiu ainda como Harold irá morrer, o que o professor também tenta descobrir ( 33 min 25
s) :

[ Professor Hilbert: ] - On a scale of one to 10 what would you consider the likelihood
you might be assassinated?
[ Harold: ] - Assassinated?
- One being very unlikely, 10 being expecting it around every corner.
- I have no idea
- Okay. Let me rephrase. Are you the king of anything?
- Like what?
- Anything. King of the lanes at the local bowling alley.
- “King of the lanes”?
75

- King of the lanes. King of the trolls.


- “King of the trolls”?
- Yes. A clandestine land found underneath your floorboards. Anything.
- No. No. That's ridiculous.
- Agreed. But let's start with ridiculous and move backwards. *

O professor precisa delimitar a natureza de um possível assassinato, já que os


homicídios acontecem em todos os gêneros literários e escritos, mitos (até mesmo no
quarto capítulo do texto bíblico, logo após a criação do mundo, um irmão mata outro).
Ao perguntar se Harold é rei de alguma coisa, Hilbert possivelmente especula sobre os
reis das peças de William Shakespeare: em Hamlet, o pai é assassinado pelo tio; em
Ricardo III, os reis Henrique VI, Eduardo IV e o próprio Ricardo também são
mortos; o rei Duncan e seu sucessor, MacBeth; Alonso, rei de Nápoles, também tem
seu assassinato sendo planejado em A Tempestade; O Rei Lear morre de desgosto pela
morte de sua filha; em Vida e morte do Rei João, ele é envenenado e Ricardo II é
assassinado na prisão. Ser coroado rei nas peças de Shakespeare era, portanto, tornar-
se um alvo.

Continuando a questionar sobre os reis, neste mesmo diálogo que já citamos,


percebemos um jogo de palavras no idioma original: “Are you the king of anything?
[…] Anything. King of the lanes at the local bowling alley. […]King of the lanes.
King of the trolls” ( 33min 41s). Existe uma ambiguidade na palavra “lane”, que pode
ser traduzida como “faixa”, “pista”, “rota” ou “via”. A expressão “down the memory
lane” significa rever o passado, como se aquele que faz a retrospectiva descesse uma
estrada revendo suas memórias. Lane também é o nome um vilarejo rural (que em
inglês são chamados de hamlets) localizado em West Yorshire, parte do condado de
Yorkshire, o maior da Inglaterra, que dá título a uma outra tragédia, que por décadas

*
[ Professor Hilbert: ] - Numa escala de 1 a 10 qual a probabilidade de você ser assassinado?
[ Harold: ] - Assassinado?
- Um sendo muito improvável e 10, esperando a cada esquina.
- Não faço idéia...
- Ok, deixe-me reformular. Você é rei de alguma coisa?
- Tipo o quê?
- Qualquer coisa.
- Rei das pistas no boliche local.
- Rei das pistas?
- Rei das pistas, rei dos trolls.
- “Rei dos trolls”?
- É, de uma terra clandestina sob as ripas do seu assoalho. Qualquer coisa?
- Não. Não. Isso é ridículo.
- Concordo, mas comecemos nas mais ridículas e retrocedemos.
76

fora atribuída a William Shakespeare, mas que posteriormente foi creditada a Thomas
Middleton: A Yorkshire Tragedy. Nessa sangrenta peça, um homem mata sua mulher e
dois filhos e é executado no desfecho final.

Hilbert abandona por um momento as referências a textos clássicos, e pergunta


a Harold se ele é rei do boliche local, e por trás disso também especula um assassinato:
no romance policial By the balls, Jim Pascoe e Tom Fassbender, o campeão de boliche
da cidade, Joe Biggs, é assassinado. Próximo à solução do mistério, o narrador
jocosamente indica para seu gênero: “It was Suzi who made a passing joke about this
being a detective story, and as it goes in all good detective stories, it was now time to
stake out the widow’s house to see what might develop”.* (p. 380, 1998). Sendo assim,
a metalinguagem também permeia a livro pulp.

O professor pergunta a Harold se ele é rei dos trolls. Essas criaturas estão
presentes na mitologia nórdica, no folclore escandinavo, aparecem também nas obras
de John Ronald Reuel Tolkien, autor de O Hobbit, da trilogia O Senhor dos Anéis e de
O Silmarillion; nos autores modernos, como J. K. Rowling, criadora da série Harry
Potter; e Neil Gaiman, premiado autor de contos fantásticos. No cinema, além de
presentes nas adaptações das obras de Tolkien, os mitos por trás desses monstros
foram recentemente explorados no documentário fictício norueguês O Caçador de
Trolls, dirigido por André Øvredal (2010). Em todas essas versões, os gigantes de
pedra saem à caça à noite, podendo se alimentar de carne humana, e se transformam
em pedra durante o dia, o que coloca sua materialidade à prova, pois aqueles que
acreditavam ter visto trolls à noite, cujas vozes em muito se assemelham a um vento
forte, apenas encontravam uma pilha de pedras no dia seguinte. O trolls míticos vivem
nas montanhas, enquanto os urbanos, como no conto de Neil Gaiman (2002), moram
embaixo de uma ponte.

Na mitologia nórdica, o destino do rei dos trolls, chamado Thryn (Þrymr), é


contado em Trymskvida (Þrymskviða), na antologia poética Edda, considerada a mais

*
“Foi Suzy que fez piada sobre essa ser uma estória de detetive, e como acontece e toda boa estórias de
detetives, agora era hora de fuçar a casa de viúva para ver o que podia acontecer.” (tradução nossa)
77

importante fonte de lendas e mitos nórdicos. O mitólogo Thomas Bulfinch (1998, p.


386):

Aconteceu certa vez que o martelo de Thor caiu em poder do gigante Thryn,
que o enterrou sob as rochas de Jotunheim numa profundidade de oito braças.
Tor mandou Loki negociar com Thryn, mas Loki somente conseguiu obter
uma promessa do gigante de restituir a arma se Freia consentisse em casar-se
com ele. Loki voltou para informar o resultado de sua missão, mas a deusa do
amor ficou horrorizada à idéia de oferecer os seus encantos ao rei dos gigantes
do Gelo. Nessa emergência, Loki persuadiu Thor a meter-se nas vestes de
Freia e acompanhá-lo ao Jotunheim. Thryn recebeu sua noiva, que estava com
o rosto coberto por um véu, com a devida cortesia, mas ficou muito surpreso,
ao vê-la devorar oito salmões e um boi inteiro, além de outros petiscos, e
bebendo, por cima, três toneis de hidromel. Loki, porém, afirmou-lhe que ela
não comia há oito noites, tão grande era seu desejo de ver o amante, o famoso
rei de Jotunheim. Afinal, Thryn teve curiosidade de olhar sob o véu de sua
noiva, mas recuou, espantado, e perguntou por que os olhos de Freia
brilhavam como fogo. Loki deu a mesma desculpa e o gigante se satisfez. Deu
ordem para que fosse trazido o martelo, e colocou-o no regaço da donzela.
Thor, então, livrando-se do disfarce, agarrou sua terrível arma e matou Thryn
e todos os seus sequazes.

Esse relato, que em muito se assemelha ao mito do rapto de Perséfone e da mesma


forma explica as estações do ano, também é apresentado à personagem principal de O Mundo
de Sofia, do autor norueguês Jostein Gaarder (1952- ), metaficção que em muito tem em
comum, em termos de estrutura e desfecho, com Mais estranho que a ficção. Ele termina o
relato dizendo: “Primeiro, matou Thrym com o martelo, e, em seguida, o resto dos gigantes de
Jotunheimen. Desta forma, o horrível drama teve um final feliz” (GAARDER, 1996, p. 30).
Final feliz para o panteão, enquanto para o rei dos trolls, uma possibilidade para Harold que
logo será descartada, restou ser esmagado pelo martelo Mjölnir.

O rei dos trolls aparece da mesma forma na peça teatral Peer Gynt, do também
norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo fortemente influenciado pela mitologia
nórdica. A personagem principal, Peer, é filho de uma viúva que tem nele a esperança de
recuperar a fortuna gasta pelo falecido marido. Abandonando a mãe e vagando para as
montanhas, o protagonista recebe a proposta de se transformar em troll para se casar com a
filha do rei, e assim herdar o reino. Peer inicialmente parece disposto a aceitar, mas acaba
recusando, tendo em vista o tanto que teria de abrir mão, dentre outras coisas, de sua
humanidade, sua cristandade e de seu olho esquerdo. O rei não quer permitir que ele parta,
dizendo que sua filha, mesmo não tendo mantido relações com Peer, está grávida. Peer
consegue fugir, e passa muitos anos longe. Quando volta para casa, velho e rabugento,
78

encontra com o rei dos trolls, que conta que foi deposto pelo neto e seus descendentes: “Ah,
— it’s precisely for such that one looks. But my grandson’s offspring, as I said before, have
so mightily come in this land to the fore; and they say that I only exist in books.” (IBSEN,
2007, p. 111)*. Vemos, portanto, que a existência do rei dos trolls é coloca em xeque, assim
como acontece com Harold.

*
“Ah, é exatamente o que parece. Mas descendentes de meu neto, como eu disse antes, chegaram à tona e
de modo tão poderoso nesta terra, e eles dizem que eu só existo em livros *” (tradução nossa)
79

5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO


FICCIONAL

Hilbert pergunta se alguma parte de Harold já foi parte de mais alguém (34min 09s):

[Harold:] - Like do I have someone else's arms?


[Prof. Hilbert:] - Well, is it possible at one time that you were made of stone wood,
lye, varied corpse parts or earth made holy by rabbinical elders?*

Ao perguntar se Harold fora feito de pedra, Hilbert mais uma vez especula se Harold é
um troll e também abre possibilidade para investigar outras criaturas místicas. Os seres de
pedra estão dentre as primeiras criações mitológicas, como a Galateia, estátua esculpida por
Pigmaleão, cuja origem Ovídio conta no Canto X de Metamorfoses (1983, p. 189) em que a
deusa Vênus se comove pelo quanto Pigmaleão se afeiçoa pela estátua, e lhe dá vida.

A vida também é concedida à marionete de madeira no romance As Aventuras de


Pinóquio (2002), escrito por Carlo Collodi (1826-1890) e publicado em 1883. Diferente da
origem dada na adaptação para filme dos estúdios Disney, Pinóquio é feito de uma madeira
falante. Enquanto fazia o boneco, Gepeto percebe que os olhos se movem, e pergunta:
“Occhiacci di legno, perché mi guardate?”** (COLLODI, 2002, p. 7) O estranhamento e o
confronto entre Gepeto e o boneco continuam: quando termina a boca, Pinóquio ri zombando
do artesão, e lhe mostra a língua. Ao terminar os braços, a marionete arranca a peruca de
Gepeto. Ao terminar as pernas, sentiu um chute. Gepeto se arrepende de sua criação, que foge
pela porta assim que tem chance. Quando alcança o boneco, as pessoas na rua se comovem
pela criatura sendo arrastada pelo velho, e Gepeto é preso, sem causar nenhum remorso em
Pinóquio.

Outra grande diferença do Pinóquio de Collodi e da animação de 1940 é a constante


presença da morte no livro. Pinóquio mata o Grilo Falante (COLLODI, 2002, p. 11), a fada se
apresenta como uma menina morta, apresenta-se novamente como adulta e morre novamente
nos capítulos XXIII e XXIV. O boneco de madeira é enforcado no capítulo XV, tem uma
pedra amarrada aos pés e é afogado no capítulo XXXIII, é engolido pelo tubarão Átila , de mil
e quinhentos metros de comprimento no capítulo XXIV.

*
[Harold:] - Como, se tenho o braço de alguém?
**
[Prof. Hilbert:] - É possível que alguma vez você tenha sido feito de pedra, madeira, detergente, partes
de cadáveres ou de terra abençoada por rabinos anciões?
80

A intertextualidade em Pinóquio é fortemente marcada pelo grande número de


provérbios de tom moralista, dentre eles “fome é o melhor tempero”, “diga-me com quem
anda, que direi quem você é”; “dinheiro roubado nunca dá frutos”, “só se colhe aquilo que foi
semeado”. A moral, tida como objetivo principal de todo conto de fada (TODOROV, 1981, p.
36-37), também se manifesta através das alegorias da serpente, que aparece para Pinóquio no
Capítulo XX (COLLODI, 2002, p. 47) e do gigantesco tubarão em que Gepeto, passa dois
anos vivendo, aludindo ao profeta Jonas, que por ter desobedecido à vontade de Deus, foi
engolido por um grande peixe em que passou três dias e três noites (Jonas 1:17). Pinóquio é
punido por diversas vezes durante o romance, e sua última punição é compartilhada com
Gepeto, numa escala menos prometaica do que os outros criadores de vidas artificiais, porém,
como veremos, criador e criatura geralmente partilham de um destino em comum nas obras
onde essa dicotomia é explorada. A queda de Gepeto começa no momento em que Pinóquio
cria vida: ele deixa de comer, vende seu casaco para comprar uma cartilha, passa anos em
busca de sua criatura (assim como Dr. Frankenstein, como veremos), até que é engolido por
um grande animal marinho, o que é visto, segundo Campbell, como uma forma de catábase:

A barriga é o lugar escuro onde acontece a digestão e uma nova energia é criada. A
história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente
universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado. [...] É uma
descida às trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no
inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida
ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser
desempossada, superada e controlada.
No primeiro estágio dessa espécie de aventura, o herói abandona o ambiente familiar,
sobre o qual tem algum controle, e chega a um limiar, a margem de um lago, ou do
mar, digamos, onde um monstro do abismo vem ao seu encontro. Aí há duas
possibilidades. Numa história do tipo daquela de Jonas, o herói é engolido e levado ao
abismo, para depois ressuscitar; é uma variante do tema da morte e ressurreição. A
personalidade consciente entra em contato com uma carga de energia inconsciente que
ela não é capaz de controlar, precisando então passar por toda uma série de provações
e revelações de uma jornada de terror no mar noturno, enquanto aprende a lidar com
esse poder sombrio, para finalmente emergir, rumo a uma nova vida. (CAMPBELL,
1991, P. 160)

O renascimento de Gepeto se dá através de seu rejuvenescimento, e de Pinóquio em se


tornar um garoto real de verdade. Neste ponto Harold e Pinóquio também coincidem, pois
ambos afirmam serem reais, porém são questionados pelas circunstâncias das estórias a que
pertencem. Ambos também buscam seus criadores por boa parte da trama, e têm seus modos
de viver modificados depois de encontrá-los.
81

Além da fábula de Pinóquio, porém, há a possibilidade de Hilbert buscar desvendar a


criação de Harold explorando as diferentes origens do homem nas diversas cosmogonias. No
Popol Vuh, épico maia-quiché guatemalteco, o deus vermelho cria o homem a partir de um
galho de árvore, como relatam estudos sobre a América pré-colombiana de Georges Raynaud,
na tradução para o espanhol de Miguel Angel Astúrias e Gonzáles de Mendoza:

Entonces dijeron la cosa recta: “Que así sean, así, vuestros maniquíes, los [muñecos]
construidos de madera, hablando, charlando en la superficie de la tierra”. —”Que así
sea”, se respondió a sus palabras. Al instante fueron hechos los maniquíes, los
[muñecos] construidos de madera; los hombres se produjeron, los hombres hablaron;
existió la humanidad en la superficie de la tierra. Vivieron, engendraron, hicieron
hijas, hicieron hijos, aquellos maniquíes, aquellos [muñecos] construidos de madera.
No tenían ni ingenio ni sabiduría, ningún recuerdo de sus Constructores, de sus
Formadores; andaban, caminaban sin objeto. No se acordaban de los Espíritus del
Cielo; por eso decayeron. Solamente un ensayo, solamente una tentativa de
humanidad. Al principio hablaron, pero sus rostros se desecaron; sus pies, sus manos,
[eran] sin consistencia; ni sangre, ni humores, ni humedad, ni grasa; mejillas
desecadas [eran] sus rostros; secos sus pies, sus manos; comprimida su carne. Por
tanto [no había] ninguna sabiduría en sus cabezas, ante sus Constructores, sus
Formadores, sus Procreadores, sus Animadores. Éstos fueron los primeros hombres
que existieron en la superficie de la tierra. * (1977, p. 5)

Por se esquecerem de seus criadores, os homens de madeira foram destruídos num


grande dilúvio, deles restando apenas seus descendentes, os macacos, explicando a
semelhança desses animais com o homem. Esse mito também cria uma metáfora de que os
homens sem consciência e sem contato com seus criadores não podem viver sobre a terra.
Esse destino também poderia ser aplicado a Harold, pois caso ele não encontrasse sua
criadora, morreria.

Em seguida, disseram a coisa certa: “Que sejam assim, os seus manequins, os bonecos
construídos de madeira, falando, conversando sobre a superfície da terra”. – “Que assim seja”,
ele respondeu às suas palavras. Instantaneamente os manequins foram feitos, os boneco
construídos de madeira, os homens produzidos, os homens conversavam, a humanidade existiu
na superfície da terra. Eles viveram, geraram, fizeram filhos e filhas, aqueles manequins,
aqueles bonecos construídos de madeira. Eles não tinham nem inteligência, nem sabedoria,
nem memória de seus Construtores, seus Formadores; andavam, caminhavam sem rumo. Não
se lembraram dos Espíritos do Céu; e por isso decaíram. Apenas um estudo, apenas uma
tentativa de humanidade. No princípio falaram, mas seus rostos eram drenados, seus pés, suas
mãos, eram sem consistência, sem sangue, sem líquidos, sem umidade, nem gordura, as
bochechas de seus rostos eram secas, assim como seus pés e suas mãos; sua carne, esmagada.
Não havia, portanto, nenhuma sabedoria em suas cabeças, ante a seus Construtores, seus
Formadores, seus Procriadores, seus Animadores. Esses foram os primeiros homens que
existiam na superfície da terra. (tradução nossa)
82

Esses proto-homens do mito maia também estão presentes no folclore judaico: os


golems são seres de feitos pedra ou de terra abençoada, incapazes de falarem e privados de
consciência. Segundo a tradição judaica, o rabino Maharal de Praga criou um golem a partir
do barro, durante o século XVI. Já na Literatura, o Golem está presente numa coleção de
contos intitulada Galerie der Sippurim, organizada por Wolf Pascheles em 1847, no conto de
ficção científica de Yudl Rosenberg, de 1909, é título dos romances de Gustav Meyrink,
publicado em 1915, e de Isaac Bashevis Singer, de 1969. Joana de Mello Moser (2006,
p.323) faz um estudo sobre o golem nessas obras, sobretudo no romance de Meyrink:

Diz a lenda que o mito do Golem nasceu da mística hebraica do séc. XIII. O Golem –
matéria informe – ter-se-ia tornado num homúnculo a partir da invocação mágica de
um nome. Terá sido Elijah de Chelm quem criou o Golem a partir do barro, ao
escrever na sua fronte o “Shemhamforash” – nome secreto de Deus. Assim lhe foi
concedido o poder da vida, mas não o poder da palavra. Quando o Golem atingiu um
tamanho e força sobre-humanos, o criador, temendo as suas potencialidades
destrutivas, apagou-Lhe o nome da testa e ele transformou-se em pó.
Rezam algumas versões da lenda que não foi o nome de Deus mas a palavra “emet”–
“verdade” – que foi inscrita na sua testa. A destruição do Golem verificou-se quando
se apagou a primeira letra, tendo restado a palavra “met” que significa morte.
O motivo central deste mito é o ato da criação, tal como vem descrito no Livro do
Gênesis – criar um homem a partir da terra, dar vida à matéria, desafiar e copiar Deus
–, pelo que na perspectiva cristã esta é uma temática considerada absolutamente
prometaica.

O mito de Prometeu é mais uma vez evocado com a citação a Frankenstein, monstro
criado com partes de cadáveres. Curiosamente, o título original do romance, possui um aposto
em seu idioma original: Frankenstein: or the Modern Prometheus. Sua autora, Mary Shelley
(1797-1851), já possuía noções de intertextualidade, como explica na introdução do romance:

Parodiando Sancho Pança, tudo deve ter um início; e esse início deve estar ligado a
algo que já existiu antes. Para os hindus o mundo é sustentado por um elefante, mas o
elefante se acha apoiado em cima de uma tartaruga. Inventar, deve-se admitir
humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas sim do caos; em primeiro
lugar, deve-se dispor dos materiais; pode-se dar forma à substância negra e informe,
mas não se pode fazer aparecer a própria substância. Em tudo o que se refere às
descobertas e às invenções, mesmo aquelas que pertencem à imaginação, lembramo-
nos continuamente da história do ovo de Colombo. A invenção consiste na capacidade
de julgar um objeto e no poder de moldar e arrumar as idéias sugeridas por ele.
(SHELLEY, 2001, p. 6)

A autora cita diretamente dezenas de obras durante o romance: A Ilíada, A


Tempestade e no Sonho de Uma Noite de Verão de William Shakespeare; o Paraíso Perdido
de Milton (Ibid., p. 9); The Rime of the Ancient Mariner (O Conto do Velho Marinheiro),
83

poema do inglês Samuel Taylor Coleridge; cita também de livros de cunho científico, como
Cornélio Agripa, Paracelso e Alberto Magno. (Ibid., p. 31); cita livros cujos títulos insinuam
o desfecho da obra, como As Ruínas ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios, de
Volney (Ibid., p. 97), além de obras em que a tragédia e a decadência são uma constante
temática, como Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther (Ibid., p.
104), que servem como parâmetros para o monstro da natureza humana, como ele descreve a
seu criador:

Uma noite, [...], encontrei no chão uma pequena mala de couro que continha várias
peças de roupa e alguns livros. [...] Eram exemplares do Paraíso Perdido, um volume
das Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther. Foi para mim
como encontrar um tesouro. Agora eu estudava continuamente e exercitava o cérebro
com essas histórias, enquanto meus amigos se ocupavam de seus afazeres.
"Mal posso descrever-lhe, Frankenstein, o efeito de tais livros. Apresentavam-me uma
infinidade de novas imagens e sentimentos que, por vezes, me elevavam ao êxtase,
porém, com mais frequência, me lançavam na mais profunda depressão. Em Os
sofrimentos do jovem Werther, além do interesse intrínseco de sua história singela e
tocante, tantas opiniões são esboçadas e tantas luzes se lançam sobre assuntos até
então totalmente obscuros para mim, que o considero uma fonte perene de
constatações e maravilhoso espanto. (Ibid., p. 104)

Desses assuntos obscuros para o monstro presentes em Os sofrimentos do jovem


Werther, estão a morte e o suicídio, duas constantes em Frankenstein, e dessas obras citadas,
o canto X do Paraíso Perdido serve, inclusive, como epígrafe em Frankenstein (Ibid., p.3):

“Acaso, ó Criador, pedi que do barro


Me moldasses homem? Porventura pedi
Que das trevas me erguesses?”
John Milton,
Paraíso Perdido, X, 743-5

A temática principal do poema de Milton é a queda do homem, e o poeta


declaradamente se inspirou na Eneida, cujo canto mais famoso narra a catábase de Enéias,
isso é, sua descida ao mundo dos mortos. Além de citada na epígrafe, o Paraíso Perdido é
lido pelo monstro de Frankenstein, e ele mesmo conta suas impressões sobre a obra:

Já o Paraíso Perdido produzia-me emoções de outra espécie, muito mais profundas.


Li-o, tal como os outros volumes de que me apossara, como se fosse história
verdadeira, que, nesse caso, me despertava todos os sentimentos de admiração e terror
que a figura de um deus onipotente, combatendo suas próprias criaturas, era capaz de
excitar. Por vezes relacionava várias situações com a minha própria. Tal como Adão,
eu não era ligado por qualquer elo a outro ser existente, mas suas condições eram bem
diversas das minhas em todos os sentidos. Ele fora produzido pelas mãos de Deus
84

como criatura perfeita e feliz, sob a proteção de seu Criador; tinha a faculdade de
comunicar-se com seres de natureza superior e beber-lhes o conhecimento, mas eu era
desgraçado, desamparado e só. (Ibid, p. 105)

Esses tipos de citação se encontram constantemente em Frankenstein e Mais estranho


que a ficção, e como vimos, servem, dentre outros propósitos, para revelar nuances do
desfecho da estória e para ilustrar a visão de uma personagem sobre outra.

Os efeitos que as relações transtextuais produzem no leitor são também desenvolvidos


em Palimpsestos, das quais Genette considera a intertextualidade o primeiro tipo:

O segundo tipo, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado
por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear
simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios,
advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes;
ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos
ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário,
oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição
externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. Não quero
aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir, deste campo de relações que
teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é certamente um dos espaços
privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor [...]
(Genette, 2010, p. 9)

Assim como grande parte das obras literárias, acadêmicas ou qualquer outro meio que
se utiliza do paratexto estabelece com o leitor um índice contratual que permite antecipar o
conteúdo da leitura, e o mesmo acontece no universo fílmico. O título de Mais estranho que a
ficção pode remeter ao aforismo de Mark Twain: “Truth is stranger than fiction, but it is
because Fiction is obliged to stick to possibilities; Truth isn't.”*, e a busca pela verdade sobre
si mesmo, que remonta ao mito de Telêmaco, herói que busca suas origens (e que também no
final de sua jornada recebe um ferimento no pulso), constituem as jornadas de Harold e o
monstro de Frankenstein.

Pode-se também inferir que a realidade é mais estranha que a ficção e também
interpretar diferentes desfechos para as obras em que há a relação entre criadores e criaturas:
quando se dá forma à criatura, ela se torna em certo ponto material e mais próxima ao real.
Frankenstein foi capaz de destruir a noiva que construía para seu monstro, justamente por
ainda não ter lhe dado vida, apenas forma, assim como Rodrigo S.M. mata Macabéa por esta
não estar na mesma dimensão de realidade do narrador. Entretando, um final diferente se dá
*
“A verdade é mais estranha que a ficção porque a ficção é obrigada a se ater às possibilidades e a verdade não.”
85

no filme de A Hora de Estrela. O trágico da morte de Macabéa é apaziguado pela última cena,
em que a protagonista corre sorrindo, aproximando a um final feliz, se não fosse sua morte. O
espectador vislumbra uma Macabéa de carne e osso e não apenas de palavras. Não há
confronto com o criador, até mesmo porque o narrador não se encontra na obra
cinematográfica.

Karen e Victor, porém, são levados a confrontar suas criaturas e há um movimento de


inversão de papéis. Essa dinâmica é característica da carnavalização e do grotesco, onde há
um movimento de decadência daquele que está em patamar mais elevado rumando para os
mundos inferiores. Esses efeitos apresentam desdobramentos na estruturação da narrativa
fílmica: há um rebaixamento da narradora trazendo uma função ideológica desta mudança de
planos na construção da narrativa. Esse rebaixamento também está presente no título de
Frankenstein: O Moderno Prometeu, visto que este epíteto insinua o terrível destino do titã
que roubara o fogo dos deuses e o usou para dar vida ao homem, e foi condenado a
diariamente ter seu fígado devorado por abutres.

Segundo Joseph Campbell, por diversas vezes a revisitação de um mito serve como
caminho para explicar dramas humanos:

As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de toda


gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de informação mitológica do
Ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservavam, de hábito, na mente das pessoas.
Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que
esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo. Com
a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante
para pôr no lugar. Esses bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que
têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que
construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos, têm a ver com os
profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos
limiares da travessia, e se você não souber o que dizem os sinais ao longo do caminho,
terá de produzi-los por sua conta. (CAMPBELL, 1991, p. 15).

Desta forma podemos identificar como a criação é um processo doloroso também para
aquele que gera. Tanto Frankenstein quando Mais estranho que a ficção mostram os criadores
pela primeira vez como seres angustiados, exóticos, próximos ao grotesco. Karen é mostrada
como uma mulher transtornada, fumante compulsiva, trêmula. Em sua primeira aparição,
Victor também é descrito pelo capitão como um homem problemático:
86

Deus do céu! Margaret, se você visse o estado do homem, que ainda impunha
condições para ser salvo, sua surpresa não teria limites. Seus membros estavam quase
congelados, o corpo terrivelmente enfraquecido pela fadiga e pelo sofrimento. Jamais
vi alguém em tão lastimável estado. [...] Criatura alguma jamais me despertou
tamanha curiosidade: seus olhos tinham uma expressão de fúria, e mesmo de loucura;
mas havia momentos em que, diante de qualquer obséquio ou do mais simples serviço
que alguém lhe prestasse, o semblante se iluminava todo e adquiria uma expressão de
doçura que nunca vi igual. Mas geralmente se mostrava melancólico e desalentado;
por vezes rangia os dentes, como se acometido de fortes dores. (SHELLEY, 2001, p.
19)

Para ambas as personagens, portanto, a genialidade vem seguida de melancolia,


excentricidade, loucura e solidão, pois a idéia de uma obra inacabada lhes causa angústia:

Meu entusiasmo, porém, era refreado pela ansiedade. Em vez do êxtase de um artista
ao ver sua obra adquirir forma e vida, eu sentia a angústia de um indivíduo condenado
a um trabalho escravo de um obscuro trabalhador das minas condenado às trevas das
entranhas da terra (Op. Cit., p. 45).

Nessa comparação de Victor podemos identificar o cronotopo da criação, ou melhor, o


não-lugar onde, na concepção de Bakhtin, o autor deve se isolar do tempo e espaço ao qual
pertence para criar, e assim perscrutar o mundo invisível, desbravar novos caminhos, explorar
forças desconhecidas e revelar ao mundo os mistérios da criação. O mundo exterior, porém,
fornece a esses criadores ideias para seus mundos interiores, elementos que lhes causem
formas de epifania, como uma luz fora dessa caverna. Em A Jornada do Escritor, Christopher
Vogler conta as origens e os efeitos da epifania:

Existe uma cadeia de experiência divina, que vai desde o entusiasmo (ou seja, ser
visitado por um deus), passa pela apoteose (tornar-se um deus), e chega à epifania, que
é ser reconhecido como deus.
James Joyce explorou e expandiu o sentido da palavra epifania, usando-a para
designar uma súbita percepção da essência profunda de algo, a compreensão do que
está no âmago de uma pessoa, de uma idéia ou situação. Às vezes, os heróis
experimentam um entendimento repentino da natureza das coisas, depois de terem
passado por uma Provação. Sobreviver à morte dá sentido à vida e aguça as
percepções. (2006, p. 171)

Nessas obras, porém, a epifania não acontece apenas para as criaturas, mas também
para seus criadores, e também se manifestam evocando intertextualidades, através de imagens
que revelam o futuro das personagens, ou que podem funcionar como ironia dramática, caso
estejam, como em Frankenstein, situados num futuro em que já se sabe da ruína das
personagens.
87

A epifania de Frankenstein acontece quando o cientista vê uma árvore queimando:

Como estivesse à porta, vi, de súbito, uma enorme língua de fogo expelida do antigo e
belo carvalho que se erguia a cerca de vinte metros da nossa casa; tão logo se
desvaneceu aquela luz ofuscante, a árvore desaparecera, não restando dela mais do que
um cepo esfrangalhado. (SHELLEY, 2001, p. 33)

Além do fogo dos deuses, fonte de criação e ruína para o Prometeu mítico, a árvore em
chamas remete ao primeiro estágio da epifania, a visita de um deus, visto que na narrativa
bíblica, Deus se manifesta pela primeira vez a Moisés numa sarça em chamas (Êxodo, 3:02).
Os acontecimentos relatados por um texto literário, segundo Todorov , “são ‘acontecimentos’
literários, assim como as personagens são interiores ao texto” (1981, p. 33). A árvore posta
em chamas pelo raio assume o caráter de alegoria, que é definida por Todorov como “uma
proposição de duplo sentido, mas cujo sentido próprio (ou literal) apagou-se por completo.”
(Ibid., p. 34), representando a decadência: Quando assume que não tinha mais forças Victor
afirma: “Eu era uma árvore abatida pelo raio”. (SHELLEY, 2001, p. 131); quando ameaça seu
criador, o monstro diz em tom profético: “Suas horas hão de passar-se em terror e infortúnio,
e não tardará em despenhar-se o raio que destruirá para sempre sua felicidade” (Ibid., p. 137);
e quando conta os planos de sua morte, a criatura também cita o fogo:

Erguerei uma pira e consumirei até as cinzas este arcabouço miserável, de modo a que
não possa restar de seus despojos o mínimo indício da minha imagem que possa
orientar algum outro desavisado na tentativa de percorrer a senda maldita do meu
criador, procurando refazer a sua obra, (Ibid., p. 180)

Tanto Mais estranho que a ficção quanto Frankenstein utilizam os mesmos


mecanismos de alusão de antecipação da “morte” do protagonista. A materialização dessa
queda do herói é uma imagem constante em Mais estranho que a ficção: na tomada inicial já
presenciamos um zoom dinâmico da terra para o quarto de Harold; Karen Eiffel aparece pela
primeira vez (13min 48s) no alto de um prédio, com as mãos estendidas, até que cai desde
edifício e logo após, descreve o quadro da suicida. Karen sente que é necessário matar seu
protagonista, o monstro de Frankenstein anseia por sua própria morte.

O viés de completude na morte também é explorado por Bakhtin: "Enquanto o homem


está vivo, vive pelo fato de ainda não se ter rematado nem dito a sua última palavra." (2011, p.
61). É preciso, porém, que a morte da personagem estabeleça uma relação funcional com o
restante da obra, e por isso Karen afirma que não pode jogar Harold do topo de um prédio.
88

Como Émile Durkheim (2000) poderia classificar, o suicídio de Evelyn foi um ato egoísta,
pela ausência de laços que a mantivessem viva, e auto-entrega de Harold à morte deveria ser
um ato altruísta, o que realmente sucedeu, tanto pela aceitação da fatalidade como para um
bem maior, a obra literária, quanto para salvar o garoto da bicicleta de ser atropelado. Antes
ignorado por todos os outros frequentadores do ponto de ônibus, mesmo quando revolta-se
contra a voz aos gritos, Harold se coloca como figura principal e tem sua “hora da estrela”
perante essas outras personagens; ele aceita seu destino e age com altruísmo, mesmo sabendo
levaria à sua morte.
Dessa mesma forma, o monstro de Frankenstein estabelece uma relação entre o
conhecimento e a morte:

Como é estranha a natureza do conhecimento! Ele apega-se à mente, uma vez


adquirido, e ali fica como o líquen na rocha. Por vezes desejava alijar todas as idéias e
sentimentos, mas aprendi que o único caminho para chegar a isso era a morte, um
estado que eu temia, embora não compreendesse. (SHELLEY, 2001, p. 98)

Victor estabelece uma relação semelhante, dizendo: “a maçã já fora mordida, e o braço
implacável do anjo apontara-me o caminho da desesperança e da amargura” (p. 154). A
alusão à maçã se refere ao livro de Genesis “Mas da árvore do conhecimento do bem e do
mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gên
2:17). Em Mais estranho que a ficção, a maçã também aparece: ao ver uma maçã rolando e
parando na sarjeta da rua, tem a idéia de como matar Harold (1h 12min 10s). Uma maçã
idêntica é escolhida por Harold, que lhe dá uma mordida a caminho do ponto de ônibus. Após
ser atropelado, também essa maçã rola para a sarjeta, porém já mordida e de posição inversa
em relação à primeira.

Outras intertextualidades podem ser identificadas pela escolha da maçã além da alusão
ao fruto do conhecimento que leva à morte: ela também está na estampa do DVD do filme,
lembrando os rótulos dos discos de vinil dos Beatles nos anos 60, e em muito se assemelha à
que está na frente do rosto do Filho do Homem (Fig. 5), quadro do pintor surrealista belga
René Magritte.

Magritte também é autor de uma série de quadros que questionam as representações


artíticas, entre elas Ceci n’est pas une pomme (Isto não é uma maçã) e Ceci n’est pas une pipe
(Isto não é um cachimbo), sendo que este último inspirou Foucault a escrever um ensaio de
89

mesmo nome. A dualidade da obra aponta para si mesma, numa metalinguagem que
representa, nega e gera dúvida ao mesmo tempo. O mesmo pode ser dito de Harold, cuja
existência é questionada.

Fig. 5: Le Fils de l'homme - René Magritte Fig. 6 : Ceci n’est pas une pomme - René Magritte
Fonte: http://www.rene-magritte.org/images/paintings/ Fonte: http://www.rene-magritte.org/rene-magritte-
Son-of-Man.JPG paintings.jsp

O título do primeiro quadro remete a um epíteto frequente no texto bíblico, tanto no


Antigo quanto no Novo Testamento, porém é no Evangelho de Lucas que “O Filho do
Homem” se refere a Jesus Cristo, em versículos como: “Porque o Filho do Homem veio
buscar e salvar o perdido.” (Lc 19.10). A questão do sacrifício também se aplica a Harold, e a
morte é justificada por salvar uma outra vida.

Também no evangelho de Lucas está a última frase de Cristo: “Pai, perdoa-lhes,


porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34). O texto bíblico também se faz presente em
Frankenstein, quando o cientista brada contra o juiz que investiga os assassinatos do monstro:
“Como és ignorante, homem, em tua pretensa sabedoria! Cala-te, que não sabes o que dizes”
(SHELLEY, 2001, p.163).
90

Além das alusões simbólicas e da declarada intertextualidade expressa pelas citações


presentes nas obras, outros dois pontos em comum entre Mais estranho que a ficção e
Frankenstein se manifestam na relação entre criador e criatura e no rebaixamento do criador.
Ambas as obras possuem criadores que desenvolvem, numa visão Freudiana, pulsões de Eros,
isto é, expressam seu afeto por suas criaturas, e pulsões de Thanatos, ou seja, desejam sua
morte, e neste sentido também podemos incluir a relação entre Rodrigo S.M. e Macabéa em A
Hora da Estrela . Em Mais estranho que a ficção, Karen arquiteta, desde o início, a morte de
Harold, mas também proporcionam momentos de felicidade. Em Frankenstein, o cientista,
mesmo tendo sido resgatado de um acidente enquanto caçava a criatura para matá-la, declara:
“Desejo mais uma vez que minha hedionda criação prossiga e prospere. Tenho afeição por
ela, pois foi o fruto de dias felizes, quando a morte e a dor não eram senão palavras que não
encontravam eco em meu coração.” (Ibid, p. 8). Já em A Hora da Estrela, Rodrigo S.M. em
uma hora sente repulsa por Macabea: “(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco
desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma
cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças.[...])” (LISPECTOR, 1998, p. 42) e em
outros momentos declara seu amor: “Só eu, seu autor, a amo” (Ibid., p. 43).

Tando Rodrigo S.M. quanto Victor e Karen têm um modus operandi que beira o
sadismo: dão-lhes vida privados de atributos que lhes permitam atingir a felicidade, vivendo
entre o medíocre e o grotesco, negam-lhe amores, elaboram suas mortes. Nessas relações do
duplo, há também uma alternância entre papéis: Harold se sente perseguido por Karen, e a
procura, da mesma forma que Victor persegue o monstro, que também o observa à distância -
Frankenstein é, sobretudo, o monstro de si mesmo, sua criação é sua destruição. Após a morte
da protagonista de A Hora da Estrela, Rodrigo declara: “Macabéa me matou” (Ibid., 106). O
monstro também causa a ruína a Frankenstein, e a morte de Harold também desola Karen.

Essa inversão de papéis na narrativa, além de evocar temas da carnavalização


bakhtiniana, remete também aos temas do duplo e do estranho, forçando as personagens a um
confronto. Ao ver sua criação pronta, Frankenstein se espanta:

À luz bruxuleante da vela quase extinta, vi abrirem-se os olhos amarelos e baços da


criatura. Respirou. Sim, respirou com esforço, e um movimento convulso agitou-lhe
os ombros.
Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? Que
pintor prodigioso poderia esboçar o retrato do ser que a duras penas e com tantos
cuidados eu me esforçara por produzir? Seus membros, malgrado as dimensões
91

incomuns, eram proporcionados e eu me esmerara em dotá-lo de belas feições. Belas?!


Oh, surpresa aterradora! Oh, castigo divino! Sua pele amarela mal encobria os
músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um negro luzidio e
como que empastados. Seus dentes eram de um branco imaculado. E, em contraste
com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo
diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios
retos e de um roxo-enegrecido. (SHELLEY, 2001, p. 46)

Quando Harold Crick se encontra com Karen Eiffel, o assombro maior não é da
personagem que encontra sua criadora, pelo contrário, ela é quem se espanta mais exclama:
“Seu cabelo! Seus olhos! Seus dedos! Seus sapatos!” (1h 20min 19s). Podemos perceber o
quanto os olhos têm papel importante nos confrontos dentro dos temas do fantástico e do
estranho: quando o rei dos trolls se encontra com Thor, são os olhos do deus do trovão que
causam estranhamento; os olhos de Pinóquio perturbando Gepeto; na fábula de Chapeuzinho
Vermelho, são os grandes olhos do lobo; os olhos aquosos e amarelos do monstro são a
primeira coisa em que Frankenstein repara; torna-se difícil também não lembrar dos olhos de
cigana oblíqua e dissimulada de Capitu, descrita pelo narrador de Dom Casmurro, de
Machado de Assis; em Clarice Lispector, cuja obra tem forte presença do duplo e do estranho,
a personagem principal do conto O Búfalo percorre todo o zoológico olhando nos olhos de
cada animal, até encontrar o grande bovino que a olha de volta. Freud define esse
estranhamento por heimlich: “esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é
familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo
da repressão” (FREUD, 2009, p. 258).

Assim como o espelho é importante para o fantástico, e os olhos são comumente


chamados de “espelhos da alma”, a visão do outro refletida no seu duplo exacerba os conflitos
da situação de confronto e projeta o observador para o mesmo patamar do observado,
tornando-se um ser que não compreende a existência de um outro que tem sua existência
como um resultado da própria, e por isso perde a compreensão de si mesmo.

A mudança de patamar em forma de rebaixamento para Karen também se manifesta


em um caráter plástico: ela se ajoelha aos pés de Harold, numa alternância de tomadas que
causa linhas de oposição entre os dois (Fig. 7 e 8): ele, sempre olhando para baixo, ela, para
cima, e quando se levanta passa a maior parte do tempo se afastando de Harold, sendo
encurralada na parede enquanto ele continua andando em sua direção (1h 21min 00s). Ao ver
que sua criação ganhava vida, também Frankenstein se afasta:
92

Mais mutáveis que os acidentes da vida são os da própria natureza humana. Eu


trabalhara duramente durante dois anos para infundir vida a um corpo inanimado. Para
tanto sacrificara o repouso e expusera a saúde. Eis que, terminada minha escultura
viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me
enchia de terror e repulsa. Incapaz de suportar aquela visão apavorante, precipitei-me
pela porta e corri para o meu dormitório, onde fiquei, por longo tempo, a andar de um
lado para Outro, incapaz de controlar-me e deitar-me para tentar o esquecimento pelo
sono. (SHELLEY, 2001, p. 46)

Fig. 7 e 8: O encontro de Harold Crick e Karen Eiffel

Fig. 9

No segundo encontro de Frankenstein com o monstro, a criatura já é capaz de falar


eloquentemente, o que é interessante se comparado com as adaptações cinematográficas. Ele
também já começara a desenvolver traços de autoconsciência, afirmando: “E que terror senti
quando me vi refletido numa poça de água!” (Ibid., p.93). A carnavalização ocorre no
momento de confronto entre criador e criatura, quando o criador sofre um processo de
decadência e a criatura se eleva através do desenvolvimento de sua autoconsciência, o que
para Bakhtin (2011, p. 53-86) é um dos principais pontos de caracterização de uma
personagem polifônica:

Como ponto de vista, como concepção de mundo e si mesma, a personagem requer


métodos absolutamente específicos de revelação e caracterização artística. Isso porque
o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da personagem, não é
sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência,
em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo. (2011,
p. 53, grifos do autor).
93

Bakhtin afirma que para atingir a autoconsciência e, consequentemente sua


completude o herói deve passar quatro tipos de acontecimentos: o cognitivo, o religioso, o
estético e o ético (1997, p. 42):

[...] os elementos que asseguram o acabamento estético do herói são valores que lhe
são transcendentes, [...] esses elementos são inorgânicos na autoconsciência do herói e
não participam do mundo da sua vida que procede de seu interior, que não participam,
em outras palavras, do mundo que é o do herói vivo fora do autor — que esses
elementos não são vivenciados como valores estéticos pelo herói — e, para terminar,
de estabelecer a relação existente entre esses constituintes e os constituintes formais
externos: a imagem e o ritmo.
Um único e mesmo participante não pode ocasionar o acontecimento estético; uma
consciência absoluta que não conta com nada que lhe seja transcendente, que esteja
situada fora dela mesma e a delimite por fora, não se presta a um processo estético, só
é possível participar dela, mas não vê-la como um todo acabado. O acontecimento
estético, para realizar-se, necessita de dois participantes, pressupõe duas consciências
que não coincidem. Quando o herói e o autor coincidem ou então se situam lado a
lado, compartilhando um valor comum, ou ainda se opõem como adversários, o
acontecimento estético termina e é o acontecimento ético que o substitui (panfleto,
manifesto, requisitório, panegírico e elogio, injúria, confissão, etc.); quando não há
herói, ainda que potencial, teremos o acontecimento cognitivo (tratado, lição); quando
a outra consciência é a de um deus onipotente, teremos o acontecimento religioso
(oração, culto, ritual).

Em Mais estranho que a ficção, quando Karen se senta após ver sua criação, o
confronto com Harold se agrava tanto nas palavras - pela coação de Harold a fim de saber de
seu destino enquanto Karen não encontra palavras para se justificar - quanto visualmente - na
constituição da cena (Fig. 9), com Harold projetando-se sobre Karen, que tem suas mãos em
expressão de súplica. Torna-se, portanto, uma relação carnavalizada: não se espera de um
Criador, deus ou não, que se justifique ante sua criação, que ele pode destruir com um estalar
de dedos ou, no caso que Eiffel, com a datilografia de algumas teclas. Ocorre justamente
nessa cena um acontecimento que transita do religioso, pelo encontro com a Criadora, para o
estético, onde há duas consciências que não coincidem, e finalmente para o ético, no caráter
requisitório de Harold, e gradativamente os estranhos tornam-se aceitos um pelo outro.
Todorov considera essa aceitação do elemento insólito como característica do fantástico
maravilhoso (TODOROV, 1981, p. 24), visto que não há mais uma preocupação em explicar
as origens dos elementos insólitos.

A mesma ordem se dá em Frankenstein: quando o monstro se encontra com seu


criador, os dois também discordam em seus pontos de vista, e a criatura também faz um
pedido, enfatizando a inversão de papéis: “Você é meu criador, mas o senhor sou eu. E terá de
94

obedecer-me” (SHELLEY, 2001, p. 137). Diferentemente de Harold, ele não implora por sua
vida, mas demanda uma companheira (Ibid, p. 120).

Harold já tinha uma companheira, Ana Pascal, personagem que é poupada da dúvida
se também se trata de um construto de Karen Eiffel. Mais uma vez a questão do outro é
problematizada:

Em todas as concepções éticas, religiosas e estéticas que atingiram certo


desenvolvimento e perfeição e têm importância histórica, o corpo é antes generalizado
do que diferenciado, e, quando o é, é infalivelmente em função da predominância do
corpo interior ou do corpo exterior, do ponto de vista subjetivo ou objetivo, conforme
nos baseamos em nossa própria vivência ou na vivência do outro; no primeiro caso, o
fundamento é a categoria dos valores do eu, à qual se vinculará o outro, e, no segundo,
a categoria do outro, que englobará a mim também.[...] É óbvio que nos casos em que
a categoria do outro desempenha um papel determinante para a elaboração da
concepção do homem, o que predomina é a apreciação positiva e estética do corpo: o
homem é um ser encarnado que tem um significado plástico-pictural; quanto ao corpo
interior, ele está a reboque do corpo exterior do qual apenas reflete os valores e tira
sua sacralidade. [...]. Então, todo o corporal é sacralizado através das categorias do
outro, é vivido como algo valioso e com significado imediato; a determinação dos
valores peculiares a si próprio é submetida a uma determinação exterior através do
outro e para o outro, o eu-para-mim é dissolvido no eu-para-o-outro. [...] A
configuração plástica começa a esfumar-se; o homem em seu acabamento plástico - o
outro - fica imerso na percepção interna do corpo que, mesmo não sendo
individualizada, é una. (BAKHTIN, 1997, p.71-72)

Criador e criatura são solitários, assim como o narrador durante o processo de criação,
mesmo quando idealiza um interlocutor. A busca pelo outro se dá também pela constatação de
que seu duplo não é seu igual, a relação de criador e criatura ainda não se dá por completo, é
preciso que depois de criado o homem, para ele seja criada uma Eva, ou uma Ana Pascal para
Harold, ou um Olímpico para Macabéa, ou uma noiva de Frankenstein. É revisitado também o
mito de andrógino, contado por Platão em O Banquete: seres que, ao se revoltarem contra os
deuses do Olimpo, foram divididos em dois, e passam o resto de suas existências procurando
por sua metade. (2003, p. 20)

Além dos temas do outro e do conflito, a ironia dramática, abordada pelo professor e
presente no julgamento em Édipo Rei, também acontece no Capítulo VIII de Frankenstein,
durante o julgamento de Justine, acusada de matar o irmão mais novo de Victor. Tanto o leitor
quanto Frankenstein, que nesse momento narra o episódio, sabem que foi o monstro que o
matou. (p. 66-70).
95

O romance também possui fortes traços de metalinguagem pela maneira com que foi
escrito: Mary Shelley cria o narrador, o capitão do navio, Robert Walton, que na primeira
parte do romance relata, por meio de cartas enviadas à irmã, os acontecimentos que Victor
Frankenstein lhe contara após ser resgatado no mar. Uma estória dentro de outra, que não
deixa leitor esquecer as camadas de narrativa, pela constante evocação à irmã. Em alguns
momentos existe mais uma camada de narração: quando o monstro conta ao seu criador o que
lhe aconteceu, durante o ano que viveu na floresta, numa casa em que ouvia seus vizinhos
contarem a história de suas vidas; nas cartas, dentro da narração de Frankenstein, de sua prima
Elisabeth e seu pai Alphonse.

Além de evocar a metalinguagem, a existência de diferentes camadas de narração, ou


uma narrativa dentro de outra, também servem ao propósito de questionar o elemento
fantástico por aqueles que não tiveram contato com ele, apenas o conhecem pelo relato da
personagem que o presenciou. Isso acontece com Harold, quando se consulta com a
psicanalista e quando conta ao professor sobre a voz. Essas personagens não conhecem a
mesma realidade que Harold e Frankenstein, e podem questionar sobre a veracidade dos fatos
e também levar o leitor a isso, pois sua vacilação, como afirma Todorov (1981, p. 19), é a
primeira condição do fantástico.

Tanto Harold quanto o monstro de Frankenstein têm acesso a suas origens pelos
manuscritos de seus criadores. Harold lê o romance, o monstro lê as anotações de Victor, e é
por essa leitura que cada um aceita seu destino. Harold diz a Karen que só há uma maneira
que o livro pode terminar (1h 31min 38s), enquanto o monstro diz que a aquisição de
sabedoria reforçou a noção do pária que ele sempre será (SHELLEY, 2001, p. 106). Ambos
aceitam seus fins.
96

6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Durante a entrevista, Harold não compreendia os métodos do professor, e o questiona:


(34 min 20 s) [ Harold:] - I'm sorry. What do these questions have to do with
anything?
[Prof. Hilbert:] - The only way to find out what story you're in is to determine what
stories you're not in. Odd as it may seem, I've just ruled out half of Greek literature
seven fairy tales, 10 Chinese fables and determined conclusively that you are not King
Hamlet, Scout Finch, Miss Marple, Frankenstein's monster, or a golem. Hum? Aren't
you relieved to know you're not a golem?
- Yes, I am relieved to know that I am not a golem.
- Good. Do you have magical powers?*

O professor justifica, revelando sua formação leitora e seus métodos. Ao contrário de


um linguista terminológico, que busca a definição de “algo pelo que é”, nunca pelo “que não
é”, o crítico literário busca delimitar sua pesquisa ao máximo, até conseguir delimitar um
único objeto. Um leitor que tem conhecimento do discurso acadêmico em um programa de
pós-graduação pode facilmente reconhecer esse procedimento, ainda mais se considerar que
esse professor também é orientador de alunos de doutorado. Ele prossegue com as perguntas:

(37 min 02 s) [ Prof. Hilbert:] - What's your favorite word?


[Harold: ] – “Integer”.
- Good, good, good.
- Do you aspire to anything?
- No.
- Conquer Russia? Win a whistling contest?
- No.
- Harold, you must have some ambition.
- I don't think so.
- Some underlying dream. Think.

*[ Harold:] - Olhe, o que essas perguntas têm a ver com qualquer coisa?
[Prof. Hilbert:] - A única maneira de saber em qual história você está é determinando em quais
não está. Por mais estranho que pareça, já eliminei da lista metade da literatura grega, sete
contos de fadas, 10 fábulas chinesas e sabemos que não é o Rei Hamlet, Scout Finch, nem Miss
Marple, o monstro Frankenstein, nem um golem. Hum? Não está aliviado de não ser um
golem?
- Sim, estou aliviado em saber que não sou um golem.
- Bom. Você tem poderes mágicos? (tradução nossa)

[ Prof. Hilbert:] – Qual sua palavra favorita?
[Harold: ] – “Inteiro”.
- Bom, bom, bom.
- Você aspira a alguma coisa? [...] Conquistar a Rússia? Vencer um torneio de assobios?
Harold, deve ter alguma ambição.
- Acho que não.
- Algum sonho subjacente. Pense. (tradução nossa)
97

O questionamento de Hilbert quanto às ambições de Harold implicam, novamente, as


definições do herói. Harold não tem ambições ou sonhos. Esse tipo de perspectiva perante a
vida traz à tona questões do sujeito moderno, e consequentemente ao herói moderno de
ficção. Harold faz parte de uma classe de trabalhadores cujo único objetivo é sobreviver.
Apesar de ser um funcionário do governo, não deixa de fazer parte de uma classe operária (se
considerarmos, além de seu trabalho, suas operações matemáticas). Não chega, porém, a ser
de uma classe proletária, já que não tem filhos. A identidade do herói, portanto, também leva
a um questionamento quanto a seu papel num contexto sociológico, pois ao mesmo tempo em
que representa o governo e é visto pelas outras personagens como representante da opressão,
ele também é oprimido pelo contexto das situações em que é colocado. Não há muito a ser
narrado, como diz o professor, e nesse vazio existencial Harold novamente apresenta mais um
ponto em comum com uma gama de heróis modernos, como Macabéa, por exemplo, que se
não estiverem inseridos em um contexto do fantástico, não possuem poderes concedidos por
deuses ou outras entidades, e são incapazes de grandes feitos, tornando-se vítimas da
sociedade, ou acabam fazendo parte de estórias de superação, num ideal romântico
exacerbado, de um tipo que ainda se perpetua na ficção, sobretudo nas leituras folhetinescas,
nos romances infanto-juvenis e no cinema voltado para as grandes massas, os chamados
blockbusters (algo como “arrasa-quarteirão).

Sendo assim, a criação ficcional opta entre fazer uma releitura de uma obra anterior ou
tentar quebrar esses moldes, entre resgatar o passado, retratar o contemporâneo ou vislumbrar
o futuro, entre descrever o espaço reconhecível ou criar novos universos. Porém, quanto mais
próximo do real, contemporâneo e do espaço reconhecível, mais forte é para o criador a
tendência a explorar os dramas humanos na obra ficcional (o que não impede esses dramas de
serem explorados em obras de contexto totalmente fantástico, como a ficção científica). Ao
criar um herói cotidiano e um narrador para contar seus atos, criam-se também dilemas passa
para o narrador, que em certo momento se perguntará: “O que farei com esse livro?”. Ele
pode optar por buscar poesia nas cenas do cotidiano, como muito se vê na poesia parnasiana,
porém o poeta busca o objeto ideal, e comparado com o real, esse objeto mais se assemelha à
natureza morta. O cotidiano é devastador e beira o grotesco. A solidão se torna um tema
recorrente para o herói moderno, que mesmo tendo com quem interagir, vê o no outro o
estranho, e o único que realmente o conhece é o narrador de sua estória, porém este também
sente estranhamento por essa criatura, e é forçado a decidir seu destino: um final feliz ou uma
morte trágica. Obviamente na Literatura há também autores que optam pelo anti-clímax ou
98

por uma obra estática, sem conflitos maiores em que nada muda em relação a humores -
porém o fato de interromper a estória antes de seu desfecho, recurso muito utilizado por José
Saramago, por exemplo, desperta no leitor a interpretação do final da estória, se feliz ou triste.
A obra estática, por sua vez, retoma em seu desfecho o estado anterior de humores, também
limitado a essas duas realidades.

Essa dicotomia também inspira a explicação de Prof. Hilbert quanto ao propósito de


suas perguntas, citando Italo Calvino:

The last thing to determine conclusively is whether you're in a comedy or a tragedy.


To quote Italo Calvino: “The ultimate meaning to which all stories refer has two faces:
The continuity of life, the inevitability of death.” Tragedy, you die. Comedy, you get
hitched. (37min 47s) *

Hilbert demonstra nessa citação sua formação dialógica por uma intertextualidade
explícita, visto que, segundo Bakhtin, “[o] discurso citado é visto pelo falante como a
enunciação de outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma
construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (Bakhtin 1997, p.144). Mesmo
numa manifestação oral, o texto do professor infere as aspas delimitando sua citação, assim
como foram utilizadas na elaboração do roteiro. Também sobre a citação Maingueneau
afirma que

As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um
destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja
consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente, oferecer
a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que
assume através destas aspas. Colocará aspas, por exemplo, para proteger-se
antecipadamente de uma crítica do leitor, que, supostamente, esperará um
distanciamento frente a determinada palavra, mas poderá, igualmente, não colocar as
aspas para frustrar esta expectativa, provocando um choque semântico [...]
(MAINGUENEAU, 1989, p. 91).

As aspas, sobretudo no discurso acadêmico, trazem autoridade ao enunciado, no que


Bakhtin chama de reificação da palavra:

* A última coisa a determinar conclusivamente é se você está em uma comédia ou em uma


tragédia. Citando Ítalo Calvino: “O sentido ultimo de todo relato tem duas faces: A
continuidade da vida e a inevitabilidade da morte.” Tragédia, você morre. Comédia, você se dá
bem (tradução nossa).
99

Toda a atividade verbal consiste, portanto, em distribuir a “palavra de outrem” e a


“palavra que parece ser a de outrem”. Mesmo as ciências humanas desenvolveram
uma tendência a substituir afirmações responsáveis acerca de um problema por uma
descrição do estado atual das pesquisas na área, incluindo cálculo e adução indutiva do
“ponto de vista geralmente admitido nos nossos dias”; esse procedimento é mesmo
algumas vezes considerado a melhor “solução” possível de um problema. Em tudo
isso se manifesta a alarmante instabilidade e a incerteza da palavra ideológica. O
discurso literário, retórico, filosófico, e o das ciências humanas tornam-se o reino das
“opiniões”, das opiniões notórias, e mesmo nessas opiniões não é tanto o “quê” mas o
“como” individual ou típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano. Esse
processo que afeta o destino da palavra na Europa burguesa contemporânea e aqui na
União Soviética (no nosso caso, até tempos muito recentes) pode ser caracterizado
como uma reificação da palavra, como uma deterioração do valor temático da
palavra. (BAKHTIN, 2006, p. 201)

Como vimos, Bakhtin ressalta que o “discurso de outrem” afeta não só o texto
científico - que vê as citações como necessidade primordial e leva o acadêmico a se preocupar
muito mais com o que foi dito sobre um assunto do que elaborar suas proposições – mas
também toda atividade verbal, incluindo a ficção. A citação de Hilbert possui uma segunda
intertextualidade, presente no discurso de Italo Calvino: comédia e tragédia são dois dos
gêneros tratados por Aristóteles em A Arte Poética, datada de IV a.C..

Considerada um dos primeiros e mais importantes estudos sobre a criação estética, a


Poética serviu como base para diversos trabalhos de análise de personagens de ficção na
história da Crítica Literária. Nessa obra, Aristóteles caracteriza o herói pelo gênero de intriga
em que ele está inserido e considera como traço da intriga complexa a descoberta da
identidade do herói (ARISTÓTELES, 2004, p. 13), e notamos que esse procedimento também
é adotado pelo Prof. Hilbert em Mais estranho que a ficção, que busca pela descoberta da
intriga também revelar o herói.

Essa identidade do herói também é descrita por Bakhtin em Estética da Criação


Verbal:

O autor não encontra uma visão do herói que se assinale de imediato por um princípio
criador e escape ao aleatório, uma reação que se assinale de imediato por um princípio
produtivo; e não é a partir de uma relação de valores, de imediato unificada, que o
herói se organizará em um todo: o herói revelará muitos disfarces, máscaras aleatórias,
gestos falsos, atos inesperados que dependem das reações emotivo-volitivas do autor;
este terá de abrir um caminho através do caos dessas reações para desembocar em sua
autêntica postura de valores e para que o rosto da personagem se estabilize, por fim,
em um todo necessário. ( BAKHTIN, p. 26)
100

As questões de identidade, portanto, também sofreram modificações históricas: a


maneira pela qual o sujeito se vê também modifica a maneira com que o homem se representa
esteticamente.

Como podemos ver, Mais estranho que a ficção também nos permite refletir sobre a
historicidade da análise literária, pois além de abordar temas do teatro épico grego, passando
pelo Romantismo e chegando ao herói moderno, existe um debate de vozes que diferem da
voz do autor: quando Harold descobre a identidade da narradora e entrega o romance
inacabado nas mãos de Hilbert, o professor tenta convencer o protagonista de que a morte é
necessária, enquanto Harold, obviamente, deseja viver, e Karen, a escritora, entra em conflito
sobre o que fazer. Esse dilema sumariza a tensão principal do filme e demonstra a essência da
polifonia, que, para Bakhtin, “consiste no fato de que as vozes permanecem independentes, e
como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à homofonia.” (Bakhtin, 2010, p.
21). Diferente de uma leitura maniqueísta das personagens, que os consideraria protagonistas
ou antagonistas, a obra ficcional tem em suas personagens “vozes diferentes, cantando
diversamente o mesmo tema. Isso constitui precisamente a ‘polifonia’, que desvenda o
multifacetado da existência e complexidade dos sofrimentos humanos” (Idem, p. 49).

Sendo assim, além de repleto de traços de intertextualidade, o discurso do professor


em Mais estranho que a ficção também apresenta propriedades dialógicas através da polêmica
que ele desperta junto a outras personagens, em certos momentos gerando dúvida e
estimulando os conflitos. Por ser extremamente denso, esse discurso não atinge a todos e não
é totalmente compreendido, como pode ser observado pelas reações de estranhamento de
Harold, o que obriga o professor a traçar novas orientações, como por exemplo, tentar
descobrir se a vida do herói consiste em uma comédia ou em uma tragédia. Em seu terceiro
encontro com o professor, Hilbert recomenda que ele não faça nada:

(47min 56s) - Professor Hilbert, I've totally failed at the comedy-tragedy thing. In
fact, I think she likes me even less.
- I know, it's great.
- What do you mean? You've proved something else entirely. The voice seems to be
dependent on actions you take. You reset your watch, it says you reset your watch.
You ride a bus, it says you ride the bus. You brush your teeth, it says you brush your
teeth. It may be that you yourself are perpetuating the story. So I suggest we try
something else.
101

- Like what?
- Try nothing. Nothing.*

Harold segue o conselho do professor: fica em casa, assistindo a programas sobre o


meio ambiente na televisão. Apesar da temática supostamente neutra deste tipo de programa,
os acontecimentos exibidos relatam diferentes mortes de animais: pássaros que antes eram
predadores, se tornando presas (o que também pode nos remeter à inversão de papéis presente
no filme), macacos que terão olhos arrancados e ataques de tubarões, águias e crocodilos.
Harold não se levanta do sofá, evita até mesmo trocar de canal, seguindo a ordem de nada
fazer. O telefone começa a tocar, Harold não atende, e o relógio começa a apitar, formando
uma seta. Harold tenta desligá-lo, quando um trator adentra seu apartamento pela janela,
soando como o rugir de um leão, como se dando continuidade aos programas sobre a natureza
selvagem. Mesmo não fazendo nada, portanto, o conflito persegue Harold, e a morte não
deixará de rondá-lo enquanto o herói não entrar em decadência e morrer.

Karen, a criadora de Harold, sente a necessidade de matar seus protagonistas em todas


as obras, e se fosse diferente, não as consideraria completas. A visão de Karen também
coincide com a de Bakhtin não só neste sentido, mas também na crença da decadência do
herói como uma oportunidade de se reerguer (Bakhtin, 1987, p. 19). A morte de Harold,
entretanto, tem efeito mais devastador para a escritora do que para o herói. Há, então, o
destronamento final da Criadora, consequência de um processo de carnavalização que tomou
forma no início do filme, a partir do momento em que sua voz deixa de representar uma
narradora onisciente e se torna personagem da estória, quando passa a ser ouvida por Harold.

Nessa carnavalização de criadora e criatura há o rebaixamento que dá função para a


voz de Karen, visto que, na narrativa escrita, o narrador tem como papel principal filtrar os
sentidos da personagem. No cinema, porém, com a gama de recursos de câmera, sonoplastia e
edição, dentre outros, torna-se desnecessário que o narrador relate o que a personagem está

*
- Professor Hilbert, eu falhei totalmente nesta coisa de comédia-tragédia. Ela gosta menos
ainda de mim. Eu sei, é ótimo.
- Como assim?
- Você provou outro ponto. A voz parece condicionada às suas ações. Você acerta o relógio,
ela diz que você acerta o relógio. Você pega o ônibus, ela diz que você pega o ônibus. Você
escova os dentes, ela diz que você escova os dentes. Pode ser que você mesmo esteja dando
continuidade à trama. Então, sugiro tentarmos outra coisa.
- O quê?
- Não tentar nada. Nada.
102

vendo ou por onde está passando, pois essas informações externas são mostradas. Por outro
lado, na Literatura, “nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma
consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da realidade da
personagem, mas diante da função pura de tomada de consciência dessa personagem por ela
mesma.” (BAKHTIN, 1997, p.47). O texto escrito, portanto, traz a possibilidade de optar por
relatar o mundo interno da personagem antes do externo, o que requer técnicas mais
sofisticadas de elaboração quando se tenta fazer o mesmo no cinema, que visa trazer uma
ilusão de materialidade.

A materialização de Harold serve para que Karen adote uma nova postura perante a
morte, ante a descoberta de que a morte de Harold deixaria de ser fictícia, simbólica, para ser
real. Ela não consegue digitar as últimas letras da frase “Harold Crick está morto”, suas mãos
sujas de sangue não permitem que acenda seu cigarro. Ela se agarra à máquina de escrever, a
câmera volta-se para a janela e ao invés da transição de uma cena para outra por meio de um
escurecimento da imagem ou um corte abrupto, a câmera transita para a janela, cuja luz faz
com que o branco inunde a tela, como num momento de sublimação ou epifania.

Karen, que antes criava formas de sofrimentos para Harold, passa a sofrer por sua
causa. Essa inversão de papéis, característica da carnavalização, consequentemente envolve a
todos neste processo. Até mesmo Penny, a assistente, cujo papel na narrativa consistiu apenas
em servir como interlocutora de Karen até que houvesse outros sujeitos de interação, precisou
modificar sua postura de, como ressalta ser um de seus principais atributos quando se
apresenta, nunca ter atrasado nenhum trabalho, precisou ser revisto; o professor Jules Hilbert,
nos momentos finais do filme, que aparentemente foi o último a ceder de sua posição de
mestre, despe-se e atira-se em uma piscina, quase num ritual de renovação; o deus ex machina
da obra também foi rebaixado: Harold foi salvo por uma lasca do relógio; e finalmente o
conceito de morte heróica também foi desestruturado.

A narrativa cumpre, portanto, sua função modificadora sobre o protagonista, que adota
uma renovação de postura filosófica perante a vida. Vive a tragédia moderna, que são as
tragédias de todos os dias, a social e a pessoal, para que assim seja cumprida a jornada do
herói.
103

Em Mais estranho que a ficção, a causa em questão é livrar Harold do domínio do


relógio e da rotina que lhe é imposta. Harold representa o homem do dia-a-dia, e a partir do
momento que o fantástico o torna concreto para aqueles que o viam apenas como uma
personagem, sua problemática passa a ser mais complexa, pois a vida real é, sem dúvida, mais
estranha que a ficção.
104

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista seu processo de produção de sentido, podemos concluir que a


intertextualidade tem uma função metonímica dentro do texto. O processo pelo qual as partes
remetem ao todo, porém, depende daqueles que as contemplam, ou como afirma Laurent
Jenny, a intertextualidade funciona como espelho dos sujeitos (p. 47, 1979).

Dentro das manifestações de intertextualidade está a mise en abyme, que a aproxima


intertextualidade da metalinguagem, e consequentemente traz a reflexão sobre o metatexto e a
metaficção. Esse viés de estudo, entretanto, merece uma pesquisa à parte, visto que sua teoria
ainda tem ligações maiores com a reflexão sobre a língua e a linguagem do que com a teoria
literária, além dos aspectos filosóficos que carecem ser aprofundados para tal estudo, dentre
eles as questões existenciais que a desestruturação da narrativa provoca através da
metalinguagem, como pode ser constatado em O Mundo de Sofia, cuja reflexão filosófica é
evidente na temática da obra.

A temática da metalinguagem em Mais estranho que a ficção também tem forte


relação intertextual com a peça teatral Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi
Pirandello, com o romance Niebla, de Miguel de Unamuno, com Ulisses, de James Joyce e
com a teoria do teatro brechtiano. Tais obras não foram ignoradas, porém, na escolha do filme
como objeto de estudo, foi possível perceber que o primeiro intertexto identificado no
processo de elaboração desta pesquisa, A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, servira
apenas como estopim para uma quantidade muito maior de referências, revelando que a
pesquisa intertextual leva a caminho nos quais o estudioso pode se perder, dada a
impossibilidade de esgotar todo um texto: metaforicamente falando, como no conto Do rigor
da ciência, em que Borges (2000, p. 75) cita Viajes de varones Prudentes, de Suarez Miranda,
corre-se um risco de tentar criar um mapa maior que a cidade descrita.

A discussão que o próprio filme provoca dentro de sua estória, citando exemplos de
personagens, narradores, conflitos de narrativas, gênese textual e gêneros literários permite
também uma reflexão sobre esses temas e contendo, inclusive, o questionamento da própria
ficção, dada a impossibilidade da reprodução do real.
105

As questões de identidade abrangem não só as personagens da ficção, mas também


aqueles que leem. Ao discutirmos o espaço do professor de Literatura, notamos o quanto sua
sala ilustra seu discurso extremamente intertextual, da mesma forma que a narradora também
descreve o livro que lera.

Quanto ao protagonista, por não entender o suficiente de Literatura, é vítima dos


recursos utilizados num texto literário, dentre elas a prolepse e as formas de ironia, que ao
mesmo tempo revelam e escondem do protagonista o seu destino. A ironia também aparece na
forma de sedução no discurso do professor, que envolve Harold e torna os diálogos mais
prazerosos para o espectador.

O diálogo no texto cinematográfico, assim como no teatral, serve para revelar aspectos
das personagens que dificilmente poderiam ter sido notadas ou ter recebido a devida atenção,
além do que, dependendo do gênero da obra, é o que a sustenta. Ao analisar as falas do
professor, não pelo aspecto formal, mas pelos seus significados, foi possível identificar uma
gama de referências que justificam a escolha da personagem para ajudar o protagonista, pois o
conhecimento do mundo ficcional lhe permitia antecipar os desdobramentos da narrativa.
Mesmo se tratando de uma obra moderna, a estrutura da jornada do herói clássico foi mantida.

Em Mais estranho que a ficção essa jornada, própria do gênero épico, também transita
para o romance policial, a tragédia, a comédia, os mitos, e finalmente para as obras em que a
relação entre criador e criatura é evidenciada. Para nossa surpresa, na leitura dessas obras
citadas, sobretudo em Frankestein e Pinóquio, foi possível perceber que a intertextualidade se
manifestou além da simples referência, trazendo toda uma estrutura temática em comum, que
inclui as questões do abandono pelo criador, do confronto entre criador e criatura, da
decadência do criador, da citação como antecipação do desfecho e da obrigatoriedade da
morte do herói como conclusão da estória.

Pela grande variedade de objetos aos quais a análise sobre o filme remete,
contrastando com as delimitação necessária para o trabalho acadêmico, esta pesquisa abre
possibilidade para futuros desdobramentos, dentre eles o aprofundamento da análise no viés
da metalinguagem, a assimilação de outras obras não citadas neste trabalho, e sua aplicação
na sala de aula.
106

O viés da educação, que serviu de elemento motivador para esta pesquisa, já tem sido
trabalho há três anos na Escola Estadual Major Arcy, e o filme Mais estranho que a ficção
tem sido utilizado tanto como ferramenta pedagógica para o ensino da intertextualidade, em
que os alunos realizam o que por nós é chamado de uma quest, buscando encontrar
referências como as trabalhadas nesta pesquisa, e após essa atividade o filme serve como
inspiração para um projeto de criação de personagens. Este trabalho prático, da mesma
maneira como aconteceu nesta pesquisa, comprovou que a intertextualidade e seu estudo
podem ser utilizados como formas de incentivo à leitura, visto que alunos e professor sentiram
a necessidade de conhecer obras citadas no filme das quais ainda não eram familiarizados.

Esta análise também traz luz sobre o problema da falta de leitura entre os jovens:
como Barthes afirma, um dos prazeres no texto está na intertextualidade, quando o leitor
reconhece, mesmo inconscientemente, algo já visto. O aluno em idade escolar não tem ainda
um repertório vasto o suficiente para tal reconhecimento e, portanto, sua leitura é menos
prazerosa. Ao trazer para sala de aula textos, filmes, músicas e outros recursos em que a
intertextualidade esteja presente, ou até mesmo possibilitando que os alunos o façam, é
possível formar leitores que busquem a Literatura como forma de prazer, e não uma simples
obrigação escolar, pois como afirma Robert Zajonc (2001), quanto mais se vê, mais se gosta.
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