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pertence ao âmbito constitucional ou penal: mesmo que o autor opte pela primeira opção, o

simples fato de ter que afirmar essa posição é indício de que a questão era problemática, e não
pacífica como antes.
A persistência da dubiedade sela o destino do instituto. Híbrido, a graça não se prestava
de maneira perfeita a solucionar alguns dos problemas que ela vinha enfrentando, como a
questão dos erros judiciários e a expiação da culpa pelo réu. Nesses aspectos, ela foi em muito
substituída por institutos de caráter puramente processual penal e penal – respectivamente, a
revisão criminal e o livramento condicional – cujo desenho se prestava mais adequadamente a
essas finalidades. Mas não é como se a graça deixasse de existir ou fosse substituída – a canoa,
a terceira margem, não afunda, apenas segue o curso do rio. Mas essas são outras águas, além
do curso que escolhemos navegar nessa pesquisa.

5.2 – A corrente do rio

Perdoar é governar. Essa colocação seria trivial, especialmente se pensarmos no que a


historiografia já foi capaz de verificar sobre o funcionamento da graça durante o Antigo
Regime. Mas o funcionamento do governo na modernidade é outro, e, para entendermos o que
significa a graça nesse período, precisamos pensá-la em conjunto com essas modificações.
Permanece a ligação entre graça e soberania, é verdade: “O direito de graça, inseparável do de
punir, se tem tornado a prerrogativa do soberano” (PESSOA, 1885, p. 151); a mão pesada que
pune é mesma que docemente perdoa: não se tratam de duas atitudes opostas, mas dos dois
lados da mesma moeda, unidos firmemente pela ligadura representada pelo interesse do
Estado253.
Essa continuidade, que é de ordem teórica, se revela até no aproveitamento de
expressões. A expressão que escolhemos por título do nosso trabalho, “a mais bela prerrogativa
da coroa” era corrente tanto no Brasil quanto fora dele desde o Antigo Regime até tarde no
século XIX. Era empregada, com variações, até mesmo pelos adversários do perdão. Dentre os
que a utilizam estão Beccaria (“o direito de graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa do
trono” [ s.d. {1764}, p. 114]); Jeremy Bentham (“O poder de perdoar, dizemos, é a mais nobre
prerrogativa da coroa” [1830, p. 210]); Magalhães Castro (“mais radioso florão da corôa”

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Pessoa (1885, p. 152) afirma: “Vatel ajunta: a mesma natureza do governo exige que o executor das leis tenha
o poder de dispensar, quando póde, sem aggravode pessoa alguma, e em certos casos particulares em que o bem
do estado exige uma excepção.... Mas o soberano, em toda a sua conducta, não deve ter em vista senão a maior
vantagem da sociedade”.

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[1888, p. 22]); Almeida Valle, citado por Magalhães Castro (“a mais bella attribuição, que a
Constituição conferio á Coroa” [1888, p. 139]; Antônio Herculano de Souza Bandeira Filho
(“Entre as attribuições que a nossa Constituição fixou ao Poder Moderador figura, como uma
de suas mais bellas prerogativas, o direito de agra-ciar” [1878, p. 3]); Brás Florentino Henriques
de Souza (“o mais bello attributo de sua soberania, - o direito de agraciar” [1864, p. 254]);
Pimenta Bueno (“tão bella faculdade” [1857, p. 214]). Mesmo a imprensa também lançava mão
da expressão: o “Astro de Minas”, na sua edição de 25 de agosto de 1831, afirma que “o direito
de agraciar é uma das mais bellas prerrogativas do throno”. Essa tradição parece advir do tratado
de clementia, escrito por Sêneca a Nero no século I AD. Na obra, ele afirma que “ninguém
poderá imaginar maior ornamento para o soberano do que a clemência” (SÊNECA, 2013, p.
67), que ela “é, ao mesmo tempo, seu ornamento e o mais sólido meio de preservação dos
poderes imperiais” (SÊNECA, 2013, p. 60). Também diz que “não há ornamento mais digno
da proeminência do príncipe e nada mais belo do que a famosa coroa ‘por ter salvo a vida de
cidadãos’” (SÊNECA, 2013, p. 76). Esse tratado teve ampla circulação na Europa medieval, e
com ele Sto. Tomás de Aquino (2017) dialogou amplamente da questão “sobre a clemência e a
mansidão” da suma teológica. Inclusive, todo o art. 4 dessa questão é destinado a definir se “a
clemência e a mansidão são as virtudes mais importantes”. Mostra da longa vitalidade não só
do instituto, como deste seu belo elogio.
Mas se alguma continuidade existe, também podemos apontar as rupturas.
O significado do perdão muda sutilmente ao mesmo tempo em que a própria ideia de
como se deve governar se altera. Enquanto que, no Antigo Regime, o monarca deveria ter por
função fazer justiça, entregando benesses e mercês, mas também julgando e resolvendo
conflitos, na modernidade, o papel do governo passa a ser antes de mais nada de caráter
administrativo. Não mais compor as controvérsias, mas agir para conformar um determinado
projeto de sociedade. O ato de perdoar, no primeiro contexto, se insere no âmbito da economia
das mercês, e funciona como uma forma de reforçar o elo entre o súdito e o monarca. Não é um
direito, mas uma benesse, e é justamente a gratidão pelo recebimento imerecido do presente
que o vínculo com a majestade se reforça. Mas a graça também é uma forma de fazer justiça: é
uma parte do poder jurisdicional, é um modo de julgar. Mas no segundo caso – o da
modernidade – o Imperador já não mais integra um poder único, mas ocupa o braço executivo.
Comutar continua a significar governar, mas com a inserção de um conceito que anteriormente

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não havia: o de interesse público254. Mais que isso: na pré-modernidade, a clemência era uma
virtude do soberano, uma disposição do caráter orientada para a construção do bem comum. A
partir do século XIX, a graça deixa essa esfera íntima do governante e se converte em poder,
prerrogativa, submetida aos ditames da noção de utilidade pública. O perdão adquire uma outra
racionalidade: deixa de ser um governo pela constante imposição e retirada da ameaça da
punição, e passa a ser ação sistemática, orientada por critérios muito mais do caso concreto do
que por considerações de ordem mais geral e coletiva. Perdoa-se quando o sistema falha, ou
quando há necessidade de administrar uma revolta. Não por misericórdia imperial, meramente.
A retórica da clemência se mantém, e é um topos argumentativo importante para a construção
da imagem do instituto, mas a sua legitimação filosófica, seu embasamento jurídico, não pode,
com o advento da modernidade, deixar, de forma alguma, de prestar contas às novas “razões de
Estado” e de a elas se submeter. A beleza da graça é, portanto, um interessante verniz, que pode,
porém, ser descartado quando se tornar inconveniente. Mesmo que em ambas as épocas o
interesse da população e o controle da criminalidade estejam em jogo, elas se articulam em
modelos diferentes de efetivação do governo dos povos por meio do perdão.
Articulemos de outra forma, e com apoio dos conceitos que a própria modernidade
jurídica institui. São as categorias de governo e de administração, as duas formas de ação do
Poder Executivo: a primeira, atuação sobre o contexto político e as suas razões; e a segunda,
atividade diária e técnica de gestão do interesse público. A graça, segundo nossa interpretação,
vai deixando de integrar uma esfera de governo da justiça para uma administração da justiça:
o instituto vai ficando cada vez mais cotidiano, o caminho de sua avaliação passa por conselhos
e instâncias administrativas. O Império é justamente o momento de transição entre o período
colonial, em que as ideias do Antigo Regime ainda vigem, e a República, em que a natureza
administrativa da graça se torna mais acentuada.
Essa colocação poderia abrir o flanco para acusações (acertadas, é fato) de que
subvertemos o sentido tradicional do termo “administração da justiça”. A primeira palavra
dessa locução, na realidade, aparece com o sentido não de atividade de gestão, mas com o

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Mostra desse caráter público do perdão no século XIX é a inclusão da possibilidade de peticionar a graça no
rol de prerrogativas do Ministério Público, por meio de projeto de lei de organização do Ministério Público,
apresentada por Nabuco de Araújo em 15 de maio de 1866, definia: “Art. 4º O ministério público, no interesse da
lei e em relação à ordem pública e liberdade individual, compreende: (...) § 7º a impetração da graça imperial em
favor dos condemnados quando o processo for evidentemente nullo ou a condenação se fundar em falsa prova”; e
“Art. 7º Ao procurador da coroa, fazenda e soberania nacional, compete: (...) § 7º Impetrar a graça imperial em
favor dos condemnados quando o processo for evidentemente nullo ou a condenação se fundar em falsa prova
verificada posteriormente à condemnação” (1866, v.1, p. 98). Na sequência, não conseguimos encontrar a
discussão do projeto de lei, e a ausência de referências a ele nos anos subsequentes na “Coleção das Leis do Império
do Brasil” faz supor que não chegou a ser aprovado.

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significado de “concessão”, “fornecimento”, da mesma forma que ocorre na expressão
“administrar um medicamento”. Para sermos etimologicamente mais precisos, poderíamos
afirmar, então, que o movimento que se opera é de uma administração da justiça para uma
administração do direito. No Antigo Regime, a conexão entre direito, moral e teologia era
muito mais forte, e a preocupação central não era tanto a de fazer cumprir uma norma
autoritativa, mas a de efetivar uma série de preceitos mais fluidos e maleáveis, emanados da
vontade divina. Fazer a justiça no caso concreto, muito mais do que aplicar estritamente as
regras – eis o mote do velho ius commune e dos direitos que se desenvolveram em seu seio. A
autonomização científica do direito vai adquirindo grande importância ao longo do século XIX,
e a força da legalidade é a grande expressão desse processo. A graça vai progressivamente
sendo capturada nos esquemas de atuação do mundo jurídico e nas suas instituições, como o
Conselho de Estado, com os seus avisos e resoluções, e a doutrina, que define os casos estreitos
em que ela pode ser concedida. Sua tarefa é apenas subsidiariamente a de realizar a justiça, que
se desloca para um pano de fundo filosófico. No cotidiano comezinho, o sentido direto da graça
é a integração de falhas no sistema: suprir recursos que não existiam, reconhecer falhas
processuais, abolir a pena de morte, etc. Um movimento que ocorre no Império, mas que se
intensifica na República255. Carlos Maximiliano (1918, p. 518. Grifo do autor), por exemplo,
coloca que:

O indulto é uma graça, um ato de clemência; não o podem reclamar como um direito.
Entretanto, nenhum governo, que se respeite, perdoará, por mera bondade,
sentimentalismo ou alfeição (sic). As lágrimas das mães, as misérias dos filhos, ou as
súplicas de amigos preclaros dos parentes dos criminosos não devem influir no
espírito do presidente. É qualidade rara de homem de estado a resistência oportuna ao
pendor natural para acções de pura magnanimidade. O direito de indulto não é mais
prerrogativa régia, de efeito impressionante; e, sim, contrapeso aos excessos do
judiciarismo.

Uma progressiva juridicização, portanto, no sentido de densificação normativa. O


perdão desce de seu inefável pedestal e vai se aproximando da impessoalidade da burocracia.
Cada vez menos vivaz como uma joia da coroa – e a mais resplandecente – e cada vez mais
uma ferramenta nas mãos do serviço público. Uma trilha curiosa, e, até certo ponto, melancólica

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O afastamento da graça do âmbito político pode ser percebido claramente em autores da república. No mesmo
espírito, João Barbalho Uchôa Cavalcanti (1902, p. 134) afirma que “Por outro lado, retira-se aos governos uma
atribuição que não está no seo papel e que poderá servir, em certas condições, para manejos e transações, com
sacrifício da justiça. Será caso virgem nos anais da administração pública o perdão por motivo eleitoral, por
conquistar a adesão de influências partidárias (...) sem dificuldade pode ver no perdão um competidor da patente
de guarda nacional como elemento de governo”.

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para o instrumento que outrora era o sinal mais fulgurante da ligação entre a majestade celeste
e a terrestre.
Mas a terceira margem, tenaz e insondável que é, continua a invadir as águas do
ordenamento jurídico de nossos dias, carregando os mistérios da ligação entre passado e
presente, divino e humano, justiça e liberalidade, empatia e rigor, trazendo até nossos dias as
contradições e esperanças de que sempre foi portadora. Perturbando a placidez de uma
paisagem jurídica que se pretende plana e monótona, ela revolve os sentimentos e os mistura às
certezas, colocando interrogações onde antes havia impavidez. Um percurso sempre insolente
e empolgante, que não cansa jamais de surpreender. Esperemos pelos próximos capítulos dessa
história.

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