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osarosaro
sarosaros
arosarosa
rosarosar
osarosaro
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osarosaro
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arosarosa
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A G U I N A L D O J. G O N Ç A L V E S

O legado
de João Guimarães Rosa
Torna-se completamente impossível para

um aficionado nas artes e na literatura refletir sobre o


processo composicional de João Guimarães Rosa sem
tentar encontrar a chave do mistério do inaudível, que

se mantém resguardada em cada gesto de sua lingua-


gem. Todas as teorias, todos os modelos fornecidos
pelas ciências da linguagem parecem se tornar proce-

dimentos lógicos que permanecem numa ante-sala do


espaço que ele fabrica, conseguindo nos demover do
que se poderia denominar simulacro do real, obrigan-

do-nos a conviver, mesmo que em forma de impres-


AGUINALDO JOSÉ
são, com a dimensão mítica, primordial, que parece GONÇALVES
é professor de Teoria
Literária e de Literatura
nos levar mais além, numa esfera do inexprimível, Comparada da Unesp –
campus de São José do
Rio Preto – e autor de,
entre outros, Transição
movida pela emergência da consciência mística. Nes- e Permanência. Miró/João
Cabral: da Tela ao Texto
(Iluminuras) e Laokoon
se sentido, tentar esboçar um discurso que consiga Revisitado (Edusp).

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tangenciar o universo engendrado por esse no verbal e suas potencialidades capazes
escritor significa refletir sobre poesia, ou a de gerar um objeto estranho e fascinante,
linguagem em estado de poesia, indepen- que resguarda da sua função primeira ape-
dente da forma escolhida para que se mani- nas o simulacro. Mas, averiguando bem, o
feste. Digo isso porque esse foi o legado melhor caminho para se conseguir aproxi-
que nos deixou o autor de Grande Sertão: mar desse fascinante objeto feito de pala-
Veredas. Sua obra consiste numa perma- vras que consegue transcendê-las por meio
nente remissão para a esfera prismática da de procedimentos singulares é buscar na
linguagem poética, engendrada sem se va- própria conceituação de poesia seus atri-
ler da forma convencional do verso, mas butos básicos, quais sejam, sua contenção
determinada por um ritmo crespo, composto e sua contensão. São esses dois atributos,
de pequenos garranchos, ou de ramos se- tão caros à circularidade sincrética da líri-
cos que se enviesam e se emaranham em ca, os norteadores do trabalho de tecelão
qualquer tentativa de fluência, ficando ali, do mundo de que se investe Guimarães Rosa
em cada ponto de seus contornos, matizada para enformar um discurso, conferir-lhe
pelo próximo nó entre ramagens que obs- estatuto material de carnadura vertebrada
truem a passagem muitas vezes líquida da capaz de espargir os remansos de nosso
prosa e nos mantêm presos no entrefluxo, mundo interior. Por isso, ao pensarmos
apesar de manter a aparente horizontalidade sobre seu estilo somos induzidos a pensar
como base do plausível. Portanto, a “frase” sobre poesia. Como diz Valéry, no sentido
de Guimarães Rosa esconde em si o verso vago do termo, todo mundo é capaz de
e a prosa, não sendo assim nenhum dos dois poesia, aqui compreendida como a capta-
mas a ferrugem da retórica metamorfoseada ção de estados de sensibilidade para certas
pela temperatura máxima de um procedi- impressões, para certas emoções de origem
mento alquímico aplicado sobre metais de exterior ou interior ao sujeito. Entretanto,
várias naturezas. Por isso, falar de seu es- para o poeta e ensaísta francês, entre a
tilo ou de sua “frase fundamental’’ é falar emoção e sua expressão existe uma grande
do elemento mínimo da poesia, isto é, do distância, ou até mesmo um abismo. A
signo, no seu sentido mais estrito, feito ima- poesia consiste no engendramento de um
gem, que resvala em alguma coisa que an- ritmo que se enforma como se delineasse
tecede os princípios fundamentais da lín- estados de sensibilidade e não exprimisse
gua e, ao mesmo tempo, os sucede, devol- um estado particular. Para isso entendemos
vendo-nos, algumas vezes, apenas com seus que haja necessidade, no mínimo, de uma
rumores, ao ponto do qual saímos e vive- habilidade do gênio criador em pelo menos
mos à procura de retornar. observar com profundidade o mundo ou os
Essa “frase especial” se constrói por uma pequenos mundos que trazem em seu espa-
elevação dos componentes lingüísticos mo- ço átomos que possam ser desagregados, a
tivados em cada elemento mínimo por pro- ponto de gerarem outras relações com ou-
cedimentos estilísticos que promovem, tros espaços. São eles que nos instigam à
desde o primeiro balbucio sonoro, o que apreensão de novos estados ou de estados
prefiro denominar de onomatopéia meta- que dormitavam em nosso espaço interior.
fórica, em que se compõem gestos icônicos Tais estados nos conduzem, no universo de
por excelência. Se compreendemos a poe- Guimarães Rosa, a territórios que não con-
sia lírica como linguagem em alto grau de seguimos deslindar e que ficam ali, dentro
eficácia, sendo a forma de arte especial da de nós, querendo evocar universos perdi-
palavra, podemos compreender o texto de dos, mundos buscados pela atmosfera que
Rosa como lirismo em alta tensão, com seu povoa nosso peito a ponto de nos deixarem
aspecto próprio, qual seja, um engenho assim, à mercê de uma condição mais ana-
mimético da própria forma horizontal e lítica, quase sem fala, como se tentássemos
contínua da linguagem da prosa; uma fa- descrever delineios oníricos que se instau-
bricação tendo como matéria-prima o sig- ram de maneira sincrética. Isso ocorre por-

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As gravuras que
ilustram este
texto e os
seguintes foram
feitas por Poty
para as obras de
Guimarães Rosa
publicadas pela
Livraria José
Olympio Editora

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que esse ritmo se realiza plasmando uma do humano em algum recorte combinatório
forma que se mantém no interstício da de suas vicissitudes espirituais. E seria essa
semantização e da transracionalidade e tan- conformidade que denominamos rítmica,
tas vezes é no transracional que finalmente pois é como se ela denunciasse os movi-
o compreendemos, mas essa compreensão mentos mais internos, mais abstratos que
é dada pelo caminho do ininteligível, do nem sempre corresponderiam às mesmas
quase silêncio dos garranchos sonoros, pegadas do sujeito individual, alterando a
matizados por fragmentos sêmicos. Se para trajetória de um para outro indivíduo, num
a realização de um poema exige-se um tra- ou noutro tempo de sua existência, ou de
balho paciente e muitas vezes árduo em sua disponibilidade sensível, no sentido
que o artista consegue passar do estado empreendido por Kant. É exatamente por
imediato àquela expressão mais estudada e isso que se fala da circularidade do poema,
fundada sobre o conhecimento de nossos de seus componentes de repetição con-
semelhantes e de sua maneira de reagir, do formadores da imagem.
mesmo modo isso ocorre na obra artística A imagem do poema ou o poema como
de Guimarães Rosa. O trabalho realizado imagem concentra todos os filamentos ne-
pelo escritor mineiro denuncia uma capa- cessários para que se opere a viagem do
cidade de produzir em estado extraordiná- interlocutor. É a porta por onde se entra
rio determinados efeitos expressivos da lin- para o início de uma navegação mítica que
guagem que jamais seriam produzidos em de maneira alguma pode ser substituída por
estado ordinário. Por isso o legado maior outra. A outra possui trajetória própria que
que nos deixou esse artista foi uma obra conduzirá ao mesmo ponto sem que se possa
considerada prosa literária que nos propi- precisar a rota. Essa natureza singular do
cia a condição de realizar o pensamento poema tem sua origem em fundamentos de
mais elevado sobre poesia. Ainda para sua constituição nem sempre bem definida
Valéry, dentre os efeitos produzidos pela pelos tratados de poética. O ponto de par-
poesia existe um que é particularmente sig- tida para que se possa adentrar a esfera do
nificativo e que pode ser chamado de efusão poema ou de qualquer objeto de investiga-
rítmica. Assim, ser poeta consiste na pro- ção crítica reside na busca de compreensão
priedade de se sentir produtor de ritmo. O de sua natureza, na busca de compreensão
ritmo pode em muitos casos representar do referido objeto. Para Jean-Claude
uma espécie de categoria harmônica que Coquet,
precede a própria concretização verbal do
poema. Mesmo essa concretização pode se “L’objet n’est pas une donné immédiate. Il
iniciar por meio de rudimentos sonoros, rest à découvrir. Les conditions de la
alguns signos, uma sintaxe fragmentaria- connaissance seront satisfaites quand
mente emergente, tudo isso se articulando l’analyste pourra proposer pour tel objet
de modo a concluir a totalidade poética. visé une grammaire spécifique, c’est-à-dire
Pode-se ainda falar de certo dispositivo l’ensemble des règles explicites dont
rítmico que atua como elemento revelador, dépend le jeu des significations et des
indo pouco a pouco buscar, encontrar ou sonorités. Il va sans dire qu’il n’y a pas
fazer emergir determinados elementos ver- d’étude que approche seulement de ce
bais capazes de confluir para significações résultat. Mais, ici ou là, des éléments de
nem sempre esperadas mas que, munidas connaissance sont déjà en place. Nous
ou conformadas ao ritmo, comporão o con- voudrions les présenter et les discuter”.
junto da composição que de maneira algu-
ma pode perder a natureza rítmica inicial. As tentativas da semiótica francesa ou
Tenho particularmente a impressão de da retórica geral contemporânea em deter-
que o desenho de um poema, sua confor- minar uma gramática específica da poesia
mação orgânica, representa sempre o dese- podem favorecer o reconhecimento de pro-
nho ou o delineio de um estado arquetípico cedimentos genéricos que constituem os

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elementos macroestruturais dessa forma de guas, apesar de suas diferenças. Em cada
linguagem, mas cremos ser inviável uma uma das línguas consideradas terá de se
gramática que possa dar conta dos elemen- analisar os procedimentos da forma e da
tos microestruturais. São eles que constitu- substância de modo diferente, fato esse que
em o que se poderia denominar de fenôme- só pode ser interpretado como indicativo
no construtivo responsável pelo desenho de que o sentido foi ordenado, articulado,
singular a que aludimos. E essa “gramáti- conformado de modo distinto nas línguas
ca”, que tenta ser elucidativa nos estudos distintas. Sentido informe se conforma em
das ciências da linguagem, mantém-se, línguas distintas. Reconhecemos, portan-
como já dissemos, na ante-sala de uma to, no conteúdo lingüístico, no seu proces-
outra, mais difusa, porém luminosa e com- so, uma forma específica, a forma do con-
pleta. É certo que a poesia consiste numa teúdo, que é independente do sentido e
arte verbal e que sua base estrutural é lin- mantém uma relação arbitrária com o mes-
güística. Entretanto, cremos que sua reali- mo, e que lhe dá forma em uma substância
zação se dá numa outra ordem de coisas, do conteúdo. Tudo isso ocorre em corres-
numa esfera da subtração lingüística e não pondência com a forma da expressão. O sig-
na sua conformidade. Uma vez que o signo no é, pois – por paradoxal que pareça –, sig-
é a unidade mínima significativa no traba- no de substância do conteúdo e signo da
lho poético, é nele ou nas suas formas de substância da expressão. Nesse sentido é que
manifestação diferenciadas que mais dis- se pode dizer que o signo é signo de algo.
tinguimos a produção verbal de Guimarães A partir dessas ricas considerações de
Rosa, não apenas em si mas também nas Hjelmslev inicia-se um movimento dentro
suas relações com outros signos. Por isso, de nosso juízo a respeito da conotação so-
retomarei alguns de seus aspectos, na ten- bretudo na linguagem poética e em especi-
tativa de levantar certas questões do estilo al na linguagem poética de João Guima-
desse escritor. rães Rosa, cujo trabalho com a forma de
Manter-me-ei nos princípios teóricos de expressão e suas implicações correlativas
L. Hjelmslev por julgá-los pertinentes aos às formas de conteúdo tendem a um acen-
propósitos desta reflexão. Para ele, um sig- tuado fusionismo entre ambas, gerando não
no é uma entidade gerada pela conexão en- apenas alto teor de iconicidade ao signo de
tre uma expressão e um conteúdo. Essa de- natureza concreta, mas também suscitando
finição tem por base a funcionalidade do intensidade concreta àqueles de natureza
signo. Dentro dessa idéia, diz o lingüista di- abstrata. E esse processo se agiganta ao se
namarquês que na verdade deve-se falar da considerar as relações entre eles. É claro
função do signo colocada entre duas entida- que esse fenômeno atua diretamente, quer
des, uma expressão e um conteúdo. Cada na substância de expressão, quer na subs-
uma delas constituída de uma substância e tância de conteúdo, que passam a se inves-
de uma forma. Há solidariedade entre a fun- tir de um procedimento analógico, próprio
ção de signo e essas duas faces. Expressão e da linguagem visual. Atingida essa meta, a
conteúdo se pressupõem necessariamente. relação arbitrária entre forma e conteúdo
Uma expressão só é expressão em virtude passa a ser, em certa medida, não arbitrária
de que é expressão para um conteúdo, e um mas necessária. Quero com isso dizer que,
conteúdo só é conteúdo em virtude de que é em certas instâncias de sua invenção, o
conteúdo para uma expressão. Da mesma sentido fundamental de Guimarães Rosa
forma, a substância depende da forma até o pode ser lido/visto/ouvido e conseqüente-
ponto de viver exclusivamente a causa dela mente apreendido por leitores de outras
e não pode em nenhum sentido dizer-se que línguas. Nesse caminho, essa forma de lin-
tenha existência independente. guagem destitui-se da categorização dos
Ainda para Hjelmslev, sobre a suns- gêneros ao mesmo tempo que pode, na sua
tância existe o sentido, cuja denominação entranhada forma, dialogar com qualquer
é dada ao princípio comum a todas as lín- um deles. Os gêneros são delineamentos

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do homem nas suas mais dinâmicas formas maior denominado “Uns Inhos Engenhei-
de sentir e de tentar ser. Por determinações ros”, cujo título, marcado pelo sufixo
que fogem a nossas capacidades opera- substantivado, parece ser o menor do mun-
cionais de busca, a expressão artística se do, confeccionado por finíssimas agulhas,
realiza dentro do que poderíamos denomi- ínfimas, com linhas também finas, que
nar de visão. Entretanto, essa visão apenas parecem precisar de estereoscópio para que
se materializa pela profunda habilidade se possa tecer o alto-relevo das imagens,
técnica de que se vale o escritor para atuar plasmadas num baixo-relevo que em si é
na língua. Por isso ter dito que essa profu- um tecido, o ninho, esse artefacto, exten-
são de gêneros talvez seja o maior legado são do humano, outra forma de origem,
deixado pelo grande escritor. Repito, por- renascente, útero do existente, querendo o
tanto, que o grau de motivação ou mesmo retorno, no eixo entre o fora e o dentro, o
de iconização da linguagem de Guimarães ninho:
Rosa tenciona a forma de expressão de seu
discurso e, conseqüentemente, a forma de “Onde eu estava ali era um quieto. O ame-
conteúdo, trazendo implicações que apon- no âmbito, lugar entre-as-guerras e invasto
tam para o sentido teorizado pelo lingüista territorinho, fundo de chácara. Várias ár-
dinamarquês. vores. A manhã se-a-si bela: alvoradas aves.
Nestes trinta anos de sua morte, assiste- O ar andava, terso, fresco. O céu – uma
se a uma tendência cada vez maior da pró- blusa. Uma árvore disse quantas flores,
pria literatura e, conseqüentemente, das outra respondeu dois pássaros. Esses, lim-
várias vertentes críticas em se tentar com- pos. Tão lindos, meigos, quê? Sozinhos
preender, mais que as diferenças, as seme- adeuses. E eram o amor em sua forma aé-
lhanças entre a chamada prosa literária e a rea. Juntos voaram , às alamedas frutíferas,
poesia. É claro que essa preocupação é voam com uniões e discrepâncias. Indo que
antiga, mas também é claro que ao menos mais iam, voltavam. O mundo é todo en-
no Brasil ela se acentuou muito depois que cantado. Instante estive lá, por um evo,
os textos de Guimarães Rosa vieram à luz. atento apenas ao auspício”.
O seu processo composicional aponta para
si mesmo recobrando o que lhe é de direito: É assim, na cobertura de que todos pre-
determinação do espaço da linguagem. E é cisamos e que aos nossos olhos já é ditada
nesse espaço, na fricção de suas figuras e pela natureza, no conforto e consolo que
de sua modulação, que se instaura o senti- envolve nossos ombros e nosso coração,
do, o que levou tradutores de várias línguas que o texto se inicia para construir a teia do
a tentarem apreendê-lo por meio das for- amor aéreo, figurativizada por dois pássa-
mas de expressão que se conectam às for- ros que voam com uniões e discrepâncias
mas de conteúdo de seus idiomas. Mas nesse triste encanto de mundo em que o céu
entendo que alguns textos de G. Rosa de- é uma blusa. Estrutura mínima: dois pássa-
vam ser lidos apenas no original. Darei ros construindo seu ninho. Estrutura
como exemplo uma pequena invenção de temática média: dois pássaros metafori-
Rosa que, ao menos dentro de nossos limi- zando a construção, a materialização do
tes de apreensão de seus recursos, conside- amor. Estrutura complexa: a construção da
ramos um dos mais bem realizados. teia abstrata, transcendente e, ao mesmo
Trata-se de um de seus “tijolinhos” lite- tempo, primordial. Essa construção se rea-
rários que quase sempre atuam mais direta- liza pelo som e pela sintaxe, morfossintaxe,
mente nas minhas apreensões de leitura léxico, figuras ou semi-símbolos, e pelos
desse autor. Considero-o uma de suas pre- resíduos sonoros. Amalgamados uns aos
ciosidades, a pérola, para lembrar uma ex- outros, instauram-se aquém ou além dos
pressão de Roger Shattuck, referindo-se a fonemas, aquém ou além da dupla articula-
certos procedimentos de Marcel Proust. ção humana e assim conseguem resgatar o
Consiste num dos menores textos da obra primado do ser, distante da racionalidade,

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por meio dessa força, numa forma instinti- que o narrador elege o par de rolas para
va e única de amor. Como em círculos con- adentrar a esfera da tarefa séria: o trabalho
cêntricos as gamas de sentidos vão-se inter- de construção do ninho – complexidade
relacionando, numa gradação profusa dos sintetizadora de todas as vicissitudes hu-
ingredientes a partir dos quais se podem manas. Como nos leva a compreender a
produzir os sentidos latentes ou fazê-los mensagem poética de Rosa, a fabricação
emergir da própria tessitura. do ninho consiste numa metáfora discursiva
Guimarães Rosa cria um objeto de arte que se reporta ao próprio ato de construção
valendo-se do máximo de economia da lin- do texto.
guagem, com o mínimo de matéria-prima. Esse movimento de constituição tensiva
Parece preencher um recipiente muito pe- entre a função poética e a função
queno com praticamente toda a gama de metalingüística da obra possui a destreza
recursos expressivos da palavra, elevada de produzir sentidos, de fornecer a possibi-
ao grau máximo de seus limites. O narra- lidade de nos tirar do primeiro nível de
dor, ao criar a atmosfera da criação, esco- compreensão para nos remeter aos vários
lhe o universo dos pássaros, elegendo, como patamares da ambigüidade. A materia-
antípodas daqueles que vai focalizar, os lização dos signos posta numa condição
assanhaços no seu ato depredador. Dentre icônica promove o atrativo maior no recep-
outros, o sabiá, o guaxe, o tico-tico, a tor, dele exigindo uma atenção mais com-
guarricha, esses pássaros que, postos na pleta em que se interligam o ouvido, o olhar
condição de signo, formam o discurso sal- e o pensamento. No caso desse texto, exem-
picado, passarado, e se tornam plenos de plo genuíno desse tipo de procedimento,
suas características próprias na composi- tem-se num determinado ponto o que con-
ção do canto e do movimento delicado e sideramos excelência de recursos. Nele,
intenso de seus passamentos, de suas ma- todos os ingredientes concorrem para a
nifestações mais puras. Mas os assanhaços fabricação do “ninho artístico”, expressan-
consistem em aves passeriformes, da famí- do-se assim o narrador:
lia dos traupídeos variados que se alimen-
tam sobretudo de frutas, senso assíduos “O ninho – que erguem –; e néxil, pléxil,
freqüentadores de pomares e hortas, onde difícil. Já de segredo o começaram: com
costumam causar danos de monta. Daí, por um bicadinho de barro, a lama mais doce,
sua característica depredadora, serem os a mais terna. De barro, dos lados, à vária
antípodas das rolas em quem se concentra- vez, ajuntam outros arrebiques. À muita
rá a câmera do narrador: fábrica, que se forma de ticos, estilhas,
gravetos, em curtas proporções; e arguei-
“No entre mil, porém, este par valeria dife- ros, crinas, cabelos, fibrilas de musgos, e
rente, vê-se de outra espécie – de rara hábeis ciscos, discernidas lãs, painas – por
oscilabilidade e silfidez. Quê? Qual? Sei, estofo. Com o travar, urdir, feltrar, enlaçar,
num certo sonho, um deles já acudiu por ‘o entear, empastar, de sua simples saliva
apavoradinho’, ave Maria! e há quem lhes canora, e unir, com argúcia e gume, com –
dê o apodo de Mariquinha Tece-Seda. São um atilho de amor, suas todas artes. Após,
os que sim sós. Podem se imiscuir com o ao fim, na afofagem, forrá-lo com a própria
silêncio. O ao ato. A alma arbórea. A graça única e algodoída penugem – do peito, a
sem pausas. Amavio. São mais que existe que é mais quente do coração. O ninho –
o sol, mais a mim, de outrures. Aqui entra- que querem – é entre asas e altura. Como o
mos dentro da amizade”. pássaro voa trans abismos. A mais, num
esperanceio: o grácil, o sutil, o pênsil”.
É assim, depois de criar o quadro espe-
cial dos pássaros por meio de um chilreio Eis o fenômeno da criação. O movimen-
metafórico em que a natureza começa a ter to perfeito do processo e o modo de sua
voz, dentro dessa atmosfera composicional, produção. Suas especificações e seus se-

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gredos. Todos revelados e ao mesmo tem- de procedimentos inventivos das mais va-
po resguardados no corpo do signo riadas vertentes estilísticas da literatura
transmudado, decifrado e elevado à condi- ocidental, o que fugiria aos propósitos des-
ção de sopro como se tudo tivesse sido ta singela homenagem. Mesmo assim, vale
estabelecido desde o princípio. Existe logo lembrar, apenas como símbolo representa-
na primeira linha o indício fundamental. tivo do fenômeno, o poema “Elefante” de
Ao separar por travessões a expressão “que Carlos Drummond de Andrade, poeta que
erguem” o narrador indicia o seu contrário, também homenageamos no ano de 1997,
ou determina a fundamental ambigüidade: nesta mesma revista, pelos dez anos de sua
de qual ninho se fala? Qual ninho é morte. Apesar das distintas referências
construído? Temos, por um lado, o ninho metafóricas, alguns princípios composi-
referência, construído pelos dois pássaros; cionais do poema nos reportam, imediata-
mas temos o outro, o presente à nossa lei- mente, aos utilizados pelo narrador de “Uns
tura, o ninho linguagem, esse espaço Inhos Engenheiros”. Vejamos a sua primei-
intrincado que constrói o “amor aéreo” e ra estrofe:
transcende o universo da natureza, apon-
tando para várias direções, sobretudo a “Fabrico um elefante
humana, porque é humana a condição arti- de meus poucos recursos.
culada da linguagem pela qual os sentidos Um tanto de madeira
são produzidos. Essa direção é, evidente- tirado a velhos móveis
mente, interna, centrípeta, pois o que en- talvez lhe dê apoio.
contramos como ingredientes desse ninho E o encho de algodão,
são signos que mais parecem grafismos, de paina, de doçura.
filetes de gravetos delicados: néxil, pléxil, A cola vai fixar
difícil. Com eles se inicia o trabalho (que suas orelhas pensas.
na verdade se iniciou desde o primeiro ru- A tromba se enovela,
ído do texto), compondo primeiramente a é a parte mais feliz
macroestrutura do ninho das rolas ou do de sua arquitetura.
discurso; processo de bricolagem, proces- Mas há também as presas,
so de fabricação com o que se tem às mãos: dessa matéria pura
“um bicadinho de barro, a lama mais doce, que não sei figurar.
a mais terna. De barro, dos lados, à vária Tão alva essa riqueza
vez, ajuntam outros arrebiques”. A partir a espojar-se nos circos
daí, uma seqüência de ingredientes, todos sem perda ou corrupção.
eles altamente sugestivos do trabalho de E há por fim os olhos,
fabricação literária. Conjugam-se, assim, onde se deposita
da maneira mais elevada, esses procedi- a parte do elefante
mentos que determinam os princípios mais mais fluida e permanente,
complexos da invenção artística. Os pró- alheia a toda fraude”.
prios ingredientes referenciais utilizados
para a fabricação do ninho dos pássaros Lendo esta passagem do poema, com-
atuam numa outra instância mimética como preendemos que o princípio é exatamente
elementos indiciais de caráter simbólico da o mesmo do utilizado por Guimarães Rosa.
fabricação da literatura. “À muita fábrica, Esse princípio atua como invariante de to-
que se forma de ticos, estilhas, gravetos, dos os procedimentos construtivos da arte
em curtas proporções; e argueiros, crinas, em geral, porém se manifesta dos mais
cabelos, fibrilas de musgos, e hábeis ciscos, variados graus de complexidade ou de in-
discernidas lãs, painas – por estofo”. Se tensidade de uma para outra manifestação.
fôssemos adentrar esse filamento inventi- Interessante notar que até mesmo o signo
vo de João Guimarães Rosa, teríamos que “doçura”, presente no sétimo verso para
relacioná-lo com um universo vastíssimo caracterizar “paina” e “algodão” e compo-

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nente metonímico da composição poética,
recorrente na lírica, é também atualizado joaoro
ajoaor
orosaj
no texto do escritor mineiro: “a lama mais
doce e mais terna”. Entretanto, no poema
de Drummond, o grau de complexidade é

joaoro
menor. A referência “elefante” apresenta-
se metaforizada desde o primeiro verso,
manifestada como coisa artificial que nos
conduz, imediatamente, à fabricação do
próprio texto. Em Guimarães, essa metáfo-
ra discursiva se funde a uma arquitetura
real, à construção de um ninho, sendo que
os obstáculos de sua fabricação (o meio
ajoaor
orosaj
expressivo de que se vale o narrador) é que
nos fazem olhar para o próprio processo e
compreender o mágico espaço da lingua-
gem que nos remete ao “amor aéreo” com-
posto pela linguagem. Ao mesmo tempo
joaoro
ajoaor
orosaj
que o objeto artístico se compõe, envol-
vendo-nos nos movimentos poéticos de

joaoro
fabricação, ele reflete metaforicamente
sobre o referido processo. Como se nota
nos ingredientes selecionados, todos eles

ajoaor
pertencem a um paradigma comum, que
envolve o arquétipo da tessitura, da urdidura

orosaj
de um tecido. Entretanto, distinguem-se
quanto à natureza para que juntos formem
num ato de interação o objeto maior ou o

joaoro
espaço resguardador de sentidos. Após
seqüencializar os significativos ingredien-

ajoaor
tes da tessitura, o narrador enumera os ver-
bos que determinam a fabricação: “travar,
urdir, feltrar, enlaçar, entear, empastar, de

orosaj
sua simples saliva canora, e unir, com ar-
gúcia e com gume, com – um atilho de
amor, suas todas artes”. Como se nota, todos
eles com peculiaridades semânticas espe-
cíficas, extrapolando os passos da constru-
ção de um ninho, revelam a fabricação
artesanal da própria lírica. É isto: a magní-
fica articulação verbal de Guimarães Rosa
joaoro
ajoaor
metaforiza, ao mesmo tempo que realiza, a
estrutura composicional da lírica. Entre os
verbos, mais uma vez separando com tra-
vessão, a expressão maior, o tônus temático
maior da poesia, “um atilho de amor, suas
orosaj
joaoro
ajoaor
todas artes”. A partir dessa instância
discursiva o feminino e o masculino repre-

orosaj
sentados pelo casal de rolas vão demons-
trando o seu fabricar numa gama de eleva-
ção da linguagem até o ponto em que o

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narrador grafa a linguagem dos pássaros quieto. O ameno âmbito, lugar entre-as
(“o incoativo, o repetitivo, o pio puro; tié, guerras e invasto territorinho, fundo de
tietê, tei-tei”), ora a eles confere o mínimo chácara. Várias árvores”. A elucidação
de voz humana (“– Aqui… aqui… aqui…”). desse fenômeno se manifesta na íntima
Mas nesse segundo procedimento escolhe conexão entre cada um dos componentes
exatamente o signo aqui, três vezes reitera- lingüísticos articulados numa outra ordem
do, como se atingisse a dimensão maior da que se fixou desde o princípio mas que
confluência do texto que fabrica e do ninho encontra no final do texto uma indepen-
que é composto pelos pássaros. Finalmen- dência primordial.
te, ao encerrar o trabalho (o ninho textual), Como se tivesse desaprendido a lingua-
assim procede: gem dos homens (“Sai do mais límpido
laringe, eóa siringe, e é um alarir, um
“Se sim, quando. Se às vezes, simplesmen- eloqüir, um ironir, um alegrir-se – um
te. Onde um lugar – os quietos curtos hori- cachinar com toda a razão”) e adentrando
zontes, o tempo um augúrio ininterrupto – uma outra esfera que é a linguagem dos
que merece demorada. A inteira alma. As pássaros, o discurso inventa uma retórica
várias árvores. O céu – ficção concreta. Um própria, afásica, trôpega, mas quase essen-
par de pequeninos, edificantes. O tremer cial porque restaura o lugar e o tempo ne-
de galho que um mínimo corpo deixa. E o nhum dentro do exercício da possibilidade
nomezinho de Deus, no bico dos pássaros”. aérea. Digo quase essencial porque para
superá-la só se fosse o profundo silêncio
Valendo-se dos ingredientes alados (os capaz de apagar as marcas residuais da voz.
pássaros) que suscitam o próprio vôo para Como isso é impossível, mantêm-se os ín-
a descoberta do imponderável, Guimarães dices da possibilidade, da temporalidade,
Rosa compõe com a maestria do gênio o da espacialidade que convidam para uma
hábitat da poesia. Neste último parágrafo, estada mais demorada no interstício do
ou neste último fragmento simbólico, tudo vazio. A voz da alma no meio do arvoredo
se consolida dentro do improvável. A da linguagem lírica. Essa voz se confunde
intransitividade da linguagem é concluída com a concretização de um mundo cujo
para resgatar o caráter circular da trans- ninho é o próprio céu, composto pelos pas-
racionalidade poética, como se pode ver sarinhos, esse minúsculo universo capaz
aproximando-se as palavras do final às do de fazer gerar, pela ciência do canto, a in-
início do texto: “Onde eu estava ali era um tensidade do amor.

BIBLIOGRAFIA

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