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Análise Psicológica (2004), 2 (XXII): 399-411

Filho do coração...
Adopção e comportamento parental (*)

SÍLVIA A. FERREIRA (**)


ANTÓNIO PIRES (**)
FERNANDA SALVATERRA (***)

Existem casais, que por motivos vários, viram tico, no entanto muitas destas potencialidades
impossibilitado o desejo de conceberem um filho, podem ser prejudicadas de forma grave se não
optando pela adopção como a forma de colmatar encontrarem um ambiente de suficiente qualida-
essa ausência que deixou todo um processo psí- de logo desde os primeiros momentos de vida.
quico em suspenso, ou seja, a vivência psicoló- Desta forma, o processo de adopção surge, actual-
gica ficou impedida de se actualizar pela ausên- mente, como uma das formas de protecção à in-
cia da capacidade de procriar, mas este mundo fância, proporcionando-se a estas crianças uma
de afectos, fantasias e desejos fica em suspenso à família alternativa à família biológica, que lhe
espera de um objecto a que se possa ligar. permitirá um desenvolvimento adequado das suas
O processo de adopção entendido como o «meio potencialidades. Paralelamente, a adopção pare-
através do qual um indivíduo que, pelo nasci- ce também ser a única forma destes casais col-
mento, pertence a um grupo familiar, adquire matarem o verdadeiro desejo de ter um filho,
novos laços de parentesco, numa outra família, uma vez que, a existência de um vínculo jurídico
laços esses que socialmente são equivalentes aos promove um sentimento de pertença e de irrever-
laços de sangue», não é uma situação rara (Sá & sibilidade, que fornece à adopção psicológica a
Cunha, 1996). A criança, como refere Diniz (1993), base de formação de um verdadeiro attachement,
nasce com um riquíssimo conjunto de capacida- já que desempenhar as funções de pai ou de mãe
des que têm a ver com o seu equipamento gené- esporadicamente não é o mesmo que dar-se co-
mo pai ou mãe de uma criança ao longo de todo
o seu desenvolvimento. No entanto muito do que
acontece nesta relação pais-filho depende da for-
(*) Agradecimentos: Ao Centro de Estudos de Apoio
ma como esta irreversibilidade é encarada. Se-
à Criança e à Família de Lisboa, nomeadamente às mães gundo Diniz (1993), ao facto biológico da con-
que participaram neste estudo, pela disponibilidade e cepção duma criança deveria corresponder o de-
facilitação na recolha de dados. sejo psicológico desse filho, uma vez que é fun-
(**) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis-
boa.
damental para a saúde mental da criança que
(***) Centro de Estudos de Apoio à Criança e à Fa- exista uma certa correspondência entre o nível
mília (CEACF). afectivo e o nível biológico para que seja possí-

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vel uma caminhada em comum, resultando desta Também Raynor (cit. por Triseliotis, 1991) num
uma vivência parental satisfatória. É neste sen- dos seus estudos demarca que o sucesso do pro-
tido que Dolto (cit. por Diniz, 1993) afirma que cesso de adopção está muitas vezes fortemente
não podem existir bons pais se estes não forem associado a este sentimento de pertença familiar,
também pais adoptivos, ou seja, se não oferece- de igualdade sentida quer pelos pais quer pelas
rem uma tradução psicológica, afectiva ao facto crianças. Pais e crianças adoptadas mostraram-se
irreversível da dependência biológica e cromos- muito mais satisfeitos quando eram capazes de
somática. De igual forma Tsiantis (1991) refere percepcionar ou imaginar esta ligação entre eles,
que o papel dos pais não está unicamente confi- sendo que a maior causa de insatisfação era a
nado às necessidades biológicas mas também às inexistência deste laço e consequentemente o
necessidades psicológicas de se sentir amado, es- fracasso da criança em adquirir o sistema de va-
timulado e sobretudo à necessidade de um senti- lores familiares.
mento de continuidade da sua vida para que assim Torna-se relevante salientar que a função pa-
sejam evitados traumas na personalidade da cri- rental efectivamente exercida se pode distinguir
ança que emergem pelo sentimento de separação da paternidade biológica, embora normalmente
e perda dos objectos amados. Contudo, esta fun- haja uma influência recíproca considerável. A
ção não tem necessariamente de ser preenchida experiência que a criança tem dos seus pais (adopti-
pelos pais biológicos, na medida em que, para- vos ou não) é a dos cuidados, protecção e afecto
fraseando Bowlby «o que é fundamental para a que recebe, sendo a partir deste desempenho que
saúde mental do bebé ou da criança é a existên- se organiza a relação, destacando-se nesta inter-
cia de uma mãe ou de uma mãe substituta» (cit. acção reciproca o peso considerável das fantasias
por Tsiantis, 1991). e atitudes profundas dos pais, nos primeiros
Segundo Winnicott (cit. por Tsiantis, 1991) a tempos de vida do bebé, sobretudo por parte da
preocupação maternal primária «desenvolve-se figura materna. Neste sentido se os pais adopti-
gradualmente e torna-se num estado de elevada vos vivem a adopção nos seus vários aspectos, e
sensibilidade, durante e especialmente no fim, a sua função parental de uma forma perturbada,
da gravidez e dura pelo menos algumas semanas isso poderá ter um efeito perturbador na relação
após o nascimento da criança», no entanto em- com o filho, tal como sucederá quanto a qual-
bora este estado seja favorecido pela experiência quer outra perturbação que interfira na relação
da gravidez, o que se observa é que mães que pais-filho de quaisquer outros pais que não se-
estão em fase de adopção são de igual forma ca- jam adoptivos (Diniz, 1993). Assim para uma
pazes de entrar neste estado, adaptando-se bem criança, mãe ou pai, psicologicamente, é quem
às necessidades do bebé devido à sua capacidade desempenha a respectiva função e a vive como
para se identificarem com a criança. A fomentar tal, de uma forma autêntica e profunda, o que
esta tendência destaca-se os estudos de H. e J.-P. não quer dizer sem problemas, já que as boas re-
Waber (cit. por Berger, 1997) que revelam que lações familiares não são aquelas que se apre-
crianças e adolescentes que conseguiram lem- sentam isentas de tensões mas sim aquelas onde,
brar-se do momento da adopção, recordam-se da por um lado, os acidentes ou incidentes surgidos
desorientação e da aflição que os impeliu a agar- não são excessivos nem em número nem em in-
rarem-se, muitas vezes de uma forma instantâ- tensidade e onde, por outro lado, há recursos psi-
nea, a uma pessoa preferencial, geralmente a mãe cológicos suficientes para os ultrapassar de for-
adoptiva, provocando-lhe este comportamento ma razoavelmente satisfatória (Diniz, 1993). Em
uma reacção imediata de apego assim como de suma, não é só a dependência cromossomática,
identificação e protecção de uma criança tão des- ou a voz do sangue, que irão fornecer a solução
protegida. Assim a mãe adoptiva que se viu im- dos problemas, mas sim a reacção dos pais como
possibilitada de ter a experiência da gravidez é elemento decisivo para a forma como a criança
capaz de, rapidamente, entrar neste processo emo- pequena irá organizar-se interiormente de modo
cional, podendo este sentimento ser partilhado a poder ter um desenvolvimento saudável, a
com o seu marido atingindo-se, desta forma, uma compreender progressivamente o mundo que a
unidade triádica fundamental para o desenvolvi- rodeia e a encontrar formas sempre mais evo-
mento posterior desta criança (Tsiantis, 1991). luídas e satisfatórias de entrar em relação com

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esse mundo. E esta reacção dos pais, não é deter- ca-se a importância deste estudo, cujo principal
minada pelo facto de serem adoptivos ou não objectivo é compreender o comportamento (sen-
mas por aquilo que eles são como pessoas, pela timentos e emoções) destas mães face à situação
maneira como se construíram em face dos pro- de adopção, para que assim seja possível a ela-
blemas que encontraram (sendo a esterilidade boração de uma teoria, que visa compreender
um deles) e sobretudo pela maneira como sabem melhor as dificuldades e as particularidades do
ser um par humano, adulto e com maturidade, processo de adopção. Tentar-se-á perceber de que
que encontra na relação com o filho um comple- forma é que esta realidade é sentida e vivida pe-
mento e um enriquecimento autênticos, sem ter los pais e quais as estratégias de adaptação psi-
que instrumentalizar essa relação como compen- cológica encontradas ao longo das várias etapas
sação necessária de frustrações de qualquer tipo. deste moroso processo, assim como as conse-
Assim existem bons e maus pais (no sentido da quências desta mesma adaptação, inerente à tran-
capacidade que possuem em desempenhar as sição para uma parentalidade adoptiva.
suas funções parentais), independentemente de
serem ou não pais adoptivos embora seja rele-
vante que os últimos têm uma tarefa educativa e MÉTODO
parental sempre em dificuldades duplicadas, assen-
tando as interacções num equilíbrio delicado,
sendo fácil a criação se dum ciclo relacional vi- Participantes
cioso, prejudicial quer para os pais quer para a
criança. Não obstante os resultados satisfatórios Os participantes deste estudo são cinco indi-
da adopção, ela deve ser entendida como um pro- víduos do sexo feminino e um do sexo mascu-
cesso stressante que marca e reaviva aspectos lino, com 27; 29 (e 351); 30; 40 e 29 anos de ida-
importantes, quer da criança quer dos pais, don- de, que contactaram o Centro de Estudos de Apoio
de se salientam não só as suas fantasias consci- à Criança e à Família de Lisboa (CEACF), onde
entes e inconscientes relativamente ao bebé, quer foi possível a realização das cinco entrevistas
à sua incapacidade de gerar uma criança (e a for- que serviram de base para a elaboração deste tra-
ma como solucionaram estas questões) mas tam- balho.
bém qual o suporte social e estratégias encontra- Todas as mães entrevistadas eram mulheres
das por estes pais para superar as diversas adver- casadas, sem filhos biológicos, e que desenvol-
sidades encontradas ao longo do processo de adop- viam uma actividade profissional, pertencendo,
ção e do desenvolvimento do seu novo filho. em média, a um grupo socio-económico médio-
Embora algumas das questões salientadas ao alto. Em comum estas mães revelaram o desejo
longo deste trabalho sejam partilhadas entre os de adoptar uma criança, sendo no entanto possí-
pais adoptivos e os pais não adoptivos, o que se vel distingui-las pelo tipo de limitações impostas
constata é que estas mães além das preocupações aquando do preenchimento do processo de adop-
habituais têm ainda de enfrentar as ansiedades ção, demarcando-se na entrevista 2 a adopção de
inerentes à adopção em si, sendo elas: a vivência uma criança de raça negra e na entrevista 3 a
da infertilidade, a transição para uma parentali- adopção não de uma, mas de duas crianças com
dade adoptiva, a incerteza e a ansiedade ineren- laços de parentesco (irmãos). As crianças adop-
tes ao processo, e mais tarde, se irá contar ou não tadas tinham 3 meses, 9 meses, 5 e 6 anos, 6
à criança? E se sim Quando e Como fazê-lo? E meses e 4 meses aquando da realização das entre-
ainda questões ligadas quer à procura das ori- vistas.
gens quer às experiências de abandono e de pri-
vação vividas pela criança, e que serão inevita-
velmente projectadas na relação que esta estabe-
lece com os seus novos pais (Brodzinsky, Smith
& Brodzinsky, 1998).
Pela falta de estudos dentro desta problemá- 1
Esta idade corresponde ao indivíduo do sexo mas-
tica, que incidam sobre o comportamento paren- culino, pai da criança, que gentilmente optou por par-
tal e não sobre a criança adoptada em si, demar- ticipar também na entrevista.

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Procedimento entrevistas, com o objectivo de rotular determi-
nados fenómenos que foram surgindo através das
O Centro de Estudos de Apoio à Criança e à próprias palavras das mães, elaborando-se uma
Família de Lisboa onde se recolheu a amostra, listagem destas mesmas categorias. Estas cate-
recebe as candidaturas dos residentes do distrito gorias, designadas por categorias in vivo, foram
de Lisboa (excepto da cidade de Lisboa), proce- de extrema importância uma vez que permitiram
dendo-se à avaliação e selecção dos candidatos a a compreensão de determinados fenómenos e, pa-
adoptantes, paralelamente ao estudo e avaliação ralelamente, a comparação destas permitiu o apa-
das crianças para adopção, incidindo-se sobre os recimento de propriedades inerentes às catego-
aspectos do seu desenvolvimento socio-emocio- rias, também elas exploradas até à saturação. As-
nal, situação de saúde, situação familiar e jurí- sim, é chegado o momento de parar de codificar,
dica. Após a adopção é feito um acompanhamen- com o objectivo de redigir um memorando que
to, num período designado por pré-adopção, da pretende reflectir não só o porquê de determina-
nova família constituída, período no qual foi pos- da categoria mas também de que forma é que
sível recolher as entrevistas que serviram de base esta é sentida e vivida pelas mães.
à elaboração deste trabalho. Posteriormente e através destes memorandos é
Através destas entrevistas semi-estruturadas, possível estabelecer conexões entre as várias ca-
gravadas em áudio e de duração média de qua- tegorias, passando-se a um nível de conceptuali-
renta minutos, pretendeu-se aceder às vivências zação superior que pretende espelhar o fenóme-
maternas sobre o processo em estudo, iniciando- no central, assim como as categorias que a ele se
se este diálogo através de uma questão do géne- relacionam. É esta análise sistemática que for-
ro: «Gostaria que me falasse um pouco da sua nece densidade e precisão à teoria, estando o in-
experiência como mãe do menino/(a) x», permi- vestigador apto para redigir uma teoria que pre-
tindo assim explorar profundamente este fenó- tende reflectir a generalidade das preocupações
meno, salvaguardando-se o anonimato e a confi- centrais das mães que optaram por adoptar uma
dencialidade dos dados. criança.
Posteriormente, procedeu-se à transcrição das
entrevistas na sua globalidade, iniciando-se o
processo de análise e codificação das mesmas. RESULTADOS
Esta codificação passou por vários processos, sen-
do eles a codificação aberta, axial e por último a O desejo de ser mãe é um processo que se ini-
codificação selectiva, onde foi possível encontrar cia numa fase precoce da vida das mulheres,
categorias e as suas relações sendo estas explo- contudo este processo psíquico ganha os funda-
radas e relacionadas até à saturação, ou seja, até mentos necessários à sua concretização numa
mais nada poder emergir das mesmas, estando o fase mais tardia, normalmente na fase adulta.
investigador apto para a construção de uma teo- Este desejo de ser mãe torna-se um processo com-
ria com a qual culmina o processo final deste tra- plicado e stressante no caso das mães adoptivas,
balho. que se viram impossibilitadas de concretizar este
desejo, pelas limitações biológicas que lhes fo-
Análise de dados ram impostas. Assim, o processo que caracteriza
este trabalho, é marcado por várias fases, que se
A análise dos dados tem como objectivo cons- condicionam e interligam através de vários facto-
truir um modelo teórico, identificando-se concei- res, sendo elas: 1) o desejo de ter um filho; 2) os
tos e suas relações, através da transcrição e aná- tratamentos médicos/hospitalares; 3) o desejo de
lise das entrevistas com base no método Groun- adoptar; 4) o planeamento e por último, 5) a con-
ded Theory. Nesta análise, como destacam Gla- cretização do desejo de ser mãe.
ser e Strauss (1967), recorreu-se ao processo ana- Numa primeira fase, e após o casamento, estes
lítico que caracteriza esta abordagem, e que se casais iniciam um período da sua vida em que
baseia essencialmente na exploração dos dados, começa a emergir o desejo de engravidar e o de-
na codificação e na comparação constante. sejo de ter um filho, entregando-se a uma série
Assim, numa primeira fase codificaram-se as de tentativas que visam concretizar esse mesmo

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desejo. No entanto, à medida que os anos vão deste processo, marcada pelos tratamentos mé-
passando, estas mulheres parecem começar a com- dicos/hospitalares, a partir dos quais estes ca-
preender a sua dificuldade/impossibilidade de en- sais procuram gerar um filho através de técnicas
gravidar, compreensão esta que é vivida com uma medicamente assistidas (por exemplo, insemina-
grande angústia mas, especialmente, com uma ção artificial). Este período é sentido como difí-
permanente ansiedade face à expectativa de en- cil, moroso, sem certezas e dispendioso em ter-
gravidar e face à ausência actual de filhos. Para- mos monetários e em termos temporais. Inde-
lelamente, esta ansiedade, inerente à ausência de pendentemente destes aspectos, esta fase parece
filhos, marca também uma procura excessiva, desempenhar duas funções extremamente impor-
por parte das mães, de actividades, quer profis- tantes, isto é, por um lado, devolve a estas mães
sionais, quer sociais, que as ajudem a tolerar esta a esperança de engravidar, diminuindo assim a
ausência, levando uma vida agitada de forma a ferida narcísica deixada em aberto pela revelação
diminuir os seus tempos livres, na medida em que, da infertilidade, ao mesmo tempo que, o tempo
estes parecem disponibilizar um tempo e um es- em que decorrem entre estes tratamentos médi-
paço à reflexão, das suas dificuldades e da falha cos parece fornecer aos pais um espaço funda-
que a ausência de filhos lhes impõe, uma vez mental para se adaptarem não só à questão da in-
que, deixa em suspenso todo um processo psí- fertilidade, como também, de forma gradual, pro-
quico que se vê impossibilitado de se actualizar. move uma consciencialização da opção de adoptar,
No entanto este estilo de vida também traz algu- embora esta decisão só seja tomada quando to-
mas repercussões a nível psicológico, uma vez das as hipóteses de conceberem um filho geneti-
que estas mães revelam alguns sentimentos de camente seu, se esgotam, ou seja, quando todos
culpa face ao excesso de trabalho, porque pare- os tratamentos médicos fracassam (2). Assim, de
cem associar este excesso à sua dificuldade em forma ponderada emerge a decisão e o desejo de
engravidar. adoptar, uma vez que esta parece ser a solução
Gradualmente, esta dificuldade começa a tor- última ao desejo de terem um filho, colmatando
nar-se uma questão central na vida destas mulhe- não só a sua ausência como também dando lugar
res, incutindo-lhes uma sensação de falha e de a uma nova esperança e a uma nova forma de en-
incompletude enquanto mulheres e enquanto carar a maternidade e a paternidade.
esposas. Nesta perspectiva, surgem também al- Desta forma, inicia-se a terceira fase deste pro-
guns problemas conjugais que assinalam um cesso, marcada pela decisão de se candidatarem
afastamento do casal, como refere uma das mães, à adopção, isto é, após o fracasso dos tratamen-
ao salientar «evitávamos conversar». tos médicos/hospitalares, estas mães começam a
Com o passar dos anos e das sucessivas ten- procurar formas de entrar em contacto com o Ser-
tativas de engravidar, estas mães começam a viço de adopções, procurando por vezes ajuda
adquirir a percepção de que algo não está bem, através de pessoas conhecidas, sobre a forma co-
sendo que é esta mesma percepção de um pro- mo poderão dar início a este mesmo processo.
blema (1) que as impele a procurarem ajuda mé- Uma vez contactado, o Serviço, fornece Infor-
dica especializada, que confirme (ou não) as suas mação/Apoio a estas mães, explicando-lhes to-
suspeitas. De uma forma geral, estas suspeitas das as etapas deste moroso processo.
confirmam-se, existindo problemas quer em am- Finalmente, os pais são convidados a preen-
bos os elementos, quer apenas num elemento do cher um questionário, onde expressam as suas
casal. Face a esta revelação, por exemplo: in- preferências em relação à criança que desejam
compatibilidade celular ou ausência de esperma- adoptar, podendo restringir (ou não) o leque de
tozóides, estas mães (e pais) vêm-se obrigadas a crianças que lhes serão disponibilizadas pelo Ser-
lidar com a questão da infertilidade, com as ine- viço. Nas mães entrevistadas constata-se que exis-
vitáveis repercussões que este aspecto tem ao tem restrições ao processo de adopção, restrições
nível do seu projecto de parentalidade e ao nível estas marcadas ao nível da idade e da raça da cri-
da vida enquanto casal, uma vez que, esta é uma ança, parecendo ser o sexo o factor que menos
situação que é vivida a dois mas da qual, por ve- preocupa estes casais. Esta restrição racial, pare-
zes, um só parece ser o “culpado”. ce ser feita de acordo com uma crença, ou seja,
Sequencialmente, inicia-se a segunda fase estas mães parecem acreditar que o facto de

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adoptarem uma criança da mesma raça facilita- espera não é limitada no tempo e no espaço. Cu-
ria, à partida, o estabelecimento de uma interacção riosamente, observa-se que também estas mães,
familiar saudável. Contudo, note-se que o facto nesta fase, desenvolvem uma série de activida-
de adoptar uma criança de outra raça, impõe a des idênticas às mães biológicas, que se tradu-
estes casais a confrontação diária com a sua pró- zem numa busca de informação, sobre bebés e
pria infertilidade e com a adopção, e portanto, crianças, sobre os cuidados diários e o cresci-
este factor leva-nos a questionar, até que ponto mento destas, nomeadamente em revistas, tais
esta restrição não será uma forma destas mães como a Crescer e a Bebé de Hoje.
ultrapassarem ou esquecerem a sua infertilidade Pela análise destas entrevistas constata-se que
e a questão da adopção, já que uma criança de este tempo de espera variou entre os dois e os
outra cor, por exemplo, assinala a presença cons- cinco anos, sendo este período vivido com bas-
tante da sua impossibilidade de engravidar, situa- tante ansiedade, que varia de acordo com as ca-
ção esta que é igualmente patente para o resto racterísticas pessoais de cada mãe, e de acordo
das pessoas, o que poderá causar algum cons- com as próprias actividades profissionais. Con-
trangimento nas vida social destas mães. Emerge tudo, todas elas, tentam colmatar esta espera le-
assim, o medo da diferença, no entanto, indepen- vando uma vida agitada, quer a nível social quer
dentemente deste medo, existem casais que profissional. Esta necessidade de se manterem
optam por adoptar estas crianças, apesar de te- ocupadas provoca uma alteração da sua rotina
merem as interacções familiares futuras e sobre- diária/mudança de vida, uma vez que estas mães
tudo a entrada da criança para a escola, devido procuram preencher todo o seu tempo livre, ao
aos comentários prováveis dos colegas. longo do dia, de forma a colmatar a ausência de
Após o preenchimento deste questionário, e filhos e esta vivência constante de expectativa.
após o Serviço realizar um estudo a uma avalia- No entanto, parece ser esta mesma rotina que au-
ção psicológica e social destes casais, estes são xilia esta mães nesta espera, ou seja, as ocupa-
considerados aptos para adoptar, ou seja, após a ções profissionais e sociais parecem facilitar esta
aceitação da candidatura, estas mães têm ainda a espera ilimitada, embora estas mães salientem
dificuldade acrescida da comunicação da decisão que a nível profissional tinham maiores dificul-
de adoptar, à restante família. Observa-se que es- dades em se concentrarem, na medida em que to-
ta revelação é feita, regra geral, por ambos os mem- da a sua atenção parece virada para esta questão.
bros do casal, parecendo existir um certo cuida- Em suma, estas mães consideram este proces-
do e cautela na forma como esta revelação é da- so como moroso, revelando um sentimento de
da. A aceitação familiar, face a esta opção, é impotência face à sua incapacidade de poderem
quase sempre marcada por uma certa dúvida, re- fazer algo para acelerar a vinda da criança, sen-
lutância e frieza iniciais, que revelam o estigma tindo-se impotentes e colocados nas mãos dos
social que a adopção parece ainda evocar nos outros, apesar de igualmente existir um senti-
dias de hoje. Esta etapa é assim caracterizada co- mento de compreensão face à morosidade deste
mo difícil, especialmente quando associadas à mesmo processo.
adopção se cruzam diferenças raciais. Para além de um estilo de vida agitado, estes
As mudanças sociais, e o facto de cada vez pais recorrem frequentemente à utilização de ou-
mais existirem casais dispostos a adoptar, faz tras estratégias que os ajudem a tolerar esta espe-
com que surjam mais casais do que crianças dis- ra, donde se salientam os contactos telefónicos
poníveis, o que coloca estas mães numa situação que estabelecem com o serviço, numa tentativa
de espera. Este Período/Tempo de espera é vivi- de procurarem informações sobre a sua situação,
do com uma grande angústia, caracterizada pela e se eventualmente haverá alguma novidade so-
demora da concretização da vinda da criança e bre o seu processo. Nesta fase, o Serviço, desem-
do seu desejo de ser mãe. Este mesmo período, é penha uma importante função de Informação/Apoio
igualmente vivido com uma constante ansiedade, tentando, através destes contactos, minimizar a
uma vez que, estas mães esperam o aparecimen- angústia destas mães, sendo-lhes explicado que
to da criança a qualquer momento, o que as co- serão contactadas logo que surja alguma novida-
loca numa situação dolorosa de expectativa, isto de. Paralelamente, estas mães mantêm as suas
porque, ao contrário das mães biológicas, esta experiências com outras crianças, incluídas no

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seu circuito familiar e/ou profissional, parecendo Numa fase posterior, e após o casal optar por
estes contactos satisfazerem temporariamente o tornar seu filho aquela criança, inicia-se uma ou-
seu desejo de serem mães, o que as ajuda não só tra fase deste processo (4.ª), marcada pelo pla-
a tolerar a espera, como também, lhes fornece al- neamento e pela chegada da criança.
gumas técnicas que as preparam para a mater- Face às informações disponibilizadas pela
nidade, mais concretamente para a prestação dos equipa de adopções, as mães iniciam o planea-
cuidados diários, inerentes à chegada da criança. mento para a chegada da criança. Este planea-
É curioso constatar que este período/tempo de mento, que decorre entre a sinalização da criança
espera parece corresponder ao tempo de gestação e o primeiro contacto, implica a ida às compras,
das mães biológicas, com uma diferença marca- com o objectivo de adquirir uma série de utensí-
da, a de que este período é incerto no tempo e no lios indispensáveis à criança, tais como: roupas,
espaço, o que obviamente desencadeia uma gran- berço, alimentação, entre outros. Esta actividade
de ansiedade nestas mães, que as faz procurarem é realizada com alguma satisfação, contudo,
uma série de actividades que as ajudem a tolerar também emerge uma sensação de cansaço, so-
o passar dos anos, e sobretudo o aumento da sua bretudo porque existe uma falta de tempo para
idade (idade dos adoptantes), que acarreta o pe- comprar e para organizar tudo até à vinda da
so da ausência de filhos, que lhes incute um sen- criança, porque apesar do tempo de espera ser
timento de falha e também de fracasso enquanto longo, o que se observa é que só depois dos pais
mulheres. terem a sinalização da criança e de irem à reu-
Atinge-se assim a etapa final desta fase, que é nião, com o técnico do serviço, é que iniciam as
marcada pelo aparecimento de um contacto tele- verdadeiras compras. Outro aspecto relevante é
fónico do serviço, a indicar a existência de uma que estas mães consideram esta fase em tudo
criança disponível para o casal. Este telefonema, idêntica à das mães biológicas, parecendo impor-
é vivido com uma grande alegria por parte das tante para elas a percepção desta igualdade/com-
mães, mantendo-se actualmente como uma re- paração, provavelmente porque esta as faz sentir
cordação e um marco bastante importante na realmente mães.
vinda da criança. No entanto, este sentimento de O período que decorre entre a sinalização da
alegria é partilhado com um misto de curiosida- criança e o primeiro contacto é experenciado co-
de em saber como é a criança: qual a sua idade, mo um “período de tortura”, uma vez que apesar
qual o seu sexo etc. Em suma, este telefonema deste ser relativamente curto (mais ou menos
condensa uma vivência de alegria mas, simulta- uma semana), ele é vivido com uma grande ex-
neamente, uma vivência acrescida da ansiedade, pectativa, nomeadamente porque pela primeira
tendo esta um maior impacto devido à proximi- vez vão conhecer o seu novo filho. Cabe ao ser-
dade do contacto com a criança. Este telefone- viço promover este primeiro contacto, podendo
ma, visa ainda, a marcação de uma reunião com este ocorrer em vários locais, de acordo com a
o técnico (3) que acompanhou o casal. Desta for- situação e com a idade da criança. Quando entre-
ma, o casal é convidado a deslocar-se ao Serviço vistadas estas mães recordam este primeiro
(Ida ao serviço), onde, na reunião, é exposta a contacto com muita alegria e comoção, manten-
situação da criança, sendo fornecidas todas as in- do-se este momento como uma recordação viva
formações de que o casal necessita para poder na memória dos casais, a tal ponto, que são re-
tomar uma decisão. Estas referências da equipa, cordados pequenos (grandes) pormenores sobre a
parecem ser facilitadoras da disponibilidade des- criança ou sobre o ambiente envolvente. Assim,
tes casais para adoptarem determinados tipos de neste contacto, as características físicas das cri-
crianças, uma vez que, esta reunião abre um es- anças parecem desencadear, nos pais, um senti-
paço de reflexão privilegiado, que permite a es- mento de ternura e de protecção, que os faz des-
tas mães esclarecerem dúvidas, desmistificando- crevê-las como sociáveis, simpáticas e vivas, fo-
se uma série de preocupações. Por outro lado, mentando-se o início de uma visão deslumbrada
observe-se que as idas ao serviço durante o de- por parte destas mães, visão esta que facilita o
correr de todo o processo implicam faltas cons- sentimento de filiação que, gradualmente, se vai
tantes ao trabalho, o que obviamente provoca al- tornando numa verdadeira relação de attach-
terações a nível profissional. ment.

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A passagem para a última fase deste processo sendo que este período de adaptação correspon-
(5.ª), é assinalada pela ida para casa (4) da nova de ao tempo que os casais parecem demorar a
família constituída. Durante esta fase ocorre to- adaptar-se não só às particularidades de cada cri-
da uma série de alterações que vêm modificar o ança, como também à sua nova rotina diária, en-
estilo de vida destes pais. Desta forma, a nível quanto pais, com todas as obrigações e novos
das ocupações profissionais, observa-se que es- desafios que esta função acarreta.
tas mães tendem a reduzir ou refrear as suas Para além de todas estas alterações a nível da
actividades para que assim possam ter tempo sua vida, demarcam-se uma série de outras preo-
disponível para dedicar à criança. Paradoxalmen- cupações inerentes não só ao estado de saúde da
te, observa-se que esta busca de uma actividade criança, como também, relativas à aceitação fa-
excessiva cumpria uma função de preenchimento miliar deste novo membro.
de uma falha que foi agora finalmente colmata- À semelhança do que ocorre com o nascimen-
da, com a chegada da criança, o que poderá jus- to biológico de uma criança, também estas mães
tificar também esta redução das suas actividades, sentem a necessidade de partilharem esta alegria
não só no âmbito profissional, como também a com a restante família. No entanto, a aceitação
nível da ocupação dos seus tempos livres. Estas familiar face à chegada desta criança é por vezes
mesmas modificações fazem-se também sentir a complicada, e sentida com um choque inicial,
nível da vida enquanto casal, uma vez que actual- uma vez que esta criança faz agora parte de uma
mente estas mães parecem centralizar todas as família da qual ela não transporta nenhuma he-
suas atenções na criança, ficando este aspecto rança genética, isto é, este choque inicial poderá
subjugado para um segundo plano, isto é, ocorre dever-se ao privilégio que ainda hoje se fornece
uma série de reduções a nível das actividades de à “voz do sangue”, sendo esta mais uma das di-
lazer que o casal anteriormente adoptava, já que ficuldades acrescidas com que estas mães têm de
a idade da própria criança parece condicionar uma lidar. Simultaneamente, emergem as preocupa-
redução das saídas à noite, dos passeios, etc., em- ções relacionadas com o estado de saúde da cri-
bora estas actividades ainda sejam mantidas, ança, provavelmente porque estas mães, agora
mas agora mais em benefício da criança do que desempenhando este novo papel, sentem uma ne-
do próprio casal. cessidade acrescida de se actualizarem do estado
Paralelamente, a chegada deste novo membro, de saúde do seu filho. Estas preocupações re-
exige por parte destas mães, uma série de cuida- velam-se a dois níveis, sendo eles destacados pe-
dos diários, aos quais estas têm também de se lo grau de intensidade, ou seja, observa-se que
ajustar, sendo esta fase inicialmente difícil, so- estas preocupações de forma geral se traduzem
bretudo no que concerne aos banhos. Aqui o su- numa manutenção das visitas de rotina ao pedia-
porte funcional e emocional fornecido pelos fa- tra, com o objectivo da criança ser devidamente
miliares, sobretudo mães ou sogras, parece de- acompanhada ao longo do seu crescimento. Es-
sempenhar uma importante função de contenção tas consultas englobam as vacinações, mas tam-
e de apoio a estas mães. Observe-se que é atra- bém servem de “tranquilizantes” para estas
vés desta prestação de cuidados, e da actividade mães, uma vez que desmistificam, numa fase ini-
lúdica que estes pais desenvolvem (à semelhança cial, a probabilidade ou o receio de uma defici-
dos pais biológicos), que vão surgindo as primei- ência. Na outra face da mesma moeda, destacam-
ras interacções mãe/pai – bebé/criança, que fo- se as preocupações constantes com a saúde, sa-
mentam a criação de fortes laços afectivos, que lientadas em duas entrevistas, na consequência
devolvem a estas mães um forte sentimento de da adopção de crianças com problemas graves de
filiação, sempre que a criança se mostra capaz, saúde. Esta situação clínica é vivida com algum
através de vocalizações ou de sorrisos, de res- sofrimento por parte das mães, havendo todo um
ponder às solicitações maternas, fornecendo-lhes cuidado na monitorização da criança e da evolu-
estas a percepção de que a criança as reconhece ção da doença. Contudo, em ambas, a possibili-
enquanto figuras privilegiadas. dade de uma provável operação, desencadeia uma
Concluindo, a presença de um novo membro grande ansiedade não só devido ao medo do so-
na família, uma criança, exige um esforço de frimento mas também ao medo de morte da cri-
readaptação e de reorganização destes casais, ança.

406
FIGURA 1
Modelo Teórico

Legenda: 1- Percepção de um problema (infertilidade); 2- Fracasso dos tratamentos médicos/hospitalares e transição para uma parentalidade adoptiva; 3- Reunião com
o técnico (ida ao serviço); 4- Ida para casa.

407
Estas são as dificuldades com as quais estas casais desejam ter um filho, contudo, com o de-
mães têm de lidar, sendo algumas delas idênticas correr dos anos estas mães apercebem-se da sua
às mães biológicas, enquanto outras parecem es- dificuldade em engravidar, percepção esta sen-
pecíficas da adopção. No entanto, após um pe- tida com uma grande angústia, que tentam col-
ríodo inicial de dificuldades acrescidas, a vários matar adoptando um estilo de vida próprio, mar-
níveis, observa-se que se adquire um novo equi- cado por uma procura excessiva de actividades.
líbrio que engloba as crianças, os pais e a res- Esta dificuldade começa a tornar-se uma questão
tante família, uma vez que, a aceitação familiar central na vida destas mulheres, o que as conduz
acaba por se concretizar através do contacto à percepção de que existe algum problema, que
com a criança, parecendo mesmo ocorrer um es- tentam confirmar pela procura de informação e
quecimento por parte da família alargada, sobre- assistência médica especializadas. Confirmadas
tudo dos avós, de que aquela criança foi adopta- as suas suspeitas, estes casais optam por iniciar
da (período de adaptação). uma série de tratamentos médicos/hospitalares,
Apesar da morosidade e das diversas adversi- que lhes devolvam a esperança de poder gerar
dades do processo de adopção, a maioria destas um filho. Por outro lado, nesta segunda fase, o
mães, sente a experiência de adopção como ex- decorrer dos tratamentos, parece promover uma
tremamente gratificante, sendo provavelmente consciencialização da opção de adoptar, emer-
esta mesma sensação que lhes incute o desejo de gindo gradualmente e de forma ponderada este
adoptar uma nova criança. Contudo, não é possí- desejo. Numa terceira fase deste processo, ca-
vel esquecer que esta questão também se prende racterizada pela colocação dos papéis, estes
com a própria concepção/projecto parental que casais têm de enfrentar tarefas específicas da
cada casal elaborou ao longo da sua vida. Mas, adopção, sendo elas: a procura do serviço; a co-
nem sempre esta experiência é vivida com tanto municação da decisão de adoptar e a aceitação
agrado, existindo algumas mães que revelam familiar face a esta; o estigma social inerente a
que esta experiência inicialmente foi muito difí- esta decisão; a dúvida sobre as restrições coloca-
cil, sobretudo porque foi uma adopção tardia, o das ao processo e, por último, um período/tempo
que lhes dificultou o estabelecimento de laços de espera incerto, que desencadeia angústias e
afectivos com as crianças. Face a estas dificul- um sentimento de impotência e desespero. Após
dades as mães contactam algumas vezes o Servi- a sinalização da existência de uma criança, ini-
ço, que lhes fornece um Apoio fundamental na cia-se uma quarta fase marcada pelo planeamen-
resolução de algumas questões. Paralelamente to efectivo para a chegada da criança, sendo este
parece ocorrer um esquecimento da não gestação período vivido com algum cansaço mas também
biológicas, reflectido nas expressões: «o meu com uma grande curiosidade e expectativa face à
filho» ou «ele faz parte de mim» que revela o criança. Assim, num primeiro contacto com esta,
forte laço afectivo que estas mães estabelecem estas mães revelam o seu sentimento de emoção
com as suas crianças. e alegria, revelando que pela primeira vez se
O processo do desejo de ser mãe, termina as- sentiram realmente mães, parecendo ser as
sim com a concretização desse mesmo desejo, características físicas e sociais da criança que de-
parecendo estas mães disponíveis para acompa- sencadeiam um sentimento de ternura e de iden-
nhar e fornecer o apoio necessário à evolução e tificação por parte destas mulheres. Com a pos-
crescimento dos seus filhos, sobretudo na fase da terior ida para casa finaliza-se este processo,
adolescência, e portanto foi finalmente elaborado ocorrendo uma concretização do desejo de ser
todo um processo psíquico que tinha ficado em mãe. No entanto, as dificuldades acrescidas desta
suspenso, preenchendo-se assim uma lacuna, o forma de parentalidade mantêm-se no tempo, so-
que promove um sentimento de realização total bretudo porque tem de ocorrer uma readaptação
nestas mães. da sua vida familiar e da sua rotina diária, desen-
cadeando-se uma nova paleta de emoções e preo-
cupações, sobretudo no que concerne à saúde e
CONCLUSÕES bem estar do seu filho.
Independentemente do sucesso da adopção es-
Numa primeira fase, e após o casamento, estes ta forma de ser mãe/pai desencadeia uma série

408
de preocupações e novos desafios que não de- designou por preocupação maternal primária, o
vem ser descurados. Assim, este trabalho, cen- que confirma os estudos de H. e J.-P. Waber (cit.
trado nas mães entrevistadas, permitiu concluir por Berger, 1997) e de Tsiantis (1991), observan-
vários aspectos. do-se que estas mães conseguem identificar-se
Primeiro, e como refere Brodzinsky et al. com as crianças, estabelecendo com elas fortes
(1998) existem tarefas específicas inerentes ao elos afectivos, caracterizados por um sentimento
ciclo de vida de uma família adoptiva, traduzidas de pertença e de partilha. Assim, torna-se claro
ao nível da transição de uma parentalidade bio- que é possível o estabelecimento de uma relação
lógica para uma parentalidade adoptiva. Esta de vinculação entre a criança e a mãe adoptiva,
transição engloba o conhecimento e a aceitação cuja qualidade influenciará o desenvolvimento
da sua própria infertilidade que, como salienta posterior da criança. Contudo, não podemos dei-
Diniz (1993) é vivida com um sofrimento de- xar de salientar que na adopção todo este pro-
pressivo, isto é, o conhecimento da infertilidade cesso tem de ser realizado de uma forma rápida,
instala uma ferida narcísica nestes pais e deixa o que pressupõe uma sedução de parte a parte.
em suspenso todo um processo psíquico que se Por outro lado, a idade em que a criança é adop-
vê impossibilitado de se actualizar devido à difi- tada também parece ser um factor preponderante
culdade em procriar. Paralelamente, esta situação no estabelecimento destes laços, ou seja, quando
é vivida a dois mas, como refere o autor, dela so- mais tardia for a adopção maiores dificuldades
mente um membro é o “culpado”, o que desenca- parecem existir a este nível, provavelmente por-
deia problemas conjugais, traduzidos numa di- que a criança transfere para os novos pais os
minuição do diálogo entre o casal. Nesta transi- conflitos e as experiências de abandono anterio-
ção, e de acordo com Bornstein (1995), estes res, tal como o destaca Tsiantis (1991).
pais têm ainda que lidar com o estigma social Num quarto ponto, revela-se um aumento de
inerente à adopção, e portanto a chegada da cri- stress e da ansiedade consequentes das tarefas e
ança e a comunicação da decisão de adoptar é desafios face à sua nova condição enquanto mães
alvo de pouco suporte social e emocional por adoptivas. Nos seus trabalhos, Kirk (cit. por Bro-
parte da família alargada, especialmente quando dzinsky et al., 1998) destaca duas formas par-
na adopção se cruzam diferenças étnicas ou ra- ticulares de lidar com estas tarefas, isto é, ora
ciais. através da aceitação das diferenças inerentes à
Segundo, observa-se que face a esta impossi- parentalidade adoptiva ora de uma negação des-
bilidade de ter filhos, os casais optam por novas tas diferenças, o que parece ser a estratégia adop-
formas de ser mãe/pai, donde se destaca a adop- tada por estas mães, provavelmente porque ela
ção como uma forma privilegiada de colmatar o lhes facilita o esquecimento da sua infertilidade,
desejo de ser mãe. No entanto, esta decisão pres- mas que, a longo prazo, poderá dificultar o ajus-
supõe a desistência da sua parentalidade bioló- tamento da criança, sobretudo quando esta ini-
gica e portanto acarreta um sentimento de ver- ciar a procura das suas origens.
gonha, culpa e ansiedade, devido ao peso actual Por último, constata-se que apesar destas mães
da procriação na nossa sociedade. Assim, inicia- terem tarefas educativas e parentais com dificul-
se um período/tempo de espera, marcado por dades duplicadas, estas adquirem uma boa
sentimentos de ansiedade, incerteza e desespero, adaptação à função parental efectivamente exer-
já que, ao contrário das mães biológicas, nas mães cida, tal como se verificou nos estudos de Levy-
adoptivas este tempo de espera é indeterminado Shifft, Ban e Han-Even (cit. por Brodzinsky et
no tempo e no espaço, o que inibe o planeamento al., 1998). O conhecimento da vivência destas
efectivo para a chegada da criança, como salien- mães implica, na prática, encontrar estratégias
ta Bornstein (1995), o que justifica que estes pais que melhorem a qualidade de vida desta nova
só após a sinalização por parte do serviço inici- forma de vida familiar, uma vez que a maior par-
em este tipo de actividades. te dos estudos parecem demasiado centrados na
Num terceiro ponto, conclui-se que apesar des- psicopatologia desta situação, perdendo-se o ini-
tas mães não passarem pela experiência da gra- cial e verdadeiro sentido da adopção – fornecer
videz, elas são igualmente capazes de desenvol- um lar securizante, permanente, protector e pro-
ver aquilo a que Winnicott (cit. por Tsiantis, 1991) motor do desenvolvimento da criança. Assim,

409
conhecendo as várias fases deste processo torna- estas entrevistas com o objectivo de fazer algo
se possível não só esclarecer o ciclo de vida fa- como que um historial de vida destas mulheres,
miliar da adopção, como, paralelamente, fomen- para que, desse modo, seja possível compreender
tar novas formas de intervenção e auxílio destes melhor o que as levou a adoptar, assim como pa-
casais, uma vez que, conhecer as suas preocupa- ra clarificar alguns pontos referentes às suas vi-
ções e ansiedades é conhecer a sua realidade in- das anteriores, antes de terem crianças; 2) é im-
terna, o que nos poderá ajudar a antecipar e a portante referir, ainda, que os resultados obtidos
prevenir uma série de situações, nomeadamente neste estudo são unicamente generalizáveis às
no que diz respeito ao ajustamento familiar face mães entrevistadas, e não a todas as mães adopti-
à chegada da criança. Observe-se, também, que a vas, já que esta amostra não é estatisticamente
adopção pressupõe a intervenção de uma grande significativa, o que constitui uma limitação deste
variedade de técnicos donde nos parece funda- estudo.
mental estabelecer pontos de conexão e de ajuda
mútua entre eles para que seja possível compre-
ender cada vez mais esta forma particular de vi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
da familiar.
Embora muitos estudos tenham sido realiza- Berger, M. (1997). A criança e o sofrimento da separa-
dos sobre a adopção, o que se verifica é que pou- ção. Lisboa: Climepsi Editores.
Brodzinsky, D., Smith, D., & Brodzinsky, A. (1998).
cos incidem sobre a família adoptiva, mais con-
Children’s Adjustment to Adoption: Developmental
cretamente sobre os pais, pelo que existe pouca and clinical issues. California: SAGE.
informação acerca deste tipo de questões, sendo Bornstein, M. (Ed.) (1995). Handbook of parenting.
urgente a necessidade de sistematizar este tipo de Vol. 3: Status and social conditions of parenting.
estudos. De igual forma, observa-se que poucos UK: Hove.
são os estudos que incidem sobre os pais bioló- Diniz, J. (1993). Este meu filho que eu não tive: A adop-
gicos da criança adoptada, tendo em conta que ção e os seus problemas. Porto: Edições Afronta-
mento.
eles são intervenientes activos neste processo. Sá, E., & Cunha, J. M. (1996). Abandono e Adopção: O
Parece relevante compreender, de igual forma, nascimento da família. Coimbra: Livraria Almedi-
qual é o ajustamento destes pais face à entrega na.
de uma criança e de que modo é que esta perda é Triseliotis, J. (1991). Adoption Outcomes: A Review. In
diferente de outras perdas como o aborto, os na- Hibbs (Ed.), Adoption: Internacional Perspective
dos mortos ou a síndrome de morte súbita. De- (pp. 291-310). Connecticut: International Univer-
sities Press.
vido ao elevado número de variáveis e devido ao Tsiantis, J. (1991). Assessment of Parental Care Capa-
elevado número de intervenientes neste proces- city in the Context of Adoption. In Hibbs (Ed.),
so, torna-se difícil elaborar um estudo que englo- Adoption: Internacional Perspectives (pp. 57-71).
be todos estes aspectos. Contudo, apesar de ser Connecticut: International Universities Press.
difícil, sobretudo em termos de custos e a nível
logístico, é importante levar a cabo um maior
número de estudos longitudinais na adopção, RESUMO
uma vez que esta questão se estende para além
da infância e da adolescência, sendo relevante Este trabalho foi elaborado com o objectivo de
compreender de que forma é que a adopção con- compreender os sentimentos e vivências das mães,
enquanto mães adoptivas, avaliando as estratégias en-
tinua a influenciar os padrões de ajustamento so- contradas para solucionar as diversas dificuldades
cial e familiar, na fase adulta. que esta situação acarreta. Para tal, foram realizadas e
Após a realização das entrevistas e da sua analisadas cinco entrevistas semi-estruturadas, de
subsequente análise, parece-nos importante sa- acordo com o método Grounded Theory, a mães adop-
lientar dois aspectos: 1) no futuro, os estudos rea- tivas com idades compreendidas entre os vinte e sete e
lizados através deste método e sobre este tema, os quarenta anos de idade, cujas crianças tinham ida-
des variáveis entre os três meses e os seis anos, aquan-
deverão alterar a questão inicial que marcou as
do da realização das entrevistas. Assim, observou-se a
entrevistas, ou seja, em vez de se perguntar às emergência de cinco fases: o desejo de ter um filho; os
mães como havia sido a experiência de ser mãe tratamentos médicos/hospitalares; o desejo de adoptar;
de determinada criança, seria vantajoso realizar o planeamento para a chegada da criança e, por último,

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a concretização do desejo de ser mãe. Estas fases inter- semi-structure interviews, according to the Grounded
ligam-se por vários pontos de transição donde se des- Theory method, to adoptive mothers with ages bet-
taca a percepção de um problema (infertilidade), o fra- ween twenty-seven and forty years old, whose children
casso dos tratamentos médicos com a aceitação de have ages between three months and six years. There-
uma parentalidade adoptiva, a reunião com o técnico e, by it’s demonstrated the emergency of five stages: the
por último, a ida para casa. desire to have a child; the medical/hospital treatments;
Palavras-chave: Criança, pais, comportamento pa- the desire to adopt; planning the child’s arrival, and at
rental, adopção, Grounded Theory, desejo de ser mãe. last, the achievement of the desire to became a mother.
The transition and connection of these phases were
made by the undergoing of some points as, the percep-
ABSTRACT tion of a problem (infertility), the failure of the medi-
cal treatments and the transition to an adoptive paren-
This dissertation has for goal the understanding of thood, the reunion with the technician and the going
the feelings and life-stile of adoptive mothers, evalua- home of the new family.
ting the strategies that they found to copy with this Key words: Children, parents, parental behaviour,
particularly situation. We have made and analysed five adoption, Grounded Theory, desire to be a mother.

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