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STRAUB~HUILLET

STRAUB~HUILLET
Retrospectiva dos filmes de Centro Cultural Banco do Brasil
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet janeiro de 2012
Rio de Janeiro 3–15 janeiro
Brasília 10–22 janeiro
São Paulo 17–29 janeiro

Dados Internacionais de Catalogação


na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Straub-Huillet / Ernesto Gougain (orgs.)...


[et al.]. -- São Paulo : Centro Cultural do Banco
do Brasil, 2012.
Outros organizadores: Fernanda Taddei,
Patrícia Mourão, Pedro França, Mateus Araújo
Vários autores.
ISBN 978-85-85688-46-2

1. Cineastas - França 2. Ensaios 3. Entrevistas


4. Filmografia 5. Huillet, Daniele, 1936-2006
6. Straub, Jean-Maric, 1933- I. Gougain, Ernesto.
II. Taddei, Fernanda. III. Mourão, Patrícia.
IV. França, Pedro. V. Araújo, Mateus.

12-00050 CDD-791.430944

Índices para catálogo sistemático:


1. Cineastas franceses : Cinema : Apreciação
791.430944
Ministério da Cultura e Banco do Brasil
apresentam Straub-Huillet, a mais completa
mostra do casal de cineastas franceses
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, reconhe-
cidos desde a primeira produção pela crítica
e pelo público, com exibições em grandes
festivais como Veneza, Locarno, Cannes e
Viennale.
A seleção reúne 26 títulos produzidos
de 1962 a 2006, ano da morte de Danièle, e
nove realizados a partir de então, somente
por Jean-Maire, além de uma filmografia
complementar, composta por cinco filmes
dos diretores Harun Faröcki, Manfred Blank,
Pedro Costa, Jean-Paul Toraille e Philipe
Lafosse, em um diálogo com a forma original
de fazer cinema desenvolvida pela dupla.
Os filmes do casal leem ou reescrevem
peças de teatro, música e ópera, textos em
verso e prosa de grandes artistas como Bach,
Kafka, Pavese, Brecht, Hölderlin, Corneille,
Cézanne e outros.
Ao realizar a mostra, o Centro Cultural
Banco do Brasil oferece ao público a
oportunidade de contato com uma obra
singular, pouco exibida no continente
latino-americano, e que possibilita repensar
cinema e arte enquanto atos de resistência
e libertação humana.

Centro Cultural Banco do Brasil


Apresentação Escritos de
Ernesto Gougain Jean-Marie Straub e
Fernanda Taddei Danièle Huillet

Filmografia geral M=M 2


de Jean-Marie Straub e
Danièle Huillet Não “interpretar”,
reunida por Benoît Turquety, recitar (a propósito de
de 1962 a 2008, complementada Não reconciliados) 3
pelos curadores, de 2009 a 2011
O Bachfilm 4
Filmes sobre
Jean-Marie Straub e Apresentação de
Danièle Huillet Não reconciliados 11

Autobiografia 16

Filme e narrativa:
respostas a uma enquete 19

Sobre Ernst Lubitsch 23

Feroz
(sobre Carl Th. Dreyer) 24

O noivo,
a atriz e o cafetão 27

Othon contra a dublagem 28

Apresentação de Othon 31

Como “corrigir” a nostalgia


(a propósito de Cedo demais,
tarde demais) 33
Um atentado contra a Escritos sobre a obra
reprodutibilidade a obra de arte 36
O que é o ato de criação? 181
Concepção de um filme 39 Gilles Deleuze

Sobre David Wark Griffith 50 Prefácio a um volume


de Textos Cinematográficos
Autofilmografia 51 de Straub e Huillet 193
Adriano Aprà
Material de imprensa de
O retorno do filho A enorme presença
pródigo — Humilhados 53 dos mortos 197
Jean Narboni
Material de imprensa de
Esses encontros com eles 57 Straub, Hölderlin, Cézanne 205
Dominique Païni
Três mensagens à 63ª
Mostra de Veneza 62 Cinemeteorologia 214
Serge Daney

Othon e Jean-Marie Straub 219


Entrevistas Jean-Claude Biette

Cinema [e] política O estranho tribunal


“foice e martelo, canhões, Sobre O retorno do
canhões, dinamite!” 66 filho pródigo — Humilhados 223
Jacques Rancière
Sobre o som 92
1967–1978 227
Sobre Lições de História 105 Franco Fortini

Straub-Huillet:
o menor planeta do mundo 235
Diário de filmagem Alain Bergala
de Moisés e Arão 123
de Gregory Woods, Glauber Rocha e os Straub:
com anotações diálogo de exilados 243
de Danièle Huillet Mateus Araújo Silva
Apresentação

O que viram os primeiros que viram? Com que ouvidos se escutaram as primeiras
vozes? Em que noite nasceu o ruído? O que é isso de amar
os homens? A visão do movimento produz felicidade? A terra,
é de alguém? Cavalo, atleta, pássaro? Quem está lá, por detrás dos nomes?

Ernesto Gougain e Fernanda Taddei


Todos os filmes têm som monofônico.

Filmografia geral de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

Reunida por Benoît Turquety, de A quase totalidade dos fotogramas


1962 a 2008, complementada pelos presentes nesta seção foi gentilmente cedida
curadores, de 2009 a 2011. pela associação les films et leur sites.
1962
Machorka-Muff

República Federal da Alemanha, 18 min, “Ricercar a 6 ”, 1747), François Louis (trechos


35 mm, preto e branco, janela 1/1,37. “Ein de “Transmutations”, 1957). Órgão: François
bildhaft abstrakter Traum, keine Geschichte. Louis. Produção: Straub-Huillet, Munique;
Jean-Marie Straub” [“Um sonho metaforica- Atlas-Film, Duisburg; Cineropa-Film, Munique.
mente abstrato, não uma história.” — manus- Produtor: Walter Krüttner. Diretor de produção:
crito]. Decupagem de Jean-Marie Straub e Hans von der Heydt. Texto: “Hauptstadtisches
Danièle Huillet, a partir de “Hauptstadtisches Journal”, em Doktor Murkes gesammeltes
Journal” de Heinrich Böll. Fotografia: Wendelin Schweigen; Und andere Satiren, Colônia &
Sachtler, Hans Christopher Brüning. Luz: Berlim, Kiepenheuer & Witsch, 1958; trad.
Franz Schniabeck. Som: Janosz Roszner, S&G. de Lalène: “Journal du général Erich von
Jean-Marie Straub. Elenco: Erich Kuby (Erich Teuf-Teufzim em la capitale fédérale”, em Loin
von Machorka-Muft), Renate Langsdorff (Inn), de la troupe, Paris, Le Seuil, 1966. Filmagem:
Rolf Thiede (Murcks-Maloch), Günther Strupp Dez dias, setembro 1962, Bonn e Munique.
(Heffling), Johannes Eckardt (o padre), Reiner Custo: 31 mil marcos alemães. Material: uma
Braun (o ministro), Gino Cardella (o garoto câmera Arri Blimp 120, um Nagra. Negativo
do café), Julius Wikidal (o maçon). Decoração Kodak XX (6000 m). Comprimento final: 480 m.
de vitrines: E. A. Luttringhaus. Direção: Primeira apresentação: Festival de curtas-me-
Hansdieter Seel. Montagem: Danièle Huillet e tragens de Oberhausen (fora de competição),
Jean-Marie Straub, C.-P. Lemmer. Realização: fevereiro 1963. (Na Inglaterra: London Film
Jean-Marie Straub. Assistente de direção: Festival, 18 nov. 1969; E.U.A.: 23 fev. 1969).
Danièle Huillet. Música: Johann Sebastian Primeira exibição na televisão: 25 agosto de
Bach (“Musikalisches Opfer”, swv 1079, 1969 (ARD).
1965
Não reconciliados ou Só a violência ajuda, onde a violência reina
Nicht Versöhnt oder Es hift nur Gewalt, wo Gewalt herrscht
República Federal da Alemanha, 55 min.; 35 Kirchner, Jürgen Kraeft, Achim Wurm, Max
mm, preto e branco, janela 1/1,37. [Créditos:] Dierich Willutzki, Hannelore Langhoff,
NICHT VERSÖHNT oder Es hi/ft nur Gewalt, wo Johanna Odry, Günther Becker, Willy Brumo
Gewalt herrscht. De Danièle Huillet e Jean- Wange, Stefan Odry, Anita Bell [a velha que
Marie Straub, a partir do romance Billard un joga cartas], Erika Brühl [Edith, irmã de
Halbzehn de Heinrich Böll. Elenco (Darsteller): Schrella], Werner Brühl [Trischler], Helga
Henning Harmssen [Robert Fähmel aos 40 Brühl [Madame Trischler], Paul Esser, Hans
anos], Georg Zander [Hugo, o boy do hotel, Zander, Karl Bodenschatz [o porteiro], Reiner
e Ferdinand “Ferdi” Progulske], Ulrich Braum [Netlinger], Heinrich Hargesheimer
Hopmann [Robert Fähmel aos 18 anos], Ernst [Heinrich Fähmel, pai de Robert, aos 80 anos],
Kutzinski [Schrella aos 15 anos], Jochen Huguete Sellen [secretária de Robert Fähmel],
Grüner, Günter Göbel, Peter Berger, Klaus Ulrich von Thüna [Schrella aos 35 anos],
Weyer, Eberhard Ellrich, Norbert Pritz, Bemd Walter Brenner, Chargesheimer [Karlheinz
Wagner, Michael Krüger, Joseph Vollmert, Hargesheimer, Heinrich Fähmel aos 35
Dieter Romberg, Egbert Meiers, Ralf Kurth, anos], Rudolf Thome, Claudio Domberger,
Jürgen Beier, Michael Holy, Engelbert Greis, Lutz Grübnau [primeiro abade], Hans
Wolfgang Kück, Herbert Gammersbach, Rolf Schönberger, Karsten Peters, Kai A. Niemeyer,
Buhl, Peter Kneip, Gerd Lenze, Erdmann Danièle Straub [Johanna jovem], Franz
Dortschy, Piero Poli, Màrgrit Borstel [a loura Menzel, Martin Trieb [segundo abade], Kim
que tricota], Diana Schlesinger, Karin Kraus, Sachtler, Walter Talmon-Gros, Joe Hembus,
Claudia Wurm, Frouwke van Herwynen, Max Zihlmann, Maurie Fischbein, Martha
Ise Maassen, Dagmar von Nezer, Hartmut Standner [Johanna Fähmel, mãe de Robert,
aos 70 anos], Christel Meuser, Wendelin marcos alemães (cerca de 230 mil francos
Sachtler [Mull], Eva Maria Bold [Ruth Fähmel, novos, 18 milhões de liras). Filmagem: agosto–
filha de Robert], Joachim Weiler [Joseph setembro 1964 e abril 1965 (6 + 2 semanas),
Fähmel, filho de Robert], Hiltraud Wegener em 45 locações diferentes, em Colônia e
[Marianne, noiva de Joseph], Kathrin Bold arredores, em Eifel, em Munique e arredores.
[irmã de Ferdinand], Annie Lautner, Johannes Material, além do supracitado: 1 câmera Arri
Buzalski, Eduard von Wickenburg [M.], Blimp 120, 1 Nagra. 19 000 m de negativo uti-
Gottfried Bold [colega de M.], Victor von lizado. Comprimento final: 1500 m. Legendagem
Halen [outro colega de M.], Beate Speith. em francês por Danièle Huillet, em inglês com
“Anostatt der Eindruck hervorrufen zu Misha Donat, e em italiano com Adriano Aprà.
wollen, er improvisiere, soli der Schauspie1er Primeira apresentação: 4 julho 1965, Festival
lieber zeigen, was die Wahrheit ist: er zitiert. de cinema de Berlim, fora de competição.
Bertolt Brecht.” [“Em lugar de querer criar Grande Prêmio do Festival de Bergamo,
a impressão que improvisa, o ator deveria 1965. Único filme alemão no New York Film
mostrar o que é a verdade: ele cita. Bertolt Festival (primeira projeção nos E.U.A., 18 de
Brecht.”]. Câmera: Wendelin Sachtler, Gerhard setembro 1965) e no London Film Festival
Ries, Christian Schwarzwald, Jean-Marie (15 de novembro 1965), e em 1966 na Semana
Straub. Negativo Kodak xx Rochester USA. dos Cahiers du cinéma em Paris. Prêmio
Blenden [Transparência] Bavaria Trick- da jovem crítica e Prêmio do novo filme,
Atelier. Lichtbestimmumg R. lblherr, D. Festival de Pesaro, 1966; júri: G. Amico, M.
Kain. Som: Lutz Grübnau, Willi Ranospach. Bellochio, B. Bertolucci, J.-L. Godard, J. Ivens,
Neumann Kondensator Kleinmikrophon KN J. Jires e P. P. Pasolini. Primeira exibição na
56. Mixagem Paul Schöler, Aventin, Munique. televisão: 25 agosto 1969 (ARD). O romance
Técnica: Herbert Martin. Assistentes: Charlie Billard um Halbzehn (1959) de Heinrich Böll
Putzgruber, Hartmut Koldemey, Wilhelm foi traduzido em francês com o título Les
Eschweter. Decupagem: Danièle Huillet e deux sacrememts: Paris, O Seuil, 1961 (cf.
Jean-Marie Straub. Música sob a direção de acima). Filme distribuído à época na Inglaterra
François Louis, Genebra. Direção de produção: por Polit Kino, e nos E.U.A. por New Yorker
Danièle Huillet. Assistentes: Max Dierich Films, com o título Not Reconciled (depois de
Willutzki, Uschi Fritsche. Realização [Direção]: ter sido projetado nos festivais de Nova York
Jean-Marie Straub. Montagem: Huillet e Straub. e Londres com o título Unreconciled). Nova
Música: Béla Bartok (Sonata para dois pianos cópia legendada em francês, projetada pela 1ª
e percussões, primeiro movimento, compas- vez na Cinemateca Francesa pela ocasião dos
sos 1–10) e Johann Sebastian Bach (Suíte n° 2 70 anos de Jean-Marie Straub, em 8 janeiro
em si menor, BWV 1067, abertura). Produção: 2003 (acompanhado de um “filme surpresa”:
Huillet e Straub (Munique). Custo: 117 mil A longa viagem de volta de John Ford).
1967
Crônica de Anna Magdalena Bach
Chronik der AnnaMagdalena Bach
República Federal da Alemanha, 93 min; 35 na Cantata BWV 244a], Karlheinz Klein [baixo
mm, preto e branco, janela 1/1,37. [Créditos:] para o dueto da Cantata BWV 140]. Orquestras:
Chronik der Anna Magdalena Bach. De Concentus Musicus, Emsemble für Alte
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Com Musik, Viena direção Nikolaus Harnoncourt
Gustav Leonhardt [Johann Sebastian Bach], [orquestra da corte de Cöthen; com Nikolaus
Christiane Lang[-Drewanz, Anna Magdalena Harnoncourt no papel do príncipe Leopold
Bach], Paolo Carlini [Dr. Holzel, conse- d’ Anhalt-Cöthen]. Konzertgruppe der Schola
lheiro], Ernst Castelli [Steger, conselheiro Cantorum Basiliensis [Basileia]; Direção
áulico], Hans-Peter Boye [Born, conselheiro August Wenzinger [orquestra das igrejas
da congregação], Joachim Wolf [o reitor], em Leipzig]. Coros: Knabenchor, Hanovre;
Rainer Kirchner [o superintendente], Eckart direção Heinz Hennig [coral da escola
Brüntjem [dirigente do coro Kittler], Walter SaintThomas]. Voz de soprano: Bernhard
Peters [dirigente do coro Krause], Kathriem Wehle des Regensburgen Domspatzem [na
Leonhardt [Catharina Dorothea Bach], Anja Cantata BWV 140]. Figurinos: “Casa d’arte
Fährmann [Regine Susanna Bach], Katja Firenze”; Vera Poggioni, Renata Morroni.
Drewanz [Christiane Sophie Hemrieta Bach], Perucas: “Parrucche Roccheti”; Todero
Bob van Asperem [Johann Elias Bach], Guerrino. Cravos, espineta e clavicórdio de
Andreas Pangritz [Wilhelm Friedemann Bach], Martin Skowroneck, Bremen, e de Carl August
Bernd Weikl [cantor da Cantata BWV 205], Gräbner, Dresden. Imagem: Ugo Piccone,
Wolfgang Schöne [cantor da Cantata BWV 82], Saverio Diamanti, Giovanni Cienfarelli; Hans
Karl-Heinz Lampe [cantor da Cantata BWV 42], Kracht (Defa), Uwe Radon (Defa), Thomas
Christa Degler [voz de Anna Magdalena Bach Hartwig. Som: Louis Hochet, Lucien Moreau;
mixagem: Paul Schöler. Locações principais: Necrológio de Carl Philipp Emanuel Bach e
Eutin (castelo [castelo do príncipe d’Anhalt- J.-F. Agricola (1754), de textos (cartas e me-
-Cöthen]); Preetz (igreja do convento [tribuna mórias) de Johann Sebastian Bach, e outros
de órgão n° 3, catedral de Cöthen]); Stade documentos da época. Montagem: Danièle
([igrejas] St. Wilhadi e St. Cosmae [tribuna Huillet e Jean-Marie Straub. Material: 1 câmera
de órgão n° 1, igreja St-Thomas de Leipzig; Mitchell 300 Blimp; 1 Nagra III; microfones
& tribuna de órgão nº 2, da Universidade]); Neumann; película negativo Kodak 4x de
Leipzig (fachada da prefeitura [praça do Rochester, USA (28 500 metros de negativo).
mercado de Leipzig]); Lüneburg (convento Comprimento final: 2 634 metros. Filmagem:
de Lüne [escola St Thomas: refeitório, meados de agosto a meados de outubro
alojamento do Cantor]); Haseldorf (castelo de 1967 (8 semanas). Custo: 470 mil marcos
[alojamento do Cantor: sala de composição; alemães (900 mil francos, 80 milhões de liras).
alojamento do superindentente]); Lübeck Versão francesa: legendagem dos diálogos
(corte Füchting [sala do conselho municipal, por D. Huillet, narração em francês com forte
hotel da cidade de Leipzig]); Nuremberg sotaque alemão de Christiane Lang. Versão
(Musée National Germanique [alojamento do holandesa: legendagem dos diálogos com
Cantor: sala de música]); Freiberg em Saxe Henk de By, narração em holandês de Margre
(catedral [tribuna de órgão n° 5, igreja Notre- Schumacher. Versão italiana: legendagem
Dame de Dresden]); Grosshartmannsdorf dos diálogos com Adriano Aprà, narração
(igreja [tribuna de órgão nº 4, igreja Ste- em italiano com leve sotaque alemão de Rita
Sophie de Dresden]); Berlim [-Leste] (Ópera Ehrhardt. Versão inglesa: legendagem dos di-
nacional [Sala “Appollo”]). Os manuscritos álogos com Misha Donat, narração em inglês
de Bach e os impressos originais foram com sotaque alemão de Gisela Hume. Primeira
gentilmente disponibilizados pela Biblioteca projeção: 3 de fevereiro 1968, Cinemanifestate
da Universidade de Tübingen, pela Biblioteca Festival, Utrecht. Projetado na “Semana da
oeste-alemã de Marburg, pela Biblioteca do Crítica”, Cannes 1968; Filmfestspiele, Berlim,
Estado de Stiftung Preussischer Kulturbesitz 30 de junho 1968. Prêmio especial em Prades
de Berlim-Dahlem, pela Biblioteca do Estado e Grande Prêmio no London Film Festival,
de Berlim unter den Linden e pelo Bach- 1968. Prêmio “Bambi” da crítica alemã: melhor
Archiv de Leipzig. Agradecemos também filme alemão de 1968. Primeira exibição na
aos professores Christhard Mahrenholz, televisão: 8 abril 1971 (ARD). Música: Johann
Georg von Dadelsen, Alfred Dürr, Friedrich Sebastian Bach: Concerto de Brandeburgo
Smend e Werner Neumann. Técnica: Hans n° 5, BWV 1050, primeiro movimento (alegro
Eberle, Max Jorg, Walter Eder, Max Strobl; 1), compassos 147–227, cravo e orquestra,
Heinz Krähnke (Defa), Peter Algert (Defa), 1720–1721; Pequeno livro de teclado de
Jürgen Zanner (Defa), Jürgen Schlobach Wilhelm Friedemann Bach, BWV 128, prelúdio
(Defa). Coprodução franco-italiana, Franz Seitz nº 6, clavicórdio, 1720; Pequeno livro de tecla-
Filmproduktion [Munique], Gianvittorio do de Anna Magdalena Bach Anno 1722, BWV
Baldi IDI Cinematográfica [Roma]. Straub- 812, minueto 2 da Suíte em ré menor (Suíte
Huillet; Kuratorium Junger Deutscher Filme francesa 1), espineta; Sonata n° 2 em ré maior
[Munique]; Hessischer Rundfunk [Frankfurt]; para viola da gamba e cravo obligé, BWV 1028,
Filmfonds e.V. [Roma]; Telepool [Munique]. adagio, cerca de 1720; Sonata em trio nº 2 em
Diretora de produção: Danièle Huillet. dó menor para orgão, BWV 526, largo, orgão,
Assistentes: Georg Föcking, Aldo Passalacqua, 1727; Magnificat em ré maior, BWV 243, n° 11 e
Joachim Wolf; Horst Winter (Defa), Günter n° 12 até o compasso 19 (“Sicut locutus est”
Maag (Defa). Decupagem Danièle Huillet e Glória), 1728–1731; Pequeno livro de teclado
(“Para Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, de A.M.B. 1725, BWV 830, Tempo di Gavotta
Michel Delahaye e muitos outros.”), Jean- de la partita em mi menor, espineta; Cantata
Marie Straub. Decupagem feita a partir do BWV 205, “Éolo apaziguado”, recitativo para
baixo (“Sim! Sim! As horas são doravante Deus Espírito Santo”, BWV 671, 1739; Segunda
próximas”) e ária (“Como rirei alegremente”), parte do Método de teclado, Concerto no
1725; Cantata BWV 198 (Ode fúnebre), coro gosto italiano, BWV 971, andante, 1735;
final, 1727; Cantata BWV 244a (Música fúnebre Cantata BWV 140, primeiro duo, compassos
para o príncipe Leopoldo), ária “Que com ale- 1–36, 1731; Variações Goldberg, BWV 988, 25ª
gria o mundo seja abandonado”, compasso 25 variação, 1741–1742; Cantata BWV 82, “Eu tive
até o final, 1729; Paixão segundo São Mateus, o suficiente”, último recitativo e última ária,
BWV 244, coro de abertura, 1729–1741…; 1727; Oferenda musical, BWV 1079, Ricercar
Cantata BWV 42, “Mas à noite do mesmo para 6, compassos 1–39, cravo, 1747; A arte da
Sabbat”, sinfonia de introdução (da capo, fuga, BWV 1080, contraponto XIX, compas-
compassos 1 a 53) e recitativo para tenor, sos 193–239, cravo, 1750; Coral para orgão
1725; Prelúdio em si menor para orgão BWV “Perante teu trono eu me apresento”, BWV 668,
544, 1727–1731; Missa em si menor, BWV 232, primeira parte, compassos 1–11, 1750. Assim
1º Kyrie eleison, compassos 1–30, 1731–1733; como, de Leo Leonius, o moteto ordinário do
Cantata BWV 215, coro de entrada, compas- domingo em latim para o 11º domingo após a
sos 1–181, 1734; Oratório da Ascensão, BWV Trindade, trecho do “ Florilegium Portense “
11, segunda parte do coro final, 1735; Terceira de Erhard Bodenschatz.
parte do Método de teclado, coral “Kyrie,

1968
O noivo, a atriz e o cafetão
Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter
República Federal da Alemanha, 23 min; incluindo uma versão reduzida e dirigida por
35 mm, preto e branco, janela 1/1,37. ele (Action-Theater, Munique, 1968) da peça
[Créditos: letras brancas sobre um plano de Krankheit der Jugend (Doença da Juventude)
grafites (“stupid old Germany / hate it over here de Ferdinand Bruckner; e três poemas de Juan
I hope I can go soon Patricia 1. 3. 68”)]. [velha de la Cruz traduzidos ao alemão por Jean-
estúpida Alemanha odeio esse lugar espero Marie Straub. Música: Johann Sebastian Bach
poder ir logo Patricia 1.3.1968]. [Com] Irm (Cantata BWV 11, “Du Tag, wenn wirst du sein…
Hermann [Désirée], Kristin Peterson [Irene], Komm, stelle dich doch ein”). Montagem:
Hanna Schygulla [Lucy], Peter Raben [Alt/ Huillet e Straub. Filmagem: meia jornada no
Willy], Rudol Waldemar Brem [Petrell]; James teatro (Munique), 1º abril 1968; quatro dias
Powell [James]; Lilith Ungerer [Marie/Lilith], em Munique, maio 1968. Material: uma câmera
Rainer W. Fassbinder [Freder/o cafetão]; Der Arri Blimp 300, um Nagra. Negativo Kodak
Bräutigam, die Komodiantin und der Zuhalter XXXX e XX (7 000 m). Comprimento final: 630
de Jean-Marie Straub; [Imagem:] Klaus m. Custo: 17 500 marcos alemães. Legendagem
Schilling, Hubs Hagen, [som:] Peter Lutz, Klaus em francês (adaptação Danièle Huillet), e em
Eckelt [sequência teatral], Herbert Linder; inglês com B. Eisenschitz. Primeira represen-
[Técnica:] Herbert Meier, Reina Pust, Dietmar tação: Mannheim Filmewoche, 10 out. 1968
Müller, Bernward Wember, Jan Bodenham; (Inglaterra: London Film Festival, 28 nov. 1969;
[Textos:] Juan da la Cruz, Ferdinand Bruckner, EUA: 23 fev. 1969).
Helmut Färber; [Produção:] Danièle Huillet
e Klaus Hellwig, Janus Film und Fernsehen
[Frankfurt]. Decupagem: Jean-Marie Straub,
1969
Os olhos não querem sempre se fechar ou talvez um
dia Roma se permita fazer sua escolha (Othon)
Les Yeux ne veulent pas em tout temps se fermer ou Peut-être qu’un
jour Rome se permettra de choisir à son tour (Othon)
Itália-França, 88 min; 16 mm (ampliado em Lauricella, Camille: Olimpia Carlisi, Vinius:
seguida para 35 mm), cor, janela 1/1,37. Anthony Pensabeme, Lacus: Jubarite Semaran
[Créditos iniciais, letras brancas sobre [Jean-Marie Straub], Martian: Jean-Claude
fundo preto:] Les yeux ne veulent pas en Biette, Albin: Leo Mingrone, Albiane: Gianna
tout temps se fermer; ou Peut-être qu’un jour Mingrone, Flavie: Marilù Parolini, Atticus:
Rome se permettra de choisir à son tour; a Edoardo de Gregorio, Rutile: Sergio Rossi [1º
partir de Othon de Pierre Corneille; Filme de soldado: Sebastian Schadhauser, 2º soldado:
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; assistidos Jacques Fillion] Revelação e copiagem: Luciano
por Leo Mingrone, Anna Raboni, Sebastian Vittori. Ce film est dédié au très grand nombre
Schadhauser, Italo Pastorino, Elias Chaju1a; de ceux nés dans la langue française, qui n’ont
Penteados Todero Guerrino; Fotografia Ugo jamais eu le privilège de faire connaissance
Piccone, Renato Berta; Som Louis Hochet, avec l’œuvre de Corneille; e à Alberto Moravia
Lucien Moreau; Produção Janus-Film Klaus et Laura Beti qui m’ont obtenu l’autorisation
Hellwig. [Créditos finais corridos, letras de le tourner sur le Mont Palatin et dans les
brancas sobre fundo preto:] Othon: Adriano jardins de la villa Doria-Pamphilj, à Rome.
Aprà, Plautine: Anne Brumagne, Galba: Ennio J.M.S. [Este filme é dedicado a todos aqueles
nascidos na língua francesa que nunca tive- Rapallo, 4 jan.1970 (Alemanha: Mannheim,
ram o privilégio de conhecer a obra de Filmwoche, 8 out.1970). Primeira exibição
Corneille; e a Alberto Moravia e Laura Betti na televisão: 26 jan. 1971 (ZDF), seguida de
que me obtiveram a autorização para filmá-lo uma discussão entre J.-M. Straub, Ulrich
sobre o Monte Palatino e nos jardins da vila Gregor, Ivan Nagel, Karsten Peters, Rudolph
Doria-Pamphilj, em Roma.] Filmagem: quatro Ganz. Versão ampliada para 35mm por Les
semanas em Roma, agosto-set. 1969. Material: Archives du film de C.N.C. projetada pela
uma Éclair Coutant, quatro objetivas, um primeira vez na Cinemateca Francesa em 7
Nagra. Negativo Eastman 7254 (13 920 m), janeiro 1999. A peça de Corneille data de
ampliado para 35 mm. Comprimento final: 1664; H. Linder publicou a tradução por conta
2 244 m. Custo: 170 000 marcos alemães. própria em York em 1974 — primeira tradução
Legendado em alemão por J.-M. Straub e Herbert em alemão da tragédia.
Linder. Primeira apresentação: Festival de
1972
Lições de História
Geschichtsunterricht
Itália, República Federal da Alemanha, 85 min; Comprimento final: 961 m. Custo: 65 mil marcos
16 mm, cor, janela 1/1,33. [Créditos, em alemães. Legendagem: em francês (Danièle
letras pretas sobre fundo branco, em Huillet); em italiano com Adriano Aprà, Leo
alemão:] trecho do fragmento de romance e Gianna Mingrone; em inglês com Misha
DIE GESCHÄFTE DES HERRN JULIUS CAESAR. Donat; em holandês com Frans van de Staak
de Bertolt Brecht. GESCHICHTSUNTERRICHT; (1972). Primeira apresentação: sessão parti-
filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; cular, Mannheim, Filmewoche, 10 out. 1972.
Renato Berta, Emilio Besteti — imagem; Primeiras exibições na televisão: 20 mai 1974
Jeti Grigioni — som; Leo Mingrone, Sebastian (ARD), 16 mai 1976 (HR III).
Schadhauser, Benedikt Zulauf — assistentes.
[Créditos finais corridos, idem:] Gottfried
Bold, o banqueiro; Johann Unterpertinger,
o camponês; Henri Ludwigg, o advogado;
Carl Vaillant, o escritor; Benedikt Zulauf,
o jovem; Cores de Luciano Vittori. Música:
Johann Sebastian Bach (trecho da Matthäus-
Passion BWV 244). Decupagem, montagem:
Straub-Huillet. Filmagem: três semanas em
Roma, Frascati, Terenten (Alto-Aldige), na
Ilha de Elba, junho-julho 1972. Material: uma
Éclair-Coutant, quatro objetivas, um zoom e
um Nagra. Negativo Eastman 7254 (7 560 m).
1972
Introdução a “Música de acompanhamento para uma cena
de cinema” de Arnold Schoenberg
Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene
República Federal da Alemanha, 15 min; outubro 1972. Material: uma Éclair 60,
16 mm, cor e preto e branco, janela 1/1,33. um Nagra. Negativo Eastman 7254 (Roma),
[Sem créditos inciais; créditos finais em letras inversível Agfa-Gevaert preto e branco e
brancas sobre fundo vermelho:] Einleitung zu cor (Baden-Baden). Custo: 7 500 marcos
Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer alemães. Legendagem: em francês (Danièle
Lichtspielscene; de Jean-Marie Straub com Huillet); em inglês com Misha Donat; em ita-
Günter Peter Straschek, Danièle Huillet e liano com G. e L. Mingrone e S. Schadhauser
Peter Nestler; Fotografia Renato Berta, Horst (1972). Primeira apresentação: Festival de
Bever, Iluminação Karl Heinz Granek; Som Jeti curtas-metragens de Oberhausen, 9 de abril
Grigioni, Harald Lill, Mixagem Adriano Taloni; 1973. Primeiras exibições na televisão: 29
Produção Straub-Huillet sob encomenda de de março 1975 (HR III/WDR III/NDR III), 30 de
Südwestfunk [terceiro programa da televisão março 1975 (S 3).
de Baden-Baden]; Cor de Luciano Vittori.
Textos de Arnold Schoenberg (cartas à Wassily
Kandinsky, 20 de abril e 4 de maio 1923) e de
Bertolt Brecht (discurso no Congresso
Internacional dos Intelectuais contra o Fascis-
mo, Paris, 1935). Música: Arnold Schoenberg,
Begleitmusik zu einer Lichtspielscene,
opus 34, 1929–1930. Montagem: Huillet e
Straub. Filmagem: um dia em Roma e um em
Baden-Baden (estúdios de televisão, junho e
1974
Moisés e Arão
Moses und Aron
Áustria/Itália/República Federal da Alemanha, Csapó; o jovem, Roger Lucas; outro homem,
105 min; 35 mm (2 planos filmados em 16 mm), Richard Salter; Sacerdote, Werner Mann;
cor, janela 1/1,37. [Créditos: letras pretas Efraimita, Ladislav Illavsky; Doente, Friedl
sobre fundo branco] uma produção da Rádio Obrowsky; Coro da Rádio austríaca;
austríaca e da A.R.D. (incluindo Berlim- Preparação Gottfried Preinfalk; Orquestra
Ocidental) sob condução da Rádio de Hessen. sinfônica da Rádio austríaca; Som: Louis
realizado pela Janus-Film&Fernsehen com Hochet, Ernst Neuspiel, Georges Vaglio,
financiamento de Straub-Huillet, da R.A.I., Jeti Grigioni; Imagem: Ugo Piccone, Saverio
da O.R.T.F. e da Taurus-Film em coprodução Diamanti, Gianni Canfarelli, Renato Berta;
germano-francesa da Janus Film&Fernsehen Técnica: Francesco Ragusa, Alvaro Nannicini,
com a NEF Diffusion. Direção de produção, Gianfranco Baldacci; Assistentes: Paolo
Direção, Montagem: Danièle Huillet, Jean-Marie Benvenuti, Hans-Peter Böffgen, Leo Mingrone,
Straub (Legendagem L.T.C. Cinétitres Tradução: Basti Schadhauser, Gabriele Soncini, Harald
Danièle Huillet) Direção musical: Michael Vogel, Gregory Woods; Figurinos “Cantini”:
Gielen; Assistência: Bernard Rubenstein. [ma- Renata Morroni, Augusta Morelli, Mariateresa
nuscrito em vermelho sobre fundo branco:] Stefanelli; Penteados: Guerrino Todero;
A Holger Meins J.-M.S. D.H. [letras brancas Sapatos: Ernesto Pompei; Coreografia: Jochen
sobre fundo preto:] Moisés e Arão. Ópera Ulrich; Bailarinos: Helmut Baumann, Jürg
em três atos de Arnold Schoenberg. Edição Burth, Nick Farrant, Wolfgang Kegler, Michael
B. Schott’s Söhne. [Créditos finais: letras Molnar; Laboratório: Luciano Vittori. A ópera
brancas sobre fundo preto:] Moisés, Günther de Arnold Schoenberg Moses und Aron foi
Reich; Aaron, Louis Devos; a jovem, Eva escrita principalmente entre 7 de maio 1930
(Berlim) e 18 de março 1932 (Barcelona). Beaulieu (planos em Luxor), uma câmera
Ficou inacabada (pelo 3º ato). Decupagem Mitchell B.N.C. 300 Blimp, dois Nagra IV e um
datada: Berlim, fins de 1959 — Roma, início Nagra III. Inversível cor Kodak 16 mm (Luxor);
de 1970. Antes dos créditos: fragmento de e negativo Eastmancolor 5254 (35 mm, cores).
uma página da tradução da Bíblia por Lutero Custo: 720 mil marcos alemães + aporte (or-
(1523): Êxodo, 32, 25–28. Filmagem: 2 planos questra e coro em Viena) da Rádio austríaca
em Luxor (Egito) em maio 1973 (planos 42 (ORF): cerca de 600 mil marcos alemães.
e 43: panorâmicas sobre o vale do Nilo), em Legendagem: em francês por Danièle Huillet;
16 mm; gravação da orquestra em Viena, 6 em inglês com Gregory Woods e Misha Donat;
semanas; no anfiteatro de Alba Fucense em italiano; em holandês com Frans van de
(Abruzos, Itália) e no lago Matese (último Staak (1974–75). Primeira apresentação: “Film
plano, ato III) em agosto-setembro de 1974, international” de Roterdã, fevereiro 1975.
5 semanas. Material: uma câmera 16 mm
1976
Fortini/Cani

Itália, 83 min; 16 mm, cor, janela 1/1,33. San Terenzo, Vinca, San Leonardo/Frigido,
[Créditos:] [Dissensi 5] Franco Fortini / I Cani Bergiola (Alpes Apuanos); Florença;
del Sinai / De Donato / Editore [plano do livro] Milão; Roma. Película: negativo Eastman
Filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Color 7247 (16 mm). Legendas: em francês
com Franco Lattes [Franco Fortini], Luciana por D. Huillet; em alemão com Manfred
Nissim, Adriano Aprà. [Créditos finais:] Blank e Andrea Spingler; em inglês com
Nagra: Jeti Grigioni. Câmera Éclair-Coutant: Misha Donat (1976). Primeira apresentação:
Renato Berta, Emilio Besteti. Assistentes: Leo Festival de Pesaro, 19 de setembro 1976;
Mingrone, Gabriele Soncini, Gregory Woods, na França: 2º Salon du Cinéma (Festival
Bernard Mangiante. Produção: Straub-Huillet. Cinématographique International de Paris),
Este filme é conhecido pelo título Fortini/ novembro 1976.
Cani, que não aparece no filme, este último
começando por um plano da capa do livro
de Fortini I Cani del Sinaï (Os Cães do Sinai)
(1967). Montagem: Straub-Huillet. Produção:
Straub-Huillet, Televisão italiana canal 2
(R.A.I. II, Roma), Sunchild Productions,
Institut de l’Audiovisuel (Paris), New Yorker
Films, Artificial Eye (Londres). Custo: 22
milhões liras (150 mil francos). Filmagem:
3 semanas (junho 1976) em Cotoncello (ilha
de Elba); Marzabatto, Sant’Anna di Stazzerma,
1977
Toda revolução é um lance de dados
Toute révolution est un coup de dés
França, 10 min; 35 mm, cor, janela 1/1,37. Montagem, produção: Danièle Huillet e
[Créditos, letras brancas sobre fundo preto:] Jean-Marie Straub. Filmagem: dois dias no
Toda revolução é um lance de dados. (Jules cemitério Père-Lachaise, Paris, 9 e 10 de maio
Michelet); [cartela manuscrita multicor sobre 1977. Material: uma Arriflex 120, um Nagra.
fundo branco:] *para Frans van de Staak, Legendagem: em alemão com Manfred Blank,
Jean Narboni, Jacques Rivette, e muitos Andrea Spingler e Helmut Färber; em inglês
outros. J.-M.S. maio 77 [Créditos finais, letras com Misha Donat; em italiano (1977).
brancas sobre fundo preto:] Fotografia Willy
Lubtchansky, Dominique Chapuis; Som Louis
Hochet, Alain Donavy; [Reprodução da página
de títulos, letras negras sobre fundo branco:]
POÈME UN COUP DE DÉS JAMAIS N’ABOLIRA
LE HASARD por STEPHANE MALLARMÉ;
[Fotografia do poeta posando à sua mesa,
em seguida letras brancas sobre negro:]
(re)citantes Helmut Färber, Michel Delahaye,
Georges Goldfayn, Danièle Huillet; Manfred
Blank, Marilù Parolini, Aksar Khaled, Andrea
Spingler, Dominique Villain. O nome do
realizador não aparece a não ser sob a forma
das iniciais abaixo da dedicatória;
o de Huillet somente como (re)citante.
1978
Da nuvem à resistência
Dalla nube alla resistenza
Itália, 105 min; 35 mm, cor, janela 1/1,37. anuncia a segunda parte (plano 91), em
[Créditos: letras pretas sobre fundo branco] seguida um plano introdutório, o plano 93
L’INSTITUT NATIONAL DE L’AUDIOVISUEL são créditos corridos:] O BASTARDO Mauro
apresenta (em francês; o resto dos créditos Monni; NUTO Carmelo Lacorte; CINTO Mario
são em italiano:] uma produção de Danièle di Mattia; O VALINO Luigi Giordanello; O
Huillet e Jean-Marie Straub com a RAI-TV, Rete CAVALIERE Paolo Cinanni; OS DO BAR Maria
2, a JANUS Film & Fernsehen, e ARTIFICIAL Eugenia T., Alberto Signeto, Paolo Pederzolli,
EYE [letras brancas sobre fundo preto:] Ugo Bertone, Gianni Canfarelli, Domenico
DALLA NUBE ALLA RESISTENZA. Textos Carrosso, Sandro Signeto, Antonio Mingrone;
de Cesare Pavese: DIALOGHI CON LEUCÒ O PÁROCO Gianni Toti. [Créditos finais: letras
[Diálogos com Leucó], Einaudi 1947; LA LUNA pretas sobre fundo branco:] Música dirigida
E I FALÒ [A Lua e as Fogueiras], Einaudi 1950. por Gustav Leonhardt. Som: Louis Hochet,
[letras pretas sobre fundo branco:] Primeira Georges Vaglio. Report: FONO RETE. Fotografia:
parte [cartelas no início de cada diálogo:]. Saverio Diamanti, Gianni Canfarelli. Revelação
1 A NUVEM Olimpia Carlisi IXÍON Guido e copiagem: LUCIANO VITTORI. Eletricistas:
Lombardi. 2 HIPÉLOCO Gino Felici SARPÉDON Francesco Ragusa. Maquinista: Gianfranco
Lori Pelosini. 3 ÉDIPO Walter Pardini Baldacci. Assistentes: Leo Mingrone, Isaline
TIRÉSIAS Ennio Lauricella. 4 PRIMEIRO Panchaud, Manfred Blank, Rotraud Kühn,
CAÇADOR Andrea Bacci SEGUNDO CAÇADOR Vincent Nordon, Stéphanie de Mareuil, Paolo
Lori Cavallini. 5 LITIERSES Francesco Ragusa Pederzolli. Cabeleireira: Silvana Todero.
HÉRCULES Fiorangelo Pucci. 6 PAI Dolando Figurinos CANTINI. Sapatos POMPEI. [manus-
Bernardini FILHO Andrea Filippi. [cartela crito azul sobre fundo branco:] * em memória
de Yvonne sem a qual não haveria Straub-
Filmes J.-M. S. Música: Andante da “Sonata
sopr’ il soggeto reale, trio” da Oferenda
Musical, BWV 1079, de J.-S. Bach, dirigida por
Gustav Leonhardt.Filmagem: cinco semanas
em Maremme, Monte Pisano, em Tripalle
perto de Pisa, em Les Langhe (Piemonte),
junho-julho 1978. Custo: 200 mil marcos
alemães. Legendagem: em francês (Danièle
Huillet), em inglês com M. Donat, em alemão
com A. Spingler, em holandês com F. van
de Staak (1978). Primeira apresentação:
Festival de Cannes, seção “Un certain regard”,
maio 1979.
1980–81
Cedo demais/tarde demais
Zu Früh/Zu Spät; Trop tôt/trop tard; Too Early/Too Late; Troppo presto/troppo tardi
França-Egito, 100 min; 16 mm, cor, janela trecho de Question paysanne en France et
1/1,33. [Créditos, letras brancas sobre fundo Allemagne [Questão camponesa na França e
preto, som de sinos e pássaros:] ZU FRÜH/ZU na Alemanha] (Paris, Éd. sociales, 1956) de
SPÄT, TROP TÔT/TROP TARD, TOO EARLY/ F. Engels (“Die Bauernfrage in Frankreich und
TOO LATE, TROPPO PRESTO/TROPPO TARDI; Deustchland”, Die Neue Zeit, 1894–95); pos-
A: Friedrich Engels; [Decupagem, realização, fácio de Lutte de classes em Égypte de 1945 à
montagem, produção:] Danièle Huillet, Jean- 1968 (Paris, F. Maspero, 1969) de M. Hussein.
Marie Straub; [Fotografia:] Willy Lubtchansky, Quatro bandas sonoras existentes: em alemão,
Caroline Champetier; [Som:] Louis Hochet, em francês, em inglês e em italiano. D. Huillet
Manfred Blank; [Assistentes:] Radovan Tadic, narra a primeira parte em todas as versões;
Vincent Nordon, Leo Mingrone, Isaline Bhagat el Nadi o da segunda parte em francês
Panchaud. [Créditos iniciais da segunda e inglês, Gérard Samaan em alemão e em ita-
parte, Música A. Schoenberg:] B: Mahmud liano. Filmagem: primeira parte: duas semanas
Hussein; [Decupagem, realização, montagem, na França, junho 1980; segunda parte: três
produção:] Danièle Huillet, Jean-Marie Straub; semanas no Egito, maio 1981. Custo: 400 mil
[Voz:] Bahgat el Nadi, Gérard Samaan; [Som:] francos. Lançamento na França: fevereiro 1982.
Louis Hochet, Manfred Blank; [Fotografia:]
Robert Alazraki, Marguerite Perlado;
[Assistentes:] Mustafa Darwish, Magda Wassef,
Gaber Abdel-Ghani, Bahgat Mostafa. [Não há
créditos finais.] Textos: Cartas de Friedrich
Engels à Karl Kautsky (20 fevereiro 1889);
1982
En rachâchant

França, 7 min; 35 mm, preto e branco, janela


1/1,37. [Créditos, letras pretas sobre fundo
branco:] L’Institut National de l’Audiovisuel
apresenta en rachâchant; texto de Marguerite
Duras; filme de Danièle Huillet e Jean-Marie
Straub; [imagem:] Henri Alekan, Louis Cochet;
[assistentes:] Dominique Gentil, Ariane
Damain; [som:] Louis Hochet, Manfred Blank.
[créditos finais:] Ernesto: Olivier Straub; a
mamãe: Nadete Thinus; o papai: Bernard
Thinus; o professor: Raymond Gérard;
Laboratório: L.T.C. Saint-Cloud. Produção:
Straub-Huillet, Diagonale, I.N.A. Decupagem,
realização, produção, montagem: Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub. Texto: “Ah!
Ernesto!” (Boissy-Saint-Léger, Harlin Quist,
1971), de Marguerite Duras. Filmagem: Agosto
1982. Lançamento na França: complemento
de programa para Pauline à la Plage de Éric
Rohmer, lançado em 7 de abril 1984. Legendas:
em alemão com Andrea Spingler, em inglês
com Misha Donat (1982).
1984
Relações de classes
Klassenverhältnisse (Amerika)
República Federal da Alemanha/França, 130 Henning Rademaker; o motorista de táxi, Franz
min; 35 mm, preto e branco, janela 1/1,37. Hillers; a dona da pensão, Lydia Bozyk; o estu-
[Créditos:] Klassenverhältnisse. Filme de Danièle dante, Georg Brintrup; os americanos, Thom
Huillet e Jean-Marie Straub, a partir do romance Anderson e Barton Byg. Coprodução franco-ale-
de Franz Kafka Der Verscholleme (Amerika) mã de Janus-Film [Frankfurt], com a Hessischen
(S. Fischer Verlag). Câmera: Willy Lubtschansky, Rundfunk [Televisão de Hessen, Frankfurt] e
Caroline Champetier, Christophe Pollock. Nef-Diffusion [Paris], cofinanciada pelo BMI,
Som: Louis Hochet, Georges Vaglio, Manfred a FFA e Hamburger Filmforderumg. Legendas
Blank. Iluminação e Maquinária: Jim Howe, David traduzidas por Danièle Huillet. Montagem:
Scott [Eletricistas], Georg Brommer [maqui- Straub-Huillet. Custo: 600 mil marcos alemães
nista]. Assistentes: Klaus Feddermann, Ralf (cerca de 1 milhão e 790 mil francos). Filmagem:
Olbrisch, Berthold Schweiz; Manfred Sommer. 13 semanas em Hamburgo e Bremen (2 de julho
[Créditos finais: Interpretação:] Karl Rossmann, a 20 de setembro 1983), Nova York e Saint-Louis
Christian Heinisch; Giacomo, Nazzareno (21 a 25 de setembro 1983). Câmera Moviecam.
Bianconi; o tio, Mario Adorf; Brunelda, Laura Legendagem: em francês por D. Huillet; em
Beti; Delamarche, Harun Farocki; Robinson, italiano com Domenico Carosso; em inglês
Manfred Blank; o motorista, Reinald Schnell; com Barton Byg; em holandês com Frans van
Line, Anna Schnell; o capitão, Klaus Trabe; o de Staak. Primeira apresentação: Festival de
tesoureiro-chefe, Hermann Hartmann; Schubal, cinema de Berlim, fevereiro 1984—Menção
Gérard Semaan; o mordomo, Jean-François especial do júri. Lançamento na França: outubro
Quinque; Pollunder, Willi Vöbel; Green, Tilmann 1984. Distribuição: Nef Diffusion. Três cópias
Heinisch; Klara, Anne Bold; Mack, Burckhardt legendadas em francês foram depositadas na
Stoelck; o criado, Aloys Pompezki; o motorista Cinemateca de Lausanne. Outras, sem legendas,
de Pollunder, Willi Dewelk; Therese, Libgart nos Filmmuseum de Munique, Frankfurt e
Schwarz; a cozinheira, Kathrin Bold; o gerente, Berlim. Uma legendada em inglês na Talbot
Alfred Edel; o porteiro, Andi Engel; o garçon, (Nova York). Etc. (Fonte: cartas de Danièle
Alf Bold; o outro garoto do elevador, Salvatore Huillet ao autor, 11 dezembro 2000 e 11 maio
Sammartino; os policiais, Klaus Feddermann, 2001.)
1985
Proposta in quattro parti

Itália, 40 min; vídeo, cor e preto e branco, janela DALLA NUBE ALLA RESISTENZA. Cesare Pavese,
1/1,37. [Créditos, cartelas manuscritas em 1948–50. Straub-Huillet, 1978. Último diálogo
preto sobre fundo branco:] Proposta in quattro (“Pai e filho”) da primeira parte de Dalla nube
parti di Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. alla Resistenza (planos 73 a 90). Danièle Huillet.
1. ACCAPARAMEMTE DI GRANO. D. W. Griffith, Jean-Marie Straub. FINE 1985. Montagem em
1909. A Corner in Wheat — de David Wark Griffith vídeo (realizada por Jean-Marie Straub segundo
(EUA, Biograph Co., 1909, 14 min), em sua inte- o catálogo da Viennale 2004) para o programa
gralidade (Créditos inclusos); 2. de MOSES UND de Enrico Ghezzi, La Magnifica ossessione,
ARON. Arnold Schoenberg, 1932. Straub-Huillet, transmitido na R.A.I. 3 durante 40 horas, de 25 a
1974. Planos 39 a 43 de Moïse e Aaron — fim do 26 de dezembro de 1985. Também é encontrado
1º ato (Arão derramando sangue depois água sob o título Montaggio in quattro movimenti
do cantil; e as duas panorâmicas sobre o vale per “La Magnifica ossessione” (notadamente no
do Nilo com o canto do coro); 3. de FORTINI/ programa da retrospectiva integral do Festival
CANI. Franco Fortini,1967. Straub-Huillet, 1976. de Turim de 2001), e com o subtítulo “Blut und
Planos 14 a 24 de Fortini/Cani- sequência Bodem” (“Sangue e solo”) no catálogo da retros-
chamada “dos Apuanos” (panorâmicas sobre pectiva integral da Viennale 2004. [Este filme
diversos lugares), enquadrada pela narração de não será exibido na presente retrospectiva]
F. Fortini, com um plano final dele lendo; 4. de
1986
A morte de Empédocles ou Quando a terra voltar a brilhar verde para ti
Der Tod des Empedokles; oder: wenn dann der Erde Grün von neuem euch erglanz
República Federal da Alemanha, 132 min; 35 Andreas von Rauch, Pausanias: Vladimiro
mm, cor, janela 1/1,37. [Créditos em alemão- Baratta; Panthea: Martina Baratta, Delia: Ute
letras pretas sobre fundo branco:] uma Cremer; Hermokrates: Howard Vernon, Kritias:
coprodução franco-alemã de Janus-Film com William Berger; os três cidadãos: Federico
Les Films du Losange; em cofinanciamento Hecker, Peter Boom, Giorgio Baratta; os três es-
com a Televisão de Hessen, o Hamburger cravos: Georg Bintrup, Achille Brunini, Manfred
Filmeforderung, a FFA e o CNC; [Letras brancas Esser; o camponês: Peter Kammerer; revelação
sobre fundo preto:] A Morte de Empédocles. e copiagem: Luciano Vittori; marcação de luz:
[Letras pretas sobre fundo branco:] Trauerspiel Sergio Lustri. Essas informações foram reuni-
em dois atos de Friedrich Hölderlin 1798. das a partir de uma cópia da primeira versão
[Letras brancas sobre fundo preto:] ou: Quando do filme. Há quatro versões diferentes — quatro
a terra voltar a brilhar verde para ti; Filme de montagens (por Huillet e Straub) e mixagens de
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub 1986; Texto tomadas diferentes dos mesmos planos. O ne-
editado em colaboração com D. E. Sattler (Ed. gativo (Eastman 35mm cor) foi sempre revelado
Roter Stern); Som Louis Hochet, Georges Vaglio, no Luciano Vittori (Roma); a mixagem sempre
Alessandro Zannon; Câmera Renato Berta, Jean- efetuada com Louis Hochet na Éclair, Épinay
Paul Toraille, Giovanni Canfarelli; Assistentes sur Seine. Primeira versão: montada em Roma,
Michael Esser, Hans Hurch, Leo Mingrone, fim do verão 1986; marcação de luz, copiagem
Roberto Pali, Cesare Candelotti; Figurinos e depósito no Vittori. Comprimento final: 3
Giovanna del Chiappa “costumi d’arte”, 629m. Cópia apresentada em Berlim. Letras dos
Penteados Guerrino Todero. [Créditos finais, créditos alinhadas à direita. (Versão chamada
letras pretas sobre fundo branco:] Empedokles: “do lagarto”.) Segunda versão: montada em
seguida à primeira, em Roma, no outono de quatro filmes é de 132 min (a primeira versão)
1986; marcação de luz, copiagem e depósito na e 127 min. O filme é baseado na primeira versão
LTC, Saint-Cloud, França. Comprimento final: (1798) do Trauerspiel de Hölderlin, deixado
3 618 m. Créditos em francês. Cópias legenda- inacabado. O texto foi editado por Huillet e
das em francês por Danièle Huillet, em inglês Straub em colaboração com D. E. Sattler, autor
com Barton Byg, e em italiano com Domenico de edição de obras completas de Hölderlin
Carosso e Vladimiro Baratta. (Versão “de publicada por Roter Stern em Frankfurt (1976–),
Paris”.) Terceira versão: montada na Filmhaus chamada “Frankfurter Ausgabe”. Decupagem:
da Friedensalle de Hamburgo, durante um se- Jean-Marie Straub. Música: Johann Sebastian
minário com estudantes, março 1987; marcação Bach (trecho de uma suíte para violino solo).
de luz, copiagem e depósito no laboratório Filmagem: oito semanas, em um parque na
Geyer-Werke de Hamburgo. Comprimento província de Ragusa (sul da Sicília), e nas
final: 3 601m. Letras do créditos alinhadas à encostas do Etna, fins de maio a fins de julho de
esquerda. (versão “do galo”.) Uma quarta versão 1986. Custo: 800 mil marcos alemães. Primeira
foi ainda montada, em 1987… A duração dos apresentação: Festival de Berlim de 1987.
1988
Pecado negro
Schwarze Sünde
República Federal da Alemanha, 42 min; 135 (trecho do último movimento, “Der schwer
35mm, cor, janela 1/1,37. [Pré- créditos: gefaDte EntschlufD- “A decisão dificilmente to-
duas esculturas de Ernst Barlach: Mutter mada”), pelo Quatuor Busch (Londres, 1935).
Erde (Terra mãe) e Der Racher (O Vingador). Filmagem: três semanas, nas encostas do Etna
[Créditos:] NOIR PÉCHÉ de Jean-Marie Straub, (a 1 900 m de altitude), fim julho e agosto de
Danièle Huillet; Texto de Friedrich Hölderlin; 1988. Custo: 300 mil marcos alemães. Existem
Fotografia: William Lubtchansky, Christophe igualmente quatro versões deste filme. A
Pollock, Gianni Canfarelli; Som: Louis Hochet, segunda versão foi legendada em francês por
Sandro Zanon, Pierre Donnadieu; Assistentes: Danièle Huillet, e em italiano com Domemico
Francesco Ragusa, Michael Esser, Hans Hurch, Carosso (1988). Primeira apresentação: Cannes,
Leo Mingrone, Roberto Pali, Arnold Schmidt; maio de 1989.
Produção: Straub-Huillet com Dominique Païni
e as Rádios de Hamburgo [NDR], Colônia
[WDR], Berlim [RIAS], Baden-Baden [SWF],
e a Televisão (canal 3) de Colônia [WDR III].
[Créditos finais:] Empédocles: Andreas von
Rauch, Pausanias: Vladimir Baratta, Manès:
Howard Vernon, A Mulher: Danièle Huillet. O
texto é o da segunda versão (1799) de Der Tod
des Empedokles, editado como para o filme
anterior por Huillet e Straub com D. E. Sattler.
Música: Ludwig van Beethoven, Quatuor op.
1989
Cézanne
Cézanne. Dialogue avec Joachim Gasquet
França, 51 min; 35 mm, cor, janela 1/1,37. Texto: trecho de: “Ce qu’il m’a dit…”, “diá-
[Créditos, letras pretas sobre fundo branco:] logos” entre Cézanne e J. Gasquet, Capítulo
Cézanne; diálogo com Joachim Gasquet (Les do livro de Joachim Gasquet, Cézanne, Paris,
éditions Berheim-Jeune); [Letras brancas Les Éditions Bernheim Jeune, 1921, nova ed.,
sobre fundo preto:] Filme de Danièle Huillet 1926. Aparece uma bobina inteira de Madame
e Jean-Marie Straub; Fotografia Henri Alekan; Bovary (Jean Renoir, a partir de G. Flaubert,
Iluminação Louis Cochet, Assistente Hopi França, 1933, 3.200 m), centrée autour
Lebel; Câmera Stefan Zimmer, Michael Esser, des “Comices agricoles”; assim como dois
MOVIECAM de CINECAM, Argenteuil; Som excertos da Morte de Empédocles e diversos
Louis Hochet, Georges Vaglio. [Créditos documentos (fotos de Cézanne de Mauricio
finais, letras brancas sobre fundo preto:] Denis, quadros de Cézanne).Os enunciados
agradecemos as edições Gallimard pelo trecho atribuídos a Cézanne são ditos por Danièle
do filme de Jean Renoir, MADAME BOVARY; Huillet, os de Joachim Gasquet por Jean-
Monsieur Antoine Salomon pelas fotografias Marie Straub; mesma coisa para a versão
de Paul Cézanne; e Virginie Herlbin por haver alemã de (1989). Filmagem: três semanas em
provocado esse filme; As obras de Cézanne Paris, Londres, Edimburgo, Basileia, Ascona,
que filmamos encontram-se nos seguintes a montanha Sainte-Victoire, em setembro-
museus: NATIONAL GALLERY, Londres, -outubro 1989. Custo: 900 mil francos. Filme
MUSÉE D’ORSAY, Paris, NATIONAL GALLERY recusado por seu comandatário, o Musée
OF SCOTLAND, Edimburgo; KUMSTMUSEUM, d’Orsay. Primeira apresentação: Club Publicis
Basel, PETIT PALAIS, Paris, COURTAULD (Paris), em 3 de abril 1990, alguns dias depois
INSTITUTE GALLERIES, TATE GALLERY, uma transmissão na televisão por La Sept.
Londres, CABINE DES DESSINS do Museu do Duas versões (duas montagens de negativo,
Louvre; Produção/Copyright 1989 MUSÉE duas mixagens): uma francesa (51’), e uma
D’ORSAY, S.E.P.T., DIAGONALE, Straub-Huillet. alemã (63’).
1992
A Antígona de Sófocles, na tradução de Hölderlin,
tal como foi adaptada à cena por Brecht
Die Antigone des Sophokles nach der Hölderlinschem Übertragung
für die Bühne bearbeite von Brecht 1948 (Suhrkamp Verlag) (Antigone)
Alemanha, 100 min; 35 mm, cor, janela a criança: Mario di Mattia; o Mensageiro:
1/1,37. [Créditos:] il Teatro di Segesta. [Em Michael König, a serva-mensageira: Libgart
alemão, letras pretas sobre fundo branco:] Schwarz; Costumi d’ Arte Ruggero Peruzzi,
Die Antigone des Sophokles nach der Penteados: Guerrino Todero, Sapatos:
Hölderlinschen Übertragung für die Bühne Pompei; Som: Louis Hochet, Georges Vaglio,
bearbeite von Brecht 1948 (Suhrkamp Sandro Zanon; Câmera: Nicolas Eprendre,
Verlag); Filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Irina e William Lubtchansky; Negativo Kodak
Straub 1991; Assistentes: Michael Esser, Hans 5245, [laboratório:] Geyer-Werke Berlin,
Hurch, Francesco Ragusa, Daniele Rossi, [câmera:] Movie-Cam de Cine-Light; Música
YuJung Nam; Olivier Moeckli, Stephan Settele, de Bernd Alois Zimmermann dirigida por
Stefan Ofner, Marco Zappone, Ernaldo Data; Michael Gielen. [Créditos finais:] La mémoire
Coprodução Regina Ziegler (Filmproduktion, de / ‘humanité pour les soufrances subies
Berlim), Martine Marignac (Pierre Grise est étonnamment courte. Son imagination
Productions, Paris), Hessicher Rundfunk pour les souffrances à venir est presque
[Televisão de Hessen], Straub Huillet; Direção moindre encore. / C’est cete insensibilité que
de produção Danièle Huillet com Hartmut nous avons à combattre. / Car l’humanité est
Köhler, Rosalie Lecan; Antígona: Astrid menacées par des guerres, vis-à-vis desquel-
Ofner, Ismene: Ursula Ofner; Os anciãos: les celles passées sont comme de misérables
Hans Diehl, Kurt Radeke, Michael Maassem, essais, e elles viendront sans aucun doute, si
Rainer Philippi; Creonte: Werner Rehm; à ceux qui tout publiquememt les préparent,
o guarda: Lars Studer, Hémon: Stephan on ne coupe pas les mains. / Bertolt Brecht
Wolf-Schönburg, Tirésias: Albert Heterle, (1952). [A memória da humanidade para os
sofrimentos passados é espantosamente alemão por Fr. Hölderlin (1800–1803) da tra-
curta. Sua imaginação para os sofrimentos gédia de Sófocles, Antigone (441 A.C.) — sem
por vir é quase menor ainda./É essa insensi- o prólogo de Brecht. A peça foi representada
bilidade que temos que combater./ Porque no palco da Schaubühne de Berlim (primeira
a humanidade é ameaçada por guerras, que em 3 de maio 1991), depois para uma única
comparadas com as que se passaram são representação em de 14 agosto no Teatro de
ensaios, e elas virão sem dúvida alguma, se Segesta. Música: trecho de Die Soldatem de B.
àqueles que publicamente as preparam, não A. Zimmermann. Filmagem: cinco semanas no
se lhes corta as mãos./][Manuscrito:] *merci, Teatro antigo de Segeste (Sicília), verão 1991.
merci à Marco Müller e Jean-Luc Godard. Custo: 3 000 mil francos. Há duas versões do
[pequenas letras brancas sobre fundo preto:] filme (duas montagens, a partir de tomadas
realizado também com o apoio do Berliner diferentes dos mesmos planos). A segunda
Filmflerderung, do Filmförderungsanstalt, e foi legendada em francês por Danièle Huillet.
do C.N.C. Texto: Versão retrabalhada para a Primeira apresentação: Festival de Berlim,
cena por B. Brecht em 1948 da tradução em fevereiro 1992.
1994
Lorena!
Lothringen!
França, 21 min; 35 mm, cor, janela 1/1,37. de Emmanuelle Straub (Colette Baudoche)
[Créditos, letras pretas sobre fundo bran- e o relato da avó narrados por D. Dosdat
co:] LOTHRINGEN! [Letras brancas sobre são legendados. Filmado em Lorena, em
fundo preto:] filme de Danièle Huillet e Jean- junho 1994. Primeira apresentação: Festival
Marie Straub; trecho do romance COLETTE de Locarno 1994, Cinemateca Francesa,
BAUDOCHE de Maurice Barrès; Música de dezembro 1994. Exibição na televisão: Arte,
Franz Joseph Haydn AMADEUS QUARTET. 12 de janeiro de 1995.
[Créditos finais:] Emmanuelle Straub;
Narração em francês por André Warynski e
Dominique Dosdat, em alemão por J.-M.S.;
Som Louis Hochet, Georges Vaglio, Mixagem
EURO STUDIOS; Imagem Christophe Pollock,
Emmanuelle Collinot; Câmera GOLDEN
PANAFOX G II, Objetivas PRIMO, Negativo
EASTMAN 5248, Laboratório L.T.C.; Produção
SAARLÄNDISCHER RUNDFUMK (Peter
Brugger), Straub-Huillet, PIERRE GRISE
(Martine Marignac). Texto: trecho de Colette
Baudoche. Histoire d’uma jeune fille de Metz,
Paris, F. Jeune, 1909. Na versão alemã, J.-M.
Straub realiza parte da narração pronuncia-
da em francês por A. Warynski; as réplicas
1996
De hoje para amanhã
Von Heute auf Morgen
Alemanha, 62 min; 35 mm, preto e branco, Cabeleileira: Jutta Braun; Assistentes (música):
janela 1/1,37. [Plano antes dos créditos: Till Drömann, David CLeoman; Assistentes
panorâmica sobre a orquestra, o cenário, (filme): Rosalie Ocan, Jean-Charles Fitoussi,
a sala. Créditos em alemão, letras pretas Arnaud Maille; Produção: Straub-Huillet; Pierre
sobre fundo branco:] Von heute auf morgen. Grise (Martine Marignac); Em coprodução com
Opéra em um ato de Arnold Schoenberg; a Rádio de Hessen; Diemar Schings, Leo Karl
Sob a Direção de Michael Gielen; Libreto Gerhartz, Hans-Peter Baden; Dedicado à Helga
Max Blond 1929; [Plano de um muro com o Gielen, Dieter Reifarth, André e Dominique
graffiti “Wo liegt euer Lacheln begraben?! ” Warynski. Legendado em francês por Danièle
(“Onde jaz teu sorriso? !”)] Filme de Danièle Huillet. Lançamento na França: em coprogra-
Huillet e Jean-Marie Straub 1996; Cenografia mação com Lothringen!, 12 de fevereiro 1997.
Max Schoendorff, J.-M. S. & D.H.; Câmera
William Lubtchansky; Irina Lubtchansky,
Marion Befve; Iluminação Jim Howe, Barry
Davis, Andreas Niels Michel; Som Louis
Hochet; Georges Vaglio, Sandro Zanon,
Klaus Barm; Charly Morell, Hans-Bernhard
Bäzing, Björn Rosenberg. [Créditos finais:]
Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt;
Ele: Richard Salter, Ela: Christine Whittlesey;
A criança: Annabelle Hahn; a amiga: Claudia
Barainsky, o cantor: Ryszard Karczykowski;
1998
Sicília!
Sicilia!
Itália, 66 min; 35 mm, preto e branco, janela CINÉMATOGRAPHIE; ALlA FILM Enzo
1/1,37. [Créditos iniciais (em francês): Porcelli, ISTITUTO LUCE; pré-aquisição ARD
manuscrito sobre fundo branco:] *Pour le Degeo, HESSISCHER RUNDFUNK Dietmar
ouistiti et en souvenir de Barnabé, le chat. Schings, SAARLÄNDISCHER RUNDFUNK,
J.-M. S. [Para o mico e em lembrança de WESTDEUTSCHER RUNDFUNK; obrigada,
Barnabé, o gato] [Letras brancas sobre fundo obrigada à Salvatore Scollo, Barbara Ulrich,
preto:] SICILIA! filme de Danièle Huillet e Jean- Dominique e André; Gabriella Taddei,
Marie Straub 1998; assistentes: Arnaud Maille, Anna Barzacchini, Paolo Bernardini, Dario
Jean-Charles Fitoussi, Romano Guelfi, Andreas Marconcini, Marcello Landi e sua mulher;
Teuchert; fotografia: William Lubtchansky; Piero Spila, Francesco Grillini, e aos de ferro-
Irina Lubtchansky, Marion Befve, LTC, Saint- viários Messina e Siracusa; Constelações,
Cloud; iluminação Jim Howe, Olivier Cazzitti; diálogos do romance CONVERSAZIONE IN
som Jean-Pierre Dorey, Jacques Balley; mixa- SICILIA de Elio Vittorini 1937–38. [Foto de Elio
gem Louis Hochet, SONODI, Épinay-sur-Seine. Vittorini] Música: Ludwig van Beethoven,
[Créditos finais:] Gianni Buscarino [Ele], trechos do Quatuor op. 132. O texto foi
Vittorio Vigneri [O amolador]; Angela Nugara interpretado pelos atores, e sob direção de
[Ela]; Carmelo Maddio [O homem], Angela D. Huillet e J.-M. Straub, no palco do Teatro
Dorantini [Sua mulher]; Simone Nucatola Francesco Bartolo, Buti, abril 1998. Primeira
[A outra], Ignazio Trombello [O um]; apresentação do filme: Festival de Cannes,
Giovanni Interlandi [O grande Lombardo], seção “Un certain regard”, 20 maio 1999.
Giuseppe Bontà [O que vem da Catânia], Lançamento na França: 15 setembro 1999.
Mario Baschieri [O velhinho]; Produção O filme existe em três versões.
STRAUB-HUILLET; Coprodução franco-
-italiana PIERRE GRISE PRODUÇÕES Martine
Marignac, CENTRE NATIONAL DE LA
2001
Operários, camponeses
Operai, contadini
Itália / França, 123 min; 35 mm, cor, janela CAPRICCI FILMS TEATRO COMUMALE
1/1,37, Som DTS (gravado em mono). FRANCESCO DI BARTOLO (Buti) STUDIO
[Créditos, em francês: letras pretas sobre NATIONAL DES ARTS CONTEMPORAINS
fundo branco:] OPERAI, CONTADINI / (Le Fresnoy) SAARLÄNDISCHER RUNDFUNK,
OUVRIERS, PAYSANS / ARBEITER, BAUERN / SÜDWEST RUNDFUNK, WEST DEUTSCHER
[estrela vermelha] personagens, constelações RUNDFUNK, Werner Dütsch [letras brancas
e Texto de Elio Vittorini [letras brancas sobre fundo preto:] Mixagem: Jean-Pierre
sobre fundo preto:] filme de Danièle Huillet Laforce, JACKSON, DTS STÉRÉO [Som
e Jean-Marie Straub. [imagem:] Renato gravado em mono] Marcação de luz: Marcel
Berta, Jean-Paul Toraille [Marion Befve]. Mazoyer, L.T.C. Saint Cloud Tradução e
[som:] Jean-Pierre Dore, Dimitri Haule. legendas: Danièle Huillet Legendagem: L.V.T.
[assistentes:] Romano Guelfi, Jean-Charles Música: Aria Doeto da cantata BWV 125 de
Fitoussi, Arnaud Maille. [créditos finais: letras Johann Sebastian Bach. O texto é a quase
brancas sobre fundo preto:] [Atores:] Angela totalidade (fora trechos descritivos…)
Nugara [Viúva Biliotti], Giacinto Di Pascoli dos capítulos XLIV a XLVII do romance Le
[Cattarin], Giampaolo Cassarino [Pompeo Donne di Messina, 1ª ed. em volume 1949,
Manera], Emrico Achilli [Cataldo Chiesa], 2ª ed. parcial reescrita 1964, Versão trad. em
Angela Dorantini [Elvira la Farina], Martina francês sob o título Les Femmes de Messine,
Gionfriddo [Carmela Graziadei], Andrea 1967. Interpretado sob a direção de Huillet e
Baldocci [Fischio], Gabriella Taddei [Giralda Straub no palco do Teatro Francesco Bartolo,
Adorno], Vittorio Vigneri [Spine], Aldo Buti, junho 2000. Primeira projeção: Quinzena
Fruttuosi [Ventura “ Faccia Cattiva”],Rosalba dos Realizadores do Festival de Cannes
Curatola [Siracusa], Enrico Pelosini [Toma], (“filme recusado pelo comitê de seleção
“il… SERACINO” (Marcello Landi) Produção: oficial do Festival de Cannes 2001” segundo
STRAUB-HUILLET Martine Marignac PIERRE J.-M. Straub), maio 2001. Lançamento comercial
GRISE PRODUÇÕES Charlotte Vincent na França: setembro 2001.
2001 2001
Il Viandante Le rémouleur

Itália/França, 5 min; 35 mm, preto e branco, Itália / França, 7 min; 35 mm, preto e branco,
janela 1/1,37. [Cartela de créditos, manuscrito janela 1/1,37. [Cartela de Créditos, manus-
preto sobre fundo branco:] Jean-Marie crito preto sobre fundo branco:] Jean-Marie
Straub, Danièle Huillet, IL VIANDANTE Straub, Danièle Huillet, LE RÉMOULEUR,
(LE CHEMINEAU), Angela Nugara, Gianni Gianni Buscarino, Vittorio Vigneri. Estes dois
Buscarino, *pour Danièle! [Este filme não será filmes são novas montagens de passagens
exibido na presente retrospectiva.] Sicília! Projeção no Torino Film Festival, no-
vembro de 2001. [Este filme não será exibido
na presente retrospectiva]
2002 2002
O retorno do filho pródigo HUMILHADOS que nada feito ou
Il Ritorno del Figlio Prodigo tocado por eles, saído de suas mãos,
não resultasse isento do direito de
Itália/França/Alemanha, 29 min; 35 mm, cor, algum estrangeiro (OPERÁRIOS,
janela 1/1,37, som Dolby mono. Nova monta- CAMPONESES — sequência e fim)
gem dos planos 40 a 46 e 63 a 66 de Operários, UMILIATI che niente difatto o
camponeses, acerca do personagem de Spine.
toccata da loro, di uscito dalle
mani loro, risultasse esente dai
diritto di qualche estraneo (OPERAI,
CONTADIN! — seguito e fine)

Itália/França/Alemanha, 35 min; 35mm,


cor, janela 1/1,37, Som Dolby mono. Para a
distribuição francesa, o filme foi programado
junto ao precedente:
2003
O retorno do filho pródigo — Humilhados
Le Retour du fils prodigue — Humiliés
Itália/França/Alemanha, 64 min.; 35 mm, cor, ja- Guelfi; Paolo Spaziani, Federico Ciaramella,
nela 1/1,37, Som Dolby mono. [Créditos do con- Daniele Vannucci; Enrico Achilli, Martina
junto dos dois filmes:] grande palme… [Texto:] Gionfriddo, Enrico Pelosini; Angela Dorantini,
Elio Vittorini; [Realização:] Danièle Huillet, Andrea Baldocci, Dolando Bernardini;
Jean-Marie Straub; [Imagem:] Renato Berta, Giampaolo Cassarino, Giacinto Di Pascoli;
Jean-Paul Toraille, Mario Befve; [Som:] Jean- Gabriella Taddei; Vittorio Vigneri; “Il
Piterre Dore, Dimitri Haule, Jean-Pierre Laforce; Seracino”. Texto de Elio Vittorini, 1948–49
[Assistentes:] Giulio Bursi, Maurizio Buquicchio, (trechos do romance Le Donne di Messina,
Arnaud Maille, Jean-Charles Fitoussi; Produção 1ª ed. no volume 1949, 2ª éd. parcialmente
STRAUB-HUILLET; Associazione Teatro Buti, reescrita 1964, trad. francesa: Les Femmes
Fondazione Pontedera Teatro, Regione de Messine, 1967). Música de Edgar Varèse
Toscana, Provincia di Pisa, Comuma di Buti; (trecho de Arcana, 1925–27). Representações
Martine Marignac PIERRE GRISE PRODUÇÕES, teatrais dirigidas por Danièle Huillet e Jean-
CENTRE NATIONAL DE LA CINÉMATOGRAPHIE; Marie Straub no Teatro Francesco di Bartolo,
Werner Dütsch WESTDEUTSCHER RUNDFUMK; Buti, em 31 de maio, 1º e 2 de junho de 2002.
STUDIO NATIONAL DES ARTS CONTEMPORAINS Primeira projeção na França: Cinémathèque
Le Fresnoy; Câmera PANAVISION, Película Kodak (Palais de Chaillot), segunda 24 de março de
5279, Laboratório LTC; Música Edgar Varèse. 2003. Lançamento comercial: 23 de abril 2003.
IL RITORNO DEL FIGLIO PRODIGO; Martina 2ª versão projetada na Cinemateca Francesa,
Gionfriddo, Andrea Baldocci, Gabriella Taddei; 9 de março de 2004.
Vittorio Vigneri, Aldo Fruttuosi. UMILIATI;
Rosalba Curatola, Aldo Fruttuosi; Romano
2002
Dolando

Itália/França/ Alemanha, 7 min; 35 mm, cor, Dolando Bernardini, ator deste útlimo
janela 1/1,37, som Dolby mono. [Realização:] filme, cantar a capella algumas estrofes da
Danièle Huillet, Jean-Marie Straub; [Imagem:] Gerusalemme liberata de Torquato Tasso, que
Renato Berta, Jean-Paul Toraille, Mario ele sabe de cor. Seguido de uma nova tomada
Befve; [Som:] Jean-Pierre Dore, Dimitri Haule, do último plano de Operários, camponeses.
Jean-Pierre Laforce. Filme realizado durante a [Este filme não será exibido na presente
filmagem de Umiliati. Três planos mostrando retrospectiva]

2004
Uma visita ao Louvre
Une visite au Louvre
França, 48 min (1ª Versão), 47 min (2ª Versão); Fresnoy. Distribuição: Pierre Grise. Participação
35 mm, cor, janela l/1,37, Som Dolby mono. no financiamento: La Fondation de France
Realização Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. (“Initiatives d’artistes”, 25 mil euros). À ocasião
Voz: Julie Koltaï. Texto: trecho de: “Ce qu’il m’a do lançamento em Paris, duas versões do filme
dit… ”, “diálogos” entre Cézanne e J. Gasquet, foram projetadas sucessivamente a cada sessão.
capítulo do livro de Joachim Gasquet, A 1ª versão começa pela cartela “Foi Dominique
Cézanne, Paris, Les Éditions Bernheim Jeune, Païni do Louvre que provocou este filme em
1921. Imagem: William Lubtchansky, Renato 1990”, com letra de J.-M. Straub e termina com
Berta. Som: Jean-Pierre Dore, Jean-Pierre “Obrigado a François Albera, François Hers, Catia
Laforce. Produção: Straub-Huillet, ATOPIC, Le Riccaboni”. Lançamento na França: 17 março 2004.
2006
Esses encontros com eles
Quei loro incontri
Itália/França, 68 min; 35 mm, cor, janela 2. Grazia Orsi — Romano Guelfi; 3. Angela
1/1,37, Som Dolby SRD mono. [Créditos, em Dorantini — Enrico Achilli; 4. Giovanni
francês, correndo após uma cartela para Daddi — Dario Marconcini; 5. Andrea
regulagem de projeção na janela l/1.37:] Bacci — Andrea Baldocci. Archipel, L.T.C.
Regione Toscana, Provincia di Pisa, Teatro Saint-Cloud. Pierre Grise Distribution.
comumale do [sic] Buti; “ IL SERACINO” Música: Beethoven, extraída do Quatuor n° 11,
Marcello Landi; Martine Marignac PIERRE Op. 59. — Tocado em uma mise em scène de
GRISE PRODUÇÕES; CENTRE NATIONAL DE Danièle Huillet e Jean-Marie Straub no Teatro
LA CINEMATOGRAPHIE; LE FRESNOY STUDIO Francesco Bartolo, Buti, de 20 a 23 maio de
NATIONAL DES ARTS CONTEMPORAINS 005. Lançamento francês: 18 outubro 2006.
Frédéric Papon, Christian Châtel, Jean- Prêmio Marguerite-Duras 2007.
René Lorand, Blandine Tourneux; Produção
Straub-Huillet; [Imagem:] Renato Berta,
Jean-Paul Toraille, Marion Befve; [Som:]
Jean-Pierre Dore, Dimitri Haule, Jean-Pierre
Laforce; [Assistentes:] Kamel Belaïd, Arnaud
Maille, Giulio Bursi, Maurizio Buquicchio;
QUEl LORO INCONTRI ces rencontres
avec eux; Os cinco últimos diálogos de
DIÁLOGOS COM LEUCÒ de Cesare Pavese;
filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub;
[Elenco:] 1. Angela Nugara- Vittorio Vigneri;
2006
EUROPA 2005 27 octobre (Cinétract)

França, 10’30”; dv, cor, janela 1/1,33. Filmado


nas proximidades do transformador de
Clichy-sous-Bois, onde dois adolescentes
encontraram a morte no dia 27 de outubro
de 2005. Operador e montador: Jean-Claude
Rousseau.
2007
O joelho de Artemide
Le Genou d’Artemide
Itália/França, versão 1: 26 minutos (legendas Bartolo- Buti; Martine Marignac — Pierre Grise
em francês), Versão 2: 27 minutos (sem Produções. Dedicado à “Barbara”. Primeira
legendas); 35 mm, cor, janela 1/1,37, Som Dolby projeção 15 março 2008 na Cinemateca francesa.
SRD mono. Filme de Jean-Marie Straub. Imagem: Música: Gustav Mahler (“Der Abschied”, trecho
Renato Berta, Jean-Paul Toraille, Marion Befve. de das Lied von der Erde, dir. Bruno Walter,
Montagem: Nicole Lubtschansky. Som: Jean- soprano Kathleen Ferrier), Heinrich Füchs.
Pierre Dore, Dimitri Haulet, Jean-Pierre Laforce. Legendas em francês por Jacques Bontemps e
Elenco: Dario Marconcini, Andrea Bacci. A Bernard Eisenschitz. Montagem com o título
partir do diálogo “La Belva” (“A fera selvagem”) il Ginocchio di Artemide dirigida por Jean-Marie
de Cesare Pavese (trecho dos Dialoghi con Straub no Teatro Francesco di Bartolo, Buti,
Leucó, 1947). Produção: Teatro Francesco di 24–25 maio 2007.
2007
Itinerário de Jean Bricard
Itinéraire de Jean Bricard par Jean-Yves Petiteau
França, aprox. 40 min (duas versões); 35 mm, A partir de Jean-Yves Petiteau, “Itinéraire de
preto e branco, janela 1/1,37, Som Dolby Jean Bricard”, Interlope la curieuse (Nantes),
SRD mono. Filme de Danièle Huillet e Jean- nº 9/10, junho 1994. Primeira projeção: 19
Marie Straub. Imagem: Irina Lubtschansky maio 2008 no Festival de Cannes (Quinzena
e William Lubtschansky. Montagem: Nicole dos realizadores), com Le Genou d’Artemide,
Lubtschansky. Som: Jean-Paul Toraille, Jean-Marie Straub considera estes dois filmes
Dimitri Haulet, Jean-Pierre Laforce, Jean- inseparáveis.
Pierre Dore, Zaki Allal. Produção: Martine
Marignac — Pierre Grise Produções. Dedicado
a Peter Nestler. Filmado em dezembro de 2007
na Ilha Coton, no Loire, e em seu entorno.
2008
Le Streghe/ Entre mulheres
Le Streghe / Femmes entre eles
França-Itália, 21 min (versão legendada em (Le Fresnoy), Frédéric Papon, Blandine
francês); 35 mm, cor, janela 1/1,37, Som Dolby Tourneux, Syrille Lauwerier. Laboratoire:
SRD mono. Filme de Jean-Marie Straub. Elenco: L.T.C. Saint-Cloud. A partir de “Le Streghe “
Giovanna Daddi, Giovanna Giuliani, teatro co- (“As feiticeiras”), o primeiro dos Dialoghi con
mumale di Buti. Imagem: Renato Berta, Jean- Leucó (Diálogos com Leucó, 1947) escrito
Paul Toraille, Irina Lubtschansky. Montagem: por Cesare Pavese. Duas versões (uma
Catherine Quesemand. Som: Jean-Pierre Dore, legendada em francês, a outra não). Legendas
Jean-Pierre Laforce, Julien Sicart, Zaki Allal. em francês por Jacques Bontemps, Bernard
Assistentes: Arnaud Dommerc, Mehdi Benallal, Eisenschitz, Barbara Ulrich e Jean-Marie
Romano Guelfi, Giulio Bursi, Maurizio Straub. Primeira projeção: com a segunda ver-
Buquicchio. Música: Ludwig van Beethoven são de Itinéraire de Jean Bricard, Cinemateca
(trecho das Variações Diabelli, op. 120). francesa, 9 março 2009. Lançamento comer-
Produção: Straub Huillet, Martine Marignac, cial na França: com Le Genou d’Artemide e
PIERRE GRISE PRODUÇÕES, STUDIO Itinéraire de Jean Bricard, sob o título global
NATIONAL DES ARTS CONTEMPORAINS Trois filmes de Jean-Marie Straub, 8 abril 2009.
2009
Joachim Gatti

França, 2009, HD, Cor, 1’ 30”. Homenagem


a Joachim Gatti, jovem fotógrafo e ativista
político que perdeu um olho em enfrentamen-
to com a polícia em uma manifestação.
Texto extraído de “Discurso sobre a origem
e os fundamentos da desigualdade entre
os homens”, de Jean-Jacques Rosseau.
2009
Corneille/Brecht ou Roma o único objeto de meu ressentimento
Corneille-Brecht ou Rome l’unique objet de mon ressentiment
França, 2009, HD, 29’. Dois excertos curtos
de Horacio e de Othon de Corneille, e um
excerto longo de Das Verhör dês Lukullus
de Brecht, peça radiofônica de 1939. Cartela
Inicial: (letras pretas sobre cartela branca).
b) Cornelia Gêiser. Jean-Marie Straub.
CORNEILLE-BRECHT. Christophe Clavert.
Jean-Claude Rousseau. Barbara Ulrich. Cartela
final: (letras pretas sobre cartela branca)
FIN. Brouder. Barbara, J.-M.S.
2010
O Somma luce

França/Itália, 2010, HD, Cor, 18’. O último Buquicchio; Giuglio Bursi. Música Edgar
canto do Paraíso da Divina Comédia de Dante Varèse “Déserts” THEATRE DES CHAMPS-
Alighieri. Créditos iniciais: (letras brancas ELYSEES 2 dezembro 1954. Créditos finais:
sobre cartela preta). primeira versão. Dante. (letras brancas sobre cartela preta). Produção
O SOMMA LUCE. Por Giorgio Passerone. Filme STRAUB-HUILLET; Martine Marignac; PIERRE
de Jean-Marie Straub. Renato Berta; Jean-Paul GRISE PRODUCTIONS; Cyrille Bordonzotti
Toraille; Arnaud Dommerc; Franck Ciochetti. Andrea Bacci TEATRO COMUNALE DI
Jean-Pierre Duret; Catherine Quesemand; BUTI Frédéric Papon LE FRESNOY STUDIO
Jean-Pierre Laforce. Florent Le Duc; Baptiste NATIONAL DES ARTS CONTEMPORAINS.
Evrard; Blandine. Tourneux; Cyrille Lauwerier.
Barbara Ulrich. Romano Guelfi; Maurizio
2011 2011
O inconsolável Chacais e árabes
L’Inconsolable Schakale und Araber (*)
França, HD, Cor, 15’. A partir de Diálogos com Suíça, HD, Cor, 11’. Baseado no conto
Leucò, o filme é uma reflexão sobre o mito homônimo de Kafka. Créditos inicias: (fundo
de Orfeu. Créditos iniciais: (letras brancas branco e letras pretas). primeira versão;
sobre cartela preta). L’INCONSOLABLE. straub. huillet. films; Belva GmbH. apresenta.
primeira versão. filme de Jean-Marie Straub. SCHAKALE UND ARABER de Franz Kafka.
Cesare Pavese. Giovanna Daddi, Andrea Bacci, György Kurtag. Wiederum, wiederum, weit
Renato Berta, Christophe Clavert, Dimitri verbannt, weit verbannt. Berge, Wüste, weites
Haulet, Julien Gonzalez, Barbara Ulrich, Land glit es zu durchwandern. Créditos finais:
Arnaud Dommerc Giulio Bursi, Maurizio (fundo branco e letras pretas). Barbara
Buquicchio, Romano Guelfi Créditos finais: Ulrich; Giorgio Passerone; Jubarite Semaran
(letras brancas sobre cartela preta) música: Christoph Clavert; Jean-Marc Degardin;
Robert Schumann. montagem: Catherine Arnaud Dommerc. Jerome Ayasse; Jean-Pierre
Quesemand. mixagem: Jean-Pierre Laforce. Laforce; Gaël Blondet. Jean-Marie Straub.
Les Fées PRODUCTIONS; Sandrine Pillon;
Lucie Portehaut; Florence Hugues. TEATRO
COMUNALE DI BUTI. LA FÉMIS; Marc Nicolas;
Frédéric Papon; Delphine Dumont; Gaël
Blondet. STRAUB–HUILLET; Belva GmbH.
Les Fées Productions 2011; visa nº 126 666.
2011
Um herdeiro
Un Héritier
França/Coreia do Sul, 2011, HD, Cor, 20’. e Hubert Bangraz MAISON FORESTIERE DE
A partir de Au service de l’Allemagne, livro de RATSAMHAUSEN, à família Schreiber
Maurice Barrès. Créditos inicias: (cartela preta e aos funcionários do DOMAINE DU MOULIN
com letras brancas). Un Héritier. segunda D’OTTROTT. STRAUB-HUILLET; Belva GmbH.
versão. filme de Jean-Marie Straub. Maurice Les Fées Productions 2011; visa nº 127 278
Barres; Barbara Ulrich. Joseph Rottner;
Jubarite Semaran [Jean-Marie Straub]. Renato
Berta; Cristophe Clavert. Dimitri Haulet;
Julien Gonzalez. Arnaud Dommerc. Maurizio
Buquicchio; Grégoire Letouvet. Créditos finais:
(cartela preta com letras brancas). Montagem:
Catherine Quesemand. Mixagem: Jean-Pierre
Laforce. Les Fées PRODUCTIONS; Sandrine
Pillon; Lucie Portehaut; Florence Hugues.
com a participação do CENTRE NATIONAL DE
LA CINEMATOGRAPHIE e da REGION ALSACE.
JEONJU DIGITAL PROJECT 2011. LA FEMIS;
Marc Nicolas; Frédéric Papon; Delphine
Dumont; Gaël Blondet. merci, merci à Sylvie
Filmes sobre Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
1983 1984
Jean-Marie Straub und Wie will ich lustig lachen.
Danièle Huillet bei der Arbeit Straub/Huillet un ihr
an einem film nach Franz Kafka’s Film “Klassenverhältnisse”
Romanfragment “Amerika” Como eu vou rir feliz —
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Danièle Huillet e Jean-Marie Straub
trabalhando num filme sobre e seu filme Relações de classes
um fragmento de Amerika, romance
inacabado de Franz Kafka
República Federal da Alemanha, 16mm, Cor,
República Federal da Alemanha, 16mm, 42’. Direção: Manfred Blank. Manfred Blank.
Cor, 26’. Direção: Harun Faröcki. Faröcki documenta ensaios e filmagens de Relações
documenta ensaios e filmagens de Relações de classes, filme no qual atuou.
de classes, filme no qual atuou.

2001 2009
Où gît votre sourire, enfuoi? Les Avatars de la mort d’Empédocle
Onde jaz o teu sorriso? Os avatares da morte de Empédocles
França/ Portugal, 35mm, Cor, 104’. Direção: França, Digibeta, Cor, 53’. Direção: Jean-Paul
Pedro Costa. A convite do canal francês Toraille. Mais de 20 anos depois de A morte
de televisão Arte, Pedro Costa registra de Empédocles, Straub convida Toraille,
o processo de montagem da terceira versão que fez a câmera do filme, a montar o material
de Sicília!. registrado por este durante as filmagens.
2010
Dites moi quelque choise
Digam-me alguma coisa
França, Digibeta, Cor, 94’. Direção: Philipe
Lafosse. Registro de conversas de Jean-Marie
Straub com o público após projeções de
alguns de seus filmes na sala Reflet-Médicis
em Paris, outono/inverno de 2007–2008.
Texto decupado e marcado para a realização de Cézanne, 1989. A cada etapa dos ensaios Jean-Marie Straub
utiliza uma nova cor.
Gente, animais, objetos, etc para encontrar para Moisés e Arão.
O texto de Elio Vittorini decupado, escrito à máquina e diagramado por Danièle Huillet,
marcado por Jean-Marie Straub para a realização do filme Sicília!.
Trabalho sobre o texto para Lorena!
Versão manuscrita de roteiro de Relações de classes.

Primeira página de uma versão de roteiro de Relações de classes escrita à máquina com marcações manuscritas.
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
2

M = M1
abril de 1964

Como, com base na sátira de Böll, forjei uma arma nua para os muitos
que não são nem “militaristas” nem “antimilitaristas” (o antimilitarismo,
como o riso, é um narcótico para os privilegiados) e para quem — como
os amantes do western — tem olhos e ouvidos para aquilo que meu velho
mestre Robert Bresson chama de matière cinématographique, a distribui-
dora Atlas, seus supostos conselheiros artísticos e alguns outros que
exercem papéis de intelectuais (inclusive de esquerdas) se sentam diante
de Machorka-Muff como quem espera um filme pornô, e, em vez disso,
mostra-se-lhes uma Vênus de mármore!
Além disso, M.-M. está dedicada ao autor de A resistível ascensão de
Arturo Ui e ao de The Rise and Fall of Legs Diamond, e se constrói sobre a
equação M = M2.

1. [Original sem título], manuscrito de Jean-Marie de 1963. Publicado como carta ao diretor
da Filmkritik em abril de 1964. A presente versão parte da tradução espanhola publicada em
Manuel Asín (ed.). Jean-Marie Straub y Danièle Huillet — Escritos. Intermedio, fevereiro de 2011.
Traduzido por Ernesto Gougain e Fernanda Taddei.
2. “Militar”= “Mörder” / “Militar” = “Assassino” [Nota de Manuel Asín].
3

Não “interpretar”, recitar1


(a propósito de Não reconciliados)
1965

Nenhuma pretensa “adaptação cinematográfica” do romance2.


E não se exigiu que os atores de alguma forma “interpretassem”
[spielen] o seu texto, mas que, ao contrário, o recitassem [rezitieren]
como uma partitura bem definida.
“Eu sempre gostei”, disse Jean-Luc Godard, “do som dos primeiros
filmes falados, eles tinham uma grande verdade, pois era a primeira vez
que se ouvia as pessoas falarem.”
Brecht: “Escavar a verdade sob os escombros do óbvio, conjugar
incisivamente o particular com o universal, reter o particular no grande
processo: esta é a arte dos realistas”.
O meu filme seria exatamente como é, mesmo se eu tivesse à minha
disposição sete milhões [de marcos alemães].

1. Manuscrito de Jean-Marie. Publicação original em alemão: “Nicht spielen — rezitieren”.


Film (Hannover), maio de 1965. Traduzido em italiano por Adriano Aprà (“Non ‘interpretare’,
recitare”), em J.-M. Straub e D. Huillet, Testi cinematografici, a cura di Adriano Aprà. Roma:
Editori Riuniti, 1992, p. 55. A presente versão partiu dessa tradução italiana. Traduzido por
José Eduardo Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva. [N.T.]
2. O romance em questão era Billard um Halbzehn (1959), de Heinrich Böll, no qual o filme
se inspirou. [N.T.]
4

O Bachfilm1/2
novembro de 1966

O ponto de partida para o nosso Crônica de Anna Magdalena Bach era a


ideia de tentar um filme no qual utilizaríamos a música não como acom-
panhamento, tampouco como narração, mas como uma matéria esté-
tica. Eu não tinha exatamente uma referência. Somente talvez, como
paralelo, o que Bresson fizera em Diário de um pároco de aldeia com o
texto literário. Pode-se dizer, concretamente, que nós queríamos tentar
levar a música à tela, mostrar, ao menos uma vez, a música àqueles
que vão ao cinema. Paralelamente a esse aspecto, havia a vontade de
mostrar uma história de amor, tal como ainda não conhecemos. Uma
mulher fala de seu marido, o qual ela amou até a morte. Aí está o prin-
cípio da história. Uma mulher se encontra ali e não pode fazer nada
além de estar ali pelo homem que ama, não importa o que aconteça a
ele e quaisquer que sejam as suas dificuldades. Ela conta quantos filhos
eles tiveram — eles tiveram treze filhos juntos —, o que se passou com
eles, quantos estão mortos, etc. Então, há primeiramente a história
dela; mas em seguida seu relato fixa também um ponto exterior. Não
podemos escrever nenhuma biografia, uma cinematobiografia, sem ter-
mos um ponto exterior, e esse ponto exterior é a consciência de Anna
Magdalena.
Um atrativo do filme consistirá em mostrarmos pessoas enquanto
fazem música. Nós mostraremos pessoas realmente executando um tra-
balho diante da câmera. Isso é raro no caso de um filme; no entanto, o que
se passa no rosto dos homens que não fazem nada senão executar um tra-

1. Publicado originalmente na revista Filmkritik em novembro de 1966 e posteriormente nos


Cahiers du cinéma n. 193, setembro de 1967. Traduzido do francês por Calac Nogueira.
2. Nota de Danièle Huillet em novembro de 1995  [N.D.H.]: Não se trata de um texto escrito, mas
de uma entrevista feita em alemão com Enno Palalas, em 1966, que ele formatou, montou e
publicou na Filmkritik de Munique: para tentar nos ajudar a encontrar dinheiro para produzir o
filme. Tratava-se, em suma, de “fazer um artigo”, o que trouxe 20.000 DM (10.000 de Maximilian
Schell, 1.000 de Alexander Kluge, 1.000 de François Truffaut e o resto de pequenas somas dos
leitores), bem como um grande artigo de Uwe Nettelbeck no Die Zeit, que, por sua vez, leva a
Hessischer Rundfunk — TV de Frankfurt — a investir 100.000 DM [marcos alemães].
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 5

balho é certamente algo que tem a ver com o cinematógrafo. Nisso con-
siste justamente — eu detesto a palavra, mas digamo-la entre aspas — o
“suspense” do filme. Cada trecho de música que nós mostramos será
realmente executado diante da câmera, captado em som direto3 e — com
uma quase exceção — filmado num único plano. O núcleo do que será
mostrado em cada trecho musical será, a cada vez, como fazemos essa
música. Pode acontecer que ele seja introduzido por uma partitura, um
manuscrito ou um texto impresso original. Depois, nos intervalos, haverá
sequências, não cenas, nem episódios — nós suprimimos cada vez mais,
até que não tenhamos mais nem cenas, nem episódios —, mas apenas o
que Stockhausen chamaria de “pontos”4. Tudo o que será mostrado fora
das execuções musicais serão “pontos” da vida de Bach.
O filme será realmente o oposto do que li ontem em um painel do
Theatiner Filmkunst a propósito do filme sobre Wilhelm Friedemann
Bach5 e de que tomei nota: “Sua música e aquela de seu pai dão ao filme
uma abundância de picos musicais impressionantes”. Meu maior temor
com o Bachfilm até o momento era justamente que a música criasse
picos no filme: ela deve permanecer no mesmo plano que o resto. Por
um lado, eu escolhi a música de tal forma que tenhamos um exemplo
de cada gênero — um coro de entrada, um concerto de instrumentos, um
trecho de órgão, um trecho de cravo, um minueto etc. — e também de
cada período criativo — inclusive aquele anterior a 1720, quando começa
a cronologia do filme, período totalmente clássico, totalmente linear, e
que pode até mesmo ser tido como um tipo de retrocesso! Por outro lado,
“dialeticamente”, nós escolhemos a música, porém, unicamente em fun-
ção do ritmo do filme. Eu sei exatamente em qual lugar eu preciso de uma
superfície plana — e ali eu não escolhi uma música que teria colocado
essa superfície plana, que era necessária, em perigo. A adequação entre
o trecho escolhido e o ritmo do filme deve ser, a cada instante, total em
sua construção. Fora isso, eu sei que posso encadear diretamente um
tal trecho de música com tal outro, e que num outro local uma lacuna é
necessária, uma sequência sem música, um “ponto da vida”.
3. “Captado em som direto”: os trechos que nós não mostramos, mas deixamos ouvir, tal como
o largo da sonata em trio para órgão, o dueto soprano-baixo sobre o céu, o excerto da última
fuga de “A arte da fuga”, o coral para órgão de “Perante ao teu trono, eu me apresento Senhor”,
foram tocados para o filme em órgão ou cravo, ou regidos, por Gustav Leonhardt [N. D.H.].
4. De música pontilhista: termo utilizado por Karlheinz Stockhausen para se referir a obras com-
postas por partículas separadas e dispersas, não subordinadas a uma estrutura tonal. [N.T.]
5. Primeiro filho de Johann Sebastian Bach. [N.T.]
O Bachfilm 6

O trabalho, para mim, quando faço uma decupagem, é chegar a um


quadro que seja completamente vazio, para que eu esteja seguro de não
ter absolutamente nenhuma intenção, de não poder mais tê-la quando
filmo. Eu elimino continuamente todas as intenções — os desejos de ex-
pressão. Isso é o enquadramento na decupagem. Stravinski disse: “Eu
sei que a música é incapaz de exprimir o que quer que seja”. Eu sou da
opinião de que um filme também. Enfim… não sabemos o que é um filme.
Um filme não existe para contar uma história em imagens, isso ficou claro
com o tempo; um filme também não existe para mostrar o que quer que
seja — o plano geral não rende em um filme, só muito raramente; um filme
também não existe para exprimir alguma coisa, sentimentos ou qualquer
outra coisa. Um filme também não existe — ainda que aí eu não esteja tão
seguro — para demonstrar alguma coisa. Para não cair em uma dessas
armadilhas, o trabalho na decupagem consiste, para mim, em destruir
desde o início essas diferentes tentações de expressão. Só então pode-
mos realizar, na filmagem, um verdadeiro trabalho cinematográfico.
Nossa decupagem repousa quase unicamente sobre os textos de
Bach e frases tiradas do Necrológio que Carl Philipp Emanuel6 escreveu
no ano da morte de Bach. Uma parte do texto vem daí, uma parte das
cartas de Bach, e uma pequena parte vem de mim, mas somente coisas
como “na Sexta-feira Santa do mesmo ano ele regeu pela primeira vez sua
música da Paixão do Evangelho segundo São Mateus”, textos de ligação
e indicações cronológicas. No Necrológio, reconhecemos o próprio Bach
no estilo e também nas histórias. Pode-se pensar que Carl Philipp Ema-
nuel escreveu como Bach contava. Vem daí que, no filme, Anna Magdale-
na, a qual fazemos dizer esses textos, fale como Bach escreveu — no que
concerne às cartas — e como ele falou — no que concerne ao Necrológio.
Por muito tempo tomamos como autógrafos de Bach manuscritos que
na verdade eram da mão de Anna Magdalena. Somente toda a pesquisa
musicológica recente estabeleceu exatamente o que vem da mão de Anna
Magdalena, vozes ou partições inteiras que ela recopiou. Ficou estabele-
cido que as escrituras se assemelhavam mais e mais, ao menos superfi-
cialmente. Isso eu não utilizo no filme, porque é uma questão ótica, e sou
da opinião de que o que é ótico não se transpõe bem à tela. Mas por esse
lado, com Anna Magdalena falando como Bach falava e escrevia, eu viso
ao mesmo objetivo.

6. Filho de Johann Sebastian Bach. [N.T.]


Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 7

Eu não poderia fazer uma cinematobiografia sobre um homem que


fosse próximo de nós, por exemplo um homem do século XIX, nem sobre
um homem do qual possuíssemos ainda muitos rastros. Dos bens pes-
soais de Bach, não temos mais absolutamente nada; nada restou, nem
mesmo um cachimbo; sequer sabemos se ele fumou um cachimbo. Temos
um inventário, sabemos quantos cravos ele teve, quantas cadeiras, etc.,
mas não mais do que isso. O que resta de Bach é, de maneira banal, a sua
música; além dela, os manuscritos, as partituras com muitas vozes que
ele próprio copiou junto com os alunos, com os filhos ou com sua mulher;
e, finalmente, as cartas. Eu utilizo também as cartas de um primo que era
um “cantor bem estabelecido” em Schweinfurt e que esteve, durante um
certo tempo, matriculado como estudante de teologia em Leipzig, onde
“completava seus conhecimentos musicais” com Bach, como esse primo
afirmou. Utilizo, ainda, algumas cartas do reitor da escola, com quem
Bach tinha uma disputa.
Temos essas três realidades: a música; os manuscritos ou textos
originais; e as cartas e o Necrológio. Com essas três realidades ainda
não seria possível fazer um filme, seria possível fazer o que chamamos
de filme documentário, mas o atrativo da minha “crônica” consiste jus-
tamente naquilo que introduzimos lá dentro do homem. Qual homem?
Simplesmente o homem que eu sequer escolherei, mas os músicos que
me serão dados — da Basileia, da Cantorum Basiliensis, de Viena, do Con-
centus Musicus. Em seguida, claro, eu escolherei precisamente as perso-
nagens secundárias, com tanta akribeia7 quanto as pessoas que devem
interpretar Bach e Anna Magdalena. Todo mundo sabe que Bach morreu
há muito tempo, e eu não tenho a intenção de tentar dar a ilusão de que
ressuscitei Bach. Foi por isso que eu escolhi o Gustav Leonhardt, que não
se parece com Bach, muito menos com o Bach tal e qual a maior parte das
pessoas imagina, um pouco gordo e tudo isso; Leonhardt é um homem
muito magro. Eu não o havia visto antes. Além disso, até aquele momento,
ele tinha gravado apenas um disco, uma cantata de Bach, e em seguida,
quase ao mesmo tempo, gravou a Arte da fuga no cravo, que, por sinal, só
pode ter sido escrita para cravo8.
Felizmente, não restou nenhum retrato de Anna Magdalena. Havia
um, sabemos com precisão, mas Wilhelm Friedemann o perdeu. Um dia,

7. “Akribeia”: palavra grega que quer dizer minúcia, exatidão. [N.T.]


8. A “Arte da fuga”, de Bach, não possui indicações de instrumentos. [N.T.]
O Bachfilm 8

em Paris, na cena do liceu Voltaire, em que Kurt Thomas regia um moteto


de Bach, nós vimos, entre os sopranos, uma garota — foi amor à primeira
vista… suas mãos… o que eu vi primeiro foram as mãos dela. Ela é berli-
nense, mas naquela época vivia em Frankfurt. Nesse meio tempo, ela se
casou com um mestre de coro, que agora é diretor de música em Darms-
tadt; ela tem filhos, e me agrada ainda mais.
O filme é cronológico. As primeiras imagens que vemos concernem
à época em que Bach tinha 35 anos, mais ou menos a idade do nosso
Leonhardt. O que me agrada é fazer um filme sobre um homem que não
veremos envelhecer. Eu não tenho, muito menos, a intenção de maquiá-lo
de alguma maneira — eu nunca maquiei ninguém diante da câmera, nem
para Machorka-Muff (1963), nem para Não reconciliados. E, no fim, quando
ele fica diante de uma janela, e escutamos como ele morre — “expirou
doce e contentemente”, como diz a narração —, ele terá exatamente o
mesmo aspecto que tinha aos 35 anos. Talvez eu esteja enganado, pois
não revejo o filme há seis anos, mas acho que em A vida de O’Haru, de
Mizoguchi9, a mulher, a personagem central, era mostrada também uma
vida inteira, sem que se tentasse de alguma forma dar a ilusão de que ela
envelhecia. Simplesmente, como diz o texto de uma cantata: “Que a tua
velhice seja como a tua juventude”.
No entanto, o nosso Leonhardt usará uma peruca e um figurino, e os
músicos que mostraremos tocarão instrumentos barrocos. E nós tentare-
mos, com os locais de filmagem, não criar anacronismos obrigatoriamen-
te, nem com alguns móveis que seremos obrigados a mostrar, nem com
os órgãos. Nós procuramos minuciosamente os locais de filmagem: por
exemplo, aquele das execuções das cantatas, que corresponde mais ou
menos à tribuna do órgão da igreja de São Tomás — pouca distância entre
o órgão principal e o positivo. E nós não captaremos, naturalmente, a mú-
sica de Bach em órgãos românticos. A tribuna da igreja de São Tomás está
inutilizável, pois foi transformada no século XX, mas nós achamos, por
exemplo, alguma coisa semelhante no Velho País (perto de Hamburgo)10.

9. Saikaku ichidai onna, (Kenji Mizoguchi, 1952). [N.E.]


10. “O Velho País”, Stade im Alten lande: ainda não há central nuclear em Elbe, mas duas igrejas,
São Cosme e São Willehad, correspondendo justamente às duas igrejas que se tornaram inutili-
záveis em Leipzig: São Nicolau e São Tomás… Nós fizemos as mesmas pesquisas para todos os
lugares, seja o castelo de Cöthen (transformado em estilo napoleônico), o refeitório da escola
de São Tomás, os apartamentos do Cantor, os órgãos de Silbermann, a universidade de Leipzig
etc., etc. Em cada um, após termos acordado com Leonhardt, havia uma disposição diferente
dos músicos, uma variação; não há, por exemplo, duas execuções de cantatas profanas ou de
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 9

Assim, nós mostramos pessoas de figurinos, mostramos um homem


com uma peruca e um traje de cantor11, mas não diremos obrigatoria-
mente ao espectador: eis, aqui, Bach. Eu poderia até mesmo dizer que é
muito mais um filme sobre o senhor Leonhardt. Mesmo nos “pontos” da
vida de Bach, nós respeitaremos o intérprete de Bach como Leonhardt. O
filme, o jogo, consiste em colocá-lo em contato com essas três realidades:
os manuscritos, os textos e a música. Somente se uma faísca sair desses
quatro elementos alcançaremos alguma coisa.
Em Machorka-Muff, eu me servi da realidade para que a ficção, diga-
mos, a sátira, se tornasse ainda mais realista; aqui eu quero, ao contrário,
servir-me da realidade para que o aspecto fictício do filme se torne ainda
mais evidente, de maneira que no fim tenhamos quase esquecido de que
se trata de Bach. No fim, o filme será quase tanto um romance quanto
Não reconciliados mesmo — justamente porque eu me sirvo quase que
exclusivamente da realidade. Em Machorka-Muff, eu tinha muito pouco
de realidade — evidentemente, cada imagem é apenas realidade e nada
além disso, “uma pedra”, é claro, mas o que eu chamo aqui ingenuamente
de realidade é, por exemplo, a sequência dos jornais, talvez apenas ela,
e é apenas um pequeno trecho de um minuto e meio, e o filme dura 17
minutos e 30 segundos. Aqui com o Bachfilm, poderíamos simplesmente
inverter as proporções e dizer: temos quase exclusivamente uma reali-
dade documental — a música real, os textos e os manuscritos reais, os
músicos reais — e somente 1/17 de ficção, e, apesar de tudo, o conjunto se
tornará quase tão somente um romance.
Bach é para mim um dos últimos personagens da história da cultura
alemã no qual ainda não há o divórcio entre o que chamamos de artista e
o que chamamos de intelectual. Não encontramos nele traço de romantis-
mo — sabemos o que em parte saiu do romantismo alemão —; não há nele
a menor separação entre inteligência, arte e vida, muito menos conflito
entre a música “profana” e a “sagrada”, nele tudo estava no mesmo plano.
Para mim, Bach é o contrário de Goethe.

igreja em que a mesma disposição no espaço seja repetida; esse espaço frequentemente estreito
tinha também como consequência, na época barroca, que os músicos tocassem e permaneces-
sem de pé… [N.D.H].
11. “Figurinos, perucas, óculos…”: sempre exatos ou possíveis (as gravuras, os quadros da
época, mas também anteriores, dão uma liberdade que empalidece de raiva todos os “figurinis-
tas” bitolados!). E as imensas janelas brancas das tribunas da igreja não são anacrônicas, mas
tais como gostaria a tradição luterana! Nada de vitrais coloridos, se havia algum, os luteranos
removeram… [N.D.H.]
O Bachfilm 10

“Só a violência ajuda, onde a violência reina”, a frase de Brecht que eu


tomara como subtítulo para Não reconciliados, poderia muito bem servir
de título ao Bachfilm. O filme conta a história de um homem que luta. Ele
espera, nas situações que eu mostro, sempre até o último minuto antes
de reagir, até que a situação esteja completamente tomada pela violência
da sociedade na qual ele vive, somente, então, ele reage, porque é, como
todo homem, preguiçoso, pois a violência cotidiana de que precisamos
para não nos resignarmos a cada dia — não quero dizer socialmente, mas
em tudo — exige uma grande energia. Ele não tem que lutar contra a so-
ciedade capitalista, à qual se destina a frase de Santa Joana dos Mata-
douros — mas quem sabe… Se o filme se assemelhar realmente a Bach, o
equilíbrio total encarnado — era isso o que eu queria dizer quando falava
que não há nele nenhum divórcio entre a arte, a vida e o intelecto, a músi-
ca “profana” e a “sagrada” —, se o filme conseguir ser o que era o homem,
é claro que ele penetrará até as raízes da sociedade, e, então, podemos
utilizar a frase “Só a violência ajuda, onde a violência reina” como título
para o filme. Assim, o filme o será também, igualmente, em termos cris-
tãos. A resignação jamais foi uma virtude teologal — ela apareceu somente
no século XIX. A dialética entre — a palavra “resignação” não seria a mais
correta — a paciência e a violência se esconde na arte do próprio Bach.
Isso é evidente, por exemplo, na Cantata nº4, “Cristo estava nos laços da
morte”; isso está escondido na arte de Bach, não somente nos textos das
suas cantatas, mas também na música.
11

Apresentação de Não reconciliados1


1966

Machorka-Muff, meu primeiro filme (um curta-metragem), era a histó-


ria de uma violação (a violação de um país onde foi reintroduzido o
exército, do qual ele estava feliz de ter se livrado). Não reconciliados
é a história de uma frustração: a frustração da violência (aquela a que
se refere Santa Joana dos Matadouros2 ao gritar “Só a violência ajuda
onde a violência reina”) de um povo que fracassou em sua revolução de
1849, não conseguiu libertar-se do fascismo, e que por isso permanece
prisioneiro do seu passado.
Descartei deliberadamente tudo aquilo que o romance de Böll3 tinha
de pitoresco, de satírico, de anedótico, de psicológico, a fim de realizar, à
luz de uma família burguesa, de 1910 até os dias atuais, uma pura reflexão
ao mesmo tempo cinematográfica, moral e política (que são se fundem
em uma só reflexão) sobre os últimos cinquenta anos da Alemanha, ao
modo de uma espécie de oratório cinematográfico (remontei às fontes
históricas do romance4 até o seu ponto de partida documentário)5. Daí a
aparência elíptica do filme e também “épica” (no sentido brechtiano) dos
meus personagens, que se exprimem todos com as palavras de Böll, mas
cada um com sua voz e seu sotaque (som direto). Paradoxalmente, esse
filme, que é o mais abstrato do mundo, é também o menos distanciado
(assim como os de [John] Ford são os mais brechtianos) e, dialeticamen-

1. Publicado pela primeira vez em italiano (traduzido de um original francês) na revista Cinema
& Film, n.1, inverno 1966–1967, numa versão mais longa, e republicado por Adriano Aprà em
versão revista, sem a primeira e a última seções, mas com novos parágrafos finais, sob o título
“Presentazione di Non riconciliati” em J.-M. Straub e D. Huillet, Testi cinematografici, op. cit.,
p. 58–63. Foi esta versão revista que traduzimos aqui. Traduzido do italiano por José Eduardo
Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva. [N.T.].
2. Na peça de Bertolt Brecht Santa Joana dos Matadouros [Die heilige Johanna der Schlachthöfe],
escrita em 1929–31. [N.T.]
3. Heinrich Böll, Billard um halbzehn (1959). [N.T.]
4. Sequências de repertório: 1914–1918, partida para a guerra, e 1944–1945, ruínas de Monte
Cassino.
5. Em 1933, foram executados em Colônia — decapitados com o machado — seis jovens comunis-
tas, dos quais o mais novo não tinha ainda vinte anos. Naquela época, o chicote de arame era
usado como instrumento de tortura.
Apresentação de Não reconciliados 12

te, o mais marciano6. Trata-se, num certo sentido, do ponto de vista de


um homem do século XX sobre os últimos 50 anos da Alemanha, que:
l) graças à eliminação de todo elemento dramático, fútil, anedótico e
pitoresco já na escolha das locações e dos figurinos, dá à imagem um ca-
ráter “atonal” e o colocando no mesmo plano o passado (1910–1914–1934)
e o presente faz do filme uma reflexão sobre a continuidade do nazismo
com aquilo que o precedeu e o seguiu: o anticomunismo (muito antes do
antissemitismo), os falsos valores morais (seriedade, honra, fidelidade,
ordem, respeitabilidade) e o oportunismo político — continuidade que se
encontra de modo mais ou menos confuso na consciência dos principais
personagens…
2) graças à eliminação da psicologia, faz de cada personagem um
puro esforço de reflexão moral e política, embora limitado pela sua condi-
ção burguesa: cada personagem nada mais é do que a consciência-verbo
encarnado (daí a necessidade do som direto, pois não é possível separar
o verbo de sua encarnação, eles são uma coisa só, e é necessário deixar
a cada personagem sua liberdade, do início ao fim de cada enquadra-
mento, e a cada imagem também, deixando ao acaso a possibilidade de
invasão e de efração em cada enquadramento). Nessa consciência-verbo,
o passado continua a viver no presente e, nela, como na personagem
da avó Johanna (que, embora um pouco esquizofrênica e confinada no
passado, não deixa de ser a mais consciente), é total a continuidade e é
absoluta a consciência de que o passado continha em germe o nazismo e
de que o passado e o presente se confundem: “Observava como o tempo
transcorria: revoltávamos-nos, lutávamos, pagávamos um bilhão por um
doce e depois não sobravam três pfennig para comprar um sanduíche. Eu
não queria ouvir o nome do salvador, mas o colavam no selo das cartas
deles e cantavam a ladainha: respeitabilidade, respeitabilidade, serieda-
de, honra, fidelidade; derrotados, mas não derrotados; ordem. Estúpidos
como a terra, surdos como uma árvore. E ele, o meu pequeno Davi, dor-
mia. Ele só acordou quando viu que passar um pacote de dinheiro, em-
brulhado em jornal, de uma mão a outra, pode custar a vida. Fidelidade,
honra, respeitabilidade, então ele percebeu. Eu o preveni contra Gretz,
mas ele disse: ‘Ele é uma pessoa inócua’. ‘Naturalmente’ eu disse, ‘você
verá o que as pessoas inócuas são capazes de fazer. Gretz é capaz de trair
sua mãe’. Robert o fez, só porque a velha dizia sempre: ‘É um pecado, é

6. No original, “marziano” [N.T.]


Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 13

uma infâmia’. Não dizia mais nada, apenas e sempre essa frase, até que
um dia seu filho disse: ‘Eu não aguento mais, é contra a minha honra’. Car-
regaram a velha mulher, trancaram-na em um asilo, declararam-na louca
para salvar-lhe a vida e, em vez disso, causaram-lhe a morte. Deram-lhe
uma injeção.”
A posição de Não reconciliados é, portanto, mais ou menos aquela de
um homem do século XX! na sociedade da época do Kaiser Guilherme II
(ela não lhe reserva nenhum lugar, como não cessam de lembrá-lo): 1) Na
defunta indústria cinematográfica: nenhum produtor (procurei em vão
algum por três anos e meio e acabei eu mesmo produzindo o filme com
o dinheiro de vinte e cinco amigos que nunca se comprometeram com a
indústria cinematográfica); nenhum distribuidor (eu mesmo distribuo o
filme7: para começar, consegui lançá-lo neste inverno por três semanas
num pequeno gueto de arte, do qual o expulsaram justamente quando
o grande público poderia ter começado a vê-lo, e depois ele foi exibido
por uma semana em Colônia, uma em Bonn, e de novo três dias em Mu-
nique num outro cinema: 737 pessoas, nem o bastante, nem demais, e se
devia, então, retirar imediatamente o filme de cartaz; esse filme não tem
o direito a um sucesso comercial, ele ameaçaria a indústria; além disso,
levando em conta o que ele exprime, é melhor que o mínimo de gente
o veja, não é um filme de grande público, e essa é também a opinião do
editor do romance que, depois de tentar em vão obter a destruição do
negativo, resolveu lançar o filme, desde que eu me comprometesse, no
contrato, a não mostrá-lo na televisão, que estava interessada). A recusa
de um prêmio de roteiro, antes das filmagens, a recusa de um prêmio de
qualidade após as filmagens — quando uma democracia e uma indústria
que tivessem o senso de seus interesses… (basta ver aquilo que os ame-
ricanos deixam circular, Os nus e os mortos8, por exemplo); 2) No jovem
cinema oficial é a mesma coisa, estamos construindo aqui uma nouvelle
vague sob medida, e temo que ela não produza senão clichês estéticos
e morais. No entanto, os três longas que já existem têm a bênção de dis-
tribuidores reconhecidos e também da crítica autorizada e dos poderes

7. Eu mesmo fui apresentar o filme em alguns cineclubes universitários e em outros: Frankfurt,


Münster, Bonn, Munique, Aachen, Mülheim, Essen, Ulm, Berlim, Wundsiedel. Infelizmente, eles
vivem fechados em si mesmos, mas encontramos ali jovens que amam o cinema. Continuarei
meu périplo de cineclubes neste inverno, tenho muitos outros convites. [N.A.]
8. The Naked and the Dead, filme de Raoul Walsh de 1958, baseado no romance homônimo de
Norman Mailer. [N.T.]
Apresentação de Não reconciliados 14

públicos (Algumas reações da crítica alemã na estreia do meu filme, ano


passado, no Festival de Berlim, fora de competição e praticamente fora
do festival — rejeitado pela comissão de seleção: “Produto ruim do filme
amador”, “Ausência total e absoluta de talento”, “Sem o menor dom artís-
tico”, “uma merda”, “Feio como pode ser um filme realmente feio”, “O pior
filme de 1895 para cá”, “De resto seria bom estender sobre esse exemplo
de impotência fílmica um impiedoso véu de silêncio”).
Mas há também um outro jovem cinema, o de George Moorse, Vlado
Kristl, Peter Nestler, Rudolf Thome, Max Zihlmann, Klaus Lemke (aos
quais espero que em breve se juntem outros jovens)9. Eles fazem filmes
muito diversos, que podem agradar ou não, mas todos têm em comum o
fato de fazerem algo diferente dos filmes de burocrata e, por isso, não têm
direito à cidadania. Além disso, são acusados de serem loucos, comunis-
tas (palavra assassina por aqui) ou diletantes, justamente por fazerem
algo diferente do academicismo estético e moral, e não desprezarem nem
seu trabalho, nem a realidade, nem o público. O último filme de Rudolf
Thome, Stella (1966), curta-metragem de ficção sobre um jovem casal,
chegou até mesmo a ser proibido pelos censores, pois ousava reinventar
a moral numa situação concreta. Não se trata aqui de um novo grupo de
jovens cineastas, como alguns jornais escreveram apressadamente, mas
só de um agrupamento aberto a todos…
Sem pornografia, isto é, sem maquiagem e sem aquilo que aqui cha-
mam de Arte, que não passa de um disfarce da mentira. Os filmes de
Thome chocam porque não se fala neles como no teatro; os filmes de Nes-
tler chocam porque neles vemos rostos que não têm direito de cidadania
na arte e porque ele se permite, por exemplo, em Mülheim / Ruhr (1964),
mostrar crianças irremediavelmente condenadas pela sociedade alemã.
Quatro revistas: duas mensais sérias, uma das quais, Filmkritik (Mu-
nique), a mais séria, faz algum esforço de combatividade, mas carece de
unidade e entusiasmo estéticos e morais; Film (Hannover), quase com-
pletamente dedicada ao academicismo, à estupidez e à indústria; mais
entusiasmadas, mas esporádicas, Filmstudio (Frankfurt), que está no seu
50º número, e Kino (Berlin), que está só no seu segundo.

9. Despedida de ontem [Abschied von Gestern] (Alexander Kluge, 1966), visto recentemente, é
realmente o primeiro dos cinco longas-metragens do jovem cinema alemão lançados depois
de Não reconciliados. Alexander Kluge é o único que dá prova de senso moral — e portanto de
senso político e estético — e que tem o senso da provocação [Nota de Adriano Aprà tirada de
uma carta posterior de Straub].
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 15

Para completar o quadro:


1. Depois de se recusar a publicar (sob o título “A palavra ao leitor”)
um esclarecimento meu de sete linhas sobre a sua primeira reportagem
sobre [o Festival de] Pesaro10 (CC Schulte, 11 de junho), a revista da in-
dústria (Film Echo) publica esta semana (2 de julho) uma segunda repor-
tagem sobre Pesaro, ainda mais mentirosa que a primeira, pela mão do
sinistro Schöler, que veio encher o saco de [Jean-Claude] Biette antes que
o festival começasse…
2. Antes ainda da apresentação de Não reconciliados em Berlim no
ano passado, corria o boato de que fui financiado com dinheiro do leste
para fazer o filme!
3. No inverno passado, em Essen, durante um debate público após
a apresentação do filme no cineclube da cidade, o diretor da Volkshochs-
chule (um Herr Doktor muito jovem) repreendeu-me por eu ter usado o
romance de Böll para fazer algo à la Brecht, e me acusou explicitamente
de ter feito um filme comunista, em que todas as personagens seriam
comunistas.
Os pontos 2 e 3 são apenas dois exemplos de uma ação subterrânea
que só raramente explodem em minha presença.
4. No último dia da terceira semana do lançamento do filme em Muni-
que, uma quarta-feira, o número de espectadores era maior do que o da
quarta-feira da primeira semana. Apesar disso (ou por causa disso?), o
filme foi retirado de cartaz.
5. Por outro lado, eu quero que se saiba que Não reconciliados preten-
de ser também uma comédia (à la Tartufo).

10. Ponto de encontro anual, na Itália, das principais figuras dos cinemas novos espalhados pelo
mundo, bem como da crítica mais afinada com suas propostas. [N.T.]
16

Autobiografia1
inverno de 1966 e 1967

Nasci, como a personagem da Velha Senhora do meu filme Não reconci-


liados, sob o signo de capricórnio (“já nascem velhos”, diz Max Jacob),
num domingo após a Epifania, na cidade natal de Paul Verlaine2 (“Et si
j’avais cent fils, ils auraient cent chevaux. Pour vite déserter le Sergent et
l’Armée”)3, e me foi dado o nome de um dos primeiros objetores de cons-
ciência (Jean-Marie Vianney, pároco de Ars), precisamente no ano em que
Hitler chegou ao poder…
Até 1940, só ouvi o francês e estudei nessa língua em casa e fora dela.
Inesperadamente fui obrigado a só falar o alemão e a aprendê-lo na escola
(qualquer palavra francesa era absolutamente proibida) com o sistema
“direto”, ou seja, do mesmo modo que minha irmã mais velha, que — após
algum tempo — voltou para casa, depois do primeiro dia de escola, reci-
tando duas frases em alemão: “o lobo mau devorou os sete cordeirinhos”
e “o bom Deus criou o mundo inteiro”. Mas, quando lhe perguntaram o
que a primeira frase queria dizer em francês, ela respondeu, traduzindo a
segunda, “Le bon Dieu a créé le monde entier”.
Depois da libertação, estudei — até o primeiro ano de liceu — no Colé-
gio dos Jesuítas Saint-Clément (onde aprendi que a insubordinação não
é somente uma virtude poética) e depois um ano em um liceu estatal. No
segundo ano de liceu, participei de uma manifestação de protesto contra
os programas pouco sérios dos cinemas de Metz; nessa ocasião tive os
primeiros contatos com a polícia francesa (uma das piores do mundo).
Um segundo contato, bem mais brutal, aconteceu pouco tempo depois,

1. Publicada inicialmente (numa tradução italiana de um original francês) em Cinema & film, n.1,
inverno 1966–67, p. 76–78, como uma primeira seção de um texto maior intitulado “Premessa
a Nicht Versohnt”, e republicada em separado no volume de J.-M. Straub e D. Huillet, Testi
Cinematografici (a cura di Adriano Aprà), Roma, Editori Riuniti, 1992, p. 49–54. Traduzido do
italiano por José Eduardo Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva [N.T.]
2. Em Metz, na Lorena. [N.T.]
3. “E se eu tivesse cem filhos, eles teriam cem cavalos. Para logo abandonar o Sargentoe o
Exército”, versos do poema de Verlaine “Puero Debetur Reverentia”, incluído no volume
Invectives (1896). [N.T.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 17

devido a uma ação racista feita pela polícia contra os argelinos de Metz e
arredores. De 1950–51 a 1954–55 dirigi um cineclube em Metz com 200–
700 sócios, onde exibíamos filmes de Antonioni, Bresson, Buñuel, Capra,
Chaplin, Cocteau, Dassin, Eisenstein, Lloyd, Méliès, Mizoguchi, Murnau,
Ophüls, Pabst, Pagliero, Pudovkin, Renoir, Rossellini, Rouquier, De Santis,
De Sica, Sjöberg, Sjöström, Vigo, Visconti, Welles e Wilder apresentados
por Agel, Bazin, Doniol-Valcroze, Quéval, Truffaut, d’Yvoire etc., e, ao
mesmo tempo, frequentei as Universidades de Strasburgo (1951–52) e de
Nancy (1952–53 e 1953–54).
Em novembro de 1954, cheguei a Paris com o projeto de um filme
biográfico de longa-metragem sobre Johann Sebastian Bach; a revolução
argelina; o encontro com a minha esposa…
Acompanhei a realização de alguns filmes como A torre de Nesle
(1955), de Abel Gance, French Cancan (1954) e Elena e os homens (1956),
de Jean Renoir, Le coup du berger (1956), de Jacques Rivette, Um conde-
nado à morte escapou (1956), de Robert Bresson e Uma vida (1958), de
Alexandre Astruc.4
Em 1958, mudei-me para a Alemanha. Primeiro, em viagem por dois
anos, buscando material para o filme sobre Bach. Depois, em 1963, lá
filmei Machorka-Muff (“Muito barulho por nada… O filme condena o re-
armamento da Alemanha”, escreveu o jornal Die Zeit). Em 1965, filmei
Não reconciliados (“feio como pode ser um filme verdadeiramente feio”,
escreveu o Die Zeit). Em 1965–66, voltei ao projeto de Crônica de Anna
Magdalena Bach.
De que maneira esse filme deve ser uma continuação dos dois prece-
dentes (Não reconciliados e Machorka-Muff)? Já em 1959, um dramaturgo
alemão [Waldemar Kuri] tinha falado do roteiro nestes termos com um
produtor alemão: “… as faculdades perceptivas do espectador são postas
duramente à prova pela ação paralela entre as imagens, a música (muito
refinada) e a narração. Além disso, a imagem, a música e as palavras se
fundem com grande virtuosismo, mas seguem linhas autônomas; na evo-
cação cênica dos episódios da vida de Bach, as exigências emotivas são
secundárias em relação à listagem dos ‘fatos’ (isso não elimina os aconte-
cimentos que podem provocar potencialmente uma reação emotiva, mas
essas cenas são ‘neutralizadas’); o elemento visual não representa o fator

4. Títulos originais: La Tour de Nesle, French Cancan, Eléna et les hommes, Un condamné à mort
s’est échappé; Une vie. [N.T.]
Autobiografia 18

essencial, que é entregue, ao contrário, ao elemento acústico, composto


em igual medida de música e palavra (e não se trata de uma linguagem
emocional e expressiva, mas de uma forma para explicar, comunicar,
informar, que apela para as faculdades racionais do espectador e não
para seu sentimento). A imagem raramente ‘narra’ ou comunica de forma
direta, primária”. O filme Crônica de Anna Magdalena Bach, como os dois
anteriores, será, além disso, um filme sobre a Alemanha.
Outros projetos meus, mais ou menos viáveis, são: Moisés e Arão5, de
Schoenberg (em exteriores e em cores), A decisão [Die Massnahme]6, de
Brecht (também em exteriores), Perseguição e assassinato de Jean-Paul
Marat e O interrogatório [Die Ermittlung]7, de Peter Weiss, um filme tirado
de um mito (narrado por Lévi-Strauss em O cru e o cozido): A história de
Asaré, um filme que narra a história de uma faxineira, e a comédia dos
cineastas alemães, baseada em temas originais.
O que significa fazer filmes na Alemanha (ou seja, contra a estu-
pidez, a preguiça mental, a depravação, que — como diz B.B. [Bertolt
Brecht] — são comuns neste país)? Hipérion8 responderia: significa
esvair-se em sangue. E eu acrescento: não ser capaz de atingir o grande
público para o qual você deseja dedicar o seu próprio trabalho. Essa res-
posta dupla vale também para Peter Nestler e alguns outros. Mas algo vai
mudar. E isso me atrai, me seduz fazer, como um francês na Alemanha,
filmes que nenhum alemão saberia fazer — como nenhum alemão saberia
fazer Alemanha ano zero ou O medo, nenhum americano saberia fazer
A adolescente ou The Southerner9, e nenhum italiano poderia ter escrito
A Cartuxa de Parma (Stendhal).

5. Os Straub acabariam realizando este projeto em 1974, à diferença dos outros mencionados
aqui. [N.T.]
6. Peça teatral escrita por Brecht em 1930. [N.T.]
7. Peças teatrais escritas por Peter Weiss em 1964 e 1965, respectivamente. [N.T.]
8. Hipérion é uma figura da mitologia grega (um dos doze titãs filhos de Urano e Gea) à qual
Hölderlin consagrou um romance, fonte provável dessa fala aludida por Straub. [N.T.]
9. Títulos originais: Germania anno Zero (Roberto Rossellini, 1948); La Paura (Rossellini, 1954);
La joven ou The Young one (Luis Buñuel, 1960); The Southerner (Jean Renoir, 1945). [N.T.]
19

Filme e narrativa: respostas a uma enquete1


dezembro de1966

Cahiers du cinéma: Você considera que o cinema inovou em maté-


ria de narrativa? Ou ele teria se contentado em retomar, incor-
porando-as e adaptando-as como fez com o teatro, as modalidades
da narrativa romanesca?

Jean-Marie Straub: Lumière, Griffith, Ford, Lang, Murnau, Renoir,


Mizoguchi, Sternberg, Rossellini, por exemplo, sempre inova-
ram. Eisenstein, Kurosawa, Welles e Resnais, por exemplo, não.

CdC: Filmar segundo este ou aquele procedimento narrativo


resulta, a seu ver, no exato equivalente de uma narrativa romanes-
ca da mesma espécie, ou em algo completamente diferente? Por
exemplo, um flashback no curso de uma narrativa cinematográfica
lhe causa a mesma impressão que uma volta atrás na ordem dos
acontecimentos de uma narrativa literária?

JMS: No desenrolar de um filme que é um filme, o flashback não


existe: passamos sempre (seja no interior de uma sequência,
seja de uma sequência a outra), com ou sem fusão, de um plano
bioscópico a um outro plano bioscópico, isto é, de um bloco de
puro presente condensado a um outro bloco de puro presente
condensado, efêmero (a morte em ação, como diz o outro)2.

1. Estas respostas de Straub foram publicadas em francês junto com as de vários outros cole-
gas na seção “Questões aos cineastas” de um número especial dos Cahiers du cinéma (n.185,
dezembro de 1966) sobre “Filme e romance: problemas da narrativa”, nas pp. 123–4. Assim
como em sua tradução italiana muito bem anotada, incluída no volume Jean-Marie Straub &
Danièle Huillet, Testi Cinematografici (Roma: Editori Riuniti, 1992, pp. 139–142), alternamos aqui
as questões dos Cahiers com as respostas correspondentes de Straub, e usamos algumas das
notas de Adriano Aprà. Traduzido do francês por Mateus Araújo Silva.
2. Alusão à frase sempre citada de Jean Cocteau segundo a qual o cinema filma “la mort au
travail”. [N.T.]
Filme e narrativa: respostas a uma enquete 20

CdC: Você considera que o cinema, tendo retomado por sua conta
as conquistas da narrativa romanesca clássica, influenciou,
por isso (precipitando sua urgência), uma necessária renovação
do romance?

JMS: Sim, talvez. Talvez também tenha sido o cinema que inven-
tou o “nouveau roman”: foi ele quem inventou o brechtismo
(Chaplin, Hawks, Mizoguchi, e sobretudo Ford, o mais brechtiano),
se é que não foram os gregos, ou Corneille ou, segundo o próprio
Brecht, Shakespeare.

CdC: O que você acha das tentativas atuais de renovação do


romance? Você acha que elas podem influir no futuro da narrativa
cinematográfica?

JMS: a) Eu as ignoro, exceto Butor; e sua Modification3 me tenta…


b) Só, por exemplo, nos filmes de Peter Lilienthal (para maravi-
lhamento de muitos críticos de seu país!). Não reconciliados em
compensação, deve por acaso tanto a Tartuffo4 e a Salvador Dali
quanto a Heinrich Böll, senão tudo ao bioscópio.

CdC: Você já se sentiu atraído pelo gênero romanesco?


E hoje, você poderia sê-lo, dadas as novas tendências das
duas disciplinas?

JMS: Não e não. Fonte, de tua água jamais beberei.

CdC: O que você acha da evolução do cinema a partir de 1945, e


particularmente das tendências atuais dos cinemas americano
e europeu? Você partilha da opinião segundo a qual alguns cineas-
tas, de uns anos para cá, realizam verdadeiros filmes-romances?

JMS: a) Foi o cinema europeu (mas em menor medida o tcheco)


que se tornou o que o cinema americano foi por muito tempo:
a cabeça pensante do cinema, como diz Rivette. Desde os últimos
3. La Modification (1957), romance mais conhecido de Michel Butor. [N.T.]
4. O Tartuffo do autor de Le Bourgeois Gentilhomme [Molière], não o do autor de Nosferatu.
[Murnau] [N.T.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 21

filmes de Boetticher, o cinema americano (aí incluído o de Nova


York, exceto Echoes of silence)5 gira em falso (Fuller), estaciona,
parodia, plagia e até mesmo, como Nicholas Ray (que acaba de
aceitar, segundo dizem, fazer um trabalho indigno6 para a Atlas-
-Film, Duisburg), trai e se renega. (Mesmo Hitchcock, Hawks
e Walsh me parecem se arrastar um pouco, ao passo que Chaplin,
Lang, Renoir e Rossellini, por exemplo, nunca temeram ser
insultados a cada novo filme). Duas exceções: Jerry Lewis, talvez,
e John Ford, que depois de ter levado o cinema americano
a seu apogeu (Terra bruta, Rastros de ódio, Marcha de heróis) e
de ter precipitado sua queda (O homem que matou o fascínora,
Crepúsculo de uma raça), acaba de sublimá-lo, como se sabe: Sete
mulheres!7
b) O que é um filme-romance? Antes da Revolução, Rysopis, por
exemplo? Por que não? Mas já Viagem à Itália8…

CdC: Quais reflexões lhe inspiram a acolhida, pelos jovens de hoje,


ao cinema e ao romance? Você acha que alguns cineastas conse-
guiram instaurar com o seu público um diálogo de que carece o
romancista? Em caso afirmativo, quais razões você vê para esse
fenômeno?

JMS: Sim. Godard, provavelmente. Porque o privilégio do cinema-


tógrafo é o de poder, como ele diz, transitar entre a vida e a arte,
o sonho e a realidade, a realidade e a ficção, a poesia e a prosa, e
Godard fez melhor e mais frequentemente a passagem. Hitchcock
também (embora isso não chegue completamente ao nível do
diálogo), e Bresson provavelmente… E poderíamos talvez citar
outros jovens além de Godard, se todos os filmes nascessem,
como todos os romances, livres e com os mesmos direitos — em
vez de serem entregues (infelizmente! mesmo nos países do leste

5. Echoes of silence (Peter Emanuel Goldman, 1967).


6. No original, “une méchante besogne”. Adriano Aprà sugere em nota, invocando o estudo clás-
sico de Bernard Eisenschitz sobre Nicholas Ray, que Straub deve estar se referindo à montagem
feita por Ray para a versão internacional de Popioly (Andrzej Wajda, 1965). [N.T.]
7. Títulos originais: Two Rode Together (1961); The Searchers (1956); The Horse Soldier (1959);
The Man Who Shot Liberty Valence (1962); Cheyenne Autumn (1964); Seven Women (1965). [N.T.]
8. Títulos originais: Prima della rivoluzione (Bernardo Bertollucci, 1964) Rysopis (Jerzy
Skolimowski, 1964), Viaggio in Italia (Roberto Rossellini, 1954). [N.T.]
Filme e narrativa: respostas a uma enquete 22

europeu) a um sistema de opressão capitalista, frequentemente


apoiado pela imprensa.

CdC: Como você vê o futuro, no curto e no longo prazo, do cinema


e do romance?

JMS: O romance ocidental, por exemplo, já é mais velho que


Baudelaire quando ele dizia ter mil anos9. O cinematógrafo é um
pouco mais jovem e, de todas as artes, como diz Lênin, é a que
mais nos importa.

9. Alusão ao verso inicial do poema LXXVI (“Spleen”) das Flores do mal de Baudelaire: “Tenho mais
lembranças do que se tivesse mil anos” [“J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans”]. [N.T.]
23

Sobre Ernst Lubitsch1


fevereiro de 1968

Seus filmes se tornaram para mim tão importantes quanto os de Lang


e Murnau. Os olhos da múmia Ma (Lubitsch, 1918)2 já é Eschnapur3, e
Carmen (Lubitsch, 1918) já é A carruagem de ouro4. O orgulho da firma5
é tão engraçado e no fim das contas brechtiano, assim como Madame Du
Barry (Lubitsch, 1919), que desmonta em três planos uma provocação
policial, e O leque de lady Windermere6, mais bonito e mais denso do que
os mais romanescos Hitchcock.

1. Nota breve publicada originalmente em francês, sem título, no cabeçalho que abria a seção
“Testemunhos” de um longo dossiê consagrado a Ernst Lubitsch pelos Cahiers du cinéma (n.198,
fevereiro de 1968, p. 21), e republicada em Bernard Eisenschitz et Jean Narboni (Dir.), Ernst
Lubitsch, Paris: Cahiers du cinéma / Cinémathèque Française, 1985, p. 107 (ilustrada com fotogra-
mas de Relações de classes, 1983, de Straub e Huillet, e de filmes de Lubitsch e Hitchcock). Mais
tarde, foi traduzida em italiano em Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Testi Cinematografici, a
cura di Adriano Aprà, Roma, Editori Riuniti, 1992, p. 231. Traduzido do francês por Mateus de
Araújo Silva.
2. Die Augen der Mumie Ma.
3. O tigre do Bengali (Der Tiger von Eschnapur), 1959, de Fritz Lang, primeira parte do díptico
de aventura indiana completado por O túmulo hindu [Das indische Grabmal] lançado por Lang
no mesmo ano. [N.T.]
4. Le carrosse d’or (Jean Renoir, 1953). [N.T.]
5. Em Der Stolz der Firma [O orgulho da firma, Carl Wilhelm, 1914], Lubitsch foi só ator. [N.T.]
6. Lady Windermere’s Fan (Lubitsch, 1925).
24

Feroz1
(sobre Carl Th. Dreyer)
1968

O que admiro particularmente nos filmes de Dreyer que pude ver ou rever
nestes últimos anos é sua ferocidade em relação ao mundo burguês: à
sua justiça (O presidente [1918–9], também uma das mais surpreendentes
construções narrativas que eu conheço e um dos filmes mais griffithianos,
logo um dos mais bonitos), à sua vaidade (sentimentos e cenários: Mikael,
1924), à sua intolerância (Dias de ira, [1943], impressionante por sua vio-
lência e por sua dialética), à sua hipocrisia angelical (“Ela morreu… Ela
não está mais aqui. Ela está no céu…”, diz o pai em A palavra [1954–5], e
o filho responde: “Sim, mas também amei seu corpo…”) e a seu purita-
nismo (Gertrud2 [1964], por isso tão bem acolhido pelos parisienses dos
Champs Elysées3).
De resto, O vampiro4 (“Aqui não tem nem criança nem cachorro”)
segue sendo, para mim, desde o dia em que, treze anos atrás, vi-o na Rua
d’Ulm5, o mais sonoro de todos os filmes. E em 1933, Dreyer lançava este
apelo que, à exceção de [Gianni] Amico e Bertolucci, os cineastas italia-
nos fariam bem em finalmente ouvir: “Se nos esforçamos para criar um
espaço realista, é preciso fazer o mesmo com o som. Enquanto escrevo
estas linhas, ouço ao longe os sinos que tocam, percebo o barulho do ele-
vador, o tilintar distante de um bonde, o relógio da Prefeitura, uma porta
que bate… Todos esses sons existiriam também se as paredes do meu
quarto, em vez de verem um homem trabalhando, fossem testemunhas de
uma cena tocante ou dramática, em contraponto ao qual eles ganhariam

1. Publicado originalmente em francês, na p. 35 de um longo dossiê dos Cahiers du cinéma (n.207,


dezembro de 1968) consagrado a Carl Theodor Dreyer. Traduzido em italiano e anotado por
Adriano Aprà em J.-M. Straub e D. Huillet, Testi Cinematografici, op. cit., p. 254–256. Traduzido
do francês por Mateus Araújo Silva.
2. Títulos originais dos filmes de Carl Th. Dreyer citados por Straub neste parágrafo: Præsidenten,
(1918–19); Mikael (1924); Dies Irae (1943); Ordet; (1954–55) e Gertrud (1964). [N.E.]
3. A referência é irônica: o filme foi mal acolhido em Paris desde a sua estreia em dezembro
de 1964. [N.T.]
4. Vampyr, 1932. [N.T.]
5. Na antiga sala de exibição da Cinemateca Francesa dirigida por Henri Langlois. [N.T.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 25

talvez até mesmo um valor simbólico. É justo, então, suprimi-los? […] No


verdadeiro cinema falado, a verdadeira dicção será — paralelamente ao
rosto sem fardo num quarto autêntico — a palavra ordinária e cotidiana
tal como pronunciada pelos homens ordinários”6.
E agora que tantos jovens autores só sonham em impor a seus fil-
mes suas ideias e suas pequenas reflexões, em seduzir e violar (por um
brechtismo epigonal ou pelo uso dos métodos publicitários e de pro-
paganda da sociedade capitalista) — ou em desaparecer (colagens etc.),
ouçamos Dreyer:
“O escritor dinamarquês Johannes V. Jansen define a arte como ‘uma
forma interpretada pelo espírito’, definição que me parece perfeita. Ches-
terfield vê no estilo ‘a roupa dos pensamentos’, outra definição simples
e precisa, desde que a roupa não chame demais a atenção. O que carac-
teriza o bom estilo, este também simples e preciso, é que ele deve entrar
numa combinação tão íntima com o conteúdo que constitua uma síntese.
Se fica muito ostentatório7 e tenta chamar a atenção, deixa de ser estilo
para se tornar maneirismo. […]
O estilo de um filme, se este é uma obra de arte, é o produto de um
grande número de componentes, tais como o jogo do ritmo e do enqua-
dramento, as relações de intensidade das superfícies coloridas, a intera-
ção da luz e da sombra, o movimento moderado da câmera. Todas essas
coisas, associadas à concepção que o cineasta tem de seu material, deci-
dem seu estilo. […]
Não subestimo, tampouco, a equipe técnica, os operadores, os téc-
nicos da cor, os cenógrafos etc.; mas no interior dessa coletividade, o
cineasta deve ser o motor da inspiração, o homem atrás da obra que nos
faz ouvir as palavras do escritor, que acentua sentimentos e paixões a fim
de nos emocionar e nos tocar. […]
É assim que compreendo a importância do cineasta e sua
responsabilidade.
[…] mostrar que existe um mundo para além do naturalismo morno
e entediante, o mundo da imaginação. É certo que a transformação deve
se dar sem que o cineasta perca seu controle sobre o mundo da realidade.

6. Carl Th. Dreyer, trechos do artigo “Le vrai cinéma parlé” (publicado originalmente em
Politiken, 19/11/1933), citados por JMS na sua tradução francesa publicada nos Cahiers du
cinéma , n.127, janeiro de 1962 (cf. p. 30). Agora em Carl Th. Dreyer, Réflexions sur mon métier
(Paris: Cahiers du cinéma , 1983, p. 41). [N.T.]
7. No original, “trop entreprenant”. [N.T.]
Feroz 26

Sua realidade remodelada deve sempre continuar sendo algo que o públi-
co possa reconhecer e no qual possa crer. É importante que as primeiras
etapas rumo à abstração sejam transpostas com tato e discrição. Não se
deve chocar as pessoas, mas guiá-las devagar por novos caminhos”8.
“Cada assunto implica uma certa via (voz?). É para isso que se deve
atentar. E devemos encontrar a possibilidade de exprimir tantas vias
(vozes?) quantas pudermos. É muito perigoso limitar-se a uma certa
forma, a um certo estilo. […] Isto é algo que eu realmente tentei fazer:
encontrar um estilo que só seja válido para um único filme, para este
ambiente, esta ação, este personagem, este assunto”9.
“No cinema, não se pode fazer o papel de um judeu, é preciso ser um”10.
Dreyer não pôde, no fim das contas, realizar um filme em cores (ele
pensou nisso por mais de 20 anos) nem seu filme sobre Cristo (sublime
revolta contra o Estado e as origens do antissemitismo), isso nos lembra
que vivemos numa sociedade que não vale um peido de rã.

8. Carl Th. Dreyer, trechos do artigo “Réflexions sur mon métier” (resultante de uma confe-
rência proferida no Festival de Edimburgo, em 1955, e publicada originalmente em Politiken,
30/8/1955), citados por JMS na sua tradução francesa publicada nos Cahiers du cinéma , n.65,
dezembro de 1955 (cf., respectivamente, pp. 12, 13 e 16). Agora em Carl Th. Dreyer, Réflexions
sur mon métier (Ed. cit., que toma emprestado ao artigo o seu título inicial), sob o novo título
“Imagination et couleur”, pp. 94, 95 e 99, respectivamente. [N.T.]
9. “Entre ciel et terre”, entrevista de Dreyer a Michel Delahaye, Cahiers du cinéma , n.170, set.
1965, p. 23 (Agora em Réflexions sur mon métier, ed. cit., p. 122). [N.T.]
10. “Le vrai cinéma parlé”, art. cit., Cahiers du cinéma , n.127, jan. 1962, p. 30 (agora em Réflexions
sur mon métier, ed. cit., p. 40). [N.T.]
27

O noivo, a atriz e o cafetão1


maio de 1969

Machorka-Muff (1962) era um filme de vampiro; Não reconciliados, um filme


místico; Crônica de Anna Magdalena Bach, um filme marxista; O noivo, a atriz
e o cafetão é um filme-filme, e não é de nenhuma forma uma coisa menor…
É também o mais aleatório de meus filmes—e o mais político, porque:
1) ele é um pouco o último julgamento de Mao, ou do terceiro-mundo,
sobre o nosso mundo (“Se os arquirreacionários do mundo — mesmo hoje,
amanhã e depois de amanhã — ainda inflexíveis — mas não fortes — cocô
de cachorro”2);
2) ele nasceu sob o golpe da impossível revolução parisiense de maio
(todo o último plano, e a música inicial e final: “Du Tag, wann wirst du
sein… Komm, stelle dich doch ein” — “Você, dia, quando estará… Venha,
apresente-se, então”3); e
3) ele conta um fato cotidiano (não há nada mais político do que um
fato cotidiano): os amores de uma antiga prostituta e de um negro relacio-
nados com trechos de um texto teatral de Ferdinand Bruckner!, um homem
das leis berlinense escreve, então, exigindo naturalmente — em nome do
editor de Bruckner — a destruição de todas as cópias e do negativo do filme
e a prova dessa destruição — além de 5.000 marcos por danos e interesses.
Posto que, como escreve, por outro lado, o Filmtelegramm (porta-voz dos
puxa-sacos): “é chegado o momento de lançar um duro golpe final… este
novo filme, de 23 minutos de duração, é na realidade 24 minutos exagera-
damente longo… deve ser o juízo final que Straub fez para si mesmo”.
“Straub” vai, então, enfim, deixar a Alemanha para Roma, onde espera
poder rodar Othon (Os olhos não querem sempre se fechar) este verão
sobre o Monte Palatino.
1. Publicado originalmente nos Cahiers du cinéma , em maio de 1969, como um postscriptum de
Jean-Marie Straub a um artigo de Jean-Claude Biette a propósito de O noivo, a atriz e o cafetão.
Em uma tradução para o espanhol posterior, incluída em Manuel Asín (ed.). Jean-Marie Straub
y Danièle Huillet — Escritos (Intermedio, fevereiro de 2011), o texto aparece com o título de
“El juicio final de Mao”. Traduzido do francês por Calac Nogueira.
2. Adriano Aprà assinala em sua edição que este lema de Mao Tse-Tung é o que se pode ler,
parcialmente, no fundo do cenário teatral da primeira sequência do filme. [nota de Manuel Asín
à edição espanhola supracitada]
3. Cantata BWV 11, de Johann Sebastian Bach.
28

Othon contra a dublagem1


19 de fevereiro de 1976

Caro Doutor,
Os vinte milhões de espectadores italianos, a indústria cultural ou
a cultura de massas são um mito totalitário, ao qual recuso me sacrificar
dublando Othon. Não creio na massa, creio nos indivíduos, nas classes
sociais e nas minorias (que, como diz Lênin, serão maiorias amanhã).
Segundo Pierre Schaeffer, da televisão francesa, “de saída, é preciso
considerar o espectador um homem responsável e inteligente. Hoje, todo
mundo faz o contrário. Decidiu-se de forma definitiva que havia um espec-
tador banal, o qual precisamos neutralizar mediante a distração. É a técnica
americana do rating. Em Nova York, oito dias após o lançamento de uma
transmissão, sonda-se o público. Se a transmissão não obtém o coeficiente
desejado, é direta e simplesmente eliminada. São as grandes cifras que mar-
cam as leis. E esse absurdo está a ponto de cruzar o Atlântico. Quanto mais
televisores há, mais se quer falar para todos de uma só vez. Mas o contrário
que é o verdadeiro. Quanto mais televisores houver, mais é preciso diversi-
ficar os tipos de público. O objetivo não é, portanto, a anestesia!”.
Não apenas na França, na Alemanha, na Holanda, na Suíça, mas tam-
bém na maior parte dos países da América do Sul, as pessoas estão acos-
tumadas a ver os filmes em língua estrangeira. Os italianos são realmente
o povo mais subdesenvolvido do mundo?
Jorge Luís Borges escreve: “Os que defendem a dublagem justificarão
(talvez) que as objeções que se podem opor a ela podem opor-se também
a qualquer outro exemplo de tradução. Esse argumento ignora, ou evita,
o defeito central: o arbitrário enxerto de uma outra voz e de uma outra
língua. A voz de Hepburn ou de Garbo não é contingente; é um dos atribu-
tos que as definem para o mundo. Vale recordar também que a mímica do
inglês não é a do espanhol.

1. Publicação original: “Il dopppiagio é un assassinio. Othon contro il doppaggio”. In Filmcritica,


número 203, janeiro de 1970. A presente versão parte da tradução espanhola, “Othon contra
el doblaje”, publicada em Manuel Asín (ed.). Jean-Marie Straub y Danièle Huillet — Escritos.
Intermedio, fevereiro de 2011. Traduzido do espanhol por Calac Nogueira.
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 29

Mais de um espectador se pergunta: já que há usurpação de vozes,


por que não também de figuras? Quando o sistema será perfeito? Quando
veremos diretamente Juana González no papel de Greta Garbo, no papel
de Rainha Cristina da Suécia?
Ouço dizer que nas províncias a dublagem é apreciada. Trata-se de
um simples argumento de autoridade: enquanto não forem publicados
os depoimentos dos connaisseurs do Chilecito ou de Chivilcoy2, eu, pelo
menos, não me deixarei intimidar. Também ouço dizer que a dublagem é
deleitável, ou tolerável, para os que não sabem inglês. Meu conhecimento
de inglês é menos perfeito que meu desconhecimento de russo; contudo,
eu não me resignaria a rever Aleksandr Nevsky3 em outro idioma que não
o primitivo, e o veria pela nona ou décima vez, se me dessem a versão
original… Pior do que a dublagem, pior do que a substituição que implica
a dublagem, é a consciência geral de uma substituição, de um engano”.
Uma lei fascista (sob a defesa da língua italiana!) converteu a Itália
na câmara de gás dos filmes estrangeiros. Porque, como diz Jean Renoir
(que é o homem que melhor entendeu o cinema), “a dublagem é um as-
sassinato”. “Trata-se sempre de (sur)prender4 a vida. (Sur)prender a vida
é também (sur)prender no instante a voz, o ruído… Eu pertenço, ainda,
a uma velha escola de pessoas que creem na surpresa da vida, no do-
cumental, que creem que seria errado perder o suspiro que uma garota
emite no seu pesar em uma determinada circunstância, e o qual não se
pode reproduzir.”
Meu filme Os olhos não querem… [Othon] se fundamenta precisamen-
te nessas coisas que não são “reproduzíveis” — na encarnação do verbo de
Corneille em cada personagem num instante, no ruído, no ar e no vento,
e no esforço que fazem os atores e no risco que estes correm, como acro-
batas, de uma ponta a outra de longos e difíceis textos gravados em som
direto, isto é, ao mesmo tempo em que a imagem: em perfeita sincronia.
Tentar “reconstruir” essa sincronia num estúdio e em italiano seria
não só absurdo e enganoso, como necessitaria de semanas, quiçá meses
de trabalho, e resultaria, sem dúvidas, em muitos casos, impossível.
E quem me garante que esse trabalho todo irá ao ar?
Faz quase dois anos que nós trabalhamos durante algumas semanas
na dublagem para o italiano da banda de narração de meu filme Crônica de
2. Cidades provincianas argentinas. [N.T.]
3. Aleksandr Nevskiy (Sergei M. Eisenstein, 1938). [N.T]
4. Jogo de palavras com sorprender e prender — surpreender e prender, respectivamente. [N.T.]
Othon contra a dublagem 30

Anna Magdalena Bach (aceitei fazer esta dublagem para a TV e o público


italianos porque era possível, já que se tratava de um comentário falado
paralelamente à imagem), e esse filme ainda hoje não foi transmitido!
Proponho, portanto, apresentar na televisão em agosto uma versão
de Os olhos não querem… legendada em italiano (que, por sua vez, será
exibida no Festival de Veneza); se a televisão recusar essa versão legenda-
da, prefiro renunciar aos quinze milhões da participação da Rai no filme5.
Como Giuseppe Bertolucci, “espero o tempo de novos hábitos”; creia
em meus melhores sentimentos.

Jean Marie-Straub

P.S. (1): “A atividade artística é a que menos se presta à igualização mecâ-


nica, à nivelação, ao domínio da maioria sobre a minoria” (Lênin)

P.S. (2): “Nossos companheiros não devem crer que algo que eles não
entendem é absolutamente incompreensível também para as massas.”
(Mao Tsé-Tung)

5.O filme, comprado pela Rai, jamais foi ao ar [nota de Manuel Asín na edição espanhola].
31

Apresentação de Othon1
verão e outono de 1970

1
Othon: tragédia de Pierre Corneille, apresentada pela primeira vez na
corte, em Fontainebleau, em 3 de agosto de 1664. Nos séculos seguintes,
Othon teve pouca sorte. Entre 1682 e 1708, foi apresentada 30 vezes na
Comédie Française, e a partir de então nunca mais.
Corneille apreciava muito esta tragédia: “Se meus amigos não me en-
ganam, esta tragédia iguala ou supera as minhas melhores obras. Muitas
opiniões ilustres e sólidas foram declaradas a seu favor; e se ouso unir
a minha a elas, direi que encontrarão certa precisão na conduta e um
pouco de sensatez no raciocínio. Quanto aos versos, não se viu antes
versos meus nos quais eu tivesse trabalhado com mais esmero. O argu-
mento foi tomado do historiador latino Tácito, que inicia suas Histórias2
com esta; e ainda não levei ao palco nenhuma história na qual tenha sido
mais fiel e emprestado maior invenção…”
Othon tem grandes virtudes, mas é essencialmente um homem da
corte, e, sob Nero, teve que submeter-se a ele e seguir seus vícios. Uma vez
livre, pôde seguir livremente seu próprio caráter. Na tragédia de Corneille,
ele é muito apaixonado por Plautine; na História, havia prometido ao pai da
menina, o Cônsul Vinius, que se casaria com ela se conseguisse que Galba
o elegesse como seu sucessor; e como se viu, o imperador sem sua obra…
“Não quis ir mais longe do que a história; e posso dizer que ainda não
se viu uma tragédia na qual se proponham tantos matrimônios sem que
nenhum deles seja concretizado. São intrigas de salão que se destroem
reciprocamente”, diz Corneille.

1. Publicação original: “Presentazione di Othon”, Cinema & Film, números 11–12, verão-outono


de 1970. A presente versão parte da tradução espanhola publicada em Manuel Asín (ed.). Jean-
Marie Straub y Danièle Huillet — Escritos. Intermedio, fevereiro de 2011. Traduzido do espanhol
por Calac Nogueira.
2. Livro do historiador romano Públio Cornélio Tácito (55–120 D.C. aproximadamente), que
narra a sucessão de imperadores romanos a partir da queda de Nero.
Apresentação de Othon 32

Para os intrigantes Lacus, Vinius e Martian (“Nenhum bem é público


se ele resulta para nós funesto… Não vivamos senão para nós, e não pen-
semos senão em nós”), o ideal de soberano é precisamente o velho impe-
rador Galba: “Veja… Que poder nos deixa, em que situação nos colocou
com sua fraqueza, nossas ordens regulam a tudo, nós damos, retiramos.
Nada é executado desde que o impeçamos: como é preciso que por um
de nós tudo seja obtido, vemos a nossa corte maior do que a sua.” Dessa
classe seria o imperador que Lacus e Martian preferem: Pison. “Pison tem
a alma simples e o espírito abatido. Se é bem nascido, tem pouca virtude;
não dessa virtude que detesta o crime. Sua honradez é digna de que o
apreciemos, ela possui tudo o que faz um grande homem de bem; mas
num soberano, é pouca coisa, ou nada.”
Devemos à criação de Corneille a personagem de Camila, neta de
Galba, uma personagem verdadeiramente épica (no sentido brechtiano):
“Talvez um dia Roma se permita fazer sua escolha”.

2
Inniga, de Machorka-Muff, era o amour fou prostituído, Johanna, de Não
reconciliados, era o amour fou sacrificado. Anna Magdalena Bach era o
amour fou interrompido pela morte, Lilith, de O noivo, a atriz e o cafetão,
o amor fou rebelde e utópico. Camila é o amour fou rechaçado e que grita
nas ruínas (“talvez um dia Roma se permita”).
Inniga, Johanna e Anna Magdalena eram a Alemanha; Lilith é o tercei-
ro-mundo, e Camila, o nosso planeta.
33

Como “corrigir” a nostalgia1


(a propósito de Cedo demais, tarde demais)
6 de junho de 1981
(com o filme já rodado, mas ainda não montado)

Caro Andi, você me pede uma página onde declarássemos qual foi a
nossa “intenção” ao fazer este filme, ou o que queríamos “exprimir” com
ele. Foi sempre difícil para nós, como você sabe, dizer algo parecido
sobre todos os nossos filmes, e quase sempre recusamos fazê-lo. No
caso deste filme (Cedo demais, tarde demais), porém, a impossibilidade
é ainda maior, pois até agora não existe um filme nosso em que tudo
seja tão “aberto”, tão livre, a fim de que os próprios espectadores (e
nós dois como os primeiros espectadores) estabeleçam relações, nexos,
“conexões” e aprendam a decifrar, ligar, “interpretar” a realidade, ou me-
lhor, as realidades! Além disso, não se trata de uma “ficção”, mas do que
se chama de “documentário”, embora esta forma de documentar seja,
creio, nova (mas com antecedentes: por exemplo, A saída dos operá-
rios das fábricas Lumière2), — nenhuma narrativa “coercitiva”, nenhum
intérprete — narram-se lutas, revoltas, fracassos, derrotas, atrasos ou
antecipações, estatísticas, mostra-se história, topografia, geografia,
geologia, luz, luzes, ventos e nuvens, terra (transformada e cultivada
pelos homens), traços — apagados ou ainda visíveis — e céu (muito céu);
procura-se encontrar o ponto de vista justo (o mais justo), a altura justa,
a proporção justa entre o céu e a terra, na maneira em que se podem
fazer panorâmicas, sem ter de modificar a linha do horizonte, mesmo
de 360 graus.
São mostrados muitos teatros da opressão, da rebelião, escutam-se
os rumores do presente, narra-se a história das classes sociais da França
1.Carta (escrita originalmente em alemão) a um amigo distribuidor (Andi Engel, do “Artificial
Eye”, Londres), que facilitou a compra de Cedo demais, tarde demais pela ARD (Televisão alemã,
primeiro canal). Publicada originalmente numa tradução italiana da própria Danièle Huillet, sob
o título “Como corrigere la nostalgia”, em Filmcritica, n.322 (fevereiro-março de 1982, pp. 71–72),
com base na qual foi feita a presente tradução em português. Traduzido do italiano por José
Eduardo Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva.
2. La sortie des Usines Lumière (1895), de Louis Lumière. [N.T.]
Como “corrigir” a nostalgia 34

nos primeiros meses de 1789 através de um texto de Friedrich Engels


e de uma voz de mulher (a minha! — em alemão, em inglês, em italiano
com sotaque francês, a fim de que exista uma ligação com as paisagens
e os nomes) e, em seguida, pela voz de um homem com sotaque árabe, a
história das lutas camponesas no Egito e da libertação do jugo dos colo-
nizadores ocidentais, mas não da opressão das classes no próprio país.
Diferenças entre tempo histórico e tempo “eterno” (!), aquilo que
é igual, aquilo que é completamente diferente, onde o espaço se torna
tempo (o que pertence à História, mas também é a “essência” da cine-
matografia), até onde se possa proceder na análise com instrumentos
de precisão como a câmera ou o Nagra, que nunca são suficientemente
precisos, embora sejam muito mais precisos do que os nossos sentidos:
também isso deve ser de alguma maneira “expresso” neste filme…
Além disso, posso lhe contar a história de sua gênese: muitos anos
atrás (após, creio eu, a Introdução a “Música de acompanhamento para
uma cena de filme” de Arnold Schönberg, portanto em 1972), Werner
Dütsch nos perguntou se queríamos filmar para o seu programa de tele-
visão um filme composto somente de “imagens fixas”. Jean-Marie respon-
deu que, em primeiro lugar, um filme como esse já existia (La Jettée, de
Chris Marker) e, em segundo lugar, ele no fundo odiava a fotografia…
Depois filmou Moisés e Arão, em que se opera a descoberta da geolo-
gia mesclada à História humana na grande panorâmica da primeira cena
(“Vocação de Moisés”) e a descoberta do Egito e das suas paisagens nas
duas últimas panorâmicas do primeiro ato — e também durante a viagem
de documentação que fizemos em 1972. Um dia naqueles anos Jean-Marie
leu o posfácio ao livro de Mahmoud Hussein (na realidade, dois autores
que no governo de Nasser foram presos num campo de concentração
e agora vivem e trabalham em Paris), Luttes sociales en Egypte3, e ficou
impressionado… Nasceu, então, a ideia de voltar ao Egito para filmar algo
sobre e no Egito.
Anistiado, Straub pôde voltar para a França — e descobriu, graças ao
exílio, à sua estadia na Itália (na Alemanha aprende-se a luta de classes,
na Itália aprende-se a ver) e no Egito (isto é, África e uma cultura ainda
camponesa), o próprio país. Depois Straschek nos presenteou com a cor-
respondência de Marx e Engels e eu li, certa vez, essa carta de Engels a
3. Mahmoud Hussein, La lutte de classes en Égypte de 1945 à 1968. Paris: F. Maspero, 1969. A
segunda edição trouxe o título La lutte de classes en Egypte (1945 — 1970). Paris, F. Maspero,
1971. [N.T.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 35

Kautsky, que agradou muito a Straub — era também uma forma de “corri-
gir” a nostalgia e ligar-se a Paris e ao país.
Depois filmamos Fortini/cani (1976), que contém o esboço deste Cedo
demais, tarde demais: a longa sequência nos Alpes Apuanos e em Marza-
botto (resistência e massacre). Depois, com um pouco de trabalho, tudo
se combinou, reuniu e estruturou — assim como é agora…

Cordiais saudações, do Straub também.


Danièle Huillet
36

Um atentado contra a reprodutibilidade da obra de arte1


20 de agosto de 1987

Nós devemos aos hamburgueses (e particularmente à Gisela Stelly, que


batalhou pelo projeto como uma leoa astuta) uma participação financeira
decisiva. Aos hamburgueses (isto é, à Alemanha Ocidental!), demos o
melhor presente de que éramos capazes: um negativo original (terceira
versão) de nosso filme inspirado no poema trágico A morte de Empédocles,
de Friedrich Hölderlin, que estreou (primeira versão) no Festival de
Berlim e no cinema Metrópolis de Hamburgo.
Esse negativo, montado no laboratório romano Luciano Vittori (que
conserva os 6.500 metros de negativo Eastmancolor 35 mm expostos
e revelados para o filme), nós o levamos de Roma a Hamburgo, para o
laboratório Greyer-Werke, onde ele foi, sob vigilância do Senhor Noack,
finalizado pela Senhora Heinrich, e onde ele se encontra depositado a
partir de agora.
Assim como a primeira e a segunda, a terceira versão do filme consis-
te em 147 planos que se sucedem na mesma ordem e são igualmente re-
partidos em 7 bobinas. Os planos — blocos inseparáveis de imagem e som
não intercambiáveis — são os mesmos nas três versões, mas consistem a
cada vez em tomadas (takes) diferentes, outras, desses planos: mais ou
menos ensolaradas, mais ou menos ventosas. Essas tomadas foram — em
seu início e em seu final — montadas de forma mais ou menos ajustada, de
acordo com o que ocorria, ou não ocorria, no início e no final da tomada,
com os atores ou com seu entorno — na imagem e em torno da imagem,
no som: tensão, descontração, suspiro, olhar, movimento, movimento do
vento, mudança de luz, borboletas, gorjeios de pássaros, grasnadas de
corvo, sopros de vento… próximos ou distantes.
A diferença de comprimento entre uma bobina de uma versão e a bo-
bina correspondente de uma outra versão atinge até 13m. O comprimento
total de cada versão não é, contudo, tão diferente: 3629m, 3618m, 3601m.

1. Publicado, em sua versão original em francês, na revista Filmcritica, em agosto de 1987.


Traduzido do francês por Ana Siqueira.
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 37

A mais curta é (por acaso) a versão de Hamburgo. Ela é também — por


acaso — a mais contrastada, a que possui mais mudanças de luz, mas a
menos ensolarada, a mais forte em cores — a mais sombria, também nos
sentimentos, e talvez a mais dura. Ela consiste — com algumas exceções
nas últimas claquetes, como, por exemplo, no plano 145 — em tomadas
(takes) que quase não ultrapassam a 13ª: o valor médio da nossa colheita
siciliana. A primeira e a segunda versão, em compensação, consistem em
tomadas que chegam à 36ª: quase sempre as últimas ou as penúltimas (ou
as penúltimas ou as últimas!) tomadas da nossa colheita siciliana.
Nós montamos a versão de Hamburgo no Filmhaus da Friedensallee,
na mesa Steenbeck de Gisela Stelly, em março de 1987, durante um se-
minário com cerca de 17 estudantes vindos de Viena, Münster, Bielefeld,
Berlim, Munique e Hamburgo. Quanto à primeira e à segunda versão, nós
as montamos sozinhos, uma logo após a outra, no fim do verão e no ou-
tono de 1986, em Roma. O negativo da primeira versão (a berlinense) foi
finalizado no laboratório Luciano Vittori, em Roma, onde está guarda-
do. Quanto ao negativo da segunda versão, nós o levamos — ao invés de,
como é praxe, entregar ao coprodutor francês uma cópia intermediária
da primeira versão — para Paris e lá ele foi finalizado no L.T.C. de Saint
Cloud, onde se encontra guardado. Cópias dessa segunda versão já foram,
ou ainda serão, legendadas em francês, inglês e italiano.
A primeira versão (a berlinense) ficou conhecida, inclusive no exte-
rior, como a do lagarto, pois nessa versão — enquanto Empédocles despe-
de-se de seus três escravos — um lagarto entra em quadro e o atravessa,
subindo dois degraus, em direção à esquerda. Agora podemos nomear a
terceira versão (a hamburguesa) de versão do galo, pois aqui — durante
as palavras de Empédocles “Tua é a culpa, pobre Tântalo / Profanaste o
sagrado, rompeste/ A bela união com orgulho insolente, / Mísero!” ouvi-
mos ao longe um galo cantar.
Temos muito orgulho, com essas três versões do nosso filme (e tal-
vez uma quarta — última! — que já selecionamos), de ter cometido um
atentado contra a reprodutibilidade da obra de arte na era da técnica,
mas — também — um atentado contra a unidade da obra de arte.
Mixamos as três versões existentes com nosso mais antigo cúmpli-
ce, único engenheiro de som sobrevivente, Louis Hochet, no laboratório
Éclair, em Épinay-sur-Seine, onde também foi feita a transcrição óptica,
por três vezes, e onde os negativos foram revelados. Devemos as quatro
versões ao tempo instável, extraordinariamente inconstante durante a
Um atentado contra a reprodutibilidade da obra de arte 38

filmagem até o dia 18 de julho na ilha — e… à preparação aprofundada


durante um ano e meio de nossos atores e à paciência.
A escritura dos créditos de início e de fim é a mesma para cada versão,
mas uma vez está alinhada à esquerda (versão de Berlim); uma outra, à
direita (versão de Hamburgo); ou centrada — em alemão na quarta versão
(eventual), em francês na versão de Paris.
Diferença entre as cópias: no Geyer, em Hamburgo, a cópia foi feita
por imersão; e no L.T.C., em Saint Cloud, e no Vittori, em Roma, a cópia
foi feita por contato.
Quanto à finalização e escolha de cores, não tentamos chegar ao
menor denominador comum, e sim atingir um compromisso entre a luz
siciliana e, a cada vez, os hábitos de trabalho e o que chamamos de gosto,
em Roma, na França e na Alemanha.
39

Concepção de um filme1
11 de março de 1988

Jean-Marie Straub: Trata-se de explicar um pouco como filmamos, por


exemplo, A morte de Empédocles2. Eis, então, o problema: há uma cena
na qual cinco personagens vêm à casa de um homem do qual se falou
longamente antes. Ele está lá, num buraco preto, e é o inimigo público…
ou Tartufo, não sei… e aparecerá mais tarde. Falou-se muito dele: duas
mulheres falaram e dois homens falaram, num caminho externo. Esses
dois grupos, a cada vez, sucessivamente, perscrutaram um ponto escuro,
onde, segundo diziam, está a fonte, lá no escuro, lá há um homem que ten-
tou introduzir a festa permanente e é um perigo, ou melhor, é um homem
sublime. Em seguida, chegam cinco personagens: dois representantes
diretos do poder (o poder civil e o poder religioso) e três representantes
da burguesia, dos cidadãos, três deputados. A ideia abstrata era que eles
criassem uma espécie de arco de circunferência. Assim, antes de desco-
brir os lugares, sobre o papel, um ano e meio antes, eu imaginara um arco
de circunferência. No filme, ficou assim:

Há, então, um ali,


há um ali,
eles estarão mais próximos
que os outros três,
que estarão aqui.
Ali há um espaço
um pouco maior;
esses três à direita
formam um grupo.
O homem a banir, a maldizer

1. Transcrição de conferência sobre a filmagem de uma sequência de A morte de Empédocles, rea-


lizada por Jean-Marie Straub e Danièle Huillet na Fémis, em 11 de março de 1988, publicada como
“Conception d’un film, em Confrontations, (Fémis, 1990). Traduzido do francês por Paloma Vidal.
2. A morte de Empédocles ou Quando a terra voltar a brilhar verde para ti (Der Tod des Empedokles
oder Wenn dann der Erde grün Von neuem euch erglänzt, 1986)
Concepção de um filme 40

(Empédocles), encontra-se ali.


Ao seu lado, há
um jovem rapaz, que se chama
Pausânias.
Antes, esses dois
estavam sentados num banco,
que se encontrará… ali…
Estavam sentados ali, e
atrás do banco há uma parede.

Assim, em primeiro lugar, era preciso achar o lugar. Percorremos cinco


mil quilômetros e acabamos encontrando. Acontece que é um espaço
aberto, uma espécie de clareira:

Ali há dois velhos pinheiros muito,


muito velhos, quase caídos.
Ali há uma vegetação rasteira;
atrás, há um caminho que faz isso.
Ali há uma porta na parede, pela
qual Pausânias chegou.
Ali há um outro caminho,
que se divide assim.
Tudo isso é uma espécie de clareira.
Acontece que ali, por acaso,
sem ter sido previsto ou desejado,
há umas colunas quebradas,
bases de colunas, muito irregulares.
(Não sei o que são, não são colunas gregas).

Esses dois aqui estavam sentados (retornaremos à cena em que eles esta-
vam sentados). Aquele (Empédocles) levantou-se primeiro e disse: “Nein!
Ich sollt es night aussprechen” (“não, eu não devia formular isso”); “Hei-
lige Natur, verachtet had ich dich” (“natureza sagrada, eu te desprezei”);
“und mich allein zum Hern gesezt” (“e eu, eu me coloquei como mestre”);
“ein übermüttiger Barbar!” (“um bárbaro orgulhoso… presunçoso”). Ele
fica lá, de pé, fazendo seu discurso, e corta a cabeça ao se levantar. O
jovem levanta-se em seguida, faz uma pequena reverência, assim, e diz:
“ja wohl”. E ele diz: “não, não, você é o único a ter descoberto as leis da
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 41

natureza, ninguém as conhece como você etc. É por isso que só você
pode pronunciar essas palavras imprudentes e considerar-se um deus”.
E de repente, o outro não o escuta mais e diz: “Siehe! Was ist das? Her-
mokrates der Priester” (“eis Hermócrates, o padre”, o segundo à direita);
“Kritias, das Archon” (“Crítias, o arconte”, o primeiro à esquerda) e “ein
Hauffe Volks” (“um bocado de gente”); “was suchen sie bei mir?” (“o que
eles querem comigo?”). Dizendo isso, dá um passo à frente, dois passos
e meio, assim, e fica ali. O jovem o segue e o vemos dar seus
passos na direção da câmera.

Eis a situação. A primeira regra do jogo que nos propusemos — que,


aliás, qualquer um que faz filmes deveria se propor, isso parece eviden-
te — é que:

o processo terá lugar entre


esse grupo aqui
e aquele grupo ali
(estes são os acusadores,
aqueles são os acusados). Há
uma linha de olhar que é
o olhar entre Empédocles e Crítias
(se tivéssemos filmado do outro lado,
teria sido a linha oposta,
entre Pausânias e o primeiro agrigentino).

Era evidente que aquela linha não deveria jamais ser ultrapassada com a
câmera. Isso porque, se a tivéssemos ultrapassado para filmar o que tal-
vez se passasse entre Empédocles e os três, teríamos problemas, já que
aqueles (os dois da esquerda) falavam às vezes em off, então estariam
falando de um lugar que não existia mais, de um espaço off, que não seria
mais respeitado, que não seria mais o espaço. O espaço ainda teria sido
respeitado no que diz respeito ao que se passava entre esse homem aqui
(Empédocles) e aquele lá (Hermócrates), mas a partir do momento em
que já estivéssemos do outro lado da linha do olhar, Empédocles olharia
para além da câmera (para a esquerda) e isso não interessava. Não ultra-
passar essa linha era uma regra do jogo.
Concepção de um filme 42

O resultado é que todo


aquele espaço é um espaço
que ninguém deveria pisar.
E também aquele espaço, porque,
veremos em seguida,
ele é igualmente mostrado por aqui.
Assim, isso não se vê nunca…
Não se vê nunca isso…
Tudo o que está ali atrás,
e ali atrás se vê.

A regra do jogo consistia em encontrar um ponto de vista para a cena


em questão (mas isso se complicará depois) que permitisse mostrar ao
mesmo tempo um só (Empédocles) ou um só daqueles ali. De fato, nessa
cena, diferentemente da cena no Etna, os cidadãos não estão nunca sepa-
rados; eles são sempre mostrados como um grupo de três.
Tratava-se, então, de poder filmar:

um e um

um um

dois ou dois

três

ou os cinco

Era necessário, então, encontrar uma posição que permitisse filmar essas
relações processuais, entre acusados e acusadores, de um ponto de vista
que se situasse nessa região, abaixo dessa linha de olhar, sem jamais ir
além. Então procuramos. Acontece que encontramos esse ponto quase
sobre a linha em questão, só um pouquinho mais perto dos dois do que
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 43

dos cinco. Assim, desse ponto de vista da câmera, filmamos Empédocles


sozinho, filmamos Pausânias sozinho, filmamos os cinco, filmamos os
dois, filmamos um e filmamos um. Pronto. São oito tipos de plano.

Antes de manipular a câmera, o mais importante era encontrar na-


quele espaço:
1) o número de passos certos para se separar do banco quando a
cena oscila e os acusadores chegam; se eram necessários três ou quatro
ou apenas um e meio ou dois, também de acordo com a frase que ele diria
(“quem são essas pessoas que vêm me chatear?”). Isso determinava a
posição de Empédocles;
2) a distância dos cinco em relação às colunas;
3) todos os acidentes do terreno onde esse homem (Hermócrates,
que, afinal de contas, tem apenas vinte e quatro anos, estaria de pé, e
onde aquele que estivesse ao seu lado tivesse uma distância considerável
(teatralmente suficiente e ainda assim psicologicamente certa) para que
ambos pudessem se falar e se responder quando brigam, ou deixar isso
de lado; e ao mesmo tempo, quando os isolássemos, era preciso assegu-
rar que não houvesse o risco de que o manto de um entrasse no campo
ou o nariz do outro, etc.;
4) a distância entre o grupo de dois e o grupo de três (no interior do
grupo de cinco);
5) em seguida, a distância entre os cinco e os dois (Empédocles
e Pausânias).
Foi apenas depois de essas distâncias terem sido encontradas que
buscamos, sobre aquela superfície, a colocação da câmera. Uma vez
que isso havia sido feito, variamos apenas as objetivas, para toda a se-
Concepção de um filme 44

quência, para todo o processo, até o fim e a maldição. Para a sequência


seguinte, em que todas essas pessoas (os quatro da direita) saem e
sobra um. Falta ainda uma cena entre Crítias e o arconte e Empédocles
a sós — um dos momentos mais belos de teatro político jamais escritos,
mais belo até mesmo do que os gregos —, quando Crítias e Empédocles
ficam a sós, antes que Empédocles vá encontrar seus escravos para lhes
dar adeus.
Assim, inicialmente era necessário descobrir se estávamos um pouco
mais perto do grupo de cinco ou um pouco mais perto do grupo de dois.
Em seguida, de acordo com as objetivas, dizíamos: aqueles lá (os três ci-
dadãos), para isolá-los, deve funcionar com a objetiva 32. Para mostrar os
cinco seria a 25 ou a 18, não sabíamos, era preciso descobrir. Uma vez que
tínhamos dito “não, é melhor a 18”, era preciso descobrir se essa posição,
que funcionava para os cinco com a 18, valia também com uma outra
objetiva — o que era ainda um ponto de interrogação — para filmar os três;
e depois se ela ainda valia com uma outra objetiva — também um ponto
de interrogação — para filmar os dois; e em seguida com uma outra objeti-
va para filmar um e o outro. E depois, estando lá, se isso ainda valia para
Empédocles sozinho, para Pausânias sozinho ou os dois. Então é preciso
procurar um pouco… Temos os atores e os fazemos entrar normalmente
como em uma cena de teatro. Eles entram enquanto Empédocles faz seu
discurso. Entram realmente, em off, não os vemos se posicionar, mas eles
se posicionam. Depois, quando havíamos fixado teatralmente e psicologi-
camente sua posição no espaço, eles entram. A câmera ainda não existe,
mas nós olhamos.
Em seguida, encontramos um primeiro ponto e o retificamos até que,
no final de vinte pontos sobre essa superfície, encontramos o ponto que
convém a todas as condições e que será conveniente também depois,
quando Crítias e Empédocles ficarem a sós.
Mas o interessante é que, antes, havia uma cena na qual eles estavam
sentados sobre o banco e, ainda antes dessa cena, havia a aparição do ini-
migo público, ou de Tartufo, não sei como chamá-lo… Empédocles. Então
aquele homem ali chegou

por um caminho, por lá,


e foi colocado mais ou menos ali
para onde ele volta deixando seu banco.
Ele aparece, ele diz “eu te saúdo”,
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 45

falando do novo dia; e o


plano seguinte é o topo das
árvores, esses pinhos enroscados
que a gente vê lá de cima. Além disso, há
ao lado dele uma faca, que ele vai pegar,
que está lá, enfiada na terra. E, há, ainda,
o jovem que aparecerá, que virá por ali e se colocará ali:
Pausânias.

Era preciso achar um ponto de vista que fosse conveniente à cena de


cinco e de dois e que conviesse igualmente… não era “preciso”, mas ten-
tamos porque, quando se joga xadrez, tenta-se jogar a fundo…
Então há esse homem que aparece ali e que dialoga com as árvores,
que em seguida pega a faca e do qual só veremos a mão com a faca, e
que depois verá o outro, que chegou enquanto ele maldizia a si mesmo
(o garoto se colocou ali e olha para ele). Nós veremos o garoto, é esse
o ponto de vista que valia igualmente para os cinco. Nós o buscamos
para a aparição de Empédocles, mas ele deveria servir igualmente para
a aparição de Pausânias e em seguida para a cena depois do banco, a se-
guinte. E isso valia para o homem em primeiro plano, que apareceu (nós
o vemos uma vez em primeiro plano), e para a copa das árvores (duas
vezes) - isso dá dois tipos de plano, então digamos ao todo nove (ainda
que seja no outro sentido, uma vez que esses estão na frente). Outro tipo
de plano: o homem sem cabeça com a faca e o chão à sua frente (isso dá
dez) (isso retornará duas vezes), as árvores (isso dá onze) (e retornará
duas vezes também) e, por último, a mão que segura a faca… e, enfim,
treze, a aparição do jovem.
Temos treze planos do mesmo ponto de vista. Aqui a coisa se torna
interessante, porque, se um plano como esse dos cinco retorna apenas
duas vezes, ainda assim isso já faz uma série. Se há alguns, lá, entre Crítias
e Empédocles, que retornam talvez dez vezes, isso faz uma outra série,
mais robusta. Se o plano dos três retorna quatro vezes, ou três, eu já não
me lembro, é igualmente uma outra série, um pouco mais restrita, mas
ainda assim uma série. Se o plano dos dois retorna três vezes, é igualmen-
te uma outra série, etc. Então isso faz séries.
Em seguida, quando fixamos isso, era preciso ainda saber a que al-
tura víamos essas pessoas. O princípio era exatamente o contrário de
Moisés e Arão em que estávamos sobre torres superpostas, uma torre
Concepção de um filme 46

sobre a outra, chegávamos a estar a dez metros do chão talvez, ou talvez


deitados no chão para ter o olho na borda do foco da câmera. Aquele era
um filme em que tudo era filmado a uma altura que era preservada, o que
o outro chamou de “altura do homem”. Era mais ou menos a altura dos
meus olhos ou a do operador.
A partir daí, era preciso ainda decidir como cortar ou não cortar, por-
que variações se apresentavam. Quando vemos os cinco, vemos o chão
enorme diante deles. Quando, ao contrário, vemos os três, não vemos
mais seus pés, mas só as suas mãos: é o tipo de plano americano, porque,
a essa distância que convinha para esses treze tipos de plano diferen-
tes, todas as objetivas que utilizávamos para isolar os três (que eram
possíveis sem que os vizinhos da esquerda fossem apanhados) davam
algo que mostrava seus pés, mas um pouco apertado, e onde estavam
um pouco apertados acima da cabeça decidimos subir e não mostrar os
pés. E quando aparecem os dois (Crítias e Hermócrates) há ainda menos
pés, etc. Já quando vemos os cinco, há muito espaço, de modo que há aí
uma contradição suplementar, porque quando os isolamos em grupos ou
singularmente, há cada vez mais ar por cima de suas cabeças e o chão
está cada vez mais longe. Ao contrário, para eles dois (Empédocles e
Pausânias), havia um problema: eu me perguntei se eu faria dessa parede
um pouco como reminiscências que a gente tem de certos filmes japone-
ses (de muitos filmes japoneses, não apenas Mizoguchi), em que, quando
aparece a parede do parque de um palácio, vemos ar em cima do muro,
um pouco de céu… Vemos que é uma parede que não é muito alta. Assim,
era preciso, quando filmávamos esses dois desse ponto de vista, deci-
dir se queríamos o céu em cima da parede. Acabamos filmando o muro
exatamente assim: o enquadramento ao rés da parede, sem que jamais
vejamos o céu acima. A partir daí, estava dado o que veríamos de solo
diante deles (ou não), porque a escolha vinha dessa decisão. E acontece
que nesse momento eles têm bastante ar acima das suas cabeças, e não
vemos nunca seus pés.
Entre essas duas cenas há, ainda, a cena do banco: Empédocles foi
filmado de lá ao aparecer, assim como Pausânias, e os dois vão se sentar
(Pausânias primeiro). E uma vez que eles estão sentados, há uma outra
pequena regra a respeitar, pois eu não queria

ultrapassar essa linha,


que era a linha do seu olhar
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 47

anterior, quando o garoto aparecera


e o outro olhava para ele.
Outro princípio era o de que
filmávamos o banco exatamente no centro
e buscamos um ponto por aqui,
poderia ter sido lá… lá… lá… lá…
E acabou sendo mais ou menos ali.

E dali filmamos: o banco vazio, Empédocles que se senta e pousa a faca ao


seu lado, Empédocles sentado a sós, porque o garoto demora um pouco a
se sentar, depois Empédocles com o garoto sentado ao seu lado (nunca o
garoto sozinho, a não ser no momento em que ele se levanta). Em seguida,
quando ele diz “Siehe! Was ist das”, a câmera, que estava ali (cf. o desenho
acima), dá um salto até a posição anterior, que era a aparição de Empé-
docles. Ela recua violentamente por ali, coloca-se de novo na posição
número um para depois filmar o processo.
Pronto.
É verdade que desse modo não controlamos a profundeza do campo,
mas é isso que é interessante Porque nesse momento sabemos de que
ponto de vista filmamos e sabemos que, dependendo da objetiva, se o
fundo se torna desfocado quando nos aproximamos de alguém é porque
demos um enorme salto espacial para isolá-lo e a falta de foco mostra
isso. Além do mais, jamais teríamos adotado esse sistema, se é que há um
sistema, em um filme rodado em estúdio, onde haveria iluminação.

Danièlle Huillet: Ozu faz isso.

JMS: Sim… bem… Ozu faz isso… Esses planos, em que isolamos Crítias
e Empédocles, por exemplo, ou Hermócrates e Empédocles, são frequen-
temente planos com 75 ou até mesmo com 100, que são objetivas prati-
camente nunca utilizadas nos filmes anteriores. Ao contrário, no Kafka
(Relações de classes), utilizamos a 16, que nunca havíamos utilizado nos
outros filmes. Ali, ao ar livre, num filme rodado de dia sob o sol siciliano,
mesmo quando a luz estava muito variável e voluntariosa, as partes fora
de foco, mesmo com a 100, não me incomodavam fotograficamente: não
destruíam o que víamos atrás das pessoas. Então já era isso; no entanto,
para nós era como se as pessoas já estivessem desfocadas, sem que a re-
Concepção de um filme 48

alidade nebulosa se perdesse completamente na falta de foco.3 Não estou


dizendo que seria necessário fazer isso em estúdio, com iluminação ou
no breu total ou para uma sequência rodada à noite, porque ali o espaço…
não sei… Até hoje eu não o teria feito a não ser por isso, não por outra
razão. Por outro lado, divertimo-nos, antes, rodando um filme de 27 minu-
tos inteiramente com 18, a não ser por dois planos no final, e então a pro-
fundidade de campo era total e o tempo todo (O noivo, a atriz e o cafetão).
Ali nós mudamos, tentamos nos divertir de outro jeito a cada
filme, mas em função do assunto e do que temos vontade de fazer.
Em Não reconciliados, não tolerei nada fora de foco, nem mesmo
num primeiro plano. Então nos aproximávamos, e frequentemente
há primeiros planos com 18, para evitar qualquer aparição de algo fora de
foco. Mas ali, se pela primeira vez aceitamos ter momentos desfocados
(relativos, dado o sol e a luz do dia), foi porque estávamos de acordo em
fazê-los funcionar. Não estou dizendo que seja preciso aplicar isso como
regra; estas correspondem a um filme, só isso.
Evidentemente, essa imobilidade das personagens foi decidida antes
dessa espécie de cozimento com a câmera. Quando alguém se mexe ou
sai de um campo, ou levanta ou abaixa o nariz, isso foi decidido numa sala,
debruçados sobre um texto, com as situações. Inicialmente, a persona-
gem singular, a sós conosco, depois com aquele a quem ela respondia ou
não no texto. E até mesmo na sala ensaiamos com distâncias que não cor-
respondiam às distâncias reais; mas todos os movimentos, quando havia
movimentos, importantes ou pouco importantes, mínimos ou mais vio-
lentos, não tinham nada a ver com o sistema, o que não impede de modo
algum que os personagens se mexam: se alguém se move, escolhemos o
quadro em função disso. Não há tantas soluções assim no cinema; alguém
se desloca: ou bem o seguimos ou bem escolhemos um enquadramento
vasto o suficiente para que ele possa se deslocar, correr trinta metros ou
se jogar no chão sem segui-lo. Nesse caso, escolhemos a objetiva… No
plano com 18, se os cinco se deslocassem, poderiam muito bem se deslo-
car no espaço imenso que estava a sua frente. Enquanto, pelo contrário,
quando as personagens estavam isoladas, é porque sabíamos que não
deveriam se deslocar, ou então não teríamos escolhido essa objetiva e
não as teríamos isolado desse modo com relação a um grupo. Teríamos

3. Jogo de palavras com o termo flou, usado para designar tanto a ausência de foco quanto o
caráter nebuloso da realidade. [N.E.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 49

filmado, em vez disso, aquela ou aquelas que se deslocavam com, por


exemplo, a objetiva 18. O sistema em si não impedia esses deslocamentos.

DH: A prova é que na cena das duas mulheres no final do primeiro


ato, uma vem e se joga nos joelhos da outra, o que de qualquer
modo é um certo tipo de deslocamento…

JMS: Num processo, ou bem as pessoas gesticulam e pulam ou bem há


uma espécie de celebração teatral, ou litúrgica, ou sei lá o quê que faz de
um processo algo extremamente posado e estatuário.
Então esse dispositivo foi fixado justamente depois de termos fixado
o movimento… ou, melhor dizendo, descoberto, porque o movimento
não pode ser fixado, ele é descoberto. Ele diz o seu texto, inicialmente
durante várias semanas, antes mesmo de levantar a bunda da cadeira. De-
pois dizemos a ele: agora vamos tentar isso de pé. Em seguida, de repente
ele olha para o vazio e a gente diz: “Mas isso não vale nada, por quê?”. Ou
então de repente ele levanta os olhos e a gente diz: “Mas isso funciona”.
Depois tentamos trasladar isso para uma sílaba, uma letra, uma palavra
ou o fim ou o começo de uma frase. Isso aconteceu bem antes desse
cozimento espacial todo. Sabíamos que chegaríamos a essas distâncias,
porque, enquanto isso, durante os ensaios, buscávamos esses lugares,
então depois logo descobrimos esse lugar e já íamos sozinhos dar uma
de pesquisador e perguntar: “Se ele está lá, onde é que o outro poderia
estar? Será que não seria preciso que ele estivesse um pouco mais à fren-
te com relação às colunas, a essa vegetação de trás e com relação aos
acidentes do terreno? Etc.”. Então nos corrigíamos dizendo: “Eles não
podem se falar se o outro está assim, então é preciso um pouco mais de
distância”. E uma vez que isso tinha sido encontrado, dizíamos: “Agora os
três terão que dizer isso e aquilo”. Fixamos as distâncias, como se fosse
uma pesquisa de associação de moradores, antes de colocá-los no espa-
ço real. E eles tiveram que descobrir o espaço real no final dos ensaios,
quando todos os movimentos haviam sido descobertos num espaço que
frequentemente era exíguo com relação ao espaço real e que, de qualquer
modo, era quase sempre um espaço fechado, enquanto que todo o filme
é rodado a céu aberto. A imobilidade que pode ser ou não criticada no
filme não foi, então, fixada em função da câmera, nem mesmo do espaço.
50

Sobre David Wark Griffith1


4 de agosto de 1975

Ideologia e Estética
David Wark Griffith, flor da burguesia dos Estados do Sul (EUA).

Estética e Ideologia
Os filmes de Griffith contém tanto o cinema brechtiano (isto é, não Os
carrascos também morrem2 nem Kuhle Wampe3, mas Civil War4, ponto
culminante do trabalho de John Ford) quanto o cinema marxista (isto
é, Rua da Vergonha5, ponto final do trabalho de Kenji Mizoguchi), tanto o
trabalho de Eisenstein quanto o de Vertov.

Economia e Estética, Moral I


Griffith inventou também a indústria do cinema: esta o destruiu.

Ideologia, Economia e Estética, Moral II


Cada enquadramento de Griffith demonstra que o cinema italiano não
existe — nem no passado, nem no presente, nem, tampouco, no futuro.

1. Publicado originalmente em italiano, sem título, na abertura de um amplo dossiê da revis-


ta italiana Filmcritica (Ano 26, n.254–255, maio-junho de 1975) sobre “Griffith alla Biograph
(1908–1913) ”, p. 154. Tradução de Mateus Araújo Silva.
2. Hangmen also Die (Fritz Lang, 1943). Traduzido do italiano por Mateus de Araújo Silva. [N.T.]
3. Kuhle Wamp (Slatan Dudow, 1932). [N.T.]
4. Civil War (John Ford, 1962). [N.T.]
5. Rua da Vergonha (Kenji Mizoguchi, 1956). [N.T.]
51

Autofilmografia1
1999

1º projeto em novembro de 1954:


CHRONIK (1967)2

2º projeto em 58–59?:
MOSES UND ARON (1974)3

3º projeto entre 59 e 62:


NICHT VERSÖHNT (1965)4

4º projeto: MACHORKA-MUFF (1962)

Xº projeto (+ decupagem), maio-agosto de 1992:


SICILIA! (1998)

O resto?…is silent!

Cordialmente,
J.-M.

… e logo há três cinco coisas que provêm de encomendas:

1. DER BRÄUTIGAM, DIE KOMÖDIANTIN UND DER ZUHÄLTER5,


mas o comandatário (Alfred Eibel) não botou um tostão no
filme; sumiu antes da filmagem.
1. [Original sem título]. Manuscrito francês sem data publicado em Anne-Matrie Faux (ed.),
Conversations en archipel, 1999 e posteriormente incluído em Jean-Marie Straub y Danièle
Huillet — Escritos. Intermedio, fevereiro de 2011. Traduzido por Ernesto Gougain e Fernanda Taddei.
2. Crônica de Anna Magdalena Bach.
3. Moisés e Arão.
4. Não reconciliados ou Só a violência ajuda, onde a violência reina.
5. O noivo, a atriz e o cafetão.
Autofilmografia 52

2. EINLEITUNG ZU ARNOLD SCHOENBERGS “BEGLEITMUSIK ZU


EINER LICHTSOIELSCENE”6, filmada realizada durante e depois de
GESCHICHTTSUNTERRICHT7 (começada um ano antes; ensaios!).
Comanditário: o 3º canal de Baden-Baden (associado com Colônia, etc.)

3. ZU FRÜH / ZU SPÄT
TROP TÔT / TROP TARD
TROPPO PRESTO / TROPPO TARDI8 provocado por Werner Dütsch
(3º canal de Colônia), que sonhava com alguns filmes feitos, como
LA JETÉE, com fotografias fixas.
Sonho jamais realizado, exceto nosso filme, convertido em movimento.

4. Cézanne, 50’ / Paul Cézanne; 60’


diálogo / im Gespräch
com Joachim Gasquet / mit Joachim Gasquet

Comandatário: O Museu de Orsay, que pagou um terço do custo


do filme.

5. I / II / III / IV
Montagem em vídeo de uma hora aproximadamente em quatro
movimentos, realizado por Enrico Ghezzi, seu programa de
TV non-stop de fim de ano: “LA MAGNIFICA OSSESSIONE”.
Transmitido em 25 ou 26 (?) de dezembro ao meio-dia, depois de um
documentário de Pasolini na Africa e antes de IL MESSIA de Rossellini.

Que mais?!…
Beijos aos dois,
J.-M.

Os filmes, como a vida, são feitos de experiências e de encontros


fortuitos ou provocados, como o encontro com Heinrich Böll, com
quem Joseph Rovam, do MONDE, me colocou em contato a propósito
de CHRONIK.
6. Introdução a “Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema” de Arnold Schoenberg.
7. Lições de História.
8. Cedo demais, tarde demais.
53

Material de imprensa de
O retorno do filho pródigo — Humilhados1
2003

As mulheres de Messina
Em toda a Itália liberada, os sobreviventes da guerra de 1944 começaram
suas idas e vindas em busca de um passado ou de um futuro…
Cansados da errância, um grupo de homens e mulheres que perde-
ram tudo na tempestade decide se estabelecer num povoado em ruínas,
situado na montanha entre Modena e Bolonha. Eles se propõem a restau-
rar esses escombros e refazer sua vida, imitando as mulheres de Messi-
na, que, segundo Vittorini, reconstruíram sua cidade aniquilada por um
terremoto. Sua história se parece em todos os aspectos com a epopeia
do homem originário percorrendo a longa estrada que leva da natureza
à História.
Esse romance aparece pela primeira vez na Itália em 1949, mas sofre
importantes ajustes, e, na versão definitiva, publicada em 1964, encontra-
mos todos os temas do grande romancista morto em 1966.

Caro Jean-Marie, cara Danièle,


O texto é grandioso e o filme me alegra. (…)
Vocês se lembram da discussão entre Che Guevara (quando Ministro
da Indústria em Cuba) e os marxistas europeus? Tratava-se precisamente
de saber se o recurso à teoria do valor do trabalho no interior do socialis-
mo não agia também de maneira destrutiva. Em que relação se sustentam
entusiasmo (mobilização humana) e produtividade? Na produção não se
produzem apenas bens, mas o homem produz o homem, etc., etc. E natu-
ralmente a gente pensa também nas passagens nos manuscritos filosóficos
sobre o “comunismo bruto”. É fantástico que vocês desenterrem essa pá-
gina, essas páginas de Vittorini que na embriaguez do milagre econômico
naufragaram completamente. (…) A discussão que deve ser retomada e
1. Documento distribuído à ocasião do lançamento do filme O Retorno do fi lho pródigo —
Humilhados, composto pelos textos aqui publicados, um fotograma do filme e informações
técnicas. Traduzido do francês por Paloma Vidal.
Material de imprensa de O retorno do filho pródigo — Humilhados 54

que virá, quando toda a magia da new (and old) economy se esfumar.
Portanto, eu lhes agradeço e muito cordialmente lhes mando um abraço.

Peter Kammerer

Declaração de Elio Vittorini


Para mim é tão natural ser comunista quanto escrever, e é um mesmo
movimento.
Se eu aderi ao partido comunista sem conhecer Marx, de modo algum
cedi a um treinamento “afetivo”. Essa adesão exprime minha primeira
tomada de consciência do espetáculo da sociedade na qual vivia. Eu co-
nhecia bem essa enorme mentira.
Sem ter lido Marx, eu via a cada dia mais claramente que todos os
outros partidos estavam em um impasse. Todos se referiam a uma moral
anterior ao fascismo, a uma moral da qual havia justamente saído o fas-
cismo. Assim, todos conduziam finalmente de volta ao fascismo; no me-
lhor dos casos, à estagnação moral, à esterilidade. Eles tentavam curar as
feridas, tentavam curar ainda. Nunca atacaram a doença mesma. Era pos-
sível ver isso sem ter lido Marx. Apenas o partido comunista propunha
de modo visível uma nova moral, um comportamento novo dos homens
face aos homens e face às coisas.
Há em toda época histórica dada uma certa soma de meios possíveis,
uma certa provisão de meios, por assim dizer. Ora, em todas as épocas
da história, todos os meios dos quais ela dispunha de fato foram empre-
gados, seja qual fosse a moral professada pela própria época. Era essa
hipocrisia que Maquiavel já denunciava ao querer tornar o Príncipe cons-
ciente do que ele fazia. Hoje acabamos de descobrir meios novos: os da
energia atômica. Privamo-nos de empregá-los? Não. Digamos, então, que
todos os meios de que uma época dispõe são utilizados por essa época.
Mas o mundo capitalista é tal que esses meios são utilizados de um modo
absolutamente absurdo e hipócrita. São meios sem fim, um caos de meios.
Estamos numa época em que reina um fantasma de moral. Nesta
época, a bomba atômica fez mais vítimas do que a revolução de 1917. Só
a conservação dessa sociedade tal como ela é — ontem nas tentativas de
conservação fascista, hoje na tentativa de conservação americana —,é
muito mais cara em sangue, homens e liberdade do que o estabelecimen-
to de um mundo novo. Como hesitar?
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 55

A revolução comunista, como sobressai claramente da leitura mesmo


rápida de Marx, é propriamente a revolução individualista. Ela visa a ape-
nas abolir as diferenças mistificadas entre os homens. Na sociedade bur-
guesa, em que as diferenças entre os homens são apenas diferenças que
não dizem respeito aos homens mesmos, são justamente as verdadeiras
diferenças, as diferenças de qualidade, que não são mantidas. O comunis-
ta não quer construir uma alma coletiva. Ele quer realizar uma sociedade
em que as falsas diferenças sejam liquidadas; e, liquidadas essas falsas
diferenças, abrir todas suas possibilidades às diferenças verdadeiras.
Chega-se ao comunismo por amor à liberdade completa do homem,
pelo desejo de realizar o ideal do homem completo. O que Marx disse foi
que a liberação do indivíduo não pode ser feita pelo indivíduo sozinho.
Ele nos ensinou a necessidade do meio coletivo para a obtenção da liber-
dade individual. A sociedade sem classes não tem outro sentido senão
este: é na sociedade que o indivíduo poderá, enfim, confiar nas razões
de viver que terá encontrado para si. Na sociedade atual, a consciência
individual não pode se apoiar nos seus imperativos mais interiores: a fal-
sificação penetrou no mais profundo segredo das consciências. Eu diria
que o indivíduo da sociedade burguesa não pode se apoiar nem mesmo
nos seus desesperos.
Por que a cultura é “livre” na sociedade burguesa? Porque ela não
tem importância. O fascismo, quer dizer, a burguesia na sua essência,
dá-se conta de que a cultura, mesmo burguesa, pode ter importância. Ele
toma consciência do potencial revolucionário contido nela. Ele, então,
tenta destruir pela violência toda cultura.
O revolucionário, ao contrário, só pode se propor salvar a cultura na
sua totalidade, pois ela é a expressão da totalidade histórica, e, portanto,
da totalidade humana.
Que comunista será, como comunista, contra Picasso, contra
Schoenberg?
A “liberdade de criação” do mundo capitalista não é senão a expres-
são de seu desprezo em relação ao alcance profundo das criações do
espírito.
(Declaração recolhida por Jean Gratien e Edgar Morin para Les
Lettres Françaises nº 162 de sexta-feira, 27 de junho, 1947.)
Material de imprensa de O retorno do filho pródigo — Humilhados 56

Hölderlin e Marx
Marx partiu do aparente pessimismo de Hölderlin para afirmar sua
grande confiança. Tomando como ponto de partida uma posição quase
existencialista, uma filosofia quase desesperada, ele consegue desdobrar
sobre toda a terra uma bandeira onde se lê “Emancipação do homem”.
Isso sem nunca renegar o pessimismo de Hölderlin e quiçá integrando-o à
sua visão como um tônico indispensável que todos deveriam beber, uma
cicuta às avessas.

Elio Vittorini
Setembro de 1946
57

Material de imprensa de Esses encontros com eles1


2003

Vinte e sete anos depois de Da nuvem à resistência, com Esses encontros


com eles, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub elaboram de novo uma obra
a partir de Diálogos com Leucó, do escritor italiano Cesare Pavese.

Esses encontros com eles

Por quê? Porque:


O mito não é algo arbitrário, mas um viveiro de símbolos aos quais
pertence uma substância particular de significações que só ele poderia
fornecer. Quando repetimos um nome próprio, um gesto, um prodígio
místico, expressamos numa linha ou em algumas sílabas um fato sintético
e comprimido, um cerne de realidade que vivifica e alimenta todo um or-
ganismo de paixão, de condição humana, todo um complexo conceitual.
E, além disso, se esse nome, esse gesto, nos é familiar desde a infância,
desde a escola, ainda melhor. A inquietação é mais verdadeira e mais pene-
trante quando subverte uma matéria familiar. Sabemos que a maneira mais
certa — e mais rápida — de se surpreender é fitar imóvel sempre o mesmo
objeto. Um belo dia teremos a impressão — milagre — de nunca tê-lo visto.
“Você olhava a oliveira, a oliveira na trilha que percorreu
todos os dias durante anos e chega o dia
Em que o tédio o abandona.
E você acaricia o velho tronco com o olhar,
Quase como se ele fosse um amigo reencontrado
que lhe dissesse exatamente
a única palavra
Que seu coração esperava.”

1. Documento distribuído à ocasião do lançamento do filme Esses encontros com eles, composto
pelos textos aqui publicados, um frame do filme e informações técnicas. Traduzido do francês
por Paloma Vidal.
Material de imprensa de Esses encontros com eles 58

Como? Com:
– atores (4 mulheres e 6 homens) que viveram um ano com seu
texto, domesticaram-no; tornaram-no sensível e sensual;
– Renato Berta, um velho amigo, desde Othon em Roma, em 1969, na
câmera;
– Jean-Pierre Duret, um bom cúmplice, que substituiu Louis Hochet
desde Sicília!.

Onde:
Em um lugar, o Monte Pisano, isolado entre o mar, Pisa e os Alpes Apuanos,
de modo que:

“Basta um nada e o campo se torna de novo o mesmo de quando


essas coisas aconteciam.”

“Basta uma colina, um cume, de um lado.


Que fosse um meio solitário e que seus olhos ao se erguer
descansassem sobre o céu.
O incrível relevo das coisas no ar
ainda hoje tocam o coração. Quanto a mim, acredito
que uma árvore, um rochedo se perfilando sobre o céu
foram deuses desde o começo.”

Danièle Huillet e Jean-Marie Straub

Cesare Pavese observa no seu diário: “O estoicismo é o suicídio. De resto,


as pessoas recomeçaram a morrer nos fronts. Se algum dia houver um
mundo pacífico, feliz, o que ele pensará dessas coisas? Talvez o que nós
pensamos dos canibais, dos sacrifícios astecas, da caça às bruxas”.
Última tentativa de contato humano: certa noite decide ouvir, só,
uma orquestra. Ele vai até a sala Gai, onde se dança. Entra com desenvol-
tura, ainda que não saiba dançar. Encontra uma moça, também sozinha,
jovem, bastante bonita; ele a olha, ela sorri para ele; eles saem juntos. No
dia seguinte, 16 de agosto, ele escreve: “Por que morrer? Os suicídios são
homicídios tímidos. Masoquismo ao invés de sadismo. Eu não tenho mais
nada a pedir.”. Em seguida, em 17 de agosto: “Faço o balanço do ano que
não terminarei. Basta um pouco de coragem”.
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 59

No mesmo dia ele escreve sua última carta a sua irmã, que se encon-
tra em Serralunga. Maria era muito religiosa:

Deus me deu grandes dons. No entanto, ele deu câncer a muitos,


a outros ele fez idiotas, outros ele fez cair bem jovens. Não se vê onde
está essa grande bondade. Eis aqui 5000 liras para o padre de
Castellazzo, para que ele continue a pregar sua lenga-lenga, esperemos
que ao menos ele acredite nela.
Comporte-se. Quanto a mim, eu me comporto tanto quanto um
peixe no gelo.

Cesare.

Sua irmã se apressa para ir a Turim. Ela o encontra extremamente magro,


com os olhos fundos, avermelhados. “O que você está fazendo?”, ela lhe
pergunta, “você não come?”. Nenhuma resposta, como de costume.
De dia, numa panela que ele colocou no meio de seu quarto, queima
cartas, escritos, documentos, fotografias. Dois dias se passam. Ele passa
as noites com as luzes todas acesas, mas não se queixa mais nem de
insônia nem de asma. Tornou-se estranhamente paciente, quase gentil.
Não escreve mais no seu diário, não lê mais. Telefona com frequência,
quase que diariamente, à jovem que conheceu no salão Gai. No sábado,
26 de agosto, pela manhã, pede à irmã que lhe prepare a mala que ele cos-
tuma levar em suas viagens. Maria não se espanta. Mais ou menos todos
os sábados ele saía de Turim com os Ruatta ou os Rubino. Nesse dia, ele
vai até a redação do L’Unità. Encontra Paolo Spriano, um de seus jovens
amigos, e lhe pergunta apenas se há uma foto dele nos arquivos do jornal.
Spriano lhe mostra várias. “Esta aqui está boa”, diz Pavese, indicando
aquela em que ele tem a aparência mais triste. Em seguida vai embora
sorridente. Nas primeiras horas da tarde, após ter colocado os Diálogos
com Leucó na mala, deixa a casa de Via Lamarmora, com um simples gesto
de saudação, como sempre. Toma o bonde em direção a Porta Nuova,
mas ao invés de ir até a estação, entra no Hotel de Roma.
Pede um quarto com telefone. Recebe um no terceiro andar. Recolhe-
-se ao quarto e começa a telefonar sem parar. (…)
Pavese telefona por último à jovem do salão Gai. Mas a resposta é
dura. A telefonista do hotel lembra: “Eu não vou porque você tem o gênio
ruim e me entedia”.
Material de imprensa de Esses encontros com eles 60

Pavese desliga o telefone. Não desce para jantar. Na noite de domin-


go, 27 de agosto, às oito e meia, um empregado, preocupado por não ter
visto o cliente por todo o dia, bate na porta, e em seguida decide forçá-la.
Quando a porta cede, um gato se desliza para dentro do quarto. Pave-
se está morto. Ele repousa, completamente vestido, sobre a cama. Havia
tirado apenas os sapatos. Sobre o criado mudo, havia as embalagens de
dezesseis cartelas de sonífero que ele tomou e um exemplar de Diálogos
com Leucó aberto na primeira página com essas palavras: “Eu perdoo a
todos e peço o perdão de todos. Está bem? Pouco falatório, por favor.”
(…) Na manhã de segunda, 28 de agosto, recebo um telegrama em Vin-
chio. Reconhecendo a letra de Pavese, tive certeza de que ele anunciava
o dia de sua chegada. Mas não tive tempo de ler a carta, pois vi sua foto
no jornal da manhã de segunda, com a notícia.

A carta que ele me enviou de Turim, datada do dia 25 de agosto à noite,


terminava assim:

Dado que estamos falando do meu amor pelos Alpes em Cabo Passe-
ro, te direi apenas que, como Cortez, eu queimei meus navios. Não
sei se eu encontrarei o tesouro de Montezuma, mas sei que sobre
o planalto de Tenochtitlan sacrifícios humanos são feitos. Eu não
pensava mais nessas coisas há muitos anos. Eu escrevia. Agora eu
não escrevo mais! Com a mesma obstinação, com a mesma vontade
estoica dos Langhe, farei minha viagem ao reino dos mortos. Se
você quer saber quem eu sou atualmente, releia “a fera selvagem”
em Diálogos com Leucó: como sempre, eu previ tudo há cinco anos.
Quanto menos você falar dessa história com “as pessoas” mais eu te
serei agradecido. Mas poderei ainda? Você sabe o que deverá fazer.
Adeus para sempre

Teu Cesare.

(excertos de Davide Lajolo, Cesare Pavese, “Le vice absurde”, traduzido do


Italiano [para o francês ] por Dominique Fernandez, Ed. Gallimard, 1963)
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 61

Cesare Pavese
Cesare Pavese nasceu nos Langhe (Piemonte), em 9 de setembro de 1908.
Estudou em Turim, defendendo uma tese sobre Walt Whitman e, por
volta de 1930, começou a escrever poemas. Ele viveu mais ou menos bem
ensinado e traduzindo escritores anglo-saxãos, colaborou com a revista
La Cultura e frequentou o meio turinense de intelectuais antifascistas.
Começou a trabalhar na editora Einaudi antes de ser enviado em rele-
gação à Calábria entre 1935 e 1937. Durante a guerra, escondeu-se nas
colinas piemontesas e em seguida deu continuidade às suas atividades
de editor, escritor e poeta. Pôs fim aos seus dias em Turim, no dia 26 de
agosto de 1950.
Sua obra foi inteiramente traduzida pelas Edições Gallimard: Avant
que le coq chante, Le Bel été, Le Métier de vivre (Journal), Dialogues avec
Leucò, La Lune et les feux precedido de La Plage, Le Camarade, Poésie (Tra-
vailler fatigue, La Mort viendra et elle aura tes yeux), Lettres (1924–1950),
Nuit de fête e autres récits seguido de Grand feu, Salut Massino, Littérature
et société seguido de Le Mythe.2

2. No Brasil temos publicados apenas Diálogos com Leucó (Cosac Naify, 2001), Trabalhar cansa
(Cosac Naify, 2009), e o já citado diário, Ofício de viver (Bertrand Brasil, 1994).
62

Três mensagens à 63ª Mostra de Veneza1


2006

1
Veio cedo demais para a nossa morte — e tarde demais na nossa vida.
De qualquer forma agradeço a Marco Müller2 por sua coragem. Mas
o que espero disso? Nada. Nada? Sim, uma pequena vingança. A vingan-
ça “contra as intrigas da Corte”, como dizem em A carruagem de ouro3.
Contra tantos rufiões.

Por que Pavese?

Porque ele escreveu:


“Não é Comunista quem quer. Somos muito ignorantes neste país.
É necessário comunistas que não sejam ignorantes, que não
corrompam o nome”4.

Ou ainda:
“Pois bem. Se antigamente bastava uma fogueira para fazer chover,
queimar nela um vagabundo para salvar a colheita; quantas casas
de patrões é necessário incendiar, quantos matar nas ruas e nas
praças antes que o mundo volte a ser justo e nós possamos dizer a
nossa palavra?”

1. Estas três mensagens de Straub foram lidas no Festival de Veneza de 2006, na coletiva de
imprensa do filme Quei loro incontri, por Giovanna Daddi, intérprete do quarto dos cinco últimos
Diálogos de Leucò (Cesare Pavese) que compõem o filme, e diretora com Dario Marconcini do
Teatro de Buti, que acolheu os Straub para seus quatro últimos espetáculos teatrais que acaba-
ram se tornando filmes. O Júri desse Festival atribuiu aos Straub um prêmio especial pela inova-
ção na linguagem. Este texto foi traduzido em francês pela revista Cinéma, n.12, outono de 2006,
pp. 204–5. Traduzido do italiano por José Eduardo Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva. [N.T.]
2. Diretor da Mostra de Veneza desde 2004. [N.T.]
3. Le Carrosse d’Or, 1953, de Jean Renoir. [N.T.]
4. Ao citá-la, Straub modifica ligeiramente essa passagem de La luna e i falò, de Cesare Pavese,
uma das fontes do filme Da nuvem à resistência (1978). Cf. Pavese, La luna e i falò, cap. IV.
Torino: Einaudi, 2000, p. 17. Na trad. brasileira de Liliana Laganá, A lua e as fogueiras (São Paulo:
Berlendis & Vertecchia, 2002), p. 33. [N.T.]
Escritos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 63

Pavese faz dizer ao bastardo: “Outro dia eu passei pela Mora. Não
existe mais o pinheiro do portão”. Nuto responde: “Nicoletto, o
administrador, mandou cortá-lo, aquele ignorante… Ele o fez
porque os mendigos paravam à sua sombra para pedir esmolas:
você entende?”5

Ainda Nuto, noutro lugar:


“Com a vida que leva, não posso chamar-lhe de estúpido.
[Se isso] servisse…
Seria preciso primeiro
que o governo
queimasse o dinheiro e aqueles que o defendem”6.

Saudações!
Jean-Marie Straub.

2
Estive:
1. Na Mostra de Veneza (como jornalista) em 1954; eu escolhi escre-
ver sobre três filmes:
O intendente Sansho, de Kenji Mizoguchi; O rio e a morte, de Luis
Buñuel; Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock7. Nenhum prêmio!
2. Na Mostra (seção de curtas-metragens) em 1963 com meu primei-
ro filme Machorka-Muff (1962). Nenhum prêmio.
3. Na Mostra de 1966 com Não Reconciliados (1965). Projeção paga
por Godard!
4. Na Mostra [de 1968] com Crônica de Anna Magdalena Bach!
5. Em Veneza para uma retrospectiva (em 1975?) (desejada por
Gambetti) de todos os nossos filmes até Moisés e Arão inclusive.
6. Na Mostra de Arte Cinematográfica [de 2006], com Esses encontros
com eles para um Leão rugidor.

5. C. Pavese, La luna e i falò, cap. XIII, ed. cit., p. 59 (e p. 83 da trad. bras. cit.). [N.T.]
6. Essa passagem de Pavese também era um pouco diferente. Cf. La luna e i falò, ed. cit., cap. XVI,
p. 75 (e trad. bras. cit., p. 96). [N.T.]
7. O intendente Sansho (Sansho dayu, 1954); O rio e a norte (El río y la muerte, 1955); Janela
indiscreta (Rear Window, 1954). [N.E.]
Três mensagens à 63ª Mostra de Veneza 64

3
Por outro lado, eu não poderia festejar em um festival onde existe tanta
polícia pública e privada à procura de um terrorista — o terrorista sou eu,
e lhes digo, parafraseando Franco Fortini: enquanto existir o capitalismo
imperialista americano, o número de terroristas no mundo nunca será
suficiente.
Entrevistas
66

Cinema [e] política1


“foice e martelo, canhões, canhões, dinamite!”
Entrevista com François Albera

Jean-Marie Straub: Para início de conversa, vale lembrar que a


conjunção “e” é sempre uma besteira: cinema e história, cinema e
literatura, cinema e música, tudo isso é o fim do mundo, a falência
intelectual…
Agora, quanto ao cinema político, não sei muito o que é, sei
cada vez menos, e espero que não saiba nunca: é a primeira coisa.
Em segundo lugar: — deixemos o cinema — não há filme polí-
tico sem moral, não há filme político sem teologia, não há filme
político sem o místico.
O que isso quer dizer? Bem, que a música de Anton Webern,
por exemplo, é mais política que a de Alan Berg, que a música
de Arnold Schoenberg é mais política que a de Alan Berg, que a
música de Hanns Eisler é muito mais política que a de Kurt Weill.
E para falar de todas as nossas últimas experiências, isso quer
dizer que um filme como Fúria, de Fritz Lang2, é bem mais político

1. Essa entrevista foi realizada em Paris, no dia 19 de março de 2001, a pedido do Centre Georges-
Pompidou para figurar em uma publicação dedicada ao tema “Cinema e política” (série de filmes
de 1968 e depois, filmes militantes, cine-tracts, etc., mesa redonda com as revistas que foram
ligadas a esse período — Cahiers du cinéma, Cinéthique, Filmkritik, Cinema e film… — previsto
para junho-julho de 2001). A responsável por essa manifestação foi Sylvie Astrik. No entanto, a
responsável pelo ciclo e a direção da BPI do Centre Pompidou (então Gérald Grunberg) exigiram
cortes de muitas ordens no texto da entrevista. Particularmente no tocante às críticas a J-L.
Comolli e Dario Fo e em cima da aproximação estabelecida entre o extermínio industrial de
animais e o genocídio judeu. Jean-Marie Straub e Danièle Huillet recusaram toda censura sobre
suas declarações, que foram relidas e assumidas. O texto foi então recusado pela instituição
que o havia solicitado. Jacques Rancière renunciou a participar da publicação assim como
Jean-André Fieschi, mas um livro apareceu sob os cuidados da BPI com o título Cinéma et
politique. 1956–1970. Les années Pop, com contribuições de Jean Narboni, Jean-Louis Comolli e
Gérard Leblanc. A entrevista encontrou espaço na revista Hors Champ de agosto de 2001, que
a pôs à venda durante o Festival de Locarno. Ela suscitou uma série de rumores a propósito do
“antissemitismo” dos Straub que emergiu brevemente em um artigo assinado por Olivier Séguret
no Libération, ao qual o jornal recusou o “direito de resposta”. As cartas (assinadas por Louis
Seguin, Anne-Marie Faux e François Albera) apareceram no número 7 da Hors Champ (outono-
-inverno 2001–2). [N.O.] A tradução ao português foi feita por Bolívar Torres.
2. Fury, 1936.
Entrevistas 67

que M, o vampiro de Dusseldorf 3, contrariamente a tudo o que


disseram as pessoas de esquerda sobre a ascensão do nazismo em
M e O testamento do Dr. Mabuse4. Pode ter interessado a alguém
como Sadoul em determinado momento, mas não é necessário
repetir isso como asnos…
Isso quer dizer que Um rei em Nova York5 é um grande filme
político.
Não há filme político sem moral, não há filme político sem
teologia, não há filme político sem mística.
Isso também quer dizer — se formos sustentar um paradoxo
que não é verdadeiramente um, e sim, digamos, uma provoca-
ção — que nossos três filmes mais políticos são O noivo, a atriz e o
cafetão, Crônica de Anna Magdalena Bach e Moisés e Arão.
Moisés e Arão, pela primeira vez — quando até então, com
exceção de um subtítulo de Não reconciliados que era “Só a violên-
cia ajuda, onde a violência reina”, sempre nos recusamos a deixar
qualquer mensagem que seja interferir em nossos filmes, nós as
destruíamos à medida, pois não queríamos impor uma mensagem
às pessoas que viam nossos filmes — não nos achávamos nesse
direito. Contudo, graças a Moisés e Arão, graças à Schoenberg, de
repente, no fim do filme, há uma mensagem política que está cada
vez mais atual: “sempre que vossos dons vos levarem aos mais
altos picos, sempre vós sereis precipitados novamente do sucesso
ao abuso, mandados ao deserto”.
Um dia, há pelo menos quinze anos, vimos em Roma, por
acaso, uma projeção ao ar livre de dois filmes. Foram A Marselhesa
de Renoir6, que é um filme magnífico e que conheço muito bem
por tê-lo visto muitas vezes, e Órfãs da tempestade, de Griffith7,
filme que eu conhecia muito mal, pois só havia visto uma vez. Pois
bem, naquela noite, percebemos de repente que, politicamente,
talvez o Griffith seja mais forte que o Renoir. Portanto, a força de
um filme político não tem nada a ver com sua ideologia. Desde
então, tivemos a oportunidade de rever Órfãs da tempestade na

3. M, de Fritz Lang, 1931.


4. Das Testament des Dr. Mabuse, de Fritz Lang, 1933.
5. A King in New York, de Charles Chaplin, 1957.
6. La Marseillase, 1938.
7. Orphans of the Storm, 1921.
Cinema [e] política 68

Cinemathèque — era uma projeção um tanto irritante, já que era a


cópia do MoMA com cores, etc (talvez ela até tivesse coisas que
nunca havíamos visto antes…) —, mas não experimentamos esta
sensação de novo, vimos dessa vez mais o lado sadiano do filme,
enfim! o lado cinema. Mas não creio que nos enganamos vendo-o
quinze anos antes, vendo esse filme depois do Renoir. Obviamen-
te, havia um filme que era esmagador e outro que era otimista.
Precisaria partir daí e saber o que se pode fazer.
Eu gostaria agora de acrescentar uma coisa aos três pontos
anteriores e dizer que não há filme político sem memória. Por
memória se entende colocar-se em oposição à social-democracia,
ao reformismo e a toda a bagunça, porque, estes aí, a única coisa
que eles recusam é que houve um passado, coisas diferentes, são
completamente antimarxistas: o método marxista por excelência
consistia em voltar até os assírios e mostrar como as coisas eram
diferentes, o que havia mudado. E Marx ia cada vez mais longe à
medida que envelhecia. A social-democracia cultiva, ao contrário,
a fuga para frente: as pessoas sequer têm o direito de viver o
momento presente, contam-lhes que o progresso continua, que
não há outra solução do que se precipitar no abismo do progresso
até que uma catástrofe aconteça. O crescimento é infinito, não
pode parar. Sempre que houver um obstáculo, a solução é voltar
ao crescimento, se multiplicar. Vivemos no “melhor dos mundos
possíveis” e tudo que precedia era obrigatoriamente pior. É exata-
mente contra o que se insurgiu Walter Benjamin quando disse que
a revolução é o “salto do tigre no passado”.
Um filme político, portanto, é aquele que deve lembrar as
pessoas que não vivemos no “melhor dos mundos possíveis”,
longe disso — Buñuel já o dizia — e que o momento presente, que
nos é roubado em nome do progresso, esse momento que passa,
é irrecuperável. Que estamos devastando todos os sentimentos
como devastamos o planeta, e que o preço que pedimos às pesso-
as, para o progresso ou para o bem-estar, é elevado demais, é sem
justificativa. Sem contar que a pobreza e a miséria se multiplicam
nesse sistema — não apenas no terceiro-mundo, falemos da Ingla-
terra, da qual descobrimos coisas alucinantes nos últimos tempos,
justamente a Inglaterra, berço do capitalismo!
Entrevistas 69

É preciso fazer com que as pessoas sintam que o preço é


elevado demais, e que só existe uma coisa a se defender, justa-
mente o momento que passa. Não se deixar, em hipótese alguma,
embarcar em uma fuga para frente.
É preciso então voltar ao que diz Benjamin; a revolução tam-
bém é “colocar em seu lugar coisas muito antigas, mas esquecidas”
(Péguy). Os filmes que nos fazem sentir isso são filmes políticos.
Os outros são idiotices, enganações.
O que chamamos de cinema político, é alguma coisa que vai
e vem segundo a moda… Quando Comolli chegou na nossa casa,
em Roma, para preparar La Cecília, ele tinha apenas uma ideia na
cabeça, uma ideia fixa, ele queria nos converter para a religião
estética, a estética religiosa de Monsignore Dario Fo. Isso resultou
em La Cecilia8, Durutti9… É preciso saber de uma vez por todas
que Hölderlin é cem vezes mais político que Jacques Prévert.
É isso! Mesmo que não se tenha descoberto que Hölderlin era o
único espírito europeu, o único poeta em todo caso que tinha sido
capaz, antes da ameaça industrial e sua realização, de inventar
a única coisa que poderia salvar “as crianças da terra”, como
ele os chamava, e “seu berço, a terra” da catástrofe. Aquilo que
ele inventou e que eu nomeei: uma utopia comunista. Ao mesmo
tempo em que todos os belos espíritos da época carregavam água
para o moinho do desenvolvimento, do progresso.

Até que ponto as circunstâncias influenciam quando se faz um filme


político? É possível superá-las?

JMS: Um rei em Nova York é de fato um filme feito sob a ameaça


macarthista, que visava Chaplin pessoalmente, mais ainda que
outros.
Nada é mais difícil do que fazer filmes militantes ou de
militantes.

Danièle Huillet: Quando Eisenstein faz propaganda para tratores


é porque o momento pede isso, mas é também extremamente

8. La Cecilia, de Jean-Louis Comolli, 1977.


9. Buenaventura Durruti, anarquista, de Jean-Louis Comolli e Ginette Lavigne, 2000.
Cinema [e] política 70

perigoso, porque se podemos dizer que os tratores são muito


úteis também é preciso dizer o estrago que eles podem fazer.
Quando vemos isso hoje, nos damos conta que ele não fez o seu
trabalho até onde deveria.

Dito isto, o trator estraga e é preciso a determinação política de


Marfa para que ele volte a funcionar…. E, na versão original do
filme — modificada no fim quando o filme muda de título —, o trato-
rista escolhe ficar no vilarejo, e nós o encontramos em um carrinho
de feno puxado por bois!

JMS: Isso, ao menos, é marxista.

DH: É, porque Eisenstein não era tão burro assim. Mas, ainda
assim, deve haver uma outra maneira de se fazer as coisas do
que empurrar as pessoas a se revoltarem e agirem forjando a
realidade para fazê-las acreditar que é absolutamente necessário
se precipitar nessa direção.

JMS: O filme militante prende as pessoas na urgência. E urgência é


o resultado do sistema que inventou as câmaras de gás; a urgência,
atualmente, nos vem da social-democracia inglesa e da social-
-democracia francesa. Consiste não mais em massacrar os judeus,
mas em massacrar de maneira preventiva centenas de milhares
de animais para manter o mercado. Mesmo que certos judeus se
ofendam, não há diferença entre isso e o massacre dos judeus, é
o mesmo espírito e o mesmo sistema industrial e é “der gleiche
Geist”, como diria Hölderlin, que inventou a câmara de gás e esse
sistema aí. No fim das contas, não precisa ser hindu para saber que
um ser vivo é um ser vivo (que ele seja um judeu ou um cordeiro),
aliás os judeus o sabem bem, já que conceberam o cordeiro pascal.
Eu vejo um grande filme político quando, em Arsenal10 de
Dovjenko, vejo um camponês que se chama Ivan e que começa a
bater em seu cavalo, sozinho em um campo deserto, e que não
pode parar mais porque está no limite, e então subitamente se
ouve uma voz: “Ivan, Ivan, você está batendo no inimigo errado!”

10. Arsenal, de Aleksandr Dovjenko, 1928.


Entrevistas 71

Há um prefácio de Schoenberg às “Bagatelas para quarteto de


cordas”, de Webern, em que ele diz: “Cada olhar se deixa expandir
por um poema, cada suspiro por um romance, mas expressar um
romance por um único gesto, uma alegria por uma única respira-
ção, tal concentração só se encontra onde falta sentimentalismo
em uma medida correspondente”.
Eis o que poderia servir de definição a um cinema político:
evitar absolutamente o que mantém o capitalismo vivo, a inflação.
Se na estética praticamos a mesma inflação que mantém viva a
sociedade capitalista, o mundo no qual vivemos não vale a pena,
estamos levando água para esse moinho.
Elio Vittorini em suas Cartas francesas de 27 de junho de 1947
diz assim:
“Minha primeira tomada de consciência ao espetáculo da
sociedade onde eu vivia. Esta enorme mentira, eu a conhecia o
suficiente. Todos se referiam a uma moral anterior ao fascismo,
a mesma moral que originou o fascismo. Todos conduziam final-
mente ao fascismo, portanto. No melhor dos casos, à estagnação
moral, à esterilidade. Eles tentavam estancar as feridas, de novo
estancar. Nunca atacavam a própria doença. Isso podíamos ver
sem ter lido Marx. Existe em toda época histórica uma certa
soma de meios possíveis, uma certa provisão de meios. Contudo,
em todas as épocas da história, todos os meios que ela dispunha
foram empregados, não importa a moral proferida pela mesma
época. É essa hipocrisia que denunciava Maquiavel, que tentava
tornar o Príncipe consciente de suas atitudes. Hoje, acabamos
de descobrir novos meios: os da energia atômica. Privamos-nos
de empregá-los? Não. Vamos concordar então que todos os
meios de que dispõe uma época são praticados por esta mesma
época. Mas o mundo capitalista é tal que esses meios são
praticados em uma absurdez e hipocrisia absolutas. São meios
sem fim, um caos de meios. Vivemos uma época em que reina um
fantasma da moral”.
Ele escreveu isso em 1947. Imagine o que escreveria sobre os
dias de hoje! Desde então, não há nem mais fantasma, há apenas o
cinismo que nem sequer se assume como tal…
Enfim, meu Deus! A grande música política não é uma música
de agitação ou de cabaré, mesmo se existem coisas bem cáusticas
Cinema [e] política 72

e engraçadas nos cabarés — e mais: a única grande canção de


cabaré foi Schoenberg, no fim das contas, que a escreveu: existem
três, e elas duram apenas dez minutos…
A grande música política, o que é? Pois bem, é Beethoven
e, nessa mesma ordem de ideias, um grande filme político é This
Land is Mine (1943), de Renoir, que é, de certa forma, um filme de
agitação, aliás. Ou, por outro lado, um grande filme político do
tipo Beethoven é Um rei em Nova York.
Comolli e Monsignore Dario Fo, é colossal porque já é aquilo
contra o que Brecht lutava. Sua religião estética é exatamente a
mentalidade do nosso banqueiro em Lições de História.
O banqueiro de Brecht em Os negócios do senhor Júlio César
(Die Geschäfte des Herrn Julius Caesar) é o cara que diz: “zum
Volk muss man Volkstümlich sprechen…” (ao povo — ao folk — é
preciso falar folk-loricamente). E Brecht dirá mais tarde: “Ich bin
nicht tümlich, sagt das Volk” (Eu não sou “lorica11” diz o “folk”/
“[popu]lar” diz o “povo”). 
É preciso, ao contrário, tratar as pessoas como adultos e lhes
ajudar a ver e a ouvir, pois apenas quando seus sentidos estão
afiados que a consciência se desenvolve. O contrário de toda
a sociedade contemporânea, que trabalha com a restrição, com
o malthusianismo, a pilhagem dos sentimentos. A história dos
camponeses é a mesma coisa. O que fez a burguesia nascente?
A guerra dos camponeses. A última delas terminou, aliás, com
a cumplicidade da Maison de Lorraine, na época uma das maiores
províncias francesas. Quem estava do outro lado do Reno
precisou da ajuda dela para massacrar os camponeses alsacianos.
Logo depois, inventou-se a industrialização, a cultura intensiva,
os fertilizantes e o resto. Do que se trata tudo isso? Liquidar o
campesinato. Nesse meio-tempo, a burguesia tomou o poder em
1789 e agora procura-se eliminar o que resta dos camponeses com
regulamentos, normas europeias.
Então, um grande filme político seria também um filme que
não oferece estatísticas e sim números — porque não se deve
cair na armadilha que nos vem através do Atlântico. Em Fúria,

11. Palavra de origem latina que significa armadura. [N.E.]


Entrevistas 73

há números: uma determinada quantidade de linchamentos por


semana há determinado tempo. Em Cedo demais, tarde demais,
há números: um terço da população de tal vilarejo é incapaz de
sobreviver… São números que vêm dos cadernos de queixas que
cita Engels.

Por outro lado, na disputa entre Eisler e Schoenberg, o primeiro


coloca a questão do endereço, do destinatário em relação a uma
música de laboratório. Ele escolhe dirigir coros operários, compor
música para teatro, para filme, canções…

JMS: Eisler não se fazia estas perguntas, ele sabia muito bem,
tanto que diz em suas entrevistas com Bunge que sua música era
colocada sob o alqueire, do outro lado do muro. Ele teve a chance
de viver em uma outra sociedade, mas aconteceu-lhe por razões
ideológicas o que acontecia a Schoenberg por razões menos
abertamente ideológicas.

Eu falava dos anos vinte, não da DDR.

JMS: As querelas dos anos vinte não são tão graves. São querelas
de amizade. Eisler recusou a “música sábia” de seu mestre e Scho-
enberg aconselhava Eisler a fazer mais música e menos política.
Ele disse algumas coisas mais ásperas — em sua carta a Kandinsky
por exemplo —, que tiramos do nosso filme.
Mas Schoenberg flertava também com os socialistas de Viena,
como Kafka. Aliás, Benjamin disse um dia a Brecht que o grande
escritor socialista era Kafka e que ele era um escritor católico.
Não é uma ideia boba a partir do momento em que deixamos de
ver com desprezo a expressão “escritor católico”.

Seria algo parecido com o que você chamava, em um artigo antigo,


de “catolicismo” de Rossellini?

JMS: Todos nós temos erros de juventude. De qualquer maneira,


até isso foi censurado porque não se podia dizer “católico” quan-
do se tratava de Rádio-Cinema-Televisão. Virou “cineasta cristão”:
não se podia de maneira alguma dizer que ele era católico, porque
Cinema [e] política 74

isso colocaria em dúvida o catolicismo. Eu dizia isso porque ele


tinha feito Joana D’arc12, apenas isso. Mas no fundo Rossellini não
era nem um pouco um cineasta católico, era um cineasta voltai-
riano que flertava com a ideologia da Democracia Cristã e fazia
propaganda para De Gasperi. Eu errei em dizer isso e eles talvez
tiveram razão em me censurar….
Melhor dizer que Brecht se interessava pela ideia de edifica-
ção moral…

DH: Já Kafka, não!

JMS: …fica muito claro em uma de suas peças mais fortes, Santa


Joana do matadouros (Die heilige Johanna der Schlachthöfe). É
a prática de todas as virtudes cristãs, incluindo a resignação, a
caridade e o resto, antes de descobrir, como diz Johanna, que “Es
hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht” (só a violência ajuda, onde a
violência reina). Ela não aguenta mais…
Enquanto o cineasta político, correndo o risco de ser um
pouco pretensioso, é aquele que termina um filme dizendo: “Foice
e martelo, canhões, canhões, dinamite!”
É aí que nós estamos, não há mais soluções, não se pode ter
medo de dizê-lo. Mas, quando isso acontecer, vai custar caro.
Vivemos em um mundo, fazemos parte de uma humanidade
que esse espírito e esse sistema tornaram muito doentes, doentes
até a morte! Consequentemente, quando isso acontecer, se ainda
for possível, será preciso de uma convalescença. Desse modo,
as pessoas que fazem esse filme que termina assim, pois bem,
elas não param por aí, elas acrescentam, pedindo um presente a
Beethoven, acrescentam a ideia de convalescença.
E se houvesse só um ou só outro desses aspectos, não seria
um filme político.
Não se deve em hipótese alguma ter medo das contradições,
senão fazemos exatamente como a sociedade na qual vivemos,
que trabalha fabricando robôs e aleijados: robôs no plano moral e
intelectual e aleijados no plano dos sentimentos. É preciso então
nadar contra a corrente.

12. Giovanna D’Arco al rogo, 1954.


Entrevistas 75

Não desprezo a ideia de fazer filmes de agitação — não tenho,


aliás, nenhum direito de fazê-lo –, mas acredito que seria ainda
mais difícil de fazê-los, e se os fazemos deixando-nos levar pela
moda, não vale a pena.

DH: Nem mesmo fazê-los motivados pela cólera. A raiva. A fúria.

JMS: Porque, como dizia Brecht, a raiva deixa nossa voz rouca.
“Nós não tínhamos escolha, mas saiba que nossa voz ficou rouca”.
Contudo, se temos o direito de deixar nossa voz rouca, não temos
o direito de fazer o mesmo às pessoas que já a tem por outras
razões… E, principalmente, não temos o direito de fazê-los acre-
ditar que se aplicamos tal ou tal receita ao sair do cinema, tudo
ficará melhor, etc. “Como é simples, olha só! Por que não tínhamos
pensado antes…” Como diz Delahaye, sempre tem os bons atrás
da câmera e os malvados em frente a ela.

Há em seus filmes, porém, alguma coisa que identifica a necessida-


de de realizá-los. São ancorados em um lugar, um momento, não
poderíamos chamar isso de urgência? 

JMS: É diferente a cada vez.


O momento, a urgência de O noivo, a atriz e o cafetão é que
deixávamos a Alemanha no momento em que a polícia arrombava
as portas das universidades a golpes de machado, que nós
levamos dez anos sendo tratados como cachorros por tentar fazer
filmes, em especial Crônica de Anna Magdalena Bach, que era o
primeiro projeto, depois os dois outros, Machorka-Muff e Não
reconciliados. Nós íamos embora, é isso, e então nesse momento
veio o que foi chamado de “maio de 68” e havia uma pequena
defasagem.
Estávamos lá, eu não tinha a intenção, ao lado de Cohn-Bendit
e outros, de voltar para a França e ser jogado na prisão durante
um ano, mas nós estávamos lá, havia uma certa nostalgia, mesmo
se era, em parte, um chienlit13, como dizia o outro… Que aliás se

13. Tradicional personagem do carnaval de Paris, recuperado de forma pejorativa pelo presi-
dente De Gaulle durante as manifestações de maio de 1968. [N.T.]
Cinema [e] política 76

esvaziou em seu último referendo, isso ficou claro, porque tinha


pedido uma migalha: a participação. Foi o suficiente para liquidar
De Gaulle! Podia-se rir da “participação”, agora retorna-se a ela:
os operários e empregados acionários… Mas era suficiente para
mandá-lo a Colombey, para mandá-lo de volta para ordenhar suas
vacas como diria Anna Magnani em A comédia e a vida 14. Então as
circunstâncias…

DH: Às circunstâncias nós reagimos necessariamente, como indi-


víduos, mas isto não é razão suficiente para colocar suas reações
individuais em um filme: atravessa histórias de sentimentalismo.
Veja: quando Cézanne pinta seus jogadores de carta, não
passará pela cabeça de ninguém dizer que é político. E de repente
você vai no bistrô em Froidcul logo acima de Moyeuvre-Grande na
Lorena, e nesse bistrô tem uma reprodução do Joueurs de cartes:
produz um efeito engraçado. Então você fala para o sujeito atrás
do bar e ele diz: “Sim, é que me agradou”…

JMS: Talvez não seja diretamente político, mas sou fascinado pelo
fato de que Cézanne é completamente realista. Vejo embaixo da mi-
nha casa pessoas que jogam cartas há vinte anos e que, socialmente,
não são exatamente as mesmas, estão de jeans, tem uns moleques
e outros que são ex-metalúrgicos, mas quando eu observo os caras
de pé, sentados, os gestos, é alucinante ver como Cézanne é realista.
Acontece que os filmes políticos começam com o realismo. O rea-
lismo que consiste, como diria Brecht, a começar com o particular
e, uma vez bem enraizado no particular, só então se elevar ao geral.
Ele diz: “a coisa única, abotoada/ligada, com o geral”.
Na nossa biografia pessoal — nossa “carreira” que tem pro-
gressos gigantescos, já que não conseguimos nem mais dinheiro
com o CNC!… —, tudo é irregular, a cronologia dos filmes não é a
dos projetos: Crônica de Anna Magdalena Bach deveria ter sido o
primeiro e Moisés e Arão o segundo, mas isso se passou de outra
forma. Machorka-Muff nunca deveria ter sido o primeiro.
Fazer filmes politicamente também é fazer o que dizia Cocte-
au: “Aquilo que te reprovam, cultive-o, é você mesmo”. Fizemos

14. Le carrosse d’or, de Jean Renoir, 1952.


Entrevistas 77

Crônica de Anna Magdalena Bach da maneira que queríamos


fazê-lo e não como as pessoas nos aconselharam a fazer durante
os dez anos em que esperamos para poder fazê-lo. O primeiro com
Curt Jurgens, o segundo usando o dobro de dinheiro que teria
custado o filme, mas pagando Herbert von Karajan… 
E nós mandamos todos eles se ferrarem, porque queríamos
fazer esse filme com Gustav Leonhardt que, na época, não estava
entre os sucessos de bilheteria da indústria cultural, quando
todo mundo, até os músicos e os musicólogos diziam: “Como?
Quem?” e tínhamos que escrever seu nome num pedaço de papel.
O mesmo aconteceu com Nikolaus Harnoncourt. Quanto ao pobre
Wenzinger, o braço direito de Paul Sacher na Basileia, ele também
não era conhecido: estão todos no filme com Leonhardt e como
isso não tinha valor algum nas bilheterias da indústria cultural,
ninguém queria dar um tostão para o filme. Ora, se fazemos um
filme politicamente, quer dizer, organizando aquilo que fazemos,
isso quer dizer escolher os atores sem se dirigir ao casting ou à
bilheteria, sob o pretexto que precisamos fazer isso senão não
conseguimos dinheiro, que sem Depardieu o filme não se faz, sem
a última bela menina da moda não teremos dinheiro do CNC, o
filme não irá a Cannes, etc. Senão, não só não fazemos filmes
politicamente, como também não fazemos os filmes que queremos
fazer. Brecht já dizia em seu prefácio a Kuhle Wampe: “A organi-
zação nos custou muito mais trabalho do que die kunstlerische
arbeit… o trabalho artístico por si só” e, diz ele, isso vem do fato
de que era um filme político.
É uma outra resposta à questão inicial: se queremos fazer
filmes politicos, é preciso organizá-los por nós mesmos e não
apelar para organizações, mesmo amigáveis, mesmo de amigos
queridos que nos ajudam um pouco…

DH: Sempre há o momento em que somos forçados a dizer: não


mesmo! Vai ser assim e se vocês não querem vamos nos encarre-
gar nós mesmos. Até mesmo escrever em um folheto “este filme
foi recusado pelo comitê de seleção do festival de Cannes”, o que
é a estrita verdade, desperta as reprovações de nossos amigos,
que exclamam: “O que vocês querem? Agitar os coqueiros de
Cannes?” E nós dizemos: “Escutem, se vocês não querem ficar
Cinema [e] política 78

de mal com o mundo de vocês, porque no fim das contas é o


mundo de vocês, não o nosso, nos encarregaremos da tarefa nós
mesmos”… E, finalmente, já que “Straub” virou uma marca, já que
agora eles até gostam da gente, acabam cedendo. Mas continuam
sendo medidas de força.

JMS: Fazer um filme politicamente é fazer um filme com as obje-


tivas de que precisamos, o número de metros de película de que
precisamos, rodá-lo na ordem que precisamos, é pagar os técnicos
ao menos pela tarifa sindical e pagá-los no início de cada semana
e não no fim, e não deixar que nos imponham economias ridículas
enquanto a produção comercial no geral gasta dinheiro com
despesas falsas e coisas ridículas e condena as pessoas que fazem
filmes, mesmo essas pessoas prestigiadas como Bertolucci, a ter
copiões em preto e branco ou a se limitar a duas objetivas.
Em Lorena! isso nos aconteceu quando pedimos para ter o
zoom “Primo”, nos disseram que era caro demais para um curta-
-metragem. Só que nós sabemos o que queremos rodar, onde e
o quê precisamos tecnicamente, então se vocês não querem nos
pagar, pois bem! nós mesmos pagaremos.

DH: O sentido da palavra política é também o de liberdade. Se


eu faço questão que tenha uma frase sobre o festival de Cannes,
não é por vingança, nem para agitar o que quer que seja, pois
não vamos agitar nada, mas sim porque alguns jovens precisam
saber…

JMS: …que não existe liberdade artística em um sistema capita-


lista! E que até mesmo esses organismos supostamente a serviço
da cultura estão apenas a serviço da indústria cultural do cinema
francês. Quando eles não veem chegar um filme que não tenha a
última bela garota da moda ou o Depardieu ou Deus sabe quem,
eles não querem saber dele.

DH: Quando fizemos os cartazes para Não reconciliados e os


levamos para a responsável do cinema onde o filme seria lançado,
ela disse: “Ach ! das ist nicht unser Geschmack” [não é do nosso
gosto]. Nós dissemos: “ Muito bem, nós o pagaremos nós mesmos”
Entrevistas 79

e, na época, não tínhamos um tostão e foi preciso encontrar


mil marcos. Você vai dizer que é um grande privilégio porque o
operário não pode fazer isso. Mas curiosamente, quando ouvimos
os estivadores de Saint-Nazaire, no momento das grandes greves,
aquilo de que eles mais falam não são histórias de dinheiro e de
diferenças que podem haver entre eles, aquilo de que mais falam
é sobre a liberdade, de poder não ir trabalhar se quiserem, poder
mudar de lugar, “simplesmente poder mudar de cais quando
estamos com vontade!” Esse é o estatuto do estivador que eles
defendem. É de todo modo extraordinário que sejam esses aí que
falem sobre a liberdade…

JMS: A prova: Toscan du Plantier15! Estou me limitando a dois


colegas, estimados como se costuma dizer, um que se chama
Syberberg (Hans-Jürgen) e outro que se chama Benoît Jacquot. Eis
dois garotos — não são velhinhos, então deveriam ser capazes de
resistir —, que foram enganados, no espaço de vinte anos, pelo
mesmo sistema chamado Toscan du Plantier. Syberberg queria
gravar a ópera de Wagner em som direto, ao mesmo tempo que a
imagem, e renunciou porque Toscan lhe empurrou uma gravação
em Monte Carlo que ele tinha em sua fonoteca e que custaria
menos caro. Ele então acabou fazendo um filme que não tinha
nada a ver com o que ele queria fazer! Eis uma maneira de fazer
que não tem nada a ver com política. A mesma coisa acaba de
acontecer com Benoît Jacquot, que está rodando La Traviata creio
eu, que trabalhou algumas semanas ou meses com um diretor de
som porque ele havia jurado que seria em som direto e de repente
ele faz o filme em playback.

A moral evocada lá no início definia uma posição individual? 

JMS: Não, eu queria simplesmente dizer que vivemos em um mundo


onde estão evacuando a moral e fazendo reinar o cinismo. O cinismo
é exposto nos muros, nos slogans, nas publicidades. Poderíamos até
ir mais longe e falar em liquidação da moralidade pública.
15. Produtor de cinema francês nascido em 1941 e falecido em 2003, devido a um ataque cardíaco
durante o Festival de Berlim. Produziu os filmes O Diabo provavelmente (Robert Bresson, 1977),
Don Giovanni (Joseph Losey, 1979), Aos nossos amores (Maurice Pialat, 1983), entre outros.
Cinema [e] política 80

A moral é também saber que a delação é uma coisa horrível.


Mas o governo italiano promulgou uma lei encorajando a delação.
Como resultado, Craxi, Andreotti, várias vezes por mês, foram
ver o juiz para lhe dizer: “Espere! Ainda tenho um companheiro
de partido para denunciar…” Era supostamente contra as
Brigadas Vermelhas e até mesmo certos membros das Brigadas
Vermelhas foram denunciar pessoas porque a lei previa em
seguida que eles se beneficiassem de circunstâncias atenuantes;
faziam com que eles acreditassem que seriam tratados com mais
doçura. Fizeram a mesma coisa com a máfia e todos os mafiosos
denunciaram, e o único que não denunciou é um velho, o mais
velho dos mafiosos, que está na prisão em Nova York já faz
quarenta anos ou mais. Foram vê-lo e lhe disseram: “Então? O
que você nos diz, vai nos dar alguns nomes?” E ele: “Nomes? Não
dou nenhum. Estou aqui, cumprindo minha pena. Vocês não vão
conseguir nada comigo…”
Eis um sujeito que ainda possui um “sentido moral”.
Um governo que promulga tal lei é uma escola de cinismo:
contribui à desmoralização da nação. Quando d’Alema (na seção
do PC de Pisa, onde também estava nossa Angela que vendia
l’Unità domingo de manhã — “Aos seus bons corações, senhoras
e senhores” — e que trazia dinheiro, o secretário era Alema),
então, quando d’Alema, não faz tanto tempo assim, depois de
algumas semanas de guerra contra Milosevic, fez uma declaração
reproduzida na capa do Messagero di Roma, em toda a largura da
primeira página: “Usciremo più forti di questa guerra!” [Sairemos
mais fortes desta guerra], isso é o que eu chamo de desmoraliza-
ção pública.
É uma observação de um cinismo vertiginoso e de uma idio-
tice insondável… Ainda por cima, ele deveria saber que nenhum
vencedor sai mais forte de uma vitória! Basta ver os vietnamitas. E
dizer isso quando participamos como lacaios na guerra do Golfo
e enquanto participamos da guerra contra Milosevic, é isso aí a
ausência moral.
Quanto à moral econômica, ela é ainda mais cínica, a moral da
“New Economy” é simplesmente a moral do supermercado.
Ficamos impressionados quando vemos trabalhadores que
restauram um pátio, tiram o reboco que cai e repintam quatro
Entrevistas 81

camadas com cimento, duas demãos de tinta, etc, por seis meses,
ficamos impressionados pela consciência profissional que isso
implica. A burguesia que, em seu trabalho, é incapaz de ter
consciência profissional, ao ver isso deveria rir diante de tanta
ingenuidade, ou então procurar seu confessor e pedir perdão.
Só há um crime imperdoável no Evangelho, é o crime contra o
espírito. E, bom, há muito tempo que a sociedade em que a gente
vive não apenas o permite mas o pratica e o cultiva diariamente!

Que lugar ocupa a teologia que você evoca na definição de cinema


político?

JMS: O que eu chamo de teologia é o que tem a ver com Deus ou


deuses. É preciso saber que, com a civilização, os camponeses
inventaram os deuses, é preciso saber o que é a invenção do
monoteísmo, que é muito difícil ficar sem deuses. Que levaremos
ainda séculos para chegar lá e que nos livrarmos deles à maneira
da burguesia voltairiana, isso certamente não é a solução. Só
a do cinismo. E quando dizemos isso, é preciso dizer também
que a teologia — lembremo-nos mais uma vez de Péguy, que diz
“Eu não sou piedoso, diz Deus” — quer dizer evitar que as pessoas
mantenham sentimentos adulterados, pratiquem o sentimenta-
lismo e a piedade. E é justamente isso que é ersatz,16 e aí ainda
podemos dizer que Goebbels ganhou a guerra. Vivemos numa
sociedade de ersatz, em todos os níveis: para a água, o ar, os
sentimentos, a moral, Deus, tudo. É por isso que inventamos a
sociologia e a psicologia, que substituem os confessores.

No cinema, o fato de representar, de imitar, participaria da mesma


ideologia do simulacro, do ersatz? E seu apego ao som direto, à
materialidade dos objetos e de lugares procede dessa teologia?

JMS: Pode-se dizer de outra maneira: “Retorno à realidade! Retor-


no à realidade! Retorno à realidade!”

16. Substituto, em alemão. Normalmente usado em outras línguas com sentido de simulacro
(o substituto é de qualidade inferior ao substituído). [N.T.]
Cinema [e] política 82

Na sua relação com os textos, observam-se várias abordagens: al-


guns são tomados integralmente, outros despedaçados, isso ressalta
uma leitura política…

JMS: Corneille: é a peça, não mudei uma única palavra. Pavese:


são seis diálogos sobre muito mais. Em seguida, a segunda parte,
é só uma camada do romance. O último filme17: são trinta e nove
páginas de quatrocentas, ou Lições de História: são trinta páginas
de trezentas, etc. Cada vez é diferente, mas cada vez a ideia é
sempre não incluir textos descritivos. No fundo, eu sempre
detestei a literatura! O sujeito que pega um romance de Balzac ou
mesmo de Kafka e se mete a ilustrar o que eles descreveram, seu
filme está perdido de antemão. O que nos interessa não é o que o
escritor vê: não podemos ilustrar o que ele vê, isso só bloqueia a
imaginação, e não podemos saber o que ele vê. O que ele via está
nas palavras, isso não pode passar para as imagens. O cinema não
é descritivo — isso que fez Orson Welles por sua vez… O que nos
interessa são os textos que serão encarnados em seres vivos, em
diálogos, não no plot. O que interessa às produções comerciais é
comprar um plot. Em seguida não se encontra mais uma só palavra
do escritor no filme, mas comprou-se um plot bem caro! Nós pega-
mos palavras e as guardamos como tais. No Kafka18, mantivemos
quase todos os diálogos, 90%, talvez mais, do primeiro capítulo, o
único que ele havia publicado; e para todos os capítulos seguintes,
há por vezes só 3 ou 4 diálogos, visto que ele havia sido traído por
seu amigo Max Brod, que lhe havia prometido destruir aquilo…
À exceção do primeiro capítulo — “O motorista” —, o resto Kafka
considerava incompleto, e de fato está incompleto, isso se
percebe muito bem. Não foi por acaso que eu mantive quase tudo
do primeiro capítulo e que, dos outros, mantive muito pouco,
tentando ver com prudência e ao longo de muito tempo o que
resistia e que ele teria certamente mantido. Podemos nos enganar;
esse é meu lado “censura stalinista”, mas estou bastante certo.
Modestamente…

17. Provavelmente se referia a Operários, camponeses, cuja estreia ocorreu pouco depois desta
entrevista na Quinzena dos Realizadores. [N.E.]
18. Relações de classes.
Entrevistas 83

Na carta a Kandinsky19, censuramos vários pequenos parágra-


fos ou frases inteiras de Schoenberg, a cada vez que aparece algo
nebuloso. Mas o que nos interessa são as palavras dos escritores.
De A morte de Empédocles ou Quando a terra voltar a brilhar verde
para ti, mantivemos praticamente tudo, salvo a última cena,
porque é só um rascunho. Mas esses textos não nos interessam
enquanto literatura, se fosse o caso nós os teríamos lido todos.
Ora, eu estou longe de ter lido todo Corneille, todo Kafka, todo
Hölderlin, todo Böll….
Com Böll é um pouco diferente, como com Brecht: fizemos
uma construção que não tem nada a ver com o romance de
Brecht, mas em que cada palavra é dele, e mantivemos o que nos
pareceu mais denso no nível da análise econômica e o mais forte
literariamente.
O que nos interessa não é fazer concorrência à literatura,
mas fazer a literatura passar para o outro lado, quer dizer, passar
de Gutenberg àquilo que acontecia no tempo em que não havia
imprensa, não havia televisão, em que as pessoas se reuniam à
noite e contavam histórias ao redor do fogo. Digamos: passar de
uma civilização escrita à cultura oral que está completamente
reprimida.

Walter Benjamin escreveu um texto chamado “O narrador” (Der


Erzähler) (que ele mesmo traduziu para o francês) em que ele opõe
o relato oral ao romance no plano da troca de experiências, do
coletivo e da solidão.

JMS: Ah, bom, você conhece isso melhor que eu. Mas é certo
que o escritor está condenado a ser um indivíduo na sociedade
em que se vive, a capitalista, e não somente nela. Nessa outra
tentativa do outro lado do muro, a sociedade das democracias
ditas populares foi apesar de tudo uma sociedade em que o artista
estava condenado a ser um indivíduo, mesmo que ele sonhasse
em não ser um. Se ele não fosse um indivíduo, não poderia ser um
artista. De fato, essa mesma sociedade condenou Lênin a ser cada
vez mais um indivíduo, foi isso que ele disse quando falou que

19. Introdução a “Música de acompanhamento para uma cena de cinema” de Arnold Schoenberg.
Cinema [e] política 84

seu trabalho político não o permitia escutar música. No mundo


em que vivemos, o ser humano é limitado, sendo o mundo como
é, não podemos fazer três coisas ao mesmo tempo, nem mesmo
duas. Estamos condenados. É o que dizia Schoenberg — isso não
é muito diferente —, quando dizia a Eisler “Em vez de fazer tanta
política, você faria melhor se se concentrasse em seu trabalho”.
É uma provocação um pouco… poujadista20, mas é um fato, não
se pode ao mesmo tempo fazer política e criar objetos que chama-
mos objetos estéticos ou obras de arte ou filmes.

DH: Por outro lado, podemos deixar as coisas amadurecerem.


Você falava agora há pouco de circunstâncias. Quando somos
como nós éramos e ainda somos, obcecados pelos massacres e
guerras de camponeses, e em um belo dia fazemos Cedo demais,
tarde demais, é justamente porque isso reaparece de uma certa
maneira quando encontra sua forma.

JMS: Sua forma segundo os acasos de um encontro triplo: primei-


ra viagem ao Egito para Moisés e Arão, segunda viagem ao Egito,
depois retorno à Itália e descoberta de um livro de dois indivíduos
que haviam passado um ano em um campo de concentração de
Nasser…

DH: Mais os cadernos de queixas de onde Engels extrai seus nú-


meros. Em todo caso, a parte francesa termina com uma inscrição
“Os camponeses se revoltarão”, parcialmente escondida por um
poste. Quando o filme foi terminado em 1981, disseram-nos que
era impossível uma revolta de camponeses. E agora vemos o que
se passa. É o contrário dos filmes que seguem a moda…

JMS: Mesmo de boa fé! Nesse momento eu gosto mais de Un film


comme les autres21 do que de certos filmes do grupo que se intitu-
lou Dziga-Vertov. O caro Jeannot não estará certamente de acordo,
porque ele tem muita vontade de ocultar esse filme, mas, enfim, é
minha opinião.
20. Movimento político e sindicalista francês que existiu entre 1953 e 1958 no departamento de
Lot. Seu nome vem de Pierre Poujade, líder do movimento. [N.E.]
21. De Jean-Luc Godard, 1968.
Entrevistas 85

Aqui há um indivíduo que foi modesto em um momento bem


preciso e que se contentou em radiografar algo sem a interposição
de grades. Ele estava verdadeiramente no momento e na moda,
mas agia como se não levasse água ao moinho da moda.

Creio que descobri Crônica de Anna Magdalena Bach em Locarno


em 1968, em agosto, quando Buache o havia escolhido ao lado
de filmes militantes oriundos de maio, o que oferecia um certo
contraste, e me lembro que Jean-Luc dizia ter dificuldades com esse
filme por causa da Alemanha, do que aconteceu depois de Bach, o
nazismo, etc.

JMS: Ele tinha dificuldade em ver um objeto marxiano. Não quero


dizer marxista, mas marxiano, porque o percurso intelectual
desse filme, descobrimos isso bem depois, é verdadeiramente
o percurso intelectual do jovem Marx. Logo, por acaso, o filme é
marxiano. Mas a nós ele não disse isso. Ele me disse: “Preciso lhe
falar sobre seu filme.” E ele disse…

DH: “Então, lá vai: na primeira parte, pensei comigo “Não! Isso


não está nada bom”… Na segunda, disse a mim mesmo “Sim! É
isso que se deve fazer”, e na terceira, pensei novamente que “não
estava bom”…

JMS: Isso queria dizer: você deveria ter adicionado uma narração,
colocado um pouco mais ou um pouco menos, e uma narração
que comentasse politicamente a situação. No começo ele disse:
“Você deveria ter feito”, e depois, no segundo terço “Não, não, há
razão de não fazer o que eu teria feito”, e no terceiro terço: “Não!
Não! Ainda sou eu que estou certo…”
Eu não disse nada, era um pouco tímido e não tinha muita
vontade de brincar. Eu o olhei e perguntei-lhe com um pálido
sorriso: “Então o que é que você queria que eu fizesse, colocasse
no fim “Tudo é política?” E ele me disse: “Está vendo, isso talvez
fosse suficiente”.
Ora, já há um filme que termina com “Tudo é graça”, e como
eu jamais teria feito Crônica se não existisse Diário de um pároco
Cinema [e] política 86

de aldeia22, por outras razões, eu não iria mesmo terminar um


filme com a frase “Tudo é política” para que isso agradasse
Jeannot!
No mais, todo mundo sabe que tudo é política. Então isso é
tirar sarro da cara de todo mundo.
Eu acho que os filmes políticos são feitos por pessoas que não
querem se mostrar.

DH: Don’t be clever for the sake of being clever é uma pequena peça
de Glenn Gould que escutamos esta manhã.

JMS: Quando Lang, esse meio judeu vienense, depois dos anos
de silêncio, depois de ter passado para o outro lado do Atlântico,
tentando assimilar a cultura americana, a realidade americana
como era capaz de fazê-lo, com doses de paciência cotidiana, de
dicionários e pesquisas, quando ele faz Fúria, bem, não se tem
a impressão de um senhor que quer se mostrar, mas tem-se a
impressão da irrupção de x anos de experiência, de trabalho, de
descobertas. Quando Chaplin fez Um rei em Nova York, ele não
estava querendo aparecer. Quando o autor de Durutti faz Durutti,
vemos o resultado. Torna-se debilidade mental, deficienza. Então,
qual é o sentido?
Há tanta estupidez no mundo, que fazer um filme político
consiste em pelo menos não fazer mais uma. Há mesmo momentos
em que nós teríamos podido dizer que se deve trabalhar sufi-
cientemente para se chegar a fazer algo que não seja pernicioso,
porque tudo o que se vende às pessoas, tudo que se lhes conta é
pernicioso. Primeiro o trabalho se faz sobre si mesmo, é preciso
evitar a autoindulgência, então, a chamada originalidade.

Essa perspectiva de restabelecer a cultura oral não é um projeto


político do seu cinema?

JMS: A maneira como você diz tem um ar bem lisonjeiro, mas não
se deve crer que é sistemático e consciente, é uma coisa que vem
lentamente. Trata-se de ajudar as pessoas a sonhar com alguma

22. Journal d’un curé de campagne, de Robert Bresson, 1951.


Entrevistas 87

coisa que a indústria em geral e a indústria cultural em particular


reprimiram, eliminaram. É ouvir não apenas algo que tenha uma
relação com o coletivo, mas coisas que elas não conhecem.
Quando as pessoas, depois de terem visto Lições de História,
sem saber que era adaptado de um romance de Brecht, enviaram
cartas à tevê alemã perguntando “Que texto é esse? Como se
chama?”, ficamos contentes. É pela mesma razão que eu disse que
o Bachfilm era dedicado aos camponeses da floresta da Baviera
que não tinham tido jamais a oportunidade de ouvir Bach em suas
igrejas católicas, que jamais haviam ido a um concerto. Ou — e
todos os Bonitzer e outros me chamaram de voluntarista — que
Corneille23 foi feito para os operários da Renault.

DH: Se você pega gente quase analfabeta como a Angela, ou que


são ladrilheiros, pedreiros e mesmo engenheiros da Ponts &
Chaussées24 e lhes dá um texto como esse do último filme…

JMS: Que eles conheçam ou não Vittorini, isso não importa!

DH:…e eles assimilam o texto — porque toda essa história de


“distanciamento”, etc, isso é tudo palhaçada! Não pode haver filme
em que o texto faça mais parte das pessoas do que os nossos!
Necessariamente porque há meses de trabalho que entram em seu
tecido nervoso. Isso é uma forma de cultura popular, e é disso que
todo mundo falava nos famosos anos “Pop”… mas que ninguém
fez porque é muito difícil, muito demorado.

JMS: Porque a indústria, mesmo artesanal, do cinema francês não


permite isso, porque “Time is Money”.

DH: Porque pertence a uma casta, você se choca contra um muro.


A recusa de Cannes não é só porque não há Depardieu ou a última
estrelinha da moda, é porque eles sabem de antemão — para
isso têm um nariz infalível — que não se trata de gente do “belo

23. Os olhos não querem sempre se fechar ou Talvez um dia Roma se permita fazer sua escolha
(Othon).
24. École nationale des ponts et chaussées, a mais antiga escola de Engenharia Civil do mundo,
localizada no subúrbio de Paris. [N.E.]
Cinema [e] política 88

mundo”, não é gente do mundo deles. Aumont disse: isso que eles
contam “não é interessante”. Não são pessoas interessantes. Para
nós, é com esses que fazemos cultura popular e é difícil porque
são pessoas que trabalham, que têm um outro trabalho, e por
conseguinte, se isso funciona, é porque eles têm vontade, vontade
de descobrir outra coisa. Mas por outro lado, eles chegam aos
ensaios às seis horas da tarde esgotados e não é fácil. Mas, para
isso, eles trazem soluções que pessoa alguma do belo mundo teria
imaginado, porque não estão presos ao pré-fabricado.

É a antecipação do comunismo, segundo o jovem Marx, em que se é


caçador de manhã e poeta depois de meio-dia…

JMS: Isso seria belo!

DH: Caçador!!!

JMS: Esse “safado” disse isso porque nunca chegou perto da caça…

Ele pensava no neolítico, na coleta, na caça, na cerâmica…

JMS: Muito além dos assírios, mais uma vez!

DH: A grandeza do cinema é que é um trabalho coletivo, é o que


tem em comum com o teatro, à exceção de que o teatro é uma
casta, não se vai procurar gente na rua, e é ainda pior que para um
filme! Mas esse caráter coletivo é o que é apaixonante. E a relação
com a política está aí.

JMS: Mas a vontade da coisa não chega assim, não acordamos um


dia dizendo “Pronto, retornaremos à cultura oral”, é como para
todo mundo que trabalha em uma área assim, isso vem, por que
não, de Farrebique25, do Diário de um pároco de aldeia ou do Rio
Sagrado26, por que não, do Le capitaine Fracasse de [Abel] Gance,
porque percebemos de repente que há alguma coisa… Ou de duas

25. De Georges Rouquier, 1946.


26. Le fleuve, de Jean Renoir, 1951.
Entrevistas 89

ou três frases de Michel Simon em Boudu27: “Qu’est-ce que ça peut


te foutre à toi vieux schnock!” (“O que você tem a ver com isso seu
velho chato!”)

Como vocês evoluíram sobre essa questão do ator profissional e do


não profissional desde seus primeiros filmes?

JMS: Em Não reconciliados tínhamos realmente um que não


sabia escrever seu próprio nome e dois ou três outros que não
conseguiam ler o jornal. No Kafka não é exatamente assim, mas
há mesmo um, o porteiro, com sua lanterna. Mas ali existe uma
mistura, porque no outro lado do espectro há Mario Aldorf, Alfred
Edel, Laura Betti ou Libgart Schwarz.
Há filmes em que há uma mistura, e em alguns não, mas isso
não foi pensado assim, depende dos personagens. É evidente que,
para fazer o tio no Kafka, tínhamos interesse em usar um ator e
não um homem do campo, isso não teria funcionado. O ator é o
ersatz do burguês em um sentido, mas o burguês nesse caso não
teria ficado justo.
E em Não reconciliados, a mãe, finalmente, não é uma atriz, é
uma senhora, certamente não uma intelectual, que encontramos
em nosso elevador. Ferdi nós havíamos visto na rua em Cologne:
ele equilibrava sua bicicleta sobre um caminhão no qual seu pai
carregava toneladas de cerveja de Dortmund.

Foi sua aparência que vocês retiveram?

JMS: Quando usamos um ator, é sempre porque, por uma razão ou


outra, nos apaixonamos por ele. Essa senhora encontramos em
um elevador, onde ela resmungava a cada vez que ele quebrava,
e duas horas depois nós propusemos a ela, mas antes havíamos
feito uma pequena viagem ao Berliner Ensemble. Tínhamos
colocado na cabeça que, para aquela senhora, o melhor seria
uma atriz, porque ela narra o passado recitando-o, tem um lado
“Quarenta séculos nos contemplam” ou “os séculos que desfilam”

27. Boudu salvo das águas (Boudu sauvé des eaux, de Jean Renoir, 1932).
Cinema [e] política 90

de Pierrot le fou28… Ali não são os séculos, é a crise econômica e


a chegada… daqueles que trouxemos para resolver a crise.
Como havíamos visto a Weigel muitas vezes nos palcos do
Berliner Ensemble em três ou quatro peças de Brecht, e ela nos
agradava tanto como mulher quanto como atriz, fomos procurá-la.
Um ano antes de fazer o filme. Ela leu aquilo e de repente nos
disse: “Por que vocês querem realmente uma atriz para essa
personagem? No cinema, todos os atores são ruins! Usem então
um não profissional!…”. Então dissemos: “Obrigado.”
Veja que no ponto de partida foi necessário que encontrás-
semos um monstro sagrado desse nível para nos fazer ouvir que
no cinema todos os atores são ruins e não esperávamos isso dela.
Certamente não foi Libgart Schwarz que nos disse uma coisa pare-
cida, nem Peter Stein. O que prova que ela tinha suas experiências
pessoais e não havia vivido em vão com Brecht e trabalhado com
ele. Esperávamos tudo dela, menos isso. Além disso, depois de
dez minutos, já a achávamos muito jovem….
As pessoas não são os filmes que elas veem, nem a realidade
ou a matéria do filme, mas sempre projeções, pelo menos para
essas pessoas; é muito difícil ver somente aquilo que está na
tela, o que escutamos e o que vemos. A mim foi preciso vinte
anos e mesmo agora às vezes vendo um filme que eu não via há
vinte anos me dou conta de que não o tinha visto. Então veem
Angela Nugara em Sicília!, acham bom, “Oh, oh, ela respira com
a barriga… e então como é uma mãe, muito bem, muito bem!…”
Mas a mesma mulher em outro filme [Operários, camponeses],
não a acham nada boa, ainda que, ao nível técnico, ela tenha
dado um pequeno passo adiante. Ela havia refletido sem que nós
precisássemos fazer discursos, ela havia refletido durante dois
anos entre os dois… Nem precisamos discutir, isso se deu assim
e sentimos um progresso, digamos, artesanal, da sua parte. Mas
isso ninguém percebe, isso não os interessa. E mesmo Vittorio,
porque ele não tem mais bicicleta e não pedala mais, é a mesma
coisa, não os interessa mais.
Eu fiquei impressionado quando fui anistiado, os primeiros
filmes que eu vi na França, depois de onze anos, foram, por

28. O demônio das onze horas, de Jean-Luc Godard, 1965.


Entrevistas 91

exemplo, A besta humana29, em Chaillot. Era já o momento em que


só havia estudantes na sala, os colegas quase não vinham mais,
os burgueses cultos tampouco, eram então os estudantes mais ou
menos atrasados e eles zombavam quando Renoir entrava, do seu
modo de atuar, eles zombavam daquilo e eu disse a mim mesmo:
“Em nome de Deus! Não mudou quase nada”, porque, depois do
“La Chambre noire”, meu cineclube em Metz, eu tinha um pequeno
cineclube de 16 mm em Nancy na faculdade, com dois filmes por
mês, e quando exibíamos As damas do bosque de Bolonha30 os
caras zombavam o tempo todo até que gritássemos para que se
calassem. O mesmo com Suspeita31 ou Give us this Day32.

Entrevista realizada em Paris, em 19 de março de 2001,


por François Albera.

29. La bête humaine, de Jean Renoir, 1938.


30. Les dames du Bois de Boulogne, de Robert Bresson, 1945.
31. Suspicion, de Hitchcock, 1941.
32. De Eward Dmytryck, 1949.
92

Entrevista com J.-M. Straub e D. Huillet


Sobre o som1
Perguntas de Enzo Ungari

Sons e imagens

Pergunta: A Itália tem, no exterior, a reputação de ser o país onde


se dubla “melhor”. Não se dublam apenas os filmes estrangeiros,
mas também os filmes italianos: eles são filmados como mudos, ou
com uma pista sonora internacional, e depois são dublados. Você
faz parte destas pessoas — e elas são raras — que filmam com som
direto, ou seja, que filmam as imagens e gravam ao mesmo tempo
o som destas imagens.

Jean-Marie Straub: A dublagem não é apenas uma prática, ela é


também uma ideologia. Num filme dublado, não existe nenhuma
relação entre o que se vê e o que se escuta. O cinema dublado é
o cinema da mentira, da preguiça mental e da violência, porque
ele não deixa espaço algum ao espectador, tornando-o mais surdo
e insensível. Na Itália, as pessoas ficam assustadoramente mais
surdas a cada dia.

Danièle Huillet: A coisa é ainda mais triste se você pensar que


foi justamente na Itália que nasceu, de certa maneira, a música
ocidental, ou melhor, a polifonia.

JMS: O mundo sonoro é muito mais vasto do que o mundo visual.


A dublagem, do modo que é praticada na Itália, não é feita no
intuito de tornar o som mais rico, de fornecer algo a mais ao es-
pectador. A maioria das ondas contidas num filme provém do som,

1. Trechos da entrevista publicada na revista de música italiana Gong e posteriormente na


Cahiers du cinéma, “Entretien avec J.-M. Straub et D. Huillet — Sur le son”, números 260 e 261,
outubro e novembro 1975. A presente versão é traduzida da versão francesa publicada nos
Cahiers, de Marianne Di Vettimo. Tradução de Bruno Carmelo.
Entrevistas 93

e se em relação às imagens este som é preguiçoso, mesquinho e


puritano, então, que sentido ele pode ter? Ou então, precisaria
existir a coragem de fazer um cinema mudo.

DH: Os grandes filmes mudos davam aos espectadores a liberdade


de imaginar o som. Um filme dublado não dá nem isso.

JMS: As ondas que um som transmite não são apenas ondas


materialmente sonoras. As ondas das ideias, dos movimentos,
dos sentimentos também passam pelo som. As ondas que nós
escutamos num filme do Pasolini, por exemplo, são restritivas.
Não enriquecem a imagem, a matam.

Pergunta: Existem cineastas como Robert Bresson ou, melhor


ainda, Jacques Tati, que utilizam a dublagem de maneira inteligen-
te. Alguns filmes de Tati seriam menos ricos se não houvesse um
som artificial.

JMS: Pode-se fazer um filme dublado, mas é preciso ter disposição


para gastar cem vezes mais imaginação e trabalho do que para
um filme com som direto. De fato, a realidade sonora gravada é
tão rica, que apagá-la e substituí-la por outra realidade sonora
[dublar um filme] exigiria um tempo três ou quatro vezes superior
ao tempo utilizado para a filmagem. Pelo contrário, os filmes são
geralmente dublados em três dias, e às vezes em um dia e meio:
não existe trabalho nenhum. Pode haver um sentido filmar sem
som e em seguida fazer um trabalho de som, em contraposição
à imagem. Mas o que os cineastas costumam fazer é colar às
imagens mudas ruídos materialistas, que dão uma impressão de
realidade, vozes que não pertencem aos rostos que vemos.
É de um tédio, de uma vaidade e de um parasitismo terríveis!

Pergunta: Filmar em som direto é mais barato do que dublar.

JMS: Sim, mas isso significa contribuir com o desaparecimento da


indústria da dublagem e ir contra os hábitos locais.
Sobre o som 94

DH: Os realizadores também preferem dublar por preguiça: quan-


do se decide fazer um filme em som direto, os lugares escolhidos
devem servir não só à imagem, mas também ao som.

JMS: E isto se traduz num trabalho de aprofundamento do filme


como um todo. Por exemplo, no nosso último filme, Moisés e Arão,
a ópera de Schoenberg foi filmada no anfiteatro romano de Alba
Fucense, perto de Avezzano, em Abruzos. Mas nós não procuráva-
mos um teatro antigo. O que nós queríamos era apenas um grande
planalto que tivesse, se possível, uma montanha ao fundo. Começa-
mos a procurar este grande planalto faz quatro anos, com um carro
que não era nosso, e rodamos 11 mil quilômetros percorrendo tanto
estradas e vias campestres quanto ruas asfaltadas em todo o sul
da Itália até o centro da Sicília. Durante esta busca, percebemos
que nenhum planalto, por mais bonito que fosse, poderia ser bom
para o som porque quando nos encontramos num grande planalto
tudo se perde com o ar e o vento. Além disso, se tiver um vale, os
sons que vêm de baixo invadem a atmosfera. Por isso, tivemos que
rever nossas intenções e descobrimos que o ideal seria filmar numa
superfície côncava. E, no fim, percebemos que filmar num local
côncavo, no nosso caso, o anfiteatro, era mais justo com a imagem
também, porque nós teríamos um espaço teatral natural, no qual
o tema, ao invés de se dispersar, se concentraria. Nós fizemos o
caminho oposto ao que fazem pessoas como os irmãos Taviani
ou Pasolini, que procuram lugares belos, cartões-postais como
se pode ver nas revistas, nos quais o tema do filme se dispersa ao
invés de se localizar. Para nós, a necessidade de filmar em som
direto, de gravar todos os cantores que estavam no enquadramen-
to, de captar não apenas o canto, mas também o corpo que canta,
nos levou a fazer descobertas, e nos deu uma ideia que nós jamais
teríamos tido por outros meios.

Pergunta: Filmar em som direto também significa montar de uma


maneira específica.

JMS: É óbvio. Quando se filma em som direto, não se pode brincar


com as imagens: existem blocos com uma certa duração e nos quais
não se pode meter a tesoura assim, por prazer, para fazer efeitos.
Entrevistas 95

DH: É justamente a impossibilidade de se enganar na montagem que


é encorajadora. Não se pode montar o som direto como se montam
filmes em que vai existir dublagem: cada imagem tem um som e nós
temos que respeitá-lo. Mesmo quando o enquadramento é vazio,
quando o personagem sai de quadro, não dá para cortar, porque
nós ainda escutamos, fora de quadro, o ruído dos seus passos se
afastando. Num filme dublado, espera-se apenas que a última parte
do pé tenha saído de quadro para poder cortar.

A arte da ilusão

Pergunta: Muitos cineastas não suportam um enquadramento


vazio com um som que continua fora de quadro, porque eles que-
rem que o cinema seja um enquadramento: não deve existir nada
fora dele. Eles recusam a existência de um mundo fora de quadro.
Nos filmes de vocês, o “fora de quadro” é algo que existe e que se
percebe materialmente

JMS: É mais um elemento com o qual o filme dublado engana.


Não apenas os lábios que se mexem na tela não são os lábios que
pronunciam as palavras que escutamos, mas também o próprio
espaço torna-se ilusório. Quando se filma em som direto, não se
pode enganar o espaço: deve-se respeitá-lo, e ao respeitá-lo nós
oferecemos ao espectador a possibilidade de reconstruir, porque
um filme é feito de “fragmentos” de tempo e de espaço. É possível
não respeitar o espaço em que se filma, mas neste caso é preciso
oferecer ao espectador a possibilidade de compreender por que
ele não foi respeitado, e não, como se faz nos filmes dublados,
transformar o espaço real num labirinto confuso e deixar o
espectador nesta confusão na qual ele não consegue se encontrar.
O espectador transforma-se num cachorro que não consegue mais
encontrar os seus filhotes.

Pergunta: Para resumir, o som direto não é apenas uma escolha


técnica, mas também ideológica e moral: ele muda todo o filme e
muda acima de tudo a relação que se estabelece com o espectador.
Sobre o som 96

DH: Mas é preciso acrescentar uma coisa: quando se chega à


conclusão que é preciso fazer um filme desta maneira, cortam-se os
laços com a indústria, quase que completamente. Quando se recusa
a filmar em som-testemunha, quando se recusa a dublar o filme,
quando se recusa a pegar tal ator porque se pensa que existe em
alguns atores uma grande riqueza e que é absurdo escolher sempre
as mesmas caras, então está acabado. Corta-se completamente.
Na verdade, a principal razão da dublagem dos filmes é uma razão
comercial: apenas quando se aceita a ditadura da dublagem é que se
consegue colocar no filme duas ou três vedetes de países diferentes.

JMS: E o resultado é um produto internacional, uma coisa sem


palavras, à qual cada país empresta sua própria língua. Línguas que
não pertencem àqueles lábios, palavras que não pertencem àqueles
rostos. Mas é uma mercadoria que se vende bem. Tudo torna-se
ilusão. Não existe mais verdade. No fim, até as ideias e os sentimen-
tos tornam-se falsos. Por exemplo, em Allonsanfàn2, e eu falo deste
filme porque não vale a pena falar dos filmes de Pétri ou de Lizzani,
não há um único momento, um único instante em que exista um
sentimento humano, verdadeiro. É um filme ferroviário. Não há
lá dentro nada além da ilusão das fotonovelas que se compra nas
bancas de estação de trem.

Pergunta: Muitos cineastas associam a estética internacional


à estética popular e aceitam a dublagem, as vedetes de vários
países e todo o resto, porque acreditam que seja a única maneira
de se fazer filmes populares.

JMS: A estética internacional é uma invenção e uma arma da


burguesia. A estética popular sempre é uma estética particular.

Pergunta: Para a burguesia, toda arte é universal.


A estética internacional é como o esperanto.

JMS: Exatamente. O esperanto sempre foi o sonho


da burguesia.

2. De Paolo Taviani e Vittorio Taviani, 1974


Entrevistas 97

Cinema, música, trabalho

Pergunta: A sua posição contra um certo uso da dublagem


pode parecer mais clara aos leitores da nossa revista [Gong] se
pegarmos o exemplo dos filmes musicais, filmes em que se vê as
pessoas tocando música.

JMS: Um filme musical não tem outra saída a não ser gravar, ao
mesmo tempo, os sons e as imagens. Quando se vê músicos tra-
balhando diante da câmera e produzindo sons, não tem nenhum
sentido substituir os sons que vemos por outros sons.

DH: Não dá para separar o trabalho do seu resultado.

Pergunta: O problema é que nestes filmes, principalmente nos


filmes com música pop, o som direto é utilizado como um som
dublado. Existem cinco câmeras e gravadores, mas tudo é tão
fragmentado, manipulado, editado, que os sons e as imagens
podem ser continuamente deslocados, contanto que haja sin-
cronia. Assim, os sons “verdadeiros” e as imagens “verdadeiras”
estabelecem entre si uma relação falsa. Nestes filmes a música não
é mostrada como um trabalho, e sim como um espetáculo.

JMS: A música é um trabalho executado pelo homem que está


sendo filmado. É possível, por exemplo, incluir o som de uma
orquestra que se encontra fora de quadro e nunca mostrá-la.
É o que nós fizemos com Moisés e Arão: a orquestra tinha sido
gravada antes da filmagem. Mas quando se mostra um cantor
cantando ou um músico tocando seu instrumento, não dá para
substituir as notas que eles tocam. Se alguém decide fazer algo
assim, é uma pena. Uma pena principalmente para o espectador.
Por exemplo em One plus one (1968), o filme de Jean-Luc Godard
que mostra os Rolling Stones ensaiando suas músicas, errando,
recomeçando tudo, é, musicalmente, um filme sério. É, dentro
do gênero, o único bom filme que vimos, mas, naturalmente,
não vimos tudo. Talvez existam outros filmes que sejam igual-
mente bons.
Sobre o som 98

Pergunta: Vocês fizeram um filme em língua alemã: Crônica de Anna


Magdalena Bach (Chronik der Anna Magdalena Bach, 1968), que
também foi exibido na televisão italiana, e que é justamente um
filme sobre músicos trabalhando.

JMS: Nosso trabalho consistia em filmar trechos de música de


Bach: trechos de música religiosa, para cravo, para órgão, para
orquestra. Nós filmamos estas composições mostrando sempre,
ao mesmo tempo, todos que as executavam, do começo ao fim.
Nós não interrompemos nem cortamos com detalhes: se um coral
cantava, via-se todo o coral. Nós seguimos uma ideia do começo
ao fim, e o conjunto é oferecido como um bloco de construção,
como uma arquitetura musical; o espectador, se quiser, pode
passear o seu olhar de um detalhe a outro; nós mostramos a
arquitetura inteira.

Pergunta: A música de Bach, que é central em Crônica, também


está presente em muitos dos seus filmes. Por que Bach?

JMS: Nós trabalhamos muito com Bach. É o músico que conhece-


mos melhor, depois de Schoenberg. Ele representa o fim de uma
certa civilização cristã ocidental. Com a sua morte, na Alemanha,
em 1750, começa uma outra época. Bach nos interessa pelas mes-
mas razões que ele era do interesse de Brecht. Brecht dizia: “Uma
boa música não deve elevar a temperatura daquele que a escuta.”
Ele encontrava em Bach sua música quase ideal, uma música
que deixa sempre o ouvinte, o espectador, frio e livre para seguir
um pensamento, para usar a cabeça para seguir as linhas que
continuam e se interrompem: um tecido musical dialético. A música
de Bach é uma das mais dialéticas que existem. Além disso, existe
nela, subterrânea, uma enorme violência. Eu acho que é importante
que os jovens de hoje tenham a possibilidade de ouvir Bach, como
ele escrevia, como era tocado na sua época, porque hoje em dia
escutam-se muitos discos que começam com três ou quatro trechos
de Bach e que terminam na névoa. Eu estou convencido que estes
discos só têm sucesso por causa destes três ou quatro trechos, e
não por causa da névoa…
Entrevistas 99

DH: O que não quer dizer que a música de Bach seja fria.

JMS: Não. É uma música muito quente que, paradoxalmente, deixa


a cabeça fria.

Pergunta: No roteiro de Crônica existe como introdução uma frase


de Charles Péguy: “Fazer a revolução também é restituir coisas
muito antigas que foram esquecidas”.

JMS: É a frase de um poeta socialista. Ela se refere a Bach, a certas


coisas de sua época, que para nós, contemporâneos, era impossível
ver, porque, entre eles e nós, e entre nós e o fim da época barroca,
existiu todo o romantismo, ou seja, uma época que desvirtuou a
música de Bach e que não permitia que ele fosse ouvido como ele
mesmo tinha escrito e sonhado. Tocava-se, por exemplo, um simples
coral de Bach, uma cantata, uma música de igreja, com 250 músicos,
enquanto Bach imaginara no máximo três crianças por voz. Assim,
um coral simples, composto de quatro vozes (sopranos, contraltos,
tenores, baixos) era executado na época de Bach por no máximo 12
crianças, e não por 250 músicos. Restituir o padrão das coisas signi-
ficava para nós dar ao espectador a ocasião de escutar esta música
com os meios com os quais Bach havia realmente escrito.
Nunca existiu uma “autobiografia” de Bach. Anna Magdale-
na, que era sua segunda esposa, nunca escreveu uma linha sequer
sobre ele. Ela escreveu apenas uma carta, depois da morte dele, e
nem foi ela que redigiu: ela foi ditada a um copista, era destinada
a um conselheiro municipal da cidade e pedia dinheiro. As cartas
que a atriz lê não foram escritas por Anna Magdalena, mas por
Bach. Para nós, o único ponto de vista possível para se ver Bach
era um ponto de vista externo ao músico cuja vida era contada,
que foi ao mesmo tempo um ponto de vista contemporâneo. Um
ponto de distância, mas também de simpatia, de proximidade.
Só poderia ser o ponto de vista de Anna Magdalena, porque era
dotado de amor.

Pergunta: O cinema e a música se parecem muito, um filme se


parece mais com uma partitura musical do que com um romance,
um quadro ou uma fotografia.
Sobre o som 100

JMS: Isto é para nós uma história antiga. O cinema parece ser a
arte do espaço. Na realidade, é a arte do tempo. Trabalha-se com
blocos espaciais para construir uma realidade temporal. E a arte
que trabalha mais com o tempo é a música.

Pergunta: Quando se fala dos filmes de vocês, dá para perceber


que as pessoas que os compreendem melhor são os músicos.
Mesmo as críticas mais interessantes que eu li foram feitas por
pessoas da música, e não do cinema. Eu penso em Stockhausen e
no que ele escreveu sobre seu primeiro filme, Machorka-Muff, que
não é um filme sobre a música.

JMS: Machorka-Muff é um curta-metragem de cerca de 18 minutos:


ele conta a história exemplar de Erich Von Machorka-Muff, ex-coro-
nel da Wehrmacht [exército de Hitler], que é contratado pelo novo
exército de 1957. Desde o fim da guerra até esta época, os alemães
tinham tido o privilégio de não ter nenhum exército, nenhum
serviço militar. O coronel torna-se general. Stockhausen viu o filme
e escreveu um texto. Desde então, eu vi Stockhausen várias vezes.
Eu queria dar-lhe o papel principal, o do jogador de bilhar, no nosso
segundo filme: Não reconciliados que nós tiramos do romance de
Heinrich Böll: Billard um halb zehn [Bilhar às nove e meia]. Eu fiz o
convite, mas ele não aceitou porque ele era preguiçoso demais para
aprender a jogar bilhar. Depois, ele viu o filme e gostou.

Pergunta: Em 1972, quando vocês já pretendiam fazer Moisés e


Arão, vocês realizaram um curta-metragem de 15 minutos intitu-
lado Introdução a “Música de acompanhamento para uma cena de
cinema” de Arnold Schoenberg. Existe uma relação entre este filme
e Moisés?

JMS: Não. Ele estabelece apenas nossa relação com o homem


Schoenberg, com seu trabalho de músico, sua mentalidade. Neste
curta-metragem existe um comentário musical, ao contrário
do que fazemos normalmente, o oposto de Moisés e Arão, e a
música escolhida para este comentário é a única música que eu
pude me permitir a escolher. É um trecho escolhido pelo próprio
Schoenberg, cujo título é “Música de acompanhamento para uma
Entrevistas 101

cena de jogos de luz”. É preciso lembrar que antes de 1933 esta


era a maneira como se definiam os cinemas na Alemanha: cenas
de jogos de luz.
No filme são lidas duas cartas que Schoenberg tinha escrito à
Kandinsky, o pintor: cartas violentas, porque Kandinsky não tinha
compreendido o que era o antissemitismo na Alemanha. Existe
um texto de Brecht que contradiz e completa as afirmações de
Schoenberg e, além destes textos, existe a música, esta música
que Schoenberg tinha concebido e escrito como uma música de
filme, o acompanhamento musical de um filme que não existia, dez
minutos de música para um filme como ele o imaginava na época.

Terrorismo, Cinema, Política

Pergunta: Vocês são frequentemente acusados de fazerem um


cinema terrorista em relação ao público. Dizem que os filmes de
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet são muito bonitos, mas inúteis,
porque eles são contra o público e não levam em consideração
este público.

JMS: As pessoas que afirmam isto são impostoras. Nós poderíamos


até aceitar o rótulo de filmes terroristas: mas nossos filmes, se eles
o são, não exercem um terrorismo contra o público, mas contra a
indústria cinematográfica, contra este bando de cafetões que se
apropriam do direito de decidir os gostos do público. E os filmes
feitos em consideração a estes cafetões nunca são um presente
para o espectador, mas um presente aos que os fazem e aos que
os produzem: um lucro. São filmes desonestos que impõem, pela
violência, sentimentos que não têm nada a ver com a realidade e a
vida cotidiana. Nossos filmes são sempre pensados para o público.
E cada um de nossos filmes é diferente do outro porque é destinado
a um público diferente. Machorka-Muff, nosso primeiro filme, era
destinado às pessoas que nós encontrávamos quando vivíamos na
Alemanha. Era um curta-metragem de acompanhamento para qual-
quer western americano, bom ou ruim, e ele pretendia se comunicar
principalmente com os jovens condenados a fazerem o serviço mili-
tar, que iam ao cinema no sábado à noite. Lições de História também
Sobre o som 102

era um filme em língua alemã, pensado para o público misturado da


televisão, e foi ao ar. Ele era uma reflexão sobre a História, sobre a
língua de Brecht e, ao mesmo tempo, uma proposição sobre o que
pode ser um filme para a televisão. Ele conquistou o seu público,
assim como a Crônica, que passou três vezes na televisão alemã.
Em seguida, teve Othon. O público que nós tínhamos imaginado e
para quem tínhamos filmado era um público de língua francesa que
nunca tinha ouvido falar em Pierre Corneille. Othon é uma tragédia
de Corneille de 1664, e o filme certamente não era pensado para os
estudantes que conheciam Corneille, ou para a burguesia que acha
que sabe o que é Corneille. É um filme feito para os agricultores
e operários que não conheciam este escritor, um dos mais ricos
e mais dialéticos da língua francesa. Othon foi o único de nossos
filmes que não conquistou o seu público, porque a televisão fran-
cesa se recusou a exibi-lo. Neste caso, nós fracassamos. Entretanto
Othon passou no segundo canal da televisão alemã, com legendas
alemãs. Desta maneira, pelo menos ele cobriu seus custos. Mesmo
que Não reconciliados tenha sido pensado para um público italiano,
ele foi visto por 300 mil pessoas. Para nós, isso é imenso. Nós não
poderíamos imaginar algo melhor. Nós não somos sonhadores
totalitários como os funcionários da R.A.I., que querem, com cada
filme, atingir 20 milhões de pessoas. Eu acredito que também seja
importante fazer filmes para as minorias, porque pode-se esperar
que elas sejam, como diz Lênin, as maiorias de amanhã.

Pergunta: Faz muitos anos que vocês vivem na Itália.


É uma realidade que vocês conhecem bem.

JMS: O próximo filme que pretendemos filmar será nosso primeiro


em língua italiana. Nós esperamos uma resposta de Franco Fortini
e, se ele aceitar, nós o faremos. Só terá sentido se ele passar na
televisão, porque é destinado a um público de língua italiana que
assiste à televisão.

Pergunta: O que vocês acham do cinema italiano?

JMS: Na minha opinião, existem apenas duas coisas. Por um lado,


eu respeito o trabalho de Michelangelo Antonioni. Por outro,
Entrevistas 103

como proposta absolutamente oposta, como inserção diferente,


os filmes feitos pelo grupo de Anna Lajolo, Alfredo Leonardi e
Guido Lombardi. Além deles, nós temos grandes expectativas
para o trabalho de Marco Bellocchio. Sobre os outros cineastas,
sobretudo os que são muito conhecidos, eu posso dizer apenas
que, no trabalho que fazem, eles são irresponsáveis. De qualquer
modo, não é minha responsabilidade assumir o papel de juiz
ou profeta. Eu não conheço tudo, nem do underground, nem do
cinema industrial. Mesmo assim, eu vejo muitos filmes e o que eu
vejo me dá cada vez mais medo. Em todo caso, são estes senhores
que escolheram trabalhar na indústria que me assustam mais.

Pergunta: Dentre os cineastas que trabalham fora da indústria,


existe a intenção de se enterrar com as próprias mãos. Eu acredito
que é preciso explorar os espaços que ainda estão livres, sem
renunciar à integridade do que se quer dizer.

JMS: Não cabe a mim julgar as pessoas que se recusaram a


trabalhar na indústria. Eu posso apenas dizer que os espaços
que nós tentamos utilizar (eu não quero dizer “explorar”, eu não
acho que nós tenhamos o direito de dizer “eu quero explorar um
espaço”) são os raros espaços deixados pela televisão. Mas nós
não temos, entretanto, a menor possibilidade, a menor vontade
de nos inserir na indústria da distribuição. Paga-se um preço
que se conhece bem, e que não se tem vontade de pagar. Não
faz sentido, quando se deseja realizar um filme sobre a cultura
campestre, aceitar um Mastroianni no papel de camponês
italiano. O filme será jogado nas salas e ele terá um público,
mas ele não será o filme que se pretendia fazer, ele será algo
completamente diferente. Então, por quê? Nós trabalhamos fora
deste mundo porque este mundo é uma droga. Eu acho anormal,
imoral, monstruoso e absurdo fazer um filme em que não se é
livre para usar o tempo escrupulosamente; em que não se tem a
possibilidade de escolher as coisas justas, em que não se pode
ser pago nem pagar os outros normalmente, com quantias que já
são por si mesmas muito superiores às que são pagas aos operá-
rios normais; em que se é obrigado a pagar a Marlon Brando ou
Tonino Delli Colli quantias faraônicas. Não existe motivo de se
Sobre o som 104

fazer um trabalho que também é um prazer, mas com os métodos


de um sistema que destrói todo o trabalho, e também todo o
prazer. Estes métodos devem ser destruídos.

DH: Moisés e Arão é um filme caro, que nenhum produtor de cinema


teria aceitado realizar. O financiamento deste filme foi construído
por nós com paciência e trabalho da seguinte maneira: uma pequena
parte da televisão francesa, uma parte do setor experimental da
televisão italiana, cerca de metade do terceiro canal da televisão
alemã e uma ajuda, não em dinheiro, da televisão austríaca, e que
representa uma quantia enorme, porque cobre os gastos de gravação
em Viena (6 semanas), o coral (66 pessoas) e a orquestra (100 músi-
cos). O filme custou 180 milhões de liras. Se acrescentarmos a ajuda
dos austríacos, essa quantia se eleva a 350 milhões.

JMS: Nós pudemos nos limitar a esta quantia, porque não existem
salários para pagar vedetes. Todo o dinheiro serviu ao filme. O
maestro da orquestra, por seis semanas em Viena, quatro semanas
em Abruzos e uma semana de mixagem, recebeu 7 milhões e meio
de liras. Todos os técnicos foram pagos de acordo com a tarifa
sindical.

DH: É preciso dizer também que preparar um filme significa não


perder tempo durante a filmagem, não deixar as pessoas esperan-
do, por termos que procurar coisas que não procuramos antes…

JMS:… não esperar um ator que chega atrasado. Se tivesse sido


produzido com os métodos do cinema industrial, Moisés e Arão
teria custado mais de meio milhão, se acrescentarmos o trabalho
do montador (o nosso filme, somos nós mesmos que montamos)
e o do realizador, realizador-trabalhador, e não realizador-vedete.
105

Conversa com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub1


Sobre Lições de História

Jean-Marie Straub: 1963–1973. O combate solitário e exemplar


de um exilado político (somos todos judeus alemães). Entre um
produtor materialista e místico (só a violência ajuda onde a vio-
lência reina / Os jovens noivos esperam o instante de se entregar
ao amor do noivo desconhecido) e um sistema de reprodução
capitalista (os arqui reacionários de hoje, ainda inflexíveis, mas
não fortes, cocô de cachorro). Alguns textos aqui reunidos, não
uma homenagem, mas uma advertência: depois de Machorka-Muff
(1963), Não reconciliados (1965), Crônica de Anna Magdalena Bach
(1967), O noivo (1968), Othon (1969), Lições de História (1972),
Moisés e Arão poderá ser feito, sim ou não? Cabe ao espectador
(ao leitor) responder às questões propostas pelo entrechoque
destes textos. Nem tudo ficou dito, mas por que se deveria dizer
tudo? Esses textos, como o público, como a história, são um lugar
de experiências, daí os saltos, as rupturas, as contrações, as
contradições. Os filmes de Straub são filmados no telescópio: 30
anos de história em 60 minutos, a Alemanha vista do ano 2000, o
imperialismo resumido de uma cabeça, a vida de um compositor
agitador propagandista. Tentemos então um pouco para ver esse
telescópio, tenhamos a coragem de experimentar, o caminho é
sinuoso, mas o futuro é radiante.

1. Publicação original: “Conversation avec Danièle Huillet et Jean Marie Straub”. ça cinéma, 1°
ano, 2° Estado, outubro de 1973, pp. 18–29. Esta versão francesa, que traduzimos aqui, já era
uma tradução feita pela própria Danièle Huillet de uma entrevista dos Straub a Wilhelm Roth
e Günther Pflaum, concedida em Manheim, em 12/10/1972, e publicada primeiro em alemão na
revista Filmkritik, n.194, fevereiro de 1973. Segundo o editor da revista francesa, V. Nordon, a
tradução de Huillet buscou a fidelidade máxima ao registro falado da conversa, depois que
os Straub descartaram uma tradução mais “literária” proposta pelos franceses. Procuramos
manter aquela fidelidade almejada pelos Straub, limitando-nos a acrescentar aqui e ali, entre
colchetes, uma ou outra palavra em frases que de outro modo pareceriam truncadas. Traduzido
do francês por Íris de Araújo Silva e Mateus Araújo Silva.
Sobre Lições de História 106

Você leu agora pela primeira vez o romance de Brecht2 e viu logo
que ele é um tema para Roma, ou já o conhecia antes?

Eu descobri o romance há cerca de seis anos e foi um grande


choque. Então pensei em fazer dele um filme. Depois, em Roma,
antes de nos instalarmos, quando gravamos o comentário em
italiano para o “Bach-filme”3 e mesmo antes, quando escolhemos
os figurinos, eu pensava num filme, mas que fosse extraído dos
dois livros que agora só estão nele indiretamente, o livro 2 e o livro
4. Esses dois livros consistem num diário fictício de um secretário
de César chamado Rarus, que também parece ficcional. Então
eu tinha o projeto de um filme, ainda não inteiramente claro, que
teria como ponto de partida uma reflexão econômica sobre a velha
cidade, a vida na velha cidade, os artesãos etc. Mas logo descobri
que não tem sentido vestir artesãos de romanos. Então pensei
num filme sobre a vida atual dos artesãos. Para isso eu utilizaria o
diário de Rarus. Aí, filmamos enfim o “Bach-filme”, depois partimos,
depois veio Othon, para o qual estivéramos na Itália. E de repente,
um dia, [a ideia] surgiu como ela está agora em minha cabeça.
Depois notamos que esses passeios de carro traziam coisas à tona:
o diário de Rarus, a vida dos artesãos estavam nestes passeios.
É claro, sem análise. Ainda poderíamos fazer esta análise, num
filme inteiramente diferente, baseado no mesmo romance.

Os passeios são muito estranhos. Quanto mais o tempo passa,


mais os carros se tornam numerosos; não se encontram mais
homens. Podemos relacionar isso aos artesãos? Não é um passeio
na desolação?

Não os vemos mais, eles são cada vez mais recalcados pelo
trânsito, se quisermos simbolizar: cada vez mais recalcados pela
sociedade capitalista. À parte o fato de que em todo caso não os

2. Die Geschäfte des Herrn Julius Caesar, romance de Bertolt Brecht escrito em 1937–39 durante
seu exílio na Dinamarca, publicado postumamente em 1957 na Alemanha e traduzido no Brasil
por Irene Aron (Os negócios do Sr. Júlio César, Rio de Janeiro: Rocco, 1986). [N.T.]
3. Nesta conversa como em outros lugares, Straub se refere ao seu filme Crônica de Anna
Magdalena Bach como “Bach-filme”, que aparece com hífen em certos textos, e sem hífen nou-
tros. [N. T.]
Entrevistas 107

vemos mesmo quando não há carros, pois eles estão sempre em


suas lojinhas. Mas os ouvimos. Sentimo-los. Sentimos que há uma
atividade artesanal nessas ruelas. No início não queríamos de
forma alguma fazer isto assim… Imaginamos várias coisas antes
de chegarmos à solução simples dos passeios de carro. Por exem-
plo, alguém poderia passear com uma câmera na mão e olhar sem
pudor para o interior quando um artesão estivesse trabalhando
no fundo de sua lojinha. Ou então um plano de carro, e por essa
razão renunciamos, como no Noivo… Depois, chegou a ficção,
isto é, o rapaz ao volante, separado deste mundo, pois isto tam-
bém é decisivo: não só o mundo dos artesãos é recalcado, como
também o motorista está separado da vida na rua, numa gaiola
de vidro, ainda que a janela e o teto estejam abertos. E nesses
passeios de carro não há só a história dos artesãos, mas também
a arquitetura de Roma, as camadas. Essas casas altas e essas ruas
estreitas, que são muito bonitas, mas também opressivas. Quer
dizer que homens devem viver lá e o fazem realmente, há séculos.
É o homem e a arquitetura, a arquitetura e o homem. A vida na
rua e a vida nas pedras. As casas dos romanos não eram muito
diferentes, a Idade Média retomou muitas coisas, pelo menos no
velho centro [da cidade].

O primeiro passeio de carro começa um pouco fora de Roma, ao


passo que os outros…

O primeiro tem por função [mostrar] a chegada em Roma. Vemos


primeiro os mapas fascistas de mármore do Império Romano,
quando ele era realmente grande, em seguida um pouco menor,
e depois [cobria] somente a Itália. Em seguida, vemos César em
seu pedestal, o que já é também uma mitificação, pois é uma
estátua fascista, uma cópia duma estátua romana, mas de uma
estátua romana oitenta anos após a morte de César, então já era a
heroicização. Vemo-lo em seu pedestal e atrás o Capitólio, de onde
Roma era governada. E depois começa a entrada, o mergulho em
Roma. É por isso que o passeio começa numa colina. Essa colina é
justamente o Janículo, a colina do outro lado do rio, não na cidade
velha, mas onde viviam os artesãos, os escravos e, naturalmente,
os cristãos, mais tarde.
Sobre Lições de História 108

Isso pode ser visto também como uma espécie de descida


ao inferno?

Sim, certamente. Também, como ele se desloca cada vez mais


em círculo ao final, há um aspecto labiríntico. O primeiro passeio
é ainda quase reto.

Qual é a relação do material filmado nos passeios com aquele


usado depois no filme?

A do primeiro passeio inteiro é de três para um, pois ele foi inter-
rompido uma vez. A dos outros é de dois para um.

E não há outros passeios?

Nós recomeçamos o terceiro passeio, mas sempre interrompido,


e isso no dia seguinte. O material do terceiro, que está no filme,
foi filmado entre as 5 e as 7, isto é, na hora do dia em que as
pessoas já estão sentadas em frente às suas casas, nos bistrôs.
Ao contrário do segundo passeio no filme, que é exatamente ao
meio dia. Vê-se um relógio, dez para meio-dia. É o mercado central
em Roma. O motorista o atravessa. Provavelmente, [o espectador]
não o vê, ele fica à direita, e à esquerda, está o Campo de’ Fiori.
Em seguida, o motorista vira na primeira ruela. A chegada em
Roma era de manhã. O terceiro passeio, que recomeçamos no dia
seguinte e que não está no filme, nós tentamos filmá-lo de manhã.

O trajeto exato era estabelecido previamente?

Sim, nós o percorremos a pé, muitas semanas antes. Tínhamos


seis trajetos diferentes. Depois eliminamos, combinamos, até
chegarmos ao que é agora. Andamos muito, quatro meses a pé.
Além disso, eram os quarteirões em que passeávamos todo dia
para comprar água ou vinho. O terceiro passeio termina a vinte
metros do lugar onde moramos.

Nestes passeios, nunca vemos nenhuma partida e nenhuma


chegada.
Entrevistas 109

É assim, não se sabe de onde o motorista vem nem para onde vai.
Aí as relações são livres. Pode-se pensar que no primeiro passeio
ele parte da estátua no pedestal, mergulha na cidade e vai pela
primeira vez à casa do banqueiro. Em seguida vem a segunda
pessoa no filme, é o camponês. Aí, não há passeio de carro, por-
que só se pode chegar lá [na casa dele] a pé. É no vale de Fortezza,
depois de Brunico. Depois vem de novo um passeio de carro,
pois chegamos logo na casa do advogado, que está no terraço.
Podemos então supor que [no passeio que precede esta cena] ele
estava indo à casa do advogado. Depois, vem o poeta, mas esse
está sentado à beira do mar, na sua ilha. É em Elba, lado norte.
É também um travelling, mas aí estamos num barco, e vemos o
zoom sobre a casa. Depois vem o terceiro passeio e, em seguida,
de novo o banqueiro. Entretanto, na realidade, ele não vai de
modo algum à casa do banqueiro, ele faz viagens de descoberta.

As proporções entre a extensão dos passeios de carro e o resto


do filme foram estabelecidas conscientemente? Muitas pessoas
disseram que os passeios de carro são longos demais.

Eu acho que eles só se tornam exatos por serem longos. Já existem


travellings suficientes de carro nos filmes.
É assim: no início a atenção está firme, depois baixa lenta-
mente, e só depois volta a subir, porque a sequência dura. É exa-
tamente como nos planos do “Bach-filme”, em que no início dos
blocos musicais o espectador ouve lucidamente, depois se cansa
e sente apenas uma confusão e, mais adiante, se der ao filme um
pouco de atenção, percebe exatamente as relações entre o que
vê e o que ouve. E aqui creio acontecer a mesma coisa. A duração
dos travellings de carro em relação ao resto: não há nada aí de
sistemático, fizemos isto intuitivamente.

A construção do filme me lembrou um pouco a Joana d’Arc de


Bresson4, em que tudo é muito regular: as sequências na prisão e no
processo trazem quase sempre um número igual de planos, separadas
pelo movimento na escada. Isso tem algo de claro, metódico, refletido.

4. O processo de Joana d'Arc (Le procés de Jeanne D'Arc, de Robert Bresson, 1963). [N.T.]
Sobre Lições de História 110

Seguramente, não é um acaso. Vi Joana d’Arc três, quatro vezes.


Mas, por outro lado, é de todo modo um acaso, por assim dizer,
obrigatório: um cineasta que fecha assim as pessoas num processo,
só as deixa falar, filma duramente o diálogo em campo-contracam-
po, deve criar pausas, repousos. No nosso filme também.

Não existia um equilíbrio entre a duração dos passeios e a das


passagens dialogadas?

Houve sim uma construção e as durações foram fixadas, é claro;


se o resultado ficou mais sistemático ainda, isso foi só um acaso.

Qual é a extensão dos travellings de carro?

Trezentos e dez metros de 16 mm, logo, 25 minutos.

Logo, um terço do filme… Você estava sempre sentado no carro


durante as filmagens?

Estávamos sentados, eu à direita, bem rente ao campo, o nariz


quase dentro, quando eu tinha um cigarro ele já entrava no campo,
aí eu não tinha mais o direito de fumar. Logo à minha frente, a
câmera, e atrás da câmara [Renato] Berta, que tinha pouquíssimo
espaço. Depois, à esquerda, com o Nagra, o engenheiro de som
que segurava o microfone fora, rente ao campo à esquerda, e que
mexia sempre um pouco, quando fragmentos de palavras chega-
vam de fora. Portanto, a câmera inteiramente fixa e o microfone
um pouco móvel.

Com base em quais princípios foram escolhidos no romance os


textos do banqueiro, do advogado, do poeta e do camponês para
o filme?

Tudo o que era reflexão econômica, sobre como funciona uma


democracia burguesa ou uma sociedade capitalista. Quer dizer,
deixamos de lado tudo o que era anedótico, por exemplo: “Ah!
Moço, você prepara um grande livro que sempre nos faltou”. Ou
então as conversas com o banqueiro, quando eles negociam o
Entrevistas 111

preço pelo qual ele vai vender o jornal de Rarus.

Você não escolheu sobretudo aspectos de política exterior, como


por exemplo o que se chamou de revolta dos escravos…

…e [que] por isso abafou um pouco o caso Catilina…

…a Guerra Púnica, a exploração da Espanha?

Sim, está no filme como nasce o imperialismo, como nasce a


democracia, que é inicialmente um progresso, assim como a
escravidão era um progresso dialético, o que Engels conta e
demonstra longamente; assim como a democracia é inicialmente
um progresso em relação às 300 famílias, ao Senado; mas depois
nasce daí e se desenvolve o imperialismo que devasta em seguida
o mundo inteiro. Isso acaba na colonização da Espanha com
métodos brutais. Pensamos, evidentemente, na Argélia e também
nos americanos, no imperialismo americano, também naquele
que não é violento, por exemplo, o imperialismo inglês. Parale-
lamente a isso, o imperialismo alemão, puramente comercial. O
Auxílio ao Desenvolvimento é também uma forma de imperialismo.
Devo acrescentar que tínhamos pensado, quando o banqueiro
volta do passeio com o rapaz, e diz: “Quase tudo na sua vida de
hoje já tem aquele aspecto. Vou lhe dizer o que era. Era comércio
de escravos. Esse pequeno negócio cai no momento em que C…”
etc. Aí vem um contracampo, com paisagem vazia. “O comércio
de escravos era um ramo bem organizado dos negócios, com
capitais abundantes, também romanos. No mercado de escravos,
em Delos, eram vendidas, entre outras, num só dia, até dez mil
peças. As ligações entre os vendedores de escravos e os vendedo-
res da capital eram estreitas e bem ordenadas. Foi só mais tarde,
quando a City organizou seu próprio comércio de escravos, que
ocorreram conflitos com o truste exportador da Ásia Menor” etc.
Aí, vem a paisagem vazia, não se vê mais ninguém, pela primeira
vez no filme, com exceção daquilo que sucede os letreiros iniciais.
Tínhamos trabalhado inicialmente com a ideia de mostrar a vida
no subúrbio, seja na França, seja na Alemanha, lá onde vivem
trabalhadores imigrados. Renunciamos porque a relação é justa,
Sobre Lições de História 112

mas também não é. É preferível (outros podem ser de outra


opinião) deixar ao espectador a maior liberdade de estabelecer
ele próprio as suas relações.

Como os atores trabalharam o texto?

No início, estávamos sempre presentes. Não queríamos que


eles o lessem antes longamente sozinhos, e eles não o fizeram.
Trabalhamos durante mais tempo e mais intensamente do que em
Othon. O banqueiro começou nove meses antes conosco, primeiro
durante seis dias. No início, durante três dias de tentativa, pois
ele primeiro recusou, dizendo “eu não vou conseguir, [tenho]
minha profissão” etc.

Qual é a profissão dele?

É Gottfried Bold, redator cultural no Welt der Arbeit (Mundo do


Trabalho, órgão da associação dos sindicatos da RFA). Éramos
amigos desde Machorka-Muff, do qual ele foi um dos raros defen-
sores. Ele tinha um pequeno papel em Não reconciliados, era um
dos três gângsteres que, ao final, no quarto de hotel, faz cálculos
com os eleitores. Ele abre uma garrafa de champanhe e diz: “Estou
certo, vocês não podem perder nada aí, somente ganhar”. No
fim, ele diz: “Vou descer e dirigir a atenção do chefe do cortejo
para a sacada de vocês”. [Para Lições de História], após três
dias, ele disse: talvez eu consiga, no fim das contas… Depois ele
realmente trabalhou durante três períodos de cerca de dez dias,
cinco horas por dia, sempre conosco. E depois, ainda em vários
fins de semana em Colônia. E aí, no final, ele refletiu intensamente
durante três semanas, confrontou o texto com suas próprias
experiências. Sempre lemos com ele, aprendemos de cor, de forma
que aprendemos ao mesmo tempo. Há muitos textos que ele sabia
de cor antes de nós, alguns que sabíamos antes dele. Depois, ao
mesmo tempo, estabelecemos pausas, sublinhamos palavras em
vermelho, parágrafos, cesuras.

O texto foi transformado de novo durante este trabalho? Por


exemplo, se o intérprete não conseguia falar uma frase, você
Entrevistas 113

decidia deixá-la de lado?

Não, isso não. Os blocos, tais como estão, foram fixados por nós.
E a forma pela qual os textos são ditos finalmente no filme, isso
discutimos e fizemos com cada um, sempre. Primeiro, nós dois
ouvíamos (e é importante também que sejamos dois), depois
discutíamos entre nós e novamente com o ator que dizia o texto.
E quando ele criava uma cesura aqui ou ali… primeiro lia, dizía-
mos que ali talvez ficasse bom, aqui um traço, ali dois traços, aco-
lá mais longo, depois de novo corrigíamos, apagávamos, sempre
só a lápis. E depois, quando acentuações escapavam, e há muitas,
embora não sejam dramáticas, então sempre dizíamos: assim está
bom, mas aquela talvez ainda se deva deslocar, pois no curso da
última frase perdeu-se essa palavra, que é uma palavra-chave ou
uma frase, e assim por diante. Depois corrigimos, voltamos atrás
etc. Deixando sempre as coisas tomarem forma lentamente.
Em contradição com isso, no [caso do] camponês: aí também
participamos de todos os ensaios, menos do último, que o rapaz
do filme, Benedikt Zulauf, antes de vir a Roma, logo antes do início
da filmagem, fez sozinho com o camponês. E nós trabalhamos
com o camponês pela outra ponta, isto é, ele primeiro leu o texto
como todos os outros, mas depois transpôs o texto para suas
próprias palavras, reescreveu, improvisou. Com suas próprias
experiências, o que ele tinha compreendido (devo dizer, muito),
até acrescentando coisas.

Que experiências ele tem?

É um homem que [os nazistas] arrastaram com eles até Stalingra-


do. Mussolini vendeu a Hitler as pessoas dessa região e elas foram
estritamente enquadradas por oficiais alemães e austríacos
— nenhum deles tinha o direito de ser nem mesmo suboficial.
É um verdadeiro Schweyk5, quando conta suas experiências de
guerra, quase mais consciente ainda. E, além disso, [ele traz]

5. Referência ao soldado que protagoniza a peça de Bertolt Brecht, Schweyk na Segunda Guerra
Mundial (Schweyk im zweiten Weltkrieg), escrita em 1943 a partir do romance tcheco As aven-
turas do valente soldado Schweyk durante a guerra mundial (1920–23), de Jaroslav Hasek, que
Brecht já ajudara a adaptar para o grupo teatral de Piscator em 1927–28. [N. T.].
Sobre Lições de História 114

ainda sua cultura camponesa e suas experiências na aldeia. É um


dos que falam de bom grado nos enterros… Depois substituímos
lentamente no camponês suas próprias palavras pelas de Brecht.
Um último ponto é interessante de contar: era um pequeno
“sim”. Ao final, ele dizia sempre, é a última coisa que tivemos que
mudar: “E aliás, eles tinham ‘sim’ seus escravos.” Então nós lhe
explicamos por muito tempo, o que ele compreendia também
imediatamente, mas recaía sem cessar [naquele ‘sim’], que é
evidentemente um enfraquecimento do texto. É muito mais forte
dizer “eles tinham” — cesura — “seus escravos”, sem que isto
apareça como uma evidência.

O próprio Brecht indica algumas vezes no romance como as


pessoas falam. Diz que o banqueiro é “completamente indiferente,
sem sinal de humor”. Diz uma vez que o poeta falara como se
quisesse aprender logo de cor o que acabava de dizer para
escrevê-lo em casa. Isto era um ponto de partida para a arte e a
maneira dos atores dizerem os textos?

Não.

Mas essa indiferença estava lá nos textos, atravessava-os.

Pode ser. Mas se o banqueiro ou o advogado fossem outros atores,


então [sua maneira de dizer o texto] teria sido diferente. Nós
sempre construímos o texto com o homem concreto que diz o
papel. Não com qualquer personagem abstrato que lhe tivéssemos
imposto. Estas indicações [de Brecht], eu tinha até esquecido.
Mas se elas coincidem com as nossas…

Isto vem provavelmente dos próprios textos.

Isso vale para o rapaz. Brecht escreve que contou a história de


César e dos piratas como a aprendeu na escola. É o único lugar em
que estava consciente de que é uma aula de História. “Você estaria
pronto para repetir o que sabe sobre isso?” — “O jovem César foi
preso perto da ilha de Pharmakusa…”
Entrevistas 115

Para os relatos das testemunhas você fez relativamente muitos


planos. No primeiro relato do banqueiro, a câmera começa
à esquerda e se desloca pouco a pouco ao redor do banco do
jardim: o último plano é exatamente o contracampo do primeiro…

220 graus…

…mas não é uma panorâmica, é sempre decupado.

Isso parece realmente uma panorâmica. É mesmo um movimento


de grua, que não sentimos de início como movimento de grua, só
no fim, quando o rapaz pergunta em primeiro plano: “Ele parecia
promissor no partido democrático?”, aí descemos de repente,
quase em contra-plongée, para enquadrá-lo. É por isso que falo
de grua, pois o movimento parte inicialmente do alto. Vemos o
banqueiro, primeiro com o rapaz, depois sozinho, com todas
essas mudanças de planos, mas sempre do alto, pois durante esta
primeira sequência eu não queria mostrar o entorno, as flores,
que deveriam aparecer só mais tarde. Porque no início sua ma-
neira de falar é ainda tranquila. E, em seguida, giramos em torno
dele, sempre do alto, depois descemos levemente e, de repente,
pum! — em baixo. Só poderíamos fazer isso com uma grua no
rapaz. O banqueiro sempre em plongée, e o rapaz subitamente no
fim do círculo em contra-plongée. E de fato [isto aparece] como
uma panorâmica, que teríamos decupado.

Os lugares onde houve mudanças de planos já estavam fixados a


cada vez no texto?

Sim, a única coisa que fixamos inteiramente e impusemos aos


atores foram os blocos. Obviamente, não como um plano se pro-
longa após a última palavra, quando se ouve uma moto ou quando
uma folha cai. Antes que o rapaz diga: “Eu não compreendo como
ele teve o poder para tudo isso, já naquela época”, uma folha cai,
não a vemos bem, mas vemos como ele a retira de sua calça. E só
depois ele diz a frase. Coisas assim obviamente foram mantidas
na montagem, elas resultaram de um acaso na filmagem. Mas
os blocos, o fato de que um plano contenha apenas estas trinta
Sobre Lições de História 116

linhas ou termine nesta frase, não na de antes nem na de depois,


isso era inteiramente fixado no papel. Nisso, quebramos a cabeça
juntos antes…

Quer dizer que para as cenas com diálogos havia uma decupagem?

Sim.

E mais tarde, no segundo relato do banqueiro, você chegou


a intercalar trechos com a tela preta. Isso não é novo em seu
trabalho?

Não, isso ocorre em duas passagens do Bachfilm E numa de


Machorka-Muff. E numa de Não reconciliados. Mas não tão curtas.

No interior de um relato particular.

Foi assim: lá também os blocos eram decupados no papel tais


como estão agora, mas eu queria, por oposição à panorâmica do
início, fazer uma série, sempre com o mesmo enquadramento, mas
montando não como antes, na panorâmica: em vez de um corte
simples, um trecho de tela preta.

Quantos fotogramas?

7, 15, 24, 15, 5. Isso depende também do texto.

Que função têm então essas interrupções? Elas irritam


no início.

Para que as pessoas notem que aí vem de novo um bloco com


outros pensamentos, um passo.

Logo, uma espécie de pontuação?

Sim, certamente.

Quantas vezes você filmou os planos?


Entrevistas 117

Entre 5 e 32 vezes.

Qual tomada você escolhe das 32, existe ainda um critério para isso?

Em primeiro lugar, nem todas são inteiras. Quando filmamos 32


tomadas, 5 talvez eram completas. Escolher dentre as cinco, isso
depende também dos ruídos. Uma nos agradava, por exemplo,
porque quando ele diz: “Os bons asiáticos suportaram também
esta brutalidade e continuaram polidos” ouve-se o ruído de um
avião de caça. Se a dicção estivesse ruim, teríamos renunciado
ao avião, mas ela estava boa. É também uma maneira de escolher
no fim. Ou então quando temos cinco tomadas completas com
um texto longo, e notamos, depois de o termos visto dez vezes
na moviola, ou já ouvido antes, que ele derrapa no fim, ou que o
ataque é melhor… Em geral, assim como nos filmes precedentes,
eu queria sempre ter duas tomadas muito boas à disposição. Uma
muito boa, filmamos até obtê-la. Depois descansamos, ouvimo-la
comparando-a com as que não ficaram boas, e depois partimos
para uma segunda, pois não sabemos o que pode acontecer no
laboratório.

Mas vocês reconhecem as muito boas logo depois das filmagens,


não é só na moviola?

Sim, isto sim. Mas pode variar. Aconteceu duas ou três vezes de
acharmos já na filmagem que uma tomada era a melhor e depois
percebermos na moviola que uma outra era melhor. Não só
escutamos enquanto filmamos, como também Danièle reescuta
sozinha enquanto eu preparo o plano seguinte. Ela fica sentada
num canto com o engenheiro do som, e eles escutam juntos o
plano que acabamos de filmar.

Vocês escutam sempre o som mais uma vez logo depois?

Sim. Em seguida é a minha vez. Quando decidimos se paramos, se


temos as duas boas ou se ainda podemos conseguir uma melhor,
Sobre Lições de História 118

ele6 está cansado ou a luz começa a ficar ruim ou os barulhos do


trânsito aumentam, pois tudo depende também da hora. Nós nos
perguntamos: temos ainda uma hora, não conseguiremos em todo
caso nada melhor, e ele diz “não, eu gostaria mesmo assim de
tentar uma outra, estou bem”, então filmamos ou não. Mas antes
de fazê-lo, escutamos [as tomadas], pois cansar as pessoas em
vão não faz sentido.

Imediatamente após a filmagem de um plano, escutar ao menos


o som, isto lembra um pouco a técnica da televisão. A próxima
etapa não seria trabalhar com uma câmera Ampex?

Eu gostaria de fazer isso ao menos uma vez. Se eu tivesse um


projeto que justificasse isso. Há um filme que considero uma
grande coisa, que foi filmado com Ampex: é o Cordelier7 de Renoir.
É preciso que você me dê a ocasião. Não creio que isto aconteça
jamais.

Agora, em Roma, você só filmou em exteriores. Isto está relaciona-


do a Roma?

Sim, certamente. Antes, também, eu sempre sonhara com um filme


para o qual eu não estivesse fechado.

É uma questão econômica?

Não, não. Nós jamais renunciamos a algo que realmente gosta-


ríamos de ter [num filme]. Preferimos deixar o projeto de filme
esperando até encontrar o dinheiro necessário.

Este fato de filmar em exteriores tem algo a ver com Hollywood,


com a aventura?

Amo os filmes de John Ford… O filme, se ele lembra


um filme americano (não fui eu quem teve a ideia, mas
6. Não sabemos, nesta transcrição próxima da oralidade, se Straub se refere aqui ao engenheiro
de som, ou ao(s) ator(es). Talvez a descrição valha, de resto, para ambos. [N.T.]
7. Le Testament du Docteur Cordelier (Jean Renoir, 1959). [N.T.]
Entrevistas 119

[Jean-André] Fieschi em Paris), faz pensar mais em


À beira do abismo8, com o homem velho na estufa, recebendo
também a visita de um rapaz.

Schütte o comparou a Cidadão Kane9. Também a busca,


a pesquisa.

Não é um acaso. Brecht conhecia seguramente muitos filmes


americanos… [Nosso filme] é construído exa-
tamente da mesma maneira. Justamente o aspecto
que abafamos ou deixamos inteiramente de lado como:
“Rapaz, está muito bem o que você faz aí” ou as nego-
ciações sobre o manuscrito — isso vem do cinema americano em
Brecht.

O filme não é uma espécie de sequência de Othon?

É o avesso de Othon. Primeiro surge um mundo, mesmo se ele é


visto através de uma vidraça, a vida na rua, de que são cortados
os [personagens] de Othon. E além do mais, aparece ainda um
camponês, pois os outros três pertencem à mesma classe que os
personagens de Othon, mas o camponês é a aparição de uma clas-
se oposta. Em Othon, falava-se também do Império, mas eram só
os jogos políticos de uma corja dominante; aqui, trata-se apenas
do imperialismo, de questões econômicas. É a origem do sistema
capitalista, como ele foi construído contra o Senado, funcionou
e se desenvolveu. Não é um acaso que Brecht, na época em que
escrevia esse texto, tenha lido intensamente O Capital.

Tem-se muitas vezes a impressão, no miolo do filme, de que ele


poderia continuar com os textos de Marx.

É uma aplicação do Capital ao mundo romano, muito claramente.

8. The Big Sleep (Howard Hawks, 1946). [N. T.]


9. Citizen Kane (Orson Welles, 1941). Os entrevistadores se referem provavelmente ao artigo de
Wolfram Schütte, “Gegenwartskunden oder Citizen C.”, publicado em 12/10/1972 no Frankfurter
Rundschau. [N. T.]
Sobre Lições de História 120

É também um filme engraçado, pela primeira vez rimos durante


um filme de Straub.

Rivette também disse isso, Rivette o achava muito engraçado.

Não há nestes homens que falam no filme uma certa alegria, a


daqueles que são informados, que viram atrás dos bastidores, que
podem contar algo a esse rapaz?

Em Bold isto aparece mesmo dialeticamente, pois ele não é só o


personagem que olhou atrás dos bastidores, mas também aquele
que sabe exatamente por experiência própria: tudo está ali dentro,
o que eu vivi10 desde [19]33.

Essas pessoas não são orgulhosas de que tais textos saiam de sua
boca? O trabalho intensivo de que você falou se nota pouco. É um
verdadeiro prazer que existe ali.

Fico feliz em ouvir isso. Mas pode-se dizer também tranquilamen-


te que os atores (com exceção do camponês, que não conhecia
Brecht, e só ouviu seu nome num dado momento) tinham um
verdadeiro respeito, um amor por Brecht. Talvez um dia Roma se
permita fazer sua escolha

Em Othon, a segunda metade do título real do filme é Talvez um


dia Roma se permita fazer sua escolha. Este não seria também um
tema implícito em Lições de História?

Essa esperança também se esconde no filme. Por exemplo, após


o primeiro relato do banqueiro, vem um longo silêncio depois
da frase: “Cícero sustentou então seu discurso de início. Ele
defendeu a atribuição do comando supremo a Pompeu. De onde
ele obteve seus honorários, você pode imaginar”. Ele se cala
longamente, e aí vem a água.
10. O pronome “eu” aqui parece estranho e permite supor que Straub fala de si nesta frase, mas
ele pode estar apenas reproduzindo, numa modulação da conversa oral, uma fala hipotética de
Gottfried Bold. [N. T.]
Entrevistas 121

A água tem uma significação precisa?

Sim, é uma explosão. E depois chega o camponês.

E o jato d’água ao final saindo da estátua de mulher?

O que não aconteceu com o regato furioso. É o furor. É, por assim


dizer, o povo, que continua a sangrar. Assim eu pensei. Por um
outro lado, é uma figura de mulher, que cospe sobre o que acaba
de ser dito, em particular: “Nosso pequeno banco não era mais
um pequeno banco!”. E em seguida a água volta, sob a forma de
música, a água do regato, logo, do furor. Não é um símbolo, mas
nós realmente pensamos que o povo sangra há séculos. Sangra
fisicamente e sangra sob a exploração.

Qual é a música de Bach no fim?

É a segunda parte de um movimento da Paixão segundo Mateus,


que começa assim: “Os relâmpagos e o raio trovejante desapa-
receram sob as nuvens”, nós usamos sua segunda parte, muito
curta, e o que temos no filme é só a metade desta segunda parte.
Há uma ruptura na música, e começamos na ruptura até o fim,
e é: “Abre o abismo inflamado, Ó Inferno / arruína, deteriora,
devora, quebra, / com furor repentino, / o falso traidor, o sangue
assassino”.

São naturalmente detalhes que vendo o filme uma vez,


a primeira vez…

Ouve-se “o sangue assassino”. Não compreendemos cada palavra


da música, mas sentimos o furor. E ouve-se mesmo “o sangue
assassino” no fim, pois a música ralenta.
Diário de filmagem de Moisés e Arão

de Gregory Woods (páginas da direita)


com anotações de Danièle Huillet (páginas da esquerda)
Anotações de Danièle Huillet

① houve, nós encontramos uma peça separada,


É 5254, e não 32–35, o número do negativo este famoso braço, utilizado como barreira
Eastmancolor que nós usamos; provavel- para os carros (visto o seu comprimento,
mente o único filme rodado na Itália com isso fazia uma barreira evidentemente muito
esse negativo; no momento em que nós o prática) no estúdio da SAFA: como nunca
filmamos já existia o novo negativo 5247, ninguém a utilizava, ela havia sido desmon-
que os especialistas da Kodak nos desacon- tada e destruída. Tivemos então de nos con-
selharam a usar para um filme tão “arrisca- tentar com a Fisher, cujo braço tem somente
do”, os laboratórios ainda não sabendo bem quatro metros e meio, e da qual havia três
como tratá-lo… Nós experimentaríamos esse exemplares na Cinecittà… Eles começaram
novo negativo, mas em 16 mm — 7247 —, dizendo que não sabiam se elas estariam
com o filme do ano seguinte, verificando se disponíveis, mas que, enfim, como haviam
há um progresso sobre o precedente e o que três, havia uma chance que pelo menos
se perde para ganhar esse progresso; ou uma… Na verdade, elas estavam todas três
se trata-se, sobretudo, para a Kodak de um bem comportadas no depósito, e nós tive-
progresso industrial, quer dizer, uma pelícu- mos apenas que escolher, embalar e colocar
la que se revela mais rapidamente e permite no Ford-Transit. O microfonista Georges
então aos laboratórios trabalhar mais Vaglio cuidaria dela então com amor, guar-
rápido, logo mais, logo, utilizando mais dando-a todas as noites na cabana atrás do
negativo Kodak. anfiteatro, manuseando-a com arte durante a
filmagem. Além disso, Louis Hochet, diretor
② de som, usava uma vara fabricada especial-
Na quarta, 14 de agosto, cedo pela manhã, no mente para ele que, montada, chegava a oito
primeiro dia, nós estávamos na Cinecittà metros, e sua vara habitual, aquela que ele
com esse mesmo Ford-Transit para carregá- tinha para Crônica de Anna Magdalena Bach,
-lo com a girafa Fisher, que nós tivemos tanta de quatro metros… Da Cinecittà nós iríamos
dificuldade para conseguir… Uma girafa é à A.T.C./E.C.E., atrás da Villa Doria Pamphilj
para o microfone o que a grua é para a câme- (ex-Villa Pamphilj, expropriada após Os
ra, e nos ajuda a simplificar, um pouco!, o olhos não querem sempre se fechar, perten-
trabalho do diretor de som, não porque ela cente agora à cidade) para carregar todo o
permita movimentos do micro para acompa- material (câmera Mitchell B.N.C., trilhos,
nhar a câmera: nós não a utilizaríamos quase carrinho, torretta, praticabili, riflessi, etc.)
nunca assim, os movimentos de câmera qua- nesse mesmo Ford-Transit onde já está a
se não ocorrendo para acompanhar os ato- girafa, e num segundo que nós alugamos
res, mas para ligar ou opôr grupos, portanto, pelo E.C.E. Os três maquinistas eletricistas
o som não tem razão para se deslocar; mas de Pisa, Paolo Benvenuti e Jean-Marie traba-
essa girafa permite, graças ao seu braço lham no carregamento e prender e fixar todo
muito alongado, posicionar, mesmo com um o material, cuidadosamente verificado nos
plano muito aberto, o microfone ao fim desse dias precedentes com o cameraman Saverio
braço horizontal, longe do pé da girafa, mais Diamanti e seu assistente Gianni Canfarelli,
perto dos cantores, acima do quadro, sem para que nada caia durante o transporte.
que o micro nem sua sombra estejam em Nas semanas precedentes, nós já havía-
quadro… Mas, quando nós começamos a mos transportado para a igreja de Alba
procurar uma girafa em Roma, instrumento Fucense, graças ao Ford-Transit que Paolo
que só se utiliza aqui (se não nunca) no estú- conseguiu emprestado gratuitamente de
dio, dizendo que precisaríamos de pelo me- uma pequena companhia de teatro de
nos três semanas de externas, isso causou Florença, um grosso cabo elétrico de 300
pânico. Nós procurávamos a girafa Mole- metros em cobre, o bezerro folheado a ouro
-Richardson, cujo braço pode chegar a oito na Cinecittà pesando 90 quilos, as peças
metros de comprimento. Da única que já separadas que, reunidas, reconstituiriam o
125

Um diário de trabalho1
Gregory Woods

Deveria eu talvez me orientar a partir de uma aparição efêmera


como esta do mercado cinematográfico americano, que conseguiu
em menos de duas décadas, com uma cultura saqueadora,
destruir uma coisa que era boa? Quando penso no filme, eu penso
em filmes futuros, que deverão necessariamente ser filmes
artísticos. E para esses filmes, minha música pode servir.
Arnold SCHOENBERG. (Discussão na rádio de Berlim, 30–3–1931)

sábado, 17 de agosto de 1974


7 horas. Chegada na Praça della Rovere, em frente à casa dos Straub,
com Georg Brintrup em seu 2 CV comercial, que deve transportar as sete
caixas de negativo Kodak 3235 ① ao local de filmagem. Cada caixa contém
dez bobinas de mil pés cada uma, 70 mil pés ou 21 mil metros no total (27
metros = 1 minuto). A regra geral para calcular a quantidade de negativo a
comprar é multiplicar por cerca de oito a duração total do filme. Quando
nós fomos buscar o negativo encomendado na Kodak, Jean-Marie expli-
cou que ele previa não 8 para 1, mas 10 para 1. Gabriele Soncini chega
logo em seguida em seu Renault R4. Nós o carregamos com os acessórios
restantes, jarros de terra e outros equipamentos que ainda não foram
transportados à igreja de Alba Fucense, que vai ser usada como o nosso
depósito durante o filme. Gabriele parte comigo e Leo Mingrone para a
casa de Renata Morroni, a figurinista, enquanto J.-M. e D.H. esperam os
outros carros com que vão partir para Avezzano. Na casa de Renata nós
encontramos Paolo Benvenuti e carregamos as seis malas de figurinos
para o coro e os solistas no Ford-Transit que ele dirige ②. Depois de nos

1. Publicado em francês junto às notas de Danièle Huillet na revista Cahiers du cinéma nº260/261,
edição de outubro/novembro de 1975. Em dezembro do mesmo ano, foi republicado em inglês
também acompanhado das notas de Huillet na primeira edição da revista ENTHUSIASM, fundada
pelo distribuidor alemão Andi Engel, cujos números subsequentes só apareceram em 2000 e
2001. Tradução de Alice Furtado realizada a partir da versão francesa supracitada..
Anotações de Danièle Huillet

altar e os degraus diante e em torno do altar,


e nós fomos procurar em Avezzano, para
transportá-las a Alba Fucense, as pranchas
de diferentes comprimentos, larguras e es-
pessuras que serviriam ao longo da filma-
gem, e as baterias de segurança para nos
assegurarmos de que haveria corrente elétri-
ca mesmo em caso de pane do setor.
Na quarta-feira, 14 de agosto à tarde, os
três maquinistas eletricistas e Paolo
Benvenuti chegam a Alba Fucense com os
dois Ford-Transit, e nós trabalharíamos até a
chegada do resto da equipe, no sábado, ins-
talando o grosso cabo elétrico que nos per-
mitirá, no anfiteatro onde não há eletricida-
de, trabalhar com a frequência de 50
períodos, cuja regularidade é constantemen-
te verificada durante a filmagem, dando uma
segurança mais ou menos absoluta para o
sincronismo entre a câmera e o magnetofone
Nagra, que grava o som direto de uma parte;
e com os dois outros Nagras, que devem ser
sincronizados com este primeiro Nagra e
também sincronizados entre si. Além disso,
eles precisam instalar lâmpadas a gás no
corredor que corre ao longo de uma metade
do anfiteatro e que nos servirá para encon-
trar um pouco de sombra, para nos proteger
da chuva, para guardar o material; construir
um tipo de cabana em um vão no exterior do
anfiteatro para abrigar os coristas do sol e
eventualmente da chuva, para colocar as
cadeiras que a cidade de Avezzano nos em-
prestou; instalar a eletricidade na igreja
onde os figurinos serão estendidos e passa-
dos e onde nossos “guardiões de tesouros”
deverão dormir; construir araras em madei-
ra para 120 figurinos…
Na sexta-feira, 16 de agosto, chegam o
diretor de som Louis Hochet e seu segundo
assistente Jeti Grigioni, com o furgão Renault
no qual são instalados todos os aparelhos
sonoros, de Paris, passando pela Suíça onde
eles fizeram uma última verificação na
Kudelski, fabricante de Nagras. E, em seu
carro, de Nice, com mulher e filha, o microfo-
nista Georges Vaglio, com o qual nunca haví-
amos trabalhado ainda, e que se revelaria,
como Louis nos disse, um ótimo técnico, e
muito gentil e devotado.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 127

fazer café, Renata junta suas coisas e nós deixamos a Via Tiburtina para
a rodovia em direção ao leste, no auge do verão de Roma, em direção
aos Abruzos. Após uma hora e meia, chegamos diante do Monte Velino,
2487 metros de altitude, que marca a entrada da antiga região da Marsica.
Nos dirigindo ao sul, chegamos a Avezzano, 30 mil habitantes, o atual
centro regional, onde Danièle reservou quartos para a equipe e para os
atores. Em um desses seis hotéis nós paramos para descarregar Renata
e tomar em seguida a estrada de oito quilômetros que leva ao norte de
Alba Fucense. No caminho encontramos J.-M. e Georg e vamos juntos até
o paese (vilarejo) que é habitado atualmente por uma comunidade de
165 camponeses. J.-M. para para pegar as chaves da igreja e para cumpri-
mentar as pessoas que ele conheceu ao longo de suas visitas desde 1969.
Uma estrada poeirenta conduz desde a única rua até a basílica romana do
século XII, San Pietro. É neste edifício de pedra, restaurado em 1957 após
sua destruição em um terremoto, em 1915, que custou a vida à centenas
de aldeões, que nós descarregamos aquilo que deve ser utilizado no an-
fiteatro abaixo. Danièle nos mostra como colocar os acessórios na cripta
sob o altar, as malas de figurino no coro e na abside, disponibilizados para
os figurinos e a troca de roupa, e as caixas de negativo sobre os degraus
do púlpito de mármore. A igreja é fechada a chave e nós marcamos uma
reunião para depois do almoço no anfiteatro.
O anfiteatro é um espaço de 100 metros por 79 metros cavado na co-
lina sobre o topo da qual se encontra San Pietro, no antigo local de um
templo a Apolo. Sua arena oval mede 64 metros por 37 metros. Depois de
viajar 11 mil quilômetros na Itália em 1969, os Straub decidiram que este
lugar seria aquele que eles utilizariam para filmar a ópera de Schoenberg,
Moses und Aron. Isso ocorrera dez anos após sua primeira decisão de fazer
um filme baseado na ópera. J.-M. vira pela primeira vez Moses und Aron
na ópera de Berlim, em 1959, dois anos após a primeira encenação da
obra em Zurique e oito anos após a morte do compositor. Ele telefonou a
Danièle, que veio de Paris para vê-la, e eles decidiram realizar um filme com
a ópera. A decupagem em alemão que eles fizeram é datada: Berlim, fim
de 1959 — Roma, início de 1970. Quando nos encontramos no anfiteatro à
tarde, Straub trabalhava estabelecendo os eixos principais que iriam divi-
dir a arena pelas forças opostas que vão se encontrar no primeiro ato. Nós
passamos também um tempo limpando a arena dos cacos de vidro e pon-
tas de cigarro, tributo turístico à antiguidade. Georg Brintrup parte para
Roma para habitar o apartamento dos Straub, onde ele cuidará de Misti,
Anotações de Danièle Huillet

③ insegurança dos meios de transporte para o


Essa pesquisa nos fez percorrer 11 mil quilô- retorno, com essas pessoas que estavam
metros por estradas asfaltadas ou não asfal- comprometidas com datas de concertos e de
tadas, durante cinco semanas, aproveitando gravação nos quatro cantos da indústria
as férias de minha mãe e, portanto, de seu cultural, teria sido loucura), nós passamos
pequeno Citroën. Nós havíamos “descober- novamente por Alba Fucense e foi ali que nos
to” Alba Fucense quase no início dessa via- decidimos definitivamente pelo lugar. A deci-
gem, mas como não sabíamos ainda exata- são de filmar tudo ali, exceto o terceiro ato,
mente o que procurávamos (tínhamos nós a tomamos lentamente, ao longo do ano
partido com a ideia de um platô e uma mon- seguinte, pouco a pouco através de nossas
tanha — foi preciso descobrir, pouco a pouco viagens ao anfiteatro e enquanto aprendía-
ao longo dessa viagem, que um platô não é mos a conhecê-lo, e à paisagem em torno. Foi
protegido do vento nem de barulhos que também ao longo dessa primeira viagem que
sobem do vale, e que a ação “teatral” assim nós “descobrimos” o lago do Matese, onde
como o canto correriam o risco de ali se filmamos o terceiro ato, e ali, também, a
dissolver, e que era preciso portanto de fato impressão que nos dera à primeira vista
um platô, mas um buraco nesse platô, e que resistiu a todos os outros lagos que pude-
esse anfiteatro era não apenas o buraco no mos ver em seguida, a última tentação de
platô em meio às montanhas, mas também o mudança sendo o lago de Campotosto, um
espaço teatral que concentraria a ação ao ano antes de filmar — e mesmo com a inquie-
invés de dissolvê-la, tudo isso em uma paisa- tude sentida ao constatarmos um dia, no
gem geológica vulcânica), e como eu era mês de agosto, que não havia praticamente
menos entusiasta que Jean-Marie, que já mais água no lago… Mas a ideia do já lago
estava apaixonado pela forma magnífica de havia por sua vez substituído a do mar, que
elipse e pela acústica extraordinária, porque nós tivemos de início ao escrever a decupa-
era um 7 de junho e chovia canivetes, o que gem. Sobretudo por causa do barulho das
não me indicava nada de bom para o futu- ondas para “borrar” o texto. Ideia à qual nós
ro… nós — também por curiosidade e por renunciamos em seguida, o lago sendo mais
“consciência profissional” e porque de todo simples, menos carregado simbolicamente, e
modo não havíamos ainda decidido por fil- mais realista geológica e geograficamente.
mar os dois primeiros atos no mesmo lugar e
porque procurávamos então ainda dois ou ④
três outros lugares para o primeiro ato, pois A acústica do anfiteatro, Louis já havia tido
o anfiteatro era então em todo caso o segun- tempo de experimentá-la um ano antes, quan-
do ato —, portanto, nós continuamos a pro- do nós o fizemos vir de Paris para mostrá-lo e
curar durante cerca de 10.900 quilômetros, fazê-lo ouvir nosso anfiteatro — porque está-
até a Sicília. Nós vimos outros lugares, tam- vamos bastante preocupados: tendo levado
bém na Sicília, mas nunca tão lógicos e sedu- Renato Berta e Jeti Grigioni após a filmagem
tores, e sem “amor à primeira vista”. Lenta- de Lições de História a Alba
mente eu me acostumava com a ideia (de Fucense para ter uma opinião, Jeti ficara
filmar tudo no mesmo lugar) que Jean-Marie muito emburrado e parecia pensar que nós
havia tido (eu tenho sempre mais dificuldade éramos loucos… A forma de elipse e o solo
que ele a me desviar do naturalismo, e como de pedra, assim como as grandes pedras por
ele, por sua vez, também tem um pouco, é toda volta, retransmitia o som em múltiplos
preciso tempo para nos habituarmos às nos- ecos. Louis nos perguntou se nós gostaría-
sas próprias ideias…). Na volta (havíamos mos de filmar em outro lugar. Não, nós res-
eliminado a Sardenha por razões geológicas, pondemos. Então, diz ele, “será preciso resol-
mas também de distância, porque transpor- ver os problemas pouco a pouco. E a acústica
tar equipamento técnico, material mas so- é tão bela que vale a pena, e que não é preci-
bretudo os cantores e coro tão longe, e a so colocar painéis de madeira e coisas do
Diário de filmagem de Moisés e Arão 129

a felina faminta e grávida. À noite os outros retornam aos seus hotéis em


Avezzano. Hans-Peter Böffgen e eu nos reservamos um espaço para viver
em um canto da igreja. Nós ficaremos aqui para vigiar as coisas na igreja e
o anfiteatro à noite durante os meses que passaremos a rodar o filme aqui.

domingo, 18 de agosto
A trupe chega às 9h30 e começa a trabalhar para marcar as posições dos
solistas e do coro. J.-M. está de pé sobre uma torreta (andaime) monta-
da sobre o eixo principal no centro do anfiteatro e nos pede para nos
colocarmos em posição para delimitar as linhas do coro. Há seis filei-
ras correspondendo à divisão em soprani, mezzo-soprani, alti, tenores,
barítonos e baixos. As extremidades desse trapézio são marcadas com
grandes pregos cujas cabeças são enroladas por fita adesiva colorida. O
coro se posicionará diante do portão norte da arena, que tem na pedra
a inscrição comemorando a doação do anfiteatro por Q. Naevius Sutoris
Macer à sua cidade natal. Macer, prefeito do pretório2 sob Tibério e, como
tal, predecessor nesse posto do Lacus interpretado por Jubarite Sematan
no Othon de Straub, que foi obrigado por Nero a se suicidar após uma
carreira de uma crueldade impiedosa, que é narrada nos Anais de Tácito.
Essas pedras jaziam sobre o solo em pedaços quando os Straub vieram
pela primeira vez há cinco anos, durante a sua procura por uma locação
para o filme, de um platô em uma região montanhosa ③. As descobertas
feitas durante escavações recentes permitiram aos arqueólogos datar a
construção desse anfiteatro, ao sul da então importante cidade de Alba
Fucense, em cerca de 40 anos após Jesus Cristo. Opondo-se ao coro, dian-
te da entrada sul, as posições de Moisés e Arão são marcadas por pregos.
De cada lado do coro as forças opostas do sacerdote e do homem, o rapaz
e a moça, são dispostas, o sacerdote a leste, à esquerda dos coristas, e os
três a oeste, à direita dos coristas, em direção ao lado da colina do anfite-
atro. Nós utilizamos o túnel cavado no chão sob a colina para armazenar
o equipamento não utilizado e para guardar nossos galões de água longe
do calor. À tarde Louis Hochet começa a testar o equipamento sonoro e a
acústica do anfiteatro ④.

2. Comandante da guarda pretoriana no regime imperial romano. Alto funcionário responsável


por um grupo de províncias, que acumulava funções civis e militares. [N.T.]
Anotações de Danièle Huillet

tipo, isso só fará aumentar os problemas e Depois, quando da nossa terceira viagem a
destruir alguma coisa”. Após isso, eu não sei Viena, no inverno de 1973, com Louis Hochet
se ele dormiu tranquilo até o ano seguinte, que vinha de Paris para checar conosco as
mas nós, em todo caso, dormimos melhor! condições técnicas do estúdio de gravação,
discutir nossas exigências com os técnicos
⑤ vienenses, convencer o professor Preinfalk a
Não: somente um terço chega de avião, os permitir que seu coro cantasse em seis filei-
outros terços de carro, de Viena ou de ras e não quatro como era hábito desde
Salzburgo, com frequência acompanhados de 1934 — quatro fileiras, isso exigiria, para ser
mulher ou marido… Straub e eu estamos enquadrado, que nós filmássemos em cine-
preocupados, pois além de tudo tem-se os mascope! —, quando dessa viagem nós leva-
retornos após a Ferragosto, a festa de meados mos conosco, de Roma, cinco malas cheias
de agosto, a maior festa italiana… Na noite de com figurinos de todas as mulheres do coro,
domingo, irei dar muitas vezes a volta por que nós as fizemos provar em Viena, marcan-
todos os hotéis de Avezzano, para verificar se do os reparos a fazer, mudando a cor ou o
toda nossa gente chegou bem. Tudo se passa lenço quando não lhes caíam bem. Trazidos
bem, sem acidentes, sem atrasos. Para trazer de volta a Roma, faço eu mesma uma parte
toda essa tropa ao anfiteatro, nós alugamos dos reparos (aqueles que sei que serão mal
em Avezzano um grande ônibus e um peque- feitos ou não serão feitos pela casa que aluga
no, e juntamos a isso um dos dois Ford-Tran- os figurinos), depois nós devolvemos os figu-
sit, onde as poltronas foram recolocadas, rinos para que sejam limpos, etc. Quando
conduzido por Paolo Benvenuti. Como nós vamos a Viena para os ensaios e a gravação
não queríamos que eles viessem todos para o da música, em março, nós levamos uma se-
vilarejo com seus carros, o que já teria assus- gunda carga, mais pesada ainda: todos os
tado os camponeses e seus animais, habitua- figurinos dos homens, para o mesmo procedi-
dos a ver raros turistas apenas durante um mento. Nesse meio-tempo, tínhamos levado
mês ao ano. Para todos os técnicos que vêm uma escolha de figurinos possíveis aos solis-
de carro e aos poucos cantores do coro e tas durante nossos ensaios com eles (Moisés,
Arão, para quem nós fizemos exceção e per- Arão, homem, rapaz), ou então aproveitado
mitimos vir de carro, nós fizemos recomenda- suas passagens por Roma para um concerto
ções: prudência, lentidão, atenção aos ani- (sacerdote, moça) para que pudessem experi-
mais, sem barulho. Tudo se passaria sem mentá-los. O que permitiria aos figurinistas
sobressaltos, não haveria nenhuma galinha fazer em uma meia diária todos os últimos
sequer atropelada, e nossas relações com os preparativos para a véspera da filmagem.
habitantes do vilarejo permaneceriam nor- E por que, desde o início, nós queríamos
mais e calmas até a nossa partida. a Itália? Porque Schoenberg era vienense,
Quanto aos figurinos, nós os escolhemos sua música eminentemente europeia, mesmo
entre os 3 mil figurinos desse tipo da casa que ela tenha constantemente intuições de
Cantini (um dos setores da indústria italiana um realismo impressionante, que descobri-
que funciona normalmente melhor que no mos indo ao Oriente — na África (para nós, o
exterior — com a condição de evitar armadi- Egito), e porque nós queríamos então um
lhas decorativas preparadas pelo talento país europeu que fosse um ponto entre a
italiano; J.-M. detesta fazer figurinos novos, Europa e a África-Ásia. A Espanha e a Grécia,
nós preferimos muito mais escolher entre as nem pensar. E a Itália, além de sua geologia,
coisas que já existem), levados à nossa casa, sua geografia, seu clima, sua situação políti-
estendidos no chão, reunidos (cores dos ca, tinha a vantagem (?) de uma máquina
vestidos, túnicas, lenços, sapatos — entre eles industrial cinematográfica, que não funciona
e de acordo com as fichas de medida envia- em seu todo, mas na qual certos setores,
das pela representante do coro, Mme. Kapek), tendo-se muita energia, teimosia e tempo,
ligeiramente limpos, recosturados, passados. são utilizáveis, ainda.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 131

segunda-feira, 19 de agosto
Os 66 membros do coro da O.R.F.3 começam a chegar. A maior parte deles
voou de Viena a Roma e chegará mais tarde hoje, mas alguns vieram com
seus carros ⑤. Na igreja, Renata e as duas outras figurinistas, Augusta e
Maria Teresa, passaram os figurinos e prepararam os lenços para a cabe-
ça e os sapatos para cada um deles. Os cantores experimentam seus figu-
rinos no espaço que Danièle arranjou para eles para isso. No anfiteatro,
Ugo Piccone, diretor de fotografia, trabalha com Saverio Diamanti, câme-
ra, e Gianni Canfarelli, assistente de câmera, na panorâmica para o plano
19 amanhã, fora da linha de microfones, que estão posicionados acima
dos solistas e no chão diante do coro. Hochet testa o som para os solis-
tas e posiciona os microfones com seu assistente Georges Vaglio. Ocorre
um ensaio de conjunto do plano 18 ⑥ com os três solistas. Ao fim, Gianni
guarda em suas malas as diferentes partes da câmera e os três macchinisti
(maquinistas) de Pisa, Cecco, Nanni e Nini ⑦, as levam de carro ao peque-
no hotel da cidade onde dormem e guardam a Mitchell após o trabalho. O
bezerro de ouro, Giustiniano ⑧, como os Straub o chamam, também fica
guardado lá até que comecemos a rodar as cenas de orgia do segundo ato.

terça-feira, 20 de agosto / planos 19–20


Primeiro dia de filmagem. O coro da O.R.F. inteiro chega à igreja às 8h30
de carro e um ônibus alugado em Avezzano. Quando eles terminaram
de vestir seus figurinos, ocorre um ensaio geral da música para hoje, no
vazio que ressona da igreja nua em pedras. Dr. Preinfalk, o diretor do
coro, afina-os com os acordes do piano que foi transportado até aqui de
Roma. Durante esse tempo os Straub fazem os preparativos para o plano
19. A Mitchell é levada ao alto de um andaime de três plataformas, que
eles chamam de torretta, à esquerda do centro. Assim que o coro desce
e os micros são instalados, Danièle envia os assistentes aos locais que
vigiaremos durante o tempo da filmagem, enquanto se filmará no anfite-
atro. Paolo Benvenuti, na estrada na entrada de Alba Fucense pede para
parar o tráfego e impedir que a gravação seja prejudicada. Sebastian
Schadhauser se localiza na entrada da estrada poeirenta que conduz da
cidade à igreja e ao anfiteatro. Ambos se comunicam com Danièle atra-
vés de walkie-talkies. Na entrada norte do anfiteatro permanecem Leo

3. Radiodifusão austríaca. [N.T.]


Anotações de Danièle Huillet

⑥ entre eles para este mesmo plano 24, mas


O plano 19 e o plano 22 são aqueles que também para todos os outros planos onde
estabelecem as regras do jogo, aqueles dos veríamos apenas um dos dois comparsas.
quais desdobrarão todos os outros planos Essa distância justa devendo ser ao mesmo
de enquadramento do primeiro ato: daí a tempo justa para a representação (teatral),
necessidade de fixar o lugar dos protagonis- para os afrontamentos ou a cumplicidade e,
tas (coro, grupo de três — jovem moça, ra- minimamente, para a psicologia dos atores
paz, homem, — o sacerdote e, enfim, Moisés entre si.
e Arão) exatamente: em relação ao centro da Enfim, o último problema que precisáva-
elipse, cada grupo em relação ao outro e mos resolver desde o início, já que em se-
cada solista em relação aos seus ou seu guida, com as regras do jogo já estabeleci-
vizinho no caso dos três jovens ou de Moi- das, não poderíamos mais escapar delas
sés e Arão: é preciso que a moça esteja sufi- como em um jogo de xadrez, tanto que não
cientemente longe ao mesmo tempo do coro as romperíamos (também, por razões eco-
e do rapaz seu vizinho para que seja possí- nômicas — não segurar o coro ali durante
vel, no plano 22, com uma objetiva 50, filmá- todo o tempo da filmagem, mas agrupar no
-la de início sozinha, sem ter o braço de seu início os planos do coro, depois os solistas,
vizinho ou o nariz de um corista na extremi- para terminar sem cantores — Jean-Marie
dade esquerda do quadro, mas também não poderia filmar “na ordem”, o que torna-
suficientemente perto de seu vizinho, o va a acrobacia mais complicada ainda!): a
rapaz, e este de seu vizinho, o homem, para posição do diretor, de Gielen, que devia
que seja possível no plano 19 ter todos os dirigir o coro e os solistas, portanto ser
três juntos no quadro com uma 40: mas tam- visto por eles nas melhores condições, não
bém que com essa objetiva 50, no caso do estar em quadro evidentemente, mesmo no
plano 22, ou 40, no caso do plano 19, possa- caso de panorâmica, que termina por cobrir
mos “pegar” o coro inteiro quando fizermos 300 graus da elipse como no plano 24, e
a panorâmica sobre ele, e não apenas o gru- estar em relação à câmera em uma posição
po inteiro, mas também o ar e a terra em horizontal e vertical (altura) tal que os can-
torno, porque o Jean-Marie não quer nunca tores (coro e solistas) olhem para ele sem
“entulhar” o grupo, mas filmá-lo sempre com que este olhar pareça “falso”, que eles deve-
espaço em cima, embaixo, à esquerda e à riam dirigir ao grupo com o qual estão rela-
direita. Assim como era preciso que a posi- cionados, apenas levemente desviado, de
ção do sacerdote fosse tal que pudéssemos maneira que se sinta um terceiro polo, mas
enquadrá-lo sem ter o nariz de um corista que se sinta apenas, que essa defasagem
no quadro, mas também tal que ela fosse não mate as relações — também — dramáti-
lógica na distância com os outros grupos. cas. Eis porque nós fizemos o papel de to-
Enfim, era preciso encontrar as alturas jus- pógrafos, dividimos o terreno, marcamos o
tas para os diferentes enquadramentos so- centro, medimos as alturas desde o domin-
bre o coro, e imaginar as variantes no mes- go, dois dias antes do início “real da filma-
mo eixo, já que nós só saltaríamos desse gem”. Todo esse trabalho se repercutindo
eixo no plano 31, passando pelo perfil es- em seguida para os técnicos de som, que
querdo do sacerdote (do qual nós tínhamos deviam por sua vez resolver seus proble-
até ali visto sempre o perfil direito) quando mas e trazê-los a nós, quando eles não con-
ele se revolta: “Teu bastão nos coage, no seguiam resolver por si — o que acontecia
entanto ele não coagirá o Faraó a nos liber- raramente…
tar!”, para permanecer deste outro lado do
eixo até o fim do primeiro ato. Também era ⑦
preciso, com o plano 22, encontrar e fixar a Nini e não Ninni — para Gianfranco = Gianni =
distância justa ao mesmo tempo para o coro Nini; Nanni para Álvaro Nannicini; Cecco
para o fim do plano 24 e dos dois comparsas para Francesco.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 133

Mingrone e Gabriele Soncini, e ao sul Hans-Peter Böffgen. Meu posto fica


50 metros acima, na colina do anfiteatro sobrepairando a filmagem. Nosso
principal trabalho enquanto se filma é vigiar para que pessoas vindo do
exterior não atrapalhem a atividade no local de filmagem, assim como
a demanda de concentração ininterrupta entre os Straub, a equipe e os
músicos. Quando todos estão em seus devidos lugares, Jean-Marie pede
silêncio e absoluto Ruhe4. Antes disso o pessoal do som ajustou o nível
do som nas minúsculas escutas que transmitem a partitura orquestral
para este plano aos quatro solistas e a Michael Gielen, o maestro, que
se mantém sobre um tablado diante dos músicos, mas fora do raio de
ação da câmera, com a partitura diante de si, uma orelha no fone, a outra
livre para os cantores ⑨. Durante as sessões de gravação em Viena em
abril-maio, duas séries de trilha foram feitas. Uma gravação completa da
ópera que será distribuída pela Philips no fim do ano e uma da orquestra
sem os cantores para a gravação durante o filme. A música é dividida de
acordo com os compassos (Takte) que constituem cada plano. As trilhas
que Hochet utiliza em seu caminhão-som começam com três bips no iní-
cio da música. Através delas a parte orquestral da ópera é transmitida
aos solistas e ao coro, que tem em seu centro um alto-falante de baixa
frequência. Ao lado do caminhão-som, estão sentados Jeti Grigioni com
o magnetofone Nagra que grava nesse momento as vozes dos cantores; e
Bernard Rubenstein, assistente do diretor da orquestra, com a partitura
diante de si para controlar a leitura das vozes que estão sendo gravadas
live em seu fone, segundo a música escrita na partitura diante dele. Neste
plano, a câmera faz uma panorâmica para a esquerda a partir de um plano
de semiconjunto sobre o sacerdote até os três solistas, em semiconjunto,
que estão de frente para o primeiro além do coro, e volta em seguida para
a direita até o coro que se localiza entre os dois. Após um último reajuste
dos níveis do som, a filmagem começa. O sol está extremamente quente.
Alguns membros do coro se sentem mal. Entre as tomadas eles vão para
a sombra, sob o portão. Jean-Marie quer se certificar de ter pelo menos
duas boas tomadas e uma possível de reserva, antes que o plano seja ges-
torben (morto). Após cada tomada,(ripresa), Danièle anota o comprimen-
to em pés que foi gravado na Mitchell, a objetiva e a observação B (buona)
para boa, R (risera) para reserva e S (scarta) para as tomadas incompletas
ou inutilizáveis. Após um novo tchiac (claquete) Straub fica satisfeito.

4. Do alemão: quietude, paz. [N.T.]


Anotações de Danièle Huillet

⑧ transcrição. Ocorrem os primeiros ensaios


Giustiniano: nós o nomeamos assim em Pa- completos, coro e orquestra juntos. Louis
ris, quando fomos, em outubro de 1973, com começa a conseguir julgar a dificuldade da
o Ford-Transit emprestado (já!) pelos floren- música, ele apenas a havia escutado até ali
tinos para este pisano1 Benvenuti, buscá-lo por meio de trechos do disco de Rosbaud
no atelier de moldagem do Louvre (onde os que nós o fizemos escutar. Passamos juntos
obreiros-artesãos são quase todos italianos!) na casa de Gielen no Mondsee (lago da Lua!)
para levá-lo para ser coberto de ouro na os dias de Páscoa, revemos os últimos
Cinecittà: levando um susto ao revê-lo, não problemas…
mais em granito como no Louvre, mas repro- Da terça de Páscoa até meados de maio,
duzido em gesso, pela sua semelhança com o ensaios e gravação bloco por bloco — cada
pequeno touro de O velho e o novo2. Mas, “bloco” correspondendo a um plano do fil-
nós dissemos, não é mais, A linha geral3, me, do compasso x ao compasso y, ou então
mas, A linha justa, e nós o chamamos Justinien — de uma nota musical de tal compasso a uma
Giustiniano. outra nota —, de todos os blocos, ou seja de
todos os planos, ou seja da partitura inteira.
⑨ Dificuldade de trabalho: o coro, que não é
Toda essa explicação de gravação é, penso composto por “profissionais do canto”, mas
eu, pouco clara, e às vezes francamente pas- por pessoas que tem um trabalho e cantam
sa mesmo ao largo. Vejamos se eu consigo “também” no coro, por gosto e, em certos
explicar melhor: casos, também para ganhar algum dinheiro
a) O coro da Rádio de Viena havia ensaia- a mais além de seu salário, só podem cantar
do durante quatro meses com seu diretor, o após as 17 horas. Isso significava que era
professor Preinfalk, na disposição e na for- preciso estabelecer um plano de trabalho
mação decididas por nós para o filme, todas onde todos os blocos comportando o coro
as partes corais da ópera; cada um de sua seriam gravados à noite, e de manhã, todos
parte, os solistas faziam o mesmo: nós havía- aqueles sem coro, só com orquestra ou com
mos trabalhado com Gielen, com Arão e solistas (o que, para os solistas que não
Gielen, e a sós com ele, com Moisés para o gostam de cantar de manhã, não era muito
terceiro ato — fazendo a cada vez a viagem, simples!).
seja para Bruxelas para Arão e Gielen, seja Cada bloco devia ser gravado duas vezes:
para a Áustria para Gielen e Arão, seja para uma primeira vez, orquestra e cantores jun-
Stuttgart para Moisés. tos, normalmente; depois uma segunda vez,
b) Do dia 29 de março de 1974 até a Pás- somente a orquestra, sem os cantores — o
coa, portanto duas semanas, permanecemos que era bastante difícil para os músicos e
em Viena e assistimos aos ensaios da or- para Gielen, não tendo mais o apoio dos
questra com Gielen, Keuchnig (um diretor de cantores. Essa segunda gravação, seca, sem
orquestra de Viena que o ajuda a preparar a eco, e mono, feita por uma máquina de qua-
orquestra) e o assistente “oficial” Bernard tro pistas, era, a cada tarde, durante o inter-
Rubenstein, vindo especialmente de Illinois. valo, após a sessão de gravação da manhã e
Na semana antes da Páscoa chega de Paris antes da de 17h30, transcrita por Louis ao
Louis Hochet: nós preparamos com ele o mesmo tempo em trilhas estreitas por dois
material que nos servirá em seguida na Nagras IV sincronizados, com, no início de
cada bloco, três “mil” (bip-bip-bip). Em cer-
1. Da cidade de Pisa. [N.T.] tos casos uma primeira mixagem ocorria
2. Staroye i Novoye (URSS, 1929), de Sergei Eisenstein. com Gielen, que estava de todo modo ali em
[N.T.] cada sessão de “transcrição” para verificar
3. Na França o título do filme de Eisenstein fora tra-
seu trabalho, escutando-o com um pouco de
duzido por La Ligne générale (A linha geral, que cor-
responde também ao título de lançamento do filme em distanciamento. Esses dois Nagras sincroni-
Portugal). [N.T.] zados eram pilotados, a “pilotagem” sendo
Diário de filmagem de Moisés e Arão 135

Saverio faz então o provino ⑩ (fotos de filmagem) para a publicidade. Nós


interrompemos na hora prevista para almoçar.
O coro está queimado pelo sol e de mau humor. Ouvimos gritos
em alemão e em italiano durante a confusão da distribuição do cestino
(pequena cesta = almoço) aos coristas, após uma manhã sob o sol. À
tarde as nuvens chegam, interrompendo a filmagem do plano 22 por uma
chuva de verão chamada temporale. A câmera começa sobre a jovem
moça que canta: “Ele nos libertará!”, panorâmica para a direita sobre o
coro, conjunto/semiconjunto, “Vede Moisés e Arão”, e em seguida no fim
uma panorâmica rapidamente para a direita, para o sul, sobre Moisés e
Arão, conjunto/semiconjunto, de frente para o coro, a quem o coro acaba
de anunciar a chegada. Straub para após 13 tomadas, mas será preciso
continuar amanhã.

quarta-feira, 21 de agosto / planos 22–21–23


Manhã. Tomadas 13 a 27 do plano 22. Ao meio-dia nós filmamos o plano
21, plano de conjunto frontal sobre o coro: “Um Deus amável”. Onze to-
madas. Uma outra explosão no momento do cestino pela distribuição
da comida. Paolo decide deixar os músicos cuidarem de si próprios na
igreja, enquanto a equipe comerá em baixo no anfiteatro ⑪.
14h15. Plano 23, um outro plano de conjunto frontal em plongée sobre
o coro: “Vocês trazem a realização?” Durante uma pausa, enquanto Saverio
e Gianni checam a câmera para verificar se há pelos e poeiras, (controllare
la macchina), o que Jean-Marie os faz fazer ao fim de cada bobina de filme,
o coro fica sentado na sombra sob o teto do portão ao norte e canta as
Ländler (canções da pátria) para descansar da interpretação da partitura
complicada de Schoenberg diante da maquinária cinematográfica, no fer-
vor do sol. Morte ao fim de seis tomadas. Os assistentes retornam de seus
postos e guardam os aparelhos nas caminhonetes e na galleria (corredor-
-túnel). O coro troca de roupa na igreja e parte às 17 horas.

quinta-feira, 22 de agosto / planos 20–24


7h50. Danièle chega a San Pietro. O primeiro plano 20 é sem o coro, de
modo que ela deseja que o coro inteiro permaneça dentro da igreja até
que eles tenham terminado de filmar, a fim de que os coristas não façam
nenhum barulho que se misture à gravação. A câmera é colocada em plon-
Anotações de Danièle Huillet

um sistema eletrônico que permite, a cada suas duas orelhas, impedindo-o de ouvir o
vez que se transcreve o som, ter uma dura- que cantavam aqueles que ele dirigia.
ção invariável — portanto, uma duração defi- Enfim, fora da caminhonete, um terceiro
nitiva e um sincronismo garantido. Nagra, o Nagra IV de Jeti, gravava, grosseira-
c) Na filmagem, em agosto-setembro de mente mixados, para permitir um julgamento
1974, Louis tinha, em sua caminhonete-som, sobretudo sobre o sincronismo dos cantores
dois Nagras: um Nagra IV estéreo — ou seja, com a orquestra, retransmitidos do Nagra
de duas pistas sobre uma banda, o que lhe estéreo e do Nagra III, as duas bandas da
permitia gravar, por exemplo, o coro em uma orquestra e do som ao vivo (os cantores e os
pista e os solistas em outra, e ter também, ruídos). Era essa mixagem que escutava, com
mais tarde, na mixagem definitiva, uma pos- um fone na cabeça, o assistente de Gielen,
sibilidade suplementar para equilibrar as Bernard Rubenstein; nos casos de dúvida,
vozes. Esse Nagra estéreo, normalmente Gielen podia reescutar imediatamente essa
perfeito, como para todo filme onde se capta mixagem e julgar por si próprio, eventual-
som direto, primeiro: depois partia a câme- mente se corrigir. À noite, no hotel, após o
ra, fazia-se o tchiac [Claquete [N.T.]], que dava jantar e frequentemente até meia-noite, nós
o sinal sincronizado entre a imagem e o som escutávamos nesse Nagra as tomadas do dia,
direto gravado então pelo Nagra estéreo e Gielen, Straub, Jeti e eu (às vezes alguns can-
pela câmera; em seguida Louis dava início ao tores, quando ainda não estavam dormin-
segundo Nagra que havia em sua camionete, do…), para verificar uma última vez as esco-
um Nagra III (aquele que já havia servido à lhas feitas “no calor do momento” após a
gravação de Chronik na Alemanha!), em que filmagem. Além disso, a cada dia, após cada
passava uma das duas trilhas sobre a qual plano, eu escutava com Louis, na sua cami-
ele havia transcrito, em Viena, pilotado, nhonete, as tomadas retidas do som direto,
apenas a orquestra que correspondia ao para verificá-las, ter a certeza de que não
plano que se filmava. (A outra banda, exata- havia tido nenhum acidente que passaria
mente idêntica àquela, feita ao mesmo tem- despercebido e que talvez não ouvíramos à
po em Viena, nós a guardávamos zelosamen- noite, na banda “mixada” de Jeti.
te em nosso quarto de hotel em Avezzano e,
toda nova, é ela que nós transferimos em ⑩
seguida para o magnético 35mm perfurado Um provino, é 1 metro, 1,50 m de película
para ir à montagem.) Portanto, ele reprodu- que se roda após uma tomada, quando a
zia a orquestra do bloco correspondente ao consideramos boa, com o tchiac no quadro
plano que nós gravávamos, precedido por sobre o qual escreve-se provino e que serve
esses três “mil” (bip-bip-bip) que iniciavam a em seguida para o laboratório controlar a
trilha que rodava no Nagra estéreo: esses densidade do negativo antes de revelá-lo e
três bipes sendo o sinal sincronizado entre eventualmente fazer a marcação de luz antes
as duas bandas sonoras. Louis cortava ime- de retirar a tomada… Isso não tem nada a
diatamente após o terceiro bip, para evitar ver com standfotos4 ou publicity stills5. Duran-
que a orquestra não iniciasse também sobre te a filmagem, nós só deixamos serem feitas
a trilha do Nagra estéreo; ele só errou a mão fotos de trabalho; as fotos do filme, nós faze-
uma vez, em cerca de mil! É essa trilha do mos com que sejam feitas, uma vez termina-
Nagra III, evidentemente, que os solistas da a montagem de negativo e feita a primeira
escutavam por meio de uma escuta escondi- cópia, a partir de fotogramas escolhidos
da em uma de suas orelhas (a outra orelha entre as tomadas não utilizadas ou nas so-
servindo para se ouvir e para poder cantar), bras da montagem de negativo (início ou fim
o coro por meio de um pequeno alto-falante de um plano).
(em certos casos, dois) escondido no meio
deles ou fora de quadro ou abaixo do qua- 4. Fotos de cena. [N.T.]
dro, e Gielen por meio de um fone que cobria 5. Fotos de divulgação. [N.T.]
Diário de filmagem de Moisés e Arão 137

gée sobre uma torretta de três andares, semiconjunto sobre o sacerdote.


Depois ela faz uma panorâmica para a direita sobre a arena vazia até o
homem, o rapaz e a moça, semiconjunto, que cantam durante a espera
excitante do “Deus digno de adoração” que Moisés vai trazer. Vinte e
cinco tomadas.
O coro desce ao meio-dia. Nós colocamos os trilhos diante de Moisés
e Arão para o plano 24. É a apresentação de Moisés e Arão diante do povo.
Moisés, Günter Reich, fala de acordo com a Sprechstimme (voz falada)
que Schoenberg atribuiu ao seu papel, anunciando “O Único, Eterno Todo-
-Poderoso, Onipresente, Invisível, Irrepresentável…” até que Arão, Louis
Devos, o interrompe cantando: “Ele vos elegeu diante de todos os povos.”
Assim Schoenberg indica desde a sua chegada a diferença de compre-
ensão irreconciliável entre o profeta da ideia inexprimível e o ministro
da palavra tangível. Enquanto a câmera está sobre um dos dois protago-
nistas, a música que canta o coro não é mais gravada. Eles utilizarão as
trilhas já feitas em Viena para a maioria das partes que são em off (fora
de quadro). No final o coro canta ao vivo depois que a câmera fez uma
panorâmica sobre ele: “Então nós estamos todos perdidos, porque nós não
o vemos! Ha ha ha ha ha ha.” Após o intervalo do almoço às 13h30, o
tempo se torna coberto e chuvoso. Então nos faz esperar um momento
para recomeçar. Depois das 15h30, ele se ilumina novamente e o sol sai
para a última hora de filmagem. Doze tomadas. Após a partida do coro,
Jean-Marie começa a preparar o plano 31 sobre o sacerdote. Ele parte
com a equipe às 19 horas ⑫.

sexta-feira, 23 de agosto / planos 30–25–31


Plano 30 “Um milagre nos enche de consternação.” A câmera, na altura do
homem, à esquerda do centro, em semiconjunto sobre o coro, faz uma
panorâmica para a esquerda sobre os três solistas, semiconjunto, e para
o alto sobre os arbustos quando ouve-se a voz off. J.-M. me pede para eu
me manter fora de visão porque o meu posto se localiza logo acima dessa
parte da colina. Onze tomadas.
11 horas. Nós colocamos a câmera sobre uma torretta em plongée,
plano de conjunto sobre o coro para o plano 25: “Permaneça longe de nós
com seu Deus, o Todo-Poderoso”. O maestro, Michael Gielen, me explica
que era um coro muito difícil musicalmente para colocar no fim do plano
24, como estava previsto na decupagem, já que mesmo sem isso o plano
Anotações de Danièle Huillet

⑪ isso ao professor Preinfalk e à sua mulher: a


Por experiência, sabemos que os três primei- coisa foi repetida aos coristas, levada absolu-
ros dias de uma filmagem são sempre difíceis: tamente a sério, e não houve em seguida a
pessoas que não se conhecem devem se ha- menor alusão a essa questão, cada um tendo,
bituar a trabalhar juntas. Por experiência ao que parece, resolvido individualmente
sabemos também que as dificuldades ou o esse problema geral.
mau humor desaparecem rápido. O fato é
que desde o quarto dia as relações com o ⑫
coro melhoraram, apesar das diferenças de Os 12 primeiros dias de filmagem serão du-
língua, e que todos eles se sacrificaram bas- ros para os técnicos: eu havia explicado para
tante para fazer sua parte de um trabalho cada um deles que era preciso filmar, sem
que era duro para todo mundo; muitos vie- dia de repouso, durante todo o tempo que
ram nos dizer como lamentavam ter que nós tivéssemos o coro, porque se começasse
partir e como o trabalho lhes havia interessa- a chover (ocorre frequentemente na Itália
do; o coro se cotizou para dar às costureiras que em meados de agosto o tempo seja es-
e ao coiffeur, que eles haviam maltratado nos tragado por tempestades, e é preciso espe-
dois primeiros dias, um valor em dinheiro rar até setembro pra que ele se restabeleça;
como presente de despedida. Nosso único e, nessa região de montanhas, quando cho-
problema tenaz foi o dos lugares de descan- ve, é normalmente por vários dias seguidos,
so: o trailer, além do fato de que a sua loca- sem interrupção, diferentemente de Roma,
ção custa bastante caro e que é absurdo, é onde são temporais que não duram; nós não
uma solução, talvez, para algumas estrelas. podíamos marcar a filmagem para julho, que
Mas, para uma centena de pessoas, é comple- é o mês mais seguro, porque o coro não esta-
tamente inútil e inutilizável! Os técnicos, os va disponível: concertos em Salzburgo, etc.;
solistas e suas famílias, Gielen e Bernard, e 1974 era um ano excepcionalmente seco:
resolveram seus problemas sem nos falar nem uma gota de chuva desde o início de
deles; quanto aos coristas, eu havia acertado maio!; se a chuva começasse, ela ameaçaria
com os fazendeiros ao lado da igreja para durar então mesmo várias semanas…) e que
que eles os deixassem ir às suas casas, em nós não poderíamos não filmar uma ou duas
troca de uma compensação, em caso de ur- semanas quando o coro estava lá, o que re-
gência… Infelizmente, nos dois primeiros presentava um gasto de 30 mil marcos por
dias, nossos coristas, pouco organizados, dia, seria preciso interromper o filme… E
mal tendo descido dos carros que os levavam interromper significaria não poder terminá-
à igreja, se precipitavam em multidão, ho- -lo nunca mais, porque, mesmo se nós tivés-
mens e mulheres, às casas dos fazendei- semos (por qual milagre?) encontrado di-
ros — que fecharam suas portas a todo mun- nheiro para terminar em seguida, os
do no terceiro dia e só aceitaram voltar atrás cantores e Gielen estavam comprometidos
em sua decisão com as minhas insistências por um, dois, três anos (concertos nos qua-
de persuasão e unicamente para urgências tro cantos do mundo, ópera, rádio, discos, a
femininas. O professor Preinfalk me sugerira indústria cultural é uma das mais prósperas
“fazer como na Wehrmacht e dizer aos três da sociedade capitalista). Então, era preciso,
maquinistas para cavar trincheiras, uma para absolutamente, não perder um dia enquanto
os homens, outra para as mulheres, cobertas o tempo nos permitisse avançar e filmar com
por galhos”. Essa proposição provocou nos o coro. Todos os técnicos haviam concorda-
três pisanos, que eu ia encontrar para pedir do em filmar sem dia de repouso nos 12 pri-
conselho, uma crise louca de riso — até que meiros dias, e recuperar seu dia de repouso
Cecco tivesse uma ideia de gênio — sendo que faltava em seguida, quando o coro tives-
toda a zona “tombada” e sob proteção das se nos deixado. Mas o cansaço, passado os
Belas Artes, não nos era permitido cavar ali oito primeiros dias, começava a se fazer
buracos! Eu deixei passar dois dias e fui dizer sentir e todo mundo se tornava mais
Diário de filmagem de Moisés e Arão 139

24 dura quase cinco minutos. J.-M. então cortou depois o compasso 565
da partitura e fez um plano separado pelos compassos 566 e 620. O tempo
torna-se ruim então após dez tomadas nós interrompemos para o almoço
e fazemos em seguida mais seis às 15 horas.
Plano 31 em leve plongée, próximo do sacerdote, perfil direito. Cecco
mantém uma tela de poliestireno branca direcionada para a sua figura,
para refletir o máximo possível a luz tardia da tarde. Werner Mann, ma-
jestoso na sua túnica sacerdotal preta e branca, adverte o coro contra o
entusiasmo dos coristas, após o milagre da serpente: “O teu cajado nos
coage, mas ele não coagirá o Faraó a nos libertar”. Em seguida, quando
nós descemos depois que o plano é gestorben, J.-M. prepara os planos do
dia seguinte. Gabriele e eu assumimos o lugar de Moisés e Arão. Os Straub
partem com o material filmado de hoje para o laboratório Luciano Vittori
em Roma, para ver os copiões do material que Gabriele já levou para lá
durante a semana.

sábado, 24 de agosto / planos 36–37


8 horas. Danièle chega à igreja, enquanto J.-M. desce ao anfitea-
tro. Ela diz que os copiões estão muito bons, mas que havia de-
pósitos de calcário sobre os positivos que foram projetados. Nós
levamos as coisas até o anfiteatro, onde pode-se ver J.-M. recolhen-
do bitucas. Ele usa um chapéu de sol branco que comprou no Egito,
em maio, onde filmou os dois planos do Nilo que fecharão o ato I ⑬.
Depois de ter ajudado Renata a vestir Reich e Devos na igreja, eu vou
ao meu posto, a 30 metros dali. Plano 36. A câmera faz uma panorâmica
para a esquerda de um plano de conjunto/semiconjunto sobre o coro,
passando sobre os três até Arão e Moisés, que mostra sua mão sã. Ocor-
rem muitos ensaios para o som. Sempre há um ensaio geral da música
para o som antes de cada filmagem. Hoje é preciso muitos desses para
garantir que o som na escuta de Arão não seja nem muito forte nem muito
fraco. Ao fixar as posições dos diferentes grupos opostos uns aos outros
no primeiro ato, J.-M. destacou o impasse desses personagens bíblicos,
dando à ópera de Schoenberg o aspecto formal da luta, ao mesmo tempo
primitiva e clássica, do drama grego. Aqui o único que se move é o olho
da câmera. Essa qualidade fixa no cenário está em contraste total com a
mudança constante do tempo. A luz pode mudar a cada meia-hora aqui.
Será interessante ver como essa imobilidade humana, em contraste com
Anotações de Danièle Huillet

nervoso, sobretudo nos dias de grande calor! boa, que ela segurava bem a água, o que era
Mas todos aguentaram: Gielen, que tinha verdade, nós o havíamos observado antes.
muito medo dessa filmagem, por razões téc- Jean-Marie se mostrava preocupado em se-
nicas (ninguém havia ainda tentado aquilo guida, durante horas, se perguntando se ele
que ele fez, com uma música tão difícil, que encontraria uma outra tão boa, se tinha sido
não está ainda introjetada nos nossos hábi- uma boa coisa tê-lo privado daquela… Um
tos culturais), mas também psicológicas, camponês de Luxor nos vendeu por 10 mil
contou no fim, nos disse sua mulher Helga, liras a sela de seu dromedário, tudo que lhe
que essas três semanas haviam sido as mais restava, já que ele tinha precisado vender o
felizes de sua vida, que ele havia descoberto dromedário alguns meses mais cedo, e não
o trabalho coletivo… sabia se teria algum dia dinheiro para com-
prar outro. Ali nosso amigo egípcio nos aju-
⑬ dou, porque ele sabia um pouco de francês
Nós estivemos no Egito uma primeira vez, no por ter trabalhado nas escavações com ar-
Natal de 1972, Jean-Marie e eu, sozinhos, sem queólogos franceses (que, em Luxor como
câmera nem máquina fotográfica… Roland em Alba Fucense, exceto que aqui os arqueó-
Delcour, que J.-M. havia conhecido como logos são belgas e os camponeses italianos,
correspondente do [Le] Monde em Bonn, contratam durante um ou dois meses campo-
estava então no Cairo, e nós fomos convida- neses para cavar, desenterrar; quando os
dos à sua casa — nós ficamos três semanas no arqueólogos não vêm, lá como aqui — 30 mil
Egito, a metade no Cairo, a outra metade a pessoas deixam os Abruzos a cada ano para
percorrer de trem, de barco, de avião, de ir procurar trabalho no Norte ou no exte-
carro e de bicicleta o interior egípcio ao lon- rior, — é uma catástrofe, porque é o desapa-
go do Nilo, do Cairo a Alexandria, para ver o recimento de uma fonte de dinheiro líquido,
delta, e do Cairo a Assuã passando por Luxor. este dinheiro líquido quase tão raro para os
Foi nesse momento que nós fixamos os luga- camponeses de Alba Fucense quanto para os
res onde gostaríamos de filmar (o único pla- de Luxor); ele nos ajudou também levando-
no previsto na decupagem foi então transfor- -nos à casa dos artesãos que moldam e pu-
mado em dois planos), que fizemos amizade lem, à mão, os cálices de alabastro que nós
em Luxor com o jovem camponês que, mais levamos e utilizamos para o vinho, à noite,
tarde, quando filmamos, nos acompanhou derramado do cantil, e para o sangue das
pela montanha ao lugar que nós escolhemos, moças (um crítico musical alemão que, espe-
permitindo-nos escapar das curiosidades… ramos nós, ouve melhor que vê, acreditou
Nós queríamos, não apenas encontrar o lugar ver, no momento em que o sacerdote derra-
(os lugares!) para filmar nosso plano, mas ma de um cálice de alabastro branco o san-
também ver como as pessoas vivem, os obje- gue no buraco do altar, uma taça de plásti-
tos, os gestos, os costumes — trazer os obje- co…). De um comerciante vendedor de água
tos que nos eram indispensáveis e que sabía- no Cairo nós compramos, por 2 mil liras, os
mos que, alugados em Roma com “especialis- cantis de pele de cabra negra com, ali tam-
tas”, sua feiura e falsidade saltariam aos bém, má consciência, porque se, para ele, era
olhos; a jarra de terra de onde Arão derrama muito dinheiro líquido no momento, o que
a água e o sangue, nós a compramos do guar- fez, em seguida, para continuar a vender sua
dião de um templo: ele nos pediu 250 liras, água com apenas os dois cantis que lhe resta-
apenas o que custava para comprar uma vam? Nós até teríamos, ali, renunciado a
nova! Em inglês, única língua que permite comprá-los e nos resignado a encomendá-los,
comunicar um pouco, se, como bons euro- novos, na Itália, se não tivéssemos visto que
peus, não falamos uma palavra de árabe, nós ao recusar-nos a comprá-los, após ele ter tido
o dissemos, ao dar a ele 400, que era uma a impressão de que eles nos interessavam, a
lembrança nossa para ele, este pouco dinhei- decepção seria muito grande… Nós pegamos
ro a mais; ele nos explicou que a sua jarra era os mais velhos, deixando para ele os mais
Diário de filmagem de Moisés e Arão 141

o fluxo constante da natureza, se reflete no filme. Durante o almoço Basti


conta que nesta manhã um homem veio para anunciar que o anfiteatro
era sua propriedade. Os Straub tem uma permissão para utilizar o anfite-
atro da Sopraintendenza alle Antichità e Belle Arti de Abruzze-Molise, que
supervisionou aqui as recentes reconstruções. Essa não será a primeira
vez que eles se envolverão com um padrone5 expropriado, já que eles tive-
ram o mesmo problema com os proprietários da Villa Pamphilj, em Roma,
para filmar o quarto ato de Othon. Nós discutimos sobre esse assunto,
mas decidimos que o trabalho é mais interessante ⑭.
Plano 37, de início um plano próximo sobre Arão, em seguida a câ-
mera faz uma panorâmica para a esquerda, passando por Moisés e pelo
sacerdote até o coro, em plano de conjunto. “À maneira de Arão, Moisés
nos faz ver / como ele vislumbrou teu Deus.” De seu lugar, ao sul do centro,
perto de Arão e Moisés, a panorâmica da câmera alcança apenas o topo
da cabana-abrigo de ferramentas que se encontra fora da arena, na dire-
ção do Monte Velino, de maneira que nós recobrimos o teto com galhos. O
tempo passa de nublado a chuvoso, depois começa a clarear novamente.
Após sete horas o coro começa a ficar impaciente pelo fim da filmagem.
A vigésima quarta tomada é boa, de modo que o plano é gestorben. Com
a fita métrica em pés e polegadas da Mitchell, West-Hollywood, nós me-
dimos o perímetro da posição do coro e o marcamos no centro da arena,
diante da torretta, para o plano 48. À noite, é muito tranquilo aqui. Fica
muito claro, mesmo sem a lua que faz silhuetas azul escuro. A Ursa Maior,
“Vaghe Stelle dell’Orsa” de Leopardi, está situada logo acima da silhueta
do Monte Velino, como se fosse derramar sobre o seu pico sem neve um
pouco da Via Láctea.

domingo, 25 de agosto / planos 18–33–48–38


Plano 18. Abertura da terceira sessão do primeiro ato. O título, branco
sobre preto: “Moisés e Arão anunciam ao povo a mensagem de Deus”,
é o plano 17, compassos 244 a 252. A moça, Eva Csapó, o rapaz, Roger
Lucas, e o outro homem, Richard Salter, narram a passagem de Arão no
caminho para encontrar Moisés no deserto. A câmera, em leve contra-
-plongée, mantém-se em plano médio sobre Eva e faz uma panorâmica
para a esquerda, sobre Roger, e em seguida sobre Richard. É seu último

5. Do italiano: proprietário. [N.T.]


Anotações de Danièle Huillet

novos. Ele deve ter pensado que nós não não queríamos mentir. Tudo se passou sem
entendíamos realmente nada! contratempos, exceto pelo fato de que Jean-
A gentileza dos egípcios (aqueles que nós -Marie, que teve um pedaço de seu dedo cor-
vimos, pois não encontramos nenhum bur- tado por um removedor de neve, quando
guês: os burgueses egípcios, mesmo “amigos” fomos pegos por uma tempestade de neve em
dos Delcour, não vinham mais vê-los por Campotosto, no início de maio, indo rever o
medo de se comprometerem, e não é andando lago para tomar a decisão definitiva de filmar
a pé pelas ruas do Cairo, onde todos que não não em Campotosto mas sim no Matese, cir-
são pobres circulam de táxi, que vemos bur- culava de bicicleta nas estradas de Luxor,
gueses!) é imensa, mesmo nos bairros miserá- com sua mão esquerda no ar para evitar a dor
veis do Cairo, onde nenhum europeu nunca provocada pelo fluxo de sangue no dedo e
vai — exceto atravessando de táxi! — sob um sol já bem quente, enquanto estava
e onde eles tinham toda razão para querer bêbado de antibióticos; Ciccio, sua mulher
ver-nos longe, a começar pelo simples fato de Ombretta e eu atrás dele, pro caso de que ele
que não tínhamos o ar, nem Jean-Marie nem desmaiasse, porque os médicos italianos nos
eu, de subalimentados há séculos. Mas essa haviam dito que era muito perigoso andar
gentileza nos impressionava ainda mais que a sob o sol com antibióticos no corpo (?); e
descoberta, chegando ao Cairo de avião, de exceto pelo fato de que este mesmo Ciccio,
uma cidade quase como a Calcutá que nós que estava obstinado, apesar das nossas
vimos no único filme de Louis Malle [Calcutta, recomendações, como bom suíço ignorando
1969] que jamais nos interessou. No interior, a por que os nativos cobrem seus corpos dos
pobreza é com frequência extrema, ela se vê pés à cabeça, a filmar o plano na montanha de
também porque frequentemente as pessoas Luxor, durante três horas (nós o refizemos
são tão exploradas, cansadas, que não tomam uma dúzia de vezes, porque o movimento,
o menor cuidado com os seus animais, mas, com um tripé amador, era bem difícil, e tam-
apesar da esquistossomose, as colheitas uma bém a velocidade), com o torso nu, havia
após outra, sem repouso, que não dão lucros pego sol de tal forma que na noite seguinte
àqueles que as fazem mas aos seus explora- teve que dormir nu por causa do calor, e pe-
dores, há ainda uma aparência de equilíbrio gou uma espécie de broncopneumonia: os
de civilização agrária (as pessoas que vão ao três dias no Cairo, na volta, enquanto Ombret-
burgo pela manhã, ao amanhecer, vender ta visitava a cidade, ele os passou deitado no
legumes, frutas, animais, as culturas à beira hotel, entrou no avião doente e só foi se sen-
do rio, a engenhosidade artesanal, o inverso tir melhor ao pôr os pés em Roma!
da fadiga resultante da subalimentação que é
uma calma, uma lentidão, um tempo de vida ⑭
que é também, apesar de tudo, uma riqueza Eu iria com Leo, após alguns dias, ver o dito
que nós esquecemos); no Cairo por sua vez, proprietário, que é na verdade uma mulher,
com seus 7 milhões de habitantes em cresci- o homem que tinha vindo sendo apenas o
mento constante, é a miséria urbana, deses- seu administrador: ela não assume ter a
peradora, mesmo que se diga que é ali que se propriedade do anfiteatro, tendo sido de fato
trama a revolta. Após essa primeira viagem, expropriada pelas Belas Artes, mas do cami-
aquilo que nós ainda não havíamos decidido nho que desce ao anfiteatro, único caminho
claramente aconteceu: nós não iríamos a de acesso, o único que liga a estrada à igreja.
Israel após ter estado no Egito. Após algumas discussões, em que explica-
Em maio de 1973, nós retornamos, com mos que nós não somos os americanos (Hus-
Ciccio (Renato Berta) e uma câmera 16mm ton havia filmado os exteriores de seu A
Beaulieu e o inversível Kodak, para filmar Bíblia6 a cerca de 100 quilômetros dali, sobre
nossos dois planos — escondidos, porque nós
não podíamos pedir uma autorização dizendo 6. The Bible: In the Beginning… (EUA, 1966), de John
que se tratava de Moisés e Arão, e Huston.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 143

plano cantando e o primeiro no qual eles fazem sua aparição na ópera.


Eva e Richard terminaram depois disso e Roger retorna em uma semana
para cantar o plano 60. Faz muito calor e as moscas causam problemas
para os microfones e se obstinam a voar em torno de Eva. Danièle tenta
utilizar um produto contra os insetos ⑮. Eles fazem vinte e cinco tomadas.
O coro, mudo e olhando à sua frente, se mantém na posição para o
plano 33, enquanto Arão, fora de quadro, fabrica o milagre da mão le-
prosa de Moisés. A câmera, em leve plongée, pega-os em semiconjunto,
da esquerda. Durante a pausa do almoço nós levamos a câmera para
o alto de uma torretta de três andares. No plano 48, única aparição do
coro no segundo ato, o coro se mantém abaixo, ao sul da torretta, no
interior das linhas que nós marcamos ontem. Nesse acentuado plongée,
compactamente preenchido pelo povo em cólera, o coro volta seu olhar
de Arão, à sua esquerda, aos Antigos, diante dele: “Prendei-os, queimai-os,
os sacerdotes desse falso Deus!”. É a última gravação do coro como um
todo. Louis Hochet posiciona os microfones na direção da entrada sul e
J.-M. leva o coro para fora e os faz entrar no anfiteatro para gravar o som
da sua entrada, para o “barulho ao longe se aproximando rapidamente”
no fim do plano 45. Eles entram três vezes. Com isso o plano de trabalho
do coro é concluído, J.-M. agradece-lhes e diz adeus até o concerto trans-
mitido pela rádio da ópera, que deverá ser executado em Salzburgo, no
dia 21 de outubro.
Em seguida nós descemos a câmera e a instalamos em contra-plongée,
close-up, três quartos de perfil esquerdo sobre o sacerdote. Plano 38. O
coro off reclama a liberdade e explode com a advertência: “Insensatos! /
De que o deserto vos alimentará?”. Depois disso, J.-M. posiciona os trilhos
para um travelling in sobre Arão no plano 39. Eu faço o papel de Arão
enquanto J.-M. discute o ângulo da câmera e objetiva com Ugo e Saverio.
Ele quer começar com Moisés e Arão enquadrados em plano americano
e um travelling até um plano próximo de Arão, e que depois Arão saia de
quadro pela esquerda para o milagre da água do Nilo tornada sangue.
Depois de desproduzir, deixamos Hans-Peter na igreja e eu vou a
Avezzano comer com Leo. Jean-Marie e Danièle vêm ao restaurante e
comem com a gente. Danièle está ocupada preenchendo boletins de
pagamento, que a equipe recebe para as despesas diárias a cada dez
dias. J.-M. explica alguns aspectos do financiamento do filme pelos acor-
dos com a O.R.F. para os músicos e a participação das televisões alemã,
francesa e italiana. A maioria das pessoas no restaurante trabalha no
Anotações de Danièle Huillet

a outra vertente dos Abruzos, e um rumor sido destruído na igreja, e feito a faxina nós
deve ter se produzido de que era possível mesmos, conscientemente, para que a velha
ganhar dinheiro com as filmagens de um não tivesse que fazê-lo, na igreja de cabo a
filme), mas que enfim, dado que utilizaría- rabo, a Soprintendenza se recusou a nos
mos este caminho para fazer passar a cami- devolver a caução sob pretexto de danos
nhonete do som, o carro de Gabriele, a cami- que, evidentemente, não nos foram precisa-
nhonete da câmera e um ou dois carros dos… Nós deixamos pra lá, muito ocupados,
privados, nós estávamos dispostos a uma tendo o filme terminado, com outros proble-
compensação, à condição de que fosse razo- mas, mas eu me pergunto até hoje que ope-
ável. Firmamos acordo por 60 mil liras em ração mafiosa se esconde ali atrás, e sobre-
duas parcelas, uma imediata, de 30 mil, e a tudo porque essa desonestidade e essas
segunda ao fim da filmagem. Ninguém tentou mentiras por um valor tão pequeno!
nos chantagear, exceto pelo pároco da igreja
que utilizamos para os figurinos, o material, ⑮
etc., e onde Gregory ou Hans-Peter dormem. Paolo havia, antes do início da filmagem,
Este queria nos convencer de que o fato de feito vir um homem com uma máquina vapo-
não poder celebrar casamentos em sua igre- rizadora que espalha inseticida, ao que pare-
ja (que não é a igreja do vilarejo, mas um ce antimoscas, e que as municipalidades
monumento “tombado”, onde as pessoas alugam às vezes. Mas Straub se recusa a
ricas ou esnobes vem se casar de tempos em repetir essa operação, que considera muito
tempos) durante cinco semanas o fazia per- perigosa: esses inseticidas, diz ele, são um
der 300 mil liras… Jean-Marie e eu fomos veneno violento, os animais podem vir a
vê-lo: ele terminaria por nos confessar que, comer a grama das encostas do anfiteatro e
certamente, não era tanto, mas que ele com- isso passa para o leite, etc. Eu não insisto
prou uma pequena casa para sua família (sua diante da sua opinião: nós combateríamos
irmã e seu cunhado e seus numerosos filhos) então as moscas com um produto do qual se
e ele, que ele deve pagar a prestações, e que servem os camponeses, que aplicamos com
ele pensou que um filme… se nós o pagásse- um lenço de papel, delicadamente, no corpo
mos 300 mil liras de uma vez isso cobriria os dos atores ou na haste ou na espuma dos
pagamentos! Acordamos por 100 mil liras, ali microfones…
também em duas parcelas, uma no início,
outra no fim da filmagem.
Pela permissão de filmar no anfiteatro, as
Belas Artes de Chieti foram muito corretas,
graças a um jovem intendente que depois foi
nomeado para Perugia: sem complicações,
autorização gratuita, porque, nos diz ele,
“em uma democracia esses lugares deveriam
estar gratuitamente a serviço do público, sob
a única condição de que não ocorra nenhuma
deterioração”
Por outro lado, a Soprintendenza ai Monu-
menti de Aquila foi — única exceção — bastan-
te incorreta: nós conseguimos autorização
para utilizar a igreja então, por meio de um
“aluguel” de 50 mil liras e uma “caução” de
100 mil que nos devia ser devolvida no fim
da filmagem. Quando pedimos a nossa
caução, após ter verificado, Straub e eu, que
nada, absolutamente nada, havia
Diário de filmagem de Moisés e Arão 145

filme, e há um sentimento geral de alívio por ter terminado esse primeiro


período da filmagem. A beleza de observar o filme sendo feito é ver isso
como um documentário sobre os 15 anos de trabalho e de preparação
que levaram os Straub à simplicidade de um conceito bem informado
para cada plano, onde tudo já foi previsto, gravado e repetido, deixando
assim o ato de filmar livre para ser ele mesmo um documento sobre o
trabalho que o precedeu.

Carta de Schoenberg para Alban Berg de 8–8–1931:

“Singularmente eu trabalho exatamente da mesma maneira: o texto


só é definitivamente terminado durante a composição, e com fre-
quência até depois. Isso gera extraordinariamente bons resultados.
Naturalmente, e você com certeza fez o mesmo, isso só é possível
quando se tem de antemão toda uma representação muito exata,
e a arte consiste, sim, nisso: não apenas manter constantemente
viva essa visão, mas ainda reforçá-la pelo trabalho concluído com
detalhes, enriquecê-la, desenvolvê-la!

segunda-feira, 26 de agosto / planos 39–40


Nós passamos toda a manhã no plano 39. Moisés responde ao sacerdote:
“No deserto a pureza do pensamento vos alimentará…” e depois Arão o
interrompe, transformando suas palavras no encantamento do milagre.
A câmera em plano médio avança em travelling até um plano próximo de
Arão, que se mantém em primeiro plano diante da entrada sul e sai de
quadro no fim pela esquerda. Às 13 horas o plano é gestorben.
Plano 40. A água do Nilo transformada em sangue. Plano-detalhe do
jarro e das mãos de Arão enquadradas pelo seu lado esquerdo. Tudo é
ensaiado minuciosamente antes que o sangue, que Paolo foi buscar num
abatedouro local, seja realmente posto na jarra. Arão pega com força as
alças e inclina a jarra à menção da palavra “sangue” até que o sangue
jorre. Ele canta: “Não, vós não vos enganais: o que vedes neste momento
é sangue! Entendeis isto?” Durante esse tempo, o tempo se torna cinza e
chuvoso. Após duas tomadas, Arão muda de posição para um outro local
e a câmera é deslocada, porque o chão diante de Arão já estava man-
chado de sangue. Günter Reich, que está livre no momento, sobe para
me encontrar e nós conversamos enquanto eles reinstalam tudo. Ele fala
Diário de filmagem de Moisés e Arão 147

inglês com uma engraçada maneira britânica. Nascido na Silésia, precisou


partir por causa dos nazistas e então cresceu em Israel. Começou a cantar
como tenor, mas, quando veio para a Alemanha estudar, seu professor
revelou sua voz como baixo-barítono. Ele canta na ópera de Stuttgart. Eu
pergunto como ele se sente em um papel que tem apenas sete compassos
para cantar em toda a ópera (plano 16/7), em oposição à extraordinária
participação de tenor de Arão. Ele diz que a voz falada de Schoenberg
está marcada na partitura com um sistema particular de cruzes sobre os
impactos, e que ele deve responder à direção de Gielen e aos comentários
de Bernard Rubenstein tanto quanto Louis Devos. Gestorben às 17 horas,
após quatro tomadas.

terça-feira, 27 de agosto / planos 41–32–35–34


Plano 41. Dessa vez Arão derrama a “água clara do Nilo”. É o último mila-
gre de Arão. A câmera está em plano próximo sobre o perfil esquerdo de
Arão. Ele canta “Mas o Todo-Poderoso vos liberta e o vosso sangue.” O coro
off canta: “Eleitos, eleitos!”, o que vem da trilha de Viena e será mixado
mais tarde com a voz de Arão. É a última cena do primeiro ato que deve
ser filmada, já que o coro final “Deus Todo-Poderoso, nós vos devotamos
nossas oferendas e nosso amor” deve surgir sobre as duas panorâmicas do
Nilo, em Luxor, e na de Assuã, que J.-M. filmou em maio (planos 42/43). O
interlúdio de dois minutos e trinta segundos, 42 compassos: “Onde está
Moisés?” é sobre fundo negro com o intertítulo: “Diante da Montanha da
Revelação”, escrito em branco (plano 44).
12h30. Plano 32. Contra-plongée. A câmera, em plano médio sobre
Moisés e Arão. Arão mostra a mão sã de Moisés, e Moisés a leva ao seu
coração. Plano 35. Próximo sobre o perfil esquerdo de Arão. Câmera em
leve contra-plongée. “Reconhecei-vos nisto: / Sem coragem, / doentes, /
desprezados, / explorados, / perseguidos!”. Plano 34. Um plano-detalhe
silencioso sobre a mão leprosa de Moisés. O coro canta off durante esse
plano. Apesar disso, Hochet grava o ambiente, de maneira que J.-M. insis-
te no “absoluto Ruhe” durante a filmagem. Das 17 às 20 horas os contadini
(camponeses) vêm à igreja experimentar seus figurinos para o plano 58.
A simplicidade desses figurinos acentua a beleza primitiva dos rostos
dessas pessoas que trabalham pesado. Algumas mulheres decidem não
fazê-lo, então Paolo chama o contadino que vive na fazenda ao lado da
igreja, sua mulher e sua mãe, e eles aceitam.
Anotações de Danièle Huillet

⑯ ⑰
Nós devemos muito reconhecimento a Arão: Não, não em Alexandria: Alexandria é uma
certamente, se ele pegou frio, ele próprio é o cidade do Mediterrâneo, próxima a uma
culpado, porque, apesar dos nossos pedi- cidade italiana, mais pobre, mais populosa,
dos, ele se obstina, mal terminada uma toma- também com traços de arquitetura estilo
da, a se despir pela metade e ir se exercitar fascista. Esses tijolos, nós os vimos, e nós
para a seguinte na galeria que corre sob uma levamos um deles para a Cine-Ars (!) da
metade do anfiteatro e que é tão fria quanto Cinecittà, que devia fabricar nosso altar de
é quente do lado de fora: o resultado era poliestireno(que por pouco não tivemos:
previsível. Mas, nesse dia, ele sabia que nós felizmente nós o havíamos encomendado 18
filmaríamos o último plano com os 17 coris- meses antes da filmagem, porque com o es-
tas e ele, que, se nós conseguíssemos termi- touro da crise do petróleo, esse seu subpro-
nar esse plano nesse dia, teríamos com eles duto não era mais encontrado; e quando
apenas mais um plano sem Arão, nº 58, com começou a chegar novamente da América, o
os camponeses do vilarejo, e que nós poderí- preço havia quintuplicado!), nós os vimos à
amos então mandá-los de volta a Viena (os beira do Nilo, entre Assuã e Luxor, secar ao
coristas permaneceram ainda esperando em sol, como há milênios, uma pequena “fabri-
Avezzano, dois dias além do último dia de que” (usina) à beira de um vilarejo.
filmagem com eles, assim como os solistas e
Gielen, até que tivéssemos visto os copiões
no laboratório, para ter certeza de que eles
poderiam partir, que não tinha havido ne-
nhuma catástrofe no laboratório, nada a
refazer com eles).
Por outro lado, se nós não tivéssemos
conseguido terminar nesse dia com eles e
Arão, seria preciso esperar que ele pudesse
novamente cantar com nossos coristas e
pagá-los durante esse tempo: ele então fez
um grande esforço e, quando ninguém mais
acreditava que seria possível, aconteceu: a
última tomada inteira desse plano, a vigési-
ma, aquela que nós temos no filme, esse
momento em que Arão, “traído”, cede, é
também aquela em que sentimos mais o
esforço e a dificuldade do cantor. Essa “ad-
versidade” nos serviu, porque jamais tería-
mos obtido isso, nem pensado obter, essa
voz que vai falhar, sem essa doença e sem a
coragem e a vontade de Devos. À vigésima
tomada feita, o coro aplaudiu espontanea-
mente Arão: este queria tentar mais três
vezes, mas a cada vez sua voz falha, cada
vez mais rápido. Dessa vez, acabou, o leva-
mos ao hotel imediatamente. Gielen, Reich,
Straub e eu fazemos cara de preocupação,
pois sabemos que o risco que após esse
esforço ele não possa mais cantar durante
meses existe…
Diário de filmagem de Moisés e Arão 149

quarta-feira, 28 de agosto / planos 46–49


Plano 46. Semiconjunto sobre os Antigos. Os homens do coro são orga-
nizados em três filas, com o sacerdote na frente, à direita, no quadro.
Jean-Marie faz com que se coloquem no lugar e nós enfiamos pregos
para marcar suas posições. A Mitchell está localizada no alto de uma
torretta de dois andares, e voltada frontalmente para eles. Jean-Marie uti-
liza o mirino (visor) para decidir a objetiva. Ele e Danièle discutem sobre
isso com Ugo e Saverio. Os Antigos cantam: “Ouvi! Ouvi! Tarde demais!”.
Olhando ligeiramente para a sua direita para indicar Arão, e em seguida
olhando reto à sua frente para indicar a aproximação do coro. Plano 49.
De início sobre os Antigos, como no plano 46. “Arão, / ajuda-nos / cede!”
A câmera faz uma panorâmica para a esquerda sobre o perfil de Arão,
que se volta para o povo. Ele canta: “Povo de Israel! Teus deuses eu vos
devolvo, / e vós a eles; de acordo com teu desejo”. Após o ensaio geral, a
filmagem começa às 14h20. Devos não se sente bem, então paramos às
17 horas ⑯.
Subimos à igreja e transportamos os quatro pedaços de poliestireno
montados sobre uma estrutura de madeira, que formam o altar e o pedes-
tal para o bezerro de ouro, até lá em baixo na arena. Jean-Marie cava ele
mesmo a base para o pedestal e nós o colocamos no lugar, o reforçamos
com pedras e o fixamos para o seu peso. Antes disso, juntamos os três
pedaços da plataforma, que se encaixam juntos como uma base, com
quatro degraus para o cubo colocado no alto, ao centro, e que serve de
altar. Tudo é pintado por um castanho idêntico à cor da mistura de terra
seca e de palha utilizada pelos hebreus para fazer tijolos, e que os Straub
encontraram ainda em uso em Alexandria ⑰. O altar que foi fabricado na
Cinecittà ficou armazenado na igreja até o momento. Após essa monta-
gem, os degraus são recobertos de tábuas para proteger sua superfície.
Depois cobrimos tudo com enormes telas de plástico, para protegê-lo da
chuva, e as fixamos contra o vento. A partir de agora, Hans-Peter e eu di-
vidimos a tarefa de montar guarda aqui durante a noite. Danièle nos dá a
velha barraca de camping, que pertence a eles desde 1954, para usarmos.
Eu ajudo Hans-Peter à montá-la. Ele decide permanecer lá nessa primei-
ra noite. Eu durmo na igreja. Jean-Marie pede a ele para observar a que
horas a Lua aparece por cima do anfiteatro.
Anotações de Danièle Huillet

⑱ E não podemos nem pensar em esperar


A necessidade de avançar com os planos sem filmar até que Arão se restabeleça e
que deveriam ser filmados mais tarde e de possa voltar a cantar, porque Gielen precisa
adiar aqueles que necessitam da presença dirigir os Gurrelieder7 e seus ensaios come-
de Arão me preocupa, não apenas porque çam dois dias após o fim da filmagem previs-
preciso encontrar rápido a melhor decisão ta para ele. Em caso de catástrofe, ele renun-
de organização e de economia, tentando não ciaria aos Gurrelieder, mas nós queríamos
esquecer nenhum dos elementos, mas so- evitar que isso lhe acontecesse e as dificulda-
bretudo porque sei (e sou a única a saber, des, jurídicas, e econômicas, de carreira, que
exceto talvez por Louis, porque ele trabalha isso representaria; além de sua vontade, é
nesse filme conosco há dois anos e conhece claro, de dirigir os Gurrelieder justamente
uma parte das dificuldades, Jeti porque tem após M. e A. Nós havíamos pedido a todos
uma sensibilidade veloz, e Gabriele, porque para nos guardar alguns dias de reserva além
estava conosco em todos os preparativos da do último dia de filmagem previsto, mas,
pré-filmagem; os outros, incluindo Saverio e após a experiência de Viena em que tudo
Gielen, têm tanto costume de ver Jean-Marie terminou sem atraso (a custo de tamanha
“funcionar”, como diria Brecht, que eles tensão nervosa às vezes!), com um otimismo
nem mesmo visualizam que a máquina pode- imenso e uma inconsciência completa das
ria de repente pifar!) que tensão nervosa panes atmosféricas possíveis (mesmo na
provoca em Straub isso de ter que tecer Itália! Sobretudo na Itália, onde tudo é instá-
seus fios de outra forma, não cometer um vel e exposto a riscos: o tempo, a terra, as
erro de julgamento, não entrar em pânico; pessoas!), eles nos dispuseram seu tempo
espero que seus nervos aguentem. A possi- sem guardar essa reserva!
bilidade que Arão não possa mais cantar
mesmo, é preciso rejeitá-la, para pensar ⑲
somente no trabalho cotidiano — pensar que Antes de dirigir o que quer que seja, Jean-
é preciso escalar uma montanha após a ou- -Marie pede cadeiras e as dispõe para que o
tra. Quando passo por períodos de desenco- grupo de camponeses e camponesas de um
rajamento, em que me questiono se sou lado, e o dos velhos de outro, possa se sen-
suficientemente forte ou suficientemente tar, fora de quadro, entre duas tomadas. Eles
esperta para conseguir chegar até o fim, me são todos muito gentis, muito calmos e tudo
lembro que se Mao e seus camponeses atin- termina ao meio-dia. Distribuo a cada um as 8
giram o objetivo de mover aquele imenso mil liras prometidas (há vários dias eu junta-
país, seria o cúmulo que nós não chegásse- va notas de 1 mil e de 5 mil em toda parte, e
mos ao fim de um filme. E isso funciona, eu eu havia pedido a Leo que passasse no banco
começo a escalar novamente. À noite, quan- para trocar notas de 10 mil, para ter todas as
do nos deitamos à 1 hora ou às 2 horas, às quantias prontas para cada um); eu o faço
vezes às 3, se é uma noite em que nós tive- discretamente, é uma operação que detesto
mos de ir à Roma para assistir copiões, eu (exceto — com os técnicos, que estão acostu-
adormeço como uma pedra — para me levan- mados, mas que se surpreendem sempre,
tar sem falta às 5 horas, e passar o tempo na mesmo aqueles que já trabalharam com a
varanda do hotel, até às 6 horas — 6 horas e gente, que eu os pague no início da semana,
30, a examinar o céu, ver onde vão as nu- portanto, adiantado, e não no fim, com o
vens, se vai fazer sol… 5 horas, é a hora, por trabalho já feito… Porque não entendo por
sua vez, em que J.-M. adormece, exausto, que se pede às pessoas para antecipar seu
após ter refletido sobre o que iria filmar; trabalho; e além disso, eu fico bem contente
duas horas mais tarde, é preciso acordá-lo…
Felizmente, nós temos o luxo de poder to- 7. Composição para voz e orquestra de Arnold
mar um banho bem quente para nos acor- Schoenberg sobre poemas de Jens Peter Jacobsen.
dar, e o café italiano é eficaz! [N.T.]
Diário de filmagem de Moisés e Arão 151

quinta-feira, 29 de agosto / planos 58–57


Cedo pela manhã. Cecco, Nanni e Nini colocam o bezerro de ouro em um
carro-frete e o transportam até a arena. Danièle está nervosa por causa
do bezerro, pois o acabamento em ouro feito na Cinecittà se descasca
facilmente e é difícil de retocar. Com grande cuidado nós o elevamos até
o topo do pedestal. J.-M. conta que o médico ordenou a Devos que repou-
sasse por pelo menos três dias. Ele teve um pouco de febre e não será
capaz de cantar até se recuperar. Isso perturba o plano de filmagem e
não traz uma perspectiva feliz para o filme ⑱. É preciso esperar para ver
depois de três dias. Por volta das 11 horas, o plano 58 está pronto. Os con-
tadini descem da igreja com seus figurinos. Jean-Marie dirige os mendigos
e mendigas para que passem da direita para a esquerda pela frente do
altar. Ele lhes diz para não olhar para a “coisa preta” (a câmera) ao passar.
A câmera está sobre os trilhos posicionados em diagonal, à esquerda do
altar ⑲. A procissão começa. Os mendigos colocam sua túnica sobre os
degraus do altar e as mendigas colocam frutas e pão. Após sua passagem,
a câmera recua para a entrada dos anciões à direita, em direção ao altar.
Para esses dois grupos a música já está gravada. Quando os anciões avan-
çarem em direção ao altar, nós os ouviremos cantar: “Os últimos instantes
/ que nós ainda temos para viver / tomei-os como oferenda”. Depois disso
a câmera faz uma panorâmica para a esquerda sobre os Antigos, ao lado
do altar, que cantam em som direto: “Eles se mataram!”. Durante o cestino,
ouço Danièle discutir sobre o “Gregory” com Jean-Marie. Nini e eu vamos
carregar a padiola sobre a qual está deitada a doente no plano 57. A câ-
mera está em leve plongée sobre ela, que canta e se levanta em direção ao
bezerro. Gielen está instalado ao lado do altar, de maneira que a doente,
Elfried Obrowsky, possa segui-lo e ao mesmo tempo olhar na direção da
“imagem dos deuses”. Quando ela cantou, nós a carregamos para fora de
quadro pela esquerda e a câmera faz um lento travelling até os degraus do
altar. J.-M. nos indica para continuar, para carregá-la até que o travelling
termine, porque ele quer que Vaglio grave o som da nossa partida. Após
um momento, minhas mãos começam a doer por causa do peso da padio-
la. Tento me concentrar na melodia sinuosa que canta minha passageira.
Terminamos após 16 tomadas. Mario, o filho de Sigzech ⑳ Pancrazio, vigia
do anfiteatro, me ajuda a montar a barraca. Adormeço logo após entrar
no saco de dormir.
Anotações de Danièle Huillet

de me livrar desse dinheiro sem ter de trans- de noite o homem que corre queimando, esse
portá-lo comigo por mais tempo ou guardá-lo caminho parte do centro do depósito de lixo
no hotel). Eles ficam contentes, porque nós da cidade de Avezzano… A entrada desse
lhes havíamos dito que aquilo poderia durar caminho, que nós havíamos novamente visto
o dia inteiro, e eles terminaram em duas ho- e verificado três dias antes com Gabriele, nós
ras. Nós ficamos contentes, porque havíamos não a encontramos mais. Passando e repas-
dito a Friedl Obrowsky que, se tudo corresse sando, compreendemos afinal por que: lixos
bem, poderíamos talvez filmar com ela à foram despejados, restos de construção mais
tarde, que ela fosse então “afinar a voz” e precisamente, sobre a entrada do caminho…
ensaiar com Bernard de manhã; ela não veio Está tarde, os escritórios estão fechados, não
em vão, iríamos poder filmar. será possível encontrar quem quer que seja
da cidade para nos ajudar; e amanhã é domin-
⑳ go! Dispensamos Louis dizendo a ele que
Gregory provavelmente escreveu “Signor vamos avisar, que ele vá repousar; Cecco
Pancrazio” — Sigzech, é um nome das Mil e parte também para buscar Nanni, Nini e pás
uma noites! no vilarejo. Nós ficamos lá esperando até o
momento em que a cólera me atinge e em que
eu começo (“Veremos bem se os homens não
Não; era aquilo que estava previsto na decu- podem superar também isso”) a limpar os
pagem: na montanha, chegamos à conclusão escombros com as minhas mãos; ainda é dia,
de que era idiota, que melhor seria ver Moi- à noite não poderíamos fazer mais muita
sés desde a primeira nota, que sobe lenta- coisa. J.-M., Gabriele, Leo, Dietmar Schings
mente suas mãos no quadro: realizar um tal fazem o mesmo: Leo e eu até machucamos
movimento é difícil para um ator, por que um pouco as mãos com pedaços de ferro
cortar o seu início? E essa espécie de hesita- cortante. Ao fim de duas horas, Cecco ainda
ção, por que destruí-la? Então, o plano 10 não retornou com suas pás, mas nós limpa-
começa com a primeira nota da ópera. mos o suficiente para que os carros possam
passar; Gabriele, com seu 4 CV Renault novo
(que eu desconfio que ele tenha comprado no
O que Gregory não sabe, porque ele ficava de lugar do velho que ele tinha antes, para ter
guarda no anfiteatro, é que, após ter ensaiado certeza de não ter um carro que nos deixaria
com os três na câmera e os três maquinistas na mão no meio da filmagem, mas ele jamais
para o plano 60, um dos mais difíceis de mar- quis admiti-lo), passa e repassa para planifi-
car, nós fomos, com Cecco, Gabriele e Diet- car o terreno, arriscando destruir seu belo
mar Schings, que veio de Frankfurt para nos carro novo; um carro é feito para servir, diz
ver, e Leo, rever a entrada do caminho que é a ele… Quando Cecco, Nanni e Nini chegam, a
única via de acesso para chegar ao lugar noite já está escura, mas o trabalho pratica-
onde queríamos filmar com os cavalos. Ho- mente terminou: à luz dos faróis, eles cobrem
chet e Vaglio nos seguem, para aprender tam- os últimos buracos. Na manhã seguinte, nin-
bém onde fica a entrada do caminho para a guém do resto da equipe se dera conta de
manhã seguinte. É uma colina em frente à nada. Nós perguntamos a Dietmar o que ele
colina do anfiteatro, do outro lado da estrada. acha da profissão de cineasta-catador de lixo;
Uma estrada não asfaltada deixa para trás a que, quando lhe perguntarem o que ele viu
estrada asfaltada: é por onde passam, além da filmagem de M. e A. na sua volta à televi-
de alguns tratores, os caminhões de lixo que são de Frankfurt, ele conte a história desse
vão esvaziar seus lixos um pouco mais adian- fim de tarde.
te… Porque o caminho que leva dessa estra- Vamos nos lavar, comer, depois retorna-
da não asfaltada à pedreira que se encontra mos, J.-M. e eu, no carro de Gabriele, para
ao pé da colina onde queremos filmar amanhã examinar as posições da Lua no anfiteatro.
com os cavaleiros, mas também em seguida Há, de fato, muitas nuvens!
Diário de filmagem de Moisés e Arão 153

sexta-feira, 30 de agosto / plano 10


8 horas. Eu acordo quando os Straub chegam ao anfiteatro. Por causa da
indisposição de Arão, eles precisaram mudar o plano de trabalho até que
ele possa cantar. A câmera é colocada sobre uma torretta para um close-up
em plongée de Moisés para o plano 10. J.-M. discute sobre o movimento
de câmera para este plano de nove minutos com Saverio. Ficamos em
Moisés, aqui com a cabeça descoberta, até o fim de seu diálogo com a
voz do arbusto de espinhos. Depois que ele declara: “Minha língua é lisa:
/ sei pensar, mas não falar”, a câmera faz uma panorâmica para o alto em
direção ao arbusto e lentamente para a esquerda, rodeando o anfiteatro,
enquanto a voz canta sobre seu povo eleito, até a montanha sobre a qual a
câmera para, e permanece. A panorâmica é de cerca de 300 graus ao longo
da linha entre o anfiteatro e o céu, até parar sobre o desenho do Monte
Velino ao longe. Por causa de sua duração, mais de 900 pés, cada tomada
gasta cerca de uma bobina inteira de negativo. A filmagem começa com sol
às 10h30, mas após três tomadas as nuvens recobriram completamente o
Monte Velino e o ocultaram. Ao meio-dia nós paramos e esperamos que as
nuvens se dissipassem. À tarde o Monte Velino torna-se visível novamente
e a filmagem recomeça. Gestorben, após oito tomadas. O início dessa cena,
compassos 1 a 5, fundo preto, com o título: “Vocação de Moisés ”.

sábado, 31 de agosto
Nada a filmar hoje. Nós esperamos a recuperação de Devos. À tarde en-
saiamos o plano 60. À meia-noite os Straub vem ao anfiteatro para obser-
var a Lua para um plano mais tarde, mas há muitas nuvens .

domingo, 1º de setembro / planos 59–60


Plano 59 . Sobre uma colina próxima, os 12 Príncipes dos Tributos e o
efraimita descem um caminho a cavalo, passam diante da câmera em uma
curva no caminho e saem de quadro pela esquerda. A câmera faz uma pa-
norâmica com eles e permanece um segundo sobre a montanha, sempre
com o Monte Velino ao longe. Ao meio-dia eles chegam ao anfiteatro. Os
Príncipes dos Tributos vêm com seus cavalos de um haras de Tagliacozza.
Plano 60. A câmera está montada sobre trilhos à direita do altar. Pri-
meiro em close-up sobre o efraimita, que canta: “Príncipes dos Tributos, /
homenageai comigo / a essa imagem de forças medidas!”. Em seguida a
Anotações de Danièle Huillet

figurinos embaixo na pedreira, as nuvens se


Noite de sábado para domingo: as nuvens desfazem, o azul aparece; ainda é apenas um
continuam a se acumular; por volta de 1 pequeno ponto azul, mas Vaglio triunfa. São
hora, a chuva começa; às 5 horas, quando 10 horas. Gabriele retorna: os cavalos haviam
acordo, chove canivetes, e as nuvens conti- sido deixados em um prado, a céu aberto, e
nuam a chegar… Deveríamos estar às 8 ho- nesta manhã eles estavam completamente
ras sobre a colina com os cavalos. Às 6 horas encharcados! Os cavaleiros precisaram enxu-
e meia, ainda chove: deixo Jean-Marie dormir gá-los, deixá-los secar, enxugá-los novamen-
e passo de uma varanda a outra do hotel te, porque não se pode selar um cavalo úmi-
para observar o caminhar das nuvens… Não do, sob risco de machucá-lo, cortar sua
sei que decisão tomar: não há nenhuma me- pele… Só agora eles chegam. Passados 15
lhora à vista, mas por outro lado renunciar a minutos chegam os primeiros, às 11 horas
filmar hoje com os cavaleiros é catastrófico: enfim todo mundo está pronto, vestido.
uma parte trabalha e não poderá se liberar A primeira tomada (nós faríamos três) ocor-
amanhã, corre-se o risco de criar uma bola re ainda com um céu nublado, a terceira tem
de neve e de desorganizar todo o plano de apenas uma minúscula nuvenzinha que
trabalho, enquanto Arão está melhor e ama- atravessa o campo rápido para a direita…
nhã ele acha que poderá cantar. Ao longo de À tarde, o céu torna a ficar negro e ameaça-
uma viagem de uma varanda a outra, encon- dor; nossos cavaleiros deverão se ajoelhar,
tro Vaglio no corredor: ele vem comigo para se levantar, se ajoelhar de novo onze vezes.
a outra varanda, e me diz, com seu sotaque Para moços de família, até que eles se
cantado: “De onde venho, em Nice, quando comportam bem: o único que se queixa de
faz esse tempo pela manhã, às 10 horas faz dor nos joelhos é o proprietário do haras.
sol. Vocês verão, às 10 horas fará sol, é preci- Nós perguntamos aos cavaleiros quanto o
so ir”. Bom, a decisão foi tomada, eu não proprietário em questão dá a eles das 500
acredito muito, mas decido não mudar nada. mil liras que lhe pagamos pelos cavalos e
Acordo Jean-Marie, que me diz que é loucura, cavaleiros: “Nada, uma refeição. E também
mas ainda assim decide se levantar. Chega- ele sabe que nós gostamos de montar, e,
mos às 8 horas e meia na colina, todo mundo dessa vez, para poder voltar essa noite a
chega lentamente, mas nem ao menos um Tagliacozzo, nós podemos montar de graça”.
cavaleiro ou cavalo à vista. Não me preocu-
po, pois conheço esse tipo, e estava certa de
que eles atrasariam; eles não são campone- Lode, é Louis em flamenco; Devos é um belga
ses, mas moços de família. A chuva parou, flamenco, é por isso que ele fala bem o ale-
mas o céu continua completamente coberto. mão. Além disso, Straub trabalhou particu-
No entanto, pegamos a câmera e começamos larmente com ele a pronunciação dos textos,
a preparação. Cecco, nosso grande profeta a princípio durante ensaios em Bruxelas ou
do tempo, nos diz que sobre esta colina tem no Mondsee com Gielen, em seguida em
menos segurança em seus palpites que no Viena quando da gravação: todos os pontos
anfiteatro, onde os camponeses lhe ensina- que ainda estavam fracos foram circulados
ram a “ler” a luz ou as nuvens sobre o monte ou sublinhados de vermelho, e Lode os retra-
Velino… Às 9 horas e meia, nós estamos balhou em seguida sozinho, entre maio e
prontos, mas até então nem sombra de agosto, de maneira que o progresso entre a
cavalo à vista. Eu peço a Gabriele para ir a dicção do texto gravado em Viena e aquele
Avezzano, onde os cavalos foram levados gravado em Alba Fucense é grande.
pelo proprietário do haras na noite anterior,
de Tagliacozzo, a cerca de 30 quilômetros,
para justamente não precisar sair esta ma-
nhã e chegar na hora da filmagem! Ver o que
se passa. Renata e Rino prepararam todos os
Diário de filmagem de Moisés e Arão 155

câmera recua até um plano de conjunto dos 12 Príncipes dos Tributos,


também ajoelhados diante do altar. Eles se levantam à aproximação do
rapaz que, ameaçador, vai com um grande cajado sobre o primeiro de-
grau do altar e canta: “Que seja destruída essa imagem do efêmero! / Que
seja pura a perspectiva sobre a eternidade!”. O efraimita, Ladislav Illavsky,
o contorna pela direita, o segura pela garganta, o joga no chão e sai de
quadro pela esquerda com os 12 que o seguem. Gestorben por volta das
15 horas. Jean-Marie prepara o travelling para o plano 26, para amanhã.

segunda-feira, 2 de setembro / planos 26–27–29–69


Plano 26. De início, a câmera em plano próximo de Moisés. Ele diz “Todo-
-Poderoso, minha força está chegando ao fim: / minha ideia é impotente
/ na palavra de Arão!”. A câmera faz em seguida um travelling para trás
para enquadrar os dois em plano americano, médio. Arão ameaça: “Cala-
-te! A palavra sou eu e a ação!”, e arranca de Moisés o seu cajado. Moisés,
assustado, volta-se para ele, perfil direito para a câmera. Lode , como
chamamos Devos para distingui-lo de Louis Hochet, está recuperado da
febre. Ele está com a voz boa hoje. Ainda que fale francês conosco, Devos,
belga, não tem muita dificuldade com o texto em alemão . Fazemos seis
tomadas entre 11h30 e 12h30. Plano 27 próximo sobre Arão, que se en-
contra à direita do quadro, voltado para o coro. Ele joga o cajado no chão
e canta: “Este bastão vos conduz: / vede, a serpente!” Após o cestino,
plano 29. A câmera à esquerda, em plano médio e em contra-plongée sobre
Moisés e Arão. Arão, com o cajado, canta: “Reconheceis a potência que
esse bastão / empresta ao condutor!”. Ele dá um passo para a direita para
entregá-lo a Moisés e volta ao seu lugar, à esquerda de Moisés.
16 horas. Cecco, Nani e Nini colocam a Mitchell no exterior da en-
trada sul do anfiteatro e ligam-na através de um cabo ao gerador. Fico
sentado de guarda ao lado até que eles retornem à noite para filmar a Lua
que sobe por trás da colina, a leste, ali onde o plano 59 foi filmado ontem.
Enquanto fico sentado ali, trabalho na minha tradução do livro em inglês
que servirá de base para as legendas que faremos em janeiro. O pequeno
Mario me faz companhia. Ele me pergunta se sou um tedesco como as
outras pessoas aqui. Eu lhe faço um desenho de um mapa da América do
Norte para mostrar-lhe onde está Nova York. Por volta das 19 horas, Sa-
verio chega e os outros em seguida. A Lua cheia sai às 20h10. Jean-Marie
diz que o plano 69 é um tributo ao compositor de Pierrot Lunaire. Gianni
Diário de filmagem de Moisés e Arão 157

diz que nós deveríamos aproveitar essa ocasião sem Hochet para fazer
muito barulho, gritando como eles fazem ordinariamente nos filmes ita-
lianos. Eles filmam 1400 pés. Uma duração de 20 minutos de negativo. Nós
arrumamos o material e eles se vão às 9 horas. O anfiteatro está banhado
de luar. O bezerro de ouro envolto em plástico parece uma noiva de véu.
Um gato atravessa correndo os arbustos.

terça-feira, 3 de setembro / planos 45–47–51


Plano 45. A câmera está em leve plongée e em plano próximo sobre Arão.
Ele está de pé de frente para o lado oeste da arena. De início, ele dirige
seu olhar para a esquerda para indicar os Antigos que cantam em off:
“Quarenta dias! Quanto tempo ainda?”. Enquanto canta para respondê-los,
ele baixa a cabeça, depois olha para a sua direita para indicar a entrada
do coro furioso, do qual Hochet já gravou o som. Jean-Marie encoraja a
teatralidade natural na expressão de Devos. Ele não lhe diz nunca para
fazer uma expressão, mas o conduz a criar uma.
Plano 47. Arão está como antes, mas a câmera está dessa vez em
acentuado plongée de uma torretta de três andares. Na mesma medida
que cresce a traição de Arão, cresce a distância da câmera. Quando Arão
canta “dessa altura”, faz um gesto para a esquerda em direção à monta-
nha. Bernard Rubenstein fica às vezes menos satisfeito com a perfeição do
canto que Gielen. Às vezes J.-M. utiliza isso como razão para tomadas su-
plementares. Ele pergunta a Bernie se a gravação seguia perfeitamente a
partitura. Ele responde “O.K.”, mas sem entusiasmo, e então J.-M. anuncia
uma tomada suplementar para Bernie. 15 horas. Plano 51. Arão está diante
do bezerro de ouro, após se deixar reverenciar pelo povo. A câmera está
em contra-plongée sobre o bezerro de ouro e em plano próximo de Arão,
que está diante dele, à esquerda. Ele canta: “Essa imagem testemunha que,
em tudo aquilo que existe, um Deus vive”, e apresenta o bezerro concluin-
do: “Venerai vós mesmos neste símbolo!”. O coro: “A sua visibilidade corpo-
ral”, plano 50, que precede este, será sobre o fundo branco.
Após isso… vêm as cenas de orgia do segundo ato, planos 52 a 71.
17 horas: chove violentamente, por tal motivo nós cobrimos rapi-
damente o altar e Giustiniano. Após a chegada da claridade, J.-M. e Da-
nièle trabalham as posições de Moisés e Arão diante do altar para os
planos 73–79. Nós colocamos pregos para o lugar de Moisés na frente
do altar e de Arão na frente de Moisés, à esquerda deste. Danièle segura
Diário de filmagem de Moisés e Arão 159

a decupagem para J.-M., enquanto ele olha através do visor para julgar
a distância entre os dois. J.-M., que não sabe fechar um olho só, deve
utilizar uma mão para manter um olho fechado enquanto olha pelo mirino
(visor). Após o jantar no Carmelo, um bom restaurante não muito caro em
Avezzano, Leo e eu passamos pelo quarto dos Straub no hotel. A cada
noite, depois de comer, eles escutam com Jeti e Gielen as gravações do
dia para ter certeza de que o som e a música estão bons.

quarta-feira, 4 de setembro
Dia de repouso. Eu permaneço no anfiteatro. J.-M. e Danièle foram a Roma
para ver os copiões (giornalieri). Eles compram três caixas de película a
mais e bandas sonoras Agfa para o Nagra.
Só existe uma maneira de se conectar com o passado e a tradição:
recomeçar tudo do início, como se tudo aquilo que precedeu fosse
falso; tratar mais uma vez exatamente da essência das coisas,
em vez de se limitar a desenvolver a técnica (de execução) de um
material preexistente. (Arnold Schoenberg, Aphorismes,
Anecdotes, Sentences, 1932/49.)

quinta-feira, 5 de setembro / planos 72–74–75–76–73


7 horas. Plano 72 cedo pela manhã. Gielen desce vestido com um figurino
de couro e um capacete para interpretar o guardião. Jean-Marie o põe no
alto, do lado nordeste do anfiteatro, à direita da montanha. A objetiva 50
pega a extensão da montanha na luz matinal. A câmera está localizada
sobre os ruotolette (carrinho triangular de seis rodas) que os Straub trou-
xeram de Roma ontem. Saverio me deixa olhar através do olho da Mitchell
para ver o que enquadra a objetiva. É costume, na Itália, que quando
alguém que não trabalha diretamente com a câmera olha através dela,
este alguém deve pagar uma bebida para toda a equipe. Gielen olha na
direção da montanha, depois se vira e grita: “Moisés desce a montanha!”.
10h30. Plano 74. Moisés: “Arão, que fizeste?”. Arão: “Nada de novo!”.
Moisés está diante do altar com as tábuas da lei. Arão à sua esquerda, dian-
te dele. A câmera se mantém em leve plongée sobre a direita dos dois, no
espaço que separa Moisés à esquerda, de Arão à direita. Arão se mantém de
perfil (direito), Moisés com três quartos de face, cada um olhando diante de
si, cada um evitando o olhar do outro. Plano 75. Close-up sobre Arão, perfil
Anotações de Danièle Huillet

Vaglio, na girafa, grava esse diálogo com um Slightly? De leve? Na primeira vez, Arão se
único micro (o Neumann U 87), fazendo uma volta para Moisés, não de leve mas de manei-
leve panorâmica de Moisés para Arão e de ra amparada, até ameaçadora, dizendo-lhe:
Arão para Moisés; eu me preocupo, porque “Som ache dich dem Volk verständlich, auf
Georges não sabe uma palavra de alemão, ihm angemessene Art” (Assim torne-se com-
ele não tem então pontos de referência para preensível ao povo, de maneira adaptada a
saber quando passar de um para o outro, e ele). Na segunda vez, no fim do plano, a últi-
um atraso mínimo de sua parte pode produ- ma vez em que vemos Arão no filme antes de
zir um fading detestável, que nos obrigaria a reencontrá-lo estendido no chão no terceiro
recomeçar uma tomada desse plano bastan- ato, Arão se vira violentamente para Moisés,
te longo e bastante difícil para os cantores o pulso fechado, dizendo-lhe: “Die auch nur
(sincronismo), mas também para Arão, que ein Bild, ein Teil des Gedankens sind” (Que
está ainda vocalmente cansado por sua do- são apenas uma imagem, uma parte da ideia.)
ença. Eu pergunto a Georges se eles está
bem seguro de si, ele me diz que vai dar cer-
to. Eu então não intervenho. E, de fato, ele
conseguiu realizar a cada tomada uma
gravação perfeita.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 161

direito : “Como sempre: eu entendi a voz em mim”. Moisés (off): “Eu não
falei”. Arão: “Mas eu, no entanto, entendi”. As tábuas que Moisés carrega
são de mármore. Em um par está escrito um velho texto em hebraico do
Decálogo, gravado por um escultor sobre uma pedra do cemitério israelita
de Roma. Os três outros pares estão virgens. Elas são bastante pesadas, de
maneira que Nanni ajuda Günter a segurá-las entre as tomadas. Durante o
cestino, eu me pergunto se haverá uma tempestade como ocorre frequente-
mente à tarde. J.-M. diz: “O tempo, como a História, não se repete”.
14h30. Plano 76. Plano médio em plongée de Moisés que, com as tábu-
as em seu braço direito, se vira para Arão. “O imperecível / dizes, como
essas tábuas, perecível: / na linguagem da tua boca!”
16 horas. Plano 73. A câmera em leve contra-plongée e em close-up
sobre o bezerro de ouro. Moisés (off) diz: “Desaparece, / imagem da in-
capacidade de alcançar o ilimitado em uma imagem!”. Hochet grava em
som direto a voz de Moisés. Depois, durante o coro off e já gravado: “Todo
prazer, toda alegria, toda esperança se foram!”, e o bezerro desaparece por
uma abertura do diafragma.

sexta-feira, 6 de setembro / planos 77–78


Plano 77. Câmera em uma torretta em plongée e em plano próximo sobre
Arão, perfil direito. O coração do combate entre os argumentos de Arão pela
vida no mundo: “Eu amo este povo, eu vivo para ele e quero conservá-lo!”,
e de Moisés: “Eu amo minha ideia e vivo para ela!”. Ao longo de quase três
minutos. Após numerosos ensaios, a filmagem começa às 11 horas. Arão
olha reto à sua frente, se voltando ligeiramente para Moisés duas vezes
durante o seu diálogo. Tarde. Plano 78. A câmera, ainda em plongée, em
close-up frontal sobre Moisés. Moisés segura as tábuas levantadas sobre a
sua cabeça: “Assim eu destruo essas tábuas e quero implorar a Deus que ele
revogue de mim essa função.” Depois ele as joga no chão à sua direita. Esse
é o último discurso entre os protagonistas nesse ato. Moisés faz quatro
tomadas, quebrando dois pares de tábuas.
Dormindo na barraca, acordei com o vento  à meia-noite. Era uma
tempestade. Saio para fixar o plástico em volta do altar e do bezerro, e
para checar a barraca. Apesar de tudo, o vento logo destrói a barraca e eu
me encontro molhado e sem saber o que fazer dentro dela. Às duas horas
da manhã Hans-Peter desce com uma lanterna e me ajuda a levar minhas
coisas até a igreja.
Anotações de Danièle Huillet

A distância era difícil de encontrar para esse


plano: Straub queria que os dois “antagonis-
tas” fossem distanciados um do outro, dessa
vez por razões realistas (no deserto, onde o
espaço é sem limites, dois homens que se
encontram e se interpelam não têm razões
para fazê-lo na ponta dos pés) e teatrais, mas
ele também não queria que esse distancia-
mento atrapalhasse tecnicamente os seus
dois atores, que deviam se ouvir um ao ou-
tro, nem psicologicamente (pelo menos, não
muito!). Ele começou então por pedir a
Günter e a Lode para encontrar eles mesmos
a distância que lhes parecesse justa; Günter
queria estar um tanto próximo de Lode, pró-
ximo demais para o gosto de J.-M., que não
diz nada. Por sorte, Lode, por sua vez, queria
estar longe de Moisés, a uma distância que
correspondia àquela que J.-M. desejava:
Günter, que tem bom temperamento, se
deixou persuadir…
Diário de filmagem de Moisés e Arão 163

sábado, 7 de setembro / planos 80–79–12


Me levanto cedo e desço ao anfiteatro. Estendo a barraca para secar e
retiro os plásticos do altar. As poças da noite passada desapareceram.
Jean-Marie e Danièle chegam e ficam aliviados de não encontrar nada
destruído. Nós montamos tudo para o plano 80, o último do segundo ato.
Câmera em plongée, médio/semiconjunto sobre Moisés, agora de joelhos.
Durante os ensaios, Renata se mostra preocupada com o lenço de Moisés
quando ele se curva. Ela quer prendê-lo com alfinete, mas Jean-Marie diz
a ela para deixá-lo voar à vontade. No fim, Moisés: “Ó palavra, tu palavra,
que me faz falta!”, e esconde a cabeça por trás das mãos e desaba deses-
perado no chão.
11 horas. Plano 78. Panorâmica da esquerda para a direita do arbusto
de espinhos sobre o lado da colina do anfiteatro, para se opor à reaceitação
pelo coro do Deus de Moisés, mesmo que seja através das palavras de Arão.
Tarde. Ato I, cena 2, “Moisés encontra Arão no deserto”, intertítulo
branco sobre preto do plano 2, compassos 98 a 123. Plano 12. A câmera
em plongée e em plano de conjunto sobre Moisés, com o cajado em sua
mão direita e o lenço na cabeça que ele não usava no plano 10, é frontal
em relação a Arão, que se mantém diante dele à direita do quadro. O
drama da confrontação distanciada como o showdown (duelo final) em
um western . É uma tarde de ventania. O lenço de Arão balança muito.
Nesta música de abertura, Schoenberg introduz as quatro séries de doze
tons, sobre as quais o resto da ópera é estruturado, na linha vocal de
Arão. Moisés contra esses vôos de ópera pelo peso reflexivo de sua voz
falada. Arão: “Tu, filho de meus pais, / O grande Deus envia-te a mim?”
Moisés: “Tu, filho de meu pai, / irmão de espírito, / por quem o Único quer
falar: / percebe-me e ele / e diz aquilo que compreendes.”

domingo, 8 de setembro / planos 13–14–15


Louis Devos exercita sua voz ao piano dentro da igreja enquanto monta-
mos tudo para o plano 13. Câmera em plongée, como para o plano 12. Arão
desce às 10h45. Câmera em plano próximo sobre ele, perfil esquerdo.
Moisés está de frente para ele fora de quadro. Hochet posiciona os mi-
crofones para o seu duelo verbal. Antes de começar a filmar, Jean-Marie
checa se Hochet tem tudo pronto para a gravação. Depois ele pergunta a
Saverio pela câmera. Depois diz: “Pode ir, Louis!” e Hochet solta a trilha
da orquestra, que começa com os três bips antes dos compassos de cada
Anotações de Danièle Huillet

escondida sob um mapa rodoviário para


No dia 15 de setembro, à noite, após termos passar pela alfândega, porque nada disso,
visto os copiões, nós passamos em casa nem a película, nem o Nagra, nem a gata,
para ver os gatinhos: eles têm todos só 8 fora declarado. Na volta, ao passar pela
dias, e nos acolhem todos os quatro sussu- fronteira italiana, a mesma coisa, exceto que
rando ameaças — até que eles se dão conta Kapek tinha ficado em Paris na casa de mi-
que sua mãe nos faz festa; então eles se nha mãe, onde está até hoje.
acalmam. Nós os nomearíamos, os dois ma-
chos: Liebknecht (amabile servo) e Aronne
(porque ele tem uma mancha negra em um
olho e a aparência de um pirata, como De-
vos durante várias semanas no período de
ensaios, porque ele havia praticado a pesca
submarina e teve um olho gravemente infec-
cionado — era preciso aplicar nele injeções
de cortisona e ele usava um tapa-olho negro;
J.-M. se acostumou com a ideia de ter um
Arão com um tapa-olho e ficou praticamente
decepcionado pela desaparição do mesmo
já em Viena!); as duas fêmeas Elba, porque o
pai era um gato da ilha de Elba, vermelho e
branco, o que, a mãe sendo preto e branca,
produziu duas filhas tricolores, e Kapek,
nome da delegada do coro com a qual discu-
ti, durante meses, os quartos de hotel a
reservar para os coristas, os meios de deslo-
camento, as modalidades de pagamento —
os coristas austríacos queriam absoluta-
mente serem pagos em marcos, porque não
confiavam na lira, mas alguns queriam pas-
sar férias na Itália após a filmagem e então
queriam liras…, etc., — que era ela também
ruiva. Os dois machos permaneceram jun-
tos, na casa de amigos em Roma, que têm
um terraço. Elba está em Monte Porzio, Ca-
tone na casa da irmã de Renata, que tem um
jardim, e Kapek em Paris… Nós a levamos
quando fomos mixar o filme em Paris, Louis
não confiando nas instalações italianas, e
nós, nós queríamos de toda maneira fazer o
som óptico em Paris, onde se trabalha me-
lhor que aqui, tanto para o som óptico 35
(aí, absolutamente!) como para o som ópti-
co 16! Com Gabriele e o seu Renault e 50
caixas de película (cópias de trabalho, som,
etc.), e o Nagra estéreo que Louis nos dei-
xou após a transcrição, para o caso em que
tivéssemos tido outras transcrições a fazer,
porque nos estúdios de Roma não havia
nenhum Nagra estéreo, e então a Kapek,
Diário de filmagem de Moisés e Arão 165

plano. Gielen, que se mantém à vista deles com a partitura de trabalho


diante de si, faz sinal e dirige-os. Arão canta: “Imagens da mais alta fan-
tasia, como ela vos agradece, que tu excites a imaginá-la!”. Teorização ag-
nóstica contra a ideia teoísta. Moisés (off): “Nenhuma imagem pode dar-te
uma imagem / do Irrepresentável”.
12h30. Plano 14. Moisés: “O direito? / Irrepresentável, / porque invisí-
vel, / porque ilimitado, / porque infinito, / porque eterno, / porque onipre-
sente, / porque todo-poderoso. / Um somente / é todo-poderoso”. Câmera
em plongée frontal sobre Moisés. A instalação da câmera esconde Arão
de Gielen. Então é Bernard Rubenstein que o dirige para cantar “Irrepre-
sentável Deus”. Na refeição de meio-dia, Georg Brintrup chega de Roma
com a notícia de que Misti tem quatro filhotes.
Tarde. Plano 15. Plongée próximo de Arão, dessa vez perfil direito.
Gestorben às 15 horas. Durante a filmagem um cigarro esquecido aceso
fez três grandes buracos na manga do paletó de linho que Jean-Marie tem
há vinte e cinco anos. Renata vai ver se consegue repará-lo.

segunda-feira, 9 de setembro / planos 16–14


Plano 16. Último plano para Moisés e Arão antes que eles retornem para
o terceiro ato, no dia 19 de setembro. A câmera no alto de uma torretta de
três andares, em plongée médio frontal de Moisés. Moisés canta: “Purifica
o teu pensamento, / destaca-o daquilo que não tem valor, / dedica-o ao
verdadeiro.” Os únicos sete compassos cantados por Moisés. Danièle não
estava satisfeita com o som do plano 14 ontem. Arão cantava “Irrepresen-
tável Deus” baixo demais. Então eles o refazem. Depois disso, Gielen e
Rubenstein terminaram, já que toda a música que resta do segundo ato já
está gravada. Os maquinistas partem para Roma para procurar lâmpadas
para as cenas noturnas do ato II.

terça-feira, 10 de setembro
Dia de repouso. Eu trabalho na tradução do ato III. Por volta das 18 horas,
cinco bailarinos do Neues Tranzforum de Colônia chegam para ver o anfi-
teatro e experimentar seus figurinos para amanhã. Começa a chover muito
forte durante duas horas. Todo mundo sobe para a igreja que está úmida e
pouco confortável. Nós deixamos lagos de água na arena. Danièle está pre-
ocupada, porque estava previsto que os bailarinos dançariam pela manhã.
Anotações de Danièle Huillet

Pelos desenhos de máscaras africanas nos Gabriele e Leo foram buscar nossos dois
quais ele se inspirou para pintar os rostos jovens no abatedouro, porque eles deviam
dos dançarinos. Nós havíamos estado, du- chegar com o caminhão frigorífico às 8 ho-
rante os doze meses que precederam a filma- ras, mas eu desconfio; e fiz bem, porque eles
gem, quatro vezes em Colônia, para marcar não estavam lá: Gabriele e Leo precisaram
as danças com Jochen Ulrich e seus bailari- buscá-los em Avezzano, eis por que eles
nos. Essas danças desagradaram particular- chegaram com uma hora de atraso. Quando
mente os críticos musicais alemães — sem os lembrei que vinte pessoas aguardavam a
dúvida porque eles são incapazes de reco- sua chegada, um dos dois me conta rápido a
nhecer pessoas que sabem fazer seu traba- história de um de seus amigos que teria mor-
lho quando este trabalho não é apresentado rido essa manhã, etc. História inteiramente
de maneira acadêmica. Jochen é o único que inventada, que me fez explodir de rir. A ver-
foi tratado tão mal quanto nós, o que nos dade é que, após a chuva dessa noite, eles
deixou penalizados por ele. O que me espan- pensaram que nós não filmaríamos essa
ta sempre é que a crítica burguesa se deixe manhã e permaneceram na cama!
provocar tão facilmente!

Não apenas porque seria preciso pagar por


ele sobretudo porque teria sido um animal
morto em vão, se não se pode nem mesmo
comê-lo em seguida. Nós não queríamos em
nenhuma hipótese mandar abater um animal
apenas para o filme, então encontramos essa
solução com o diretor do abatedouro.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 167

quarta-feira, 11 de setembro / planos 55–54–56


Manhã. O anfiteatro já está seco. Os lagos deixaram rastros de grama
em linhas que marcam a superfície da arena. Os bailarinos descem com
seus figurinos e Rino, o maquiador, maquia seus rostos baseado em um
exemplar de Le Musée imaginaire de la sculpture: la statuaire, de Mal-
raux . Às 9 horas chega o caminhão do abatedouro, que traz o bezerro
recentemente morto para ser colocado ao lado do altar no plano 55 .
O animal é estendido sobre o lado direito do altar. Esse plano deve ser
feito com cuidado e rapidez, porque o animal deve ser levado ao meio-
-dia para o abatedouro para ser colocado no frigorífico, senão a carne
começaria a estragar, e em vez de pagar uma locação pela manhã em
que ele é utilizado, Straub deveria pagar pelo animal inteiro . Com ele
trouxeram a cabeça e a coxa de um outro animal para colocá-los no altar
como oferenda. A câmera é colocada em plongée diante do altar. Ao lado
do animal encontram-se dois verdadeiros açougueiros, que chegaram
com o caminhão e que se vestiram de pele, como os dançarinos. Um
deles mantém a pata esquerda no ar enquanto o outro começa a cortá-
-la. Depois a câmera faz uma panorâmica para a esquerda sobre o altar,
com a pata e a cabeça do animal postos sobre ele em oferenda diante do
bezerro de ouro. Estou sentado no meu posto e copio as mudanças que
foram feitas na decupagem corrigida que pertence a Bernie Rubenstein,
que parte hoje para a América.
Após a partida do caminhão com o animal, nós montamos tudo para
o plano 54 com os bailarinos. Cada um deles tem uma faca de açouguei-
ro, que os Straub trouxeram consigo do Egito. Eles dançam com essas
facas em frente às oferendas sobre o altar. A câmera está em plongée
sobre uma torretta, à esquerda do altar, e mais longe que antes. Em se-
guida, os pedaços do animal são envoltos por plástico e colocados na
sombra fresca da galeria para a pausa do meio-dia.
Os trilhos são postos para um travelling in no plano 56. Os trilhos
são salpicados de talco para que não façam barulho contra as rodas de
borracha do carrinho. Os bailarinos ensaiam os dois movimentos de
sua dança. Nanni ensaia o movimento de travelling antes com Saverio
e a câmera, ao fim da segunda dança. Hochet solta a música para eles
enquanto Vaglio grava o ruído de seus movimentos com um microfone
direcional. Gestorben às 16h30.
Anotações de Danièle Huillet

Esse imbecil que nos trouxe essa pobre co- Os quatro sacerdotes (Marco Melani, Adria-
bra não tinha a menor noção da psicologia no Aprà, Walter Grassi, Husam Aldin, M. Ali),
de seu animal. Cada vez que a cobra, após as quatro moças nuas (Marina, Silvia, Carla,
um momento de calma, estava a ponto de Gioia) e as quatro que carregam os facões e
fazer alguma coisa interessante, ele lhe dava os cálices (Pia, Leonora, Karin, Sidonie) são
um golpe na calda, o que tinha por conse- todos amigos ou amigos de amigos: J.-M. não
quência fazê-la partir no outro sentido. Ele a queria figurantes de cinema que, sobretudo
chamava, mas sem perceber que o som se na Itália, passam de filme em filme “nudista”,
repercutia pela elipse e que a cobra o ouvia mas pessoas que nós conhecemos e que não
na direção oposta àquela onde esse idiota se incomodem em se mostrar nu(a)s. E ele
queria fazê-la ir. A menos, como imaginava queria quatro moças nuas que não fossem
Saverio, que esse pobre animal tenha sido de esquálidas de acordo com a moda, mas sim
tal forma aterrorizado pelo seu “domador” garotas um pouco encorpadas como aquelas
que partiria sistematicamente no sentido que pintou Renoir nas suas cenas campes-
oposto ao ouvi-lo. Após um certo tempo, ele tres. Às quatro garotas ele pediu para esco-
nos propôs movimentá-la com um fio de lher o sacerdote que as beijaria; para algu-
nylon, dizendo que toda A Bíblia de Huston mas, tanto fazia. Outras preferiam àquele
(a arca de Noé) havia sido feita com fios de a outro.
nylon para os animais (ou de choques elétri- O mesmo para o casal no fim da noite:
cos nos leões para fazê-los se mexer). Quan- Enzo e Bianca vivem juntos, é um prazer para
do fomos, J.-M. e eu, discutir o contrato com eles fazer aquilo e para nós filmar com eles.
o sujeito que aluga esses animais às produ-
ções cinematográficas e que, ao que parece,
havia feito na televisão programas intitula-
dos “O amigo dos animais” (na África, etc.),
eu tinha dito a Jean-Marie que esse sujeito,
na verdade, detestava os animais. Eu não
havia me enganado.
Depois, ele nos propõe colocar a câmera
no outro sentido. É aí que Jean-Marie se en-
furece e diz a ele que não está filmando um
filme italiano. Naturalmente, o outro se vexa.
Ugo, Saverio, Gianni, Cecco intervêm e lhe
dizem que Jean-Marie tem razão, que ele não
sabe nada de seu animal. O outro quer discu-
tir, porque achava que não iremos querer
pagá-lo em seguida. Eu digo a ele que não se
preocupe, que pagarei o valor acordado, mas
que ele me faça o prazer de sair do anfiteatro
e ir esperar na igreja ou em outro lugar. Após
a sua partida, nós poderemos enfim filmar
tranquilamente com a nossa serpente, espe-
rar que ela queira fazer o que nós queremos
que ela faça. Sem barulhos, sem gritos, ela
começa a se mexer…
Diário de filmagem de Moisés e Arão 169

quinta-feira, 11 de setembro / planos 28–63–64–70–71


Câmera no alto de uma torretta, à direita do altar para o plano 28. Um
plano da serpente depois que Arão tenha jogado o cajado de Moisés no
chão. Um profissional que aluga animais para o cinema chega, em uma
caminhonete, com uma cobra. A câmera se dirige a um espaço vazio na
arena, no qual a cobra deve se mover de cima para baixo. O proprietário
a traz em uma pequena caixa e a manuseia com uma bengala. Na sua mão
esquerda ele segura um escudo de proteção de acrílico. O calor inten-
so do sol torna a serpente letárgica e não cooperativa. Ela não se mexe
muito. Os maquinistas tentam encantá-la e fazer com que venha em sua
direção, atraindo-a com um pano preto que eles agitam na sua frente.
Mas ela não acorda. O proprietário começa a ficar um pouco histérico,
ainda que Jean-Marie lhe tenha dito que ele não trabalha de acordo com
os métodos despreocupados do cinema italiano normal e que eles conti-
nuarão filmando até que tenham uma metragem utilizável. A cobra mexe
um pouco mais do que o normal em direção à sombra do altar. J.-M. gasta
cinco bobinas de negativo com a serpente .
15 horas. Ensaios para os planos 63–64. Quatro sacerdotes se man-
têm no primeiro degrau do altar com quatro meninas, cada uma trazendo
um cálice e uma faca de açougueiro. Diante deles estão as quatro vir-
gens que serão sacrificadas, as costas voltadas para a câmera. Na igreja,
Renata veste os contadini em seus figurinos para os planos da próxima
noite, amanhã, para checar se está tudo certo.
Depois das 20 horas. Quando escurece, Ugo Piccone começa a dirigir
a disposição da iluminação para o plano 63. A câmera está em leve contra-
-plongée, plano de conjunto, bem frontal sobre o altar a cerca de 5 metros
de distância. Quando as luzes encontram-se todas posicionadas, volta-
mos aos nossos postos. O anfiteatro está completamente rodeado pelos
assistentes que fazem a guarda. Os garotos da região descobriram que
essa noite filmamos com virgens nuas, então nós passamos um tempo
considerável mandando-os para longe. Quando tudo está pronto, Danièle
e Rino retiram os mantos das quatro virgens que estão diante dos sacer-
dotes com as costas voltadas para a câmera. Elas levantam os braços em
um gesto coordenado com a música cantada em off: “Ó deuses! Exaltai
vossos sacerdotes, / exaltai-nos / ao primeiro e ao último prazer”. Os sacer-
dotes pegam-nas pelo seu braço esquerdo, as moças avançam ao seu lado
e eles pegam as facas de açougueiro em sua mão direita e levantam-nas
para golpear. J.-M. faz três tomadas. Plano 64. Detalhe do altar. As mãos
Anotações de Danièle Huillet

em que os primeiros dias foram horríveis,


É o cálice de alabastro branco que um crítico mas durante a qual, após uma semana, Ugo
cego e completamente condicionado preten- veio se desculpar e nos jurar uma amizade
deu ser de plástico… Nós faríamos apenas eterna. Como diz Saverio, é uma criança
duas tomadas, porque Jean-Marie, que esco- mimada, filho de uma família rica (de Abru-
lheu Husam para fazer esse gesto, ficou ma- zos, ainda!), mas disposto a assumir riscos
ravilhado pela justeza imediata daquilo que na sua profissão, dotado de muita sensibili-
ele fez. Nenhum europeu, diz ele, seria ca- dade para a luz, e que aprendeu conosco o
paz, de cara, de um gesto tão realista, tão que é filmar um filme com o som e respeitar
“cotidiano”, e ao mesmo tempo tão litúrgico. o trabalho dos diretores de som, que a ima-
gem não tem prioridade sobre o som, mas a
mesma importância, nem mais nem menos!
Enzo merece todos os nossos cumprimentos:
quatro vezes ele carrega Bianca correndo
fora de quadro para o plano 70, oito vezes
ele faz o esforço de se recuperar para levar
Bianca para fora de quadro para o plano 71,
sem um murmúrio, apesar do cansaço, a
noite avançando, e sem se desfazer de sua
gentileza. Uma vez, nós precisamos inter-
romper uma tomada, e Jean-Marie, que vê
Enzo se exaurir, acusa, furioso, Ugo, culpado
pelo barulho que nos forçou a interromper.
Ugo, coitado, se desculpa. É preciso dizer
que essa filmagem noturna é exaustiva para
todo mundo: nós começamos a preparação
por volta das 16 horas da tarde e paramos,
na última noite, às 6 horas da manhã; no
meio-tempo, é preciso trocar de lugar três ou
quatro vezes, transportar todo o material
pesado, projetores, transformador, câmera,
etc. Sobretudo para Cecco, Nanni e Nini,
mesmo que nós os ajudemos todos, é muito.
Se tivermos que refazer alguma coisa desse
tipo, saberei que mais vale, para não cansar
demais as pessoas, escolher apenas uma
mudança de lugar em uma noite, não mais,
mesmo que os lugares sejam próximos uns
dos outros.
Ugo era o único radiante, ao contrário,
até ali, porque podia enfim bancar o opera-
dor “sul sério”, dispor de 35 quilowatts de
luz, vir perguntar a Jean-Marie se ele estava
contente, explicar-lhe porque havia feito tal
ou tal coisa. Nós havíamos conversado so-
bre a luz noturna juntos, antes da filmagem,
quando lhe havíamos levado para conhecer
o anfiteatro; J.-M. pede correções de detalhe
algumas vezes, mas não temos mais proble-
mas com Ugo desde a filmagem de Crônica,
Diário de filmagem de Moisés e Arão 171

de um sacerdote derramam o sangue de um cálice .


Por volta das 22 horas nós montamos as luzes no exterior da entrada
sul para o plano 70. A câmera está embaixo, sobre o lado esquerdo da via
que conduz à arena. Ela se dirige em contra-plongée semiconjunto para o
nível do chão abaixo. Um rapaz nu. Enzo Ungari entra no campo pela
esquerda, arranca de uma jovem moça, Bianca Florelli, que se mantém
à direita, as roupas do corpo, a toma em seus braços e sai com ela cor-
rendo de quadro, passando diante da câmera, em direção ao altar. Plano
71. Plongée e médio sobre o rapaz diante do altar que carrega a jovem
nua, de início com um joelho no chão, e depois vai para a sua esquerda,
sempre segurando-a, fora de quadro. A câmera faz uma panorâmica para
o alto em plano fechado sobre o altar, onde queima um fogo. Contra isso,
o último coro das cenas de orgia: “Deuses, que lhes deram a alma…” será
ouvido em off. Vaglio capta o som dos ramos que queimam no silêncio do
ar da noite. A filmagem é gestorben e a equipe parte às 2 horas da manhã.

sexta-feira, 13 de setembro / planos 65–61–62


Por volta das 17 horas Danièle chega para preparar a filmagem dessa
noite. Gabriele vai buscar os tonéis de vinho tinto, cada um de 24 litros,
na cidade, e nós os levamos para a grotta (caverna) onde filmaremos mais
tarde essa noite. A equipe começa a trabalhar na ligação dos cabos para
a câmera, perto das ruínas do teatro romano, no nordeste do anfiteatro e
próximo ao fórum principal das escavações de Alba Fucense.
A câmera e o material sonoro são levados ao lugar e posicionados para
o plano 65, em contra-plongée para o meio da depressão do teatro. Durante
esse tempo, jarros, utensílios de terracota e outros objetos quebráveis
são levados para o pico da colina na qual o teatro é cavado, incluindo uma
charrete de madeira comprada de um camponês. Quando a noite chega,
as luzes são dispostas. Por volta de 20h30 tudo está preparado e em uma
magnífica tomada deixamos cair todas as coisas possíveis lá embaixo. Eles
rodam 150 pés de película ao longo de um minuto de destruição.
Depois disso, o lento processo de transporte do material às grutas
começa. O grupo elétrico vai primeiro, depois os cabos são posicionados
e o caminhão do som e a câmera ligados. As pessoas de Alba Fucense
que aceitaram participar se vestem na igreja. A iluminação é instalada no
interior da gruta para o plano 61. Câmera em plano médio sobre um rapaz.
Mario Pancrazio, que se mantém em pé diante da entrada da caverna e
Diário de filmagem de Moisés e Arão 173

inspeciona um sabre que acaba de receber de um velho senhor. Ela faz


uma panorâmica para a direita sobre duas mulheres, em plano médio
no interior da gruta, que se presenteiam com lenços, e continua até um
rapaz que põe um colar em uma menina. As pessoas estão tranquilas e
cansadas, e os jovens estão com sono a essa hora. O plano é gestorben à 1
hora. Uma vez mais o material é transportado e instalado ao lado, diante
da antiga parede de pedras da villa, que J.-M. diz ser de origem pré-roma-
na. Plano 62. De início, a câmera em contra-plongée sobre dois homens,
Paolo Benvenuti e o senhor Pancrazio, em plano médio, que bebem vinho
juntos. A câmera faz uma panorâmica para a esquerda e para baixo em
plano próximo, ali onde o vinho é despejado pelos seis pares de mãos de
assistentes em seus cálices, uns após os outros. Depois a câmera faz uma
panorâmica novamente para o alto até um plano-detalhe de uma tocha
que queima, plantada na velha parede. Enquanto a tocha queima, o coro
dos Antigos off cantará: “Bem feliz é o povo”, celebrando o entusiasmo e
o deleite do povo. Terminamos de filmar às 5 horas, quando Vênus “Il pia-
neta ch’ad amar conforta” vem fazer companhia brilhante à Lua. Depois
de os cabos terem sido enrolados e o material recolhido, nós partimos ao
amanhecer e vamos para as nossas diversas camas.

sábado, 14 de setembro / planos 67–68–66


Passo uma tarde tranquila no anfiteatro. Por volta das 16 horas Danièle
chega e nós vamos ao lugar, perto das ruínas, do castelo medieval Orsini,
na entrada do vilarejo onde o plano 68 será filmado. Ela e J.-M. estão de
pé desde as 8 horas dessa manhã, após duas horas de sono. Eu faço um
salto de treinamento a partir do rochedo do qual os assistentes saltarão
para se suicidar essa noite. O rochedo termina mais ou menos 1,50 me-
tros abaixo, aquilo não parece difícil, exceto pelos espinhos no chão, que
eu sugiro cobrir com um cobertor. Vamos em seguida ao lugar, sobre a
colina onde os Príncipes dos Tributos estiveram a cavalo, e começamos
a montar ali os cabos para ligar o material e a iluminação para o plano
67. Um homem de efeitos especiais vem de Roma para ser o homem que
corre queimando. Ele tem um traje de amianto que é recoberto pelo seu
figurino. A câmera é colocada em leve contra-plongée para enquadrá-lo
num plano de conjunto quando ele corre da esquerda para a direita, de
costas para a câmera. Após ter praticado a corrida, a primeira tomada
começa. As costas de sua túnica foram impregnadas de um gás inflamá-
Anotações de Danièle Huillet

Três apenas, uma foi interrompida imediata- Cecco não se joga sobre uma espada no fil-
mente. Na montagem, nós mantivemos aque- me, ele se apunhala. E ele é magnífico, é o
le em que Gregory salta e vai quebrar a per- nosso maior ator: ele se mata com a arte e a
na, não apenas porque era finalmente a cultura que viu na maior parte das óperas
melhor, mas também porque nós pensáva- italianas (em Pisa, enquanto não trabalha
mos dever isso a Gregory! mais em um filme sequer desde que os estú-
dios da Tirrenia fecharam, ele é eletricista
no teatro-ópera, e conhece então uma profu-
são de representações). É ao mesmo tempo
engraçado e emocionante. Felizmente, por-
que é o último plano da noite, nós estamos
todos exaustos: alguns dormem sob as árvo-
res, Jean-Marie trabalha com a lucidez de um
sonâmbulo, eu não me sento para não correr
o risco de adormecer. O talento de Cecco
nos enche de energia novamente.
Diário de filmagem de Moisés e Arão 175

vel, colocamos fogo ali e ele começa a queimar enquanto corre durante
10 metros em frente à câmera. Ao final de sua corrida, ele se joga no chão
e é coberto por cobertores que apagam o fogo nas suas costas. Após seis
tomadas, gestorben, e nós juntamos tudo para ir ao castelo Orsini para o
plano 68. Levamos duas horas para montar e ligar os cabos e as luzes e
levar a câmera até o alto dos rochedos. Jeti, Leo, Paolo, Basti, Gabriele e
eu vestimos o figurino. Fazemos alguns saltos de treino. A câmera está em
contra-plongée embaixo à direita, dirigida em plano médio/semiconjunto
para a beira do rochedo. Fazemos uma primeira tomada. J.-M. diz que é
mais ou menos uma interpretação rotineira de um salto mortale. Quando
ficamos em fila diante do rochedo para fazer a segunda tomada, penso
nos pensamentos de um suicida diante da vida e da morte. Eles não são
estranhos. Quando chega a minha vez é difícil de enxergar à minha frente,
por causa da luz nos meus olhos, mas ao cair eu vejo Basti embaixo de
mim e me esquivo para tentar evitar de cair sobre ele. Ao tocar no chão,
sinto uma dor terrível no meu tornozelo esquerdo, que me faz cerrar os
dentes para manter silêncio até o fim da tomada. Meu tornozelo esquerdo
começa a inchar, então Harald Vogel, o assistente de produção, me leva ao
hospital em Avezzano. Após a minha partida eles fazem quatro tomadas
suplementares e depois começam a retransportar tudo até a entrada
sul do anfiteatro, perto da qual um homem, Cecco, se joga sobre uma
espada no plano 66. A câmera está em plano médio/semiconjunto sobre
o homem que está sentado sob uma árvore e cai sobre a sua espada.

domingo, 15 de setembro
Descanso para a equipe. Eu passo meu primeiro dia no hospital. As pesso-
as são muito amigáveis. O velho senhor conta suas lembranças da Etiópia
e os visitantes me falam de seus parentes nos Estados Unidos. Eu leio Red
Wind de Chandler, e tento dormir. À noite, a visita dos Straub.

segunda-feira, 16 de setembro / planos 52–53


De manhã levam-me para fazer raios X. Às 10 horas eles me dizem que eu
tive uma pequena fratura no meu tíbio esquerdo. Minha perna é enrolada
com algodão e colocada no gesso. O técnico diz que eu poderei ir quando
o gesso secar. Devo usá-lo por trinta dias. Por volta das 18 horas, Hans-
-Peter chega com sua namorada Anna para me buscar. Durante o dia eles
Anotações de Danièle Huillet

sabe como e em qual escala os especulado-


Os asnos e as vacas vêm do vilarejo; a came- res devastam, desmatam, destroem a Itália!).
la branca nos foi trazida de Pisa (é por isso Os camponeses dizem, com razão, que as
que ela anda mancando, diz Saverio) de ca- cabras não são animais que se pode manter
minhão, e seu acompanhante, dessa vez, é presos. Então, eles as vendem. Será preciso
muito gentil: a camela é uma graça, muito encontrar cabras um pouco mais longe, um
doce e muito bela; ela gosta bastante de seu pouco mais ao alto, em Santa Iona, discutir
acompanhante; mas jamais usou sela, e não sobre o seu transporte, firmar acordo por
quer deixar colocarem a sela em suas costas. 100 mil liras (incluindo tudo, caminhão para
J.-M. diz ao seu responsável para não deixar transportá-las, gasolina, pastores) e prome-
que ela se exalte, nós colocamos a sela no ter aos camponeses — nada foi assinado com
chão ao lado dela. Ele a faz deitar diante do eles, mas eles mantiveram a palavra e nós
altar, nós colocamos a sela perto dela: ela a também — que, se acontecesse um acidente
olha, de início com desconfiança, depois, com uma cabra (por exemplo, se uma cabra
quando está certa de que não a colocaremos tiver medo ao subir no caminhão e tentar
de surpresa, começa a comer pequenos tu- saltar, ela pode quebrar uma pata: e é irrepa-
fos de grama à sua volta. Os asnos e as vacas rável, à diferença do carneiro, no qual conse-
olham-na com curiosidade. Nós gravaremos guimos colocar a pata no gesso, é preciso
três tomadas, bastante longas, porque para abatê-la), nós pagaremos o preço do animal.
um tal plano é preciso filmar e deixar a vida Ao meio-dia, como previsto, cabras e carnei-
correr. Georges capta o som, porque mante- ros chegam pontualmente.
remos os sopros e ruídos de correias ou de Mas Paolo chega dizendo que há um pro-
carroça — bastante belos. blema: os camponeses do vilarejo, que de-
viam levar seus animais pelo preço de 5 mil
liras por animal, mais 5 mil para o condutor
Nós havíamos de início visualizado, eviden- do ou dos animais, tentam, diz ele, chanta-
temente, uma passagem de rebanho como geá-lo, dizendo que eles não virão por menos
num western — para descobrir, conversando de 8 mil ou 10 mil liras por animal e por ho-
com camponeses durante a preparação do mem. Eu digo a ele para dizer-lhes, de minha
filme, que não era realista ali onde filmaría- parte, que lamento, mas que meu orçamento
mos, e sem dúvida tampouco para os he- não é extensível à vontade, e que se é assim,
breus com seus rebanhos! Cada família tem filmaremos sem eles, com apenas dois reba-
uma, duas, cinco vacas, mas que jamais fi- nhos de vinte e sete animais, os carneiros e
cam juntas e que não se pode, portanto, de as cabras. Paolo vai negociar e me procura
repente agrupar em um rebanho. É preciso em seguida para dizer que eles estão se ves-
que cada camponês venha com a sua ou as tindo na igreja e que vieram até alguns que
suas vacas. Além de todos os camponeses de não estavam previstos, se é preciso dispen-
Alba Fucense que aceitam de bom grado vir sá-los. Eu digo a ele que não, para aceitar
com seus animais, nós encontramos, em todo mundo.
duas regiões vizinhas, dois rebanhos mais Nós fazemos com que seja vestido, o que
significativos, um de quinze, outro de doze não estava previsto tampouco, mas porque
animais. Eles nos são trazidos ao meio-dia. ele realmente nos agrada, o responsável pela
Os carneiros vieram também de Alba camela, e lhe explicamos que ele fechará o
Fucense. As cabras, é mais complicado: no cortejo, a pé, segurando a camela pela rédea.
ano precedente, ainda havia delas em Forme. Gabriele, Paolo, Leo estão no exterior do
Mas, alguns meses antes da filmagem, elas anfiteatro, para organizar o cortejo, sob as
haviam desaparecido: a Florestal (Águas e ordens de Jeti que, desde que nós não preci-
Florestas) obriga os camponeses a manter samos mais de seu Nagra e que o som está
suas cabras presas sob pretexto que elas mais simples de gravar!, se tornou um assis-
devastam a região (uma farsa, quando se tente eficaz: ele se entende bem com os
Diário de filmagem de Moisés e Arão 177

filmaram os dois planos que abrem as cenas de orgia, com os animais,


no anfiteatro. Plano 52 . Plano de conjunto em leve contra-plongée sobre
os animais, um camelo, duas vacas, etc., que estão diante do altar. Plano
53 . A câmera está à esquerda do portão norte em plongée e em plano de
conjunto sobre o anfiteatro, através do qual passam animais, de todo tipo,
trazidos da entrada sul.

terça-feira, 17 de setembro
Recolho as minhas coisas na igreja. Os Straub alugaram um quarto para mim
em seu hotel. Andar com a minha perna engessada é estranho mas indolor.

quarta-feira, 18 de setembro
8 horas. Nós deixamos Avezzano em uma caravana de três caminhonetes
e três carros para a viagem de 180 quilômetros para o Sul, ao lago Matese.
Chegamos por volta das 14h30. Encontramos todos no hotel onde passare-
mos a noite perto do lago. Depois descemos para ver o lugar na baía seca
do lago, onde filmaremos amanhã. No jantar, Günter Reich e Louis Devos
chegam. Estamos todos sentados em uma longa mesa para este último
jantar. Depois do jantar no bar, nós jogamos totó e fliperama e tocamos
todos os discos barulhentos de rock’n roll da jukebox.

quinta-feira, 19 de setembro / planos 52–53


Descemos ao longo do lago na bruma matinal. O lago Matese se situa no
centro dos montes do Matese, de maneira que o sol precisa de algumas
horas para iluminar a bruma que se deposita sobre o lago durante a noite.
Durante esse tempo, monta-se a câmera no leito do lago sobre trilhos, para
um travelling in no plano 82. Esse diálogo entre Moisés, com o poder no
momento, e Arão, seu prisioneiro acorrentado, é o texto do terceiro ato da
ópera que Schoenberg nunca musicou. No manuscrito da partitura, na úl-
tima página, tem escrito: “Fim do segundo ato / Barcelona / 10–3–1932 / Ar-
nold Schoenberg”. Em 1933, ele precisou deixar Berlim, passando de Nova
York a Hollywood. Schoenberg faz menção de ter recomeçado a trabalhar
no último ato em suas cartas, durante os seus anos na América: “Mas eu
tenho justamente representações estendidas sobre a música do terceiro
ato, e eu acredito que poderia escrevê-la em poucos meses”. (1949.) Mas
Anotações de Danièle Huillet

camponeses, não grita nunca. A primeira


tomada não é muito boa, o início é magnífi- Ali, também, nós devemos uma orgulhosa
co, com os carneiros que saltam por cima saudação a Arão: quando após a tempestade,
das cabras, mas em seguida há um grande diante da água que subiu, nós hesitamos nos
vácuo, porque a partida das vacas ainda não dizendo que, já que temos ainda os dois dias
está bem sincronizada. Recomeçamos uma de reserva previstos, seria mais prudente
segunda vez: é melhor, o ritmo surge. A ter- esperar o dia seguinte para recomeçar do
ceira é boa, não queremos cansar nem exal- que pedir a Arão, que sabíamos que havia
tar inutilmente os animais, paramos. Nós nos sofrido uma recaída e que ao chegar com um
asseguraremos no dia seguinte de que não pouco de febre tomou antibióticos, para se
houve acidente com as cabras. deitar na lama para continuar agora (porque,
Os camponeses vão vestir suas roupas, se não precisamos mais da sua voz, ele ainda
depois vêm pegar seu dinheiro: tenho uma precisa!), ele vem, espontaneamente, nos
longa lista com seus nomes, o número de encontrar, e nos dizer que está pronto para
animais. Nenhuma discussão. Mas um drama tentar… Depois, ele nos contará que, deita-
ocorre no alto, diante da igreja: a camela se do em sua lama durante toda a segunda par-
recusa a subir no seu caminhão, ela se deita te do último ato, onde apenas Moisés perma-
no chão e geme. A liberdade de repente, dos necia em quadro, ele rezava para que este
asnos, da areia — ela não quer mais voltar conseguisse terminar sem errar, sem “queda
para o seu zoológico. Será preciso içá-la à de pressão”!
força para o caminhão, e essa revolta, da Nós terminamos então de filmar nesta
qual fico sabendo depois, os pagamentos tarde. À noite, começou a chover, choveu a
feitos, me aperta o coração. noite toda, todo o dia seguinte e os dias que
se sucederam, durante um mês, quase sem
interrupção: a “ruptura” meteorológica que
nós temíamos desde o início se produziu!
Diário de filmagem de Moisés e Arão 179

ela permaneceu em fragmentos, e no ano de sua morte, ele escrevia: “De


acordo que se represente o terceiro ato sem música, apenas falado, caso eu
não consiga terminar a composição”. (1951.) Jean-Marie ensaiou o texto
com Reich e Devos, de maneira que a sua recitação seguisse o modelo
que ele queria. A câmera está de início em plano de conjunto sobre Moi-
sés, Arão e dois guerreiros, Hans-Peter Böffgen e Harald Vogel. Moisés, de
cabeça descoberta como para o primeiro plano, se mantém à esquerda
do quadro, as costas voltadas para a câmera e para o lago. Arão, à beira
d’água, jaz à direita, com a cabeça no chão, as mãos atadas. À direita dele
encontram-se dois guerreiros. A câmera se aproxima até um plano médio
em plongée de Arão: “Jamais a tua palavra alcançou, inexplicável ao povo”.
Moisés: “Servir, servir a ideia de Deus, / é a liberdade para a qual esse povo
foi eleito”. A câmera faz uma panorâmica para a esquerda e para o alto
em plano próximo de Moisés, sempre de costas em contra-plongée. Moisés
conclui dirigindo-se ao povo eleito: “Mas no deserto vós sois invencíveis
e esperais o objetivo: unidos a Deus”. Esse longo diálogo é difícil e muitas
tomadas são interrompidas antes que se completem os quatro minutos e
meio que ele dura, por causa da dificuldade em recitar corretamente. Na
única boa tomada da manhã, antes que nós interrompamos para o cestino,
um avião voa acima de nós. Depois começa a chover violentamente duran-
te mais de uma hora, de maneira que eles não conseguem recomeçar antes
das 15h30. A linha da água se aproximou 5 metros em relação à manhã, e o
lugar de Arão é agora na lama . Eles fazem duas boas tomadas e o plano é
gestorben às 17 horas. J.-M. parece contente que tudo esteja feito. A equipe
retorna ao hotel, onde começamos a nos preparar. Alguns partem para
Roma. Eu vou a Avezzano com Paolo, Hans-Peter e Anna.

sexta-feira, 20 de setembro
Paolo vai a Alba Fucense para buscar o resto do material. À noite nós co-
memos no Carmelo. Jean-Marie escreve na minha perna engessada: “Eu o
faria de novo, se tivesse de fazê-lo!” (Pierre Corneille.)

sábado, 21 de setembro
Os Straub vão a Alba Fucense para terminar de desproduzir e para dizer
adeus às pessoas do vilarejo que trabalharam com eles. Às 16 horas nós
deixamos Avezzano e partimos para Roma.
Escritos sobre a obra
181

O que é o ato de criação?1


Gilles Deleuze
17 de junho de 1987

Eu gostaria também de colocar algumas questões. Colocá-las a vocês e a


mim mesmo. Seria algo do tipo: o que vocês fazem, realmente, vocês que
fazem cinema? E eu, o que faço, realmente, quando eu faço, ou quando
espero fazer, filosofia?
Certamente, isso é uma dificuldade para vocês, mas isso é pior ainda
para mim. E não é somente isso que teríamos a dizer, ou melhor, eu po-
deria colocar a questão de outra maneira: “No cinema, o que é ter uma
ideia?” Se nós fazemos cinema, ou se nós queremos fazer cinema, “o que
é ter uma ideia?”. Então, pode-se dizer: “Veja, tenho uma ideia”. Porque,
de um lado, todo mundo sabe bem que ter uma ideia é um acontecimento
raro. Ter uma ideia é uma espécie de festa. Não é frequente. E, por outro
lado, ter uma ideia não é uma coisa genérica, não temos uma ideia no
geral. Um ideia já é destinada, assim como aquele que a tem, a um campo
específico. Quero dizer que uma ideia é, às vezes, uma ideia em pintura,
em literatura, em filosofia, em ciência… E, evidentemente, não é a mesma
pessoa que pode ter tudo isso.
É preciso tratar as ideias como potenciais já comprometidos nesse
ou naquele modo de expressão, e inseparáveis do modo de expressão,
de tal maneira que eu não posso dizer: “Tenho uma ideia em geral”. Em
função das técnicas que conheço, eu posso ter uma ideia em um campo
específico, uma ideia em cinema, ou ainda, uma ideia em filosofia. 

O que é ter uma ideia em alguma coisa ?


Eu reafirmo que eu faço filosofia e vocês, cinema. No entanto seria fácil de-
mais dizer que a filosofia, todo mundo sabe, está pronta para refletir sobre
qualquer questão. Então, por que ela não refletiria sobre o cinema ? Ora,
1. Transcrição de conferência realizada na Fundação FEMIS em 17 de junho de 1987; publicada
como “Qu’est-ce que l’acte de création” em Deux Régimes de Fous et autres texts (1975–1985)”,
Les Éditions de Minuit, 2003. Traduzido do francês por Pedro Maciel Guimarães.
O que é o ato de criação? 182

essa é uma ideia absurda; a filosofia não é feita para refletir sobre qualquer
coisa. Ela não é feita para refletir sobre nenhuma outra coisa. Quero dizer,
tratando de filosofia como potência de “refletir sobre”, temos a impressão
que lhe damos muito, mas, na verdade, lhe tiramos tudo. 
Porque ninguém precisa da filosofia para refletir. Quero dizer, as
únicas pessoas capazes, efetivamente, de refletir sobre o cinema, são os
cineastas, ou os críticos de cinema, ou, ainda, os amantes do cinema. Eles
não precisam, absolutamente, da filosofia para refletir sobre o cinema. A
ideia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre
as matemáticas é cômica. Se a filosofia tivesse que refletir sobre alguma
coisa, não teria nenhuma razão de existir. Se a filosofia existe é porque ela
possui seu próprio conteúdo. Podemos nos perguntar: qual é o conteúdo
da filosofia? É muito simples, a filosofia é uma disciplina tão criadora e
inventiva quanto qualquer outra. A filosofia é uma disciplina que consiste
em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem, em plenitu-
de, em uma espécie de céu onde aguardam para serem colhidos por um
filósofo. É preciso fabricá-los. E é claro que eles não são fabricados assim,
de uma hora para outra. Não dizemos um belo dia: “Veja, quero fazer e
inventar tal conceito”. Assim como um pintor não diz: “Pronto, vou fazer
um quadro desse jeito”. É preciso que haja uma necessidade, tanto na
filosofia quanto em outras áreas; um cineasta não pode dizer: “vou fazer
tal filme”. É preciso que haja necessidade, senão não temos nada.
Acontece que essa necessidade, que é muito complexa, se é que ela
existe, faz com que um filósofo (e eu sei ao menos com o que ele se ocupa)
proponha-se a inventar e criar conceitos, e não a refletir, mesmo sobre o
cinema. Eu digo que faço filosofia, quer dizer, eu tento inventar conceitos.
Eu não me proponho a refletir sobre outras coisas. E vocês que fazem
cinema, o que vocês fazem? Eu proponho uma definição pueril, então atri-
buam-na a mim, existem com certeza outras e melhores. Eu direi apenas
que o que vocês inventam não são conceitos, isso não é assunto seu. Isso
que vocês inventam é o que poderíamos chamar de bloco de movimentos-
-duração. Quando se fabrica um bloco de movimentos-duração, pode ser
que se esteja fazendo cinema. Observem, não é uma questão de invocar
ou recusar uma história. Tudo tem uma história. A filosofia também conta
histórias. Ela conta histórias, histórias com conceitos. Acho que podemos
dizer que o cinema conta histórias com blocos de movimentos-duração. 
Eu diria que a pintura inventa um outro tipo de bloco, que não é nem
um bloco de conceitos nem um bloco de movimentos-duração, mas supo-
Escritos sobre a obra 183

nhamos que seja um bloco de linhas-cores. A música inventa outro tipo de


bloco bem particular. Mas digo com tudo isso que a ciência não é menos
criadora. Eu não vejo tanta oposição entre ciência, arte e isso tudo. Se eu
pergunto a um cientista o que ele faz, ele também dirá que inventa. Ele
não descobre; a descoberta existe, faz parte, mas não é ela que define
uma novidade científica enquanto tal. Um cientista inventa, ele cria tanto
quanto um artista. Então, continuando no campo das definições breves:
um cientista, vocês sabem, é alguém que inventa ou cria funções, e aí ele
está sozinho. Um cientista não cria conceitos. Na condição de cientista,
não tem nada a fazer com conceitos, e é por isso mesmo, felizmente, que
existe a filosofia. Por outro lado, existem algumas coisas nas quais o cien-
tista é único, coisas que só ele sabe fazer: inventar e criar funções. 
O que é uma função? Tentemos defini-la simplesmente como eu o fiz,
da maneira mais básica. Existe função desde que haja uma correspondên-
cia regulada de pelo menos dois conjuntos. A noção básica de ciência, e
isso não é de ontem, é desde sempre, é essa de conjuntos, e um conjunto
é completamente diferente de um conceito. A partir do momento em que
você coloca conjuntos em correlação regulamentada, obtém funções, e
pode dizer : “Eu faço ciência”. Se uma pessoa qualquer pode falar com
outra pessoa qualquer, se um cineasta pode falar a um homem de ciência,
se um homem de ciência pode ter alguma coisa a dizer a um filósofo e
vice-versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. 
Não é que não haja espaço para falar de criação. A criação é antes
de mais nada algo muito solitário, mas é em nome da minha criação que
tenho algo a dizer a alguém. E se eu determinasse então todas as disci-
plinas que se definem pela sua atividade criadora, eu diria efetivamente
que há um limite que lhes é comum. E qual é o limite comum a todas as
séries, todas as séries de invenções — invenções de funções, invenções
de blocos movimento-duração, invenções de conceitos? É o espaço-tempo.
De modo que se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá
no plano daquilo que nunca se destaca por si só, mas está colocado em
qualquer disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempo.
Bresson é bastante conhecido por raramente apresentar espaços
inteiros. São espaços que chamamos de desconexos. Quer dizer, existe
um canto, por exemplo, o canto de uma cela, e em seguida veremos outro
canto, ou então uma parte da parede etc…, tudo se passa como se o
espaço bressoniano, a certos olhares, se apresentasse como uma série
de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem
O que é o ato de criação? 184

grandes cineastas que fazem o contrário, os espaços contínuos. Eu não


digo que seja mais fácil manejar um espaço contínuo. Existem muitos
espaços no cinema, eu acho que o espaço fragmentado é um deles, e
foi retomado em seguida, outros cineastas se serviram dele de forma
criativa, renovando-o em relação a Bresson. Mas acredito que Bresson
tenha sido um dos primeiros a fazer espaço com pequenos fragmentos
desconectados, quer dizer, com pequenos fragmentos cuja conexão não
está predeterminada. 
Eu dizia que no limite de todas as tentativas de criação há espaços-
-tempo, só isso. É aqui que os blocos de duração-movimentos de Bresson
vão esticar para este tipo de espaço. A resposta está dada. Como vocês
acham que estão conectados estes pequenos fragmentos de espaço
visuais cuja conexão não está predeterminada? Pela mão, e isso não é
teoria, nem filosofia, não é. Isso não se deduz assim. Mas digo: o tipo
de espaço de Bresson e a valorização cinematográfica da mão na ima-
gem estão evidentemente ligados. Quero dizer, a continuidade dos pe-
quenos trechos de espaço bressonniano, percebidos enquanto trechos,
fragmentos desconectados de espaços, só pode ser uma continuidade
manual. Daí a presença exaustiva da mão em todo o cinema de Bresson.
Bem, poderíamos continuar muito tempo nessa reflexão, porque o bloco
de extensão-movimento de Bresson receberia, por conseguinte — como
caraterística própria deste criador —, a característica deste espaço que é
muito específico: o papel da mão que rompe seus limites. Apenas a mão
pode operar conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é, sem
dúvida, o maior cineasta a ter reintroduzido os valores táteis no cinema,
não simplesmente porque sabe filmar admiravelmente as mãos; se ele
sabe filmar admiravelmente as mãos é porque necessita delas. Um cria-
dor não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador faz apenas aquilo
de que tem absolutamente necessidade.

História de O idiota2 e de Os sete samurais3


De novo, ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma
ideia em outro campo. Contudo, existem ideias em cinema que poderiam
ser úteis em outras disciplinas. Existem ideias em cinema que poderiam
2. O idiota (1869), de Fiodor Dostoiévski, adaptado para o cinema por Akira Kurosawa como O
idiota (Hakuchi, 1951). [N. E.]
3. Shichinin no samurai (Akira Kurosawa, 1954). [N. E.]
Escritos sobre a obra 185

ser excelentes ideias em literatura. Mas elas não teriam, de maneira ne-
nhuma, o mesmo aspecto. Além disso, existem ideias em cinema que
só podem ser cinematográficas. Não adianta: mesmo quando se trata
de ideias em cinema que possam ter valor em romance, elas já estão
engajadas em um processo cinematográfico com o qual estão de início
comprometidas. E isso que digo é muito importante, porque é uma ma-
neira de colocar uma questão que me interessa: o que faz com que um
cineasta tenha, por exemplo, vontade de adaptar um romance? Me pa-
rece evidente que se ele tem vontade de adaptar um romance é porque
tem ideias em cinema que reverberam naquilo que o romance apresenta
como ideias em romance. E assim acontecem grandes encontros. E não
estou falando do cineasta que adapta um romance reconhecidamente
medíocre. Ele pode precisar de um romance medíocre e isso não impede
que o filme seja genial. Eu então coloco uma questão um pouco diferente:
e quando o romance é um grande romance e revela-se esta espécie de
afinidade em que alguém tem uma ideia em cinema que corresponde ao
que era a ideia em romance? Um dos casos mais belos é o de Kurosa-
wa. Por que Kurosawa encontra-se numa espécie de familiaridade com
Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês familiarizado
com Shakespeare e Dostoiévski? É preciso dizer, porque, me parece… é
uma resposta entre mil outras possíveis e ela toca um pouco também na
filosofia, creio eu. Com os personagens de Dostoiévski acontecem, com
muita frequência, coisas bastante curiosas. Geralmente, são muito agita-
dos. Um personagem vai, desce a rua, assim, simplesmente, e diz: “Uma
tal, a mulher que amo, Tânia, me pede ajuda, eu vou, eu corro, eu corro,
sim, Tânia vai morrer se eu não for”. E ele desce a escada e encontra um
amigo, ou então ele vê um cão atropelado e esquece completamente.
Esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte.
Começa a falar, fala e cruza com outro amigo, vai tomar chá na casa do
amigo, e em seguida, subitamente, diz: “Tânia me espera, é preciso que
eu vá”. Mas o que querem dizer esses… hein? Aí está!
Em Dostoiévski, os personagens são constantemente tomados por
urgências, e ao mesmo tempo em que são tomados por urgências, que
são perguntas de vida ou de morte, sabem que existe uma pergunta ainda
mais urgente. Mas eles não sabem qual é, e isso os paralisa. Tudo se passa
como se na pior urgência — “Há fogo, há fogo, é preciso que eu vá” — eu
me dissesse: “Não, há algo mais urgente, algo mais urgente, e eu não vou
me mexer enquanto não o souber”. Isso é O idiota, é a fórmula de O idiota;
O que é o ato de criação? 186

vocês sabem: “Há um problema mais profundo, qual é problema? Eu não


vejo bem, mas me deixem, me deixem, tudo pode arder, o importante
é encontrar esse problema mais urgente”. É com Dostoiévski que Ku-
rosawa aprende essas coisas. Todos os personagens de Kurosawa são
assim. Eu diria: aí está o encontro, um belo encontro. Se Kurosawa pode
adaptar Dostoiévski é, pelo menos, porque pode dizer: tenho um negócio
em comum com ele, tenho uma questão em comum. Os personagens de
Kurosawa estão exatamente na mesma situação, encontram-se em situa-
ções impossíveis. Mas atenção, há um problema mais urgente. Será pre-
ciso que eu saiba qual é o problema? Pode ser que Viver [Ikiru, 1952] seja
um dos filmes de Kurosawa que vá mais além nesse sentido, mas todos os
filmes de Kurosawa vão nesse sentido.
Os sete samurais, esse me emociona muito, porque todo o espaço
nos filmes de Kurosawa depende dele. É inevitável que seja um tipo de
espaço oval e que seja castigado pela chuva…, enfim, pouco importa,
isso nos toma muito tempo… no final, é tudo espaço-tempo. Mas, os sete
samurais são tomados por uma situação de urgência. Eles aceitaram
defender um vilarejo, e do início ao fim do filme, eles são afligidos por
uma questão mais profunda. Existe uma questão que atravessa tudo isso.
E ela será enunciada ao final, pelo chefe dos samurais, quando eles se
vão: o que é um samurai? O que é um samurai, não no sentido geral, mas
o que é um samurai naquele momento? Com certeza, alguém que não
tem mais nenhuma importância. Os senhores não precisam mais deles,
e os camponeses irão, em breve, aprender a se defender sozinhos. E
durante todo o filme, apesar da urgência da situação, os samurais são
assombrados por esta pergunta que é digna de O idiota, e que é uma per-
gunta idiota: nós, samurais, o que somos? Aí está, uma ideia em cinema
é assim. Vocês me dirão que não, uma vez que também era uma ideia em
romance. Uma ideia em cinema já está comprometida com um processo
cinematográfico. E pode-se dizer, tive uma ideia, ainda que ela tenha sido
tomada de Dostoiévski.
Acho que uma ideia é uma coisa muito simples. Mais uma vez, não
é um conceito, não é filosofia. Conceito é outra coisa. De qualquer ideia
pode-se, talvez, tirar um conceito, mas penso em Minnelli, que tem uma
ideia extraordinária sobre o sonho. É muito simples, e está comprome-
tida com todo um processo cinematográfico que é a obra de Minnelli. A
grande ideia de Minnelli sobre o sonho é que ele se refere, sobretudo,
aos que não sonham. O sonho dos que sonham diz respeito aos que não
Escritos sobre a obra 187

sonham, e por que isso lhes diz respeito? Porque a partir do momento
em que há sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre
um sonho que devora, que ameaça nos engolir. É perigoso que os outros
sonhem. O sonho é uma terrível vontade de potência, e cada um de nós
é, mais ou menos, vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata
da moça mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma,
mas pelos seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês
forem apanhados no sonho do outro estão ferrados.

Cadáver
Bem, darei outro exemplo de ideia propriamente cinematográfica, da
famosa dissociação Ver/Falar em um cinema relativamente recente. To-
memos os casos mais conhecidos, seja Syberberg, Straub ou Marguerite
Duras, o que há de comum entre eles? Pergunto do que é propriamente
cinematográfico, dessa ideia cinematográfica… Fazer uma separação do
visual e do sonoro é… por que isso não pode ser feito no teatro, por quê?
Isso até pode ser feito no teatro, desde que o teatro disponha de meios
tomados do cinema. O que não é necessariamente mau. Mas é uma ideia
bem cinematográfica essa de assumir a separação do ver e do falar, do
visual e do sonoro. Isso responderia à ideia: o que é, por exemplo, ter
uma ideia cinematográfica? E todo mundo sabe em que isso consiste, e
eu diria assim: uma voz fala sobre alguma coisa e ao mesmo tempo outra
coisa nos é dada a ver. Enfim, aquilo de que se fala está sob aquilo que
se dá a ver. Esse terceiro ponto é muito importante. Vocês percebem que
esse é o momento em que o teatro não pode acompanhar o cinema. O tea-
tro poderia assumir as duas primeiras proposições. Nos falam de alguma
coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo sobre o que se fala ponha-se
ao mesmo tempo sob aquilo que nos é dado a ver — e isso é indispensá-
vel, senão as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido nem
interesse… Podemos dizer de outra maneira: a palavra ergue-se no ar ao
mesmo tempo que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ao mesmo
tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava se
afunda na terra.
O que é isso que somente o cinema pode fazer? Não digo que ele
deva fazer, certo? Mesmo que isso tenha sido feito duas ou três vezes,
posso dizer simplesmente que foram grandes cineastas que tiveram essa
ideia. Não significa dizer que é isso que se deve ou não fazer. É preciso ter
O que é o ato de criação? 188

ideias, quaisquer que sejam elas. Essa é uma ideia cinematográfica, digo
que é prodigiosa porque assegura, no campo do cinema, uma verdadeira
transformação de elementos. Um ciclo de grandes elementos que faz com
que, repentinamente, o cinema tenha uma grande afinidade com a física
qualitativa de elementos. Isso gera uma espécie de transformação, o ar, a
terra, a água, o fogo, porque seria preciso acrescentar… mas não teríamos
tempo. Evidentemente descobriríamos o papel dos dois outros elementos.
Uma grande circulação de elementos no cinema. Dentre tudo que eu disse,
isso não elimina uma história, certo? A história existe sempre, mas o que
nos interessa é por que a história é realmente interessante. Precisamente
porque existe tudo isso por detrás e junto dela. Nesse ciclo que acabo
de definir rapidamente — a voz ergue-se ao mesmo tempo em que a coisa
da qual ela fala afunda-se sob a terra —, reconhecemos a maior parte dos
filmes dos Straub, este é o grande ciclo dos elementos na obra dos Straub.
O que vemos é unicamente a terra deserta, mas essa terra deserta parece
ter o peso do que está embaixo. E vocês me dirão: “Mas o que podemos
saber sobre o que está embaixo da terra?”. Bem, é justamente aquilo de
que a voz nos fala. E é como se a terra se arqueasse em razão daquilo que
a voz nos diz e que vem assentar-se sob a terra, à sua hora e ao seu lugar. E
se a terra e a voz nos falam de cadáveres, é toda a linhagem de cadáveres
que vem tomar lugar debaixo da terra, de modo que ao menor tremer do
vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que se tem sob os olhos,
ao menor buraco nessa terra, tudo isso ganhe sentido.

O que é o ato de criação?


Tenho para mim que ter uma ideia não é algo da ordem da comunicação.
E é aí que eu queria chegar — porque faz parte de questões que me foram
muito gentilmente colocadas —, tudo aquilo de que se fala é irredutível a
toda comunicação. Não se assustem. O que isso quer dizer? Acredito que,
num primeiro sentido, poderíamos dizer que a comunicação é a trans-
missão e a propagação de uma informação. Mas o que é uma informação?
Não é muito complicado, todo mundo sabe: uma informação é um con-
junto de palavras de ordem. É quando nos informam e nos dizem aquilo
em que devemos acreditar. Em outros termos: informar é fazer circular
uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, com
razão, de comunicados. Nos comunicam informações, quer dizer, nos
dizem aquilo em que espera-se que acreditemos, aquilo em que devemos
Escritos sobre a obra 189

acreditar, aquilo em que somos obrigados a acreditar. Senão acreditar, ao


menos agir como se acreditássemos, não nos pedem para acreditar, nos
pedem para agir com se acreditássemos. Isso é a informação, a comunica-
ção, e sem estas palavras de ordem e sem a transmissão destas palavras
de ordem não há comunicação, não há informação. E digo de novo: a
informação é exatamente o sistema de controle.
Isso é evidente, estou dizendo coisas óbvias, mas isso nos diz res-
peito particularmente porque entramos numa sociedade que podemos
chamar de sociedade de controle. Vocês sabem que Michel Foucault
analisou dois tipos de sociedades bastante próximas de nós: as socie-
dades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem de uma
típica sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu,
segundo ele, com Napoleão — mas pode-se pensar muitos outros pontos
de transição —, e a sociedade disciplinar se definiria — as análises de
Foucault tornaram-se célebres com justiça — pela constituição de es-
paços de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. E as
sociedades disciplinares precisavam disso. Mas isso gerou uma certa am-
biguidade para alguns leitores de Foucault, porque acreditou-se que era
seu último pensamento. Claro que não, Foucault jamais acreditou nisso.
Ele disse com clareza que essas sociedades disciplinares não eram eter-
nas. E além disso, pensava que estávamos entrando num tipo de socieda-
de nova. Certamente, há resquícios de sociedades disciplinares que irão
existir por muitos anos. Mas já sabemos que estamos numa sociedade
de outro tipo, que William Burroughs, por quem Foucault tinha uma viva
admiração, chamou de sociedade de controle.
Entramos então numa sociedade de controle que se define de maneira
diferente das sociedades disciplinares. Nós não temos mais necessidade,
ou melhor: aqueles que velam por nosso bem não têm mais necessida-
de, ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Vocês
dirão que isso ainda não é evidente com tudo que acontece hoje, mas
essa não é a questão. Trata-se talvez de algo para daqui a cinquenta anos,
mas hoje as prisões, as escolas, os hospitais já são temas de discussões
permanentes. Não será melhor estender os cuidados aos domicílios? Sim,
esse é sem dúvida o futuro. As oficinas e as fábricas não comportam mais
empregados. Não seriam melhores regimes de subcontratação ou mesmo
de trabalho domiciliar? Bem, as prisões, essa é uma questão: o que é
preciso fazer? Haverá outros meios para punir as pessoas que não sejam
apenas a prisão? Antigos problemas reaparecem, porque, vocês sabem,
O que é o ato de criação? 190

as sociedades de controle não passarão mais pelos meios de enclausura-


mento. Nem mesmo a escola. É necessário atualmente supervisionar bem
os temas que surgem, e que se desenvolverão em quarenta ou cinquenta
anos, para compreender que o espantoso seria conjugar escola e traba-
lho. Isso vai ser interessante de ver, porque a identidade da escola e da
profissão na formação contínua — que é o nosso futuro — não implicará
mais necessariamente no agrupamento de alunos num espaço fechado.
Isso poderá ser feito de outra maneira, será feito por Minitel4, essas coi-
sas. O espantoso seriam as formas de controle. Vejam que controle não
é disciplina. Com uma estrada não se enclausura pessoas, mas, ao fazer
estradas, multiplica-se os meios de controle. Não digo que isso seja o
único objetivo das estradas, e sim que as pessoas podem ir ao infinito
sem serem completamente presas, e ao mesmo tempo sendo perfeita-
mente controladas. É esse o nosso futuro. As sociedades de controle são
sociedades de disciplina. Então, por que conto tudo isso? Porque a infor-
mação impõe que isso seja assim. A informação é o sistema de controle
das palavras de ordem em circulação numa dada sociedade.
O que a arte pode ter a ver com isso? O que é obra de arte… vocês
me dirão que tudo isso não quer dizer nada. Não falemos de obra de
arte, mas digamos ao menos que há contrainformação. Por exemplo,
em países onde há condições particularmente duras e cruéis, como as
ditaduras, existe contrainformação. Nos tempos de Hitler, os judeus que
chegavam da Alemanha eram os primeiros a nos ensinar que havia cam-
pos de concentração na Alemanha. Eles praticavam contrainformação. É
necessário constatar que a contrainformação nunca foi suficiente para
fazer o que quer que fosse. Nenhuma contrainformação obstruiu Hitler.
Não, exceto num caso. Mas qual é o caso? É isso que importa. Isso é de
vital importância. Minha única resposta seria que a contrainformação
só é eficaz quando ela é — e ela o é por natureza — ou se torna um ato
de resistência. E o ato de resistência não é informação, nem contrain-
formação. A contrainformação é efetiva apenas quando torna-se um ato
de resistência.

4. O Minitel foi um dos primeiros dispositivos acessíveis de ligação em rede. Lançado na França
em 1982 pela PTT (Postes, Télégraphes et Téléphones), era um aparelho de uso doméstico
que permitia aos usuários fazer compras online, reservas para trens, e acesso à cotação das
ações na bolsa de valores e à lista telefônica. Dispunha também de um chat que conectava seus
usuários. Ao longo dos anos 80, tentou-se implementar dispositivos semelhantes em outros
países, mas sem o mesmo sucesso. [N. E.]
Escritos sobre a obra 191

André Malraux
Qual é a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra
de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem
nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamen-
te, a menor informação. Por outro lado, em compensação, existe uma
afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto
sim. Tem algo a ver com a informação e a comunicação, a título de ato
de resistência. Qual é esta relação misteriosa entre uma obra de arte e
um ato de resistência? Os homens que resistem não têm tempo e nem, às
vezes, a cultura necessária para ter qualquer relação com a arte. Malraux
desenvolve um bom conceito filosófico e diz uma coisa muito simples
sobre a arte: “É a única coisa que resiste à morte”. Retorno ao meu tru-
que de sempre, ao início: o que se faz quando se faz filosofia? Inventa-se
conceitos. E eu acho que isso é a base de um belo conceito filosófico.
Reflitamos… então, o que resiste à morte? Bem, sem dúvida, é suficiente
ver uma estatueta de 3000 anos atrás para descobrir que a resposta de
Malraux é uma boa resposta. Então poderíamos dizer, do ponto de vista
que nos diz respeito, que a arte é aquilo que resiste, mesmo não sendo
a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resis-
tência e a arte, a obra de arte. Nenhum ato de resistência é uma obra de
arte, ainda que de certa maneira o seja. Nenhuma obra de arte é um ato
de resistência e, no entanto, de certa maneira, o é.
Que maneira misteriosa, e aí talvez fosse necessário… não sei… talvez
fosse a uma outra reflexão, uma longa reflexão para… o que eu quero dizer,
se vocês me permitem voltar a questão: “O que é ter uma ideia em cinema?
Ou, o que é ter uma ideia cinematográfica?”. Quando lhes falo, por exemplo,
dos Straub, quando eles operam uma disjunção voz/sonora em tais condi-
ções que… Notem que a ideia é… Outros grandes autores tomaram essa
ideia de outro modo e eu acho que os Straub se posicionam da seguinte
forma: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala
desce sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostran-
do, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem
sonora. Ora, qual é este ato de palavra que se ergue no ar enquanto seu
objeto enterra-se sob a terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda
a obra dos Straub, o ato de palavra é um ato de resistência. De Moisés5

5. Moisés e Arão (Moses und Aron, 1973). [N. E.]


O que é o ato de criação? 192

ao último Kafka6,… passando por, não cito na ordem, não sei a ordem,
por Não reconciliados até Bach7. Qual é o ato de palavra de Bach? É a sua
música. Não é ato de resistência abstrato, é ato de resistência, luta ativa
contra a separação do profano e do sagrado. E este ato de resistência na
música culmina num grito. Da mesma maneira que há um grito em Woyzek,
há um grito em Bach: “Fora, fora, saiam, não quero vê-los”. Isso é ato de
resistência. Então, quando os Straub põem em valor este grito, este grito
de Bach, ou quando põem em valor o grito da velha esquizofrênica, acho
que em Não reconciliados, tudo isso deve dar conta de um duplo aspecto,
me parece que o ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e
também ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob
a forma de obra de arte, seja sob a forma de lutas dos homens.

E qual a relação que existe entre


a luta dos homens e a obra de arte?
É a relação mais estreita e, para mim, mais misteriosa. Exatamente o que
Paul Klee queria dizer quando dizia: “Pois bem, falta o povo”. Falta o povo
e ao mesmo tempo, não falta. Falta o povo, isso quer dizer que — não é
claro, nunca será claro — esta afinidade fundamental entre a obra de arte
e um povo que ainda não existe não é e nunca será clara. Não há obra de
arte que não recorra a um povo que ainda não existe. Então, por último,
bem, é muito… aí está, estou profundamente feliz pela grande gentileza
de terem me escutado, e agradeço-lhes muito.

6. Relações de classes (Klasseverhältnisse, 1984). [N. E.]


7. Crônica de Anna Magdalena Bach (Chronik der Anna Magdalena Bach, 1968). [N. E.]
193

Prefácio a um volume de Textos


Cinematográficos de Straub e Huillet1
Adriano Aprà

Estão recolhidas aqui as transcrições analíticas dos filmes feitos por


Straub-Huillet nos anos sessenta, de sua estreia em Machorka-Muff a
Othon. Se tivéssemos publicado os roteiros de trabalho, o resultado seria
quase igual. O texto literário (ou musical) de base, frequentemente reduzi-
do, montado, às vezes integral, e sua decupagem, ou seja, sua divisão em
enquadramentos, são preordenados por Straub-Huillet: eles equivalem
ao clássico “roteiro de ferro”. O texto original é respeitado ao pé da letra;
quando é submetido a cortes e a remontagem (mas nunca à reescrita),
o trabalho de eliminação, deslocamento, escansão e condensação (até
o caso limite do drama de Bruckner A doença da juventude2, reduzido já
na versão teatral de 10 minutos e inserido em O noivo, a atriz e o cafetão,
tende a exaltar a essência do texto: a sua estrutura material.
Na fase escrita do trabalho de Straub-Huillet, a matéria é o texto: eles
o aprendem de cor, percebem suas cadências musicais, o predispõem
mentalmente e na decupagem a uma (re)citação. E antes ainda o selecio-
nam: variando de Böll e Bach a Bruckner, San Juan de la Cruz e Corneille,
surpreendentemente. A invenção é reduzida ao mínimo. O noivo…, que
comporta uma ficção original, é uma insólita exceção (assinada apenas
por Straub).
Com a escolha das locações (simultânea ou anterior à escolha dos
textos), com a escolha dos atores, com os ensaios e, finalmente, com a
filmagem, as coisas mudam. A prisão construída com o roteiro abre-se
ao acaso: o rigor intelectual arrisca o teste dos fatos. Assistimos à pro-
gressiva encarnação do verbo. Então, tudo o que é incontrolável conta: o
movimento do sol, o vento, o desconforto de um ator; a luz e o som. Vari-
áveis atmosféricas e recitativas se misturam. Elas parecem mínimas, mas

1. Publicação original: “Premessa”. In: Jean-Marie Straub / Danièle Huillet. Testi Cinematografici.
A cura di Adriano Aprà. Roma: Editori Riuniti, 1992, pp. IX-XIII. Embora extraindo este texto do
volume que prefaciava, optamos por traduzi-lo, com o consentimento do autor, sem nenhuma
modificação. Traduzido do italiano por José Eduardo Marco Pessoa e Mateus Araújo Silva.
2. Krankheit der Jugend (1926), peça teatral de Ferdinand Bruckner. [N.T.].
Prefácio a um volume de Textos — Cinematográficos de Straub e Huillet 194

a exatidão da reprodução cinematográfica, a densidade visual e sonora


as exalta; a riqueza progressiva dessas variáveis “de detalhe” justifica
a montagem, mais tarde, de quatro versões de A morte de Empédocles,
quatro de Pecado negro, duas de Antígona.
Desta matéria natural, que é o coração do cinema de Straub-Huillet,
só se encontram aqui pálidos simulacros nos fotogramas reproduzidos,
junto a algumas fotos de cena e a outras. E nada do som, reduzido à ma-
téria escrita3.
A impressão de rigor e de rigidez que os filmes de Straub-Huillet
podem dar é superficial. Inicialmente, nada é deixado ao acaso, tudo
(muito) é previsto com grande antecedência: a porta deixada aberta pa-
rece minúscula. Pensando bem, porém, quando essa porta se abre, como
nas filmagens ao ar livre de Othon, há muito espaço deixado ao acaso,
inevitavelmente. As filmagens dos Straub se arriscam constantemente:
um risco deliberadamente procurado. Este risco de confronto com a
“natureza” é duplicado pelo risco econômico e organizacional: é preci-
so respeitar um orçamento determinado e um certo plano de trabalho,
com um mínimo indispensável e sem desperdício. A equipe é reduzida,
a iluminação artificial quase ausente. Cinegrafistas, engenheiros de som,
maquinistas são hábeis em seu ofício. O número das tomadas aumenta
até que se obtenha, pelo menos, duas tomadas “ótimas”. O som é meti-
culosamente preparado: a intrusão inesperada de um avião ou de uma
buzina pode não ser um mal, o vento é bem-vindo. Só a chuva preocupa.
O cinema dos Straub é também uma cartilha: uma exemplificação
das bases elementares desta arte, em sentido material, quase técnico.
Na escolha do enquadramento, da ambientação, da objetiva; nos ritmos
e cadências de dicção, no posicionamento do microfone, e depois na
montagem, na luz das cópias e até mesmo na legendagem, eles respei-
tam, provocando-os, os limites físicos dos materiais do filme: negativos,
subdivisões em bobinas, câmeras, gravadores, microfones, moviolas,
laboratórios, legendas. Há sempre uma lógica material no uso que eles
fazem dos instrumentos do cinema. A essa lógica se adequam as esco-
lhas estéticas. Partindo dos dados de base, eles os alargam, revelando o
“não dito” do cinema e experimentando com seus filmes, ainda que com
menos dinheiro, aquilo que o cinema, para ficarmos só na técnica, pode
e não quer fazer. Eles trabalham como artesãos. Contra a rotina do uso

3. Aprà se referia nesta passagem ao livro de textos e filmes que ele prefaciava. [N.T.]
Escritos sobre a obra 195

comum, redescobrem as virtudes antigas do ofício e se rebelam contra


uma indústria que aplaina as diferenças e neutraliza as potencialidades.
Comportando-se como “primitivos”, como camponeses da técnica, par-
tindo das características elementares do meio, acabam por se encontrar,
a despeito de si mesmos, na vanguarda: por terem revelado que o rei da
indústria está nu.
Eles trabalham muito na montagem: para escolher a melhor tomada,
dispondo sempre de muitas tomadas “boas”; e para encontrar o fotogra-
ma exato para cortar e colar. Aqui se definem as assonâncias e as disso-
nâncias da obra como um todo.
Para além dos filmes individuais, o método de trabalho dos Straub
reenvia a uma ontologia rigorosa do cinema, quase uma releitura mate-
rialista da “estética da realidade” de Bazin. As regras que eles se impõem
não permitem conciliações. A sua matéria perfeita evidencia, por con-
traste, o caráter impreciso de grande parte dos filmes que se fazem no
cinema, quando não nos deixamos iludir pelos “efeitos especiais” ou pela
publicidade.
Os Straub são cineastas italianos desde 1969: vivem em Roma, fizeram
em italiano ou na Itália muitos filmes. Esta coletânea de textos traduzidos
em italiano é também um reconhecimento à sua presença em nosso país.
Além das transcrições analíticas, quase todas de Danièle Huillet,
acrescentamos alguns textos contemporâneos: relativos a seus filmes ou
aos de outros cineastas; textos escritos e não transcrições de entrevis-
tas (com a exceção daquela sobre o Bachfilm, porém reescrita); textos
frequentemente circunstanciais, às vezes cartas de resposta a pedidos
de esclarecimento (como aquelas à revista Cinema & Film) ou respostas
a questionários: e tudo escrito só por Straub. Estes textos são muitas
vezes fulgurantes pela precisão e pela brevidade, e não admitem tradu-
ções inexatas. Straub leva a língua a seus limites, e força suas regras. E
nos oferece, também no estilo, um traço essencial de poética, composto
muitas vezes de montagem de citações: como o seu cinema. Em apoio aos
filmes, ou às suas simples transcrições, esses textos não sistemáticos
nos esclarecem sobre o método dos Straub, e podem ser considerados
teóricos em todos os aspectos, na tradição de Cocteau e Godard.
As traduções, tanto as novas quanto as preexistentes (revistas e cor-
rigidas para a ocasião), seguem o princípio da fidelidade literal, mesmo
que desafiando os limites da língua italiana. Este é o caso em particular
de Othon, onde se procurou usar ao longo de todo o texto a mesma pala-
Prefácio a um volume de Textos — Cinematográficos de Straub e Huillet 196

vra italiana para a mesma palavra francesa. A dificuldade do resultado,


porém, não é quase nunca superior à do original, e teria sido absurdo
simplificar a complexa retórica daqueles versos.
Dois aparelhos de registro, um visual e um sonoro, postos diante
de uma certa porção de realidade preordenada; a recusa de inventar e a
vontade de “recolocar no seu devido lugar coisas muito antigas, mas es-
quecidas” (Charles Péguy), textos literários que vale a pena ouvir de novo
hoje, por exemplo; as regras elementares de uma lógica que tem absoluto
respeito pela realidade, e a descoberta emocionante das dialéticas desta
realidade; nenhuma tentação — expressionista — de filmar aquilo que não
existe; a resistência ao cinema industrial, não para fazer um outro cine-
ma — nada de underground —, mas para realizar, despojada de qualquer
incrustação expressiva, a substância material do cinema: várias maneiras
de definir a atitude artística dos Straub, que é, paradoxalmente, tanto
mais de elite quanto mais elementar. O esforço adicional que seus filmes
exigem do espectador, e estes textos do leitor, nos permite dimensionar
o quanto nos desabituamos a ver e a escutar realmente, por tolerarmos
filmes demais. O cinema dos Straub é respeito àqueles que o ouvem,
desafio ao ruído de fundo audiovisual, proposta ecológica de uma arte de
novos hábitos, “quando o verde da terra de novo brilhará para todos”,
porque “os olhos não querem se fechar o tempo todo”. Então, ainda um
pequeno esforço…
197

A enorme presença dos mortos1


Jean Narboni

Segure-se ao aqui e ao agora, pelos quais o futuro


mergulha no passado. (Joyce)

Há um ano, alguém perguntava à Straub por que, no final de Introdução2,


após as duas cartas nas quais Schoenberg atacava Kandinsky por seu
antissemitismo, após o texto de Brecht associando o nazismo à história
da luta de classes e das relações de produção capitalistas, ele não tinha
mostrado, em vez dos bombardeamentos americanos ao Vietnã, os avi-
ões israelenses no sul do Líbano. Straub respondeu que ele tinha pensado
nisso por um momento, e depois descartou a ideia, porque ela seria tema
para um outro filme. Simples demais e fácil demais, ele disse, retornar à
estaca zero, simples demais e fácil demais fechar com chave de ouro uma
demonstração; mecânica e confortável demais a “dialética” das vítimas
que se transformam em carrascos.
Fortini/Cani é este outro filme, a terceira parte, depois de Moisés e
Arão e Introdução, do tríptico “judeu” de Straub-Huillet. Mas também,
e necessariamente, pelo fato que este é o último episódio do tríptico
judeu, este no qual vêm convergir e atar-se de outra maneira todos os
fios tecidos nos ensaios anteriores: o fascismo e o racismo, ou melhor,
os racismos, as segregações em que se apoiam as sociedades civilizadas,
os neofascismos com aparência democrática, a questão do lugar e da
memória, o romance familiar, a diferença, a história…
A história, este último fetiche. Fala-se muito nisso hoje em dia.
Incrível, a proliferação, a inflação, a sobressaturação dos discursos
sobre a história. Não tem uma revista que não proponha o seu “Cine-
ma e História”. Não tem colóquio, seminário, festival ou simpósio com

1. “L’Enorme presence des morts”. Republicação integral do artigo publicado com o título “Là”
no número 275 (abril de 1977) da revista Cahiers du cinéma. In Les Chiens du Sinai — Fortini/Cani
(Paris: Dossiers Cahiers du cinéma, março 1979). Tradução de Bruno Carmelo.
2. Introdução a “Música de acompanhamento para uma cena de cinema” de Arnold Schoenberg,
de J.-M.S e DH.
A enorme presença dos mortos 198

um mínimo de seriedade que não a inscreva em seu programa. Todo


mundo, surpreendentemente, concorda: acima de tudo, que a História
pare de não servir a nada, que a História sirva às lutas atuais, que viva a
memória popular, abaixo o “retrô”, reapropriemo-nos do nosso passado
etc. E vêm participar os pequenos mestres, os Bertolucci e os Cassenti,
logicamente, mas amanhã cem outros, administradores dos bens dos
mortos, dizia Michelet, pretendentes à herança, novos gestionários: eles
foram como nós, os milhões de condenados da terra de que descen-
demos, por isso nós somos como eles, eles nos prefiguram, por isso
nós os completamos… Fúria em completar as brechas, em preencher os
buracos, em recolar os fragmentos separados, em recobrir os pontilha-
dos, ilusão paranoica que a verdade possa dizer tudo a si mesma, que
possa se proferir a verdade sobre a verdade. Raras vozes discordantes
no concerto: Godard: “Nada de histórias!”, Straub: “Não esqueçamos o
esquecimento”. O que se ganha por um lado com a história, dizia Lacan,
perde-se por outro; no entanto, como não se sabe o que se perdeu, acha-
-se que se ganhou. Que isto sirva aos espertinhos. Os outros, os idiotas,
os tolos, Godard, Straub, trabalham a partir desta perda direta implica-
da no ganho, no oceano de esquecimento onde boiam alguns farrapos
de memória. O que diz o velho kominterniano3 em Número Dois (Numéro
deux, de Jean-Luc Godard, 1975)? “O Partido Comunista, ele não surge
apenas disso, mas ele também surge disso… E isto, ele não dirá nunca…
A saída é por aqui…”.
Existe, em Não reconciliados, uma cena que ilustra a questão deste
esquecimento dentro da memória: Schrella, resistente antifascista exilado,
volta à Alemanha; ele retorna ao seu bairro natal, ele não reconhece mais
nada neste terreno vago, nestes novos imóveis. Ele pergunta a uma garo-
tinha se a família Schrella não costumava morar ali antigamente. “Não, eu
não conheço…”. Anulação, apagamento, desaparecimento, passagem de
traços de passos a nenhum traço ou a poucos traços. E o gesto do cineasta:
marcar com um traço, ou circular com uma cerca, com um quadro, este
pouco ou nenhum traço restante. Trabalho portanto, e de terceira mão. Os
“Cinemas-e-História” contentam-se com uma ilusão referencial: como se
você tivesse estado presente, som-e-luz, efeitos do real.
Porque, nos filmes de Straub, existem estes buracos, estas síncopes,

3. Em política, Komintern é o órgão executivo comunista da terceira internacional, substituído


em 1947 pelo Kominform. [N.T.]
Escritos sobre a obra 199

estas ausências de narração, pelo fato de serem homogêneos ao seu


objeto: a história, a história que não é o passado. “Eu quis construir Não
reconciliados como um corpo lacunar”, ele afirma, ou seja, de acordo com
Littré, um corpo composto de cristais aglomerados que deixam interva-
los entre eles. E, bordando estes intervalos, como cristais, as inscrições
petrificadas e “medusantes” de que falava Bonitzer em J.M S et J.-L. G4.
Em Fortini/Cani não há nada além disso, inscrições lapidares, lugares de
memória, farrapos de tempo encravados na pedra, nas paisagens, nas
montanhas, nos monumentos, nos ossuários. Cada plano, como se diz em
Crônica de Anna Magdalena Bach, é em si mesmo uma pedra5.
Ausência total de evocação histórica, de retrato de gênero, de indícios
ou insígnias de época. Mas nada mortificante apesar disso, nenhuma me-
ditação sobre o esquecimento, arrogante e desencantada, crepuscular, de
um Resnais em Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour, 1959), Toda
a memória do mundo (Toute la mémoire du monde, 1956), Noite e neblina
(Nuit et brouillard, 1955) e mais ainda em Providence (1977)6. Aqui, só o
lugar acontecerá, e a referência a Mallarmé não é um acaso, eu explicarei
isso mais tarde. E assim como Godard que, transversalmente à questão
do aqui e do lá, desenvolvia um questionamento sobre os tempos — tempo
das cadeias, tempo do capital, tempo de uma imagem cinematográfica,
tempo de ter tempo — Straub em Fortini/Cani, a partir da questão do hoje
e do antigamente, que sempre foi seu tema (“o que é tal coisa ou o que
aconteceu com tal coisa?”), continua sua pesquisa meticulosa do lugar.

4. In Cahiers du cinéma, nº 264, fevereiro de 1976. [N.O.]


5. “Evidentemente, cada imagem é apenas realidade, e nada mais, uma pedra, isso é claro.”
(Sobre “Chronique d’Anna Magdalena Bach”, in Cahiers du cinéma nº 193, p. 58). [N.O.]
6. Quando foi exibido Não reconciliados, alguns críticos felicitaram Straub por ser um “novo
Resnais”. A comparação foi utilizada novamente mais tarde, mas cada vez com menor frequên-
cia, em função de alguns traços aparentemente comuns entre os dois cineastas: intransigência
moral, apego às questões da memória e da perda, do fascismo e do lugar, ou vocação para
construir narrativas deslocadas. Ora, não existem, ao meu ver, cinemas mais diferentes do que
estes dois. Inicialmente, no que diz respeito ao “deslocamento da narrativa”, o próprio Straub
respondeu: Não reconciliados é construído como um corpo lacunar, ou seja, alguma coisa que
não tem nada a ver com um puzzle. Mais profundamente, encontra-se no cinema de Resnais
(exceto, talvez, no admirável Muriel [1963], praticamente todos os elementos que estruturam,
segundo Freud, a maquinaria obsessiva: “O animismo, a magia e os encantamentos, a potência
total das ideias, as relações com a morte, as repetições involuntárias e o complexo de castração…
(in A Inquietante Estranheza). Por isso a angústia que emana dele, e que ele suscita (à enésima
potência em Providence). No cinema de Straub, pelo contrário, apesar da dureza, ou mesmo
do horror dos sujeitos abordados, existe uma espécie de alegria profunda. É porque o trabalho
de esquecimento do luto não tem nada a ver com a paixão pelo cadáver: o primeiro é alegre,
o segundo não. [N.O.]
A enorme presença dos mortos 200

Ele anula o discurso da história proferido por Fortini com inscrições


condensadas, insistentes, abreviações de tempo: placas comemorativas,
monumentos aos mortos, nomes de rua, percurso da Torá durante um
culto, traço profundo de um triângulo maçônico arrancado antigamente
pelos fascistas, com o A dos anarquistas marcado com um círculo visível
hoje em dia (é sem dúvida neste nível que pode se perceber melhor a tri-
pla operação que eu mencionava anteriormente: traço, desaparecimento
do traço e ato do cineasta como comemoração dos dois). Os filmes de
Straub: um fluxo de palavras que se chocam com as pedras (metáfora no
último plano de Lições de História: a água da fonte romana escorrendo
ininterruptamente por uma máscara de pedra)7. Nada o expressa melhor
do que este enorme buraco do discurso criado pela sequência dos Alpes
Apuanos, no qual a câmera não para de admirar as paisagens levemente
perturbadas por alguns ruídos de motores longínquos ou alguns gritos
de crianças, não para de elaborar imagens panorâmicas das fossas de
mármore. Straub topógrafo, geógrafo, desenhista de mapas, agrimensor,
técnico dos relevos do terreno. Trata-se de fabricar filmes discretos e
assassinos, como essas “pequenas obras certeiras, de sílex ou de diaman-
te”, que Fortini menciona no último plano.
Mas existe o fato do livro, do livro de Fortini, do qual vem o filme
e todos estes planos em que se vê Fortini ler, ou se reler. Vêm então as
eternas questões feitas aos filmes de Straub: o que elas acrescentam aos
textos preexistentes que é a base de todos eles? O que acrescenta ao
cinema e a estes textos (peças de teatro, cartas, fragmentos de jornais,
ópera, romance, ensaio) o ato de filmar, de lê-los, integral ou parcialmen-
te, de recitar, declamar, interpretar, cantar, sprechgesanger8, ou cuspir,
deglutir, expulsar, martelar, esparramar? Eles não seriam suficientes por
si mesmos? Onde fica a “essência” do cinema nestes elementos? E mesmo
se for cinema, é a imagem ou o som que comanda? Trata-se de imaginar,
de ilustrar, de figurar a narrativa, ou então de comentar, de acompanhar
as imagens? De representar, de transcrever, de transpor ou de trair?
Falsas perguntas, que nunca chamaram a atenção de Straub nem de
7. São inúmeros os exemplos no cinema de Straub, em todos os níveis, de indícios desta questão
dos lugares da memória: da gruta de Othon, onde os resistentes antifascistas dissimulavam suas
armas, verdadeiro buraco de memória, à pesquisa em Lições de história do jovem homem que
mergulha no centro de Roma para reconstituir a genealogia da cidade, sem esquecer a dupla
inscrição que designa a última fala de Não reconciliados (eu cito de memória): “Ele não foi mortal-
mente ferido, mas espero que não se apague nunca o estupor que se marcou em sua face…”. [N.O.]
8. Sprechgesang: espécie de canto declamado da Escola de Viena. [N.T.]
Escritos sobre a obra 201

Godard, jamais, e cada vez menos se fosse possível. Falsas questões que
eles deixam aos fundamentalistas do “específico”, aos quais eles respon-
dem: tudo que se lê, se anota, se respira, se canta, se dança, se cita, se
interpreta, se comunica por rádio ou televisão, se grava, pode virar filme,
contanto que se inscreva aqui. Mas aqui onde? Neste lugar que não é
nada mais do que o espaço de concentração-dispersão de tudo que pode
se escrever, anotar, respirar, cantar, citar etc. É por isso que, nos filmes
destes cineastas, tudo já está escrito e tudo é novo, nada é “original”,
“inventado” e entretanto nada preexiste ao ato de inscrição. O que dá
origem, no caso de Straub, a um paradoxo aparente: que uma das artes
mais elaboradas existentes possa ao mesmo tempo se expor inteiramente
aos acasos.
Tudo é possível, durante a filmagem, declara Straub. É neste sentido
que seu “respeitar o real”, sua insistência em “mostrar” o que não é metafí-
sico; o que se fornece ao olhar sempre mantém a impressão do gesto desig-
nador: indicador, punho ou coto, que determinam o aqui. Existe nos seus
filmes uma inalterabilidade mineral, mas também algo precário, como uma
transparência instável do ar, quase audível, durante os verões italianos.
Qual é o passo melhor executado com Fortini/Cani? Ele insere no
filme, junto com o livro (I Cani del Sinai), o autor deste livro. Nem Saint-
-Jean de La Croix, nem Bach, nem Anna Magdalena Bach, nem Brecht, nem
Schoenberg, nem Corneille estavam presentes pessoalmente nos outros
filmes, e não apenas por razões de morte, aliás. Straub explica que desta
vez o filme não teria sentido nenhum sem a presença de Franco Fortini,
que lê em pessoa os fragmentos do seu ensaio, ensaio que nós vemos,
aliás, no primeiro plano do filme. Eis uma escolha que permite compreen-
der melhor a estratégia do cineasta em relação ao escrito em que ele se
apoia, que permite não mais perguntar o que pode ser um filme extraído
de um escrito preexistente, nem mesmo o que ele extrai. Nós vemos, ao
contrário, que neste caso é a própria máquina fílmica que extrai o livro
para ela, e o autor junto, que os faz vir a ela, os absorve. De modo que
a questão sobre quem foi o primeiro, ou quem domina, entre o texto e a
imagem, e se um ilustra o outro, não tem mais sentido. Tanto o texto de
base quanto o seu autor estão inscritos no filme como partes, ao lado de
outras partes, nem antes nem depois (as paisagens, a música, os trechos
do jornal da R.A.I., as margens do Arno, a sinagoga de Florença, o jornal
de Fortini etc.). E mesmo inscritos em partes, já que aparece primeiro o
livro, depois a voz, depois as mãos de Fortini, e seu rosto apenas — isso é
A enorme presença dos mortos 202

muito importante — depois da grande síncope dos Alpes Apuanos.


Existe neste ponto algo muito novo no cinema no que diz respeito à
relação entre a parte e o todo, em que não apenas as partes não formam
mais o elemento de uma totalidade futura, nem emanam de uma totalida-
de prévia, mas ainda em que não é mais necessário anular a totalidade
porque o todo em si funciona como parte, como ser contínuo e conexo às
outras partes do filme. Relação de apropriação recíproca e de torção que
desatualiza as questões de anterioridade, de origem ou de fundamento.
O filme integra o que o apoia, não existe nenhum elemento que não seja
inscrito ou que não inscreva, como nestes arcos entrelaçados em que, de
três linhas, nenhuma se encontra envolvida por outra sem ser ela mesma
invólucro de uma terceira. É preciso sublinhar que o filme não tem título
(Fortini/Cani é um título “no ar”, jamais inscrito como tal no filme), e que
o que funciona como título é o primeiro plano do filme (onde se vê a co-
bertura do livro I cani del Sinaï). Existe neste momento uma semelhança
espantosa com a operação de escritura do “Um lance de dados” (“Un
coup de dés”), sobre o qual Mallarmé dizia que era a continuação de uma
frase capital introduzida desde o título, a cobertura recíproca do poema
e do que o fortalece9.
Mas existe outra coisa além desta introdução no filme do livro e do
autor, existe também o fato que o autor não é apenas autor ou ator, mas
também leitor. Fortini, autor de I cani del Sinai, é filmado enquanto lê em
voz alta trechos de seu livro. Straub insiste no caráter fictício do filme, ele
detesta que lhe peçam para explicar, antes do filme, quem é realmente
este senhor Fortini. Ele aceita no máximo dizer que se trata de um comu-
nista e ponto final, e que veremos no final de qual tipo de comunista se
trata, ele quer que para o espectador não exista nada mais no filme do
que um ator, um personagem de ficção que lê, in ou off (durante ou em
momentos diferentes das imagens que citei), em 1977, um livro escrito
dez anos antes. Vemos muito bem o que uma reflexão moderna sobre a
escritura, o texto, pode extrair dele: o autor como produto de seu livro
e não como fonte, o texto que dá origem no fim de seu percurso ao seu
próprio pai, a reversibilidade do escritor e do leitor. Existe igualmente
o brechtismo intransigente de Straub: a disjunção do personagem e do
ator, a distância entre o ator e o que ele profere, o uso de uma citação ge-

9. Jean-Marie Straub realizou em 1977 um filme curto a partir do poema de Mallarmé, Toda
revolução é um lance de dados (Toute révolution est un coup de dés, 1977). [N.O.]
Escritos sobre a obra 203

neralizada e não da expressão do texto. Mas o mais importante na minha


opinião não é isso, mas outro fator: a introdução de um poder de escuta,
de uma representação da pulsão evocadora.
“No cinema”, dizia Godard na época de British Sounds (1970), “a gente
sempre vê pessoas que falam, mas nunca pessoas que escutam.” Muitas
pessoas falam nos filmes de Straub, desde o início, que executam ou se
executam (Gustav Leonhardt como ator interpretando J.-S. Bach, mas
interpretando realmente as suas obras diante da câmera, atores italianos,
franceses, ítalo-ingleses simulando personagens de Corneille, confrontan-
do-se realmente com o texto francês). Que falam das coxias, convocando
até o presente o espectador à posição instável de sua relação, dupla, de
escuta e de olhar. Em Fortini/Cani, como já dissemos, há algo mais: o
autor entra no plano enquanto leitor mas sobretudo ouvinte de um texto
aparentemente único, e por isso mesmo frequentemente dividido em
dois. Pois o texto que ele lê ou relê, e é nisto que consiste a operação, não
é aquele que tinha escrito. Ainda em relação ao Um lance de dados, Denis
Roche apontava que o mais importante no texto de Mallarmé não era a
possibilidade múltipla, a pluralidade dos planos de leitura ou a prolife-
ração dos níveis, mas a ideia de um texto que confronta-se a si mesmo
durante a leitura10. I cani del Sinai [os cães do Sinai], que aliás não existem,
opondo-se a si mesmos durante a leitura. Linha de fratura que corta o
texto único, intuição extraordinária do texto judeu por se restabelecer à
sua marca, ao seu deserto, ao limite nunca ultrapassado da “Terra pro-
metida”. Os olhos não querem sempre se fechar era o subtítulo de Othon.
Mas a orelha, sempre aberta, nunca poderia fazê-lo. Se a pulsão de escuta,
pulsão invocadora, pode se formular de acordo com Lacan pelo “fazer-se
entender” no qual encontram-se equivocadamente mantidos primeiro a
acepção intelectual frequente da fórmula, segundo o “fazer” da atividade
própria à pulsão, terceiro a dimensão do chamado e da prece que implica
a palavra “invocar”, pode-se dizer sobre Fortini/Cani que trata-se de um
filme no qual o espectador vê alguém se escutando falar. Mesma estra-
tégia, por vias opostas, em Nous trois (“6 X 2”)11, no qual o prisioneiro
torturado escuta a si mesmo enquanto escreve no silêncio de seu segredo
inexistente, e em Fortini/Cani no qual, interrompendo o fluxo incessante
da leitura em voz alta, escutamos zumbir silenciosamente a questão de

10. In “Eros Energumène”, Édition du Seuil, coleção Tel Quel, p. 14. [N.O.]
11. Programas de televisão de Godard exibidos pela FR3 durante o verão de 1976. [N.O.]
A enorme presença dos mortos 204

Fortini a si mesmo: “O que você quer dizer com isso?”.


Straub e Huillet insistem nisso: contrariamente ao que acontecia
nos seus outros filmes, eles não quiseram ensaiar, encontrar Fortini para
reuniões de trabalho/leitura antes do ato da filmagem. O importante era
que Fortini fosse confrontado, dez anos mais tarde, a um texto colérico e
polêmico enviado ao combate por ele mesmo logo após a guerra de junho
de 1967. O que se propõe a experimentar não é apenas o “prazer do texto”
ligado à escritura em voz alta descrita por Barthes (referindo-se sem ad-
mitir a Othon)12, prazer do grão da voz, voluptuosidade do som captado
bem de perto, e sim o efeito sobre o personagem que escuta a própria
leitura, escutando a si mesmo enquanto fala: de surpresa, de choque,
de não reconhecimento ou, pelo contrário, de adesão e de familiaridade,
provocando então efeitos de discreta ênfase, de acentuação oratória, de
autoaprovação visível. Redobramento na cena fictícia desta questão do
trabalho do esquecimento da memória sobre a qual falávamos anterior-
mente. Anamnese impiedosa de um romance familiar, melodrama como
dizem muito seriamente Straub-Huillet, em que o filho confronta o pai, e
todos os pais e semelhantes ao seu pai. Filme de amor, como sempre para
os dois: você nunca fala de onde eu te escuto. Romance familiar, mas sem
confinamento, sem estreitamento (“a lei do sangue não é a lei correta” diz
um dos personagens de Não reconciliados), porque é sempre ao mesmo
tempo um romance histórico, com seus heroísmos, negações, covardias e
conversas individuais sobre a cena múltipla de afrontamentos de classe,
das histórias nacionais, das lutas de liberação dos povos, dos mecanis-
mos de poder e de resistência, das discriminações raciais ou não raciais.
Sempre o mesmo, se preciso for designá-lo, inimigo dos inimigos
para Straub: o humanitarianismo de encomenda, como dizia Lacan, que
cobre nossas exigências (a infame passividade ou cumplicidade ociden-
tal diante do antissemitismo nazista ontem, e o mesmo humanitarismo
que pretende hoje em dia proteger os judeus contra os bárbaros árabes).
Como em Não reconciliados, existe em Fortini/Cani um grande tema, o que
Kafka designava como “a depuração do conflito que opõe pai e filho e a
possibilidade de se falar a respeito”, depuração, conflito a compreender
não como fantasma edípico, mas como programa político13.

12. In “Le Plaisir du texte”, Éditions du Seuil, coleção Tel Quel. [N.O.]
13. É assim que Deleuze e Guattari recomendam a leitura integral de Kafka, in “Kafka: pour une
littérature minéure”, Édition de Minuit, p. 31. [N.O.]
205

Straub, Hölderlin, Cézanne1


Dominique Païni

Dois filmes, cujo projeto não implicava a associação, acabaram por se


associar, não pelo acaso das necessidades da distribuição comercial,
mas pela vontade ostensiva dos cineastas2. Sua articulação os torna mais
ricos em significado, os ilumina simultaneamente graças a esse princípio
de dobradiça, invisível, mas solidamente teórico: a interpretação român-
tica da Grécia Antiga de Hölderlin é articulada com a obra de um dos
fundadores da pintura moderna do século XX. Quase um século separa,
contudo, Hölderlin e Cézanne, mas o cinema os aproxima segundo o prin-
cípio de um díptico.
E é ao papel da violência em toda sua obra que esse díptico Hölderlin/
Cézanne nos remete. Ele possui, na obra dos Straub, valor de construção
segundo a acepção de Hubert Damisch: “Freud preferia o termo cons-
trução à interpretação. Ele dizia (essa distinção era, para ele, suficiente
para marcar a distância entre o propósito que é o fato da análise e o que
é de uma hermenêutica) que a interpretação não concerne nunca apenas
elementos ou traços isolados, ali onde a construção assume uma função
de ligação: ligação entre as peças e os pedaços de material sobre o qual a
análise se debruça; mas ligação, igualmente, entre as duas peças (os dois
monólogos) que são encenados nos dois palcos dispostos face a face. A
chamada construção atingiria seu objetivo quando, de uma cena e de um
monólogo a outro, a comunicação se estabelece e que algo da ordem de
uma verdade consegue emergir3”. A construção straubiana, ou seja, esse
díptico, é ao mesmo tempo literária e plástica, uma verdadeira cena dupla
ao seio da qual uma verdade consegue, de fato, emergir, para retomar as
palavras de Damisch.

1. Publicação original: Anne Marie Faux (dir), Jean-Marie Straub — Danièle Huillet:
Conversations en archipel (Milano:Mazzotta-Paris:Cinématèque Française, 1999). Traduzido do
francês por Ana Siqueira.
2. Os dois foram de fato distribuídos juntos, figurando ambos num mesmo cartaz. [N.O.]
3. Hubert Damisch. Un souvernir d’enfance par Piero della Francesca (Paris: Seuil, La Librairie
du XXème siècle, 1997) p. 173. [N.O.] complementada pelo tradutor.
Straub, Hölderlin, Cézanne 206

O que significa essa construção e, mais particularmente, essa vio-


lência, essa brutalidade de estilo, que permanece quando revemos hoje
os dois filmes tal como os Straub desejaram mostrá-los, unidos? Os dois
filmes são completamente independentes do ponto de vista de sua pro-
dução. Cézanne foi realizado em 1990 para acompanhar uma exposição.
Pecado negro (Schwarze Sünde), realizado em 1989, é a adaptação da ter-
ceira versão de A morte de Empédocles, de Hölderlin. Em 1987, os Straub
já haviam realizado cinco filmagens da primeira versão de A morte de
Empédocles, das quais três foram definitivamente montadas e mostradas.
As pequenas variações entre essas cinco versões se tornaram lendárias.
Falou-se até mesmo de uma versão “com lagarto”, pelo fato de um exem-
plar desse gênero de réptil passear, no ângulo de um plano, sobre o bocal
de travertino de uma ruína.
Cézanne se distingue dos filmes habituais sobre arte que, desde Alain
Resnais e Luciano Emmer, e desde os vídeos institucionais produzidos
pelos museus, “visitam” os quadros ou relatam de maneira empática a vida
dos artistas. Não se trata, tampouco, de uma reconstituição que coloca o
pintor para falar a partir dessas memórias ou considerações teóricas.
Para os Straub, trata-se, em seus filmes anteriores, de falar de manei-
ra pessoal, mas tomando emprestado, retomando fielmente, um texto já
elaborado por um outro. Passar de um texto em si a um texto para eles.
Mais do que qualquer outro de seus filmes, eles se identificaram com
um outro. É essa provavelmente a razão para que usem tanto sua voz
em Cézanne. Ora, os propósitos de Cézanne que atravessaram o tempo
até nós são suspeitos, incertos quanto à sua verdadeira origem. Joachim
Gasquet, que os relatou, talvez tenha restituído para a posteridade uma
narração fantasiosa e readaptada quinze anos após a morte do pintor.
O texto reúne inclusive observações de Maurice Denis e Émile Bernard
mescladas a lembranças pessoais.
Mas em vez de abraçar uma pesquisa histórica e filosófica, os Straub
livram o texto do máximo de referências culturais e filosóficas para não
reter senão o que, nos supostos propósitos de Cézanne, lhes possa ser-
vir. Em outras palavras, os propósitos com os quais eles identificam seu
método como cineastas. Um fenômeno de mimetismo se instaura então
entre a palavra de Cézanne e a dos Straub que poderia ser resumido pelo
desígnio comum a Cézanne e aos Straub: eles desejam ser os primeiros e
os mais simples em sua arte.
De imediato, em Cézanne, a articulação de elementos radicalmente
Escritos sobre a obra 207

heterogêneos se impõe, a associação brutal de elementos que a princípio


não têm razão para estarem reunidos e que, no entanto, produzem uma
continuidade a partir dessa própria descontinuidade, uma contaminação
entre todos os elementos a partir de uma paradoxal tomada de posição
pela descontinuidade e pela alteridade instalada no e através do filme. Os
Straub adotam uma posição dialética de distanciamento e dependência
entre aquilo que compõe o filme, ou seja, os elementos pictóricos, foto-
gráficos e fílmicos, planos fixos e travellings. E é justamente aí que eles se
pretendem os mais simples nessa arte da aproximação e da justaposição
violenta. A decisão de filmar as pinturas com suas molduras acentua a
heterogeneidade radical entre a pintura e o resto, uma impossibilidade
de fazer a junção, deliberadamente demonstrada, uma recusa em restituir
um mundo global que aboliria a distinção de matérias e expressões, da
representação e do real.
Cézanne está atrelado a um princípio de montagem que tem mais a
ver com a exposição do que com a montagem cinematográfica tal como
é habitualmente concebida. Os retratos fotográficos, tirados por Derain,
de Cézanne pintando, as partes “documentárias” filmadas em Aix e os tre-
chos de filme (Madame Bovary e A morte de Empédocles) são literalmente
unidos pelas pontas sem que haja aparentemente uma busca particular
de pontuação fílmica. O encadeamento de materiais figurativos do filme,
apesar destes serem heterogêneos, tem mesmo tendência (ainda mais
que em outros filmes dos Straub) a abolir toda sensação de intervalos.
Estamos diante do que Christian Metz designou pela expressão
“montagem seca”: “Certos cineastas suprimem, intencionalmente, a pon-
tuação nos momentos precisos em que mais a esperaríamos, e encadeiam
por um corte seco duas sequências extremamente diferentes quanto ao
objeto, à tonalidade, etc. Não se trata mais de uma ‘rítmica’ geral, mas
de um efeito particular de ruptura brutal. O corte seco, aqui, merece ser
chamado de montagem seca (ou ‘montagem seca com efeito’)”4.
Se encontramos na descrição de Metz a aparência da montagem dos
Straub em Cézanne, é preciso relativizar a adequação dessa descrição,
pelo fato de que se trata de um documentário que tolera, de maneira
mais evidente, a passagem brutal entre elementos disparatados. Trata-se
antes de uma colagem do que de uma montagem, de uma disposição de

4. Christian Metz. L’énonciation impersonnelle ou le site du film (Paris: Méridiens Klincksieck,


1991, p. 131). [N.O.] complementada pelo tradutor.
Straub, Hölderlin, Cézanne 208

blocos. Em outros termos, uma disposição de quadros sublinhada pelas


telas reais de Cézanne filmadas com suas molduras, em contraste com as
fotografias de pinturas geralmente utilizadas nos filmes sobre arte.
A respeito dos Straub, e bem antes de Cézanne, Gilles Deleuze notava
os “pedaços de espaço desconectados, desencadeados (que) são objeto
de um re-encadeamento específico por cima do intervalo; a ausência de
acordo é apenas a aparência de uma ligação que pode se fazer de infinitas
maneiras”5. Essa concepção do filme poderia se assemelhar a um arquipéla-
go de blocos de imagem. Um arquipélago, ou seja, uma organização de ilhas
em que os intervalos entre elas fazem parte do conjunto. O mar e a terra,
os vazios e os cheios participam igualmente da realidade do arquipélago.
O arquipélago evoca a poética de Hölderlin. Um texto do poeta se
chama justamente Arquipélago. Hölderlin canta o arquipélago das ilhas
gregas, concebido naturalmente como um todo que se reúne segundo um
princípio de “montagem seca” — se me permito dizê-lo, a terra e o mar, as
frases entre elas — de acordo com um princípio que não tolera nenhuma
gordura retórica. A paisagem meio marinha e meio terrestre traduzida
por Hölderlin por meio das palavras é o reflexo da organização das pró-
prias palavras: “A terra que tuas ondas contornam, o país encantador de
suas filhas. Nenhuma ilha perdida! Oh, nenhuma das flores de tuas águas
está perdida!”6
Foi Pasolini que, de maneira bastante precoce, em 1970, melhor pres-
sentiu o domínio em que se inseria a concepção de montagem dos Straub.
Vinte anos antes, portanto, dessa concepção ser exposta deliberadamen-
te como verdadeira tomada de posição estilística em Cézanne. Acerca de
Othon, realizado em 1970, Pasolini escreve: “Straub não trabalhou na mon-
tagem: a autopunição sadomasoquista (eis-me, espectador, a te torturar,
eis-me espectador a me torturar), Straub a saboreou inteiramente quando
pensava e rodava seu filme, constituído de uma série de planos-sequência
elementares, simplesmente reunidos uns aos outros na mesa de monta-
gem. A ausência de montagem é justamente um elemento provocador: a
liberdade em relação ao código cinematográfico obtida por meio do sa-
crifício de si mesmo, pelo fato de se dar como alimento às feras, pelo fato
de se transformarem em ’monstros’ provocadores e mártires, corujas e
vítimas — tende, então, violentamente em direção à negação do cinema,
5. Gilles Deleuze, A imagem-tempo (São Paulo: Editora Brasiliense, 2005, p. 290). [N.O.] comple-
mentada pelo tradutor.
6. Hölderlin, “Pleiade”, p. 826. [N.O.]
Escritos sobre a obra 209

em direção a uma decepção quase total que, se ela não é o suicídio, não é
menos uma espécie de enclausuramento; uma ascese, não desprovida de
humor, que abandona o mundo à sua ‘imbecil’ vontade de linchamento e a
seu retorno aos hábitos7”. Esse magnífico texto exprime “o encadeamento
desencadeado”, essa distribuição dialética de planos-sequência que se
sustentam juntos sem qualquer cola de pontuação e cujo reencadeamento
que resta a ser executado pelo espectador é, justamente, de acordo com
Deleuze, a leitura: “Ler, é reencadear em vez de encadear, é girar, revirar,
em vez de seguir do lado direito: uma nova analítica da imagem8”.
Mas o que vêm fazer esses fragmentos repentinos de Empédocles
num filme dedicado a Cézanne?
Houve, então, cinco filmagens de A morte de Empédocles, primeira
versão da tragédia de Hölderlin (1798), cada uma com 147 planos. As se-
quências de Empédocles que são integradas a Cézanne são as tomadas de
uma quinta filmagem.
O primeiro trecho de Empédocles inserido em Cézanne é dedicado
à luz: “Ó luz celeste, os humanos não me haviam ensinado — já desde
muito quando meu corpo lânguido não conseguia encontrar a toda viva
então eu me virava em tua direção…”. Esse trecho segue os propósitos de
Cézanne, que se interroga: “O acaso dos raios, a marcha, a infiltração, a
encarnação do sol através do mundo, que jamais o pintará, que o contará,
isso seria a história física do mundo, a psicologia da terra.”.
De certa forma, Hölderlin responde de antemão a Cézanne. É ali, igual-
mente, que reside a dialética straubiana: a resposta antecede a questão,
o que não constitui uma das menores negações dos princípios ortodoxos
do filme documentário.
O segundo trecho é de um plano que enquadra o vulcão Etna. Esse
trecho é precedido pelas seguintes palavras de Cézanne: “De pincelada
em pincelada, a terra reviveria. De tanto lavrar meu campo, uma bela pai-
sagem aí cresceria.”. O trecho termina com essas palavras de Empédocles:
“Então suba e brilhe mais um dia, são eles que há muito estão ausentes,
os vivos, os bons deuses”. E frutas de Cézanne acompanham imediata-
mente essas últimas palavras, segundo um princípio de aparição súbita
e violenta, a ponto de fisgar um pouco o fim do trecho de Empédocles.
Um sentimento de “inabilidade” da montagem é, assim, engendrado, uma

7. Pier Paolo Pasolini. L’Experience hérétique. (Paris: Ramsay poche cinéma, 1976, p. 131). [N.T.]
8. A Imagem-tempo, p. 291. [N.O.] complementada pelo tradutor.
Straub, Hölderlin, Cézanne 210

precipitação da junção, uma impaciência do encaixe cuja consequência é


uma espécie de síncope visual e mental para o espectador, entre os “bons
deuses” invocados por Empédocles e as frutas pintadas por Cézanne. O
historiador de arte Meyer Schapiro notava justamente, a respeito das
inúmeras maçãs pintadas por Cézanne, essa ambivalência da fruta, sua
incerteza visual e simbólica entre dois regimes de existência: “apesar de
não mais estar na natureza, ela não se integrou ainda plenamente à vida
do homem. Suspensa entre o natural e a vida humana, ela existe mera-
mente para a contemplação”9.
Essa tomada de partido que aproxima o que não era destinado a
sê-lo — nesse caso, os “bons deuses” e as frutas — e a busca, na montagem,
das consequências mais violentas dessa aproximação são propriedade
particular do estilo de direção e montagem dos Straub. Esse estilo for-
nece por vezes esse estranho efeito de “desajeito”, de amadorismo, de
“quase”, de insuficiência de trabalho acurado, ao passo que, ao contrário,
conhecemos a precisão maníaca dos cineastas em todos os domínios.
O mais importante reside, no entanto, ainda além: essa potência fi-
gurativa que resulta da vontade de abolir o intervalo não é gratuita, não
é apenas formal. É também aquela que se exprime na lucidez de Cézan-
ne acerca das finalidades do ato de pintar: “Eu pinto minhas naturezas
mortas para o meu cocheiro, que não se interessa por elas. Eu as pinto
para que as crianças sentadas no colo de seus avôs as olhem enquanto
comem sua sopa e tagarelam. Eu não as pinto para o orgulho do Impera-
dor da Alemanha e a vaidade dos mercadores de petróleo de Chicago…
Seria melhor se me dessem uma parede de igreja, uma sala de hospital
ou de prefeitura e me dissessem ‘meta-se aí’, pinte-nos um casamento,
uma convalescência, uma bela colheita. Então talvez eu pusesse para
fora o que carrego no ventre, o que ali carrego desde que nasci e que
é a pintura”. Encontro inesperado entre duas incompreensões, duas re-
cusas por parte do povo: os cocheiros de Cézanne e os habitantes de
Agrigento que abandonam Empédocles. Os dois artistas, o pintor e o
filósofo, têm, entretanto, a certeza de trabalhar para aqueles mesmos
que lhes viram as costas. O espectador é obviamente remetido aos pró-
prios Straub: eles imaginaram filmar para algum outro senão o povo ope-
rário que não se interessa, mais do que outros, efetivamente, por seus

9. Meyer Schapiro. Style, artiste et société (Paris: Gallimard, 1982, p. 217). [N.O.] complementada
pelo tradutor.
Escritos sobre a obra 211

fillmes? Trata-se, portanto, de fazer com que Hölderlin e Cézanne, e às


vezes Empédocles e Cézanne, “se correspondam”. O sábio de Tübingen,
isolado às margens do Rio Neckar, dialoga com o misantropo provençal,
o velho pintor que, de seu retiro nos arredores de Aix, maltrata as modas
imbecis. Podemos, assim, mensurar o quanto a empreitada que consiste
em suprimir qualquer intervalo entre as sequências, em favorecer uma
proximidade que roça a sobreposição dos planos, é uma utopia estética
que Pasolini percebeu em sua hipótese provocadora de ausência de tra-
balho, de uma junção grosseira. Essa utopia estética se confunde com
uma utopia política, mesmo se a última é apresentada pelos Straub como
frustrada tanto em Cézanne quanto em Hölderlin. É sem dúvida aí que
desponta, imperceptivelmente, o pessimismo, a melancolia straubiana, a
convicção secreta de que tudo está perdido e que, por ser frequentemen-
te cedo demais, é simultaneamente… tarde demais.
Os dois filmes e sua relação tornam-se, então, mais evidentes. A ve-
neração da natureza é comum a ambos, e mesmo aos quatro: Cézanne,
Hölderlin, Empédocles, Straub. Nada desvia Cézanne da natureza, até que
os olhos a queimem; quanto a Hölderlin, ele se indigna pela terra não mais
ser habitada pelos deuses. A natureza, o respeito a ela e sua veneração
são indissociáveis dos deuses, que foram nela instalados pelos homens,
e os deuses de Hölderlin tendem a estar, graças à montagem straubiana,
“dentro” das frutas de Cézanne. Toda fronteira de pontuação é banida a
fim de favorecer essa fusão ou essa simultaneidade contra a fatalidade da
sucessão engendrada pela montagem. Hölderlin contamina o pintor de
Aix de um romantismo inesperado e, no sentido inverso, torna-se passível
de uma leitura moderna, materialista, no sentido de um “materialismo da
matéria” cézanniano. Compreendemos, então, que é esse método, a dire-
ção e montagem cinematográficas, que os Straub elegem para “arrancar”
Hölderlin do idealismo de Heidegger.
Os Straub citaram frequentemente a seguinte frase de Cézanne
em suas entrevistas: “Olhem para esta montanha. Outrora ela foi fogo”.
Deleuze se refere a ela e, na mesma ocasião, observa que Cézanne é há
muito tempo mestre dos dois cineastas10, e ele o faz cerca de cinco anos
antes da realização do filme. Deleuze acrescenta: “a imagem visual, em
Straub, é a rocha”11. A respeito da Sainte Victoire, Cézanne dizia ainda:

10. op. cit., p. 302. [N.O.] complementada pelo tradutor.


11. Idem, p. 290. [N.O.] complementada pelo tradutor.
Straub, Hölderlin, Cézanne 212

“esses blocos ardiam. Ainda há fogo neles…”. Ele falava também “da
sombra bebida por uma boca de fogo”. Os dois filmes são em definitivo
dedicados a duas montanhas que ardem, a Sainte Victoire, que Cézanne
apreende ainda em fusão, e o vulcão Etna, ainda em atividade. De fato,
a Sainte Victoire queima realmente em 1991. Todo seu contorno e seus
flancos são varridos por um imenso incêndio, que destrói toda a natureza
selvagem que a encobria. Em compensação, o Etna filmado pelos Straub
é um panorama verdejante para o cenário de Empédocles. Os Straub não
mostram a lava, nem as queimaduras do vulcão, e sim árvores, vento,
azul, o do céu: uma paisagem cézanniana. O subtítulo de A morte de
Empédocles é: “quando a terra voltar a brilhar verde para ti”.
“Dessa boa terra verde, meu olho não deve partir sem alegria”: não é
Cézanne que fala, e sim Empédocles…
A Sainte Victoire realmente queimada, representada no filme Cézan-
ne, deixa estupefato, apavora o espectador como um pecado humano,
um pecado muito negro, título do filme associado a Cézanne. Os dois
filmes conjugam esses estratos geológicos e essa lógica aérea de que fala
Deleuze a respeito dos filmes dos Straub, precisando, em 1985, portanto
bem antes da realização desse díptico montanhoso, que as qualidades
pictóricas e esculturais da imagem dos cineastas dependem de uma
potência geológica, tectônica, como nos rochedos de Cézanne12.
Enfim, esses dois filmes são frequentados pela sombra. Pecado negro
é varrido pelas nuvens que encarnam, com a palavra que sobe da terra
em direção ao céu, essa lógica aérea do cinema straubiano. Não há ne-
nhum plano do filme, composto de maneira geral por planos longos, que
não seja ameaçado pelo obscurecimento. Deliberadamente, os cineastas
integram em sua encenação essas variações de luz que inquietam o canto
hölderliano. Também Cézanne parava de pintar às dez da manhã, pois a
claridade diminuía…
Entre Cézanne e essa adaptação da terceira versão de A morte de
Empédocles, conhecida como Empédocles sobre o Etna, filmada em 32
planos, os Straub organizam, assim, uma tecedura, uma tecedura justa,
uma tecedura “seca”, como eu dizia anteriormente a respeito da mon-
tagem entre Hölderlin e Cézanne; uma tecedura poética e figurativa que
não pode tolerar nenhum espaço entre os dois filmes, nenhum vazio. A
associação entre os filmes é sutil, mas, ao mesmo tempo, de uma evidên-

12. Idem, p. 292. [N.O.] complementada pelo tradutor.


Escritos sobre a obra 213

cia absoluta. Como eu evoquei há pouco, os dois filmes são literalmente


instalados como as duas partes de um díptico.
Durante uma entrevista com os Straub, à época de Moisés e Arão,
Serge Daney comenta a dialética das relações entre Moisés e Arão e
observa que “algo estava unido, e em seguida separado, de tal maneira que
união e separação fossem dadas a ver ao mesmo tempo”13. Daney resumia,
na ocasião, o dispositivo do díptico enquanto articulação complexa que
não se reduziria à bipolaridade mecânica ou alternativa. Aparentemente,
nada legitima teoricamente as razões da articulação Cézanne/Empédocles.
No entanto, a análise iconográfica permite uma interpretação ao mesmo
tempo poética, figurativa e teórica desse díptico fílmico que constitui, no
final das contas, um único filme. É esse dispositivo que se transmite do
próprio interior de Cézanne à associação dos dois filmes, que possui valor
interpretativo. É o que explica que os Straub tenham concebido sua dire-
ção e montagem de tal maneira que nada, paradoxalmente, sublinhe, e,
portanto, “embaralhe”, a passagem entre as sequências — de um quadro
de Cézanne a um plano de Empédocles — assim como a passagem entre os
dois filmes — de Cézanne a Pecado negro. Esse díptico obriga uma espécie
de conversão do olhar: passagem de um filme dedicado à arte de um pintor
à adaptação cenográfica e filmada de um poema filosófico; conversão, por-
tanto, de uma atividade do olhar em atividade do pensamento, conversão
da pintura em ideia, e é essa verdade que consegue emergir. Ao articular
os dois filmes em dobradiça, a questão é, para os Straub, produzir “uma
sensação complexa que conjugaria o acoplamento e a ressonância”14.
A ausência de montagem, uma aparente ausência, é um elemen-
to provocador, como diz Pasolini, uma vez que há, em realidade, mais
montagem do que em qualquer outro lugar. Danièle Huillet bem definiu
sua concepção: “Quando filmamos com som direto, não podemos nos
permitir brincar com as imagens: temos blocos que possuem certo com-
primento e nos quais não podemos passar a tesoura assim, apenas para
nos agradar, para criar efeitos15”. A direção straubiana se cumpre, assim,
segundo uma concepção da montagem por blocos, percebida por alguns
como algo grosseiro. Na verdade, as imagens seriam ilhas e o som seria o
mar, unidos e separados segundo o princípio de um arquipélago.

13. Cahiers du cinéma, n° 305. [N.O.]


14. Gilles Deleuze, Logique de la sensation. (Paris: Editions de la Différence, 1981)
15. Cahiers du cinéma n° 260–261.
214

Cinemeteorologia1
Serge Daney
20 de fevereiro de 1982

Os Straub passam um dia no campo. Na França e depois no Egito, eles


captam signos formais: toda revolução é um pé de vento. Mas, novamente,
é preciso saber filmar o vento.
Qual é o ponto comum entre John Travolta e Jean-Marie Straub? Ques-
tão difícil, concordo. Um dança, o outro não. Um é marxista, o outro não. Um
é muito conhecido, o outro menos. Ambos têm seus fãs. Eu, por exemplo.
No entanto, basta ver seus filmes lançados no mesmo dia nas telas
parisienses para compreender que uma mesma preocupação os atormen-
ta. Uma preocupação? Uma paixão, de preferência. A do som. Faço alusão
a Blow Out (dirigido por Brian De Palma) e a Cedo demais, tarde demais
(coassinado por Danièle Huillet), dois bons filmes, duas magníficas tri-
lhas sonoras.
O cinema são “imagens e sons”, talvez você insista em pensar. E se
fosse o contrário? E se fossem sons e imagens? Sons que provocam a ima-
ginação do que vemos e a visão do que imaginamos? E se o cinema fosse
também a orelha que se apruma — tal a de um cachorro, ereta — quando o
olho não se orienta mais? Num terreno descoberto, por exemplo.
Em Blow Out, John Travolta interpreta o papel de um louco dos sound
effects que, a partir de um barulho, identifica um crime e seu autor. Em
Cedo demais, tarde demais, Straub, Huillet e seu engenheiro de som ha-
bitual, o grande Louis Hochet, perdem-se no interior da França antes de
começarem a errar ao longo do Nilo e em seu delta, no Egito. A partir dos
ruídos, de todos os ruídos, dos mais ínfimos aos mais finos, eles identifi-
cam também um crime. O local do crime: a terra; as vítimas: os campone-
ses; as testemunhas: as paisagens. Quer dizer, as nuvens, os caminhos, a
grama, o vento.

1. Publicado originalmente no jornal Libération, em 20 de fevereiro de 1982, e posteriormente


incluído na coletânea de textos do autor, Cine Journal (Paris, Cahiers du cinéma, 1998), com
o título Trop tôt, trop tard de Jean-Marie Straub et Danièle Huillet. Traduzido do francês por
Tatiana Monassa.
Escritos sobre a obra 215

Em junho de 1980, os Straub foram filmar durante quinze dias no


interior da França. Eles foram vistos em lugares tão improváveis quan-
to Tréogan, Mottreff, Marbeuf ou Harville. Eles foram vistos rondando
próximo a grandes cidades: Lyon, Rennes. Sua ideia, aquela que preside
a execução desse opus 12 de sua obra (vinte anos de cinema já!), era de
filmar tais como são hoje um certo número de lugares citados numa carta
enviada por Engels ao futuro desertor Kautsky. Nessa carta (lida em off
por Danièle Huillet), Engels descreve, baseado em números, a miséria das
áreas rurais às vésperas da Revolução Francesa. Os lugares, sem dúvida,
mudaram. Em primeiro lugar, eles estão desertos. O interior da França,
diz Straub, tem um “aspecto de ficção científica, de planeta abandona-
do”. Talvez as pessoas vivam nele, mas não o habitam mais. Os campos,
os caminhos, as cercas, as paredes de árvores, são marcas da atividade
humana, mas os atores são os pássaros, alguns carros, os ruídos, o vento.
Em maio de 1981, os Straub estão no Egito e filmam outras paisagens.
O guia, dessa vez, não é mais Engels, mas um marxista mais recente, o
autor das recentemente famosas La lutte de classes en Égypte. Mahmoud
Hussein2. Off novamente, a voz de um intelectual árabe narra em francês
(mas com sotaque) a resistência camponesa à ocupação inglesa, até a
revolução “pequeno-burguesa” de Neguib em 1952. Uma vez mais, os cam-
poneses se revoltam cedo demais e chegam tarde demais quando se trata
do poder. Essa repetição obsessiva é o “conteúdo” do filme. Tal um mo-
tivo musical, ele é apresentado logo no início: “os burgueses aqui foram
como sempre muito covardes para defender seus próprios interesses /
desde a Bastilha, a plebe tem que fazer todo o trabalho” (Engels).
O filme é, pois, um díptico. Um, a França. Dois, o Egito. Não há ator,
nem mesmo personagens, e, sobretudo, não há figurantes. Se há um ator
em Cedo demais, tarde demais, é a paisagem. Esse ator tem um texto: a
História (as paisagens que resistem, a terra que permanece) da qual ele
é o testemunho vivo. Esse ator interpreta com maior ou menor talento:
a nuvem que passa, um alvoroço de pássaros, um conjunto de árvores
dobradas pelo vento, uma clareira, é disso que é feita a interpretação da
paisagem. Essa forma de interpretar é meteorológica. Não vimos algo
assim há muito tempo. Desde o cinema mudo, exatamente.

2. A obra de Mamoud Houssein, sem tradução em português, foi publicada originalmente como
“la lutte de classes en Egypte de 1945 a 1968”, (Paris, François Maspero, 1969). Uma 2a edição
foi lançada dois anos depois com o título “la lutte de classes en Egypte (1945 — 1970)”. (Paris,
François Maspero, 1971). [N.E.]
Cinemeteorologia 216

Vendo Cedo demais, tarde demais (sobretudo a primeira parte), lem-


brei-me de um outro filme, rodado em Hollywood em 1928 pelo sueco
Victor Sjöstrom, O vento. Esse filme magnífico mostrava Lillian Gish en-
louquecendo com o barulho do vento. O filme era “mudo”, e isso só lhe
conferia mais força. Qualquer um que tenha visto O vento sabe que esse
filme é uma alucinação auditiva. Nunca houve “cinema mudo”, aliás, ape-
nas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do especta-
dor, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as
imagens; as do vento, por exemplo.
Foi preciso esperar o cinema sonoro para que o silêncio tivesse uma
chance. E, ainda, Bresson é otimista quando escreve “o cinema sonoro
inventou o silêncio”; inventou a possibilidade do silêncio, apenas. Guar-
demos o exemplo do vento. Não temos grandes lembranças do vento nos
filmes dos anos trinta, quarenta, cinquenta. Ou melhor, eram tempestades
que faziam ooouuuh! nos filmes de pirata. Mas o vento do norte, aquele
entra pelas frestas, as correntes de ar, todos esses ventos tão próximos
do silêncio? E o Zéfiro? E a brisa noturna? Não, foi preciso esperar os
anos sessenta, as pequenas câmeras com sincronia, os cinemas novos.
Foi preciso esperar Straub e Huillet.
Devido ao ponto de refinamento que eles atingiram na prática do
som direto, ocorre um fenômeno bem estranho nos seus filmes recentes
(como Da nuvem à resistência). Encontramos as alucinações auditivas
próprias ao cinema “mudo”. O mesmo fenômeno de certos filmes recentes
de alguns “velhos” da Nouvelle Vague: Rouch (Ambara Damba), Rohmer
(A mulher do aviador)3, Rivette (Le Pont du Nord). Como se o som direto
devolvesse a falta de som. Como se, de um mundo integralmente sonoro,
ressurgisse um corpo de ator vagamente burlesco.
Normal: quando o cinema era “mudo”, estávamos livres para em-
prestar-lhe todos os ruídos. Foi quando ele começou a falar, e sobretudo
após a invenção da dublagem (1935), que nada mais resistiu ao estouro
de diálogos e de música. Os ruídos baixos, imperceptíveis, não tiveram
chance alguma. Foi um genocídio.
Recuperamo-nos lentamente. Na América, por uma perversão de
efeitos sonoros (ver Travolta), na França pela reeducação do ouvido,
esse grande mutilado (ver Straub). Cedo demais, tarde demais é, que eu

3. Títulos originais: Le Dama d’Ambara (Jean Rouch, 1974–1980); La Femme de l’aviateur (Eric
Rohmer, 1980); Le Pont du Nord (1981) de Jacques Rivette. [N.E.]
Escritos sobre a obra 217

saiba, um dos raros filmes que, depois do de Sjöstrom, filmou o vento.


É preciso vê-lo — e escutá-lo — para acreditar. É como se a câmera e a frágil
equipe de filmagem tomassem o vento como uma vela e a paisagem como
um mar. A câmera brinca com o vento, segue-o, ultrapassa-o e retrocede,
como uma bola de bilboquê. É como se a câmera estivesse presa por uma
coleira ou submetida a uma outra máquina, como aquela inventada por
Michael Snow no filme siderante que é La Région centrale (em Snow tam-
bém o terreno de jogo da câmera é uma espécie de planeta abandonado).
Ver e escutar ao mesmo tempo; mas é impossível, dirá você! Certa-
mente, mas, um: os Straub são corações valentes; e, dois: as viagens ao
impossível são um tanto formadoras. Com Cedo demais, tarde demais,
uma experiência é buscada conosco, em nós: há momentos em que come-
çamos vendo (uma grama que o vento arqueia), antes de escutar (o vento
responsável por esse arqueamento). Em outros momentos, escutamos
primeiro (o vento), depois vemos (a grama). A imagem e o som são sin-
crônicos e, no entanto, a cada instante cada um de nós pode experimentar
a ordem em que acomoda suas sensações. É, pois, um filme sensacional.
Essa é a primeira parte, o deserto francês. As coisas acontecem de
outra forma no Egito superpovoado. Lá, os campos não são mais va-
zios, há fellahs que vagam; não se pode mais ir a qualquer lugar, filmar
qualquer um de qualquer jeito. O terreno do jogo se torna novamente o
território dos outros. Os Straub concedem uma grande importância ao
fato de que um cineasta não deveria incomodar aqueles que filma (quem
conhece seus filmes sabe que, quanto a isso, eles são intransigentes). É
preciso, então, ver a segunda parte de Cedo demais, tarde demais como
um jogo estranho, feito de aproximações e recuos, no qual os cineastas,
menos meteorologistas do que acupunturistas, buscam o lugar — o único,
o bom — de onde sua câmera poderá captar as pessoas sem as incomodar.
Dois escolhos, imediatamente: o turismo exotomaníaco e a câmera invi-
sível. Tão perto, tão longe. Em uma longa “cena”, a câmera está plantada
diante da porta de uma usina e mostra os operários egípcios que passam,
entram e saem. Muito perto para que eles não vejam a câmera, muito
longe para que eles fiquem tentados em ir em sua direção. Encontrar esse
ponto, esse ponto moral, é aí que está toda a arte dos Straub; talvez com
a esperança de que, para os “figurantes” filmados dessa forma, a câmera
e a frágil equipe escondida bem no meio de um campo ou de um terreno
vazio sejam apenas um acidente da paisagem, um simpático espantalho,
mais uma miragem trazida pelo vento.
Cinemeteorologia 218

Esses escrúpulos surpreendem. Eles não são correntes. Filmar, sobre-


tudo no interior, é em geral devastar tudo, irromper na vida das pessoas,
fazer delas uma vinheta de camponês, do regionalismo, do regresso, do
ranço, do museu. Porque o cinema pertence à cidade, e ninguém nunca
soube ao certo o que seria um “cinema camponês”, ancorado na vivência,
no espaço-tempo camponês. É preciso, então, ver os Straub, habitantes
das cidades, navegantes em terra firme, perdidos. É preciso vê-los no
meio do campo, com o dedo umedecido erguido para pegar o vento e as
orelhas esticadas em direção do que ele diz. Então, a sensação mais nua
serve de bússola. Todo o resto, o ético e o estético, o fundo e a forma,
deriva disso.
Podemos não suportar a experiência. Isso foi verificado. Podemos
não suportar mais a própria ideia de experiência. Isso se verifica todos os
dias. Podemos definir que filmar apenas o vento é uma operação ridícula.
O vento, justamente. Podemos também passar ao largo do cinema quan-
do ele se arrisca a sair de si mesmo.
219

Othon e Jean-Marie Straub1


Jean-Claude Biette

Nós sabemos que nos filmes de Straub, o texto falado constitui o elemen-
to essencial. Ele mesmo o disse em entrevistas — e era preciso até agora
acreditar nele, porque nem o Bachfilm, no qual a narração se confrontava
fortemente às partituras tocadas e às durações invasivas, nem Não recon-
ciliados, no qual o acesso obrigatório a uma realidade relativamente reco-
nhecível e diretamente compreensível confrontava o texto aos seus ecos,
fora do filme, em nós, mas a uma distância muito pequena para permitir
a ascensão de um trânsito livre entre as camadas do passado registradas
no filme e a espessura móbil do presente, tinham como unidade de medi-
da um texto. Ora, desta vez a matéria do último filme de Straub, Os olhos
não querem sempre se fechar ou Talvez um dia Roma se permita fazer sua
escolha, não é nada mais do que o texto integral — e apenas ele — de uma
das últimas tragédias de Corneille: Othon.
As camadas do passado são mais do que nunca espaçadas e diver-
sificadas. Existe uma espécie de núcleo primeiro da Roma imperial — os
conflitos, os complôs — distante e pouco conhecida, de onde surge a
primeira história feita por Tácito sobre a luta pelo poder, que serve de
pesquisa, de medida e de interrogação a este Othon sobre o qual Cor-
neille alerta desta maneira ao leitor: “O tema é adaptado de Tácito, que
começa suas “histórias” por esta aqui; e não tem nenhuma delas que
eu tenha adaptado para o teatro com maior fidelidade, e à qual tenha
trazido maior invenção. Os caracteres dos personagens daqueles que
aqui faço falar são os mesmos que na obra deste incomparável autor, que
eu traduzi tanto quanto possível”, e adiante: “Eu não quis propor nada
além da história”.
Em que consistirá portanto, para Straub, adaptar ao presente este
texto intitulado Othon? Em escolher manter os diálogos alexandrinos de
Corneille com a maior diversidade possível de sotaques, talvez para fazer

1. “OTHON et Jean-Marie Straub” in Cahiers du cinéma, número 208, março 1970. Tradução de
Bruno Carmelo.
Othon e Jean-Marie Straub 220

surgir a unidade do verbo clássico e para que a pobreza voluntária, sis-


temática, do vocabulário de Corneille seja redistribuída em vozes o mais
diferentes possíveis umas das outras, o mais individualizadas possíveis.
Desta maneira, o conjunto do texto deverá se encarnar: não num estilo
uniforme de dicção que se associaria a uma teoria da interpretação dos
textos que Straub teria imposto aos seus atores, ao texto de Corneille, ao
filme, mas em uma recusa absoluta de qualquer estilo que permite captar
as amostras mais variadas e mais involuntárias das culturas inclusas de
modo mais tangível para o filme.
Ora, esta operação é executada com algumas condições, condições
carregadas de contradições: o trabalho mais sistematicamente intensi-
vo de submissão ao texto. Houve, de fato, cerca de três meses de ensaios
diários com os atores, e depois, à medida que o texto era memoriza-
do cena por cena, os ensaios foram feitos em relação aos planos — já
que eles também são blocos unitários para os atores — e em seguida
os ensaios foram feitos nos próprios locais: terraço do Palatino com
vista para Roma para os três primeiros atos; jardim barroco com fonte
para o quarto ato, e chanfro de pedras nas termas do Palatino para o
quinto ato. Desde o início foram dadas indicações a respeito da posição
dos atores no quadro (quase imóveis, o que permitirá, ao máximo, que
durante a filmagem se concentrem no texto) e de seus deslocamentos
(que permitirão, ao máximo, que durante a filmagem haja uma espécie
de esquecimento do texto quando eles andarem ou — eu explicarei isso
mais tarde — um obstáculo para o outro ou os outros no quadro) no
interior do plano.
Ora, as falas são repartidas de tal modo que Plautine é dotado de
um leve sotaque suíço; Camille, de um sotaque florentino; Othon, de um
leve sotaque romano; Albin de um sotaque ítalo-canadense; Vinius de
um sotaque inglês; Lacus de um sotaque da Lorena; Martin de um sota-
que parisiense; Albiane de um sotaque romeno; Flavie de um sotaque
de Cremona; Galba de um sotaque difícil de determinar; Atticus de um
sotaque argentino e Rutile de um forte sotaque romano. A necessidade
de dizer em frente à câmera um texto sem mudar uma sílaba sequer —
e para a maioria dos atores (não franceses) vai ser necessário contorcer
o sotaque até a emissão correta dos sons escritos por Corneille —, de
acordo com uma literalidade total — e tendo como guia indicações de
ritmo e não de intensidade (andante e allegro são a norma, o adagio é
a exceção) —, deixava entretanto a cada ator uma parte de contribui-
Escritos sobre a obra 221

ção pessoal que ele não poderia usar como movimento de identificação
ao personagem, como um elo originário de uma ideia interpretativa
necessariamente limitada (palavras tão sedutoras quanto âme [alma]
ou désastres [desastres] serão impiedosamente aparadas), mas que ele
deixaria escapar contra a sua vontade. Enfim, poderíamos temer a intru-
são de uma espontaneidade, de uma naturalidade, de uma profundidade
em busca de se expressar. Mas os obstáculos da memória, da tensão
nervosa (havia uma grande maioria de não atores; cabe ao espectador
descobrir, se ele puder, quem era ou não um ator profissional), da esta-
ção contínua do sol do fim de agosto, e acima de tudo da tensão rítmica
em manter custasse o que custasse as diferenças possíveis de uma lín-
gua para outra, impedem qualquer manifestação psicológica, qualquer
intervenção individualista decidida, para permitir aflorar unicamente
os acidentes rítmicos. O que se manifesta de fato nos atores deste filme
não é uma liberdade explosiva como por exemplo a de Marc’o em Les
idoles2 ou a de Chytilova em As pequenas margaridas3, é, ao contrário,
graças à repetição microcósmica metódica de uma estrutura repressiva,
uma estrutura livremente aceita como um trabalho pelos atores, a atu-
alização do que existe de mais profundo em cada pessoa — obviamente
não os flertes caros aos naturalistas e aos pós-neorrealistas — mas os
traços anônimos, múltiplos: olhares, quando determinada a sua direção,
diversamente distribuídos, hierarquia musical e tonal das palavras na
frase (o verso também constitui um obstáculo), tudo isso se opondo
à expressividade burguesa, traços portanto visíveis e audíveis do duo
liberdade-opressão, reconstituído neste caso a partir de elementos
relativos a uma cultura historicamente analisável (a nossa, hoje), mas
traços acima de tudo incômodos e indecifráveis, porque distantes de
ilustrar o texto de Corneille, de tornar o acesso ao mesmo mais fácil ou
de propor explicações e esclarecimentos de uma vez por todas, elas se
comparam ao mistério, distribuem-no por todas as partes, quebram a
lógica aprendida com o verso, e dissipam as balizas ao se imporem, sem
prevenir, ao texto.
Nós podemos fornecer informações complementares sobre o filme
de Straub e evocar o que se passa, citando esta relação de Flavie no
segundo ato:

2. Les idoles, de Marc’o, 1968.


3. Sedmikrásky, de Vera Chytilová, 1966.
Othon e Jean-Marie Straub 222

Othon à princesa fez um galanteio


Mais um homem de coração que um verdadeiro amante.
Sua eloquência jovial, encadeava com graça
A desculpa do silêncio a esta audácia,
Em termos bem selecionados acusava o respeito
De tanto haver retardado esta homenagem suspeita.
Seus gestos harmoniosos, seus olhares mensurados
Não deixavam nenhuma palavra partir para a aventura:
Não se via senão pompa em tudo que dizia:
Até em seus suspiros a beleza reinava,
E seguido passo a passo de um esforço da memória
Que era mais fácil de admirar do que acreditar.
A Camille parecia suficiente o presente aviso;
Ela teria melhor apreciado os discursos menos seguidos:
Eu o vi em seus olhos, mas esta desconfiança
Tinha em seu coração muito pouca inteligência
Suas justas suspeitas, seus desejos indignados
Foram imediatamente destruídos ou desdenhados:
Ela quis acreditar em tudo; e alguma prudência
Que soube guardar o amor do qual fora advertida
Via-se pelo pouco que ele deixava escapar
Que ela sentia prazer deixando-se enganar;
E que se alguma vez o medo da obrigação
Forçava o triste Othon a suspirar sem simulação
Repentinamente a cobiça de reinar em seu coração
Atribuía ao amor estes suspiros de dor.
223

O estranho tribunal1
Sobre O retorno do filho pródigo — Humilhados
Jacques Rancière

Como nenhum outro. Os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub são


em muitos aspectos únicos e não se parecem, efetivamente, com quais-
quer outros. É de certa maneira o cinema reinventado. Não apenas na
forma, admiravelmente entalhada, com uma atuação singular dos atores
e um trabalho único das vozes, mas também e sobretudo no conteúdo.
Pois o que Straub e Huillet propõem, há quase 30 anos, é uma crítica inci-
siva ao capitalismo. A mais radical que se possa imaginar. E que engloba,
obviamente, a crítica da representação fílmica habitual. Assim, não é de
se surpreender que os filmes deles sejam boicotados frequentemente
pelos grandes festivais e pelos principais exibidores. É por isso, também,
que é indispensável vê-los…
O díptico de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet O retorno do filho
pródigo — Humilhados é extraído do romance de Elio Vittorini Les Femmes
de Messine2, história de uma comunidade efêmera estabelecida no final
da Segunda Guerra Mundial na Itália por indivíduos vindos de diversas
regiões. A intriga de um livro nunca interessa muito a Straub e Huillet. O
trabalho deles é o de subtrair as tensões — no duplo sentido do termo: dos
confrontos de pensamentos e das diferenças de intensidade sensíveis. Do
livro Femmes de Messine, eles mantiveram duas pequenas passagens: num
filme precedente, extraído do mesmo romance, Operários, camponeses,
eram quatro capítulos constituídos de monólogos cruzados, nos quais a
comunidade operária e camponesa fala de si mesma, com a argumentação
de suas lutas e a afirmação de sua potência sensível.
Enquanto O retorno do filho pródigo filma esta apresentação da comu-
nidade, Humilhados isola os episódios em que esta comunidade é brutal-
mente confrontada à lei econômica e política externa: o término da guerra,
a República e o milagre econômico em pleno acontecimento.
A sequência parece não ter problemas. Não é o caso. A direita lógica
1. “L’étrange tribunal”, publicado no Le Monde Diplomatique, abril de 2003. Traduzido por
Bruno Carmelo.
2. Elio Vittorini, Les Femmes de Messine, Gallimard, 1967.
O estranho tribunal 224

que simpatiza com as utopias antes de sacrificá-las à dialética da história


não é a posição de Straub-Huillet. O que os seduziu no livro de Vittorini,
foi o fato de terem reconhecido na obra a mesma tensão que é o motor
do seu cinema e do seu marxismo: uma tensão que seria resumida por
dois nomes, Bertolt Brecht e Friedrich Hölderlin: o artista que quis com o
maior rigor fazer teatro com uma dialética marxista; e o poeta que foi um
dos primeiros a conceber esta revolução das formas do mundo sensível
cujo materialismo marxista retomou a ideia ao seu modo.
Brecht e Hölderlin: por um lado, o jogo dialético dos pensamentos
representados por corpos para desconstruir os mecanismos da domi-
nação e os seus efeitos sobre os dominados; por outro, a afirmação da
nova comunidade sensível e do perigo daqueles que se aventuram pelo
desconhecido. A arte de Danièle Huillet e de Jean-Marie Straub sempre
se instalou entre estes dois polos, correndo o risco de manifestar este
secreto parentesco.
Na época de Lições de História, eles davam uma importância particu-
lar ao cinismo dos senadores romanos, distinguindo no seu confortável
jardim os “negócios de Senhor Júlio César”, ou seja, a lei do lucro, triun-
fando através das conquistas guerreiras e das revoluções do palácio. É
também uma lição de economia política que, em Humilhados, é jogada
na cara dos artesãos da comunidade pelos representantes da nova Itália.
Mas o sentido da lição de história e do dispositivo das vozes que a enun-
ciam e dos corpos que a recebem mudou.
Operários, camponeses parecia inclusive excluir toda forma de lição.
A comunidade no filme escapava à lógica que confere a toda história
um fim e aos bons sonhos um final triste. As múltiplas brigas iniciadas
pelos protagonistas — operários/camponeses, chefes/massas, homens/
mulheres, desertores e fiéis — acabavam por se misturar num mesmo
tom fundamental, no lirismo de uma palavra que dizia, na língua do mais
forte, o poder dos construtores do novo mundo, encarnada no gosto e
no cheiro de um fogo de urze, do cozimento da ricota ou de uma excur-
são em busca de louros. A comunidade não tinha fim, apenas momentos
sensíveis, presentes para sempre. Frequentemente inclinados para ler
o caderno contendo o texto, os protagonistas levantavam muitas vezes
para desafiar um espectador imaginário a que o texto se referia com uma
interrogação irônica: “o inquisidor, o juiz, Deus?”.
Sem fim de percurso, sem tribunal ou brigas da história. Em frente ao
juiz ausente existia, tanto em Operários, camponeses quanto em Sicília!,
Escritos sobre a obra 225

a mesma figura da mulher do povo, encarnada pela mesma atriz, Angela


Nugara, afirmando com a maneira eloquente dos dramaturgos a capacida-
de coletiva ou a possessão de uma “vida para si”. Ora, dos doze protago-
nistas de Operários, camponeses, apenas ela desapareceu em Humilhados,
substituída por um velho camponês que se manifesta com um simples
gesto de mão para pedir a palavra, que não lhe é concedida. Este desa-
parecimento é simbólico, assim como a substituição de uma música de
apocalipse, extraída de Varese, ao canto de esperança de uma cantata de
Bach.
A perspectiva mudou brutalmente. O presente da comunidade tem
um fim. O tribunal da história de fato aconteceu, menos para sentenciar
do que para humilhar os homens e as mulheres da comunidade. Estes, de
pé sobre um morro, em plena luz, com suas roupas envelhecidas, os olhos
muitas vezes baixos, as mãos às vezes atrás das costas, são submetidos
ao fogo cruzado de juízes posicionados logo abaixo sobre o barranco
fresco, com a certeza de suas razões.
Um enigmático manipulador. Nada mais de cadernos. O procurador
e os três juízes conhecem a lição — de economia e de história — em suas
duas versões: burguesa (leis da propriedade lembradas por um persona-
gem de função não determinada) e proletária (leis de história explicita-
das por três militantes com lenços vermelhos). Em frente — se é que pode
se dizer isto, porque nenhum plano junta as duas partes cuja ausência de
local comum é, pelo contrário, sublinhada — as palavras e os gestos dos
membros da comunidade parecem reduzidas aos acessos de raiva ou aos
gestos de impotência.
Entretanto, este é um tribunal singular. “Quem é você?”, pergunta-
-se ao “procurador”. Pergunta sem resposta. No livro de Vittorini, este
“Charles, o careca”, armado com dois metros de agrimensor, aparecia
como um enigmático manipulador. Aqui ele é apenas uma voz que dá vida
a um corpo: uma voz quase ventríloqua, à qual corresponde um olhar
alucinado. O que ocorre através desta voz, ao mesmo tempo segura e
esforçada, como que surpresa pelo que ela mesma diz, é uma lei eterna
da propriedade: terrenos e casas, terras, rios, mares e vulcões, e todos
estes elementos, segundo ela, compõem um tecido sem falhas, onde tudo
é apropriado: o que não pertence a Caio pertence a Tizio, e o que não
pertence nem a um nem ao outro pertence à administração pública.
Nenhum lugar no cadastro indicando onde as comunidades como
esta aqui poderiam se estabelecer. Mas o monólogo ressona como um
O estranho tribunal 226

canto de luto, muito mais do que como uma acusação. Estes rios e estas
crateras que pertencem todos a um mestre, a voz deste estranho procu-
rador parece erguer por cima um véu à medida que sua palavra o solicita.
É como se a voz impessoal se desdobrasse em duas, como se no discurso
do astucioso manipulador de Vittorini viesse clandestinamente se insta-
lar a voz do poeta, a voz de um Hölderlin recém acordado de seu sono e
medindo o que se tornou o mundo e o seu sonho.
A voz dos partidários (ou “caçadores” na obra de Vittorini), por sua
vez, não tem forças para explicar às pessoas do vilarejo o que é a sua
comunidade: uma cooperativa que seria como todas as outras se não se
distinguisse das demais pela limitação de suas operações, pela velhice de
seu material e pela produtividade ridícula. Os escansões intensamente
articulados do texto, que Danièle Huillet dispôs em sequências rítmicas,
brincando assim com as “suspensões antirrítmicas” de Hölderlin, favore-
cidas pelos sotaques da língua italiana, ganham neste caso uma nova fun-
ção. No monólogo alucinado do “procurador”, elas contribuíam a subtrair
o mundo. Na retórica dos lenços vermelhos retornam a faca na ferida da
ironia. Se Carlos, o Calvo disse a lei sem idade do espaço, eles próprios são
os porta-vozes do tempo, a juventude do mundo. Elas podem se comuni-
car alegremente pelo jogo dialético sem ter que olhar as pessoas a quem
se dirigem, e que estão posicionadas como se estivessem às suas costas,
correndo a pé atrás do “trem da história”. Eles conhecem bem a República,
a lei do mercado e o boogie-woogie. São bons brechtianos, afinal.
Esta evocação de Brecht definitivamente não é a mesma dos reali-
zadores. Os caçadores repartirão, com o trem da história, sem terem
capturado o homem que eles buscavam, mas tendo alcançado um outro
objetivo: deslocar a comunidade. Os Straub ficam atrás, de pé, constatan-
do que o trem passou e se recusando a lhe reconhecer dar razão. A mão
estendida do velho camponês não se afrouxa. Num último plano, Siracusa,
a companheira do chefe, que não tem “mais nada a dizer” aos deserto-
res, permanece nos limites da casa fechada, a cabeça apoiada sobre os
braços, na mesma atitude da Derelitta de Botticelli. Mas um último grito,
um “Isso mesmo!”, que passa da resignação à derradeira afirmação, faz
com que ela relaxe os braços, enquanto a câmera desce num movimento
que enquadra, até a altura dos pés nus, o braço pendendo, com o punho
sempre fechado.
227

1967–19781
Franco Fortini

Através de uma outra guerra, e depois de inúmeros episódios de massa-


cres, de assassinatos, de negociações e de paranoia política, o conflito
do Oriente Médio perdeu este perfil exemplar de dialética histórica que
ele ocupava e que, em 1967, ainda mostrava a um observador apaixona-
do, embora um pouco distante. Vários outros eventos se seguiram, ao
ponto de me convencer que o direito à palavra, que eu havia usado em I
cani del Sinai, em nome da minha ascendência familiar e da minha recusa
adulta da mesma, era irrisório, e que os únicos intérpretes autênticos
da realidade eram os próprios fragmentos desta realidade, os jornalistas
internacionais, os cadáveres de libaneses assassinados, as fotografias
dos sequestros, as máscaras repulsivas da história. Nós tínhamos visto
os russos entrarem em Praga e os americanos saírem de Saigon; o movi-
mento dos estudantes pela Europa crescer e depois desaparecer; a voz
proletária chilena gritar e depois se apagar; e, no meu país, durante anos
e anos, se instaurar e se desenrolar uma guerra civil cada vez mais masca-
rada e falsificada, até a desagregação e a degradação de uma geração in-
teira. Eu observei, como podia, com meus olhos acostumados a observar,
mas precisamente por isto me parece hoje distante e mesquinho o fato
de ter desejado, em 1967, interrogar uma mesma questão e numa mesma
página os eventos israelo-árabes e minhas vicissitudes biográficas.
Parece-me que não existe hoje, sob pena de parecer ridículo, nenhu-
ma possibilidade de confundir a noção de “judeu” com a de “israelense”;
no mais, toda a grande esfera cultural do judaísmo, seu sotaque históri-
co e alegórico se separou, acredito eu, definitivamente de toda verdade
(positiva e negativa) do Estado israelense e dos seus negócios; e princi-
palmente de toda a besteira dos editoriais, da televisão e dos filmes, que
cresce sobre as covas judias de 1939–1945 e sobre as crônicas sanguiná-
rias dos dias de hoje.

1. In “Les Chiens du Sinaï. [suivi de] Fortini Cani”. Paris: Albatros: Ed. de l’Etoile. Coleção: Ca
Cinéma, Cahiers du cinéma n. 13, 1979. Também publicado em Jean-Marie Straub et Danièle
Huillet/Conversations en archipel sob a direção de Anne-Marie Faux. Paris, 1999. Tradução de
Bruno Carmelo.
1967–1978 228

Eu não acredito, afinal, que eu deva mudar de opinião no que diz


respeito ao conflito do Oriente Médio, em relação ao que eu expressava
há dez anos atrás. Justamente porque não se tratava da opinião de um
“expert” nem de uma autobiografia patética e lírica, mas de uma opinião
que pretendia ser motivada e fundamentada na razão, embora ela se ex-
pressasse de uma forma não rigorosa. Alguns meses depois da publicação
de I cani, eu escrevia, sobre uma volumosa edição de Temps Modernes2
consagrada ao tema, que a chave da situação futura residia na capacidade
de organização política anticapitalista e anti-imperialista, tanto em Israel
quanto nos países árabes. Era uma evidência, mas não um erro. Ou era
talvez uma previsão até hoje em dia desmentida pelos fatos, os fatos que
conduziram até a situação presente, de reação generalizada por todo o
globo. Inclusive, ao observar como o conflito do Oriente Médio passou a
se reproduzir, caso exemplar das guerras modernas com povos interpos-
tos, na África e ao longo de toda a costa do Oceano Índico, nós nos questio-
namos se não vai se tornar cada vez mais claro, até se tornar insuportável
aos olhos dos europeus, o perfil da luta de classes que se desenvolve por
trás dos conflitos interimperialistas e a separação dos povos contratados
pelos serviços das superpotências. I cani del Sinai foi escrito com raiva,
com músculos contraídos, com uma cólera extrema. O desespero do livro
é ainda muito juvenil, porque ele dissimula mal a esperança.
De fato, por volta deste verão de 1967, a situação era — como diriam
os chineses — “excelente”: as burguesias filoisraelenses, ou seja, filoimpe-
rialistas, do Ocidente, aplaudiam com fervor Dayan e seu grupo, mas na
França, na Itália, na Alemanha já havia terminado esta manifestação da
juventude que, durante todo o ano seguinte (acompanhada, pelo menos
na Itália, de uma grande mobilização da classe operária) traria uma trans-
formação tão profunda dos equilíbrios, que uma década foi necessária
para que os velhos poderes políticos, os partidos, as instituições, caval-
gando na crise econômica, retomassem as rédeas da situação. E hoje em
dia muitas pessoas aceitam a imagem mentirosa à qual certos filmes gos-
tariam de nos acostumar: a imagem do caos e da extravagância. A única
força dos nossos inimigos é a nossa fraqueza.
Por não ter conseguido, no passado, dar à nossa razão a fluidez da
água e da grama, temos atualmente que nos submeter às repugnantes
2. Les Temps Modernes, revista política, filosófica e literária francesa fundada em outubro de 1945
por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. [N.E.]
Escritos sobre a obra 229

fumaças místicas, iniciáticas, herméticas, desejosas e transversais que


resultam das cerimônias intelectuais, editoriais e bancárias. Por isso, é
possível medir a diferença entre o momento que correspondia — na Nova
Esquerda italiana, pelo menos — ao ano de I cani del Sinai e o momento
presente, que é de deserção, não tanto da “política” mas de toda finalida-
de, e que se traduz por uma abreviação da previsão e da direção, por uma
recusa do projeto, enfim, por uma contemplação fascinada da morte.
Tudo isto me parece ter sido claramente previsto no filme de Straub-
Huillet. Obviamente, eu não consigo me identificar com a interpretação
crítica deles, nem mesmo com a genial adaptação que eles fizeram do
meu texto. O que eu escrevi, de bom ou de ruim, encontra-se nas páginas
desta brochura de capa amarela, com sua pontuação e seu ritmo. E não
sou eu que escrevi, que sou este senhor nas fotos de Straub-Huillet, laten-
te em si mesmo uma existência desfeita, e lendo, quase incrédulo, o que
um outro si mesmo escreveu, com uma ênfase repercutida pelos silêncios
ou pelos brilhos do presente.
Em diversas imagens fundamentais do filme, que fazem claramente
alusão ao passado que pode também ser o futuro, existe, se alguém sou-
ber querê-lo (as montanhas pacificadas, os loureiros floridos, o panorama
de Florença, a colina do final), existe uma dialética permanente entre
“renúncia” e “promessa”. A renúncia, a Entsagung, se converte, também,
em promessa. A ausência do homem, onde ela é mais completa (porque
mesmo a voz se cala, como na sequência dos Apuanas) afirma a “grande
presença dos mortos” (Montale), mas eles não são apenas, estes mortos,
as vítimas das matanças nazistas. Quando o presente é visto de um ponto
de vista exterior ao presente, ele torna-se o lugar onde se projetam os
espíritos do passado ou do futuro. Portanto o espaço das montanhas
Apuanas torna-se uma proposição de habitabilidade; o que também ocor-
re com Florença, até que ela seja vista da colina.3 Esta humilde proposição
é continuamente contradita, em outras sequências, pelo estrondo do pre-
sente ou pela lei do passado, com uma impraticável santidade (os sinos,
o tráfego, a voz do rabino que se sobrepõe à do narrador). Alguma coisa
foi destruída, arrancada, ou abafada. A história é uma armadilha imunda
de monumentos, de pedras, de lembranças. “Aqui não, em outro lugar” é

3. Quando, em Contocello, localizada na ilha de Elba onde eu li as páginas de I cani del Sinai,
Straub começou a filmar, o pequeno loureiro ainda não tinha florido. Straub sabia que ele iria
florescer a qualquer momento, e durante dois dias, ele o aguava com uma mangueira de borra-
cha; na manhã do terceiro dia, tinham nascido as primeiras flores vermelhas. [F.F.]
1967–1978 230

o pensamento dominante do filme. Mas isto significa de fato: “Hoje não,


mas ontem e amanhã”. Sua intenção profunda não é diferente daquela
que tinha sido a minha. Ela é dita com outros instrumentos, ela é dilatada
até uma significação maior. A panorâmica das Apuanas não “diz” apenas
o que aconteceu no local nem qual é a calma que cobre os locais dos
massacres antigos e modernos; ela também “diz” que esta terra é um local
habitável para os homens, que ela é o local que devemos habitar. Então
Straub me diz, a mim mesmo, que eu devo me calar, que minha voz deve
desaparecer porque, como está escrito em O tempo redescoberto4, é uma
“lei” que “cresça a erva não com o esquecimento mas com obras fecundas,
sobre as quais as gerações futuras virão alegremente fazer seus ‘almoços
na relva’, despreocupados com quem dorme lá embaixo”. Isto é dito na re-
lação entre os raciocínios — ou os discursos — do texto e a atenção (este
termo é de Simone Weil) da câmera. Straub separou e fechou para sempre
não apenas um episódio da interminável “Judenfrage” mas também uma
tentativa (a minha) de acertar algumas contas, de me livrar delas. O filme
vai muito além disso.
Através do olho da câmera que me olhava, eu pude compreender
melhor certos ensinamentos formais que eu tinha recebido, em muitos
anos, de alguns mestres, pouco numerosos e absolutos. Um deles é a
regra do morto-vivo, ou do zumbi, se preferirem. Vitalidade, paixão, es-
pontaneidade: sem as quais não se faz nada. Mas, ao mesmo tempo, se
estas não morrem, não são colocadas à distância, emudecidas, destruí-
das, observadas como bens perdidos definitivamente e que não nos são
destinados, elas podem se tornar “alimento para muitas pessoas”. Dentro
de alguns anos, ninguém compreenderá o que foram a guerra do Vietnã e
o conflito israelo-árabe. Há outras coisas esquecidas. Restarão apenas as
comemorações televisivas e os livros de história. Isto é dito, com todas
as palavras, nas minhas páginas dos I cani, e minha voz é estridente jus-
tamente porque, no momento preciso em que ela fala de “realidade”, ela
é dominada pela ausência; e se Straub o compreendeu e o disse como
um músico fala de sua música a partir de um livreto, ele o faz por ser ele
próprio dominado por uma ausência, porque ele e eu podemos esperar
anunciar um futuro (é isto que nós queremos), simplesmente mostrando
com o dedo, com exatidão, as fossas da ausência, as lacunas do real.

4. Marcel Proust, Le temps retrouvé, publicado no Brasil com o título O tempo redescoberto (Rio
de Janeiro, Globo, 1998). [N.E.]
Escritos sobre a obra 231

O terraço estava sob a sombra de manhã e depois completamente


reaquecido pelo sol. Ao redor, havia árvores e flores, havia a limpidez e a
luz, havia o canto múltiplo dos pássaros. Atrás da pequena casa erguia-se
a montanha, coberta de plantas. Em frente, cercas e ladeiras e o mar calmo
e azul. O pequeno quintal pelo qual passavam apressados os colaborado-
res de Straub era um espaço delimitado, um palco de cerimônia. Sobre
este palco, eu passei dez dias repetindo os nomes da minha adolescência,
as palavras do meu pai, o horror e a vergonha em que estivemos todos
mergulhados. Mas esta natureza tão tranquila não era nem paz, nem feli-
cidade. Como na grande panorâmica das Apuanas, a calma era aparente,
enquanto algo pedia ajuda, algo mais profundo. Nós estávamos conscien-
tes disso, de um modo ou de outro. O mar e o céu azul brilhavam, mas não
era o verão ardente e feroz do sul. A paisagem pedia (e nós pedíamos a nós
mesmos através da paisagem) algo como um “complemento de alma” e eu
não tinha vergonha, não mais do que tenho hoje em dia, desta locução es-
piritualista, toda a realidade da luta materialista de classes estava inclusa
nestas cores idílicas, e era para nós indissociável do canto dos pássaros.
Pelas indicações que Danièle e Jean-Marie me propunham, o texto se
tornava estrangeiro diante dos meus olhos: minha defesa estava muito
fraca, eu deixava que relações inesperadas mudassem a pontuação e
a sintaxe. Mesmo inconscientemente, eu compreendia que a operação
fílmica, precisamente ao alterar o que continha a minha assinatura, pre-
cisamente ao desfazer o tecido dos meus pensamentos, ultrapassava-
-os, conservava-os e os tornava mais verdadeiros. Eu não sei se nessas
palavras que eram minhas havia o que se chama de “valor”; mas esta
destruição-renascimento o tinha certamente. Eu me recordava de ter lido
que Cézanne observava às vezes com grande distância a tela da paisagem
que ele estava pintando para saber se, quando introduzida na natureza ao
redor, ela “suportaria” a comparação. Era algo semelhante que eu experi-
mentava no quintal da pequena casa de campo onde Straub me obrigava
a repetir a angústia de uma autobiografia. Palavras e ideias que tinham
nascido em outro lugar, sujas de jornais e de raiva, com anos de desola-
ção e de piedade, tudo isso terminava diante do pequeno loureiro florido,
de uma luz surpreendente. A palavra “conversão” é certamente grande
e falsa. Mas uma outra palavra, mais discreta, “mudança”, eu a conheci,
eu acho, graças à operação de Danièle e de Jean-Marie durante estes dias.
Desde então, as palavras e ideias que, em I cani, eram dolorosas para mim,
pararam de me machucar.
1967–1978 232

Em uma das minhas anotações da época, eu encontro: “Eu estou


doente, cansado, nevralgia do trigêmeo, vertigens. Eis o que acontece
quando se tenta entrar em sua própria biografia. Mas os dois amigos
mortos-vivos me deram, durante estes dias, uma extraordinária lição
de métrica.”
Hoje, eu sei que nós podemos olhar em direção ao real sem fantasmas
nem consolação. Da continuidade atroz de opressão e de violência que
temos diante de nós, em Israel e aqui e em outros lugares, nós podemos
falar sem lirismo e sem autobiografia.
Se me perguntarem qual ensinamento posso tirar da última releitura
de I cani del Sinai, na tradução, como ela foi feita por Straub, eu devo res-
ponder ou com uma falsa modéstia ou com um verdadeiro orgulho. A falsa
modéstia me diz que o texto, e o filme que ao interpretá-lo o ultrapassa,
são um episódio interessante, psicológico e sociológico das reações dos
intelectuais europeus, herdeiros das filosofias e das políticas revolucio-
nárias da primeira metade do século, a um episódio — o conflito israelo-
-árabe — que através destas psicologias parecia ser de uma extraordinária
eficácia didática e propagandista. Já que o processo de redução e de des-
truição das diferenças caminha triunfalmente pelo corpo das últimas ge-
rações de europeus, o que acontece na casa do vizinho não importa mais,
porque nós não somos vizinhos de ninguém, nem sequer de nós mesmos,
e não existe nenhuma questão judia ou árabe, assim como não existe ne-
nhuma questão cristã ou marxista ou branca ou negra ou vermelha: não
existe nada. Mas o verdadeiro orgulho me diz que não é assim.
De fato, é doloroso perceber que lutamos a vida inteira para ver en-
trar na esquerda, sobre a condição humana, questões fundamentais, que
justamente a pior tradição desta esquerda ignorava ou desfigurava, e ver
hoje estas questões — irreconhecíveis — recebidas, desvirtuadas, explo-
radas pelos nossos inimigos, servirem a destruir qualquer hipótese de
transformação do presente. E o que tentamos escrever contra o mundo é
hoje vagamente repetido contra nós e contra as verdades nas quais con-
tinuamos a acreditar. Não é verdade que o próprio Straub vê, atualmente
vulgarizado por astuciosos adaptadores, do cinema e de seus modos, o
que foi, na obra da sua vida, o resultado de um rigor da atenção e de uma
esperança ofuscante?
Mas isto, que é nosso fracasso aparente, nos enche de alegria: não
porque a inversão das tendências possa ser automática, fisiológica, con-
fiada ao tempo e à sua preguiça, mas porque, como já foi dito, “a tentação
Escritos sobre a obra 233

do bem é irresistível”, e que quanto mais um destino é destruído, mais ele


se parece com a liberdade. A resistência, em luta com o presente, já existe,
mesmo que ela não o saiba. Nossas páginas, talvez até as nossas imagens,
podem ser ignoradas. Afinal, não é isso que importa. Não é apenas a nós
que as palavras do deportado morto em Birkenau, que marca a conclusão
de I cani, continuam a convencer de acreditar na verdade.

Outubro de 1978
Estudo para posicionamento da câmera para uma cena de Relações de classes
235

Straub-Huillet: o menor planeta do mundo1


Alain Bergala

O ponto estratégico
Para Jean-Marie Straub, trata-se de achar para cada cena do filme — ou
seja, para cada cenário, cada espaço —, o ponto estratégico único, de
onde ele poderá, depois, filmar todos os planos da cena mudando somen-
te o eixo e a objetiva. “Os diretores, hoje em dia”, ele diz, “não se esmeram
em restituir a realidade de um espaço. Os câmeras enquadram plano a
plano e fazem enquadramentos que não são ligados a um espaço. É bem
mais fácil fazer pequenas correções, no plano a plano, do que encontrar
um único plano estratégico para a cena que se quer filmar.”
A posição e a altura únicas da câmera não são fáceis de se encontrar,
concretamente, mesmo que elas já estejam determinadas no papel. Na
verdade, J.M.S. chega na filmagem com um mapa do cenário, onde estão
desenhadas, plano a plano, todas as posições de câmera e os lugares
dos atores. A escolha das objetivas é decidida para cada plano, pois os
Straub já fizeram as visitas de locação, vários meses antes, com um visor
portátil. Na filmagem, segundo conta Caroline Champetier, “o trabalho
consiste em respeitar, de maneira mais inteligente, o espaço existente,
para realçar seus pontos fortes. É preciso não falsear as linhas. O pro-
blema não é simples quando se trata de filmar em cinco ou seis posições
diferentes um pequeno cômodo de poucos metros quadrados com dife-
rentes objetivas, dentre as quais a 18 ou a 16mm, que J.M.S. utiliza muito
nesse filme”.
Essa busca concreta do ponto estratégico pode durar duas ou três
horas. Uma vez o lugar da câmera determinado, Straub pode passar ainda
mais de uma hora para encontrar, milimetricamente, a altura da câme-
ra — tudo isso, claro, com os atores em seus lugares e já caracterizados.
Uma consequência direta desse imperativo do “ponto estratégico” é o
fato de que William Lubtchansky não constrói sua luz plano a plano, mas

1. “La plus petite planète du monde”, Cahiers du cinéma, n. 364, 1984, p. 28. Tradução de Pedro
Guimarãres.
Straub-Huillet: o menor planeta do mundo 236

de uma única vez, em cada espaço, para todos os planos que vão ser
rodados ali. Isto o obriga a instalar as luzes no teto, para que, no campo
visual, não seja visto nenhum tripé de refletor que incomode na hora da
mudança de ponto de vista.

Respeito ao som
O som de um plano, num filme de Straub, não se reduz absolutamente ao
som real e direto gravado durante a tomada. “Os Straub não dublam uma
palavra, nem acrescentam um som puro nem um som ambiente; nunca
utilizam uma frase dita em off para um outro plano. É preciso que o som
seja daquela tomada e somente ele. Não conheço outros diretores que
fazem isto”, diz Louis Hochet, que começou a gravar som no início do
cinema falado e colaborou com diversos cineastas em mais de 50 anos
de carreira. Sua colaboração com os Straub começou com Crônica de
Anna Magdalena Bach e hoje, que ele ultrapassou em muito a idade da
aposentadoria, é somente por eles que ele aceita retomar seu Nagra e
seus microfones. Porque, com eles, ele sente uma verdadeira exigência,
mas também um verdadeiro respeito pelo seu trabalho. “Para os Straub, a
gravação do som é de capital importância. Eles são terrivelmente exigen-
tes, mas também arrumam as coisas. Se há o menor barulho indesejável,
eles não hesitam em refazer a tomada.”
Como tudo acontece durante a filmagem, sem possibilidade de con-
serto na montagem ou na mixagem, Louis Hochet tenta colocar todos os
trunfos do seu lado, “sem deixar de lado a simplicidade na gravação”. Ele
também confia plenamente em seu microfonista, Georges Vaglio, com o
qual ele trabalha há alguns anos (“com ele, sei que o microfone estará
bem localizado”), e também em seu material. Depois de ter experimen-
tado a nova película de som Agfa, ele escolhe o antigo modelo da mesma
marca, que lhe parece de melhor qualidade (na nova, ele ouve pequenos
chiados). Nos microfones, ele continua fiel aos Neumann, que ele se lem-
bra ter sido o primeiro a utilizar numa época em que os engenheiros de
som os achavam muito “pequenos”.
A gravação do som será feita com um Nagra stereo e, na maioria das
vezes, com dois microfones, um fixo, no tripé, e outro colocado por cima,
o que lhe permite evitar sombras na hora do deslocamento dos atores.
Em algumas situações mais difíceis, ele é obrigado a utilizar um micro-
fone emissor, no qual ele mistura o som, durante a tomada, com o de um
Escritos sobre a obra 237

microfone colocado na beira do campo, o que lhe confere um pouco de


ambiente e espaço sonoro. “O microfone-emissor”, ele diz, “é falso, tenho
horror, mas às vezes é preciso usá-lo.”
Se ele trabalha sempre com dois microfones, Louis Hochet prefere
adequar os dois níveis de gravação no momento da filmagem. Ele corta as
duas pistas do Nagra transformando-as numa só, sem tocar nos volumes
da gravação.
É possível perceber que, com tal método, “a mixagem torna-se pura e
simplesmente um transplante, um adiamento; não se trata de uma equa-
lização, pois o som já havia sido equalizado na gravação. Assim, na mi-
xagem”, diz Hochet, “já que não se acrescenta nenhum som ou ambiente
sonoro, não resta muita coisa a ser feita”.
O que continua a intrigar Louis Hochet, ao final de 50 anos de profis-
são, é a atenção que os Straub têm com a precisão do som. Por causa do
som, eles filmam, às vezes, cenas noturnas que outros diretores rodariam
durante o dia, em cenários onde a luz do dia não chega. “Mesmo um ator
off deve ficar ali a noite toda para dizer sua fala off, e caracterizado.” Jean-
-Marie Straub declara que “não tem imaginação para imaginar de dia algo
que acontece durante a noite”.
Essa exigência custa caro para os técnicos e os atores, obrigados
a encarar difíceis condições de trabalho. Houve nessa filmagem até 11
horas de trabalho seguidas. “É preciso amá-los para se trabalhar com
eles”, conclui Hochet.

Um trata do enquadramento, o outro, da luz


Desde o princípio, os Straub pensaram ser impossível, para esse filme-
-Kafka, uma mesma pessoa cuidar do enquadramento e da luz. Eles pro-
põem, primeiramente, a William Lubtchansky fazer o enquadramento
enquanto Henri Alekan — com quem eles haviam feito, como ensaio, um
curta em preto e branco, En rachâchant — cuidaria da luz. Depois, eles
propõem a W.L. fazer a iluminação enquanto Caroline Champetier cuida-
ria do enquadramento. W.L. lhes respondeu que, segundo a concepção
que ele sempre teve do seu trabalho, ele não pode fazer a luz sem cuidar
também do enquadramento. “Eu trabalho a luz olhando pela câmera,
vejo a luz no visor.”
Finalmente, parece que as funções se distribuiram naturalmente
e que, depois de um tempo de filmagem, as discussões sobre o enqua-
Straub-Huillet: o menor planeta do mundo 238

dramento tenham se concentrado entre Jean-Marie Straub e Caroline


Champetier. Danièle Huillet, onipresente durante a filmagem e que discu-
te tudo com J.M.S, não intervém nunca sobre as decisões de enquadra-
mento. Segundo C.C., “Danièle não discute sobre o enquadramento; isso
cabe inteiramente a J.M.S., em total confiança. Ela atribui a ele esse poder
de cortar o espaço com uma navalha”.
Assim, o enquadramento será assunto de Jean-Marie Straub (“eu
imagino o enquadramento”, diz ele, “antes de encontrar os cenários”) e
William Lubtchansky ficará livre para pensar a luz do filme. A única indi-
cação que Straub lhe dará, e ainda assim porque ele terá pedido, é que
a luz deve ser como “em Duelle (une quarantaine) (de Jacques Rivette,
1976), só que em preto e branco”. “Em seguida”, diz W.L., “ele me deixou
livre e eu fiz o filme todo sem que ele me dissesse nem uma palavra
sobre a luz, enquanto que para falar do enquadramento, demoramos
muito tempo.”
Caroline Champetier confirma: “O trabalho da luz foi um trabalho
feito somente por W.L., sem haver discussão ou questionamento. A con-
cepção da luz foi inteiramente de Willy. Por outro lado, se com Rivette ele
estava acostumado a pensar o enquadradamento, com Straub isso não
era possível.”
Apesar das imposições do “ponto estratégico” (iluminação por cena
e não por plano, refletores no teto), W.L. escolheu construir uma luz
precisa, desenhada, ao contrário de um ambiente iluminado em pontos
difusos. Ele trabalha, então, com refletores tipo Fresnel, que permitem en-
trecortar sua luz com persianas e mostrá-la de maneira localizada. Straub
lhe confia todo o tempo necessário para instalar e regular seus projetores.
Nas cenas internas, então, tudo vai bem.
As coisas se complicam nas externas, onde Straub pretendia reencon-
trar a humildade diante da luz natural, ou “divina”, como queiram, que foi
importante nas filmagens de Cedo demais, tarde demais, onde o papel do
diretor de fotografia consiste em observar, com a cabeça erguida para o
céu, as variações naturais da luz, as nuvens que chegam… e em escolher
o bom diafragma no momento certo. “Agora”, teria dito Straub a W.L., “a
luz não é mais você que a faz. Você a deixa existir.” Num filme como Cedo
demais, tarde demais, W.L. estava de acordo com o princípio de Straub,
mas ele duvida da possibilidade de integrar tais planos de luz “bruta,
natural” num filme onde 90% das imagens são feitas com luz construída.
Será esse o único ponto de conflito entre os dois no filme.
Escritos sobre a obra 239

Por que tantas tomadas?


Em um filme francês de alto orçamento, com estrelas, o diretor dispõe de
um crédito de, em média, 30 mil metros de película, o que é mais do que
razoável. Os Straub gravaram 75 mil. Desse ponto de vista, C.C. diz que “o
cinema deles é um cinema muito luxuoso”. Mas o maior luxo é ter todas
as tomadas reveladas e sincronizadas. No momento da montagem, os
Straub dispõem de 25 horas de filme com som, o que não é de se admirar,
quando se sabe que os Straub nunca abrem mão de fazer uma nova toma-
da de um plano até terem ao menos duas tomadas boas em dois chassis
diferentes; e que terminam sempre o chassi na mesma cena com a qual o
começaram.
Por que tantas tomadas? Que melhoria eles esperam delas?
É lógico que, se existe melhoria, eles se recusam a julgá-la durante a
filmagem. Ao contrário de Rohmer, eles não decidem a priori fazer revelar
essa ou aquela tomada que eles estimam estar boa. Eles fazem revelar
todas as tomadas, exceto as interrompidas e aquelas em que houve algum
incidente grave. “Percebemos”, declara Danièle Huillet, “que existem real-
mente melhorias a cada vez”. E, para J.M.S., essa melhoria é homogênea:
“no conjunto, no que diz respeito a uma matéria, acontece o efeito bola
de neve, para retomar uma expressão de Bergson. Não é idealismo dizer
isso”. Ele acha que, no que diz respeito ao som, há melhorias evidentes
entre uma tomada e outra, da primeira à trigésima. No que diz respeito à
imagem, um erro ou um acidente é sempre possível de acontecer na 15ª
tomada, sobretudo em cenas externas, à luz natural (portanto, variável e
imprevisível) ou se há um movimento de câmera.
Os técnicos do filme são unânimes em pensar que é essencialmente
com relação aos atores que esse volume de tomadas tem sentido, pois
eles consideram as melhorias ínfimas em relação aos seus próprios tra-
balhos. Segundo Louis Hochet, “ao final de algumas tomadas, já não se
pode mais melhorar nada”. William Lubtchansky emite uma hipótese
mais paradoxal quando se conhece a preocupação em tudo comandar
dos Straub: “Jean-Marie espera que haja algo de diferente na interpre-
tação dos atores ou então na luz. Ele espera ser surpreendido por al-
guma coisa”. Caroline Champetier observou que se todos os técnicos,
em algum momento, se rebelaram contra as inúmeras repetições de
tomadas (quando tudo lhes parece normal), “nunca os atores manifes-
taram a menor resistência em refazer mais uma tomada”. Isso se deve ao
fato, para ela, que os Straub lhes pedem algo muito difícil, contraditório
Straub-Huillet: o menor planeta do mundo 240

mesmo, e que essa repetição de tomadas os ajuda a superar algumas


dificuldades. Segundo ela, “é preciso que o ator consiga estar ausente do
seu texto e presente em si mesmo. É preciso que o texto exista com sua
autonomia e que o corpo também exista em autonomia com relação ao
texto”. É verdade que nos filmes de Straub o texto deva ser interpretado
pelos atores com a precisão de uma partitura musical. A versão definitiva
do texto, aquela que os atores ensaiam antes da filmagem, é organizada
em versos livres, em função dos cortes de ritmo impostos por Straub, em
que as entonações, as sílabas tônicas e as pausas — ou seja, tudo aquilo
que faz a musicalidade da língua — são dadas por anotações com canetas
coloridas. William Lubtchansky se lembra que, às vezes, “recomeçava-se
uma tomada, pois um acento tônico não estava na sílaba certa”. Durante
a filmagem, é antes de tudo o respeito ao texto e à sua musicalidade que
interessam a Straub, segundo as testemunhas do seu trabalho. C.C. diz
que “durante uma tomada, pode acontecer de nem ele nem ela estarem
olhando o que está sendo filmado. Jean-Marie olha para seus pés e Daniè-
le coloca um fone para ouvir se os atores respeitam as pausas”. “Quando
uma cena termina”, confirma L.H., “Danièle ouve todas as tomadas antes
de passar à cena seguinte.”

Sete precauções valem mais do que uma (provérbio romano)


“Com eles, verifica-se tudo”, insiste Louis Hochet. William Lubtchansky,
que não conheceu os Straub ontem, diz que eles são “pessoas drama-
ticamente inquietas. Tomam-se precauções com eles como em poucos
filmes”.
Um exemplo: na maioria das filmagens, roda-se um plano até que
uma tomada seja considerada satisfatória do ponto de vista técnico e
dos atores. Na maioria das vezes, por precaução, filma-se uma segunda,
também satisfatória (tomada de “segurança”), caso um incidente torne
a primeira inutilizável. Desde que um incidente de laboratório, nas filma-
gens de Toda revolução é um lance de dados, lhes fez perder irremedia-
velmente uma cena, os Straub vão ainda mais longe na segurança. Eles
garantem, de maneira sistemática, que cada cena seja filmada em dois
chassis diferentes, para o caso de que um dos dois sofra algum acidente
no laboratório. Isso quer dizer que, ainda que tenham a certeza de que há
duas ou três tomadas boas em um chassi, eles não abandonam a filmagem
do plano até que duas ou três tomadas igualmente boas tenham sido gra-
Escritos sobre a obra 241

vadas no outro.“Eu prefiro renunciar a um plano”, diz Jean-Marie Straub,


“do que ter que refazê-lo duas ou três semanas depois no mesmo cenário.
É um pesadelo. Nunca fizemos isso. Tivemos sorte.”
Com esse nível de cuidado e de precaução, é possível falar de sorte?
Depois de uma filmagem de uma noite, quando todos só querem descan-
sar, os Straub se recusam a entregar a película a quem quer que seja e
levam-na eles mesmos ao laboratório, a 40 quilômetros de distância, en-
quanto os assistentes, que deveriam fazê-lo, vão dormir. W.L. conta que
Straub só aparece nas cabines para ver os rushes [copiões] para reparar
nos defeitos (pelos, arranhões) da película: “Do resto, sei tudo o que tem
na película”, diz J.M.S.
É possível que um imprevisto aconteça nas filmagens dos Straub e
comprometa o luxo de tanta precaução? Sim. Basta que dois ou três grãos
de areia consigam combinar seus efeitos para arranhar a lisura da máqui-
na. Um exemplo: nesse filme, rodado em grande parte em Hamburgo, os
Straub viajaram para os Estados Unidos com dois atores e os técnicos
imprescindíveis para rodar somente alguns planos: a Estátua da Liber-
dade, o interior do trem com dois jovens e a paisagem da beira do rio
vista através da janela do trem. Essa viagem de trem foi, claro, minuciosa-
mente preparada com grande antecedência. “Com eles”, diz W.L., “nada
é por acaso. Eles começam visitando locações dois ou três anos antes da
filmagem, com um visor. Dois ou três meses antes, eu visito as locações
com eles. Decidimos onde ficará a câmera e qual focal será usada. Quan-
do a filmagem começa, temos um plano de filmagem com todas as horas,
todos os planos e fazemos como escrito no papel.” Mas, daquela vez, as
coisas não aconteceram como previsto. “No trem, tivemos um problema
de arranhões na película. Dissemos então a eles que tínhamos tido pro-
blemas com os planos da paisagem do trem. Nesse momento, o trem já
havia ultrapassado a paisagem que eles queriam filmar. Além disso, por
causa de obras, o trem seguiu um caminho que eles desconheciam e em
vez de seguir o rio por 20 quilômetros, seguiu por 60. Então, adotamos
o espírito de aventura e filmamos paisagens que não tinham sido pensa-
das. Durante essa mesma viagem, tomamos todas as precauções para
não perder material e, claro, perdemos uma câmera. Quando chegamos
a Saint-Louis, faltava uma caixa de material. Terminamos por encontrá-la,
mas eles são tão pessimistas, que o mal acaba por acontecer. Quando
partimos de Saint-Louis para Nova York, eles disseram ao bagagista do
aeroporto: ‘Tome cuidado com essas bagagens, já as perdemos uma vez’.
Straub-Huillet: o menor planeta do mundo 242

Era um negro que disse, divertindo-se: ‘Se disserem isso, vão perdê-las
mais uma vez’.”
Quanto a William Lubtchansky, que se declara um otimista nato e não
especialmente inquieto, teria sido por contaminação que ele recorreu,
nesse filme, à velha prática dos “planos de ensaios”, abandonados hoje
(verdade que o preto e branco o permitia mais facilmente), que consis-
tiam em fazer revelar no local da filmagem, por um assistente, Christophe
Pollock, algumas imagens de cada plano?
243

Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados1


Mateus Araújo Silva

I
Como medir o aporte dos Straub ao cinema moderno? A maneira mais
direta seria determinar em quê, nas vias que eles escolheram, seus filmes
permitiram ao cinema ver, ouvir, interrogar e dizer o mundo mais e melhor
do que o cinema que os precedeu. A tarefa seria difícil, mas não ociosa.
Uma outra maneira de abordar sua herança, e de considerar os efeitos
de seu trabalho sobre o cinema mais exigente de seu tempo, seria detec-
tar o diálogo e as reações suscitados por seus filmes nos de seus colegas.
Não menos do que o primeiro, este dossiê também está para ser feito.
Num ensaio recente sobre Pedro Costa2, arrisquei uma hipótese
paradoxal, que resta provar, segundo a qual os cineastas portugueses
formariam, na Europa, o grupo cujo trabalho foi o mais marcado pelo
cinema dos Straub — que nunca filmaram porém em Portugal e foram
menos exibidos lá do que nos três países em que trabalharam (Alemanha,
Itália e França). De fato, o diálogo do melhor cinema português moderno
com os Straub deixou traços, desde os anos 70, em filmes de cineastas
tão diversos quanto António Reis e Margarida Cordeiro, João César Mon-
teiro3, Manoel de Oliveira (sobretudo em Amor de perdição, de 1978, mas

1. Publicado em francês, sob o título “Glauber Rocha et les Straub: dialogues de Rome”, num
dossiê sobre os Straub da revista Fusées (n.15, março de 2009, pp. 86–96) e na revista on-
-line Leucothéa, n.1, abril de 2009, pp. 123–140 (disponível em www.revue-leucothea.com/page.
php?id=10), este ensaio permanecia inédito no Brasil. Um pouco melhorada, a presente versão
é uma etapa intermediária, em progresso, do que deve virar um capítulo de um livro de cinema
comparado que preparo sobre os diálogos de Glauber com vários outros cineastas.
2. “Pedro Costa e sua poética da pobreza”, Devires, Vol. 5, n.1, jan.-jun. 2008, p. 43 (e n.30),
republicado em Daniel Ribeiro, Carla Maia e Patrícia Mourão (orgs.), O Cinema de Pedro Costa
(CCBB, 2010, pp. 111–134).
3. Já em 1969, Monteiro dizia amar Straub por correspondência e contava lhe mandar “umas
vitualhas”, antes de observar que “cada filme que o Straub consegue fazer, rompendo a bar-
reira econômica que o sistema lhe impõe, é uma vitória do chamado bloco aliado do cinema”
(“Auto-entrevista” de 1969 incluída no livro coletivo João César Monteiro, Lisboa, Cinemateca
Portuguesa, 2005, pp. 254–5). Segundo o testemunho de Vitor Silva Tavares, Straub é, sem dúvi-
da, o cineasta do qual Monteiro se sentia, ética e esteticamente, mais próximo — cf. “Rencontre
d’esprits libres”, em Fabrice Revault d’Allones (dir.), Pour João César Monteiro. Yellow Now,
2004, pp. 85–6).
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 244

não só)4, João Botelho (em Tempos difíceis, de 1988) e Alberto Seixas
Santos (em Gestos e fragmentos, por exemplo, de 1980–82)5. Na virada
do milênio, Pedro Costa o retomou por conta própria e o levou a seu
ponto culminante numa série de filmes notáveis que remonta a No quarto
da Vanda (2000), passa por seu episódio sobre os Straub de 2001 para a
série “Cinéma, de notre temps”, que se tornou pouco depois Onde jaz o
teu sorriso?, e desemboca em dois filmes mais recentes, o longa Juventude
em marcha (2006) e o curta Tarrafal (2007).
Não conheço nenhuma pesquisa sobre a recepção e a eventual influ-
ência do trabalho dos Straub junto aos cineastas brasileiros, à comuni-
dade dos estudiosos e ao público cinéfilo do Brasil. Sabemos que vários
dos seus filmes foram vistos por aqui (embora de modo espaçado e in-
constante) em cinematecas, cine-clubes e mostras; que pelo menos uma
retrospectiva de seus filmes6 itinerou no Brasil — em 1972, com os cinco
primeiros filmes exibidos em sete capitais brasileiras pelo Instituto Goe-
the, que já teve em seu catálogo no Brasil cópia de um ou outro de seus
filmes alemães (hoje só lhe resta uma de Não Reconciliados em 16mm);
que Sicília! (1999) chegou a receber o prêmio especial da crítica na Mos-
tra Internacional de São Paulo de 1999, a ter uma pequena distribuição no
circuito comercial de algumas capitais em 2000 e a ser lançado em DVD,
sob o título de Gente da Sicília. E pouco mais que isso.
Por outro lado, referências e declarações de cineastas brasileiros
sobre os Straub nos permitem perceber o entusiasmo ou pelo menos a
viva reação que seus filmes despertaram em alguns de seus colegas daqui,
desde os anos 60. Encontros com Straub nos festivais europeus (Pesaro
1966, Berlim 1968) causaram uma impressão muito forte, por exemplo,
em Paulo Cesar Saraceni e Julio Bressane, que adoraram os primeiros
filmes do casal7.

4. Cf. Antoine de Baecque e Jacques Parsi, Conversations avec Manoel de Oliveira (Paris: Cahiers
du cinéma, 1996, pp. 91 e 161). Em Créer ensemble: la poétique de la collaboration dans le cinéma
de Manoel de Oliveira, (Sarrebruck: EUE, 2010, pp. 319–22), Pedro Maciel Guimarães assinala
e discute brevemente o diálogo dos filmes de Oliveira com os dos Straub, à luz do trabalho do
diretor de fotografia Renato Berta lá e cá.
5. Sobre a recepção dos Straub em Portugal e o interesse que eles inspiraram nos cineastas
portugueses, ver em Antonio Rodrigues (org.), Jean-Marie Straub / Danièle Huillet (Lisboa:
Cinemateca Portuguesa, 1998), as notas “Straub/Huillet em Portugal” (pp. 142–5) e os textos de
João Botelho e Seixas Santos (pp. 55–7 e 60–64).
6. Devo a Arthur Omar a informação e uma cópia do programa desta retrospectiva.
7. De lá para cá, outros cineastas também falaram deles. Penso, por exemplo, em Carlos
Reichenbach, que os tem em altíssima conta, e em Carlos Adriano, que acalentou com Bernardo
Escritos sobre a obra 245

Saraceni relatou brevemente tais encontros em Por dentro do Cinema


Novo: minha viagem (Rio: Nova Fronteira, 1993), em cujas páginas qualifi-
ca Não reconciliados de “obra-prima” (p. 211), Crônica de Anna Magdalena
Bach de “genial” (p. 241) e Da nuvem à resistência de “fantástico” (p. 323).
Straub, que chegou a ver e a discutir com Saraceni dois de seus próprios
filmes (O desafio, de 1965, e Amor, carnaval e sonhos, de 1972), lhe apa-
recia já nos anos 60 como um cineasta “rigorosíssimo”, na linhagem de
Dreyer e Bresson (p. 210), cujo cinema ele radicalizaria (p. 211).
Arthur Omar evocou no início de uma conferência de 1995 (“Cinema:
música e pensamento”, pp. 270–73)8, e me contou melhor em conversas
recentes, o impacto duradouro que lhe causou em 1972 Crônica, “uma das
culminâncias da história do cinema, em termos de relação entre filme e
música” (p. 272). Na conferência, ele discute o modo como, no agencia-
mento rigoroso dos seus materiais, o filme constrói a música, que sai do
fundo e vem à tona, sustentando o tempo do olhar e oferecendo-se em
bloco para se tornar o objeto central, deflagrador de uma experiência
de liberdade do espectador. Mais do que a de olhar ou de ouvir, o filme
nos proporcionaria a experiência subjetiva de “um estar ali” emancipado
(p. 273). Em conversas, ele salientou o quanto o filme lhe ensinou sobre a
materialidade do cinema, que ele não cessa de explorar em seu próprio
trabalho, numa direção porém muito diferente.
Num ensaio de 2001 também sobre Crônica9, Bressane exprimiu
enfaticamente sua admiração (“Eu amo o cinema de Straub, que viverá
para sempre em minha esperança de um cinema para além do cinema,
para além do além…”, p. 8) e qualificou o filme de “filme único, fulcro do
cinema moderno” (p. 7), “belíssimo”, “um ponto luminoso, um eterno
retorno, em si próprio e na tradição de filmes experimentais” (p. 8). Seu
elogio salienta o modo como o filme recria o plano-sequência, explo-
rando em regime de concentração e redução máximas, com economia
de meios e ouvido absoluto, o plano fixo, imóvel, estático e extático, de

Vorobow por anos a fio um projeto (não realizado) de retrospectiva dos Straub, aos quais
publicou em 2006 um elogio enfático (“O cinema como ato de dissidência”) na revista on-line
Trópico (disponível em http://pphp. uol.com.br/tropico/html/textos/2758,1.shl), evocando um
encontro com o casal em Paris e discutindo seu filme Quei loro incontri.
8. Incluída em Ismail Xavier (org.), O Cinema no Século (Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 269–288).
9. Publicado primeiro em tradução italiana (“Cronaca di Anna Magdalena Bach”) em Roberto
Turigliatto e Simone Fina (a cura di), Julio Bressane (Torino: Lindau, 2003, pp. 67–8), depois em
português (“Jean-Marie Straub, a Crônica de Anna Magdalena Bach”) no seu livro Fotodrama
(Rio: Imago, 2005, pp. 7–15), aqui citado.
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 246

modo a fazer da própria temporalidade a sua verdadeira protagonista.


Mas o impacto causado pelos Straub gerou também reações ne-
gativas. Saraceni conta, em seu livro já citado (p. 241), que Alex Viany
ficou “uma fera” por ele e Bressane terem adorado Crônica. Arnaldo Jabor
revela por sua vez, numa entrevista de 1978 intitulada “Arnaldo Jabor
e Tudo bem” (Filme Cultura, n.30, agosto de 1978, pp. 2–11), seu próprio
desconforto diante do que lhe parecia uma excessiva influência exercida
no Brasil por um grupo de cineastas (no qual ele incluía Godard e Straub)
que teriam se transformado em “fantasmas do panteão da cultura cine-
matográfica” (p. 8). Tais fantasmas tenderam a “paralisá-lo” e “amarrá-lo”,
prejudicando sua liberdade criativa. Sua influência teria redundado em
“obrigações culturais”, exercido uma “pressão culturalista” e construído
uma “prisão cultural difusa que existia no cinema brasileiro”10, da qual
ele teria se libertado ao realizar Toda nudez sera castigada (1972).
Feitas as contas, em que pese a admiração de alguns dos maiores
cineastas modernos do Brasil pelos Straub e o esforço relatado por Jabor
para se libertar de sua influência intimidante, minha impressão é a de
que o cinema deles não chegou a marcar os filmes de seus colegas bra-
sileiros11. Seria difícil verificar o quanto ele os tolheu (como se queixava
Jabor), mas parece igualmente difícil determinar o quanto ele os inspi-
rou. Forçando minha memória de espectador, encontro ecos do cinema
dos Straub no curta de Haroldo Marinho Barbosa com texto de Qorpo
Santo, Eu sou vida eu não sou morte (1970), ou em algumas cenas mais
recitativas em som direto de Fernando Torres (que interpretava o poeta
árcade Cláudio Manoel da Costa) em Os Inconfidentes (Joaquim Pedro

10. As expressões entre aspas aparecem nas pp. 7–8, e preparam o desabafo mais frontal de
Jabor contra a influência de Straub: “Eu me lembro de um assistente de direção meu, super-
-culturalizado, me dizendo na época de Pindorama [1971]: Jabor, não pode cortar! Se cortar, a
cena acaba! Quer dizer, ‘montagem’ era de ‘direita’, porque Straub não cortava: a mulher saía
do quarto, caminhava pelo corredor, a câmera continuava no quarto e enquanto ela não abrisse
a porta da rua e ligasse o motor do carro a câmera não saía de cima da penteadeira. Eu não
tenho nada a ver com isso. Que é que eu tenho a ver com Straub, um alemão [sic] obsessivo,
que pegava a câmera e ia filmar as ondas que Bach olhava, quer dizer, atravessava a Alemanha
inteira para filmar na mesma praia onde Bach esteve olhando as ondas?” (p. 8).
11. Assim como não chegou a suscitar textos específicos dos nossos estudiosos de maior enver-
gadura, alguns dos quais são admiradores notórios do cinema deles (como Ismail Xavier e Lúcia
Nagib). Dentre os raros textos brasileiros sobre os Straub, afora resenhas ligeiras de Sicília! e
eventuais artigos em revistas eletrônicas, lembro o ensaio de Stella Senra comparando-os a Ozu
(“O homem de costas”, Folha de S. Paulo, 6/8/2000, Mais! n.443, pp. 30–1) e um capítulo da Tese
de Doutorado de Cristian Borges, Vers un cinéma en fuite: le puzzle, la mosaïque et le labyrinthe
comme clefs de composition filmique (Paris: Univ. de Paris III, 2007).
Escritos sobre a obra 247

de Andrade, 1972), ainda que o filme como um todo me pareça distante


do cinema deles no estilo e no método. Alguns filmes da primeira fase de
Bressane, sobretudo O anjo nasceu (1969), Matou a família e foi ao cinema
(1969) e passagens de Cuidado Madame (1970), em seu laconismo, em sua
economia de meios e em sua exploração da duração no interior do plano,
também mereceriam uma comparação mais atenta com os filmes do casal
(apesar de diferenças patentes no trabalho dos atores).
Não seria possível empreender aqui um inventário exaustivo desta
relação dos Straub com o Brasil, que, além de aprofundar o exame da sua
recepção brasileira, deveria considerar também o que eles viram e apren-
deram do cinema brasileiro — consta que gostaram de Maioria absoluta
(Leon Hirzsman, 1964) e de O desafio, e que respeitavam o Cinema Novo
em geral. Deveria investigar ainda o projeto de filme que eles chegaram
a acalentar (como conta o próprio Straub em seu texto “autobiografia”
incluído neste catálogo) desde os anos 60, baseado num mito indígena
brasileiro relatado e analisado por Lévi-Strauss em O cru e o cozido (Mito-
lógicas I, de 1964), e que desejaram num dado momento filmar no Brasil.
Me contentarei aqui em abordá-la unicamente a partir do caso de
Glauber Rocha, do qual proponho um exame preliminar, uma espécie de
primeira rodada de pesquisas e discussões, a serem retomadas e aprofun-
dadas mais tarde. Na seção II, me concentro nos textos críticos de Glau-
ber consagrados aos Straub12, antes de abordar brevemente na seção III
o diálogo que ele travou, enquanto cineasta, com o trabalho deles, par-
ticularmente o diálogo travado por seu longa-metragem romano Claro
(1975) com os dois filmes romanos “e meio” deles — Os olhos não querem
o tempo todo se fechar / Othon (1969), Lições de História (1972) e alguns
planos romanos em Introdução a “Música de acompanhamento para uma
cena de cinema” de Arnold Schoenberg (1972).

II
Glauber conheceu o cinema dos Straub em 1967, ano em que viu Não
reconciliados na Europa. Ele ficou impressionado com o filme, a ponto de

12. Em seus textos e declarações, Glauber fala muito mais de Straub do que de Danièle Huillet,
que ele menciona vez por outra, nem sempre reconhecendo seu devido lugar no projeto de
cinema e nos filmes do casal. Os brasileiros tenderam aliás (e não foram os únicos) a designar
o cinema dos Straub por uma abreviação em que só Straub era citado. Falarei aqui do cinema
dos Straub, reparando a omissão sem discutir suas razões.
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 248

dar a Straub, em Berlim, o dinheiro de um dos prêmios obtidos por Terra


em transe nos Festivais de Cannes (prêmios FIPRESCI e Luis Buñuel) e
Locarno (Prêmio da Crítica e Grande Prêmio Cinema e Juventude) para
ajudar seus colegas a produzirem a Crônica de Anna Magdalena Bach, fil-
mado entre agosto e outubro de 1967 na Alemanha ocidental. Sem nunca
mencionar esta doação, que inaugurou talvez sua amizade13, Glauber
evoca em vários textos e entrevistas de 1968 a 1976 seus encontros e
suas conversas sobre o cinema e o mundo, que ficaram mais constantes
em Roma, onde os Straub se instalaram em 1969, e onde Glauber morou
ou esteve hospedado várias vezes entre 1969 e 1975. Entre os objetos de
suas conversas nestes encontros, Glauber evoca os próprios filmes do
casal, mas também Buñuel, Brecht, Lubitsch, Pasolini, Minnelli, Gianni
Amico, Bach, o Cinema Novo brasileiro, a indústria cinematográfica, o
plano-sequência, Henri Langlois e a história do cinema14… Uma destas
conversas aconteceu no início de 1970 em Roma, na casa do produtor
Gianni Barcelloni (onde Glauber se hospedava), na presença também
de Miklos Jancso, Bernardo Bertolucci e Pierre Clementi. Glauber a
transcreveu em português num artigo intitulado “Glauber Rocha escre-
ve: assim se faz a revolução no cinema” (Manchete, n.939, abril 1970)15
e outros a re-publicaram mais tarde em inglês, italiano e francês16 em
versões um pouco diferentes, duas das quais incluindo também Simon
Hartog como participante e organizador do encontro.
Os Straub também evocaram, numa entrevista aos Cahiers du cinéma
(n.223, agosto de 1970, p. 52), declarações de Glauber numa conversa de
1969 ou 1970 sobre as exibições dos filmes deles no Brasil. Mais recente-
mente, depois de um vivo debate que se seguiu a uma exibição de Othon
em 26/2/2008 no Reflet Médicis de Paris, Straub me confirmou pessoal-

13. Que eu saiba, Glauber nunca falou publicamente desta doação (assim como os Straub, que
receberam outras para terminarem seu filme), que só conhecemos pelo testemunho indireto,
num bônus do DVD de Terra em transe (Versátil / Tempo Glauber, 2006), de José Carlos Avellar,
a quem Straub teria contado toda a história no Festival de Berlim de 1968.
14. Cf. Glauber Rocha, Revolução do cinema novo (reed. CosacNaify 2004), pp. 167 e 181, e O
Século do Cinema (reed. CosacNaify 2006), pp. 239, 295 e 351. São estas reedições que estarei
citando daqui para a frente sob a forma abreviada RCN e SC.
15. Incluído depois em RCN, pp. 222–229.
16. Respectivamente em Cinemantics (Sidney University, n.4, june 1971), Filmcritica (n.317–8,
sett.-ott. 1981, pp. 448–51) e Cinéma / politique, série I (org. por Nicole Brenez e Edouard
Arnoldy), Bruxelles, Ed. Labor, 2005, em tradução republicada em Dominique Bax, Cyril Béghin
et Mateus Araujo Silva (Dir.), Glauber Rocha / Nelson Rodrigues (Bobigny, Magic Cinéma, 2005,
pp. 38–43).
Escritos sobre a obra 249

mente, em termos muito calorosos, a amizade e a frequentação que lhes


aproximava em Roma, sobre as quais ele preferiu porém evitar, quando
voltei ao assunto dias depois, me dar um testemunho mais detalhado,
para se preservar talvez das lembranças de um passado que ameaçava
reviver nele a dor da perda de Danièle Huillet17. Seu silêncio obstinado,
que lamento mas devo compreender e respeitar, reduz os documentos
sobre sua amizade com Glauber aos testemunhos diretos do brasileiro,
à foto reproduzida aqui dos dois (sem Danièle Huillet), feita em Roma
por Bruna Amico em 1969, numa galeria ou num hall de algum cinema,
provavelmente num evento consagrado a Glauber (pois vemos um folder
sobre Glauber nas mãos de Straub), e a alguns testemunhos indiretos de
seus contemporâneos — como o de Saraceni no seu livro já citado, em que
ele relata um episódio com Glauber e Straub em Roma (cf. p. 281).
Do fim de 1967 a 1975, Glauber não cansou de exprimir sua admiração
pelos filmes, a postura e o trabalho dos Straub — que não lhe devolveram
o gesto, como aliás a maioria dos grandes cineastas sobre os quais ele
escreveu. Glauber falou dos Straub num duplo registro, enquanto crítico
ou observador atento ao melhor cinema da sua época, e enquanto cine-
asta que discutia seu próprio trabalho, suas escolhas, seus filmes, suas
influências e suas fontes de inspiração. Sem consagrar nenhum artigo
inteiro aos Straub, ele terá deixado em todo caso um conjunto conside-
rável e coerente de declarações e observações, ora pontuais, ora mais
desenvolvidas, sobre o trabalho deles. Até onde sei, seus dois textos com
observações mais frontais e desenvolvidas sobre Straub são o artigo “O
novo cinema no mundo” (O Cruzeiro, 30/3/1968) e os parágrafos de intro-
dução ao artigo já citado de abril de 1970 com a transcrição da conversa
de Roma. Curiosamente publicados em revistas semanais cariocas não
especializadas, e voltadas para um público mais amplo que não tinha,
com raras exceções, nenhum conhecimento dos Straub, estes dois textos
caracterizam com precisão e sustentam com vigor seu projeto de cinema
(ainda em seus inícios), apoiados unicamente na visão de seus primeiros
filmes, antes mesmo que aparecessem os primeiros livros sobre o cine-
asta francês.

17. Era o terceiro convite a falar sobre a obra ou a figura de Glauber do qual Straub declinava. O
primeiro foi para o volume coletivo sobre Glauber citado na nota anterior, preparado por D. Bax,
C. Béghin e eu mesmo (e lançado em 2005 numa retrospectiva integral de Glauber em Bobigny);
o segundo, para um prefácio ou uma orelha da edição francesa de O Século do Cinema preparada
pela mesma equipe e lançada em 2006.
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 250

O artigo de 1968 apresenta Straub como “o mais moderno de todos


os cineastas”, aquele que encarnaria “o herói típico do cinema moderno”,
com as contradições da “genialidade sem patrocínio”18. Se a segurança
de seus juízos pôde se beneficiar de algumas conversas com Straub e
com cineastas e críticos atentos que conheciam a importância do seu ci-
nema, notemos que eles repousavam fundamentalmente na visão de Não
reconciliados, que Glauber já tinha recomendado vivamente a seu amigo
cubano Alfredo Guevara (diretor do ICAIC) numa carta de 3/11/1967
como “um filme político, experimental, muito bom”19, e que já tinha lhe
bastado para incluir Straub, no fim de um texto publicado em 13/4/1968,
no “quarteto dos grandes de hoje” ao lado de Pasolini, Godard e Ber-
tolucci (SC, p. 281). Assinalando no artigo de 30/3/1968 a controvérsia
suscitada pelo filme, Glauber formula em seguida sua adesão em linhas
penetrantes, nas quais ele destaca a confluência das dimensões estética
e política no trabalho de Straub:

“Seu filme Os não-reconciliados (Nicht Versöhnt, 1965), adaptado


de um romance de Heinrich Böll, dos mais famosos escritores
alemães modernos, foi considerado por parte da crítica como uma
traição a Böll e por outra parte como o mais importante filme do
cinema moderno. O plano integral, em Straub, atinge sua plenitude.
O filme obedece à técnica de um plano para cada ação ou uma ideia
para cada plano. É uma sucessão de planos diretos frontais, em
geral fixos, que se unem por rápidas fusões em negro. O diálogo é
dito friamente, sem adjetivos, como um recitativo coral. Os atores
pouco se movem. O tempo é livre, o filme se passa no presente e
no passado. Corta do passado para o presente e vice-versa sem
os artifícios de Resnais ou técnicas clássicas de flashbacks. Tudo
se dá na tela. O diálogo, o texto, os ruídos, a rara música, agem
simultaneamente. O tempo (escravizante noção do tempo) é abo-
lido, o filme É. Politicamente, Straub não se reconcilia com o velho
cinema nem cede às concessões lucrativas da rebeldia ou permite
que seus personagens de uma Alemanha de pós-guerra se reconci-
liem com os novos políticos civis, demagogos e perigosos como os
velhos nazistas. Os não-reconciliados alerta sobre o compromisso.

18. Cf. SC, reed. 2006, Apêndice, pp. 345 e 351, respectivamente.
19. Glauber Rocha, Cartas ao mundo (org. Ivana Bentes), São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 306.
Glauber e Straub em Roma (Foto: Bruna Amico, 1969).
Fotografia gentilmente cedida pela associação des filmes et leurs sites
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 252

É um ensaio sobre a intransigência, é um filme intransigente. O


modelo do ensaio político cinematográfico. A visão, revisão e
estudo do filme permitirão ao leitor avaliar a importância e o rigor
de Jean-Marie Straub” (O Século do Cinema, reed. 2006, p. 350).

Naquela altura, Glauber ainda não tinha visto a Crônica, cuja estreia
mundial teve lugar em 3/2/1968 no Festival de Utrecht. Ele veria o filme
entre abril de 1968 e abril de 1969, quando o qualifica de “obra-prima”
muito diferente de seu próprio cinema (entrevista a René Capriles e F.
Cárdenas de 27/4/1969, incluída em RCN, p. 181). Em seu segundo texto
mais frontal sobre Straub, de 4/4/1970, ele comenta os três primeiros
longas, Não reconciliados, Crônica e Othon, à guisa de apresentação de
Straub ao leitor da conversa na casa de Gianni Barcelloni (cuja transcri-
ção aparecerá em seguida):

“Casado com a cineasta francesa Danièle Huillet, Straub estourou


em 65, no Festival de Pesaro, com um filme de uma hora chamado
Não reconciliados (Nicht Versohnt oder Es Hilft Nur Gewalt, Wo
Gewalt Herrscht), panfleto e reflexão política sobre o renascimento
do nazismo na Alemanha. O tema era forte, mas foi a forma de
Straub filmar que fundiu a cuca da crítica. Ele destrói todas as
noções de espetáculo, todas as famosas ‘noções de cinema’ que
um crítico ou espectador possa ter. Simplesmente coloca os atores
parados, de costas ou de perfil, duros, e filma os sons, eis o barato!
Para Straub, o cinema é algo físico, concreto. Na sua linguagem
simples e desesperadora, isso quer dizer: atores imóveis em diálo-
gos de alto nível literário. Cenas fixas longuíssimas. O movimento é
dado pelo ritmo da fala. No cinema de Straub a palavra vira música.
E a música vira palavra no filme seguinte — Crônica de Anna Mag-
dalena Bach -, biografia estética do compositor. São várias cenas
fixas onde, a par de algumas rápidas interferências dialogadas,
vemos o tempo todo orquestras executando concertos de Bach.
Para Straub, a única forma de filmar a vida de um músico é filmar
sua música, ‘porque sua música é a sua palavra’. Depois de Bach,
Straub terminou Othon, uma obscura tragédia de Corneille filmada
em Roma, numa co-produção alemã-italiana. Em cores, os atores
recitam o texto integral da peça, diante dos cenários antigos roma-
nos. De uma simplicidade de vestuários e de encenação absoluta,
Escritos sobre a obra 253

o filme — segundo o autor — ‘visa despertar no público o amor pela


língua maravilhosa de Corneille’. Em Bach, ouvíamos a música de
Bach; em Othon, ouvimos os versos de Corneille. A neutralidade
da imagem e o dinamismo do som são as grandes contribuições
de Straub para inverter e abrir alguns caminhos para o futuro do
cinema” (Revolução do cinema novo, pp. 223–4).

Depois destes textos, as referências seguintes de Glauber aos Straub


continuam muito admirativas, mas remetem cada vez menos a filmes par-
ticulares, e cada vez mais ao projeto geral de cinema deles. Glauber não
cessa de elogiá-lo, mesmo em momentos de divergência pontual, como na
discussão a propósito do cinema latino-americano no Festival de Pesaro
de 1973. Ali, segundo os relatos de Louis Seguin e Lorenzo Codelli (Positif
n.158, abril de 1974, pp. 65 e 68), Straub teria criticado em bloco o cinema
político latino-americano visto no festival, que se limitaria a copiar a lin-
guagem do cinema americano dominante. Em sua resposta à queima-rou-
pa, Glauber teria declarado que “a pureza de uma forma não contaminada,
em cuja busca Straub está na linha de frente, é a mesma ilusão [leurre]
que o falso ideal da utopia socialista, que os intelectuais ocidentais gos-
tariam de ver instantaneamente realizado na América Latina” (p. 68). Não
conhecendo os testemunhos diretos de Glauber e Straub20, nem outras
fontes e desdobramentos desta polêmica que faz pensar numa polêmica
anterior de 1969 entre Glauber e Godard em torno do cinema político21,
tomo este relato com certa precaução. Nada impede, porém, de reter dele
sobretudo o reconhecimento glauberiano de que Straub estava na linha
de frente da busca de uma forma política não contaminada, ainda que
sua aplicação automática para o contexto latino-americano pudesse na
época aparecer a Glauber como uma ilusão, um logro ou uma miragem.
Pouco depois da discussão de Pesaro, numa entrevista italiana de
1973–74 a Cinzia Bellumori, Glauber inclui Straub num grupo numeroso
de cineastas que “procuram abrir as portas de um outro mundo para além
da repressiva razão ocidental e da mística razão oriental, para deixar falar
o homem liberado” (C. Bellumori, Glauber Rocha, Firenze, Il Castoro, 1974,

20. E sabendo também a posição geralmente hostil da revista Positif em relação a Straub (da
qual Seguin é uma honrosa exceção)…
21. Em meu ensaio “Godard, Glauber e o Vento do Leste: alegoria de um (des)encontro” (Devires,
vol.4, n.1, jan-jun 2007, pp. 36–63), discuti esta polêmica e o sentido de sua representação numa
cena do Vent d’Est (Godard e Gorin, 1969).
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 254

p. 5). Noutra entrevista, à revista italiana Filmcritica (n.256, agosto de


1975), ao fazer um balanço do cinema revolucionário e marxista, Glauber
salienta a importância das experiências do cinema novo brasileiro, de
Godard e de Straub (cf. RCN, p. 298). Um pouco adiante, ao falar de seus
gostos como espectador, ele diz que “… o cinema burguês e revisionista
não me interessa mais. Acho-o chato, falso, feio, uma coisa monstruosa.
Os cineastas (salvo Straub, Godard, Jancso, Bertolucci, Amico e alguns
terceiro-mundistas) que me interessam são aqueles visionários. Nos fil-
mes de Jancso, por exemplo, cada plano é uma outra coisa, não tem nada
a repartir com o realismo. O mesmo vale para Straub e Godard” (RCN,
p. 303). Num outro texto do mesmo ano, ele afirma que “com exceção dos
filmes de Godard (aqueles do período anárquico e aqueles do período
marxista), daqueles de Jean-Marie Straub e daqueles de Miklos Jancso,
o discurso cinematográfico da esquerda revolucionária é ainda realista-
-crítico, de origem romântica pré-joyciana ou teatral-psicológico pré-
-brechtiano ou ainda documentário-formalista (retórica) do fenômeno”
(RCN, p. 304).

III
Como cineasta, Glauber se declarou várias vezes interessado, atento ou
mesmo influenciado pelo cinema dos Straub. Ele reconhece ter recebido
influência de Straub em Câncer (rodado em agosto de 1968, montado em
1972), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) e O Leão de
sete cabeças (Der Leone have sept cabeças, 1970): “Voltando ao Câncer. Eu
havia conversado muito com Straub em Berlim sobre o tema do plano-
-sequência e resolvi fazer experiências a partir daquelas que Straub está
fazendo” (“O transe da América Latina”, entrevista de 27/4/1969 incluída
em RCN, p. 181); “Antonio das Mortes [= O Dragão] é dialético: tem influên-
cia de La Chinoise e de Straub” (“América Nuestra”, julho de 1969, em RCN,
p. 167); “… eu te dizia que não queria mais ser o cineasta barroco, épico
etc. Meus últimos filmes são de ruptura comigo mesmo, te dizia também
que o Leão [Der Leone] era um filme não integrado, mas era preciso para
mim citar Godard, Straub, Brecht etc. para não esconder minhas obses-
sões, mas, ao mesmo tempo, penso que o Leão é um filme simples, primá-
rio, não culturalista, africano e africanista” (Carta a Michel Ciment do fim
de 1970, incluída em Cartas ao mundo, p. 372). Num texto escrito em Roma
em julho de 1969, e não publicado na época, sobre o projeto do filme
Escritos sobre a obra 255

América nuestra, que ele nunca realizará, Glauber indica (no fim de uma
lista bem heterogênea de elementos vindos de vários outros cineastas e
aparentemente almejados para o seu filme) seu desejo de introduzir no
filme “alguma coisa de Straub” (RCN, p. 162).
Sem saber precisamente a quais filmes dos Straub Glauber se refere
ao declarar suas influências, vejo bem, de minha parte, o interesse de uma
comparação do Câncer com O noivo, a atriz e o cafetão de Straub (que
Glauber não pôde ver antes de filmar seu longa em agosto de 1968, mas
deve ter visto antes de montá-lo em 1971–2)22, que já sugeri aliás ao incluí-
-los em sessões duplas numa mostra curada por mim em Belo Horizonte
em 201023, mas o universo do Dragão e de Der Leone me parece distante
dos Straub, tornando pouco operatório o exercício da comparação. Em
todo caso, o filme que julgo mais revelador do diálogo de Glauber com o
cinema dos Straub é no fim das contas não um daqueles que ele declarava
influenciado pelos colegas, mas um outro, Claro, que ele filmou em Roma
em 1975, na mesma condição de estrangeiro auto-exilado que os Straub.
A comparação parece fecunda tanto pelas questões comuns (o mesmo
desejo de explorar as conotações fornecidas pela geografia e a história
de Roma, e o mesmo recurso à figura histórica do Império Romano para
pensar o capitalismo contemporâneo) quanto pelas diferenças no trata-
mento estilístico.
Glauber não deixou quase nenhuma referência aos filmes romanos
dos Straub com os quais Claro dialoga. Afora a breve descrição já citada
acima na introdução à conversa de 1970 (cf. RCN, p. 224) e uma declaração
à qual voltarei, só encontrei uma referência pontual de Glauber a Othon
como um filme genial24, e um elogio vago, numa carta de Roma a João
Carlos Rodrigues de 18/1/1973: “O filme de P. C. Saraceni é ótimo e o último
de Straub” [último qual? Othon? Lições de História? Introdução…?] (Cartas
ao mundo, p. 450). Estranho à primeira vista, este silêncio deixa de sê-lo

22. Ao filmar Câncer e O dragão, Glauber conhecia de Straub Não reconciliados e talvez a Crônica
e Machorka-Muff (1963). Antes de filmar Der Leone em outubro-novembro de 1969 no Congo-
Brazzaville, ele deve ter visto na Europa O noivo… (lançado na Itália em 1969) e antes de
terminar sua montagem em Roma, ele pôde talvez ver Othon, terminado no fim de 1969 e exibido
em Rapallo em 4/1/1970.
23. Conjugada com um curso e intitulada “Glauber Rocha e o cinema moderno: alguns diálogos”,
a mostra foi acolhida pelo cine Humberto Mauro (de 25/6 a 14/7/2010) e exibiu dos Straub, além
de O noivo…, Lições de História (1972) e Introdução a “Música de acompanhamento etc (1972).
24. Num texto sobre Solanas de 25/2/1971, Glauber diz que Othon é genial por ter suscitado o
delírio de Jean Narboni em seu ensaio “La vicariance du pouvoir” (cf. RCN, p. 248).
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 256

se pensamos noutros filmes com os quais Glauber dialogou sem tê-los


discutido para valer em seus textos. O caso mais exemplar é o de La fièvre
monte à El Pao / Los ambiciosos (1959), de Buñuel, filme que ele retomou
de muito perto em Terra em Transe25 (um quase remake, como já notaram
Walter Lima Jr. e Caetano Veloso)26, mas que quase não comentou em
seus vários textos sobre Buñuel. Num ensaio comparativo sobre Glauber
e Jean Rouch, já discuti o silêncio de Glauber sobre a questão do transe
em Rouch, que no entanto deve ter informado seu próprio uso do transe
em seus filmes27. Mais recentemente, Lúcia Nagib se deparou, no capítulo
3 de seu World Cinema and the ethics of realism (N.Y. / London: Continuum,
2011, pp. 125–56), com situação parecida, ao sugerir uma série de indícios
estilísticos convincentes de um diálogo provável de Terra em transe com
o filme Soy Cuba (Mikhail Kalatozov, 1964). Este filme cubano do vete-
rano soviético nunca foi objeto de referências de Glauber, que já havia
porém publicado sobre o filme mais célebre de Kalatozov, Quando voam
as cegonhas (1957), um artigo no Jornal do Brasil de 27/9/1960 intitulado
“Cegonhas soviéticas ou tirania das Belas Artes”… A cada vez, é como se
Glauber preferisse manter o silêncio ao sentir o risco de ver seu trabalho
assimilado a algum padrinho que pudesse ameaçar sua autarquia e sua
soberania artísticas.
Da necessidade de preservar tal soberania, ele falou claramente
numa entrevista aos Cahiers du cinéma (n.214, julho-agosto de 1969, p. 29),
apontando o risco de epigonismo na relação com os colegas europeus:

“Nos festivais de Cannes e Pesaro e até mesmo na Semana da Crítica,


tem-se a impressão que estamos vendo cinema de sociedade
anônima em estilo e pensamento. Por exemplo: encontra-se godar-
dismo em toda parte. E, mesmo do ponto de vista técnico, ele não
é bem-sucedido. É superficial. Este é o caso do cinema independen-
te de muitos países. […]. Agora, vai começar a moda Straub. Con-
versei com jovens cineastas que me disseram: vou fazer meu filme

25. E que Straub julgava “o melhor filme político que já vi” na conversa romana de 1970 (cf. RCN,
p. 228). Segundo Danièle Huillet, Straub “diz que nunca teria feito Othon se não tivesse visto
La fièvre monte à El Pao” (Antonio Rodrigues (org), Jean-Marie Straub / Danièle Huillet, Op. cit.,
p. 99).
26. Cf. Alex Viany, O processo do cinema novo (Rio: Aeroplano, 1999, p. 358) e Caetano Veloso,
Verdade Tropical (S. Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 104).
27. Cf. “Jean Rouch e Glauber Rocha, de um transe a outro”, em Mateus Araújo Silva (org.), Jean
Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (Belo Horizonte: Balafon, 2010, esp. pp. 60–61).
Escritos sobre a obra 257

com primeiros planos de trinta, cinquenta minutos. Haverá também


a moda Jancso. Os jovens cineastas deveriam compreender que
Straub é importante porque é um criador original e que a prolife-
ração de estilos individuais é a coisa mais importante para deter-
minar o desenvolvimento do cinema” (agora em RCN, p. 204).

O interesse e a vontade de dialogar com estes cineastas coexistia por-


tanto em Glauber com seu cuidado em preservar sua autarquia e sua
liberdade criativa. O que ele menos queria era se tornar um epígono de
seus colegas — mas ele não se privava de incorporar a seu próprio tra-
balho tudo o que pudesse encontrar de interessante no deles. E é bem
este o caso dos filmes romanos dos Straub, dos quais ele vai incorporar
alguns elementos, misturando-os com outros e reconvertendo-os às suas
próprias pesquisas. Sintomática desta postura é uma declaração curiosa
de Glauber no texto de apresentação de Der Leone (de 1970 ou 1971) no
seu lançamento europeu, remetendo Othon ao terceiro mundo28: “Para
mim, Homero pertence mais ao Terceiro Mundo que à Europa. Para mim,
a direção de Othon feita por Straub e Danièle pertence mais ao Terceiro
Mundo que a realização de Terra em transe” (Trad. de Paulo R. Ferreira em
Luz e Ação, ano 1, n.3, oct-nov. 1981, p. 18).
Como na peça Othon (1664) de Corneille e no filme de 1969 dos Straub
nela inspirado, trata-se em Claro de uma meditação sobre Roma e o Im-
pério Romano por um observador estrangeiro. À diferença da peça de
Corneille e do filme dos Straub, porém, o filme de Glauber não resultará
de um longo esforço de gestação. Junto com Câncer e Di Cavalcanti (1977),
Claro (35mm, cor, 107’) é o filme menos preparado de Glauber. Sua reali-
zação não terá ultrapassado, do início ao fim, dois meses e meio de 1975.
Filmado em Roma em 15 dias, de 30 de abril ao 15 de maio, ele foi montado
logo em seguida em junho-julho para ser exibido no Festival de Taormina
em julho, antes de estrear em Roma em outubro de 1975. Ele foi improvi-
sado por Glauber, sua companheira Juliet Berto e um punhado de amigos,
com câmera na mão e som direto, sem roteiro prévio, em ruas, praças e
alguns interiores de Roma (aos quais se acrescentou uma sequência de

28. Da tendência de Glauber a integrar suas novas experiências ao seu próprio universo, há
outros exemplos, como sua declaração entusiástica de 1969 a um Jacques Rivette perplexo, se-
gundo a qual L’amour Fou (1968) era um filme tropicalista (cf. Sylvie Pierre, Glauber Rocha, Paris:
Cahiers du cinéma, 1987, p. 139, n.8 e “Glauber en exil”, em Glauber Rocha / Nelson Rodrigues,
op. cit. 2005, p. 14).
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 258

10 minutos filmada numa praia italiana). Glauber o caracteriza como “um


filme sobre Roma, uma viagem, um passeio audiovisual em Roma, muito
descontraído, sem nenhuma intenção predeterminada, um filme mais
próximo do jornalismo do que da poesia ou da ficção” (“Glauber Rocha
está em outra”, Movimento, 5/7/1976, p. 16).
Heterogêneo em seu fluxo, o filme conjuga basicamente duas séries
paralelas de cenas: 1) aquelas filmadas em espaços públicos de Roma,
tendendo ao documentário ou ao happening na interação com as pesso-
as da rua e com os signos ou as ruínas do Império Romano; 2) aquelas
filmadas em interiores ou em espaços privados, esboçando uma ficção
com jeito de psicodrama em torno de personagens emblemáticos da de-
cadência do capitalismo, interpretados por atores que atuam no limite
da histeria. As duas séries ocupam quase o mesmo tempo do filme, a dos
interiores sendo um pouco mais presente, e as duas se articulando por
alternância. Oscilando entre as duas séries, várias cenas de Glauber e
Juliet Berto sozinhos, entre amigos em apartamentos ou passeando pelas
ruas de Roma, em comícios da esquerda italiana, em festas religiosas, e
mesmo numa espécie de favela — numa sequência excepcional, das mais
bonitas do filme, com imagens do casal entrando na favela e discutindo
calorosamente com seus habitantes ao som do quarto movimento da
Bachiana n.2 de Villa-Lobos (“O Trenzinho do Caipira”). Em monólogos
que os dois proferem ao longo do filme, eles retomam várias vezes, em
tom apocalíptico, o motivo da “decomposição da civilização ocidental”,
da «destruição do capitalismo”, etc.
O modo de construção e a mise en scène do filme de Glauber são
muito diferentes daqueles que encontramos nos filmes romanos dos
Straub. Ecoando um pouco a estrutura compositiva de Umano non umano
(1972), um documentário experimental de Mario Schiffano que pouco
antes também alternara sequências documentais de rua com sketches
ficcionais heterogêneos29, Claro parece se afastar do rigor e da vontade
de ordem dos filmes dos Straub em benefício de uma exaltação desme-

29. As semelhanças de estrutura entre Claro e Umano non umano de Schiffano (que Glauber
conhecia e citava duas vezes em textos de 1976 — cf. SC, pp. 242 e 294) me saltaram aos olhos
quando vi tardiamente uma cópia restaurada deste último. Nunca discutidas por ninguém, elas
merecem um exame mais atento, que deixo para outra ocasião. Baste-me assinalar aqui o uso
por Schiffano do mesmo Carmelo Bene contracenando com outra atriz numa sequencia ficcional
de interior de apartamento, e a recorrência de planos de uma manifestação de operários numa
praça pública italiana, alternados com cenas de festas e com pequenos blocos ficcionais ou
performáticos, num arranjo que antecipa o de Claro, embora me pareça menos vigoroso.
Escritos sobre a obra 259

surada, tributária do estilo atorial de Carmelo Bene. Este aparece numa


sequência de sete minutos no meio do filme (na qual diz que a decadência
é bela) mas parece contaminar boa parte de seus outros atores, como se
seu modo de atuar desse um pouco o tom geral da aventura. Olhando
de perto, porém, sob esta atuação dos atores que incorpora as pulsões
destrutivas caras a Bene30 e sob a semelhança com o filme de Schiffano
(que não discutirei aqui), Claro responde aos filmes romanos dos Straub,
tanto no fundo quanto numa série de elementos constitutivos. Que eu
saiba, após ter sido assinalada por um jornalista numa entrevista de
Glauber quando da primeira projeção de Claro no Festival de Taormina
em 197531, esta curiosa conjugação dos Straub e de Bene promovida pelo
filme nunca foi discutida pela crítica, e espera ainda um exame atento.
Se Bene atua numa sequência de Claro e inspira provavelmente a atu-
ação de alguns de seus atores, Straub é invocado nominalemente, numa
cena de manifestação política noturna em praça pública. Ao lado da mul-
tidão e em meio ao burburinho, Juliet Berto consulta um projecionista
militante (cujo rosto lembra o de Zelito Viana, se não for o dele) sobre
os cine-manifestos que ele poderia lhe emprestar ou projetar (o homem
diz a Juliet ter filmes de “Sua Majestade Eisenstein”, Straub, Godard,
Visconti, Fellini, Antonioni, “mestre Rossellini”, mas não de Andy Warhol,
que lhe parece à direita demais)32. Esta alusão pontual poderia parecer
anedótica se Claro não travasse um verdadeiro diálogo com os filmes
romanos dos Straub. Entre os indícios mais evidentes deste diálogo, que
é preciso discutir de perto numa futura análise mais atenta, guardemos
as relações estabelecidas por Claro, no rastro dos Straub, à História, ao
Tempo e ao Espaço romanos. Mais especificamente, discutemos o modo

30. Sobre a relação de Glauber e Bene, cf. Noël Simsolo, “Les riguers du désordre” (em D. Bax et
al., Glauber Rocha / Nelson Rodrigues, op. cit., p. 91) e o fim de Maurício Cardoso e Mateus Araújo
Silva, “Glauber Rocha leitor de Shakespeare: da tragédia de Macbeth à farsa de Cabezas Cortadas”
(em Anabela Oliveira et al., Diálogos Lusófonos: Literatura e cinema. Vila Real, Portugal: Centro
de Estudos em Letras, 2008, pp. 174–75).
31. Respondendo a uma questão precisa sobre Straub e Bene, Glauber desconversa, reiterando
uma generalidade sem assumir as influências: “- Entrevistador: A propósito de Claro, o que você
pode nos dizer da nova linguagem que você adotou, na qual se sente a presença de Straub e
Carmelo Bene? — G. Rocha: Sou aberto ao intercâmbio com outros diretores, e aquilo que me
agrada cito como parte essencial do desenvolvimento linguístico” (Entrevista publicada no
programa do Festival de Taormina de 1975, e traduzido no catálogo Glauber por Glauber, Rio,
Embrafilme, 1985, p. 41).
32. Esta cena aparece aos 76’ de Claro, e seus diálogos são transcritos nas pp. 430–431 do volume
póstumo dos roteiros de Glauber (Roteiros do terceyro mundo, Rio, Alhambra / Embrafilme, 1985).
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 260

como Claro 1) articula o presente do capitalismo (estávamos em 1975)


ao passado do Império Romano; 2) ocupa e explora os espaços públicos
e privados de Roma.
À escolha de instalar o teatro de Corneille no Monte Palatino (Othon)
e àquela de voltar a Júlio César via Brecht (Lições de História), Claro
responde com uma cena marcante filmada na Praça do Capitólio. Nesta,
Glauber enquadra a estátua de mármore de Pólux (em ângulo próximo ao
do plano da estátua de Júlio César filmada em Lições de História) e depois
a estátua equestre de bronze de Marco Aurélio. Sobre imagens desta úl-
tima, ele profere seu primeiro monólogo over referindo-se ao “centro do
imperialismo […], o resultado da conquista imperialista de Roma sobre o
Terceiro Mundo” e invocando duas vezes o Imperador Augusto (Otávio).
Ora, Augusto nasceu no mesmo Monte Palatino em que Straub filmou os
três primeiros atos de Othon, e foi adotado pelo mesmo Júlio César que
é o protagonista (póstumo) de Lições de História. Numa só cena, Glauber
costura assim os dois primeiros filmes romanos dos Straub, deslocando
um pouco suas referências históricas e geográficas, mas apostando num
horizonte de preocupações bem próximo.
Assim, o recurso em seu monólogo over à decadência do Império
Romano para assimilá-lo à decadência do capitalismo do seu tempo
(“esta é a última imagem do Ocidente”) o aproxima dos dois filmes dos
Straub33. Numa entrevista a Marcel Martin sobre Othon, Straub explicita
esta analogia que também animava seu filme: “M.M.: — Você disse que
se podia estabelecer um paralelo entre a queda do Império Romano e a
queda do capitalismo. Como você a entende? J.-M. Straub: — Quando tive
a ideia do filme neste terraço [do Monte Palatino], minha ideia concreta
era mostrar que o que restava do Império Romano era as ruínas e se
sabia por quê: é porque o imperialismo engendra sua própria destruição
e a sociedade capitalista segue o mesmo caminho” (Les Lettres françaises,
13/01/1971).
Claro partilha com os três filmes romanos dos Straub a relação ins-
taurada entre o passado que se revisita e as interrogações do presente.
Os três confrontavam em sua própria fatura o presente ao passado. Em

33. Embora as sugestões de analogia entre o Império Romano e o presente pareçam um topos
frequente dos filmes históricos sobre Roma (desde o início do cinema, e no seio mesmo do
cinema industrial), retomado por outros cineastas modernos, como Miklos Jancso, que Glauber
admirava e que fez na mesma época dois filmes italianos sobre a antiguidade romana: La tecnica
e il rito (1971) et Roma rivuole Cesare (1973).
Escritos sobre a obra 261

Othon, pela coexistência entre a encenação da história antiga (a partir


de sua leitura por Corneille no século 17) e o espaço da Roma contempo-
rânea, com sua dinâmica (paisagem urbana, tráfego de carros, prédios
modernos etc) e suas significações de hoje; em Lições de História, pela al-
ternância entre o trajeto nas ruas da Roma atual percorrido de carro pelo
jovem entrevistador e suas visitas às testemunhas antigas dos negócios
de Júlio César; em, Introdução…, pela atualização na imagem e no som
dos documentos da guerra entre os homens tecendo sua história (foto
dos communards de Paris massacrados, textos de Schoenberg e Brecht
em torno da ascensão do nazismo, imagens em movimento de um bom-
bardeio de campos vietnamitas pelos B-52 americanos).
Glauber procura também instaurar esta relação, mas a seu modo:
organizando happenings “bárbaros” nas ruínas romanas visitadas pelos
turistas (enquanto os Straub encenavam Corneille longe deles, no Monte
Palatino ou nos jardins da Villa Doria Pamphili); alternando cenas de
rua em lugares e situações públicos carregados de sentido com cenas
de ficção num registro grotesco; estabelecendo uma associação entre
a queda do Império Romano e a derrota dos EUA na guerra do Vietnã
(antes que a guerra acabasse, os Straub haviam sugerido outra, no fim
de Introdução, entre o bombardeio do Vietnã pelos B-52 americanos e o
episódio do nazismo na Alemanha, referido nas falas de Schoenberg e
Brecht, mas também na notícia recente da absolvição de dois constru-
tores de câmaras de gás em Auschwitz) ; sobrepondo páginas de jornais
(que apareciam nos filmes dos Straub desde Machorka-Muff, e fechavam
a Introdução…) e revistas com manchetes sobre a guerra do Vietnã ao
fluxo das imagens e dos sons que não lhe concerniam diretamente, de
modo a privilegiar não a clareza e a legibilidade das notícias mostradas,
mas um efeito de confusão entre elas e as vivências diretas dos exilados;
substituindo pelas perambulações de Juliet Berto a pé os passeios de
carro do jovem entrevistador de Lições de História34.
Se houve quem falasse em “viagens ao país do povo” a propósito das
cenas deste rapaz percorrendo de carro bairros modestos de Roma35, a
34. Isto não impede Glauber de deixar um plano curto de travelling das ruas de Roma vistas
de um carro (que passa diante da Embaixada dos EUA), num reenvio a Lições de História, mas
diferenciado, pois adotando um ângulo diverso daquele escolhido pelos Straub. Nem de fazer
um plano bem straubiano de panorâmica lateral dando a ver, do alto, a cidade de Roma.
35. A expressão de Rancière é invocada no texto de Jacques Bontemps sobre Lições de História
(“Pour venger Brecht de Pozner: à propos de Leçons d’Histoire”, Trafic, n.22, été 1997, p. 52), ao
qual devemos uma fina discussão sobre a representação da História no filme.
Glauber Rocha e os Straub: diálogo de exilados 262

viagem vai mais longe e mais fundo na visita estridente dos pedestres
Glauber e Juliet a uma favela romana, uma borgata digna de Pasolini,
para falar diretamente a seus habitantes pobres e desconcertados, que
a polícia estava ameaçando de expulsão. Se as viagens do personagem
straubiano apostavam num trajeto planejado com antecedência pelos
cineastas em território conhecido36, e configuravam um gesto cinema-
tográfico medido com o rigor habitual das suas escolhas, a incursão de
Glauber e Juliet é uma aventura em terreno desconhecido, atravessada
pela instabilidade de um gesto desmedido e insólito. Ela pode ser vista
como uma espécie de happening cívico de solidariedade para com os
habitantes ameaçados de expulsão, mas ao mesmo tempo como um exer-
cício de experimentação estilística: toda a segunda metade da sequência
se constrói por sobreimpressão de imagens daquela visita, numa textura
francamente experimental. Ao controle do motorista straubiano sobre
o carro (embreagem, freio, acelerador e volante) e seu entorno (do qual
está separado e protegido pela máquina), o descontrole total da situação
em que Glauber e Juliet se lançam, para se solidarizarem com os ameaça-
dos cuja reação não podem prever, e que os recebem com perplexidade,
encarando muito a câmera e revelando vez por outra certo incômodo.
Enfim, aos planos descontraídos de Straub e Huillet em seu aparta-
mento romano invocando Schoenberg e Brecht (ele fumando no terraço,
ela acarinhando o gato na cama), respondem os planos descontraídos,
mas ainda mais próximos do vivido, de Glauber e Juliet em apartamentos
romanos, fumando, falando, por vezes dançando, ouvindo música, rece-
bendo amigos etc. O filme de Glauber acentua a dimensão existencial de
suas aparições com Juliet, à diferença daquelas de Straub e Huillet, que
ancoravam em seu espaço doméstico uma discussão histórica bastante
circunstanciada sobre Schoenberg e Brecht face à ascensão do nazismo,
mas não revelavam nenhum ímpeto de auto-exposição.
Assim, um exame atento nos mostra que, apesar de reaparecerem
num universo estilístico muito diverso, as questões e as interrogações
presentes nos três filmes dos Straub estão sendo retomadas em Claro.
Neste, outros elementos vêm se integrar, mas tudo se reorganiza a partir
de parâmetros propriamente glauberianos — a oposição entre as intrigas
palacianas e o espaço do povo (presente em Terra em transe, Der Leone,

36. Ver a este respeito a conversa de 1972 dos cineastas com W. Roth e G. Pflaum sobre Lições
de História, publicada originalmente em Filmkritik (n.194, fev. 1973) e traduzida neste catálogo.
Escritos sobre a obra 263

Cabezas Cortadas [1970] e reiterada mais tarde em A Idade da Terra [1980]),


o uso do grotesco para figurar as altas esferas do poder, a introdução
progressiva da voz e do corpo do cineasta em seu esforço para apreender
um mundo que parece desafiar seus esquemas de compreensão. O diá-
logo de Claro com os Straub aparece então como um exemplo ao mesmo
tempo do aporte deles a seus colegas mais atentos e da capacidade de
Glauber de integrar a seu próprio universo elementos buscados noutra
parte, sem jamais cair no epigonismo. Diálogo de exilados, diálogo de ci-
dadãos do mundo, que observavam as ruínas de um império de outrora e
pressagiavam a queda do capitalismo. Este tem resistido aos solavancos,
e continua a fazer seus estragos.
Sobre os autores

François Albera (Genebra, 1948) Mateus Araújo Silva (Belo Horizonte, 1971)
Historiador, teórico e crítico de cinema. Doutor em Filosofia pela Univ. de Paris I
Professor de história e estética do cinema na (Sorbonne) e pela UFMG. Ensaísta, tradutor
Universidade de Lausanne. Especializou-se no e curador de cinema. Publicou ensaios sobre
cinema soviético dos anos 20-30 (sobretudo filosofia (Platão, Aristóteles, Descartes,
em Eisenstein, do qual é um dos mais eminen- Adorno) e sobre o cinema moderno (Glauber,
tes estudiosos vivos), no cinema francês dos Godard, Resnais, Fellini, Kluge, Paradjanov,
anos 20 e no cinema independente contempo- Oliveira, Bene, Akerman, Pedro Costa).
râneo. Autor de vasta produção bibliográfica, co-organizou os livros Glauber Rocha/Nelson
escreveu entre outros Eisenstein et le cons- Rodrigues (Magic Cinéma, 2005) e Jean Rouch:
tructivisme russe (L’âge d’homme, 1990; trad. Retrospectivas e Colóquios no Brasil (Balafon,
brasileira Cosac Naify, 2002) e L’avant-garde 2010). Estabeleceu e traduziu com Cyril
au cinéma (Armand Colin, 2005), e organizou Béghin a edição francesa de Glauber Rocha,
ou co-organizou entre outros Sergei Eisens- Le Siècle du Cinéma (Yellow Now, 2006),
tein, Cinématisme: cinéma et peinture (Com- e prefaciou a de Ismail Xavier, Glauber
plexe, 1980), Boris Barnet: écrits, documents, Rocha et l’esthétique de la faim (Harmathan,
études, filmographie (Festival de Locarno, 2008). É um dos editores da revista Devires
1985), Eisenstein, le mouvement de l’art (Cerf, (Cinema e Humanidades, UFMG).
1986), Lev Koulechov: l’art du cinéma et autres
écrits (L’âge d’Homme, 1994), Les formalistes Alain Bergala (Brignoles, 1943)
russes et le cinema (1996) e Cinema Beyond Crítico, ensaísta e cineasta francês, profes-
Film. Media Epistemology in the Modern Era. sor da Universidade de Paris III (Sorbonne
(Amsterdam Univ. Press, 2009). Sobre os Nouvelle) e da FEMIS. Colaborador por anos
Straub, escreveu mais de uma dúzia de textos, a fio dos Cahiers du cinéma, dos quais foi
e organizou o volume Hommage à Danièle redator-chefe. Escreveu muitos livros,
Huillet (Université de Lausanne, 2006). dentre os quais Voyage en Italie (Yellow Now,
1990), Nul mieux que Godard (Cahiers du
Adriano Aprà (Roma, 1940) cinéma, 1999), Abbas Kiarostami (Cahiers du
Ensaísta e professor de cinema (Università di cinéma, 2004), Monika (Yellow Now, 2005) e
Roma — Tor Vergata). Realizou alguns filmes, Godard au travail — les années 60 (Cahiers du
foi ator ocasional, diretor de diversos festi- cinéma, 2006). Organizou outros tantos,
vais e retrospectivas de cinema, e da Cineteca dentre os quais Pasolini cinéaste (Cahiers du
Nazionale. Colaborador de diversas revistas, cinéma, hors-série, 1981), Roberto Rossellini,
dentre as quais Filmcritica e Cinema e Film, Le cinéma révélé (Cahiers du cinéma, 1984) e
da qual foi cofundador e editor; escreveu e os dois volumes de Jean Luc-Godard par Jean
organizou vários livros, dentre os quais Per Luc-Godard (Cahiers du cinéma, 1985 e 1998,
non morire hollywoodiani (Reset, 1999), Stelle respectivamente).
& strisce. Viaggi nel cinema usa dal muto agli
anni ‘60 (Falsopiano, 2005), In viaggio con Jean-Claude Biette (Paris, 1942–2003)
Rossellini (Falsopiano, 2006). Realizou Olimpia Cineasta e crítico francês, colaborador dos
agli amici (1970), Rossellini visto da Rossellini Cahiers du cinéma a partir de 1964 e
(1992), Circo Fellini (2010) e All’ombra del cofundador da revista Trafic em 1991, da
conformista (2011). Foi protagonista de Othon qual foi coeditor até 2003. Foi assistente
(1969) de Straub & Huillet, sobre os quais de direção de Pier Paolo Pasolini e dos
escreveu bastante ao longo dos anos, e dos Straub. Dirigiu, entre 1961 e 2002, cerca de
quais organizou o volume italiano Testi cine- 15 filmes, dentre os quais Le théâtre des
matografici (Editori Riuniti, 1992). matières (1977), Loin de Manhattan (1982) e
Saltimbank (2002). É autor dos volumes do século XX; traduziu autores como Goethe,
Poétique des auteurs (Cahiers du cinéma, Proust e Brecht e escreveu, entre outros,
1988), Qu’est-ce qu’un cinéaste? (P.O.L., 2000) I cani del Sinai (De Donato, 1967), obra que
e Cinémanuel (P.O.L., 2001). Escreveu meia inspira o filme Fortini/Cani de Straub e
dúzia de artigos sobre os Straub, em cujo Huillet, além de ter colaborado em revistas
Othon interpretou o papel de Martian. nas quais escrevia Pier Paolo Pasolini.
No Brasil, seu livro Movimento Surrealista
Serge Daney (Paris, 1944–1992) foi publicado pela editora Presença em 1980.
Crítico de cinema, foi redator-chefe dos Foi professor de História da Crítica Literária
Cahiers du cinéma entre 1973 e 1981, colabo- na Universidade de Siena.
rador do jornal Liberátion durante a década
de 80 e fundador da revista Trafic em 1991. Jean Narboni (Orléansville, 1937)
Uma seleção de textos publicados nos Crítico de cinema, foi redator-chefe dos
Cahiers du cinéma no período de 1970 a 1982, Cahiers du cinéma entre 1969 e 1974, onde
entre os quais dois artigos dedicados à obra publicou inúmeros textos sobre os Straub.
de Straub-Huillet, foi reunida no livro La Em 1977 fundou a editora Cahiers du cinéma
rampe (Gallimard, Cahiers du cinéma, 1983), e coordenou suas publicações (entre as
publicado no Brasil em 2007 pela Editora quais La rampe, de Serge Daney e La cham-
Cosac Naify sob o título A rampa. Em 1986 bre claire, de Roland Barthes), bem como os
foi publicada uma coletânea de artigos números “Hors-série” até meados da década
de sua autoria no Libération sob o título de 1980. Autor, entre outros, de Pourquoi les
Ciné-Journal (Cahiers du cinéma). Seus escri- coiffeurs? Notes actuelles sur Le Dictateur
tos foram reunidos também nos volumes (Capricci, 2010); Cinéma et politique: 1956-
Devant la recrudescence des vols de sacs à 1970 (Bpi-Centre Pompidou) e Mikio Naruse,
main (Aléas, 1991) e Le salaire du Zappeur, Les temps incertains (Cahiers du cinéma,
(Ramsay, 1983/P.O.L, 1992). 2006). Foi professor do Departamento de
Cinema da Paris 8 e da FEMIS.
Gilles Deleuze (Paris, 1925–1995)
Filósofo, autor de diversos livros sobre o Dominique Païni (Paris, 1947)
legado de Kant, Bergson, Nietzsche, Spinoza Programador, curador, crítico, ensaísta e
e Foucault, ou sobre a psicanálise, a literatu- produtor de filmes. Colaborador de numero-
ra, o cinema e as artes visuais. Com o psica- sas revistas e publicações (Art Press, Cahiers
nalista Felix Guattari escreveu, entre outros, du cinéma, Cinémathèque, Cinéma, Trafic),
O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia dirigiu a Cinemateca Francesa entre 1991 e
(1973) e Mil platôs. Capitalismo e esquizofre- 2000 e foi curador do Centre Georges Pompi-
nia 2 (1980). Sobre cinema, publicou em 1983 dou entre 2000 e 2005. Autor, entre outros,
A imagem-movimento. Cinema 1 e em 1985 de Le cinéma, un art moderne (Cahiers du
A imagem-tempo. Cinema 2. Foi professor da cinéma, 1997), Hitchcock et l’art: coincidences
Universidade de Paris I (Sorbonne) e da fatales (Mazzotta, 2000), Le temps exposé:
Universidade de Paris VIII — Vincennes Le cinéma, de la salle au musée (Cahiers du
(atualmente Saint-Denis), da qual se tornou cinéma, 2002), L’attrait de l’ombre (Yellow
professor emérito em 1987. Now, 2007) e L’attrait des nuages (Yellow Now,
2010). Escreveu diversos ensaios sobre os
Franco Fortini (Florença, 1917–1994) Straub, dos quais coproduziu o filme Pecado
Poeta, tradutor, crítico literário e membro negro (1988) e co-organizou com Charles
da Resistência durante o regime fascista. Um Tesson o volume coletivo Jean-Marie Straub,
dos mais importantes intelectuais italianos Danièle Huillet (Antigone, 1990).
Sobre os debatedores

Jacques Rancière (Argel, 1940) Hernani Heffner (RJ)


Filósofo, professor emérito na Universidade Formado em Cinema pela Universidade Fede-
de Paris VIII e autor de diversos livros volta- ral Fluminense, trabalha atualmente como
dos para questões de política e estética, Conservador da Cinemateca do MAM, Pro-
dentre os quais La fable cinématographique fessor da Puc-Rio e pesquisador da Cinédia.
(Seuil, 2001), Le destin des images (La Fabri-
que, 2003), Le spectateur emancipé (La Ruy Gardnier (RJ)
Fabrique, 2008). No Brasil, tem publicados Jornalista, pesquisador e crítico de cinema
os livros Políticas da escrita (Editora 34, e música. Fundou em 1998 a Contracampo
1995), O mestre ignorante (Autêntica, 2002) e Revista de Cinema e edita o blog coletivo de
A partilha do sensível (Editora 34, 2009), en- música Camarilha dos Quatro. Trabalha
tre outros. Recentemente publicou um volu- como pesquisador para o Circo Voador, é
me sobre o cinema de Béla Tarr — Béla Tarr, crítico de cinema para o jornal O Globo e
le temps d’après (Capricci, 2011). cocurador, com Hernani Heffner, do Festival
Cinemúsica. Foi curador de retrospectivas
Enzo Ungari (1948–1985) cinematográficas (Julio Bressane, Rogério
Ator e roteirista. Atuou em Moisés e Arão. Sganzerla, Cinema Brasileiro anos 90) e
editor de catálogo da Mostra John Ford e de
Gregory Woods Revisão do Cinema Novo, entre outros.
Foi assistente de direção de Moisés e Arão,
no qual também auxiliou Danièle Huillet Frederico Benevides (DF)
na tradução das legendas para o inglês, e Graduado em Comunicação pela Universida-
de Fortini/Cani. de Federal do Ceará, com uma pesquisa
sobre montagem no cinema. Formado pela
Escola de Audiovisual de Fortaleza, com
o trabalho “Nós em Fortaleza”, um itinerário
poético pela cidade de Fortaleza através de
manipulação ao vivo de imagens e sons cap-
tados no Youtube. Ministra cursos de forma-
ção em audiovisual, nas áreas de linguagem
do cinema e montagem, os mais recentes no
Centro Cultural Dragão do Mar e na UniFor.
Dentre outros trabalhos, dirigiu o vídeo
As corujas, contemplado no VI Edital Ceará
de Cinema e Vídeo. Atualmente cursando o
mestrado em comunicação da UFF, na linha
Políticas e análise da imagem e do som.

Luiz Pretti (DF)


Cineasta, sócio-fundador da produtora/coletivo
Alumbramento. Como diretor tem sete curtas e
quatro longas (três deles realizados em parceria
com Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo
Pretti) que passaram por importantes festi-
vais nacionais e internacionais, tendo ganha-
do prêmios na Mostra de Tiradentes, BAFICI e
Janela Internacional de Cinema do Recife.
Sobre os curadores

Stella Senra (SP) Ernesto Gougain


Ensaísta e pesquisadora na área de cinema Nasceu em Valdívia, Chile. Desde 2009, vive
desde os anos 80. Nos últimos anos, tem e trabalha no Rio de Janeiro. Cursou Artes
trabalhado sobre o estatuto da palavra no Visuais na UNIACC em Santiago do Chile
cinema e tem explorado, igualmente, as fron- e formou-se em Direção Cinematográfica
teiras do cinema com as artes plásticas. pela Universidad del Cine em Buenos Aires.
Autora de O último jornalista — imagens de É realizador dos curtas-metragens Los años
cinema, Ed. Estação Liberdade, 2000, tem siguientes, La conducta debida e Una canción
dezenas de artigos publicados em livros e incoeherente, exibidos em festivais como
catálogos de artistas: dentre esses, escreveu Karlovy Vary, FICValdivia e Curta Cinema.
recentemente sobre o filme Diário de Integrou o coletivo En Transe como organi-
Sintra, de Paula Gaitán, e sobre a noção de zador e curador da mostra itinerante homô-
imagem no xamanismo yanomami no artigo nima realizada em diversos países da
“Conversas em Watoricki”.  É Doutora em América, que exibiu obras em cinema e vídeo
Ciências da Informação pela Universidade de de artistas latino-americanos.
Paris II, fez pós-doutorado na Universidade
de Paris VII e foi professora da PUC-SP. Fernanda Taddei
É programadora, curadora e produtora de
Luiz Carlos Oliveira Jr. (SP) mostras e festivais de cinema. Estudou
Crítico de cinema e pesquisador, doutorando Desenho Industrial na PUC-RJ e formou-se
em cinema pela Universidade de São Paulo. em Cinema pela Universidade Federal Flumi-
nense. Coordenou a programação internacio-
nal do Festival Internacional de Curtas do
Rio de Janeiro — Curta Cinema de 2007 a
2010. Produziu as mostras Stan Brakhage —
A Aventura da Percepção e Andy Warhol
16mm, ambas no Rio de Janeiro. Realizou
alguns curtas-metragens, como Triângulo,
todos ainda sem exibição de cinema para
onde foram pensados. Este é o primeiro livro
que organiza.
Patrocínio
Ministério da Cultura e
Banco do Brasil

Realização
Apoio institucional
Centro Cultural Banco do Brasil

Organização
Aroeira

Concepção e curadoria
Produção de cópias
Patrocínio Vinheta
Ernesto Gougain
Fernanda Taddei

Produção executiva
Patrícia Mourão

Coordenador de produção
Fábio Savino
Realizacão

Ministério da Assistente de produção


Cultura
Alice Furtado

Produção
Alice Furtado (RJ)
Ana Arruda (DF)
Lila Foster (SP)

Legendas eletrônicas
Casarini

Transporte de cópias
KM Comex & Transportes

Revisão de cópias
Cristina Mendonça/Pamella Cabral

Assessoria de imprensa
A Dois Comunicação — Anna Accioly e
Adriane Constante (RJ)
Tátika Comunicação e Produção (DF)
Thiago Stivaletti (SP)

Design visual
Beatriz Nóbrega
Miguel Nóbrega
Organização do catálogo Agradecimentos
Ernesto Gougain, Fernanda Taddei, Mateus Adriano Aprà, Alain Bergala, Anke Hahn,
Araújo Silva, Patrícia Mourão e Pedro França Anna Schierse, Anne-Marie Faux, Associação
des filmes et leurs sites, Barbara Ulrich, Belva,
Tradução de textos Bénédicte Dumont, Benoît Turquety, Brigitte
Alice Furtado, Ana Siqueira, Bolívar Torres, Veyne, Bruno Safadi, Calac Nogueira, Carolina
Bruno Carmelo, Calac Nogueira, Ernesto Gou- Gougain, Cássio Starling Carlos, Christophe
gain, Fernanda Taddei, Íris Araújo Silva, José Calmels, Cinemateca Portuguesa, Cristian
Eduardo Marco Pessoa, Mateus Araújo Silva, Borges, Daniel Pech, Dominique Païni,
Paloma Vidal, Pedro Guimarães e Tatiana Eduardo Cerveira, Eliana Claudia de Otero
Monassa Ribeiro, Emilio Oliveira, Fabrice Marquat,
Films Sans Frontières, Gabriela Campos,
Revisão de textos Gustavo Beck, Harun Farocki, Ines Aisengart,
Marcos Alvarenga e Rachel Ades Jacques Aumont, Jacques Rancière, Jean
Narboni, Jean-Louis Raymond, Jean-Marie
Tradução de legendas Straub, Jean-Paul Toraille, João Gabriel
Íris Araújo Silva, Calac Nogueira, Camila Paixão, Joice Scavone, José Augusto Taddei,
Bechelany, Maria Leite Chiaretti, Mateus Kinemathek Le Bon Film, L’Agence du court
Araújo Silva e Tatiana Monassa métrage, Les Editions de Minuit, Les Films
du Losange, Libération, Lis Kogan, Manfred
Tradução de Othon, de Corneille, Blank, Michelle Pistolesi, Patrick Villacampa,
para legendas de Os olhos não querem Pedro Costa, Philippe Lafosse, Rachel Ades,
sempre se fechar ou Talvez um dia Roma Simon Koenig, Tatiana Monassa, Thiago Brito,
se permita fazer sua escolha Thomas Oehler e Thomas Petit
Mariana Reis Furst (coordenação),
Manuela Ribeiro Barbosa, Maria Cecília
Ribeiro Barbosa e Roberta Kelly Paiva

Os arquivos para legendas eletrônicas


dos seguintes filmes foram gentilmente
cedidos pela Cinemateca Portuguesa
O noivo, a atriz e o cafetão, Fortini/Cani,
Cézanne, Sicília!, O retorno do filho
pródigo — Humilhados, Uma visita ao Louvre,
Operários, camponeses, Esses encontros
com eles, Itinerário de Jean Bricard e
Corneille-Brecht ou Roma o único objeto
de meu ressentimento

As cópias exibidas são provenientes


dos seguintes acervos
Agence du Court-métrage, Belva,
Filmkundliches Archiv Köln, Films du
Losange, Films sans Frontières, Kinemathek
Le Bon Film, New Yorker Films, Optec
e Stiftung Deutsche Kinemathek
Apoio Institucional Patrocínio Realização

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