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O SANGUE E A POLÍTiCA: SOBRE A PRODUÇÃO DE FAMÍLIA

dossiê
NAS DISPUTAS ELEITORAIS NO SERTÃO DE PERNAMBUCO1

BLOOD AND POLITICS: ABOUT THE PRODUCTION OF


FAMILY IN ELECTORAL DISPUTES IN THE HINTERLANS OF
PERNAMBUCO

Jorge Luiz Mattar Villela*


Ana Claudia Duarte Rocha Marques**

Introdução: o sertão e a política oponentes identificados a duas das famílias


tradicionais e antigas locais, os Santanas e
A polarização das disputas eleitorais os Gouveia. Após mais de três décadas de
entre dois “lados”, “partidos” ou “facções” invencibilidade por parte dos primeiros, a
opositoras é comum em muitos municípios oposição se reorganizou em torno de uma
do interior brasileiro. A política de Jordânia candidata à prefeitura não pertencente
se particulariza, no entanto, quando com- a nenhuma dessas ou qualquer outra das
parada a outros municípios da mesma meso velhas famílias de Jordânia. Nessa mesma
e microrregião em que se situa2, no sertão campanha de 2008, o candidato da situa-
pernambucano, porque ali essa polarização ção faleceu a poucas semanas das eleições
vigorou e persistiu em torno de dois lados municipais. Vencidas as eleições, a prefei-

* Professor associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de


São Carlos (UFSCAR/São Carlos/SP/Brasil). Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia So-
cial do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. villelajorge@gmail.com.
** Professora associada do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social da Universidade de São Paulo (USP/São Paulo/ SP/Brasil). Doutora pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. anaclau-
diadrm@gmail.com.
1. Este artigo foi publicado originalmente em francês em Anthropologica, volume 58, n. 2. DOI 10.3138/Qn-
th.582.A04.FR. E aqui é reproduzido com a permissão da Editora da Universidade de Toronto – “Reprinted
with permission from University of Toronto Press” (www.utpjournals.com). Agradecemos as leituras e co-
mentários generosos de Hélène Clastres e Barbara Glowczevski, bem como de nossos avaliadores anônimos.
2. Os nomes dos municípios e dos personagens etnográficos deste texto foram inventados por um de nós
(Marques, 2002).

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ta não se identificou como representante família no sertão, enquanto concepções e
dos Gouveias, embora tenha encontrado práticas, remete a um campo de escolha e
apoio político entre eles. Desde então, os invenção, de agência individual e coletiva,
dois antigos lados opositores vêm se recon- para além da disputa pelo acesso, controle e
figurando internamente no que se refere distribuição de recursos escassos. Descrever
às alianças partidárias, nesse período que analiticamente o misto família e política,
certamente é marcado pela força política geralmente considerado espúrio pelo pen-
inusitada exercida pelo Partido dos Traba- samento político euro-americano, é uma
lhadores na região. Os Santanas continuam forma de explicitar outras compreensões e
nomeando um dos lados que disputam o práticas, em geral ocultas pelo ‘semi ideal
governo municipal em Jordânia, mas seus democrático’ (VEYNE, 1983) que, no en-
opositores não são mais perfeitamente en- tanto, não costuma realizar-se em parte al-
globados como Gouveias3. guma4. A explicitação dos modos como os
Nesse contexto, em algumas circunstân- sertanejos vivem e fazem política tem por
cias, “família” e “política” se tornam sinô- propósito e potencial liberá-los da noção de
nimos e jamais se constituem como domí- falta, intrínseca ao conceito de clientelismo,
nios autônomos de ideias ou de ações, con- e o reconhecimento dos preceitos e pontos
forme propomos explorar analiticamente, a de vista que prevalecem na sua busca por
partir de algumas noções locais de família produzir o próprio destino. Trata-se, como
e práticas a elas relacionadas. Com elas em propôs Herzfeld (2005, p. 129), de “violar o
mente nos debruçaremos, em um segundo monopólio das representações do Estado”,
momento, sobre três circunstâncias de crise na própria revelação do que se despreza
que nos informam como o sangue e a po- como “fenômenos periféricos e triviais”.
lítica fazem-se e desfazem-se mutuamente, Jordânia situa-se cerca de 450 Km a
embaralham-se e confundem-se, pela ação oeste de Recife, a capital pernambucana.
dos atores. A população é de quase 32 mil habitantes,
Com nossa abordagem, visamos con- dos quais um terço habita na zona rural. As
tribuir para um deslocamento dos debates principais e mais antigas atividades econô-
sobre clientelismo no Brasil. Um dos fun- micas dessa zona são a pecuária bovina e
damentos da democracia representativa é a caprina e a agricultura, da qual os princi-
depuração dos interesses familiares da vida pais produtos são o milho, o feijão e a man-
política, embora esse ideal seja em toda dioca. Na cidade, para além do comércio, a
parte frustrado. A análise da política e da principal fonte de emprego é a prefeitura,

3. Em outubro de 2016, o candidato dos Santanas (Orlando Santana – PRP) venceu as eleições para a pre-
feitura de Jordânia. Seus adversários se dividiram em duas outras chapas concorrentes. Após prolongada
negociação, a então prefeita Cacau Medeiros e o deputado estadual Renan Gouveia concordaram em
apoiar a candidatura de um primo de Renan, filiado ao PSD, e de uma sobrinha de Cacau, como prefeito
e vice-prefeita respectivamente. Contudo, o então vice-prefeito (Arnô Gouveia – PT) manteve sua decisão
de concorrer como titular de uma terceira chapa em disputa pela prefeitura municipal.
4. O uso de aspas simples neste artigo está reservado a termos do jargão antropológico e conceitos formu-
lados pelos autores citados. As citações bibliográficas ou de nosso interlocutores, assim como as catego-
rias e conceitos nativos são destacados por aspas duplas.

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seguida de postos de administração fede- sertão corresponde a uma vasta região de
ral e estadual. Assim sendo, a política elei- cerca de um milhão de Km2, de clima pre-
toral, as eleições municipais mas também dominantemente semiárido, em boa parte
as nacionais e estaduais se fazem acon- recoberta por uma vegetação arbustiva e
tecimentos cruciais na vida de uma parte espinhosa – a caatinga – desprovida de fon-
significativa da população. Os interesses tes de água permanentes e periodicamente
econômicos impulsionam inegavelmente sujeita a secas. Essas condições físicas ade-
o engajamento dos eleitores no processo quaram-se à pecuária extensiva, atividade
eleitoral. Nele, as adesões partidárias, os econômica predominante por todo o perío-
laços familiares e a administração pública do colonial, salvo nas pequenas manchas
também se misturam sem solução de con- úmidas em que se praticava uma agricultu-
tinuidade. No entanto, as teorias que pro- ra voltada para o consumo local (CORREIA
curam explicar esse fenômeno através de DE ANDRADE, 1998 [1963]; MENEZES,
conceitos como reciprocidade e monopólio 1937; PRADO Jr., 1980 [1945]).
de acesso e distribuição de recursos (WOLF, Segundo Capistrano de Abreu (1982
1966; LANDÉ, 1977; EISENSTADT; RONI- [1907]), os currais se estabeleceram primei-
GER, 1984; GELLNER; WATERBURY, 1977) ro à beira dos rios e riachos, que serviam
se apoiam sobre um caráter utilitário sub- de rota de penetração no interior, e o cui-
jacente a cenários políticos desse tipo que, dado da boiada empregava poucos braços.
em nossa opinião, não esgotam a questão. Os primeiros aglomerados populacionais do
Tampouco se esgota a noção de cultura po- sertão se formaram em torno das capelas, al-
lítica, que se teria consolidado no sertão em deamentos missionários de catequização dos
função de sua formação histórica. índios e de locais de feira, principalmente ao
Os historiadores brasileiros estão de longo dos caminhos que serviam ao escoa-
acordo sobre o processo de ocupação ter- mento das boiadas (SANTOS, 1958; SAM-
ritorial do sertão5 nordestino pelos agen- PAIO, 2000; MARQUES, 2013b). Por muito
tes coloniais portugueses ter iniciado já no tempo, a população sertaneja se manteve
século XVI, paralelamente aos rumos do rarefeita, malgrado o alastramento rápido
desenvolvimento de uma pecuária voltada das fazendas, formadas a partir dos primei-
para o abastecimento da população do lito- ros currais (PRADO Jr, 1980[1945]). De um
ral, onde as terras eram preferencialmente modo geral, os fazendeiros eram arrendatá-
destinadas à monocultura da cana-de-açú- rios das terras que vieram a constituir seu
car (ABREU, 1982 [1907]; ANTONIL, 1982 patrimônio, transmitido às gerações subse-
[1711]). À medida que avançavam para o quentes. Os herdeiros acrescentaram mui-
interior, um cenário muito distinto do li- tas vezes a esse legado as fazendas que eles
toral se descortinava. Na acepção atual, o mesmos formavam a partir de novo arren-

5. A origem do termo “sertão” é controversa, embora haja grande convergência sobre a referência a áreas
não oficialmente ocupadas no interior do território brasileiro, longe do litoral. Segundo Sampaio (2000, p.
26), o termo aparece pela primeira vez em um dicionário, apócrifo, impresso em Lisboa, em 1485. Ali Cer-
tan é definido como “tudo que é apartado do mar e inserido entre as terras”. Esse é o significado conferi-
do ao termo quando se fala do processo de ocupação colonial do interior do Brasil. Em sentido mais estri-
to, sertão é uma das sub-regiões do Nordeste, com características físicas e climáticas que o distinguem da
zona da mata, do agreste e meio-norte.

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damento. A forma do avanço das fazendas, AM, 1991). Nele, os coronéis são entendidos
o regime de herança e o casamento entre os como brokers ou gatekeepers, funções indis-
filhos dos fazendeiros, que vieram se esta- pensáveis para manter o sistema em vigor.
belecer no sertão, importaram na correlação Esse gênero de administração local se terá
entre parentesco e território, própria dessa formado em articulação com as relações de
formação social. parentesco. A historiografia brasileira dis-
O isolamento das longas distâncias e tinguiu na família senhorial ou patriarcal o
difíceis caminhos terá fortalecido o poder modelo analítico dos vínculos supralocais,
privado nas municipalidades do interior. As necessários não só à defesa contra inimigos
funções combinadas de administração, poli- comuns, mas também à vida pública (OLI-
ciais e do judiciário, a cargo dos municípios, VEIRA VIANNA, 1987 [1949]; PEREIRA DE
seriam efetivamente controladas pelos che- QUEIROZ, 1976; LEWIN, 1993). No entanto,
fes locais emergentes entre os fazendeiros, nós sugerimos que a família é também força
os quais tomavam parte entre os “homens de contraposição à tendência monopolista
bons”, com prerrogativa de voto; entre eles do poder do coronel (VILLELA, 2004). Atual-
ainda seriam eleitos os vereadores, os juízes mente, o sistema político se funda sobre o
ordinários e os demais oficiais das câmaras multipartidarismo, mas apesar das mudan-
municipais (o procurador, o tesoureiro, o ças de regimes no decorrer da história, os
escrivão) durante o período colonial (LEAL, dados que extraímos de pesquisa de campo
1997 [1949]; FAORO, 1958). Apesar do pro- e de arquivos nos encorajam a analisar os
cesso de centralização e perda de autonomia modos como a família e a política partidá-
municipal, que a historiografia dominante ria se misturam hoje, e também a cogitar
situa a partir de meados do século XVII e (embora este último não seja nosso objetivo
considera consagrado na independência, o aqui) linhas de continuidade com regimes do
poder dos potentados locais não terá sido passado (VILLELA, 2004).
de todo aniquilado, apenas condicionado à A análise da combinação entre família e
composição com as instâncias de governo política se impôs a nós pelos nossos mate-
a que o município estava submetido. Com riais de campo, por um lado, enquanto por
a proclamação da república, o controle das outro encontrou ressonâncias na tradição
prefeituras pelos chefes locais (os coronéis) do pensamento político brasileiro. Mas a
passou a depender do acordo do governa- fonte de inspiração para o desenvolvimen-
dor da província, do qual eles se terão feito to de nossas reflexões, nós a encontramos
reféns políticos devendo-lhes provar fideli- no NuAP (Núcleo de Antropologia da Polí-
dade política através dos votos que lhe re- tica). A partir de meados dos anos 1990, o
crutavam entre correligionários e seus de- NuAP estimulou pesquisas que estendessem
pendentes (parceiros, posseiros, agregados, conceitos e métodos antropológicos ao es-
moradores etc.) sobre os quais o direito ao tudo da democracia (PALMEIRA; HEREDIA,
sufrágio havia sido estendido. Esse esque- 1994; GOLDMAN; PALMEIRA, 1996; BE-
ma foi chamado “política dos governado- ZERRA, 2004; VILLELA, 2008). Antecipan-
res” (CARONE 1977). O coronelismo é um do, em mais de uma década, antropólogos
conceito difundido na historiografia política britânicos (CANDEA, 2011; SPENCER, 2007;
brasileira, anterior ao de patronagem (LEAL, CURTIS, 2012), os antropólogos brasileiros
1997 [1949]; CARVALHO, 1997; GRAH- pretenderam privilegiar e levar a sério con-

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cepções nativas de política. Nossa disposição elaboram grandes árvores genealógicas, que
de levar adiante essa proposta, nos conduziu se confundem com a história local, especial-
a deixar em suspenso as teses dominantes mente a política. Como veremos, esses gran-
sobre as engrenagens políticas dos rincões des mapas genealógicos não correspondem,
brasileiros e a observarmos e ouvirmos aten- contudo, ao estoque intensivo de parentesco.
tamente o que podíamos ver e o que nos di- A árvore é uma superfície análoga às orelhas
ziam os sertanejos a esse respeito. E assim, dos bodes, que levam as assinaturas pessoais
progressivamente apreendemos quanto e e das casas de seus donos ‒ sobre isso nos de-
como família é parte da política. bruçaremos adiante. Mas com pretensões to-
A exemplo do que acontece com a polí- talizantes, onde se operam conexões e desco-
tica, o estudo do parentesco na antropolo- nexões de indivíduos e coletividades, a árvore
gia procura evitar assumi-lo como um do- é também dispositivo narrativo que amplia e
mínio autônomo. As relações de parentesco condensa pertencimentos e hierarquias, tam-
desempenham um papel fundamental nessa bém presentes em outras metáforas vegetais
socialidade que procuramos descrever, pre- de família, como “troncos” e “ramos”. A polí-
cisamente porque elas se redefinem sem tica é um fator central na dinâmica de cons-
cessar em um jogo social em que variáveis tituição e redefinição constante e circunstan-
de ordens diversas intervêm. Aqui se trata cial do que se considera família, ao mesmo
de demonstrar que família e política se fa- tempo que se formula no mesmo processo.
zem e desfazem uma à outra e que família “Mamãe nunca nos ensinou que nós éra-
não é algo dado, mas algo que se aprende e mos parentes”, declarou uma amiga de Jor-
que se produz. Ela é um assunto de pedago- dânia, a respeito de um “ramo” familiar local
gia e de uma seleção que depende de vários que, no entanto, tem o mesmo sobrenome
critérios, entre eles a política, não o único, dela. Os laços de parentesco que a ligam a
mas um dos mais importantes. esse “ramo” são facilmente detectados, bas-
ta remontarmos algumas poucas gerações
1. Densidade e fluidez genealógicas. Da mesma forma que o ter-
mo família pode ser estendido a pessoas não
A exemplo de inúmeras localidades no ligadas por parentesco ou afinidade nessa
interior do Brasil, os sertanejos declaram formação social, convém argumentar, no
amiúde que eles são ligados à maioria de seus sentido oposto, que não são da família as
conterrâneos por laços de parentesco. “Aqui pessoas não “reconhecidas” ou não “consi-
é tudo braiado”, eles dizem, “todo mundo é deradas” como seus membros (MARCELIN,
parente”. Por um lado, essa constatação alude 1996), independentemente dos vínculos
a uma concepção de um estoque de paren- genealógicos que se saiba haver entre elas.
tesco, amplo e indeterminado. Por outro, a Essa extensão ou restrição do termo são
fórmula exprime estratégias de inclusão e ex- entendidas como metafóricas, para alguns
clusão. Neste último registro, ela se aplica às antropólogos, ou como ‘discurso de ocasião’
famílias ditas tradicionais, as mais antigas e (BOURDIEU, 1963). Na estreita fusão entre
prestigiosas do lugar, que subsumem ou dei- família e política que examinaremos aqui,
xam de lado outras, de chegada mais recente, contudo, o processo de familiarização e des-
de alguma forma marginais. Em referência familiarização (COMERFORD, 2003) é sem-
às primeiras, os genealogistas de Jordânia pre assumido em sentido literal.

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Nossa abordagem implica na adoção mento, a um grupo de pessoas que viveram
de uma perspectiva processual (CARSTEN, e cresceram sob um mesmo teto, notada-
2000) e política da família, capaz de enri- mente uma “irmandade” com seus pais, ou
quecer e subverter o sentido da fórmula “o ainda a todo um conjunto de descendentes
sangue é mais denso que a água”, utilizada desse grupo, mesmo que a maioria deles ja-
por Schneider (1984, p.165) para explicitar mais tenha morado ali.
os pressupostos que guiariam os estudos A polissemia do termo torna difícil toda
antropológicos do parentesco. Nossos da- identificação unívoca do sentido local da
dos de campo revertem a fórmula de Loi- noção de casa aos conceitos antropológicos
zos (acerca dos cipriotas) segundo a qual ligados a essa palavra. Diferentes aspectos
“o sangue é mais denso que o alinhamento dessas diversas acepções nos remetem ao
político” (1976, p. 78). Em Jordânia, como ‘grupo doméstico’, assim como às dimen-
veremos ao longo deste artigo, a política sões de convivialidade que Marcelin (1996)
tanto adensa quanto dissolve o sangue. e Carsten e Hugh-Jones (1995) acrescentam
Nossa análise descritiva desse processo co- ao conceito de casa, a partir de suas revi-
meçará pela apresentação de noções fami- sões críticas das sociétés à maison de Lévi
liares que estruturam as concepções e prá- -Strauss (1984)6. Entre as grandes e antigas
ticas do parentesco em Jordânia. famílias do sertão, que se instalaram ali
desde o século XVIII, algumas casas adqui-
1.1. Noções e imagens da família rem uma personalidade expressa pelo uso
de nomes próprios. O Jericó, por exemplo,
Para os que vivem nas zonas rurais do designa a casa e as terras em que se estabe-
município, a “casa” compreende a edifica- leceu o casal João Regino e Maria Trindade.
ção de sua moradia, o terreno que abriga Ali eles criaram seus treze filhos, convive-
os recursos de subsistência dos seres hu- ram com parentes, moradores, vizinhos,
manos incluídos nesse nicho existencial, visitantes, constituíram uma reputação en-
bem como todas as pessoas que o habitam, tre todos eles. Os numerosos descendentes
desde logo as que são ligadas por parentes- daquele casal são considerados “do Jericó”,
co ou que são assim assimiladas. Quando independentemente de seus endereços resi-
nossos interlocutores utilizam expressões denciais ou de onde eles nasceram. Nesse
como “lá em casa” ou “nossa casa”, a noção sentido, a casa implica um segmento socio-
adquire uma dimensão temporal. Como ob- territorial no seio do qual predomina um
servou Segalen (1981; 1996), a variação na “sangue”, ao qual são atribuídas qualida-
composição dos membros de um grupo do- des determinadas. Trata-se do sentido mais
méstico, ao longo de seu desenvolvimento, amplo da categoria “casa”.
desafia toda simplificação tipológica dessas As casas são ligadas entre elas e consti-
unidades. Nós observamos, no entanto, que tuem, nessas condições, uma ‘configuração
essas composições são, igualmente, sincrô- de casas’ (MARCELIN, 1996), espacialmente
nicas. A casa pode se referir ao lugar onde contíguas (embora haja de costume uma boa
os habitantes residem em um dado mo- distância entre elas, mesmo quando vizinhas)

6. Para uma concepção inovadora desta noção nas bases do material etnográfico acerca do Baserri, o ca-
sario basco, ver Fernandez de las Heras (2016).

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ou dispersas no interior e fora de uma região, dos por descenderem de Florência Felismina
nas zonas rurais e urbanas de um mesmo ou de Sá. Embora operando como tal, jamais
de municípios vizinhos, nas cidades de Per- ouvimos ela ser designada como “tronco”,
nambuco e alhures. Uma tal ‘configuração de possivelmente por se tratar de uma mulher;
casas’ pode fazer referência a uma localidade: contudo, a “irmandade” que gerou adquiriu
Jericó, Jaburu, Açude Novo são casas da Fa- grande fama pela tenacidade na perseguição
zenda Umbuzeiro, todas elas ligadas entre si a Lampião e seu nome distingue todo um
por laços de parentesco e correspondentes a “ramo” dos “Santana do Jericó”, aparentado e
diferentes parcelas de um mesmo patrimônio ao mesmo tempo diferenciado dos Clementes
original. As Fazendas são, assim, segmen- e dos Santana da Umbuzeiro.
tos socioterritoriais englobando casas que os Nas famílias “antigas” do sertão, ao cabo
compõem. Trata-se de um nível segmentar no de gerações sucessivas, alguns membros se
seio do qual encontramos, no sertão de Per- tornam “troncos” a partir dos quais se for-
nambuco, uma das dimensões das relações mam novos “ramos”. Esse é um vocabulário
familiares identificadas por Lévi-Strauss em de prestígio: aqueles que “são do tronco” são
seu conceito de ‘casa’. considerados “verdadeiros” Santanas, Gar-
A noção de família implica igualmente cias, Pereiras etc. Do ponto de vista genea-
a noção local de “linhagem”, que designa o lógico, mas também político, a imagem de
conjunto de descendentes de um, ou uma, “troncos” e “ramos” pode ser interpretada de
ancestral ilustre no interior da fazenda ou na duas formas. De um “tronco” se desprendem
região. Ainda que enunciada bem mais rara- vários “ramos”, ou então um “tronco” é o
mente, a “linhagem” se presta especialmente ponto de origem de um “ramo”. Essa obser-
à compreensão de uma forma de segmenta- vação é correlata de outra: conforme o con-
ção paralela à noção de família. No sertão de texto, alguém será “tronco” ou “ramo”, da
Pernambuco há o costume de transformar mesma forma que a composição desses mes-
nomes pessoais ou sobrenomes de pessoas mos “troncos” e “ramos” varia em função
ilustres em uma sorte de subnomes fami- das circunstâncias. A Fazenda Umbuzeiro é,
liares, por vezes incorporados aos registros ela mesma, um “tronco”, formado pelo Ma-
oficiais. Assim nomeados, os descendentes jor ou então por seu avô materno, que dei-
de um chefe de família se reconhecem e são xou em testamento a fazenda, parcela de seu
reconhecidos, distinguindo-se, dessa forma, patrimônio, a uma de suas filhas, de quem
como uma “linhagem”. Os descendentes dire- o primeiro foi o primogênito. Desse ponto
tos do Major Clemente são conhecidos como de vista, Umbuzeiro é também um “ramo”
Clementes. Esse dispositivo consuetudinário destacado do “tronco” original, os Santanas.
faz ou revela que o Major é, do ponto de vista No interior dessa “fazenda”, vários “ramos”
de seus descendentes, um “tronco”. Se a “Fa- se formaram, entre os quais alguns são par-
zenda Umbuzeiro” é uma parcela de um pa- ticularmente antigos e outros são desdobra-
trimônio original cuja unidade persiste, não mentos sucessivos e mais recentes daque-
obstante a fragmentação contínua por heran- les ‒ sempre nomeados a partir dos nomes
ça e alienação, os Clementes são um segmen- e sobrenomes introduzidos na família por
to do nome Santana, ao lado de numerosos casamento. Malgrado a maior estabilidade
outros que constituem os Santana do Umbu- das divisões mais antigas, os pontos de onde
zeiro. Também “os Flor” são assim conheci- surgem as ramificações e mesmo a confor-

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mação de “ramos” não são consensuais, e ram para a conformação de uma correspon-
sua localização genealógica depende dos dência entre nome, território e reputação.
contextos nos quais o grupo que se preten- Mas essa coesão é sujeita a divisões, as quais
de designar é pertinente. De certo ponto de se explicam também pelo “sangue”, uma vez
vista, o processo de “ramificação” é também que cada indivíduo é portador de uma com-
aquele que cria os “troncos”: variáveis de binação única de “sangue” ao mesmo tempo
poder e prestígio, temporais e morais inter- que é “do mesmo sangue” que todos os seus
vêm aí. Mas esse processo não é algo que ancestrais e colaterais de qualquer grau, des-
existe ou se apresenta por completo e acaba- de que se reconheça o parentesco, por linha
do para que os antropólogos possam registrá feminina ou masculina (MARQUES, 2002).
-lo. Não se fala sempre das mesmas pessoas Os processos de segmentação linhageira
nem dos mesmos coletivos: em certa medi- e territorial, de ramificação e entroncamen-
da, “troncos” e “ramos” são construídos de to, de mistura e pureza de “sangue” são par-
forma ilocutória. Com efeito, a dinâmica das cialmente coextensivos e podem ser obser-
ramificações e dos entroncamentos reproduz vados na sinalética das orelhas dos bodes. A
as propriedades múltiplas e frequentemente “assinatura” das orelhas pode ser entendida
paradoxais do “sangue”, notadamente sua como uma expressão gráfica dessas dinâmi-
fluidez e sua personalidade, assim como sua cas, bem como os ferros de marcar os bois
capacidade de se manter pura e de se mis- (BARROSO, 1956, p. 189). No caso dos ca-
turar a outros, ao mesmo tempo (CARSTEN, prinos, essa “assinatura” é realizada a cada
2013). No sertão, o “sangue” é sempre ligado ano sobre os cabritos do rebanho da “casa”,
ao nome individual ou coletivo e é o meio que nessa ocasião são repartidos entre seus
pelo qual as famílias se circunscrevem ou se membros. Marca indelével de pertencimen-
diferenciam, qualquer que seja a abrangên- to, a “assinatura” é composta de três signos.
cia que confiramos à noção. A orelha direita é reservada ao sinal da “fa-
As “irmandades” constituem os grupos zenda”, presente em todos os animais que
mais estreitamente ligados pelo “sangue”, são criados aí. A orelha esquerda é dividida
mas, em seu seio, as diferenciações indivi- em dois: a parte superior porta o sinal da
duais são significativas: um irmão exprime “casa” e a inferior é reservada à marca indi-
mais do que o outro, por sua aparência, sua vidual do proprietário do animal.
atitude e seu temperamento, as característi- No curso das gerações, as “assinaturas”
cas de um ancestral, porque nele, supõe-se, sofrem modificações que correspondem a
o “sangue” transmitido por seu pai ou mãe processos de segmentação associados a ou-
predomina. Os casamentos entre parentes tros processos, de natureza político-linhagei-
por vezes muito próximos, mais frequentes ra7. A “cruz”, que há mais de um século foi
no passado do que hoje em dia, contribuí- o sinal pessoal do Major Clemente, usado na

7. Também os ferros dos bois sofrem essas modificações no curso das gerações. Sobre um padrão original,
marca de uma “fazenda”, as diferentes “casas” introduzem variações que as identificam como proprietá-
rias da rês. Esse tipo de marcação seria muito mais eficaz, segundo nos explicou um vaqueiro do Umbu-
zeiro, do que as letras correspondendo a iniciais de nomes próprios, mais recentemente adotadas na mar-
cação do gado. Um conjunto de signos derivados de um mesmo padrão original permite que um vaqueiro
identifique com facilidade a região de onde terá partido uma rês tresmalhada, ainda que ele desconheça a
que casa específica ela pertence.

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orelha esquerda de seus cabritos, hoje é mar- enquanto atualidade, exige uma enunciação
cada na orelha direita nos rebanhos de seus oral ou escrita. Os livros de genealogia que
descendentes, de toda o Umbuzeiro. O sinal proliferam em Jordânia são a expressão ex-
que no tempo dele era rasgado na orelha di- tensiva de um estoque de filiação política.
reita deixou de ser utilizado. Canzil, coice Eles não são o ‘virtual-real’ da genealogia.
de porta, boca de lagarta, dente de mourão, Antes, eles são uma atualização política des-
dente descoberto, morsa, brinco, muitos são ta última, que funcionam como um critério
os recortes cuja combinação e distribuição seletivo que distingue os parentes dos não
nas duas orelhas identifica com precisão os parentes. O parentesco dito ou escrito, em-
donos da criação. Ao mesmo tempo, fixas bora seja considerado como a genealogia em
e suscetíveis às transformações do tempo, sua totalidade, recorta o contínuo genealó-
que decorrem de combinações e separa- gico virtual com o instrumento político da
ções, as “assinaturas” das orelhas revelam memória. Escrita, a genealogia confere pres-
uma concepção genealógica que escapa aos tígio e dignidade àqueles que ela inclui e
diagramas de antropólogos e genealogistas provoca a revolta nos parentes que exclui.
(BOUQUET, 1996). Elas explicitam recortes Quando um relato genealógico preten-
e pertencimentos, cujas mudanças ao longo de englobar a totalidade do estoque de pa-
do tempo são registradas na memória dos rentesco ele é negligenciado e considerado
criadores. Os genealogistas pretendem, ao uma tarefa inútil, porque ele contradiz as
contrário, produzir um registro cumulativo implicações políticas do memorialismo. A
e abrangente, homogêneo e neutro. pretensão de atualizar completamente o vir-
No sertão de Pernambuco, a genealogia tual-real da genealogia é considerada um
se divide em duas grandes significações e trabalho nobre e erudito, mas que carece de
formas principais: primeiro, ela designa sentido. A noção de família, nos diferentes
um estoque virtual, intensivo, pré-nominal sentidos e formas de que se reveste, varia em
de parentes (DELEUZE, 1988; DELEUZE; função da vida cotidiana. Em sentido admi-
GUATTARI, 1972). Pura intensidade, ela nistrativo, partidário ou eleitoral, a política
carece de capacidade discursiva e descriti- ocupa uma parte significativa da vida dos
va de parentesco. Por natureza virtual, ela Jordanianos. A seguir, veremos como ela é
só se atualiza em fragmentos no cotidia- capaz de fazer e desfazer família.
no. A expressão local “destrinchar o pa-
rentesco” permite compreender o processo 2. Política e família
que consiste em transformar o confuso em
analisado, o intensivo em extensivo. Essa A política eleitoral é um instrumento
virtualidade sustenta o próprio processo do poderoso que permite fazer e desfazer fa-
“destrinchamento”. A “assinatura” das ore- mília no sertão de Pernambuco e, de modo
lhas, a enunciação de “troncos” e “ramos”, especial, em Jordânia. Trata-se mesmo de
a classificação de pessoas em “casas”, “fa- um dos critérios mais importantes de sele-
zendas” e “linhagens” são formas de atuali- ção e de atualização do estoque de paren-
zação, no sentido extensivo atual de genea- tesco. Da mesma forma que a propriedade
logia, que também se manifesta ou redunda móvel dos rebanhos e imóvel das fazendas,
em uma pedagogia do parentesco. a política é algo que se herda e transmite e
A segunda significação da genealogia, que, por vezes, pertence ao “sangue”.

O sangue e a política 41
Alguns autores, a despeito das diferen- não existe família que não esteja associada
ças de objetivos e do aporte teórico de seus à atividade política, ao passo que o êxito da
trabalhos, assinalaram os esforços de pu- candidatura de um indivíduo a um cargo
rificação entre família e política ao longo eletivo depende da pertença a uma família
dos quatro últimos séculos (FABIAN, 1983; e vice-versa. Da mesma forma que a sinalé-
DONZELOT, 1986; KUPER, 1988; HERZ- tica das orelhas dos bodes e dos ferros dos
FELD, 1992; CARRIER, 1995; JULIEN, 2008). bois demonstram a segmentação dos gru-
Em 1975, Foucault assinalava já um proces- pamentos chamados família, também ocor-
so de destronamento das funções da sobe- re com a política eleitoral, visto que esta é
rania da família, transformando-a em meio uma das formas mais poderosas de se fazer
de vigilância que permite a introdução das e desfazer família no sertão de Pernambuco
disciplinas no espaço doméstico. Segalen e, sobretudo, no município de Jordânia. Eis
expõe a tentativa do Estado de produzir uma o que nos ensinam situações como as que
“família reduzida às funções menos impor- passaremos a relatar.
tantes” (1996, p. 35), de que o efeito seria a
celebração desta como grupo doméstico de 2.1. Afiliação política e familiar
consumo e de reprodução social, privado de
atividades políticas nas quais anteriormente Cerca de um ano após as eleições pre-
se engajava. O Ocidente, como sugeriu Don- sidenciais de 2010, ouvíamos as queixas
zelot (1986, p. 47), desenraiza a família de de um amigo e partilhávamos as suas an-
suas conexões coletivas. gústias. Três anos antes, nas eleições mu-
A cisão da família e da política criou um nicipais, ele era um dos protagonistas da
delito, o nepotismo. A separação entre os do- campanha derrotada de sua coligação, da
mínios familiar e político forneceu as condi- sua família política, e por isso tinha a ex-
ções necessárias à elaboração de escalas de pectativa de ser convidado a candidatar-se
perfeição, fundadas mais sobre ideais do que a vereador dali a quatro anos. Entre 2008 e
sobre a diversidade das práticas. Com efeito, 2012, ao longo das conformações de apoios
conforme mostram certas etnografias, mesmo e ofertas de recursos para as eleições gerais,
em países centrais, por assim dizer, os laços a despeito de suas expectativas, fora posto
familiares continuam importando na aplica- às margens do processo. “Querem só que eu
ção da política parlamentar, partidária e elei- lhes sirva. Querem fazer política de sangue
toral (ABÉLÈS, 1991; 2001). Não são a falta puro”, disse-nos ele, amargo com seu pró-
ou a incompreensão as responsáveis pela in- prio destino.
terpelação familiar na política e vice-versa. A No sertão, “sangue” é prole, filiação, fa-
família se imiscui na política da mesma ma- mília, gente de alguém, de algum lugar, de
neira que diversos aspectos da vida política alguma descendência. Ele faz perseverar, em
(sob a forma de campanhas de governos, por continuidade, costumes, hábitos, comporta-
exemplo) pretendem intervir na vida familiar. mentos. O “sangue” é condutor. Ele faz com
Em certos lugares do sertão, família e que alguém seja “manso” ou “brabo”, “va-
política tornam-se sinônimos em certas cir- lente” ou “mole”. E conduz também a “polí-
cunstâncias. Ao menos para uma parte sig- tica”. Há quem traga a “política no sangue”,
nificativa (senão em quantidade, em pres- como se diz frequentemente. De um homem
tígio) das pessoas com quem convivemos, de uma família “braba” (implicados aqui os

42 Repocs, v.14, n.27, jan/jun. 2017


princípios da territorialidade e da convivên- “famílias”. Entre 1976 e 2004, os Santa-
cia), espera-se que reaja em consonância na venceram todos os pleitos majoritários.
com o que várias gerações de sua família Após tantas derrotas nas urnas, seus adver-
fizeram. Histórica e administrativamente, sários terão investido em outra forma de
esses critérios serviram para selecionar os fazer política, conhecida como “política de
responsáveis pela manutenção da ordem e grupos”, isto é, um modo de afiliação parti-
da paz nos sítios, quer dizer, na zona rural dária independente das relações familiares.
(VILLELA, 2004), bem como para recrutar os No entanto, conforme nosso amigo nos per-
combatentes em “brigas de família” (MAR- mitiu compreender, da mesma maneira que
QUES, 2002; 2013). O “sangue” responde a “política de família” forma grupos, a “po-
pelos traços de caráter, pela fisionomia, pelo lítica de grupos” não consegue se liberar do
andar, pelo humor de cada um. Cada um é, “sangue” e da “família”. As duas opções na
ao mesmo tempo, um indivíduo original e o verdade coexistem e competem no seio de
resultado da mistura dos sangues materno e ambos os partidos ou lados em conflito.
paterno. Veremos já, contudo, que o “san- O “grupo” que seus antigos correligio-
gue”, como aspecto ou expressão da família, nários estavam formando naquele momen-
tampouco é dado ou natural. Ele também to com vistas às eleições seguintes não era
é agente e paciente de seleção, pois não se isento das influências do “sangue”, mas o
herda as características transmitidas por am- abastardava, por assim dizer, ao incluir
bos os pais na mesma proporção. pessoas não localizáveis na genealogia, ao
A “política de sangue puro”, de acordo mesmo tempo que cassava alguns parentes
com nosso amigo, era a “política” que seus legítimos, a fim de concentrar o poder em
antigos correligionários pretendiam fazer uma só “linhagem”. Por outro lado, nosso
ao excluir gente como ele do protagonismo amigo sustentava que a ignorância genealó-
das ações político-eleitorais, ao retirá-lo da gica dos selecionadores do “grupo” permitia
lista dos parentes ligados a Pedro Marchan- exclusões e inclusões arbitrárias, exclusiva-
te que, na década de 1910, havia tomado mente fundadas na conveniência, na cama-
para a sua linhagem as rédeas da política radagem, na subserviência e nos interesses
do município. Visto de cima, como foi ex- financeiros da campanha eleitoral.
plicado anteriormente, Pedro Marchante é Mas sua requintada avaliação político-
considerado um “tronco”. familiar não se esgota aqui, pois mostra
Segundo nosso amigo, o século XX em bem as intrincadas conexões existentes
Jordânia fora marcado pelo que se chamou quando se trata de “sangue” e de “política”.
de “política de famílias”. Desde 1913, os Acionar a genealogia, em seu caso, permite
Gouveia, antigos protegidos dos Santana, que ele mesmo se situe na linha colateral
conquistaram o peso político até então atri- de descendência de Pedro Marchante (que
buído aos Garcia, estes últimos muito po- era irmão de sua bisavó paterna e dois tri-
derosos durante o Segundo Reinado (1840- savôs maternos). Ele mostra que a atuali-
1889). Naquele ano, os Gouveia disputaram zação da genealogia na “política”, embora
com os Santana a prefeitura e a maioria na real, é argumento de seleção, recorte, frag-
câmara dos vereadores. Desde então e até mento de um contínuo muito mais amplo e
1976 houve alguma alternância de vitórias virtualmente ilimitado – porque externo à
e derrotas no poder municipal entre as duas extensão. Ser ou não Marchante não é um

O sangue e a política 43
dado, mas uma atualização de um paren- narrativa nos mostra uma tentativa de fa-
tesco possível, posto que existe no estoque zer família que esbarrou, nesse caso preci-
filiativo intensivo. so, na política que desfamiliariza. Aqui, a
Em suas reflexões, nosso amigo retor- política é mais densa que o sangue.
na a dois aspectos da família mencionados Reflexões, neste caso decorrente de uma
anteriormente. Por um lado, reconhece-se crise, de uma derrota eleitoral, nunca são
um legítimo aspirante a esse novo “grupo” ingênuas. O parentesco é um tipo de rela-
que se ergue, tanto por suas competências ção política, repleta de intencionalidades.
técnicas quanto pelo “sangue” que par- A neutralidade só se aplica ao virtual-real,
tilha com os Marchantes. Ele está apto a jamais à genealogia árvore, mesmo quando
reclamar esse segundo critério em virtude se atualiza pela escrita. “Coisa sem futuro”,
da indeterminação da cadeia filiativa, que fruto do ócio ou “coisa de gente besta”, ela
repousa sobre o princípio da filiação cog- no entanto não é apenas exercício de erudi-
nática. Ele dispõe das competências neces- ção ou fonte de anedotário. Seus depositá-
sárias para procurar seus ancestrais no es- rios parciais, os genealogistas, servem para
toque virtual de parentesco para atualizá alguma coisa. Pois eles dirimem dúvidas e
-lo, servindo-se para isso da genealogia e “destrincham” o parentesco para além do
dos critérios de seleção política. Por outro conhecimento exigido pela vida cotidiana,
lado, esse percurso genealógico seguido intencional, cujo funcionamento pode exi-
por ele precisa ser reconhecido e conside- gir a reivindicação de certos laços de pa-
rado pelos outros. Embora seu sobrenome rentesco. O que nos leva ao segundo caso,
não seja o mesmo dos captores do grupo o de um genealogista cujos conhecimentos,
político, ele alega a sua pertença à “famí- à primeira vista inúteis, foram mobilizados
lia” baseado em argumentos irrefutáveis politicamente. Ao contrário deste primeiro
do ponto de vista da árvore genealógica. amigo, que parte da política para analisar a
Argumento nada negligenciável em um genealogia (e retorna para a política), o ca-
lugar onde a genealogia é uma paixão e sal de quem falaremos doravante parte do
onde os seus guardiões são celebridades, saber parentesco para o recorte da política.
onde se recorre aos livros publicados sobre
a matéria, bem como ao site “Genealogia 2.2. O genealogista na política
Pernambucana”, que dispõe de instrumen-
to de busca que permite traçar todos os O homem do casal em questão é um me-
laços de parentesco entre dois indivíduos. morialista que aspira atingir a genealogia
No entanto, o reconhecimento que nosso virtual, total e liberta dos recortes políticos,
amigo esperava de seu enunciado genea- da pedagogia, do cotidiano. Seu trabalho
lógico não se efetuou, porque não se fez é, portanto, infinito. Chamemo-lo Funes.
acompanhar das práticas pedagógicas do Ele constrói laboriosamente uma árvore a
parentesco. Os membros do “grupo” não partir de pesquisas que realiza em arqui-
aprenderam que ele era parte da “família”. vos e de relatos que recolhe entre os que
Tudo isso lhe parece, finalmente, uma ar- sabem mais do que ele, ou sobre vínculos
ticulação indevida do parentesco, que o de parentesco que ele desconhece, capazes
desqualifica como meio seletivo de par- de iluminar trechos e ramos até então sob
ticipação e exclusão. De todo modo, sua a sombra. Ele e sua mulher, ambos primos

44 Repocs, v.14, n.27, jan/jun. 2017


entre si diversas vezes, pertencem por so- Nas eleições municipais de 2004, ao
brenome e por reconhecimento à família chegar em Jordânia, um de nós foi sur-
Garcia, cuja origem se confunde com a preendido pela notícia da candidatura da
ocupação colonial do território e cuja lide- esposa do casal, pela coligação da “famí-
rança política em Jordânia chega a termo lia” Santana, na qual nunca votaram. Luiza
na década de 1910. Desde há muitos anos, argumentava que os votos que deram aos
como seus avós, pais, tios e primos, o casal agora adversários nunca eram reconheci-
“vota com”8 a família política que assumiu dos e que, a cada vez que encontravam os
o lugar da sua no protagonismo político do chefes políticos da “família” à qual sempre
município, os Gouveia. se alinharam, eles tinham que se apresentar
Nosso casal de amigos alegam que, ao novamente, lembrá-los de seus ancestrais
contrário de grande parte de seus conter- comuns e das diversas maneiras como, e
râneos, eles não votam por precisarem da quantas vezes eram, parentes. “A sorte é
política, em relação à qual eles se conside- que Funes sabe genealogia”.
ram autônomos. Eles fazem parte de uma No ano anterior, disse ela, o casal en-
classe de sertanejos que rejeita a política controu na rua o então prefeito de Jordâ-
como meio de angariar recursos materiais; nia, o principal líder da família política à
que consideram humilhante, desonesto ou qual se opunha, os Santana. Esse encontro
aviltante solicitarem recursos em troca de foi identificado por ela como um ponto de
seus votos. Muito tradicionalista, no entan- inflexão nas relações entre eles. Espontâ-
to, Funes acha que votar é um direito e um nea e festivamente, não só os laços de fa-
dever, sacralizado no desempenho de uma mília que os uniam foram lembrados pelo
vida cidadã. Muitos sertanejos comungam político, mas também, muito importante
dessa avaliação da política eleitoral e da neste caso, o que os avós de um e de outros
democracia representativa. realizaram politicamente. Mudança de pa-
Para nosso casal, a escolha do voto não rentesco, mudança de “política”.
se resume, contudo, a esse aspecto. Eles Funes sabe genealogia mais que ne-
votam “por consideração”, porque muitos nhum outro habitante vivo de Jordânia.
dos candidatos são parentes, embora vários Celebrizado, seu vasto conhecimento é
deles, ressente-se Funes, recusem-se a re- também avaliado, no entanto, como “sem
gistrar os filhos com seu sobrenome, prefe- futuro” ou inútil pela maior parte das pes-
rindo os dos politicamente prestigiados ou, soas a quem propusemos o tema para refle-
quando os registram com o sobrenome, não xão. Saber genealogia vai ao encontro das
ensinam a eles os parentes da família do expectativas locais acerca de o que é ser
casal, porque parentesco, não custa insistir, Jordaniano. Mas não serve realmente para
se aprende e se ensina, e portanto é efeito nada. Salvo, claro, e o argumento é nosso,
de uma pedagogia cotidiana. quando essa fonte inesgotável de nomes,

8. Onde fazemos nossa pesquisa, em geral se utiliza o verbo “acompanhar” no lugar de votar. Quando o
verbo votar é utilizado, diz-se “votar com” ou “dar seu voto a”, ao invés de “votar em”, como dizemos no
Sudeste. Essas duas locuções vão ao encontro do argumento de Palmeira (1992), que registrou a mesma
observação e para quem os laços entre candidatos e eleitores se estabelecem enquanto adesão, mais do que
representação.

O sangue e a política 45
essa ‘memória-lembrança’, se podemos mos aqui, ao mesmo tempo, a uma fami-
usar esses conceitos bergsonianos (DELEU- liarização e a uma desfamiliarização; ao
ZE, 1999), torna-se uma ‘memória-contra- sangue adensando a política e vice-versa.
ção’. Quer dizer, quando esse saber entra Tudo isso só acontece quando as genea-
no quadro da ação sofrendo os recortes ne- logias estão feitas, desde há muitas décadas,
cessários para funcionar na vida cotidiana. para as famílias antigas e tradicionais. Pas-
Se a teoria política de nosso primeiro saremos a mostrar o que acontece quando a
amigo toma as alianças eleitorais como política e a família, em implicação recíproca,
ponto de partida, recrutando conhecimen- propõem-se a fazer uma à outra. O que acon-
tos genealógicos precisamente para des- tece, quais estratégias são criadas ou copia-
qualificá-los como critérios válidos e ob- das, quando um grupo de pessoas, associa-
jetivos para a seleção de candidatos e de das pelo sangue e pela genealogia pretendem
candidaturas, Funes, Luiza e seu novo alia- constituir-se como família, no duplo sentido
do inverteram esse caminho. Eles partiram da atuação político-eleitoral e do parentesco?
da genealogia. O casal se viu negligenciado
política e pessoalmente e se ressentiu pelo 2.3. Novatos
tratamento dedicado apenas aos “sem pres-
tígio”, para usar o vocabulário local (VIL- Uma nova candidatura a vereador sur-
LELA E MARQUES, 2006), ao passo que a giu nas eleições de 2000. Em Jordânia,
genealogia deveria lhe garantir, como cri- candidaturas inaugurais, sem base familiar,
tério seletivo, alguma deferência por parte costumavam, ao menos até recentemente,
das lideranças políticas da “família” que há fadar ao fracasso. Este jovem, a quem cha-
décadas apoiavam. Funes e Luiza não fo- maremos Ulisses, não pertencia, por genea-
ram considerados “da família”. Nesse caso, logia, a nenhuma das famílias importantes
apenas os seus votos não foram capazes de do município. Até há um par de gerações,
adensar o sangue. Por conta, talvez, de ba- seus parentes estavam circunscritos a uma
searem-se apenas na genealogia. modesta vila de um outro município, eman-
Mas foi mesmo a genealogia a respon- cipada de Jordânia na década de 1980. As
sável pelo novo alinhamento político. Se- atividades políticas dessa família restrin-
rem reconhecidos como parentes e antigos giam-se a “acompanhar” um candidato.
aliados, dada a habilidade político-genea- Mas, sabemos já, em Jordânia política
lógica do prefeito Santana, fê-los transpor faz-se com família. Para ser candidato, é
as fronteiras familiares e partidárias. Talvez preciso fazer família para que se venha a
essa transposição seja correlata de um pro- ‘dizer família’ (JOLAS et al., 1970). Ao mes-
cesso de reconfiguração familiar e políti- mo tempo, para ser uma família de pres-
ca mais amplo e mais profundo ‒ o que se tígio é necessário fazer política. As estra-
torna possível graças ao fato de todas as tégias utilizadas para atingir esse objetivo,
antigas famílias serem ligadas entre si por que passaremos a descrever, reproduzem o
numerosos casamentos celebrados ao longo modelo transmitido pelas famílias tradicio-
de séculos, nos quais se originam “ramos” nais, formadas há mais de um século, pelo
familiares conhecidos e nomeados, particu- sangue e pela política eleitoral e familiar.
larmente pelos genealogistas mas também, Assim como as famílias tradicionais, os
em suas grandes linhas, por todos. Assisti- parentes de Ulisses lançaram mão de recur-

46 Repocs, v.14, n.27, jan/jun. 2017


sos imagéticos e iconográficos. As fotogra- bros, e que se converte em ícone do grupo
fias entre aquelas famílias são a expressão da família na rede social Facebook. Celebra-
patente da sua glória passada e da sua con- ção, enfim, em sentido literal: uma festa é
sequente influência atual. Nota-se a força de organizada anualmente para reunir em Jor-
uma família pela qualidade e pela quantida- dânia os parentes dispersos nos municípios
de das fotos dos ancestrais do casal expostas vizinhos e em outras regiões do país.
nas paredes da sala, o espaço mais público A candidatura e a eleição de um parente
da casa. Com o aumento do nível socioeco- reforçam o sentimento de parentesco. Elas
nômico e de educação formal das gerações estimulam a afetividade e as solidariedades,
recentes, e com a difusão das tecnologias adensam o sangue, incitam a convivialida-
digitais, começaram a se avolumar as fo- de e aproximam as pessoas, doravante or-
tos, os vídeos, as árvores genealógicas, os gulhosas de fazerem parte dessa família e
brasões. Se a boa qualidade das velhas foto- de portar seu nome. Aí se opera uma con-
grafias atesta a antiguidade e o prestigio de tração, ao mesmo tempo deliberada e es-
uma família ou de um “ramo”, a quantidade pontânea, de práticas estendidas no tempo.
é atualmente a marca das novas formações Trata-se de imitar e sintetizar o que fizeram
familiares que pretendem fazer-se “tronco”. gerações das famílias tradicionais, depois
Como dissemos anteriormente, o con- da ocupação colonial do território, mistu-
tínuo da genealogia intensiva é recortado rando a história política do município às
politicamente por certos personagens proe- lembranças de família, às descrições genea-
minentes a que se podem chamar “troncos”. lógicas e às biografias de grandes persona-
Na família de Ulisses, camponesa até poucas gens. Política e família se fazem reciproca-
décadas, não havia personagens desse tipo. mente. O número e a coesão dos membros
Mas ela pôde contar com um homem, ainda da família crescem e se intensificam a par-
vivo, cuja retidão moral, a fé religiosa e o tir desses movimentos que são correlativos
acesso ao mundo supra-humano preenche- ao interesse pela história de seus ancestrais
ram as funções de prestígio, fazendo-o pas- e à capacidade de reencontrar e reconhecer
sível de se tornar um “tronco”. A partir desse parentes distantes pela via genealógica.
homem, puderam-se formular celebrações
da família em torno de um ponto de unidade Considerações finais: para além do “san-
capaz de traçar contornos e pertenças. gue” e da “política”
Celebração pedagógica e mnemotécni-
ca através da imagem: a iconografia fami- Três episódios de crise, três oportunida-
liar até então dispersa passa a ser exposta des de ativar família, não como língua ou
na casa de um de seus membros ilustres, o idioma, mas como uma realidade ou uma
candidato a vereador. Em síntese, a apari- atualização. A família é substancial e ma-
ção desses dois personagens, o candidato e o terial. Ela se exprime pelo sangue, mas se
“tronco”, liberou a criação de árvores genea- manifesta sobretudo pelas atitudes, pelos
lógicas. Alguns membros da família exibem, gestos, por todo um comportamento. Ela
em seu local de trabalho, a versão escrita e não é, contudo, uma essência, nem um
diagramada de sua genealogia e a imagem dado natural, nem transcendência. Família
de uma árvore em cujo tronco, ramos e fo- precisa ser feita, dita, ensinada, aprendida.
lhas estão inscritos os nomes de seus mem- Ela exige manutenção constante e mnemo-

O sangue e a política 47
técnica. Ela resulta de táticas e estratégias e aparência, um saber que logo se apren-
elaboradas no cotidiano. de a cultivar. “Eu tava olhando o jeito dele
Cada habitante do sertão é, ao mesmo andar, o nariz, assim magrinho, pensei que
tempo, um indivíduo e uma coletividade. era dos Fulano”. “Não é, não. Ele aqui não
Para além de sua trajetória pessoal, tudo tem parente nem aderente”, diziam alguns.
que se espera dele ou dela é determinado “Não, ele é do Rio de Janeiro, mas agora é
por uma história longa de várias gerações, como um primo nosso, um sobrinho meu”,
por uma quantidade indefinida de biogra- diziam outros, mais queridos e íntimos, a
fias, pelo lugar (a casa, a fazenda) de onde respeito de um de nós, como gostava de
vem, pelo “sangue” que corre em suas veias, insistir a nossa querida amiga D. Ernesta
pelas suas adesões políticas. Através da di- Trindade, a quem este artigo, com muita
versidade de categorias – “tronco”, “ramo”, saudade, é dedicado.
“linhagem”, “casa” – e dos esquemas de
segmentação ativados pelas afiliações po- Referências
líticas ou ilustrados pelas “assinaturas” das
orelhas dos bodes, as famílias são o resul- ABÉLÈS, M. Avoir du pouvoir politique. In: SE-
tado parcial e cambiante de recortes suces- GALEN, M. (Org.). Jeux de familles. Paris: CNRS
sivos de um estoque virtual de parentesco. Éditions. 1991, p. 79–99.
Para concluir, a família se presta à re- _______. Un anthropologue à l’Assemblé. Paris:
flexão, provoca a curiosidade e suscita dú- Odile Jacob, 2001.
vidas cada vez que é preciso tomar posi-
ABREU, C. Caminhos antigos e povoamento do
ção em relação a uma pessoa que não se
Brasil. Brasília: Ed.UNB, 1982 [1907].
conhece bem, a fim de familiarizá-la ou
desfamiliarizá-la, para além do “sangue” e ANDRADE, M. A terra e o homem no Nordeste.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
da “política”. Ela opera como um ponto de
referência que exprime tanto uma adesão ANTONIL, A. Cultura e opulência do Brasil. Belo
política quanto uma aspiração existencial. Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982 [1711].
Assim, as pessoas são subsumidas nessa BEZERRA, M. O. La politique vue d’en bas. Criti-
socialidade, ao mesmo tempo que a cons- que, v. LX 680, n. 1, p. 66-76, 2004.
tituem. Todos são objeto de apreciação e
BOURDIEU, P. La société traditionnelle: attitude à
curiosidade por parte de quem se interessa
l’égard du temps et conduite économique. Sociolo-
pelo parentesco e pela família. “Esse rapaz gie du Travail , v. 5 n.1, p. 24-44, 1963.
é do Umbuzeiro? Eles são do povo de Fu-
lano?”, questionavam nossos novos conhe- _______. Esquisse d’une théorie de la pratique.
Genève: Droz, 1972.
cidos. A pergunta não é rara, nem reser-
vada aos mais velhos. Ao interrogar sobre CANDEA, M. Our division of the universe. Current
seus parentes, os jovens e as crianças lo- Anthropology, v. 52, n. 3, p. 309-334, 2011.
calizam-se, da mesma forma que permitem CARONE, E. A República Velha. São Paulo: Difu-
ao interlocutor que os situem quando lhes são Européia do Livro, 1977.
perguntam “de quem são”. Os mais velhos
CARRIER, J. Occidentalism: images of the west.
se orgulham quando adivinham qual é a fa-
Oxford: Clarenton Press, 1995.
mília da pessoa pela observação de seu jeito
de andar e de falar, pelas suas expressões

48 Repocs, v.14, n.27, jan/jun. 2017


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RESUMO ABSTRACT
Um dos objetivos aclamados da democracia é Despite the seeming impossibility of attai-
a purificação do governo em relação aos in- ning a pure form of democracy, one of de-
teresses familiares, embora esse ideal não se- mocracy’s cherished aims is to purify the re-
ja alcançado em parte alguma. Com base em alm of governance from family interests. In
etnografia realizada em um município do ser- this article, which is based on ethnography
tão de Pernambuco, neste artigo mostramos collected in a municipality located in Per-
como em certas circunstâncias família e polí- nambuco, Northeast Brazil, we reflect on the
tica são sinônimos e, de forma mais geral, co- manner in which notions of family and po-
mo parentesco e política não são concebidos litics become at once synonymous in some
como domínios autônomos. A partir da dis- circunstances. In this context, we suggest,
cussão concernente a categorias locais de fa- politics and kinship cannot be conceptuali-
mília, três circunstâncias de crise são identifi- sed as autonomous domains. Through an
cadas, de modo a demonstrar a inextricável exploration of family categories, we identify
articulação entre sangue e política. three circumstances of crisis in which blood
and politics are inextricably linked.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Política. Eleições. Parentesco. Família. San- Politics. Elections. Kinship. Family. Blood.
gue. Sertão de Pernambuco. Hinterlands of Pernambuco.

Recebido em: 10/11/16


Aprovado em: 23/12/16

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