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O tabu do incesto e a bioantropologia

José Francisco Carminatti Wenceslau


André Strauss

resumo O debate acerca do tabu do incesto membros das ciências sociais não se importa-
tem sido amplamente discutido até mesmo antes rem em estabelecer qualquer tipo de contato
da fundação da antropologia como disciplina. Po- com a produção científica das áreas biológicas.
rém, foi nessa área do conhecimento que o tema Isso é consequência, em grande parte, do re-
adquiriu atenção acentuada, em especial após a púdio à antropologia evolucionista da virada do
publicação do renomado trabalho de Claude Lévi- século XVIII para o XIX e aos conceitos pseudo-
-Strauss, As estruturas elementares do parentesco, em científicos e eugenistas a ela associados. De fato,
1949. Grande parte das escolas de ciências sociais essa abordagem já foi superada, sendo hoje subs-
brasileiras toma o assunto como encerrado por esse tituída por escolas que conseguem proporcionar
autor, contudo, isso está longe de ser verdade. Neste um diálogo mais fluente e livre de preconceitos
artigo procuramos reacender o debate com o estru- entre a biologia e a antropologia. Porém, como
turalismo lévi-straussiano e a sua principal teoria a essas novas escolas possuem raízes na América do
respeito da proibição do incesto – a teoria da aliança Norte, seu acesso pelos cursos de antropologia
– através do levantamento de diversos estudos que brasileiros encontra-se reduzido, dada a ascen-
de algum modo dialoguem com a obra desse au- dência nitidamente europeia das ciências sociais
tor. Deste modo, com especial auxílio dos trabalhos no Brasil. Isso, infelizmente, leva a um insula-
de fronteira entre a biologia e a antropologia – que mento acadêmico e consequente afastamento de
muitas vezes não chegam ao contato dos cientistas qualquer possibilidade de uma abordagem inter-
sociais – desejamos reavivar essa reflexão no circulo disciplinar na produção científica do país. Para a
acadêmico brasileiro. questão da proibição do incesto, a situação não é
palavras-chaves Lévi-Strauss. Endocruza- diferente, acarretando, como mostraremos nesse
mento. Etologia. Primatologia. Endogamia texto, na introjeção de inúmeros conceitos ana-
crônicos e incorretos no arcabouço teórico dos
cientistas sociais em formação.
A seguir apresentamos uma série de infor-
A proibição do incesto é um dos temas clás- mações recentes sobre temas fundamentais
sicos da antropologia. Nos cursos de ciên­cias para a discussão da proibição do incesto. O
sociais brasileiros esse tema é apresentado aos norte de tal levantamento foi dado pela obra
alunos dentro do contexto de uma disciplina clássica em que Lévi-Strauss trata da questão:
na qual se ensina o pensamento de Claude As estruturas elementares do parentesco, de 1949.
­Lévi-Strauss. Como mostraremos neste traba- Especial atenção foi dedicada aos capítulos em
lho, é no ensino da clássica teoria lévi-straus- que o autor faz referência a temas de frontei-
siana que alguns paradigmas biofóbicos são ra entre antropologia e biologia. Não se trata,
transmitidos. Isso resulta do fato de muitos em absoluto, de qualquer tentativa de discutir

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 1-360, 2012


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ou atualizar a sua obra no que concerne seu produção de uma prole imperfeita para aqueles
tema central: a teoria da aliança. Não se trata, que consumassem o incesto (Arnhart, 2005).
tampouco, de defender essa ou aquela teoria. Essa ideia, como veremos a seguir, foi desen-
O que se pretende dentre outras coisas é, ao volvida de maneira mais completa por Tomás
confrontar alguns trechos da obra do autor de Aquino durante a Idade Média.
francês com as informações disponíveis na li- Para Aquino, de herança aristotélica, uma
teratura, mostrar aos leitores que a discussão lei natural (lex naturalis) também era o reflexo
sobre o tabu do incesto permaneceu longe de da vontade de Deus, mas operava pela própria
se estagnar durante esses mais de 60 anos des- razão humana, assim como por algum instinto
de a publicação de sua tese. Ademais, ao expor que nos levasse a agir sobre ela, afeição ou im-
algumas teorias de fundamentação biológica pulso emocional por exemplo. Por essa ótica, o
esperamos explicitar a ausência de qualquer casamento seria uma lei natural, já que, para ele,
elemento nelas que possam ser vinculados a o matrimônio supriria duas inclinações huma-
perspectivas eugenistas, racistas, defensoras do nas: a tendência natural para a união sexual e os
status quo, etc. cuidados fraternos. Aquino fornece várias razões
pelas quais casamentos incestuosos contrariam
*** tal lex naturalis, três delas talvez sejam as mais
relevantes para este trabalho. Primeiro, além dos
Antes de começarmos de fato o debate deste humanos, também em outros animais se observa
artigo, faz-se válida uma introdução histórica a um repúdio instintivo a relações dessa natureza.
fim de situar os leitores a respeito das princi- Segundo, o reconhecimento de que uniões entre
pais frentes teóricas que antes de Lévi-Strauss parentes próximos resultam em anormalidades
já tratavam de discutir o incesto. Entre os So- físicas para a prole. E por último, o incesto de-
fistas, na Grécia antiga, costumava-se pregar sencorajaria a formação de alianças entre grupos
a antítese entre physys e nomos, ou “natureza” através do casamento entre membros de famílias
e “convenção”. Na medida em que a primei- diferentes (cf. id., ibidem).
ra rege os instintos do homem, sua porção Essa tradição tomística e aristotélica passou
individualista e competitiva, a segunda faz-se a ser motivo de grande discussão durante o sé-
necessária para inibir tais inclinações e man- culo XVIII. A seu favor, Francis H ­ utcheson,
ter a ordem social nos grupos humanos. Nesse defendia que os seres humanos possuíam o
contexto, o incesto era visto como uma prá- instinto de animais sociais, essa sociabilidade
tica naturalmente aversiva. Portanto, qualquer natural favoreceria o compartilhamento de leis
norma social que visasse repudiá-lo se tornaria morais e a expressão de tais valores por todos os
dispensável. Tentando superar esse contraste, a membros da sociedade (cf. id., ibidem). Como
tradição socrática se debruçou sobre a discus- aluno de Hutcheson, Adam Smith também
são da “lei natural”, defendendo que a conven- pregava conceitos semelhantes aos de Aquino.
ção nem sempre se opõe à natureza, podendo Para ele, o incesto também era avesso à nature-
a primeira ser formulada com base na segunda. za humana e sua prática era algo que contraria-
Assim sendo, o tabu do incesto passou a ser vis- va os valores morais universais (Smith, 1976).
to como uma lei regida pelos deuses, de modo Já Immanuel Kant, sob o dualismo hobbesia-
que uma propensão natural humana era refor- no entre instinto animal e razão humana (que
çada por penalidades divinas, por exemplo a resgata o contraste anteriormente feito pelos

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sofistas), ao formular o conceito de cultura, ção” propõe que essa aversão é uma adaptação
define-a como um instrumento humano res- evolutiva, um comportamento fixado por sele-
ponsável pela transcendência de seus instintos ção natural desfavorecendo o endocruzamento
naturais, alcançando a razão e estabelecendo e, portanto, as suas consequências deletérias.
assim uma ordem social (Kant, 1983). Por essa 3º) a “hipótese da expressão” afirma que a aver-
perspectiva, o tabu do incesto volta a ser visto são leva a desaprovação moral e a costumes e
como uma convenção cultural. leis proibitivas ou, pelas próprias palavras de
Já no século XIX, Charles Darwin em The Westermarck:
Descent of Man (1871), embora concordasse
com Kant ao dizer que a posse de consciên-
cia e senso moral era a principal característica Pessoas que viveram juntas desde a infância
que diferenciava o homem dos outros animais, são geralmente parentes próximos. Portanto
julgava que isso poderia ser estudado exclusi- sua aversão a relações sexuais um com o outro
vamente por uma lógica biológico-evolutiva, manifesta-se em hábito e lei como uma proibi-
nesse sentido se aproximando do naturalismo ção ao intercurso sexual entre parentes próximos
smithiano. Essa ideia foi mais bem lapidada (Westermarck, 1922, p. 193, tradução nossa).
por Edward Westermarck algumas décadas
mais tarde, retomando o conceito da lei na-
tural para compreender a natureza huma- Contemporâneo a Westermarck, Sigmund
na. Debruçando-se sobre o tabu do incesto, Freud rejeitava suas teorias. Freud era um ho-
­Westermarck, assim como todos os outros pen- bbesiano convicto e por isso acreditava que os
sadores de tradição socrática antes dele, não o valores morais surgem exclusivamente para su-
vê como resultado puramente de educação ou primir os instintos individualistas e agressivos
convenção social. Baseando-se na evidência de humanos. O tabu do incesto, portanto, seria o
que alguns animais selvagens também tinham exemplo primordial dessa negação cultural de
a propensão de evitar o endocruzamento (fato uma natureza animal inata ao homem. Freud
confirmado por estudos etológicos posteriores, então propõe que a repressão desses impulsos
como veremos mais adiante), Westermarck via incestuosos levaria a uma neurose própria a to-
a aversão ao incesto como algo natural, ante- dos os seres humanos, ao tão conhecido com-
rior à estruturação dos valores sociais humanos. plexo de Édipo (Freud, [1913] 1974). Desse
Como essa aversão é plenamente compartilha- modo, no início do século XX, mais uma vez o
da, ela torna-se alvo de uma desaprovação mo- debate entre teoria socrática da lex naturalis e a
ral e, portanto, se submete a leis proibitivas: dicotomia physys x nomos dos sofistas é reacen-
vira tabu. dido, a primeira sendo defendida por Wester-
De maneira sucinta, a teoria westermar- marck e a segunda por Freud.
ckiana para explicar o tabu do incesto pode ser Esse debate, no contexto de muitas escolas
descrita sob três hipóteses: 1º) a “hipótese da antropológicas contemporâneas (como é o caso
aversão” diz que uma aversão inata à relação das brasileiras), é tido como resolvido por Lévi-
sexual é desenvolvida entre pessoas que convi- -Strauss. Apropriando-se da dicotomia sofista
veram muito próximas nos primeiros anos da logo no começo de As Estruturas Elementares do
infância (aversão essa também conhecida como Parentesco, o autor propõe que um dos grandes
efeito Westermarck). 2º) a “hipótese da adapta- desafios da antropologia está em saber qual a

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natureza (biológica ou cultural) da origem dos e recebendo esposas é que as partes envolvi-
diferentes comportamentos humanos. Para ele, das poderiam estabelecer fortes alianças entre
tudo que é universal no ser humano está ligado si, alianças de sangue, por assim dizer, possi-
à sua biologia e tudo que é normativo, à sua so- bilitando a sua perpetuação. Portanto, para
ciologia. Nesse ponto chega-se à questão do in- Lévi-Strauss, “considerada do ponto de vista
cesto. O tabu quanto a essa prática varia muito mais geral, a proibição do incesto exprime a
de sociedade para sociedade, estando ligado a passagem do fato natural da consanguinidade
diferentes normas em cada uma delas, porém, ao fato cultural da aliança” (id., ibidem, p. 70)
é o único costume que pode ser encontrado, Porém, para afirmar o tabu do incesto como
sem exceção, em todas, ressaltando o seu cará- parte de um sistema que “assegura o domínio
ter universal. É essa observação que leva Lévi- do social sobre o biológico, do cultural sobre
-Strauss a fazer o seu questionamento: qual é o natural” (id., ibidem, p. 519), como dita a
então a origem do tabu do incesto, natural ou teoria da aliança, é preciso negar a existência
social? de uma tendência inata à aversão aos desejos
Para ele não há dúvidas: a resposta está na sexuais entre parentes próximos. Para o autor
aliança, o tabu do incesto é resultado mais de tal tendência existiria apenas no imaginário de
uma convenção social do que de uma desapro- Westermarck, e outros defensores de tal ideia:
vação moral, ao contrário do que postulava a “Não há nada mais duvidoso que esta supos-
hipótese da expressão de Westermarck. Para ta repugnância instintiva” (id., ibidem, p. 55).
Lévi-Strauss, a chave dessa questão não está no Mas será que a possibilidade de tal “repug-
ônus que a endogamia pode oferecer, mas sim nância instintiva” existir é tão absurda como
nos benefícios proporcionados pela exogamia: postula Lévi-Strauss? Não existiriam talvez, ao
contrário do que o autor estruturalista supõe,
boas razões biológicas para que a natureza dire-
A exogamia tem um valor menos negativo do cionasse a escolha dos parceiros sexuais?
que positivo, afirma a existência social de ou-
trem, e só proíbe o casamento endógamo para ***
introduzir e prescrever o casamento com um
grupo diferente da família biológica. Certamen- A seguir, tentaremos discutir mais a fundo
te não é porque algum perigo biológico se ligue tais questões, mantendo o foco em alguns con-
ao casamento consanguíneo, mas porque do ceitos biológicos essenciais para entendê-las. Po-
casamento exógamo resulta um benefício social rém, é preciso frisar que o que se pretende aqui
(Lévi-Strauss, 1982, p. 521) não é tomar a antropologia apenas como resul-
tado de modelos biológicos. Do mesmo modo
que a física e a química têm papeis essenciais na
Tal benefício social é a aliança entre dois construção da biologia, mas que essa não pode
grupos. As mulheres, por essa perspectiva, são ser entendida em sua completude apenas pelo
vistas como valores de troca, ou seja, ao proibir estudo daquelas disciplinas, as ciências sociais
o seu casamento com os homens de sua pró- também não podem ignorar a importância da
pria família, esta é forçada a oferecê-las em ma- biologia para a construção de seu objeto de es-
trimônio a outro grupo, esperando-se deste o tudo. É mais do que claro que reduzir a análise
mesmo em retribuição. Dessa forma, doando a apenas essa área do conhecimento acarretaria

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em grande perda de informações. Dessa ma- lação existente entre esses dois fenômenos, se é
neira, esperamos que a revisão feita a seguir que existe alguma. Mas antes vejamos qual é o
também permita o acúmulo de conhecimento modelo do “exocruzamento ótimo”.
na antropologia e disciplinas correlatas, possi- Os resultados do endocruzamento são em
bilitando assim uma abordagem mais holística grande medida prejudiciais aos indivíduos que
sobre o tema do tabu do incesto. o praticam. Isso se deve, principalmente, ao
Como veremos a seguir, uma das aborda- fato de muitos genes terem alelos recessivos
gens que a biologia oferece à questão da esco- prejudiciais que só se expressam em homozi-
lha de parceiros sexuais é a do “exocruzamento gose (duas cópias iguais do alelo, uma vinda
ótimo”, como apresentada pelo etólogo Patrick da mãe e outra do pai). Portanto, quanto mais
Bateson (2005). Consciente das acusações que aparentados os progenitores, maiores serão as
os seus colegas humanistas podem fazer a um chances de passarem os mesmos alelos para
etólogo, Bateson deixa claro que considera ina- seus filhos e consequentemente, maior a pro-
dequada a utilização de termos como “estupro” babilidade de ocorrer homozigose de alelos
ou “casamento” para descrever comportamen- deletérios. Por outro lado, o exocruzamento
tos animais: excessivo também pode ser prejudicial. Afinal,
tal comportamento prejudicaria a manutenção
de certas características benéficas que foram
Problemas de comunicação entre disciplinas adaptativamente fixadas na população.
surgem quando, tendo achado algumas seme- Para exemplificar como o endocruzamento
lhanças descritivas entre animais e humanos e pode se tornar um jogo de ganho e perda, to-
tendo investigado os casos animais, biólogos ou memos o trabalho de Denic et al. (2008), em
seus popularizadores usam as descobertas ani- que se demonstrou que em regiões com alto
mais para “explicar” o comportamento humano índice de malária o aumento da frequência de
(Bateson, 2005, p. 24, tradução nossa). α+-thalassemia, como consequência dos casa-
mentos consanguíneos, favorecia a resistência
ao plasmódio causador da doença. Porém,
Se trata, portanto, de alguém absoluta- essa prática também aumentava a expressão
mente consciente dos perigos de uma eventual de outros alelos recessivos e letais, elevando a
antropomorfização das pesquisas etológicas. mortalidade infantil. Existe, portanto, pressão
Seguindo na mesma direção, neste texto con- evolutiva partindo dos dois lados: tanto um
vencionamos que a expressão tabu do incesto desvio muito grande no sentido do endocruza-
será utilizada para se referir exclusivamente às mento quanto para o do exocruzamento trará
normas culturais que condenam a relação se- malefícios. Por outro lado, o comportamento
xual e o casamento entre determinados paren- que determina a proporção entre endo e exo-
tes, sejam eles biológicos ou classificatórios1. cruzamento é a preferência sexual dos indi-
Aversão ao endocruzamento será a expressão víduos. A preferência sexual por aqueles que
utilizada para se referir ao comportamento que sejam muito diferentes dos parentes próximos
torna menos provável a ocorrência de relações leva a uma situação em que o exocruzamento é
sexuais entre parentes próximos, quer seja entre mais presente. Já o contrário proporciona uma
humanos quer seja entre os demais animais. A situação em que o endocruzamento prevalece.
questão que se coloca em seguida é qual a re- Portanto, para que haja o equilíbrio, é preciso

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haver uma tendência aos indivíduos preferirem relação entre parentesco e sucesso reprodutivo
sexualmente aqueles que sejam um pouco di- nessa população, esse sendo otimizado entre
ferentes dos seus parentes próximos, mas não casais com grau de parentesco semelhantes ao
muito. de primos de terceiro e quarto grau.
O que esse modelo mostra é que a aversão Repare que nada foi dito sobre o tabu do
ao endocruzamento deve ter sido selecionada incesto até aqui. Não se pode transferir as con-
evolutivamente pois aqueles que possuíam tal clusões obtidas sobre a aversão ao endocru-
aversão atingiam um maior sucesso reprodu- zamento para a questão do tabu do incesto.
tivo. Ou seja, existe uma boa razão do ponto Antes que se tente estabelecer alguma relação
de vista evolutivo para que a aversão ao endo- entre esses dois fenômenos é preciso, do ponto
cruzamento esteja presente entre diversos ani- de vista evolucionista, descobrir se o tabu do
mais, inclusive o homem. Um estudo de caso incesto oferece ou não vantagens reprodutivas
que comprova tal hipótese é o de Helgason et àqueles que o praticam.
al. (2008). Nele, os autores partiram de outras Para Bateson, tais vantagens, se existirem,
pesquisas mostrando que casais que comparti- são tão pequenas que não podem ser a causa do
lhavam algum grau de parentesco tendiam a ter tabu. Ele lembra, assim como fez Lévi-Strauss,
mais filhos do que os que não. Porém, como que esse tabu não elimina os genes recessivos
ainda havia muita incerteza de que isso era re- prejudiciais. Pelo contrário, o próprio endocru-
sultado de fatores biológicos ou socioeconômi- zamento eliminaria tais genes no longo prazo.
cos, eles analisaram todos os casais islandeses Por outro lado, e isso não é colocado por Bate-
com pessoas nascidas entre 1800 e 1965, a fim son, a evolução não consegue prever aquilo que
de se focar na influência biológica sobre a ferti- está por vir e, portanto, não atua a longo prazo.
lidade desses casais, já que essa é uma sociedade No curto prazo os efeitos do endocruzamento
pequena e uma das mais socioeconomicamente são maléficos e bastante visíveis. Tal visibilida-
e culturalmente homogêneas do mundo. de pode ser, inclusive, uma das razões para que
Observando um total de 160.811 casais em muitas sociedades se saiba perfeitamente
e calculando o grau de parentesco entre eles, os efeitos biológicos adversos resultante do en-
bem como o número de filhos, percebeu-se docruzamento, ainda que isso não explique de
uma relação monotônica entre esses dois fato- maneira alguma a proibição do incesto.
res, ou seja, quanto menor o grau de parentesco Mais do que saber se o tabu do incesto
menor o número de filhos. Contudo, quando oferece vantagens reprodutivas ou não, é pre-
analisado o sucesso reprodutivo dos filhos des- ciso deixar claro que a distinção entre tabu
ses matrimônios, um fato curioso foi constata- do incesto e aversão ao endocruzamento não é
do, casais com parentesco maior ou igual ao de meramente semântica. O modelo do “exocru-
primos de segundo grau (r ≥ 0,0313)2 tinham zamento ótimo”, darwinista por excelência,
poucos netos se comparados aos de terceiro ou indica vantagens evolutivas apenas para aque-
quarto grau (0,0313 ≥ r ≥ 0,0020) (e até mes- les que não se reproduzem com seus parentes
mo quinto e sexto, 0,0020 ≥ r ≥ 0,0001), sem próximos. Ele não diz absolutamente nada
contar que a expectativa de vida para esses in- sobre indivíduos proibirem outros de fazerem
divíduos era significativamente menor do que a o mesmo. E nesse sentido, mesmo que todos
de graus de parentesco menores. Portanto, po- os seres humanos fossem conscientes das po-
de-se inferir desses resultados uma expressiva tencialidades prejudiciais do endocruzamento,

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isso não levaria automaticamente à conclusão do momento em que essa deixa que as alianças
de que uma proibição mútua devesse existir. se estabeleçam ao acaso. Daí a enorme impor-
Entretanto, isso não significa que ambos os tância da questão da existência ou não de uma
fenômenos em questão sejam dissociados. O aversão inata ao endocruzamento.
próprio Lévi-Strauss sabia perfeitamente que É de fundamental importância, portanto,
a existência de tal aversão inata acarretaria em ver quais são as evidências que apontam para a
profundas consequências para qualquer teo- existência ou não de uma aversão sexual entre
ria sobre a proibição do incesto. Se realmente aqueles que conviveram nos primeiros perío-
existir uma tendência inata nos seres humanos dos da vida. Vale notar que as evidências que
para a aversão sexual entre parentes próximos, em seguida serão expostas em nada dependem
o tabu do incesto não pode mais ser visto do modelo do exocruzamento ótimo ser corre-
como a proibição cultural de algo que seria to ou não. Primeiramente visitaremos os nossos
natural ao ser humano. É importante ter em parentes filogenéticos mais próximos e obser-
mente que não se pode instituir aquilo que já varemos qual é o comportamento deles no que
está i­ nstituído e neste sentido a afirmação clás- diz respeito à aversão ao endocruzamento. Em
sica de Lévi-Strauss de que o tabu do incesto seguida, observaremos nossa própria espécie
é o nexus social instituinte fica, no mínimo, em busca de evidências antropológicas que sus-
prejudicada. Tal perspectiva coloca em xeque tentem essa hipótese.
uma das suposições mais enraizadas nas ciên-
cias humanas: ***

Antes de iniciar a análise propriamente dita


Não é fácil ver porque qualquer instinto hu- do comportamento de alguns primatas no que
mano profundo precisaria ser reforçado pela diz respeito à aversão ao endocruzamento é
lei. Não há nenhuma lei mandando que o ho- bom que se explique para aqueles que não estão
mem coma ou beba ou proibindo o homem de familiarizados com o pensamento darwinista a
por suas mãos no fogo... A lei apenas proíbe o importância e o que se espera de tais tipos de
homem de fazer aquilo que os seus instintos o estudo. Anne Pusey, que nos ajudará nessa fase
inclinam a fazer; o que a natureza por si só pro- do trabalho, resume em poucas palavras aquilo
íbe e pune, seria supérfluo que a lei proibisse e que a primatologia pode oferecer: “Se os pri-
punisse (Frazer, 1910). matas, nossos ancestrais vivos mais próximos,
evitam o endocruzamento, essa descoberta
evidencia que esse comportamento precede as
Esse argumento é muito difundido den- práticas culturais humanas” (Pusey, 2005, p.
tre os cientistas sociais, em Lévi-Strauss, essa 61, tradução nossa). O próprio Lévi-Strauss es-
ideia também aparece: “Não existe nenhuma tava absolutamente ciente da importância de se
razão para proibir aquilo que, sem proibição, observar como os macacos antropoides se com-
não correria o risco de ser executado” (Lévi-S- portavam. Entretanto, o autor francês chegou
trauss, 1982, p. 56). Mais do que presente, essa à conclusão de que em nada tais observações
ideia é absolutamente necessária para a sua teo- poderiam contribuir para a compreensão dos
ria. Afinal, para ele, a cultura surge ao ocupar fenômenos humanos. Segundo ele, a impre-
o espaço vazio deixado pela natureza a partir visibilidade do comportamento dos macacos

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antropoides, tanto individualmente quanto diferente, da aliança, o único sobre o qual a na-
coletivamente, revelava um vazio deixado pela tureza já não disse tudo (id., ibidem, p. 71).
dissolução dos instintos, mas que não fora pre-
enchido. Vejamos como o próprio Lévi-Strauss Mesmo mais de 50 anos depois da publica-
argumenta sobre o comportamento de maca- ção da primeira edição de As estruturas elemen-
cos: “Não somente o comportamento do mes- tares do parentesco, pode-se ouvir do autor que
mo sujeito não é constante, mas não se pode “o conhecimento acerca dos grandes símios nos
perceber nenhuma regularidade no comporta- ensina pouco sobre o passado humano, tanto
mento coletivo” (Lévi-Strauss, 1982, p. 45) próximo quanto distante” (Lévi-Strauss, 2000;
Mais importante ainda é o fato de Lévi nossa tradução). Nesse argumento, Lévi-Strauss
-Strauss utilizar o comportamento dos prima- diz que a proximidade filogenética entre nós e os
tas como o argumento derradeiro para negar grandes símios não diz nada sobre a evolução do
Westermarck: nosso comportamento. Para ele, isso deveria ser
estudado apenas analisando os nossos ancestrais
– e não parentes próximos – no entanto, ele se
Sejam quais forem as incertezas a respeito dos esquece de que na biologia análises comparativas
costumes sexuais dos grandes símios e do caráter entre espécies podem trazer informações escla-
monogâmico ou poligâmico da família entre os recedoras. Especialmente no que tange aos es-
gorilas e os chimpanzés, é certo que estes gran- tudos primatológicos, de maior relevância para
des antropoides não praticam nenhuma dis- este trabalho, o seu diálogo cada vez maior com
criminação sexual com relação a seus parentes a antropologia já ofereceu provas suficientes de
próximos (id., ibidem, p. 71). que eles podem sim trazer-nos algo novo a res-
peito do comportamento humano. Vejamos.
Entre os primatas o cruzamento entre pa-
A negação de Westermarck é, para a teoria de rentes de primeira ordem quase nunca ocorre.
Lévi-Strauss, muito mais do que um mero ca- Basicamente existem duas razões para isso. A
pricho argumentativo. Afinal, se a aversão sexual primeira delas é que a maioria dos primatas,
por parentes próximos for inata, como propõe assim como muitos outros animais, deixam
Westermarck, a natureza passa a dizer algo sobre seu grupo natal antes de se tornarem adultos
o fenômeno que era para Lévi-Strauss de domí- e portanto é raro que dois indivíduos de sexos
nio exclusivo da cultura, notadamente a aliança: opostos que sejam parentes de primeira ordem
convivam quando sexualmente maduros (Pu-
sey, 2005). A outra razão é que – e é essa ra-
Ora, se admitirmos, de acordo com a evidência, zão que nos interessa no momento – mesmo
a anterioridade histórica da natureza em rela- se esses dois indivíduos conviverem, eles não
ção à cultura, somente graças às possibilidades estabelecerão relações sexuais entre si.
deixadas abertas pela primeira é que a segunda Na maioria das espécies de primatas o pa-
pôde, sem descontinuidade, inserir sua marca e drão de dispersão é os machos abandonarem
introduzir suas exigências próprias... Mas a cul- seu grupo natal. Casos documentados desse
tura, impotente diante da filiação, toma cons- tipo de dispersão incluem o dos babuínos do
ciência de seus direitos, ao mesmo tempo que Parque Nacional do Gombe, macacos-prego,
de si mesma, diante do fenômeno, inteiramente lêmures e várias espécies de “macacos inferio-

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res”. Algumas espécies, como os chimpanzés, tos convivem durante o período em que ambos
macacos aranha, muriquis e colobus vermelhos estão sexualmente maduros. Estudos de longa
apresentam o padrão oposto, com as fêmeas duração entre os primatas revelam que mesmo
deixando o grupo natal (Packer, 1995). A dis- em tais circunstancias é raro que ocorram rela-
persão pode ser explicada como um compor- ções sexuais entre parentes próximos. A Tabela
tamento fixado evolutivamente para evitar o 1, adaptada a partir do texto de Pusey (2005),
endocruzamento. Outra hipótese é que a dis- resume tais estudos. De maneira geral fica claro
persão seria resultado da competição interna que quase não ocorrem endocruzamentos ma-
no grupo. Ainda que não seja possível escolher trilineares. Com relação ao endocruzamento
uma das hipóteses com absoluta certeza de que patrilinear os dados são menos claros, até por-
a outra esteja errada, o fato dos indivíduos se que muitas vezes é difícil identificar quem é o
transferirem para um outro grupo justamente progenitor. Ainda assim, no caso dos gorilas
no período fértil (no caso de ser fêmea) acres- em que tal identificação é possível, são raros os
cido do fato de que os indivíduos não são ex- casos de relações entre pais e filhas. Por outro
pulsos do grupo original e são recebidos com lado, pesquisas feitas utilizando o DNA para
hostilidades pelo novo grupo, oferecem indí- identificar os progenitores revelaram que entre
cios de que a primeira alternativa esteja mais macacos-rhesus e macacos-de-gibraltar criados
próxima ao que de fato acontece (Pusey, 2005). em cativeiros o índice de endocruzamento pa-
Ainda que esses padrões de dispersão redu- trilinear não era maior do que o cruzamento
zam significantemente as chances do endocru- com os demais indivíduos do grupo.
zamento ocorrer, algumas vezes indivíduos de Mais significativo ainda é o fato da aversão ao
primeira ordem de parentesco e de sexos opos- endocruzamento algumas vezes não se limitar às

Tabela 1. Aversão a atividade sexual entre parentes (adaptado de Pusey, 2005).

Espécie Mãe Irmão/a materno Outros parentes maternos Pai Irmão/a Paterno

Lémures-de-cauda-
- -
anelada
Muriquis - +
Saguis - -
Macacos Vervet - - -
Macacos-japonêses - - -
Macacos-rhesus - - - - +
Macacos-de-
- - - + +
Gibraltar
Macaca arctoides - -
Babuínos-anúbis - - -
Papio cinocephalus - - - -
Chimpanzés - - +/-
Gorilas -
- significa que ocorre inibição de cópula, + significa que ocorre a cópula, +/- significa que ocorre entre alguns pares mas não entre
outros. Espaços vazios significam que não foram obtidos dados de frequência de cópula para a espécie em questão

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22 | José Francisco Carminatti Wenceslau e André Strauss

atividades heterossexuais. A observação por mais tas espécies de primatas é praticamente inexis-
de dez anos de grupos cativos de macacos-japo- tente. O que se observa é exatamente o previsto
neses, conhecidos pelos hábitos homossexuais pela teoria. Ou seja, a cópula entre pais e filhas
de suas fêmeas, evidenciou relações homosse- sexual­mente maduras não chega a ser uma rarida-
xuais entre fêmeas não relacionadas, mas não de. Exceção que confirma a regra são os gorilas e
entre irmãs, mãe e filha, e avó e neta (Chapais os macacos marmoset. Os laços entre pais e filhas
& Mignault, 1991). Portanto, isso pode ser um entre essas espécies é mais forte do que entre as
“subproduto” da hipótese da adaptação no mo- demais. Isso acontece entre os primeiros pois os
delo de Westermarck, já que não há problema machos possuem acesso reprodutivo exclusivo ao
algum em se esperar que a aversão à relação se- grupo de fêmeas e entre os segundos por serem
xual durante a vida adulta se estenda a todos os monogâmicos. Em ambas as espécies existe uma
indivíduos com os quais se teve contato durante forte aversão ao endocruzamento patrilinear, exa-
a infância, sejam eles machos ou fêmeas. tamente como seria de se esperar pela hipótese da
Além de oferecer fortes indícios de que existe associação de Westermarck, já que nesses casos – e
uma aversão natural ao endocruzamento, os es- nos anteriores – ela surge das relações de fraterni-
tudos com primatas também ajudam a resolver dade, e não do parentesco per se.
uma outra questão. Para que tal aversão exista é Pesquisas feitas entre chimpanzés trazem
preciso que os indivíduos sejam capazes de re- informações que tornam bastante plausível a
conhecer seus parentes. Os pesquisadores conhe- classificação da aversão ao endocruzamento
cem basicamente duas maneiras através das quais como um fator de adaptação dentro dos hábi-
tal reconhecimento pode ser feito. A primeira de- tos de seleção sexual. Observações sobre a on-
las é através da comparação fenotípica. Ou seja, togenia dos chimpanzés, assim como de outros
cada indivíduo compara alguma característica primatas, revela que antes da maturidade sexual
determinada de um outro indivíduo, o odor por o cruzamento entre mães e filhos é um fenô-
exemplo, consigo próprio. Através do grau de meno razoavelmente frequente, chegando a ser
semelhança entre as características seria possível responsável por cerca de 5% a 7% do total de
que o indivíduo identificasse o grau de parentes- relações sexuais da mãe durante o período em
co, pois existe uma forte correlação entre o grau que ela está sexualmente receptiva. É impor-
de compartilhamento genético e o fenótipo. tante observar que, apesar de ejacularem ape-
O outro mecanismo possível é aquele em que nas a partir dos nove ou dez anos, chimpanzés
são considerados parentes os indivíduos que es- com até mesmo três anos de idade são capazes
tiveram intimamente associados durante a ima- de efetuar a cópula, que obviamente não pode
turidade. Em algumas espécies de mamíferos a resultar na gravidez da parceira. É justamente
associação durante a imaturidade chega a ser mais a partir dos sete ou oito anos que a aversão ao
importante do que o grau biológico de parentes- endocruzamento matrilinear começa a se fazer
co no que diz respeito à escolha do parceiro. Entre fortemente presente. São raríssimos os casos em
os primatas parece ser essa a explicação que me- que tais relações são estabelecidas (Pusey, 2005).
lhor se encaixa às observações. O vínculo entre A partir dessa breve exposição sobre a etolo-
mãe e filho é intenso e prolongado, o que reflete gia de nossos parentes primatas, podemos en-
no fato de serem quase inexpressivos os casos de contrar algumas homologias comportamentais.
endocruzamento entre mães e filhos sexualmente A aversão ao cruzamento entre parentes pró-
maduros. Já as relações entre pai e filhas em mui- ximos é sentida mais fortemente pelas fêmeas

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O tabu do incesto e a bioantropologia | 23

do que pelos machos, afeta tanto as relações não implica na outra. Assim, a moral por trás
homo como heterossexuais, diminui com o do tabu do incesto pode ser vista como um in-
grau de parentesco e geralmente impede o in- vestimento simbólico humano sobre uma res-
tercurso entre indivíduos maduros, sem impe- posta adaptativa trazida à tona durante nosso
dir as brincadeiras sexuais da infância. ­Chapais passado primata, o que retoma a perspectiva
(2010) propõe que, da mesma forma que as socrática: as leis do incesto viriam, não para
homologias anatômicas, essas homologias controlar uma propensão humana, mas sim
comportamentais também podem ser usadas para reforçar uma aversão natural.
para investigar a nossa história evolutiva. Mesmo com uma exposição tão rápida
Por exemplo, dados sobre Papio hamadryas quanto essa, é impossível não perceber a per-
(babuíno hamadrias) mostraram que os gru- tinência dessas observações etológicas para a
pos dessa espécie também são exogâmicos e vi- compreensão do fenômeno social. Lévi-Strauss
rilocais (Colmenares, 2004). A diferença é que sabia disso, entretanto ele escreveu seu douto-
entre humanos essa exogamia tem i­mplicações rado uma década antes das pesquisas de longa
para todo o grupo, como por exemplo, a alian- duração sobre os primatas sequer terem início.
ça entre eles (Lévi-Strauss, 1982). No caso dos Ele baseou sua obra científica nas evidências
primatas, há uma afinidade entre o novo gru- que estavam disponíveis em sua época, nada
po e a fêmea que partiu. Já em humanos, o mais inevitável. Menos inevitável, porém, é
grupo da mulher também adquire reconheci- que, após 60 anos as mesmas evidências con-
mento (afinidade bilateral). Segundo Rodseth tinuem sendo apresentadas sem serem alvo de
(1991), isso só é possível graças à comunica- qualquer espécie de atualização. Dessa forma,
ção simbólica, mas especificamente, ao que uma impressão anacrônica sobre as potencia-
ele chama de displacement, a capacidade de se lidades da etologia acaba se fixando na mente
referir a coisas em outros lugares e tempos. Os dos estudantes. Obviamente, tal efeito nefasto
mecanismos de aversão ao endocruzamento, não tem origem exclusiva na leitura de As Es-
portanto, já existiam no passado evolutivo hu- truturas Elementares do Parentesco, mas mesmo
mano, apenas se complexificando e recebendo assim esse é um dos momentos em sala de aula
uma carga simbólica em nossa espécie, como o em que ocorre a transmissão de preconceitos
próprio surgimento do tabu do incesto. Robin autorizados. É preciso que os professores abor-
Fox, antropólogo social, chega a compartilhar dem esse tipo de produção de conhecimento,
dessa ideia ao dizer que a humanidade não mesmo que a primeira vista ele não esteja re-
inventou o parentesco e a aversão ao incesto, lacionado diretamente às ciências sociais. So-
mas outros componentes da exogamia, como mente dessa forma é que se pode combater o
exocruzamento, parentesco não-sanguíneo e insulamento acadêmico e proporcionar a am-
troca de esposas. As relações de parentesco já plamente anunciada interdisciplinaridade.
presentes em nossos antepassados, juntamente
com as atribuições simbólicas humanas, foram ***
o que deram origem às relações classificatórias
como as conhecemos hoje (Fox, 1980). Segun- Saindo do foco da etologia, vejamos agora
do Fox, portanto, o tabu do incesto trata das uma das pesquisas que procura entre os pró-
relações sexuais e das regras de exogamia, e, prios seres humanos indícios dessa aversão ao
ao contrário do que assume Lévi-Strauss, uma endocruzamento. Arthur Wolf é um sinólogo3

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24 | José Francisco Carminatti Wenceslau e André Strauss

que encontrou numa tradição chinesa fatos re- três vezes maior do que as mulheres dos “ca-
veladores sobre os efeitos da convivência duran- samentos maiores”. Além disso, em entrevistas
te a imaturidade sobre a vida conjugal de duas referentes à vida extraconjugal de 551 mulhe-
pessoas. Até a metade do século XX, as famílias res, Wolf descobriu que, segundo os parentes e
chinesas podiam optar entre duas maneiras para os vizinhos, mulheres que se casaram com ho-
conseguir uma esposa para seus filhos. Uma de- mens com os quais compartilharam a infância
las consistia em esperar o filho crescer e então eram duas vezes mais propícias a procurarem
arranjar um casamento com uma determinada satisfação sexual fora do casamento do que
jovem que viria morar com seu marido e sogros. aquelas que casaram com homens com os quais
Nesses casamentos, que Wolf (2005) chama de não compartilharam a infância.
“casamentos maiores”, noiva e noivo se conhe- Com a ajuda de dados censitários podemos
ciam apenas no dia do casamento. estender a discussão a respeito do incesto ainda
Em contrapartida, a família poderia optar mais longe no passado. No Egito durante o do-
por aquilo que Wolf chamou de “casamen- mínio romano, em torno de 300 e 100 a.C., era
tos menores”. Nesse tipo de casamento uma comum se fazer um levantamento censitário de
pequena garota seria adotada, muitas vezes
­ todas as unidades domésticas da região. Alguns
comprada, e criada como se fosse uma filha desses levantamentos, registrados em papiros,
naquela família. Muitas vezes tais garotas eram sobrevivem até hoje, sendo uma fonte rica de
adotadas em idade tão precoce que suas futu- informação para o nosso debate. O casamento
ras sogras as ninavam. Não chegava a ser raro entre irmãos era muito comum nessas ocasiões.
a situação em que as mães davam suas filhas Walter Scheidel (2005), em seu levantamento,
biológicas para poderem cuidar da futura nora conseguiu dados referentes a 121 casamentos
– sim-pua é o nome dado pelos taiwaneses a censitados, desses, 20 eram entre irmãos e qua-
essas garotas, que significa “pequena nora”. tro entre meio-irmãos, além de outros 13 ca-
Conforme relata Wolf (2005), em 1905 o go- sos também relatados em outros documentos.
verno colonial japonês em Taiwan entrevistou Nesse caso, o casamento entre irmãos era uma
cada pessoa da ilha perguntando a data de nas- norma cultural, sendo inclusive uma forma
cimento, a data de adoção, e a forma e data preferencial de casamento entre as múltiplas
do casamento atual. A partir de então as vilas gerações dinásticas (Middleton, 1962).
passaram a ser obrigadas a relatar com no má- Meyer Fortes (1983) e Edmmund Leach
ximo dez dias de atraso todos os eventos vitais (1991) chegaram a utilizar esses casamentos
como nascimentos, falecimentos, casamentos como uma prova contra o efeito Westermarck.
e divórcios. Dessa maneira, a política colonial Porém, Scheidel apresenta argumentos de que
japonesa legou um banco de dados espetacular mesmo estes casos estão de acordo com a teo-
sobre a vida dos taiwaneses. ria. Segundo o autor, as mulheres dessa época
Arthur Wolf trabalha com esses dados há tinham, no auge de sua idade reprodutiva, fi-
mais de quarenta anos e já analisou mais de lhos de três em três anos (em média). Intervalos
20.000 casamentos. Para ele, existem duas con- menores do que esses poderiam ser resultado
clusões claras a que se pode chegar: as ­sim-pua de um hábito comum nesse tempo: as amas-
que foram adotadas em uma idade precoce de-leite tiravam o fardo da amamentação das
apresentaram uma fertilidade cerca de 40% mães e faziam com que essas voltassem ao seu
menor e uma chance de se divorciar cerca de ciclo reprodutivo mais cedo. Segundo o que

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O tabu do incesto e a bioantropologia | 25

foi observado nos papiros, os casamentos mais clássico, entre os kibbutzim israelenses. Nesses
comuns entre irmãos eram entre aqueles com grupos, a fim de se fazerem mais igualitários e
média de sete anos ou mais de diferença. Essa di- reduzir a divisão sexual do trabalho, bem como
ferença de idade era suficiente para que eles não diminuir a importância dada à família, visando
convivessem tão intimamente a ponto de surgir a produção de uma sociedade mais comuni-
uma aversão sexual entre ambos. Ademais, com tária, é comum criar um grupo de crianças de
exceção de dois casamentos, em todos os outros ambos os sexos e com diferenças de idade me-
em que se podia identificar a idade dos noivos, o nor que um ano em um mesmo kvutza – casas
homem era mais velho, já que as filhas ajudavam sob a supervisão de algumas mulheres, poden-
a mãe nos cuidados com os irmãos mais novos, do ou não ser mães de alguns deles. Devido a
tendo assim com esses últimos contato mais fre- esse grande comprometimento ideológico, não
quente, atitude propícia para o surgimento de existe distinção sexual nas atividades realizadas
uma aversão sexual na maturidade. pelas crianças. Ambos os sexos se vestem da mes-
Como Wolf (2005) observou, essa aversão ma maneira, recebem a mesma educação, dor-
é mais acentuada se a associação acontece an- mem nos mesmos quartos e usam os mesmos
tes dos três anos de idade. No Egito romano, o banheiros, além de crescerem em um ambiente
­casamento entre irmãos com diferença de ida- permissivo quanto à nudez e ao sexo (Berghe,
de menor do que essa só seria possível se pelo 1983). Apesar de não haver nenhuma norma
menos um deles tivesse sido amamentado por restringindo o casamento ou relações sexuais en-
uma ama-de-leite, para que a mãe tivesse con- tre membros de um mesmo kvutza, Joseph She-
dições de conceber o segundo filho. Scheidel pher, ao analisar o comportamento sexual e os
(2005) propõe que a amamentação por outra padrões matrimoniais entre adolescentes e adul-
mulher faz com que a criança passe a não re- tos de Yaara (nome fictício dado ao kibbutz estu-
conhecer olfativamente o MHC4 de sua mãe. dado), evidenciou que não havia nenhum caso
Estudos com camundongos mostram que na de relações heterossexuais entre membros de
idade adulta, esses animais passam a ter uma uma mesma casa. Além disso, dentre os 2.769
aversão reprodutiva por indivíduos que te- casamentos envolvendo kibbutzniks, não se en-
nham odores semelhantes àqueles de sua ni- controu nenhum entre indivíduos criados no
nhada (Yamazaki et al, 1988; Eklund, 1997). mesmo kvutza (Shepher, 1971). Quando ques-
Da mesma forma, a criança passaria então a tionados a esse respeito, kibbutzniks atribuíam a
sentir uma aversão a odores compatíveis com falta de atração erótica entre eles à uma sensação
o MHC de quem a amamentou, e não mais de fraternidade para com seus companheiros de
ao de sua própria família. No entanto, como o criação. Portanto, da mesma maneira que entre
próprio autor reconhece, apesar de já ter sido os taiwaneses, a convivência desde a tenra infân-
provada em outros animais, a associação en- cia pode ter levado a um imprinting negativo
tre a formação de uma identidade olfativa na entre os membros dessas comunidades.
infância e preferências sexuais na vida adulta E a nossa própria sociedade, o que será que
ainda precisa ser estudada mais a fundo em ela tem a nos dizer sobre a aversão ao incesto?
humanos para que então se possam fazer tais Mark Erickson (2005) fez um bom apanhado
afirmações com maior segurança. sobre a realidade social do incesto, por assim
Para agregar mais informações a esse debate, dizer. Conforme ele mesmo nota, ao mesmo
podemos recorrer ainda a um terceiro estudo, tempo em que os biólogos foram percebendo

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a raridade do incesto entre os animais, os mé- incestuosas tendem a ter maior presença de al-
dicos constataram que a ocorrência do incesto coolismo, uso de drogas e discordância marital.
na sociedade ocidental era bem maior do que se Mais do que isso, os pais são quase sempre negli-
imaginava. Será então que as sociedades ociden- gentes e emocionalmente indisponíveis. É mui-
tais fornecem evidências que neguem a aversão to comum que os pais incestuosos tenham tido
inata ao incesto? Como veremos a seguir esse uma infância traumática em que foram negli-
não é necessariamente o caso. Antes de mais genciados de alguma forma. Numa pesquisa fei-
nada, Mark Erickson mostra as diversas estima- ta por McCarty sobre relações incestuosas entre
tivas que foram feitas sobre a extensão em que o mães e filhos, que é extremamente rara, 95% das
incesto ocorre nas sociedades ocidentais. mães entrevistadas haviam sofrido algum tipo de
Dos estudos que ele apresenta, cinco foram abuso durante a infância. No caso do incesto de
feitos nos Estados Unidos, um na Inglaterra, pai e filha a experiência é invariavelmente inicia-
um na Finlândia e um na Suíça. Cada um deles da pelo pai e a filha nunca sente prazer. As filhas
utilizou metodologias diferentes. Em algumas geralmente descrevem a experiência como sen-
pesquisas a ocorrência do incesto só era consi- sação de medo, desgosto, confusão, raiva ou ver-
derada se as relações chegassem a penetração ou gonha. No caso de incesto entre irmãos as coisas
sexo oral. Já outros estudos consideravam incesto são bastante parecidas: pais ausentes e abusos
também os casos de molestamento e até mesmo durante a infância (McCarty, 1986). Naomi
de insinuações. Apenas as relações incestuosas Adler e Joseph Schultz descobriram em sua pes-
entre parentes biológicos foram levadas em conta quisa que 92% dos garotos que haviam perpe-
nesses estudos. Entretanto, é bom relembrar trado o incesto sofreram algum tipo de abuso
que os padrastos tem muito mais chances de de pelo menos um dos pais (Adler & Schutz,
perpetrarem um ato incestuoso do que o pai 1995). Vale a pena notar que as relações pessoais
biológico, já que nesses casos há maiores chances entre irmão e irmã que tiveram relações inces-
de não ter havido contato tão frequente entre tuosas geralmente são nulas no que vai além do
ambos durante os primeiros anos de vida da incesto e do abuso sexual propriamente dito.
afilhada. Isso posto, Mark Erickson inicia sua Pierre von der Berghe, ao revisar alguns
análise das relações incestuosas. Ele propõe que trabalhos sobre incesto e abuso sexual em so-
possam existir diferentes tipos de relações dessa ciedades ocidentais, assim como Erickson,
natureza. Em um dos casos o incesto ocorre entre constatou que a grande maioria dos casos era
indivíduos que conviveram durante a infância de composto por pais e filhas e irmãos mais velhos
pelo menos um deles, noutro os indivíduos fo- e irmãs mais novas, os homens sempre agindo
ram separados quando ainda crianças. De acordo como agressores. Dentre as várias hipóteses que
com a hipótese da aversão de Westermarck como podem explicar tal constatação, o autor se foca
engendradora de uma repulsão ao endocruza- em uma, a de que a ausência do surgimento
mento, seria de se esperar que ambos os casos de um imprinting aversivo pelos membros des-
fossem diferentes entre si. Vejamos o que as ob- sas famílias como resultado de uma estrutura
servações nos dizem a respeito disso. familiar pouco coesa e a acentuada diferença
Os casos de incesto entre indivíduos que es- de idade (nos casos entre irmãos) refletir-se-ia
tiveram associados desde a infância de um deles mais acentuadamente entre os homens. Para
revela uma quase homogeneidade com relação ele, além de sua maior agressividade, promis-
a alguns fatores. Primeiramente, essas famílias cuidade, idade e status social, bem como a sua

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O tabu do incesto e a bioantropologia | 27

própria anatomia facilitar a coerção sexual, ha- de 50%, segundo suas estimativas, uma grande
veria um “investimento parental assimétrico” atração sexual foi descrita por ambas as partes.
(Berghe, 1983), ou seja, devido à sua baixa pro- Ao que tudo indica, a atração entre parentes
dução de gametas e alto nível de investimento que não tiveram associação durante a infância
na prole, é muito mais custoso para a mulher é muito forte, já que eles se reconhecem; os tra-
ter relações sexuais com parentes próximos – e ços físicos, os gestos e até mesmo o cheiro igual
arcar com as consequências reprodutivas – do foram relatados como motivo de atração. Essa
que para o homem. Tanto, que muitas dessas atração já é muito bem conhecida na biologia
vítimas fogem de casa ou decidem colocar um e evidenciada em outras espécies, recebendo o
fim nos abusos apenas após a puberdade, na nome de phenotypical matching, em que os in-
maioria dos casos fugindo, casando ou tendo divíduos tendem a se reproduzir com aqueles
um filho com outro homem (Berghe, 1983). fenotipicamente parecidos.
Quando voltamos nossas atenções para os Como resume Erickson, as observações do in-
casos de incesto entre parentes que foram sepa- cesto em nossa própria sociedade oferecem, por-
rados quando ainda pequenos e só se reencon- tanto, sustentação para o teoria de Westermarck:
traram quando adultos as coisas se revelam bem
diferentes. Longe de ser uma experiência trau- Como previsto pela hipótese de Westermarck,
mática para alguma das partes e longe também estudos clínicos mostram que as chances de
de ser um ato imposto ou coercitivo, esses casos ocorrer o incesto são muito maiores se os pa-
de incesto são quase sempre uma experiência rentes forem separados durante a infância. É
agradável e até mesmo irresistível. Como exem- apenas nessa circunstância que o incesto pode
plo desse tipo de incesto vale citar os seis casais ser mutuamente desejado e eventualmente virar
de irmãos incestuosos estudados por Weinberg um casamento. Os tabus parecem ter influên-
(1955). Em todos eles, o relacionamento era cia limitada. Por outro lado, quando ocorre a
não só consentido como também envolvia uma associação durante as primeiras fases da vida o
grande dose de paixão. Todos os irmãos des- incesto é raramente, se alguma vez realmente o
ses seis casais haviam sido separados quando for, mutuamente desejado (Erickson, 2005, p.
crianças e só se reencontraram bem mais tarde. 170, tradução nossa).
Mais do que isso, todos sabiam perfeitamente
das restrições sociais e legais ao incesto e ne- Na realidade, o próprio complexo de É ­ dipo,
nhum deles manifestava qualquer preocupação âncora das teorias freudianas sobre o incesto,
com relação a isso. Outro exemplo que aponta também faz sentido segundo Westermarck.
na mesma direção vem dos estudos de M ­ aurice Como Édipo foi separado de seus pais logo após
Greenberg e Roland Littlewood sobre os reen- ter nascido, ele não teve a chance de experimen-
contros entre parentes há muito tempo distan- tar o contato familiar que lhe possibilitasse a ge-
tes (Greenberg & Littlewood, 1995). Esse tipo ração de uma aversão sexual à mãe. Essa aversão,
de reencontro aumentou consideravelmente na não sendo despertada, abre caminho para o phe-
Inglaterra após o Acess to Birth ­Records Act notypical matching. Édipo, então, tornar-se-ia
ser aprovado, em 1975, permitindo às pessoas passível de uma atração por Jocasta devido às
adotadas que encontrassem seus parentes bio- grandes semelhanças fenotípicas entre ambos.
lógicos. O que surpreendeu os pesquisadores
foi que em grande parte dos reencontros, cerca ***

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28 | José Francisco Carminatti Wenceslau e André Strauss

Após essa análise, percebe-se que a teoria Assim sendo, é que nos propusemos, nes-
antropológica lévi-straussiana a respeito do in- te artigo, a abrir os olhos dos cientistas sociais
cesto, bem como os conceitos psicanalíticos brasileiros a outras áreas de pesquisa que não as
freudianos sobre o qual ela se sustenta, deixa suas, mas que também se mostram igualmente
de parecer tão concreta quanto proposto pelos relevantes. Muitas vantagens podem surgir ao
cursos de estruturalismo em geral. A grande va- combatermos esse isolamento acadêmico e pro-
riedade de pesquisas efetuadas posteriormente a porcionar, então, novas formas de diálogo. Apro-
seus trabalhos, dentre as quais algumas aqui ex- priando-nos das palavras de Foucault, “para que
postas, mostraram-se um forte instrumento para exista uma disciplina deve existir a possibilidade
a derrubada do paradigma por eles sustentado. de se formular novas proposições – e de assim
A diversidade de fontes é extensa, como mostra- fazer-se ad infinitum...” (Foucault, 1976). Lévi
mos, desde trabalhos com genética até correntes -Strauss portanto, não é, de maneira alguma, um
psicanalíticas divergentes, passando por estudos ponto final na questão do Tabu do Incesto.
de etologia de primatas e de casos clínicos em
humanos. Pode-se ver que não faltam hipóteses
que contradigam essas grandes correntes manti- The incest taboo and bioanthropology
das durante boa parte do século XX.
No entanto, não podemos (e nem preten- abstract The debate about the incest taboo has
demos) contestar a importância dos pontos de been widely discussed even before the foundation of
vista assumidos por esses autores. Não fosse anthropology as a field of study. However, it was in
pelo próprio Lévi-Strauss, provavelmente mui- that area of knowledge that the theme acquired ac-
tos dos estudos bioantropológicos, como os centuated attention, especially after the publication
que tomamos como exemplo, sequer haveriam of the renamed work of Claude Lévi-Strauss, The Ele-
sido propostos. Devemos, contudo, entendê- mentary Structures of Kinship, in 1949. A large part
-los na sua época, contextualizados dentro do of Brazilian schools of social sciences assumes this
conhecimento científico próprio de seu tempo. subject was ended by this author; nevertheless, this
Ele mesmo assume, no prefácio da 2ª edição is far from being true. In this article we try to relight
de As Estruturas Elementares do Parentesco, a ca- the debate with the Levi-Straussian structuralism and
rência de estudos mais detalhados em genética its main theory about the prohibition of incest – the
para o tema por ele abordado: alliance theory – through the selection of several stu-
dies that somehow dialogs with this author’s work.
Continuo a crer que a proibição do incesto expli- Thereby, it is with special help of the boundary works
ca-se inteiramente por causas sociológicas, mas é between biology and anthropology – which many ti-
certo que tratei do aspecto genético de maneira mes don’t reach the social scientists – that we hope to
excessivamente ligeira. Uma apreciação mais jus- revive this reflection among the Brazilian academy.
ta da taxa muito elevada das mutações e da pro- keywords Lévi-Strauss. Inbreeding. Etology.
porção das que são nocivas levaria a afirmações Primatology. Endogamy
mais atenuadas, mesmo que as consequên­cias
deletérias das uniões consanguíneas não tiveram Notas
papel na origem ou na persistência das regras de
exogamia (Lévi-Strauss, 1982, p. 25). 1. Cabe ressaltar, como faz Felipe Verde (1994) e tam-
bém o próprio Lévi-Strauss (1982), que o conceito de
incesto (e sua consequente proibição) deve ser inter-

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O tabu do incesto e a bioantropologia | 29

pretado de maneira relativa, ou seja, uma sociedade PAIS, B. & BERMAN, C. M. (Orgs.). Kinship and
mais permissiva quanto ao casamento entre parentes Behavior in primates. Nova York, Oxford University
próximos não pode ser considerada incestuosa apenas Press, 2004. p. 242-270.
por esses hábitos serem proibidos em nossa socieda- DARWIN, Charles. The Descent of Man (Vol. 1), Lon-
de. Ela ainda manterá suas próprias restrições, porém, dres: John Murray, 1871.
sob uma diferente magnitude. DENIC, Srdjan, NAGELKERKE, Nicolas, AGARWAL,
2. Em genética de populações, o símbolo “r” denota a Mukesh M. Consanguineous marriages and endemic
proporção de genes compartilhados entre dois indiví- malaria: can inbreeding increase population fitness?
duos. Assim sendo, dois indivíduos com r = 0,03125 Malaria Journal, v. 7, p. 150-158, 2008.
(equivalente a primos de segundo grau) comparti- EKLUND, Amy. The Effect of Early Experience on
lham 3,125% de seus genes devido a uma ascendên- MHC-Based Mate Preferences in Two B10.W Strains
cia em comum. of Mice (Mus domesticus), Behavior Genetics, v. 27, p.
3. A sinologia consiste no estudo dos aspectos culturais, 223–229, 1997.
sociológicos e políticos da China. ERICKSON, Mark T. Evolutionary Thought and
4. O MHC é um complexo de genes que atua prin- the Current Clinical Understanding of Incest. In:
cipalmente no sistema imunológico, codificando ______. (Orgs.). Inbreeding, Incest and the Incest Ta-
­proteínas para o reconhecimento de patógenos. Po- boo; the state of knowledge at the turn of the century.
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autores José Francisco Carminatti Wenceslau


Graduando em Ciências Biológicas / UNESP
André Strauss
Doutorando em Evolução Humana / Instituto Max Planck de
Antropologia Evolutiva

Recebido em 02/03/2012
Aceito para publicação em 01/10/2012

cadernos de campo, São Paulo, n. 21, p. 13-30, 2012

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