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Cultura Brasileira
Guilherme Cardoso
1
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p.47.
2
RAGO, Margareth. Sexualidade e identidade na historiografia brasileira. In: MARTINS,
Ismênia de Lima; MOTTA, Rodrigo Patto Sá; IOKOI, Zilda Gricoli (orgs.) Anais do XIX
Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: Humanitas, 1998, p.187.
pensar nosso país, sendo, conforme Antônio Cândido, um “fenômeno da vida e
do espírito”3.
Para esse importante literato, durante a primeira metade do século XX,
entretanto, é o ensaio que aparece como gênero privilegiado para a reflexão, no
qual “se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a
observação, a ciência e a arte”: ele opera a pesquisa “puramente científica” de
um lado, e a “criação literária”, de outro, tecendo o que ele chamou de um
“panorama de nossa cultura”4. Sobre esse gênero, Fernando Nicolazzi pontua
que trata-se daquele que “traz em si todas as marcas de seu contexto de
emergência”5, levando assim, a forma ensaística a assumir as particularidades do
ambiente intelectual brasileiro durante esses primeiros anos do século. Ainda
conforme o historiador, o gênero do ensaio é uma modalidade de escrita de
difícil descrição e teorização, lhe atribuindo como o gênero “tipicamente
moderno de discurso”6, dentro de uma tradição iniciada a partir dos Essais de
Montaigne, cerca de três séculos antes. Sem a pretensão de encerrar o debate
sobre o gênero nesta breve análise, o texto produzido a partir da modalidade do
ensaio poderia ser concebido como uma amálgama de técnica e sensibilidade,
também caracterizado por Nicolazzi como “acessível e circulável pelo seu lugar
de produção, favorecido por um ambiente intelectual em expansão e por um
renovado paladar literário”:
(...) o ensaio aparece como um gênero de fronteira (o que ainda não é
dizer muito), uma espécie de escrita-limite que tem por pretensão
traduzir ou transcrever um pensamento que se desenvolve de forma
não sistemática e errante, fragmentária e inconclusa, assumindo como
3
CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e sociedade.
São Paulo: T. A. Queiroz, 2000, p. 119.
4
Ibidem.
5
NICOLAZZI, Fernando. Sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado.
2008. 411 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
p.306.
6
Ibidem, p.307.
objeto de reflexão não apenas a “matéria”, mas igualmente a
“maneira”7.
Tanto Cândido como Nicolazzi ressaltam em suas obras que o ensaio,
enquanto um gênero de escrita, no contexto brasileiro, deve ser visto como
resultado de uma “confluência formal” entre os saberes que se constituíram no
território brasileiro entre o final do século XIX e início do XX. Dessa forma,
para nossa análise, devemos pensar no ensaísmo de cunho propriamente
histórico que desponta durante aquelas primeiras décadas, desenvolvido por
diversos intelectuais basilares – como Euclides da Cunha, Oliveira Vianna,
Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, etc. Esse panteão,
entre outros, fez do ensaio uma tradição enquanto forma de uma reorganização
das diversas áreas de saber diante da primazia da literatura como modo
indispensável de representação da cultura nacional, e Nicolazzi dá continuidade
a esse raciocínio quando escreve que “a conjectura que se levanta, portanto, é a
de que o ensaio histórico das primeiras décadas do século XX desponta no
limiar entre as intenções sintéticas da história literária e as pretensões eruditas da
historiografia”8.
Portanto, podemos afirmar o ensaio como um esforço de sistematização
de uma realidade histórica, que assim como o romance, é uma forma
privilegiada para traçar representações regionais que visam à solução ou mesmo
a reflexão sobre as inúmeras questões enfrentadas pela sociedade naquele
momento. Como já mencionado, esses movimentos “intelectuais-artísticos”
buscaram determinados passados, visando um “diagnóstico” que lhes fosse
conveniente para as formações de um comportamento dito brasileiro – nossa
natureza, nossas disposições, relações e também, nossa sexualidade. O presente
trabalho não tem a intenção, nem de concluir a discussão sobre o gênero
ensaístico, tampouco deliberar sobre a moralidade histórica (ou uma suposta
7
Ibidem, p.313.
8
Ibidem, p.326.
inexistência dessa) na “formação” do Brasil. Visamos, entretanto, frisar a
relevância que os discursos sobre a sexualidade tiveram durante esse processo
de “formação”.
12
Não coincidentemente, intitulado “A Luxúria”.
13
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo:
IBRASA, 1981, p. 17.
14
Ibidem, p.31.
os efeitos desse legado no presente. Esse traço original, resultado da obra de
Prado e relido à luz dos desdobramentos do pensamento “científico”, é, para
Rago, o responsável pela incapacidade da evolução do povo brasileiro, pela
“não-realização de nossa Modernidade”15. Ela continua:
Ao contrário dos povos de origem puritana, como os norte-
americanos, nos quais o lado racional e administrador é mais forte do
que o instintivo, o Brasil não consegue romper com o passado arcaico,
pesado, conservador e autoritário, que entrava sua marcha rumo ao
progresso16.
A historiadora lembra ainda que, no mesmo ano de 1928, Mário de
Andrade lança Macunaíma – por sinal, obra dedicada a Paulo Prado. O ingresso
na “civilização” daquele personagem, amplamente metaforizado ao longo das
décadas no cidadão brasileiro, se dá através das “cunhãs” com quem passa a
noite, pagando “quatrocentos bangarotes”, e que também lhe guiam e explicam
aquela vertiginosa São Paulo, seu maquinário, seus ruídos, sua rotina, etc:
Assim, são as prostitutas que fazem a passagem do herói do reino da
natureza para a civilização, da terra verdejante para o mundo das
máquinas, a mercantilização do sexo sendo a primeira relação
capitalista que vive o herói. Entre a história e a literatura, portanto,
emerge um povo indolente, fraco e fortemente sexualizado, traço que
indica seu grau de atraso cultural, o predomínio do lado instintivo
sobre o racional, o que o torna, por sua vez, inadequado para construir
a Modernidade (...)17
Porém, os paulistas não seriam os únicos a se voltar para o passado
visando uma modernidade para sua região e para o país. A publicação de Casa
Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, foi um marco intelectual em 1933, pois
sinalizava também esse movimento que buscava uma identidade nacional.
Freyre retomava a temática da convivência das “três raças” a partir da
15
RAGO, op. cit., p. 187.
16
Ibidem, p. 188.
17
Ibidem.
experiência histórica da vida privada das elites nordestinas, fazendo delas um
exemplo identitário18. A obra apresentava, pois, um novo modelo de
interpretação para a sociedade multirracial brasileira ao inverter o antigo
pessimismo do mito das três raças que por muito tempo predominou nas análises
intelectuais sobre o país.
A versão otimista de Freyre acerca do mito tornava a mestiçagem na
“ordem natural” do país: seria o cruzamento das três raças que determinava a
nossa singularidade. Mas nessa construção intelectual, Freyre fazia a
miscigenação parecer um sinônimo de tolerância racial e transformava hábitos
sexuais íntimos em modelos de sociabilidade19. A sexualidade, portanto, tem
uma dimensão central na interpretação que Freyre faz da miscigenação, do mito
das três raças e dos sentidos da história brasileira, que influenciou diversas
gerações de profissionais. O próprio autor afirmava que sua obra compunha
“uma história da sexualidade brasileira, cujo resultado era “uma história da
sexualidade brasileira, cujo resultado era uma mistura bem-feita e original; uma
cultura homogênea apesar da resultante de raças tão diversas”20. Voltando-se
para o período inicial da colonização e também para os séculos seguintes da
formação da sociedade brasileira, Gilberto Freyre cria uma imagem positiva do
Brasil, tornando a nossa atividade sexual como uma das responsáveis pela
“democracia racial”, apesar desta mesma ter também propagado diversas
doenças venéreas, como a sífilis. O intelectual esboça um quadro marcado pelas
intensas relações sexuais travadas entre os colonizadores e as mulheres
indígenas, sobretudo, nos primeiros contatos:
O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação
sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os
próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão
atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se
18
SCHWARCZ, op. cit., p.48
19
Ibidem, p.49.
20
Ibidem.
contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se
entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas
desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou
um caco de espelho21.
Para o homem branco colonizador, as vantagens de aqui se estabelecer
viriam da possibilidade de viver uma vida desregrada e livre. Referenciando seu
colega paulista, diz Freyre: “Atraídos pelas possibilidades de uma vida livre,
inteiramente solta, no meio de muita mulher nua, aqui se estabeleceram por
gosto ou vontade própria, muitos europeus do tipo que Paulo Prado retrata em
traços de um vivo realismo. Garanhões desbragados.”22
Na leitura de Freyre, a origem do povo brasileiro estaria na miscigenação
das três raças, algo que não teria encontrado problemas para acontecer, porque a
“atração sexual” entre homens brancos colonizadores e mulheres negras e
indígenas teria sido mais forte que as proibições normativas e culturais: dessa
união entre os diferentes teria nascido nossa cultura marcada pela cordialidade23,
pela tolerância, pelo corpo e pela sensualidade. O autor ainda transpõe sua
leitura do universo íntimo e privado das relações sexuais como um fator
fundamental para compreender as relações estabelecidas na esfera pública. O
mundo social pertencente à essa esfera foi, desse modo, moldado por modelos
de interpretação do privado, onde, segundo Freyre, as relações primárias são
marcadas por um tipo de relação sexual sadomasoquista, sobretudo, entre
senhores e escravas24.
Mesmo reconhecendo que esse sadomasoquismo social atinge sempre as
mesmas vítimas historicamente oprimidas, Freyre desenvolveu um raciocínio
segundo o qual o patriarcado e a opressão de escravizados e indígenas permitiu a
21
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2013, p.161.
22
Ibidem, p. 83
23
Esse conceito, posteriormente na obra ensaística historiográfica de Sérgio Buarque de
Holanda, tornou-se ainda mais central.
24
RAGO, op. cit., p. 193
estabilidade social, garantindo a coesão social brasileira: “A verdade é que em
torno dos senhores de engenho criou-se o tipo de civilização mais estável na
América Hispânica; e esse tipo de civilização, ilustra-o a arquitetura gorda,
horizontal, das casas-grandes.”25
Esta interpretação que Freyre construiu sobre as origens e principais
características do povo brasileiro foi muito citada e, principalmente, incorporada
por outros intelectuais contemporâneos, como Sérgio Buarque de Holanda e
Caio Prado Jr. Tendo esse último reproduzido exatamente as teses de Freyre na
sua interpretação de mestiçagem. Mas de que modo estes ensaístas construíram
suas versões da formação da identidade brasileira? Margareth Rago aponta a
visão de uma sexualidade “em excesso” pode ter vindo de um lado da
incorporação literal das fontes documentais em suas análises. Baseando-se em
relatos de viajantes, inquisidores e colonizadores que escreveram sobre o país
desde o século XVI, tanto Freyre quanto Prado, tomaram o olhar masculino, e
também os preconceitos culturais do homem europeu, construindo suas leituras
sobre as práticas sociais e sexuais engendradas nos trópicos.
Por outro lado, conforme Rago, há uma forte incorporação do discurso
médico nas interpretações propostas pelos intelectuais ensaístas. Mesmo que não
estejam citados diretamente, o discurso médico – que como mostrou Michel
Foucault26, foi o principal discurso alimentador das noções modernas acerca da
sexualidade – constituiu a matriz das visões de povo, raça e a própria
sexualidade destes autores. Assim, o discurso médico foi apropriado
acriticamente como verdade científica, servindo como base para construir a
interpretação do povo brasileiro, que, seja triste na visão de Paulo Prado, ou
alegre conforme Freyre, tem como característica a perversão, o predomínio do
instintivo sobre o racional. Esses ensaios, que foram repetidos e reproduzidos
inúmeras vezes nas décadas posteriores, buscavam ensinar, de certo modo, o que
25
FREYRE, op. cit., p. 43
26
Ver: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. São Paulo:
Paz e Terra, 2015; O Nascimento da Clínica. Forense Universitária, 1987.
seria o “ser brasileiro”, uma identidade marcada pela impossibilidade de uma
racionalidade e da existência de poucos indivíduos aptos a participar da esfera
pública e de administrar o Estado27.
A produção intelectual que buscamos analisar brevemente aqui, sobretudo
a de Gilberto Freyre e Paulo Prado, foi certamente original e importante para o
contexto político em que surgiu, configurando novas formas de enxergar o
Brasil, os brasileiros e as brasileiras, tendo ressonância até o presente, como já
mencionamos, embora já amplamente contestada no âmbito acadêmico. De
qualquer forma as interpretações desses autores, hoje clássicos incontestes,
acabaram por representar o país por estereótipos que ora “o designavam como
uma grande e inesperada “falta” – de lei, de hierarquia, de regras – ora pelo
“excesso” – de lascívia, de sexualidade, de ócio ou de festas” 28. Essas visões
alimentam em parte uma imagem do Brasil visto do exterior como um país
hospitaleiro, de valores exóticos, de uma sensualidade única que, num país
marcado historicamente pela desigualdade, ainda atinge mais fortemente
determinados sujeitos, como as mulheres negras, criadas nestes discursos como
a mulata exótica, ao mesmo tempo sensual e perigosa. Por fim, nos
questionamos, como Rago, de que povo falavam esses autores? Será que
teríamos interpretações diferentes deste Brasil inventado caso tivessem lido suas
contemporâneas mulheres, como Patrícia Galvão, a Pagu?
27
RAGO, op. cit., p.191.
28
SCHWARCZ, M. Lilia; STARLING, M. Heloisa. Brasil: uma Biografia. São Paulo.
Companhia das Letras, 2015, p.18.
Referências bibliográficas