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A ILUSÃO LÚDICA

Christophe Triau
Tradução: Matheus Chaves, Matheus Cosmo e Matheus Tomaz.
Revisão: Matheus Cosmo.

Porque, em última análise, é deste bom jogo que eu retiro meu prazer.
Um jogo não de teatro mas do teatro.
Bernard Dort

Em 1988, Bernard Dort intitulou “Tempo de jogo” a última parte de sua obra La
représentation émancipée. Com a lucidez e a precisão que lhe são características, ele vislumbrou,
no final dos anos 1980, uma mutação significativa das práticas teatrais que tendiam a levar
adiante “a parte de jogo” própria ao teatro: esta afirmação foi, com efeito, confirmada, e, cerca
de vinte anos mais tarde, a exaltação do jogo teatral, bem como a exibição da teatralidade
que geralmente o acompanha, torna-se evidente nos palcos, assim como se encontra no
centro dos discursos acerca da performance cênica; agora, afirma-se plenamente como parte
da doxa teatral. Aqui, será preciso retornar um pouco, limitando-se ao caso francês, à
genealogia de sua evolução, e a polêmica medida revestida por volta dos anos 1990, e
interrogar, a partir desses pontos, certas implicações potenciais do primado do jogo que nos
é contemporâneo.
O fim dos anos 1980 e os anos 1990 tinham visto a emergência de um certo nome de
artistas e equipes, cuja chegada na paisagem teatral, ainda que fossem distintas suas práticas
individuais, poderia emergir como um alívio, como o advento de uma nova geração
partilhando certo número de questionamentos e reivindicações comuns: a manifestação de
um “jovem teatro”, como anunciara, por exemplo, o título de um número da Revue d’esthétique
em 1994, que deu a palavra a alguns desses criadores – os mesmos que se encontravam à
frente da cena e instituição teatrais. Seria naturalmente redutor afirmar que todos
partilhavam o mesmo discurso e a mesma concepção acerca de um possível uso do teatro
(suas diversas trajetórias foram posteriormente reveladas); em seguida, foi não menos
evidente, contudo, que uma certa situação comum, enunciada por múltiplas vozes e
aspirações – uma comunidade de questionamentos, não de respostas –, permitiu a percepção
de uma emergência geracional portadora de um discurso sobre o teatro que lhes era próprio
e que surge, em muitos pontos, como uma oposição a certas práticas anteriores.
De fato, a dimensão geracional era muito forte: tratava-se, também, de um momento
no qual o Estado, por meio do ministério de Jack Lang e seus anteriores, havia desenvolvido

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uma rede institucional cujo controle era predominantemente confiado aos praticantes da dita
“geração de 68”, com o intuito de que eles reivindicassem um local nesta instituição e um
acesso às ferramentas por ela fornecidas, colocando em questão o uso recente que pôde ser
feito por essa mesma “geração 68”. Essa forneceu, no discurso global (pois consiste
exatamente num certo discurso global o que está sendo repensado aqui, ao custo,
evidentemente, de alguns trabalhos) que se mostrava então (e a despeito de quaisquer
filiações pontuais, diversamente reivindicadas em meio ao lamento de uma falta de
transmissão), um contramodelo perante aquele que poderia ser reivindicado, se não como
uma nova concepção, ao menos como uma (ou mais), nova(s) prática(s) do teatro; ou, para ser
preciso, não tanto uma “nova” prática mas uma “outra” prática que, em muitos pontos,
pretendia recuar a certas instâncias – mesmo que pudessem ter práticas baseadas na
revitalização de velhos modelos, ainda agora são acusados de terem perdido um compromisso
político e/ou artístico, por conta de sua lógica mercadológica, institucional e espetacular –
como se pode grosseiramente dizer sobre os anos 80.
Este contramodelo era, no final das contas, o de uma teatralidade mais segura dela
mesma, bastante consciente de seu poder e se empenhando em desenvolvê-lo ou exibi-lo, seja
ligando-o à criação da ilusão, relacionando-o a uma função crítica e à capacidade de produzir
um discurso sobre o mundo, ou (talvez um pouco menos, contudo) relacionando-o ao
compartilhamento de uma “festa teatral”: os poderes descobertos e cultivados pela idade de
ouro que pôde ser representada pela encenação nas décadas precedentes – “os esplendores da
teatralidade que foram celebrados” por aqueles que Bernard Dort pôde chamar les metteurs en
scène da “segunda geração”, os que “anunciaram enfaticamente as maravilhas que se há em
fazer funcionar a máquina teatral. Uma máquina que se nutre de tudo”. Uma máquina teatral
associada pela nova geração a toda poderosa figura do metteur en scène auteur ou démiurge,
conceptor e organizador da matriz do sistema estético e hermenêutico dos signos dispostos
no palco – figura em face da qual muitos reivindicaram ora a primazia do texto do autor ora a
presença do ator. No fim das contas, é esta teatralidade suntuosa e segura dela mesma, esta
afirmação do domínio da “máquina teatro” e da autossuficiência da representação, que acabou
sendo evidenciada, quaisquer que fossem suas formas (e ao preço, claro, de caricaturas), como
geradora de “produtos” teatrais enclausurados em si mesmos: os “belos objetos” do reino do
“espetáculo” e da ordem de consumo – é nesses termos que, por exemplo, Didier-Georges
Gabily pôde criticá-los (do seu ponto de vista de autor, antes de tudo, mas também de
diretor), de uma maneira particularmente virulenta, porém sintomática:

O que eles nomeiam “teatro”, reiteremos e repitamos, não representa, muitas vezes, nada mais
do que uma usurpação de título, com os meios e as forças adequadas: um título genérico que

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toma o “espetáculo” pelo “teatro” – ou seja, o espetáculo como eles o impõe contra o teatro
como nós gostaríamos de escutar e ver. O lugar consensual do espetáculo contra a ideia da
arte do teatro, que acarreta um atrito, que não encontra consenso em uma celebração
unânime, que é o laboratório público e cidadão do “escândalo”, da palavra escandalosa, sem
sentido, dissensual e, sobretudo (empreguemos aqui também a palavra sem nenhuma reserva),
poética do ser com o mundo.

É por essa razão que a maior parte dos discursos e das práticas características desses
anos inscreve-se no que se pode chamar de um “retorno aos fundamentos”, com um esforço
de reconvocar e reivindicar, de diversas maneiras, as especificidades do meio teatral: a
interrogar os meios que lhe eram próprios, não em uma lógica puramente essencialista, mas a
fim de colocar seus usos em questão, junto a suas funções e possibilidades de eficácia. As
formas foram as mais diversas e implicaram, com frequência, a recusa a uma lógica de
representação mimético-naturalista (a ser esboçada e esquematizada por outras mídias, como
o cinema ou a televisão…) e a imposição de uma leitura interpretativa. Por detrás das
múltiplas práticas, existia uma tentativa de reafirmação de uma identidade mínima e de
reivindicação dos constituintes de uma singularidade teatral que estava em jogo, com esses
constituintes sendo desenvolvidos de forma aberta, quando não plenamente exibidos:
particularmente, a presença não mediada e não deferida do ator; o presente da representação;
a co-presença e a experiência da comunidade entre a cena e a sala (tendo como corolário a
aspiração a uma implicação “participativa”, mesmo que virtual ou metafórica, do público); a
execução de uma experimentação das percepções sensíveis e de uma abertura do sentido,
mais do que a confrontação frente a um discurso puramente hermenêutico; a manifestação do
jogo própria à performance.
Dentre todos os fundamentos, e na verdade, muito além, no centro deles e os
englobando, havia a afirmação do teatro enquanto tal, a reivindicação de uma teatralidade
exposta, exibida. Mas não se tratava de uma celebração do esplendor do teatro, de uma
exaltação confiante de sua capacidade de dizer o mundo e de produzir encantamento: pelo
contrário, como vimos, ela se inscrevia na interação com as grandes realizações dos poderes
de uma teatralidade fascinante e produtora de espetáculos impressionantes, de domínio
espetacular. Tampouco se tratava da retomada de uma lógica brechtiana que veria na
demonstração do teatro, como tal, um distanciamento que impulsionaria uma atitude política,
caminhando os passos de um teatro crítico; estas práticas testemunhavam uma recusa
mundialmente partilhada da encenação como leitura hermenêutica e como lugar de uma
“lição” potencial sobre o mundo, e então contra uma certa herança de brechtiana (ou pseudo-
brechtiana – é uma outra história), e geralmente se recusavam a ver o palco como o lugar da
elaboração de um discurso, privilegiando – pelo jogo do teatro – “a abertura do sentido” e a

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uma maior liberdade de leitura atribuída ao espectador, a quem seria plenamente delegada a
construção do sentido; reivindicando, contudo (era este o caso, nós o vimos, de Gabily), a
afirmação de um gesto poético forte, singular e “carregado”, quero dizer, ancorado em uma
relação com o mundo.
A teatralidade então exposta era, de um lado, uma parte intrínseca ao teatro como seu
engajamento em presença, e, de outro lado, a do teatro mostrado em sua inerente
artificialidade, e potencialmente em sua intensa precariedade, se manifestando, assim, em
oposição ao espetacular de um objeto enclausurado em si mesmo, dentro de um sistema
significante e estético. Um teatro que fundaria o prazer do risco e da invenção perpétua da
qual ele é capaz, acima de sua fragilidade e de sua recusa ao puro controle e virtuosidade. O
que muitos espetáculos convocavam em cena contra uma série de signos e figuras ostensivas
e cognoscíveis era, então, um teatro improvisado e experimental, um teatro se inventando
aos poucos, com meios pobres e compostos por armações com tijolos e blocos – mas com um
fervor garantido. Mostrar o teatro, e mostrá-lo enquanto era feito, em seu inacabamento e
sua imperfeição, revelá-lo igualmente como “proposta” (o termo floresceu nos anos 90), era
reivindicar a fábrica e o processo, contra o objeto fechado e a busca por uma moral; era
recuperar o ato no presente contra o produto, anulando igualmente o discurso de uma leitura
hermenêutica constituída para procurar um sentido em suspenso e exposto à vista, na frente
do espectador. De certa maneira, tratava-se de manter o teatro centrado em tudo o que ele
pode conter de intrinsecamente “bastardo” (e com todas as glórias dessa degeneração) contra
o risco da autossuficiência espetacular.
É à luz disso, me parece, que se deve – para ficar apenas nesse exemplo – considerar
as grandes “aventuras” que marcaram as últimas décadas, certa tentação em muitos
espetáculos longos (de La Servante d’Ovilier Py às Violences ou, ainda mais, Gibiers du temps
de Gabily, passando pela Vole mon dragon de Nordey e o Henry IV de La nuit surprise par le
jour): esses espetáculos-fluxos não pretendiam ser espetáculos-cumulativos, mas passagens
cujo próprio excesso deslocava a possibilidade de um domínio, tornando-o impossível, e a
substituía pelo risco de desequilíbrio e o investimento libidinal de cada um, a não realização e
o jogo próprio à teatralidade assim convocada – um sopro lúdico, poderíamos dizer, que
integraria este jogo como se constituísse inteiramente sua natural não realização. A extensão
como um excesso reivindicado se transformou em meio de explodir o “objeto” teatral, de
levá-lo ao limite para que ele saísse dele mesmo, e degenerá-lo, fazendo com que ele reviva
sob a força daqueles que o sustentam, do “coletivo”, retomando um termo cunhado por Jean-
Pierre Thibaudat, que se tornou emblemático para algumas dessas práticas: opôs o ator
habilidoso e virtuoso, ou ainda o ator famoso e cabotino, à energia coletiva de toda a equipe

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de intérpretes, que exibia algo além de suas funções, baseando-se num conjunto que
pretendia evitar tanto a singularidade narcísica como a predominância das escolhas de um
diretor. Atores jovens, geralmente, unidos pela experiência compartilhada e pela participação
em uma mesma aventura que excede, normalmente, o próprio espetáculo, que aparece apenas
como um testemunho de uma exploração e descoberta mais amplas e compartilhadas das
possibilidades do teatro. Essa presumida juventude, cuja energia era supostamente refletida
em sala, não estava, de modo algum, interessada na lógica desses espetáculos: ela encenava
mais o sentimento de uma descoberta do que aquele de uma experiência de domínio da
linguagem – ali parecia se criar uma teatralidade que descobria e questionava seus meios sem
a intenção de transformá-los em manifestações de mero virtuosismo.
Tratava-se então, na verdade, de reinvocar a teatralidade, e o jogo que lhe é próprio,
no que ela poderia ter de mais simples – de mais primitivo e mais desarmado, de certa forma:
aquela de um teatro em processo, que está se fazendo no instante mesmo em que acontece –,
para evitar uma outra teatralidade, aquela de um teatro fechado em si mesmo: um retorno ao
teatro, mas para evitar o fechamento do próprio teatro; o reencontro de uma especificidade
do instrumento teatral, mas para eliminar o risco da disposição à exaltação de seus poderes –
e questionar ao mesmo tempo todos seus instrumentos e objetos, a partir de sua forma. A fim
de que o teatro – compreendido pelo excesso de teatro – “arrancasse” de seu interior a
tentação de uma satisfação puramente estetizante, além de todo o didatismo. Vendo o
desabamento do estatuto de beleza do objeto e não permitindo mais a entrega do “jogo” à
“máquina” – em um possível prazer lúdico mas também diante de um problema, uma ativa
perturbação que não necessariamente era destinada à criação de uma harmonia entre todos
os componentes –, além de perceber-se enfatizando a necessidade de construir um outro
lugar ao espectador diante do espetáculo. Tudo com uma grande fé no teatro mas também
com um cuidado para não apostar apenas no domínio da forma, mas principalmente na
relação que poderia se instaurada com o mundo, sem todavia fingir entendê-lo ao imitá-lo ou
ao explicá-lo em cena: no questionamento de sua efetividade, ou seja, de sua capacidade de
comunicação com o público e de falar, apesar de tudo, de alguma forma, do real, ou de
permitir a ele retornar, de o encontrar, o desvio operado através do teatro aspirava apenas
desfazer seu isolamento.
Portanto, todas essas práticas acompanhavam justamente o advento daquele “tempo
do jogo” que Bernard Dort detectou nos anos 1980, e ilustravam uma geração que
“redescobria a identidade, a materialidade dos elementos com os quais faziam seus
espetáculos”, “apegando-se ao próprio teatro, revogando ou suspendendo a ilusão: aqui o jogo
está a olho nu, em uma interrogação do teatro sobre si mesmo, sobre seu próprio jogo”. Por

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um “teatro mínimo”: não a celebração da “plenitude de um grande jogo”, mas um teatro que
se reconsiderava para evitar sua eventual tentação narcísica, que, poderíamos ao menos crer,
se mostrava como tal para se defender da entrada de qualquer complacência no jogo e se
exibir em sua própria medida, ou seja, sempre em busca ou em apelo ao real. Se pudesse
haver metateatralidade em alguns casos, então ela se mostraria parcial, relativa ou a serviço
de outra coisa; ela não possuía vocação espetacularizante, mas, ao contrário,
desespetacularizante. “Jogo do teatro”, então, e não “jogo de teatro”: maneira de diminuir suas
pretensões, o que não quer dizer (e talvez essa possa ser considerada como a afirmação
contrária) suas ambições.
Esta concepção de um teatro que se constitui enquanto cena no instante mesmo de
seu acontecimento, e que procura substituir sua dimensão de representação pela visualização
da composição dos signos e pela ênfase na presença, como um ato performativo no tempo
presente, e em presença, transformou-se, todavia, em moeda corrente. Ela se impôs no campo
teatral francês (a mesma afirmação é, sem dúvida, parcialmente válida a nível europeu) ao
ponto de poder definir completamente a estética de um significativo número de companhias
de teatro dentre as mais importantes da atualidade, cujo sucesso despertou múltiplos
emuladores, herdeiros e, às vezes, imitadores. Portanto, pode-se afirmar que ela se afirmou
como um modelo identificável, reconhecível e reconhecido, um estilo particular, quase uma
forma estética integral. Mais ainda, tal concepção se difundiu e irrigou o trabalho de muitos
praticantes, e também foi propícia para o surgimento – ou foi acompanhada por – um
discurso sobre o próprio teatro, sobre o que ele é (seria) ou o que deveria ser encenado: ela
pôde se relacionar com o público tanto através de abordagens filiadas a um teatro popular
como por abordagens mais experimentais e formais, ou que poderiam revelar aquilo que se
encontra circunscrito pelo termo “pós-dramático”. A ideia de que o teatro é jogo é, então, mais
do que nunca, partilhada, e atualmente ela integra a doxa teatral contemporânea – e não é
contestada; resta apenas a interrogação diante das implicações dessa conjugação do verbo
“ser” (um dado constitutivo ou uma essência?), e de quais as consequências emergentes a
partir do momento em que o jogo transformou-se em doxa, abrindo mão de seu estatuto
como uma prática perturbadora, sendo já um dado a priori e não um ato questionador. Logo,
poder-se-ia formular a hipótese de que existe desde então, praticamente e teoricamente,
como existe (entre outros) um teatro ilusionista ou um teatro critíco, uma tendência que se
poderia designar como aquela de um “teatro lúdico”: uma expressão que poderia ser
considerada como especialmente tautológica – faz-se necessário, então, questionar essa
tautologia.

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Deve-se ainda questionar se o que se queria, e ainda se quer, como uma forma de
“reposição do jogo”, para evitar a tentação de um produto espetacular, não corre o risco, com
o tempo e por meio de sua constituição como doxa, de transformar-se em seu contrário, ou
seja, de transformar-se o jogo mesmo em objeto espetacular consensual, com todo seu
arsenal de efeitos impressionantes; de se voltar a uma nova celebração da capacidade lúdica
da teatralidade, junto a uma demonstração de seu domínio (produção de espanto e surpresa,
humor nos jogos de mis en abyme, virtuosidade do ator e exibição de seu domínio técnico, de
sua capacidade infinita de invenção, de sua habilidade de jogar e se mostrar jogando – sem
que se trate necessariamente de uma postura brechtiana: todo um estilo de jogo
ostensivamente “desarmonioso” se desenvolveu na França há alguns anos…); deve-se,
igualmente, questionar se tal demonstração, aspirando evitar a exaltação da cena perante o
público e devolver ao espectador certa liberdade, não pode, às vezes, se transformar em uma
“aula de teatro” (e se querendo sempre trazer o espectador de volta à sua liberdade,
lembrando-o de que ele está no teatro, não se esquece de que o espectador de teatro é
sempre, não importa a forma estética a qual é confrontado, naturalmente livre – talvez,
apenas os atores sejam aqueles que creem na teoria da ilusão absoluta! – e que não há
necessidade de convidá-lo a “encenar” e “jogar” com aquele que já é, desde sempre, seu
próprio papel); e, finalmente, se isso se manifesta, atualmente, em diversos palcos, seria
preciso indagar se não se trataria de uma nova fascinação diante da “máquina” teatro e de
seus poderes – poderes tautológicos, embora, pretendam apenas tratar do lugar e do
momento únicos da representação, e de sua capacidade de sedução e de formação “no
presente”.
Para dizer em outros termos mais precisos e, sobretudo, evitando entrar em um
campo de uma crítica mais que estúpida a partir de ideias como eficácia, sedução e prazer –
noções teatrais, caso assim possam ser consideradas (o teatro é e continuará uma arte do
espetáculo e não há nada de vergonhoso nisso) –, tratar-se-á, sobretudo, de se perguntar se
aquilo que seria considerado como um meio não teria se transformado em um fim, e se a
exploração daquilo que é um dado natural e fundamentalmente constitutivo do fato teatral –
do teatro naquilo que faz com que seja um meio singular, com suas propriedades – não teria
se transformado e aberto espaço à ideia de que sua função seria a de manifestar essas
características, que seu uso se confundiria, então, com aquelas propriedades ou com a
demonstração delas – e se uma tentação essencialista não apareceria por trás de tudo isso.
Todo um discurso, envolvendo tanto os praticantes como os teóricos, desenvolveu-se
de fato, podendo acompanhar e legitimar o que se pode chamar de uma tentação tautológica
do teatro contemporâneo. Esse discurso pode se apoiar, particularmente, no luto pela

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viabilidade mimética do teatro (se o teatro deve recusar a representação para aspirar apenas
o retorno ao presente puro no qual se efetiva, disso se cria a ideia de que ele não pode, então,
fazer com que nada retorne… além dele mesmo), como pode igualmente apoiar-se, por vezes,
em uma concepção já desenvolvida nos anos 90 do teatro como “resistência” em si, provinda
do simples fato da especificidade de sua prática (resistente, porque é a arte da presença real,
em oposição às outras mídias, à comunicação, à alienação…). Mas é sobretudo na crise da
noção de “comunidade teatral” (eterna serpente do mar, mas cujo questionamento é sem
dúvida a pedra-de-toque da interrogação político-estética atual) que se apoia: diante do
achado político no qual naturalmente não pode mais se basear (nem ao qual pode se referir)
na pressuposição de um comum externo e pré-existente – ideológico, social, político –, a
maior parte do discurso contemporâneo sobre o teatro chegou ao postulado de que o coletivo
teatral, então, não estaria mais no ato mesmo de sua constituição, mas sobre a experiência
única de co-presença dos participantes. Naturalmente, a tentação tautológica pode resultar
desse achado (dificilmente contestável em si), ao preço de um deslize bastante simples: o
objeto em torno do qual acontece a reunião e se cria a comunidade se transforma, então, com
o risco do solipsismo, em uma exaltação da teatralidade em si mesma e de seu gozo
partilhado (isso seria a versão festiva, espetacular e eventualmente popular), ou ao menos na
exploração das formas e categorias sobre as quais ela se realiza (isso seria a versão mais
experimental, potencialmente “pós-dramática”).
O desejo em torno do qual se uniu a comunidade teatral não seria diferente de um
anseio e um desejo pelo jogar, em si (e não necessariamente o desejo de jogar qualquer coisa –
de encenar valores, discursos, concepções de mundo…). Com a crise da aspiração mimética e
a crítica da discursividade, tendo em vista a ideia de um horizonte referencial externo,
restaria apenas o jogo pelo jogo que seria praticado e visto em prática (sendo o jogo do jogo do
jogo do jogo do jogo…). A comunidade teatral, antes constituída a partir do tempo do
espetáculo, estaria em torno do único desejo do teatro “em si mesmo”, ou pelo menos da
demonstração da teatralidade ela mesma.
Em efeito, tal pensamento atravessa algumas dessas diferentes transfigurações,
reflexões diversas e por vezes opostas, nas quais o primado do jogo é reafirmado ao ponto de
poder passar, de componente naturalmente primordial, ao estatuto de objeto essencial da
representação. É dessa forma que esse fenômeno parece se encontrar descrito nas definições
de Hans-Thies Lehmann acerca do advento de um teatro “pós-dramático” que se caracteriza,
dentre outras coisas, por aquilo que ele denomina como “o recuo do eixo intracênico em
proveito do extracênico” – ou seja, um recuo do eixo que diz respeito à cena e à sala teatral,
dada a frequente “irrupção do real”, mas que “não é de maneira alguma a aparição do ‘real’

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como tal, mas sua utilização autorreflexiva que caracteriza a estética do teatro pós-dramático,
sua autorreferência; um teatro pós-dramático que centra o ato teatral na própria experiência
da representação como a manifestação de uma “fatia de vida [tranche de vie] passada e vivida
em comunidade pelos atores e espectadores no ar desse espaço respirado em comum”. Ela
subentende igualmente a maneira por meio da qual Denis Guénoun pôde centrar a relação
teatral em um único compartilhamento do desejo de jogo, escrevendo que “apenas os
jogadores, desejando o jogo, são os espectadores hoje”, que “o olhar mais poderoso do
espectador, o mais vivo, é aquele do jogador que está pronto a tomar o lugar daquele que ele
vê, a acompanhá-lo no e pelo jogo, e a encenar sua existência”, por concluir que “não há
apenas espectadores de teatro, em nosso tempo e mundo, mas jogadores no poder de toda a
situação”. De outro modo, ela se baseia igualmente nas afirmações de Florence Dupont, não
apenas na maneira pela qual ela pôde retomar os fundamentos do ludus latino ou invocar os
modelos dos teatros rituais, mas também por sua reivindicação do teatro como “festa
coletiva, que deve tomar partido a favor de seu público”, “uma festa teatral liberta do
imperativo do sentido, mas que conserva um valor identitário”; o que também implica,
particularmente, uma concepção da representação como jogo com os códigos partilhados
(porque “toda ruptura com uma tradição comum aos espectadores, que não seja um jogo com
a tradição, destitui o público, impede sua participação”) – sua reivindicação nasce do jogo
com modelos do melodrama, do Vaudeville ou do Boulevard, ou ainda da comédie-ballet do
século XVII, como se jogasse com tais códigos partilhados (frequentemente, passando pela
maioria das formas, junto a um público socialmente determinado e limitado, adicionaríamos).
No final das contas, vê-se que essas reflexões implicam uma ideia de relação teatral
pensada como um compartilhamento; e, diante de um compartilhamento pelo jogo, é forte a
tentação de vê-la como uma partilha do jogo. Compartilhamento do, e em torno do, “teatro”
ele mesmo, sob os pressupostos de uma proposição formal e/ou lúdica. Partilha (mais que
confrontação) em si; e, finalmente, uma partilha do comum (alguma coisa com o espectro
teórico do ritual potencialmente reaparece): é significativo que toda uma evolução
terminológica (fazer do espectador um ator, um “espec(ca)tador”, ou a ideia de um espectador
“co-autor”, por sua recepção, do espetáculo) trabalha em atenuar a distinção entre perfomers e
espectadores, a fim de afirmar a ideia de uma mesma atividade (compartilhada, então), de ver a
aspiração a uma mesma identidade (segundo uma ideia, consequente daquela do espectador
como um “jogador no poder”, de que os atores se dirigiriam a atores potenciais, ou virtuais, e
de que a visão do teatro teria por finalidade suscitar a vontade de fazer teatro) – sob aquela
atividade se instauraria, afinal, uma convivência que criaria ligações e, talvez, uma
comunidade…

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Essa evolução terminológica confirma, de toda forma, uma evidência em si
indiscutível: aquilo que compõe o espetacular só se realiza na apropriação executada pelos
espectadores, no confronto entre o espetáculo proposto e seus imaginários. Ela prolonga a
contestação que nós já evocamos: de uma forma de supor a realização cênica no espaço
teatral que pressupõe que ela permita a imposição, ao(s) espectador(es), de uma posição
passiva e alienante de “consumo”. Assim, a doxa teatral contemporânea radicaliza, de certa
maneira, a formação da relação estética, deslocando-a para uma formulação em termos de
uma única apropriação subjetiva: o espetáculo não residiria tanto em uma relação dialética,
mas existiria apenas no imaginário do espectador. Tal ultrapassagem terminológica e
conceitual fez, então, do objeto estético, do qual é produto o palco, um suporte puro de
projeção, uma virtualidade atualizada apenas no espírito de cada espectador: do espectador,
no singular. E é sem dúvida aí que a questão da comunidade falha de novo, fragmentada entre,
de um lado, a reivindicação de uma copresença participativa (algumas não necessariamente
amalgamáveis, mas sem escapar a um implícito ritual: uma comunidade aí se constitui – e aí
se celebra?) e, de outro, o relativismo subjetivo de uma tal cocriação cujo gozo se revela, no
final das contas, muito individualista, em uma outra forma de consumo, talvez (nesse lugar
cada um teria e veria o que quisesse: questão de gosto) – e não mais na contradição dialética,
ativa e agnóstica de pontos de vista (sejam interpretativos ou simplesmente poéticos),
regendo o fato teatral bem como toda a relação estética.
Consequência mais prática desses pressupostos teóricos: a impressão, sensível a um
número emergente de experimentos que vêm à cena, de que o ato de colocar em cena não
teria mais, então, por objetivo principal, a demonstração e a instauração de variáveis de uma
possível teatralidade lúdica, que agora é apenas estabelecida e mantida a partir de uma
relação entre o espaço da cena e o espaço físico do teatro (em uma lógica claramente
participativa, ou virtualmente participativa). Não tendo mais por aspiração central “construir
sentidos” e concebendo sua afirmação poética como constituinte nesse jogo com a
teatralidade, o ato de colocar em cena consistiria, essencialmente, em desenvolver a relação
lúdica: em manter a relação, ou seja, o jogo. Como se fosse o caso de manter constantemente
a comunicação, por meio de todas as modalidades possíveis – em termos linguísticos: como se
sua expressão fosse majoritariamente da ordem da função fática. A representação se ligaria
assim, de algum modo, apenas à garantia da comunidade lúdica ao presente – além de “ir
atrás” do espectador para engajá-lo no jogo: no fim das contas, para seduzi-lo. (Sinal de um
tempo no qual teria sido interiorizado um discurso midiático e institucional segundo o qual o
teatro não teria mais fórmulas ou receitas? Ele teria como pressuposto, portanto, a sempre
oferta de seus novos atrativos, além da apresentação da justificativa de seu interesse e

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legitimidade.) Há alguma coisa de “excedente” em tudo isso: uma sedução pelo excedente, em
todo caso, naquilo que seria, em jogo, simplesmente a produção de um desejo genuíno; uma
imposição pela proposição estética singular: a criação de um desejo pelo teatro em geral, e
para ele mesmo. Modalidade particularmente contemporânea da criação do desejo – o que
Jean-Paul Curnier chama de “comércio de atrativos”?

Vendemos o que agrada, não o objeto de desejo mas aquilo que faz o desejar, isso nas vendas e
trocas; o que querem realmente as pessoas é querer alguma coisa, no fundo é ter vontade! (...)
Vendemos o que agrada, obrigados a agradar e a nos dedicarmos apenas a isso. Mesmo se isso
consiste em desagradar, reconhecemos o trabalho, a resistência, a motivação, a vontade de
agradar (...) Vendemos atrativos. Atrativos de todos os tipos. Para vender atrativos (...) é
preciso encantar sempre todo mundo, estar em estado de graça, é necessário que vejam o
esforço em agradar.

E, porque ainda haverá o compartilhamento de uma distância – uma distância lúdica,


mesmo que essa tenha por objetivo, posteriormente, criar uma adesão – em relação à
proposta teatral sempre manifesta como tal (ou seja: como teatral) e somente como tal, seria
possível supor a instauração compartilhada de um tipo de postura irônica, então fundadora
de uma qualidade de convivência (nós todos podemos tirar proveito do jogo porque não
somos idiotas e sabemos que tudo é um jogo). Uma ironia que estabeleceria uma relação, a
instauração de uma distância que, paradoxalmente, teria por função criar uma adesão
consensual (o consenso não ligado à peça, sobre as situações representadas, mas à exaltação
compartilhada do teatro): assim, o que teríamos de considerar, em termos brechtianos, como
um distanciamento (mostrar permanentemente a teatralidade) serviria então a uma
teatralidade crítica apenas como comunhão de um gozo frente à teatralidade mesma.
Engraçado esse paradoxo de uma ilusão lúdica, que procuraria a adesão e aspiraria produzir
uma urgência (aquela do compartilhamento festivo) por meio da instauração de uma
distância (irônica) compartilhada.
Que não haja incompreensão: não se trata nessas páginas de contestar em si a
colocação, em obra, de um jogo acerca da teatralidade, e ainda menos de negar os
fundamentos sobre os quais pode se apoiar tal prática (a parte do jogo como dado
constitutivo do fato teatral, a importância fundamental deste trabalho na relação que
estabelece um espetáculo com seus espectadores), mas se trata, principalmente, de apontar o
risco que talvez persiga toda prática artística transformada em doxa, uma vez que ela passa a
ser reproduzida como uma forma adquirida e supostamente evidente, e que parece
aproximar-se de uma concepção puramente essencialista, que tende a permanecer subjacente
aos pensamentos acerca de seus usos. Trata-se de designar, no final das contas, o espaço
frágil de um limite: aquele a partir do qual a “máquina” teatral se arriscaria a regozijar-se e

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aquele em que o teatro do mundo, o eterno theatrum mundi, ver-se-ia substituído pelo teatro
do teatro, um theatrum theatri.

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