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O visível e o invisível

Comentários sobre o VAR


Rodrigo Abreu Pinto
21/06/2018

Quem nunca viu um momento assim. A bola já ultrapassou a linha e agora estufa as redes. O
locutor narra e alonga a palavra ao máximo. É a torcida quem mais comemora e aguarda o autor
do gol que corre em sua direção. O jogador, por mais extasiado que esteja com o gol que acabou
de marcar, ainda olha para o juiz pela última vez, esperando a confirmação do gol antes de se
entregar completamente à comemoração.

Em poucos esportes a presença do juiz é tão marcante como no futebol, sempre prestes a
decidir a legitimidade do lance ou não. Alguém que se move no campo como um cavalo no jogo de
xadrez, estamos diante da evidente supremacia daquela figura de farda negra em meio aos
jogadores com uniformes coloridos. O árbitro corporifica de maneira tão efetiva o conjunto abstrato
das “leis do futebol” que mais parece a consciência transcendental do jogo correndo de um lado
para o outro. De um lado, a normatividade imanente ao futebol com seu sistema de regras particular.
Do outro, a posição do árbitro ao levá-las à sua consumação, plenitude que só vem em meio ao
próprio ato irrepetível por natureza. Desde autorizar o retorno de um jogador à partida até decidir o
momento de terminar a partida (não há relógio que “bata” o tempo como no basquete ou limite de
pontos como no vôlei), avaliar se a demora é “cera”, a queda “encenação”, a dor que deveras sente
é verdadeira ou não. A posição do juiz no futebol é tão sintomática que, como em nenhum outro
esporte, ele encarna o último índice de que as coisas poderiam ter acontecido de outra maneira, o
liame em que torcedores, jogadores e dirigentes se engajam para não admitir a derrota e a própria
frustração - o árbitro, acima de tudo, como vítima expiatória. A mãe do juiz de futebol dorme mais
intranquila que todas as outras.

Já agora, depois de um lance, o jogador não olha para o juiz, mas para o telão. É significativa
a cena dos jogadores brasileiros apontando para o telão no jogo contra Suíça. Apontar para o telão
é o mesmo que afirmar que “as imagens falam por si”, indicação categórica que pontua o fim da
soberania do árbitro. Mesmo que o estádio não tenha telão, a criação recente dos auxiliares da linha
de fundo simboliza aquela perda. Desde que apareceram, rompeu-se a harmonia simbiótica entre
árbitro e bandeirinhas em que dificilmente as decisões se contradiziam, reunidos como uma só
consciência. O apito ou a bandeirinha erguida eram decisões sui generis e suficientes para decretar
o veredito do lance. De uma hora para outra, tornou-se recorrente a cena de jogos paralisados
enquanto os jogadores se dirigiam ao juiz e apontavam para os auxiliares, dizendo qualquer coisa
como “pergunta para ele que você vai saber a verdade”. O futebol, no entanto, não é como o
basquete (em que os seus três árbitros gozam da mesma autonomia) e a última palavra ainda cabia
ao árbitro.

O VAR (Video Assistant Refereeé) é o momento final desta equação em que juiz
paulatinamente perde seu papel tão preponderante na mesma medida em que o futebol alcança
sua maturidade. O humano enfim substituído quase que integralmente pela máquina, em um
percurso modernizante que vai desde a introdução do apito em 1889 (oito anos após a
implementação da arbitragem nas partidas) até a definitiva inclusão do VAR durante esta Copa do
Mundo. Segundo a Fifa, o VAR da Copa é constituído por 33 câmeras da transmissão televisa, além
de outras duas específicas para impedimentos. Deste total, 19 são câmeras convencionais, 8 são
super slow-motion e 4 ultra slow-motion, 2 de ultradefinição e as 2 próprias para os lances de
impedimento. Tampouco sei dizer a diferença entre elas, o que se sabe é que todas estas câmeras
são analisadas continuamente pela equipe de analistas localizada em sala especial.

A bola passou por um semelhante processo de modernização, em que todas as suas mínimas
arestas foram suprimidas (desde a costura até o peso irregular e constituição minimamente oval),
tornando-a o mais funcional possível. Hoje, nenhum jogador acha que o chute saiu errado por causa
da bola, pelo contrário, olham a chuteira ou aos céus em busca do culpado. O VAR também é a
promessa de abstração e consequente transparência do jogo, um crivo tão mais genérico quanto
certeiro que o juiz. Não deixa de ser curioso como o futebol resistiu tanto tempo a tal modernização,

muito embora a tecnologia já estivesse disponível e outros esportes adotado de antemão.

O caso do jogo entre Brasil e Suíça, envolvendo a falta de Miranda e o pênalti em Jesus, é
um exemplo poderoso de como as coisas serão mais complicadas do que o previsto - e não estamos
falando de dificuldades técnicas como a necessidade de ter um número bastante elevado de
câmeras a cada jogo (na decisão do Campeonato Pernambucano de 2017, a quantidade de
câmeras era reduzida e a imagem disponível não foi capaz de decidir sobre a legalidade do gol do
Salgueiro, sobrando para o juiz). A questão mais pungente é a inexistência de consenso dos limites
de dureza que o jogo poder atingir, não há nada como uma matemática dos choques físicas que
acontecem dentro do campo. Para além do chip que confirma se a bola entrou ou não, não existe
infração objetiva que a câmera registra com sem ambiguidade. O futebol está clivado entre a
objetividade da lei e a imprecisão de imagens complexas que não admitem nada por mais que exista
contato, um jogador empurre o outro ou alguém simule de modo tão verossímil.

Existem tanto as concepções particulares de cada árbitro, como o receituário físico que os
jogadores restabelecem a cada partida, criando uma normatividade singular e condições intrínsecas
toda as vezes em que duas equipes estão em campo (e isto sempre acontece pela primeira vez).
Para descobrir isso, basta ir ao estádio, de preferência permanecer próximo ao gramado, para então
notar este contrato de curto prazo (dura somente enquanto dura a partida) sendo talhado a cada
choque físico. É esta materialidade do jogo, contra a qual a televisão nos purificou, que fala mais
alto sempre que a partida inicia (e do alambrado é possível ouvir os ruídos dos choques), a
insuperável franja de indeterminação que é esquadrinhada somente quando os 22 jogadores estão
no interior das quatro linhas. O receio é que o VAR esterilize e homogeneíze este futebol,
sentenciando uma gramática geral dos contatos físicos dentro de campo.

Apesar da preocupação, virtualmente a decisão do árbitro ainda continua soberania, com


força inclusive para recusar a opinião ou sugestão dos analistas de vídeo (diferentemente do
basquete e futebol americano em que o árbitro é obrigado a consultar o vídeo na maioria dos casos).
O VAR teria apenas a função de, segundo a Fifa, “prevenir erros claros e óbvios e sérios incidentes
que passem despercebidos e que os demais casos ficam sujeitos à exclusiva atuação do árbitro de
campo”. Ainda assim, observando o elevado número de casos decididos com o VAR até então e a
coerção que os árbitros vem sofrendo (dos jogadores , comissão técnica e imprensa), é provável
que o VAR adquira certa primazia. Basta olhar para a transparência alardeada pela carta da CBF,
contra a qual não existiriam argumentos, escrevendo que “é evidente que o jogador brasileiro
Miranda foi claramente empurrado e deslocado pelo autor do gol, Zuber. Zuber puxa Miranda

deliberadamente em duas diferentes ocasiões com as duas mãos”.


O espaço geral do jogo agora está dividido entre a hiper-visibilidade e o inacessível, ambos
com o objetivo de permanecer fora de qualquer acusação ou culpa. Ao mesmo que os jogadores
escondem a boca ao conversarem dentro de campo, uma equipe de analistas de vídeo fica
localizada numa sala abarrotada de televisões a exibirem a imagem das 35 câmeras disponíveis.
Dentro da sala, existe uma câmera, aquela mesmo pela qual vemos a equipe durante a transmissão.
Uma câmera que funciona como um VAR do VAR, mas que também tem sua cota de impenetrável.
A CBF enviou um pedido formal para ter acesso ao áudio interno da sala de vídeo e da comunicação
entre o juiz e os analistas no momento dos dois lances duvidosos. A Fifa recusou, argumentando a
importância da privacidade das comunicações.

Ao fim e ao cabo, apesar da minha surpresa quanto a demora e resistência da Fifa, a televisão
foi a principal responsável pela inserção do VAR. Desde sempre, a televisão e os jornais
compreenderam o potencial mercadológico das notícias relacionadas à arbitragem, capitalizando
os efeitos das discussões se foi pênalti ou não e aprendendo a gerenciar com manchetes a busca
dos torcedores em localizar a causa do fracasso. A televisão, inclusive, conta com um comentarista
de arbitragem que faz a função de avaliar as atitudes do árbitro enquanto este avalia as atitudes
dos jogadores. Em certo sentido, alguém como Arnaldo César Coelho fazia as vezes do VAR
desprovido de qualquer autoridade direta.

Quem parece desprovido de sentido é o VAR quando o jogo não é televisionado e o estádio
não é equipado com telões. Da mercantilização contínua que foram alvos os lances duvidosos, o
tira-teima é tratado como espetáculo. Aos replays dos gols juntam-se os replays dos supostos erros
de arbitragem. Daí a equivalência traiçoeira entre, de um lado, a ideia do futebol como um esporte
de excelência técnica em que deve vencer o “melhor” (aquele que melhor soube se adequar às
regras do jogo), e do outro, o futebol como espetáculo cujos interesses vinculam publicidade,
televisão, turismo, arenas. O resultado é a televisão exibindo o espetáculo do ritual técnico, a
espetacularização também uma técnica nela mesmo. Menos VAR, pois falamos pouco de futebol
nesta Copa até então.

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