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Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

Lacan:
psicanálise, ontologia e política

Curso ministrado no Segundo


Semestre de 2017

Prof. Vladimir Safatle


Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 1

Há algumas maneiras possíveis de começar um curso como este. Uma primeira


possibilidade começaria por lembrar como o advento da psicanálise representou
uma inflexão importante na compreensão do que política realmente significa. Ou
seja, eu poderia começar insistindo no fato de não podermos falar de política da
mesma forma antes e depois da psicanálise. Na medida em que a psicanálise
moldou a sensibilidade social contemporânea a respeito dos processos de
socialização dos desejos e das pulsões, ela necessariamente influenciou os modos
de problematização das configurações sociais aí produzidas. Não será possível
compreender a transformação da sexualidade, da corporeidade, da memória em
problemas políticos maiores do século XX, nossa forma de questionar o que se
produz nos campos da sexualidade, da corporeidade, da memória sem levarmos
em conta o impacto social da psicanálise em nosso horizonte de crítica social.
No entanto, notemos a especificidade da abordagem psicanalítica. Pois ela
se dá através da questão sobre a forma com que tais processos de socialização
produzem modalidades de sofrimento. Ou seja, o sofrimento psíquico se
transforma em uma categoria política central por indicar sistemas de
expectativas não realizadas no interior da vida social. Ele não aparecerá como
desvio em relação a estruturas tipificadas de normalidade, mas como modo de
denúncia da articulação, necessária para nós, entre socialização e violência, entre
instauração da vida psíquica e sujeição social. A psicanálise não falará, por
exemplo, dos desajustes da família, mas da maneira com que a família produz
necessariamente desajustes para funcionar de maneira “normal”, ou seja, de
acordo com sua própria normatividade. Ela não falará do uso neurótico da
religião, mas de como a vinculação ao poder pastoral nos coloca necessariamente
em posição neurótico obsessiva. Neste sentido, a insistência nas feridas
provocadas pela nossa inscrição no interior da vida social serão as marcas de
uma revolta que não encontrou voz e que, por isto, aparece no corpo, nos rituais
compulsivos, nas inibições, na angústia. Revoltas que aparecem naquilo que os
sujeitos tem de mais verdadeiro.
Assim, não se trata de insistir na proposição equivocada de que as
sociedades ocidentais teriam esperado a psicanálise para iniciar seus
questionamentos a respeito da política implícita em estruturas disciplinares
responsáveis pela constituição de uma civilidade indissociável da normalidade
psíquica. Trata-se, na verdade, de lembrar que um passo decisivo é dado pela
psicanálise na medida em que tais estruturas disciplinares poderão ser
questionadas não tendo em vista a norma que elas deveriam realizar, mas
simplesmente o sofrimento que elas produzem ao, de forma paradoxal,
“funcionarem bem”. A psicanálise não precisou partir do normal para discutir os
desvios da vida social, um pouco como fazia a medicina social do século XIX ou
ainda como certa sociologia do século XIX. Pensemos, por exemplo, nos usos
feitos por Durkheim da noção de patologia social enquanto desvio em relação à
média. Na verdade, a psicanálise partirá da expressão do patológico, da
expressão do sofrimento psíquico compreendido como marcas da violência e da
sujeição social.

Sujeição libidinal e emancipação social

Mas, e este é um ponto fundamental, ao se indagar sobre as formas da


vida social, a psicanálise procurou sobretudo descrever os regimes de adesão à
sujeição social, ou seja, a esta maneira de associar a própria instauração da vida
psíquica, a constituição de suas instâncias à modalidades de adesão ao que nos
faz sofrer. Pois a sujeição não poderia se dar apenas através da coerção, da
violência direta, embora ela não deixe de apelar a tais expedientes, se necessário
for. Há processos identificatórios, demandas de amor, expectativas de amparo,
ou seja, há todo um circuito de afetos com seus medos, esperanças, melancolias
que sustenta o poder, que dá ao poder a força de sujeitar sujeitos, de gerir suas
expectativas e sofrimentos, e é deste circuito que a psicanálise fala. Nós
paradoxalmente amamos aquilo que nos sujeita, e não seria de outra forma que
tal sujeição conservaria sua força.
Por esta razão, a psicanálise logo se consolidou como uma referência
maior na análise de fenômenos de regressão social. Que lembremos, por
exemplo, do recurso massivo da Escola de Frankfurt à psicanálise na análise de
fenômenos como o antisemitismo, o nazismo e a constituição de personalidades
autoritárias. Este recurso está presente desde o início dos anos trinta, com os
estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do operariado alemão ao
nazismo a partir da análise das articulações entre “impulsos emocionais do
indivíduo e suas opiniões políticas”1. Fromm procurava, para além da expressão
explícita do engajamento político, compreender e tipificar as estruturas
motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua compreensão
visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre comportamentos
públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o sistema de
modificações bruscas das posições políticas da classe operária, como a deserção
do comunismo em direção ao nazismo.
Mas para além do uso da psicanálise na análise das dinâmicas de
regressão social, os frankfurtianos foram os primeiros a mostrar como a
integração da psicanálise no interior de uma reflexão sobre a crítica social
permitiria desenvolver uma verdadeira crítica da economia libidinal do
capitalismo. Esta era a consequência da compreensão de que a análise dos
processos de racionalização social e seus descaminhos deveria, se quiser
esclarecer seu fundamento, incorporar considerações mais amplas sobre a
ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos2. No entanto, Freud
mostraria como tal ontogênese seria indissociável da reflexão sobre a dinâmica
conflitual dos processos de socialização das pulsões e do desejo no interior de

1
FROMM, Erich; Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stutgart: Deutsche
Verlags-Anstalt, 1980, p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações de Erich Fromm ao
Instituto de Pesquisas Sociais, ver JAY, Martin; The dialectical imagination, California University
Press, 1996
2
Daí porque Adorno lembrará: “Freud mostrou de maneira bem convincente que as forças que
assumem a função do cimento irracional de grupos, como lembrada por autores tais como Gustave Le
Bon, são atualmente efetivas no interior de cada participante do grupo e não pode ser compreendida
como entidades independentes das dinâmicas psicológicas” (ADORNO, Theodor; Vermischte
Schriften I, p. 279).
esferas de interação como a família, as instituições sociais e o Estado, fornecendo
novas bases para uma perspectiva materialista na medida que derivava
dinâmicas amplas de racionalização social das experiências materiais de
interação tendo em vista problemas de satisfação e reconhecimento.

Emancipação

Mas eu poderia começar este curso ainda de outra maneira, não apenas
lembrando que a psicanálise modificou a compreensão ocidental do que política
significa, redimensionando o escopo da crítica social ao tematizar a sociedade
inconsciente de si mesma, mas que ela nos permitiu pensar em outras bases o
processo de emancipação social. Esta é uma dimensão muitas vezes ignorada, no
entanto decisiva. A psicanálise é solidária do redimensionamento da noção de
emancipação, ao conservar a temática de uma liberdade possível, de uma crítica
possível da alienação, mas impedindo-a de ser pensada como a realização social
da autonomia da consciência. A noção psicanalítica de inconsciente nos obriga à
reformulação profunda do conceito de autonomia, reformulação a respeito da
qual ainda não medimos de forma efetiva suas consequências. Isto não poderia
deixar de trazer consequências para a noção de ação política. Pois o que é uma
ação política que não se coloca mais como ação de uma consciência, seja ela
individual ou consciência de classe? O que é uma ação política que não pode mais
apelar a conceitos de deliberação racional tal como entendemos este conceito até
agora?
Insistir na existência de uma reflexão psicanalítica sobre as condições de
emancipação social significa recusar a noção, muito presente entre nós, de que a
psicanálise freudiana poderia, no máximo, nos fornecer uma visão deceptiva da
vida social. Se há emancipação possível, ela deve se realizar como instauração de
laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade. O que significa
recusar a ideia de que só seria possível pensar laços sociais a partir das
exigências de contenção possível de uma violência imanente à vida comum. Por
exemplo, creio que vocês todos conhecem afirmações como:

O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo
pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus
dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em
consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a
tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-
lo. Homo homini lupus3.

A metáfora hobbesiana utilizada por Freud, que afasta do horizonte toda


pressuposição de uma tendência imediata à cooperação, deixaria claro como o

3FREUD, Sigmund; O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 76-77.
Lembremos ainda do tom claramente hobbesiano da descrição da violência do “estado de
natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razão própria de existência,
consiste em nos defender contra a natureza” (FREUD, Sigmund; Der zukunft einer Illusion, In:
Gesammelte Werke XIV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336)
vínculo social só poderia se constituir a partir da restrição a esta crueldade inata,
a esta agressividade pulsional que parece ontologicamente inscrita no ser do
sujeito. Desta forma, uma “hostilidade primária entre os homens” seria o fator
permanente de ameaça à integração social. O que teria levado alguém como
Derrida a afirmar que “se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é
irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade,
que são no fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença)
então nenhuma política poderá erradicá-la”4. Tal crueldade não pareceria ser
completamente maleável de acordo com transformações sociais. Daí porque
Freud dirá: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor,
desde que restem outras contra as quais se exteriorize a agressividade”5. Ou seja,
os vínculos cooperativos baseados no amor ou em alguma forma de
intersubjetividade primária só seriam realmente capazes de sustentar relações
sociais alargadas à condição de dar espaço à constituição de diferenças
intoleráveis alojadas em um exterior que será objeto contínuo de violência. Tais
vínculos de amor permitiriam a produção de espaços de afirmação identitária a
partir de relações libidinais de identificação e investimento. Mas a constituição
identitária seria indissociável de uma regulação narcísica da coesão social, o que
explica porque Freud fazia questão de lembrar que “depois que o apóstolo Paulo
fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregação, a
intolerância extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-
se uma consequência inevitável” 6 . Não é difícil compreender como tal
exteriorização da agressividade, assim como toda e qualquer aceitação de
restrições pulsionais só poderá ser feita apelando ao medo como afeto político
central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessão produzida pelo
outro ou ainda da destruição produzida por si mesmo.
Neste ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo núcleo
metafísico da política, presente nesta forma de radicalizar a irredutibilidade da
violência como constante antropológica. Podemos falar em “núcleo metafísico”
porque a violência irredutível das relações interpessoais, além de ser elevada a
paradigma intransponível do político, pareceria fadada a só se realizar de uma
forma, a saber, como experiência da vulnerabilidade diante da agressividade
vinda do outro. Tal invariabilidade das figuras da violência parece expressão de
uma certa crença metafísica na essência intransponível das relação humanas.
No entanto, esta leitura é errada e não faz jus àquilo que a psicanálise
produziu de pontencialidades a respeito de uma teoria da emancipação. Pois há
de se lembrar que a psicanálise não é apenas uma crítica social, ela é uma
reflexão sobre as possibilidades de emergência de corpos políticos capazes de
bloquear os sistemas de alienação e suas formas de sofrimento social. Eu diria
que sem este horizonte em vista não é possível entender o sentido de textos
como Moisés e o monoteismo, Por que a guerra? Ou O futuro de uma ilusão.

Uma teoria das identificações políticas

Foi levando em conta esta dupla inscrição da psicanálise no interior do


campo político desde Freud que gostaria de propor este curso a vocês. Trata-se

4 (DERRIDA, Jacques; Estados de alma da psicanálise, Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 34)
5 FREUD, Der Zukunft einer Illusion, p. 81
6 FREUD, O mal-estar na civilização, op. cit. p. 81
de insistir que esta dupla tarefa política da psicanálise será um dos eixos
principais do desenvolvimento da experiência intelectual de Jacques Lacan, ela
pode nos fornecer o sentido de elaborações clínicas maiores de Lacan.
O destino das consequências políticas do pensamento lacaniano é algo
que está longe de ser estabelecido sem problematizações. Críticas significativas
foram desenvolvidas por leitores de Lacan como Guattari, Deleuze, Foucault,
Derrida, Castoriadis, entre outros. No entanto, eu gostaria de insistir que tais
críticas erram de alvo e que uma leitura atenta dos textos pode nos mostrar uma
outra imagem do pensamento.
Para tanto, neste curso, gostaria de desenvolver quatro eixos de
organização das relações entre psicanálise e política a partir da obra de Jacques
Lacan. Tais eixos respondem por problemas constitutivos da experiência política
e já foram, cada um a sua maneira, elaborados ou criticados por teóricos e
filósofos que se confrontaram com a obra lacaniana. No entanto, gostaria de
insistir que, a meu ver, todos esses eixos encontram-se ainda subaproveitados
em suas potencialidades imanentes. Eles carecem ainda de maior sistematização.
Estes eixos visam dar conta do que poderíamos chamar de “os quatro
conceitos fundamentais da política a partir da psicanálise lacaniana”. Eles
acabam por cobrir, à sua maneira, problemas centrais para a teoria política
como: a questão da emergência e da mobilização, da crítica da situação e da
organização. Os conceitos são: identificação, ato, gozo e reconhecimento. A sua
maneira, eles desdobram o campo organizado por aquilo que Lacan chamou de
“os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, a saber: a transferência, a
repetição, o inconsciente e o objeto a.
O primeiro eixo que gostaria de analisar com vocês diz respeito a uma
teoria das identificações políticas que se desdobra em uma concepção sobre
modalidades de instauração de corpos políticos. Neste eixo, encontramos
inclusive reflexões sistemáticas sobre processos de organização política
advindos das exigência que Lacan se impôs de constituir um vínculo social
renovado através da transformação do problema da comunidade de analistas em
um problema interno à clínica, isto ao constituir a Escola Freudiana de
Psicanálise. O que de fato produziu problemas suplementares dificilmente
resolúveis.
Lacan parte de um diagnóstico social referente àquilo que ele chama de
“declínio da imago paterna” e dos efeitos sociais que tal declínio produziria.
Como gostaria de mostrar já na aula que vem, longe de estarmos diante um
tópico social vinculado ao colapso das autoridades tradicionais devido ao
processo de modernização social e a potencial anomia que tal desregulação das
normas sociais produziria (como vemos, por exemplo, em Durkheim), tópico
articulado normalmente com demandas de instauração de um institucionalismo
forte, temos em Lacan uma reflexão original vinculada à consciência do advento
de uma era histórica na qual o declínio da imago paterna não equivalerá à
liberação dos sujeitos de estruturas patriarcais fortemente normativas, mas à
consolidação de outra forma de sujeição social vinculada à redução das relações
sociais às formas imaginárias do conflito, da agressividade e da rivalidade
narcísica.
A promessa de liberação advinda do fim da sociedade patriarcal não se
realizou, é o que diz Lacan. Na verdade, nós já viveríamos em uma sociedade sem
pais, pois as figuras paternas estariam necessariamente reduzidas à condição de
rivais narcísicos. Sociedades nas quais o verdadeiro pai só pode ser um pai
morto. O que produz um efeito social de generalização do narcisismo como
estrutura de defesa contra a fragilidade do Eu em uma situação na qual as
identificações simbólicas tendencialmente não conseguem operar enquanto tais.
Antes da temática das sociedades narcísicas tomar conta da sociologia dos anos
sessenta, Lacan apontava para um problema estruturalmente semelhante como a
verdadeira forma de reprodução social das sociedades capitalistas
contemporâneas, sem ter que referendar a crítica ao hedonismo que muitas
vezes acompanham tais críticas, transformando-as muitas vezes em críticas
morais do capitalismo.
Há de se salientar ainda que a compreensão lacaniana do narcisismo
generalizado apontava para dois fenômenos sociais fundamentais. Primeiro, a
submissão dos sujeitos a um tipo de injunção superegóica não mais vinculada à
repressão advinda de figuras paternas de autoridade, mas a uma demanda
indeterminada de satisfação que só poderia levar ao colapso depressivo da
capacidade individual de ação. Segundo, a possibilidade de produção
generalizada de demandas por figuras superegóicas de autoridade em clara
chave autoritária.
Isto mostra como tal economia psíquica trará consequências maiores para
o campo político. A sua maneira, Lacan tentará lidar com elas desde seu texto de
1947 “A psiquiatria inglesa e a guerra” no qual saúda o experimento de Bion e
Rickmann a respeito de grupos sem chefe. Em uma era de declínio da imago
paterna, sua aposta parece caminhar em direção à possibilidade não de
fortalecimento das figuras paternas de autoridade, mas de constituição de laços
sociais a partir da identificação a um lugar vazio, algo que de certa forma
veremos se realizar com um filósofo político leitor de Lacan, a saber, Claude
Lefort. O mesmo Lefort que tentará desenvolver uma teoria da democracia a
partir de uma apropriação das distinções lacanianas entre os registros do
simbólico e do imaginário. Daí afirmações como:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder não é de ninguém7.

Assim, da mesma maneira com que o desejo do analista aparecerá inicialmente


como um desejo puro, as identificações no campo social, se não quiserem abrir
espaço a regressões autoritárias, deveriam saber se guiar pela explicitação do
lugar vazio simbólico do poder com suas consequências pretensamente
apaziguadoras para os conflitos sociais.
No entanto, da mesma forma que o desejo do analista acabará por
demonstrar não poder ser pensado como um desejo puro, esta teoria das
identificações políticas que visa sustentar a força do lugar vazio para além da
reduções imaginárias de conflitos próprios a sujeitos narcísicos impulsionados
pela agressividade terá de ser revista. Se na teoria dos quatro discursos, a

7 Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.


discurso do analista será caracterizado exatamente pelo fato de não haver
sujeitos como agentes, mas a posição da agência ser dada por um objeto que
causa o desejo, então há de se perguntar o que esta nova compreensão do lugar
do objeto a traz para uma teoria das identificações socio-políticas.
Notem que se no primeiro modelo, a abertura à dimensão simbólica com
o vazio que ela implica permitiria uma transposição do conflito social à cena de
um horizonte possível de preservação dos oponentes e de garantia de certa
pluralidade agonística, no segundo a identificação ao objeto a nos remete a uma
dinâmica própria ao registro do Real. Estas dinâmicas do Real serão de outra
ordem, como nos mostrará um texto que poderá nos orientar, a saber,
“Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”.
Conhecemos um filósofo político que, na contramão de Lefort, recupera a
centralidade dos processos identificatórios na constituição de corpos políticos
apoiando-se de forma explícita e sistemática em Lacan. Trata-se de Ernesto
Laclau. Gostaria de discutir as estratégias de Laclau, em especial seu uso de
noções homólogas ao objeto a na compreensão dos processos populistas de
identificação. Assim, o primeiro eixo de nosso curso terá como textos
fundamentais: “A psiquiatria inglesa e a guerra”, a “Proposição de 9 de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, o capítulo de A razão populista intitulado
“O povo e a construção política do vazio”, de Laclau, e o subcapítulo de A
invenção democrática, “Contribuições para a compreensão do totalitarismo”, de
Claude Lefort.

Uma teoria da emergência de sujeitos

O segundo eixo de nosso curso refere-se a uma teoria da emergência de


sujeitos políticos que encontra configuração através das temáticas lacanianas do
ato analítico e de sua capacidade em problematizar teorias da deliberação
racional e da autonomia ainda tributárias dos limites de uma filosofia da
consciência muitas vezes não explicitada. Ou seja, é através das discussões sobre
a anatomia do ato que podemos encontrar, em Lacan, uma compreensão das
dinâmicas de agência política não mais dependente dos limites de uma filosofia
da consciência.
Em seu seminário O ato analítico, Lacan fornece aquilo que ele chama de
“a fórmula do ato”. Esta fórmula encontra-se enunciada em um poema de
Rimbaud chamado À uma razão:

Um bater de seu dedo contra o tambor descarrega/ todos os sons e


começa a nova harmonia./ Um passo seu é o levante de novos homens/ E
seus em-marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor!/ Tua cabeça se volta:
o novo amor! /“Muda nossos destinos, alveje as pragas, a começar pelo
tempo”, cantam-te essas crianças. “Cultiva não importa onde a substância
de nossas fortunas e desejos”, te suplicam./ Vinda de sempre, quem irá
contigo por toda parte.

A escolha do poema de Rimbaud não poderia ser mais apropriada,


principalmente se lembrarmos que estamos aqui a falar do poeta que canta a
Comuna de Paris e seus desejos de transformação. É clara a constelação da
ruptura, dos destinos que mudam ao alvejar o tempo vivido como praga, do
espaço que se abre para um “não importa onde”, para um “por toda parte”. Neste
horizonte, a psicanálise procura pensar as condições de transformações
subjetivas capazes de trazer uma agência que não é completamente coordenada
pela estrutura. Daí porque: “se eu posso aqui caminhar falando a vocês, isto não é
um ato, mais se um dia ultrapasso um certo solo no qual coloco-me fora da lei,
neste dia minha motricidade terá valor de ato” 8. No que se percebe como há uma
suspensão da estrutura que é constitutiva da noção de ato analítico.
Lacan articula a estrutura do ato ao manejo da transferência,
especialmente na sua forma de liquidação do sujeito suposto saber e de extração
do objeto que sustenta a relação de suposição, a saber, o objeto a. Tal extração
retira o objeto a de sua posição de suporte imaginário da consistência da
estrutura e lhe permite aparecer na posição de resto, ou seja, de um inassimilável
que só pode impulsionar a “um novo amor”, a “um levante de novos homens”. Há
uma queda de um saber suposto, queda de um saber deliberar que aparece como
efeito fundamental do ato analítico. Daí porque Lacan afirmará que se trata de:
“um ato tal que destitui em seu fim o próprio sujeito que o instaura”9.
Este ato analítico, por sua vez, não é a inscrição no interior de uma
rememoração capaz de integrar as dimensões da experiência à historicização e a
seus mecanismos de construção. Por isto, o ato analítico não é uma “tomada de
consciência”. Ele é uma repetição específica. É esta recompreensão da repetição
que permitirá o recurso clínico à noção de ato. Ou seja, haverá uma relação
profunda entre ato e repetição, todo verdadeiro ato será uma forma específica de
repetição (o que nos exige constituir uma gramática dos modos de repetição),
algo que todo leitor de Hegel e Marx conhece bem através do tema da repetição
histórica. Ou seja, o ato instaura uma temporalidade própria, uma repetição que
não é nem simbólica, no sentido de meramente atualizar as posições de uma
estrutura, nem imaginária, no sentido de meramente repetir conformações
imaginárias, vestimentas de outra época. O ato instaura uma temporalidade real
que permite a emergência de sujeitos que não podem mais ser pensados sob a
figura de indivíduos. Há de se entender o que pode ser este registro real das
repetições que se encarna na própria natureza do ato analítico.
Notem a importância desta discussão sobre o ato analítico para o campo
político. Em maio de 1968, os estudantes escrevem nos muros de Paris: “as
estruturas não descem às ruas”. Esta era uma maneira de dizer que as formas da
revolta social mostravam a inanidade de teorias incapazes de dar espaço a uma
agência emancipada que não seria, a sua maneira, reiteração das posições
previamente normatizadas por uma estrutura metaestável. A resposta de Lacan
será: “se há algo que a revolta estudantil mostrou foi a descida às ruas da
estrutura”. Ou seja, havia para Lacan algo de reiteração de posições na revolta
estudantil, de impossibilidade de produção de rupturas efetivas. Não será a
primeira vez que Lacan insistirá que a revolta estudantil não seria um ato, seria
um acting out, já que lhe faltaria, no fundo, a capacidade de emergência de
sujeitos políticos. “O que vocês aspiram como revolucionários é a um mestre”,
dirá Lacan aos estudantes, “vocês o terão”10. Maneira de insistir que as demandas
políticas teriam dois destinos possíveis: ou ficar na posição histérica de ter de se
garantir graças a presença de um poder questionado que deve continuar no

8 LACAN, S XV, sessão de 15 de novembro de 1967


9 LACAN, Autres écrits, p. 375
10 LACAN, S XVII, p. 239
mesmo lugar para poder ser continuamente exigido e questionado ou permitir a
incorporação dos sujeitos da demanda na estrutura do próprio saber
questionado. Nos dois casos, há uma adesão da resistência à gramática do que é
questionado, à sua forma de organização do saber, de inscrição e
reconhecimento de sujeitos.
Mas o que haveria no ato analítico que demonstraria o impasse das ações
de revolta? Veremos como o ato não pode ser ato de uma consciência que se
assenta na afirmação da autonomia de suas decisões. Ele não pode sequer ser
expressão de uma consciência de classe que se produz como identidade coletiva
por vir com todos os riscos de sua reificação identitária posterior. Ele só pode ser
a tentativa de extração do que causa nosso desejo das sendas de seu
aprisionamento no interior de certa noção de sujeito, de demanda e estrutura. Há
uma singular forma de emancipação através da noção lacaniana de ato. Ela deve
ser tematizada.
Das críticas à posição lacaniana a respeito de maio de 68, talvez a mais
elaborada seja a de um ex-militante dos movimentos de juventude maoísta, a
saber, Alain Badiou. No entanto, Badiou construirá sua própria teoria do ato
político através de uma leitura singular das dinâmicas de conversão religiosa, tal
como ela aparece em São Paulo: a fundação do universalismo. Teremos ocasião de
organizar tal debate através do trabalho com os textos: “O ato analítico” e
“Discurso à Escola Freudiana de Paris”, de Lacan e o pequeno livro de Badiou.

A economia libidinal do capitalismo

O terceiro eixo, talvez o mais discutido pela fortuna crítica, nos fornece
uma crítica da economia libidinal do capitalismo através do uso extensivo de um
conceito de gozo forjado na relação entre psicanálise freudiana e teoria social de
Georges Bataille (de onde o conceito realmente vem). Lacan acredita que a crítica
social do capitalismo deve estar inicialmente atenta às formas de incitação
libidinal necessárias à reprodução das formas sociais. A compreensão das
articulações entre instauração da vida psíquica e modos de sujeição social
passam, no caso de Lacan, por uma dinâmica que não é legível através dos
problemas ligados aos destinos dos processos repressivos, mas aos modos de
expropriação das experiências de gozo.
Na verdade, Lacan parte inicialmente da perspectiva batailleana relativa à
compreensão dos processos de reprodução material da vida sob o capitalismo
através da elevação dos princípios utilitaristas de maximização do prazer e de
afastamento do desprazer. Em Bataille, tal tópica servia para lembrar que o
capitalismo deveria procurar eliminar do horizonte da vida social todos estes
fatos totais que não poderiam ser pensados através da estrutura calculadora do
prazer, em especial o erotismo e o sagrado. Pois sagrado e erotismo seriam fatos
sociais motivados pelo gozo, não pelo prazer.
Esta distinção entre prazer e gozo será transposta para o interior da
teoria psicanalítica por Lacan, principalmente a partir do Seminário VII, sobre a
ética da psicanálise. Na ocasião, Lacan fará uma importante elaboração a respeito
da experiência analítica como uma prática dirigida por uma ética que, no
entanto, não promete forma alguma de adaptação possível entre virtudes
privadas e virtudes públicas nas condições atuais. “Il n’y a aucune raison que
nous nous fassions les garants de la rêverie bourgeoise”11. Nas condições atuais,
a realização do gozo só pode se dar de forma disruptiva em relação às exigências
de auto-conservação dos indivíduos. No entanto, ele é abertura para a
possibilidade de realização de ações que não se mesurem mais ao princípio do
prazer. Desta forma, a existência de um para-além do princípio do prazer ganha
em Lacan uma dimensão ética que não existia em Freud.
Esta crença na força disruptiva de experiências de gozo, no entanto, terá
que lidar com uma economia libidinal própria ao capitalismo, que não se baseia
apenas na repressão do gozo e afirmação do prazer, mas na espoliação do gozo
no interior de uma lógica de reprodução de sua desmedida, mas no interior da
lógica de produção do valor. O capitalismo não apenas codifica nossos desejos,
ele nos espolia de nosso gozo. Com isto, Lacan cria uma teoria da economia
libidinal do capitalismo no qual os processos de socialização não serão mais
pensados sob a forma da repressão, mas da incitação contábil, da eliminação da
força disruptiva do gozo através da própria colonização do gozo.
Esta racionalidade própria a uma sociedade organizada a partir da
circulação do que não tem outra função a não ser se auto-valorizar, que
determina as ações dos sujeitos a partir da produção do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da intensificação, pelo puro
empuxo à ampliação que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem em última
análise uma subjetivação do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
indefinida de si”12. Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura
medida da intensificação, pede uma economia psíquica não mais assentada em
um supereu repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condição de
imperativo transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua própria
encarnação, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunção contínua ao gozo13.
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo
capitalista de acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusões de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relações por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se
transforma em modificação qualitativa. Ao contrário, todo excesso é
financeiramente codificável, é confirmação do código previamente definido14.
Como diria Hegel a respeito de outros fenômenos, esse excesso é marca de uma
má infinitude, pois não passa ao infinito verdadeiro do que muda sua própria
forma de determinação a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceção de si. Uma exceção que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito ruim do que é sempre assombrado por um para além que
nunca se encarna, para além cuja única função é marcar a efetividade com o selo

11 LACAN, S VII, p. 350


12 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
13 Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Cinismo e falência da crítica, op. cit.
14 Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de

conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”. A sua maneira, Lacan nos
lembra que a análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. Os destinos do gozo só podem ser pensados no interior de uma teoria
dos dois infinitos.
Para tanto, trabalharemos sessões dos Seminários VII, A ética da
psicanálise, e XVII, O avesso da psicanálise. Neste ponto, gostaria de retomar as
críticas de Foucault à “desqualificação dos prazeres” feita por Lacan e de
Deleuze/Guattari a sua teoria do capitalismo.

Uma prática de organização

Por fim, o último eixo de reflexão sobre a relação entre política e psicanálise em
Lacan diz respeito à forma com que ele tematiza práticas de organização. A partir
de 1964, são vários os textos nos quais Lacan se confronta com problemas de
organização na qual seria necessário pensar a possibilidade de constituição de
laços sociais em situações nas quais a travessia da fantasia teria se realizado.
Uma organização que, por isto, deveria ser capaz de fazer circular a angústia, e
não se defender dela, que deveria ser capaz de afirmar o desamparo, e não
construir representações superegóicas que visam realizar promessas de amparo.
Ou seja, há principalmente uma pergunta a respeito do circuito de afetos
próprios a organizações e grupos que queiram ser espaços de atos analíticos, o
que poderia ser uma matriz para a compreensão de grupos capazes de realizar
expectativas de emancipação.
No entanto, a prática de organização de Lacan termina sob a égide de um
fracasso representado pelo autodissolução de sua Escola. O eixo da explosão de
sua Escola foi, de forma sintomática, a tentativa de reintroduzir algo dos
processos de comunicação e intersubjetividade através da noção de “passe”. Eu
gostaria de terminar o curso pensando as dimensões políticas deste fracasso a
fim de compreendermos o que ele nos diz, quais os desafios que ele nos deixa
para uma teoria geral de grupos e organizações. Principalmente, em que
condições poderemos pensar a inscrição comum da posição de sujeitos. Esta será
uma maneira de demonstrar a necessidade de conservar, no interior do
pensamento lacaniano, a temática do reconhecimento como horizonte normativo
de realização de demandas políticas.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 2

Um dos principais diagnósticos sociais de Jacques Lacan, e que poderá nos


auxiliar a introduzir nossas reflexões sobre as relações entre clínica e política em
sua obra, será claramente enunciado já em 1938, a ocasião da publicação do
texto Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaios sobre a formação
de uma função em psicologia. Ele diz respeito ao que será conhecido como o
“declínio da imago paterna”. Tentemos compreender melhor este ponto.
Inicialmente, o topos lacaniano parece referendar um modelo de crítica
social que insistiria nas consequências desagregadoras do enfraquecimento do
sistema de autoridades tradicionalmente constituídas. Como se o
enfraquecimento das normas sociais responsáveis pela regulação das condutas e
socialização dos sujeitos fosse a causa de modalidades de sofrimento social que
poderiam levar a consequências políticas regressivas. Não foram poucos aqueles
que viram uma espécie de pressuposição durkheimeana neste diagnóstico social
lacaniano15. Ela seria a marca indelével de uma pretensa tendência falocêntrica e
patriarcal que assombraria a psicanálise lacaniana durante todo seu
desenvolvimento. Por isto, tal filiação indicaria muito a respeito das estratégias
que realmente norteariam Lacan em suas estratégias de crítica social.
Lembremos, inicialmente, como em Durkheim, o problema central,
quando é questão de análise de patologias sociais, será a maneira com que a
experiência da modernidade traria em seu bojo uma potencial desregulação das
normas devido à perda de adesão em relação a padrões tradicionais de conduta e
valoração. Isto implicaria no enfraquecimento das normas com sua capacidade
de limitação, de determinação de obrigações e de individualização. Este
enfraquecimento só poderia produzir um tipo de sofrimento social a ser
chamado de “anomia”. Sabemos que temos anomia quando as demandas sociais
deixam de ser determináveis, deixam de ter forma específica, pois elas não
podem mais se referir a um campo de codificação e significação comum
socialmente partilhada. Neste contexto entra-se em um “estado de
indeterminação” 16 no qual nenhuma individualização é socialmente bem
sucedida, podendo este colapso das ações potenciais levar até mesmo ao suicídio
(o suicídio por anomia será uma das modalidades de suicídio analisadas por
Durkheim). Contra isto, seria necessário um fortalecimento dos quadros
normativos a fim de permitir a definição de processos de obrigação e assunção
social através da limitação da indeterminação produzida pelo impacto social da
crítica moderna à reprodução de formas tradicionais de vida. Os sujeitos devem
ser redirecionados a quadros institucionais fortes, que permitam o
desenvolvimento de individualidades reguladas pela assunção comum de
processos produtores de mutualidade e cooperação, isto se quisermos evitar o
sofrimento social produzido pelo impacto da modernidade.
Notemos, no entanto, que o tipo de diagnóstico fornecido por Lacan não
pode ser confundido com análises desta natureza, de cunho durkheimeano. Isto é
importante para compreendermos qual é, afinal, a estrutura das modalidades de

15 Neste sentido, a leitura mais conhecida é de ZAFIROPOULOS, Mark; Lacan et les sciences
sociales
16 DURKHEIM, Emile; Le suicide, Paris: PUF, 2005, p. 275
sofrimento que o declínio da imago paterna, ao menos segundo Lacan,
produziria. Primeiro, há de se notar como tal declínio é produzido por aquilo que
poderíamos chamar de “quebra das consequências da contração da família
paterna (a família extensa normalmente submetida à autoridade do pai) na
figura da família conjugal (apenas pai, mãe e filhos)”. A principal consequência
da quebra das consequências de tal contração será a perda da produtividade de
certa antinomia. Pois esta família conjugal, encarnada entre nós na família
burguesa possui uma antinomia de funções no eixo paterno. A este respeito,
lembremos como, para o pai da família conjugal, convergem duas funções
imediatamente contraditórias, a saber, a repressão (ele inibe a função sexual de
forma inconsciente através do supereu) e a sublimação (ele preserva a função
social através do ideal do eu). O pai é aquele, ao mesmo tempo, responsável pela
determinação social dos ideais e pelas relações de rivalidade sexual no interior
da estrutura do complexo de Édipo. Apesar de insistir, contrariamente a Freud,
na necessidade de distinguir claramente o que é da ordem do supereu, com suas
injunções fantasmáticas, da ordem do ideal do eu, com suas funções de
transmissão simbólica de identificações, apesar de recusar a estratégia de
psicanalistas como Ferenzci de diferenciar um supereu saudável de um supereu
patológico, Lacan entende que a sobreposição da contradição na figura paterna
tem uma função maior na maturação psíquica. Pois:

“a evidência da vida sexual nos representantes das obrigações morais, o


exemplo singularmente transgressivo da imago do pai a respeito da
interdição primordial exaltam no mais alto grau a tensão da libido e o
alcance da sublimação”17.

Neste sentido, ele lembrará que, em sociedades pré-modernas,


encontramos muitas vezes tais funções separadas. Nesses casos, o representante
da autoridade social não será o pai, mas muitas vezes o irmão da mãe, cabendo
ao pai biológico a função desinflacionada de iniciador a práticas e costumes. Tal
separação diminuiria as relações de rivalidade com representações da
autoridade, já que a distância da autoridade em relação ao núcleo familiar mais
restrito aqui seria sinal de conservação da norma social a despeito de seus usos
no interior de relações profundamente conflituais ligadas ao investimento
libidinal em figuras familiares. Pois há de se lembrar aqui da temática edípica
segundo a qual o pai biológico é aquele que estabelece relações com a mãe,
privando a criança de um objeto inicialmente desejado. Não sendo mais o
representante direto da lei social, o pai acaba por conservar a lei de todo desejo
de transgressão devido às relações de rivalidade no interior do núcleo familiar.
Lacan, no entanto, não louva esta característica de famílias não contraídas
a seu núcleo conjugal. Pois, se por um lado tal situação evita a consolidação das
neuroses como quadro hegemônico de sofrimento advindo das configurações da
vida social, já que as relações de autoridade não são objetos da ambivalência
neurótica que vincula sujeição, recusa e desejo, ela acaba, por outro lado, por
levar à consolidação de estereotipias. Pois a relação à Lei não é, de certa forma,
infectada pela agressividade produzida no nível das relações de rivalidade no
interior do núcleo familiar. Por isto, há, ao menos para o jovem Lacan, um certo

17 Idem, p. 59
princípio de estaticidade em tais sociedades devido à ausência de uma
contradição produtiva no nível dos processos sociais de identificação. O que lhe
leva a afirmar: “quão forte o ímpeto de sublimação está dominado pela repressão
quando essas duas funções estão separadas”18.
Assim, e esta seria uma espécie de vantagem da família conjugal para
Lacan, ao produzir uma antinomia ligada à figura paterna, a família burguesa se
apoiaria em uma determinação contraditória. Pois o pai é o lugar de uma
contradição que permitiria ao sujeito fazer da contraposição ao próprio pai a
contraposição à lei. Por isto, Lacan deve afirmar: “é por crises dialéticas que o
sujeito se cria, ele mesmo e seus objetos”19. Tais crises dialéticas são descritas
como subversões: “Por encarnar a autoridade na generalidade a mais vizinha e
sob uma figura familiar, a família conjugal coloca tal autoridade ao alcance
imediato da subversão criadora”20.
Ou seja, a peculiaridade da posição de Lacan vem do fato dele afirmar que
a família conjugal é aquela que permite identificações que subvertem, vínculos à
Lei que transgridam a própria Lei. Assim, a função da lei paterna é permitir a
subversão das autoridades constituídas em nome de um ideal que nunca se
encarna completamente. Pois ao encarnar a Lei na figura familiar mais próxima,
a família conjugal incita a transgressão da Lei, mas paradoxalmente em nome da
própria Lei, já que as relações de rivalidade fazem com que o pai seja percebido
sempre não estando à altura das injunções da função paterna. O que explica
porque: “os ideólogos que, no século XIX, levaram contra a família paternalista as
críticas as mais subversivas não são os que menos tem a influência desta mesma
família”21.
Notem que esta antinomia relativa à figura paterna é possível porque
Lacan partem de um pressuposto central, a saber, há uma espécie de
transcendência da lei que impulsiona os sujeitos a transgredirem as encarnações
empíricas da lei. No entanto, esta transcendência é, de forma paradoxal, uma
espécie de transcendência negativa. Ou seja, a lei social não é caracterizada pelo
conjunto positivo de normas e regras que ela enuncia, mas pela inadequação que
ela produz em relação aos seus portadores. Esta inadequação é fundamental para
que a socialização não seja uma simples conformação a normas, mas uma
possibilidade de entrar em dinâmicas individualizadoras de subversão criadora.
Este ponto é decisivo no argumento de Lacan. De certa forma, a Lei
funciona bem quando ela não legifera, mas quando simplesmente autoriza o
conflito em relação a seu próprio sentido. Neste sentido, quando Lacan afirma
que a “grande neurose” contemporânea expressa o fato da personalidade do pai
ser sempre “ausente, humilhada, dividida ou postiça”, provocando com isto uma
carência capaz de: “tanto secar o ímpeto instintivo quanto tarar a dialética da
sublimação”22, não se trata de defender que a cura da neurose estaria no
fortalecimento do caráter normativo da lei paterna. Na verdade, e este me parece
o ponto realmente importante aqui, Lacan compreende que não se trata
simplesmente de um “declínio” da autoridade, mas de uma eliminação da

18 Idem, p. 57
19 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 59
20 Idem,
21 Idem, p. 60
22 Idem, p. 61
transcendência. O pai é humilhado na contemporaneidade porque ele se reduziu
a ser apenas um rival.
Isto leva sujeitos ao fortalecimento de formas de compensação da
ausência da transcendência através da consolidação do narcisismo. Pois a
redução da lei à figura das demandas do rival, das demandas do outro que está
na mesma posição que eu mesmo, reduzem toda autoridade à expressão de
representações superegóicas que visam mascarar impossibilidades de amparo.
Uma autoridade superegóica se sustenta por sustentar relações de demanda de
amparo. Não haverá assim internalização de ideais, haverá apenas a
internalização de figuras superegóicas que se servirão da fragilização narcísica
dos indivíduos, produzindo identificações imaginárias visando reforçar um Eu
enfraquecido, reduzindo assim todo conflito à forma de um atentado à
integridade narcísica e fazendo de toda afirmação uma afirmação narcísico-
identitária.
Este diagnóstico lacaniano estará presente em várias outras análises
sociais que procuraram mobilizar a psicanálise para compreender fenômenos de
regressão social. Por exemplo, em seus estudos sobre a ascensão do fascismo,
Theodor Adorno falará da especificidade do líder fascista. Pois estamos diante:
“do alargamento da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si
mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante a última fase da
infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual” 23. Adorno explora
tal traço ao afirmar que “uma das características fundamentais da propaganda
fascista personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que
sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do
povo, um simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas
materiais ou espirituais”24. Pois as identificações não são construídas a partir de
ideais simbólicos. Elas são basicamente identificações narcísicas que parecem
compensar o verdadeiro sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua
subsequente fraqueza”25, um declínio que não é apenas apanágio de sociedades
abertamente totalitárias. Isto talvez explique porque este “mais um do povo”
possa ser expresso não apenas pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas
fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta impotente que
expressamos26.
Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a compreender a
funcionalidade do narcisismo enquanto modo privilegiado de vínculo social em
uma sociedade de enfraquecimento da capacidade de mediação do eu,
adiantando em algumas décadas problemas que levarão às discussões sobre a

23 ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418


24 Idem, p. 421
25 Idem, p. 411. Adorno dirá a respeito: “A fragilidade do eu [tema que Adorno traz do

psicanalista Hermann Nunberg] que retrocede ao complexo de castração, procura compensação


em uma imagem coletiva e onipotente, arrogante e, assim, profundamente semelhante ao próprio
eu enfraquecido. Esta tendência, que se incorpora em inumeráveis indivíduos, torna-se ela
mesma uma força coletiva, cuja extensão até agora não se estimou corretamente”. (ADORNO,
Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015).
26 Pois “o líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicológicas desses suscetíveis à sua

propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e deles se distingue pela


capacidade de expressar sem inibição o que está latente neles, isto ao invés de encarnar uma
superioridade intrínseca” (ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”,
op. cit., p. 427)
“sociedade narcísica” 27 . Ele sabe como tal fraqueza permite, através da
consolidação narcísica da personalidade com suas reações diante da consciência
tácita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que ele chama de expropriação do
inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito consciente de
seu inconsciente.
Outro diagnóstico convergente ao de Lacan foi fornecido por Alexander
Mitscherlich em seu livro Em direção a uma sociedade sem pais (Auf dem weg zur
vaterlosen Gesellschaft), de 1963. Partindo do diagnóstico frankfurtiano do
declínio da autoridade paterna devido às mutações na sociedade capitalista do
trabalho, à generalização do modelo burocrático de autoridade e à insegurança
produzida pela ausência de “seguranças de caráter paternalista” (paternistischer
Sicherung)28 na constituição de modelos para processos de decisões a serem
tomadas pelos indivíduos (o que suscitará décadas depois a temática da
“sociedade de risco”), Mitscherlich poderá afirmar que o advento de uma
sociedade sem pais já teria sido, à sua maneira, realizada pelo capitalismo. A
desaparição do pai é um destino, não cansará de dizer Mitscherlich. No entanto, a
comunidade de irmãos não teria redundado em novas formas de organização
política. Na verdade, à estrutura da rivalidade edípica entre pai e filho substitui-
se um comportamento de afirmação de si entre irmãos, expressos através de
ciúme e concorrência com suas patologias ligadas ao culto da performance e à
pressão narcísica dos ideias29. Mesmo as figuras paternas no interior do núcleo
familiar seriam cada vez menos representantes de modelos patriarcais de
autoridade e cada vez mais próximas de figuras fraternas concorrentes. Desta
forma, a sociedade capitalista teria sido capaz de sobreviver ao se transformar
em uma sociedade sem pais organizada em chave narcísica, cujas patologias
deixarão de se constituir a partir dos conflitos neuróticos com as interdições da
Lei para se constituírem a partir dos conflitos narcísicos diante da impotência de
realizar ideais. É pensando em fenômenos semelhantes que Lacan afirmará que
tal fortalecimento do narcisismo será responsável pelo recrudescimento de
regressões sociais como: a xenofobia, a segregação e a procura por figuras
superegóicas de autoridade.
Notemos então dois pontos fundamentais. Primeiro, por mais paradoxal
que inicialmente possa parecer, Lacan afirma que o declínio da imago paterna
impede a subversão da autoridade, fixando o sujeito em um fortalecimento
fantasmático de figuras superegóicas de autoridade. No entanto, Lacan precisa
defender a tese de que a função da lei paterna é permitir a transgressão contra
ela mesma, sem que isto implique necessariamente perpetuação de uma situação
de desagregação. Segundo, Lacan diz muito pouco a respeito das causas de tal
declínio ou do momento histórico em que a imago paterna não teria declinado.
Pois para a tese do “declínio” funcionar, seria necessário um momento histórico
no qual, a lei paterna teria funcionado como mera potência de transcendência,

27 A respeito do narcisismo como modo de vínculo social hegemônico nas sociedades liberais, ver
EHRENBERG, Alain; La société du malaise: le mental et le social, Paris: Odile Jacob, 2010
28 MITSCHERLICH, Alexander; Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft, In: Gesammelte Schriften,

Frankfurt; Suhrkamp, 1983, p. 250


29 Daí afirmações como “a necessidade de performance, o medo de ser ultrapassado e de ficar

para trás são componentes fundamentais da vivência do indivíduo na sociedade de massa. O


medo de envelhecer toma proporções de pânico; a própria velhice se transforma em um estágio
da vida no qual experimentamos grande abandono sem reciprocidade por gerações seguintes”
(Idem, p. 324)
descolada dos enunciados normativos que definem as condutas e
comportamentos que lhe seriam conformes. Não será no passado que Lacan
poderá encontrar tal modelo de funcionamento, o que não lhe impede de
procurar, de certa forma, no futuro.

O que a guerra nos ensina

É neste contexto que devemos ler “A psiquiatria inglesa e a guerra”, de 1947. Se


“Os complexos familiares” é escrito pouco antes da deflagração da Segunda
Guerra e expressa claramente as preocupações com fenômenos totalitários que a
Europa conhecia então, “A psiquiatria inglesa” traz as marcas da meditação sobre
a possibilidade de superação das condições psíquicas que permitiriam impedir
tais regressões. Neste sentido, ao analisar experimentos de grupo criados por
Bion e Rickmann durante a guerra, não é por acaso que Lacan dirá que a vitória
inglesa na guerra deve ser computada também ao fato da: “intrepidez de seu
povo repousar sobre uma relação verídica ao real”30. Mas o que “verdade” e
“real” fazem neste contexto?
Aceitemos que “real” se refere aqui a uma forma de instauração de
vínculos sociais que nos coloca diante do que submete as organizações
imaginárias ou simbólicas ao esvaziamento. Por isto, há uma dimensão real dos
vínculos sociais que exige um certo afeto (“intrepidez”) pois nos coloca diante do
que pode decompor grupos ou leva-los a uma forma reinstaurada. Neste sentido,
lembremos dos eixos principais do experimento de Bion e Rickmann. Em um
hospital militar, Bion recebe soldados que recusam sua integração e seu trabalho
cooperativo no exército. Ele resolve então organiza-los em grupos de trabalho
cujas funções serão decididas pelos próprios membros. Organiza-se então
grupos de carpintaria, de prática cartográfica, de conserto de automóveis etc. Até
mesmo um grupo responsável por cursos de dança se organiza. Bion se serve
aqui do que conheceremos mais tarde por grupos terapêuticos, tão presentes em
tentativas de tratamento em psicose.
No entanto, estes grupos tal como pensados por Bion tem uma
característica fundamental: o lugar da liderança encontra-se vazio. Aquele que
ocupa tal lugar, a saber, o próprio Bion, agirá de forma tal a simplesmente
reenviar a mensagem dirigida para o próprio enunciador. Ele não age, não
comanda, mas leva o próprio grupo a tomar as decisões a respeito do que lhe
compete. No entanto, Bion garante que o grupo será responsabilizado pela ação
de seus membros. Assim, por exemplo, as tesouras de um grupo desaparecem.
Bion afirma que não haverá punições, mas não haverá também compra de novas
tesouras. O resultado é descrito por Lacan nos seguintes termos:

Sobre este dado, ele se proporá a organizar a situação de maneira a forçar


o grupo a tomar consciência de suas dificuldades de existência enquanto
grupo – posteriormente a torna-lo cada vez mais transparente a si
mesmo, ao ponto de cada um dos membros poderem julgar de forma
adequada o progresso do conjunto -, o ideal de tal organização, para o
médico, encontraria-se na legibilidade perfeita, de forma tal que o grupo
poderia apreciar a todo momento em direção a qual porta de saída se

30 Idem, p. 101
encaminha cada “caso” confiado a seus cuidados: retorno a sua unidade,
reenvio à vida civil ou perseverança na neurose31.

As colocações são bastantes significativas. Ao preservar o lugar do poder como


um lugar simbolicamente vazio, ou seja, lugar que pode ser ocupado por
qualquer um que se disponha a tanto mas que encontra-se determinado em
condições simbólicas partilhadas, Bion permitira ao grupo “tomar consciência de
suas dificuldades de existência”, isto a ponto de instaurar uma transparência do
grupo a si mesmo. Se Lacan fala de uma “legibilidade perfeita” é porque o grupo
se confronta com sua própria possibilidade de desaparição, com sua falta de
fundamento natural, sem no entanto ser levado ao pânico produzido pelo
sentimento de perda do que garantia sua sedimentação enquanto grupo. Isto é
possível porque, para além do esvaziamento imaginário do lugar do poder, há
uma sustentação simbólica quer permanece. Bion está presente de forma
silenciosa, mas o enquadre simbólico da instituição do exército e do hospital
ainda continuam lá.
Neste sentido, o que houve não foi uma perda de liderança, mas uma
tomada de consciência da possibilidade de funcionamento a despeito de uma
representação imaginária do poder. Este esvaziamento do lugar central
permitiria assim a consolidação de um sistema de relações igualitárias capaz de
abrir o espaço a formas renovadas de cooperação. Lacan chega mesmo a falar de
um “princípio de cura de grupo”, isto para lembrar posteriormente:

Se podemos dizer que o neurótico é egocêntrico e tem horror de todo


esforço para cooperar, é talvez porque ele raramente está localizado em
um meio no qual todo membro esteja no mesmo nível que ele no que
concerne as relações aos semelhantes32.

Ou seja, emerge aqui um tipo de relação na qual um certo igualitarismo,


que não é a mera projeção narcísica do eu sobre o outro, aparece como força
fundadora de novos vínculos sociais. Lacan entende que esta é a saída mais
consistente para o desafio social que ele descreverá ao final de seu texto:

É claro atualmente que as potências sombrias do supereu se coalizam


com os abandonos os mais fracos da consciência para levar os homens a
uma morte aceita em nome das causas as menos humanas, e que nem
tudo o que aparece como sacrifício é, por esta razão, heroico. Por outro
lado, o desenvolvimento dos meios de agir sobre o psiquismo que
crescerá neste século, um manejo combinado de imagens e paixões do
qual já fizemos uso com sucesso contra nosso julgamento, nossa
resolução, nossa unidade moral, serão a ocasião de novos abusos do
poder33.

Ou seja, com o declínio da imago paterna e a consolidação de um modo de


relação à autoridade baseado nas “potências sombrias do supereu” abre-se o
espaço para processos identificatórios e reações defensivas que farão a base

31 Idem p. 109
32 Idem, p. 111
33 Idem, p. 120
psíquica das formas de autoritarismo que a Europa conheceu inicialmente na
Segunda Guerra. É contra formas de manejo combinado de imagens e paixões
que certamente crescerá no século XX que Lacan irá procurar inicialmente
insistir na estratégia de conservar o lugar do poder vazio de toda identificação
imaginária possível. A política emancipa quando ela nos leva a nos
identificarmos com um lugar vazio.

A dimensão clínica

É claro como esta forma de pensar o campo político expressa os


pressupostos clínico que Lacan defendia à época. Lembremos, por exemplo,
como até o final dos anos cinquenta há um conceito central na metapsicologia
lacaniana: o desejo puro. Como Lacan dirá, a respeito da especificidade da “nova
mensagem” trazida por Freud:

Este lugar que nós procuramos apreender, definir, coordenar, que nunca foi
identificado até agora em seu desdobramento ultra-subjetivo, é o lugar
central da função pura do desejo34.

Este desejo puro foi um dispositivo que serviu durante um certo tempo
como orientação para o desejo do analista. Lembremos de afirmações como: "o
lugar puro do analista, enquanto podemos defini-lo no e pelo fantasma, seria o
lugar do desejante puro"35. A posição deste desejo puro parece abrir o espaço a
uma liberação possível dos sujeitos que define certos caminhos para a
emancipação.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a
característica principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural
de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de
nomeável"36. Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que
tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de
afirmar que a verdade do desejo era ser “revelação de um vazio” 37, ou seja, pura
negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um desejo
incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade
imediata de realização fenomenal. Mas por que esta pura tendência que insiste
para além de toda relação de objeto transformou-se em algo absolutamente
incontornável para Lacan? Nós podemos fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir
sobretudo de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento
lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre
projeções narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos
do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas
as relações de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime

34 LACAN, S X, sessão de 08/05/63


35 LACAN, S VIII, p. 432.Ou ainda : " Nós sempre desconhecemos, até um certo grau, o desejo que
quer se fazer reconhecer pois nós o indicamos seu objeto, enquanto que não é de um objeto que
se trata - o desejo é desejo desta falta que, no Outro, designa um outro desejo" (LACAN, S V, p.
329)
36 LACAN, S II, p. 261
37 KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
narcísico de relação através de uma crítica ao primado do objeto na
determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste narcisismo fundamental.
Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre submeter-se à
estrutura narcísica e aí se inscrever”38. E ele dará um caráter epistemológico a
sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso científico [e
todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"39.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do
Imaginário, já que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera
das relações que compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e
introjeções40. Aqui, faz-se necessário salientar um ponto importante: o objeto
empírico aparece necessariamente como objeto submetido à engenharia do
Imaginário e à lógica do fantasma. A possibilidade de fixação libidinal a um
objeto empírico não-narcísico ainda não é posta. Assim, a fim de livrar o sujeito
da fascinação por objetos que são, no fundo, produções narcísicas, restava à
psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer conteúdo empírico. Subjetivar
o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento.
Lacan percebeu claramente que a psicanálise nascera em uma situação
histórica na qual o sujeito precisava ser compreendido como entidade não-
substancial, desnaturada e marcada pelo selo de uma "liberdade negativa" que
lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas representações e
identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim uma
estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função
transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo
(o que nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-
psicológica do desejo). Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das
realizações fenomenais, haveria uma "permanência transcendental do desejo"41.
O que nos envia à definição canônica do sujeito como falta-a-ser, já que:

O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
ser existe42.

Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida

38 LACAN, S I, p. 197
39 LACAN, S II, p. 130
40 "Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana

" (LACAN, S III, p. 107)


41 LACAN, S VIII, p.
42 LACAN, SII, p. 261.
pela interdição vinda da Lei do incesto43. É verdade que Lacan afirmará: "o
objeto da psicanálise não é o homem, mas o que lhe falta - não uma falta
absoluta, mas falta de um objeto "44. No entanto, devemos sublinhar que tal
objeto que lhe falta não é exatamente um objeto empírico.
Notemos que a decisão lacaniana de pensar o sujeito e o desejo a partir de
relações de negatividade tem uma função política clara. Ela é uma saída ao
diagnóstico de reificação generalizada das estruturas da realidade social e de
seus modos de determinação. A negatividade é, na verdade, a posição de uma
existência não-saturada, inadequada ao campo de determinações atualmente
postas pela realidade social.

43 Podemos seguir aqui uma afirmação de Bernard Baas: "Pois, ao mostrar que o pensamento de
Lacan é trabalhado pelo procedimento do questionamento transcendental, tal interpretação
permite também dar conta do sentido propriamente crítico do ´retorno à Freud´, já que ele
explicita como ilusão transcendental o mito no qual a psicanálise sempre ameaçou recair e contra
o qual Lacan nunca cessou de se opor. Trata-se do mito da origem perdida, o mito da experiência
originária de gozo, ou seja, o mito da empiricidade da Coisa " (BAAS, De la chose à l'objet,
Louvain: Peeters, 1998, p. 32). Podemos encontrar um exemplo do que pode dar uma leitura
´realista´ do desejo lacaniano nesta afirmação de Judith Butler: "Para Lacan, o sujeito vem a
existência somente através do recalcamento originário dos prazeres incestuosos pré-individuais
com o corpo materno (agora recalcado)" (BUTLER, Gender trouble, New York: Routledge, 1999,
p. 57)
44 LACAN, AE, p. 211
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 3

Na aula de hoje gostaria de aprofundar nossa discussão a respeito do destino dos


processos identificatórios no interior da reflexão lacaniana sobre vínculos
sociais. Nós vimos na aula passada como deveríamos partir do diagnóstico social
do chamado “declínio da imago paterna” a fim de melhor compreender o quadro
de problemas e alternativas que Lacan tinha em vista. Vimos, por exemplo, como
a aposta em uma transcendência negativa necessária da Lei era a forma
lacaniana de insistir nas possibilidades, abertas pelo advento da família conjugal,
de socializações capazes de abrir espaço a “subversões criadoras”. Tal
possibilidade de socialização através de transgressões possível das figuras
empíricas de autoridade devido a pressão de transcendência da Lei estaria em
declínio, o que nos explica como o “declínio” ao qual Lacan se refere não é um
declínio em relação a uma situação que teria estado anteriormente em operação,
mas um declínio em relação ao campo de possíveis que ainda não se atualizou.
Tal modo de socialização nunca existiu de fato, mas poderia aparecer como uma
possibilidade imanente ao funcionamento da família conjugal. Daí porque não faz
sentido se perguntar sobre o momento no qual a imago paterna não teria
entrado em declínio.
Por outro lado, o diagnóstico lacaniano de colapso das possibilidades de
transcendência negativa da Lei lhe leva a uma configuração de problemas sociais
que servirão de ponto de partida para sua reflexão sobre a possibilidade do
impacto da psicanálise enquanto experiência crítica das sociedades
contemporâneas. Lacan falará então da redução dos processos identificatórios do
Eu à dimensão imaginária e da consolidação de determinações de relações
(sejam relações a si, sejam relações ao mundo) baseadas no narcisismo. Este
tópico da generalização do narcisismo será a forma lacaniana de afirmar que a
referência do processo analítico à realidade socialmente partilhada não pode
fazer outra coisa que referendar formas de reificação generalizada. Não é em
nome do princípio de realidade que o analista pode orientar a conduta do Eu do
analisando. A realidade é apenas uma esfera de projeções e internalizações
egomórficas que precisa de uma contínua expulsão de toda alteridade real para
sustentar sua homeostase. Daí a fragilidade das relações narcísicas e sua
necessidade contínua de sustentar-se através de identificações com figuras
superegóicas que são apenas a projeção narcísica dos próprios sujeitos aos quais
a elas se submetem.
Desta forma, Lacan procurava fornecer uma reflexão psicanalítica sobre
os processos de regressão social fascista que assombravam a Europa na década
de trinta. Vimos ainda como sua resposta a tais regressões passava pela
possibilidade de mostrar como a política nos emancipa quando ela nos leva a nos
identificarmos com um lugar vazio. O comentário ao texto lacaniano “A
psiquiatria inglesa e a guerra” visou mostrar como o operador de constituição de
grupos a partir da identificação ao lugar simbólico vazio do poder permitiria a
possibilidade de processos de “tomada de consciência” da ausência de
fundamentação natural do laço social baseada na assunção de alguma forma de
identidade coletiva, na possibilidade da consolidação de relações igualitárias
baseadas na falta de aderência entre os ocupantes do lugar do poder e o próprio
lugar, com a possibilidade de uma circulação de posições no interior do grupo e
uma poliformidade das próprias relações de poder. Este modelo lacaniano
pressupõe um esvaziamento das identificações imaginárias com as figuras do
poder e uma emergência da força das identificações com o lugar simbólico não-
saturado, o que pressupõe um problema importante que será de difícil resolução,
a saber, que as coordenadas que constroem e definem o lugar, que a
espacialidade do poder em suas determinações tópicas de relações seja
sustentada.
Por fim, eu lembrara como tais discussões estão relacionadas ao
dispositivo clínico do desejo do analista como um desejo puro, que estará
presente em Lacan até o final dos anos cinquenta. Esta aposta clínica no desejo
puro deve ser lida como a consequência de uma leitura política. Ela explicita a
função imanente ao desejo como pura negatividade, que Lacan traz de suas
leituras de Kojève. Longe de ser uma espécie de idealização religiosa da falta, de
uma socialização feita através do aprendizado da quebra das ilusões de
onipotência do desejo, aprendizado da realidade madura de nossa finitude, do
impossível do gozo etc., o que temos em Lacan é uma operação que visa lembrar
que o desejo só pode estar em falta em relação às determinações sociais
atualmente disponíveis. Um desejo como falta não é necessariamente um desejo
que expressa a finitude dos sujeitos. Ele pode também ser pensado como modo
de experiência do excesso da potencialidade do desejo em relação às
determinações fenomenais imanentes à situação atual.

Fundar uma Escola

É tendo em vista tais problemas que devemos ler a “Proposição de 9 de outubro


de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Lembremos o contexto claramente
político de um texto como este. Lacan fora expulso da Sociedade Francesa de
Psicanálise em 1963, o que lhe levou a fundar sua própria Escola no ano
seguinte. A partir deste momento, Lacan não será apenas um psicanalista, mas o
responsável por sustentar um novo vínculo de formação e transmissão que se
chamará, durante quinze anos, de “Escola”. De 1964 a 1980, Lacan será a figura
principal da Escola Freudiana de Psicanálise, cuja dissolução será produzida pelo
seu próprio fundador. Neste sentido, o que veremos será a experiência de
constituição de modos de vínculos sociais e de seu fracasso. Devemos pensar
claramente nos dois fatos.
Isto leva inicialmente Lacan a escrever de forma mais explícita sobre
problemas de organização e sobre a forma com que a experiência psicanalítica,
longe de produzir novas configurações de vínculos sociais com força
emancipatória, havia produzido novas formas de burocracia. Neste sentido, suas
críticas a Sociedade Internacional de Psicanálise (IPA) não será movida apenas
por questões internas a lutas por hegemonia no interior do círculo de
psicanalistas. Ela será a forma da denúncia das consequências do desconhecido
que os próprios analistas teriam daquilo que Lacan chama de “ato analítico”. Ou
seja, Lacan insiste que os problemas de organização dos psicanalistas são um
problema interno a própria teoria e prática analítica, não apenas um equívoco
exterior àquilo que a psicanálise traz enquanto experiência. Desta forma, Lacan
dá o passo decisivo de afirmar que não há experiência psicanalítica que não nos
leve, necessariamente, ao redimensionamento das possibilidades da vida social.
Neste processo, Lacan trará revisões importantes a respeito daquilo que
pode sustentar laços sociais capazes de realizar expectativas de emancipação. A
figura do laço social fundado na identificação ao lugar vazio do poder não terá
mais a mesma função ordenadora que antes. O que não poderia ser diferente, já
que a própria orientação do desejo do analista como desejo puro será revista.
Tomemos, por exemplo, o primeiro princípio que Lacan apresenta ao
discutir as estruturas de organização da Escola Freudiana de Psicanálise, a saber:
“O psicanalista só se autoriza de si mesmo” 45. Ou seja, o tornar-se psicanalista
não é algo autorizado pela realização de baterias de testes, de conformação a
princípios garantidos por uma instituição, de formação curricular. O psicanalista
se autoriza a partir de si mesmo quando “ele se transforma no analista de sua
própria experiência”. Isto significa, ele ocupa a posição do analista de sua própria
experiência, o que implica que ele desaloja aquele que era então o seu analista,
que ele destitui o saber daquele que até então era o seu analista. O que não
poderia ser diferente para alguém que havia dito:

No recurso que preservamos de sujeito a sujeito, a psicanálise pode


acompanhar o paciente até o limite estático do “tu és isso”, no qual se
revela a ele a cifra de sua destinação mortal, mas não está em nosso poder
de clínicos leva-lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem46.

Ou seja, a experiência da interlocução analítica pode levar o sujeito a


confrontação com estas palavras plenas que definiram seu destino, que
constituíram suas posições. Mas a verdadeira viagem, esta na qual a
singularidade pode de fato começar a emergir para além do limite estático dos
atos de fala que nos inscreveram e constituíram, é algo cujos caminhos não são
exatamente objetos da intervenção clínica. Eles podem, no máximo, ser
desencadeados por ela, para além dela. Por isto, décadas depois, Lacan dirá que
este transformar-se no analista de sua própria experiência não exige autorização
de ninguém e haverá mesmo sujeitos, ao menos para Lacan, que serão analistas
de sua própria experiência sem passar necessariamente por uma psicanálise,
como será o caso, por exemplo, de James Joyce.
No entanto: “isto não exclui que a Escola garanta que um analista seja algo
de sua formação”. Ou seja, mesmo que a autorização do psicanalista diga respeito
apenas a si mesmo, pode haver um laço social, chamado Escola, que permita a
formação de tal autorização. Mas esta Escola não será exatamente caracterizada
por uma formação no sentido tradicional no termo, ou seja, garantia de tópicos
de ensino. Mais do que “ensino”, a Escola deve garantir uma “transmissão”. Mas
notemos que, no interior do pensamento lacaniano, ensino e transmissão não são
exatamente equivalentes. É interessante notar como Lacan constantemente
reclamará da ausência de leituras dos psicanalistas, de seu desconhecimento de
saberes, de suas dificuldades em operar com conceitos etc. No entanto, para isto
não seria necessário uma Escola de psicanálise, mas alguma forma de instituição
de formação. O que a Escola garante não é um ensino, mas a possibilidade de

45 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 243


46 LACAN, Jacques; Ecrits, p. 100
transmissão. No caso, a transmissão de um ato. Ela não é uma sociedade de
interesse científico, que será responsável por experiências, colóquios, simpósios
etc (embora possa fazer isto também). O que explica porque Lacan afirmará: “Há
solidariedade entre a pane, ou mesmo os desvios que a psicanálise mostra e a
hierarquia que aí reina – e que nós designamos como a de uma cooptação de
sábios”47.
Pois se Lacan dirá: “há um real em jogo na própria formação do
psicanalista”48, há sobretudo de entender que a única razão efetiva de existência
da Escola é a transmissão de tal real. Há uma organização fundada sobre a
possibilidade de circulação não dos efeitos imaginários de grupo, ou mesmo dos
vínculos simbólicos a sistemas de regras e normas, mas de um real que tem a
força de formar analistas. Real este vinculado à possibilidade de emergência de
uma forma de laço social na qual a transmissão de um ato seja possível. Este é o
primeiro dado que precisamos levar em conta: o que Lacan se engaja é na
produção de um laço social capaz de ser produzido a partir de certa experiência
do real.
Neste sentido, é sintomático que, em um texto a respeito do que deveria
ser uma Escola de psicanálise, Lacan discuta principalmente a transferência. Não
porque os vínculos que fundarão a Escola serão vínculos transferenciais, mas
porque a Escola deveria ser o destino daqueles que se confrontaram com o real
que aparece como saldo necessário da liquidação da transferência. Um real que
impulsiona a transformações de estrutura. Neste sentido, a Escola aparece como
um laço social que vincula aqueles que passaram pela experiência da liquidação
da transferência.

Problemas de transferência

“No começo da psicanálise, está a transferência”49. A colocação de Lacan é clara


na sua decisão em privilegiar a transferência como eixo fundamental do processo
analítico. Muito mais do que a interpretação e seus processos de simbolização
vinculados, de maneira privilegiada, ao complexo de Édipo e à teoria da
sexualidade infantil, Lacan insistirá que a experiência analítica é um manejo da
transferência.
Notemos inicialmente como a transferência é um operador psicanalítico
que tem uma clara matriz ligada a questões de ordem política. Lembremos
inicialmente, como a compreensão de que a relação interpessoal entre paciente e
médico é um espaço privilegiado no desenvolvimento de processos que
influenciarão a realidade da cura foi uma constante a partir do início do século
XIX. Alguns, como Michel Foucault, chegam a ver aqui o motor fundamental para
o advento da psiquiatria moderna de Pinel, de Samuel Tuke com seus métodos
de intervenção. Para tanto, ele não teme recorrer a textos, como este de Esquirol
(1818) para quem a terapêutica da loucura seria: “a arte de subjugar e de domar,
por assim dizer, o alienado, pondo-o na estreita dependência de um homem que,
por suas qualidades físicas e morais, seria capaz de exercer sobre ele um ímpeto

47 LACAN, Jacquesl Autres écrits, p. 245


48 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 244
49 LACAN, idem, p. 247
irresistível e de mudar a corrente viciosa de suas ideias” 50 . Pois o
reconhecimento do poder terapêutico desta sugestão e influência, um poder
terapêutico que teria levado tais processos a ser vistos como peças maiores
daquilo que chamávamos à época de “tratamento moral” seria, para Foucault,
decisivo para a “invenção” do psicológico, ou seja, para o reconhecimento de uma
causalidade estritamente psicológica daquilo que hoje compreendemos como
“doenças mentais”. Ou seja, uma genealogia da transferência nos mostra como
sua realidade esteve, desde o início, profundamente ligada a uma reflexão sobre
o poder e sua força.
Por outro lado, o conceito de transferência, tal como ele aparece no início
do século XX, será também tributário de uma reflexão sobre fenômenos de
imitação e mimetismo no interior de vínculos sócio-políticos próprios a
sociedades de massas. Vemos isto claramente nas reflexões de “psicólogos
sociais” como Gustave Le Bon e Gabriel Tarde a respeito do comportamento
imitativo das massas. Reflexões importantes para Freud pensar a dinâmica das
identificações (ver, principalmente, os primeiros capítulos de Psicologia das
massas e análise do eu). A este quadro, devemos acrescentar ainda as reflexões
de Max Weber sobre o carisma “hipnótico” de lideranças em sociedades pré-
modernas.
Lembremos, por exemplo, de Gabriel Tarde em seu As leis da imitação,
livro fundador da psicologia social e do qual Freud certamente conhecia. Tarde,
insistia no papel fundamental da imitação na estruturação do vínculo social: “o
ser social, enquanto social, é por essência imitador. A imitação desempenha nas
sociedades um papel análogo àquele da hereditariedade nos organismos e da
ondulação nos corpos brutos”51. No entanto, esta imitação fundamental para a
reprodução do vínculo social seria um fenômeno, em larga medida, desenvolvido
de maneira inconsciente. Daí porque Tarde irá descrever o homem social como
um “verdadeiro sonâmbulo”52, como alguém em estado constante de hipnose, já
que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a
ilusão de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da
imitação, Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e
de prestígio. Daí afirmações como: “Foi necessário a fortiori no início de toda
sociedade antiga uma grande autoridade exercida por alguns homens
soberanamente imperiosos e afirmativos. Foi através do terror e da impostura,
como se diz normalmente, que eles reinaram? Não, esta explicação é claramente
insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio”53. A fim de explicar o que
entende por prestígio, por uma certa forma de admiração capaz de sustentar
relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a hipnose. Segundo
ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo, imobilizada
em lembranças de toda natureza, adormecidas mas não mortas” 54 . O
hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força
potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele

50 ESQUIROL, Des étabilssements consacrés aux aliénés em France et des moyens d´améliorer le sort
de ces infortunés apud FOUCAULT, O poder psiquiátrico, pp. 11-12
51 TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
52 idem, p. 84
53 idem, p. 86
54 idem, p. 87
será aquele capaz de colocar-se como sujeito suposto saber, saber a respeito da
verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de aceitar ao dizer:
“Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece querer?” 55. Tal
relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio poderia
nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que o leva mais tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a
imitação é uma espécie de sonambulismo”56.

Sujeitos e objetos

Fiz esta digressão porque gostaria de pedir a vocês para terem tais
debates em mente a fim de entender porque uma discussão sobre a estrutura da
transferência ocupa lugar tão central em um texto de Lacan dedicado ao
funcionamento de uma organização. A transferência é indissociável de uma
reflexão sobre o destino de relações políticas ligadas a autoridade e à força de
sugestão. Não por outra razão, a posição do analista em transferência é
caracterizada por uma relação de poder descrita por Lacan como: “sujeito
suposto saber”.
Mas antes de discutir este ponto, lembremos como como Lacan necessita
afirmar que a existência da transferência produz uma objeção clara à noção de
intersubjetividade. Entre transferência e intersubjetividade há uma relação de
refutação. Esta é uma afirmação importante, já que a noção de intersubjetividade
foi, ao menos até o começo dos anos sessenta, o eixo principal da racionalidade
do processo analítico para Lacan. Dentre tantas afirmações, lembremos de como
Lacan dizia: ““O sujeito começa a análise falando de si sem falar a você, ou
falando a você sem falar de si. Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise
estará terminada”57. Ou seja, neste momento, o final de análise está relacionado à
emergência de uma relação intersubjetiva de reconhecimento entre sujeitos. No
entanto, o eixo da transferência não se encontra em uma relação de
reconhecimento entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto. A transferência não se
realiza em uma relação de reconhecimento entre sujeitos, este é um ponto
central que merece ser salientado. Ela se realiza em uma relação de
reconhecimento entre sujeito e um objeto que causa seu desejo.
Isto explica porque Lacan inicia lembrando que a transferência não é
exatamente uma relação entre dois sujeitos mas entre um sujeito e um sujeito
suposto saber. “O sujeito suposto saber é para nós o pivô a partir do qual se
articula tudo o que é da ordem da transferência”58. Há um Outro, que define o
lugar do analista, caracterizado por ser efeito de uma suposição e por ser suporte
de uma expectativa de saber. Na transferência, o Outro aparece como capaz de
um saber sobre a verdade do desejo do sujeito. Ou seja, a suposição em questão é
crença na associação entre saber e verdade, entre articulação significante, com
sua possibilidade de inscrição simbólica do desejo e de seu objeto, e experiência
de verdade. Esta crença é uma espécie de efeito de estrutura, ou seja, efeito da
capacidade do analista ocupar certos lugares, ouvir a partir de certos lugares
manejar certos sistemas de repetição. O que explica porque Lacan afirma: “Um

55 idem, p. 97
56 idem, p. 97
57 LACAN; E, p. 373
58 LACAN, Autres écrits, p. 248
sujeito não supõe nada, ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa
para um outro significante”59. Neste sentido, o processo analítico poderá ser
descrito como uma dessuposição de saber. Dessuposição esta que não afetará
simplesmente a figura imaginária específica do analista, mas a estrutura
significante que o supõe. O que pode começar a nos auxiliar a entender o que tal
dessuposição pode realmente significar, quais são seus efeitos esperados.
Lacan então recupera sua leitura de O Banquete, de Platão, a fim de falar
da especificidade do processo transferencial. Como vocês sabem, esta havia sido
a estratégia principal do seminário VIII, dedicado exatamente à transferência. De
certa forma, a leitura de Lacan faz de Sócrates o primeiro analista, assim como
faz da resposta de Sócrates ao desejo de Alcebíades a primeira lição de manejo
da transferência que teríamos conhecido.
Notemos, inicialmente, como esta escolha tem uma clara conotação
política. Nos diálogos de Platão, Alcebíades não é apenas aquele que não sabe
como governar a si mesmo. Ele é aquele espera poder governar a pólis, governar
os outros. De certa forma, Sócrates é aquele que tenta mostrar a Alcebíades como
ele não será capaz de governar a cidade enquanto não for capaz de governar a si
mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto não se confunde, ao menos
para Lacan, com uma dominação de si com suas dinâmicas de controle. Na
verdade, podemos mesmo dizer que governar a si mesmo é indissociável da
capacidade de reconhecer: “este resto que como determinando a divisão do
sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como sujeito”60. Se Sócrates
mostra algo a Alcebíades é como não haverá governo de si enquanto ele não for
capaz de confrontar com o objeto que causa seu desejo, mas confronta-lo em um
ponto no qual tal relação ao objeto se constitui em um campo onde o fantasma
decaiu e o próprio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Sócrates afirma que
Alcebíades se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas
demonstrações e louvores não é exatamente ele, Sócrates, que Alcebíades deseja,
mas os agalmatas que ele porta. O que Sócrates faz pois é uma operação de
separação, na medida em que ele tenta mostrar a Alcebíades uma distância entre
I e a, entre o ideal do Eu e o objeto que o sustenta. Ao expor tal distância,
Sócrates produz uma espécie de curto-circuito no sistema de identificações que
sustentava a posição de Alcebíades, já que o ideal do Eu não aparece mais, como
aparecia outrora, como o ponto de transcendência necessário à afirmação da
emancipação em relação aos objetos imaginários. Ele aparece como uma
vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-lo de se confrontar com um objeto
sem lugar que, no entanto, nos causa e nos constitui.
Antes de continuar, lembremos algumas considerações importantes
sobre esta noção de agalma. Há várias maneiras de introduzi-la, mas talvez
poderíamos apreender algo importante de sua dimensão se partirmos de uma
afirmação de Lacan como:

Não sei porque, após ter dado uma conotação tão pejorativa ao fato de
considerar o outro como objeto, nunca se tenha notado que considerá-lo
como um sujeito não é melhor (...) se um objeto equivale a outro, para um

59 Idem, p. 248
60 Idem, p. 249
sujeito a situação é bem pior. Pois um sujeito não vale simplesmente por
um outro – um sujeito, de maneira estrita, é um outro. Um sujeito
estritamente falando é alguém a quem podemos imputar o que? Nada
mais do que ser como nós (...) do que poder entrar em nosso cálculo como
alguém que opera combinações como nós (LACAN, 2001, pp. 178-179).

Não por acaso, esta afirmação está no Seminário VIII. Lacan afirmarque
ser objeto no amor não é, necessariamente, ser submetido à vontade de um
sujeito, mas pode significar simplesmente ser objeto para outro objeto. Ou seja, a
reflexão sobre o amor ( e há de se lembrar que a transferência é uma espécie de
“amor de laboratório”) mostra a Lacan a possibilidade da existência de relações
construídas através da circulação do “que não entra em nosso cálculo como
alguém que opera combinações como nós”. Na citação acima, é claro que a
dimensão comum do “como nós” aparece como espaço de sobreposição
narcísica. Como se não houvesse “como nós” capaz de ser outra coisa que
imposição identitária de sujeição. O que nos levaria a afirmar a sujeição própria à
tentativa de “amar o outro como a si mesmo”. Para Lacan, isto significa que, se
algo como o amor é possível, então não será o amor do que é “como nós”,
pessoas, mas como o que é nosso avesso, objetos. Esta é uma maneira de dizer
que o amor não é apenas abertura à alteridade de uma outra pessoa, que no
fundo seria “como nós”. Ele é abertura a uma alteridade mais radical, pois
abertura àquilo que, em nós, nos destitui da condição de pessoas.
Neste sentido, é compreensível que Lacan descreva tais objetos que
constroem relações amorosas como agalmata. Lendo O banquete, de Platão,
Lacan percebe como Alcebíades apaixona-se pelos agalmata que Sócrates porta.
O termo grego implica a noção de objetos que portam valor e “exprime na
maioria das vezes uma ideia de riqueza, mas especialmente de riqueza nobre”61.
Apaixonar-se pelos agalmata é ser tocado por aquilo que, em Sócrates, age à sua
revelia, longe de sua deliberação consciente, pois se configuram como objetos
dotados da capacidade indutora de operar transferências de valor, como se fosse
o caso de objetos que, por vias próprias, impõem relações de transposição de
afetos e atitudes a sujeitos. Como se, no amor, fossem os objetos que agissem,
não os sujeitos. Apaixonar-se pelos agalmata é, assim, reconhecer que, no amor,
os objetos agem à revelia dos sujeitos, portando relações sociais à sua revelia.
Neste sentido, há de se lembrar que tais objetos a pensados como
agalmata operam incorporações, mas tais incorporações não são representações
personalizadas que determinam totalidades, o que apenas a imagem do corpo
próprio poderia fazer. Por indicar o modo de vínculo ao Outro que deve ser
continuamente negado para que a autonomia do Eu e sua identidade corporal
possam se afirmar, tais objetos só podem incorporar o que se põe na
irredutibilidade de sua retração ao todo, criando relações a respeito das quais o
Eu nada quer saber e que não saberia como integrar. Ninguém entendeu melhor
as consequências da função dos objetos a no desejo lacaniano do que Deleuze e
Guattari ao afirmarem que “o desejo é este conjunto de sínteses passivas
maquinadas pelos objetos parciais, pelos fluxos e pelos corpos, e que funciona
como unidade de produção”62. Objetos parciais produzem sínteses passivas, ou

61GERNET, Louis; Anthropologie de la Grèce antique, Paris: Flammarion, 1982, p. 127


62DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix; L’anti-OEdipe: capitalisme et schizophrénie, Paris: Minuit,
1971, p. 34. Um bom exemplo de como Lacan pensa o caráter conflitual dos vínculos produzidos
seja, que não são a expressão da atividade de uma subjetividade constituinte com
suas ilusões de autonomia. No entanto, a proliferação de tais sínteses passivas
nos mostra como “estamos na era dos objetos parciais, dos tijolos e dos restos
[metáfora usada à exaustão por Lacan a fim de falar dos objetos a]. Não
acreditamos mais nesses falsos fragmentos que, tais como pedaços de uma
estátua antiga, esperam para serem completados e recolados para comporem
uma unidade que seria também unidade de origem”63. O que nos causa no amor
não se cola como pedaços de uma estátua antiga.

Destituição subjetiva

Aqui já podemos entender um pouco melhor o que a operação de dessuposição


do saber no interior da transferência pode significar. Se o saber na transferência
é saber suposto sobre meu desejo e o que lhe causa, o processo analítico visa
extrair o objeto que causa meu desejo das sendas do saber. Sócrates diz nada
saber a respeito das coisas do amor, o que não significa que ele não saiba o que
fazer com tais coisas. Significará apenas que tal fazer não se orienta como uma
deliberação, não funda um saber partilhado que se inscreve como lugar dentro
de uma estrutura simbólica. Ele é uma forma de abertura que pressupõe uma
destituição de domínio, uma forma de reconhecimento de uma causalidade
exterior a respeito da qual não faz mais sentido procurarmos nos defender.
Lacan fala então uma operação de “afrontar a verdade”, distinta da operação de
exercício de um saber.
Ele mesmo reconhece que isto parece significar a impossibilidade de
constituir qualquer forma de laço social: “A destituição subjetiva inscrita no
ticket de entrada ... não seria provocar o horror, a indignação, o pânico, ou
mesmo o atentado, em todo caso dar o pretexto à objeção de princípio?” 64. Pois o
que pode ser um laço constituído a partir de uma liquidação da transferência que
parece impossibilitar toda identificação simbólica, que não pode mais mobilizar
produção fantasmática alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:

Nesta viragem na qual o sujeito vê vacilar a segurança fornecida pelo


fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real, o que se
percebe é que a tomada do desejo não é outra coisa que a de um desser.
Neste desser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber, no que o
psicanalista por vir se vota ao agalma da essência do desejo, prestes a
pagá-lo por se reduzir, ele próprio e seu nome, ao significante qualquer65.

É desta forma que Lacan descreve o processo de término da transferência.


Mesmo o processo de identificação a um Ideal do Eu é visto como inscrito no
interior da segurança que o fantasma fornece por ser uma janela para o real, ou
seja, por enquadrar o real em uma certa distância e operação. Quando tal
segurança vacila, o desejo se revela como não sendo outra coisa que um desser.

pelos objetos a é seu comentário a respeito do caso do professor com fantasmas de plagianismo,
de Ernst Kris. Para uma interpretação do caso, ver SAFATLE, Vladimir; “Aquele que diz não” In:
FREUD, Sigmund; A negação, São paulo: Cosac e Naif, 2014, pp. 50-53
63 Idem, p. 50
64 Idem, p. 252
65 Idem, p. 254
Sendo o desejo o ser do sujeito, este ser se revela aqui um desser. Não
exatamente alguma forma de reinscrição do sujeito na segurança ontológica de
um ser pensado como normatividade, o que seria o caso se operássemos em
chave naturalista ou ontológica em relação ao desejo. Esta viragem do ser ao
desser é própria da dessuposição do saber do analista, desta extração que
permite ao analisando, o psicanalista por vir, apreender como seu desejo é
movido por uma causalidade externa, que nunca fundará uma autonomia. Neste
sentido, o reconhecimento de si neste objeto é feito de forma tal a reduzir o
nome do sujeito a um significante qualquer, ou seja, seu nome, aquilo que
estabelece relações de filiação e transmissão, aquilo que porta a marca de sua
inscrição no horizonte de uma constelação familiar decai à condição de
significante qualquer, isto no sentido de uma inscrição meramente contingente,
sem lugar no interior de uma cadeia de necessidades. Assim, a contingência se
revela no interior de um desejo que abre uma clareira para fora de toda
segurança ontológica. No entanto, talvez não esteja claro para alguns de vocês
porque este processo não seria apenas um processo depressivo. O que faz dele
um processo, ao contrário, de afirmação da liberdade e da emancipação? E como
será possível constituir laços sociais após uma experiência desta natureza. Esta
são questões que Lacan tentará responder na sequência de seu texto.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa leitura da Proposição de 9


de outubro de 1967 sobre o analista da Escola. Em nosso último encontro, eu
insistira na importância de perceber que um dos textos fundamentais de Lacan a
respeito da política pressuposta pelo advento da Escola Freudiana de Psicanálise
estruturava-se a partir de uma reflexão sobre a transferência. Pois se é verdade
que a psicanálise pensa os processos de constituição de laços sociais a partir de
dinâmicas de identificação, se é fato que não é possível haver laço social sem
alguma forma de identificação, já que a identificação visa explicar a dimensão
produtiva do poder, ou seja, a maneira com que o poder produz a vida psíquica,
mobiliza afetos e demandas de amor, constituindo os sujeitos aos quais ele se
relaciona, então será a tematização da transferência que pode nos abrir às portas
à compreensão dos modos de abandono da dominação. Neste sentido, há uma
reflexão sobre processos de emancipação que nasce como saldo necessário da
transferência. Levando em conta o exercício do poder através das identificações,
toda a emancipação possível terá a forma de uma liquidação da transferência,
com suas questões ligadas ao destino da experiência do saber, à destituição
subjetiva e à dejeção do analista.
Pois há de se fazer uma distinção aqui. As identificações mostram como as
relações sociais são, necessariamente, relações de poder e repetição. Ao
identificar-se com algo ou alguém, assumo o desenvolvimento implícito próprio
àquilo com o qual me identifiquei, as estruturas da minha vida psíquica e seus
desenvolvimentos serão produzidos por aquilo com o qual me identifiquei.
Desde o estádio do espelho, Lacan insiste que se identificar com uma imagem é
internalizar o princípio de desenvolvimento que ela contrai, é constituir-se no
interior da história que ela representa. Ou seja, toda identificação é um exercício
de poder. No entanto, nem todas as relações de poder são relações de
dominação. Pois podemos lembrar como a sustentação dos processos
identificatórios se dá, em última instância, por aquilo que nem eu nem o Outro
domina. Há algo que circula nos processos identificatórios que não pode ser
compreendido como exercício de uma dominação. Pois tais processos se
produzem apropriando-se de algo que ultrapassa toda vontade de sujeitos e que
Lacan tematiza através de sua teoria dos objetos a (que, segundo o próprio
Lacan, seria o único conceito que ele realmente teria inventado), algo cujo
circuito próprio sempre insiste no interior das relações de poder e que faz com
que tais relações sejam, no fundo, instáveis, sempre prontas a se inverterem, a se
derivarem. Insistamos em um ponto fundamental: uma relação de dominação é a
expressão da submissão da minha vontade à vontade do Outro, mas há aquilo
que permite ao poder circular e que não é nem minha vontade, nem a vontade do
Outro. O poder circula expropriando algo que pode depô-lo.
Tiremos, por exemplo, as consequências de uma afirmação como:

Assim funciona o i(a) do qual o eu e seu narcisismo imaginam fazer o


casulo deste objeto a que faz a miséria do sujeito. Isto porque o (a), causa
do desejo, por estar a mercê do Outro, angustia o sujeito na ocasião,
vestindo-se contrafobicamente da autonomia do eu, como faz o
caranguejo ermitão de toda carapaça66.

Lacan está a dizer que o eu ideal, que sustenta processos identificatórios


responsáveis pela constituição imaginária do eu através de relações narcísicas,
sustenta-se por apoiar-se em objetos a, por tentar retirar a angústia que eles
produzem (lembremos, em Lacan, a angústia tem um objeto) fortalecendo o
discurso da autonomia do eu. Uma autonomia que aparece como discurso de
defesa contra a fobia resultante da descoberta de que aquilo que nos constitui
em nossa identidade, as imagens que nos constituem, só são desejantes na
medida em que elas trazem algo que pode dissolve-las. O que sustenta a
reprodução material da vida psíquica, o que permite o exercício constituinte das
relações de poder é algo que, ao mesmo tempo, pode dissolver as relações de
poder. E se o poder consegue controlar a circulação destes objetos que nos
descentram, é porque ele sabe que o reconhecimento de si nestes objetos nos
angustia. O poder sabe que a liberdade nos angustia, ao mesmo tempo que ela
nos atrai. Se sujeitos aceitam a servidão é porque eles temem a angústia que a
liberdade produz e um dos exercícios fundamentais que a análise pode fornecer
ao exercício da liberdade é levar o sujeito a depor suas defesas contrafóbicas.
É esta instabilidade das relações de poder que a transferência permite
circular, é desta instabilidade que ela é feita e desfeita. E insistiria que este
movimento duplo é fundamental. Compreender a transferência é compreender
como ela é feita e desfeita, é compreender como sua liquidação é a abertura do
sujeito àquilo que poderíamos chamar de relações de poder sem dominação. Daí
uma questão política central para Lacan, a saber, a política exige instituições nas
quais a liquidação da transferência possa ser reconhecida. A transferência não é
um fenômeno existente apenas em situações analíticas, ela existe em todo lugar
onde há poder e identificação. Por isto, seu destino pode nos dizer algo de
fundamental a respeito dos processos de emancipação.
Neste sentido, a função da Escola era basicamente reconhecer sujeitos
que passaram pela liquidação da transferência, que por isto deixaram para trás
uma forma de sujeição que se expressava não apenas na suposição de um saber
ao Outro, mas na suposição de um saber que me constituiria, que definiria os
modos de minha relação a mim mesmo, um saber que produziria meus modos de
controle, de autonomia, de deliberação. Por esta razão, este reconhecimento não
era apenas a garantia para a constituição de vínculos sociais não mais
assombrados por relações de sujeição. Era a possibilidade de emergência de
vínculos capazes de transformar sujeitos.
Afinal, Lacan compreendia perfeitamente que, se alguém entra em análise,
é porque há uma suposição de saber sobre a verdade do seu desejo. Esta
suposição de saber não é apenas uma curiosidade cognitiva, um querer se
conhecer melhor, mas é uma expectativa de configuração das estrutura da
prática e do cuidado a partir de um saber sobre si mesmo. No entanto, este saber
suposto será destituído, não pela simples constatação da ignorância do analista,
mas pela emergência da circulação de um objeto que sustentava a relação e que
esteve, até então velado. Isto nos explica porque, no discurso do analista, é o
objeto que ocupa o lugar de agente. Neste momento, revela-se ao sujeito como

66 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 262


sua ligação à suposição de saber era, na verdade, vínculo a um objeto que lhe
causava, que lhe retirava de si.
Como lembrei a vocês na aula passada, um exemplo disto é dado pela
leitura lacaniana do diálogo entre Alcebíades e Sócrates em O banquete.
Lembremos mais uma vez o que foi dito. De certa forma, a leitura de Lacan faz de
Sócrates o primeiro analista, assim como faz da resposta de Sócrates ao desejo
de Alcebíades a primeira lição de manejo da transferência que teríamos
conhecido. Tal escolha tem uma clara conotação política. Nos diálogos de Platão,
Alcebíades não é apenas aquele que não sabe como governar a si mesmo por ser
descontrolado, servo de seu próprio desejo. Ele é aquele que espera poder
governar a pólis, governar os outros. De certa forma, Sócrates é aquele que tenta
mostrar a Alcebíades como ele não será capaz de governar a cidade enquanto
não for capaz de governar a si mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto
não se confunde, ao menos para Lacan, com uma dominação de si com suas
dinâmicas de controle. Na verdade, podemos mesmo dizer que governar a si
mesmo é indissociável da capacidade de reconhecer: “este resto que como
determinando a divisão do sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como
sujeito”67. Se Sócrates mostra algo a Alcebíades é como não haverá governo de si
enquanto ele não for capaz de se confrontar com o objeto que causa seu desejo,
mas confronta-lo em um ponto no qual tal relação ao objeto se constitui em um
espaço onde o fantasma decaiu e o próprio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Sócrates afirma que
Alcebíades se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas
demonstrações e louvores não é exatamente ele, Sócrates, que Alcebíades deseja,
mas os agalmatas que ele porta. O que Sócrates faz pois é uma operação de
separação, na medida em que ele tenta mostrar a Alcebíades uma distância entre
I e a, entre o ideal do Eu e o objeto que o sustenta. Ao expor tal distância,
Sócrates produz uma espécie de curto-circuito no sistema de identificações que
sustentava a posição de Alcebíades, já que o ideal do Eu não aparece mais, como
aparecia outrora, como o ponto de transcendência necessário à afirmação da
emancipação em relação aos objetos imaginários. Ele aparece como uma
vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-lo de se confrontar com um objeto
sem lugar que, no entanto, nos causa, age em nós e nos constitui.
Por isto que eu insistira que, se o saber na transferência é saber suposto
sobre meu desejo e o que lhe causa, o processo analítico visa extrair o objeto que
causa meu desejo das sendas do saber. Sócrates diz nada saber a respeito das
coisas do amor, o que não significa que ele não saiba o que fazer com tais coisas.
Significará apenas que tal fazer não se orienta como uma deliberação, não funda
um saber partilhado que se inscreve como lugar dentro de uma estrutura
simbólica. Ele é uma forma de abertura que pressupõe uma destituição de
domínio, uma forma de reconhecimento de uma causalidade exterior a respeito
da qual não faz mais sentido procurarmos nos defender. Lacan fala então uma
operação de “afrontar a verdade”, distinta da operação de exercício de um saber.
Aqui, esta distinção entre saber e verdade é fundamental.
Ele mesmo reconhece que isto parece significar a impossibilidade de
constituir qualquer forma de laço social: “A destituição subjetiva inscrita no
ticket de entrada ... não seria provocar o horror, a indignação, o pânico, ou

67 Idem, p. 249
mesmo o atentado, em todo caso dar o pretexto à objeção de princípio?”68. Pois o
que pode ser um laço constituído a partir de uma liquidação da transferência que
parece impossibilitar toda identificação simbólica, que não pode mais mobilizar
produção fantasmática alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:

Nesta viragem na qual o sujeito vê vacilar a segurança fornecida pelo


fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real, o que se
percebe é que a tomada do desejo não é outra coisa que a de um desser.
Neste desser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber, no que o
psicanalista por vir se vota ao agalma da essência do desejo, prestes a
pagá-lo por se reduzir, ele próprio e seu nome, ao significante qualquer69.

É desta forma que Lacan descreve o processo de término da transferência.


Notemos inicialmente como mesmo o processo de identificação a um Ideal do Eu
é visto como inscrito no interior da segurança que o fantasma fornece por ser
uma janela para o real, ou seja, por enquadrar o real em uma certa distância e
operação. Quando tal segurança vacila, o desejo se revela como não sendo outra
coisa que um desser. Sendo o desejo o ser do sujeito, este ser se revela aqui um
desser. Não exatamente alguma forma de reinscrição do sujeito na segurança
ontológica de um ser pensado como normatividade, como necessidade, mas a
deriva de uma desapropriação. O desejo é a deriva de uma desapropriação. Esta
viragem do ser ao desser é própria da dessuposição do saber do analista. Ou seja,
na análise, o analista passa por um desser, o que pressupõe uma angústia e
dejeção, e o analisando passa por uma destituição subjetiva, o que pressupõe
certo desamparo.
Esta destituição está descrita através do processo de reconhecimento de
si não em outro sujeito, mas em um objeto. Tal reconhecimento é feito de forma
tal a reduzir o nome do sujeito a um significante qualquer, ou seja, seu nome,
aquilo que estabelece relações de filiação e transmissão, aquilo que porta a
marca de sua inscrição no horizonte de uma constelação familiar decai à
condição de significante qualquer, isto no sentido de uma inscrição meramente
contingente, sem lugar no interior de uma cadeia de necessidades. Assim, a
contingência se revela no interior de um desejo que abre uma clareira para fora
de toda segurança ontológica.
Mas, na aula passada, havíamos ficado com uma questão: porque este
processo não seria apenas um processo depressivo? O que faz dele um processo,
ao contrário, de afirmação da liberdade e da emancipação? E como será possível
constituir laços sociais após uma experiência desta natureza?

Transferência e emancipação

Para responder tais questões, comecemos por nos perguntar sobre como se
liquida um processo transferencial. É claro que esta pergunta só poderá ser
respondida em um nível genérico, já que os caminhos de uma análise são sempre
singulares. O que não significa que tal genericidade seja desprovida de
importância e interesse, que ela não revele traços de estrutura. Diremos então

68 Idem, p. 252
69 Idem, p. 254
que a transferência é liquidada quando ocorre aquilo que Lacan chama de “ato
analítico”.
Veremos de forma mais detalhada a teoria lacaniana do ato no próximo
módulo. Por enquanto, insistamos em um ponto: um ato analítico sempre produz
uma destituição subjetiva. Uma analisanda ou um analisando pode agir de três
formas, a saber, produzindo um acting out, uma passagem ao ato ou um ato
efetivo. Ou seja, é possível agir produzindo um acting out, agindo de maneira
imaginária, respondendo a necessidades de transformação através de ações que
não tem a força de modificação da estruturas, como o paciente de Ernst Kris que,
ao invés de afirmar a oralidade desmedida do objeto que causa seu desejo e que
o destitui de todo lugar simbólico possível como autor, contenta-se em comer
miolos frescos. Nesse nível, a ação se resume à encenação imaginária de uma
demanda ao Outro. Encenação que simplesmente deixará intocada a estrutura
que provocou o sofrimento que gerou a ação. Mesmo comendo miolos frescos, o
paciente de Kris continuará em sua paralisia.
Por outro lado, pode-se agir de forma tal a suspender todo processo
possível, como em uma espécie de negação sem sequencia. Age-se então por
passagem ao ato como suas formas não-dialéticas de negação, de destruição sem
produtividade. Ao lado de uma negatividade, ou seja, de uma negação que é
atividade e processo, há sempre uma negação bruta, negação sem atividade,
como as tentativas de suicídio ou as passagens em direção às formas de auto-
destruição bruta.
Mas pode-se ainda afirmar o caráter sem lugar que o reconhecimento de
si no objeto que causa seu desejo produz. Ou seja, pode-se parar de agir e
permitir que objetos ajam, criando com isto outra forma de deliberação e prática.
O que implica compreender que não é o sujeito suposto saber aquele que detém
a prática sobre o que causa meu desejo. Todo verdadeiro ato é sempre uma
dessuposição de saber e só assim ele pode ser uma reconfiguração do poder.
De fato, não há ato possível que não seja uma dessuposição de saber. Mas,
e este é um ponto decisivo, isto não implica simplesmente deslocar o saber
anteriormente pressuposto no Outro para um saber agora presente na
consciência do sujeito. Não significa reapropriar-se do saber. Pois este
deslocamento seria apenas a reiteração de um mesmo regime de saber e de ação,
só que agora disponível à consciência. De nada adiante louvar a prática se essa
prática ainda é dependente da mesma gramática de saber que havia nos
sujeitado. Pouco importa quem realmente age, quando sempre se age a partir da
mesma gramática. Em todos os casos, é a gramática que age, são os sistemas de
regra e existência que agem. Uma prática emancipada não é o resultado da
transferência de uma saber que supunhamos no outro e que agora nos o
reapropriamos. A emancipação não é uma transferência de saber que nos
permitiria recuperar a enunciação do saber para nós, melhor deliberar
conscientemente. Como se tivéssemos agora a posse de uma saber nos foi
negado. A emancipação é, antes, uma deposição do saber. Notemos o sentido de
uma afirmação decisiva como:
Assim o ser do desejo reencontra o ser do saber para renascer nisto em
que eles se juntam em uma tira feita de um lado só no qual se inscreve
uma falta só, esta que sustenta o agalma70.

Desejo e saber se encontram como dois lados de uma banda de Moebius se


encontram. Eles passam um no outro e ao passar um no outro, passagem que se
dá apenas à condição de assumirem uma torção, eles fazem desta passagem a
inscrição de uma falta, que não é uma falta simplesmente ligada à incompletude
ou à subjetivação da castração, mas que é emergência de um objeto que não se
reduz a ser aquilo que uma cadeia significante pode representar. Quando uma
saber do desejo é possível, é só através de uma torção que, do ponto de vista da
configuração atual do saber, é uma falta.
Mas insistamos em um ponto fundamental. Se algo aparece em falta, é
porque eu não o tenho. Se a junção entre desejo e saber inscreve uma falta é
porque ela aponta para algo que nunca posso ter, que nunca se colocará sob o
signo da minha posse, e esta é exatamente uma das características principais dos
agalmata: os sujeitos não os tem, eles os portam, o que é algo totalmente
diferente. Esta é uma maneira de dizer que a dessuposição de saber que é
condição para a liquidação da transferência tem algo de assunção de uma outra
fala, de uma outra relação à linguagem, a uma linguagem que não apareça
exatamente como minha. Daí afirmações como:

Tudo o que é do inconsciente se desdobra apenas a partir dos efeitos da


linguagem. É algo que se diz, sem que o sujeito aí se represente, nem que
ele aí se diga – nem que ele saiba o que ele diz71.

Mais do que ser estruturado como uma linguagem, o inconsciente é uma


fala que depõe a representação do sujeito, que depõe seu próprio dizer de si. Ele
é a emergência de uma linguagem que não aparece mais como minha. Não
apenas porque suas enunciações estão submetidas ao involuntário, não são
comandadas por mim, mas principalmente porque esta não é mais a linguagem
do sentido. Ela é a linguagem de um acontecimento da verdade.

A religião do sentido

É claro que esta noção de sentido com a qual Lacan trabalha tem sua
especificidade. Afinal, o que pode ser uma linguagem que não é uma linguagem
do sentido, mas uma linguagem de um acontecimento da verdade? Dentre as
várias formas de discutir este problema complexo, insistamos em uma que expõe
a dimensão política deste debate. Lembremos quando Lacan afirma, em um texto
no qual é questão do ato político de dissolução de uma instituição que ele
próprio criou:

A Internacional, já que este é seu nome, se reduz ao sintoma que ela é


daquilo que Freud dela esperava. Mas não é ela que pesa. É a Igreja, a
verdadeira, que sustenta o marxismo por lhe fornecer sangue novo... um

70 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 254


71 Idem, p. 334
sentido renovado. Por que não a psicanálise, quando ela se volta ao
sentido? Não digo isto por uma persiflagem vã. A estabilidade da religião
vem do fato que o sentido é sempre religioso72.

Esta é a maneira lacaniana de dizer que o verdadeiro problema político


com o qual devemos lidar é a recrudescência da dimensão teológico-política do
poder. Sendo a religião uma forma de sustentar vínculos sociais através da
redução da dimensão política das demandas à demanda de amparo, de
constituição de autoridade através das figuras do poder pastoral, afirmar que o
sentido é sempre religioso significa dizer que a psicanálise deve ser capaz de
fazer emergir o que não se ampara por não ser pensável no interior de relações
de necessidade, de confirmação do originário, do destino teleológico, da unidade
substancial da redenção. Lacan não teme em falar aqui da religião, de um certo
marxismo e da burocratização dos vínculos sociais através de uma Internacional
(no caso, a IPA) que se sustenta apenas por seu medo do ato analítico.
Estes casos demonstram que, para Lacan, as operações de produção de
sentido são produções de relações de necessidade estruturadas a partir de
dinâmicas teleológicas no interior das quais apenas se desdobra a expressão de
uma origem em seu processo de realização destinal. Sentido é uma relação de
necessidade garantida por um fundamento situado na origem. O sentido
reinstaura o que foi perdido, ele cura fazendo-nos retornar a um estado original.
Neste contexto, a principal contraposição é entre sentido e acontecimento. Uma
contraposição a respeito da qual Lacan insiste em suas consequências políticas.
Se Lacan critica o marxismo aqui é por compreender sua teoria da revolução
dependente de uma escatologia histórica na qual o proletariado aparece como
sujeito-objeto enfim reconciliado. Nesta escatologia, todo acontecimento é
anulado diante do peso de um tempo que não é outra coisa que a projeção de
uma escatologia do progresso. Esta não é a única leitura que podemos fazer da
teoria da revolução em Marx.
Mas diante da crítica da religião, da política utópica e da ascensão da
burocracia, o que a psicanálise poderia oferecer? Neste sentido, se voltarmos a
pergunta sobre como sabemos que não estamos simplesmente diante da
estilização de uma posição depressiva, deveremos insistir na relação entre ato e
gozo. Pois o que leva a um ato desta natureza, um ato para além do sentido, é a
deslocalização e a despersonalização que a experiência de gozo necessariamente
produz. Não poderia deixar de haver uma relação entre o ato e a tentativa de
fazer do impossível do gozo a figura de uma forma de relação por vir. Por isto, na
transferência não seria possível ao sujeito não ser impulsionado pela emergência
de seu próprio gozo para além das formas de inscrição simbólica do desejo. É
exatamente isto que permite a liquidação da transferência, sua não consolidação
em uma simples relação de sugestão e dependência.
Insistamos neste ponto: há uma emergência do caráter sem lugar do gozo
no interior da transferência, como se vê por exemplo no gozo oral do paciente de
Ernst Kris, assombrado pelo seu desejo de plágio e sua decomposição das ilusões
de ser autor, ou no gozo do homem dos ratos diante da descrição das sevícias
chinesas. A transferência, em sua suposição de saber, deve permitir a emergência
de tal gozo, por mais que ele seja angustiante e desamparador. Mas ela deve

72 Idem, p. 328
permitir sua emergência não para assegurar o sujeito de que, afinal, seu gozo não
é assim tão ameaçador, não para mostrar que há um lugar para ele na
administração possível da vida tal como ela se dá na situação atual. Na verdade, a
psicanálise tenta extrair deste gozo uma política, tenta mostrar como o caráter
desamparador deste gozo traz em si uma verdade política, a saber, a verdade de
que as condições de reprodução material da vida às quais o sujeito se submeteu
só podem se exercer porque, deste gozo, ele não pode nada saber, com ele não é
possível nada fazer. Ou seja, o caráter sem inscrição, a natureza real deste gozo
faz da transferência um processo que é fadado a sua própria auto-dissolução, isto
se o sujeito for capaz de assumir, de produzir um ato que é a forma mesma da
não-inscrição. Neste sentido, podemos entender melhor a importância de uma
afirmação como: “o gozo é o que a verdade encontra ao resistir ao saber”73.
Se ele é o que a verdade encontra ao resistir ao saber, então a deposição
do sujeito suposto saber só pode ser feito em seu nome.

O passe

Mas deste gozo há ainda uma palavra que circula e se produz, há uma
singularidade que deve encontrar lugar, e esta era a função do passe. A análise
procura fazer emergir este gozo a respeito do qual o sujeito nada quer saber
porque ela acredita que daí sairá uma palavra. Por isto, a Escola deveria ser o
lugar no qual a liquidação da transferência poderia ser “comunicada”: ”esta
experiência não pode ser eludida, seus resultados devem ser comunicados”, dirá
Lacan74. Se os resultados devem ser comunicados, é porque o desvelamento do
caráter sem-lugar do gozo que impulsiona a dejeção do analista e de seu saber
suposto não leva a uma posição de simples isolamento. Dirá Lacan:

O que este passo, de ter sido feito só (seul), tem a ver com o único (le seul)
que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiaria eu à experiência analítica,
ou seja, ao que me vem de quem se virou só? Acreditaria eu ser o único a
te-la, então para quem eu falaria? 75

Neste contexto, Lacan fala de seu ato de fundação da EFP, mas é claro que se
trata aqui também da natureza mesma do ato analítico. Ato que se faz só, mas
que pode mesmo assim constituir um laço pressuposto nesta exigência de
“comunicação”. E há de se sentir esta tensão extrema entre gozo e comunicação,
uma tensão que talvez não possa ser de fato resolvida, que só poderia terminar
na dissolução do espaço de comunicação, o que é outra maneira de compreender
a questão da dissolução da Escola. Mas a dissolução do espaço de comunicação
será, de forma paradoxal, a última aposta na possibilidade institucional da
política, como veremos em outra aula.
Lembremos aqui do que estava em jogo no dispositivo do passe. Segundo
o procedimento do passe, um final de análise permite ao analisando “contar sua
análise” a três passantes que irão então passá-la a um júri. A primeira questão
relativa a este procedimento encontra-se na noção de “contar uma análise”. Em
outros momentos, Lacan falará de um ato que possa ser “legível” por todos. Mas

73 Idem, p. 358
74 Idem, p. 255
75 Idem, p. 263
que tipo de fala e de legibilidade é esta? O que se conta aqui? E para que forma de
espaço comum? Pois percebam a tensão real do problema. Há algo de
transmissível no final de uma análise, mas como dirá Lacan: “como fazer
reconhecer uma estatuto legal a uma experiência da qual não se sabe sequer
responder?”76. Esta é uma maneira de se perguntar: como fazer reconhecer o que
só se inscreve como falta, como fazer reconhecer um gozo do qual a linguagem
não quer e parece não pode nada saber? Lacan aposta em uma transmissão
possível chegando mesmo a descrever aquilo que é integralmente transmissível,
a saber, um matema, termo inspirado nos mitemas de Lévi-Strauss: unidades
mínimas de articulação formal de relações pressupostas pelos mitos. Ou seja, a
fala sobre a análise deveria ser a constituição de um matema capaz de passar a
dois níveis de transmissão. O ato analítico parece se realizar na constituição de
um matema.
De fato, só há comunicação se podemos falar em dois níveis de
transmissão. Se conto algo para alguém e esta mesma pessoa não pode contar
isto para uma terceira pessoa, não há comunicação alguma, pois não há garantia
alguma de que o enunciado inicial foi, de fato, entendido. A comunicação
demonstra que o sentido é a perpetuação da referência para além da modificação
de seus enunciadores.
No entanto, a inscrição do ato em uma transmissão não deve ser sua
submissão ao sentido, e neste ponto encontra-se a complexidade da exigência.
Podemos mesmo nos perguntar se isto não invalidaria necessariamente toda e
qualquer comunicação. Lacan acredita que esta irredutibilidade do ato ao
sentido é a única forma de garantir que não voltaremos a um “efeito de grupo”. A
associação entre “efeito de grupo” e “sentido” não poderia ser diferente. O que
funda o grupo é a possibilidade da unidade da referência, é a partilha dos modos
de interpretação de enunciados e práticas. O grupo é a expressão máxima da
crença em uma gramática comum e a uma referência que não se transforma a
partir da modificação dos seus enunciadores. Por isto, podemos de fato nos
perguntar se a experiência do passe poderia ter outro destino que o fracasso.
Entendamos o que leva Lacan a esta aposta que talvez não possa ser paga.
O apelo lacaniano à legibilidade e à comunicação neste momento é sua forma de
dizer: há algo no ato que tem força de implicação, ele dessupõe o saber mas não
abole a relação social. Daí esta estrutura do passe. Para não ser apenas a
reiteração de uma posição depressiva, a transferência deve levar a um
reconhecimento. No entanto, demandas de reconhecimento tem como condição
de existência o apelo à universalidade, mesmo que seja uma universalidade não-
toda. Pois elas tem a característica de serem genéricas, elas exigem validade para
além de todo e qualquer contexto. Não há sentido algum em exigir ser
reconhecido no interior de um contexto específico, no interior de um grupo
limitado. Mas este reconhecimento genérico talvez não seja objeto possível de
uma comunicação.

76 Idem, p. 262
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 5

Começamos discutindo a função formadora das identificações no campo político.


Vimos como Lacan, em certo momento, mobiliza as identificações simbólicas
contra as identificações imaginárias a fim de impedir a generalização de
representações narcísicas de autoridade, com todo seu cortejo de constituição
identitária e imunitária. Vimos posteriormente como os laços sociais seriam
pensados a partir não mais da assunção do lugar vazio, mas da circulação de
objetos que causam nosso desejo, nos destituindo de nosso lugar de sujeitos
agentes, abrindo-nos a um tipo de agência que Lacan procura tematizar através
das discussões sobre destituição subjetiva.
Nesta aula, gostaria de contextualizar melhor o debate lacaniano no
interior das discussões referentes à filosofia política. Para tanto, gostaria de
debater dois autores cuja referência ao pensamento lacaniano é evidente e
importante: Claude Lefort e Ernesto Laclau. Elas serão importantes para
contextualizarmos nosso debate no interior de questões referentes à teoria da
democracia.
Começemos por Lefort. Partindo, entre outros, de certas elaborações de
Jacques Lacan a respeito do simbólico, do real e do imaginário 77, ou seja,
inscrevendo suas discussões nas sendas de um debate entre filosofia política e
psicanálise, Lefort afirmará que a revolução política propriamente moderna
encontra-se no “fenômeno de desincorporação do poder e de desincorporação
do direito”78 representado pela desaparição do “corpo do rei” (ou, se quisermos,
de sua representação teológico-familiar) como encarnação da unidade
imaginária da sociedade e de seus ideais de totalidade orgânica encarnados em
uma autoridade soberana. “Essa sociedade revela-se doravante impossível de ser
circunscrita, pelo fato de que não poderia se relacionar consigo mesma em todos
os seus elementos e representar-se como um só corpo, uma vez que foi privada
da mediação de um poder incorporado”79. Tal desincorporação, tal “dissolução
da corporeidade do social” - que colocaria em cheque inclusive todas as
representações orgânicas do Estado como expressão da unidade ontológica da
vontade geral e todos os recursos à existência de um povo-Uno que têm na
metáfora hobbesiana do Leviatã seu momento decisivo - permitiria a abertura à
potência de “indeterminação do social” que nos forneceria um forte princípio de
distinção entre a democracia e todas as formas variadas de totalitarismo. Pois a
democracia seria este governo que impede o preenchimento do exercício
simbólico do poder por construções imaginárias de completude. Daí porque
“Estado, Sociedade, Povo, Nação são, na democracia, entidades indefiníveis”80. Ou
seja, a substancialização identitária de tais identidades (denunciada pelo uso de
maiúsculas ) é estranha à indeterminação própria a um governo cujo motor
consiste em colocar continuamente em questão aquilo que procura esconder a

77 Para a relação entre Lefort e Lacan, ver FLYNN, Bernard; The philosophy of Claude Lefort:
interpreting the political, Northwestern University Press, 2005
78 LEFORT, Claude; A invenção democrática: os limites do totalitarismo, São Paulo: Brasiliense,

1983
79 Idem, p. 54
80 Idem, p. 68
natureza profundamente antagônica da vida social. A democracia seria, assim
“uma sociedade sem determinação positiva, irrepresentável na figura de uma
comunidade”81 que, por funcionar a partir da institucionalização do conflito,
precisaria ser capaz de suportar uma “quase-dissolução das relações sociais” nos
momentos de manifestação da vontade popular.
Servindo-se da ideia lacaniana do universo simbólico como composto de
significantes puros que são a expressão da ausência de denotação exterior e, por
isto, reenviam a estabilização do processo de produção de sentido a significantes
contíguos no interior de uma cadeia, até que sejam basteados por um
significante-mestre que é expressão de um lugar vazio82, Lefort afirmará que a
democracia caracteriza-se por conservar o lugar simbólico do poder como um
lugar vazio. Desta forma:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder não é de ninguém83.

O vazio simbólico do poder permite à autoridade política não se transformar em


uma parte que procura encarnar o todo, que vale no lugar do todo, como a
cabeça que sintetiza todas as funções do corpo social. Processo fetichista de
incorporação que constitui retroativamente aquilo que a parte deveria
representar. É tal lugar vazio que demonstrará como a democracia seria o
governo no qual “não há poder ligado a um corpo” 84 , no qual nos
confrontaríamos com a “indeterminação que nasce da perda da substância do
corpo político”85.
Esta função central da indeterminação como característica da democracia
é um elemento fundamental do pensamento de Lefort. Mas podemos nos
perguntar sobre as formas que tal indeterminação toma em seu pensamento e se
ela poderia ser conjugada de outra maneira. Servindo-se da ideia lacaniana do
universo simbólico como composto de significantes puros que são a expressão
da ausência de denotação exterior e, por isto, reenviam a estabilização do
processo de produção de sentido a significantes contíguos no interior de uma
cadeia, até que sejam basteados por um significante-mestre que é expressão de
um lugar vazio86, Lefort afirmará que a democracia caracteriza-se por conservar

81 Idem, Essais sur le politique, op. cit., p. 292


82 Lembremos, por exemplo, da definição lacaniana do Falo, significante-mestre, como:
“significante do ponto onde o significante falta/fracassa [seguindo aqui a duplicidade de sentido
do termo manque]” (LACAN, Jacques; Le seminaire - vol. VIII, Paris: Seuil, 2001, p. 277)
83 Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.
84 Idem; p. 118
85 Idem, p. 121
86 Lembremos, por exemplo, da definição lacaniana do Falo, significante-mestre, como:

“significante do ponto onde o significante falta/fracassa [seguindo aqui a duplicidade de sentido


do termo manque]” (LACAN, Jacques; Le seminaire - vol. VIII, Paris: Seuil, 2001, p. 277)
o lugar simbólico do poder como um lugar vazio. É este lugar vazio que inscreve
a natureza indeterminada da sociedade democrática. Desta forma:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder não é de ninguém87.

O vazio simbólico do poder permitiria à autoridade política não se transformar


em uma parte que procura encarnar o todo, que vale no lugar do todo, como a
cabeça que sintetiza todas as funções do corpo social. Processo fetichista de
incorporação que constitui retroativamente aquilo que a parte deveria
representar. É tal lugar vazio que demonstrará como a democracia seria o
governo no qual “não há poder ligado a um corpo” 88 , no qual nos
confrontaríamos com a “indeterminação que nasce da perda da substância do
corpo político”89.
Difícil não perceber o quanto este esquema depende de uma certa
apropriação de esquemas conceituais mobilizados por Lacan dentro dos
processos de cura analítica. O corpo político seria uma construção produzida a
partir da noção imaginária de corpo próprio, com sua lógica de consistência e de
identidade determinada a partir de dinâmicas de exclusão. No limite, esta lógica
é narcísica e deve ser quebrada. Do ponto de vista político, ela seria narcísica por
criar determinações que não suportam antagonismos algum entre si e no seu
interior, já que todas as partes devem ser a reiteração da consistência
previamente substancializada e encarnada na figura do soberano. Todas as
partes encontram sua determinação completa por sustentarem o vínculo direito
ao mesmo fundamento normativo fornecido pelo poder soberano.
Assim, tal como ocorre em uma certa leitura da experiência psicanalítica,
as determinações imaginárias seriam quebradas a partir do momento em que
levamos sujeitos a reconhecer a natureza indeterminada daquilo que os
constitui, inscrevendo tal indeterminação na forma do vínculo a um lugar vazio
ocupado por alguém que, a todo momento, como um psicanalista advertido,
apontaria a distância entre o objeto que ocupa o lugar e o próprio lugar que
determina seu valor. Assim, a democracia seria uma espécie de regime político
de subjetivação do vazio e de crítica às imagens de completude.
No entanto, tal como este esquema é clinicamente falho, ele também é
politicamente problemático. Podemos começar por dizer que o reconhecimento
da sociedade como uma “totalidade antagônica” que coloca em questão a

87 Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.


88 Idem; p. 118
89 Idem, p. 121
necessidade de um fundamento comum do social não implica, necessariamente,
que o lugar vazio seja a configuração mais adequada de tal ser social. Na verdade,
devemos começar por nos perguntar: como delibera aquele que ocupa o lugar
vazio do poder? Não deveria ele colocar-se à distância do debate incessante e
móvil das ideologias a fim de remeter cada um dos lados à sua pretensa
parcialidade e à parcialidade de seus afetos, já que quem ocupa o lugar vazio do
poder não pode ser feito da mesma matéria que aqueles que perpetuam o
embate constante a respeito do fundamento do poder? Mas, se este for o caso,
não seria a teoria do lugar vazio do poder ainda dependente da ideia de que a
deliberação racional pressupõe o esfriamento das paixões, com seus
questionamentos intermináveis, e a abertura de um espaço para além dos
conflitos das paixões com suas parcialidades? Algo como apostar na crença de
que a mobilização libidinal e afetiva que sedimenta os vínculos sociais, em suas
múltiplas formas, seria sempre uma regressão a ser criticada, como se a
dimensão dos afetos devesse ser purificada para que a racionalidade
desencantada e resignada da vida democrática pudesse se impor, esfriando o
entusiasmo e calando o medo. Difícil não perceber como a teoria de Lefort parece
dependente da ideia clássica de que “o corpo intervém para perturbar-nos de mil
modos, causando tumulto e inquietude em nossa investigação, até deixar-nos
incapazes de perceber a verdade”90, mesmo que esta “verdade” seja a verdade da
ausência de enunciado possível para o fundamento comum da vida social. Em
suma, há algo da crença clássica na separação necessária entre razão e afeto a
habitar hipóteses desta natureza. Como se os afetos fossem, necessariamente, a
dimensão irracional do comportamento político, devendo ser contraposta à
capacidade de entrarmos em um processo de deliberação tendo em vista a
identificação do melhor argumento.
Disto se segue um segundo pressuposto problemático na escolha de
Lefort em pensar a indeterminação do social sob a forma do lugar vazio do
poder. Tal teoria tende a funcionar como a justificação das potencialidades
internas ao quadro institucional da democracia atualmente posta. Lefort pensa,
de forma bastante sintomática, a experiência da indeterminação nos limites da
representação política. Para ele, não há uma incompatibilidade de fato entre
indeterminação e representação pois o lugar vazio é apenas a operacionalização
de que qualquer sujeito político submetido à representação pode ocupar tal
lugar. A ideia de lugar vazio é a consequência de um pensamento estruturalista
para o qual a funcionalidade do universo simbólico é garantida por lugares
vazios claramente determinados em suas possibilidades e impossibilidades, mas
que permitem a intercambialidade de seus representantes. Qualquer sujeito
político que se reconhece apenas como uma representação pode subjetivar o
lugar vazio. O lugar vazio circula pelas mãos de todos sujeito político. Ele é, na

90 PLATÃO; Fédon, Belem: Edufpa, 2013, 66b


verdade, a garantia da estabilidade da estrutura simbólica que sustenta
democracia representativa. Daí uma afirmação como:

A democracia moderna é o único regime a significar a distância do


simbólico e do real através da noção de um poder que ninguém, nem
príncipe nem grupo reduzido, saberia tomar para si; sua virtude é de
referir a sociedade à prova de sua instituição; lá onde se desenha um
lugar vazio não há conjunção possível entre o poder, a lei e o saber, não há
enunciado possível de seu fundamento comum; o ser social se esquiva, ou
melhor, se dá sob a forma de um questionamento interminável (o que dá
testemunho o debate incessante, móvil, das ideologias)91.

A democracia moderna teria tal característica por se fundar, por um lado,


no pretenso caráter dessacralizador do sufrágio universal, que abstrai a rede de
vínculos sociais ao instaurar uma multiplicidade numerável, deixando a decisão
à “enigmática arbitragem do Número”92. Esta arbitragem enigmática que reduz
os sujeitos políticos a multiplicidades numeráveis seria a chave para que o
primado da representação se imponha no interior do campo político
organizando seus atores. Por outro lado, a democracia se fundamenta na defesa
do fim dos vínculos entre poder, saber e tradição como condição para legitimar a
decisão sobre quem ocupará o lugar vazio do poder. No entanto, não bastam tais
traços para definir nossos atuais horizontes de representação como realmente
democráticos. Pois ser parte de uma multiplicidade numerável de indivíduos não
é expressão da afirmação da produtividade da indeterminação do social, nem é
acolhimento do “irrepresentável”93. Ao contrário, é algo com o qual só podemos
nos conformar à condição de quebrar tal indeterminação naquilo que ela tem de
mais transformador, a saber, sua a-normatividade representativa, sua força de
destituição de normas e de conformações a unidades de conta. Mas a
determinação do sujeito como unidade de contagem em uma multiplicidade
numerária não é uma figura do lugar vazio em sua potência produtiva. Ela é uma
figura da determinação indiferente em sua reificação mortificada da estrutura.
Ela é a perpetuação de um espaço político só legível através da representação, a
tradução da “institucionalização do conflito” em uma forma de “competição
regulada”94. Fato ainda mais grave se lembrarmos como tal multiplicidade
numerável em competições eleitorais nunca apresenta-se em sua pureza
instauradora. Ao contrário, no interior da competição regulada das democracias
liberais, sua eclosão eleitoral é sempre mediada pelo peso institucional-
econômico das forças sociais que organizam as condições de representação dos
atores políticos. Forças que se dispõem em silêncio. E o controle das condições

91 LEFORT, Claude; Essais sur le politique, op. cit., p. 294


92 Idem; Essais sur le politique, p. 293
93 Idem, p. 30
94 Idem, p. 28
de representação é, ao mesmo tempo, o controle da cena do político. Há uma
zona de sombra em todo campo de representação, composta pelo peso de atores
que trabalham no controle da definição do que é representável. A crença tão
presente ainda hoje de que, fora da representação política com seus mecanismos
de sufrágio, só haverá o caos, acaba por naturalizar o fato das condições de
possibilidade da representação impor um modo de presença na cena política, um
modo de constituição dos “atores políticos” que se paga com a invisibilidade de
uma multiplicidade de sujeitos políticos possíveis. Por isto, por não estar
disposto a dar este passo em direção à crítica do primado da representação no
interior do pensamento político, Lefort tende a perder a força da indeterminação
que ele próprio descobre. Ele tende a não compreender como todo verdadeiro
acontecimento é uma quebra de estruturas e de seus regimes de circulação do
lugar vazio.

Laclau e a outra via da indeterminação

Neste sentido, gostaria de dizer que o excesso que a democracia impõe ao


Estado de direito é, na verdade, excesso das possibilidades da política em relação
ao primado da representação. Este excesso pede uma incorporação específica e
diria que um eixo importante dos debates atuais em filosofia política gira em
torno de como pensar a especificidade de tal incorporação. Se Lefort tivesse
explorado mais as possibilidades de seu recurso à psicanálise, ele veria que
conhecemos não apenas o corpo imaginário, que ele projeta nas figuras da
corporeidade totalitária do social. Há ainda um conceito importante de corpo
real, ou seja, esta corporeidade que quebra a força reguladora das determinações
estruturais funcionando através das dinâmicas das pulsões parciais, sem
convergência ou identidade. Lacan fala constantemente de uma corporeidade
real que produz afecções que nos fazem nos confrontarmos ao que há de
inassimilável no corpo do Outro, aquilo que no corpo do Outro me despossui de
minha própria identidade. Um corpo que não se configura como um organismo,
mas como um fluxo constante de desintegração formal e de integração de
contingências.
Poderíamos recuperar o sentido de tal experiência para o campo da
filosofia política perguntando-nos se não haveria formas de encarnação política
mais próximas desta experiência subjetiva. Talvez isto nos levaria a afirmar que
uma sociedade que: “em sua forma, acolhe e preserva a indeterminação” 95 não é
necessariamente uma sociedade descorporificada mas, antes, aquela na qual é
possível incorporar o que é indeterminado do ponto de vista da representação.
Toda verdadeira política é a arte de construir corpos que despedaçam aqueles
que procuram submetê-los a uma mediação pacificadora. Toda verdadeira
política produz corpos lá onde outros só conseguem enxergar o caos.

95 LEFORT, Claude; Essais sur le politique, p. 26


Notemos inicialmente que, se tal excesso de indeterminação que procura
outras formas de incorporação não devesse ser levado em conta, dificilmente
poderíamos fazer alguma distinção entre política e gestão das possibilidades
previamente determinadas pelo ordenamento jurídico atual. Isto talvez explique
porque alguém como Ernesto Laclau, também baseando-se no mesmo universo
psicanalítico que Lefort, procurou recuperar o conceito de populismo. É
interessante salientar como Laclau, a sua maneira, parte de um problema
deixado por Lefort. Ele compreende a força de descorporificação do social
presente na democracia moderna, mas a vê como um risco à política. Se ele está
disposto a afirmar que não há “nenhuma intervenção política que não seja, até
certo ponto, populista”96 é por compreender que o populismo, ao permitir
processos de incorporação popular na figura de lideranças, criam as condições
para que a força anti-institucional da política quebre as limitações impostas pelo
controle da representação.
Claro que alguns podem ouvir tais colocações como um convite à
regressão social, mas tentemos perceber com mais calma a configuração
sugerida por Laclau do líder populista. Ao invés de simplesmente ver os
fenômenos populistas como a elevação da particularidade do líder à condição de
apresentação de uma totalidade composta pelo povo, em uma saída que
lembraria os fenômenos totalitários que Lefort procura descrever, Laclau
procurará compreender como “uma particularidade assume uma significação
universal incomensurável consigo mesma”97, transformando-se no corpo de uma
totalidade inalcançável.
É importante para Laclau insistir no caráter inatingível da totalidade a fim
de impedir que ela se coloque como fundamento a ser recuperado em um
retorno autoritário à essencialidade original dos vínculos sociais, aparecendo ao
contrário como fundamento de um horizonte de transformação continuamente
aberto. Para tanto, tal particularidade deve se tornar um “significante vazio”. O
líder populista de Laclau é um significante vazio e é isto que deve nos chamar a
atenção por expor um modelo peculiar de incorporação. Esta noção de
significante vazio a incorporar o poder é outra figura para pensarmos modos de
inscrição política da indeterminação do social. Ou seja, não basta, como disse
Lefort, que o lugar simbólico do poder esteja vazio. Faz-se necessário que aquele
que ocupa tal lugar também apareça como um significante vazio e que tal
vacuidade seja decisiva na constituição de sujeitos políticos. Há aqui uma
diferença importante bem salientada por Slavoj Zizek, segundo a qual “O vazio
do ‘povo’ é o vazio do significante hegemônico que totaliza a cadeia de
equivalência, isto é, cujo conteúdo particular é ‘transubstanciado’ numa
incorporação do todo social, enquanto o vazio do lugar do poder é uma distância
que torna ‘deficiente’, contingente e temporário todo portador empírico do
poder”98. Só assim o vazio poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o
povo como um modelo de identidade coletiva baseado na multiplicidade e na

96 Idem, p. 195
97 Idem, p. 95
98 ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
indeterminação. No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes
grupos distintos, muitas vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser
agenciada em uma rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a
constituição de uma identidade popular-coletiva e a determinação de linhas
antagônicas de exclusão (agora politizadas). Tal caráter vazio dos significantes
que unificam o campo popular não é resultado de algum arcaísmo político
próprio a sociedades prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente
expressa o fato de que toda unificação populista tem lugar em um terreno social
radicalmente heterogêneo”99.
No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos
distintos, muitas vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em
uma rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma
identidade popular-coletiva e a determinação de linhas antagônicas de exclusão
(agora politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:

Não há totalização sem exclusão, e sem que tal exclusão pressuponha a


cisão de toda identidade entre, de um lado, sua natureza diferencial que a
vincula/separa de outras identidades e, de outro, seu laço equivalencial
com todas as identidades restantes a partir do elemento excluído. A
totalização parcial que o vínculo hegemônico consegue criar não elimina a
cisão mas, ao contrário, deve operar a partir das possibilidades
estruturais que derivam dela100.

Freud não falaria outra coisa ao denunciar a dinâmica autoritária da


psicologia das massas, mas Laclau não vê tal cisão como expressão necessária de
práticas segregacionistas. Vários movimentos populistas, em especial os latino-
americanos, se servem desta totalização por exclusão para operar no âmbito
político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagônicos no interior do qual o povo, mesmo não se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como única totalidade politicamente legítima,
plebs até então não-representada que reclama ser o único populus legítimo.
No entanto, sob o populismo, a constituição do campo popular, quanto
maior for, pede cada vez mais a suspensão do caráter contraditório de demandas
particulares que ele precisa mobilizar. Por isto, só cabe à liderança ser um
significante vazio que parece operar como ponto de unidade entre interesses
aparentemente tão distintos. Tal caráter vazio dos significantes que unificam o
campo popular não é resultado de algum arcaísmo político próprio a sociedades
prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda
unificação populista tem lugar em um terreno social radicalmente
heterogêneo”101. Laclau fornece vários exemplos para dar conta de um fenômeno
que, em seu caso, certamente tem expressões profundas no peronismo e em
outras formas de populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a
constituição de identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal
função pelo fato da defesa da ordem institucional nestes países ter sempre

99 Idem, p. 128
100 LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
101 Idem, p. 128
estado, em larga medida, vinculada às demandas hegemônicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode não ser o caso. Tal indeterminação de
resultados relativos a fenômenos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, na política cosa nostra do governador paulista
Adhemar de Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do
antiinstitucionalismo populista. Pois “existe em toda sociedade um reservatório
de sentimentos anti status quo puros que se cristalizam em alguns símbolos de
maneira relativamente independente da forma de sua articulação política e é sua
presença que percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um
discurso ou uma mobilização”102. Tais símbolos são “significantes flutuantes”
cujo caráter de “flutuação” vem do fato de poderem aparecer organizando o
discurso de perspectivas políticas muitas vezes radicalmente distintas entre si.
As elaborações de Laclau são precisas em mais de um ponto. Elas
mostram como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem
compreender, com clareza, os processos identificatórios no campo político não
apenas como regressivos, mas também como constitutivos da própria dinâmica
transformadora das lutas sociais. Não há política democrática sem o
reconhecimento de dinâmicas constituídas no ponto de não-sobreposição entre
direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade. Não há política
democrática sem um excesso de antagonismo em relação às possibilidades
previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a experiência
populista nos mostra, embora Slavoj Zizek lembre com propriedade que o
populismo não é o único modo de existência do excesso de antagonismo sobre a
estrutura democrático-institucional 103 . De toda forma, Laclau nos permite
compreender como a reflexão política freudiana pode nos ajudar a sublinhar a
complexidade da relação entre institucionalidade e demandas que se alojam em
um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da posição da liderança implica
reconhecimento de um lugar, não completamente enquadrado do ponto de vista
institucional, marcado pela presença da natureza constituinte da vontade
política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se transforme na gestão
administrativa das possibilidades previamente determinadas e constrangidas
pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o espaço aberto para a recorrência
contínua de figuras de autoridade e liderança que parecem periodicamente se
alimentar de fantasias arcaicas de segurança, proteção e de medo. Esta
ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a própria ambivalência da
incorporação em política.
No entanto, Laclau deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessária limitação.
Ambiguidade entendida não no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituições fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilação contínua, interna a
todo movimento populista, entre transformação e paralisia. Por sustentar a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo constituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditórias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto

102 Idem, p. 136


103 Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
de equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situações nas quais há um cálculo possível que permite a
várias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situação na qual
processos de transformação se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestão contínua
do imobilismo e da inércia, desviada pela construção pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâmica do populismo a
presença destes momentos nos quais o imobilismo se justifica pela
transformação da luta de classes em mero fantasma a assombrar, com ameaças
de regressões a condições antigas de vulnerabilidade, os setores submetidos à
liderança. Assim, consolida-se a dependência às figuras de liderança que já não
são mais capazes de fazer o processo de transformação avançar, mas que tentam
nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à situação de
perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de então se perpetuarão
através do retorno fatídico à mobilização libidinal do medo como afeto político. O
caso brasileiro recente do esgotamento do lulismo é um exemplo quase didático
neste sentido.
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 6

Na aula de hoje, daremos início ao módulo dedicado ao conceito de “ato


analítico”. Lembremos quão central é tal conceito para Lacan, isto a ponto dele
afirmar que:

O ato analítico, nem visto nem conhecido antes de nós, ou seja, nunca
notado, muito menos colocado em questão, eis o que supomos no
momento eletivo em que o psicanalisante passa ao psicanalista104.

Ou seja, o ato analítico é apresentado como uma elaboração original de Lacan e


que aparece como decisivo na estruturação do final de análise, em especial no
que diz respeito à assunção do analisando na posição de analista, o que responde
pelas questões normalmente próprias a uma análise didática. Por outro lado, ao
insistir que a reflexão sobre o ato analítico não fora nem vista nem conhecida
antes, Lacan estabelece uma distinção clara entre sua prática e a de outros
analistas, isto a ponto de afirmar que a única resistência em análise é a do
próprio analista, isto no momento em que o analista mostra ter horror de seu
ato. Como se houvesse algo em circulação na experiência analítica que a
psicanálise tende a recusar. Algo que diz respeito ao que de fato uma análise
produz.
Notemos que esta discussão sobre a noção de ato analítico aparece para
Lacan a partir de meados dos anos sessenta. De forma mais precisa, ela aparece
no momento em que Lacan se vê diante de sua expulsão dos quadros da
Sociedade Francesa de Psicanálise, por consequência de sua expulsão da
Associação internacional de Psicanálise. Nesta situação de não ter mais garantias
institucionais para sustentar sua prática analítica, Lacan produz um ato de
fundação: “Eu fundo – tão só quanto sempre fui em um minha relação à causa
psicanalítica – a Escola Freudiana de Psicanálise”105. Ou seja, nesta assunção de
um isolamento, de uma perda de garantia institucional e de inscrição simbólica (
a princípio, a decisão da IPA levaria Lacan a deixar de ser um “analista”), nesta
assunção de uma dissolução abre-se um espaço no qual uma instauração é
possível. É para conceitualizar este movimento de instauração e dissolução, em
um processo que será, ao mesmo tempo, clínico e político, que Lacan
desenvolverá o conceito de ato analítico.
Lembremos inicialmente que esta maneira de vincular o final de análise a
um modelo de agência que a partir de então se torna possível implica vínculo
importante a respeito das relações entre clínica e praxis. Há uma praxis outra
que emerge de uma experiência analítica e, de certa forma, toda a análise é uma
longa elaboração para que tal praxis emerja com sua força performativa de
instauração. Esta praxis, como veremos, é vinculada normalmente por Lacan a
modificações profundas nos modos de inscrição simbólicas dos sujeitos, seja em
suas identidades sociais, seja em suas estruturas narrativas e em seus modos de
falar de si. Neste sentido, de certa forma, o conceito de ato analítico recupera e

104 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 375


105 Idem, p. 229
redimensiona os processos implicados em outro conceito lacaniano até então
central para a compreensão da racionalidade da práxis analítica, a saber, palavra
plena. Esta mesma palavra plena que aparecia em sua dimensão performativa de
ato de fala em situações nas quais o sujeito produzia modificações em seus
modos de inscrição simbólica, criando relações implicativas baseadas em
demandas redimensionadas de reconhecimento. No entanto, a palavra plena,
para ter força performativa, exige a presença de estruturas simbólicas
partilhadas e já em operação entre os falantes. Ela reforça as possibilidades
imanentes à ação da estrutura. De certa forma, o ato analítico opera em um nível
ainda mais fundamental ao suspender a estrutura, operando neste sentido com a
categoria de impossível. Pois as modificações que ele produz modificações
globais de estrutura que, ao menos para Lacan, tem consequências políticas tão
evidentes que ele chega a aproximar o ato analítico, muitas vezes, de uma noção
muito específica de revolução, como vemos em afirmações como:

Não há diferença, uma vez o processo engajado, entre o sujeito que se


vota à subversão até produzir o incurável no qual o ato encontra seu fim
próprio e o que do sintoma adquire efeito revolucionário, simplesmente
por não mais andar com a varinha marxista106.

De certa forma, eu gostaria de usar a aula de hoje para comentar esta proposição
de forma demorada.

Um ato de subversão

Há várias proposições importantes nesta afirmação. A primeira delas é de que o


ato é produzido através da realização da subversão do sujeito. Este é um ponto
várias vezes sublinhado por Lacan, a saber, no ato analítico o sujeito é
subvertido. Por esta razão, podemos insistir que se trata de um dos conceitos
decisivos de Lacan para medirmos o aporte político de sua experiência
intelectual. Pois, por estar vinculado ao movimento de subversão do sujeito, a
importância política do conceito de ato analítico vem do fato dele permitir a
psicanálise pensar formas de agência não mais dependentes das figuras da
consciência, sem no entanto reduzir tais agências à forma genérica do
involuntário. O ato é uma modalidade de agência que não é fruto de uma
deliberação da consciência, sem no entanto significar alguma forma de fatalismo.
Ao falar da subversão do sujeito, Lacan fará sua famosa inversão do cogito
cartesiano: “Sou onde não penso, penso onde não sou”. A sua maneira, o ato
analítico é uma agência que vem desta existência que não se submete às formas
atual do pensamento. O que não poderia ser diferente para alguém que define o
inconsciente como: “o termo metafórico que designa o saber que só se sustém
por se apresentar como impossível, para através disto se confirmar como real
(entendam discurso real)”107. Novamente, vemos aqui o uso fundamental da
noção de impossível como o que indica uma latência da existência que não se dá
como localização no interior de uma estrutura, que não se dispõe como um saber
possível e apreensível nas condições atuais de determinação da estrutura. Uma

106 Idem, p. 381


107 LACAN, Jacques; idem, p. 425
latência que nos abre ao que devemos entender por inconsciente e real. Desta
forma, e este é o primeiro ponto importante para esclarecer o interesse neste
conceito, a reflexão sobre o ato analítico permite reconsiderar o problema
politico da emancipação após a reflexão psicanalítica sobre o sujeito do
inconsciente.
Lembremos de algumas considerações gerais sobre os processos de
emancipação como horizonte normativo para as lutas políticas. Conhecemos a
tendência tradicional em ordenar as discussões sobre emancipação a partir da
noção reguladora de maturidade, como se estivéssemos a generalizar, para a
esfera da vida social, consequências da distinção entre minoridade e maioridade.
Desta forma, lutas políticas orientadas por expectativas de emancipação seriam
lutas para realizar formas de reconhecimento de si que permitiriam o
desenvolvimento enquanto indivíduo capaz de deliberação própria e afirmação
de si.
No entanto, há de se insistir que esta forma de pensar a emancipação não
nos permite distingui-la da sujeição a padrões disciplinares de comportamento
socialmente exigidos e necessários, padrões estes normalmente enunciados
como expressão efetiva da autonomia. Sair da minoridade pode ser
compreendido como resultado da internalização de sistemas de julgamento e de
ação socialmente aceitos como próprios àqueles sujeitos socialmente
considerados imputáveis e responsáveis. Neste contexto, corre-se o risco de não
podermos mais estabelecer distinções minimamente operativas entre
emancipação e mera adaptação social a padrões jurídicos de imputabilidade, ou
ainda entre reconhecimento, enquanto instauração de modos de existência até
então impredicados, e recognição, como confirmação de potencialidades postas
pelo modo atual de existência. Assim, uma condição de socialização
historicamente definida e juridicamente organizada acaba por se transformar em
horizonte ontologicamente estável de regulação das formas de vida. No entanto,
a sua maneira a noção de ato analítico nos permite ver a emancipação aparecer
como possibilidade do sujeito emergir enquanto potência normativa capaz de
produzir singularizações. Mas para tanto há uma modificação estrutural na
noção de agência que precisa ocorrer.
Ao definir sua noção de ato analítico, Lacan afirma que ele estaria fundado
em uma “estrutura paradoxal vinda do fato do objeto estar nele ativo e o sujeito
subvertido”108. Uma subversão que é inscrição da posição do sujeito no real.
Voltamos a este ponto pois tal ideia de um ato capaz de inscrever o sujeito no
real é central. Ela implica que, ao produzirem um ato, sujeitos agem a partir do
que coloca em colapso a ordem simbólica. Por isto, eles perdem sua inscrição
anterior na ordem simbólica e na ordem do saber que os constituíram. Esta é a
razão pela qual, do ponto de vista clínico, o conceito de ato analítico acaba por
reconfigurar globalmente os processos de intervenção analítica ao secundarizar
os mecanismos de simbolização através da inscrição significante produzida pela
interpretação. A partir de agora, a análise não irá procurar, através da
interpretação, fornecer a inscrição dos sujeitos no interior de um quadro
regulado de conflitos e filiações. Ela irá confrontar os sujeitos a um ato que os
destituem de tal lugar.

108 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 332


Isto nos explica porque, no dispositivo do ato analítico, vincula-se uma
força de dissolução e uma operação de instauração, e toda sua complexidade está
exatamente na compreensão deste duplo movimento. Não é possível pensar
processos de instauração sem responder a pergunta sobre como se realiza
dissoluções. Pois há dissoluções que são apenas degradações da ordem anterior,
ou se quisermos, mera passagem ao ato, mera fascinação pela aniquilação que
retira do ato toda possibilidade de reconhecimento. Por isto, as formas clássicas
da passagem ao ato são vinculadas ao suicídio.
No entanto, há dissoluções e desabamentos que são pressões de novas
orientações e lembraria que uma das questões fundamentais para a reflexão
sobre a ação política é: como fazer ordens desabarem? Pois, e isto a experiência
das revoluções no século XX nos mostrou, ordens podem se perpetuar mesmo
após sua queda, ou melhor, elas podem se perpetuar exatamente por terem caído
e por passarem a um modo implícito de existência, ao invés de um modo
explícito de ordenamento. Elas podem então ressurgir, como uma reincidência
que ressurge quando menos esperamos ou elas podem continuar operando em
um estrato subterrâneo, paulatinamente corroendo a nova ordem até ela se
tornar irreconhecível. Por isto, a questão do ato político como um processo de
dissolução é de suma importância. O que toda política revolucionária sempre
soube, basta lembrar a problemática de Marx a respeito da dissolução do Estado.
Não se dissolve o Estado para a abertura a uma sociedade de associações livres
sem conquistá-lo e transforma-lo até que todos seus modos de reprodução se
transfigurem (esta era inclusive a necessidade da temática da chamada “ditadura
do proletariado”). De outra forma, ele poderá perpetuar-se em silêncio, entrar
em um modo implícito de existência.

Uma certa revolução

Tal discussão nos remete à potência de negação própria a todo ato. Isto
levava Lacan a insistir que “revolução” significa normalmente, como sabemos a
respeito dos movimentos astronômicos, “voltar ao mesmo lugar”. Ao comentar a
revolução copernicana, tão usada como metáfora de mudança epistêmica na
filosofia (Kant e a crítica como revolução copernicana) e mesmo na psicanálise
(Freud e a revolução copernicana do inconsciente), Lacan se perguntava: “o que
há de revolucionário no recentramento do mundo solar em torno do Sol?”109.
Maneira de afirmar que não havia mudança alguma através da conservação da
hierarquia, da unidade e da centralidade que a noção de movimento esférico
enquanto forma celeste perfeita representava. A verdadeira revolução
encontrava-se o advento do movimento elíptico, ou seja, da noção de dois
centros enquanto forma dos movimentos celestes. No que se vê que a revolução,
se não quiser ser um retorno ao mesmo lugar, é indissociável de uma mudança
na estrutura do saber, não nos lugares que cada elemento ocupa no interior de
uma estrutura dada, não nos detentores do saber e do poder. Lembremos a este
respeito de um poema caro a Lacan que lhe aparecia como expressão da “fórmula
geral do ato”, trata-se de A uma razão, de Arthur Rimbaud:

109 Idem, p. 420


Um bater de seu dedo contra o tambor descarrega todos os sons e começa
a nova harmonia
Um passo seu é o levante de novos homens e os põe em marcha
Tua cabeça se vira: o novo amor!
Tua cabeça se volta: o novo amor!
“Muda nossos destinos, alveje as pragas, a começar pelo tempo”, cantam
essas crianças.
“Cultiva não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, te
suplicam.
Vinda de sempre, quem irá contigo por toda parte.

Primeiro, há de se salientar que a fórmula geral do ato analítico seja dada


por um poema. Pois se trata de aproximar o ato da emergência de outro regime
de partilha da linguagem que se encontra expresso na forma do poema. Se a
linguagem aparece aqui em posição fundamental é por ela decidir a forma da
experiência, a dinâmica de nossas gramáticas de afetos, a estrutura das nossas
sensibilidades. Não há revolução efetiva sem uma transformação na capacidade
de enunciação da linguagem. A este respeito, lembremos de uma discussão de
Stalin a respeito da linguagem não ser uma super-estrutura, já que ela não
poderia ser mudada ao modificarmos as relações de produção:

O que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se


demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura são
fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no
curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem
existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de
alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de
desintegração da sociedade? Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar
a si mesmo tal tarefa?110

Stalin, que sabia bem o que significa assassinar uma revolução, recusa que
a linguagem seja uma superestrutura porque ela não deve ser nem o veículo nem
o resultado de um processo revolucionário. Ela deve permanecer tal e qual, sob o
risco de desencadear anarquia e desintegração. No entanto, há de se perguntar
que tipo de revolução é este que vê as instaurações no campo da linguagem como
algo fora de seu escopo. Pois afirmar que a linguagem não se modifica é a
maneira mais segura de afirmar que uma revolução não altera aquilo que
aparece como a condição prévia (ao menos para os sujeitos falantes) de toda
experiência possível. Para a restauração, é fundamental afirmar que a linguagem
desconhece dinâmicas políticas por ela expressar a “totalidade” da sociedade. No
entanto, digamos que, se Stalin houvesse lido Nietzsche, ele saberia que: “nunca
nos desvencilharemos de Deus enquanto acreditarmos na gramática”. Esta era
uma forma astuta de afirmar haver uma metafísica implícita na gramática e o que
faz uma revolução é dissolver esta metafísica implícita que orienta os processos

110 STALIN; Marxismo e linguística


mais elementares de nossa forma de vida. É com isto em mente que podemos nos
voltar ao poema de Rimbaud e a seu uso por Lacan.
Primeiro, lembremos do título: “a uma razão”. A fórmula geral do ato é
vinculada a um poema intitulado: “a uma razão”. O que mais se evidencia aqui é a
ideia de “uma razão”, e não de “a razão”. Como se fosse questão de dizer “cada
um tem sua razão”. Mas uma frase desta natureza normalmente parece
significar: “não há razão alguma, pois cada um tem a sua”. Não havendo razão
alguma, não há ratio, não apenas no sentido de não haver medida comum, mas
principalmente no sentido de não haver implicação genérica. Não havendo a
razão, parece não haver nada que nos implique genericamente, nada que nos
forneça um campo, parece haver apenas uma fala, mais uma fala, mais uma fala.
No entanto, o poema expressa exatamente o inverso desta ideia. Como se
a singularidade da experiência que me faz o corpo no qual se irrompe uma razão
fosse uma experiência irrecusável para todo e qualquer. Como se o que é
desvelado só fosse a abertura de um comum ainda fora do mundo. Neste sentido,
lembremos como “raison” tem em seu interior “son” que aparece no poema
quando o bater do tambor descarregar “tous les sons”. Há a infinitude de todos
os sons nesta razão que emerge. Neste sentido, se o artigo indefinido “uma”
singulariza, tal singularidade indica apenas a corporeidade da experiência da do
que se resolve em todos os sons, o que exige também todos os ouvidos, o que
mimetiza todas as vozes.
É claro como o poema começa com um horizonte de guerra e música, com
se a verdadeira guerra fosse a transformação da linguagem em música. Ele
começa com um toque de tambor, como quem anuncia a criação ao romper o
silêncio com um gesto sonoro, normalmente seco, sem ressonância, mas agora
esta ausência de ressonância é o advento de uma nova harmonia produzida por
todos os sons. Mas notem um ponto importante aqui. Todos os sons tocados
juntos só podem produzir uma massa sonora do tipo cluster, nunca fornecer uma
nova harmonia. Um toque que descarrega todos os sons pode ser visto, na
verdade, como um som capaz de produzir qualquer harmonia, um pouco como a
substância de nossa fortuna e desejos que pode ser cultivada não importa onde,
como o que virá contigo por toda parte. Ou seja, o que se fala aqui é de uma
relação (pois a harmonia é necessariamente uma relação) sem restrição, sem
perda, que potencialmente pode operar em um tempo e um espaço que não
conhecem mais a finitude das determinações.
E assim que a irrupção da guerra com suas mudanças e domínios se
transmuta em música, o poema produz a irrupção do novo: novos homens, novo
amor. Um novo amor que precisa ser repetido, que não se diz apenas uma vez,
que precisa fazer a cabeça retornar em direção a um chamado mais uma vez.
Como se fosse o caso de lembrar que atos revolucionários são repetições, que
este tempo das emergências se abre ao se repetir.
Que seja o amor aquilo que deve ser repetido, que na verdade o amor seja
a cena de uma repetição, seja o que permite a repetição existir em sua força de
transformação, nos mostra como é no interior deste novo amor que emerge a
razão da qual fala Rimbaud. Como ele dirá em outro poema, Génie: “amor,
medida perfeita e reinventada, razão maravilhosa e imprevista”. Pois haverá um
tempo próprio, uma destituição própria ao amor e à dispersão de seu ato. Este
tempo próprio funda outra razão, como Lacan percebeu bem ao afirmar: “o
amor, neste texto, é o signo apontado como tal, de que se troca de razão”111.
E ao produzir esta repetição que denuncia um desejo de instauração e
duração, o poema se abre a um canto. Um canto de crianças cuja música traz os
destinos que devem mudar e o tempo que deve ser alvejado como uma praga
para que ele se abra ao que vem de sempre, ou seja, ao que vem do que suspende
a própria ordem do tempo. Crianças que não apenas cantam, mas suplicam
porque sentem a urgência de que os desejos sejam cultivados em um lugar fora
do lugar, em um “não importa onde” fora do mundo tal como agora se compõe e
divide.
Um ato é sempre a irrupção de outro tempo e outro espaço, esta é sua
função: permitir que o desejo seja cultivado em outro tempo e em outro espaço,
que quebra a hierarquia dos lugares, que dessacraliza as distâncias. Por isto, ele
só poderia terminar em uma frase sem sujeito: “Vinda de sempre, quem irá
contigo por toda parte”. Pois o que vem de sempre e por toda parte inicia-se por
dissolver a unidade de todo sujeito. O que não pode ser diferente para alguém,
como Rimbaud, que em uma carta a Izambard dirá: “É falso dizer: eu penso;
deveríamos dizer: pensam-me”.
Neste sentido, não é por acaso que Lacan escolhe Rimbaud para fornecer
uma fórmula geral do ato analítico. Trata-se do poeta que falará de um tempo de
revoluções, que escreverá poemas sobre a comuna e as batalhas de emancipação
popular, que abandonará o poema versificado, que fará a linguagem se
aproximar de um sistema de cores devido ao trabalho fonético com as vogais, ou
seja, que produzirá uma nova aisthesis na linguagem e em sua força de expressão,
explorando dimensões significantes que se elaboram para além dos modos
meramente semânticos de determinação do sentido. Um “desregramento de
todos os sentidos”, como dirá o próprio Rimbaud que é advento de novos
princípios construtivos. Lembremos como o poema “A uma razão” foi escrito
entre 1872 e 1873, ou seja, logo após a comuna. O que dá uma expressão
bastante concreta de quem são esses novos homens que se levantam e se põem
em marcha expressando uma nova harmonia.
Há de se ter isto em mente quando ouvirmos Lacan dizer que: “o ato tem
lugar em um dizer e ele modifica o sujeito”, ou ainda “o ato destitui em seu fim o
próprio sujeito que ele instaura”112. Isto demonstra como o ato analítico é
solidário de um dizer que, ao invés de meramente exteriorizar o sujeito,
modifica-o em uma paradoxal instauração destituinte. Esta posição paradoxal
talvez explique porque “o ato se realiza da melhor forma ao fracassar”, o que não
significa que todo ato seja um fracasso. Há um tipo de fracasso que é resultado da
pressão da produtividade do desejo em direção a novas formas, um pouco como
os atos falhos são um fracasso da força de determinação da linguagem ordinária.
Pois há de se sentir a linguagem atual fracassar, confessar sua impotência e
transmutar suas categorias. O que, se vocês fossem Lacan, poderia ser dito da
seguinte maneira: “Minha prova toca o ser apenas ao faze-lo nascer da falha que
produz o ente por se dizer”113.
Lembremos ainda que Lacan insistirá que esta falha pela qual passa o ato
pode ser objeto de uma lógica capaz de inscrever o que é indemonstrável, como

111 LACAN, Jacques; Seminário XX, p. 26


112 Idem, p. 375
113 Idem, p. 426
no caso de Cantor. Para além das questões de fundo sobre a lógica, nota-se a
tensão em direção a uma forma de inscrição do que não se representa que
permitiria o advento de uma forma outra de legibilidade e de transmissão. Esta
será a via do matema que, juntamente com o poema, constituirão os dois
produtos fundamentais do ato analítico.

O sintoma e a cura

Neste ponto, podemos entender melhor porque Lacan afirma: “Não há


diferença, uma vez o processo engajado, entre o sujeito que se vota à subversão
até produzir o incurável no qual o ato encontra seu fim próprio e o que do
sintoma adquire efeito revolucionário”. Se a subversão do sujeito leva ao
incurável que é ato é porque há uma subversão também do sintoma, subversão
esta que toma efeito revolucionário por ser a forma mesma da denúncia da
verdade segundo a qual o sofrimento é correlato da sustentação da situação
atual. Trata-se de um efeito revolucionário porque será do que até agora
apareceu como doença, como impossível de ser reconhecido como minha ação,
como impossível de ser visto com algo que me faz parte (e o que é o sintoma a
não ser tudo aquilo que tem a forma do “isso age em mim”?) que virá a
transformação. Como dirá Lacan: “O ato sintomático, é necessário que ele
contenha já em si algo que ao menos o prepara a este acesso, ao que para nós, em
nossa perspectiva, realizaria sua plenitude de ato, mas a posteriori”114. Pois se
Lacan pode falar aqui de uma dimensão incurável que vincula o ato e o sintoma
não é porque ele está a nos resignar diante do caráter doentio e limitado da vida,
mas porque ele insiste que, de certa forma, não há cura porque não estamos
doentes. Faz parte da astúcia dialética da clínica não poder curar porque se trata
de revelar que nunca houve exatamente doença. Os descaminhos do desejo
devem se transfigurar em errâncias através das quais a verdade se revelava. O
que apareceu sob a forma de sintoma já trazia em si a potencialidade de um ato.
E todo sofrimento produzido pelo caminho deve se transfigurar como sendo
apenas o longo esforço de parto de uma anomalia portadora de uma criação que
ainda não encontrou sua gramática e seu tempo.
A este respeito, lembremos como não há sintoma sem gozo, o que a
reação terapêutica negativa nos mostra bem. Neste sentido, o sintoma não é
apenas um modo de defesa contra o gozo. Ele também é gozo e aí se encontra a
oportunidade de intervenção clínica. De forma estrita, não se cura um sintoma.
Extrai-se dele uma forma potencial que está paralisada porque o sujeito não
consegue passar do sintoma ao ato. Por exemplo, nas inibições, há sempre a
emergência potencial de objetos que nos deslocalizam. As inibições são o
pressentimento da emergência potencial de tais objetos. Nas conversões
histéricas, há a insistência de que os mestres devem ser dessupostos. Elas dizem
que a linguagem não pode mais dizer o que efetivamente deve ser dito, por isto o
corpo deve denunciar o silêncio da linguagem e de seus mestres. Ou seja, de
forma enfática, o ato analítico não cura, como quem elimina os sintomas e
reinstaura uma condição perdida. Na verdade, o ato nos cura da cura. Ele nos
cura da ideia de que há uma cura necessária vinda de um saber suposto. É neste
ponto podemos compreender uma afirmação central de Lacan:

114 LACAN, Jacques; Seminaire XV, 22/11/67


Nenhum clamor do ser ou do nada que se extinga do que o marxismo
demonstrou por sua revolução efetiva: que não há progresso algum a
esperar da verdade nem bem-estar, mas apenas a viragem da impotência
imaginária ao impossível que se mostra ser o real a fundar-se apenas na
lógica: ou seja, lá onde adverti que o inconsciente sedia, mas não para
dizer que a lógica desta viragem não precise assombrar-se do ato115.

Abordemos este problema por duas dimensões. Afirmar não haver progresso,
afirmar que o ato não é a expressão de um progresso, tem consequências tanto
clínicas quanto políticas. Do ponto de vista clínico, isto implica recusar toda
intervenção que se oriente por um horizonte de maturação, normalmente
vinculado à reconstituição da capacidade de síntese e direção da personalidade,
no interior do qual a doença apareceria como degenerescência. Esta noção da
doença como degenerescência, como fixação em estados anteriores de
desenvolvimento esteve presente de forma hegemônica na psiquiatria e na
psicanálise (lembremos, por exemplo, dos usos de conceitos como fetichismo,
ligado a uma teoria histórico-social do progresso, dos vínculos entre patologias e
fixação em estágios de maturação libidinal, a perversão como regressão a uma
comportamento infantil polimórfico etc.). Não haver progresso algum a se
esperar da verdade significa, neste contexto, livrar a experiência analítica de sua
dependência a horizonte ideais normativos. Por outro lado, o que a análise pode
fornecer não é bem-estar ou realização de um ideal de conduta que seria a
expressão de alguma noção de progresso. O que ela oferece é a viragem da
impotência imaginária ao impossível. Ao final, é isto que o ato analítico pode
fazer: fazer o sujeito passar da impotência ao impossível. Pois o que a revolução
efetiva de Marx demonstra é que a eclosão da verdade implica apenas sair da
posição melancólica de impotência para nos confrontarmos ao impossível que
impulsiona nosso desejo.
Neste ponto, podemos entender a importância de uma colocação de Lacan
como: “a teoria revolucionária faria bem de se tomar por responsável de deixar
vazia a função da verdade como causa quando é ai, no entanto, que se encontra a
suposição primeira de sua própria eficácia”116. Ou seja, a eficácia da teoria
revolucionária consiste em deixar vazia a função da verdade como causa. Isto
significa que ela não deve procurar preenche-la através de uma perspectiva
necessitarista na qual a identificação da causa instaura uma relação de
necessidade com seus efeitos. Não há necessidade no interior de um processo
revolucionário, como poderíamos acreditar ao transformar a categoria do
proletariado em um polo positivo de doação de sentido de todo ato político. Na
verdade, deixar vazia a causa do que a revolução seria o efeito é uma maneira de
definir como os processos de transformação são marcados por acontecimentos
que não se colocam como predicados de sujeito algum. Do ponto de vista de uma
relação simples de causalidade, tais acontecimentos não produzem efeitos. Ao
contrário, eles fazem emergir relações que não são pensáveis sob a forma da
causalidade simples. Por isto, a causa de uma revolução é sempre o que rompe a

115 Idem, p. 439


116 LACAN, Jacques; idem, p. 208
própria estrutura do pensamento causal, ela é o que esvazia a categoria de causa
por permitir o aparecimento de novas formas de relação.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 7

Na aula passada, discutimos a noção de ato analítico e suas consequência no


interior de um pensamento clínico e político. Insisti no caráter paradigmático do
conceito de Lacan, já que ele marca uma inflexão no interior da clínica lacaniana,
ao direcionar os processos de intervenção não mais a partir de dinâmicas de
rememoração, de simbolização e de verbalização (embora tais processos ainda
desempenhem papel importante), mas a partir das formas de transformação de
estrutura e de destituição subjetiva produzidas pela emergência de experiências
da ordem do real.
Dentro desta discussão sobre o ato analítico, eu procurei aproximar o
problema do ato do conceito político de revolução. Contrariamente a uma teoria
estruturalista clássica, há um lugar para o sujeito em Lacan, pois há uma agência
fora do quadro de virtualidades estabelecido pela estrutura. Esta agência não é
feita por um sujeito pensado enquanto substância capaz de se auto-determinar.
O paradoxo da perspectiva lacaniana vem do fato desta agência poder ser feita
apenas por um sujeito que passa pela destituição de sua posição assegurada no
interior do universo simbólico. Isto significa, um sujeito capaz de reconhecer
uma agência que vem do que está na exterioridade da estrutura.
Do ponto de vista político, a destituição do sujeito pressupõe uma
transformação global de estrutura e é neste ponto que a temática da revolução
ganha um interesse psicanalítico. Desta forma, se a psicanálise tem uma
contribuição importante a dar a respeito desta questão, é porque ela colabora
para o redimensionamento da noção de revolução. Pois se trata de afirmar a
existência de uma dimensão psíquica cuja transformação é fundamental para que
transformações globais de estrutura ocorram, para que formas outras de agência
emerjam e a própria noção de sujeito seja reconstituída. Há uma modificação da
vida psíquica que não é apenas consequências de transformações estruturais,
mas a sua condição.
Na aula passada, eu havia explorado uma dimensão importante deste
problema através da tematização das relações entre sujeito e linguagem no
interior das dinâmicas do ato analítico. Tais relações entre sujeito e linguagem
são centrais para Lacan porque se articula aqui um conjunto mais intrincado de
processos. Na concepção lacaniana de linguagem (e neste ponto Lacan continua
estruturalista) está o conjunto das relações sociais, já que a linguagem aparece
como uma espécie de condição transcendental para a constituição social do
horizonte de relações. Lembremos desta colocação de A instância da letra:

A referência à experiência da comunidade como à substância do discurso


não resolve nada. Pois tal experiência toma sua dimensão essencial na
tradição que instaura tal discurso. Esta tradição, bem antes que o drama
histórico nela se inscreva, funda as estruturas elementares da cultura. E
essas estruturas mesmas revelam uma ordenação de trocas que, mesmo
sendo inconsciente, é inconcebível fora das permutações que a linguagem
autoriza117.

Neste sentido, as modificações na ordem da linguagem não são modificações que


se reduzem apenas à dimensão descritiva dos modos de existência, mas à
dimensão constitutiva e instauradora da ordem social. Mesmo que os sujeitos
não possam modificar a estrutura da linguagem por vontade própria, eles as
modificam ao permitir a circulação de objetos que não podem ser tematizados
apenas como o que é representado por um significante para outro significante.
Lembremos ainda como modificações na linguagem são ainda mutações
na gramática dos saberes e no exercício dos poderes. Por isto, eu lembrara a
vocês esta passagem do debate de Stalin a respeito da linguagem como uma
super-estrutura:

O que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se


demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura são
fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no
curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem
existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de
alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de
desintegração da sociedade? Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar
a si mesmo tal tarefa?118

Eu gostaria agora de explorar esta transformação na linguagem produzida pelo


ato analítico a fim de melhor compreender os regimes de transformação que
Lacan tem em vista

Ato e castração

Partamos então do fim de uma dos textos mais importantes de Lacan a respeito
da linguagem, a saber, Lituraterre: “Uma ascese da escritura parece-me só poder
passar ao encontrar um “está escrito” através do qual se instauraria a relação
sexual”119. Esta é a maneira lacaniana de dizer que há um exercício de escritura
que permite a realização de uma literalização, ou seja, uma passagem a
existência em ato capaz de instaurar aquela que é a relação disjuntiva por
excelência, a saber, a relação sexual. Esta instauração do que, até então, não
cessava de não se inscrever só é possível à condição de uma modificação
estrutural que Lacan chama, neste contexto, de ascese. Uma ascese da escritura.
Mas tentemos compreender melhor este ponto. A instauração da relação
sexual é aquilo que permite ao gozo constituir relações. Relações sexuais não são
apenas relações de desejo, mas relações de gozo. No entanto, esta instauração
não pode se realizar de forma a produzir unidades, a assegurar identidades, a
prometer o retorno a alguma forma de unidade indiferenciada. Elas são uma
paradoxal relação disjuntiva, que conserva a diferença como modo de relação

117 LACAN; Écrits, p. 496


118 STALIN; Marxismo e linguística
119 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 20
entre dois termos. Mas não uma diferença pensada como desdobramento de uma
univocidade. Na verdade, uma diferença pensada como a infinitude de uma
relação em disjunção. Isto talvez explique melhor a função da castração no
desdobramento da liquidação da transferência.
Muito já se falou a respeito do lugar da castração na experiência analítica.
Desde Derrida a Deleuze e Guattari, a castração foi denunciada como uma
estratégia para submeter o desejo à inscrição de uma negatividade no interior da
estrutura, impedindo sua disseminação ou a produtividade de suas conexões.
Como dirá, por exemplo, Deleuze:

Costumam-nos dizer : vocês não compreendem nada. Édipo não é papai-


mamãe, é o simbólico, a lei, o acesso à cultura, é a finitude do sujeito, a
‘falta-a-ser que é a vida’. E se não é Édipo, será a castração e as pretensas
pulsões de morte. Os psicanalistas ensinam a resignação infinita, eles são
os últimos padres (não, ainda haverá outros)120

Ou seja, a castração aparece aqui como o emblema de uma resignação infinita


diante da impossibilidade do gozo e da finitude do sujeito. Ela imporia uma
pragmática da inadequação que só poderia ter consequências morais e políticas
deletérias. Pois se trata de insistir na incompletude fundamental do desejo e de
sua impossibilidade de satisfação, que acabaria por elevar a posição histérica a
horizonte final de análise.
No entanto, lembremos como o problema da castração acabará por se
enquadrar nas discussões a respeito da realização da relação sexual:

A castração, a saber que o sujeito realiza que ele não tem o órgão do que
eu chamaria de o gozo único, unitário, unificador. Trata-se propriamente
do que faz um o gozo na conjunção de sujeitos do sexo oposto, ou seja,
daquilo que insisti no ano passado em relevando o fato de não haver
realização possível do sujeito como elemento, como parceiro sexual no
que se imagina a unificação no ato sexual121.

Ou seja, a castração aparece como a realização da ausência do que poderia


assegurar a realização fusional de um gozo unitário. Se este gozo unitário
existisse, ele asseguraria uma espécie de univocidade do ser capaz de permitir
aos sujeitos uma conjunção que seria retorno à submissão da experiência a um
pensamento identificador. Não há univocidade possível, é o que diz a castração.
Por isto, não há realização possível do sujeito como parceiro sexual no que se
imagina a unificação no ato sexual. É isto que leva Lacan a afirmar que a
castração marca: “a desigualdade do sujeito em relação a toda subjetivação
possível de sua realidade sexual”122.
Este ponto é decisivo. Se há uma desigualdade entre os procedimentos de
subjetivação e o sexual, se não é possível subjetivar o sexual em sua
integralidade, como podemos fazer, por exemplo, quando dizemos ter “a minha
sexualidade” submetendo o sexual à condição de atributo predicativo de um
sujeito, é porque o sexual é o próprio espaço no qual algo que se coloca como

120 DELEUZE et PARNET, Dialogues, Paris: Flammarion, 1977, p. 100)


121 LACAN; Seminaire XV, sessão do 17/01/68
122 Idem, sessão 07/02/68
diferença irredutível emerge. A inscrição desta diferença será operação política
fundamental porque ela fornecerá a matriz para as relações gerais à diferença no
interior da vida social. Como se o problema da diferença no campo do sexual
fornecesse a base para as múltiplas formas de relação à diferença em outros
campos da experiência social.
Neste sentido, notemos como a diferença em questão aqui não diz
respeito ao binarismo da diferença anatômica entre sexos. Ela diz respeito a uma
incompatibilidade entre duas formas de gozo que habitam os sujeitos (o gozo
fálico e o gozo feminino não-todo). Há algo nos sujeito que se orienta fora do
gozo fálico e, de certa forma, é a isto que o ato analítico se dirige. A dessuposição
de saber e a emergência do gozo que o ato analítico produz é solidária da
referência a um gozo que não seria inscrito na ordem do significante e, por isto,
submetido ao primado fálico.
Note, que, se devemos levar a sério a proposição lacaniana de que “a
mulher não existe” é porque em uma relação sexual todos orientam seus desejos
a partir do Falo, sejam eles homens anatomicamente falando, sejam mulheres. É
assim que devemos interpretar a afirmação de que o Falo: “é o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher”123. Através do
Falo, o sujeito partilha uma função social sob a forma de um ter que dom (no caso
da posição masculina) ou de um ser que é ser para um Outro, e não indicação de
um atributo essencial (no caso da posição feminina)124. Isto mostra como o
significante fálico é o emblema de toda simbolização possível do desejo.
Este lugar central do falo é submissão da diversidade possível dos modos
de sexuação ao primado da função fálica. Assim, a sexuação feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid, com sua maneira de superar tal
relação de dependência através do ato de transformar os atributos femininos em
signos de reivindicações fálicas e que Lacan, seguindo Joan Rivière, chama de
mascarada. Maneira lacaniana de interpretar a afirmação freudiana segundo a
qual toda libido é necessariamente masculina. Tal maneira de compreender a
posição feminina será revista através da compreensão de que nem tudo (pas
tout) de uma mulher inscreve-se sob a função fálica. Mas este não todo não
significa necessariamente negação do genérico da função fálica e da castração a
qual a mulher se relaciona, se não fosse assim uma mulher seria sempre
portadora de um gozo totalmente não submetido à castração.
Isto demonstra como o falo permite a construção de um Universal capaz de
unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo universal de
reconhecimento mútuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da história subjetiva. Mas trata-se de um campo
universal de reconhecimento mútuo extremamente peculiar. Lembremos, por
exemplo, que tal campo não pode realizar-se através da possibilidade da relação
sexual. Compreendamos aqui ‘relação sexual’ principalmente como o espaço
intersubjetivo de reconhecimento do desejo de sujeitos capazes de subjetivar
seus corpos, já que: “a relação sexual é isto através do qual a relação ao Outro
desemboca em uma união de corpos”125.

123 LACAN, S V, p. 273


124 Isto de acordo com a fórmula: “o homem não é sem tê-lo [o falo], a mulher é [o falo] sem tê-lo”
125 LACAN, S VIII, p. 243
Sabemos como Lacan insistirá, até o fim de seu ensinamento, que: “não há
relação sexual”. Mas podemos nos perguntar: por que o universal da Lei fálica
não é capaz de realizar as condições para o advento da relação sexual, isto apesar
da afirmação lacaniana de que o Falo: “equivale a uma cópula (lógica)"126? Parte
da resposta está no fato do falo ser: “Um símbolo geral desta margem que sempre
me separa de meu desejo, e que faz com que meu desejo seja sempre marcado pela
alteração que ele sofre ao entrar no significante”127. Tal noção do falo como ‘um
símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos mostra
como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica128. Ele é a
inscrição significante da relação de inadequação entre o sexual e a
representação. Devemos sublinhar aqui uma característica maior da economia
fálica: a injunção primordial de castração presente na Lei fálica exige o sacrifício
de todo objeto do desejo. A única coisa que a Lei fálica diz é: não há objeto
adequado à transcendentalidade do desejo: “É isto que quer dizer o complexo de
castração: não há objeto fálico”129. Maneira de ler a proposição lacaniana da
castração como uma operação simbólica que incide sobre um objeto imaginário.
No entanto, percebamos que esta impossibilidade da representação não
termina aqui. Se assim fosse, seria de fato difícil separar a experiência analítica
de uma posição deceptiva que se fixa na dimensão do irrepresentável, na
dimensão de uma negatividade que seria apenas a sustentação de uma ordem
significante de representação que lembra a todo momento sua própria
inadequação e impotência. Se um gozo que se evoca da ruptura do semblante,
então devemos segui-lo em sua capacidade produtiva, em sua força de retirar os
sujeitos do império da representação e de seus impasses. Como todo
pensamento dialético, o pensamento lacaniano procura uma literalização da
experiência que lhe coloca fora das amarras do pensamento representativo. Esta
é, de certa forma, a temática de um texto central como Lituraterre.

Escrita e gozo

Lituraterre é um dos raros textos psicanalíticos dedicados à


especificidade do estatuto da literatura enquanto regime de discurso. Nele, Lacan
recusa as formas de utilização hermenêutica da literatura tendo em vista a
explicitação e exemplificação de conceitos psicanalíticos, assim como recusa as
psicobiografias que procuram transformar o horizonte romanesco dos
complexos e teorias da sexualidade em chave explanatória da produção literária.
Esta dupla recusa tem consequências clínicas importantes. Pois não se
trata apenas de discutir o estatuto da literatura enquanto tal, mas as formas do
narrar de si que estão no fundamento da psicanálise. Como dissera
anteriormente, a psicanálise tem uma dependência de certos modelos literários
de narrativa. É claro, por exemplo, a forma romanesca dos casos freudianos, com
seus romances familiares e suas intrigas a serem desveladas. Esta forma

126 LACAN, E., p. 692


127 LACAN, S V, p. 243
128 É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relação

significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua
realização subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
129 LACAN, S XIV, sessão de 24/05/67
romanesca é um operador clínico, já que indica um modo de totalização, de
determinação de causalidade, de produção de síntese que orientará o sujeito em
seus processos de rememoração e simbolização.
Neste sentido, ao discutir a literatura de vanguarda, Lacan procura, na
verdade, fornecer um outro horizonte de narrativa para a clínica analítica. Sua
insistência em pensar uma literatura organizada a partir da letra que,
diferentemente do significante, não se organiza em sistema diferencial-opositivo,
não constitui totalidades, mas opera por repetição e inscrição, permite-lhe
pensar outra forma de operação linguística relacionada à literalização do sujeito
e de sua expressão. Este outro horizonte de narrativa para a clínica analítica é
indissociável de uma possibilidade de reconciliação entre sujeito e linguagem
que não poderia deixar de ter consequências políticas.
Neste conceito de letra está articulado as duas dimensões do ato analítico,
a saber, o ato como dissolução das relações anteriores e como instauração. Sua
dimensão de dissolução está ligada à condição da letra como rasura. Ela está logo
presente na citação que Lacan faz de um jogo de palavras de Finnegans Wake, de
Joyce, entre letter e litter. A importância que Lacan dá a tal jogo de palavras vem
do fato de estarmos em um regime de linguagem marcado pela dissolução da
linguagem em sua dimensão comunicacional a uma exposição de ruínas. A
lembrança de Beckett neste contexto não deixa dúvidas. Pois quem melhor do
que Beckett expôs o caráter atualmente arruinado da linguagem que socialmente
se impõe a nós. Uma linguagem que só por meio da mais brutal violência pode
nos fazer ainda confiar nas relações de causalidade, na certeza produzida pelo
efeito que segue a causa, na recognição produzida pela memória, na
continuidade narrativa com sua orientação de ação pelas noções de necessidade
e desenvolvimento.
Desta forma, a linguagem que pode falar do sujeito será agora uma
linguagem inicialmente marcada pela força de arruinar a linguagem da
comunicação. Ela trará balbucios, gagueiras, palavras gastas que se apresentam
como gastas, impossibilidades de narrativa, recusas ou ainda prazer fonético,
aproximações sonoras. Em suma, rasuras. Como se fosse questão de mostrar
como é impossível continuar a usar a linguagem como até agora se utilizou. Daí
esta maneira lacaniana de dizer que a letra produz um buraco na linguagem,
expõe um saber em fracasso, um saber em questão (“savoir en échec”). A letra
como o que desenha a borda do buraco do saber, dirá Lacan. Neste sentido, se o
verdadeiro ato só se realiza ao fracassar, há de se lembrar como a literatura deve
fazer a forma romance fracassar para poder realizar sua força expressiva. Mas,
como dirá Lacan:

Rasura de nenhum traço que seja anterior, é o que faz terra do litoral.
Litura pura, é o literal. Produzi-la, é reproduzir esta metade sem par
através da qual o sujeito subsiste130.

Ou seja, esta rasura da qual a literatura é composta não é simplesmente a


negação de um traço que lhe seria anterior. Ela é uma litura pura, uma inscrição
que literaliza aquilo do qual ela fala reproduzindo aquilo que, do sujeito, é uma
dimensão sem par, não-contável: a expressão. De certa forma, o que a literatura

130 LACAN; Autres écrits, p. 16


de vanguarda faz, aos olhos de Lacan, é afirmar a potência de um real até então
em deriva através do ato mesmo de arruinar a linguagem. Daí um jogo de
palavras decisivo neste contexto entre litoral e literal.
Isto talvez nos aproxime do momento mais importante de nosso texto, a
saber, este momento no qual Lacan afirma:

É possível do litoral constituir um discurso que se caracteriza por não


emitir semblantes? Eis a questão que apenas a literatura de vanguarda
propõe, literatura que é ela mesma feita de litoral e que não se sustenta
do semblante, mas que prova apenas a quebra, que apenas um discurso
pode produzir, com efeito de produção. É ao que parece pretender uma
literatura em sua ambição de lituraterrir, a saber, ordenar um movimento
que ela chama de científico131.

O que define a experiência daquilo que Lacan chama de “literatura de


vanguarda” é uma tentativa de ser um discurso para além do semblante. O
conceito de semblante neste contexto é central. Ele se contrapõe a uma potência
de descentramento da literatura que transforma o limite em expressão de outra
ordem. Uma pouco como desde o romantismo o limite da forma é exposto como
condição para a reconstituição da expressão.
Lembremos inicialmente como o conceito de semblante será
transformado em um conceito maior na compreensão lacaniana das relações
entre as dimensões do Imaginário, do Simbólico e do Real. Poderíamos dizer que
semblante será, em Lacan, tudo aquilo que não é real. Desde o início de suas
considerações sobre o papel do Imaginário na organização do diverso da
experiência sensível, Lacan nunca cessou de denunciar o caráter ‘enganador’ da
aparência. Ele se pergunta: “Por que o desejo é, na maior parte do tempo, outra
coisa do que parece ser? "132. Ao mesmo tempo, ele sublinha, por exemplo, que a
fascinação sexual do animal e do homem pela imagem mostra como: “os
comportamentos sexuais são especialmente enganáveis "133, já que eles são
estimulados por aparências que, no caso do sujeito humano, vêm das imagens
mnésicas das primeiras experiências de satisfação.
Notemos aqui que a aparência é inicialmente compreendida como o
espaço do Imaginário e de seu sistema de produção de imagens. Assim, quando
Lacan fala da aparência como engano e do final de análise como um: “declínio
imaginário do mundo”134 capaz de nos desvelar a estrutura significante que
constitui o mundo dos objetos do desejo, poderíamos pensar que tal estratégia
indica a existência de uma espécie de oposição entre aparência e essência em
vigor no interior da psicanálise lacaniana. Tal desconfiança nos leva a colocar
uma questão: o que acontece com a aparência (e com as escolhas empíricas de
objeto) quando o desejo se revela na sua verdade de falta-a-ser desprovido de
objeto, desejo que alcança sua verdade na determinação transcendental do falo?
A resposta de Lacan consiste em dizer que a aparência se transforma em
semblante, ou seja, aparência que se coloca enquanto pura aparência. Neste
sentido, a característica maior do semblante é que ele: “não é semblante de outra

131 LACAN; Autres écrits, p. 18


132 LACAN, S II, p. 265
133 LACAN, S I, p. 142.
134 LACAN, S I, p. 258
coisa”135, ou seja, ela não nos reenvia a referência alguma para além da superfície
das aparências. Se o ser do sujeito revelou-se como falta de determinação
empírica, então o que subsiste como aparência deve ser posto como puramente
negativo. Contrariamente à imagem narcísica, imagem que era aparência
enganadora resultante de uma reificação e de uma naturalização do olhar
constitutivo do Outro, o semblante não é imagem reificada. Diante do semblante,
o sujeito sabe que está diante de uma pura aparência que não se coloca mais
como representação que ainda obedeceria ao princípio de adequação136.
Duas vias partem desta maneira de compreender o estatuto ontológico da
aparência. Há a via própria ao gozo fálico e que consiste em assumir uma escolha
de objeto que é na verdade escolha de uma aparência, escolha de uma máscara.
Se a subjetivação da falta através do falo colocou a inadequação de todo objeto
empírico ao desejo, então nada impede o sujeito de gozar de um objeto que, de
uma certa maneira, faz deliberadamente semblante de ser adequado, um objeto
que é uma máscara. Em outras palavras, nada impede que o gozo fálico advenha
gozo perverso. Aqui, o sujeito se bloqueia na dimensão do jogo infinito dos
semblantes e simulacros.
A outra via consiste em pensar uma passagem em direção a uma
experiência do Real a partir do semblante.

135LACAN, S XVIII, sessão do 13/01/71


136Notemos que não estamos muito longe de Deleuze, para quem : “Tudo transformou-se em
simulacro. Pois, por simulacro, não devemos entender uma simples imitação, mas o ato através
do qual a própria idéia de um modelo e de uma posição privilegiada encontra-se contestada,
invertida" (DELEUZE, Différence et répétition, Paris: PUF, 2000, p. 95). Tanto Lacan quanto
Deleuze pensam em uma situação histórica na qual o domínio da apresentação parece não mais
nos enviar a sistemas estruturados de produção de sentido. Mas enquanto Deleuze opera na
vertente do desdobramento da potência do virtual, Lacan insiste na necessidade do advento de
um discurso que não seria do semblante.
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 9

Na aula de hoje, iniciaremos nosso último módulo, a saber, este dedicado ao


conceito de gozo. “O gozo faz a substância de tudo aquilo a respeito do qual
falamos em psicanálise”137, dirá Lacan em seu seminário “De um Outro ao outro”.
Esta afirmação deixava claro o papel estruturante do conceito de gozo no
interior do pensamento lacaniano e de sua clínica. No entanto, ele aparecerá para
Lacan de forma relativamente tardia. Podemos mesmo dizer que o uso do termo
“gozo” como conceito clínico e metapsicológico deverá esperar o Seminário VII: A
ética da psicanálise para, de fato, ser apresentado de forma mais sistemática. Ele
responde a um deslocamento, cada vez mais visível no pensamento lacaniano,
em direção à tematização do uso clínico de processos ligados à dimensão do Real,
o que implica em redistribuir o peso dado aos processos de simbolização,
verbalização e rememoração no interior da clínica.
Mas notemos um dado bibliográfico significativo. Após sua apresentação
no Seminário VII, o conceito de gozo voltará a ser objeto central de análise
principalmente nos seminário XVI (De um Outro ao outro), XVII (O avesso da
psicanálise) e XX (Mais, ainda). Há um dado significativo nesta distribuição. A
tematização do gozo volta às preocupações centrais de Lacan logo após os
acontecimentos de maio de 68, já que o seminário XVI começa no final de 1968. É
evidente, neste contexto, como Lacan faz do conceito de gozo um conceito
fundamental no interior de uma estratégia de crítica social psicanaliticamente
orientada. Pois Lacan lê o capitalismo a partir não de uma economia política, mas
de uma economia libidinal que se constrói através de certas homologias
importantes com a crítica marxista. O capitalismo será descrito não como um
sistema econômico que produziria modos de existência baseados na repressão e
na conformação a padrões disciplinares de conduta, como era a temática
dominante neste momento histórico, mas como um sistema de expropriação do
gozo, de integração do gozo à lógica da produção mercantil e seus padrões de
conta. Ou seja, as temáticas da repressão do desejo como condição de
socialização não estão presentes de formas estruturante em Lacan. No seu lugar,
encontramos a noção de que o capitalismo não reprime o gozo, ele o expropria, o
que significa que ele o reinscreve em uma lógica mais adaptada a sua injunções
de produção. Isto complexifica em demasia as dinâmicas da crítica social. Pois o
conceito de gozo preencherá duas funções distintas: ele será o fundamento da
crítica às sociedades capitalistas e o fundamento dos modos normais de
funcionamento destas mesmas sociedades.
Isto ficará mais claro se levarmos em conta que tal dimensão crítica
própria ao conceito de gozo será suplementada no Seminário XX, onde será
questão de abordar a possibilidade de um gozo capaz de abrir a experiência para
além da inscrição social do desejo através da relação ao falo. Há uma articulação
complexa e necessária entre o que Lacan chamará de gozo fálico, gozo produzido
pela inscrição do desejo através de sua relação ao significante fálico, e
capitalismo. Ou seja, o conceito de gozo é, ao menos tempo, o que sustenta os

137 LACAN; Séminaire XVI, p. 45


modos de reprodução material de nossas formas de vida e o que pode
desestabilizar tal reprodução.
Levando em conta esta dispersão própria ao conceito de gozo, não é difícil
imaginar como haveria uma multiplicidade de maneiras a abordá-lo. Mas neste
curso, eu gostaria de explorar uma que, a meu ver, ainda foi pouco explorada, a
saber, como se trata de um conceito político fundamental da psicanálise
lacaniana. Ele permite a compreensão das dinâmicas de integração do
capitalismo, assim como abre o espaço para a tematização dos processos
subjetivos de ruptura com tais formas de integração. Sua origem, e isto não
poderia nos escapar, não se encontra em textos freudianos, embora Lacan se
esforce em fazer das incidências freudianas do termo Genuss indicações da
presença de um conceito. Mas se quisermos encontrar uma verdadeira
referência ao uso lacaniano do conceito de gozo, deveremos procurar em
Georges Bataille. Por isto, gostaria de começar lembrando do contexto no
interior do qual Bataille desenvolve seu conceito. Pois mesmo as diferenças
evidentes de Lacan e Bataille a respeito do gozo exigem a recomposição do
espaço inicial de problemas compreendidos pelo segundo.

Bataille e a crítica da sociedade do trabalho

Bataille serve-se do conceito de gozo como eixo fundamental de uma


crítica social baseada na crítica da sociedade do trabalho. Ou seja, em suas mãos,
o conceito será, desde o início, ligado a uma certa teoria social na qual a crítica do
capitalismo se insere em um horizonte mais amplo a respeito do advento do
trabalho como modo fundamental de atividade humana. Lembremos, por
exemplo, de afirmações como:

O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à


eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de
refreá-los138.

Nesta citação, vemos Bataille insistir na existência de um modelo de


cálculo, de mensuração, de quantificação derivado da lógica do trabalho e
estranho à “improdutividade” desses modos de relação social que são a festa e o
jogo. Tal modelo é indissociável da noção de “utilidade”, assim como de um
tempo no qual as atividades são medidas tendo em vista o cálculo dos esforços e
investimentos, a “eficácia produtiva” com sua recusa ao desperdício enquanto
horizonte supremo de moralidade de nossas ações. Há uma capacidade de
controle a partir da possibilidade de prever resultados e grandeza que funda o
trabalho como modo de apropriação de minha força e dos objetos. Controle
encarnado no primado da utilidade.
Mas, se nos perguntarmos sobre o que devemos entender por “utilidade”
neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30, intitulado
“A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

138 BATAILLE, Georges; O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 64


A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob
uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à
conservação dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser válido, às necessidades fundamentais da
produção e da conservação139.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema sócio-econômico determinado,
mas principalmente como o princípio fundamental de definição moral da
natureza dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do
capitalismo são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-
conservação, a conservação de seus bens, o cálculo econômico de seus esforços e
a fruição de formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que não nos
coloquem fora de nosso próprio domínio. Eles são aqueles que se julgam
racionais por sempre submeterem sua afetividade à reflexão sobre a utilidade e a
medida. Dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relações entre pessoas acabarão por se submeterem a
racionalidade instrumental da relações entre coisas. Algo que Bataille, à sua
forma, recupera ao afirmar que: “a humanidade, no tempo humano, antianimal
do trabalho é em nós o que nos reduz a coisas”140. Tempo antianimal porque
tempo que se acumula, que conta, que se dispõe como unidade bruta de
contagem, tempo disciplinar do cálculo dos meios em relação a fins. Desta forma,
como lembra Lukàcs: “o tempo perde o seu caráter qualitativo, mutável e fluido:
ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente
mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis”141.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:

A atividade humana não é inteiramente irredutível a processos de


reprodução e de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é

139 BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20


140
Idem; O erotismo, p. 184. Neste sentido, marxistas como Moishe Postone acabam por se aproximar ,
mesmo a contragosto, de tal tipo de crítica do trabalho colocada em circulação por Bataille quando
insistem que “O trabalho social não é somente o objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio,
o terreno da dominação. A forma não pessoal, abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do
capitalismo está aparentemente relacionada à dominação dos indivíduos por seu trabalho social”
(POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
141 LUKÀCS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 205
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os
espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições
primitivas, têm em si mesmas seu fim142.

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do
ponto de vista das exigências econômicas de produção e maximização, são
simplesmente irracionais. A atividade sexual seria um exemplo privilegiado de
atividade improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem
expressa em uma afirmação como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual,


uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na medida em
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele
mesmo o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideração desviou
o homem, senão da consciência dos objetos, ao menos da consciência de
si143.

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construção de Bataille. Primeiro,


trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a lógica do trabalho e a
vida sexual. Isto exige não apenas aceitar desvincular a vida sexual dos
imperativos de reprodução (pois se sexo servisse principalmente para a
reprodução, então ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências
de conservação das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular,
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar,
como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um
complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Não
por outra razão, mais ou menos à mesma época, filósofos ligados à Escola de
Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as
sociedades capitalistas não podiam ser compreendidas como sociedades
repressivas em relação às exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de
contínua incitação à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao
mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento
das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento
constantemente presente para o fortalecimento da coesão social.
Por uma razão desta natureza, Bataille procura pensar a experiência
sexual como aquilo que não se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos
que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por
isto, sua incompatibilidade com o trabalho não é simplesmente derivada da ideia
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles
não tem medida comum, eles não seguem a mesma lógica. Sua relação é de

142 Idem; A parte maldita, p. 21


143 Idem; O erotismo, p. 188
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, não sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, não significa dizer que o erotismo
é mais intenso que o trabalho. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da
alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto
corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenômenos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que não
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua lógica não é a lógica dos objetos
mensuráveis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que não aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que não entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da lógica utilitária. Por isto, ele poderia, ao menos para Bataille, ser
um horizonte de atividades com forte potencial crítico. Como se o gozo fosse o
fundamento da crítica social ao capitalismo.

Lacan e o vínculo entre gozo e pulsão

É tendo algo parecido em vista que Lacan, ao discutir a ética da psicanálise, trará
o conceito de gozo para o centro de suas indagações. Recusando a defesa de uma
liberação naturalista do desejo que levaria à afirmação do “homem do prazer”,
Lacan não faz, por isto, alguma forma de profissão de fé na necessidade de auto-
legislação e auto-governo. Sua estratégia será trazer o gozo para dentro de uma
reflexão ética sobre a direção da clínica.
Neste sentido, ele começará por insistir cada vez mais que a experiência
humana não é um campo de condutas guiadas apenas por imagens ordenadoras
(Imaginário), por estruturas sócio-simbólicas (Simbólico) que visam garantir e
assegurar identidades, mas também por uma força disruptiva cujo nome correto
é Real. Aqui, o Real não deve ser entendido como um horizonte de experiências
concretas acessíveis à consciência imediata. O Real não está ligado a um
problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo
de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou
colonizadas por imagens fantasmáticas. Isto nos explica porque o Real é sempre
descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há coisas
que só se oferecem ao sujeito sob a forma de negações.
O nome lacaniano do modo de acesso ao Real é “gozo”144. Seguindo
Bataille, Lacan insiste que a lógica do comportamento humano não pode ser
totalmente explicada a partir do cálculo utilitarista de maximização do prazer e
de afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exigem a introdução
de um outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula
distinções estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de
uma certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, satisfação e terror.
Indistinção entre satisfação e terror que Lacan chama de “gozo”. Dissolução da

144Para uma análise exaustiva do conceito lacaniano de gozo, ver Christian Dunker, O cálculo
neurótico do gozo (São Paulo: Escuta, 2002)
auto-identidade que ele chama de “destituição subjetiva” e que, de uma maneira
ou de outra, sempre estaria presente em todo final de análise.
Este campo que visa fornecer a inteligibilidade de atos através dos quais o
sujeito procura se confrontar com o que faz vacilar as certezas identitárias de
seu Eu é animado por uma dinâmica pulsional própria à pulsão de morte. Tal
ideia de uma tendência, interna a todo organismo, de retorno ao inorgânico, é um
conceito freudiano extremamente criticado por mais parecer um entulho
metafísico. No entanto, ele é central em Lacan, isto a ponto dele afirmar que
“toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”145.
Há uma estratégia ética neste uso da pulsão de morte, por mais
contraintuitivo que isto possa parecer. Lembremos de Lacan afirmando: “O que é
o instinto de morte? O que é esta forma de lei para além de toda lei, que só pode
se colocar como uma estrutura última, um ponto de fuga de toda realidade
possível a alcançar?”146. A colocação é clara: a pulsão de morte aparece como um
lei para além de toda lei, uma estrutura última que abre o espaço a uma linha de
fuga em relação a toda realidade socialmente organizada. Ela abrirá o espaço a
uma ação que desestabiliza as determinações da estrutura e que é descrita como
realização de uma “verdade liberadora”147 que expressa o caráter imperioso do
desejo.
Mas o que pode significar que a pulsão de morte é uma verdade
liberadora? Estaria Lacan a colocar um gozo mortífero como horizonte de final
de análise, como vários comentadores criticaram? De fato, Lacan quer conservar
a ideia da pulsão como retorno em direção à morte, mas é o próprio conceito de
“morte” que se transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgânica,
morte pensada a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente
inanimada, Lacan procura a possibilidade de satisfazer a pulsão através de uma
“morte simbólica” ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruição da
pessoa própria à satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a
morte procurada pela pulsão é realmente a “auto-destruição da pessoa”, mas à
condição de entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um
universo simbólico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenológico
que nomeia a suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de
identidades. Por isto, ela não descreve o destino de nossa presença física, mas
uma transformação de ordem moral.
Se tal operador fenomenológico descreve uma operação de ordem moral,
é porque ele fornece o fundamento para o advento de outras formas de
relacionalidade. A descoberta, em si mesmo, de algo que se manifesta como auto-
destruição da pessoa não nos leva, necessariamente, à defesa compulsiva contra
tudo o que poderia colocar em questão nossa identidade. Ela pode nos levar, ao
contrário, à abertura a uma alteridade que nos constitui e que procura se realizar
para além dos sistemas de propriedade e identidades da pessoa. Daí porque
Lacan deve reposicionar o problema do gozo e da pulsão de morte no interior de
uma discussão organizada a partir de dinâmicas de reconhecimento da
alteridade. Este é o sentido do problema da relação entre sujeito e das Ding, que
ocupa um lugar central no Seminário VII.

145 Jacques Lacan, Escritos, p. 848


146 LACAN; Séminaire VII, p. 29
147 idem, p. 32
Lacan irá encontrar das Ding em um manuscrito de Freud, Projeto para
uma psicologia científica. Após o Seminário VII, das Ding vai praticamente
desaparecer dos textos lacanianos, já que, de uma certa maneira, sua função será
absorvido pelo objeto a. Sabemos que, em Freud, o movimento próprio ao desejo
é pensado através da repetição alucinatória de experiências primeiras de
satisfação. Estas primeiras experiências deixam imagens mnésicas de satisfação
no sistema psíquico. Quando um estado de tensão ou de desejo reaparece, o
sistema psíquico atualiza de uma maneira automática tais imagens, sem saber se
o objeto correspondente está ou não está efetivamente presente. A fim de não
confundir percepção e alucinação, faz-se necessária uma prova de realidade. O
fator complicador é que Freud sabe como a articulação entre a percepção de um
objeto no mundo exterior e a imagem mnésica de satisfação pressupõe uma
possibilidade de julgamento (Urteil) feito pelo eu. A estrutura sintática do
julgamento vai permitir ao eu desenvolver operações mais complexas do que a
simples comparação biunívoca. Por exemplo, ele poderá aproximar o objeto e a
imagem através da divisão sintática entre sujeito e predicado. Se um objeto é
apenas parcialmente semelhante à imagem mnésica, o eu poderá julgar que as
diferenças dizem respeito aos predicados, aos atributos, ou seja, dizem respeito a
acidentes, e não ao núcleo do objeto, que aparece no sujeito proposicional. Isto
permite ao eu estabelecer uma relação de identidade a partir do sujeito
proposicional e submeter a realidade ao prazer.
Mas há um segundo tipo de caso; este é o que interessa realmente a Lacan.
Em certas situações pode surgir: "uma percepção que não se harmoniza de
maneira alguma com a imagem mnemônica desejada"148. No Projeto, Freud a
introduz através do chamado complexo do semelhante ou, ainda, do humano-ao-
lado (Komplex des Nebenmensch), quer dizer, a primeira experiência na qual o
objeto vindo do exterior é um semelhante, "um objeto da mesma ordem deste
que trouxe ao sujeito sua primeira satisfação (e também seu primeiro desprazer)
"149, quer dizer, a mãe. O que acontece quando a criança está diante de um
semelhante pela primeira vez? Aqui, vemos uma inversão em relação ao exemplo
anterior. O eu divide o objeto, mas é o sujeito da proposição que continua opaco.
Freud diz que ele continua unido como coisa (als Ding beisammenbleibt); isto
enquanto os atributos, os predicados, serão compreendidos e transformados em
representações (Vorstellung) mnésicas. Esta articulação é extremamente
importante pois, como nos assinala Lacan, trata-se de uma: "fórmula totalmente
surpreendente na medida em que ela articula fortemente o ao-lado e a
semelhança, a separação e a identidade"150.
Quando a criança está diante de um semelhante, o eu inscreve no interior
do sistema psíquico tudo o que é familiar: os traços do rosto do outro, os
movimentos do corpo etc. Tudo isto se transforma em um complexo de
representações. Mas há qualquer Coisa que continua inassimilável à
representação, inassimilável à imagem e que, no entanto, aparece na posição
gramatical do sujeito do julgamento. Trata-se da irredutível estranheza do
próximo, a mesma irredutibilidade que aparecerá mais tarde em Freud sob o
conceito de das Unheimliche e que indica, entre outras coisas, a angústia vinda

148 FREUD, GW vol. XVIII, p. 426


149 FREUD, GW vol. XVIII, p. 426
150 LACAN, S VII, p. 64
da percepção do duplo. Angústia que nos lembra como a verdadeira alteridade
vem daquilo que nos é mais familiar, já que ela embaralha a divisão entre
diferença e identidade, entre próximo e distante, entre eu e outro.
Lacan articula o Projeto ao texto freudiano sobre A negação (Die
Verneinung) a fim de indicar como das Ding não é outra coisa que o que foi
forcluído (verworfen) pelo Eu-prazer (Lust-Ich) através de um julgamento de
atribuição. Lembremo-nos que, através de um julgamento de atribuição, o eu
procurava expulsar para fora de si o Real (sobretudo o Real das moções
pulsionais) que rompia com o princípio de constância no plano das excitações do
aparelho psíquico. Tal expulsão permitia o desenvolvimento das operações
primordiais de simbolização que formarão o sistema de representação
significante.
Aqui, a astúcia de Lacan, mobilizada para aproximar sua construção
metapsicológica da estratégia kantiana de determinação de uma vontade moral,
consistia em mostrar como há um desejo que sempre procura alcançar das Ding.
Trata-se de um desejo que quer a transgressão de um gozo para além do
princípio do prazer, já que alcançar das Ding significa necessariamente aniquilar
o sistema de determinação fixa de identidades e de diferenças que funda o eu. E a
aniquilação da ilusão de identidade própria ao eu só pode produzir a angústia da
dissolução. Notemos como a temático de das Ding se liga ao problema do
reconhecimento. Das Ding apareceu em Freud como o limite ao reconhecimento
do outro já que se trata da manifestação da negatividade própria à alteridade 151.
Em Lacan, ele continua a desempenhar este papel. O que lhe leva a afirmar:

Se algo, no cume do mandamento ético, termina de maneira tão estranha,


tão escandalosa para o sentimento de alguns, por se articular sob a forma
do Amarás seu próximo como a si mesmo, é que é próprio à lei da relação
do sujeito humano a si mesmo que ele se faça, em si mesmo, na sua
relação a seu próprio desejo, seu próprio próximo152.

Gozo e crítica

No Seminário VII, Lacan afirma que a pulsão não se limita a ser um


conceito psicológico, mas se trata de um conceito ontológico absolutamente
central que responde a uma crise da consciência que seria própria ao nosso
tempo. Esta era sua forma de afirmar que a pulsão expressa uma estratégia
crítica ao primado da consciência. Primado este a ser situado não apenas como
atribuição geral de um conceito psicológico, mas como estratégia ontológica de
definição das condições gerais de forma de vida. A consciência traz consigo um
modo de presença, de determinação de objetos, de definição das condições da
ação, de autonomia, de deliberação. Insistir em sua crise é colocar em questão
todas essas operações.
Lacan se confronta a tal crise pensando as estruturas da consciência
desejante. Daí porque ele insistirá que a psicanálise é uma alusão perpétua à
fecundidade do erotismo na ética. Este erotismo tende a vincular o prazer à
inscrição simbólica ao qual o sujeito se submete e a definir o gozo como aquilo

151 "Esta análise de um complexo perceptivo foi qualificada de reconhecimento (erkennen),


implica um julgamento e termina com este último" (FREUD, GW vol. XVIII, p. 427)
152 LACAN, S VII, p. 92
que se orienta por um lugar que “padece do significante”. No entanto, como
vimos anteriormente, o que está para além do prazer tem relações necessárias
com a pulsão de morte. No que nosso problema se torna assim o que significa
integrar politicamente a pulsão de morte. O uso do gozo como conceito crítico é,
do ponto de vista psicanalítico, indissociável do problema do destino da pulsão
de morte no interior da experiência social. Pois devemos pensar as incidências
da pulsão de morte apenas sob as figuras do instinto de destruição, da crueldade
e, com isto, a partir do problema da violência imanente às relações sociais entre
indivíduos? Ou haveria para a pulsão de morte outro destino social? Pois a
pulsão de morte e sua satisfação poderiam responder pelos fundamentos
pulsionais de vínculos sociais baseados na relação a uma noção de alteridade que
não se reduz à condição da alteridade de outra consciência. Notemos as
consequências de uma colocação como:

A pulsão de morte é uma sublimação criacionista, ligada ao elemento


estrutural que faz com que, desde que nos relacionemos ao que quer que
seja que se apresenta sob a forma da cadeia significante, há algum lugar,
mas seguramente fora do mundo da natureza, o para além desta cadeia, o
ex nihilo sobre o qual ela se funda e se articula como tal153.

Se a pulsão de morte é ligada a uma sublimação criacionista é porque a


produção está sendo pensada como um domínio de criação ex nihilo. Neste
sentido, a produção social necessita passar pelo que se coloca para além da
cadeia significante. No entanto, esta dimensão de um para além determina as
formas de relação com o que redimensiona toda tematização da experiência.
Lacan chega a utilizar o exemplo do potlatch e sua destruição dos bens como
função reveladora de valor, recuperando uma temática cara a Bataille sua “parte
maldita”:

Tudo se passa como se a colocação no primeiro plano da problemática do


desejo chamasse como seu correlato necessário a necessidade dessas
destruições chamadas “de prestígio”, já que elas se manifestam como
gratuitas154.

Lacan compreende o gozo provocado por tais destruições como algo


instaurador de vínculos e destruidor de um regime de utilidade e valor interno
às sociedades capitalistas. Como se, de certa forma, o capitalismo não conhecesse
a pulsão de morte, já que ele não conheceria estas sublimações criadoras que
suspendem os regimes de determinação de valor e utilidade. Daí porque Lacan
insistirá várias vezes que o gozo é aquilo que não serve para nada.
Lembremos, para finalizar, o que este uso paradigmático do potlatch
significa. Como sabemos, o potlatch, praticado principalmente por alguns tribos
da costa noroeste dos EUA como os Tsimshiam, os Kwakiutl, os Haida e os
Tlingit, é um meio de circulação das riquezas através do dom. Um chefe oferece
riquezas a seu rival afim de desafiá-lo e obrigá-lo a uma retribuição mais alta.
Como lembra Bataille, “ele deve retribuir com usura”155, pois “a ‘devolução’ é

153 LACAN, S VII, p. 252


154 Idem, p. 276
155 BATAILLE, Georges; A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 78
sempre maior e mais cara”156. No entanto, o potlatch não se dá apenas sob a
forma de dom, mas pode se dar também sob a forma de destruição na qual um
rival é desafiado pelo gesto de destruição solene de riquezas. Lacan se interessa
principalmente a esta versão extrema do potlatch na qual os bens não são sequer
trocados, mas destruídos em uma manifestação suntuária infinita. Jogo mútuo de
destruição da riqueza e utilidade, compreendido por Lacan como expressão de
uma luta por prestígio, um pouco como vemos na leitura de Bataille157. Mas ao
invés de falar das condições para a afirmação da soberania, como o faz Bataille,
Lacan se interessa, na verdade, pela ideia de circulação do que só se apresenta
como destruição contínua dos objetos até a exaustão, ou melhor, do que só se
apresenta destruindo continuamente os objetos até a exaustão. Fato que
demonstra “que a destruição dos bens como tais pode ter uma função reveladora
de valor” (LACAN, 1986, p. 275). Este modo de circulação de objetos é o espaço
da desmesura, pois é construção de vínculos através do que não se mede, do que
se gasta em um dispêndio sem utilidade, do que nos lembra que “o gozo é aquilo
que serve para nada”158. É fazendo apelo ao gozo produzido por tais relações que
Lacan acredita poder reposicionar a crítica do capitalismo.
Por isto, a psicanálise, dirá Lacan ao final do seu seminário VII, não pode
procurar se colocar sob o signo da “demanda de felicidade”, até porque “a
felicidade se transformou em um fator da política”, já que ela pressupõe alguma
forma de conciliação entre o desejo e as possibilidade atuais de determinação
social. No entanto, ela se colocará sob o signo da escuta de um gozo a respeito do
qual o sujeito não sabe o que fazer. Uma escuta que deverá constituir um
movimento de “passagem ao limite”. Uma passagem ao limite, uma aproximação
que Lacan descreverá da seguinte maneira:

No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode


acompanhar o paciente até o limite estático do Tu és isso, onde se revela a
marca de seu destino mortal, mas não está em nosso poder de clínicos de levá-
lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem159

156 MAUSS, Marcel; Sociologia e psicologia, São Paulo: Cosac e Naif, 2003, p. 294
157 Neste sentido: “o prestígio, a glória, a posição não podem ser confundidos com o poderio. Ou,
se o prestígio é poderio, ele o é na medida em que o próprio poderia escapa às considerações de
força ou de direito a que habitualmente é submetido (…) A glória, consequência de uma
superioridade, é outra coisa além de um poder de tomar o lugar de outrem oude se apoderar de
seus bens: ela exprime um momento de frenesi insensato, de dispêndio de energia sem medida,
que o ardor do combate pressupõe” (BATAILLE, Georges; idem, p. 79)
158 LACAN, Jacques; Seminaire XX, Paris: Seuil, 1973, p. 10
159 idem, p. 100
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 10

Na aula passada, começamos a discussão a respeito da natureza política do


conceito de gozo em Lacan. Eu insistira como ele deveria ser compreendido,
inicialmente, como conceito operativo no interior de uma crítica da sociedade do
trabalho e de suas formas de socialização. Desde Bataille, o gozo aparecia como o
eixo de relações sociais não submetidas aos modos de determinação próprios à
sociedade do trabalho, com sua mensuração, sua funcionalidade dos objetos,
seus padrões de utilidade e de reprodução material da vida social. Desde este
momento, a crítica às formas de socialização no interior das sociedades
capitalistas do trabalho não era feita tendo em vista a defesa de alguma forma de
hedonismo e de afirmação do prazer. Na verdade, a distinção entre gozo e prazer
já se fazia sentir, já que o prazer era reduzido ao primado utilitarista da agência
racional como maximização de interesses e afastamento do desprazer.
Vimos que o uso lacaniano do conceito de gozo partia deste quadro. Sua
estratégia será trazer o gozo para dentro de uma reflexão ética sobre a direção
da clínica. Tal estratégia se consolidava através do vínculo entre gozo e pulsão de
morte. Caberia a psicanálise permitir a relação com um gozo que impulsiona os
sujeitos a atravessar a fantasia e viver a pulsão, como veremos na formulação
que aparecerá no Seminário XI. Como “toda pulsão é virtualmente pulsão de
morte” fica a questão de saber o que pode significar viver a pulsão neste contexto
e porque tal relação à pulsão de morte, tal subjetivação da pulsão de morte teria
necessariamente uma consequência ética e política.
Eu insistira com vocês que a subjetivação da pulsão de morte deveria ser
inscrita no interior de uma reflexão sobre estruturas de relacionalidade. A
perspectiva ética de Lacan funda-se no problema da relação à alteridade, não no
sentido do reconhecimento do outro e da tolerância para com sua diferença, mas
no sentido das consequências éticas e políticas da constituição de uma outra
forma de relação a si na qual o si mesmo apareça como portador de diferença
interna. As relações ao outro podem não ser projetivas apenas à condição de
serem homólogas a relações não-idênticas a si mesmo. Por isto, é fundamental
que o sujeito reconheça a extensão do caráter negativo de sua estrutura
pulsional.
No entanto, não se trata aqui de reconhecer o potencial de agressividade,
de destruição e de crueldade que sujeitos portariam em si devido à presença da
pulsão de morte. Se assim fosse, apenas retornaríamos a uma versão pulsional
do estado de natureza hobbesiano onde as relações entre indivíduos são
marcados por dinâmicas de agressividade, concorrência e crueldade. Em Lacan, a
negatividade da pulsão de morte tem uma dimensão produtiva de relações já que
ela permite a constituição de relações para além da estrutura da pessoa, de seus
interesses e atributo. Pois, de fato, Lacan quer conservar a ideia da pulsão como
retorno em direção à morte, mas é o próprio conceito de “morte” que se
transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgânica, morte pensada
a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente inanimada, Lacan
procura a possibilidade de satisfazer a pulsão através de uma “morte simbólica”
ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruição da pessoa própria à
satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a morte procurada pela
pulsão é realmente a “auto-destruição da pessoa”, mas à condição de
entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um universo
simbólico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenológico que nomeia
a suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de identidades. Por
isto, ela não descreve o destino de nossa presença física, mas uma transformação
de ordem moral. Transformação esta que permite aos sujeitos um modelo de
relação à diferença com forte potencial transformador, pois pulsionalmente
fundado.
Desta forma, a psicanálise, dirá Lacan ao final do seu seminário VII, não
pode procurar se colocar sob o signo da “demanda de felicidade”, até porque “a
felicidade se transformou em um fator da política”, já que ela pressupõe alguma
forma de conciliação entre o desejo e as possibilidade atuais de determinação
social. No entanto, a psicanálise se colocará sob o signo da escuta de um gozo a
respeito do qual o sujeito não sabe o que fazer. Uma escuta que deverá constituir
um movimento de “passagem ao limite”. Uma passagem ao limite, uma
aproximação que Lacan descreverá da seguinte maneira:

No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode


acompanhar o paciente até o limite estático do Tu és isso, onde se revela a
marca de seu destino mortal, mas não está em nosso poder de clínicos de
levá-lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem160

Gozo e capitalismo

Este esquema se complexifica com os seminários XVI e XVII. Pois neles, Lacan
apresenta uma outra faceta política do conceito de gozo, a saber, sua função no
interior de uma teoria da estrutura libidinal do capitalismo. A tese fundamental
de Lacan é de que a dinâmica libidinal do capitalismo, seus modos de adesão
subjetiva às injunções próprias à racionalidade econômica, não pode ser
compreendida a partir da temática dos processos de repressão e de conformação
disciplinar do desejo. Pois o capitalismo nunca poderia ser um modo de
existência baseado na simples renúncia ao gozo. Na verdade, não há modo de
existência social que construa suas dinâmicas de adesão através da simples
renúncia. O capitalismo se funda no que Lacan chama de “espoliação do gozo”, ou
seja, na inscrição de seu excesso no interior das dinâmicas de reprodução social:
“O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo. E no entanto esta
mais-valia é o memorial do mais-gozar, seu equivalente do mais-gozar”161. Há de
se entender então como tal espoliação se dá, como este excesso anima o
capitalismo por dentro e para tanto Lacan se serve de homologias fundamentais
entre a crítica marxista da economia política e a crítica psicanalítica da economia
libidinal do capitalismo.
Há quatro pontos fundamentais na leitura feita por Lacan do capitalismo.
Primeiro, há o que podemos chamar de “espoliação do gozo através da produção
do mais-gozar”. Segundo, temos a defesa lacaniana de uma forclusão da
castração pelo capitalismo. Terceiro, temos a compreensão do capitalismo trazer

160 idem, p. 100


161 LACAN, S XVII, p. 92
uma nova forma de dominação e mestria vinculada à relação saber/poder. Por
fim, Lacan fará uma crítica a crença marxista do proletariado como sujeito
revolucionário por ver, no uso marxista do proletariado, a conservação de uma
relação ao saber que é fundamento da dominação social sob o capitalismo.
Comecemos então com o problema do capitalismo como modo de
espoliação do gozo. Há várias maneiras de discutir este ponto, mas eu gostaria de
sugerir uma ligada a uma mutação no interior do capitalismo que ocorrerá, mais
ou menos, na mesma época que Lacan tematiza sua crítica da economia libidinal
do capitalismo. Tal mutação está ligada à hegemonia do neoliberalismo. De certa
forma, a reflexão lacaniana sobre o capitalismo já se inscreve no interior dos
modos de reprodução próprios ao advento do neoliberalismo. Há sua maneira, as
colocações de Lacan acabam por se adaptar de forma privilegiada à configuração
psíquica do neoliberalismo.
O neoliberalismo não é apenas um modo de regulação dos sistemas de
trocas econômicas baseado na maximização da concorrência e do dito livre-
comércio. Ele é um regime de gestão social e produção de formas de vida. Neste
sentido, toda reflexão sobre o neoliberalismo talvez tenha de partir de um
paradoxo aparente. Poderíamos começar lembrando como o desmantelamento
neoliberal do sistema de seguridade social construído pelos ditos Estados de
Bem-estar a partir dos anos setenta provocou a liberação de um processo de
expropriação da mais-valia absoluta, ou seja, de acumulação econômica através
de uma expropriação baseada na intensificação dos regimes de trabalho e na
redução dos salários. No entanto, tal processo ocorreu paradoxalmente a partir
do momento em que as sociedades capitalistas não podiam mais constituir sua
coesão social e sua adesão psicológica a tal processo através do recurso aos
modelos de internalização psíquica de uma ética do trabalho de moldes
weberianos; devido, entre outras coisas, ao desenvolvimento exponencial da
sociedade de consumo e suas exigências de mobilização total dos desejos, de
enunciação integral dos desejos no interior da esfera da multiplicação da
satisfação mercantil. Neste momento, em que um novo ethos do capitalismo se
fazia necessário, o neoliberalismo conseguiu consolidá-lo através de uma certa
expropriação direta da economia libidinal dos sujeitos.
A disciplina neoliberal não pode ser compreendida como simples
conjunto de condições para a internalização de dinâmicas repressivas capazes de
determinar sujeitos em individualidades rígidas e funcionalizadas, como vemos
nas “sanções psicológicas” da moralidade própria ao espírito protestante do
capitalismo, tal como descrito por Weber. Por serem repressivas, tais estruturas
disciplinares produziam subjetividades clivadas entre exigências de
conformação social e uma “outra cena” na qual se alojava a potência
desreguladora do desejo. A uniformização disciplinar criava uma matriz de
conflito claramente presente na fratura entre princípio de realidade e desejo
recalcado cujo modelo de sofrimento psíquico era tão claramente expresso nas
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestão social que se
queiram realmente eficazes não podem permitir clivagens desta natureza com a
consequente constituição de um polo alternativo de motivações para o agir, que
encontrariam muitas vezes expressão em atividades normalmente dissociadas
do universo compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como
improdutivas (como o sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, etc.). Ele
deve expropriar todas as esferas que poderiam fornecer espaço para
experiências que não se deixam ler a partir da lógica em operação na esfera
econômica.
Mas expropriar só é possível aqui através da absorção da própria
dinâmica pulsional pela lógica econômica, ou seja, através de uma socialização
das pulsões que não passe mais, de forma hegemônica, pelas clivagens
organizadas sob a forma do recalque. Uma socialização que não é simplesmente
retorno à temática da integração das demandas particulares de satisfação por
uma sociedade cada vez mais “hedonista”, topos clássico de uma crítica moral da
sociedade de consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura
polimórfica e disruptiva da ordem das pulsões, sua potência de indeterminação e
gozo é traduzida em um novo papel sócio-econômico.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equação através da constituição
de um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar, cuja base psíquica
se encontra na noção lacaniana de uma mutação da relação entre supereu e
repressão. Assim, se nos perguntarmos sobre como foi possível colocar em
marcha um processo de recentragem da acumulação através da extração da
mais-valia absoluta no momento em que não havia mais condições para apelar à
ética protestante do trabalho, responderemos que devemos estar atento a
maneira com que um certo “consentimento moral”162 a tal expropriação, vindo
exatamente daqueles que dela mais sofrem, constitui-se graças ao impacto
psíquico da internalização de um “ideal empresarial de si”.
Normalmente, insistimos que este ideal empresarial de si foi o resultado
psíquico necessário da estratégia neoliberal de construir uma “formalização da
sociedade com base no modelo da empresa”163, o que permitiu à lógica mercantil,
entre outras coisas, ser usada como tribunal econômico contra o poder público.
Pois é fundamental ao neoliberalismo “a extensão e disseminação dos valores do
mercado à política social e a todas as instituições”164. A generalização da forma-
empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-
compreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade
de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno de “capitais” 165 e que
compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a
produção de “inteligência emocional”166 e otimização de suas competências
afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” 167 ,
fundamento normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e
controle baseado na auto-avaliação constante de si a partir de critérios derivados
do mundo da administração de empresas. Esta retradução das dimensões gerais
das relações inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica
baseada no “cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface
entre governo e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais
enraizados psiquicamente.

162 Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel;
Das recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
163 FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
164 BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,

Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50


165 Fundamental para isto foi a consolidação do uso da noção de “capital humano” tal como

podemos encontrar em BECKER, Gary; Human Capital: a theoretical and empirical analysis with a
special reference to education, University of Chicago Press, 1994
166 Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
167 DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
Notemos ainda que esta internalização de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administração de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrático weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da
produtividade. Esta “humanização” da empresa capitalista, responsável pela
criação de uma zona intermediária entre técnicas de gestão e regimes de
intervenção terapêutica, com um vocabulário entre a administração e a
psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no interior do mundo do trabalho
que levou à “fusão progressiva dos repertórios do mercado com as linguagens do
eu”168. As relações de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor
geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas de intervenção
terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrões
de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da
administração de empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível ao
neoliberalismo reconstruir processos de socialização, em todas as esferas sociais
de valores, através da internalização de um ideal empresarial de si.

O infinito ruim do capitalismo

Mas voltemos os olhos para a estrutura interna dos ideais empresariais de


si a fim de compreender melhor a natureza de suas disposições normativas. Este
é o ponto que mais nos interessa. Lembremos, neste sentido, como tais ideais se
baseiam na racionalização das ações a partir de uma dinâmica de maximização
de performances e intensidades. Ações que visam à pura maximização de
performances devem se organizar de maneira similar a atividades econômicas
baseadas na extração da mais-valia e, por consequência, nos processos de auto-
valorização circular do Capital. Este é o sentido fundamental da estratégia
lacaniana em insistir na homologia entre a forma pela qual objetos que causam o
desejo (objetos a) circulam socialmente no interior das sociedades capitalistas
contemporâneas e o estatuto da mais-valia em Marx, criando com isto o sintagma
“mais-gozar” (plus-de-jouir).
Lacan se interessa pelo fato da mais-valia poder ser extraída a partir do
momento em que o trabalho social inscreve-se no mercado como trabalho
abstrato, mensurável como puro quantum de trabalho, permitindo com isto que
o capitalismo se sirva da dessimetria entre valor pago pelo tempo de trabalho e
valor dos objetos produzidos durante tal tempo quantificado. Assim, se Lacan
pode afirmar que “o que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo”, é
para lembrar que a renúncia ao gozo produzida pela abstração do tempo de
trabalho (tema batailleano por excelência que nos lembra como o tempo do gozo
e o tempo do trabalho não se confundem), esta “redução do próprio trabalhador
a não ser nada mais que valor” 169, ou seja, não ser mais que suporte do processo

168 Idem, p. 154


169 LACAN, Jacques; Séminaire XVII, Paris: Seuil, 1991, p. 93
de produção do valor, permite a produção de um mais-valor que inaugura a
circulação incessante da auto-valorização do Capital. Circulação do que “é
absolutamente urgente gastar. Se não se gasta, isto produz toda forma de
consequência”170. Assim, Lacan dirá que há uma renúncia ao gozo através da
produção do mais-gozar:

O mais-gozar é função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É o


que fornece seu lugar ao objeto a. Como o mercado define como
mercadoria qualquer objeto que seja do trabalho humano, tal objeto porta
em si mesmo algo do mais-gozar171.

“Renúncia ao gozo sob o efeito do discurso” porque o discurso produz


uma perda através da inscrição do sujeito no significante, em um discurso que
também é saber, um saber contábil. A sujeição ao significante não poderia ser
feita sem uma renúncia ao gozo, o que vimos desde o seminário VII quando
Lacan definia das Ding como “o que padece do significante”. Pois se trata de
permitir ao desejo inscrever-se no interior de um sistema de representações e de
homeostase.
No entanto esta renúncia ao gozo é integrada sob a forma do que
impulsiona processos cada vez mais extensivos de auto-valorização. Daí porque
ela se constitui como mais-gozar. Esta racionalidade própria a uma sociedade
organizada a partir da circulação do que não tem outra função a não ser se auto-
valorizar, que determina as ações dos sujeitos a partir da produção do valor,
precisa socializar o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da
intensificação, pelo puro empuxo à ampliação que estabelece os objetos de desejo
em um circuito incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar.
Assim é possível afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’
definem em última análise uma subjetivação do excesso de si sobre si ou ainda
pela ultrapassagem indefinida de si”172. Isto a ponto de Lacan afirmar que a
estrutura da dominação se modificação quando: “a partir de certo dia, o mais-
gozar se conta, se contabiliza, se totaliza”173.
Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura medida da
intensificação, pede uma economia psíquica não mais assentada em um supereu
repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condição de imperativo
transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua própria
encarnação, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunção contínua ao gozo.
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo
capitalista de acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusões de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relações por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se
transforma em modificação qualitativa. Sob a forma-empresa, ao contrário, todo
excesso é financeiramente codificável, é confirmação do código previamente
definido, de um saber de inscrição e produção. Como diria Hegel a respeito de

170 Idem, p. 19
171 LACAN, SXVI, p. 19
172 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
173 LACAN, SXVII, p. 207
outros fenômenos, esse excesso é marca de uma má infinitude, pois não passa ao
infinito verdadeiro do que muda sua própria forma de determinação a partir de
si, do que é infinito por realizar-se produzindo paradoxalmente a exceção de si.
Uma exceção que, ao ser integrada, modifica processualmente a estrutura da
totalidade anteriormente pressuposta. Antes, ele é o infinito ruim do que é
sempre assombrado por um para além que nunca se encarna, para além cuja
única função é marcar a efetividade com o selo da inadequação, do gosto amargo
do “ainda não”. A análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. É neste ponto que talvez fique mais clara uma afirmação centra de
Lacan como:

Ce qui distingue le discours du capitalisme est ceci ― la Verwerfung, le


rejet en dehors de tous les champs du symbolique […] le rejet de quoi ? De
la castration. Tout ordre, tout discours qui s’apparente du capitalisme
laisse de côté ce que nous appellerons simplement les choses de l’amour

Uma leitura incorreta desta afirmação nos levaria a crer que Lacan acusa
o capitalismo de desconhecer a impossibilidade de satisfação do desejo, sua falta
constitutiva, isto através de uma proliferação de meios de incitação e prazeres.
Um pouco como se estivéssemos a ver mais uma versão de uma crítica moral ao
pretenso hedonismo capitalista. No entanto, o erro aqui consiste em não
entender como a problemática da castração funciona neste momento do
pensamento lacaniano. Veremos melhor este ponto na aula que vem, quando for
questão de uma discussão a respeito de elaborações importantes do Seminário
XX. Por enquanto, lembremos como Lacan afirma: “a castração, que é o signo que
adorna a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do Outro só se promove da
infinitude”174. Ou seja, por mais contraintuitivo que isto possa parecer, a
castração aparece aqui como condição para a realização de certa infinitude
ligada ao gozo. Porque, neste contexto, a castração indica que a relação sexual
não pode se realizar como unidade, como afirmação do primado do Um, como
constituição de relações de complementaridade, de simetria, mas como relação
em disjunção: única forma, aos olhos de Lacan, para realizar uma relação à
diferença que, como vimos desde o seminário VII, é um tópico fundamental da
contribuição ética da psicanálise. Desta forma, a castração deverá aparece como
o que impede a relação sexual entre sujeitos que tiveram seus desejos inscritos
sob a forma do Falo se realizar. Mas esta é uma maneira, como veremos na aula
que vem, de abrir a experiência à possibilidade de um gozo outro.
Neste sentido, a afirmação de que o capitalismo forclui a castração
significa insistir que, em seu interior, não há espaço para uma infinitude que não
se dá sob a forma infinito ruim do mais-gozar e de sua maximização de
performances, da procura infinito ruim pelo mais-gozar. Uma infinitude que nos
lembra que sua atualização só pode se dar à condição da dissolução dos modos
de relação como até agora se constituíram e até agora permitiram a reprodução
material de nossa vida social. Por isto que o capitalismo nada sabe sobre as
coisas do amor, pois como o erotismo em Bataille, o amor não saberia o que fazer
no interior de um infinito contábil. Por outro lado, a ideia da forclusão aqui apela
a uma noção de expulsão da ordem simbólica e de retorno no real sob as formas

174 LACAN, Jacques; S XX, p. 13


múltiplas do delírio social. O gozo expulso da ordem simbólica não é
simplesmente eliminado, ele retorna como o que parece a todo momento colocar
tal ordem em cheque de fora, ela a assombra com todas as formas paranóicas do
delírio (perseguição, grandeza, destruição etc.).
Neste momento, podemos compreender o terceiro ponto da crítica de
Lacan ao capitalismo, a saber, a maneira com que ele constitui novas formas de
dominação baseadas em uma predominância das relações de saber. Lacan insiste
em vários momentos que o capitalismo implica, principalmente, uma mudança
no lugar do saber que produz uma diferença estrutural entre aquilo que ele
chama de “mestre antigo” e o “mestre” no interior do discurso do capitalismo.
Sabemos como Lacan insiste que estaríamos atualmente diante de uma
modificação estrutural nos regimes sociais de discurso. A principal destas
modificações diria respeito ao destino daquilo que ele entende por “discurso do
mestre”.
Lembremos como a teoria dos discursos de Lacan, nascida exatamente
após maio de 68, comporta quatro posições: a agente, o outro, a produção e a
verdade. A base de todos é o chamado discurso do mestre: S1/$  S2/a, onde
um agente na posição de significante mestre interpela/fundamenta um outro
como cadeia significante produzindo um resto cuja verdade é o sujeito clivado.
Trata-se de um discurso do mestre porque ele procura formalizar o princípio do
poder. O poder se constitui através de um fundamento que mascara a divisão do
sujeito e, no entanto, produz um objeto a que caíra sob a barra, ou seja, que não
aparecerá nunca na posição de agente.
Em vários momentos, Lacan se serve da estrutura da dialética hegeliana
do senhor e do escravo para dar conta das relações internas a sua teoria dos
discursos. Por exemplo, ele descreverá a relação entre o agente e o outro como
uma relação entre senhor e escravo, na qual o senhor retira do escravo seu saber
ao se colocar como aquele para o qual o agir do escravo é dirigido, Lacan falará
em subtração do saber do escravo pelo mestre. É só desta forma que S1 pode
aparecer como: “o Eu idêntico a si mesmo”, “isto precisamente com o qual se
constitui o S1 do imperativo puro”175. Ou seja, Lacan não concorda com a ideia de
que um saber é constituido a partir das vias do trabalho, como ele lê em Hegel:
“nós estamos a vontade para colocar em duvida que o trabalho engendre no
horizonte um saber absoluto, nem mesmo saber algum” 176. Esta é sua maneira de
afirmar que não será o sujeito do trabalho aquele que produzirá transformações
estruturais no interior da vida social.
No entanto, no lugar do agente, o capitalismo coloca o sujeito clivado, tal
como o discurso da histérica, este sujeito que parece denunciar a falta
constitutiva do discurso do poder. Ou seja, este sujeito que por ser clivado tem
alguma forma de saber sobre a castração. Sujeito este, e esta é a grande diferença
do discurso do capitalista, que age diretamente sobre o que estava excluído,
abaixo da barra. Ele age sobre a verdade produzindo uma injunção de domínio
(S1). Por outro lado, no discurso do capitalista a verdade é o que tece relação ao
saber (S2), mas esta relação da verdade e do saber não significa uma
dessuposição do saber, como deveria ocorrer no interior, por exemplo, de um
processo de liquidação da transferência. O saber sobre a verdade, no capitalismo,

175 LACAN, Jacques; S XVII, p. 70


176 idem, p. 90
produz apenas um mais-gozar que, ao ligar-se diretamente à posição do sujeito,
cria um sistema de circulação incessante. Neste sentido, o discurso do capitalista
faz o que o discurso do mestre não é capaz de fazer, a saber, funcionar. Ele
funciona por integrar algo do que atravessa o sujeito em sua divisão, por dar a
isto a forma de um mais-gozar completamente absorvido dentro do processo
normal de funcionamento da produção.

O impasse proletário

Neste ponto, podemos compreender melhor as razões pelas quais Lacan


recusa a saída marxista de ver, no proletariado, o sintoma capaz de romper com
o circuito capitalista de produção. Na verdade, a sociedade dos proletários,
lembra Lacan, produziu até agora produziu apenas uma mais brutal sociedade do
trabalho. Daí porque encontraremos afirmações como:

De maneira que é por estar despossuído de tudo – antes, é claro, da


propriedade comunal – que o proletário encontra-se qualificado de
despossuído, o que justifica tanto o empreendimento quanto o sucesso da
revolução. Não é sensível que aquilo que lhe é restituído não é
forçosamente sua parte? Seu saber, a exploração capitalista efetivamente
lhe frustra transformando-o em algo inútil. Mas o que lhe é devolvido em
uma forma de subversão, é outra coisa – um saber de mestre. E é por isto
que ele apenas mudou de mestre177.

Afirmações desta natureza, e elas são várias em Lacan, demonstram sua


crítica à defesa marxista do proletariado como figura fundamental do sujeito
revolucionário. Sua tese é que o proletariado não pode aparecer como um sujeito
revolucionário, mas como a reiteração de um forma de domínio. Daí porque
Lacan dirá, por exemplo, que Marx não teria impedido a manutenção de um
discurso do mestre.
Na teoria marxista, ao menos na leitura de Lacan, o proletariado é o lugar
da constituição de um saber sob a forma da consciência de classe. Mais do que
uma forma de ação, o proletariado representaria a possibilidade da constituição
de um saber. Mas, para Lacan, este saber é forma de participação em uma
estrutura de domínio que representa a própria perda da possibilidade de
revolução. Esta consciência pressupõe uma forma de agência e deliberação
autônoma, pressupõe uma forma de domínio e de identidade, pressupõe
principalmente uma forma de relação aos objetos através do trabalho, como se o
trabalho pudesse produzir emancipação, o que Lacan nega seguindo sua
primeira influência de Bataille. Esta é inclusive uma das razões principais de sua
recusa dos desdobramentos da dialética hegeliana do senhor e do escravo.
Desta forma, ao menos aos olhos de Lacan, o proletariado não implica a
emergência de outra figura do sujeito. Implica apenas o deslocamento dos
centros de poder de uma classe sociológica a outra. O que Lacan procura é, como
vimos, um sujeito capaz de agir tendo em vista a dessuposição do saber do Outro,
uma destituição subjetiva que seja a verdadeira forma da despossessão.

177Idem, p. 34

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