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UFES - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO

DTAM - Departamento de Teoria da Arte e Musica

CAR - Centro de Artes

Adonias Lyrio Pereira

Análise do programa Choque de Cultura com base


no conceito de “Homem Cordial” de Sérgio Buarque.

Vitória

2018
Sumário
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 3
2 DESENVOLVIMENTO........................................................................................................................ 4
2.1 Choque de Cultura................................................................................................................... 4
2.1.1 A estrutura do programa................................................................................................. 4
2.1.2 Background e construção de personagens ..................................................................... 4
2.1.3 O tradicional humor brasileiro ........................................................................................ 5
2.1.4 Referencias e inspirações ................................................................................................ 5
2.2. O Homem Cordial .................................................................................................................... 6
2.2.1. Esfera pública e esfera privada ....................................................................................... 6
2.2.2. A cordialidade brasileira .................................................................................................. 7
2.3. Choque de Cultura e o Homem Cordial .................................................................................. 8
3 CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 10
4 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 11
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1 INTRODUÇÃO

Quando os “maiores nomes do transporte alternativo” se reúnem para discutir sobre cultura,
temos aqui uma sátira, que é sobre a alta intelectualidade, e outra sátira, que é sobre a média
da sociedade brasileira.

Choque de Cultura é um programa de humor do site de hospedagem de vídeos YouTube, que


teve seu primeiro episódio lançado no dia 21 de Novembro de 2016 no canal da TvQuase,
onde quatro motoristas de van, ou então, “os maiores nomes do transporte alternativo do
país”, faziam análise e davam suas opiniões sobre o filme “Animais Fantásticos e Onde
Habitam”, que ficou mais conhecido como “filme do Harry Potter que não tem Harry Potter”,
nesse vídeo. O conceito desse programa é bem simples: Quatro homens e classe baixa, sem a
devida instrução, entendimento técnico do assunto, embasamento teórico e completamente
“desprovidos de cultura”, dão informações e opiniões equivocadas sobre filmes ou séries de
TV, fazendo comentários absurdos enquanto compartilham algumas histórias de suas
profissões enquanto pilotos de van. Satirizando os programas de debate da televisão brasileira,
onde vemos pessoas, supostamente entendidas sobre um determinado assunto, o abordando.
Em que por vezes se posicionam tão firmemente sobre seus argumentos, que chegam ao ponto
de discutir em rede nacional.

Choque de Cultura é produzido pela TvQuase, e atualmente os episódios são postados no


canal do Omelete. A TvQuase também é responsável pelo “Falha de Cobertura” e “O Ultimo
Programa do Mundo”, dois programas que se originaram na MTV Brasil.
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2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Choque de Cultura

2.1.1 A estrutura do programa


Como é comum no YouTube, Choque de Cultura é muito simples, não tem variação de
cenário, ou acesso a muitos recursos de produção, sendo um programa de baixo orçamento.
Esse programa só tem duas coisas em que pode se agarrar. A primeira é a qualidade da
atuação dos seus atores, e a segunda é a qualidade do texto escrito pelos roteiristas. Choque de
Cultura já se estabeleceu como um novo fenômeno da internet brasileira. Quatro atores com
um timming impecável, interpretando estereótipos razoavelmente inofensivos, como os
“maiores nomes do transporte alternativo” em um programa sobre cinema. Ou seja, a
caricatura do povão brasileiro na casa dos 40, interpretando o mainstream pop internacional.

O programa é produzido pela TvQuase, que primeiro ganhou notoriedade com “O ultimo
programa do mundo” na MTV, onde o personagem “Rogerinho do Ingá” surgiu. Choque de
Cultura se inspirou em outro programa da TvQuase, o “Falha de Cobertura”, que já era uma
sátira aos programas de mesa redonda de futebol.

2.1.2 Background e construção de personagens


Enquanto os personagens discutem sobre cinema, vão revelando, ou melhor, deixando escapar
uma ou outra informação sobre a vida deles. São nesses momentos muito discretos, quase
escondidos no meio do roteiro, que os personagens vão se moldando, caracterizando e
ganhando vida. É assim que se descobre que Renan não é um bom pai.

“Quando o meu filho era neném, Rogerinho, eu comprei um pet pra ele, uma aranha caranguejeira
lindíssima, do tamanho de um pirex, assim ó, toda peluda, parecia um bicho de pelúcia mesmo, ela tem
os pelinhos dela. Deixei no quartinho do meu filho pra alegrar ele, deixei solto mesmo, que é pro animal
ficar livre. Ai cheguei um dia e ela tinha sumido, Rogerinho! E meu filho tava todo picado, todo
inchado! Sem super poder nenhum, Rogerinho. Cê acredita nisso? Ainda joguei ele pra cima pra ver se
ele tinha um super poder, ele caiu todo torto, igual uma trouxa de roupa. A minha sorte é que eu não
morava mais em casa, já tava separado, corri pra minha casa, né? Fui embora. E ainda liguei pra minha
ex-mulher e perguntei „Cadê Renanzinho?‟, ela falou que não sabia, dei um esporro nela, ainda.” –
RENAN DA TOWNER AZUL BEBE; 2018; MARVEL vs DC | Choque de Cultura, 06m:20s.
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E fazendo isso, apenas recorrendo ao texto, Choque de Cultura consegue ter mais personagens
do que aqueles que aparecem na tela. É justo dizer que o filho do Renan, vulgo Renanzinho, é
um dos personagens, embora nunca, de fato, tenha aparecido no programa. O mesmo ocorre
com a sempre citada “Simone”, a quem Rogerinho do Ingá, apresentador do programa,
sempre recorre quando precisa pedir uma vinheta ou execução de vídeo.

2.1.3 O tradicional humor brasileiro


Choque de Cultura agrada pois ele percorre um caminho que o humor brasileiro tinha
abandonado. Durante muitos anos o Brasil praticou um tipo de humor que se apoiava em
personagens e roteiros de ficção, mas de uns anos pra cá o Brasil descobriu o Stand-Up
Comedy. Quando a critica social feita no Stand-Up Comedy é bem embasada, ela pode
adquirir o status de filosofia, como foi feito por comediantes americanos, como George
Carlin. Entretanto, esse modelo de comédia ainda é uma novidade no Brasil e não teve tempo
de amadurecer. O Stand-Up Comedy brasileiro precisa de tempo para adquirir tradição e
evoluir. Choque de Cultura não tem nada a ver com o Stand-Up Comedy brasileiro, e esse é
um dos motivos para ele ser tão apreciado. Em Choque de Cultura você tem bons atores
atuando e bons roteiristas escrevendo. No tipo de humor feito pelo Choque de Cultura o Brasil
tem mais tradição, o mérito do Choque de Cultura está em resgatar essa tradição e dar um
novo significado a ela, pois quando esse tipo humor é colocado pra funcionar junto com a
critica cultural, você não tem só uma antiga formula sendo bem executada, você tem uma
coisa completamente nova e original.

2.1.4 Referencias e inspirações


Tem uma citação parafraseada do autor E. B. White que diz “Analisar humor é como dissecar
um sapo. Poucas pessoas estão interessadas e o sapo morre”. Mesmo assim, muitos blogs e
fóruns da internet tentam refletir sobre o conteúdo de Choque de Cultura.

O tipo de humor de Choque de Cultura é comparado à Hermes e Renato e à TvMacho da


antiga TV Pirata. Há toda uma discussão a respeito de se Choque de Cultura é um retorno
mais refinado ao “humor de personagem” de Chico Anísio, ou uma cria nova da esfera da
internet. O que ninguém parece discordar é que tem uma quintessência brasileira no humor de
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Rogerinho, Julinho, Renan e Maurilio. Mas o que exatamente o humor brasileiro tem de
Quintessencial?

2.2. O Homem Cordial

2.2.1. Esfera pública e esfera privada


Em entrevista a Veja, Elias Thomé Saliba, autor do livro “Raízes do Riso”, que explora as
origens da comédia nacional, declara que o humor brasileiro tem duas particularidades que o
destaca dos demais: A confusão entre as esferas publica e privada; E a vocação para tratar
tudo de maneira emocional.

A esfera publica é onde os membros de dada sociedade tratam de problemas em comum, de


um ponto de vista cívico, formando uma sociedade politica essencial ao Estado Democrático,
seja um tribunal, um fórum, uma coluna de revista, ou mesmo uma mesa de bar. Alguns
estudos até apontam o YouTube como uma nova revolução nas esferas publicas. A esfera
publica é onde, idealmente, nos apresentamos de maneira formal, impessoal, divorciados de
nosso senso de personalismo.

Na esfera privada é onde somos familiares, amigos, conhecidos, ou conhecidos de


conhecidos, e podemos exercer um nível autoridade independente do Estado, diferente da
esfera publica, isto é, onde se supõe que nós somos cidadãos, com direitos iguais a todos,
independente das nossas relações da esfera privada, e isso deve ser lidado com um certo
distanciamento emocional, não importando seus sentimentos pelo outro na esfera privada,
para evitar que, digamos, um cidadão seja mais cidadão que outro. E nisso é onde,
aparentemente, nós brasileiros costumamos falhar.

Então um brasileiro na esfera publica, quando deveria lidar com os outros de maneira
dissociada a como ele se sente com esses outros na esfera privada, acaba justamente tratando
eles de forma emocional, como forma de reduzir as distancias sociais, pois brasileiros têm
aversão as distancias sociais. Por outro lado, adoram personalismo. Nesse aspecto, diminuir as
distancias sociais não é sinônimo de igualdade.
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2.2.2. A cordialidade brasileira


Sergio Buarque de Holanda, pai de Chico Buarque e um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores, em 1936 ele publicou o livro “Raízes do Brasil”, uma das obras mais
fundamentais da sociologia brasileira. Dividido em sete partes, ele interpreta a formação da
nossa sociedade. O conceito mais famoso a sair dali é o do “Homem Cordial” que, como o
nome sugere, trata sobre a famosa cordialidade do brasileiro, que geralmente faz e pensa tudo
a partir da afetividade, tendo uma imensa dificuldade para entender as formalizações políticas
e sendo, portanto, incapaz de separar daquilo que é público, o que o é privado. E isso tudo
pode ser traçado como herança da colonização portuguesa.

O Brasil foi colonizado primariamente, não por pessoas que estavam em busca de uma nova
terra pra morar, mas por aventureiros, como o livro chama, em busca de ouro, joias e nada
muito a longo prazo. As plantações de cana e café foram muito mais um aproveitamento de
espaço desses aventureiros, do que uma ação de civilização agrícola. Brasil colônia, que
cordialmente existia pra extrair recurso pra Portugal, cujo modelo de produção predominante
era o plantation. Ou seja, monoculturas em grandes propriedades, nas quais as relações de
poder giravam em torno da escravidão e do micro cosmo do senhor de engenho, em uma
hierarquia de autoridade patriarcal, patrimonialista e de caráter familiar. Com o fim da
escravidão, que vem mais tarde que em qualquer outro lugar do mundo, a população migra
para as cidades e leva com ela esse modelo. O país se moderniza, se modelando igual a
Europa, ou os outros países emergentes da américa, mas sem atualizar o velho paradigma de
relações sociais da fazenda, a nossa Herança Rural.

Isso continuou mesmo com a chegada da independência. Enquanto outros países da América
estão declarando a independência e se reestruturando como Republica, o Brasil declara
independência e forma um império, com o filho do príncipe regente de Portugal como
imperador. O esquema social, mais uma vez, não foi alterado. Com a vinda da Republica
velha, isso ainda persistiu, apenas colocando a elite rural no poder, fazendo muito pouco que
promovesse o real espirito democrático. Tanto tempo se passando, e o modelo de homem
cordial continuava predominando e, de muitas formas, como um país com uma democracia
tão jovem e tão turbulenta, o homem cordial continua predominando.

Sérgio Buarque traçou, com isso, a gênese do “jeitinho brasileiro”, e como ele não só é a
forma como a elite conseguiu manter seu domínio da sociedade, mas o ritual público de como
a sociedade brasileira se organizou. E isso afeta tudo em nosso comportamento, desde as
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macro interações entre grandes monopólios de poder, até micro interações de pequenos
poderes do nosso dia a dia. É por isso que se vê tantos profissionais com qualquer tipo de
ensino superior insistindo em ser chamado de “doutor”, por uma questão puramente
personalista. É por isso que desde o dono de um grande escritório de sucesso, até um
marceneiro, vão se sentir pressionados a chamarem os sobrinhos para trabalharem com eles. E
é por isso que o brasileiro tem a tendência de transformar qualquer tipo de discussão formal
em uma mesa redonda de futebol. O que nos leva de volta ao Choque de Cultura.

2.3. Choque de Cultura e o Homem Cordial


É a junção entre o formato de programa sobre cinema e quem o executa, isto é, “os maiores
nomes do transporte alternativo”, representando uma caricatura do brasileiro, que todo
brasileiro reconhece instantaneamente, que cria uma transgressão das normas que dá origem
ao humor do Choque de Cultura. Mas a essência dessa caricatura é que é o mais importante.
Não é só o que lhes faltam de bagagem de cultura, não é só que eles tenham a incrível baixa
autoestima brasileira, e não é só que eles só saibam expressar platitudes e frases de efeito que
não tem sentido. É a essência da cordialidade brasileira, a eterna redução das distancias
sociais. Pois Choque de Cultura é a tragicomédia de personagens tentando se apresentar como
comunicadores formais, da esfera pública, mas se sabotando com suas tendências cordiais; o
brasileiro que tenta, mas não consegue, se expressar em outra linguagem que não a conversa
de botequim sobre futebol.

A medida que a internet se populariza e conglomerados tem alcance cada vez mais globais, a
tendência de sermos cada vez mais versados em cultura pop se torna mais comum, e até
necessária, e agora nós damos risada da tentativa do brasileiro médio de tentar se integrar a
essa cultura sem sucesso. Eles são um bom programa de humor por que retratam o pior
programa de debate, a mais pura representação da esfera publica dando errado. “Eles se
comunicam usando máximas, fruto de um pensamento estreito e radical. É sintético por ser
ignorante. E eles nem sequer realmente debatem, apenas falam as suas verdades de forma
quase paralela” diz Caito Manier em uma rede social, um dos atores e roteiristas do show.

De volta a entrevista de Elias Thomé Saliba, ele define o humor brasileiro como um reflexo
da nossa identidade, ou melhor, da nossa falta de identidade. Devido as deficiências da
construção da nossa sociedade, que o Sérgio Buarque explicou, a ausência do nosso real
espirito democrático, brasileiros só se sentem brasileiros em momentos emocionais, rápidos e
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circunstanciais, como o carnaval, o futebol ou a risada. Então, quando rimos das máximas
reducionistas absurdas que Rogerinho, Julinho, Renan e Maurilio gritam, é nesses momentos
que se torna tangível, mesmo que por um instante, nosso senso de identidade como
brasileiros. É por isso que Choque de Cultura é tão engraçado.
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3 CONCLUSÃO

Nos dias de hoje é bem comum encontrar vários canais no YouTube que fazem analises de
filmes, séries e outros tipos de mídia, mostrando a filosofia por trás dessa mídia e dando
ênfase aos aspectos técnicos e composicionais de cada uma delas. Choque de Cultura mostra
que não precisamos ser críticos de cinema pretenciosos, utilizando palavras difíceis como
“metalinguagem” ou “nuances”. Ele nos lembra de que antes de ser uma obra de arte, um
filme é uma obra de entretenimento. Independente do seu gosto pra filmes e como você os
absorve, qualquer pessoa pode falar com propriedade sobre filmes ou qualquer peça de
entretenimento.

O programa demonstra, de forma intencional ou não, o que ocorre quando a esfera pública se
encontra com a privada. Pondo motoristas de van para analisar e discutir a respeito de obras
da sétima arte. Cria e desconstrói estereótipos do humor, apresentando quatro personagens
com a mesma profissão e faixa etária, mais com personalidades que destoam, algo que não se
vê nos programas de TV com muita frequência, onde a tendência é a esteriotipação de gênero
e classe.
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4 REFERÊNCIAS

https://www.youtube.com/user/tvquase

MARVEL vs DC | Choque de Cultura - https://www.youtube.com/watch?v=LGqtS7TpfGs&

Choque de Cultura é Brasil, mas… - https://medium.com/@jpbley/choque-de-cultura-


%C3%A9-brasil-mas-e9b13964acd4

Choque de Cultura: a revolução na crítica cinematográfica - https://trendr.com.br/choque-de-


cultura-a-revolu%C3%A7%C3%A3o-na-cr%C3%ADtica-cinematogr%C3%A1fica-
b7eb69d48e2

http://www.brechando.com/2018/01/choque-de-cultura-e-critica-para-aqueles-que-sabem-
sobre-tudo/

Humor brasileiro reflete a nossa falta de identidade, diz historiador -


https://veja.abril.com.br/entretenimento/humor-brasileiro-reflete-a-nossa-falta-de-identidade-
diz-historiador/

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil.

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